Upload
buithuy
View
229
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
TIAGO COELHO FERNANDES
PLEBÉIAS BATALHAS: Teoria crítica e ação política dos povos
originários de Abya Yala
ESS/UFRJ
2009
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
PLEBÉIAS BATALHAS:
Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala
Tiago Coelho Fernandes
Escola de Serviço Social
Mestrado
Orientador: Prof. Doutor
Marildo Menegat
Rio de Janeiro
2009
iii
PLEBÉIAS BATALHAS:
Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala
Tiago Coelho Fernandes
Dissertação submetida ao corpo docente da Escola de Serviço Social, Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do grau de Mestre.
Aprovada por:
Prof. Marildo Menegat - Orientador
(Doutor em Filosofia - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Prof. Carlos Walter Porto-Gonçalves
(Doutor em Geografia - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Prof. José Maria Gomez
(Doutor em Ciências Políticas e Sociais - Université Catholique de Louvain.)
Rio de Janeiro
2009
iv
Fernandes, Tiago Coelho.
Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos
originários de Abya Yala / Tiago Coelho Fernandes. – Rio de Janeiro,
2009.
181 f.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Serviço Social, 2009.
Orientador: Marildo Menegat
1. Movimentos indígenas. 2. América latina. 3. Colonialidade. 4.
Resistência. I. Menegat, Marildo (Orient.). II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social. III. Plebéias batalhas:
Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala.
v
AGRADECIMENTOS & DEDICATÓRIA
Esta pesquisa foi feita em um caminhar, que espero apenas inicial, pelos
labirintos de Abya Yala-Nuestra América. Os personagens reais que a compuseram e
inspiraram são tantos, de tão distintas situações, que enumerá-los aqui ocuparia
demasiado espaço, em boa parte inútil, já que a maioria sequer tomaria conhecimento da
menção. Ademais omissões seriam inevitáveis, já que além dos esquecimentos que
fatalmente nos traem nessas horas, de muitos encontros fundamentais para as idéias que
formaram esse texto me faltou registrar o nome do interlocutor.
Portanto, fujo da formalidade de listar incontáveis nomes aqui e peço que se
considere devidamente “agradecido” (ou agradecida) quem chegar a ler esta versão,
lembrando que das montanhas de Chiapas aos territórios mapuche estão muitos
hermanos a quem gostaria de agradecer por participarem mesmo que inconscientemente
desta experiência. Estão aí também, na travessia desses territórios e nos tempos que por
aí se entrecruzam, aqueles a quem dedico esse esforço que me foi possível.
Minha exceção vai para a única pessoa que esteve presente em cada passo dessa
caminhada. Companheira, revisora, hermana, crítica, musa inspiradora, co-piloto... um
pouco Dulcinea del Toboso com sua formosura inigualável, um pouco Sancho Pança
com sua lealdade inabalável (e seus questionamentos impertinentes). Andreza, muito
obrigado.
vi
RESUMO
FERNANDES, Tiago Coelho. Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos
originários de Abya Yala. Orientador: Marildo Menegat. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS,
2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social).
A emergência política dos povos originários põe em questão não apenas as
interpretações tradicionalmente produzidas sobre esse sujeito, como as próprias
premissas que sustentam os Estados-nação latino-americanos, denunciando o caráter
colonial da utopia criolla da modernidade e da integração à “civilização ocidental”, no
momento mesmo em que esta buscava reafirmar-se enquanto paradigma através do
discurso neoliberal. A partir desse quadro, o objetivo deste trabalho é analisar a
emergência política dos povos originários de Abya Yala, buscando aprofundar a
compreensão, desde uma abordagem multidisciplinar, do significado político e teórico
dos movimentos sociais indígenas contemporâneos.
vii
ABSTRACT
FERNANDES, Tiago Coelho. Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos
originários de Abya Yala. Orientador: Marildo Menegat. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS,
2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social).
The political insurgency of american indigenous people not only questions
tradicional interpretations about this subject, but also the foundations of latin american
nation-state. It denounces the colonial permanence in the criollo project of modernity
and integration to „occidental civilization‟ in the exact moment of its self determination
as a universal paradigma through neoliberal discourse.
The purpose of this work is to analyse this political presence, looking for a
deeper comprehension, from a multidisciplinary approach, of political and theoretical
meanings of contemporary indigenous social movements.
viii
ADVERTÊNCIA
Nomear este continente foi e continua a ser um problema teórico sem solução
definitiva, apesar de tratado por diversos ensaístas. A herança colonial, a diversidade
étnica e cultural, desafiam a construção da identidade desde os nossos primeiros passos.
E como veremos, continuam pendentes. Conseqüentemente, uma reflexão que tencione
desenvolver um aprofundamento crítico de nossa condição histórica deve revisar
também nome e sobrenome que homenageiam e vinculam ao colonizador.
Por entender que nomear foi uma forma de garantir a dominação, mas também
que a linguagem representa um campo de disputa, assimilamos nestas reflexões as
contradições que envolvem os nomes possíveis para este continente.
O termo América Latina me parece o mais infeliz para definir esta parte do
mundo, pois o eixo das leituras que alimentaram esta pesquisa aponta justamente para
sua “deslatinização”, enquanto o nome que resta não passa de uma homenagem
acidental a um indivíduo que pouco se relaciona com sua formação... Porém, é quase
impossível abolir ambos termos, sob risco de tornar-se ininteligível e puramente
excêntrico, além de desconsiderar as apropriações por que já passou, expressando uma
indentidade que se contrapõe à potência imperialista do norte. Ainda assim, América
latina e suas derivações aparecem pontualmente, e dou preferência às denominações
testadas em distintos contextos na perspectiva de afirmar essa identidade desde
formulações próprias, como Nuestra América de José Martí, a Pátria Grande referida
por Artigas, Indoamérica (que também é afro-mestiça), além, é claro, de Abya Yala,
adotada por movimentos indígenas de diversos países.
O sujeito analisado também tem sua nomeação revista. A palavra “índio” tende a
expressar o sentido pejorativo e só aparece em citações ou quando atribuída ao universo
branco-mestiço. Nas minhas elaborações, adotarei as expressões povos originários,
povos ou nacionalidades indígenas, consolidados pela maioria dos movimentos de que
tenho notícia. Vale lembrar que o termo “indígena” tem hoje um sentido mais geral,
sinônimo de “nativo”, conforme empregado pela ONU e outros fóruns internacionais.
Devo advertir ainda quanto às citações textuais que, sendo boa parte da
bibliografia e documentação consultadas disponíveis apenas em castelhano, foram
mantidas nesta versão conforme o original.
ix
ÍNDICE DE SIGLAS
AIDESEP Asociação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana
ALCA Área de Livre Comércio das Américas
APPO Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca
CAOI Coordenadora Andina de Organizações Indígenas
CAP Cooperativa Agrária de Produção
CCP Confederação Camponesa do Peru
CCRI Comitê Clandestino Revolucionário Indígena [EZLN-Méx]
CIDOB Central Indígena del Oriente Boliviano
CISA Conselho Indígena da América do Sul
CMPI Conselho Mundial de Povos Indígenas
CNA Confederação Nacional Agrária [Per]
CNTE Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação
COICA Coordenadora de Organizações Indígenas da Conca Amazônica
CONAP Confederação das Nacionalidades Amazônicas do Peru
CONAICE Confederação de Nacionalidades Indígenas da Costa Equatoriana
CONAIE Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador
CONACAMI Confederación Nacional de Comunidades del Perú Afectadas por la
Minería.
CONFENIAE Confederación de las Nacionalidades Indígenas de la Amazonia
Ecuatoriana
CPESC Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz
CSUTCB Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses de Bolívia
x
CTM Central de Trabalhadores Mexicanos
ECUARUNARI
Ecuador Runacunapac Riccharimui (Do quechua: Despertar dos
Indígenas do Equador) - Confederação dos Povos de Nacionalidade
Kichua do Equador
EGP Exército Guerrilheiro dos Pobres [Gua]
EGTK Exército Guerrilheiro Tupac Katari
EPS Exército Popular Sandinista
EZLN Exército Zapatista de Libertação Nacional
FEINE Federação Evangélica Indígena do Equador
FEJUVE Federação de Juntas Vicinais
FIPI Frente Independente dos Povos Índios [Méx]
ICCI Instituto Científico de Culturas Indígenas
IIRSA Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana
FSLN Frente Sandinista de Libertação Nacional
MAS-IPSIP Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos
Povos
MIP Movimento Indígena Pachakuti [Bol]
MUPP-NP Movimiento de Unidad Plurinacional Pachakutik-Nuevo País
POUM Partido Obrero de Unificación Marxista
PRI Partido Revolucionário Institucional
SAIS Sociedades Agrícolas de Interesse Social [Per]
SINAMOS Sistema Nacional de Mobilização Social
THOA Taller [Oficina] de História Oral Andina
TLC Tratado de Livre Comércio
xi
TLCAN Tratado de Livre Comércio da América do Norte
UCEZ União de Comuneros Emiliano Zapata
xii
SUMÁRIO
P.
PARTE 0 – O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR 15
PARTE 1 – POVOS ORIGINÁRIOS EM MOVIMENTO.
I. Em que se relata a larga travessia de Alonso Quijano pelas longínquas
terras de Abya Yala, onde conheceu povos dos quais jamais tivera
notícia, achando fantástica a maneira como construíam sua luta,
reconstruindo diariamente sua memória.
26
I.1) Sobre a caminhada pela Selva Lacandona, que guardava muitas
histórias de um México profundo.
31
I.2) Em que se conhece um pouco da trajetória, da teoria e da prática
de um exército que transformaria as armas num meio para garantir as
palavras e que abdicaria da conquista do poder como estratégia.
33
II. Em que Dom Quixote passa por paisagens que o fizeram lembrar que era
o Cavaleiro de Triste Figura e encontra povos que primeiro vivenciaram a
experiência da autonomia e outros que deram um nome a esse continente
que insistem em chamar América.
44
III. No qual se relata a passagem a uma outra região onde, por caminhos
distintos, os povos originários também recusaram a morte pelo
esquecimento e construíam o amanhã a partir do seu ontem, desafiando as
constituições dos moinhos de vento institucionais que por duzentos anos
mediaram as relações de dominação e resistência nessas sociedades.
51
IV. Em que se relata ao Cavaleiro de Triste Figura o novo despertar dos
povos originários em território equatoriano.
52
V. “As linhas do muro brincavam com o sol; as pedras não tinham ângulos
nem linhas retas; cada qual era como uma besta que se agitava à luz;
transmitiam o desejo de celebrar, de correr por alguma pampa, lançando
gritos de júbilo”.
61
VI. Em que o engenhoso fidalgo conhece a rebeldia da plebe aimará que
povoa o altiplano boliviano e seus arredores.
68
VI.1) Matriz andina e matriz amazônica 71
xiii
VII. Que serve para organizar as idéias, num esforço de síntese do que foi
visto, ouvido e sentido na travessia quixotesca por Abya Yala.
76
PARTE 2 – “DESENVOLVIMENTO É UMA VIAGEM COM MAIS
NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES” OU
UMA APOLOGIA DOS BÁRBAROS
I. Considerações iniciais. 79
II. O processo histórico da colonialidade e os ciclos de resistência indígena-
plebéia.
87
II.1) As rebeliões anticoloniais e a formação dos Estados “nacionais”. 88
II.2) A força dos da plebe andina (origens dos “métodos plebeus” no
Tawantisuyu).
90
II.3) A matriz do nacional-popular no México. 94
II.4) Do assalto ao céu ao saque de terras. 98
II.5) O ciclo de crise das repúblicas liberais 102
II.6) Tempestades nos Andes 102
II.7) Uma revolução indígena no México? Zapata e a Comuna de
Morelos.
105
II.8) Revolução, modernismo e indigenismo. 109
II.9) Um novo Pachakuti? 112
PARTE 3 – ENSAIO SOBRE A FORMA-COMUNA
I. Apresentação 121
II. A forma comuna na história 126
II.1) Uma matriz para pensar a comunidade-comuna. 126
II.2) A revolução fundamental na Rússia. 129
II.3) A revolução espanhola e a difusão da comuna. 131
II.4) Um esboço de síntese teórica da comuna no contexto europeu. 132
III. Abya Yala: da comunidade à comuna? 134
III.1) A comunidade originária em Abya Yala 135
III.2) A chave andina para a síntese teórica da experiência da comuna
em Abya Yala
138
xiv
III.3) Os movimentos societais contemporâneos e o ressurgimento da
comuna: da resistência à revolução?
143
III.4) Bases para uma democracia comunitária no altiplano andino 144
III.5) EZLN e os caminhos da autonomia 146
III.6) A comuna de Oaxaca 149
IV. Sete teses para uma práxis comunitária 150
PARTE 4 – OLHAR O PASSADO PARA CAMINHAR PELO PRESENTE
E O FUTURO
153
I. As principais reivindicações 154
II. Movimentos como forças criadoras 155
III. Dilemas e ameaças para os movimentos indígenas 156
III.1) O discurso da reação 157
III.2) Desencontros e encontros 158
III.3) O desafio do progressismo 164
REFERÊNCIAS 167
Parte 0 – O caminho se faz ao caminhar
Dedicar-se aos estudos desta região que se convencionou chamar América latina
continua sendo um exercício permanente de enveredar por temas e problemas que
ecoam em diferentes momentos históricos, ainda que sob novos matizes, repensando
permanentemente sujeitos e processos que assumem por aqui dinâmicas alheias a
modelos pré-estabelecidos. Não raro as questões iniciais se entrelaçam num fio de
novelo que leva a refletir sobre nossa condição, tornando recorrentes as metáforas de
espelhos e labirintos.
Um desses campos temáticos se relaciona com as sociedades anteriores à
conquista européia e os povos que delas descendem. Por muito tempo tido como
resquício pitoresco e folclórico do passado, fadado à sobrevivência apenas em museus e
datas comemorativas ou “utopia arcaica” (LLOSA, 1996) a ilustrar projetos estéticos e
políticos, o “índio” irrompeu em fins do século XX recusando de maneira contundente a
condição de objeto (de estudos e de políticas públicas), recriando a partir de termos
próprios seus marcos identitários e impondo seu papel protagônico nos espaços políticos
e teóricos em vários países e fóruns internacionais.
“Até recentemente estes indigenatos eram vistos pelos estudiosos como
meros campesinatos que ainda opunham resistência a uma assimilação
que parecia inexorável. Acreditava-se que com uma boa reforma agrária,
alguma assistência educacional e também com a ajuda das práticas
insidiosas do indigenismo eles deixariam da mania de serem índios para
se fazerem bons cidadãos peruanos, bolivianos, guatemaltecos e
mexicanos.” (RIBEIRO, 1986, p. 130)
Assim, o novo despertar dos povos originários, põe em questão não apenas as
leituras tradicionalmente produzidas sobre esse sujeito, como as próprias premissas que
sustentam os Estados-nação latino-americanos, denunciando com sua práxis o caráter
colonial da utopia criolla da modernidade e da integração à “civilização ocidental”, no
momento mesmo em que esta buscava reafirmar-se enquanto paradigma através do
discurso neoliberal. Portanto, essa irrupção questiona também os termos da
16
“globalização” celebrada no início dos anos 90 como forma última do pós-guerra “fria”
(e de muitos outros “pós” que então se buscavam afirmar). Recorramos então à
conhecida metáfora: “Los indígenas se han transformado en estos años en una suerte de
espejo de la sociedad latinoamericana, donde esta se ve deformada.” (BENGOA, 2000,
p. 12).
Vista retrospectivamente desde terras americanas, a década passada pode ser lida
como a da emergência indígena, cujos primeiros desdobramentos apenas começam a ser
vistos. “É como se, a um sinal só inteligível para eles mesmos, todos começassem a
reclamar e a se auto-afirmar com a maior veemência.” (RIBEIRO, 1986, p. 125). No
contexto de crepúsculo da classe operária e de derrotas históricas das esquerdas, o
surgimento de um sujeito capaz de sintetizar demandas gerais e retomar o debate sobre
os projetos de nação merece uma investigação aprofundada.
Compreender esse fenômeno, analisando suas conseqüências, é o que motiva
este trabalho. Seria pretensioso demais acreditar no sucesso completo da empreitada,
pois além dos limites inevitáveis de uma dissertação de mestrado, por um pesquisador
que apenas começa a se aventurar nas trilhas do ofício, estão as barreiras bibliográficas,
culturais, editoriais, informativas, burocráticas, acadêmicas e de toda espécie que
separam o Brasil daquela que se entende por Nuestra América. Ainda assim, espero que
seja possível um balanço positivo dessas aproximações iniciais, tanto pelo exercício de
propor questões e análises pertinentes, como pela possibilidade de tentar traduzir para o
ambiente brasileiro alguns debates que, apesar da importância que tem atualmente em
territórios vizinhos, têm sido tratados por aqui não mais que esporádica e
tangencialmente.
Sem que esta fosse uma deliberação inicial, creio ter me aproximado da proposta
de mapeamento cognitivo, elaborada por Jameson para o desafio de representar o
mundo contemporâneo em sua extrema complexidade, “... de tal modo que nós
possamos começar novamente a entender nosso posicionamento como sujeitos
individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está, hoje,
neutralizada pela nossa confusão espacial e social”. (JAMESON, 2004, p. 79)
A partir da dimensão política de alguns movimentos indígenas, desenvolveu-se
nos últimos anos um debate teórico-político que ganha vulto no continente. As
possibilidades da resistência às diretrizes da dominação são invariavelmente marcadas
17
pelo desenrolar dos conflitos e as perspectivas de acomodação ou construção de
alternativas, das quais os povos indígenas se tornaram sujeitos políticos protagônicos.
Em um país como o Equador, de espaços acadêmicos restritos, o volume de
publicações sobre os indígenas tornou-se onipresente a ponto de a temática indígena ser
acusada de obscurecer outros temas importantes. “La explicación está, por supuesto, en
el vínculo indisoluble que liga la „cuestión indígena‟ al „problema nacional‟.”
(PERALTA; CAZAR, 2003, p.10)
No México, por sua vez, o zapatismo ganhou a proporção de considerável
fenômeno midiático, com evidente reflexo na qualidade e abordagem de publicações e
pesquisas acadêmicas sobre a “questão indígena” após o levante de 1994. Conforme
indica Guilherme Gitahy de Figueiredo em sua dissertação de 2003, logo nos primeiros
meses o tema dera origem a dezenas de livros, artigos e compilações de documentos
como dificilmente fora visto antes. (FIGUEIREDO, 2003, p. 27)
Por outro lado, com exceção do zapatismo, que influenciou alguns círculos de
intelectuais e militantes, instigando algumas pesquisas acadêmicas, no Brasil os
movimentos indígenas aparecem ainda como uma referência longínqua e genérica, já
que inevitável quando se analisa os conflitos que marcaram o continente na última
década. Nesse sentido é importante que a academia brasileira rompa com as tendências
ao auto-referenciamento e ao recurso exclusivo às matrizes européias de pensamento,
abrindo-se à reflexão a partir da realidade do continente e tomando parte nos debates
que marcam a geração contemporânea de intelectuais e pesquisadores nos demais países
americanos. Espero com este trabalho dar um passo inicial nesse sentido, atento a uma
tendência esporádica, mas recorrente em nossa tradição intelectual.1 Vale mencionar
que esse esforço de retomada se dá num momento propício pelo crescente interesse,
acumulado nos últimos anos, pelos temas de Nossa América.
A partir desse quadro, o objetivo deste trabalho é analisar a emergência política
dos povos originários, buscando compreender o significado político e teórico dos
movimentos sociais indígenas contemporâneos. Algumas questões que orientaram a
investigação e foram sendo desenvolvidas no caminho, são refletidas na distribuição e
1 Refiro-me à projeção continental de uma série de intelectuais, de Manoel Bomfim no início do século
XX, às experiência de Teoria da Dependência nos anos 60 e 70, passando pelo pensamento de Darcy
Ribeiro, Celso Furtado, apenas para mencionar alguns dos que adotaram a Nossa América como
campo de reflexão.
18
estruturação do texto. Qual o ponto de partida desses movimentos, seus conceitos, suas
perspectivas? Porque o camponês se torna indígena? O que marca a virada da noção de
índio como um estigma para a identidade de povos originários como um marco
positivo? Como essas idéias se embatem com a noção liberal de Estado-nação e afetam
a conformação histórica das sociedades americanas? É possível vislumbrar uma práxis
contra-hegemónica a partir do núcleo organizativo comunitário?
Na perspectiva que assumo, essas temáticas estão permeadas pelo debate da
inserção de Abya Yala na modernidade capitalista e as formas de dominação e
resistência gestadas sobre ou desde os povos do continente. Nesse campo, há um amplo
debate a ser empreendido, reexaminando desde uma perspectiva crítica e das classes
subalternas, os fundamentos dos Estados latino-americanos e da idéia de nação,
fundados no paradigma europeu; assim como a noção liberal e individualista de direito
ou a pretensão universalista, embora igualmente individualista, de direitos humanos.
Inserido no contexto de resistência das classes subalternas ao atual padrão de
acumulação capitalista, o renascer contemporâneo dos povos originários traz uma série
de elementos distintivos, tanto de processos anteriores, como de outros movimentos
sociais contemporâneos. No primeiro caso, podemos mencionar o referido
protagonismo teórico e político dos próprios povos indígenas, superando mesmo os
mais radicais enfoques indigenistas2 e potencializando uma crítica prática3 da sociedade
contemporânea, que certamente enriquece as alternativas a serem construídas.
Comparando a outros movimentos sociais, sobressaem outros elementos além da
etnicidade, que imprimem aos movimentos indígenas uma dinâmica distinta à dos
chamados novos movimentos sociais, das décadas de 1960 e 70.4 O primeiro é que em
diferentes países, de maneiras diversas, esses movimentos se colocaram diretamente no
debate sobre a questão do poder. Com origens e conceitos distintos, pautados pelos
conflitos locais e pelas particularidades de cada Estado, os lancandones, choles,
tzetltales e tojolobales zapatistas; os quéchuas e aimarás do altiplano, de Cochabamba
2 O indigenismo se caracteriza por uma corrente de pensamento ou um conjunto de políticas favorável
aos indígenas, mas sem a sua participação direta. Segundo Henri Favre, esse movimento ideológico
atravessa a história do continente e recorre o conjunto da sociedade. (FAVRE, 2007) Nesse sentido, o
termo é amplo o bastante para incluir desde um Frei Bartolomé de las Casas, considerado seu
fundador, às diretrizes de um determinado governo, sendo o México pós-revolucionário sua expressão
mais conhecida. 3 Ver as Teses sobre Feuerbach (MARX, 1998, p. 99)
4 Entre os quais estão os movimentos negro, feminista, ecologista, de homossexuais.
19
ou de El Alto; os quéchuas, chachi e shuar reunidos na CONAIE enfrentaram e estão
buscando construir as respostas quanto às alternativas possíveis diante dos poderes
constituídos. Assim, o próprio tema da identidade étnica extrapola os termos dos
multiculturalismos pós-modernos, assumindo uma dimensão conflituosa que as leituras
fragmentárias dificilmente dão conta. Outro fator distintivo é que, por sua conformação
histórica e por outros elementos que precisam ser mais bem investigados – podemos
inicialmente apontar o papel da intelectualidade indígena – algumas expressões dos
movimentos atuais articulam um discurso nacional que desafia os conceitos tradicionais
de nação e suas expressões no contexto latino-americano. Além disso, cabe destacar a
temporalidade e a territorialidade recriadas desde o âmbito comunitário, atravessando
esses embates como eixos articuladores da resistência popular-indígena.
O olhar de conjunto se justifica, não apenas pelo lugar de onde fala o
pesquisador, limitado no contato direto com os sujeitos estudados, mas a partir da
observação, de dinâmicas comuns entre movimentos indígenas, tanto em escala regional
(Andes, Mesoamérica, Amazônia...), como no âmbito continental, sustentada em
autores como José Bengoa, Anibal Quijano, Rodrigo Montoya, Miguel Bartolomé,
Héctor Diaz-Polanco, Rodolfo Stavenhagen, Xavier Albó, apenas para mencionar
algumas referências constantes deste trabalho. Com essa abordagem, tampouco
pretendo ofuscar especificidades étnico-culturais, tão caras ao discurso autolegitimador
dos movimentos sociais, já que a afirmação da diferença é inegavelmente uma de suas
motivações básicas. Mas abstenho-me de certas tarefas para as quais os pesquisadores e
intelectuais conterrâneos certamente tratam com mais elementos.5
A redação final se estruturou em quatro partes, que a princípio não seguem uma
ordem lógica e diferem também no formato. No entanto, espera-se que ao final esteja
claro o sentido complementar das reflexões desenvolvidas.
Na primeira parte será apresentado um panorama dos movimentos sociais
indígenas no continente. Observando a trajetória das últimas décadas, pretende-se lançar
luz sobre as dimensões teórica e política da emergência dos povos originários na
América contemporânea. Nesse sentido, se prescindirá dos estudos de caso específicos,
5 Para evitar uma enumeração que seria inevitavelmente parcial, remeto às coletâneas organizadas por
Dávalos (2005); Montoya Rojas (2008); Escárzaga e Gutiérrez (2006). Um levantamento nos números
do Observatório social da América latina, editado pelo Clacso também fornece um panorama de
análises sobre cada país.
20
com os quais buscarei dialogar através da bibliografia sobre as regiões referidas. Serão
focadas as condições de formação dos movimentos contemporâneas, bem como suas
organizações, discursos, conceitos e bandeiras que articulam. Esses conceitos serão
apresentados não apenas como parte das características de um objeto de estudo, mas
compõem o quadro teórico com o qual buscarei dialogar para a análise desses
movimentos.
Optou-se nessa parte por um estilo narrativo fora dos cânones acadêmicos. O
objetivo do recurso narrativo, sustentado em metáfora quixotesca, pretende ir além de
uma proposta estética alternativa.6 Inicialmente, busca-se colocar em primeiro plano o
discurso dos movimentos e a leitura acumulada pelos próprios em relação à sua
experiência. Ademais, há a intenção inicial de situar-me na discussão do universo
teórico coerente para a interpretação da realidade latino-americana e a dialogar com
alguns autores que foram fundamentais na busca de ferramentas para esse esforço
analítico.
O peruano Aníbal Quijano tem orientado seus estudos para as questões da
colonialidade do poder subjacente às relações sociais de uma região que “foi tanto o
espaço original como o tempo inaugural do período histórico e do mundo que ainda
habitamos.” (QUIJANO, 2005, p. 9) Suas reflexões aprofundam a crítica ao dualismo
estrutural, assimilando os aspectos culturais da dominação (sem abrir mão de outros
aspectos, notadamente os políticos) e desenvolvendo um debate caro ao pensamento
social latino-americano, identifica a imbricação de estruturas que marca as tensões
constitutivas das formações sociais americanas, tanto em suas composições internas
quanto nos mecanismos de inserção ao sistema capitalista.7 A metáfora quixotesca tem
aí um ponto forte de suas múltiplas leituras possíveis. “Esta é, para nós, latino-
americanos de hoje, a maior lição epistêmica e teórica que podemos aprender de Dom
Quixote: a heterogeneidade histórico-estrutural, a co-presença de tempos históricos e de
fragmentos estruturais de formas de existência social, de vária procedência histórica e
6 Escuso será insistir que as citações e referências bibliográficas, mesmo que atribuídas a determinados
personagens, são adotadas rigorosamente. 7 A influência de José Carlos Mariátegui em Quijano é direta e pode-se dizer sem nenhum demérito
que parte de sua obra busca desenvolver as interpretações do fundador do marxismo indoamericano.
Por outro lado, com sua trajetória inicial associada aos debates em torno da Teoria da Dependência,
pode-se notar nas formulações sobre a colonialidade do poder a busca de um aprofundamento de
conceitos como o colonialismo interno adotado por Pablo Casanova ou de sociedades abigarradas
conforme expressa Zavaleta Marcado. (Ver TEVES, 2002)
21
geocultural, são o principal modo de existência e de movimento de toda sociedade, de
toda história.” (ibidem, p. 14)
Essa particularidade deve, portanto, ser assimilada às análises da condição
americana, superando o eurocentrismo que distorce a compreensão dessa realidade, bem
como opera a cavalaria na visão quixotesca. Nesse quadro, se expressa a colonialidade
do poder, que torna este continente cenário de encontros e desencontros entre
experiência, conhecimento e memória histórica.
Desse descompasso derivam alguns fantasmas que rondam o enigma de Nossa
América: a identidade, a modernidade, a democracia, a unidade e o desenvolvimento.8
Pois o avanço da modernidade se perpetuou com a “repressão material e subjetiva” dos
descendentes dos diversos povos e culturas que ocupavam a região antes da chegada da
conquista européia, e desde então foram sistematicamente submetidos “à condição de
camponeses iletrados, explorados e culturalmente colonizados e dependentes, isto é, até
o desaparecimento de todo padrão livre e autônomo de objetivação de idéias, de
imagens, de símbolos. Em outros termos, de símbolos, de alfabeto, de escritura, de artes
visuais, sonoras e audiovisuais.” (ibidem, p. 16) Tal processo pôde ser aprofundado com
as derrotas da revolução haitiana (iniciada em 1803) e da rebelião de Tupac Amaru e
demais lutas populares anticoloniais, cujas respectivas ondas repressivas abriram
caminho para o advento de regimes pós-independência fundados na colonialidade do
poder, que atua através do ocultamento sociológico dos “povos sem história”: índios,
negros, mulheres, mestiços ou qualquer não-europeu.
No entanto, Aníbal Quijano observa que todo o esforço de negar, ou mesmo
suprimir a permanência de identidades não-européias não era suficiente para dar conta
da imensa maioria da população do continente. Consequentemente, a identidade latino-
americana tornou-se um terreno de conflitos ainda pendentes, como têm demonstrado os
movimentos indígenas ou os afro-descendentes que, no limiar do século XXI puseram
em questão o padrão de colonialidade do poder que orienta a racionalidade dominante e
as relações sociais e legitima o projeto de Estado-nação que perdura por 200 anos.
8 Vale lembrar que ainda nos primeiros passos de vida independente, Simon Bolívar registraria em seu
pensamento contraditório a complexidade em definir uma identidade que capaz de dar conta do
projeto nacional em Abya Yala: “Por outra parte, não somos índios nem europeus, mas uma espécie
intermediária entre os legítimos proprietários do continente e os usurpadores espanhóis: em suma,
sendo americanos por nascimento e nossos direitos os da Europa, temos de disputar estes aos do país e
mantermo-nos nele contra a invasão dos invasores – encontramo-nos, assim, na situação mais
extraordinária e complicada.” (BOLÍVAR, 1983, p. 79-80)
22
“É bom, pois, é necessário que Dom Quixote cavalgue de novo para
desfazer agravos, que nos ajude a desfazer o agravo de partida de toda a
nossa história: a armadilha epistêmica do eurocentrismo que há
quinhentos anos deixa na sombra o grande agravo da colonialidade do
poder e nos faz ver somente gigantes, enquanto os dominadores podem
ter o controle e o uso exclusivos de nossos moinhos de vento.” (idem)
O equatoriano Bolívar Echeverria interpreta a condição indígena a partir do ato
de re-identificação que conduz o romance de Cervantes. Partindo da leitura de
Unamuno sobre a necessidade de “reencantamento do mundo”, observa na loucura que
leva Alonso Quijano a travestir-se de Dom Quixote uma estratégia de sobrevivência
diante da vitória do pragmatismo mercantil que se vislumbrava, atitude que contrasta
com a de sua sobrinha Antonia.
No es para huir o escapar de la realidad, sino al contrario para 'liberarla
del encantamiento' que la vuelve irreconocible y detestable, que Alonso
Quijano se convierte en Don Quijote; no es para anularla sino para
rehacerla y revivirla, para 'desfacer el entuerto' que se le hace a toda hora
cuando se la reduce a la realidad mortecina del entorno de Antonia
Quijana. (ECHEVERRÍA, 2006, p. 2-3)
Echeverría recupera o barroco como chave interpretativa de uma atitude que
considera homóloga à de Alonso Quijano/Dom Quixote por parte dos povos indígenas
sobreviventes ao genocídio da conquista, já desde o século XVII. A arte barroca se
destaca pelo seu peculiar ornamentalismo, que expressa uma profunda teatralidade, que
se desvincula de finalidades alheias e se torna um fim em si própria. Segundo Adorno,
destacar o aspecto decorativo do barroco é insuficiente, pois sua função decorativa
torna-se absoluta, intransitiva. Bolívar Echeverría segue as observações de Adorno,
destacando a teatralidade onde o alemão escreve decoração. E o que faz com que essa
teatralidade barroca seja absoluta? A resposta estaria em Dom Quixote e sua “estratégia
melancólica de transcender a vida”. (ibidem, p. 7) Para o Cavaleiro de Triste Figura, a
23
“consistência imaginária do mundo transfigurado poeticamente” (idem) passou a ser
muito mais fundamental do que o mundo real do império espanhol, mundo movido pela
necessidade do ouro e baseado na força das armas.
Para o filósofo equatoriano, o ethos barroco se gestou e se desenvolveu no
espaço americano mais do que como uma “cópia criativa” da arte européia, mas como
um elemento constitutivo da cultura própria das classes baixas das cidades mestiças nos
séculos XVII e XVIII. O barroco aparece como uma estratégia de sobrevivência ao
extermínio do século da conquista,
Una vez que las grandes civilizaciones indígenas de América habían sido
borradas de la historia, y ante la probabilidad que dejó el siglo XVI de
que la empresa de la Conquista, desatendida ya casi por completo por la
corona española, terminara desbarrancándose en una época de barbarie,
de ausencia de civilización, esta población de indios integrados como
siervos o como marginales en la vida citadina virreinal llevó a cabo una
proeza civilizatoria de primer orden. (ibidem, p. 8)
É por aí que Echeverría vê o encontro entre Alonso Quijano e os índios, em
ambos, a resposta ao desencantamento de um mundo que se torna “irreconhecível e
detestável” origina essa melancólica estratégia de sobrevivência, loucura para alguns,
que caracteriza a “posta em cena absoluta” do barroco. Vale lembrar ainda que a tensão
vivida pelo personagem de Cervantes e pelos habitantes originários do continente é
contemporânea, ocorre em um mundo que ambos os intelectuais aqui utilizados insistem
em caracterizar como formado no âmbito da constituição da modernidade capitalista e,
portanto, dela indissociável.
No entanto, diferentemente da ação transitória de Alonso Quijano que, pelos
olhos de Dom Quixote transfigura a miséria do mundo para suportá-lo, “la estancia de
los indios citadinos de América en ese otro mundo soñado, tan extraño para ellos, el de
los europeos, que los salva también de su miseria, es una estancia que no termina.”
(ibidem, p.12) Ao contrário, permanecem e se fundem nessa situação, tornando-a aos
poucos em seu mundo real. Nessa representação estaria a origem das formas culturais e
24
expressões artísticas que marcam a América Latina até os dias atuais. De nossa sempre
crítica identidade e suas permanentes contradições, poderíamos dizer.
Essa leitura permite analisar os indígenas em sua condição subalternizada para
além da situação de vítimas, mas como sujeitos que atuaram e atuam de maneira
contraditória na disputa pela constituição das formações sociais latino-americanas.
Apesar de seguirem trilhas distintas, os “Quixotes” de Aníbal Quijano e Bolívar
Echeverria podem ser lidos de maneira complementar para auxiliar a compreender a
permanência ao longo de nossa história e emergência recente dos povos indígenas, bem
como algumas questões que os derivam de sua condição.
Assimilo também as provocações de Carpentier que no prólogo a El reino de
este mundo apresenta o “real maravilhoso” para além de uma escola literária, refletindo
os desafios de apreender a realidade latino-americana. O escritor cubano contrasta as
expressões vivas do maravilhoso, observadas nas ruas de cidades haitianas, com a
superficialidade do fantástico “obtenido con trucos de prestidigitación” a que se reduziu
a literatura de uma Europa dominada pela racionalidade científica burguesa.
(CARPENTIER, 2005, p. 9-16).
Creio ser válido estender-me na apresentação desses autores não apenas pelo
diálogo que conduziu à proposta de elaboração da primeira parte, mas porque esses e
outros conceitos derivados de suas análises serão aproveitados em outros momentos
desta dissertação.
Algumas dessas considerações teóricas são aprofundadas na segunda parte,
ainda que não se mantenha a forma “cervantiana” de narrativa. Da análise conjuntural
dos movimentos indígenas passaremos à interpretação de Abya Yala, na pista já
indicada acima, quanto à natureza de sua inserção no projeto da modernidade. Com o
exercício do olhar sobre a longa duração, busca-se analisar criticamente a condição dos
povos originários a partir de sua inserção na modernidade capitalista.
A ampliação do raio de análise se fundamenta na memória ainda presente e
constantemente disputada e recriada, especialmente pelos povos originários, quanto ao
significado dessa jornada de quinhentos anos, suas lutas e os sujeitos que interagiram
nas formações sociais daí engendradas.
São três as questões centrais que servem de fio condutor dessa parte do estudo.
O lugar da América no desenvolvimento do capitalismo ou, nos termos que venho me
25
pronunciando, o desenvolvimento capitalista visto desde Abya Yala; a condição
indígena nesse processo de desenvolvimento; as formas de ação e expropriação do
capitalismo e os mecanismos tradicionais e contemporâneos de intervenção imperialista,
sempre observados pela dinâmica dominação/resistência.
A terceira parte busca tratar, em tom um tanto quanto ensaístico da referida
questão da memória que motiva a resistência e re-existência indígena. A comunidade,
núcleo organizativo real ou imaginário dos atuais movimentos indígenas, serve de ponte
para uma reflexão sobre a dinâmica da resistência dos grupos subalternizados.
Observando-se a “forma-comuna” ao longo da história, nota-se que tradições muitas
vezes submersas em modos de vida aparentemente desenraizados (o ethos barroco?) são
reativadas e recriadas em processos de conflitividade.
Na parte conclusiva, buscarei sintetizar os temas apresentados ao longo do texto,
desenvolvendo alguns elementos de balanço, traçando um panorama dos desafios e
possibilidades acumulados na situação atual. Cerca de vinte anos após o início do ciclo
de lutas contemporâneas dos povos originários de Abya Yala, é possível iniciar uma
avaliação crítica dessas experiências.
Comecemos então a jornada, que espero ser ao menos agradável e algo
elucidativa a leitores reais, potenciais e imaginários.
26
Parte 1 – Povos originários em movimento.
I. Em que se relata a larga travessia de Alonso Quijano pelas longínquas
terras de Abya Yala, onde conheceu povos dos quais jamais tivera
notícia, achando fantástica a maneira como construíam sua luta,
reconstruindo diariamente sua memória.
Alonso Quijano recém acordava de um sono de quase quatrocentos anos, quando
viu uma multidão de tonalidade plebéia descer de todos os lados à praça onde se
encontrava. Não conseguia identificar se era um carnaval ou um motim, logo percebeu
que apesar de parecer um pouco de ambos, diferia de tudo que tinha lembrança. A urbe
exclamava assustada que eram índios habitantes da Selva Lacandona e que sua
passagem pela cidade costumava ser dispersa, para a venda de artesanatos ou para o
assentamento nas zonas periféricas, mas aquilo fugia aos padrões. Entretanto, o
sobressalto dos citadinos, sobreposto pelo movimento que se acumulava na praça
central e adjacências daquela cidadezinha que lhe parecia familiar, aumentou o
atordoamento daquele homem que achava já ter visto de tudo.
E qual não foi seu espanto ao observar a maré humana, entre gritos e cantos cuja
língua lhe soava totalmente estranha, enlaçar e derrubar a estátua imponente que
ocupava a praça central e parecia controlar toda a cidade com os olhos. Em poucos
minutos não sobraram mais que uma miríade de cacos do nobre portador de antigas
insígnias reais.
O fidalgo natural de La Mancha pouco entendia, mas tentava reter o máximo de
detalhes. Foi quando se sentou ao seu lado um ancião que viera com aquela gente de
pele morena. Sua roupa parecia estranha, mas encantadora pelo colorido; o sotaque
atrasava a comunicação. A verdade é que também se interessara por aquela figura
estranha que a tudo observava pasmado, mas que certamente não era nem morador da
cidade nem um mero turista. Logo se apresentaram e o velho Antônio, percebendo a
angústia do visitante, começou a explicar o que se passava.
Advertiu a Quijano ser dia doze de outubro, que o calendário dos poderosos
celebrava como “Dia da Raça” ou da “Hispanidade”, pois nesta data um indivíduo a
serviço da coroa espanhola chegou a estas terras que depois chamaram América e,
acreditando ter descoberto um mundo novo, declarou a posse sobre ele e seus habitantes
em nome de seus senhores na Europa. Crendo-se plenamente legitimados por esses atos
27
e abençoados por seu Deus, vieram outros, sempre buscando extrair o máximo de
riquezas e dizendo atuar em nome de algum rei de terras longínquas. A estátua
derrubada era de Diego de Mazariegos, conquistador daquela região e fundador da
cidade que hoje é San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, onde ora se
encontravam. Pois aquele não era qualquer doze de outubro, mas o do ano de 1992, ou
seja, naquele dia completavam-se 500 anos daquele ato que os senhores de então e de
hoje chamaram descobrimento e comemoram com toda pompa.
Antes que o interlocutor imaginasse que os eventos que testemunhava eram parte
das festividades do “dia da raça”, o ancião explicou que os que estavam ali eram o outro
lado da história, que nunca era contado nem ouvido por pouco que se subisse nas
escalas de poder que estruturam essa sociedade. Que estavam ali pra mostrar que tinham
uma outra experiência daquela história a ser contada com suas próprias vozes, sempre
ignoradas. Que não aceitavam simplesmente ser convidados para a festa, para que se
exaltassem o lado folclórico de índios abstratos incorporados ao ideário nacional,
enquanto na realidade contemporânea lhes era reservado o desprezo. Que derrubavam
aquela estátua, não só por que ela homenageava um personagem infame para os homens
e mulheres de milho, mas porque o tal Diego foi um dos fundadores do mau governo
que até hoje serve à classe que controla a apropriação de riquezas.
“Desde nuestra perspectiva, la invasión iniciada en 1492 y el régimen de
explotación y opresión que se instauró, no han concluido: siguen vigentes
no sólo en relación con los pueblos indígenas sino también con el
conjunto de las sociedades nacionales, pero también está vigente la
resistencia y la lucha de nuestros pueblos por conquistar la libertad.”
(CIFUENTES, 1993, p. 141)
O seu calendário marcava portanto uma data diferente do calendário dos
poderosos naquele mesmo dia, sem festas, mas com protestos e chamados à reflexão
sobre o que alguns preferiam chamar “encontro de mundos”, ainda que para os povos
originários prevaleça o desencontro e, portanto, a necessidade de estabelecer desde
então o dia da resistência.
“Que nuestra lucha no es un mero reflejo coyuntural por la recordación
de los 500 años de opresión, que los invasores, en contubernio con los
28
gobiernos „democráticos‟ de nuestros países quieren convertir en hechos
de celebración y júbilo. No obstante, los pueblos, nacionalidades y
naciones indias estamos dando una respuesta combativa y comprometida
para rechazar esta „celebración‟, basada en nuestra identidad, la que debe
conducirnos a una liberación definitiva.” (CIFUENTES, 1993, p. 138)
Quijano começava a entender um pouco do que se passava e admirava-se das
razões que moviam aquele povo. Quis saber por que disseram ser eles de milho, ao que
explicou o velho Antônio que era de milho aquela gente de pele morena porque
descendia dos que habitavam esta terra muito antes de Diego e dos seus. E relatou que
em tempos imemoriais, quando só existiam o céu e o mar em calmaria, Tepeu e
Gucumatz se reuniram e criaram a terra, os vales e as montanhas, com seus guardiões,
os animais quadrúpedes e as aves. Mas depois de darem vida às mais diversas fauna e
flora, sentiram falta de um ser que tivesse o dom da palavra para invocar e adorar a seus
criadores. Na primeira tentativa, utilizaram a terra como matéria-prima para fazer o
homem. Mas logo viram que não funcionaria, pois desmanchava, não se movimentava,
não tinha força, caía, não podia se molhar, não mexia a cabeça, tinha a vista tapada, não
podia caminhar e nem se multiplicar. Então, depois de muitas consultas, outras
tentativas para ver como podiam aperfeiçoá-lo e inúmeros conflitos entre os deuses,
foram criados e formados os primeiros homens que eram pais e mães.
“A continuación entraron en pláticas acerca de la creación y la formación
de nuestra primera madre y padre. De maíz amarillo y de maíz blanco se
hizo su carne; de masa de maíz se hicieron los brazos y la pierna del
hombre. Únicamente masa de maíz entró en la carne de nuestros padres,
los cuatro hombres que fueron creados.” (GARZA, 1992, p. 62)
E explicou que aqueles que chegaram de fora a tudo nomeavam, sem perguntar
se já tinha algum nome, pois essa era uma maneira de reafirmar a conquista.9 E aos
habitantes que já tinham aqui suas sociedades estruturadas, simplesmente denominaram
“índios”, porque os primeiros que chegaram com a expedição de um tal Colombo
pensaram estar nas Índias, seu objetivo inicial. Não se deram conta nem de quão longe
9 O “furor nominativo” de Colombo, descrito por Todorov (1999, p. 33), seria portanto mais que uma
característica pitoresca de um personagem nesta história.
29
estavam dessa rota, nem da diversidade de povos e culturas que coloriam estes
territórios.
Logo, nenhum Mazariegos, Colombo ou Cabral era descobridor de coisa
nenhuma, pois o máximo que fizeram foi cobrir de panos e escravizar os antepassados
dos que ali se manifestavam contra aquele doze de outubro e tudo que ele representava,
porque não viam nada que celebrar, mas entendiam ao contrário que já era hora de
contar sua história, contraposta à história de seus opressores, pois só assim teriam força
e compreensão para resistir às opressões atuais.
Dessa maneira, aquelas ações eram motivadas pela disputa da memória e das
leituras possíveis da larga trajetória de um território e suas gentes que há cinco séculos
foram abruptamente integrados, na condição periférica e subordinada, à modernidade
capitalista, no processo de sua própria gestação.
***
Das muitas datas de protestos, conferências e insurreições, esse 12 de outubro
pode ser tomado como um marco inicial de um novo ciclo de lutas indígenas. Naquela
jornada convergiram organizações e movimentos de todo o continente, alguns ainda em
estruturação, outros já com alguma projeção política, anunciando a consolidação de uma
nova consciência da condição indígena, que se alojaria no centro do debate político
latino-americano nessa virada de século: “Ahora estamos plenamente conscientes de
que nuestra liberación definitiva solo puede expresarse como pleno ejercicio de nuestra
autodeterminación (...). Sin autogobierno indio y sin control de nuestros territorios no
puede existir autonomía.” (CIFUENTES, 1993, p. 138)
Dois anos antes, o Primeiro Encontro Continental de Povos Índios, no Equador,
lançara a “Campanha Continental 500 Anos de Resistência Indígena e Popular” em
resposta às comemorações oficialistas que já se começavam a organizar e refletia o
acúmulo de propostas de diversos movimentos até então, bem como a dimensão
continental da luta indígena. Na já citada Declaração de Quito, aparecem noções que
seriam eixos dos conflitos de toda a década seguinte.
A afirmação enquanto povos e nacionalidades com direito à autodeterminação é
colocada como prioritária, o que traz para o primeiro plano a disputa em torno da
territorialidade afirmada como unitária e incontestável por parte dos Estados atualmente
constituídos e as reordenações implicadas nas demandas dos povos originários. A luta
30
pela reforma agrária é atualizada de seus termos tradicionais e inserida nessa concepção
territorial mais ampla, com a reivindicação dos espaços comunais e a defesa dos
recursos naturais ante a exploração pelas transnacionais. O documento rechaça políticas
parciais, identificadas com o integracionismo, etnodesenvolvimento, que podemos
identificar genericamente como indigenismo, bem como destaca a luta pela educação
bilíngüe intercultural como parte da luta pela descolonização. (CIFUENTES, 1993, p.
138-143)
Quanto aos caminhos para conquistar essas demandas, aponta a necessidade da
luta por direitos em um projeto político próprio “que nos posibilite una lucha organizada
y contribuya a la transformación de la sociedad dominante y la construcción de un
poder alternativo” (idem, 143), pois os marcos jurídicos nacionais atuais, frutos de
processos coloniais e neocolonialistas, não suportam os direitos socioeconômicos,
culturais e políticos reivindicados. Coloca-se então a necessidade de uma nova ordem
social que acolha o exercício do direito consuetudinário, assim como o reconhecimento
enquanto sujeitos coletivos de direitos. Vale ainda destacar uma inserção nos marcos da
classe em que a situação dos povos indígenas não reivindica o exclusivismo e se
identifica com a de outros setores populares, alinhando suas lutas às de camponeses,
operários, setores marginalizados, intelectuais comprometidos com a construção de uma
sociedade pluralista e democrática.
