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Pluralismo Religioso no Currículo de Língua Portuguesa
(Literatura) do Ensino Médio
BELO, Roberto1
OLIVEIRA, Gustavo Gilson2
RESUMO: O objetivo central dessa pesquisa foi investigar até que ponto e como a
questão da diversidade de identidades e das diferenças religiosas presentes no
espaço escolar – entre educadores e estudantes – é (ou não) reconhecida e
problematizada nos textos literários estudados no currículo de Língua Portuguesa do
Ensino Médio, em Pernambuco, e nos contextos práticos em que esses textos são
trabalhados em uma escola pública da Região Metropolitana do Recife. A literatura
enquanto artefato cultural, quer seja ela classificada como clássica, popular,
infantojuvenil ou outra, é necessariamente atravessada pelos elementos e lógicas –
símbolos, personagens, representações, conceitos e crenças, inclusive religiosas –
que permeiam o horizonte imaginário de uma comunidade linguística. A diversidade
cultural brasileira tem sido considerada um marco caracterizador do país. O pluralismo
religioso, nesse sentido, tem sido afirmado como parte dessa diversidade.
Palavras-chave: educação; cultura; religião
INTRODUÇÃO
A questão da diversidade/diferença cultural brasileira e de como ela é (ou não)
representada e reconhecida nos documentos curriculares oficiais, nos materiais
didáticos e nas práticas educativas dos cotidianos escolares vem sendo
1 Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Letras pela mesma instituição. Poeta, Escritor e Produtor Cultural da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE). Desenvolve a pesquisa Diversidade de Identidades e de Diferenças Religiosas na Literatura Brasileira (CAPES/UFPE), sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Gilson Oliveira. E-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGE/CE/UFPE), do Programa de Pós-graduação em Educação Contemporânea do Centro Acadêmico do Agreste (PPGEDUC/CAA/UFPE) e do Departamento de Fundamentos Sócio Filosóficos da Educação (DFSFE/CE/UFPE). Doutor e Mestre em Sociologia pela UFPE. E-mail: [email protected]
crescentemente pesquisada e debatida em diversos trabalhos acadêmicos nos
últimos anos (LOPES e MACÊDO, 2011; MOREIRA e CÂMARA, 2010; CANDAU,
2010; MACEDO, 2009 e 2006). A grande maioria desses trabalhos vem sendo
desenvolvida em diálogo com os debates internacionais contemporâneos a partir de
perspectivas como os Estudos Culturais (COSTA, 2005), o Multiculturalismo
(CANDAU, 2010), o Pós-colonialismo e a Descolonização (WALSH, 2009), e a Teoria
do Discurso (OLIVEIRA et al. 2013; LOPES e MACEDO, 2011; BURITY, 2010).
O currículo de Língua Portuguesa e, particularmente, os textos literários
utilizados e estudados nesse componente curricular, constituem uma referência
privilegiada para a investigação sobre até que ponto e como a questão das identidades
e diferenças religiosas vem sendo trabalhada e/ou manifesta no contexto do ensino
médio no Brasil e, especificamentee em Pernambuco. A literatura enquanto artefato
cultural (EAGLETON, 2001) – quer seja ela classificada como clássica, popular,
infanto-juvenil ou outra – é necessariamente atravessada pelos elementos e lógicas –
símbolos, personagens, representações, conceitos e crenças, inclusive religiosas –
que permeiam o horizonte imaginário (GLYNOS e HOWARTH, 2007) de uma
comunidade linguística.
No contexto brasileiro, caracterizado pela absoluta hegemonia católica na
constituição da cultura e da própria identidade nacional, as tradições literárias
dominantes também se encontram fortemente embebidas pelo – embora não
reduzidas ao – imaginário religioso cristão-católico, inclusive como referência para a
interpretação de outros símbolos e tradições religiosas (LIMA, 1999). É possível
destacar, por exemplo, a forte presença da temática religiosa em escritores/as tão
diversos quanto Gregório de Matos, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Guimarães
Rosa, Jorge Amado, Vinícius de Moraes, Ariano Suassuna, Adélia Prado, João Ubaldo
Ribeiro, Ruth Rocha, Ana Maria Machado entre outros (FERRAZ et al. 2008;
MAGALHÃES, 2000). Torna-se imprescindível, portanto, analisar como essas
tradições literárias estabelecidas passam a ser (re)interpretadas e (re)apropriadas no
contexto escolar brasileiro e pernambucano no decorrer desse crescente movimento
de dinamização e pluralização religiosa.