***
Seguiram então homens e mulheres de milho para as montanhas chiapanecas
com seu visitante, onde conviveram por uns anos. Logo foi possível notar que os
eventos de outubro de 1992 apenas prenunciavam algo maior. Primeiro, porque
puderam acompanhar pelo rádio as notícias de protestos que ocorriam em todo o
continente com termos semelhantes aos de San Cristóbal de Las Casas. Segundo,
porque depois de alguns meses dialogando com aqueles homens, mulheres, crianças,
idosos que lhe pareciam ao mesmo tempo tão excêntricos e tão familiares explicaram
que de fato aquela era uma luta que apenas começava, ou melhor, recomeçava, ou talvez
sempre tenha existido e aqueles povos se organizavam para continuá-la. Seguindo então
a intuição do velho Antônio e reconhecendo em Alonso Quijano alguém que, apesar de
causar grande estranheza gerava empatia imediata, os maias da região foram revelando
ao estrangeiro as origens, objetivos e estratégias de sua luta.
31
I. 1) Sobre a caminhada pela Selva Lacandona, que guardava muitas histórias de um
México profundo.
Aos poucos, foram se acumulando relatos das origens recentes dos movimentos
indígenas no sul do México, suas bandeiras e as idéias que os orientavam. Um dos seus
primeiros desafios foi romper com a tradição corporativista e autoritária do Estado
herdeiro da revolução de 1910. O esgotamento do projeto revolucionário deixou um
legado contraditório. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), fundado em 1929,
consolidou um regime corporativista e autoritário, que dominava todas as instâncias do
aparato estatal e sustentava fortes estruturas clientelares para os movimentos sindical e
camponês, reprimindo quaisquer expressões de dissenso. Entretanto, a herança das
décadas revolucionárias mantinha algumas expressões como a garantia constitucional da
reforma agrária, um sólido sistema universitário autônomo, uma política externa que se
manteve independente no contexto da “Guerra Fria”.
Em 1975 foi realizado o Primeiro Congresso de Povos Indígenas, inicialmente
subordinado aos aparatos oficialistas. Organizado pela Confederação Nacional
Campesina, o Instituto Nacional Indigenista e a Secretaria de Reforma Agrária, o
encontro teve assistência do presidente da República e pretendia produzir um espaço de
repercussão das demandas para os canais controlados pelo governo dentro de um
modelo corporativo. Entretanto, a possibilidade de intercâmbio gerou também embriões
de organizações que insistiriam na afirmação de sua autonomia frente a esse modelo.
Um ano antes realizara-se em Chiapas o Primeiro Congresso Indígena “Frei Bartolomé
de las Casas”, articulado por setores ligados à teologia da libertação.
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, diversas experiências aportaram ao
processo de construção de uma perspectiva etnopolítica autônoma,10
que marcaria a
partir de então os métodos, propostas e formas organizativas de boa parte dos
movimentos camponeses. Nesse período surgem diversos movimentos que avançam na
superação da dinâmica reivindicativa, orientada pelo e para o Estado e afirmam o
princípio da autonomia. Há casos de alcance regional, articulados em torno de um grupo
étnico; outros de caráter multiétnico e iniciam-se algumas experiências que conseguem
10
O antropólogo Miguel Alberto Bartolomé define o termo como “afirmaciones protagónicas de la
etnicidad, estructuradas en forma de organizaciones no tradicionales orientadas hacia la defensa de los
intereses de los grupos étnicos.” (Bartolomé, op. cit.)
32
estruturar-se nacionalmente. Este é o caso da FIPI, fundada em 1987 a partir dos
tojolabais de Chiapas. Entre os que desde o início assumem um caráter interétnico estão
a Comissão Organizadora da Luta dos Povos Indígenas criada em 1989 em San
Cristobal de las Casas, reunindo representantes dos estados de Chiapas, Oaxaca,
Eucatán, Quintana Roo, Tabasco; a Assembléia de Autoridades Zapotecas e
Chinantecas da Serra; a Coordenadora Regional Chinanteca, Mazateca e Cuicateca
(Integrante da FIPI). Exemplos dos primeiros casos são o Movimento Indígena do
Estado do México, representante de otomíes e mazahuas; o Conselho de Povos Nahuas
do Alto Balsas fundado em 1990 no estado de Guerrero; a UCEZ, que desde 1979
organiza os purhépechas de Michoacan; o Movimento de Unificação e Luta Triqui, em
Oaxaca; o Conselho de Povos de Nacajuca, reunindo chontales de Tabasco. Destacam-
se ainda as organizações conformadas por professores indígenas atuantes na educação
bilíngüe que, variando entre o caráter predominantemente étnico ou sindical de suas
demandas, conquistaram representatividade social e reconhecimento institucional.
(BARTOLOMÉ, 1996, p. 4, 12; BARABAS, 1994, p. 164-165)
A partir desses processos, consolida-se uma presença política negada até então,
pondo em juízo as perspectivas analíticas majoritárias, que consideravam o étnico uma
derivação acessória da questão agrária: “Os índios do México começavam a produzir
um discurso alternativo a respeito de sua posição no Estado nacional, enfatizando seus
direitos históricos, territoriais e de autodeterminação.” (BARABAS, 165)
Um esboço do quadro das lutas indígenas contemporâneas estava mais ou menos
pintado pelas diferentes vozes que Alonso Quijano conhecera em sua caminhada por
aquele universo que lhe era totalmente novo. Chegou então, sempre acompanhado do
Velho Antônio, a um ponto remoto das montanhas do sudeste mexicano, sendo recebido
em um vilarejo onde alguns estavam encapuzados, ainda que todos se vestissem,
falassem e em tudo o mais se portassem como os demais da região. O forasteiro logo
pensou já ter visto aquela situação, mas não teve tempo de recordar, pois se
apresentaram entre os encapuzados umas moças chamadas Ramona, Esther, Rosalinda,
Fidelia e alguns rapazes, identificados como Brus Li, Tacho, Marcos, David, Zebedeo e
outras figuras amáveis que se foram achegando.
33
I.2) Em que se conhece um pouco da trajetória, da teoria e da prática de um exército
que transformaria as armas num meio para garantir as palavras e que abdicaria da
conquista do poder como estratégia.
Era fim de tarde e sentaram-se então à beira de uma fogueira, onde os anfitriões
começaram a contar uma história subterrânea que se desenvolvia naquela região. O tal
Marcos era o mais falador, e sempre fumando e renovando o seu cachimbo, conduziu o
relato enquanto os demais preferiam observar, sem deixar de corrigir algumas
informações.
“Ven. Sentémonos un rato y déjame contarte. Estamos en tierras
rebeldes. Aquí viven y luchan ésos que se llaman „zapatistas‟. Y muy
otros son estos zapatistas... y a más de uno desesperan.
Son indígenas rebeldes. Rompen así con el esquema tradicional que,
primero de Europa y después de todos aquellos que visten el color del
dinero, les fue impuesto para mirar y ser mirados.”11
(EZLN, jul. 2003,
parte 1)
E começou a contar de uma iniciativa aparentemente isolada das mencionadas
até agora, mas que convergiria com esse contexto e teria um desenvolvimento pouco
provável.
O ponto de inflexão a nível mundial das lutas sociais do século XX,
representado por 1968, teve no México em de seus expoentes mais significativos. Com
o avanço da mobilização popular, o pêndulo entre repressão e cooptação que marcava o
Estado mexicano tendeu para a primeira faceta, culminando no massacre de Tlatelolco.
Às vésperas das olimpíadas, o exército abriu fogo contra uma manifestação na Praça das
Três Culturas, com um saldo de mortes até hoje desconhecido12
. Como resultado da
11
Salvo indicação contrária, as citações de comunicados do EZLN utilizadas são assinados pelo
subcomandante Marcos, em nome do CCRI. A série completa dessa documentação está disponível em
http://palabra.ezln.org.mx, de maneira que apenas complementarei essas informações com a data do
documento nas referências ao longo do texto. 12
Os dados oficiais reconhecem cerca de duas dezenas, fontes independentes relatam entre 44 e 300
vítimas. (GITAHY, 2003, p. 106; DOYLE, 2006)
34
“guerra suja” nos anos seguintes,13
parte da militância revolucionária urbana deslocou-
se para o trabalho de base em distintos pontos do interior do país. Muitos dos líderes de
68 se integraram nas lutas camponesas e indígenas dos anos posteriores contribuindo
para a construção de uma cultura revolucionária fundada na organização assembleística
pela base, voltada primordialmente para a luta contra a exploração e pela democracia.
(CASANOVA, 1996) Entre esses, um grupo radicado nas selvas chiapanecas consegue
desdobrar seu trabalho político no que se tornaria o Exército Zapatista de Libertação
Nacional. No entanto, seu desenvolvimento não seria linear como pode parecer à
primeira vista. Os próprios sujeitos que impulsionaram esse processo reconhecem as
tensões presentes desde a trajetória inicial, em que um núcleo impulsionador de origem
urbana se vê desafiado a repensar seus métodos e conceitos, assimilando o – e sendo
assimilados pelo – universo cultural das comunidades indígenas, rompendo com a
tendência a priorizar a intervenção externa como fator de consciência. “Es decir, lo que
en 1984 era una guerrilla revolucionaria de corte clásico (levantamiento armado de las
masas, toma del poder, instauración del socialismo desde arriba, muchas estatuas y
nombres de héroes y mártires por doquier, purgas, etcétera, en fin, un mundo perfecto),
para 1986 ya era un grupo armado, abrumadoramente indígena, escuchando con
atención y balbuceando apenas sus primeras palabras con un nuevo maestro: los pueblos
indios”. (EZLN, jul. 2003, parte 2)
Um desafio teórico-político, no qual os dois pólos envolvidos (núcleo
organizativo e comunidades) constroem uma resposta positiva na fusão em uma
experiência que reinventa as anteriores, fundamentando-se nas demandas e recursos
acumulados pelos povos originários. A gestação dessa resposta não ocorreu sem suas
dissidências; mas apesar de o recurso às armas ser rechaçado por alguns grupos que
estiveram nas discussões iniciais, a manutenção da clandestinidade até o momento do
levante e a capacidade de convocação massiva demonstrada recorrentemente indicam o
nível de coesão interna alcançado pela organização. “Llegó un momento, no podría
precisar bien cuando mero, en que ya no estaba el EZLN por un lado y las comunidades
por el otro, sino que todos éramos, simplemente zapatistas.” (idem)
Assim, muitos dos que derrubaram Mazariegos em 1992 haviam já se integrado
à organização político-militar que dois anos depois se alçaria em armas. Nessa trajetória
13
Diferente da maioria dos países americanos, o México não viu o regime de dominação derivar para a
ditadura na segunda metade do século XX. No entanto, os movimentos insurgentes, armados ou não,
sofreram uma severa perseguição, por meio de uma série de medidas extralegais, que ficou conhecida
como “guerra suja”.
35
singular, formou-se um movimento de novo tipo, que marcaria a retomada das lutas
sociais mexicanas na virada de séculos e, superando o âmbito de influência local e a
abordagem restrita à questão étnica, tornou-se uma referência para a reflexão e ação
crítica, inicialmente de resistência ao neoliberalismo, para numa etapa posterior afirmar
uma perspectiva anticapitalista.
Pode-se então observar a convergência de fatores distintos e complexos que
desaguariam na insurgência zapatista. Como dinâmicas internas, a emergência da
etnopolítica, a ação pastoral da teologia da libertação e de parte da esquerda
revolucionária14 herdeira de 1968. Entre os fatores externos que instigaram o levante,
pode-se apontar o avanço das contra-reformas neoliberais e a caducidade do regime de
dominação política estabelecido pelo PRI, do qual o EZLN logo se tornaria sujeito.
“El impacto en las comunidades ya zapatistas fue, por decir lo menos,
brutal. Para nosotros (note usted que ya no distingo entre las
comunidades y el EZLN) la tierra no es una mercancía, sino que tiene
connotaciones culturales, religiosas e históricas que no viene al caso
explicar aquí. Así que, pronto, nuestras filas regulares crecieron en
forma geométrica.
Y no sólo, también creció la miseria y, con ella, la muerte, sobre todo
de infantes menores de 5 años. Debido a mi cargo, me tocaba entonces
checar por radio los ya cientos de poblados y no había día en que
alguien no reportara la muerte de un niño, de una niña, de una madre.
Como si fuera una guerra. Después entendimos que, en efecto, era una
guerra. El modelo neoliberal que Carlos Salinas de Gortari comandó
con cinismo y desenfado, era para nosotros una auténtica guerra de
exterminio, un etnocidio, puesto que eran pueblos indios enteros los que
14
Este é um elemento que tende a ser menosprezado, já que o debate sobre os movimentos sociais
contemporâneos é fortemente influenciado pela ênfase na ruptura entre “nova” e “velha esquerda”. A
primeira seria diferenciada pelo horizontalismo e o principio da autonomia, em contraste com a
tradição autoritária e a estratégia que prioriza a tomada do poder estatal, geralmente associada ao
marxismo. (Ver HOLLOWAY, 2003) No caso do subcomandante Marcos, tal recurso é
compreensível como resposta às acusações permanentes de instrumentalização da causa indígena por
agentes externos. No entanto, insistir nesse recorte acarreta em apreciações históricas precipitadas,
sem levar em conta as diversas experiências que, ao longo do século XX propuseram alternativas
radicais de crítica ao poder estatal e formas organizativas variadas. Na parte 3, discuto alguns aspectos
que se refletem nesse debate.
36
estaban siendo liquidados. Por eso nosotros sabemos de qué hablamos
cuando hablamos de la "bomba neoliberal".
Imagino (habrá estudiosos serios por ahí que contarán con datos y
análisis precisos) que esto ocurría en todas las comunidades indígenas
de México, Pero la diferencia estaba en que nosotros estábamos
armados y entrenados para una guerra. Dice Mario Benedetti, en un
poema, que uno no siempre hace lo que quiere, que uno no siempre
puede, pero tiene el derecho a no hacer lo que no quiere. Y en nuestro
caso, no queríamos morir.. . o más bien, no queríamos morir así.
Ya antes, en alguna ocasión, he hablado de la importancia que tiene
para nosotros la memoria. Y en consecuencia, la muerte por olvido era
(y es) para nosotros la peor de las muertes. Yo sé que sonará
apocalíptico, y que más de uno buscará algún dejo martiriológico en lo
que digo, pero, para ponerlo en términos llanos, nos encontramos
entonces frente a una elección, pero no entre vida o muerte, sino entre
un tipo de muerte y otro. La decisión, colectiva y consultada con cada
uno de los, entonces, decenas de miles de zapatistas, es ya historia y
originó ese destello que fue la madrugada del primero de enero de
1994.” (idem, grifos meus)
O processo de contra-reforma agrária, com a tentativa desestruturação da
garantia constitucional ao sistema de propriedade comunal (ejidos), expressa na
derrubada do artigo 27, associada ao encerramento das perspectivas sociais e políticas
que o chamado neoliberalismo trazia, davam o quadro geral para o estopim da rebelião
em 1994. Fazendo jus à trajetória de “traição” à modernidade capitalista, o levante
zapatista iniciou-se nas primeiras horas do ano em que o México de cima celebrava a
entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, apresentado
como o passaporte definitivo para aquela modernidade tantas vezes prometida.
Embora seja geralmente conhecido, é inevitável mencionar o contexto
desfavorável em que irrompe a guerrilha. A pulverização dos regimes burocráticos do
leste europeu, a consolidação do padrão de pensamento único contido no triunfalismo
neoliberal, os primeiros ensaios de reordenamento global do imperialismo no golfo
pérsico, a desmobilização das forças político-militares revolucionárias na América
37
Central e as transições pactuadas no Cone Sul foram alguns dos elementos que
compuseram o pano de fundo para a impugnação de qualquer perspectiva histórica, ou
seja, o desarmamento das utopias e a adequação às regras estabelecidas. Esse cenário
acaba por dar destaque ao momento improvável da irrupção zapatista, que se põe em
cena e constrói seu discurso a contrapelo da história que tantos mercadores de idéias
trabalhavam para escrever. Por tudo isso, sua repercussão foi imediata e transcendental,
colocando em outro patamar a temática indígena e influenciando uma geração formada
nesse contexto de crise generalizada, caracterizada pelo esgotamento das experiências
revolucionárias do século XX, respondido pela fugaz e ilusória afirmação triunfal e
fatalista do capitalismo, que logo se demonstrou incapaz de disfarçar os sinais de
aprofundamento de sua própria crise.
Expressando como o calendário dos debaixo caminha à revelia, ou mesmo em
sentido antagônico, ao dos poderosos, o EZLN conseguiu projetar politicamente a
questão étnica, elaborada com bastante complexidade nos termos de seu cruzamento
com a perspectiva da constituição histórica das classes sociais no México. A “questão
indígena” deixa de ser tratada como um problema de políticas estatais para minorias,
para ser entendida como um fator indissociável do itinerário das formações sociais do
continente.
“Somos produto de 500 anos de luta: primeiro contra a escravidão, na
guerra de independência contra a Espanha encabeçada pelos insurgentes;
depois para não sermos absorvidos pelo expansionismo norte-americano;
em seguida, para promulgar a nossa Constituição e expulsar o Império
francês do nosso solo. A ditadura Porfirista nos negou a justa aplicação
das leis da Reforma e o povo se rebelou criando seus próprios líderes; foi
assim que surgiram Villa e Zapata, homens pobres como nós, aos quais
também se negou um mínimo de instrução, para que, como nós, fossem
utilizados como bucha de canhão e deixassem o poderoso saquear as
riquezas de nossa pátria, sem se importar com o fato de estarmos
morrendo de fome e doenças curáveis, de não termos nada,
absolutamente nada, sem um teto digno, sem terra, sem trabalho, sem
saúde, sem alimentação, sem educação, sem ter direito a eleger livre e
democraticamente nossas autoridades, sem independência dos
estrangeiros, sem paz e sem justiça para nós e para os nossos filhos.
38
Porém, nós hoje dizemos: BASTA! Somos os herdeiros dos que
realmente forjaram a nossa nacionalidade, somos milhões de
despossuídos e convocamos todos os nossos irmãos a aderir a este
chamado como o único caminho para não morrermos de fome ante a
ambição insaciável de uma ditadura de mais de setenta anos, encabeçada
por uma camarilha de traidores que representam os grupos mais
conservadores e que estão dispostos a vender a pátria. São os mesmos
que se opuseram a Hidalgo e Morelos, os que traíram Vicente Guerrero,
são os mesmos que venderam mais da metade do nosso solo ao invasor
estrangeiro, são os mesmos que trouxeram um príncipe estrangeiro para
nos governar, são os mesmos que sustentaram a ditadura porfirista, que
não se opuseram à expropriação do petróleo, são os mesmos que
massacraram os trabalhadores das ferrovias em 1958 e os estudantes em
1968, são os mesmos que hoje nos tiram tudo, absolutamente tudo.” (in:
LÖWY, 1999, p. 514)
***
O estrangeiro tudo acompanhou de dentro da selva naqueles dias que
condensaram boa parte da história mexicana: a divisão entre os que iriam pelas armas e
os que buscariam outros caminhos; a tensão dos preparativos para o levante; a formação
dos municípios autônomos rebeldes; a tomada, por milhares de combatentes zapatistas,
dos municípios de San Cristóbal de Las Casas (onde o trajeto foi quase o mesmo
daquela manifestação de 1992, com a diferença de estarem armados), Ocosingo,
Margaritas, Altamirano, Chanal, Oxchuc, Huixtán e mais alguns povoados; a publicação
das leis revolucionárias que passaram a vigorar em territórios rebeldes, abrangendo
temas como distribuição da terra, condição das mulheres, reforma urbana, trabalho,
justiça e atividades econômicas; a contra-ofensiva do exército federal; o julgamento de
Absalón Castellanos;15
as manifestações nacionais e internacionais contra a repressão; o
15
Absalón Castellanos Dominguez, general do exército mexicano e ex-governador do estado de
Chiapas. Raptado nos primeiros dias do levante, foi considerado culpado, entre outras acusações, de
fechar todos os caminhos legais e pacíficos para as demandas indígenas no seu governo, com
repressão, seqüestros, assassinatos, despojo de camponeses de suas terras. Condenado à prisão
perpétua com trabalhos manuais às comunidades chiapanecas, teve na mesma sentença sua pena
comutada à liberdade física com o castigo de viver com “a pena e a vergonha de ter recebido o perdão
39
retorno das tropas rebeldes às montanhas; a contagem de seus mortos; o início das
negociações; o debate desatado na imprensa, que ia desde a conveniência da estratégia
insurrecional até a opção sexual de Marcos; a esperança e a polêmica em tornos dos
acordos de San Andrés.16
Foi depois de uma dessas jornadas que Alonso Quijano encontrou Don Durito de
La Lacandona, cuja altivez o atraiu enormemente e que, apesar dos traços físicos muito
peculiares, não teve dúvida de estar se vendo refletido naquela pequena figura. Tratava-
se de um escaravelho de óculos e cachimbo montado em uma pequena tartaruga,
portando um raminho com posição de uma espada, uma tampinha de frasco de remédio
como escudo e vestindo um pedaço de casca espetado com agulhas como elmo. (EZLN,
15/04/1995) Durito, apresentando-se enfaticamente como autêntico cavaleiro andante,
disse que faltava ao visitante conhecer outra teoria que vinha sendo elaborada abaixo e à
esquerda, pelos povos originários zapatistas em suas lutas cotidianas. Teoria que era
outra em relação às teorias dos claustros acadêmicos, cujas distintas roupagens que as
revestiam não eram na maioria das vezes mais que embalagens para torná-las melhor
apresentáveis no mercado de idéias. Quijano imaginou que era um comportamento
semelhante ao dos acadêmicos de outras épocas que pouco se importavam com a análise
da realidade concreta, dedicando-se então a servir aos reis com a avidez que hoje
atendem às demandas do mercado.
Durito iniciou afirmando a justeza da luta, ainda que em um contexto adverso,
de utopias desarmadas e desarmamento das utopias. Defendeu a luta armada como um
recurso final para que a voz dos pobres chiapanecos fosse ouvida. Explicou que sua luta
era por trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade,
democracia, justiça e paz. (in: LÖWY, 1999, p. 516) Mas que essas demandas históricas
nunca eram ouvidas e que o encerramento dos canais democráticos do Estado mexicano
deixara as armas como única opção. Por isso, insistiu que empunhavam as armas para
dar lugar às palavras, lembrando um velho sábio, que Durito citou literalmente:
e a bondade daqueles a quem por tanto tempo humilhou, seqüestrou, roubou e assassinou.”
(20/01/1994) 16
Os Acordos de San Andrés sobre Direitos e Cultura Indígenas foram firmados entre o governo
mexicano e o EZLN no primeiro semestre de 1996, após uma série de mesas de diálogos. Seus
objetivos fundamentais estavam relacionados ao reconhecimento de direitos dos povos indígenas,
estabelecendo um novo marco jurídico para sua relação com o Estado e a sociedade em geral. Logo
após a conclusão dos acordos, o governo de Ernesto Zedillo recuou de suas posições, desconhecendo-
os. Em abril de 2001, o congresso mexicano aprovou uma lei enviada pelo presidente Vincente Fox,
que foi considerada pelos movimentos sociais e organizações de direitos humanos uma contra-reforma
em termos de direitos indígenas.
40
“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que
o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria
converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é
capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se 'ad hominem', e
demonstra-se 'ad hominem' logo que se torna radical. Ser radical é agarrar
as coisas pela raiz. Mas, para o homem a raiz é o próprio homem”.
(Marx, 2005, 151)
Construindo esse sentido de radicalidade, o EZLN adotou como eixos de sua
prática termos poucos comuns ao vocabulário político em que se destacam: a defesa
intransigente da autonomia dos povos originários em relação ao Estado mexicano; a
forma organizativa baseada nas comunidades, expressa na noção de que as funções de
direção não representam postos privilegiados e estão sempre subordinados ao princípio
do “mandar obedecendo”; a síntese dessas demandas na noção de dignidade,
entendida como uma luta que não se restringe aos povos indígenas de Chiapas e que só
se concretizará para esses quando forem uma realidade para todos.
Com isso, a estratégia zapatista foi revisada na própria dinâmica das lutas em
que se movia. Da declaração inicial, onde se manifestava a intenção de marchar sobre a
capital em termos ainda semelhantes à esquerda revolucionária “tradicional”, o EZLN
foi se afirmando com um chamado à rebeldia em tempos de conformismo. Durito
explicou que sua intenção não era assumir o papel de vanguarda a apontar o caminho
justo da revolução.
“El EZLN no tiene ni el deseo ni la capacidad de aglutinar en torno a su
proyecto y su camino a los mexicanos todos. Pero tiene la capacidad y el
deseo de sumar su fuerza a la fuerza nacional que anime a nuestro país
por el camino de justicia, democracia y libertad que nosotros queremos.
Nosotros pensamos que el cambio revolucionario en México no será
producto de la acción en un sólo sentido. Es decir, no será, en sentido
estricto, una revolución armada o una revolución pacífica. Será,
primordialmente, una revolución que resulte de la lucha en variados
frentes sociales, con muchos métodos, bajo diferentes formas sociales,
con grados diversos de compromiso y participación. Y su resultado será,
41
no el de un partido, organización o alianza de organizaciones triunfante
con su propuesta social específica, sino una suerte de espacio
democrático de resolución de la confrontación entre diversas propuestas
políticas. Este espacio democrático de resolución tendrá tres premisas
fundamentales que son inseparables, ya, históricamente: la democracia
para decidir la propuesta social dominante, la libertad para suscribir una
u otra propuesta y la justicia a la que todas las propuestas deberán
ceñirse. El cambio revolucionario en México no seguirá un calendario
estricto, podrá ser un huracán que estalla después de tiempo de
acumulación, o una serie de batallas sociales que, paulatinamente, vayan
derrotando las fuerzas que se le contraponen. El cambio revolucionario
en México no será bajo una dirección única con una sola agrupación
homogénea y un caudillo que la guíe, sino una pluralidad con dominantes
que cambian pero giran sobre un punto común: el tríptico de democracia,
libertad y justicia sobre el que será el nuevo México o no será.” (EZLN,
20 jan. 1994)
Essa concepção permitiu que os zapatistas testassem com enorme flexibilidade
suas táticas, reconsiderando, realizando consultas internas e externas, comunicando
mudanças inesperadas e buscando novos métodos que ampliassem os canais de diálogo
com a “sociedade civil”,17
mas sempre se esforçando por manter a coerência com certos
princípios e objetivos fundamentais. Isso permitiu que o ato inicial da insurreição
transcendesse o alcance regional, para a sua apropriação por diversos setores como uma
inspiração de uma práxis inovadora de resistência contra o capitalismo. Da necessidade
de chamar atenção sobre as demandas particulares dos povos originários chiapanecos,
por suas características e pelo momento peculiar em que se apresenta, o EZLN foi se
assumindo e sendo assumido como espelho – com perdão pelo clichê... –, a ponto de
reconhecer que sua luta é por um mundo onde caibam muitos mundos. Durito lembrou
que, num momento em que o elogio da diversidade tornou-se um fim em si, subproduto
da fragmentação do ser social operada pelos discursos pós-modernistas, os movimentos
indígenas passam a atuar numa perspectiva anti-sistêmica que articula dialeticamente o
particular e o global, em que a defesa de identidades sociais, étnicas e culturais
17
O termo é de uso corrente nos comunicados zapatistas.
42
específicas não impedem aos múltiplos sujeitos reconhecerem os aspectos mais gerais
da opressão e exploração impostas pela condição contemporânea do capitalismo.
Tornam-se uma “maioria que se disfarça de minoria intolerada”, como verbalizou o
subcomandante Marcos ao responder com sensibilidade àquele tipo de provocação
estúpida repetida pela mídia.
“A todo esto de que si Marcos es homosexual: Marcos es gay en San
Francisco, negro en Sudáfrica, asiático en Europa, chicano en San Isidro,
anarquista en España, palestino en Israel, indígena en las calles de San
Cristóbal, (...) judío en Alemania, (...) feminista en los partidos políticos,
comunista en la post guerra fría, preso en Cintalapa, pacifista en Bosnia,
mapuche en los Andes, maestro en la CNTE, artista sin galería ni
portafolios, ama de casa un sábado por la noche en cualquier colonia de
cualquier ciudad de cualquier México, guerrillero en el México de fin del
siglo XX, huelguista en la CTM, reportero de nota de relleno en
interiores, machista en el movimiento feminista, mujer sola en el metro a
las 10 p.m., jubilado en plantón en el Zócalo, campesino sin tierra, editor
marginal, obrero desempleado, médico sin plaza, estudiante inconforme,
disidente en el neoliberalismo, escritor sin libros ni lectores, y, es seguro,
zapatista en el sureste mexicano. En fin, Marcos es un ser humano,
cualquiera, en este mundo. Marcos es todas las minorías intoleradas,
oprimidas, resistiendo, explotando, diciendo "¡Ya basta!". Todas las
minorías a la hora de hablar y mayorías a la hora de callar y aguantar.
Todos los intolerados buscando una palabra, su palabra, lo que devuelva
la mayoría a los eternos fragmentados, nosotros. Todo lo que incomoda
al poder y a las buenas conciencias, eso es Marcos.” (EZLN, 28 mai.
1994)
Tantos relatos de esperança e dignidade despertaram em Alonso Quijano
memórias soterradas de quando lutava contra malandrinos e gigantes, andando pelas
terras mais longínquas a desfazer agravos com o auxílio de seu fiel escudeiro, Sancho
Pança, movido pelo infinito amor à sua Dulcinea del Toboso, incompreendido e tido por
louco. Teve vergonha de quando teve vergonha de ser Dom Quixote e entendeu que era
este quem lhe daria a perspectiva para entender aqueles povos e suas lutas. E depois de
43
conviver por alguns anos entre povos maias, tojolobales, choles, tzotziles, tzeltzales,
lacandones, decidiu retomar a vida andante que deixara adormecida. Ainda que seu
Rocinante não estivesse mais por perto, os comuneros do último Município Autônomo
Rebelde Zapatista por onde passou lhe deram de bom grado um cavalo para seguir
viagem.
44
II. Em que Dom Quixote passa por paisagens que o fizeram lembrar que era o
Cavaleiro de Triste Figura e encontra povos que primeiro vivenciaram a
experiência da autonomia e outros que deram um nome a esse continente que
insistem em chamar América.
Logo que saiu de Chiapas, Dom Quixote de La Mancha viu a paisagem mudar
sobre um território que não era tão distinto. Da dignidade que saturava o ar dos
Caracoles zapatistas, logo percebeu que atravessara uma fronteira de dor e revolta
abafadas pela miséria cotidiana. No primeiro vilarejo em que chegou, foi perguntar que
lugar era aquele a uma senhora que, sentada em frente ao casebre, parecia esperar a
morte com seus filhos.
Ali, o Cavaleiro de Triste Figura ouviu a história da execução de todos os
homens daquela vila, considerada base social da guerrilha na década de 80. Estava num
país cujo nome, Quauhtlemallan, significa em náhuatl lugar de muitas árvores. Os
homens e mulheres dali também descendem daqueles primeiros, os povos maias-quiché
feitos do milho, cuja sociedade se estendia por aquela terra antes da chegada dos
europeus. Seus mitos e tradições são do mesmo universo cultural encontrado em
Chiapas. Mas a experiência que aquela senhora guardava trazia a dor de um genocídio
contemporâneo, que não ficara na memória do encontro com o conquistador estrangeiro,
mas tornou-se o mecanismo dos senhores locais para perpetuar sua dominação e
esconjurar as expressões de emancipação dessa população que, sendo 60% dos
guatemaltecos, esteve desde a época colonial relegada a uma condição de domínio
estruturado sobre um racismo excludente em termos políticos, socialmente segregador e
justificador da superexploração.
A década de transformações democráticas e avanço das lutas sociais iniciada em
1944 estabeleceu, já no ano seguinte, do reconhecimento constitucional da
especificidade dos grupos indígenas, servindo de base para uma série de políticas que
visavam atender essas particularidades e combater um regime de exploração colonialista
mantido pela república. A junta revolucionária aboliu o sistema de tributo em serviços
compulsórios nas obras públicas e em fazendas; no governo de Jacobo Arbenz, a partir
de 1952, avançou a reforma agrária. (CIFUENTES, 1993, p. 13) Ainda que visasse um
processo de modernização capitalista e as medidas em favor dos povos originários não
partissem dos próprios, mas do pensamento antropológico mais tradicional, a
45
“revolução burguesa” guatemalteca apontava para um nível de democratização cujas
possibilidades foram violentamente bloqueadas.
Desde então, o aparato estatal foi mantido sob tutela militar, em um regime
político de características contra-insurgentes e sustentado pela violência e por uma
ideologia anticomunista,18
além do apoio estadunidense. Bloqueadas as mínimas
possibilidades democráticas, formam-se no início da década de 1960 os primeiros
grupos guerrilheiros. Não obstante a repressão sistemática e crescente, esses grupos
passaram por processos reorganizativos que possibilitaram uma rápida expansão a partir
de 1980, aglutinando comunidades, povoados e regiões inteiras, a ponto de expandir sua
capacidade operativa por quase todo o país e estabelecer um controle territorial sobre
determinadas zonas. Além do quadro histórico de miséria da maioria da população e da
situação política que não abria margens de concertação no espaço institucional, uma
análise consistente da realidade guatemalteca foi fundamental para a consolidação da
base popular-indígena da guerrilha.19
A estratégia contra-insurgente então convergiu
para a política terra arrasada. (MARÌN, 2001, p. 28-33)
“En respuesta a esta toma de posición, las fuerzas militares
contrainsurgentes diezmaron poblaciones completas, masacraron
pueblos, aldeas y comunidades calificándose el hecho como genocidio
contra el Pueblo Maya, el pueblo indígena mayoritario del país. El
genocidio es calificado como la máxima expresión del racismo, ya que
las víctimas fueron asesinadas con tanta saña e inclemencia que
demuestra un odio profundo en el acto. El saldo de dicha política de
exterminio en la década de los años 80 es de cincuenta mil viudas, ciento
18
Segundo Edelberto Torres Rivas, as características definidoras de todos os governos surgidos após a
deposição de Arbenz, em julho de 1954, foram “sua função contra-revolucionária e a utilização, como
método, da violência política”. (RIVAS, 2003, p. 162) 19
No Manifesto de 1979, a principal organização revolucionária da Guatemala considerava que era
impossível solucionar a condição histórica de opressão dos povos indígenas dentro do sistema
capitalista e defendia que o socialismo deveria garantir a integração à “comunidade nacional e cultura
sem perder sua identidade”. Nessa perspectiva, “Não poderá haver triunfo na Guatemala se este não
implicar o desaparecimento da opressão étnico-cultural, a incorporação dos povos indígenas à
plenitude dos direitos econômicos, políticos e sociais, e a constituição de um contexto de convivência
nacional sem desigualdades, comum e conjunto com a população mestiça.” (EGP in: LÖWY, 1999, p.
364-365. Grifo meu) Cabe chamar atenção à influência exercida pela insurgência guatemalteca na
experiência zapatista, diretamente pela migração forçada de milhares de indígenas para a região de
Chiapas – que já vimos compor o mesmo complexo etno-cultural – e indiretamente, pelo aprendizado
que a leitura daquela experiência possa ter proporcionado. Em 1984, quando se forma o EZLN a
guerra civil passava por um de seus momentos mais sangrentos com o governo de Ríos Montt e
quando ocorre o levante zapatista, a guerrilha e o governo guatemaltecos desenvolviam as
negociações que levariam aos acordos de paz dois anos depois.
46
cincuenta mil huérfanos, doscientas mil personas desaparecidas y más de
trescientas comunidades arrasadas. El impacto hasta la fecha es de
pobreza y pobreza extrema en las comunidades que forman parte de
territorios típicamente reconocidos como escenarios de guerra.” (SALOJ,
2007, p. 88)
No caminho que seguiu, nosso personagem admirou-se que em território tão
exíguo a paisagem e os povos eram tão diversos. Espantou-se também com o acúmulo
de relatos de execuções, torturas, expulsões da terra. Eram tantas e tão semelhantes as
histórias, que a única certeza de não serem repetidas vinha dos diferentes rostos de
sofrimento dos familiares que contavam, dos nomes das vítimas e dos lugares que
identificavam os massacres.
Partiu da Guatemala, já saindo da esfera de influência maia e sempre coletando
as histórias que encontrava pelo caminho. Chegou a um pequeno mundo frágil e
violentamente doce. Seguindo indicações, chegou à ilha de Solentiname, no lago
Nicarágua onde, sob a luz delirante do meio dia percebeu estar em um tempo-espaço
particular. Ali foi conversar com um poeta na altura de seus cinqüenta anos, cuja casa se
destacava pelo colorido do muro, com frases e ilustrações bem expressivas. Atendia
pelo nome de Roque Dalton e contou de uma revolução que derrotou em 1979 a dinastia
que comandava o país desde a década de 30 sustentada pelos Estados Unidos. Para
impor o seu regime oligárquico, o ditador matou a traição um general que comandara
um exército de camponeses na resistência ao invasor estrangeiro.20 A partir da década
de 60, a luta contra a ditadura recuperou o nome daquele general que fizera das matas
seu quartel e, após a tomada do poder, iniciaram um processo de mudanças estruturais
que incluía a reforma agrária e um programa de alfabetização massiva, sob permanente
acosso financiado pelos senhores da guerra que vivem ao norte do continente, até a
derrota da revolução no início dos anos 1990.
Roque Dalton, um veterano combatente sandinista, não deixou de notar como a
luta de classes parecia se repetir, com os mesmos personagens retornando à cena para
expressar ao longo da história os anseios e o sentido de sua classe social. Ou, de
maneira mais geral, para sintetizar determinados sentimentos de rebeldia e de combate à
20 Violando um salvo-conduto para que Augusto César Sandino participasse dos diálogos para um
acordo de paz na capital, Anastasio Somoza, chefe da Guarda Nacional ordena a execução do líder
rebelde em fevereiro de 1934.
47
opressão. Assim apareciam Augusto César Sandino na Nicarágua, Emiliano Zapata no
México, Farabundo Martí em El Salvador entre outros que Quixote ainda ouviria falar
em suas andanças. Então, não era um desenrolar cíclico da história que levava às
reedições do embate entre Sandino e o imperialismo com seus sócios locais, mas a
memória dos explorados contemporâneos. Por isso ele fazia questão de sempre restaurar
o painel sandinista que ilustrava o muro de sua casa, diante dos esforços sistemáticos de
apagar as lembranças desse período tanto pelos inimigos de sempre, como por alguns
antigos dirigentes que se juntaram ao coro dos vencedores após a desestruturação do
processo revolucionário.
O viajante contou de onde vinha e algumas das histórias que lhe pareceram
semelhantes às de seu anfitrião centro-americano e este passou a relatar-lhe do que se
passara com os povos indígenas daquele país durante os anos de revolução. Valia
conhecer aquele processo, pois prenunciou o desencontro entre a razão da esquerda
revolucionária e as demandas indígenas, tensão ainda hoje em geral não equacionada. A
desconfiança mútua entre o governo da FSLN e a população da costa atlântica,21
com a
conseqüente falta de cooperação e diálogo na construção do processo revolucionário,
possibilitou que aquela se tornasse uma zona estratégica de operações dos “contra”, com
investimento pesado da propaganda financiada pelos Estados Unidos. A resposta inicial
do regime foi assumir o conflito como parte do cenário de guerra, enviando tropas com
o objetivo de garantir a integridade territorial ante a estratégia contra-revolucionária.
“Fue obviamente una experiencia traumática para ambas partes. Para los
costeños, el EPS asumió la fisonomía de un ejército de ocupación; para
los combatientes sandinistas, se trataba de sectores populares - pobres,
históricamente sometidos a la explotación de las compañías extranjeras -
que desconfiaban y se oponían a una revolución que trataba de mejorar
sus condiciones de vida.” (VILAS, 1988, p. 53)
Entretanto, o contato, ainda que numa conjuntura bélica, possibilitou um melhor
conhecimento das particularidades da região costeira e seus habitantes. Os
revolucionários foram capazes de diferenciar entre a ação manipuladora da intervenção
estrangeira e as legítimas demandas locais: acesso à terra e recursos naturais,
21
Formada pelos povos indígenas miskitos, sumo-mayangnas y ramas e por grupos étnicos (creoles,
garífonas y mestizos) constituídos a partir de particularidades históricas da região.
48
reconhecimento de modalidades de autogoverno local, educação bilíngüe e
reconhecimento oficial de seus idiomas, participação nas instâncias políticas e
econômicas do regime revolucionário etc. Conseqüentemente, desenvolve-se o diálogo
que detona um longo processo de reconhecimento das demandas dos povos da costa.
Em 1983 o governo sandinista decreta ampla anistia à população local que se integrara à
“contra”, consolidando o cessar-fogo com os grupos indígenas dois anos depois.
Progressivamente se foram criando condições para o atendimento das demandas
específicas e para a construção de um projeto de autonomia que, incorporado à
Constituição de 1987, seria pioneiro em todo o continente. A implantação do regime
autonômico na Costa Atlântica é um processo ainda incompleto e sujeito a
aperfeiçoamentos e tensões, enquanto o balanço de suas conquistas e defeitos está em
aberto. “El logro mayor sería, quizás, el despertar de los diferentes grupos étnicos. Un
despertar a la realidad de lo importante que es emprender la lucha por rescatar nuestros
valores. Esto se ha demostrado en diferentes fases y modalidades. La lucha por
organizarnos en los diversos grupos, ha sido producto de ello, a pesar de que ha habido
dificultades y a veces hay una tendencia a la polarización. Pero siempre se tiene la idea
de encontrarnos con nuestra identidad”.22
Afinal, o debate sobre as autonomias tornou-
se um campo de intensas disputas políticas em diversos países latino-americanos. A
experiência nicaragüense indica os limites e os possíveis canais para o diálogo entre o
pensamento de esquerda revolucionária e as organizações indígenas que, como já foi
visto, desenvolveram na macro-região da meso-america a autonomia como sua demanda
fundamental. No entanto, apesar dos avanços institucionais desde a década de 1980 e as
reformas constitucionais, é um processo ainda sujeito aos embates políticos e às
barreiras impostas pela noção de Estado-nação. “Porque también parte del problema es
que, a veces, la gente del resto del país tiende a entender que cuando en la Costa
Atlántica decimos autonomía, estamos hablando de separación, de la formación de otro
Estado; que estamos lesionando la nación nicaragüense. Y ese no es nuestro punto de
vista; lo que queremos es participar plenamente en la vida nacional”.23
Seguindo viagem, o Cavaleiro de Triste Figura recebeu diversas indicações para
chegar a um território chamado Kuna Yala, onde esteve por uns dias. Ali, ouviu outras
tantas histórias do povo kuna, que também tinha na autonomia o sentido de organização
22
Comentário de Faran Dometz, membro do conselho Regional Autônomo do Atlântico Sul e presidente
da Junta Provincial da Igreja Moraviana da Nicarágua (apud DÍAZ-POLANCO, 1997). 23
Idem.
49
da comunidade. Em fevereiro de 1925 eclodiu Revolução Tule, como resultado dos
abusos da Polícia Nacional; dos conflitos com companhias bananeiras e extratoras de
borracha atuantes em território kuna; programa “civilizador” do governo panamenho,
que incluía a imposição do ensino regular e a proibição de roupas, rituais e costumes
tradicionais.24
Os principais chefes de 45 aldeias e tribos decretaram a independência
em relação à República do Panamá num ato que, apesar de não conseguir se perpetuar,
logrou em um mês um acordo de paz com o governo, no qual este se comprometia a
conceder um trato digno e respeitar os costumes indígenas, além de não impor-lhes o
estabelecimento de escolas. (ARAÚZ e GELOS, 1996, p. 148-153)
Além disso, Quixote descobriu o nome com que os kuna batizaram este
continente, que começava então a ser adotado em diversos lugares para substituir o que
era utilizado por uma equivocada toponímia colonial. “Todos utilizan el nombre de
América para nuestro continente, pero nosotros tenemos depositado el verdadero
nombre que es Abya Yala, que significa Tierra en permanente Juventud.”
(MOLLINEDO, 2008) Assim lhe explicou Constantino Lima, um velho dirigente
katarista que, andando em território kuna por aqueles dias, conheceu Dom Quixote e
convidou-o a ir até a Bolívia, onde encontraria muitos outros Kataris.
Área de rebeldia permanente dos povos originários, onde a resistência ao
colonizador manteve-se irredutível por séculos; zona de confluência de interesses
geopolíticos desde a etapa inicial de expansão capitalista, pivô de conflitos intra-
colonialistas, o istmo banhado pelo mar dos caraíbas foi precursor de temas
fundamentais na luta política dos povos originárias de Abya Yala. Assim foi com o
reconhecimento dos kuna em 1925, a constituição guatemalteca de 1945 e as
experiências guerrilheiras da década de 1980. Mas a dinâmica de genocídios, as
estruturas de dominação oligárquico-imperialistas, bem como o permanente movimento
de colonização do mundo pela forma mercadoria,25
mantiveram esses povos sob acosso,
indicando que a “questão indígena” não se soluciona, no sistema capitalista, se tomada
como um problema isolado.
24
Apesar da controversa participação estadunidense no episódio, em que se chega a atribuir a um agente
desse país a redação do manifesto de independência, um representante do próprio governo panamenho
reconheceu os excessos que instigaram à rebelião kuna. Segundo o secretário de governo e justiça
Carlos López, ao invés de respeitar o seu modo de vida como garantia da participação na vida
institucional do país, “Desgraciadamente no se hizo eso: se dispuso arrancarles de golpe lo que era
obra de siglos, y ahora se cosechan los frutos de ese error”. (Araúz e Gelos, 1996, p. 153) 25
Cujas formas mais recentes trataremos na Parte 2.
50
Consultados por Quixote sobre uma rota adequada para seguir viagem, os kunas
desaconselharam a travessia do istmo por terra e sugeriram que se queria ver e
parlamentar com outras gentes descendentes dos habitantes originários do continente
poderia ir por mar direto a um país chamado Equador e aí subir a serra rumo à sua
capital, onde certamente encontraria muitas novidades de como se estavam organizando
e o que queriam esses povos.
51
III. No qual se relata a passagem a uma outra região onde, por caminhos distintos,
os povos originários também recusaram a morte pelo esquecimento e
construíam o amanhã a partir do seu ontem, desafiando as constituições dos
moinhos de vento institucionais que por duzentos anos mediaram as relações de
dominação e resistência nessas sociedades.
Ao entrar em Quito com o substituto de seu velho Rocinante, o viajante
acreditou estar revivendo os acontecimentos de Chiapas que iniciam esta história. Pois
via as marchas, a multidão, a confusão de cores, sons, danças, bandeiras e protestos em
uma cidade de arquitetura colonial. Mas, chegando em 21 de janeiro de 2000, viu o
mundo dar a volta em questão de horas na capital equatoriana. A multidão colorida ali
derrubava um presidente e ocupava naquele momento os palácios do governo, ao
mesmo tempo em que tomava as ruas e praças. A luta indígena no Equador dava um
novo salto qualitativo em sua capacidade de intervenção nos conflitos sócio-políticos do
país. Quixote viu aqueles rostos e vozes, que mesmo quando desconhecidos já sabia
identificar, praguejarem contra o mau governo, corrupto, usurpador e desintegrador da
economia nacional.26
A capacidade do movimento indígena de articular o amplo
descontentamento popular mobilizou até mesmo os cinzentos homens uniformizados de
verde-oliva. O viajante assistiu ao anúncio, da sacada do Congresso, de uma “Junta de
Salvação Nacional”, formada com o apoio de parte da média oficialidade, como
indicava a participação de um coronel que formava o triunvirato com o ex-presidente da
Suprema Corte e o presidente da CONAIE. No entanto, esse ensaio de governo
provisório não durou mais que algumas horas, com a pressão do generalato para que se
dissolvesse e fosse efetivada a sucessão constitucional, assumindo o poder o substituto
legal do governante destituído.
Ao fim dessa jornada catártica, sentou-se o cavaleiro em uma calçada próxima
ao centro dos eventos e deteve-se em observar as movimentações, enquanto aguardava
alguém que lhe parecesse disponível para um diálogo. Não tardou para que uma moça
que há pouco estivera energicamente marcando o compasso da marcha se aproximasse e
estabelecesse o contato inicial. Apresentou-se Elena Gualinga e perguntou quem era
26
O estopim para o levante convocado pela CONAIE, que derrubou o presidente Jamil Mahuad, foi a
série de medidas econômicas que incluía a dolarização da economia.
52
aquele estrangeiro desengonçado, de olhar tão curioso. Dom Quixote fez suas habituais
honrarias e falou do trajeto que percorrera para chegar até ali, do que se admirou sua
interlocutora, que o convidou à sede da CONAIE, uma casa de dois andares na esquina
das ruas Los Granados e 6 de dezembro, onde poderiam ficar à vontade para que o
visitante se entrevistasse com representantes das diferentes experiências, culturas e
propostas que vinham compondo o movimento indígena equatoriano. Circulavam por
ali representantes de 13 nacionalidades e 14 povos; mulheres, jovens e camponeses de
todos os cantos do país indo e vindo freneticamente, no compasso de espera quanto a
quais seriam os seus próximos passos.
IV. Em que se relata ao Cavaleiro de Triste Figura o novo despertar dos povos
originários em território equatoriano
Essa região delimita o início do grande complexo etno-cultural que compõe os
movimentos indígenas de Equador, Peru e Bolívia, cada qual com suas expressões
particulares, a partir das relações com Estado e sociedade. Em Quito, Quixote teria o
primeiro contato com o Tawantisuyo, país dos incas, cujos descendentes se difundem
pelos Andes. Destes, predomina no Equador e Peru a nacionalidade quéchua, enquanto
a Bolívia se caracteriza pela presença majoritária do povo aimará. Além destes, foram e
têm sido fundamentais no processo organizativo dos movimentos indígenas – tanto no
que se refere às mobilização quanto ao aporte de conceitos – os diversos povos
amazônicos e de terras baixas, que se relacionam com o universo cultural andino desde
outras matrizes.
O movimento indígena contemporâneo no Equador gestou-se a partir desses dois
pólos, tendo como pilares a Federação Shuar na Amazônia e a Ecuarunari na serra.
(ALBÓ, 1991, p. 305) O país vivia um processo de importantes transformações para as
quais foram fundamentais as lutas indígena-camponesas que levaram aos dois ciclos de
reforma agrária, em 1964 e 1973. Essas reformas suprimem as formas arcaicas de
produção; mas têm resultados contraditórios especialmente pelo seu caráter
desenvolvimentista, que buscava atender os interesses dos setores concentrados na
costa, vinculados ao mercado mundial e executava projetos de colonização na
Amazônia, com um sentido “civilizador”, sob o impacto do início da produção
petroleira. “Asimismo hemos respondido con la mayor afirmación de nuestra cultura e
identidad con relación a nuestras lenguas, costumbres, creencias y tradiciones como
53
formas propias de conciencia y resistencia frente a la dominación.” (MACAS,1991, p.
22)
No início da década de 1970 começam a se estruturar as organizações que
consolidariam a nacionalização do movimento.
...“en la comuna TEPEYAC de la provincia de Chimborazo, realizamos
en junio de 1972, un congreso al cual asistieron más de 200 delegados
representantes de organizaciones indígenas campesinas, cooperativas,
cabildos, etc., de las provincias de: Imbabura, Pichincha, Cotopaxi,
Bolívar, Chimborazo y Cañar, en el cual se constituyó el
ECUARUNARI.
“En este Congreso se manifiestan dos posiciones respecto a la
conformación de la base social del ECUARUNARI. La primera,
planteaba la necesidad de aglutinar a sectores indios y no indios. La
segunda, apoyada por la Iglesia, sostenía la tesis de que la Organización
debía ser sólo de indios. Por otro lado, a nivel de dirigentes empieza a
surgir un grupo que cuestiona la injerencia directa de la Iglesia.
En las discusiones, la segunda posición va tomando fuerza, y el
ECUARUNARI se va definiendo como una organización INDIGENA,
cuyo principal objetivo será el de propiciar dentro de la población
indígena la toma de conciencia, en orden a lograr una recuperación
social, económica y política. En este Congreso también adquiere
importancia las discrepancias entre otros dos sectores: uno, que se opone
a dar un carácter "clerical" a la Organización y, otro, identificado
plenamente con la Iglesia, posición que sale triunfadora.”
(ECUARUNARI, s/d)
Nota-se a influência da Teologia da Libertação nesse processo inicial de
articulação, de modo semelhante ao que ocorrera em Chiapas no mesmo período. Da
mesma forma, colocam-se já nos primeiros passos algumas polêmicas internas que
acompanhariam – e ajudaram a conformar – as concepções do movimento indígena no
Equador e em outros países, relativas à sua auto-afirmação e à relação com setores
políticos e sociais não-indígenas. Polêmicas que dizem respeito à própria construção da
identidade indígena, o que contradiz as concepções que naturalizam essa afirmação.
54
Constituída em 1980, a CONFENIAE aportou desde a região amazônica com o
auto-reconhecimento dos povos originários enquanto nacionalidades, reivindicação
posteriormente assimilada no próprio nome da CONAIE que, fundada em 1986,
conseguiu unificar nacionalmente as organizações mais importantes, com a integração
às confederações já mencionadas da CONAICE, representante dos povos da costa. Sua
estruturação, entretanto, se dá ao inverso da ordem aqui apresentada, pois a rede de
organizações (chamadas de segundo e terceiro grau), que se articulam desde o âmbito
comunitário até atingir o nível nacional. Sendo a comunidade o núcleo organizativo
fundamental, quando reunidas entre cinco e vinte formam os jatum cabildo que se
articulam nas federações provinciais antes do nível das confederações. Essa estrutura
garante a contundência dos levantes generalizados de povos e nacionalidades indígenas,
ou o seu fracasso, quando a convocatória das direções distancia-se dos anseios e da
linguagem das comunas.
Um ponto de inflexão do movimento ocorreu nas massivas jornadas de junho de
1990, iniciadas com a ocupação do templo de Santo Domingo no final de maio. “Como
todos los levantamientos llevados a cabo por nuestro pueblo, este último fue un
levantamiento contra la injusticia, por el derecho a una vida digna y a la
autodeterminación de diez nacionalidades indígenas que luchamos por defender
nuestros legítimos derechos históricos.” (MACAS, op. cit., p. 17)
O levante, inesperado para os demais setores da sociedade equatoriana,
demonstrou o acúmulo de forças que a CONAIE lograra desde sua formação, dando aos
povos originários a possibilidade de postular-se como agente do debate político. “Por la
fuerza de nuestra protesta, tanto la sociedad civil como el Estado se vieron obligados a
reconocer a los indios y a nuestro movimiento como fuerza política importante del
movimiento popular de este país”. (ibidem, p.18)
Como seria recorrente nesse trajeto, as causas daquela rebelião seriam
encontradas muito além das tensões conjunturais. “En realidad, las causas habría que
buscarlas en la acumulación de explotación y opresión que hemos sido objeto los indios
por cerca de 500 años, puesto que hasta estos días los indios seguimos siendo los más
pobres y humillados de esta sociedad. De esta manera, un antecedente fundamental
constituyen para nosotros 500 años de resistencia al colonialismo y neocolonialismo.”
(ibidem, p.18-19) Além dessa misteriosa força subterrânea que invariavelmente surge
como motor das resistências indígenas, o levante de 1990 tinha como eixos
mobilizadores a defesa e recuperação da terra e territorialidade, que aparecia como um
55
tema fundamental: “Creemos que no habrá solución al problema indígena si no se
resuelve el problema de la tierra: lo esencial para nosotros es la recuperación de la
tierra”. (ibidem, p.24); a unidade a partir da revitalização da identidade étnica; os limites
ideológicos do sistema político, incapaz de atender demandas. Algumas reivindicações
anunciadas então marcariam as lutas políticas e os debates sobre a reforma do Estado
equatoriano nos anos seguintes: reforma do primeiro artigo da constituição, para
reconhecimento de Estado plurinacional; reordenamento constitucional e criação de leis
e instrumentos jurídicos que permitam o direito ao autogoverno, baseado no princípio
da autodeterminação; controle e execução direta do programa de educação bilíngüe e
reconhecimento da medicina tradicional comunitária; recursos estatais para
financiamento de programas autogestionários e desenvolvimento de obras de infra-
estrutura e serviços básicos.
Passado e presente se articulam na construção da memória e dos elementos de
legitimação da luta: “Si hacemos una ligera revisión sobre el contexto socio-político en
que se desenvuelven nuestros pueblos, vemos que a 500 años de la invasión europea y
150 años de régimen republicano, se siguen desconociendo los derechos de los pueblos
indios; la conquista no ha concluido, sigue hasta nuestros días.” (ibidem, p. 19) Porém, a
partir dos anos 90 emerge um novo ciclo de desafio a esse contexto, com a transição das
demandas indígenas e dos povos originários enquanto sujeitos, a um novo patamar.
“Para los indios el levantamiento ha planteado varios retos que demandan mucha
responsabilidad. Estamos conscientes que somos una fuerza social y política con
enorme peso. Nos hemos ganado un lugar en la sociedad y buscamos una real
participación democrática y somos portadores de las aspiraciones de los pobres de esta
patria. Hemos hecho un llamado a la justicia.” (ibidem, p. 30)
O III Congresso CONAIE, realizado nessa época, já indicava a orientação que
tomaria sua luta, afirmando a necessidade de conquistar direitos históricos, baseada nas
formas próprias de organização, sem intermediários, mas sem descuidar da aliança com
demais setores populares. Desde então, dois presidentes da República foram mandados
para casa com sua ação decisiva e o movimento indígena equatoriano, que construiu
uma presença influente – ainda que conflituosa – nos embates de projetos do país,
buscando articular o atendimento de suas demandas particulares às alianças com outros
movimentos. Nesse processo, o movimento elaborou e foi desenvolvendo um conceito
central para reivindicar uma nova posição para os povos indígenas. Partindo da auto-
identificação enquanto nacionalidades, foi construída a demanda do Estado
56
plurinacional, contrapondo-se à forma liberal clássica do Estado-nação. Esse conceito
tornou-se central nos debates programáticos dos movimentos andino-amazônicos, sendo
constantemente desenvolvido no discurso de seus representantes. Como expressou em
algum momento Nina Pacari, dirigente da CONAIE que chegou a ministra de Relações
Exteriores,
“Desde inicios de los años noventa venimos planteando la construcción
de un Estado plurinacional porque creemos en un poder horizontal,
compartido y distinto a la ausencia de identidad que tenía la lucha de
clases tal como se la entendía en los años sesenta. La lucha tiene que ver
con la estructura del Estado y el ejercicio del poder.” (STEINSLEGER,
2001)
Transcendendo o formalismo procedimental que determina os debates sobre a
democracia parlamentar, a proposta do Estado plurinacional – cujo conteúdo efetivo é
ainda tema de discussão – é construída no âmbito da descolonização, pressupondo
transformações radicais nas relações sociais e na organização política das formações
sociais em que se pretende concretizá-la. Essa concepção, apesar de alguns avanços no
reconhecimento institucional, é ainda objeto de intensas disputas, principalmente pelas
reações que detectam no plurinacionalismo uma ameaça à soberania do Estado-nação,
chegando mesmo ao paroxismo de estabelecer analogias entre os movimentos latino-
americanos e o integrismo islâmico ou o risco de um separatismo basco ou balcânico.27
Porém, no âmbito interno do movimento ainda se discute quanto aos limites dos
avanços institucionais, à construção do seu conteúdo real e aos métodos que tornem
viável o plurinacionalismo.
“La Democracia Plurinacional Comunitaria y Participativa implican un
reordenamiento y transformación de la naturaleza del actual Estado,
de las estructuras jurídicas, políticas, administrativas y económicas que
permitan la participación plena de las Nacionalidades y Pueblos, así
como de los otros sectores sociales en la toma de las grandes decisiones.
27
Vale contestar que, com o acirramento do conflito e o acesso de setores do movimento indígena ou de
projetos “progressistas” a fatias do poder político, foram as oligarquias regionais de Santa Cruz
(Bolívia); Guayaquil (Equador) e Zulia (Venezuela) que assumiram a vanguarda da reação pró-
imperialista e impulsionaram projetos abertamente secessionistas.
57
“La nueva democracia será ante todo, anticolonialista, antiimperialista y
antisegregacionista, es decir diferente al falso sistema democrático
representativo imperante en la actualidad. (…)
“Para garantizar el pleno ejercicio de los derechos de las
Nacionalidades es necesario consolidar y reafirmar la unidad del
Estado Plurinacional, para enraizar la democracia, la paz y la libertad se
constituirá el nuevo Estado Plurinacional como expresión soberana,
independiente y democrática de las Nacionalidades, Pueblos y otros
sectores sociales.” (CONAIE, 2001 – grifos meus)
O ciclo de lutas impulsionadas pela CONAIE marcou com enorme vitalidade por
toda a década de 90, com a conquista progressiva de novos patamares de intervenção na
cena pública. Em 1995, articulou o Movimiento de Unidad Plurinacional Pachakutik-
Nuevo País (MUPP-NP) como braço político, com a decisão de participar nos espaços
institucionais. Dois anos depois, outro momento emblemático foi a destituição de
Abdala Bucaram, que abriu espaço para um processo constituinte no qual foram
acolhidos diversos temas da agenda construída pelo movimento indígena. A
Constituição de 1998 reconheceu os direitos coletivos dos povos indígenas e das
comunidades afrodescendentes, bem como os regimes especiais de administração
territorial. Entretanto, não confirmou o caráter plurinacional do Estado, indicando a
aceitação do tratamento da questão enquanto um problema de “minorias”, mas não
como a reivindicação, por parte de forças políticas independentes, de um reordenamento
desse Estado e de seu monopólio sobre o território. Segundo Nina Pakari,
“Los pueblos indígenas entienden la autonomía desde el punto de vista de
la reorganización territorial. Pero yo dudo que en este caso el Estado
pueda ceder, porque ya en la Asamblea Constituyente de 1998, a la hora
de la discusión tampoco la aceptaron y las autonomías se aceptaron
únicamente como jurisdicciones territoriales indígenas, mas no con plena
autonomía, que era lo que planteábamos.” (STEINSLEGER, 2001)
Nesse processo, o movimento indígena equatoriano destacou-se por sua
capacidade de firmar-se como protagonista no debate nacional, articulando demandas
particulares com lutas mais gerais das classes subalternas, o que tem sido o seu principal
58
desafio. Isso porque tal opção acarreta o ônus de assumir a exposição e as
responsabilidades de colocar-se como um agente político que disputa um projeto de
país, ou de hegemonia, para colocar em outros termos. Da mesma forma, surgem os
questionamentos internos pelo risco de o “politicismo” ofuscar a atenção às questões
mais imediatas das comunidades através da burocratização, do privilégio às negociações
e aos projetos financiados por instituições internacionais e o consequente
distanciamento entre organismos de direção e base. Assim, a CONAIE representa uma
experiência notável de unidade de movimentos tão diversos, capaz de sobreviver às
inevitáveis facções internas e à passagem por conjunturas desfavoráveis.28
Os desafios
desse acionar político aprofundaram-se com o levante de 2000. “De 1986 [...] hasta el
21 enero de 2000, día en que una movilización indígena destituye al presidente Jamil
Mahuad, la Conaie pasó de una visión étnica-nacional a una visión política-nacional del
problema indígena”. (idem)
Trata-se de uma experiência que passou a acumular-se, para além dos combates
mais imediatos do movimento social, também no exercício do governo em diferentes
níveis (do município ao Congresso nacional, antes da breve e traumática passagem pelo
Executivo), o que foi importante para que o movimento assumisse certas
responsabilidades que lhe foram colocadas, mas também aprofundou e deu maior
repercussão a certas contradições. Não obstante, foi essa trajetória, orientada pela
demanda do plurinacionalismo, que possibilitou ao movimento qualificar seus
questionamentos ao Estado “nacional” equatoriano, não apenas em termos étnico, mas
no sentido de ampliação dos espaços de democracia. Experiências locais como Guamote
e Cotacahi são contrapostas ao autoritarismo oligárquico implantado em Guayaquil: “En
estilo y contenido, son formas distintas y que son miradas como un modelo para el país.
Y este proceso es llevado a cabo por alcaldes indígenas”. (idem) Formas inovadoras de
exercer a democracia, que se pretende complementar e não oposta às formas
conhecidas. Inovadoras no âmbito do reconhecimento jurídico, já que derivam de
práticas consuetudinárias das comunidades.29
A partir desse acúmulo, os povos originários, nacionalidades indígenas do
Equador, projetam-se como sujeito protagônico na formação de um bloco histórico que
28
Não por acaso, parte da estratégia de desarticulação da CONAIE pelo governo de Lucio Gutierrez
centrou-se na sua divisão, através da cooptação de algumas lideranças. Desde então, além da
dificuldade de recuperar seu papel protagônico na cena política devido ao desgaste do apoio ao
governo o movimento indígena viu surgirem alguns esforços de organização paralela, como a
Federação Evangélica Indígena do Equador (FEINE). 29
Como se analisará na parte 3.
59
pautou por cerca uma década a resistência aos programas “neoliberais” e os debates pela
ampliação dos espaços de democratização de toda a sociedade, sem abrir mão de suas
particularidades enquanto povos. Tal processo, notado por diferentes intelectuais,30
teve
seu auge no início dos anos 2000. A partir de então, foi colocada para CONAIE a
disjuntiva de sua relação com o poder, entre esse impulso renovador e a co-
responsabilidade em determinados espaços do quadro institucional vigente.
“El movimiento indígena ecuatoriano ha sido claro: no hemos
abandonado la lucha extrainstitucional. Pero cuando asumimos la lucha
institucional vía elecciones, o sea con reglas establecidas, vemos que es
difícil trascender respecto a los nuevos estilos de actuar políticamente. El
lado ético del asunto es fundamental. Que el estilo de legislar no consista
en una formulación de elite y de cuatro entendidos, sino que sea parte de
un proceso.” (STEINSLEGER, 2001)
Mas os combates da CONAIE não se limitaram ao plano político. Como no caso
mexicano ou no boliviano, cultura, política se imbricam sobre o pano de fundo
histórico-estrutural na configuração dos conflitos sociais e de seus sujeitos. Daí
compreende-se que, com o amadurecimento de uma intelectualidade formada em
espaços organizativos próprios e o diálogo com algumas correntes teóricas,31
tenha-se
afirmado a necessidade de assumir um espaço próprio nos debates teóricos, pondo em
questão as interpretações correntes sobre processos e fenômenos, não apenas
relacionados ao universo dos povos originários, mas da própria condição
contemporânea.
“Hace un momento expresaba que actualmente existen dos luchas
paralelas y de carácter fundamental. La primera hacía referencia a los
30
Ver supra como Nina Pakari coloca a questão. Hidalgo Flor (2005, p. 344) refere-se a um “salto da
fase particular à fase político-universal”, enquanto Pablo Dávalos (2003, p. 43) sintetiza “...la
transformación del movimento indígena de un actor social constreñido y limitado a demandas
particulares y en las cuales su enfrentamiento com el Estado se hacía en función de reclamar una
integración a los mecanismos de participación y representación política, económica y social, una
integración que se basaba en el respeto a su identidad cultural, hacia la constitución de un sujeto
político en el cual sus demandas son nacionales y su agenda compete y compromete a toda la
sociedad.” 31
Um exemplo interessante desse tipo de experiência é a Universidad Intercultural de las
Nacionalidades y Pueblos Indígenas "Amawtay Wasi", organizada pela CONAIE a partir do ICCI.
60
desafíos que tenemos las comunidades y pueblos indígenas frente a los
embates de la globalización. Ahora bien, la segunda hace referencia a la
disputa que existe en el terreno del conocimiento, en la formación de los
saberes: ¿es posible el reconocimiento de otro pensamiento?; si existen
otras racionalidades, ¿qué lugar asignar a la racionalidad dominante? ¿Es
posible reconocer otras formas de construcción del pensamiento? Si son
posibles otras formas de construcción del pensamiento, entonces ¿cómo
validarlas? Se trata, por tanto, no solamente del pensamiento, sino de la
construcción de los saberes.” (MACAS, 2005, p. 39-40)
Parte desse esforço se reflete na afirmação de alguns conceitos que, emergindo
da práxis acumulada pelo movimento, passaram a incidir no vocabulário político e nas
reflexões acadêmicas. No caso equatoriano, bem como na Bolívia, estão principalmente
as discussões em torno da noção de plurinacionalismo. Porém, o emprego de conceitos
como interculturalismo colocam o problema da identidade para além de
multiculturalismos e pós-modernismos, que têm no reconhecimento da diferença um
programa em si.32
Como já foi mencionado, trata-se de questionar os fundamentos das
relações culturais e de poder e propor alternativas a esse estado de coisas, no que
contribui a assimilação e reelaboração de outros conceitos como território e
territorialidade ou colonialismo interno.
Quixote ficou muito impressionado com todos os logros e a maturidade do
indigenato equatoriano, mas não pôde ficar para ver as encruzilhadas que se
aproximavam para a CONAIE e suas organizações filiadas. Ouvira tanto de coisas tão
fantásticas que se passavam nos países vizinhos, que sua alma de cavaleiro andante,
infinitamente interessado na experiência humana, o impeliram a ver e ouvir como
pensavam e agiam os povos originários de outras regiões.
32
Esse enquadramento da questão a coloca em termos incompatíveis com os que alude Silvia Rivera ao
referir-se à “retórica do pluri-multi” (CUSICANQUI, 2003, p. 13), conforme é desenvolvido pelas
academias norte-americana e européia e assimilada por ONGs e elites intelectuais latino-americanas,
pelo que é importante evitar generalizações apriorísticas.
61
V. “As linhas do muro brincavam com o sol; as pedras não tinham ângulos nem
linhas retas; cada qual era como uma besta que se agitava à luz; transmitiam o
desejo de celebrar, de correr por alguma pampa, lançando gritos de júbilo”.33
Depois de tudo que ouvira sobre o esplendor da capital do Tawantisuyu, o
cavaleiro não teve dúvida em rumar direto para lá, onde notou de longe o contraste das
construções do centro com a pobreza na periferia da cidade. Após sentar-se em um
mercado popular nos arredores de Qosqo (ou Cuzco na versão castelanizada), achou
curioso que não chamasse grande atenção dos transeuntes e já pensava que de fato
poderia passar despercebido numa cidade com tantas alegorias dos tempos heróicos dos
incas, contrapostas aos monumentos da conquista européia. Documentos de cultura, que
eram também documentos de barbárie expressando a cada esquina testemunhos de
embates passados. (BENJAMIN, 2005, p. 70) Foi quando se aproximou um garoto de
cerca de quatorze anos, admirado com aquele personagem de barba desgrenhada, roupas
extravagantes e fala empolada. Seu nome era Ernesto Huayna Arguedas e nos primeiros
momentos da prosa, Quixote ficou sabendo que falava um quéchua mesclado com
castelhano, que perdera os pais na guerra interna e desde então vendia doces ou o que
podia na rua para comprar material escolar e sustentar sua irmãzinha. Esse contato
revelou um país de tradições impressionantes, porém marcado pela tragédia recente do
conflito interno.
O pequeno Arguedas conduziu Dom Quixote pela cidade. Era noite e o
forasteiro surpreendeu-se com a estação ferroviária e a larga avenida por que
caminharam, bem diferente da Cuzco monumental mil vezes descrita no caminho e mais
parecida às periferias das cidades por onde passara. Chegaram então a umas ruas
estreitas, onde recuaram e se revelaram às suas vistas belos balcões, portais e saguões
com entalhes muito bem trabalhados, mas semelhantes a algumas no caminho.
Esquadrinhava as ruas buscando os famosos muros incaicos, quando o garoto exclamou
que olhasse em frente, onde estava a construção que fora o palácio do Inca Roca.
Por uns segundos paralisado, o estrangeiro analisou atentamente. O muro
formava esquina, avançando de uma rua larga para outra mais estreita e sem iluminação,
que tinha fedor de urina e dava em uma ladeira. Depois, foi analisando pedra por pedra.
33
José Maria Arguedas, Los rios profundos.
62
Recuava uns passos, contemplava e voltava a se aproximar. Tocava-as com as mãos;
seguia a linha ondulante como a de um rio, que juntava os blocos que, apesar de
enormes e compactos, pareciam vivos e flamejantes na palma das mãos. Ninguém
passava pela rua por um longo tempo, a não ser um bêbado que fez uma breve parada na
esquina antes de seguir, sem perturbar Dom Quixote, que seguiu naquela espécie de
transe, vendo e sentindo no muro tudo que passara nos últimos anos.
Perguntou a Huayna se ainda vivia alguém naquele palácio, ao que este
respondeu que sim, desde a conquista, ou não vira os balcões? O cavaleiro já havia se
esquecido da construção colonial, suspendida sobre a muralha, como um segundo piso.
E quem morava ali? Uma família aristocrática e avarenta, por certo, como são todos os
senhores de Cuzco. E o Inca permite? Mas esses estão todos mortos. Mas não o muro. E
se são avaros os moradores, o muro poderia devorá-los... Comentou então que as pedras
falavam, ao que o jovem respondeu que na verdade o que ocorria é que elas se
trasladavam à mente, desde ali inquietando o observador atento, e que pareciam mover-
se por serem desiguais, ao que foi replicado que pareciam caminhar, revolverem-se, não
obstante estarem quietas. Maria Angola começou a reverberar na torre da igreja central
e o garoto sugeriu que seguissem para a Praça de Armas, mas Quixote quis antes fazer
um juramento de que aquelas pedras o acompanhariam onde ele fosse.
Seguiram então em direção à Catedral, cuja entrada se dá pela Igreja do Triunfo,
pois contam que ali os invasores, após serem quase arrasados pela resistência de Manco
Inca, contaram com aparições da Virgem da Descenção e de Santiago, que, sendo Mata-
mouros na Europa, tornou-se aqui Mata-índios e garantiu a vitória sobre os quéchuas e
sua civilização. Com o trabalho compulsório dos vencidos e as pedras retiradas da
fortaleza de Sacsayhuaman nos arredores de Cuzco, os conquistadores ergueram a
catedral, que parece maior de quanto mais longe se vê, como monumento à sua vitória e
à religião que vieram impor. Quixote entendeu porque aquela igreja fazia sofrer e
perguntou se a praça era espanhola, ao que seu pequeno guia respondeu que é obra de
Pachakutek, o Inca renovador da terra, e por isso era certamente distinta de todas as
praças conhecidas pelo viajante.
Dali, Ernesto se despediu e Quixote sentou-se em um café próximo à praça de
armas, onde encontrou um velhinho bem simpático, de barba e cabelo brancos como
algodão, vestindo calça, camisa pólo, sandálias e um típico chapéu camponês que às
vezes lhe cobria os olhos. Apresentou-se e descobriu que era Hugo Blanco, figura
legendária das lutas sociais peruanas que na década de 1960 liderou o processo de
63
tomada de terras a partir da auto-organização camponesa, posteriormente nacionalizada
pela reforma agrária do governo Velasco Alvarado, ainda que sua ação centralizadora
desvirtuasse parte do ímpeto inicial.
Atualmente, esse velho combatente se dedica a articular, organizar, impulsionar,
reativar e recuperar a memória da Luta Indígena,34
trabalhando assim para estabelecer o
elo entre passado e presente da resistência popular no Peru, bem como entre as tradições
de organização dos povos originários e a tradição revolucionária marxista. Tal diálogo
tem ali um interessante precedente no amauta Mariátegui, mas as condições atuais se
configuraram adversas para a irrupção do discurso étnico em sua dimensão política que
veio adquirindo em outros países. Sobre as peculiaridades do movimento indígena
peruano que, comparado aos países vizinhos, chama atenção pela ausência, estiveram
conversando aqueles dois personagens bem únicos.
Em grande medida, o Peru contemporâneo traz as sequelas da guerra interna na
qual as organizações guerrilheiras chegaram a consolidar considerável implantação em
algumas regiões do sul andino e preparar ações em grandes centros urbanos. A principal
organização a impulsionar a luta armada, Sendero Luminoso, se articulou a partir de um
grupo de professores e estudantes universitários de Ayacucho, região isolada e de pouca
tradição organizativa do campesinato. O grupo guerrilheiro, que retirou o seu nome de
uma citação de José Carlos Mariátegui, surge de uma dissidência do Partido Comunista
de linha chinesa e adota uma ideologia que, derivada de uma leitura muito particular do
maoísmo pontuado por referências a Mariátegui,35
era estruturada em princípios
dogmáticos e autoritários, fundamentando métodos violentamente sectários que
justificavam o combate contra tudo o que não se encaixasse no seu ideal de projeto
“revolucionário”, o que incluía sindicalistas, militantes de partidos de esquerda e
“revisionistas” de todo tipo, pequenos comerciantes e proprietários rurais, autoridades
locais e comunidades camponesas suspeitas de colaboração com a repressão. Por outro
lado, com o pretexto do combate ao terrorismo, o Estado peruano adotou uma estratégia
contra-insurgente de repressão e controle social, em que alvos civis e militares pouco se
diferenciam.
Como saldo, o Peru contabilizou cerca de 70.000 mortos entre o início das
operações militares do Sendero em 1981 e a captura de Abimael Guzmán em setembro
34
Este é o nome do periódico dirigido atualmente por Hugo Blanco. 35
Em algum momento, o Sendero chegou a considerar-se “farol da revolução mundial” e seu principal
dirigente, Abimael Guzmán – o Presidente Gonzalo – a quarta espada do comunismo internacional,
sucedendo Marx, Lênin e o chinês Mao Tsé-Tung.
64
de 1992, sendo 75% das vítimas quéchuas de comunidades camponesas dos
departamentos do centro-sul andino. Para completar, o contexto de guerra interna abriu
caminho para a ditadura civil-militar comandada por Alberto Fujimori que introduziu o
país no fundamentalismo do mercado, inaugurando algo que podemos chamar de
neoliberalismo de guerra.36
“El fujimorismo impuso una profunda modernización neoliberal que
cambió completamente el rostro de la sociedad y el Estado peruano. En
una sociedad que a inicios de la década de 1990 se hallaba devastada
debido a la expansión de la violencia política, la galopante crisis
económica y el debilitamiento estatal, la modernización neoliberal
prácticamente no halló resistencias.” (TEVES, 2007, p. 107)
Portanto, além da decomposição do tecido social, com uma sociedade sufocada
pelo peso de um regime autoritário e pelo trauma de tamanho massacre, a emergência
da temática indígena foi ofuscada pela situação de alvos majoritários no fogo cerrado
dos anos 80 e 90. Observadas as particularidades, é possível estabelecer certa analogia
com a experiência guatemalteca, onde a enorme presença das tradições pré-colombianas
não ganhou a dimensão que seria esperada diante da emergência continental dos povos
originários, no que tiveram papel determinante os massacres das décadas precedentes.
Analisar as causas mais profundas dessa guerra nos levaria demasiado longe,
mas é importante mencionar dois fatores que influenciaram na complexa configuração
étnica do Peru contemporâneo, a reforma agrária e a rápida urbanização concentrada em
Lima, ambos derivados dos contraditórios processos de modernização que marcam a
paisagem do século XX neste continente.
A reforma agrária implementada pelo governo militar de Juan Velasco Alvarado
no fim dos anos 60 liquidou com o sistema tradicional das haciendas, reconheceu
oficialmente os idiomas indígenas, mudou o estatuto legal das comunidades. No
36
O antropólogo peruano Ramón Pajuelo Teves (2007, p. 104-105) analisa o componente étnico na
eleição de Fujimori, um engenheiro desconhecido, que derrotou a plataforma liberal-criolla do
escritor Mario Vargas Llosa. Vitorioso com um discurso populista que apelava a setores mestiços
(cholos) pobres, logo após a posse aplicou um choque econômico que incluía o aumento de até 800%
em produtos de primeira necessidade. Em 5 de abril de 1992, Fujimori fechou o congresso e interveio
no judiciário, mantendo-se no poder até setembro de 2000, quando se viu obrigado a renunciar em
meio a denúncias de fraude eleitoral e escândalos de corrupção. Em abril de 2009 o ex-presidente foi
condenado pela justiça peruana por execuções e violações dos direitos humanos no período da guerra
interna.
65
entanto, apesar da fraseologia revolucionária que recorria à mitologia incaica e à CNA
para manter uma base social mobilizada,37
o programa do militarismo progressista se
mantinha atado à concepção liberal de que tornar os índios cidadãos significava
desindianizá-los; suas formas de organização da base através do SINAMOS eram
verticalizadas, de métodos corporativos; o modelo produtivo e fundiário, baseado nas
grandes empresas cooperativas agrárias CAP e SAIS, não levava em conta as tradições
comunitárias e logo seria por elas desestruturado e absorvido.
Outro fenômeno a moldar a sociedade peruana foi a vertiginosa urbanização
direcionada para a costa e concentrada na capital. Entre 1940 e 1979 o país saltou de
27% a 65% de população urbana, enquanto Lima setuplicou sua população no período
indicado e na década seguinte viu sua população passar de 4,5 a 7 milhões de
habitantes, cerca de um terço da população do país. (ALBÓ, 1991, p. 321) As principais
zonas de expulsão foram, na maior parte do período, as áreas andinas que concentram a
maior parte das comunidades tradicionais. Sua principal consequencia foi a
“serranização” de Lima, expressa na disposição geográfica dos novos bairros nos
arredores da capital; nos centros e clubes provinciais, com suas festas e redes de
reciprocidade; em manifestações culturais como a música “chicha”; na auto-organização
para a conquista de moradia, trabalho e serviços básicos, ante a inoperância estatal.
“Desde el Estado, se ignoró el proceso de construcción silenciosa y 'desde abajo' de una
peruanidad diferente, por parte de cientos de miles de migrantes indígenas que desde la
década de 1940 abandonaron sus comunidades rurales y engrosaron la población de las
ciudades”. (TEVES, 2007, p. 99) Esse processo assume contornos especialmente
conflituosos em uma sociedade na qual a construção histórica do racismo se funda
ademais na contraposição geográfica entre a costa aristocrática e a serra indígena,
diferentemente das capitais andinas Quito e La Paz.
Nesse quadro, a questão étnica assumiu um ritmo próprio nesse país de fortes
tradições indígenas. Segundo Albó (1991, p. 325), o “campesinismo” predominou nas
organizações andinas até década de 1990, de maneira que tiveram repercussão limitada
iniciativas como o Primeiro Congresso de Nacionalidades e Minorias Nacionais em
1979, realizado em Cuzco com o apoio de grupos de esquerda, em que se nota
37
A Confederação Nacional Agrária foi fundada em 1974 com apoio estatal, a fim de disputar espaços
políticos com a Confederação Camponesa do Peru, criada em 1946 com o suporte de militantes
comunistas. Apesar de sua origem oficialista, a CNA não deixou de ter alguns momentos de
radicalização de suas demandas.
66
influência do katarismo boliviano.38
Outras experiências, como o CISA estabelecido na
mesma cidade no ano seguinte, articulam um incipiente indianismo radicalizado, que no
entanto mantém-se isolado em relação às bases sociais mais amplas dos movimentos
sociais camponeses mais importantes, notadamente CNA e CCP. (TEVES, op. cit., p.
102)
Em contraponto a essa realidade na serra, organizações indígenas como o
Congresso Amuesha e o Conselho Aguaruna-Huambisa começam articular já na década
de 1960. De maneira que na década de 1980 o movimento já está consolidado a ponto
de conformar organizações de terceiro grau, como AIDESEP e CONAP. Fundada em
1984, a COICA passou a reunir organizações do Equador, Colômbia, Venezuela,
Colômbia, Brasil, Bolívia, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Peru, tendo aí sua
primeira sede. No entanto, essas importantes experiências que se mantém presentes nas
lutas atuais, mantiveram-se no âmbito regional e, tanto por contradições internas como
pelos fatores mais gerais já observados,39
não passaram pelos processos de unificação e
intervenção no debate nacional observados em Equador e Bolívia.
Meu objetivo aqui não é analisar o caso peruano a partir da ausência do
movimento indígena, mas compreender como se configura a dinâmica recente dos
conflitos etnopolíticos. Pois se a demanda indígena não assumiu até agora a visibilidade
que tem nos países vizinhos, a herança quéchua é uma força inegável e não deixa de se
expressar nos espaços de organização popular e camponesa, ainda que por outros canais
em que não aparece como eixo articulador. Apesar de a temática indígena não alcançar
a dimensão observada em outros casos, chama atenção como um fator que atravessa as
diversas lutas políticas que vêm se sucedendo no Peru durante processo de
redemocratização, conflitos agravados pela reiterada incapacidade estatal em lidar com
as demandas populares. Ao longo da década de 2000, emergem fenômenos eleitorais
como a eleição do cholo Toledo com apelos à mitologia andina e o “etnocacerismo” da
família Humala;40
a crise em torno à aplicação de mecanismos de justiça comunitária
Ilave;41
as articulações regionais contra o centralismo; lutas setoriais como a rebelião de
38
Sobre katarismo, ver capítulo seguinte. 39
Apesar de sua limitada expansão pelos departamentos amazônicos, o Sendero Luminoso logrou
implantação em determinados territórios, levando as consequencias da guerra com especial
intensidade à população ashánika da qual se estima em seis mil o número de vítimas fatais, às quais se
somam outros milhares de refugiados. (TEVES, op. cit., p. 103) 40
Ver TORRES, 2006. 41
A violenta execução em abril de 2004 do alcaide do município aimará na fronteira com a Bolívia foi
tema de ampla controvérsia. De um lado, os que condenavam o ato de “barbárie”, à margem da lei; do
outro, os que buscaram compreender os mecanismos de justiça comunitária que justificaram o ato
67
2002 contra a privatização do setor elétrico em Arequipa e a radicalização das lutas
magisteriais, com epicentro no sul do país (Cuzco, Puno, Arequipa), que teve seu ápice
na greve geral de 2007; o movimento cocalero; os movimentos de defesa dos recursos
naturais e territórios comunitários, em que se destacam a luta contra as mineradoras
articulada pela CONACAMI e os levantes de 2008 e 2009 dos povos amazônicos contra
os decretos do governo federal.
contra uma série de acusações de corrupção, baseado no princípio do Ama killa, ama llulla, ama shua
(Do quéchua: Não ser preguiçoso, não mentir, não roubar.)
68
VI. Em que o engenhoso fidalgo conhece a rebeldia da plebe aimará que povoa o
altiplano boliviano e seus arredores.
Após a passagem por Cuzco, Quixote seguiu para a região do Titikaka, berço
dos primeiros incas e chegou até o sítio da civilização pré-incaica Tiahuanaco, onde lhe
foi revelado um pouco mais do universo andino que tanto lhe fascinava. O engenhoso
fidalgo de La Mancha reagiu com ceticismo às notícias de fabulosas jornadas de luta
que ocorriam em terras aimarás, mas o ambiente de um estado de rebelião que se vivia
há alguns anos era tão intenso que ao cavaleiro só restou seguir caminho para conhecer
o que se passava na terra do tal Tupac Katari, de quem tanto ouviria falar.
Subiu então até El Alto à custa de seu pobre cavalo doado pelos maias de
Chiapas, que a essa altura já fizera um percurso muito mais longo que o velho
Rocinante. Chegando à cidade, antes de ficar pasmado com a vista de La Paz, deteve-se
na movimentação frenética daquela cidade aimará de ocupação recente e autônoma,
expressão de um país em movimento. As marcas da migração recente não se expressam
apenas no traçado das ruas e na divisão dos bairros, delirantes a uma racionalidade
estatal-cartesiana, mas em todo o senso geográfico e histórico de uma população que
traduz para o meio urbano seus vínculos comunitários de origem.
Nosso personagem deteve-se num grupo de jovens que se vestiam com roupas
largas que cobriam todo o corpo, cada um deles carregando uma caixa de madeira e
usando passa-montanhas que o fizeram pensar tratar-se de zapatistas. Com esse mote foi
interpelá-los a que soube tratar-se de um grupo de engraxates, mas que não eram apenas
engraxates, pois como logo aquele estrangeiro veria, na Bolívia quase sempre a rebeldia
se guarda sob a aparência de mansidão. Alguns rapazes, sempre muito ativos, foram
dando um lustre nas vestimentas de Quixote, enquanto outros insistiam que ele ficasse
com uma cópia do jornal que eles editavam, o Formigão Armado. Contaram-lhe que se
organizavam para sobreviver no trabalho de rua, onde tinham uma extensa rede de
contatos que permitia em minutos saber toda a movimentação da região metropolitana
de El Alto-La Paz. Que se vestiam daquele jeito por causa do frio seco e cortante do
altiplano, mas também pela força estética e pelo sentido de auto-preservação. E que
além do trabalho nas ruas, tinham algumas oficinas onde se reuniam para desenvolver
trabalhos comunitários e confraternizar, sendo que alguns ali presentes participavam um
grupo de artistas que compunham rap em língua aimará.
69
O encontro se deu em algum momento entre fevereiro e outubro de 2003, pelo
que a animação daqueles jovens não conseguia esconder sua tensão. Após sentirem
confiança naquele estrangeiro, os engraxates o convidaram para sua oficina, que ficava
a algumas quadras do centro de El Alto. Na longa conversa, o cavaleiro impressionou-se
com a sabedoria daqueles jovens em relação às tradições da resistência indígena no
Qollasuyu, uma sabedoria que posteriormente veria bastante difundida por toda a
região.
A tradição de resistência do povo aimará, que atravessou o período colonial tem
uma presença aparentemente cíclica na história boliviana. Dessa forma, os movimentos
populares e indígenas do final do século XX apresentam-se renovados por tradições que
passam pela revolta de libertação nacional de Tupac Katari, que em 1781 esteve
próximo de expulsar os espanhóis estabelecendo o cerco a La Paz; a participação das
tropas indígenas comandadas por Zárate Wilka na Guerra Federal de 1889; pela
revolução popular de 1952, que desestruturou o exército e culminou com reforma
agrária e, finalmente, pela rearticulação do discurso indígena no katarismo dos anos 70,
que se tornaria um prelúdio para o ciclo insurgente contemporâneo.
Pachakutik, palavra ouvida também em Quito, contém entre seus possíveis
significados a noção de uma renovação cíclica e cataclísmica do espaço e do tempo, um
conceito que se assemelha em alguns aspectos ao sentido original da palavra revolução.
Talvez por isso, conscientemente ou não, o conceito quéchua fosse apropriado para
designar a nova concepção de transformação social que vem se gestando nos Andes. O
ciclo da plebe insurgente, iniciado em abril de 2000 com a “Guerra da Água” contra a
privatização deste recurso em Cochabamba, emerge de uma crise profunda na natureza
da dominação estatal e se desenrola nos anos seguintes com a diversificação das formas
de luta e ampliação da capacidade de intervenção dos movimentos sociais nos conflitos
sócio-políticos do país. Assim, sucedem-se as marchas, eleições de deputados
indígenas, bloqueios de caminhos a paralisar o país ou determinadas regiões, greves de
fome, combates massivos de rua etc. Um amplo repertório de ações que pautaram
situações como os levantes de fevereiro de 2003 contra a alta de impostos e de
setembro/outubro do mesmo ano conhecido como “Guerra do Gás” ou as mobilizações
de 2005 contra a privatização dos serviços de água em El Alto e pela nacionalização dos
hidrocarbonetos. Um desenlace desse processo, que em nada representa uma leitura
linear dos episódios anteriores, é a eleição de Evo Morales para presidente em
70
dezembro de 2005, que reconfigura a composição das forças políticas bolivianas e
coloca outra ordem de desafios para os movimentos sociais.
Em El Alto os que receberam o viajante insistiram que, mais que pelas
organizações e suas lideranças, a melhor maneira de conhecer a complexidade do
movimento indígena daquele país seria ouvindo as diferentes vozes, observando a ação
dos diversos setores em cada momento e tentar a partir daí compor um quadro de sua
situação. Foi então que apenas começou a entender a ampla malha de movimentos
sociais, nem todos de caráter especificamente étnico, se revezando entre momentos em
que conseguem unificar suas bandeiras e desenvolver táticas conjuntas de luta e outros
em que mantêm séria rivalidade. Na verdade, mais que movimentos sociais
propriamente ditos, trata-se de uma sociedade em movimento, nos interstícios dos meios
de interação social reconhecidos, que desborda inclusive os próprios espaços formais de
organização popular.
Essa dinâmica possibilitou que os multifacéticos sujeitos sociais na Bolívia,
apesar de não estabelecerem instâncias consistentes de unificação estratégica e não
obstante os episódios de agravamento das pugnas internas, contribuíssem a um
panorama de auto-afirmação das identidades no sentido de luta contra a histórica
exclusão social dessas maiorias e de reconstrução das relações sociais sobre bases
antagônicas ao racismo neocolonial que seguiu vigente durante todo o período
republicano. Da miríade de experiências e organizações que convergiram nesse
processo, pode-se destacar cinco vertentes principais do movimento indígena dispersas
pelo território boliviano (TEVES, op. cit., p. 61):
1) O movimento indígena urbano de El Alto, cidade formada pela recente migração
camponesa, onde a FEJUVE articula as associações bairriais, cumprindo um papel
decisivo nos levantes de 2003 e 2005.
2) Organizações quéchua-aymara de Cochabamba, Potosí, Chuquisaca;
3) O movimento indígena de terras baixas;
4) O movimento cocalero, representado pelas Federaciones de Productores de hoja
de coca de los Yungas y el Chapare.
5) O movimento comunitário aimará do altiplano, que teve sua principal expressão
organizativa na CSUTCB.42
42
Esta organização sofreu uma cisão em 2001, com um setor que se manteve sob a liderança de Quispe
e outro alinhado ao MAS.
71
VI.1 – Matriz andina e matriz amazônica
O fidalgo de La Mancha chegou então ao hotel onde lhe indicaram ser o lugar
adequado para acompanhar as movimentações políticas da cidade. Ficava numa ladeira,
descendo da Praça Murillo, onde estão as sedes do governo e do congresso. Logo que
entrou, se aproximou de uma reunião e achou graça quando ouviu o orador, que
explicava todo o trabalho de base que desenvolviam, todo esforço de articulação política
e das diferentes lutas concluindo por definir sua realidade como a de índios querendo
ressurgir como índios quixotes. (La Razón, 24/07/2008) Chamava-se Felipe Quispe,
tinha um ar sisudo e muito mais arredio que os demais com quem falara Quixote. Após
o fim da reunião, o principal dirigente da CSUTCB falou um pouco da trajetória e das
idéias que estão na raíz das mobilizações dos povos originários do altiplano boliviano.
Sua história se relaciona diretamente com o katarismo, corrente que surge no
contexto de crise do “Estado de 52”.43
A revolução que liquidou as bases do regime
oligárquico precedente construiu sua estabilidade sobre o sistema de mecanismos
clientelares, conhecido como pacto militar-camponês, para os quais a hegemonia do
Movimento Nacionalista Revolucionário direcionou o impulso inicial da reforma
agrária. A nova corrente teórico-política surgida na década de 1970, que logra
considerável assimilação pelas bases sindicais a partir da CSUTCB, representou a
autonomização do campesinato indígena das comunidades em relação ao modelo
sindical oficialista. Além de seus aspectos políticos, esse processo reflete a dinâmica da
construção de um discurso nacionalista indígena, em que a reconstrução de uma
consciência étnica aparece como o principal eixo de coesão dos grupos subalternos,
sintetizando a memória larga das lutas anticoloniais e da ordem ética pré-hispânica
com a memória curta do poder revolucionário dos sindicatos e das milícias camponesas
a partir de 1952. (CUSICANQUI, 2003, p. 179)
Quispe foi fundador da agrupação guerrilheira EGTK e esteve preso no início
dos anos 1990. Nesse processo de organização dos chamados ayllus rojos, assumiu o
título de Mallku (Condor), que é como se denominam as autoridades comunitárias
máximas. A eleição como secretário executivo da CSUTCB em 1998 o alçou ao
primeiro plano do movimento de massas boliviano, ao mesmo tempo em que recuperou
43
René Zavaleta emprega essa expressão, adotada também por Silvia Rivera para referir-se à forma
específica de assimilação das massas populares na destruição da velha ordem e na organização do
Estado pós-revolucionário.
72
a influência aimará radical na central, depois de alguns anos de desagregação do
katarismo.
Dos distintos setores que se alternaram na direção da insurgência plebéia-
indígena, o campesinato comunitário aimará foi um pólo determinante, não apenas de
momentos-chave do enfrentamento, como na difusão de conceitos importantes para a
composição das demandas do movimento popular-indígena. Quando, nas jornadas de
2000, uma multidão de mais de 500 mil homens, mulheres, idosos e crianças
estabeleceu um cerco pacífico a La Paz, bloqueando toda movimentação de acesso à
capital, não foram poucos os que recordaram as palavras atribuídas a Tupac Katari há
mais de duzentos anos, antes de ser executado: “Voltarei e serei milhões”.
Bueno, desde hace dos años que trabajo en directa relación con la
comunidades del altiplano. Es un proceso largo en el que tratamos de
desideologizar a nuestros hermanos, de sacar la ideología extranjera del
cerebro indio. Luego, lógicamente, viene un trabajo de reindianización,
de retomar los rasgos de nuestra cultura ancestral. (GÓMEZ e
GIORDANO, 2002, grifo meu)
Nota-se aí um esforço consciente de construção da identidade indígena, do qual
seu discurso passou a representar a perspectiva de ruptura mais radical. Inspirado no
indianismo de Fausto Reinaga, não considera a Bolívia unitária, reivindica o poder
indígena e a autodeterminação do Qollasuyu, assumindo a wiphala como substituta da
bandeira republicana.
Nosotros los indígenas tenemos nuestro propio territorio. Este territorio
no es de los occidentales, de los colonizadores, es nuestro. Tenemos
nuestra propia historia, nuestra propia filosofía, nuestras leyes, religión,
idioma, hábitos y costumbres. Desde esa perspectiva, nosotros los
aymaras nos consideramos una nación y de ahí la idea de
autodeterminarnos. (Idem)
73
Essa proposta política transcende a luta pela ocupação de espaços no aparato
estatal,44
apontando na perspectiva do autogoverno baseado em “nuestro propio sistema
de los ayllus y comunidades, con un sistema igualitario donde no hayan ni los pobres ni
los ricos donde todos los indígenas vivamos en iguales condiciones de vida.”