O Brasil tem sido considerado um país multicultural. Não se pode falar de uma
cultura brasileira como se houvesse uma unicidade que corporificasse todas as
manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro, até mesmo porque é quase
inexistente haver uma uniformidade em sociedades modernas e menos ainda em
sociedades de classes (BOSI, 1992, p.307). Quando se fala de cultura é essencial o
reconhecimento do plural – culturas, conforme explica Alfredo Bosi. Ademais,
referimo-nos ao termo “cultura” no seu sentido mais amplo, antropológico como
escrevera Franz Boas (2004, p. 53). Para este os discursos não ocorrem isolados e
de forma concordante, mas, “reconhecemos que o indivíduo só pode ser
compreendido como parte da sociedade à qual pertence, e que a sociedade só pode
ser compreendida com base nas inter-relações dos indivíduos seus constituintes”. A
antropologia, por exemplo, tem a variação como objeto primordial nos estudos
relacionados à cultura, assim também
não é a religião enquanto conservação e permanência que deve interessar
à sociologia, mas sim a religião em mudança, a religião como possibilidade
de ruptura e inovação, a mudança religiosa e, portanto, a mudança cultural.
Desde tempos remotos, faz parte da verdade religiosa apresentar-se como
imutável, intemporal, eterna. Conforme diz a reza do Glória ao Pai: “assim
como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos”.
E no entanto religiões mudam, sempre mudaram. (PIERUCCI & PRANDI,
1996, p. 9)
A identidade cultural do Brasil é constituída pela hibridização da identidade
cultural de várias tribos indígenas, de vários povos africanos, de vários povos
europeus, entre outros povos, cada um com suas peculiaridades. A nossa
complexidade identitária está na mestiçagem cultural que carregamos e isso é um
traço caracterizador marcante da nossa gente, embora não tenha isso se dado de
forma pacífica mas sob dura mutilação cultural, escravização e eliminação física do
“outro” (CANDAU, 2010).
É importante assinalar que estudar religião, numa perspectiva científica, é
ultrapassar os limites definidos pelo senso comum. O próprio termo religião, que se
originou da palavra latina religio, que indicava um conjunto de regras, observâncias,
advertências e interdições, não fazia referência a divindades, rituais, mitos ou
quaisquer outros tipos de manifestação tal qual entendemos atualmente, mas foi se
criando historicamente e culturalmente significados para o termo até chegar à tradição
cristã. Sendo assim, fruto da tradição cristã, o conceito de religião não é algo original
e absoluto, uma vez que fora se definindo ao longo da história. Silva (2004) diz que “a
definição mais aceita pelos estudiosos, para efeitos de organização e análise, tem
sido a seguinte: religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres
sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais específicos”. Assim sendo,
pretendemos analisar os fenômenos e sistemas religiosos como parte da cultura, que
nesse caso se identifica como alguma experiência humana através das diversas
linguagens e símbolos.
OBJETIVOS
O objetivo geral/principal da pesquisa proposta foi investigar até que ponto e
como a questão da diversidade de identidades e das diferenças religiosas presentes
no espaço escolar – entre educadores e estudantes – é (ou não) reconhecida e
problematizada nos textos literários estudados no currículo de Língua Portuguesa do
ensino médio, em Pernambuco, e nos contextos práticos em que esses textos são
trabalhados em uma escola pública da Região Metropolitana do Recife.
Partindo da referência dos Estudos Culturais na educação (WALSH, 2009;
COSTA, 2005) e da Teoria do Discurso (OLIVEIRA et al. 2013; LOPES e MACÊDO,
2011; LACLAU e MOUFFE, 2001), a pesquisa apresentada buscou discutir, assim, as
seguintes questões específicas:
i) Quais são os principais elementos religiosos – temas, personagens,
mitos, ritos, símbolos, crenças, conceitos etc. – presentes nos textos
literários trabalhados no currículo do ensino médio, em Pernambuco,
e como esses elementos são apresentados nesses textos?;
ii) Como a presença desses elementos religiosos vem sendo
recebida, (re)interpretada e (re)apropriada por docentes e estudantes
em um contexto escolar cada vez mais pluralizado religiosa e
culturalmente?;
iii) Até que ponto a leitura e a reflexão sobre as obras literárias no
âmbito escolar têm contribuído e/ou podem contribuir para o
aprofundamento da formação cultural e para a preparação para a
vivência de uma realidade religiosa pluralista no contexto brasileiro
contemporâneo?