(GONZÁLES; ROTUNDO e CAMPANA, 2005)
A forma contundente com que se coloca essa interpelação tangencia em alguns
momentos uma reação negativa ao não-indígena (como as referências depreciativas ao
blancóide ou q’ara),45
mas não pode ser simplistamente confundido com um “racismo
às avessas”.
No somos puritanos, no hablamos simplemente del indígena, sino de todo
el pueblo. También nos preocupamos de nuestros hermanos que no son
indígenas, que también sufren porque no hay trabajo. Inclusive pensamos
en esa gente que en los barrios más ricos de las ciudades vive en la peor
miseria: nosotros todavía tenemos algunos surcos para la siembra, ellos
no. Con ellos también estamos pensando trabajar, porque también han
nacido acá. No queremos implantar el racismo que se ha creado en la
Colonia y sigue vivo en este gobierno. No podemos enfrentar un racismo
indio al racismo blanco, eso sería una aberración social y un suicido
político. Lo que vamos a hacer es a abrazar a todos, este movimiento
tiene un poncho muy grande, y debajo de él pueden cobijarse todos.
(GÓMEZ e GIORDANO, 2002, grifo meu)
No entanto, não se pode negar algumas contradições por que envereda o
indianismo – e aqui não me refiro exclusivamente a Felipe Quispe – ao apelar a uma
idealização do universo indígena, em alguns momentos com um tom espiritualista,
afirmando uma especificidade hermética, que dificulta a aliança com setores sociais
mais amplos e o diálogo com outras teorias críticas.
Força hegemônica no movimento camponês-indígena boliviano ao longo da
década de 80, o katarismo passou por uma série de disputas internas que levaram à sua
44
Um espaço de luta que não foi completamente desprezado por Quispe, que fundou em 2002 o
Movimento Indígena Pachakuti e foi deputado. 45
Nesse aspecto, talvez se possa estabelecer um paralelo com determinadas expressões do movimento
negro estadunidense.
74
desarticulação no final desse período. Nesse vácuo, despontaram dois setores que
compuseram vetores importantes dos movimentos indígenas.
Em um pólo distinto em relação a Quispe dentre as principais lideranças andinas,
formou-se Evo Morales. Líder sindical originalmente de corte mais clássico, sua
experiência revela o processo de radicalização dos cocaleros, cuja identidade transitou
de um perfil sindical-camponês para o indígena e fornecem a base social para a
fundação do MAS. A formação dessa base social relaciona-se diretamente às políticas
de colonização da zona tropical do Chapare, que tiveram seu auge a partir de meados da
década de 1980 quando o decreto 21060 implementa o primeiro choque neoliberal na
Bolívia, desarticulando o setor mineiro e levando à relocalização dos operários no
plantio de coca. “Es posible señalar que la transformación de los obreros en las minas
en cocaleros que redescubrieron su identidad indígena, fue facilitada por el hecho que la
condición obrera en las minas de los Andes siempre ha estado teñida del origen
culturalmente indígena – quechua y en menor medida aimara – de los mineros.”
(TEVES, op. cit., p. 71)
Além dos fatores de coesão interna, a radicalização do movimento cocalero
responde aos sucessivos planos de erradicação desses plantios, executados pelas forças
de repressão local sob supervisão direta da embaixada estadunidense. Como resultado,
as federações camponesas locais não apenas radicalizaram seus métodos de luta, como
procuraram dar-lhes uma dimensão nacional, reinventando seus laços identitários e os
aspectos culturais ancestrais da folha de coca e pondo em evidência o caráter
antiimperialista de suas demandas.
O impulso inicial para a mobilização dos povos amazônicos ocorreu em função
das políticas modernizadoras da segunda metade do século XX, que introduziram novos
agentes na região: colonos, agências estatais, .empresas petroleiras e madeireiras,
igrejas, ONGs etc. A partir da interação com esses atores, os grupos locais
desencadearam um processo organizativo articulado desde o início com os países
vizinhos. Em 1987 surge a Assembléia do Povo Guarani e dois anos depois o Congresso
de Povos Indígenas do Beni, que apresentava demandas como o reconhecimento
territorial, a revalorização cultural, o fim das atividades de empresas madeireiras e
pecuárias em seus territórios e a convocatória a uma “Marcha pelo Direito ao Território
e à Vida dos Povos Indígenas” a La Paz. Essa atividade ocorre em 1990 e resulta em um
importante impacto simbólico e organizativo, ao tornar pública a demanda do
75
plurinacionalismo e unificar as diversas organizações amazônicas bolivianas na a
Central Indígena do Oriente Boliviano (CIDOB).
Vale ainda assinalar que a emergência política dos povos indígenas ocorre em
um contexto de desarticulação do proletariado que formara historicamente a combativa
base social da COB, abrindo caminho à transição do mineiro ao camponês-indígena
como matriz do nacional popular na articulação de um discurso contra-hegemônico de
resistência ao neoliberalismo.
La crisis boliviana expresa, pues, los límites de las diferenciaciones
regionales, clasistas y étnicas erigidas históricamente en Bolivia, en
medio de una coyuntura de aguda crisis de hegemonía estatal y
socioeconómica; situación que revela los bloqueos del proceso de
conformación nacional y el agotamiento de la promesa republicana
liberal con la cual la nación boliviana – al igual que el resto de las
naciones andinas – vio la luz en las primeras décadas del siglo XIX.
(TEVES, op. cit., p. 63-64)
76
VII. Que serve para organizar as idéias, num esforço de síntese do que foi visto,
ouvido e sentido na travessia quixotesca por Abya Yala.
Depois desse panorama geral, capaz de cobrir apenas uma parte da travessia do
nosso bravo “Dom Quixote” por essas terras, seguem-se alguns elementos de síntese
dos aspectos mais significativos dos movimentos indígenas contemporâneos de Abya
Yala.
Embora prevaleçam as organizações circunscritas aos territórios estatais em
detrimento das conformações para além das fronteiras, é interessante observar o
desenvolvimento paralelo nos distintos casos. Fundada em 1979, a CSUTCB realiza seu
segundo congresso em 1983, quando consolida o marco identitário indígena como
estruturante da organização. Em 1984 se constitui o EZLN na selva de Chiapas; em
1986 é fundada a CONAIE. Em 1990, a confederação equatoriana realiza seu primeiro
levante e ocorre a Marcha dos povos do oriente na Bolívia; 1992 foi um ano de
manifestações generalizadas contra os 500 anos da invasão européia; em 1994 o EZLN
se levanta em armas. No ano de 2000, novamente Equador e Bolívia caminham juntos,
com o levante que levou a CONAIE por alguns instantes a compor uma junta de
governo e a guerra da água que marcou a sucessão de mobilizações em solo boliviano.
Esses eventos não alteram a dinâmica prioritariamente nacional dos
movimentos, no entanto auxiliam uma análise menos focada em casos específicos e
voltada para as dinâmicas mais gerais da ação política dos povos originários, assim
como para sua dimensão conceitual. Nesse sentido, arriscaria aqui apontar dois eixos
principais de movimentos indígenas que, a despeito da heterogeneidade e das
particularidades locais, partilham de conceitos e processos comuns, além de
concentrarem dois focos de estudos sobre temáticas correlatas.
Na ampla região que inclui as serras e as terras baixas de Bolívia, Equador e
Peru, mais o norte do Chile e da Argentina, estaria o eixo andino-amazônico, com
epicentro nos dois primeiros países. Os dois povos de maior peso numérico são os
quéchuas e aimarás, que recuperam as tradições e cosmovisões relacionadas ao passado
incaico, sendo entretanto registrados, só no Peru, 72 povos diferentes.
Nessa região, se destaca a reivindicação do marco identitário de
“nacionalidade”, a partir do princípio da autodeterminação e a noção da necessidade de
descolonização ou refundação do Estado, baseado nos conceitos de plurinacionalidade e
77
interculturalidade. Daí se compreende a centralidade do debate sobre as Assembléias
Constituintes nos processos boliviano e equatoriano, numa argumentação que, longe de
simplesmente negar a ação política em âmbito estatal ou apontar a possibilidade da
secessão, parece exigir um novo contrato social, deslocando-se da matriz “locke-
hobbesiana” e se aproximando de um Rousseau.
O outro eixo seria o mesoamericano, abrangendo o sul do México e a América
central. Nesta área encontram-se os povos kuna, no Panamá, que batizaram o continente
de Abya Yala (Terra Madura), denominação comumente adotada pelos demais
movimentos; os miskitos, na Nicarágua, que tiveram uma relação extremamente tensa
com o governo sandinista; o povo maia na Guatemala, que sofreu o genocídio nas
décadas recentes e os povos concentrados nos estados ao sul do México – como
Chiapas, Guerrero, Oaxaca, Michoacán. Nesse país existem atualmente inúmeras
organizações, mas sem dúvida foi o Exército Zapatista de Libertação Nacional que
atingiu maior repercussão, projetando mundialmente a questão indígena na perspectiva
da resistência anticapitalista. A construção da autonomia é o tema fundamental dos
zapatistas que, recuperando tantos as tradições comunitárias como o legado do líder
revolucionário camponês, enfatizam a construção do poder desde baixo, contrapondo-se
ao poder estatal. Depois de passar por várias fases, com o trabalho de consolidação
interna nos últimos anos, os zapatistas lançaram-se em 2006 em uma campanha
nacional, na qual busca criar laços orgânicos com setores sociais mais amplos. (EZLN,
2005) Ainda em 2006, a rebelião de Oaxaca surpreendeu o mundo quando, a partir de
um conflito local entre o governador e o sindicato de professores, a capital e algumas
regiões do estado estiveram em poder de uma comuna por seis meses, organizados em
torno da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Sua composição conta com
mais de duzentas organizações, com considerável participação de grupos originários,
inclusive no sindicato de professores entre os quais estão os que participam de
programas de educação indígena.
Não pretendendo aqui estabelecer uma tipologia de todos os movimentos ou
povos indígenas do continente, portanto não aparecem nessa divisão alguns grupos
marcados por suas idiossincrasias e as particularidades históricas das regiões em que se
inserem. Nesse caso estariam exemplos como os mapuche que ocupam o sul do Chile e
da Argentina; os povos que residem em territórios venezuelano e colombiano, que
apesar de minoritários lograram ampliar sua visibilidade e importantes avanços em
termos constitucionais nas últimas décadas; a realidade brasileira, onde se concentra a
78
maior diversidade de povos indígena, com mais de 200 grupos reconhecidos, e se
intensificam conflitos, principalmente em torno da demarcação e reconhecimento de
terras.
O recorte estabelecido prioriza aqueles dois complexos etnoculturais que viram
os povos originários interpelarem vertical e horizontalmente as formações sociais que
ocupam esses territórios. Continuemos então essa jornada, buscando analisar as raízes
históricas desses movimentos.
79
PARTE 2 – “DESENVOLVIMENTO É UMA VIAGEM COM MAIS
NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES” OU
UMA APOLOGIA DOS BÁRBAROS
A língua me ensinastes; e meu ganho nisso
É saber maldizer;
Que a praga vermelha caia sobre vós
Por me fazeres aprender vossa linguagem!
Caliban46
I. Considerações iniciais
Nossa perspectiva agora se estende pela memória larga, buscando uma chave
interpretativa para a condição indígena contemporânea a partir dos nexos históricos
entre povos originários, capitalismo, modernidade e “América latina”.
Essa travessia pelo largo tempo histórico emerge como uma demanda do próprio
sujeito que estamos analisando, os movimentos indígenas contemporâneos, como se
registrou fartamente na parte inicial deste trabalho. No entanto, além do discurso que
fundamenta as lutas políticas atuais na memória histórica dos quinhentos anos de
resistência anticolonial, entendo que o tema requer uma pesquisa que supere a
interpretação conjuntural e busque na constituição e desenvolvimento dos países latino-
americanos os elementos que colocam a “questão indígena” entre os conflitos
irresolutos de nossas formações sociais.
Como ponto de partida, proponho uma periodização dos movimentos indígenas a
partir das independências políticas dos países americanos. Tendo em vista a dialética
dominação-resistência, os ciclos de rebelião se conectam direta ou indiretamente com
ciclos de expansão capitalista e suas formas específicas. A questão que emerge daí é o
caráter excludente e racista dos projetos liberais de nação, que têm na exploração e
subalternização sistemáticas da imensa maioria de originários, afro-descendentes,
46
“You taught me language; and my profit on‟t/ Is, I know to curse; the red plague rid you/ For learning
me your language!” (William Shakespeare A tempestade, ato I, cena dois)
80
mestiços e outros setores proletarizados, o fundamento de sua dominação classista local,
subordinada por sua vez aos centros capitalistas avançados. Assim, apoiando-me nas
reflexões sobre colonialidade e colonialismo interno, observo os processos de irrupção
política dos povos indígenas que precedem o período atual, do qual esboço uma
interpretação das formas contemporâneas de intervenção da acumulação capitalista.
Trata-se de um movimento do tempo longo para a conjuntura, com o objetivo de
analisar o significado e as peculiaridades do ciclo atual de rebelião indígena.
Esse esforço analítico implica em alguns questionamentos e alinhamentos
teóricos, explicitados no decorrer do trabalho, mas que podem ser adiantados aqui.
O primeiro refere-se à própria compreensão da estruturação do capitalismo na
América Latina, suas formas de dominação e sua dinâmica. Com efeito, tratando-se o
capitalismo de um sistema global, as características do continente são tomadas como
parte de uma totalidade, sem que criemos falsas dicotomias entre particularismos
fragmentários e estruturalismos descontextualizados de sentidos históricos e
geográficos.
Essa totalidade, cujas formas econômicas, políticas, sociais e culturais começam
a se constituir a pouco mais de quinhentos anos, se expressa pela modernidade
capitalista, que hoje nos fornece elementos para uma análise que dê conta de suas
distintas escalas e múltiplas determinações, superando as abordagens unilaterais, que
assumem os delineamentos globais basicamente a partir dos acontecimentos na Europa
Ocidental. Em uma palavra, trata-se de buscar compreender Abya Yala considerando
seu lugar no “sistema-mundo”, reconhecendo que esta é formada pela Europa tanto
quanto influencia o que vem a ser o “velho continente” e, especialmente, o modo-de-
produção que começa a amadurecer no momento próprio das “descobertas”.
Assumir uma perspectiva distinta, a partir da periferia do capitalismo,47
não
significa simplesmente trazer uma visão alternativa, exótica, de determinado processo,
mas buscar desvendar uma ordem de processos que, embora fundamentais na
constituição da referida totalidade, tende a ser “simplesmente anexada e contemplada a
partir do interior do sistema” (MIGNOLO, 2003, p. 9) A leitura que proponho
47
O termo “periférico” é usado mais em seu sentido histórico-sistêmico do que de orientação espacial,
(WALLERSTEIN, 2006, p. 33-34) estando ciente de que as fronteiras entre “centro” e “periferia” são
cada vez mais tênues e móveis. Casanova, em um balanço recente do conceito de “colonialismo
interno”, além de reafirmar sua atualidade, aponta as possibilidades de seu uso nos países capitalistas
do centro; ampliadas por fenômenos como as migrações e a nova onda de guerras imperialistas.
81
compreende a análise a condição dos povos originários como um vetor dessa
perspectiva.
“Por tanto, pensar en la subalternidad de los Pueblos Indígenas
conlleva la necesidad de deconstruir conjuntamente la totalidad de
las dimensiones implicadas en el proceso de su subalternización,
visualizando el fenómeno desde todas sus escalas, desde lo
micropolítico hasta la inserción axial de los pueblos indígenas en
el sistema-mundo capitalista desde el Siglo XVI”. (TURRIÓN;
LÓPEZ; GALVÁN, 2007, p. 14-15)
No caso que aqui se trata, a manifestação fundamental revelada pela perspectiva
subalterna é a dinâmica colonial do capitalismo, a colonialidade do poder que se
estabelece a partir da conquista ibérica e que se estende historicamente na configuração
das estruturas de poder das formações sociais latino-americanas. Esse campo de
reflexão em torno dos temas da colonialidade aparece nos últimos anos como uma
contribuição fundamental do pensamento social desde Nossa América e torna-se ainda
mais profícuo se lido num quadro teórico mais amplo, cuja genealogia passa pela Teoria
da Dependência e os debates das ciências sociais americanas na década de 1960.
Por outro lado, cabe esclarecer que esse olhar a modernidade desde a América
não implica fazer tabula rasa de toda tradição crítica acumulada, inclusive na Europa.
Pois se a pretensão universalista invariavelmente conduz a labirintos de espelhos sem
saída, o apego a particularismos exclusivistas gera apreciações narcísicas, que ignoram
o mundo ao redor. Trata-se portanto de assumir o lugar de onde se fala, reconhecendo as
peculiaridades aí contidas, sem negar que esse lugar tem sua contribuição no esforço
global de interpretação crítica do mundo contemporâneo, no que é imprescindível o
diálogo com instrumentais teóricos outros. Por isso o título desta seção se inspira em
parte no ensaio de Roberto Fernandez Retamar, cuja leitura durante a elaboração deste
trabalho teve impacto imediato, servindo de amálgama de uma série de reflexões em
torno ao desafio de pensar este continente que se convencionou chamar América.
(RETAMAR, 2006) Como expressa o Caliban apresentado pelo ensaísta cubano,
representando nossa condição periférica, contraditória, bárbara, não nos é lícito
renunciar à língua e instrumentos teóricos legados pelo colonizador na luta contra a
colonização.
82
Outro tema que permeia esses debates refere-se à crítica do projeto moderno de
Estado-nação, ao menos no que se refere às suas expressões no continente americano.
Mais do que problematizar um conceito, trata-se de confrontar a noção generalizada
desse binômio como uma forma quase natural de organização da sociedade moderna
com a manifestação concreta dos padrões de dominação e dos aparatos institucionais
historicamente constituídos, tendo em vista sua natureza conflituosa pela incapacidade
predominante de representar uma parte majoritária e heterogênea das populações do
continente. Afinal, uma das acusações mais comuns contra os movimentos indígenas é a
de que de uma forma ou outra eles possam representar uma ameaça a esse deus ex-
machina que o pensamento burguês e eurocêntrico insiste em afirmar universal e
soberano. Com isso, invertem o sentido da exploração colonial historicamente operada
contra as populações originárias, buscando torná-las vilãs da crise contemporânea do
“Estado-nação” e da “democracia”. Os velhos arautos da imposição modernidade, a
esconjurar qualquer manifestação de resistência como apego irracionalista ao atraso,
sem se dar conta (ou sem querer admitir) que talvez o problema não se situe na
permanência do “arcaico”, mas nessa leitura fetichista do progresso.
Há ainda a questão do sujeito de que estamos tratando. A formação histórica das
estruturas sócio-econômicas de nossa América colocou a “questão agrária” no centro de
seus problemas teórico-políticos. Daí a importância dos estudos rurais que chegaram a
compor um campo de considerável presença e produção autônoma, mas que nos últimos
anos passaram por uma revisão profunda, a ponto de se colocar em questão seus
próprios fundamentos. (BENGOA, 2003) Mudou o objeto de estudo ou a abordagem
teórica? Seguramente ambos, pois, se por um lado a inevitável revisão das ciências
sociais colocou a necessidade de ampliação das perspectivas de análise, introduzindo
abordagens como as de gênero e etnia, igual ou maior impacto tiveram as profundas
transformações da paisagem rural, a partir de processos de resistência camponesa,
migrações, reformas e contra-reformas agrárias, modernização capitalista
(estabelecimento de estruturas agro-industriais, liberalização mercantil) etc.
Ao longo do século XX, as mobilizações camponesas nem sempre deram conta
da dimensão étnica, tanto no que diz respeito ao discurso dos agentes que interagiam
nesses processos como em relação às interpretações posteriores. Assim se entende a
prevalência da tônica “campesina” em torno a processos como as revoluções mexicana e
boliviana ou as reformas agrárias peruana e guatemalteca. Só para mencionar alguns
exemplos, podemos encontrar sinais dessa leitura na coleção organizada por Pablo
83
González Casanova na década de 1980, Historia política de los campesinos
latinoamericanos, apresentada como uma denúncia aos freios da “consciência
camponesa” em contraponto ao paternalismo conservador do liberalismo autoritário; do
indigenismo agrarista, populista, reformista estatal ou de instituições interamericanas48
ou ainda da antropologia “indianista”. (CASANOVA, 1998, p. 10-11). Foi com essa
perspectiva que o catalão-boliviano Xavier Albó, que é atualmente um dos intérpretes
mais influentes dos movimentos indígenas nos países andinos, participou no início dos
anos 1970 da fundação do Centro de Investigação e Promoção do Campesinato
(CIPCA), onde atua até hoje. Da mesma forma, como exemplo prático, nota-se a
influência do discurso étnico em boa parte das organizações camponesas, desde
movimentos na perspectiva classista, até a articulação internacional Via Campesina.
Hugo Blanco faz uma revisão crítica desse enfoque que, a título de fiar-se por
uma consciência classista superior, demonstrou-se restrito diante de outras
determinações fundamentais nas lutas sociais.
“Así como en Guatemala la rebelión se expresó fuertemente en el pasado
reciente, aunque no con el nombre explícito de indígena a través de la
lucha guerrillera, en el Perú también tuvo una fuerte expresión en la
rebelión social de los años 60, aunque no con el nombre explícito de
indígena. La poca inteligencia y miopía de nosotros los participantes en
su dirección, nuestra „occidentalización‟ mental, nos impidió ver algo
que saltaba a la vista: El carácter indígena de la rebelión. Claramente era
la rebelión de la cultura agrícola del „ayllu‟ (comunidad campesina)
contra la hacienda traída por los españoles y mantenida por la República.
Por si no bastara con esto, fue una rebelión que hablaba quechua. Se
extendió por amplias zonas y democratizó la posesión de la tierra.”
(BLANCO, 2004).
Bengoa afirma que os próprios indígenas tendiam a ver-se como camponeses,
deixando suas etnicidades penduradas na porta dentro de casa e saindo à vida pública
como camponeses. (BENGOA, 2003, p. 48) Mesmo não empregando a metáfora a mais
48
O Instituto Indigenista Interamericano foi fundado em 1940 no México e editou, até o final da década
de 1990, o periódico América Indígena.
84
adequada,49
chama atenção para o fato de que ainda que não se expressassem como tal,
os povos originários não deixaram de ser sujeitos históricos; tanto porque a
“campesinização” não pode ser considerada conseqüência exclusiva da ação perversa de
governos populistas e partidos de esquerda, como porque, além de históricas, as
identidades são múltiplas e dinâmicas, de maneira que os sujeitos podem se situar ao
mesmo tempo em distintos marcos identitários, dando prioridade àquele ou àqueles que
se adéqüem ou que se atribuam maior importância em determinado contexto. Nesse
sentido, “índio”, “originário” e “camponês” são termos igualmente inventados, na
medida em que são constituídas historicamente, sem que isso signifique que sejam
falsas condições.
Segundo Bengoa, os camponeses “deixaram inteligentemente” essa condição
para trás, tornando-se indígenas. E explica a força desta identidade por sua capacidade
de apelar à “má consciência” dos conquistadores, cujos representantes contemporâneos
vêem-se em situação incômoda ao interpelar o índio que vive reconhecidamente em
miséria secular.
Por outro lado já foi indicado que a tendência a um enquadramento étnico
exacerbado, em nome de destacar a condição indígena e, algumas vezes, do combate ao
eurocentrismo, menospreza outras dimensões da dominação, como a de classe, e reforça
os esquemas fragmentários exaltados pelo discurso pós-moderno. O antropólogo
mexicano Héctor Díaz-Polanco identifica o “etnicismo” como uma das concepções mais
difundidas entre os movimentos indígenas, constituindo junto ao liberalismo
universalista – seu suposto antagonista –, a principal ameaça à autonomia.50 Seus
principais argumentos são: a superioridade da civilização indígena, avaliada em
termos idealistas, em detrimento do “mundo ocidental”; a identificação das “culturas
nacionais” com o “ocidente” e seu consequente rechaço; a defesa de uma essência
étnica imutável e a-histórica; dos anteriores decorre que o problema fundamental se
torna a contradição entre “civilização índia” e “ocidente”; conduzindo à defesa de uma
solução externa ao âmbito nacional, desarticulado de outros setores sociais. (DÍAZ-
POLANCO, 2004, p. 163-165) Em contrapartida, é importante preservar um
49
Pois os cruzamentos culturais e os constructos identitários são algo muito mais complexos do que o
poncho, a sandália ou o sombrero que se escolhem em determinadas ocasiões. 50
Stuart Hall ajuda a compreender o sentido desse recurso ideológico, recorrendo ao conceito de
"essencialismo estratégico”. O intelectual jamaicano-britânico considera uma necessidade pontual de
auto-afirmação, advertindo para o seu caráter acessório e a necessidade de uma política cultural capaz
de, sem deixar de afirmar a diferença, projetar-se para além do essencialismo. “O momento
essencializante é fraco porque naturaliza e deshistoriciza a diferença, confunde o que é histórico com
o que é natural, biológico e genético”. (HALL, 2006, p. 326)
85
distanciamento crítico que não torne absoluto o respeito aos discursos subjetivos e tenha
em conta outras determinações não necessariamente explicitadas pelos seus emissores.
A abordagem que assumo reconhece certa ambigüidade própria de nossa
constituição histórica, buscando trabalhar esse tema para além de uma falsas
dicotomias. Primeiro porque, como já foi dito, as identidades não são necessariamente
excludentes e, ainda que possam se expressar de maneira conflituosa, sua interação é
mais complexa do que uma abordagem unidimensional nos faria supor. Segundo,
porque, além de esta pesquisa ter como tema fundamental a emergência política dos
povos originários, esta é a linguagem com que atualmente se expressam os setores
subalternos, não apenas presentes no que se refere a demandas étnicas, mas também
num amplo repertório de lutas sociais relacionadas à defesa do território, soberania
nacional, recursos naturais, direitos consuetudinários, costumes ancestrais.
Nesse sentido, Darcy Ribeiro chamou atenção prematuramente para um
campesinato etnicamente diferenciado e para o potencial mobilizador do marco
identitário étnico-nacional, alertando para o reducionismo conceitual e político que
orientava a noção de “camponês”. “Acreditava-se que com uma boa reforma agrária,
alguma assistência educacional e também com a ajuda das práticas insidiosas do
indigenismo eles deixariam da mania de serem índios para se fazerem bons cidadãos
peruanos, bolivianos, guatemaltecos e mexicanos”. (RIBEIRO, 1986, p. 130) O
antropólogo brasileiro insiste não se tratarem de casos de meros campesinatos atípicos.
Por isso refere-se a esses povos oprimidos com o neologismo “indigenatos”, de maneira
a marcar sua complexidade e antevê que essa condição levaria a reivindicações nos
marcos da reorganização da vida nacional, como a autonomia.
Da mesma forma, a cientista social aimara-boliviana Silvia Rivera51
publicou em
1984, num contexto de emergência do katarismo, uma história das lutas do
“campesinato aymara e quéchua”. (CUSICANQUI, 2003) A autora chama atenção para
a instrumentalização do termo camponês pelo discurso oficial pós-1952, que “suele
enmascarar los contenidos que desarrollaron en su lucha las poblaciones rurales
predominantemente indias (quechwa, aymara, guaraní, etc.) durante el período
republicano.” (ibidem, p. 63)
Ademais, o universo indígena já não se reduz ao “mundo rural”, com todas as
suas transformações. Primeiro porque, na dinâmica contemporânea do capitalismo,
51
Sua obra é elaborada no âmbito do Taller de Historia Oral Andina (THOA), uma importante
experiência impulsionada por intelectuais aimaras da Bolívia. (Ver MIGNOLO, 2002)
86
embaralham-se as fronteiras entre urbano e rural, integrados pelos recursos de
comunicação, pela padronização da produção ampliada de mercadorias e a necessidade
de sua circulação descontrolada e pelos movimentos migratórios. Segundo porque a
acelerada e contraditória urbanização, que se manifesta como uma importante expressão
dos processos desenvolvimentistas que caracterizaram o século XX, afetou
definitivamente a geografia dos povos indígenas. Emerge daí uma complexa realidade,
que inclui o mencionado caso de Lima, o exemplo emblemático da cidade aimara de El
Alto e as capitais andinas (La Paz e Quito); os países em que a população indígena
urbana é majoritária (Bolívia, Brasil, Chile, Peru); as colônias de migrantes no exterior
etc. (BENGOA, 2000; p. 50-61; CEPAL, 2007; p. 167-169) Evidentemente, o impacto
dessas transformações não é unilateral: os índios “integrados” ao ambiente urbano
reagem de formas distintas,52 ao mesmo tempo em que transformam a paisagem de
bairros e cidades inteiras.
Finalmente, vale reiterar que essa análise no tempo longo se fundamenta na
dialética entre reforma, revolução, contra-reforma e reação (SALAZAR; LORENZO,
2008, p. 29) que atravessa a nossa trajetória. Um olhar para as formações sociais do
continente que analisa a estruturação da dominação partindo sempre da “visão dos
vencidos”, sistematicamente silenciada ou domesticada pelo discurso hegemônico.
Assim, recusa-se tratar as ações dos “de baixo” como fenômenos episódicos, reações
“espontâneas” e muitas vezes desesperadas em função dos projetos dominantes ou
subordinadas à intervenção exclusiva de agentes externos. Os projetos subalternos, que
recorrentemente emergem dessa dinâmica de conflitos, se acumulam nos interstícios da
exploração cotidiana, que nunca é absoluta, dando margem à preservação-reinvenção de
tempos e espaços não adequados completamente à lógica do capital. Assim, tempos e
espaços são permanentemente reconstruídos entre a submissão e a resistência,
possibilitando o cultivo de culturas políticas contra-hegemônicas (e políticas culturais)
que vêm a compor o mais diversificado arsenal de uma práxis que se contrapões à razão
dominante. O potencial emancipatório desses tempos-espaços subalternos será
investigado na parte 3.
52
Que pode variar da negação da identidade originária na busca de “assimilação” e ascensão social à
reafirmação, reconstrução e – necessariamente – reinvenção dos laços comunitários.
87
II. O processo histórico da colonialidade e os ciclos de resistência indígena-plebéia
Nos duzentos anos de independência política latino-americana, é possível indicar
uma periodização, em que se destacam três grandes ciclos de movimentações e
rebeliões dos povos indígenas, tendo o primeiro ocorrido nos pródromos das lutas pela
independência; o segundo, na virada do século XX. O atual ciclo de lutas, que é o objeto
principal desta pesquisa, completa essa proposta de periodização. Como características
comuns desses ciclos, destacam-se três tendências principais que nos possibilitam um
olhar de conjunto e à parte de outros momentos de conflitividade (ou da
homogeneização que implicaria falar em algo como um “estado permanente de
rebeldia”), a saber: a emergência política autônoma das massas indígenas; o alcance
dessa ação política, que se projeta no âmbito do debate nacional, superando motivações
inicialmente locais; a articulação desses movimentos como respostas aos processos de
esgotamento de um modelo de dominação ou de alterações no padrão de acumulação de
capital, assim como de reação a esforços de modernização capitalista.
Com esse último aspecto não se quer restringir a ação camponesa-indígena à sua
dimensão reativa, implicando entretanto no aprofundamento das reflexões críticas sobre
esses fenômenos, diante da utilização ideológica e fetichizada das noções de
modernização e progresso formuladas pelo discurso hegemônico. Fazendo um balanço
dos estudos sobre consciência e rebeliões camponesas, o historiador estadunidense
Steve Stern indica entre os principais pressupostos e afirmações que moldaram a
imagem geralmente estabelecida nesse campo de investigações, o acordo com a noção
de que o avanço do capitalismo sobre territórios rurais teve um impacto eminentemente
destrutivo na vida camponesa. Mesmo os que interpretam positivamente a
modernização, tendem a reconhecer o preço alto que ela cobra: ataque aos valores e
relações tradicionais; precarização das instituições locais que proporcionavam certo
nível de segurança econômica e redistribuição de bens; obsolescência de estratégias
políticas de longa data eficazes no enfrentamento com senhores e Estado. (STERN,
1990, p. 27)
Assim, a compreensão da condição indígena contemporânea se plasma no
cenário mais amplo de desenvolvimento capitalista, cuja interpretação se torna
88
elucidativa para uma perspectiva que assume o componente indígena como constitutivo
das formações sociais de Abya Yala contemporânea.53
II.1) As rebeliões anticoloniais e a formação dos Estados “nacionais”
O duplo caráter do processo que culminou com a independência política
americana já foi considerado por diversos autores.54
Antes que a luta contra a metrópole
fosse capitaneada por setores insatisfeitos das elites locais, os grupos subalternos da
sociedade colonial impulsionaram diversas rebeliões que expressavam as contradições
que se acumulavam em seu interior.55
Consolidaram-se nesse contexto de lutas
anticoloniais duas correntes: uma de corte popular, na qual podemos incluir desde as
rebeliões indígenas, a revolução haitiana, as “republiquetas” andinas e as tropas
montoneras no Prata até setores radicalizados da elite criolla que se expressam nas
proclamações e decretos de Hidalgo e Morelos, Artigas, Moreno, Belgrano e Miranda; a
outra identificada com o ideal de modernização liberal burguesa, integrada ao comércio
internacional, esforçada em manter o compromisso com a aristocracia mantuana. Essa
divisão no processo de independência pode ser vista como um preâmbulo das formas
que assumiriam os conflitos classistas que marcariam século XIX. Celso Furtado chama
atenção para a prevalência da corrente europeísta no século XIX e ressurgência dos
projetos populares no séc. XX.56
(FURTADO, 1972, p. 19-25)
Porém, a composição dos projetos independentistas foi desde o início mais
complexa do que sugere tal divisão. Flores Galindo assinala como, a despeito da
tendência homogeneizante da administração colonial, desde a etapa inicial do domínio
53
Em seu interessante trabalho sobre a experiência equatoriana, Pablo Peralta e Fernando Cazar
articulam uma interessante visão entre a curta e a longa duração, enfatizando as transformações na
estrutura agrária. (CAZAR e PERALTA, 2003, 11-29) 54
Ver as referências dos trabalhos de Furtado, Cueva, Zavaleta, Retamar, Roitmann; Vilaboy; Prado Jr. 55
No Brasil, as tendências populares foram prematuramente sufocadas com a “interiorização da
metrópole” (DIAS, 1982). Ainda assim, em torno de movimentos como Conjuração dos Alfaiates
(Bahia, 1798), Revolução de Independência (Recife, 1817), Confederação do Equador (Pernambuco,
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, 1824) e Revolução Praieira (Recife, 1848) circularam
personagens como Cipriano Barata, Abreu e Lima, Frei Caneca, Domingos José Martins e Antônio
Gonçalves da Cruz “Cabugá”, que expressavam uma corrente liberal com tonalidades radicais:
republicana, constitucionalista, antilusitana e conectada com outros revolucionários americanos.
Martins chegou a se aproximar de Francisco de Miranda e Cabugá apresentou-se como diplomata do
movimento de 1817, buscando sem sucesso o apoio de Monroe. 56
O economista paraibano considerava Simon Bolívar uma expressão autêntica dessa corrente
europeizante. A meu ver, o pensamento do Libertador contém os elementos contraditórios de um
indivíduo que, sem romper completamente com as concepções de sua classe, se abre em alguns
momentos às demandas de setores populares.
89
europeu se engendrou no Peru um país de “todos os sangues”. Por um lado, ao reduzir
toda a população originária à condição de índios ou colonizados, o colonialismo deu
margem à emergência de novos fatores de coesão. Por outro, a administração espanhola
manipulava novos e velhos conflitos e, apesar da rígida distinção jurídica entre índios e
espanhóis, as relações entre dominados e dominadores produziram aquele sujeito
relegado aos interstícios de tal sociedade que é o mestiço. “A ellos habría que añadir
esos españoles nacidos en América que recibirían el nombre de criollos; sin olvidar los
múltiples grupos étnicos de la selva, las migraciones compulsivas procedentes de África
y después del Oriente, para de esta manera tener a los principales componentes de una
sociedad sumamente heterogénea.” (GALINDO, 2005, p. 20)
Assim, além do corte horizontal representado pelo projeto autonômico
embandeirado por grupos de criollos insatisfeitos com o papel periférico a que estavam
relegados na estrutura política colonial, os descendentes das civilizações pré-conquista e
demais povos colonizados estabeleceram um corte vertical cuja radicalidade se
confrontava inclusive com o humanismo de dirigentes influenciados pelas luzes
européias. Enquanto a dissidência dos filhos de europeus na América e seus
contendedores metropolitanos partilhavam de um caldo cultural comum, a idéia de um
triunfo dos “jacobinos negros” (JAMES, 2000) ou o fantasma da ação autônoma dos
povos indígenas eram percebidas como ameaça pelos fiéis à Coroa tanto quanto por
muitos independentistas. Segundo Marcos Roitmann,
“La independencia en América Latina significó una lucha política por el
poder. Pero no sólo entre peninsulares y criollos. A estas luchas debemos
unir las correspondientes por el tipo de Estado y las formas de gobierno
que se sucederán tras la crisis colonial. La historia hegemónica ha
querido soslayar las demandas democráticas cuyas banderas
reivindicativas no sólo fueron el derecho de autodeterminación y la
formación de gobiernos independientes. En la lucha anticolonial se
plantearon igualmente reivindicaciones nacionales por reformar la
tenencia de tierra y un reconocimiento de derechos para los pueblos
indígenas y las nacientes clases sociales populares.” (ROSENMANN,
2008, p. 161)
90
Tal contradição pode ser verificada na política bolivariana em relação aos povos
originários. Bolívar já antecipara a perspectiva do tratamento liberal que as novas
repúblicas deveriam dispensar aos indígenas. Flores Galindo lembra que, apesar da
concessão ritual à grandeza do passado incaico, a passagem por Cuzco não demoveu o
libertador de sua “política borbônica” em relação à aristocracia indígena. (GALINDO,
2005: 228-229) O Libertador se orientou pelo arquétipo do bom selvagem, até os
primeiros contatos com índios contemporâneos nos Andes centrais. Sem compreender a
resistência que lhe opunham os povos da região, sem habilidade política para atraí-los
ao campo independentista, introduziu um programa liberal57
que apenas aprofundava as
diretrizes metropolitanas precedentes e consolidou uma postura de rancor e ódio, que
chegou a implicar a crítica à mestiçagem, o recurso à aniquilação militar e o esforço de
negação simbólica. Nesse aspecto, Simón Bolívar antecipa o medo e a ojeriza em
relação às massas indígenas e populares que dominaram a consciência criolla durante
todo o século XIX.58
(FAVRE, 1986)
Atentos a essas clivagens, podemos dimensionar o impacto dos movimentos
populares pela independência nos Andes e na Mesoamérica.
II.2) A força dos da plebe andina (origens dos “métodos plebeus” no Tawantisuyu)
A rebelião de Tupac Amaru e Tupac Katari irradiou-se pela serra sul-peruana e
boliviana como uma verdadeira “guerra civil” entre 1780 e 1782.59
(STERN, op. cit., p.
45) Entre seus líderes estavam caciques que viam a crescente depreciação de sua
posição social intermediária entre o colonizador e as comunidades desde as reformas
bourbônicas.60
José Gabriel Condorcanqui era um filho de cacique que buscara o
reconhecimento oficial tanto de uma linhagem incaica descendente do último inca,
como de um título nobiliárquico. Mas percebe que tanto essas possibilidades de
57
Os três pontos fundamentais dos decretos indigenistas editados em 1825 em Cuzco são a abolição do
título e cargo de cacique, a supressão da instituição da comunidade e a supressão dos serviços
pessoais, instaurando a liberdade de trabalho. 58
Em resposta às rebeliões dos pastusos entre 1822 e 1824, ordena o seu aniquilamento e a ocupação do
território por uma colônia militar. Na Bolívia, sua atitude se volta para o silenciamento diante da
massa indígena, que inclui a inexistência de menções a Tupac Amaru. (FAVRE, op. cit., p. 15-16) 59
Essa interpretação unitária dos movimentos de Amaru e Katari os insere em uma era mais ampla de
insurreições nos Andes, iniciadas em 1842 com Atahualpa. 60
As reformas borbonicas foram um movimento de centralização metropolitana, caracterizado como um
esforço de reconquista da América que incluía o ataque a privilégios da Igreja, a reforma
administrativa, a reorganização militar, a onda migratória de burocratas e comerciantes tinham por
objetivo principal ...“aproveitar ao máximo os benefícios da dominação colonial.” (CARDOSO e
BRIGNOLI, op. cit., p. 136)
91
reconhecimento social estavam bloqueadas, como interessava à metrópole o aumento da
extração de riquezas que significava o descumprimento de antigos acordos com as
autoridades comunitárias e o aumento da pressão tributária sobre os índios.
Condorcanqui segue então pela via da sublevação e, adotando o nome do último inca,
Tupac Amaru II convoca a todos os indígenas do altiplano, proclama intenção de
extinguir os obrajes textiles (imposto em trabalho), executar os chapetones e
corregedores. “Por medio de su mensaje incitaba a levantarse contra la opresión que
sufrían los indios sobre los que recaían gran parte de la imposición contributiva,
retumbando sus palabras en medio de una mala situación económica que posibilitó la
rápida extensión del movimiento”... (GÓMEZ, 1992, p. 210) Suas primeiras ações se
desenvolvem no início de novembro de 1780 e têm rápida propagação pelo interior
vice-reinato peruano, trasladando-se à audiência de Charcas, com auxílio das redes
familiares e comerciais a que Amaru tinha acesso. Em meados de novembro, o cacique
proclamava a liberdade de todos os escravos negros e mulatos, reunia um exército de
alguns milhares de combatentes e logo teria o caminho livre para Cuzco. No entanto,
postergou a ação e só se dirigiu à capital do Tawantisuyu no fim do ano, estabelecendo
um cerco, ao invés do ataque frontal que lhe aconselhavam vários colaboradores,
inclusive sua esposa Micalea Bastidas que tivera participação ativa desde o início do
movimento. A perda do elemento surpresa possibilitou que a reação armasse a defesa de
Cuzco, para a qual contou com a lealdade das comunidades mais próximas. Derrotado e
feito prisioneiro cinco meses após o levante, Amaru II foi executado com Micaela,
decapitado, esquartejado e seus miembros espalhados pela serra peruana: a cabeça
enviada a Tinta, o corpo feito cinzas no cerro de Picchu, os braços mandados para
Tungasuca e Carabaya e as pernas para Libitaca e Santa Rosa. (ibidem, p. 216)
Nesse ínterim, um cacique aimara iletrado originário de Ayo Ayo emergiu na
Audiência de Charcas de uma seqüência vertiginosa de eventos desencadeados em
escala regional e no âmbito mais local, dando coesão à insatisfação que fermentava nas
massas indígenas. Reconhecendo a importância de predecessores imediatos e
possivelmente para construir legitimidade, Julián Apasa Sica adotou o apodo de Tupac
Catari. Ao nome do último inca que era evocado por aqueles dias na serra peruana,
juntava uma referência aos irmãos Catari, família de caciques que, envolvida em uma
série de conflitos com corregedor local, desencadeou uma onda de distúrbios em
represália ao assassinato do cacique de Chayanta Tomás Catari
92
“De esta manera, habiendo conseguido poner en pie de guerra a más de
cuarenta mil indígenas, en marzo de 1781 Tupac Catari pasó a dominar
rápidamente las provincias de Sica Sica, Carangas, Pacajes, Yungas,
Omasuyus y Chucuito, sitiando después con todos los hombres que se le
unían la ciudad de La Paz, destruyendo y aniquilando todo cuanto se le
cruzaba en su camino, saqueando las propiedades que se encontraban a
su paso demostrando en su empeño extraordinaria saña y ferocidad bien
puesta de manifiesto en el asesinato de cualquier enemigo que caía en sus
manos.” (ibidem, p. 227)
Apesar do ímpeto sem as hesitações que teve Tupac Amaru em relação a Cuzco,
Katari encontrou uma defesa obstinada em La Paz. O sítio sem tréguas se manteve por
mais de três meses, até que uma expedição realista consegue levantar o bloqueio. Em
agosto empreende o novo assalto, reforçado com tropa de Andrés Memdigure, sobrinho
de Tupac Amaru. Mas a estratégia foi malograda forçou retirada e captura de Bartolina
Sisa, esposa de Katari. Em seguida, não obstante algumas vitórias pontuais, o próprio
Katari foi capturado em novembro e condenado ao esquartejamento. Um ano depois,
Bartolina, que teve um papel importante no desenvolvimento de operações bélicas
durante o cerco, foi enforcada junto com Gregoria Apasa, imã de Julia Tupac Katari.
A guerra civil liderada inicialmente por Condorcanqui-Amaru e em seguida por
Apasa-Katari, respectivamente, com a bandeira da reconstituição da civilização pré-
colonial, fundou uma utopia enraizada no imaginário popular andino, potencializando a
ação das massas indígenas no sentido de uma construção nacional distinta à que se
concretizaria a partir de 1821. O sociólogo boliviano Zavaleta Mercado, cuja obra foi
em grande medida dedicada a refletir sobre as matrizes nacional-populares de seu país,
considera que
“el intento más profundo y orgánico de restablecer la lógica vieja del
espacio andino y de recomponer esta sociedad en los nuevos términos,
ahora bajo un núcleo democrático de interpelación, fue Amaru. Su
fracaso es también el fracaso del programa democrático de constitución
de la nación peruana”. (MERCADO, 1986, p. 84)
93
Seu gênio político está na capacidade de propor um programa “eclético”, para toda a
sociedade.61
Deriva de sua própria posição na sociedade colonial, entre índios e
crioulos, por sua extração de origem aristocrática indígena. Um programa bolivariano às
avessas, no sentido que seu núcleo de interpelação partia dos indígenas. “De lo que se
trataba entonces era de una interpelación incaica a toda la sociedad o sea una
convocatoria a la unificación dentro de ciertos patrones de legitimidad y no fuera de
ellos.” (ibidem, p. 86)
Sujeito a distintas determinantes, inclusive de dinâmicas regionais, o movimento
se bifurca em duas tendências principais: uma linha camponesa ecumênica, com um
programa incaico para todo o Peru, expressa por Condorcanqui, Tomás Katari, irmãos
Rodríguez (espanhóis líderes da rebelião em Oruro); a outra ala, a milenarista,
militarista e etnocêntrica, sintetizada “de un modo directo y un tanto feroz” por Tupac
Katari.62
Há ainda setor indígena integrado à sociedade colonial partidário da reação
contra Amaru, que seria estratégico na defesa de Cuzco.
As contradições programáticas do movimento fundam duas tendências que
representam o que poderia ter sido uma via revolucionária na fundação dos Estados
latino-americanos, mas também duas atitudes que se enraizaram na cultura política da
plebe andina. O contexto da rebelião na audiência de Charcas (Bolívia) atingiu uma
extensão global por situar-se na zona de influência potosina, fundando aí um
temperamento que Zavaleta chama da “plebe em ação”, que repercute ao largo da
história boliviana. A radicalidade desse fenômeno a teria educado em um sentido de
democracia multitudinária. Tal força pode ser verificada na recorrência do cerco a La
Paz pelas massas indígenas com Katari, Willka (ver infra) e na rebelião polarizada por
El Alto em 2003. “El modo agitado del ser de estas masas sitiará al estado que no podrá
ser en su rotina sino eso, un estado de sitio”. (ibidem, p.88)
Katari instaura uma ideologia de insubordinação, Amaru convoca o bloco
nacional-popular e propõe um programa de reforma para toda a sociedade. Duas
61
Conteúdo programa: 1) Nomeação de índios em posições de responsabilidade administrativa; 2)
Direito de ir à Espanha sem permissão prévia; 3) Acesso às dignidades eclesiásticas; 4) Educação para
índios; 5) Abolição da mita em Potosí; 6) Abolição do “reparto de efeitos” (imposto em espécie). 62
Que não se interprete esta distinção como uma atribuição valorativa e menos ainda uma tomada por
tal ou qual partido. Uma aproximação que se poderia ensaiar seria com o processo haitiano que,
inicialmente liderado por um Toussaint L‟Ouverture mais aberto a um entendimento com a França
revolucionária, só obteve a independência com o acionar intransigente de um Dessalines. Stern
corrobora as analogias com o Haiti assinalando que, assim como a vitoriosa revolução escrava se
projeta secularmente na interpretação das sociedades escravistas, a “Guerra Civil” andina lança uma
imensa sombra sobre a história de Peru e Bolívia sendo imprescindível a qualquer consideração
profunda sobre o curso da história andina nativa. (STERN, 45)
94
dimensões conflituosas, mas de certo modo complementares, de um projeto cujo sujeito
de interpelação era o índio, convocando a uma nacionalização que deixava de lado o
apelo à homogeneização nos moldes europeus, ao se articular em torno ao “Peru
profundo”, de todos os sangues. Ambos escrevem um capítulo da utopia andina, que se
apresenta como uma tentativa de “Buscar una alternativa en el encuentro entre la
memoria y lo imaginario: la vuelta de la sociedad incaica y el regreso del inca.”
(GALINDO, 2005, p. 21)
Daí decorre a força que enraíza essas alternativas no imaginário popular, mas
também a contundência da reação colonial espanhola e crioula,63
que começa com a
desquechuização forçada e a fundação da hispanofilia ideológica que fizeram do Peru
bastião da lealdade à Espanha cerca de três décadas após a rebelião. O projeto de Amaru
não seria aceitável nem com o advento de um Bolívar, o qual encarnava uma dimensão
do projeto crioulo ilustrado. A guerra de independência assume ali sentido distinto das
demais regiões, cristalizando a cisão entre Charcas e Lima que se tornou inevitável com
a derrota da grande rebelião de 1781. Desde então, a idéia de “Gran Peru” se dissolve,
não passando de uma proposição intersenhorial.64
A insurreição abarcara todo o circuito
comercial entre Lima, Potosí e Buenos Aires, “o sea que la fuente potosino-amarista fue
la última posibilidad de consolidación del espacio clásico de la zona.” (MERCADO, op.
cit., p. 94-95) A sociedade peruana precisou se construir em contraponto ao que Amaru
representava, incorporando à sua cultura aquela fobia ao índio que já fora manifestada
por Bolívar. “Es la historia de toda clase dominante que no ha sido desbaratada pero sí
amenazada.” (ibidem, p.90)
II.3) A matriz do nacional-popular no México
No México, o programa de uma construção nacional desde baixo se expressou
com os exércitos liderados por Miguel Hidalgo e José Maria Morelos. Ambos eram
párocos diretamente envolvidos em atividades de organização das populações locais,
travando portanto contato direto com as comunidades indígenas.
63
Duas forças que estabelecem o que Zavaleta chamou o “largo empate entre el caudillismo y la plebe
en acción”. (MERCADO, op. cit., p. 93) Possivelmente com essa referência em mente, Álvaro Garcia
Linera tenha passado a usar a expressão gramsciana “empate catastrófico” para explicar o impasse
entre governo Evo Morales e oligarquias. 64
Como nos casos da Confederação Peru-Boliviana (1836-1839) e da aliança entre esses mesmos países
na segunda metade do século XIX. Ambas as iniciativas foram derrotadas pela ação chilena, mas
também por facções oligárquicas internas rivais.
95
O movimento das juntas espanholas contra a ocupação napoleônica mobilizou as
elites coloniais em função de uma possível ampliação da margem de incidência política
e instigou o projeto autonomista. No entanto, suas contradições e a negativa de
concessões aos representantes das colônias, acrescidas do quadro de insatisfação social
aguçada pelo ciclo de secas e fome entre 1808 e 1811, formaram o pano de fundo para
as conspirações.
Hidalgo era um crioulo ilustrado que se tornara líder das conspirações em
Guanajuato, pólo de efervescência revolucionária, desencadeando o movimento em
setembro de 1810 com o Grito de Dolores, proferido desde a igreja local. Esse
chamamento inicial, precipitado pela descoberta das conspirações, não declarava ainda
o rompimento com a coroa espanhola, mas indicava desde o início uma preocupação
no sentido de ampliar sua base social. Com uma convocatória abrangente, contava-se
com a adesão de índios e mestiços na luta contra a exploração dos gachupines
(fidalgos espanhóis) e os pesados tributos, declarando a Virgem de Guadalupe como
guardiã e protetora. O programa foi se ampliando no desenrolar dos combates,
incorporando novas demandas e em dezembro do mesmo ano publicava um decreto
que adotava entre as medidas mais urgentes a abolição imediata da escravidão, sob
pena de morte em caso de recusa e o fim de todos os tributos exigidos aos indígenas.
“La promesa formulada desde el principio por Hidalgo de devolver las
tierras de comunidad a sus legítimos dueños y la desesperación
producida por la vertiginosa subida de los precios del maíz, le atrajo el
ferviente apoyo de los peones e indígenas, convertidos en la fuerza
motriz de la primera Revolución Mexicana.” (VILABOY, 2006, Cap.
4)
A revolta se alastrou rapidamente pela intendência de Guanajuato, de maneira
que no início de outubro formara uma “heterogênea força” de 60 mil combatentes,
que começava a acumular importantes vitórias locais. No final do mês, quando
Hidalgo acampou nos arredores de Cidade do México, já comandava 80 mil indígenas,
mestiços e crioulos. No entanto, a vitória sobre exército realista nessa batalha, por
superioridade numérica, foi o início de sua derrocada. Apesar dos esforços de
reorganização sustentados pelos rebeldes em função dos novos combates, Hidalgo foi
96
capturado em fins de março de 1811 e fuzilado quatro meses depois. (ANNA, 2001,
p. 86-88)
Não obstante a liderança crioula, alguns setores que haviam se articulado por
autonomia condenaram a rebelião; o cabildo do México se alinhou ao governo vice-
real. A Igreja atuou com interditos, condenações inquisitoriais e propaganda e o vice-
rei reorganizou exército e buscou consolidar a base de apoio criolla com a abolição do
tributo. Segundo Guerra Vilaboy, o caráter de uma autêntica rebelião camponesa
determinou a aliança entre o grosso da aristocracia mexicana, a burocracia peninsular,
o alto clero e os proprietários espanhóis. “A partir de entonces, el principal sostén del
régimen colonial en Nueva España residió en las propias clases privilegiadas criollas,
que suministraron sus mejores cuadros a la oficialidad realista. ” (VILABOY, op. cit.)
A noção da população européia e crioula de que tratava-se do “equivalente mexicano
da rebelião de Tupac Amaru” fizera o pertencimento de classe prevalecer sobre o
inconformismo com a rigidez colonial e as diferenças entre americanos e peninsulares
ficaria sublimada pelo sentimento comum de pavor em relação às classes subalternas.
(ANNA, op. cit. , p. 86)
Mas o próprio dominador reconhece que o rompimento da frágil estabilidade
da dominação libera forças difíceis de serem contidas. Félix María Calleja,
comandante do exército realista, recorreu a uma metáfora tradicional para definir a
situação após a execução de Miguel Hidalgo:65 "A insurreição está longe de ter-se
acalmado; ela volta como a hidra, em proporção ao número de vezes que sua cabeça é
cortada." (ANNA, op. cit. , p. 88)
Após um período de disputas e polêmicas quanto à condução do movimento,
José María Morelos consolidou sua posição como o comandante principal no início de
1812, representando a linha que lutava pela independência sem excluir os setores
subalternos. Mestiço de uma família humilde de Michoacán, conseguiu acessar a
universidade, foi ordenado padre e atuou nas paróquias indígenas da região. Participou
desde o início da rebelião e foi designado por Hidalgo, de quem fora aluno, para levá-
la ao litoral sul, criando "um pequeno exército eficiente e obediente", compacto e
65
Os historiadores britânicos Linebaugh e Rediker (2008), analisando a cultura rebelde no Atlântico
setecentista, observam a presença recorrente da alegoria da Hidra, por parte dos agentes da repressão,
para ilustrar a dificuldade em conter os sucessivos levantes.
97
melhor preparado, ainda que de base igualmente heterogênea, que até 1815
“constituiu a principal ameaça ao poder espanhol”.66 (ANNA, op. cit. , p. 89)
Redefinida a composição das forças postas em movimento em 1810, coube ao
bloco nacional-popular ampliar sua pauta e atender às demandas dos setores que
compunha a sua base. Assim como seu antecessor e como costuma ocorrer nesse tipo
de processo, o programa do padre michoacano não se expressa apenas em um corpo
específico de escritos, mas em decretos, proclamações e atos diversos. Em 14 de
setembro de 1813, Morelos reuniu o “Supremo Congresso Nacional da América”, à
qual apresentou os pontos de um novo programa revolucionário, intitulado
“Sentimentos da Nação”.67 Nele constam a proclamação da independência; o princípio
da soberania popular; a defesa de um governo republicano; a abolição dos tributos
coloniais, da escravidão e do sistema de castas; introdução de imposto de renda. Além
disso, o dirigente manifestara-se a favor da redistribuição de riquezas e pela garantia
da posse da terra aos que nela trabalhavam, com confisco de propriedades dos
inimigos. Por outro lado, como atenuantes para uma tentativa frustrada de atrair apoio
criollo, reconhecia o primado da Igreja, o direito ao dízimo e declarou respeito à
propriedade privada.
Nem todas as medidas foram aprovadas pelo Congresso, cuja composição
incluía ricos proprietários crioulos que se mantiveram no campo independentista
sustentados pela facção moderada. Além das divisões internas, o reforço das tropas
realistas com novos contingentes espanhóis e o compromisso assumido pela maioria da
alta sociedade crioula mantiveram o Congresso sob acosso, com a tomada de cidades
importantes e baixas de líderes revolucionários, até a captura e execução de Morelos
em fins de 1815.
66
O autor do artigo referente à independência mexicana na respeitada coleção da Universidade de
Cambridge investe em uma revisão “criollista”, pelo alto, pelo que sua contribuição se reduz aos
dados factuais e referências a fontes primárias. Além de não contextualizar etapas da rebelião,
resumindo-se a juízos de valor, parece querer separar movimentos que têm origem comum,
prescindindo de uma análise global do processo. Mais de uma vez, compara Hidalgo e Morelos em
detrimento do primeiro, sempre coerente com a crítica ao surgimento de alternativas mais radicais,
independente do contexto. Ao fim, mesmo as reformas propostas por Morelos seriam "demasiado
radicais para um grande segmento da população politicamente ativa"; sua leitura limitada e
preconceituosa da rebelião ressalta saques e execuções em tom de condenação moral, considera
programa limitado e "vago" sem maior análise, pouco contribuindo para uma análise consistente da
guerra civil de independência, ainda que para uma avaliação crítica. 67
Documento disponível em <http://www.patriagrande.net/mexico/morelos.htm>.
98
III.4) Do assalto ao céu ao saque de terras
Os dois conjuntos de rebeliões têm como traço comum a integração, em um
processo, da luta contra a metrópole e de um programa que serviria de base do
imaginário democrático plebeu, antioligárquico, antagônico às narrativas oficiais de
constituição nacional. Matrizes para o nacional-popular nos Andes e na Mesoamérica
que repercutiriam ao longo do século XX, sendo recriadas nas lutas sociais
contemporâneas. Pois, além das características próprias a cada movimento em seu
tempo, sua presença foi assimilada de maneira distinta em cada região, a partir das
peculiaridades histórico-culturais. A memória construída em relação a Hidalgo e
Morelos foi composta de elementos diversos daquela formada em torno de Katari e
Amaru. “En México no se encontraría una memoria histórica equivalente a la que existe
en los Andes”. (GALINDO, op. cit., p. 22) Não existe uma utopia asteca análoga à
utopia andina; em seu lugar estão a Virgem de Guadalupe, o potencial de intervenção
política dos camponeses experimentado em mais de uma ocasião, a transcendência que
o apelo da ideologia da mestiçagem atingiu com esses processos, estabelecendo uma
base social mais ampla que a de um extrato cujo poder político se fundava sobre a
opressão étnico-classista da maioria da população.
Porém, o padrão de dominação oligárquico, dividido entre as concepções
eurocêntricas católica-conservadora e liberal, prevalece desde os primeiros momentos
de consolidação dos Estados independentes. Sendo Peru e México centros políticos e
econômicos da colonização espanhola, as revoluções pré-independência nessas regiões
tiveram consequências semelhantes. A reação antiindígena fez com que a oligarquia
criolla contivesse os primeiros impulsos autonomistas, formando bastiões realistas e
aferrando-se ao regime colonial de maneira que seria definidora não apenas do
desenlace da crise do colonialismo ibérico, mas também das estruturas político-sociais
dos novos Estados.68
Assim, os projetos emancipatórios compostos pelos povos originários no
contexto das rebeliões plebéias anticoloniais são sufocados antes da concretização da
68
O que não significa, como se infere da análise de Anna, que a radicalidade do programa de Hidalgo e
Morelos tenha sido responsável pela determinação reacionária que coroou Itúrbide.
99
independência.69
Esta se dissocia do potencial democrático contido nos movimentos
precursores e define o perfil oligárquico das novas repúblicas. Se na Alemanha a via
junker só foi possível pela derrota de Münzer, a via hispano-americana de formação
nacional se impôs em detrimento de Amaru, Katari, Hidalgo e Morelos, resultando na
fragmentação regionalista em função de poderes locais consolidados por caudilhos
destacados na guerra de independência; cuja extração social representava uma classe
dominante sustentada pelo domínio da terra e a exploração dos recursos naturais para
exportação, que passaram a servir-lhes de adjetivos: oligarquias açucareiras, bananeiras,
salitreiras, do guano, do café ou gado... (ROSENMANN, op. cit., p. 173)
A condição das classes subordinadas na “nova ordem” continuou então
caracterizada pela exploração violenta, exclusão do espaço político institucional,
discriminação jurídica, compondo o quadro da colonialidade do poder. Tanto a etapa de
consolidação das repúblicas como o advento posterior do liberalismo a confirmaram
como marco estruturante das relações sociais nos países americanos. Num processo que
une a um tempo a formação dos Estados e a transição do sistema colonial para o
capitalismo dependente, a construção nacional esteve determinada por essa forma de
afirmação da dominação. “Las dimensiones étnico-raciales de la dominación impuestas
durante el período colonial mantienen, en lo fundamental, inalterada su presencia.”
(idem)
No entanto, o controle criollo sobre o aparato estatal não se refletiu em
legitimidade estável para o grupo dominante. O projeto de estabelecimento da
dominação interna atravessou o século, atendendo às diferentes etapas de inserção no
mercado mundial70
e se expressando em diversas formas de disputas intra-oligárquicas:
centralismo x federalismo; protecionismo x livrecambismo; tutela da Igreja x laicismo.
Esses conflitos foram sintetizados, com suas particularidades nacionais, nos partidos
conservadores e liberais que, a despeito do eventual recurso à mobilização popular,
compartilhavam da base social comum.
69
Em que pese a participação indígena nas tropas montoneras e nas republiquetas na América do Sul ou
os levantes dos povos caribes e miskitos na América Central entre 1811 e 1812. (GALINDO, 2005:
221-232; ROMÁN, 1976: 74-81) O Haiti termina então por se afirmar como a exceção de uma
rebelião vitoriosa contra a metrópole e a oligarquia local. 70
Ciro Cardoso e Héctor Brignoli (1983, p. 138) identificam duas etapas: a primeira, da independência a
meados século XIX, caracterizada pela abertura ao livre comércio, entrada maciça de produtos
ingleses, perda de massa de metal precioso em circulação, dificuldade de inserção de novos produtos,
reeditando atividades de base colonial; a segunda, a partir da metade do século, quando se observa a
entrada massiva de capitais para infra-estrutura e o aumento da demanda por produtos primários nos
países industrializados.
100
As reformas liberais, que se iniciam em meados do século e são intensificadas
em seu último quartel, apresentaram como questão fundamental as disputas em torno da
propriedade fundiária. Nesse aspecto, modernizar equivalia a consolidar o mercado de
terras, avançando muitas vezes violentamente sobre propriedades da Igreja, públicas e
comunitárias. Trata-se do processo que alguns autores consideram de acumulação
primitiva, em que o capitalismo consolida as estruturas para operar desde dentro do
continente e não mais como agente eminentemente externo, que assume na América
tonalidades semelhantes às observadas na Europa nos séculos precedentes. (CUEVA,
1983, p. 69-80; FERNANDES, 1981, p. 25)
“O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do
Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade
feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com
terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da acumulação
primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura capitalista,
incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à indústria das
cidades a oferta necessária de proletários sem direitos”. (MARX, 1998, p.
847)
Os projetos liberalizantes e as campanhas de “povoamento” afetaram
diretamente a vida das populações originárias.71 (CARDOSO e BRIGNOLI, 1983, p.
139) Estas últimas, apesar da resistência “tenaz e duradoura” capaz de garantir em
alguns casos margens de reconhecimento não previstas originalmente nas legislações
republicanas, foram submetidas a esforços sistemáticos de despojo e colonização. (idem,
p. 161) Nesse ponto, é necessário observar essas iniciativas além da sua dimensão
econômica imediata, compreendendo-os como fator de constituição e integração
nacional, que consolidam o padrão de colonialidade do poder, o que em alguns casos
correspondia simplesmente ao extermínio das populações “não-civilizadas”. Segundo
Barral Gómez,
71
É importante chamar atenção para o fato de que expressões como “povoamento” ou “pacificação”
referem-se à narrativa oficial de casos específicos de colonização interna, como o argentino e o
chileno.
101
“las jóvenes repúblicas americanas que nacen a la vida política en el
mundo contemporáneo como entidades independientes durante el primer
cuarto de siglo, heredarán de la antigua metrópoli unos conflictos con la
población amerindia aborigen cuyo desenlace en muchos casos va a
ayudar a definir los propios perfiles y los contornos geográficos de las
incipientes naciones, e incluso, la culminación del proceso de luchas
contra estos grupos aborígenes contribuirá a formar en buena medida, en
algunos casos, la propia identidad nacional en estos países.” (GOMEZ,
1992, 267)
As guerras chiriguanas e o governo Melgarejo (1864-1871) na Bolívia, as lutas
contra os yaquis e a modernização porfirista no México, a “campanha do deserto”
empreendida por Julio Roca na Argentina,72
as guerras araucanas que se prolongaram
por todo o século no Chile exemplificam a recorrência de um modelo de constituição
estatal que, a despeito de particularidades regionais, fundava-se na matriz liberal
européia e ajudou a conformar os aparatos estatais e burocrático-militares das antigas
colônias, colocando como opções para as populações originárias a integração – parcial,
subordinada e aculturada – ao mercado de trabalho ou o extermínio. Daí podermos
afirmar que as nações latino-americanas se constituíram geralmente contra ou apesar
dos povos indígenas. “El problema de la estructura social del orden oligárquico expresa
su dimensión étnica en las guerras contra los pueblos indígenas y en su concepción
racial de aniquilamiento y menosprecio de su cultura.” (ROSENMANN, op. cit., p. 173)
Nos melhores dos casos, o liberalismo fazia da incompreensão a base para
ataques aos costumes indígenas. Promessas de “regeneração” e “integração à vida
nacional” sustentavam invariavelmente a imposição de políticas opressivas e
discriminatórias e, principalmente, os esforços sistemáticos de aniquilação das
comunidades, dos quais podem ser mencionados como exemplos as leis “de
Exvinculação” (Bolívia, 1874), “de Extinção de Comunidades Indígenas” (1881) e “de
Extinção de Ejidos” (1882) em El Salvador, de reforma do governo mexicano Benito
Juarez (1855-1857).
Observado em seu conjunto, o século XIX pode ser caracterizado como a etapa
de estruturação do colonialismo interno, dividida em dois momentos: a criação dos
72
Sintetizada pela célebre frase de Juan Bautista Alberdi: “Governar é povoar.”
102
Estados “nacionais” e a conformação do capitalismo dependente. As manifestações de
crise dessa ordem oligárquica se intensificam no último quartel do século, ao passo em
que se delineavam interna e externamente os elementos distintivos do capitalismo em
sua fase imperialista.
II.5) O ciclo de crise das repúblicas liberais
O perfil dos estados latino-americanos na virada para o século XX esteve
delimitado externamente pelas transformações globais do capitalismo, cujos efeitos
mais imediatos passaram a relacionar-se com o advento do imperialismo. Internamente,
a crise do padrão de dominação vigente foi acirrada por três fatores que se
influenciaram mutuamente: as reformas liberais, os conflitos intra-oligárquicos e os
movimentos populares.
Nesse contexto, surgem novos sujeitos políticos, como o movimento operário e
as camadas médias urbanas. As gerações que vivenciaram esse processo empreenderam
uma crítica profunda e muitas vezes ácida das sociedades constituídas pós-
independência. As populações indígenas passaram ao centro dessa busca por uma nova
consciência nacional. Sujeitos a tributos especiais, despojados das terras comunais,
assediados pelo racismo, explorados na condição de miséria do trabalho semi-servil das
haciendas, impulsionaram inúmeras rebeliões, que se estendem desde a resistência à
ocupação chilena, à “guerra camponesa” engendrada na revolução mexicana, passando
pela Guerra Federal na Bolívia, processos sempre permeados pelos conflitos agrários.
II.6) Tempestades nos Andes
Nos Andes, o processo crucial foi a Guerra do Pacífico (1879-1884), que opôs a
oligarquia chilena à aliança entre Peru e Bolívia em disputas territoriais regionais.
Zavaleta identifica nessa guerra o ato originário que inaugura o primeiro ciclo estatal do
século XX, a partir de uma aliança “Una alianza entre un subestrato oligárquico y el
campesinado indigena impuso entonces por la vía militar un nuevo bloque social
dominante, un nuevo eje político-geográfico”... (MERCADO, op. cit., p.11)
Humilhadas na Guerra do Pacífico, as classes dominantes peru-bolivianas
ficaram desmoralizadas internamente e o sistema de poder estruturado após a
independência, falido. Despreparados e divididos, os exércitos aliados viram a
103
economia ser destruída, a ocupação de Lima após a fuga do governo local e foram
obrigados a ceder vastos territórios ao vencedor – o que incluiu a perda do contato
com o mar por Bolívia. A elite, sem um Exército estruturado, recorreu à massa dos
povos originários73 que viviam na serra. Porém, esses, que eram a maioria da
população, não abraçavam a guerra como se fosse sua, o que de fato nunca poderia ter
sido. No entanto, essa mobilização detonou diversas rebeliões contra a condição
secular de exploração e miséria. Outros grupos seriam acaudilhados por chefes
criollos locais nas disputas pela recomposição do poder. As contradições internas
chegaram a tal ponto que um setor significativo da classe dominante, inclusive com
apoio na própria oficialidade, abandonou os brios patrióticos e adotou uma atitude
colaboracionista com os chilenos, buscando negociar condições mais favoráveis para
um acordo de paz.
Na Bolívia, o quadro de crise teve seu auge com a Guerra Federal de 1899,
impulsionada por uma disputa intraoligárquica que engendrou uma revolução
indígena. O grupo ascendente, associado ao capital externo e agrupado no partido
liberal sob a bandeira da transferência da capital de Sucre a La Paz, foi à guerra
contra o governo conservador.74 No entanto as consequencias dessa pugna foram
ampliadas quando o chefe liberal, José Manuel Pando, buscou o apoio das massas
indígenas. Liderados por Pablo Zárate Willka, estas nem de longe reduziram-se a
massa de manobra e emergiram na guerra civil com um programa próprio, que
reativou os temores mais profundos, comuns a ambas facções da classe dominante, a
ponto de os “aliados” liberais assumirem a responsabilidade de liquidar a insurreição
indígena.
O acionar da multidão aimara reeditou em larga escala o fantasma do cerco a
La Paz. A insatisfação em relação à apropriação sistemática de terras, que se
acumulara desde Melgarejo, culminou no levante militar generalizado, potencializado
por condições específicas. O horizonte se fazia indígena, não apenas metaforicamente
em termos de apresentação de um projeto político, mas objetivamente na estratégia de
guerra dispersa geograficamente, mobilizando todos os recursos ao redor. O acordo
73
Essa é a forma como nos últimos anos os descendentes dos povos que aqui estavam quando da
chegada dos europeus se denominam. Embora no Brasil a palavra “índio” não tenha o sentido
pejorativo que adquiriu em outros país, evitarei usá-la. A polêmica da capital foi reativada nos últimos
anos pela oposição ao governo de Evo Morales. 74
É importante notar que a natureza desse conflito expressa a deficiência da construção nacional
boliviana, ainda que pelo alto: Chuquisaca não era a Prússia, La Paz não poderia passar a cumprir o
papel do Piemonte.
104
com Pando, fundamental para a vitória liberal, garantia a autonomia das tropas
indígenas, cuja formação ao sistema de autoridades próprio. Willka se apresenta nesse
cenário a partir das estruturas de poder comunitárias, reeditando a intransigência
radical de Julián Apasa, de quem tinha em comum também a região de origem, ao
proclamar a consigna de extermínio da raça branca75 e formação de um governo
indígena. “A lo último, el levantamiento general de los indios en el seno mismo de la
guerra civil estuvo a punto de echar por la borda a todos y a todo Chuquisaca y La
Paz, blancos o blancoides, vencedores y vencidos, todas las zonas de Bolivia oficial. ”
(MERCADO, op. Cit. , 143)
A ameaça da “ indiada” passa ao primeiro plano do ponto de vista de liberais e
conservadores, especialmente quando seu programa se autonomiza. Nele se
identificam como pontos principais a restituição de terras comunais usurpadas, o
desconhecimento de autoridades liberais e conservadoras e a consequente constituição
de um governo indígena. (MERCADO, op. cit. , 155; CUSICANQUI, op. cit, 72)
Coube ao próprio Pando comandar a liquidação do exército aimara, inaugurando uma
nova etapa de ocultamento sociológico e negação política do indígena.
No Peru, o pós-Guerra do Pacífico acarretou igualmente um clima de tensão que
partia das comunidades, gerando conflitos, instabilidade e rebeliões. Andrés Cáceres,
um dos caudilhos que se opunha aos acordos de paz, armou milícias na sierra central
para resistir à ocupação chilena. Porém, os montoneros não atacaram apenas as forças
do governo, voltando-se contra a oligarquia considerada traidora e ocupando fazendas
que eram reclamadas pelas comunidades. (KLARÉN, 2001, p. 324) Pouco depois, em
1885, irrompeu a revolta de Astuparia, no departamento de Ancash. Essa insurreição
teve grande repercussão, por sua extensão e intensidade. Astuparia era um curaca76
que
apoiara Cáceres na guerra civil, mas que não aceitou a imposição de novos tributos aos
indígenas – na verdade a reedição de antigos impostos – para cobrir os custos da guerra.
Comandou o levante de milhares de camponeses que chegaram a tomar a capital do
departamento, Huaraz. À derrota para as forças governistas, se seguiu um inevitável
massacre.
75
Esse ponto afirmado no trabalho clássico de Condarco Morales sobre o tema é contestado por Silvia
Rivera Cusicanqui (op. cit., p. 72) 76
Curaca ou kuraka eram os chefes comunitários. Em geral, eram cooptados para a estrutura de
dominação colonial e oligárquica, porém em determinados momentos se rebelaram e comandaram
insurreições.
105
Portanto, o século XX surgiu com a marca das rebeliões camponês-indígenas.
Na serra sul-peruana, foram registrados mais de 300 conflitos esporádicos de 1901 a
1930 em Arequipa, enquanto outra pesquisa aponta 11 sublevações nos trinta e quatro
anos que se seguem a 1890 na região vizinha de Puno. (KLARÉN, ibidem, p. 354) A
mais famosa dessas ocorreu em 1915 até hoje é envolta em mistério. Seu principal líder
fora um major do Exército, mestiço, com o nome de Teodomiro Gutiérrez, que cumprira
dois anos antes uma missão de levantamento da condição da população originária de
Puno. Antes disso, como subprefeito de Chucuito, tomou uma série de medidas em
favor dos camponeses. Os fazendeiros locais o acusaram de incitar os camponeses e de
fato Teodomiro assumiu o nome quéchua Rumimaqui (Mão de Pedra) e comandou o
levante de um exército de indígenas. Pouco se sabe sobre seu desenrolar ou objetivos. O
relato da rebelião foi todo produzido por fazendeiros da região e os poucos documentos
e declarações atribuídos a Rumimaqui falam da expulsão dos gamonales e de uma
restauração do Tawantisuyu. O líder do levante foi preso em maio de 1916 e negou
qualquer participação no movimento. Há duas versões para o seu fim: a mais provável é
a de que tenha sido fuzilado; a mais popular é a de que sumiu através da fronteira com a
Bolívia e teria se integrado ao movimento anarquista. (LEIBNER, 1999, p. 199)
II.7) Uma revolução indígena no México? Zapata e a Comuna de Morelos.
As regiões observadas atingem então o século XX com estruturas oligárquicas
que, incapazes de incorporar os sucessivos movimentos indígenas, populares e agrários
em amplos projetos nacionais, se estruturam sob os cadáveres da repressão. No entanto,
se em Bolívia, Peru e Equador as linhas gerais desse padrão de dominação perduraria
respectivamente até 1952, 1968 e a década de 1970, no México a cultura política
popular gestada em 1810 reemerge recorrentemente ao longo do século XIX articulada
a movimentos federalistas, liberais, nacionalistas que, embora não chegassem ao poder,
mantiveram presença na política nacional, de maneira que a revolução de 1910 pode ser
lida como a irrupção dessa agenda popular. (MALLON, 1992, p. 43-46)
Na convergência de rebeliões que compõem a revolução mexicana, a
participação camponesa-indígena foi um pilar fundamental. A influência das culturas
indígenas na base popular da revolução mexicana é ainda tema de controvérsia entre
posições que variam desde os que a expurgaram historicamente o movimento liderado
por Zapata desde uma perspectiva elitista como uma manifestação das massas indígenas
106
ignorantes, incendiários e saqueadores; até aqueles que consideram insignificante a
presença indígena no Exército Libertador do Sul, o qual teria sido um movimento
eminentemente agrarista. Tampouco há certeza se dominava o nahuatl. Em todo caso, se
compreendemos a dimensão étnica como um elemento complementar em boa parte do
que se considera o “mundo rural” de Abya Yala, é mister reconhecer o componente
indígena da revolução agrária do sul mexicano. Principalmente quando observamos
elementos tão importantes como a composição majoritária de sua base social e as
estruturas internas de poder do Exército libertador do Sul. (LÓPEZ Y RIVAS, 2007)
Uma peculiaridade do processo mexicano, a primeira grande revolução do
século XX, está na sua ausência de programas, ideólogos, núcleo político orgânico...
“Ningún otro movimiento revolucionario tuvo participantes con tan poca conciencia de
sus papeles y de sus posiciones”. (WOLF, 1972, p. 47) Os interesses de classes e de
grupos sociais regionais se expressavam contingencialmente, desdobrando-se em lutas
políticas e consequencias inesperadas, o que pode ser notado na espontaneidade no
surgimento de líderes militares e no próprio desenrolar global do processo que “Avanzó
con sacudidas y saltos, y en varias direcciones a la vez; arrasó por igual los bastiones
del poder y los „jacales‟77
de los peones”. (idem) Por isso a revolução política liderada
por Francisco Madero para derrocar o regime ditatorial de Porfirio Diaz, que teve seu
desenlace negociado em um semestre, serviu apenas como o estopim para o turbilhão da
guerra civil que sacudiu o país na década seguinte, alimentada por diversos conflitos e
disputas políticas, sociais, econômicas, diplomáticas.
Da miríade de conflitos e projetos que convergiram naquela década
revolucionária, a revolução agrária do sul teve uma dinâmica própria e, nesse processo
particular, a comuna de Morelos merece ser destacada como um episódio transcendente
para a construção do conceito de comuna a partir das tradições comunitárias.
Eric Wolf caracteriza Morelos como uma região de relativa concentração
populacional, cujos costumes indígenas, bem como o idioma nahuatl mantinham-se
preservados. As haciendas que ocupavam os vales com uma economia açucareira
avançaram sobre as terras comunitárias nas serras vizinhas, não apenas pelas
necessidades de expansão da propriedade privada, mas também para forçar as
populações originárias a servir nas grandes propriedades. Apesar do acosso constante,
as aldeias conseguiram manter sua autonomia, conservando intactas as unidades sociais
77
Casa de palhoça, pau-a-pique.
107
e os laços comunitários tradicionais, à diferença dos trabalhadores das haciendas,
oriundos de diferentes aldeias. Com essas tradições cultivava-se uma consciência da
liberdade conquistada pela resistência de longa data às usurpações dos grandes
proprietários. Um exemplo é San Miguel Anenecuilco, que sustentara diversas batalhas
legais conduzidas pelo conselho de anciãos e onde a assembléia geral convocada por
esse conselho em 1909 designou um comitê de defesa liderado por um rancheiro local
chamado Emiliano Zapata. Ele organizou um fundo comum e ficou encarregado dos
documentos legais da comunidade, datados do início do século XVII. No ano seguinte,
quando a fazenda próxima ameaçou ocupar as terras comunais preparadas para o
plantio, Zapata organizou a sua defesa e em seguida, com a adesão de outras
comunidades, a recuperação de terras anteriormente invadidas pelas fazendas, dando a
conhecer os seus métodos: derrubada de cercas, repartição de terras entre os comuneros
e defesa armada dessa posse. (WOLF, op. cit., p. 48-50; GILLY, 2000, p. 90)
O mesmo autor lembra ainda que naquela região, justamente um século antes, o
cura cujo nome batizara o estado da República liderara uma rebelião de características
muito similares à do rancheiro de Anenecuilco. Além de uma família cuja participação
nas lutas políticas do século XIX remete à oposição ao Partido Conservador, à
resistência contra a ocupação francesa e às próprias tropas de José Maria Morelos, a
ligação de Zapata com a rebelião popular pela independência aparece em elementos
comuns como o método guerrilheiro de luta, a zona de operações, o programa agrário
que incluía a expropriação de fazendas e restituição de terras às comunidades indígenas
e até mesmo a adoção da Virgem de Guadalupe como guardiã espiritual. (WOLF, op.
cit., p. 50-51)
“El plan zapatista desciende, por otra parte, de una larga estirpe mexicana
de planes revolucionarios y utopías agraristas que se remontan al menos
hasta los Sentimientos de Nación de José María Morelos – es decir, hasta
la fundación misma de la patria –, reiteran bajo formas diversas la idea
persistente de abolir la renta agraria y atraviesan todo el siglo XIX y sus
rebeliones campesinas.” (GILLY, op. cit., p. 96)
Os camponeses de Morelos aderiram inicialmente à luta de Madero e seu
programa reformista expresso no Plano de San Luis. No entanto, seguiram desde o
início uma agenda própria. Zapata não fora designado chefe revolucionário por
108
instâncias superiores, mas conforme as tradições comunitárias. Suas ações não
obedeceram ao ritmo das negociações de cúpula e quando essas se deram por concluídas
com os acordos de Ciudad Juárez,78
romperam o tênue compromisso com a revolução
oficial e puseram em marcha a revolução agrária. Nesse aspecto, a trajetória dos
camponeses do sul do México se assemelha bastante à do exército aimara liderado por
Zárate Willka: impulsionados por disputas hegemônicas no centro do poder, organizam-
se em estruturas autônomas e constroem orientações estratégicas independentes.
O Exército Libertador do Sul foi o organismo político e militar dessa revolução
dentro da revolução mexicana. Comandado por Zapata e outros camponeses e
rancheiros, militares e intelectuais médios, representava o povo em armas. O Plan de
Ayala, publicado em novembro de 1911, vinha concretizar e aprofundar o Plan de San
Luis de Francisco Madero, mas protelado no que se referia às demandas camponesas e
populares. Prenunciando um aspecto do modus operandi zapatista, o manifesto
consolidava em letra de lei o que já vinha sendo praticado; assegurava a restituição de
terras, montes e águas usurpados e a devida expropriação de “hacendados, cientificos ou
caciques”, ações a serem garantidas pelas armas. A distribuição seria imediata, cabendo
aos fazendeiros apelar posteriormente aos tribunais. Nos anos seguintes, o controle do
território de Morelos em meio às reviravoltas do processo a nível nacional possibilitou a
experiência de uma democracia camponesa, comunitária e anticapitalista, que tem seu
auge entre 1914 e 1917.
A transcendência da revolução mexicana, especialmente em seu capítulo
morelense não reside apenas em sua profunda contribuição ao imaginário popular de
rebeldia. Destaca-se em seu tempo como a primeira grande revolução de um século de
revoluções e por sua projeção continental que influenciou as gerações seguintes.
Ademais, seu conhecimento acrescenta informações importantes para a compreensão
dos métodos e propostas dos neozapatistas organizados no EZLN ou outras
organizações camponesas.
78
Por esse acordo, firmado em 25 de maio de 1911, Porfírio Díaz retirava-se do país e Francisco Madero
era reconhecido como presidente legítimo. Com isso podia considerar vitoriosa a revolução que
iniciara em 20 de novembro do ano anterior. Mas a protelação da aplicação do Plan de San Luis
(especialmente a redistribuição de terras), a manutenção de notórios porfiriststas no novo governo, a
restituição da autoridade ao antigo exército para o restabelecimento da ordem, para a qual se
determinara como prioridade o desarmamento dos camponeses marcaram a atitude dos setores
populares diante da “revolução oficial”.
109
II.8) Revolução, modernismo e indigenismo.
A partir desses processos, o “problema do índio” aparece pela primeira vez
como um fator fundamental nos debates teórico-políticos do continente, convergindo
com um movimento amplo de reflexão e crítica da condição latino-americana.
Desenvolve-se um ambiente de solidariedade continental e antiimperialismo em torno a
experiências tão diversas como a reforma universitária de 1918 que se irradia de
Córdoba por diversos países, a revolução mexicana, as grandes greves de massa do
proletariado argentino, brasileiro e peruano, entre 1917 e 1920, as lutas do proletariado
chileno em 1920-21, os levantes militares no Brasil em 1922 e as epopéia da Coluna
Prestes, as mobilizações de grandes massas populares animadas por programas de
governos reformistas (Irigoyen na Argentina, Alessandri no Chile, Battle y Ordóñez no
Uruguai ou os caudilhos militares no México), o movimento sandinista contra a
ocupação estadunidense ou na rebelião de 1932 em El Salvador.79
Um amplo arco de
movimentos com bases sociais heterogêneas, democratizantes, antioligárquicos,
antiimperialistas e vagamente socializantes, que projetaram uma dinâmica particular de
Abya Yala no contexto de crise e agitação mundiais, criando condições para a
maturação de correntes intelectuais radicais, como o anarquismo, os exercícios de
apropriação criadora do marxismo e o nacionalismo revolucionário.
Em torno a essas mobilizações, formaram-se nos países de presença autóctone
importantes correntes indigenistas, que refletiram através de romances, revistas, jornais,
círculos intelectuais, redes de solidariedade, organismos governamentais a presença dos
povos originários na crítica da consciência nacional. A peruana Clorinda Matto de
Turner com o romance Aves sin nido (1889) é considerada precursora na introdução da
temática, que torna-se desde então presença marcante no processo literário e intelectual
de determinados países. O indigenismo, desenvolvido por camadas médias urbanas,
podia se expressar na perspectiva de ação humanista cristã, focada na caridade, ou em
manifestações mais críticas, coincidindo com o movimento das vanguardas modernistas
e do movimento operário. Este encontro foi um importante fator de radicalização dessa
intelectualidade.
79
Pouco conhecida em geral, a insurreição de 1932 liderada pelo Partido Comunista, teve um saldo de
milhares de mortos, incluindo a execução do dirigente Farabundo Martí. Um estudioso do tema
registra a integração de indígenas no movimento. (ANDERSON, 1992, 29-35)
110
O México revolucionário incorporara a figura do índio ao muralismo, por
exemplo, e no pós-revolução desenvolve um poderoso indigenismo oficial.
(RENTERÍA, 2004) Precedentes mediatos do movimento indígena contemporâneo no
Equador podem ser observados nas experiências organizativas dos primeiros sindicatos
camponeses formados na região de Cayambe na década de 1920, que buscaram
consolidar-se através do apoio mútuo com os incipientes partidos socialista e comunista.
(BECKER, 1999)
Mas foi no Peru, marcado pela grandeza incaica, a centralidade colonial e as
tragédias das guerras do Pacífico, que surgiram as expressões mais significativas desse
processo.80
(SCHWARTZ, 1995, 167-169) Na capital e pelo interior do país, diversos
intelectuais assimilaram a causa dos povos originários, através de romances, manifestos,
artes visuais e revistas. Mesmo aqueles que não podem ser qualificados exatamente de
indigenistas, mas se dedicaram a refletir um projeto para o Peru, foram obrigados a
pensar a temática, que se impôs como uma contradição fundamental em um país que se
questionava sobre o passado recente e debatia que passos dar para seguir em frente.
Vinculando a decadência da nacionalidade peruana à exclusão daqueles que
eram a maioria da população, Manuel González Prada (1848-1918) foi a maior
expressão intelectual da desilusão com as classes dirigentes. De origem aristocrática,
alternou fases onde eram maiores as influências positivista, romântica, socialista, até
chegar ao anarquismo. Porém, o que o caracteriza não é um programa para ação, mas os
ataques demolidores àquela sociedade e seus valores. Atribui à aristocracia peruana a
impotência e o fracasso na guerra, ao contrário do boliviano Alcides Arguedas que vê
no “povo enfermo” a causa principal da decadência. Em suas Horas de Lucha e Pájinas
Libres sua metralhadora giratória atinge sem eufemismos a liberais, conservadores,
magistrados, aristocracia e Igreja. Esta é o seu alvo predileto e o seu anticlericalismo
lembra o velho anarquismo ibérico. Prada sintetiza o fracasso do Peru no fato de a
maior parte da população não estar incorporada à vida nacional, denunciando o
oportunismo caudilhista. “Con las muchedumbres libres aunque indisciplinadas de la
Revolución, Francia marchó a la victoria; con los ejércitos de indios disciplinados i sin
libertad, el Perú irá siempre a la derrota. Si del indio hicimos un siervo ¿qué patria
80
Não por acaso surge em meados do século, nesse mesmo país, a obra literária de José Maria
Arguedas. Fluente no quéchua, familiarizado com o universo cultural andino por suas reminiscências
infantis e pela formação antropológica, sua obra situa-se em meio às fronteiras culturais que marcam
aquela formação social.
111
defenderá? Como el siervo de la Edad media, sólo combatirá por el señor feudal”.81
(PRADA, 1976, p. 44)
Seu estilo e suas idéias influenciaram não apenas os anarquistas peruanos, mas
toda a geração seguinte da intelligentsia peruana, que reconhece a importância e o
pioneirismo do anarquista que, cético quanto a apelos humanitários à classe dominante,
pregou a libertação pela violência e pela autoorganização e antecipava a questão
indígena como uma questão sócio-econômica:
“La condición del indígena puede mejorar de dos maneras: o el corazón
de los opresores se conduele al extremo de reconocer el derecho de los
oprimidos, o el ánimo de los oprimidos adquiere la virilidad suficiente
para escamotear a los opresores. Si el indio aprovechara en rifles y
cápsulas todo el dinero que desperdicia en alcohol y fiestas, si en un
rincón de su choza o en el agujero de una peña escondiera una arma,
cambiaría de condición, haría respetar su propiedad y su vida. A la
violencia respondería con la violencia, escarmentando al patrón que le
arrebata las lanas, al soldado que le recluta en nombre del gobierno, al
montonero que le roba ganado y bestias de carga”. (PRADA, 1995, p.
43.).
O modernismo peruano surge na década de 1920 pelas letras de César Vallejo
(autor de Los heraldos Negros, Trilce). Em Cuzco se articula o grupo Risorgimiento,
onde se destaca Luís E. Valcárcel (Tempestad en los Andes) e em Puno o Boletim
Titikaka, que reuniu os irmãos Arturo Peralta (El pez de oro) e Alejandro Peralta (Ande,
El Kollao). (SCHWARTZ, 1995, 168) Muitos desses setores mais radicalizados
estiveram entre os círculos que deram origem ao Partido Socialista Peruano.
Nesse contexto surge a obra de José Carlos Mariátegui, que vincula a questão
indígena ao problema da terra, sem menosprezar os aspectos culturais dos povos
originários. Aponta no ayllu, a comunidade indígena, a base para a organização e para o
projeto emancipatório nos países andinos. Reconhece dessa forma o potencial
revolucionário do campesinato e dos povos indígenas, contrapondo-se a uma certa
ortodoxia marxista. Registra a debilidade do Estado e das formações nacionais no
81
Mantida grafia original. Prada se caracteriza também por propagar uma renovação da língua.
112
continente. Destaca o papel das tradições no processo revolucionário, reconhecendo a
importância do passado incaico para a resistência dos povos atuais, através do conceito
de mito.
Para ele, é a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí
decorrentes que possibilita compreender e elaborar um programa de emancipação dos
povos indígenas. São inócuas as tentativas de soluções unilaterais do ponto de vista
administrativo, jurídico, étnico, moral, educacional ou eclesiástico, que eram
apresentadas e praticadas pelos governos, pela Igreja ou por entidades civis com o
intuito declarado de melhorar a situação dos povos originários. De maneira bem
objetiva, para Mariátegui: “O novo enquadramento consiste em pesquisar o problema
indígena no problema da terra”. (MARIÁTEGUI, 1975, 28) Se é verdade que suas
reflexões foram superadas em alguns pontos e demandam uma revisão crítica quando
assimiladas, deve-se reconhecer que alguns pontos fundamentais permanecem válidas,
pois o peruano foi capaz de empregar um marxismo permeável à herança andina e não
dogmático, rompendo com um modelo eurocêntrico predominante ao longo do século
passado. (BEIGEL, 2001) Com isso levou o indigenismo aos seus limites, deixando
abertos os canais de diálogo.
II.9) Um novo Pachakuti?
Com essa breve resenha histórica, vê-se como, de maneira mais ou menos
latente, o debate sobre a condição dos povos originários atravessa a história das
formações sociais americanas e ressurge com toda a intensidade na sua última década
do século XX. Na primeira parte deste trabalho tentei traçar um panorama geral dos
movimentos indígenas. Em seguida, atendendo uma sugestão de sua própria construção
identitária, dei um salto na história para encontrar as raízes, a partir do período
republicano, da condição dos povos originários de Abya Yala. Retomo agora o enfoque
conjuntural, articulando a análise das formas contemporâneas de acumulação e
expropriação capitalista, mecanismo clássicos e contemporâneos de intervenção
imperialista e dominação de classe com as alternativas que emergem da plebe indígena.
A emergência dos movimentos indígenas ocorre em um contexto de consolidação de
importantes processos de escala regional ou mundial que exerceram influência direta ou
indireta no acionar político dos povos originários.
113
O conjunto de transformações que configuram o capitalismo nesta virada de
século, bem como seus efeitos, têm sido analisados pelos mais distintos enfoques.
Tratando-se o período atual de uma transição cujo desenlace ainda está longe de
despontar no horizonte, já que o próprio debate das ciências sociais está sujeito ao
desenvolvimento de um contexto ainda indefinido. Não cabendo aqui um esforço global
de interpretação do capitalismo contemporâneo, destaco alguns traços gerais para uma
leitura desde Abya Yala, fundamentando-se em interpretações que nos aproximam dos
elementos que influenciam o surgimento e a trajetória dos movimentos indígenas.
Anibal Quijano identifica no período atual um amplo “processo de
reconcentração do controle de recursos, bens e rendas em mãos de uma minoria da
espécie”; o que implica em uma crescente polarização social a nível mundial entre um
grupo dominante cada vez mais restrito e a vasta maioria da humanidade, da qual uma
parcela crescente é submetida a níveis extremos de superexploração.(QUIJANO, 2002
p. 8) Ao mesmo tempo, declinam as possibilidades para o capital de converter a força de
trabalho em mercadoria, provocando a expansão de formas não-salarias como
escravidão e servidão. O sociólogo peruano caracteriza a partir desses elementos um
processo de transição do sistema capitalista, que implica, por um lado “um processo de
reclassificação social da população mundial, em escala global” e por outro a
“reconcentração e reconfiguração do controle do trabalho, seus recursos e seus
produtos, em escala mundial.” Lembra ainda que tais processos estão associados à
consolidação do predomínio da acumulação especulativa e da financeirização desde
meados da década de 1970.
Nesse momento de eclosão da crise global do capitalismo ocorre o ponto de
virada no sentido de assegurar a retomada do controle do poder político em escala
internacional por um “bloco imperial mundial” (ibidem, p. 11) – eufemisticamente
batizado pela sociologia burguesa de “governança global” – constituído
institucionalmente não apenas pelos Estados hegemônicos, mas também por entidades
intergovernamentais ou privadas de controle e exercício da violência e do fluxo de
capital: OTAN, Conselho de Segurança da ONU, FMI, Banco Mundial, G8, Fórum
Econômico de Davos, Clube de Paris etc. A estratégia de construção desse bloco
ganhou consistência a partir da derrota do conjunto extremamente heterogêneo de
movimentos “anti-sistêmicos” (WALLERSTEIN, 2003) que desafiara em distintos
níveis o sistema capitalista após a II Guerra Mundial: as guerras anticoloniais afro-
asiáticas; as revoluções sociais triunfantes, seja de orientação socialista, seja de
114
libertação nacional ou ainda nacionalistas, em territórios como a China, Vietnã, Coréia,
Indonésia, Cuba, Bolívia, Chile, Angola, Moçambique, Argélia etc.; os movimentos
regionais de orientação nacionalista-reformista (nacionalismo militar na América
Latina, nasserismo e pan-arabismo, pan-africanismo e “socialismo africano”); a
consolidação do Estado de bem-estar social nos países centrais do capitalismo; os
movimentos democráticos e antiburocráticos que visavam retomar a orientação
socialista nos países do leste europeu; os movimentos de crítica das relações sociais
dominantes, pela liberação sexual e nas relações de gênero, étnicas e geracionais. Pode-
se dizer que esses movimentos, observados de conjunto, representavam uma efetiva
desconcentração do poder sobre o globo terrestre, bem como uma relativa redistribuição
de benefícios e rendas, de controle do trabalho e seus recursos, acompanhados de um
acúmulo teórico crítico e radical.