Ademais, as seguintes metas foram traçadas em nosso plano de trabalho,
sendo todos os pontos discutidos e os resultados apresentados no corpo deste
trabalho:
a) A indicação das principais características dos discursos sobre as
identidades/diferenças culturais e/ou religiosas elaborados pelos
documentos curriculares oficiais de Língua Portuguesa, nos âmbitos
nacional e estadual;
b) A identificação dos principais textos literários trabalhados no
currículo de Língua Portuguesa em uma escola pública da Região
Metropolitana do Recife e a indicação de até que ponto e como
elementos religiosos estão presentes e são trabalhados nesses
textos;
c) A indicação das principais práticas e estratégias mobilizadas por
docentes e estudantes para interpretar e apropriar-se dos textos
literários curriculares na relação com suas próprias identidades
religiosas e com as diferenças religiosas presentes no ambiente
escolar;
d) Realização e avaliação de duas oficinas (uma com docentes e outra
com estudantes) utilizando textos literários para buscar aprofundar a
reflexão sobre identidade/diferença e pluralismo religioso.
METODOLOGIA
Nossa pesquisa deu-se por etapas, da seguinte forma:
a) primeiramente fizemos um levantamento bibliográfico, leitura e análise
sistemática das principais pesquisas e trabalhos já produzidos sobre educação,
literatura e identidade/diversidade cultural e religiosa no Brasil e em Pernambuco;
b) depois, analisamos sistematicamente alguns documentos oficiais que
regulam a educação brasileira e o ensino de língua portuguesa nas escolas públicas
do país e especificamente em nosso estado. Fizemos uma análise exploratória nos
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 2002 e 2000); nos
Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental e Médio
do Estado de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2012); e no Guia do Livro Didático de
Língua Portuguesa – Ensino Médio (BRASIL, 2009), buscando investigar até que
ponto e como a questão das identidades/diferenças culturais e religiosas é
problematizada e articulada com o currículo de Língua Portuguesa e Literatura nesses
documentos;
c) em seguida, já no espaço escolar, foram realizadas entrevistas com
professores e estudantes do ensino médio de uma escola pública estadual localizada
na Região Metropolitana do Recife. Entrevistamos quatro docentes de língua
portuguesa, professores concursados, efetivos, do Governo Estadual, e seis
estudantes da mesma instituição, sendo dois de cada série do ensino médio (1º, 2º
e 3º). A partir dessas entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas
individualmente entre os participantes, colhemos fontes bibliográficas dos principais
textos literários trabalhados no currículo do ensino médio por eles; buscamos nas
entrevistas investigar quais os principais elementos religiosos – temas, personagens,
mitos, ritos, símbolos, crenças, conceitos etc. – presentes nesses textos e como eles
são apresentados nos mesmos, segundo a visão dos professores e dos próprios
estudantes;
d) de posse do material de campo colhido, partimos para a análise bibliográfica
dos principais textos e autores trabalhados pela instituição escolar, além do próprio
discurso dos docentes e dos estudantes; essas observações foram investigativas;
buscamos problematizar como os elementos religiosos presentes nos textos literários
vêm sendo trabalhados, recebidos, (re)interpretados e (re)apropriados por esses
sujeitos no espaço escolar e através das práticas escolares;
e) por fim, preparamos duas oficinas para os professores e estudantes da
escola analisada, mas, infelizmente, por causa da greve no meio do ano, a escola não
permitiu a aplicação delas, alegando incompatibilidade com o calendário escolar do
ano letivo, que já estava comprometido, sendo aulas inclusive ministradas aos
sábados.
É de suma importância assinalar que a análise dos documentos, textos,
entrevistas e observações realizadas por nós nesta pesquisa foram desenvolvidas
através de um procedimento de análise do discurso informado pelos recursos
conceituais da Escola Francesa de Análise do Discurso (MAINGUENEAU, 1997,
1996), da Semiologia de Barthes (2003, 1996) e da Teoria do Discurso (OLIVEIRA et
al. 2013; GLYNOS e HOWARTH, 2007; LACLAU e MOUFFE, 2001), conforme vimos
teoricamente pontuando e problematizando.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
DOCUMENTOS OFICIAIS
Observamos primeiramente que, no geral, os documentos oficiais, a saber, os
PCNEM - Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000);
os PCNEM+ - Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/Mais (BRASIL,
2002); os PCEPE - Parâmetros Curriculares Estaduais de Pernambuco
(PERNAMBUCO, 2012) e o Guia do Livro Didático de Língua Portuguesa – Ensino
Médio (BRASIL, 2009), traçam um perfil imaginário de sujeito para sustentar suas
ideias, pois há no discurso oficial um silêncio considerável no que se refere à
diversidade cultural/religiosa da comunidade escolar, como se não houvesse o
dissenso, o contraditório, e mais que isso: como se não existisse o diferente, mas um
modelo idealizado de escola, professor e aluno. O tema é tratado minimamente e de
forma superficial, embora se tenha uma tentativa de exploração da temática através
dos PCN – Pluralidade Cultural, que poderia ser melhor trabalhado do ponto de vista
empírico e metodológico. Percebe-se, a partir das análises realizadas por nós nesses
documentos, que o discurso oficial não toma a diversidade cultural como tema
problematizador, ficando ainda muito preso ao plano puramente das ideias.
Ainda assim, articulamos os documentos entre si e chegamos a conclusão de
que eles, timidamente, orientam a escola a “conhecer e valorizar a pluralidade do
patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos
e nações”, dizendo-se posicionar-se contra qualquer discriminação baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras
características individuais e sociais; para tanto, “há que se considerar o princípio da
eqüidade, isto é, que existem diferenças (étnicas, culturais, regionais, de gênero,
etárias, religiosas etc.) e desigualdades (socioeconômicas) que necessitam ser
levadas em conta para que a igualdade seja efetivamente alcançada”. Direcionando-
se aos jovens do Ensino Médio, acrescentam os PCN que “a identidade estará
presente na afirmação e na autoestima do jovem estudante, no estudo antropológico
das organizações familiares, das culturas alimentares, musicais ou religiosas, nas
questões de identidade nacional diante da globalização cultural” (BRASIL, 2000).
Comparando os Parâmetros Curriculares Nacionais com os Parâmetros
Curriculares Estaduais de Pernambuco, vê-se que os documentos locais melhor
estimulam e esclarecem o tema, apresentando elementos consistentes para o debate
e rica bibliografia, embora estejamos aqui nos referindo aos temas mais gerais, tendo
em vista que, no que se refere às diferenças locais, os parâmetros estaduais não
contemplam as particularidades específicas do Estado de Pernambuco pelo fato,
inclusive, de ser ele planejado e produzido na região sudeste do país, em Minas
Gerais, por questões políticas e econômicas.
TEXTOS LITERÁRIOS
Tratando-se especificamente dos textos literários, vimos que a escola trabalhou
com o Barroco, com o Romantismo, com o Realismo e com o Modernismo, sendo a
literatura estudada do ponto de vista historiográfico, fechando-se em épocas e
limitando-se aos autores considerados clássicos pelo livro didático, ou seja, como já
indicado por diversos autores, os professores não partem da realidade dos estudantes
e da situação do país, mas exploram o texto apenas como pretexto para a
memorização de conceitos e de uma possível língua culta, a língua dos intelectuais.
Tendo em vista esse currículo tradicional e engessado, os estudantes relataram em
entrevistas realizadas por nós que não gostavam de ler. Ademais, há no próprio
discurso dos professores reclamações a respeito do desinteresse dos estudantes pelo
texto literário, quando a resposta para esses desestímulos da parte dos estudantes
está na metodologia utilizada pelos docentes e no modelo de aula que eles vêm
sustentando nessa instituição de ensino.