“Foi a derrota de todo esse contexto, pela combinação de medidas de reconcentração do
controle sobre o trabalho, que se deu durante a crise mundial do capitalismo, e da
derrota dos movimentos que alguns chamam 'anti-sistêmicos', primeiro por uma aliança
entre os regimes rivais dentro do sistema, e da derrota e desintegração posterior dos
regimes rivais mais influentes (a ex-União Soviética, o “campo socialista” europeu),
que permitiram aos Estados-nação mais poderosos do padrão mundial de poder a rápida
e relativamente fácil, sem resistência apreciável até agora, reconcentração do controle
da autoridade pública, em muitos casos, uma clara reprivatização do Estado, como no
caso peruano mediante o regime fujimorista.” (QUIJANO, op. cit., p. 15)
Função cumprida em outros países por regimes que surgem de situações
particulares mas seguem roteiros semelhantes, como os de Hugo Banzer-Sanchez de
Lozada na Bolívia, Pinochet-Concertacion no Chile, Salinas de Gortari-Zedillo no
México, os governos pós-guerras civis na América Central. O que se convencionou
chamar neoliberalismo como apresenta-se então como uma dimensão do esforço de
reorganização do capitalismo, com suas manifestações específicas na América latina. É
necessário aprofundar a crítica às raízes mais imediatas do processo atual, dentre as
quais geralmente se aponta a globalização neoliberal e seus processos correlatos: os
Programas de Ajuste Estruturais, os projetos de “modernização” e desregulamentação
de mercados etc. Nesse contexto pode-se compreender a “globalização” como um
processo que, longe de representar o “admirável mundo novo” afirma-se
fundamentalmente como uma ofensiva pela universalização da forma mercadoria, a qual
implica a reconfiguração da colonialidade sob novos termos (mas não sob novas bases),
115
em um contexto global de esgotamento do Estado-nação como campo prioritário
equalização das disputas políticas.82
Uma leitura bastante criativa e consistente do período atual, é a que vem
desenvolvendo o EZLN. Afirmando o movimento social como lugar de produção de
uma teoria, trabalham com alegorias, metáforas e conceitos que não se fiam pelos
cânones acadêmicos, mas que delineiam uma interessante interpretação do mundo
contemporâneo que tem sido consolidada não apenas em seus célebres comunicados e
declarações, mas em fóruns internacionais, reflexões sobre temas específicos e diálogos
com intelectuais de várias partes do mundo.
Partindo de suas reflexões mais recentes, entende-se que o capitalismo é um
sistema social caracterizado pela concentração de poder e de riqueza, sendo esta
baseada na exploração dos trabalhadores e no despojo sistemático de bens como a terra
e os recursos naturais. A lógica desse sistema gira em torno da produção e circulação de
mercadorias, com sua capacidade de ocultar relações sociais e sua necessidade de
expansão mundial.
“Y entonces el capitalismo todo lo convierte en mercancías, hace
mercancías a las personas, a la naturaleza, a la cultura, a la historia, a la
conciencia. Según el capitalismo, todo se tiene que poder comprar y
vender. Y todo lo esconde detrás de las mercancías para que no vemos la
explotación que hace. Y entonces las mercancías se compran y se venden
en un mercado. Y resulta que el mercado, además de servir para comprar
y vender, también sirve para esconder la explotación de los trabajadores.”
(EZLN, jun. 2005)
A fase atual do capitalismo se diferencia de outros momentos pela sua capacidade de
articular globalmente a dominação. Assim caracterizam os zapatistas a “globalização
neoliberal”, que opera nos planos econômicos, políticos, culturais e militares.
82
Interessante notar como o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro já vislumbrava na década de 1980 a
forma específica em Nossa América do processo de declínio de “um dos principais protagonistas da
história contemporânea”: “Refiro-me ao Estado unitário burguês, montado como máquina de
dominação de um componente étnico sobre as demais, dentro de sociedades multiétnicas.” (RIBEIRO,
1986, p. 115)
116
“Entonces los capitalistas globalizados se meten a todos lados, o sea a
todos los países, para hacer sus grandes negocios o sea sus grandes
explotaciones. Y entonces no respetan nada y se meten como quiera. O
sea que como que hacen una conquista de otros países. Por eso los
zapatistas decimos que la globalización neoliberal es una guerra de
conquista de todo el mundo, una guerra mundial, una guerra que hace el
capitalismo para dominar mundialmente.” (idem)
Os zapatistas percebem antes (e para além) da era Bush que a lógica da guerra, imanente
ao capitalismo, atinge uma nova etapa nos dias atuais. O fim da mal chamada “guerra
fria” acentua as condições para o desenvolvimento da “Quarta Guerra Mundial”,
caracterizada por esse assalto da forma mercadoria a todos os aspectos da vida social,
enquanto se varrem os focos de resistência pela via da repressão.83
O geógrafo estadunidense David Harvey interpreta o contexto do capitalismo
contemporâneo “em termos de uma série de ajustes espaço-temporais que fracassaram,
inclusive no médio prazo, em enfrentar os problemas de sobreacumulação”. (HARVEY,
2005, 96) Essa crise que desponta na década de 1970 e, irresoluta, apresenta atualmente
novas e mais profundas manifestações, acarreta, segundo Harvey, a inviabilidade de
acumulação pela reprodução ampliada sobre uma base sustentável e o consequente
fortalecimento da via de acumulação pela espoliação. A esse processo dá o nome de
“novo imperialismo”. Não pretendo aqui tomar parte na ampla polêmica em torno à
validez de tal expressão, mas creio pertinente o debate com o conceito de “acumulação
por espoliação”.
Partindo de uma leitura crítica das contribuições de Marx e Rosa Luxemburgo
sobre o problema da acumulação capitalista, Harvey propõe que não se relegue a uma
delimitada etapa originária a acumulação baseada em métodos depredaciativos,
violentos e fraudulentos e que esta tampouco seja considerada uma dinâmica exterior ao
capitalismo. (HARVEY, 2005, p. 108) Ao contrário, uma “revisão geral do papel
permanente e da persistência de práticas predatórias de acumulação 'primitiva' ou
83
Note-se que a pertinência dessa caracterização pode ser verificada pela difusão nos centros de poder
de teorias das novas formas de guerra: de baixa intensidade, assimétrica, humanitária, de quarta
geração, até serem sintetizadas após o 11 de setembro de 2001 na “guerra infinita contra terror”.
117
'originária' ao longo da geografia histórica” (idem) do capitalismo indicam que este
sistema internaliza essas práticas, que podem até tronar-se latentes em períodos de
reprodução ampliada, mas tendem a se acelerar em períodos de crise. Destaca ainda os
novos mecanismos de acumulação por espoliação, consolidados em processos como a
imposição dos direitos de propriedade intelectual nos mais diversos âmbitos, a
biopirataria, as privatizações, a mercantilização de bens culturais etc.
Ainda que esta não seja a dinâmica predominante do capitalismo,84
é importante
ressaltar esse aspecto, especialmente em sua periferia. Afinal, salta aos olhos a
atualidade de métodos como o roubo, a violência e o terrorismo estatais e paraestatais,
descritos por Marx no célebre capítulo XXIV d'O Capital, reafirmando a dinâmica
colonial permanente do capitalismo, com a diferença de que os “novos cercamentos”
operam a expropriação de recursos naturais, propriedades comunais, bens culturais e
recursos genéticos e biológicos prescindindo da demanda de formação trabalhadores
assalariados que caracterizava a acumulação “originária”.
Em função dessas dinâmicas, o atual padrão de acumulação capitalista reativou
distintos mecanismos de conflitividade direta entre as comunidades e as empresas
transnacionais, os aparatos estatais locais ou as forças militares do imperialismo. No
avanço das empresas sobre os recursos naturais, nas tentativas de imposição do mercado
de terras, nos megaprojetos de intervenção infra-estrutural para facilitar o fluxo de
mercadorias e no acirramento dos conflitos diretos ou indiretos com o aparato militar
estadunidense estão as raízes mais imediatas da resistência indígena.
Com tempos e peculiaridades locais, verifica-se um padrão de intervenção ao
largo do continente. Mineradoras, petroleiras, papeleiras, madeireiras apresentam-se
como os novos conquistadores. Já observamos que o marco inicial do atual processo
boliviano a luta contra a privatização dos serviços de abastecimento urbano de água e
seu auge na disputa – ainda em desenvolvimento – pelo destino a ser dado às reservas
de combustíveis fósseis; enquanto isso, o elemento definidor da radicalização dos
cocaleros, setor predominante na força política que atualmente governa o país, foi a
política de erradicação da folha de coca, financiada e supervisionada diretamente pela
embaixada dos Estados Unidos. Da mesma forma, setores como os cocaleros, as
comunidades afetadas pela mineração e os povos originários amazônicos tornaram-se
sujeitos de conflitos estratégicos com o Estado peruano, impulsionando importantes
84
E em que pese algumas imprecisões conceitos, especialmente quando discute as expressões de
resistência ao “novo imperialismo”.
118
mobilizações e pela rearticulando um discurso identitário indígena, em um país cuja
desarticulação social impôs-se por um longo período sobre a capacidade de resistência
dos grupos subalternos. Na Amazônia equatoriana, o incremento das atividades
petroleiras iniciadas há três décadas, introduziu as multinacionais do setor – incluindo a
Petrobras – como motivadoras de enfrentamentos que suplantaram o âmbito regional.
(FONTAINE, 2005; Folha Online, 2 jul 2007) A ação das mineradoras na América
Central tem sido outro vetor de conflitos, como os gerados pela atividade da companhia
canadense Gladis Gold Ltds em San Miguel Ixtahuacán (Guatemala) e a concentração
de 70% das concessões mineras em terras indígenas, afetado especialmente o povo kuna
yala no Panamá (GARCÍA-FALCES, 2006) Casos semelhantes se repetem no Brasil,
com os ataques da Aracruz Celulose a comunidades indígenas e quilombolas; no Chile,
onde a repressão estatal às organizações mapuche cresce proporcionalmente à
ampliação de projetos de empresas mineradoras e madeireiras e em exemplos que se
multiplicam em todo o território de Abya Yala.
Para consolidar os planos estratégicos do poder, tomam corpo megaprojetos de
intervenção infra-estrutural que, sob a roupagem da integração, representam sérias
ameaças às comunidades indígenas. A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura
Regional Sulamericana (IIRSA) e o Plano Puebla Panamá (PPP) formulam propostas
ambiciosas de pavimentação da infra-estrutura das regiões mais “atrasadas” do
continente, buscando efetivar reestruturações territoriais que facilitem a exploração de
recursos naturais e a circulação de mercadorias.85
A IIRSA traça como objetivo “realizar acciones conjuntas para impulsar el
proceso de integración política, social e económica suramericana, incluyendo la
modernización de la infraestructura regional y acciones especificas para estimular la
integración y desarrollo de subregiones aisladas”, concebendo a América do Sul como
“un espacio económico plenamente integrado, para lo cual es preciso reducir al mínimo
las barreras internas al comercio y los cuellos de botella en la infraestructura y en los
sistemas de regulación y operación que sustentan las actividades productivas de escala
regional”. Atualmente está composto de 335 projetos de financiamento de infra-
estrutura, com investimentos da ordem de US$ 37,5 bilhões de dólares financiados via
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Corporação Andina de Fomento
(CAF) e Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA)
85
Uma compilação de análises e dados relativos a esses projetos pode ser encontrada em
<http://www.megaproyectos.org>.
119
distribuídos em dez Eixos de Integração e Desenvolvimento, em grande parte
executados pelas empreiteiras brasileiras.86
O projeto chama atenção por ser planejado e
gerido pelos governos sul-americanos, financiado por capitais locais e sem intervenção
direta dos Estados Unidos, desempenhando na América do Sul um papel complementar
ao projetado para o Plano Puebla-Panamá.87
A esse respeito, organizações indígenas se
manifestaram na Cúpula Social pela Integração dos Povos em dezembro de 2006, na
cidade de Cochabamba, criticando o modelo agro-exportador, focado na construção de
mega-estradas e prevendo o desalojo de povoados, etnocídio de populações em
isolamento voluntário, destruição de costumes produtivos locais e degradação da
natureza. Na Bolívia, para apontar apenas um exemplo, povos chiquitanos e ayoreo
denunciaram os impactos sócio-ambientais como contaminação hídrica e seca,
agressões à fauna local, expulsão das comunidades de suas terras, extração ilegal de
madeira, entre outros efeitos não anunciados na avaliação preliminar para a
implementação de projetos ligados ao IIRSA. (Adital, 2007)
O Plan Puebla Panamá (PPP) foi proposto em 2001, por iniciativa do presidente
mexicano Vicente Fox, sendo relançado em junho de 2008 como “Projeto
Mesoamérica”. Seu espaço de intervenção se estende dos estados do sul do México pela
América Central, chegando atualmente à Colômbia. Como o seu correlato sul-
americano apresenta-se como um projeto ambicioso de integração regional,
prescrevendo a ideologia do desenvolvimento como impulsionador de melhores
condições de vida para a maioria da população. Originalmente esteve composto de dois
grandes sistemas de corredores logísticos enlaçando rede de integração mediante linhas
de fluxos progressivamente complexos, que incluiriam estradas, portos, ferrovias e
aeroportos, além de projetos de infra-estrutura de plantas de geração e linhas de
distribuição de eletricidade, gasodutos, centros de armazenamento e processamento de
petróleo e derivados, hidrovias, aquedutos, redes telefônicas de fibra óptica etc.,
86
Lançada em 2000 na capital brasileira, a iniciativa tem no Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social um de seus principais financiadores. Informações e citações retiradas de
<http://www.iirsa.org>. Acesso em 13 de fevereiro de 2007. 87
No que se refere ao tema central deste trabalho, cabe destacar que, se por um lado o auge neoliberal
apontava em um sentido recolonizador, com propostas de fundamentos explicitamente
intervencionistas como a ALCA, o Plano Puebla-Panamá, o Plano Colômbia e a instalação de bases
militares por todo o continente; por outro lado a tendência neodesenvolvimentista presente em
diversos governos de esquerda não rompe com a condição de dependência e superexploração, sendo
compatível com a expansão do mercado, cooperação militar, projetos modernizadores que arrasam a
natureza e os povos originários, manutenção e reforço da hierarquização internacional, confirmação da
divisão internacional do trabalho,primarização das economias etc.
120
direcionados para consolidar o Golfo do México e a costa do Pacífico como acessos
estratégicos de corredores mercantis globais.
Complementados por sucessivos projetos apresentados nos últimos anos,88
observa-se a convergência dos planos econômicos, políticos e militares na estratégia de
recomposição da hegemonia das classes dominantes, operando a partir de propostas de
uma geopolítica do poder que define entre suas prioridades o controle de recursos
energéticos, do fornecimento de matérias-primas (recursos naturais) e dos mercados.
Diante das múltiplas resistências a esse redesenho hegemônico dos territórios,
incrementa-se a alternativa da militarização, reforçando os capítulos regionais da
“quarta guerra mundial”. Ao se sobrepor no mapa de Nossa América os recursos
estratégicos, os principais focos de resistência e os posicionamentos militares dos
Estados Unidos, Ceceña chama a atenção para a “coincidência” entre esses três vetores
do conflito. (CECEÑA, 2001) Com efeito, diversos trabalhos têm registrado a
correlação significativa entre diversidade cultural biológica, o que não se deve a uma
leitura idílica, mas em função de razões históricas e da persistência de formas de
organização social que não se sustentam exclusivamente da forma mercadoria.
(GARCÍA-FALCES, op. cit.; DÍAZ-POLANCO, 2003)
Nesse contexto de crise e tentativas de reorganização do capitalismo, os povos
indígenas emergem como uma potência anti-sistêmica, articulando passado e presente
na radicalidade de lutas que põem em questão tanto os mecanismos contemporâneos de
exploração quanto as bases históricas da opressão. Sua dimensão subversiva não se
restringe à capacidade de resistência às diretrizes da dominação, mas se amplia pelo
esforço coletivo de interpretação da realidade e a elaboração de novos conceitos, pela
reconstrução de laços sociais e a contribuição para a construção de novas formas de
sociabilidade – sobre as quais passo agora a um exercício de análise.
88
Não podemos deixar de mencionar a função complementar a tais projetos, nos planos econômico e
jurídico, de organismos político-financeiros multilaterais ou nacionais (Banco Mundial, Fundo
Monetário Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Corporação Andina de
Fomento, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social); bem como de acordos
internacionais como os Tratados de Livre Comércio, o Mercosul, os acordos de livre comércio da
América do Norte (TLCAN) e central (ALCAC).
121
Parte 3 – Ensaio sobre a forma-comuna
“Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo
arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva”.
Gabriel Garcia Marquez
I. Apresentação
A emergência política dos povos originários de Abya Yala na década de 1990
representa um acúmulo potencial do ponto de vista da práxis que desafia boa parte das
teorias consagradas aos movimentos sociais e cujas consequencias teóricas apenas
começam a ser testadas.
Uma série de trabalhos recentes, de intelectuais formados nas lutas sociais ou
comprometidos em vincular sua reflexão a esses processos, trazem importantes aportes
para superar tanto os esquemas mais tradicionais, que separam a dimensão política da
social, restringindo a ação dos movimentos sociais à segunda; como as gavetas
multiculturalistas das identidades pós-modernas. No horizonte teórico desses
“paradigmas” (ou pós-paradigmas), estabelecidos a partir das academias dos países
centrais, prevalece a ênfase nos aspectos formais, “das formas organizativas aos ciclos
de mobilização, da identidade aos marcos culturais”, (ZIBECHI, 2006, p. 28)
priorizando aspectos como demandas e reivindicações, lideranças e discursos públicos,
projetos e articulações institucionais. (GOHN, 2004, p. 255-263) Em função desses
elementos, os movimentos sociais são classificados segundo objetivos, pertencimento
estrutural, características das mobilizações, momento e motivos de sua irrupção.
Na vasta bibliografia acumulada com esses enfoques,89
muito pouco se
desenvolveu sobre as particularidades dos processos continentais desde uma perspectiva
própria, que possibilite a construção (ou apropriação) de conceitos mais adequados a
essas experiências. Não se trata de uma mera afirmação da especificidade, mas de
buscar contribuir para o enriquecimento de um pensamento crítico descolonizado, tendo
sempre em vista a articulação dialética entre universal e particular que orienta esse
esforço teórico-prático. Como assinalou um intelectual cubano no simpósio convocado
89
Gohn (2004, p. 211) menciona um levantamento bibliográfico sobre movimentos sociais latino-
americanos de cerca de 500 títulos.
122
pelo EZLN no final de 2007, em Nuestra América a diversidade assumiu o caráter de
movimento político e ganhou visibilidade epistemológica. (Gilberto Valdés apud
BELLINGHAUSEN, 16/12/2007) Cabe, portanto, ousar na análise de um fenômeno que
supera os quadros teóricos estabelecidos e buscar novas referências.
Nesse sentido, Raul Zibechi aponta o limite do próprio conceito de movimento
social, entendendo que os recortes sociológicos referidos não dão conta de uma
realidade que envolve, muito mais que mobilizações setoriais por demandas específicas,
sociedades inteiras em movimento, abalando de baixo para cima as estruturas de
dominação. O boliviano Luis Tapia identifica que em “países multissocietais” como a
Bolívia,90
as forças não se movem na mesma direção, impulsionando um “flujo
subterráneo de procesos sociales desarticuladores del orden estatal y económico
nacional”. Esses processos não se enquadram na definição de movimento social,
representando efetivamente “movimientos de sociedades en proceso de conflicto más o
menos colonial en el seno de un país estructuralmente heterogéneo”. Analisando esse
fenômeno, Tapia (2008) constrói o conceito de “movimento societal”.
A partir de Zibechi, destacam-se alguns elementos comuns aos movimentos
sociais-societários de Abya Yala: territorialização; autonomia tensa frente a Estado e
partidos; revalorização da cultura e afirmação da identidade popular; formação de
intelectuais próprios; novo papel da mulher; organização do trabalho e relação com
natureza; prefiguração das novas relações sociais no cotidiano. (ZIBECHI, 2007, p. 22-
26)
Já mencionei, quando analisava a luta mexicana de independência, a importância
de buscar nas entrelinhas os traços programáticos das lutas dos grupos subalternos, pois
nem sempre os projetos estratégicos dos de baixo são formulados explicitamente, nos
códigos da sociedade hegemônica. De maneira que, detectar e interpretar esses projetos
pressupõe revisar a contrapelo em um tempo histórico de longa duração, “con un énfasis
en los procesos subterráneos, en las formas de resistencia de escasa visibilidad pero que
anticipan el mundo nuevo que los de abajo entretejen en la penumbra de su
cotidianidad.” (ZIBECHI, 2008, p. 6)
A partir dessas observações, me dedico nesta parte a um exercício de reflexão do
potencial emancipatório desses movimentos societais que estamos analisando, com seus
90
Os elementos que caracterizam essas formações sociais foram analisados na Parte 2 deste trabalho.
Apesar de me iniciar por uma trilha com algumas diferenças daquela pela qual já avançou Tapia,
posso dizer que temos uma referência comum em Zavaleta, do qual é discípulo direto.
123
costumes e tradições, tomando a comunidade indígena como núcleo interpretativo.
Como se verá mais à frente, por comunidade indígena, seus costumes e tradições, não
estou defendendo uma visão romântica dos povos indígenas, intocados pela civilização,
aversos à tecnologia ocidental e ao mercado, vivendo harmonicamente em bucólicas
paisagens rurais ou santuários naturais.
A concepção que fundamenta esta reflexão é a de que a história traz em seu
desenrolar inúmeras possibilidades e que esses “processos subterrâneos” comportam,
ainda que de maneira contraditória e turva, potenciais projetos emancipatórios,
alternativas às formas de organização política vigentes. E que os movimentos indígenas
deram pistas, no ciclo recente de lutas e rebeliões, de como podem prefigurar novas
relações sociais.
***
Das diversas formas do poder popular, a comuna emerge em distintas situações
históricas, apesar de ter sido pouco teorizada enquanto tal. De um lado, as correntes
mais dogmáticas do marxismo se prenderam ao problema da administração do aparato
estatal burguês, no caso da social-democracia, ou da burocracia “proletária”, no caso do
stalinismo. Por outro lado, as correntes revolucionárias que se aproximavam da
perspectiva da comuna (em seus diferentes formatos) foram marginalizadas no debate
em que foi predominante a “estadolatria”.
Em uma interessante análise conjuntural da Argentina na primeira metade da
década de 1970,91
após analisar as formas do poder burguês, Mario Roberto Santucho
identificava as duas principais manifestações do poder revolucionário: primeiro na
forma típica dos “soviets o consejos obreros y populares (...) consistentes en Asambleas
permanentes de delegados obreros, soldados y otros sectores populares, que asumían
responsabilidades gubernamentales, en general opuestos a las intenciones del gubierno
burgués.” (SANTUCHO, 2000, p. 295) As experiências posteriores de China, Vietnã e,
certamente, Cuba, colocaram no debate uma segunda possibilidade através de
“insurreciones parciales, es decir con levantamientos locales que estabelezcan el poder
revolucionario en una región o província, las denominadas zonas liberadas.” (idem) A
experiência cubana, especialmente a partir das sínteses teóricas de Che Guevara,
91
Retiro desse texto a caracterização do poder revolucionário, sem entrar aqui no debate relativo ao
contexto em que foi produzido.
124
conduziu ao intenso debate em torno da guerrilha como estratégia revolucionária e
possibilitou que esta fosse, entre as décadas de 1960 e 1980, a via predominante nas
polêmicas teórico-políticas do continente.
No entanto, é ao primeiro exemplo mencionado por Santucho, aqui referido
genericamente como forma comuna, que me esforçarei por estabelecer uma
aproximação, observando sua trajetória histórica e refletindo sobre sua pertinência, hoje,
em Abya Yala. Tal aproximação pode parecer à primeira vista um tanto quanto aleatória
e pouco rigorosa, mas se inspira diretamente na dinâmica dos movimentos indígenas
contemporâneos, especialmente na força da vida comunitária como estruturante das
relações sociais, ao mesmo tempo em que reconhece intersecções entre experiências em
distintos tempos e lugares na resistência às imposições do mercado e do Estado.
Assim, meu objetivo nesta parte é analisar a forma comuna como uma
alternativa de poder ao Estado uninacional e colonizado, a partir da análise da sua
gênese em contextos de acirramento agudo dos conflitos sociais. Busco delinear uma
genealogia que conecte esses momentos com as experiências e tradições das classes
subalternas, entendendo a espontaneidade não como categoria pejorativa para designar
uma suposta insuficiência teórica e organizativa, mas como uma dimensão legítima do
repertório de ações e das formas próprias de manifestações dos de baixo.
Nesse ponto, também aprofundo o diálogo com Zibechi, que em trabalho recente
dedica-se a refletir sobre o potencial da comunidade como forma de organização social
antiestatal. Para o intelectual e militante uruguaio,
“Tomar los relámpagos insurreccionales como momentos
epistemológicos es tanto como privilegiar la fugacidad del
movimiento, pero sobre todo su intensidad, para poder conocer
aquello que se esconde detrás y debajo de las formas establecidas.
Durante el levantamiento se iluminan, aún fugazmente, las zonas
de penumbra (o sea los márgenes mirados desde el Estado); la
insurrección es un momento de ruptura en el que los sujetos
despliegan sus capacidades, sus poderes como capacidades como
capacidades de hacer, y al desplegarlas muestran aspectos ocultos
en los momentos de reposo o de menor actividad colectiva.”
(ZIBECHI, 2006, p. 39)
125
A comuna tampouco pode ser concebida como um tipo ideal universal,
ahistórico. Para isso, revisaremos alguns processos de construção desta forma de
organização social, visando entender as dinâmicas que possibilitam o seu surgimento
em determinados contextos históricos, bem como a contribuição de alguns
revolucionários que assimilaram os princípios da comuna em sua práxis.
Os bolivianos Raquel Gutierrez e Luis A. Gómez interpelam assim a obra em
que Zibechi:
“Presentemos la pregunta de Zibechi con la mayor claridad
posible, porque su pertinencia hoy, en Bolivia, es asombrosa. Si
de lo que se trata es de responder a la cuestión de cómo ha sido
posible la cadena de movilizaciones, levantamientos e
insurrecciones recientes en Bolivia, y si la respuesta está, grosso
modo, en la permanencia reajustada de la comunidad, en la
capacidad expansiva de formas comunitarias de decidir y hacer,
entonces, una pregunta inmediatamente posterior es aquella sobre
la posibilidad de que tales relaciones comunitarias, tales
tecnologías sociales, tales capacidades humanas que se han
desbordado en los años recientes a las instituciones oficiales, a la
academia y a la producción serializada de opinión pública, puedan
alcanzar un momento de expansión estable – es decir, no
meramente convulsa –, profundizando el proceso auto
emancipador que hoy tiene a la oligarquía boliviana pasmada en
un rincón [...]. La pregunta es, pues, cómo se puede ir más allá del
Estado y del capital.” (ibidem, p. 18)
Hipóteses instigantes, que sintetizam bem a ordem de questões às quais se
associa o esforço de reflexão desta parte do trabalho.
126
II. A forma comuna na história.
II.1) Uma matriz para pensar a comunidade-comuna.
A comuna de Paris é o marco inaugural da gestação de uma ordem social
emancipatória, superadora do capitalismo. As formas organizativas gestadas nas
barricadas de 1871 foram saudadas por seus contemporâneos e logo interpretadas e
assimiladas como parte da tradição de diferentes correntes do espectro revolucionário.
A crise aguda da dominação burguesa, culminada na guerra contra a Prússia, foi
respondida pelo proletariado parisiense com a desestruturação da máquina estatal e a
luta decidida pela construção de uma nova forma de poder, baseada na democracia
direta. Em seu programa oficial de 20 de abril, a Comuna proclamava seus dois
princípios de governo: “a gestão popular de todos os meios da vida coletiva” e “a
gratuidade de tudo que é necessário e de todos os serviços públicos”. Fundado nesses
princípios, o governo revolucionário aboliu as forças armadas e “as velhas autoridades
de tutela, criadas para oprimir o povo de Paris” e colocou em seu lugar o povo em
armas, conselheiros, magistrados e funcionários administrativos eleitos por sufrágio
universal com mandatos revogáveis e salário limitado pela média do recebido pelos
operários.
Karl Marx notou ali o gérmen sobre o qual poderia se fundar a nova sociedade,
avançando teoricamente nas concepções relativas a Estado e revolução, diante das
experiências que observava desenvolverem-se. O desenvolvimento da luta de classes na
França apontava para o esmagamento do aparato estatal, o que começava a tomar forma
com a Comuna, e não mais para sua transferência de umas mãos a outras. (MARX,
1997, p. 310)
Porém, sua análise vai além da interpretação do significado imediato da comuna
e discute sobre suas raízes:
“Em geral, as criações históricas completamente novas estão
destinadas a ser tomadas como uma reprodução de formas velhas,
e mesmo mortas, da vida social, com as quais podem ter certa
semelhança. Assim, essa nova Comuna, que vem destruir o poder
estatal moderno, foi confundida com uma reprodução das
127
comunas medievais, que precederam imediatamente esse poder
estatal e logo lhe serviram de base. O regime comunal foi
erroneamente considerado como uma tentativa de fracionar numa
federação de pequenos Estados, como sonhavam Montesquieu e
os girondinos, aquela unidade das grandes nações que, se em suas
origens foi instaurada pela violência, se converteu num poderoso
fator da produção social. O antagonismo entre a Comuna e o
poder do Estado tem sido apresentado como uma forma exagerada
da velha luta contra o excessivo centralismo.” (MARX, s/d, p. 82)
Dessa leitura, pode-se aprofundar uma reflexão sobre a dialética passado-
presente: nem as novas formas de organização social podem prescindir completamente
das relações preexistentes – o novo nasce do velho –, nem aqueles projetos que se
apresentam como a busca por um passado mítico concretizam-se dessa forma, podendo
representar, em determinados contextos, a construção efetiva das novas formas.92
Tal
abordagem permite responder com uma leitura mais complexa inúmeros movimentos
históricos intrigantes, que leituras saturadas da noção de progresso relegam a mero
arcaísmo incapaz de assimilar “valores ocidentais” e iluministas.93
Para os debates em
torno dos movimentos indígenas, vale a crítica tanto a esse “iluminismo” raso que
identifica na linguagem e nos projetos políticos dos povos originários uma ameaça
reacionária à democracia liberal, quanto a certas expressões de intransigência de alguns
intelectuais indígenas ou não-indígenas que, em nome da descolonização e da pureza da
restauração cultural, pretendem rejeitar qualquer referência externa, o que, além de
impossível, bloqueia interessantes possibilidades de diálogo.
Porém, se o Marx da Comuna já traz elementos para entender o seu potencial de
reorganização das relações sociais sobre novas bases, é o “Marx tardio” (SHANIN,
1983), alguns anos depois, quem reflete a partir da aproximação que busco estabelecer.
92
E aqui, naturalmente, não estou me referindo a manifestações de nacionalismos e comunitarismos
reacionários desde os fascismos até determinas seitas religiosas, embora mesmo essas experiências
necessariamente se desenvolvam num sentido diferente de sua pretensa restauração de relações
passadas. 93
Essa abordagem é válida para movimentos que tendem a ser desqualificados desde uma leitura liberal
ou do progresso, como os milenarismos. Importantes contribuições a esse movimento revisionista
podem ser encontradas nos trabalhos do grupo de historiadores britânicos (Eric Hobsbawm, George
Rudé, E. P. Thompson, Christopher Hill). No Brasil, pesquisas recentes aportam com releituras de
processos como o de Canudos.
128
Sua obra, que pela amplitude de temas que alcança e pelo longo período em que
foi desenvolvida não pode ser tomada como um corpo doutrinário monolítico, deixou
pistas analisar tanto a comuna “proletária”, quanto o potencial revolucionário da
comuna “tradicional”, que chamarei aqui de comunidade-comuna, na falta de um nome
melhor que as distinga. São bem conhecidos os seus comentários sobre as
consequencias da insurreição parisiense, já mencionados. Por outro lado, suas idéias
sobre o segundo caso são esboçadas nas menos difundidas considerações sobre o
contexto russo, no final da vida.
Indagado pela militante russa Vera Zasulich a partir de dúvidas que a leitura de
O Capital despertara em seu círculo, o alemão lamentou não poder se aprofundar o
necessário na resposta – o que não o impediu de esboçá-la cuidadosamente.
Contrapondo-se à visão tributária à noção de progresso que se tornaria predominante no
marxismo, conclui que
“El análisis presentado en El Capital no da, pues, razones en pro
ni en contra de la vitalidad de la comuna rural, pero el estudio
especial que de ella he hecho, y cuyos materiales he buscado en
las fuentes originales, me ha convencido de que esta comuna es el
punto de apoyo de la regeneración social en Rusia, mas para que
pueda funcionar como tal será preciso eliminar primeramente las
influencias deletéreas que la acosan por todas partes ya a
continuación asegurarle las condiciones normales para un
desarrollo espontáneo”. (MARX e ENGELS, 1980, p. 61)
Essa abordagem antecipa uma resposta à crítica de idealização, ao mesmo tempo
em que deixa clara a necessidade de observar aquela realidade com lentes distintas ao
monóculo do progresso.94
Numa passagem suprimida do texto enviado a Zasulich: “O
que põe em perigo a vida da comuna russa não é nem uma fatalidade histórica, nem uma
teoria: é a opressão pelo Estado e a exploração por capitalistas intrusos, tornados
poderosos pelo mesmo Estado às custas dos camponeses” (MARX e ENGELS, 1980, p.
94
Situando esse movimento do pensamento de Marx e Engels, José Aricó (1982, p. 132-133) chama
atenção para a diferença de critérios entre ambos, identificando no primeiro uma maior atenção aos
aspectos próprios da comunidade rural no contexto russo. A posição de Engels que estaria
representada no prefácio à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista, traduzido por Vera
Zasulich, enfatiza o desenvolvimento do capitalismo como determinante de uma inexorável
desintegração da propriedade comunal.
129
51) Temos então no pensador renano pistas para interpretar a comuna e a comunidade-
comuna como embriões de uma forma de organização pós-capitalista, inclusive pela
possibilidade de diferenciar entre dois momentos distintos (que eventualmente se
encontram): o do aparelho político que emerge como plataforma de poder dual
(Comuna de Paris, conselhos operários) e o da forma social tradicional reinventada
desde os costumes e experiências coletivas dos grupos subalternos (comunidade rural
russa).
II.2) A revolução fundamental na Rússia.
A experiência soviética foi tão atacada desde os seus primeiros momentos –
tanto desde o interior com os erros da direção bolchevique que deram margem à vitória
da burocracia stalinista, como por seus inimigos de primeira hora em todas as partes –
que hoje está pendente o trabalho por recuperar a sua justa dimensão e o que ela
representou, em seu tempo, em termos de avanço das lutas emancipatórias da
humanidade. Os sovietes, que como se sabe significa conselho, surgiram com o
movimento revolucionário de 1905, inicialmente como esforço de coordenação do
movimento grevista e logo assumindo responsabilidades de governo, diante da
imobilidade do Estado czarista. Seu surgimento também acendeu um intenso debate
entre os principais dirigentes revolucionários europeus, quanto ao seu significado para o
processo revolucionário e sua relação com a institucionalidade constituída.
O antropólogo estadunidense Eric Wolf desenvolve uma abordagem que facilita
este trabalho, com sua leitura das revoluções do século XX como “guerras
camponesas”. Tratando da Rússia, analisa o desenvolvimento da instituição rural da
mir, cujo ressurgimento após o fim da servidão ampliou os espaços de organização
autônoma e reativou os laços coletivos tradicionais do campesinato russo. Sua presença
se estendeu pela vida cultural e na correlação de forças da Rússia pré-revolucionária,
como se pôde verificar nos debates intelectuais, pela concentração de ações nos ciclos
de rebeliões de 1902 e 1905 nas regiões de maior consolidação das comunas, ou na
tentativa de reforma modernizadora de 1906, que visava o seu fim.
Así, la comuna sobrevivió a las vicisitudes del cambio, al igual que la
institución del consejo aldeano y de la aldea, un pequeño mundo
autodeterminado, basado en el consenso. Centralizada en la cima, en sus
130
bases la sociedad era un agregado de innumerables comunas aldeanas, en
muchos aspectos más allá de la influencia y la esfera de visión del
Estado. (WOLF, 1972, p. 105)
Desencadeada a revolução, esse movimento societal se relocaliza como primeiro
ponto de equilíbrio da estabilização revolucionária. Os sovietes camponeses foram
simplesmente os antigos conselhos sob nova roupagem; aos bolcheviques era
fundamental o apoio dessa base para rechaçar a aliança contra-revolucionária, por isso,
pouco fizeram e pouco poderiam fazer para mudar suas estruturas. (ibidem, p. 132-135)
John Reed, cronista privilegiado daquele processo, já notara essa relação entre as
comunidades tradicionais camponesas e as formas organizativas surgidas da revolução:
“Antes de la revolución había más de veinte millones de miembros en sociedades
cooperativas en Rusia. Esta es una forma muy natural para los rusos, por su parecido
con la primitiva cooperación de vida rural de Rusia durante siglos.” (REED, 2000)
O comunista catalão Andreu Nin publicou em 1932 um interessante estudo sobre
os sovietes. No seu ponto de vista de então, “Para los obreros y campesinos españoles el
problema de los Soviets adquiere un carácter eminentemente práctico, puesto que sin la
creación de los mismo o de otros organismos análogos, su victoria será imposible.” Nin
destaca o surgimento e evolução espontâneos desses organismos, bem como sua rápida
difusão pelo amplo território russo. Sua forma, tamanho, alcance, funções, grau de
complexidade ou simplificação variavam de acordo com a região em que se formava e o
momento da luta. Ainda em 1905, se destacaram os sovietes de Petrogrado, Moscou e
Sibéria, pelo poder que conseguiram concentrar, mas não foram poucos os casos em que
ferrovias, comunicações, imprensa e as diversas funções públicas de determinada região
estiveram controladas por conselhos de operários, camponeses e soldados. Em Moscou,
se estabeleceram conselhos nas barricadas, nos três territórios mencionados formaram-
se milícias a seu cargo. Porém, citando Lenin, lembra que sua força não advinha das
armas, do dinheiro, ou da institucionalidade vigente, da participação ativa e consciente
da imensa maioria da população. Quanto à composição, define: “Los Soviets son
creados únicamente por las clases revolucionarias (obreros, campesinos, empleados); se
constituyen, no de acuerdo con la ley, sino por la vía revolucionaria, por la actividad
directa de las masas explotadas, y se transforman en instrumentos de la insurrección y
131
en el embrión del futuro Poder proletario. En realidad, son ya un Poder, la dictadura del
proletariado en germen.”95
(NIN, 2006)
Nin analisa detalhadamente a forma comuna no processo russo entre 1905 e
1917, detendo-se em aspectos como a relação conflituosa com os partidos operários, as
particularidades locais, sua estrutura e funcionamento ou sua difusão pelo interior do
país. Anos mais tarde, o dirigente do POUM, se veria desafiado a dar respostas no
decorrer do conturbado processo espanhol. Alguns dias antes de ser “desaparecido” por
agentes stalinistas, respondia às duras críticas recebidas de Trotsky, diferenciando a
experiência russa da realidade espanhola, cujo desenrolar se complexificara com a
conjunção do processo revolucionário com a luta antifascista, o papel desempenhado
pelas forças da Frente Popular, as agressões do Partido Comunista, as inconsistências na
política da CNT, a dificuldade em consolidar organismos alternativos de poder, a
avaliação da inexistência de uma dualidade de poderes. Diante do quadro que se
colocara e em momentos diferentes do processo espanhol, Nin se deteve sobre o
problema do poder revolucionário trazendo outros aportes para o problema, enfatizando
a necessidade de unificação dos revolucionários, o papel do sindicalismo revolucionário
e os desafios de um governo de composição policlassista. (NIN, 2002)
II.3) A revolução espanhola e a difusão da comuna.
Na revolução espanhola, não obstante o fato de estar espremida em um contexto
violentamente desfavorável que seria determinante para o seu desenlace trágico,
particularmente durante os primeiros meses floresceram milícias, conselhos, comitês,
em boa parte inspiradas pelos anarquistas, que se dividiam nas tarefas do combate aos
franquistas, manutenção da ordem em zonas republicanas, distribuição da terra,
coordenação da produção industrial. Tendo em Barcelona o “bastião da Espanha
soviética” e exemplos como a épica defesa de Madri, a experiência republicana gerou
autênticas expressões de poder comunal, em tensão permanente com o governo da
Frente Popular. (BROUÉ; TÉMINE, 1989, p. 133)
Nessa experiência extremamente complexa e trágica, o confronto de
territorialidades não se resumiu à disputa decorrente da guerra entre república e
95
Ao final, nenhum dos setores foi capaz de equalizar o problema do poder, dividido entre o governo da
Frente Popular e organismos de poder revolucionário e disputado pelos diversos grupos de esquerda
(comunistas, anarquistas, socialistas, liberais, POUM), em meio à guerra civil contra as tropas de
Franco.
132
restauração monárquica. Dentro do campo republicano contrapunham-se o esforço de
reordenamento do governo legítimo ao impulso pela base de construção de formas
autogestionárias em meio à guerra.
A particularidade da experiência espanhola está em ter sido a mais difundida e
“nacionalizada”, expressando-se tanto como instrumento político-militar de mobilização
generalizada (defesa de Madri e Catalunha), quanto na forma embrionária de um novo
tipo de organização social, especialmente nas regiões controladas pelos anarquistas e
pelo POUM (p. ex.: Aragón, Andaluzia, Barcelona, Levante, Valencia).
Diego Abad Santillan (1980) propôs-se a sistematizar, desde a tradição
anarquista e criticando a tendência ao localismo e à dispersão, o organismo econômico
da revolução, baseado em uma estrutura nacional de conselhos. Nesse sistema, cujo
interesse reside em ter sido inspirado nas particularidades do processo espanhol no calor
da guerra, o controle da produção e circulação de todos os ramos da economia atende
aos princípios do federalismo desdobrados na coordenação dessas diferentes unidades,
estruturando-se a partir dos conselhos de fábrica, aos quais se sucederiam os conselhos
de ramo e os regionais, até se agruparem na instância maior de coordenação, o Conselho
Federal de Economia.
II.4) Um esboço de síntese teórica da comuna no contexto europeu.
Se na década de 1930 a burguesia européia lançou mão do fascismo para afogar
em sangue as experiências revolucionárias que se acumulavam, o período anterior foi
rico em experiências conselhistas. Inspirados pelos furacões revolucionários da Rússia e
pela grave crise derivada da guerra, as massas de operários e camponeses europeus
espalharam por países como Itália, Alemanha, Ucrânia, Áustria e Hungria organismos
que se assemelhavam em maior ou menor medida dos sovietes russos.
Influenciados por esses processos, diversos intelectuais e militantes
revolucionários assimilaram os princípios da comuna como elemento fundamental do
projeto de emancipação da humanidade. Destacam-se nessa linha as reflexões dos
alemães Karl Korsch e Paul Mattick, os holandeses Anton Pannekoek e Herman Gorter,
os italianos Amadeo Bordiga, Antonio Gramsci. A polonesa Rosa Luxemburgo, com
seu conhecido e muitas vezes mal compreendido reconhecimento da ação espontânea
133
das massas,96 também pode ser lida nessa tendência que questiona o inchaço do partido
e do Estado no processo revolucionário, enfatiza a ação consciente e autônoma da
massa popular como um imperativo para a construção da nova sociedade e sugere uma
valorização, mesmo que indireta, das tradições populares no processo de
enfrentamento.97
Desse debate, podemos extrair alguns elementos gerais para uma reflexão crítica
sobre o Estado e as relações de poder na sociedade capitalista, bem como os
instrumentos e as vias de sua superação. Se considerarmos pendente a construção de um
autêntico projeto emancipatório, não podemos prescindir dos ricos aportes dessas
experiências, obviamente sem deixar de realizar as devidas mediações.
Na releitura esboçada aqui, a comuna aparece como alternativa de poder em
contextos de crise revolucionária, mas se expressa também como forma social pré-
capitalista que sobrevive tensamente à imposição das relações mercantis, com o
potencial de ser recriada no patamar de superação dessas relações. O modo político de
organização e ação aparece como um momento distinto (mas não antagônico) da forma
social pré-capitalista e pré-Estado moderno, da qual eventualmente descende, podendo
esta última servir de infra-estrutura subjetiva para superar o capitalismo.
As hipóteses que orientam estas reflexões não se referem a um projeto utópico,
mas à reinvenção e reapropriação de formas de vida. A história do capitalismo é história
da imposição da forma mercadoria (bem como do Estado moderno centralizado) sobre a
dissolução de formas sociais comunais “naturais”; o comunismo é então a reconstrução
dessas relações em outro patamar. Por isso se compreende a difusão da comunidade-
comuna por zonas atrasadas da Europa (Espanha, Rússia, leste), expressando uma
dimensão do desenvolvimento desigual na qual as tradições dos de baixo se afirmam
como um anteparo aos dilúvios do capital.
O que permite essa dinâmica está relacionado com o acionar dos grupos
subalternos. Já indiquei que tradição e consciência são dois elementos que interagem
nesses processos sociais como uma força criadora. Walter Benjamin traduz, entre
trágico e utópico, a história como um campo fundamental do embate de classes.98
96 Afinal, o que é o “espontaneísmo” senão a emergência mais ou menos consciente de tradições e
experiências compartilhadas por determinado coletivo? 97 Vale lembrar, não sem alguma ironia, que em seu panfleto escrito em 1920, Esquerdismo, doença
infantil do comunismo, com que pretendia erigir o caso russo em modelo de revolução, Lenin oferece
um mapa de interessantes contribuições sobre o tema. 98 As referências das teses sobre a filosofia da história de Walter Benjamin foram retiradas de LÖWY,
2005.
134
Enquanto o anjo da história olha para trás, impelido violentamente pela tempestade do
progresso, o alemão nos lembra que tanto opressores como oprimidos contemporâneos
carregam a herança de seus antepassados. O chamado ao acerto de contas é, portanto,
permanente, colocando-se também a possibilidade da perpetuação do “...cortejo de
triunfo que conduz os dominantes de hoje por cima dos que, hoje, jazem por terra.”
(Tese VII)
Nesse embate, Benjamin mobiliza um instrumental teórico alheio ao marxismo
para recuperar o impulso capaz de contrapor os oprimidos à barbárie capitalista. Tal
impulso surge necessariamente distante da ideologia positivista do progresso, que
aparece na forma da tempestade avassaladora sobre o anjo da história (Tese IX) e que é
até hoje saudada por socialistas, social-democratas e liberais. O filósofo alemão luta
para que o materialismo histórico ganhe vida, evitando que ele se torne um autômato e,
para isso, se apóia na “pequena e feia” teologia. (Tese I) Seu compromisso com os
explorados dá vazão a uma formulação que, para além do seu lirismo barroco, assume a
perspectiva dos oprimidos, traduzindo-a para sua própria linguagem, atingindo dessa
forma sua dimensão radicalmente autônoma e anticolonialista. É esse compromisso que
permite lançar-se à defesa apaixonada da necessidade de que as classes subalternas
recuperem a sua história, suas tradições, sua “fraca força messiânica” (Tese II), com a
certeza de que “os dominantes de turno”, os mesmos que seguem a marcha do
progresso, “são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram” (Tese VII);
enquanto do outro lado, a luta dos trabalhadores se nutre da visão dos ancestrais
escravizados (Tese XII).
Mas seu impulso não surge apenas do passado. Pelas situações observadas, a
comuna pode ser entendida como um híbrido entre tradições mais profundas e demanda
de respostas às novas situações da opressão capitalista, o encontro da cultura camponês-
plebéia com a proletarização.
III. Abya Yala: da comunidade à comuna?
O que vimos até agora permite esboçar uma aproximação desde Abya Yala,
pensando a comuna a partir de sua vigência histórica até suas manifestações nas lutas
sociais contemporâneas.
135
III.1) A comunidade originária em Abya Yala
O tema da comunidade indígena-camponesa já foi abordado desde as mais
distintas perspectivas, mas sua presença histórica continua a ser um ponto de
interrogação na teoria social, apesar da centralidade da vida comunitária em amplos
territórios e por períodos tão extensos. Na perspectiva que venho trabalhando, boa parte
dessa dificuldade se deve à distorção metodológica que orienta a tentativa de tentar
compreender Abya Yala a partir da aplicação ou do “teste” de conceitos construídos
para a análise de outros contextos particulares.
Roger Bartra identificou uma falta de clareza, “em termos de uma concepção
histórica objetiva”, quanto às peculiaridades da sociedade mesoamericana pré-Colombo.