Diante dos movimentos literários citados, é interessante apontar que o Barroco
é a melhor representação do catolicismo presente na literatura brasileira, sendo as
obras enriquecidas com cruzes, imagens, esculturas e rituais próprios da Igreja
Católica, elementos esses trabalhados pelos autores da época e contemplados em
nossa análise bibliográfica. Textos como os de Gregório de Matos (1636?-1695?),
conhecido como o Boca do Inferno, por exemplo, trazem características marcantes da
religiosidade daquele tempo, como em “Pequei, Senhor, mas não porque hei
pecado,/Da vossa piedade me despido,/Porque quanto mais tenho delinquido,/Vos
tenho a perdoar mais empenhado./[...]/Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada/Cobrai-
a, e não queiras, Pastor divino,/Perder na vossa ovelha a vossa glória.”.
No Romantismo ainda prevalece o catolicismo muito forte na caracterização
das personagens e no cenário das obras, sendo o enredo dos romances construídos
em torno de amores impossíveis: a mocinha que não pode casar-se com o amado
porque os pais não permitem e a enclausura em um convento; o rapaz que mesmo
apaixonado não pode corresponder ao amor da amada porque fora prometido pelos
pais ao celibato, etc., ou seja, são obras que estão embebidas no Cristianismo e,
sobretudo, na cultura católica que dominava os séculos XVIII-XIX, como a obra Amor
de Perdição, de Camilo Castelo Branco (1825-1890), que narra os terríveis conflitos
amorosos cuja única solução é a morte dos amantes, ou mesmo autores brasileiros,
tais como Castro Alves com seu “O navio negreiro”, que levanta críticas à escravidão:
“Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura... se é
verdade/Tanto horror perante os céus.../Ó mar! por que não apagas/Co’a esponja de
tuas vagas/De teu manto este borrão?.../Astros! noite! tempestades! Rolai das
imensidades!/Varrei os mares, tufão!...”.
Conforme os livros didáticos costumam classificar comumente, o Realismo,
ainda no século XIX, teve início com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis (1839-1908), e representantes importantes como Aluísio Azevedo (1857-
1913), autor de O mulato, O cortiço, entre outros romances. Esses livros dão início ao
reconhecimento da diversidade cultural do povo brasileiro, mesmo prevalecendo o
catolicismo, os autores já deixam transparecer outras religiões, como em O Cortiço
em que se vê na personagem Rita Baiana, por exemplo, elementos do candomblé,
através de suas andanças pelos pagodes e capoeiras, que se disseminava nos morros
cariocas. Assim, dá-se início um tempo depois ao Modernismo, sendo aí a melhor
propagação e defesa de uma cultura genuinamente brasileira. Escritores como Mário
de Andrade (1893-1945) e Manuel Bandeira (1886-1968), apenas para citar alguns,
contribuíram de forma positiva para o reconhecimento das diversas culturas
constituintes do povo brasileiro.
A obra de Bandeira, como bom representante do nosso Modernismo, é
marcada por uma religiosidade escancarada, pois seus textos são carregados de
elementos que nos remetem ao sagrado, ao espiritual, sendo mais percebidas
constantemente marcas do cristianismo e, vez ou outra, das religiões de matriz
africana, como nos poemas Oração a Teresinha do Menino Jesus, Nossa Senhora da
Boa Morte, Macumba do Pai Zuzé, entre tantos outros. A verdade é que o autor
escreveu seus textos numa época em que o catolicismo ainda era considerado a
religião nacional do Brasil, embora não mais oficial. E, mesmo não sendo devoto
confesso, Bandeira faz uso dos elementos, símbolos e definições do sagrado nessa
perspectiva cristã.
DISCURSO DOS PROFESSORES
Elaboramos um roteiro com perguntas semiestruturadas para a entrevista com
os docentes. Foram entrevistados todos os professores de língua portuguesa da
escola selecionada, totalizando quatro professores efetivos, concursados do
Governo estadual; sendo Professor 1 Sem Religião, Professora 2 Católica, Professora
3 Evangélica e Professora 4 Evangélica. A escolha da escola se deu de forma
aleatória.
DISCURSO DOS ESTUDANTES
Elaboramos um roteiro específico com perguntas semiestruturadas para os
estudantes do ensino médio. Foi entrevistada uma amostra de dois alunos por série,
a saber, dois alunos do primeiro ano, dois do segundo e dois do terceiro; sendo Aluno
1 Evangélico, Aluna 2 Sem Religião, Aluna 3 Sem Religião, Aluna 4 Evangélica, Aluna
5 Evangélica e Aluna 6 Católica. A escolha se deu de forma aleatória, para quem
quisesse participar. As entrevistas foram individuais e reservadas.
CONCLUSÕES
Partindo do pressuposto de que a literatura é um artefato cultural e a religião
um sistema comum de crenças e práticas, pudemos problematizar a questão
religiosa/cultural nos textos literários do ensino médio, examinando o tratamento dado,
pelos escritores, professores e estudantes, aos símbolos e elementos religiosos.
Primeiramente constatamos que os textos/discursos literários estão fortemente
atravessados por elementos e lógicas que permeiam o horizonte imaginário de
qualquer povo, estando aí a religião; depois, que o Brasil, apesar do crescimento
acelerado de outras religiões neste início de século, em sua maioria de tradição cristã,
e de um reconhecido multiculturalismo, permanece privilegiando grupos majoritários,
sendo a religião Católica mais manifesta na escrita dos autores brasileiros. Por outro
lado, grupos considerados minoritários no passado têm ganhado espaço na
sociedade, como é o caso dos evangélicos, que são bem representativos na escola
analisada, mas não na literatura, e as religiões de matriz africana, que têm sido
lembradas através de eventos culturais, sobretudo em atendimento à Lei 10.639/03,
que determina a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-
brasileira nas escolas.
Todavia, apesar desse reconhecimento, tem-se observado que a hegemonia
de grupos culturais/religiosos, qualquer que seja ele, só tem contribuído para a
disseminação de preconceito, discriminação, subjugação e desigualdades, como é o
caso da instituição escolar estudada em que os estudantes, que são maioria
evangélica, vêm rejeitando eventos relacionados à cultura afro, por exemplo, e até
mesmo tradições católicas da própria instituição, que por sua vez vem tentando se
ajustar a essas novas demandas, exigências identitárias, abrindo espaços mais
plausíveis para a maioria.
No geral, observamos que as escolas têm permitido e cultivado, mesmo que
despercebidamente, práticas conservadoras e arbitrárias, como já criticara Moreira &
Candau (2003, p.161) em pesquisas anteriores.
Alguns autores apontam a educação intercultural como uma das saídas para o
combate dessa concepção assimilacionista e essencialista presentes no plano da
cultura, além da interação entre os diversos grupos culturais/religiosos, pois as
culturas não devem ser vistas como algo fixo dotado de uma essência pré-
estabelecida. Entendemos cultura como algo dinâmico e histórico, capaz de integrar
as raízes históricas e as novas configurações que surgem no meio social.
Devemos lutar contra essas práticas obsoletas que nos fazem ser iguais ao
outro, ou melhor, nos obrigam a parecer iguais, como critica Bhabha (1998, p. 134)
“quase o mesmo, mas não exatamente”. Historicamente estão apagando nossas
diferenças, roubando nossos direitos, corroendo nossas identidades, desrespeitando
a pessoa humana. Não podemos esquecer que o Brasil foi colonizado à base do
genocídio, infelizmente, por isso tanta desigualdade, indiferença e desrespeito com o
diferente.
Analisando os livros adotados pelos professores do ensino médio e presentes
no currículo de língua portuguesa, observamos que no geral a literatura brasileira é
rica em conteúdo, temas e assuntos, e diversificada em autores, clássicos e
contemporâneos, apresentando obras de qualidade editorial com excelentes projetos
gráficos, e escritores comprometidos com a literariedade3 constitutiva de um texto
artístico.
3 Termo sugerido por Roman Jakobson para distinguir um texto literário de um texto não literário. Segundo Jakobson, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária.
Quanto ainda ao texto literário, observamos que os professores trabalham sob
uma perspectiva historiográfica, assim como o livro didático que utilizam, deixando de
lado as várias outras possibilidades que o texto artístico pode proporcionar ao leitor,
sobretudo em relação às vivências dos estudantes. Há uma carência de formação
específica e continuada sobre metodologias do ensino de literatura para os docentes
do ensino básico, sendo neste caso, o ensino médio. Nesse sentido, vimos que os
estudantes desprezam a literatura brasileira, especificamente aquela considerada
clássica dos nossos autores, optando por livros menos densos do ponto de vista
literário, ou seja, os jovens do ensino médio leem, mas não as obras consideradas
importantes para a formação intelectual do estudante, ficando com best-sellers
midiáticos, conforme relatamos nos resultados deste trabalho.
A religião é um elemento muito presente na vida do povo brasileiro e isso se
reflete em sua vida diária de tal modo que se constitui parte fundamental do ethos da
cultura brasileira.
O pluralismo é um fato. A diversidade das religiões e opções espirituais
demanda um estudo atencioso. Segundo Faustino Teixeira (2012), hoje duas áreas
precisam de atenção especial: a ecologia e o diálogo com as religiões. A prática do
diálogo intercultural e inter-religioso deve invadir as instituições senão seremos
tragados pelo preconceito, discriminação, injustiça e ódio. “Já não vivemos tempos de
Cristandade. As religiões, enquanto instituição, sofrem enorme desgaste. Nenhuma
conseguirá encontrar sozinha caminhos para falar às pessoas da pós-modernidade”,
diz o autor.
Os estudos científicos vêm de certa forma tentando entender o fenômeno
religioso para agir concretamente ante os conflitos levantados, sugerindo uma cultura
de paz ante as diferenças. José Carlos Calazans (2008, p. 18), por exemplo, defende
a ideia de que “o contributo da Ciência das Religiões para a compreensão do
fenômeno religioso é tão importante como para a paz social. Promovê-lo é, ao mesmo
tempo, ajudar a construir uma diplomacia de paz entre os povos”.
Hall (2003, p.10) nos apresenta três concepções de identidades: sujeito do
iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. E é esse último que nos chama
a atenção nesse momento, pois o sujeito pós-moderno é visto como não tendo uma
identidade fixa, essencial e permanente. A identidade do homem pós-moderno é
definida historicamente e não biologicamente.
Desde a última Constituição, de 1988, o país tem experimentado a liberdade
religiosa de forma muito intensa, quando nos primeiros anos de povoação éramos
forçosamente adeptos de uma única igreja/religião. Atualmente, vê-se que grupos
minoritários emergem e desafiam a hegemonia de determinadas religiões que se
autodenominam absolutas. Em termos culturais, estamos sim vivendo a liberdade
religiosa intensamente.
A questão não é mais saber que se é diverso, mas viver essa diversidade no
dia a dia. As pessoas não mais se sentem reféns de nenhum campo religioso. Há
opções de escolhas. Ainda mais quando se diz que os brasileiros têm pouca devoção,
como relatou o padre Fernão Cardim, quando dizia que as pernambucanas
quinhentistas eram “muito senhoras e não muito devotas” por não serem assíduas às
pregações e confissões (HOLANDA, 1995, p. 150).
Tornou-se o pluralismo religioso um desafio nesse início de século para a
teologia e estudiosos da religião. Teixeira (2012, n.p.) é enfático ao dizer que “o
pluralismo religioso deixou de ser compreendido como um fenômeno conjuntural
passageiro, um fato provisório, para ser percebido na sua riqueza como um pluralismo
de princípio ou de direito”. O campo religioso brasileiro está em constante
mudança/alteração, por isso uma reinterpretação dos fatos é importante para se
entender como se dá essa mudança, saindo a religião do plano meramente simbólico
e entrando nas explicações mais propriamente sociológicas, científicas.
É notório o pluralismo religioso no Brasil. As pessoas têm reconhecido nesses
últimos anos o direito à manifestação de diferentes crenças, sendo as identidades
construídas com e a partir dessas novas experiências. Os professores sofrem por não
ter uma formação interdisciplinar e diversificada para lidar com o diferente em sala de
aula, outrossim, os estudantes vêm paulatinamente exigindo espaços que acomodem
suas diferenças culturais/religiosas entrando muitas vezes em conflito com o outro, e
as escolas têm tentado se adequar a essas novas demandas sociais. Nesse sentido,
a literatura enquanto ferramenta social pode contribuir para o debate, trazendo autores
e obras comprometidos com a cultura do seu país, porque acreditamos que a
linguagem está inserida em diálogos constantes com a vida social e cultural de um
povo, por isso ela é viva, múltipla, cheia de significados.
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