(1978, p. 159) Nem feudal nem escravista, combinando um tipo de diferenciação
classista – consolidada em aparato estatal – com a propriedade coletiva, a formação
social mexica99
apresenta uma mescla de traços “primitivos” e “civilizados” que
motivou por um longo tempo polêmicas intensas e confusões variadas. A proposta do
referido autor para tentar captar a lógica dessa estrutura híbrida é adotar o conceito de
modo de produção tributário. Sua aplicação é explicada por tornar-se inviável o uso do
conceito marxista de “modo de produção asiático” ao referir-se a outras regiões, bem
como por que o tributo seria o eixo da relação classista entre comunidade aldeã e
Estado. (ibidem, p. 160)
Luis Vitale considera o “modo de produção asiático” um termo improvisado em
um rascunho, inconcluso nos conceitos que apresenta. Revisando as alternativas
derivadas dessa proposta, o historiador chileno assinala a recorrência de uma confusão
teórica derivada da ênfase no papel do Estado e propõe como ponto de partida para o
estudo das sociedades americanas o modo de produção comunal. Observa-se aí, antes,
portanto, da formação das sociedades incaica e asteca, o surgimento da comunidade
originária em Abya Yala. Atestar o caráter coletivo da propriedade e da produção, a
partir da centralidade da comunidade, não implica uma idealização de um “comunismo
primitivo”, mas em reconhecer que ambas se organizavam nesse âmbito, transcendendo
o círculo familiar:
99
Que nesse nível de descrição mais genérico se assemelha ao Tawantisuyu.
136
“La unidad doméstica no era autónoma o autosuficiente, sino que
dependía de la comunidad, tanto en lo relacionado con la posesión de la
tierra como en la producción de cultivos comunes y, sobre todo, en la
redistribución del sobreproducto social. La familia destinaba alguno de
sus miembros para las labores generales de la comunidad, como el
regadío, desecación de pantanos, construcción de acequias, roturación de
tierras, etc. El excedente no era apropiado de manera particular por cada
familia sino por la comunidad, la cual lo destinaba a un fondo común de
reserva que se utilizaba en caso de sequía y también para el ceremonial y
obras de bien público. De este modo, se garantizaba la reproducción del
modo de producción comunal.” (VITALE, 1991)
Por outro lado, essa não é uma definição isenta e reconhece naquela organização
social algum nível de reflexão do conceito comunista moderno de cada qual segundo
sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades como uma dimensão concreta
das comunidades originárias. 100
“Si se entiende este concepto en un sentido no economicista, es decir, no
de dar y recibir sólo bienes materiales, sino en un sentido más amplio,
cultural y de fraternidad igualitaria, entonces podríamos pensar acerca de
que las comunidades agrícolas aborígenes daban según su capacidad, sin
ajustarse a reglas ni horarios, con alegría en un trabajo cuyo producto
sabían que no era ajeno, y recibían de parte de la comunidad según sus
necesidades. Se sabe que parte del sobreproducto social se redistribuía a
los más necesitados y que los jóvenes cultivaban las parcelas de los
ancianos.” (VITALE, 1991)
100
Um interessante diálogo com esta perspectiva pode ser desenvolvido a partir dos ensaios dos
antropólogos Pierre Clastres (1990) e Marshall Sahlins (1978) e a releitura despida de preconceitos
“civilizados” dos aspectos políticos e econômicos das sociedades primitivas.
137
O progressivo e lento surgimento de estruturas políticas centralizadas a nível
local dá origem a sociedades de transição,101
até que incas e astecas reuniram as
condições de centralização do poder como um exército permanente, uma organização
territorial estável, capacidade de subjugar e integrar etnias através de trabalhos forçados
e tributos, uma classe dominante capaz de sustentar sua legitimidade para controlar e
redistribuir grandes excedentes a seu cargo. (VITALE, 1991, Cap. II) Esse processo de
centralização consolidava a transição a sociedades que Vitale caracteriza como
protoclassistas e, completando as análises de Bartra – entre outros –, baseadas em um
modo de produção chamado comunal-tributario. (ibidem, Cap. III)
O interessante dessa caracterização é que, buscando uma precisão conceitual
correspondente à base produtiva daquelas sociedades, chega à vida comunitária como
elemento fundamental e distintivo das sociedades originárias de Abya Yala. Uma
proposta que ademais sustenta sua pertinência no fato de que o sistema tributário tenha
sido destruído pela conquista européia,102
mas comunidade não; é ela que se imbrica
com os modos de produção que, mais do que se suceder, entrecruzam-se na paisagem
do continente, até chegar ao capitalismo como modo predominante. Nesse sentido, a
comunidade indígena, seja na forma do ayllu andino, seja através dos calpulli-ejidos
mesoamericanos acumula a memória larga da sobreposição de tempos históricos desde
as civilizações pré-conquista, passando pela colônia, república, reformas agrárias,
modernizações liberais pelo alto. Processos que quase invariavelmente decretaram a
extinção da comunidade originária, sem que suas instituições tivessem essa capacidade
de sobrevivência.
“Que el ayllu esté incrustado en el presente, como tantas otras
instituciones tradicionales, incrustadas en la modernidad tardía, hace que
este estar presente se convierta en una interpelación de la concepción
moderna del tiempo, de sus prácticas productivas y de consumo, de su
racionalidad instrumental. Esta concepción modernista de la historia es
lineal y groseramente evolutiva, entendiendo la evolución como
progreso. La modernidad, fuera de ser una experiencia intensiva de la
vertiginosidad, de la versatilidad y de la frugalidad del acontecer, es
101
Das quais podem ser mencionadas como exemplo as sociedades Olmeca, Maya, Teotihuacan, Tolteca
em Mesoamérica e Chavín, Mochica, Nazca, Tiahuanaco, Huari nos Andes. 102
Embora mesmo deste tenham subsistido algumas instituições durante a colônia e até a era republicana.
138
también una representación colectiva, una creencia social; es decir, un
prejuicio compartido.” (PRADA, 2008, p.65)
III.2) A chave andina para a síntese teórica da experiência da comuna em Abya Yala
Uma síntese precoce do tema que trato aqui aparece no pensamento de
Mariátegui. Nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, desenvolve uma
breve revisão crítica dos enfoques que a questão indígena recebera até então, que iam
desde as abordagens administrativas, jurídicas ou eclesiásticas, até as medidas policiais
ou educativas, sempre eludindo da análise econômico social. (Mariátegui, 1975, p. 21)
Assim, seu autor se insere no debate corrente na década de 1920, explicitando
qual seria um enfoque marxista original, atento às particularidades do continente e
aberto a influências externas, como a admiração declarada por Manuel Gonzalez Prada.
É a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí decorrentes que
possibilita compreender a situação dos povos indígenas e propor um programa de sua
emancipação. O exemplo mais dramático da ineficiência de soluções unilaterais é a
própria independência que igualou todos juridicamente na condição de cidadãos e
empreendeu a modernização do Estado, elaborando uma nova legislação que explicitava
preocupação com a população indígena, mas ao fim atendeu unicamente aos interesses
dos setores dominantes. Manteve a condição das massas indígenas pouco alterada e em
alguns momentos até pior, pois acrescentou à antiga estrutura agrária a superexploração
capitalista, o avanço mercantil sobre as terras comunais e a reedição de impostos e
tributos do período colonial. Diante desse quadro, de maneira objetiva, conclui
Mariátegui: “O novo enquadramento consiste em pesquisar o problema indígena no
problema da terra”. (ibidem, p. 28)
Por isso, os três primeiros ensaios de sua obra fundamental, nos quais ele estuda
o “Esquema da evolução econômica”, o “Problema do índio” e o “Problema da terra”,
articulam-se dialeticamente. No primeiro, Mariátegui analisa o desenvolvimento da
economia do Peru, destacando os aspectos básicos dos períodos colonial e republicano.
Logo na abertura do texto, observa que a conquista espanhola representou uma ruptura
na história do país. “Até a Conquista, desenvolveu-se no Peru uma economia que
brotava espontânea e livremente do solo e do povo peruanos”. (ibidem, p. 3) Uma
economia que se desenvolvia com afluência foi destruída e substituída por um sistema
139
de exploração e atraso. “Sobre as ruínas e os resíduos de uma economia socialista,
lançaram as bases de uma economia feudal”. (ibidem, p. 4)
Essa análise recebeu muitas críticas, pelas informações imprecisas em que se
baseava. De fato, podemos dizer que esse seria uma debilidade em termos de uma
pesquisa acadêmica. Hoje, este é em geral reconhecido como um Estado aristocrático e
expansionista e ainda que sua natureza ainda seja motivo de controvérsia,103
é inegável
que a idéia de socialismo construída após a Revolução Francesa dificilmente seria
adequada à estrutura dessa sociedade. No entanto, para Mariátegui, o essencial não é
reconstituir o funcionamento do Império Inca por algum método histórico-científico.104
Na sua perspectiva, inclusive na forma como entende a história, muito
influenciada pelo combate ao positivismo dominante, o que importa é como os povos
originários atuais interpretam e absorvem o passado incaico e como os ayllus se
organizam e se inserem na sociedade contemporânea. Isso porque seu interesse não é
acadêmico e sua proposta não é o retorno a esse passado, mas o aproveitamento de
elementos potenciais na construção do socialismo, seu objetivo estratégico. Daí a
centralidade do conceito de “mito”, que cumpriria o papel de catalisador das
mobilizações e da construção do projeto socialista. É evidente a impossibilidade de
voltar atrás a roda da história, além da inconveniência de abrir mão das técnicas e das
ideologias modernas.
Em uma extensa nota na qual defende o emprego do conceito de “comunismo
incaico”, o amauta peruano adverte enfaticamente que
“O comunismo moderno é uma coisa diferente do comunismo incaico.
Isto é, a primeira coisa que deve entender o estudioso que explora o
Tawantisuyu. Um e outro comunismo são produto de diferentes
experiências humanas. Pertencem a diferentes épocas históricas.
Constituem a elaboração de civilizações dessemelhantes. A dos incas foi
uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial.
Naquela, o homem submetia-se à natureza. Nesta, a natureza se submete,
às vezes, ao homem. É absurdo, portanto, confrontar as formas e as
103
Esse é um tema que se presta a anacronismos e avaliações preconceituosas, em função de leituras
apressadas ou de puro eurocentrismo. Para mencionar apenas um exemplo, vale citar a advertência de
Rostworowski (1999, p. 19) quanto à inadequação do termo Império para referir-se ao incário. 104
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo „como ele de fato foi‟. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” (Benajmin in:
LÖWY, 2005, p. 65)
140
instituições de um e outro comunismo. O único que podemos confrontar
é a sua incorpórea semelhança essencial, dentro da diferença essencial e
material de tempo e espaço. E para esta confrontação é necessário um
certo relativismo histórico”. (MARIÁTEGUI, 1975, p. 54)
E mais à frente, respondendo à acusação de autocrático ao regime dos Incas,
argumenta: “A autocracia e o comunismo são incompatíveis em nossa época; mas não o
foram em sociedades primitivas. Nos dias atuais, uma nova ordem não pode renunciar a
nenhum dos progressos morais da sociedade moderna. O socialismo contemporâneo –
outras épocas tiveram outros tipos de socialismo, que a história designa com nomes
diversos – é a antítese do liberalismo; mas nasce de suas entranhas e nutre-se da sua
experiência. Não rejeita nenhuma de suas conquistas intelectuais. Escarnece e vilipendia
apenas suas limitações.” (ibidem, p. 54-55)
Entretanto, se o problema do índio é o problema da terra, a sobrevivência da
comunidade camponesa não é alardeada como registro idílico de um passado idealizado,
mas interpretada no contexto geral da sociedade andina. E nesse ponto se destaca e a
identificação de três regimes econômicos que se sobrepõem. Na serra, os resquícios das
comunidades incaicas sobrevivem sob o que ele chama de regime feudal. No litoral, o
capitalismo se insere sem formar uma burguesia forte. Mariátegui aponta a inexistência
de uma burguesia peruana capaz de liderar a revolução antifeudal. Por outro lado, ao
analisar a realidade peruana não encontra o proletariado do qual falava Marx. Isso não o
impede de defender o socialismo como alternativa ao atraso colonial de seu país e à
opressão histórica dos indígenas. A solução da questão agrária, a emancipação dos
índios e a revolução socialista, além do próprio processo de formação da nação se unem
em um só processo. Enquanto isso, a APRA de Haya de la Torre e o comunismo oficial
a partir dos anos 1930 partem de premissas opostas para chegar às mesmas conclusões.
Para ambos, os resquícios feudais e a industrialização incipiente no continente
colocavam a tarefa prioritária de uma revolução antifeudal, antiimperialista e
democrática, dirigida pelas burguesias locais. (LÖWY, 1999)
No documento enviado à reunião de partidos comunistas do continente em 1929,
o programa mariateguiano é sistematizado. (MARIÁTEGUI, 1982) Após uma breve
introdução onde coloca a questão nos termos já apresentados nos Sete ensaios, o
documento analisa o conceito de “raça”, numa perspectiva que supera as teorias racistas
do século XIX. Em seguida, relaciona o aumento da exploração capitalista com os
141
conflitos raciais. Em sua análise sobre os países andinos, articula as reivindicações
indígenas com as demandas gerais da população, já que compõem sua maioria. Suas
observações levam em conta as nuances de se trabalhar com o intercruzamento entre os
fatores raça e classe.
Preocupado com questões “técnicas” da possibilidade de penetração da
propaganda socialista nas comunidades, Mariátegui indica a necessidade de preparar
agitadores indígenas, a partir do contato com o proletariado e os sindicatos urbanos.
Analisa de forma sintética a situação dos povos originários no Peru e faz alguns
apontamentos sobre os demais países do continente, quando cai em algumas
imprecisões. Sobre México e Guatemala, afirma que o problema foi resolvido com a
incorporação à vida nacional, o que é negado pelos processos mais recentes. No Brasil,
aparentemente (mal) informado pelo delegado deste país, afirma não existir questão
racial em relação ao negro. Porém, ao apontar o caráter da luta dos indígenas, o autor do
documento lembra o seu potencial revolucionário no México e se detém novamente
sobre o caso peruano, destacando a combatividade e o número de insurreições dos
povos originários nesse país.
Ao enumerar as propostas e tarefas sobre o tema, recusa a idéia de solução da
questão indígena pela constituição de um Estado autônomo. Essa proposta, defendida
pelos delegados alinhados à III Internacional com base na tese da autodeterminação dos
povos, não daria na sua visão origem a um Estado socialista, mas burguês. A tarefa
básica portanto seria desenvolver um movimento de reivindicações classistas,
priorizando a reivindicação básica da terra, fundamentando a luta na resistência dos
ayllus e pautando outros elementos, como liberdade de organização, supressão do
enganche, aumento de salários, jornada de oito horas.
Contra as dificuldades da propaganda dentro das haciendas, deve-se confiar no
aumento do tráfego, mobilizando operários do transporte. Esse intercâmbio com os
sindicatos urbanos é fundamental no desenvolvimento da consciência e na garantia do
sucesso de uma educação socialista. Devido à desconfiança em relação ao branco e ao
mestiço, dificuldade da língua, é essencial a formação de militantes vindos das
comunidades. Para isso, destaca a importância do desenvolvimento do trabalho entre os
mineiros bolivianos e peruanos, entre os quais o contingente de indígenas é
significativo. E aposta no seu sucesso com palavras que parecem antecipar os processos
atuais, mesmo que em termos distintos: “Uma consciência revolucionária indígena
tardará talvez a formar-se, mas, quando o índio tiver feito sua a idéia socialista, ele a
142
servirá com disciplina, tenacidade e força que poucos proletários de outros meios
poderão superar”. (ibidem, p. 74)
Em seguida, enumera as reivindicações básicas em três pontos que buscam tocar
no fundamental da situação dos trabalhadores indígenas e negros: 1) Expropriação da
terra, sem indenização; 2) formação de organizações camponesas específicas
(sindicatos, ligas camponesas, blocos operários), ligadas, “sem preconceitos raciais”, às
organizações urbanas, com reivindicações comuns entre o proletariado e o campesinato
negro e indígena e armamento para a defesa das conquistas; 3) revogação das leis que
pesavam especificamente sobre os negros e os povos originários: “sistemas feudais
escravistas”, recrutamento militar, o tributo conscripción vial.
Por fim, defende o potencial socialista das comunidades, assim como das
grandes empresas agrícolas, delimitando de que forma esse potencial é visto:
“Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se presta ao livre
ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de suas forças e
espírito nativos, não significa em absoluto uma romântica e anti-histórica
tendência de reconstrução ou ressurreição do socialismo incaico, que
correspondeu a condições históricas completamente superadas e do qual
somente restam, como fator aproveitável dentro de uma técnica de
produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo
dos camponeses indígenas. O socialismo pressupõe a técnica, a ciência, a
etapa capitalista; e não pode admitir o menor retrocesso na aquisição das
conquistas da civilização moderna, senão, pelo contrário, a máxima e
metódica aceleração da incorporação destas conquistas à vida nacional...”
(ibidem, p. 78)
Desta forma, é interessantes atentar às analogias entre a análise mariateguiana e
o debate sobre a especificidade russa no quadro europeu. Nos Sete ensaios, são feitas
menções ao histórico russo, o que mostra algum conhecimento sobre o tema. Ao referir-
se ao indigenismo literário, compara-o ao “mujikismo” pré-revolucionário russo.
(MARIÁTEGUI, 1975, p. 31) Examinando a comunidade durante o período colonial,
compara a mir russa ao ayllu andino, para observar a forma como o regime senhorial, a
que ele chama feudalismo, descaracteriza-os, tornando-os funcionais à exploração dos
camponeses e como o latifúndio avança vorazmente sobre a propriedade comum.
143
(ibidem, p. 44) Ao analisar a relação entre a comunidade e o latifúndio no período
republicano, novamente compara com a realidade russa, para defender a
improdutividade da grande propriedade. (ibidem, p. 60)
Portanto, entendo que a principal contribuição teórica de Mariátegui está em
extrair do método marxista, de forma coerente e original, as ferramentas para conceber
uma via socialista para Peru. Isso, apesar de algumas imprecisões conceituais como o
emprego do termo “feudal” para essa formação social ou as poucas informações
disponíveis sobre o passado incaico. Ao analisar as estruturas e o processo histórico de
seu país, tornou a teoria um instrumento útil para a interpretação e ação revolucionárias
e não seguiu a tendência dominante de tentar adaptar a realidade a uma teoria universal
pré-concebida. Com isso, sua obra se destaca na trajetória do pensamento social de
Nossa América e serve como um interessante ponto de partida para pensar o tema da
comuna indígena como base para a construção de poderes populares desde um
enquadramento mais amplo. Pois, se por um lado é mister uma reflexão atualizada, que
leve em conta as transformações ao longo do século e o acúmulo teórico-prático das
experiências mais recentes, por outro lado pode ser enriquecedor o diálogo com uma
contribuição prévia de elementos tão profícuos.
III.3) Os movimentos societais contemporâneos e o ressurgimento da comuna: da
resistência à revolução?
Um aspecto fundamental da emergência política dos povos originários de Abya
Yala é a presença da comunidade como sua articuladora. Mais importante do que as
organizações formais dos movimentos sociais; expressa o núcleo integrador do que
estamos chamando sociedades em movimento. Essa possibilidade independe de sua
manutenção em condições associadas (equivocadamente) à estabilidade da paisagem
rural
“Los desplazamientos de las poblaciones a trabajar a lugares muy
distantes, nos conducirán a la necesidad de estudios que den cuenta de la
manera cómo esos campesinos se insertan de manera deslocalizada en la
modernidad y mantienen en su comunidad un espacio de reserva, de
acogida, de culto, o simplemente de carácter ceremonial y festivo.”
(BENGOA, 2003, p. 61)
144
Na verdade, a situação é ainda mais complexa. Essa inserção não é exatamente
“deslocalizada”, mas reterritorializada a partir de processos de intensas transformações.
A comunidade é então mais recriada do que preservada diante de situações tão extremas
como as migrações, os processos de modernização no campo, as lutas por reforma
agrária.
Na perspectiva que venho defendendo, esse padrão de mobilização comporta o
potencial de uma forma de organização pós-capitalista e pós-estatal. Uma democracia
plebéia cuja possibilidade não é nem imediata, nem utópica, sendo prefigurada no
cotidiano de sobrevivência e resistência, do qual destaco algumas experiências recentes.
III.4) Bases para uma democracia comunitária no altiplano andino
Se for possível encontrar um fio condutor no multifacético ciclo de rebeliões,
este é um papel desempenhado pelo ayllu.
“El ayllu como forma de organización social, económica y política es
hoy en día la muestra de la persistencia y vigencia de los pueblos
indígenas; a pesar de los esfuerzos realizados por parte del Estado
primero colonial, después republicano, y hoy con la imposición de la
forzosa sindicalización y el neoliberalismo basado en la privatización, el
ayllu logró mantenerse de manera silenciosa hasta nuestros días.”
(CHOQUE, 2000, p. 16-17)
O trabalho consciente e sistemático de intelectuais aimarás junto a organizações
de base, de reconstituição étnica a partir da comunidade altiplânica, possibilitou que
esta emergisse como uma possibilidade de desestruturação do colonialismo e
concretização do plurinacionalismo sobre novas bases institucionais.
Esse movimento não resultou em uma estratégia explicitamente definida
unitariamente de afirmação de uma democracia comunitária, mas em um amplo
processo de revalorização das autoridades tradicionais (mallkus, jilaqatas e alcaldes
comunais) e difusão por diferentes instâncias da sociedade de princípios organizativos
do ayllu: a concepção de cargos de autoridade como serviços comunitários; o privilégio
145
à busca pelo consenso; a assembléia como fórum de deliberação, indissociável da vida
cotidiana, pelo que se ocupa dos mais diversos assuntos e não apenas os estritamente
políticos; motivo também para que os momentos de reunião sejam aproveitados para
trabalhos coletivos (minga), cultos religiosos, eventos esportivos etc.
A visibilização desse processo de reconstituição do ayllu ocorre a partir do ciclo
insurgente iniciado em setembro-outubro de 2000, quando se produz uma quebra na
dominação étnica e na exploração econômica que serviam de fundamentos do Estado
boliviano. A sucessão de levantes indígenas-populares “beligerantes e territorializados”,
além de desnudar o discurso do poder, traz à tona os mecanismos de organização
sociopolítica derivados da interpelação dos povos originários em movimento, ou seja,
reconstruindo os laços comunitários na dinâmica das lutas contra o colonialismo do
capital e do intercâmbio com setores não-indígenas. (MAMANI, 2006, p. 89)
Tal dinâmica se reflete na comuna de El Alto, nos cabildos de Cochabamba, nos
levantes de ayllus das províncias de La Paz, Oruro, Cochabamba e Potosí, interagindo
ainda com os movimentos indígenas amazônicos e de terras baixas. Uma convergência
de movimentos, ou melhor, de sociedades em movimento, cuja irrupção na cena pública
as interpõe como “sociedades contra o Estado”, dispersando o poder para o âmbito
comunitário. (ZIBECHI, 2006, p. 105)
As formas de concretização desse poder são ainda tema de debate, pois se
referem a experiências ainda em gestação. Zibechi fala da dispersão do poder, para a
qual considera necessário dispersar o Estado, sem que se crie outro em seu lugar, pelo
que se refere sempre à possibilidade de um “Estado” aimara, entre aspas. O sociólogo
aimara Pablo Mamani vislumbra essa possibilidade na forma de microgovernos
barriais, “experiências sociais territorializadas” enquanto práxis, que se consolidam
como espaços de decisão e ação coletivas, portadores de uma nova racionalidade
sociopolítica. Uma experiência organizativa coletiva fundada no manejo do espaço e do
tempo urbanos em profunda interrelação com espaços e tempos rurais. (MAMANI,
2006, p. 92-93) Para García Linera (antes do envolvimento direto no centro dos espaços
de gestão do poder estatal), o formato do Estado monoorganizativo não comporta as
múltiplas matrizes civilizacionais presentes na sociedade boliviana.
“Esto significa que en el ámbito de los poderes legislativo, judicial y
ejecutivo, aparte de distribuir proporcionalmente su administración
146
unitaria general y territorial en función de la procedencia étnica y
lingüística, las formas de gestión, representación y de intervención social
deberían incorporar múltiples mecanismos políticos compuestos, como la
democracia representativa, vía partidos, la democracia deliberativa, vía
asambleas, la democracia comunal vía acción normativa de comunidades
y ayllus, etc. De lo que se trata entonces sería de componer a escala
macro, general, instituciones modernas con instituciones tradicionales,
representación multicultural con representación general en
correspondencia a la realidad multicultural y multicivilizatoria de la
sociedad boliviana. En otras palabras, se trata de buscar una modernidad
política a partir de lo que en realidad somos, y no simulando lo que nunca
seremos ni podremos ser.” (LINERA, 2004)
III.5) EZLN e os caminhos da autonomia
A autonomia, eixo do acionar zapatista, é construída como um processo.
Afirmada como objetivo estratégico desde as primeiras manifestações públicas, as
formas que ela passou a assumir foram resultado tanto do acúmulo político endógeno
das comunidades quanto dos diálogos e embates com agentes externos. Nessa trajetória,
fixada desde o início no princípio do mandar obedecendo, a proposta dos Caracoles
aparece como um momento de viragem na construção da autonomia, uma superação que
assimila experiências anteriores.
A constituição, num primeiro momento, dos “municípios autônomos” já se
baseava em instituições comunitárias de democracia direta, com a eleição de
autoridades locais e delegados sob mandatos imperativos e revogáveis. Articulados em
instâncias maiores, inicialmente chamadas Aguascalientes, os municípios buscavam
encarar as contradições internas, fortalecendo os laços de solidariedade entre
comunidades de etnias distintas. Em 2003, uma série de comunicados anuncia
mudanças nas estruturas organizativas dos territórios rebeldes, visando, entre outros
objetivos, dissociar as funções relativas à organização militar de possíveis interferências
nos níveis de autogoverno comunitário. Ademais, diante da falência dos Acordos de San
Andrés, as bases zapatistas deliberam pelo aprofundamento imediato da autonomia,
representado desde então pelos Caracoles.
147
“La dimensión y profundidad que alcanza el nuevo proyecto zapatista
corresponde a la capacidad que ha mostrado este movimiento para
redefinir su proyecto rebelde en los hechos y también en los conceptos,
manteniendo al mismo tiempo sus objetivos fundamentales de un mundo
con democracia, libertad y justicia para todos.” (CASANOVA, 2003)
Assim, entendo que a sintonia fina na análise do zapatismo está em compreender
a processualidade de suas formas políticas e de seus conceitos, coadunados a
determinados princípios e objetivos estratégicos fixados desde os primeiros passos. A
autonomia é construída então como um conceito da práxis, a partir das lutas políticas
projetadas para fora do campo de disputas do aparato estatal. A proposta do EZLN se
antagoniza com o calendário do poder, sem cair aderir a um apoliticismo que concebe a
construção de “contrapoderes” e acracias à revelia da disputa de projetos, inevitável
numa perspectiva emancipatória.
“El nuevo planteamiento de los caracoles combina e integra en la
práctica ambas lógicas, la de la construcción del poder por redes de
pueblos autónomos y la de integración de órganos de poder como
autogobiernos de los que luchan por una alternativa dentro del sistema.
El planteamiento hace suyos elementos antisistémicos en que la creación
de municipios autónomos rebeldes empieza por fortalecer la capacidad de
resistencia de los pueblos y su capacidad de creación de un sistema
alternativo. Ambas políticas -la de la construcción y la de integración del
poder- son indispensables para una política de resistencia y de creación
de comunidades y redes de comunidades que hagan del fortalecimiento
de la democracia, de la dignidad y de la autonomía la base de cualquier
proyecto de lucha.” (idem)
Os caracoles representam, hoje, essa articulação dialética que a resistência
indígena põe em cena. No núcleo comunitário imbricam-se a resposta a situações
cotidianas, a memória de lutas multisseculares e a esperança, ou – para colocar em
termos mariateguianos – o mito de um mundo novo em gestação.
Pablo Gonzalez Casanova propõe, a partir da leitura dessa trajetória, a apreensão
de um novo método de reflexão e ação que tem sete características principais: o
148
prevalecimento das combinações às disjuntivas, como forma de privilegiar o diálogo (e
a dialética) que transcenda a construção política interna dos povos indígenas; a
capacidade de “generalizar los conceptos al tiempo que se generalizan las redes de
comunidades”, como uma forma de viabilizar esse diálogo, rompendo com
particularismos e tornando efetiva aquela noção da “unidade na diversidade”, que se vê
na entrada de La Paz e aparece como um princípio de diversos movimentos; a
necessidade de aprofundar os conceitos de acordo com a dinâmica das lutas; bem como
de ampliar as escalas de intervenção de acordo com a capacidade de aprofundar os
conceitos e a força das redes – do nível mais local, na luta contra o cacique, ao nível
mais geral, em âmbito nacional, ou de megaprojetos regionais – sem perder a
capacidade de articular lutas locais e globais; e ainda, a necessidade de ampliar os
espaços de coordenação das lutas nos diferentes níveis. A sexta característica, Casanova
apresenta nos seguintes termos: “El subir de lo abstracto o formal a lo concreto o actual,
corresponde a la expresión 'ir más allá de..' que a menudo alude a etapas superadas”.
Assimilando lutas passadas, sem temor de superá-las, atualizando, redefinido e
adaptando o que for necessário. E, finalmente, o reconhecimento de uma dimensão
utópica expressa e realizada em meio a contradições:
“Corresponde a la necesidad de superar "las ideas de los caballeros
andantes" que buscaban "desfacer entuertos" para construir ("haciendo
camino al andar", como dijo el poeta) relaciones personales, relaciones
sociales, culturales, sistemas sociales que faciliten, entre tropezones,
practicar y concretar determinados objetivos como "la democracia, la
justicia, la libertad". Esa es la característica de los sueños y de las
impertinencias de Durito, de esos sueños e impertinencias bien y mal
hablados, idealistas y picarescos que se nutren en la imaginación del
mundo entero, maya o no maya, occidental o no occidental, clásico o
moderno, o posmoderno.” (idem)
Os caracóis zapatistas representam a síntese do acúmulo de experiências desse
movimento. Sem pretensão de instaurar um modelo e reconhecendo as particularidades
do contexto local, as comunidades zapatistas da selva chiapaneca interpelam a
sociedade civil à possibilidade da educação no exercício de formas de democracia
assembleária. Está em aberto o potencial de sua universalização, através do diálogo com
149
outras formas de resistência, ampliando e aprofundando a perspectiva de construção do
poder desde baixo.
III.6) A comuna de Oaxaca
Um movimento espontâneo, totalmente inesperado, de proporções imprevistas,
que teve como estopim uma greve de professores. Ninguém imaginava que a repressão
a esse movimento, iniciado em fins maio de 2006, daria origem a um movimento tão
profundo. Um mês após o início da greve, formava-se um guarda-chuva de
organizações, formada por centenas de indivíduos independentes e coletivos de direitos
humanos, ONGs, ecologistas, de gênero, estudantis, sindicais, agrupamentos políticos,
comunidades indígenas etc. A APPO passou a coordenar um inédito e vigoroso
processo de autogoverno, que implicava no controle territorial de Oaxaca, incluindo a
ocupação permanente de edifícios públicos; a construção de centenas de barricadas e
comitês de autodefesa; a instauração de assembléias populares permanentes nas próprias
barricadas e em outros espaços, deliberando sobre as questões que se colocavam; a
autogestão de vários meios de comunicação “recuperados” (rádio, televisão, internet,
impressos). Enquanto o território da capital era controlado por um sistema de barricadas
e rondas noturnas desde fins de agosto, cenas semelhantes se difundiam pelo interior do
estado.
A transcendência de um movimento inicialmente setorizado pode ser explicada
pela particularidade da Seção 22 do geralmente corrompido Sindicato Nacional de
Trabalhadores da Educação: uma parte considerável de suas bases é formada de
docentes dos programas de educação bilíngüe, oriundos das comunidades ou em contato
direto com elas. Essa base dá origem a uma tradição sindical combativa, conectada com
setores sociais mais amplos e independente do clientelismo predominante nas direções a
nível nacional. Com efeito, os mecanismos, a forma e o discurso da comuna de Oaxaca
não representavam uma matriz sindical. Novamente encontram-se ali as múltiplas
tradições que formam uma cultura indígena-plebéia de resistência, incluindo as
comunidades do estado de maior presença indígena do país, como núcleo organizativo e
inspirador, as memórias da luta contra a ocupação estrangeira no século XIX e da
vertente libertária na revolução de 1910.
Às táticas de resistência massiva não-violenta, os poderes locais e nacional
responderam com uma estratégia contrainsurgente comum. De partidos rivais, o
150
governador Ulises Ruiz obteve respaldo do presidente Vicente Fox para manter-se no
poder contra a exigência da rebelião popular, enquanto o PRI garantia a contestada
transição presidencial, sob fortes indícios de fraude, de Fox para seu companheiro do
Partido da Ação Nacional, Felipe Calderón. Como recursos de repressão, o governador
recorreu a forças paramilitares, além dos contingentes policiais à sua disposição. O
assassinato do repórter independente estadunidense Brad Will foi o sinal para a entrada
em fins de outubro da Polícia Federal Preventiva que, apesar de composta de uma força
de quatro mil efetivos, foi repelida num primeiro e obrigada a recuar em diversos
pontos, até conseguir estabelecer-se como uma autêntica força de ocupação nos meses
seguintes. No estado de sítio imposto de fato, tanto as forças federais quanto os grupos
repressivos locais oficiais e clandestinos envolveram-se em casos denunciados de
violações dos direitos humanos, detenções ilegais, ações de esquadrões paramilitares
pela capital e interior do estado, perseguição de lideranças.
IV. Sete teses para uma práxis comunitária
A democracia direta costuma ser descartada com o simples argumento de que a
complexidade das sociedades atuais a torna inviável. Trata-se, para usar de eufemismo,
de preguiça intelectual, já que qualquer forma política é histórica e, enquanto tal,
resultado de longos processos de experimentações e lutas políticas e sociais.
Com efeito, instaura-se um teoria política do poder, que se resume a afirmar
como verdades definitivas a emulação e naturalização da forma parlamentar do Estado,
organizado sob o princípio uninacional, como única possibilidade de garantia de
liberdades e direitos fundamentais. Tal pensamento linear e unidimensional redunda
invariavelmente no fetichismo da “democracia” concebida abstratamente, a não ser
pelos critérios procedimentais.
A observação de experiências passadas e presentes dos grupos subalternos
possibilita vislumbrar a construção de formas societais para além do Estado e do
mercado. A partir das questões apresentadas nesses diferentes contextos, apresento a
seguir alguns pontos para se repensar a política desde essa perspectiva emancipatória.
Das experiências anteriores, pretendo sugiro algumas reflexões sobre a forma comuna,
reforçando que o objetivo das generalizações aqui desenvolvidas não é propor uma
“teoria geral da comuna”, mas compreender como, a despeito das particularidades
151
históricas esse fenômeno irrompe em diversas situações como um núcleo organizativo e
embrião de uma alternativa organização social.
São pontos para sustentar a possibilidade da universalização dessa forma a partir
de sua assimilação à práxis, de acordo com as peculiaridades de cada situação. Desse
modo, não é absurdo estabelecer analogias entre Petrogrado e Oaxaca.
1. A comuna representa a mobilização geral dos setores subalternos em um
determinado território, surgida independente de um centro convocatório, em
reposta a uma situação de acirramento da crise de dominação e do conflito de
classes.
2. Seu acionar se funda em uma territorialização, interferindo ou mesmo
controlando a circulação de grupos sociais, serviços e informações. Trata-se de
uma reapropriação do tempo e do espaço, em que é fundamental controle
territorial, inclusive como forma de defesa militar.
3. Desta forma, a comuna pode se projetar no sentido de uma “dualidade de
poderes”, confrontando-se à lógica espaço-territorial da dominação. É
importante assinalar que a comuna, em suas manifestações históricas, manifesta-
se ora como instrumento político, ora como forma social e seu sentido anti-
sistêmico mais profundo se dá no encontro entre ambos os momentos. Cruzam-
se então as dimensões da mobilização política, dos sistemas coletivo de
propriedade e da organização social comunitária, que apontam para problema do
(auto-)governo e do poder.
4. A comuna tira sua força da comunidade. Verifica-se uma relação profunda entre
tradições locais, entendidas como um elemento dinâmico da cultura, e a irrupção
da comuna que assume de diferentes formas as referências ao passado. Por isso
trabalho com a hipótese de que o surgimento “espontâneo” da comuna é
impulsionado pelo cruzamento entre as tradições comunitárias e o elemento da
consciência desenvolvido nas lutas sociais.
5. O reverso do enraizamento que a comunidade proporciona é o localismo, que se
apresenta como um desafio à sua sobrevivência. Desafio de nacionalizar
processo e romper o isolamento foi decisivo em Paris, se refletiu no processo
espanhol e influencia os esforços dos zapatistas em estabelecer alianças sociais
mais amplas.
152
6. O calendário do poder sabe que o controle da comuna só é possível com sua
liquidação. É como Hernán Cortez relatando como lidava com a resistência
durante sua passagem a Tenochtitlán: “Antes do amanhecer do dia seguinte
tornei a sair com cavalos, peões e índios e queimei dez povoados, onde havia
mais de três mil casas”. (CORTEZ, 1999, p. 17) Assim sucedem-se as cenas dos
massacres nos arredores de Paris, nas ruas de Berlim, no arraial de Canudos, na
imposição do fascismo espanhol total com que se busca conter essa “força
sísmica”. A estratégia da guerra total, que se reedita nas táticas
contrainsurgentes, guerras de baixa intensidade, estados de sítio aplicados em
Chiapas, Oaxaca, El Alto-La Paz...
7. A construção da comuna representa a forma da emergência política de
sociedades que se movem à margem da sociedade hegemônica. Com isso, se
interpõem novas formas de controle e exercício do poder, projetando um tipo de
organização social para além do Estado e do mercado. Coloca-se então o desafio
de repensar a emancipação nos dias atuais, assimilando o potencial libertário e
de resistência presente na comunidade tradicional.105 Como me expressou um
velho militante comunista dedicado hoje à rearticulação das lutas indígenas,
repensar hoje a construção de algo que em algum momento se chamou
socialismo pode ser sintetizado como a luta por “La extensión del ayllu a todos
los ambientes de la sociedad”. (BLANCO, 2007)
105
Uma realidade que não se restringe a Abya Yala. Um aprofundamento destas linhas de reflexão nos
levaria a investigar o problema da modernização e a vigência de formas comunitárias em outras
regiões periféricas do capitalismo. Apenas para mencionar um eco desse debate, o líder da
independência e primeiro presidente de Gana reconhece na comunidade tradicional uma fonte de
inspiração para o socialismo africano, no sentido do humanismo de da reconciliação entre indivíduo e
coletivo. (NKRUMAH, 1967)
153
Parte 4 – Olhar o passado para caminhar pelo presente e o futuro
“Voltarei e serei milhões”
Tupac Katari
“Nós somos novos, mas somos aqueles de sempre”
EZLN
Desde o momento em que se iniciou a pesquisa para a elaboração deste texto, já
ocorreram a terceira e a quarta cúpulas continentais dos povos indígenas de Abya Yala
(Iximche, Guatemala, 2007 e Puno, Peru, 2009); um presidente aimara assumiu o
governo na Bolívia, mantendo-se pelo período mais longo da década; foi fundada (em
julho de 2006) a CAOI, uma instancia de coordenação das organizações indígenas dos
Andes; foi possível acompanhar morte e vida da comuna de Oaxaca; os comandantes (e
subcomandantes) do EZLN atravessaram o México de sul a norte, até a fronteira com os
Estados Unidos, dialogando com os mais distintos movimentos sociais e buscando
coordenar nacionalmente as lutas; as organizações indígenas e camponesas
guatemaltecas articularam-se em um Levante maia e popular; o movimento indígena
peruano passou de uma situação em que era tema por sua ausência a protagonista de
lutas de dimensão nacional, através do movimento cocalero, da resistência às
mineradoras e de dois levantes dos povos amazônicos; no Equador, a CONAIE viu o
declínio de seu protagonismo na cena pública após uma frustrada aliança presidencial.
Esta enumeração aleatória e incompleta de eventos mostra a vitalidade que os
movimentos indígenas mantêm nos dias atuais. Captar alguns elementos fundamentais
dessa dinâmica e estabelecer os pontos para aprofundar a sua compreensão foi a tarefa
que busquei dar conta com o presente trabalho.
A trajetória de quase duas décadas de presença política marcante possibilita um
balanço que leve em conta, além daquilo que os movimentos indígenas apresentaram e
ainda possam apresentar como potencialidade, suas contradições, impasses e conquistas.
Após a etapa de maturação das organizações e conceitos na década de 1980, o decênio
seguinte foi marcado pela irrupção na cena pública, que se consolidou até meados da
década atual pelo incisivo protagonismo nacional. Nos últimos anos, observa-se uma
redefinição do papel desempenhado nas lutas políticas, em função do novo patamar de
debate colocado pelas consequencias das lutas nos períodos anteriores, a intervenção de
154
agentes externos (ONG's, multinacionais, partidos políticos etc.) e a consolidação dos
governos progressistas.
A modo de conclusão segue-se uma breve síntese do panorama atual do sujeito
que inspirou este estudo, destacando o conjunto de reivindicações fundamentais
elaboradas em suas trajetórias, as potencialidades ainda presentes na práxis analisada e
os desafios e limites a serem enfrentados.
I. As principais reivindicações
Os principais eixos de reivindicações dos movimentos aqui analisados podem
ser sintetizados nos seguintes pontos: reconhecimento do território; defesa da cultura,
educação bilíngüe; dignidade, respeito enquanto povos, luta pela memória e contra o
esquecimento; defesa da natureza e da biodiversidade; fim do colonialismo interno,
descolonização das relações sociais e do pensamento, refundação do Estado; livre
determinação e autogoverno.
Nos países andinos, o projeto do plurinacionalismo sintetiza essas bandeiras,
enquanto no México a construção se orienta pela noção de autonomia. Esse conjunto de
demandas, além de apresentar pontos bastante originais em relação ao histórico das
esquerdas, choca-se com a concepção liberal de direito. Atuando na perspectiva de
sujeitos coletivos de direitos, a pauta construída nos movimentos da noção clássica de
cidadania e coloca o seu “multiculturalismo” no centro do embate político, o que os
torna difícil digerir aos esquemas pós-modernos. Também projeta aliança com setores
mais amplos, no que chamei aqui de acionar da plebe, embora esse tenha sido um
desafio permanente, como se observará melhor a seguir.
Pudemos analisar como essa postura se confronta com as noções liberais de
soberania e Estado-nação, não apenas pelo perfil das demandas, mas pela inserção
histórica dos povos originários nas formações sociais latinoamericanas. A atualidade da
questão nacional, que se expressa de formas variadas ao redor do mundo,106 irrompe em
Abya Yala a partir da interpelação desses setores historicamente subalternizados,
106 Com efeito, é possível dizer que os casos em que a nação alcançou o nível de homogeneidade e
representatividade no âmbito estatal previstos no ideal que comporta a noção liberal desse conceito
são a exceção e não a regra. Observe-se desde os casos em que se chegou a uma solução negociada,
como Canadá e Suíça, até os inúmeros conflitos que se perpetuam até os dias atuais: País Basco,
Balcãs, Oriente Médio, África, Ásia etc.
155
mostrando que a independência política anterior a formação dos Estados na África e
Ásia não garantiu uma solução para problema.
II. Movimentos como forças criadoras
Esse contexto permite enumerar, a partir da jornada empreendida nesta
investigação, as principais conquistas, potencialidades, bem como as limitações
encontradas pelos povos originários em movimentos.107 Tentei destacar nos capítulos
precedentes as contribuições dos movimentos indígenas – e dos povos em movimento –
para uma práxis emancipatória. Enumero aqui alguns pontos que considero
fundamentais:
1. Enriquecimento dos conceitos de liberdade e democracia, questionando o
etnocentrismo, afirmando o direito à diferença e reivindicando o direito
coletivo dos povos. Na verdade, mais do que “enriquecer” propriamente dito,
ressignificam e colocam em xeque o status quo, ao combinar na prática a
resistência às dimensões classista e étnica de dominação, e bem assim na
interpelação que apresentam ao Estado-nação.
2. Aporte de formas organizativas para além do capital, a partir da vida
comunitária. Essa foi a chave de interpretação que assumi para os ayllus, os
ejidos, as comunas de El Alto e Oaxaca.
3. Dessa valorização dos princípios comunitários deriva a possibilidade de
aprender, reproduzir e multiplicar as práticas fundadas no princípio da
solidariedade
4. Defesa dos recursos naturais: a Pachamama, mãe-terra andina cuja
mercantilização é inadmissível.
5. Revalorização dos sábios e das tradições ancestrais, que inspira uma releitura
do papel das tradições no processo revolucionário.
6. Surgimento de uma intelectualidade indígena, que vimos ser parte de
esforços de desenvolver espaços próprios de produção teórica. Essa jovem
geração de intelectuais, cuja formação variada inclui professores do sistema
bilíngüe, artistas, acadêmicos, sem esquecer os vínculos comunitários e a
107 Os pontos são desenvolvidos também a partir de Rojas (1998, 2008).
156
importância dos amautas, desenvolve uma contribuição à descolonização das
ciências sociais e às possibilidades de se pensar Abya Yala e o mundo que
ainda está por ser assimilada. Daí pode-se compreender e reconhecer a força
epistemológica de conceitos construídos a partir dos processos sociais, como
os de autonomia, plurinacionalidade, resistência, pachakuti, comunidade...
7. Renovação da esquerda e do pensamento crítico. “Mandar obedecendo”
como princípio de direção, relação diferenciada com o poder, possibilidade
de articulação com outros setores subalternizados.
8. Revisão histórica, como esbocei na segunda parte da dissertação, que
possibilite uma nova compreensão do lugar dos grupos subalternos na
história de América latina (a ponto de nos permitir relê-la como Abya Yala).
9. Filosofia da história: a contribuição, por exemplo, do conceito de
Pachakutik em um possível diálogo com Walter Benjamin.
III. Dilemas e ameaças para os movimentos indígenas
Os desafios apresentados aos movimentos indígenas ganharam complexidade
com sua passagem ao centro da cena política. O salto à fase político-universal projetou
o que era até então considerado o “problema do índio” para a ordem de conflitos no
âmbito nacional.
Entre os fatores externos que ameaçam a organização autônoma e o respeito à
vida comunitária, observamos a ação de empresas multinacionais na exploração de
recursos naturais (petrolíferas, madeireiras, mineradoras etc.). Atividades econômicas
ilícitas (especialmente o narcotráfico) e políticas de repressão indiscriminada, como a
erradicação da folha de coca, afetam igualmente os territórios indígenas.
Outro problema refere-se à necessidade de sustentação financeira, que torna
diversas organizações e comunidades dependentes do apoio de ONG‟s internacionais e
organismos estatais. Como contrapartida, a intervenção desses agentes tende a cobrar
uma etnização e despolitização do discurso, imprimindo uma lógica de ações baseadas
na elaboração de projetos para captação de recursos e na negociação de incremento do
aporte de assistência estatal.
Essa dinâmica, bem como os debates expostos a seguir, revela duas dificuldades
internas enfrentadas pelos movimentos indígenas. A tendência a uma nova
diferenciação e estratificação social interna, a partir dos setores com acesso privilegiado
157
aos canais de financiamento e negociação e a fragilidade das estruturas organizativas e
da qualificação de dirigentes que, apesar dos esforços próprios de formação, muitas
vezes dependem igualmente de estruturas alheias.
III.1) O discurso da reação
Um desafio que se incrementa a partir da irrupção na cena pública refere-se à
relação com outras forças sociais e políticas. A rearticulação de uma direita racista, que
identifica nos movimentos indígenas um de seus alvos principais, buscando sedimentar
a noção de tratar-se de uma ameaça à democracia. Esses seriam uma expressão latino-
americana de “ameaças globais”, ou mais especificamente, dos riscos de xenofobia e
“balcanização” derivados de “conflitos étnicos”. Não sem uma dose de sarcasmo
devemos reconhecer a coerência dessa postura desde uma perspectiva liberal-
conservadora. Demonstrando os limites objetivos das pretensões universalistas e do
discurso multiculturalista pós-moderno, as leituras conservadoras e liberais reagem com
veemência à afirmação política das identidades indígenas, desde as primeiras
manifestações, intervindo nos debates sobre a “comemoração” dos 500 anos do início
da colonização européia, até o recrudescimento do discurso racista após a eleição de
Evo Morales. Uma matriz dessa interpretação está no estadunidense Samuel P.
Huntington, cuja teoria do “choque das civilizações”, prognosticando um inevitável
enfrentamento do Ocidente com as demais culturas classificadas por ele, serve de
fundamento teórico da atual orientação do Departamento de Estado e teve maior
prosperidade acadêmica no pós-guerra fria do que a famigerada tese do fim da história.
(HUNTINGTON, 1996)
Essa visão liberal enfatiza o conflito dos povos indígenas com a modernidade,
traduzindo-o como sinal do seu atraso e lamentando a “persistência do arcaico” na
América Latina; coloca no mesmo patamar os atuais movimentos indígenas, o processo
bolivariano na Venezuela, os governos e candidatos identificados progressistas ou de
esquerda, sob a alcunha de “neopopulismo”; confunde as demandas de autonomia e
plurinacionalidade com separatismo; em alguns casos chega ao paroxismo de negar-lhes
a condição de indígenas.108
108 Essa tática foi em certa altura empregada pela Aracruz, para deslegitimar as comunidades
indígenas e quilombolas que reivindicavam seus direitos e eventualmente aparece nos ataques da
158
Na América Latina, o principal representante dessa crítica “ilustrada” é o
escritor peruano Mario Vargas Llosa, que em livros, artigos, conferências internacionais
em círculos acadêmicos e empresariais da América e Europa, assumiu a linha de frente
do discurso antiindigenista, enfatizando o que considera o risco à democracia e a
persistência arcaica. Tratando do indigenismo peruano, registrou uma ampla polêmica
com José Maria Arguedas, considerado o mais importante representante da corrente
nesse país. (LLOSA, 1996)
A declaração do papa, em sua passagem pelo Brasil, demonstra que nem a
formalidade politicamente correta exigida pela liturgia do cargo foi capaz de conter a
lente eurocêntrica que pauta esse viés de leitura. Parecendo ecoar as formulações de
Huntington e Llosa, o representante máximo da Igreja Católica, conhecido por suas
posições conservadoras, afirmou que “La utopía de volver a dar vida a las religiones
precolombinas, separándolas de Cristo y de la Iglesia universal, no sería un progreso,
sino un retroceso. En realidad sería una involución hacia un momento histórico
anclado en el pasado.” (RATZINGER, 2007)
Diante desse nível de enfrentamento, o risco do isolamento torna-se um desafio
mais sério, que aumenta a necessidade de se articular com setores mais amplos da
sociedade. Se por parte de determinados setores dos movimentos indígenas, o
essencialismo étnico e o particularismo indianista são fatores a dificultar o diálogo, a
contrapartida desde as tendências marxistas predominantes oi em boa medida a
incompreensão.
III.2) Desencontros e encontros
A relação com partidos e intelectuais de esquerda nem sempre ocorre
tranquilamente. Vimos nos casos do Sendero Luminoso no Peru e da Frente Sandinista
na Nicarágua duas situações extremas a que chegou essa tensão. Atualmente, em um
paradoxo que não é incomum à história das esquerdas, os setores responsáveis por sua
renovação teórica e prática geram tensões e incompreensões mútuas. Certas abordagens,
muito genéricas e pautadas por um enfoque marxista dogmático, priorizam as
expressões formais dos movimentos, desde sua dimensão estatal, do paradigma
centralidade do trabalho – ou de maneira ainda mais reducionista, do papel dirigente da
imprensa brasileira a Evo Morales. Ver
<http://www.aracruz.com.br/questaoindigenanoES/index.html> Acesso em 10 jul. 2007.
159
classe operária –, utilizando categorias referentes a contextos distintos da realidade
americana sem as devidas mediações. (Ver SÁENZ, 2004; PETRAS, 2002, 2006, 2007)
Apesar do seu compromisso com o pensamento crítico e de algumas observações
lúcidas, essa interpretação mais dogmática tem o problema de analisar a realidade a
partir de modelos pré-estabelecidos, tomando como ponto de partida uma idéia do que
deveriam ser as relações sociais e não os processos como eles realmente se apresentam.
Nesse ponto, cabe explicitar um debate teórico que permeou toda a pesquisa e
que, se por um lado trazê-lo para o primeiro plano desvirtuaria a perspectiva construída
para este trabalho, ocultá-lo seria escamotear uma tensão que tem inegável presença na
temática a ser discutida. Trata-se dos pontos de contato e de desencontro entre as razões
indianista e marxista.
Há um certo lugar comum que costuma associar o marxismo a uma leitura
linear, unilateral e acrítica da modernidade. Marx é geralmente assimilado como um
entusiasta do progresso. Tal leitura se baseia numa noção eurocêntrica do advento do
mundo contemporâneo, pautada na noção de progresso que orienta considerável parte
da esquerda. O debate sobre as relações entre tradição, modernidade e revolução, que
remete ao pensador renano é, no entanto, mais complexo e rico do que essa leitura
linear. Marx o tratou de maneira ambígua ou mesmo contraditória em diferentes
momentos. Se é verdade que sua obra anuncia o avanço irresistível da modernidade,
inclusive cedendo a momentos de uma visão entusiástica diante do advento do
capitalismo,109
podem-se destacar ricas passagens em que vislumbra a ação autônoma
dos explorados e suas tradições pré-capitalistas como elementos constituintes do
processo de construção da nova sociedade, como pudemos constatar em suas reflexões
sobre a Comuna de Paris e, com Engels, sobre a Rússia.
Por isso a incoerência em tentar estabelecer um modelo universal a partir da
exegese de determinados textos foi apontada em algum momento pelo próprio Marx que
em certo momento adverte quem
“A todo o custo, quer converter meu esboço histórico sobre as origens do
capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica sobre a
trajetória geral a que se acham fatalmente submetidos todos os povos, quaisquer
que sejam as circunstâncias históricas que nelas concorram, para chegar enfim
109
Vale mencionar seus escritos sobre a colonização britânica na Índia ou a apropriação do território
mexicano pelos Estados Unidos.
160
naquela formação econômica que, a par do maior impulso das forças produtivas
do trabalho social, assegura o desenvolvimento do homem em todos e cada um
dos seus aspectos. (Isso me traz demasiada honra e, ao mesmo tempo, demasiado
escárnio.)” (MARX; ENGELS, 1980, p. 64-65).
Partindo dessas formulações iniciais, podemos apontar duas variantes entre seus
sucessores. Uma corrente majoritária, que se apóia também nos escritos de Lênin110
e
teve seu pleno desenrolar posterior nos canais dos partidos comunistas oficiais,
enfatizando o modelo europeu de revoluções burguesas e trabalhando com uma noção
de progresso que abre o marxismo para uma leitura linear da história, fechada em seus
influxos positivistas. Tal postura se acomodou ao longo do século XX na linha oficial
da burocracia soviética e de seus seguidores nos partidos comunistas. Por outros
caminhos, a social-democracia já se acomodara desde o século XIX em posturas
semelhantes, encarando com fatalismo a democracia parlamentar burguesa como
estágio máximo de organização social. Segundo essa visão eurocêntrica, o capitalismo
representa por definição um estágio civilizacional superior, igualmente necessário e
benéfico para toda a humanidade. No início do século XX, o fundador do Partido
Socialista Argentino saudava o avanço da civilização capitalista: "Una vez suprimidos
(sic) o sometidos los pueblos salvajes y bárbaros e integrados todos los hombres a lo
que llamamos hoy civilización, el mundo estará más cercano a la unidad y la paz, lo
que se traducirá por una mayor uniformidad del progreso". (Juan B. Justo, 1909 apud
LOWY, 2007)
A outra tendência, relegada desde cedo a situações marginais no movimento
revolucionário mundial,111
assimilou criticamente as contribuições de Marx e Engels,
desenvolvendo uma abordagem dialética da relação entre tradição e modernidade, o que
a permitiu apresentar elementos para uma crítica não reacionária ao progresso e, em
alguns casos, um marxismo enraizado, capaz de articular as especificidades nacionais a
uma interpretação totalizante do sistema capitalista. Na terceira parte desta dissertação
indiquei algumas possibilidades dessa leitura.
Um conjunto de reflexões que não cheguei a explorar foi o de Gramsci, que por
sua vez inspirou os historiadores britânicos Hobsbawm e Thompson em seus estudos
110
O dirigente russo era um entusiasta do taylorismo e da disciplina fabril. 111
Marginalizado em função do contexto histórico, esse grupo teve dificuldade em estabelecer laços
orgânicos com o movimento revolucionário, sendo bastante heterogêneo.
161
inovadores sobre a classe operária inglesa. O primeiro analisou elementos diversos e até
então pouco notados da cultura operária e, principalmente, apontou como as tradições
são um elemento vivo da cultura, criados e recriados em determinadas circunstâncias
históricas. Seu companheiro Edward P. Thompson trouxe contribuições fundamentais,
estudando as origens da classe operária inglesa, identificadas com a cultura da plebe
londrina da qual recupera uma valiosa tradição de radicalismo e resistência ao avanço
do capitalismo. Observando o comportamento desse setor diante da gênese do novo
modo de produção, aponta uma situação semelhante às que estivemos analisando:
“Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura
tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da
plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às racionalizações e
inovações da economia (tais como os cercamentos, a disciplina de
trabalho, os 'livres' mercados não regulamentados de cereais) que os
governantes, os comerciantes ou os empregadores querem impor.”
(THOMPSON, 1998, p. 19)
Não é difícil notar que, quase trezentos anos depois, tais paradoxos ainda
marcam o cenário político americano. Obviamente os mecanismos de expressão da
“cultura tradicional” neste contexto diferem de inúmeras maneiras daquele enfrentado
pela plebe inglesa, a começar pelo fato de estar lidando atualmente com o capitalismo
amadurecido e de amplitude global. No entanto, seus mecanismos de ataque às classes
subalternas parecem se repetir ciclicamente, já que entre as mirabolantes propostas
modernizadoras que o chamado neoliberalismo tenta impor, o avanço do mercado sobre
as terras comunais e a colonização da natureza em geral (além dos alimentos) pela
forma mercadoria assumiram caráter estratégico. Para o tema que estamos debatendo, os
dois historiadores ajudam a desmistificar as tradições, tirando a exclusividade de
folcloristas, conservadores e antiquários de diferentes especialidades sobre a matéria.
Nesse sentido, os dois intelectuais que trouxeram os elementos mais ricos e
criativos para abordar o problema na sua radicalidade viveram na mesma época, mas em
contextos bem distintos. Captando a dissolução da civilização burguesa, o avanço e as
contradições da revolução socialista e, em níveis diferentes, a articulação da reação
fascista, o olhar do peruano José Carlos Mariátegui dialoga indiretamente, desde a
162
periferia do capitalismo, com a obra do alemão Walter Benjamin no esforço de articular
dialeticamente tradição e modernidade.112
Sobre Mariátegui, acrescente-se que desenvolveu, em meio a uma obra
diversificada, uma interessante reflexão sobre a relação entre tradição e modernidade
que permeia vários de seus trabalhos, a ponto de um importante estudioso considerar
esse o “núcleo gerador” do pensamento mariateguiano na maturidade (MÉLIS in
AMAYO; SEGATTO, 2002, p. 66). Refletindo a partir de um país marcado pelas
contradições do desenvolvimento do capitalismo na periferia, a hibridez estrutural e das
conformações culturais na região está presente em todos os famosos sete ensaios de seu
trabalho principal113
e em boa parte de seus artigos. O livre desenvolvimento da
civilização incaica foi interrompido pela empresa colonizadora e, posteriormente, pelo
Estado republicano estabelecido por uma débil burguesia. Essa contradição só poderia
ser resolvida pela revolução socialista, para a qual é fundamental a recuperação das
tradições originárias.
Em um artigo de 1927, Mariátegui desenvolve sua argumentação, deixando claro
estar muito além de qualquer tipo de utopia passadista. Sua crítica vai tanto contra o
tradicionalismo conservador que entende o passado engessado como folclore como o
revolucionarismo simplista que reduz a idéia de transformação radical à pura
inconoclatia. Tomando como referencial o teórico francês Sorel e apoiando-se em
Proudhon para se contrapor às visões dogmáticas, defende a idéia de uma tradição viva,
que se alimenta do passado para construir as lutas do presente: “Los verdaderos
revolucionarios no proceden nunca como si la historia empezara con ellos. Saben que
representan fuerzas históricas, cuya realidad no les permite complacerse con la
ultraísta ilusión verbal de inaugurar todas las cosas.” (MARIÁTEGUI, 1989: 316)
A trajetória do século XX mostra que materialismo histórico só teve alguma
utilidade teórico-prática nesta parte do mundo quando assumiu uma perspectiva
radicalmente anticolonial e foi capaz de compreender e assimilar – ou dialogar – com as
tradições mais profundas dos explorados. Assim, só é possível compreender o processo
cubano a partir das lutas pela independência no século XIX da mesma forma que as
lutas sociais contemporâneas na Nicarágua, México, Bolívia são profundamente
112
A obra de Mariátegui, que nos últimos anos voltou a despertar interesse em diversos países, destaca-se
por sua universalidade que, partindo das especificidades do continente, intervém no debates mais
importantes de sua época. 113
Os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicados originalmente em 1928, dissertam
sobre a estrutura econômica, a questão do índio, o problema da terra, o processo educacional, a
religião, a dicotomia centro x província e a literatura.
163
marcadas respectivamente pelas lutas antiimperialistas do início do século passado e
pelas revoluções de 1910 e 1952, só para ficarmos em alguns exemplos.
Creio que com esta perspectiva é possível estabelecer um diálogo mutuamente
enriquecedor entre duas razões revolucionárias, como indica Linera quanto à viabilidade
de superação do desencontro prevalecente entre ambas.
“Por último, no que se refere a uma nova relação entre estes indianismos
e o marxismo, diferentemente do que sucedia nas décadas anteriores, nas
que a existência de um vigoroso movimento obreiro estava acompanhada
de uma primária, mas estendida, cultura marxista, hoje o vigoroso
movimento social e político indígena não tem como contraparte uma
ampla produção intelectual e cultural marxista. O antigo marxismo de
Estado não é significativo nem política nem intelectualmente e o novo
marxismo crítico provém de uma nova geração intelectual, tem uma
influência reduzida e círculos de produção ainda limitados. Contudo, não
deixa de ser significativo que este movimento cultural e político
indianista não venha acompanhado de uma vigorosa intelectualidade
letrada indígena ou indianista. Se o indianismo atual tem uma crescente
intelectualidade prática nos âmbitos de direção de sindicatos,
comunidades e federações agrárias e comunitárias, o movimento carece
de uma intelectualidade letrada própria e de horizontes mais estratégicos.
O grupo social indígena que poderia ter desempenhado este papel se
encontra ainda adormecido pelo impactada cooptação geral de quadros
indígenas pelo Estado neoliberal na década de 90. E, curiosamente, são
precisamente parte destes pequenos núcleos de marxistas críticos os que
com maior dinamismo reflexivo vêm acompanhando, registrando e
difundindo este novo ciclo do horizonte indianista, inaugurando assim a
possibilidade de um espaço de comunicação e enriquecimento mútuo
entre indianismo e marxismo, que serão provavelmente as concepções
emancipatórias da sociedade mais importantes no século XXI.”
(LINERA, 2007, p. 4)
164
III.3) O desafio do progressismo
As relações contraditórias dos movimentos indígenas com as forças de esquerda
e as conseqüências de certas debilidades estratégicas se aguçaram com o advento dos
governos “progressistas” no continente. A crise do padrão de dominação estatal e as
sucessivas rebeliões colocaram em pauta o problema da institucionalização das
demandas indígenas ou, diretamente, o de uma estratégia de poder. No entanto, trouxe
também o risco da captura pela lógica estatal que foi respondido de maneiras distintas
nos três casos em que o movimento indígena alcançou maior projeção na cena pública.
O EZLN distanciou-se radicalmente da alternativa eleitoral, rechaçando
inclusive as alianças pontuais com os partidos da esquerda institucional mexicana e
buscando consolidar alianças mais amplas em outros espaços de articulações. A
CONAIE aderiu à via institucional, tendo o Pachacutik como braço político. As relações
entre movimento social e instrumento político trouxeram resultados principalmente no
âmbito regional, mas sofreram tensões crescentes até atingirem pontos críticos durante a
conturbada participação no governo de Lucio Gutierrez. O trauma dessa experiência não
chegou a ser totalmente superado pela força mais significativa do movimento indígena
equatoriano, que desempenhou um inegável papel de renovação para as esquerdas do
continente. A opção pela participação eleitoral não foi descartada, mas a hesitação entre
priorizar uma tática de alianças ou o fortalecimento de candidatos próprios, as divisões
internas, o desgaste político foram alguns fatores de debilitação do movimento, que
abriram espaço para a vitória nas eleições presidenciais de Rafael Correa, um neófito
cuja orientação política, apesar de declaradamente de esquerda, distanciou-se
permanentemente do que vinha sendo construído pelos movimentos indígenas.
Na experiência boliviana, a tática eleitoral colocava-se em um campo de ação
quase inevitável diante da contundência da crise estatal e de representação partidária,
alternando-se com as ações autônomas e extraparlamentares. Entretanto, as tendências
divergentes e até conflitantes entre as forças do movimento social boliviano
impossibilitou a construção de uma estratégia comum. Felipe Quispe apresentou no
MIP um instrumento político subsidiário à ação de massas das comunidades aimaras do
altiplano articuladas pela CSUTCB, mas sua retórica flamejante de reconstituição do
165
Qolasuyu114 não foi capaz de atender os anseios de setores mais amplos mobilizados
pelo contexto de crise nacional. De certa forma, foi o MAS, que sem abrir mão das
mobilizações massivas logrou apresentar uma alternativa institucional, vitoriosa com a
eleição de Evo Morales. Tal sucesso reordenou as forças sócio-políticas bolivianas,
transferindo o centro de gravidade de deliberação das ruas para o parlamento e a disputa
entre governo central e oligarquias departamentais. Com essa dinâmica, o MAS se
estabeleceu como força preponderante entre os movimentos populares e indígena,
assumindo o peso da responsabilidade da gestão das coisa pública. A relação com
determinados movimentos importantes no período anterior foi contraditória, apesar de
ser majoritária a adesão ao governo; o ritmo das mudanças se alternou entre os
momentos de radicalização do discurso e priorização da concertação; sua ideologia
mescla elementos do movimento indígena contemporâneo e do nacionalismo
revolucionário boliviano, em que se vislumbra uma influência desenvolvimentista.115
Coloca-se então o problema dos governos progressistas para os movimentos
indígenas e forças populares em geral. Sua vigência aconselha que apenas sejam
registradas algumas interrogações, considerando ainda pendente uma definição sobre o
que efetivamente representam: experiências “pós-neoliberais” possíveis em um contexto
adverso, que servem de transição para transformações mais profundas ou contenção de
ímpeto emancipatório dos movimentos sociais? Refundação ou relegitimação do
Estado, sobre bases neodesenvolvimentistas? Será possível descolonizar o Estado
mantendo as formas e os mecanismos da democracia parlamentar clássica (constituição,
parlamento, judiciário, eleições, partidos, eleições)?
Uma interessante crítica a essa tendência que chamo aqui deliberadamente de
progressista é desenvolvida pelo economista argentino Claudio Katz, que observa que
“La mayor parte de los críticos del neoliberalismo en la periferia
reconocen que la dependencia persiste como una causa central del
subdesarrollo. Pero proponen superar esta sujeción mediante la
construcción de “otro capitalismo”. Ya no vislumbran un proyecto
totalmente nacional, autónomo y centrado en la “sustitución de
importaciones” -como sus antecesores de la CEPAL- pero si un modelo
114 Dentro do Tawantisuyu, o país dos incas, era o território correspondente à Bolívia. 115 O vice-presidente Garcia Linera apresentou o programa do governo Morales como um
“capitalismo andino”. Para uma análise dos fundamentos teóricos do MAS, ver Stefanoni, 2003.
166
regional, regulado y basado en los mercados internos. Auspician
esquemas keynesianos, para erigir 'estados de bienestar en la periferia',
sostenidos en transformaciones institucionales (erradicar la corrupción,
recomponer la legitimidad) y en grandes cambios comerciales (frenar la
apertura), financieros (limitar los pagos de la deuda) e industriales
(reorientar la producción hacia la actividad local).
[...] Los partidarios del nuevo capitalismo periférico no brindan
respuestas a ninguno de estos interrogantes cruciales. Ignoran que el
margen para implementar su proyecto se ha reducido a partir de la
asociación creciente de las clases dominantes periféricas con el capital
metropolitano. Esta vinculación obstaculiza la acumulación interna,
multiplica la salida de capitales y dificulta la aplicación de políticas
reactivantes de la demanda interna. Las burguesías que no lograron en el
pasado poner en pié un capitalismo autónomo, tienen menos
posibilidades de aproximarse a esa meta en la actualidad.” (KATZ,
2002)
Coloca-se então, para essa wiphala116 de movimentos e experiências a disjuntiva
entre a tentativa de acomodação à ordem e o aprofundamento de experiências cujo
potencial libertário pôde ser observado nas últimas décadas. Apreender e desenvolver
esse potencial é um desafio político e epistemológico, para o qual espero que este
trabalho possa trazer algum tipo de contribuição.
116 A wiphala é uma bandeira recuperada pelos movimentos indígenas como um elemento
tradicional da cultura andina. Suas cores se inspiram no arco-íris.
167
REFERÊNCIAS
ADITAL, “Construção de corredor Bioceânico prejudica indígenas”. 10 mai 2007.
Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=27511 Acesso
em 27 jun. 2007
ALBÓ, Xavier. "El retorno del indio." Revista Andina, Cuzco, Ano 9, n. 2, p. 299-345,
dez. 1991.
____________; TICONA, Esteban; ROJAS, Gonzalo. Votos y Wiphalas: campesinos y
pueblos originarios em democracia. La Paz: Fundación Milenio; CIPCA, 1995.
AMAYO, E.; SEGATTO, J. A. (orgs.). J. C. Mariátegui e o marxismo na América
Latina. Araraquara: Unesp, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica
Editora, 2002.
ANDERLE, Adam Los movimientos políticos en el Peru. La Habana, Casa de Las
Americas, 1985.
ANDERSON, Thomas P. Matanza: the 1932 "slaughter" that traumatized a nation,
shaping US-Salvadoran policy to this day. Willimantic: Curbstone Press, 1992, 2 ed.
ANNA, Timothy. “A independência do México e da América Central.” In: BETHELL,
Leslie. História da América Latina. v. III. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do
Estado; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2001.
ARICÓ, José (org.) Mariátegui y los orígenes del marxismo latino-americano. México,
DF, Siglo Veintiuno Editores, 1980 (2ª ed.).
BARABAS, Alicia M. “1994: o zapatismo e a radicalização do movimento indígena no
México”. In: ZARUR, George C. L. Região e nação na América Latina. Brasília; São
Paulo, EdUNB; Imprensa Oficial do Estado, 2000.
BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Movimientos Etnopoliticos y Autonomias Indigenas en
Mexico. Brasília, Departamento de Antropologia (Serie 209), 1996. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/serie_antro.htm>
BARTRA, Roger. “Tributo e posse da terra na sociedade asteca” GEBRAN, Philomena.
(org.) Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
168
BASADRE, Jorge Historia de la republica del Peru (1822-1933). Lima, s/d, La
Republica; Universidad Ricardo Palma.
BATALLA, Guillermo Bonfil (comp.) Utopía y revolución. El Pensamiento político
contemporáneo de los indios en América Latina. México D.F.: Nueva Imagen, 1981.
BECKER, Marc “Una revolución comunista indígena: movimientos de protesta rurales
en Cayambe, Ecuador” MARKA, Instituto de Historia y Antropología Andinas, Quito-
Ecuador. Memoria,1999, 7: 51-76.
BEIGEL, Fernanda. “Mariátegui y las antinomias del indigenismo.” Utopia y praxis
latinoamericana. Universidad del Zulia, Maracai: , v.año 6, n.N°13, p.36 - 57, 2001.
BELLINGHAUSEN, Hermann. “En AL, la diversidad se vuelve movimiento político”.
La Jornada, 16 dez. 2007
BENGOA, José. “25 años de estudios rurales” in Sociologias. Porto Alegre, ano 5, nº
10, jul/dez 2003, p. 36-98.
______________. La emergencia indígena en América Latina. Santiago: Fondo de
Cultura Económica, 2000.
BLANCO, Hugo “Perú: Raíces”. Rebelión, 21/03/2004.
http://www.rebelion.org/hemeroteca/internacional/040321blanco.htm Acesso em 28
nov. 2008.
BLANCO, Hugo. Entrevista realizada em Cuzco, 27 jul. 2007.
BOLIVAR, Simon. Simon Bolivar: política. São Paulo: Ática, 1983.
BRIGNOLI, Héctor Pérez; CARDOSO, Ciro Flamarion. História econômica da
América Latina. RJ. Graal. 1983.
BROUÉ, Pierre.; TÉMINE, Emile. La revolución y la guerra de España. México:
Fondo de Cultura Económica, 1989.
BUENROSTRO Y ARELLANO, Alejandro e OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino.
Chiapas – construindo a esperança. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
CARDONA, Jorge Antonio Erick Sainz. A questão do nível intermediário na política
sócio-espacial boliviana: o caso da bacia do Rio Desaguadero e Lago Poopó. Tese. Rio
de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 2005.
169
________________________________. O espaço regional Aymara: reflexões sobre
conceitos de tempo-espaço. Dissertação. Rio de Janeiro : UFRJ/IPPUR, 1999.
CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. Caracas: Fundación CELARG, 2005.
CASANOVA, Pablo González A democracia no México. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967.
________________________. “Colonialismo interno [una redefinición]” in Atilio A.
Boron; Javier Amadeo y Sabrina González (org.) La teoría marxista hoy. Problemas y
perspectivas
________________________. Historia política de los campesinos latinoamericanos.
México: Siglo XXI, 1998 (1984). 2ª ed., 1 v.
________________________. “Los caracoles zapatistas. Redes de resistencia y
autonomia (ensayo de interpretación)”. In: La Jornada, México, 26 de set. 2003.
________________________. “Causas da rebelião em Chiapas”. Olho da História, n. 3,
1996. http://www.oolhodahistoria.ufba.br/03casano.html Acesso em 10 jul. 2008.
CAZAR, Fernando Guerrero; PERALTA, Pablo Ospina El poder de la comunidad.
Buenos Aires, CLACSO, 2003.
CECEÑA, Ana Esther “La Territorialidad de la domináción. Estados Unidos y América
Latina”. Revista Chiapas no. 12, 7-30. México: UNAM/Ediciones Era, 2001.
CECEÑA, Ana Esther (org.) Hegemonías y Emancipaciones en el Siglo XXI. Buenos
Aires: Clacso, 2004.
CEPAL. Panorama social de América Latina. Santiago: Nações Unidas/CEPAL, 2007.
CHÁVEZ, Marxa; CHOQUE, Lucila; OLIVEIRA, Oscar et ali Sujetos y formas de la
transformación política en Bolivia, Bolivia, Autodeterminación, 2006
CHOQUE, María Eugenia “La reconstitución del ayllu y los derechos de los pueblos
indígenas”. In: GARCÍA, Fernando (Coord.) Las sociedades interculturales. pp. 13-55.
FLACSO; IBIS, Quito. 2000. Disponível em:
http://www.flacso.org.ec/docs/sasocintercul.pdf
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordóñez. Reclamos jurídicos de los pueblos indios,
México, UNAM, 1993.
170
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado – Pesquisas de Antropologia Política.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990 (4ª ed).
CORTEZ, Hernan. O fim de Montezuma. Relatos da conquista do México. Porto
Alegre: L&PM, 1999.
CUEVA, Augustin. O desenvolvimento do capitalismo na América Latina. São Paulo:
Global, 1983.
Cumbre Social por la Integración de los Pueblos “Conclusiones sobre infraestructura”
Cochabamba, 8/12/2006.
<http://www.movimientos.org/noalca/integracionpueblos/show_text.php3?key=8762>
Acesso em 13 ago. 2007
________________________. “Para vivir bien sin neoliberalismo”. Cochabamba,
8/12/2006 http://www.llacta.org/organiz/coms/2006/com0594.htm Acesso em 13 ago.
2007
CUSICANQUI, Silvia Rivera “Oprimidos pero no vencidos”: luchas del campesinado
aymara y quechwa 1900-1980. La Paz: Aruwiyiri – THOA, 2003 (4ª ed)
CONAIE. Proyecto Político de la Confederación de Nacionalidades Indígenas del
Ecuador. 2001, Disponível em <http://www.llacta.org/organiz/coms/com862.htm>
Acesso em 2 jul. 2007
Folha de São Paulo. “Movimentos sociais protestam contra Petrobras no Equador”. 02
jul. 2007. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u308919.shtml> Acesso em 08 jul.
2007
DÁVALOS, Pablo (org) Pueblos indígenas, Estado y democracia. Buenos Aires,
Clacso, 2005.
DÁVALOS, Pablo “Plurinacionalidad y poder político en el movimiento indígena
ecuatoriano” in: OSAL, Janeiro/2003.
______________ “Ecuador: las transformaciones políticas del Movimiento indígena
ecuatoriano”. In Boletin del ICCI, Nº 11, ano 2, Fevereiro de 2000.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva "A interiorização da metrópole (1808-1853)” in:
MOTA, Carlos Guilherme (org.) 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1982.
171
DÍAZ-POLANCO, Hector El canon Snorri. México, Universidad de la Ciudad de
México, 2004.
_____________________. Indigenismo y diversidad cultural. México D.F.: UCM
(Posgrado de Humanidades y Ciencias Sociales), 2003.
_____________________. “Nicaragua: Diez años de autonomía en Nicarágua” ALAI -
América Latina en Movimiento, 17 set. 1997.
DOYLE, Kate. Los muertos de Tlatelolco. Proceso, México, 1 out. 2006. Disponível
em: < http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB201/index2.htm#article>
Acesso em 7 jul. 2009.
ECHEVERRÍA, Bolívar. Alonso Quijano y los indios. México, 2006. Disponível em:
http://www.bolivare.unam.mx/ensayos/AlonsoQuijano.pdf. Acesso em 5 ago. 2009.
ECUARUNARI. Proceso organizativo de ECUARUNARI. s/d.
<http://www.ecuarunari.org/es/historia/index.html> Acesso 4 set 2008
ESCÁRZAGA, Fabíola e GUTIERREZ, Raquel. (org.) Movimientos indígenas en
América Latina: resistência y proyecto alternativo. Puebla, Ed. Benemérita Universidad
Autônoma de Puebla, 2006.
FAVRE, Henri. El movimiento indigenista en América Latina. Lima: Institut français
d'études andines - IFEA; Cente détudes mexicaines et centroaméricaines – CEMCA,
2007.
_____________. “Bolivar y los indios”. Histórica, vol. 10 (n. 1), p. 1-18. Lima, jul.
1986.
FERNANDES, Florestan Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
FERREIRA, Jorge Luiz Incas e astecas: culturas pré-colombianas. São Paulo, Ática,
1995.
FIGUEIREDO, Guilherme Gitahy de. A guerra é o espetáculo: origens e
transformações da estratégia do EZLN. 2003. Dissertação (Mestrado em Ciência
Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
172
FIGUEROA, José Antonio, "Comunidades indígenas: artefactos de construcción de la
identidad étnica en los conflictos políticos del Ecuador contemporáneo", Revista
Colombiana de Antropología, vol. XXXIII, 1996-1997, Bogotá, pp. 185-219.
FLOR, Francisco Hidalgo. “Los movimientos indígenas y la lucha por la hegemonía: el
caso de Ecuador.” In: DÁVALOS, Pablo (org) Pueblos indígenas, Estado y
democracia. Buenos Aires, Clacso, 2005, p. 341-347.
Folha Online. “Movimentos sociais protestam contra Petrobras no Equador” 2 jul 2007
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u308919.shtml Acesso em 4 ago.
2009.
FONTAINE, Guillaume “Microconflictos ambientales y crisis de gobernabilidad en la
Amazonía ecuatoriana.” Iconos. Revista de Ciencias Sociales. Quito, n. 21, enero 2005,
p. 35-46. Disponível em http://www.flacso.org.ec/docs/i21fontaine2.pdf Acesso em 16
jul 2009
FRANK, Andre Gunder “On the 'indian problem' in latin america.” In: Capitalism and
underdevelopment: Historical Studies of Chile and Brazil. New York: Monthly Review
Press. 1969.
FURTADO, Celso. Breve Historia Económica de América Latina. La Habana: Editorial
de Ciencias Sociales, 1972.
FUSER, Igor. México em transe. São Paulo, Scritta, 1995.
GALINDO, Alberto Flores Obras Completas. Tomo III (I): Buscando un Inca:
Identidad y utopía en los Andes. Lima, 2005.
GARCÍA-FALCES, Nieves Zúñiga. “Conflictos por recursos naturales y pueblos
indígenas”. Pensamiento Propio, Madrid, n. 22, julio-diciembre de 2006. Disponível em
www.cip.fuhem.es Acesso em 16 jul 2009
GARZA, Mercedes de la (org.), Literatura maya. Caracas: Fundacion Biblioteca
Ayacucho, 1992 (2 ed.)
GELÓS, Patricia Pizzurno e ARAÚZ, Celestino Andrés Estudios sobre el Panamá
republicano (1903-1989). Colômbia: Manfer, S.A., 1996.
GILLY, Adolfo La revolución interrumpida. México, DF: Era, 2000.
173
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 4 ed.
GÓMEZ, Angel Barral Rebeliones indígenas en la América española Madrid : Mapfre,
1992.
GÓMEZ, Luis; GIORDANO, Al. Habla. El Mallku: Autonomía Indígena y la Coca.
Entrevista de Narco News con Felipe Quispe. La Paz, 15 jan 2002. Disponível em
http://www.narconews.com/felipe1es.html Acesso em 4 set. 2008
GONZÁLES, Jesús; ROTUNDO, Oscar; CAMPANA, Ana Cecilia Habla el Mallku
Felipe Quispe. Rebelión/Agencia Bolivariana de Prensa. 8/7/2005
<http://www.rebelion.org/noticia.php?id=17506> Acesso em 21 ago. 2008
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
HARVEY, David. “El „nuevo‟ imperialismo: acumulación por desposesión.” In:
PANITCH, Leo
LEYS, Colin (org.) Socialist Register 2004. CLACSO: Buenos Aires, 2005.
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Viramundo, 2003.
________________ “La revuelta de la dignidad” Revista Chiapas No. 3. México:
UNAM; Ediciones Era, 1997.
HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem
Mundial, , 1996.
IBARRA, Hernán "Intelectuales indígenas, neoindigenismo e indianismo en el ecuador”
Ecuador debate Nº 48, Quito: Centro Andino de Accion Popular, 1999.
http://www.dlh.lahora.com.ec/paginas/debate/ Acesso em 8/7/2007
JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a
revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São
Paulo: Ática, 2004.
JARA, Diego Delgado “Sobre los 'proyectos de Autonomías' en Guayaquil, Zulia, Santa
Cruz y Loreto” Altercom, 22 de setembro de 2006.
http://www.altercom.org/article143551.html Acesso em 8 jul. 2007
174
KATZ, Cláudio. El imperialismo del siglo XXI. Disponível em:
http://www.lahaine.org/katz/b2-img/El%20Imperialismo%20del%20Siglo%20XXI.doc
Acesso em 5 ago. 2009.
KLARÉN, Peter. “As origens do Peru moderno, 1880-1930.” In: BETHELL, Leslie.
História da América Latina. vol. V. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado;
Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2001.
LEIBNER, Gerardo El mito del socialismo indígena en Mariátegui. Lima, Fondo
Editorial de la PUC Peru, 1999.
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças - Marinheiros,
escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
LINERA, Alvaro García. “Multitud y Comunidad – La Insurgencia Social en Bolívia en
Bolívia”. IN Revista Chiapas n. 11, 7-16, 2001. UNAM/Ediciones Era, México.
___________________. “Democracia liberal vs. democracia comunitaria.” In El
Juguete Rabioso. La Paz, jan. 2004. Disponível em
<http://www.voltairenet.org/article122845.html>. Acesso em 13 ago. 2007.
___________________. “El desencuentro de dos razones revolucionarias. Indianismo y
Marxismo.” In: Cuadernos del Pensamiento Crítico Latinoamericano, no. 3. Buenos
Aires: CLACSO, dez. 2007. Disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/cuadernos/garcia/garcia.pdf
LLOSA, Mario Vargas. La utopía arcaica. José María Arguedas y las ficciones del
indigenismo.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1996.
LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto “Emiliano Zapata, indígenas y racismo”. La Jornada,
México, 5 out. 2007. Disponível em
http://www.jornada.unam.mx/2007/10/05/index.php?section=politica&article=024a1pol
LÖWY, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias
atuais. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1999.
_______________. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre
o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
175
_______________. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo,
LECH, 1979.
MACAS, Luis “El levantamiento indigena visto por sus protagonistas.” In: ALMEIDA,
Ileana. Indios. Una reflexion sobre el levantamiento indigena de 1990. Quito, Abya
Yala, 1991. p. 17-36.
MALDONADO, Ana María Larrea El Movimiento Indígena Ecuatoriano: participacion
y resistencia. In OSAL – Revista do Observatório Social de América Latina, n. 13,
Clacso, Buenos Aires.
MALLON, Florencia E. “Indian communities, political cultures, and the State in Latin
America”, 1780-1990”. in: Journal of Latin American Studies, 24 (1992): 35-54.
MAMANI, Pablo “Gobiernos barriales y su poder: Guerra del Gas em El Alto –
Bolívia” in: VVAA Sujetos y formas de la transformación política en Bolivia. La Paz:
Tercera Piel, 2006, p. 87-106.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios da interpretação peruana. São Paulo, Alfa-
Omega, 1975.
________________________. Mariátegui: política. São Paulo, Ática, 1982.
________________________. Invitación a la vida heróica. Lima: Instituto de Apoyo
Agrario, 1989.
MARÍN, Antonio Cuesta. Guatemala, la utopia de la justicia. Madrid: Rebelión, 2001.
Disponível em http://www.rebelion.org
MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
___________. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1998.
___________. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
___________. e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro,
Vitória, 1960.
_____________________________. Escritos sobre Rusia. II. El porvenir de la comuna
rural rusa. México: Cuadernos de Pasado y Presente, 1980.
176
_________________________________. Obras escolhidas (vol. 2). São Paulo: Alfa
Omega, s/d.
MERCADO, René Zavaleta. Lo nacional-popular en Bolivia. México: Siglo XXI, 1986.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais. Ed.UFMG, Belo Horizonte,
2003.
_______________. “El potencial epistemológico de la historia oral: algunas
contribuciones de Silvia Rivera Cusicanqui”. In: MATO, Daniel (org.) Estudios y otras
prácticas intelectuales latinoamericanas en cultura y poder. Buenos Aires, CLACSO,
2002. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/cultura/mignolo.doc
MOLLINEDO, Pedro Portugal “Constantino Lima: Memorias de un luchador
indianista”. In: Pukara, La Paz, 32, jun/jul 2008. Disponível em
<http://www.periodicopukara.com/pasados/pukara-32-articulo-del-mes.php>
NIN, Andreu (1932) Los Soviets: su origen, desarrollo y funciones. Fundación Andreu
Nin, 2006. Disponível em http://www.fundanin.org/nin18.htm
_____________ (1937) Los órganos de poder y la revolución española. Fundación
Andreu Nin, 2002. Disponível em http://www.fundanin.org/nin2.htm
NKRUMAH, Kwame. African Socialism Revisited. Praga: Peace and Socialism
Publishers, 1967. Disponvel em
http://www.marxists.org/subject/africa/nkrumah/1967/african-socialism-revisited.htm
PETRAS, James “Petras, Evo y el neoliberalismo indígena” Econoticiasbolivia.com,
2006 http://www.econoticiasbolivia.com/documentos/enfoque/i8.html Acesso em
9/7/2007
____________ “América Latina: cuatro bloques de poder” La Jornada, 10 mar. 2007.
Disponível em:
http://www.jornada.unam.mx/2007/03/10/index.php?section=opinion&article=030a1pol
Acesso em 9 jul. 2007.
___________ “Entre la insurrección y la reacción: la búsqueda del „capitalismo normal‟
por parte de Evo Morales” Rebelion, 26-05-2007
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=51356 Acesso em 9 jul. 2007.
177
___________ “El concepto de imperialismo neoliberal no es válido, estamos en una
transición ya consumada del neoliberalismo al imperialismo neo-mercantilista de
Estados Unidos” Rebelion, 26 de março de 2002
http://www.rebelion.org/petras/petras260302.htm Acesso em 9 jul. 2007.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter “Latifúndios Genéticos y existencia indígena”,
Revista Chiapas no. 14, 7-30. México: UNAM/Ediciones Era, 2002.
PRADA, Manuel González. Pájinas Libres (1894). Horas de Lucha (1908). Caracas:
Biblioteca Ayacucho, 1976.
_______________. “Nuestros índios”, in: ZEA, Leopold (compilador). Fuente de la
cultura latinoamericana. Vol. I. México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 1995
(reimp.).
PRADA, Raúl. Subversiones indígenas. La Paz: CLACSO; Muela del Diablo; Comuna,
2008
PRADO Jr., Caio Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense,
1953.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y America Latina” in:
LANDER, Edgardo (org.) La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales
–Perspectivas latinoamericanas. p. 227-278. Buenos Aires, Clacso, 2000.
______________. “Colonialidade, poder, globalização e democracia”. Novos Rumos,
São Paulo, Instituto Astrojildo Pereira. Ano 17, n. 37, 2002.
RATZINGER, Joseph Discurso do papa Bento XVI (11) na Abertura da V Conferência
BRASIL - APARECIDA- 13.05.2007 CNBB, 2007. Disponível em
http://www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=15225. Acesso em 8 jul. 2007
REED, John (1918) Los soviets en acción. Marxists Internet Archive, 2000. Disponível
em: http://www.marxists.org/espanol/reed/sovacc.htm.
RENTERÍA, Miguel Ángel Sámano “El indigenismo institucionalizado en México
(1936-200): un análisis” in: La construcción del Estado nacional: democracia, justicia,
paz y Estado de derecho. XII Jornadas Lascasianas. José Emilio Rolando Ordoñez
Cifuentes, Coordinador. Serie Doctrina Jurídica, Núm. 179. México: Instituto de
Investigaciones Jurídicas, Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), 2004.
178
RETAMAR, Roberto Fernandez. Todo Calibán. Habana: Fondo Cultural del ALBA,
2006.
RIBEIRO, Darcy. América Latina, a Pátria Grande. Rio de Janeiro, Editora
Guanabara,1986.
RIVAS, Edelberto Torres “Guatemala: medio siglo de historia politica (Un ensayo de
interpretación sociológica)”. In: CASANOVA, Pablo González. América Latina:
historia de medio siglo. 2 – México, centroamérica y el Caribe. 12 ed. México, D.F.:
Siglo XXI, 2003 p. 139-173.
ROJAS, Rodrigo Montoya. “Movimentos indigenas na América do Sul: potencialidades
e limites” in BARSOTTI, Paulo e PERICÁS, Luiz Bernardo (org.) América Latina:
história, idéias e revoluções. São Paulo, Xamã, 1998.
____________________. (org.) Voces de la tierra. Reflexiones sobre movimientos
políticos indígenas en Bolivia, Ecuador, México y Peru. Lima: Fondo Editorial de la
UNMSM, 2008.
ROMÁN, Jaime Wheelock Raices indigenas de la lucha anticolonialista en Nicaragua.
México: Siglo Veintiuno, 1976 (2a ed.)
ROSENMANN, Marcos Roitman. Pensar América Latina. El desarrollo de la
sociología latinoamericana. Buenos Aires: CLACSO, 2008.
ROSTWOROWSKI, Maria. Historia del Tahuantinsuyu. Lima: IEP, 2 ed., 1999.
SÁENZ, Roberto Crítica del romanticismo “anticapitalista” in Socialismo o Barbarie,
revista Nº 16, abril 2004. Disponível em: http://www.socialismo-o-
barbarie.org/bolivia_arde/critica_romanticismo_anticapitalista.htm Acesso em 8 jul.
2007
SAHLINS, Marshall. “A primeira sociedade da afluência”. in CARVALHO, Edgard
Assis (org.) Antropologia Econômica. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas,
1978. p. 7-45.
SALAZAR, Luis Suárez; LORENZO, Tania García. Las relaciones interamericanas:
continuidades y cambios. Buenos Aires: Clacso, 2008.
SALOJ, Blanca Alvarado de “Participación política de los pueblos indígenas en
Guatemala”. In:
179
SANTILLÁN, Diego Abad de. Organismo Econômico da Revolução. São Paulo:
Brasiliense, 1980.
SANTUCHO, Mario Roberto (1974) “Poder burgués y poder revolucionario” in
SANTIS, Daniel de (org.). A vencer o morir. PRT-ERP Documentos. Buenos Aires:
Editorial Universitaria de Buenos Aires-EUDEBA, 2000. Tomo II, p.275-308.
SCHWARTZ, Jorge Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos
críticos. São Paulo, Edusp; Iluminuras; FAPESP, 1995.
SHAKESPEARE, William. The Complete Works. Nova Iorque: Gramercy, 1990.
SHANIN, Teodor. Late Marx and the Russian Road: Marx and "the peripheries of
capitalism". Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983.
STAVENHAGEN, Rodolfo “Clases, colonialismo y aculturación: Ensayo sobre un
sistema de relaciones interétnicas en Mesoamérica”. América Latina (Rio de Janeiro),
Vol. 6, n. 4, outubro – dezembro 1963.
______________________. Las clases sociales en las sociedades agrarias. México:
Siglo XXI, 1969.
STEINSLEGER, José. Nina Pakari, diputada indígena en Ecuador, entrevista,
Masiosare, Suplemento de la Jornada, México, 20 mai. 2001. Disponível em
<http://www.jornada.unam.mx/2001/05/20/mas-pakari.html> Acesso em 03 set. 2008.
STEFANONI, Pablo. “El nacionalismo índigena como identidad política: La
emergencia del MAS-IPSP (1995-2003).” Informe final del concurso: Movimientos
sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de
Becas CLACSO. Buenos Aires, 2002. Disponível em
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/2002/mov/stefanoni.pdf
STERN, Steve J. (org) Resistencia, rebelion y conciencia campesina en los Andes.
Siglos XVIII al XX. Lima, IEP: 1990.
TAPIA, Luis. “Movimientos sociales, movimientos societales y los no lugares de la
política” en Política salvaje. La Paz: CLACSO; Muela del Diablo Editores; Comuna,
2008.
TEVES, Ramón Pajuelo. “El lugar de la utopía aportes de Anibal Quijano sobre cultura
y poder”. In: MATO, Daniel (org.). Estudios y otras prácticas intelectuales
180
latinoamericanas en cultura y poder. : CLACSO, 2002. Disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/cultura/pajuelo.doc
____________________. Reinventando comunidades imaginadas. Movimientos
indigenas, nacion y procesos sociopoliticos en los paises centroandinos. Lima: IEP,
2007.
TEVES, Ramón Pajuelo; ROSENBERGER, Markus (org.) Políticas indígenas estatales
en los Andes y Mesoamérica. Avances, problemas, desafíos: un intercambio de
experiencias. Lima, Fundación Konrad Adenauer, 2007. p. 85-101.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
TURRIÓN, Pablo Iglesias; LÓPEZ, Jesús Espasandín; GALVÁN, Iñigo Errejón.
“Devolviendo el balón a la cancha. Diálogos con Walter Mignolo.” 2007. Disponível
em: http://www.universidadnomada.net/spip.php?article176 Acesso em 4 ago. 2009.
VILABOY, Sergio Guerra. Breve Historia de América Latina. La Habana: Editorial de
Ciencias Sociales, 2006.
VILAS, Carlos M. “Multietnicidad y autonomía. La Costa Atlántica de Nicarágua”. In:
Nueva Sociedad, Caracas, n. 98, p. 50-59, nov-dez 1988. Disponível em
<http://www.nuso.org/revista.php?n=98>
VITALE, Luis. Introducción a una teoría de la historia para América Latina. Editorial
Planeta: Buenos Aires, 1992.
____________. Historia de Nuestra America 1. Los pueblos originarios. Santiago:
Ediciones CELA (Centro de Estudios Latinoamericanos), 1991. Disponível em:
http://mazinger.sisib.uchile.cl/repositorio/lb/filosofia_y_humanidades/vitale/obras/obras
.htm
WALLERSTEIN, Immanuel. Análisis de sistemas-mundo: una introducción. México:
Siglo XXI, 2006, 2 ed.
_____________________. “¿Qué significa hoy ser un movimiento anti-sistémico?” En:
OSAL: Observatorio Social de América Latina. No. 9 (ene. 2003- ). Buenos Aires:
CLACSO, 2003.
181
WOLF, Eric R. Europe and the people without history Berkeley, Los Angeles, Londres:
University of California Press, 1990.
____________ Pueblos y culturas de Mesoamerica. 9 ed. Mexico, Ediciones Era, 1985.
____________ Las luchas campesinas del siglo XX. Mexico, Siglo Veintiuno, 1972.
ZEA, Leopold (org.). Fuente de la cultura latinoamericana. México, D.F., Fondo de
Cultura Económica, 1995 (reimp.), 2 v.
ZIBECHI, Raúl Genealogía de la revuelta. Argentina: una sociedad en movimiento, La
Plata: Letra Libre, 2003.
_____________ Dispersar el poder: los movimientos como poderes antiestatales. La
Paz: Perguntas Urgentes/Textos Rebeldes, 2006.
_____________. Autonomías y emancipaciones. América Latina en movimiento. Lima:
Programa Democracia y Transformación Global; Fondo Editorial de la Facultad de
Ciencias Sociales – UNMSM, 2007.
______________. Territorios en resistencia - Cartografía política de las periferias
urbanas latinoamericanas. Buenos Aires, Lavaca editora, 2008.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo