Upload
armando-florencio
View
93
Download
14
Embed Size (px)
Citation preview
MRIO CESARINY DE VASCONCELOS
POESIA( 1 9 4 4 - 1 9 5 5 )
A POESIA CIVIL DISCURSO SOBRE A REABILITAO DO REAL QUOTIDIANO PENA CAPITAL MANUAL DE PRESTIDIGITAO ESTADO SEGUNDO ALGUNS MITOS MAIORES ALGUNS MITOS MENORES PROPOSTOS C IRCULAO
PELO AUTOR
P O E S I A
Desenho pena de Joo Rodrigues
PO ES IA CIVIL
P R L O G O
Um tempo havia muito feliz em que eu pedia ao cu raiz
A terra era julgava eu sala de espera carinho meu
11
Nossa Senhora do Ma Ladro chegada a hora da coroao
Agrilhoado antes, depois chorei dobrado por ns os dois
12
PR L O G O
Pelo caminho verde vem Maria A dos seios de rosa a dos olhos de me. Pelo caminho sbrio vem
Maria
13
PR L O G O
O jogral do curiscou uma estrela no manto judeu
E o milagre veiosem perdo nenhum sem forma sem meio
Sobre a palha louracaiu o menino de Nossa Senhora
Menino perfeitocom fomes e prantos, com raivas e peito
14
/Ceclia pediu o cu Nossa Senhora no
Teresa pediu as dores Nossa Senhora no
Ins falou ao Senhor Nossa Senhora no
15
Helena morreu no circo Joana fugiu de casa Kuth cortou os cabelos
Nossa Senhora no
Senhora por humildade Nossa por submisso
Madalena teve um filho Nossa Senhora no
16
11
Para que houvesse altar para nascer figura para o galo cantar noite escura
Aquela que em vida foi desapossada foi morta descida crucificada e ao terceiro dia no foi nada
217
III
E uma vez uma vez sNossa Senhora desesperou
AH ... Ah .. . AH . . .
Mas Nossa Senhora decnciaclaridadepurezamaternidade
18
Na revolta que teve no durou
Desapareceu na poalha do cu
E assim que ela passa no andorNossa Senhora do Exterior
A que ficou no fundo a que no foi s ao poeta doi
19
IV
Alta, seroal, na tarde canora vai Nossa Senhora pelo meloal
20
A ver o melo que se h-de comer se Jesus quiser antes da Paixo
E quer dos maiores e procuram bem os olhos de me quebrados de dores
Cu da Galileia que a viste fu rtar ; brisa, que ao passar na tnica feia
No tiveste enleio nem religio que a coroao depois que veio
Foi Nossa Senhora que est no altar sem poder andar livre como outrora
21
Quem ali sagrou para os filhos teus os pecados nossos a terra e os ossos do corpo de Deus
/. N. R. /.
V
Sobre a cruz o ergueram. Assim ele veio ao mundo.
Pedro Paulo Simo Sobre a cruz o ergueram.
23
Cnticos de guerreiros (Pedro Paulo Simo)
dios de velhos monges (assim ele veio ao mundo)
Sobre a cruz o ergueram
24
VI
Junto do rio cantam os galos de Jerusalm enquanto amanhece. Na relvagem os dorsos dos cavalos com uma nuds que entontece esperam a hora de amarr-los lida, me fulva do campo agora, numa estrela, todo branco e sbrio, enquanto cantam galos
25
v i l
Nossa Senhora morreu hora da missa. Ningum percebeu. E o mundo que ela tanto amou no teve uma lgrima s!
Mas soaram acordes finais quando ela, de morta, passou com crios de estrelas reais nos ps ainda sujos de p
26
Est agora mais perto do cu sem l ter entrado, porm.E pede, com o rosto seu naquele menino judeu, que oremos por ela tambm
27
NICOLAU CANSADO ESCRITOR
Nota do Fiel Depositrio
Perdida, entre tanta outra coisa que se perdeu roda de 1944,
a biografia de Nicolau Cansado moldada em verso jmbico por
Papua de Arrebol; sumida com este nas ruas do Cais do Sodr
a documentao para a descascagem ontolgica de um ser a todos
os ttulos raro na literatura e na vida; inglriamente perdida tam
bm a obra em prosa do autor do A TI (a qual nunca vi mas disse
ram, em 1945, ser ainda melhor que os poem as): restam os versos
que ora se publicam antecedidos de ntula crtica da incansvel
polgrafa e companheira do poeta, D. Marlia Palhinha.
de Oliveira Guimares, lembra-me ter visto um flio rabiscado pelo
poeta a quando da sua viagem a Espanha, onde, premido pela sua bem
conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher, o mais possvel
in loco, alguns quadros multmodos da guerra civil espanhola. Tanto
quanto lembro, e j no lembro muito, tratava-se de um feixe de
ditirambos ao pobre Federico claramente datados Agosto-Setembro
de 1943. As numerosas imitaes feitas depois e at tambm l fora,
deste tema de Cansado, nunca, quanto a mim, faro esquecer a impres
so deixada pelo Mestre.
32
EM T O R N O D A POESIA D E C A N S A D O
LISBOA, 1945 Os fortes laos de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado fazem com que seja a expensas de uma profunda mgoa que eu deva pr aqui uma por assim dizer restrio aos inditos vindos agora a lume : eles no sero compreendidos por toda a gente!
Com efeito, s uma escassa roda de iniciados na ltima fenomenologia potica portuguesa (futurismo, sobrerrea- lismo, nervosismo, etc.) poder acolher sem surpresa toda a sua mensagem. Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradio fez a obra. E nisto, como em tudo, apesar de
33
umas coisas esquisitas, umas audcias alis mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradio. Tive oportunidade de verific-lo ante o desprendimento que muitos homens da rua (eu buscava Cansado nas suas incurses aos ha- bitculos do povo) manifestaram pela Fantasia Gramtica e Fuga, por exemplo *. Alguns chegaram mesmo a interromper-me nestes termos : (tentava eu explicar-lhes a grandeza e a utilidade do poema) : doutor, d cinco tostes para uma sopa, que ainda l no fui hoje!! Em contrapartida, os literatos tero com que regozijar-se. Esses, e mais quem anda a par, sagraro o poeta Cansado como um grande incompreendido, uma genial vtima de um meio estupefacto.
*
Falar do substractum da sua obra para qu ? De certo modo, a poesia o real absoluto, j o disse um editor que tambm escreve. Atravancador se torna portanto qualquer didatismo, e ainda mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepes burguesas sem por isso ter
* O poema deste ttulo foi perdido pela prpria Marlia Palhinha,
no tendo aparecido at hoje qualquer cpia. M. C. V.
34
mudado de vida, um artista muito complexo. Formalmente, no raro v-lo brincar com as subtis experincias de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Maiakovsky, e, ento, que esplendor pico! Noutros, ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E Cames. Conhece a fase ntima. Atravessa a fronteira do religioso. E quando desistamos de ver nele qualquer coisa mais do que um jogral de prodigiosos recursos, eis que nos oferece as iluminaes do Heri, do Raio de Luz, do A Ti! Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, ousando, mesmo, esperar repercusso, eu quero repeti-lo : ainda cedo para falar de Nicolau. No faltar, porm, gente disposta a acus-lo de ter, ele, o meu santo!, plagiado meio mundo e subsistido, como dizer ?, assim. Eternos incom- preensivos.
Outra coisa : Cansado nunca versou o tema do amor. Inapetncia? Excesso de ombridade? Penso que nso. O amor , para muitos poetas de hoje, um tema de segunda, para no dizer terceira categoria.
Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Cansado, certa vez, me disse. E todos compreendemos.
MARLIA PALHINHA
35
OS POEMAS
Para A. Casais Monteiro
M IG R A O
Ahno me venham dizer ahno quero saber ah_quem me dera esquecer
S e incerto que o poema aberto e a Palavra flui inesgotvel!
39
A TI
minha casta esposa vais sofrendo ... E eu sofro de ver-te sofrer!Espera um pouco! Faamoscomo o caule da rosades-fo-lhada
40
Nosso convvio triste. A vida, errada.S a tortura existe e o poema .AhTENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS. No queiras ah no queiras vir comigo para esta atmosfera do caf.
41
HERI
Do claro sol e dum teatro cheo seriam dignas to notveis obras. noite, que em, teu seio tenebroso, to grandes feitos de armas escondeste!
TOKQUATO TASSO Jerusalm Libertada
Heri o meu nome.
Meu olhar frio, arguto no v coisa que o dome. Meu esforo rudo e sano no desmaia um minuto.
42
Sou heri todo o ano.
Quando passar por vs, naturalmente, eom este meu ar simples e no entanto diferente e no entanto diferente do ar do resto da gente no digais : fulano.Dizei : o Heri.
O heri, simplesmente.
43
REABASTECIMENTO
Vamos ver o povo.Que lindo .
Vamos ver o povo. D c o p.
Vamos ver o povo.Hop-l!
Vamos ver o povo.
J est.
44
BRASILEIRA
Ao Manuel
O vento no varria as folhas,O vento no varria os frutos,O vento no varria as flores ...
E a minha vida no ficava Cada vez mais cheia De frutos, de flores, de folhas
45
0 vento no varria as luzes,O vento no varria as msicas,O vento no varria os aromas ...
E a minha vida no ficavaCada vez mais cheiaDe aromas, de estrelas, de cnticos.
O vento no varria os sonhos E no varria as amizades ...O vento no varria as mulheres ...
E a minha vida no ficava Cada vez mais cheia De afectos e de mulheres.
O vento no varria os meses E no varria os teus sorrisos ...O vento no varria tudo!
E a minha vida no ficava Cada vez mais cheia De tudo.
46
LEVE
Leveo roupo que foste e o horror de s-lo
Leve o trao vermelho
no cabelo
47
Leveo em forma de velho
rosto aflito
Leveo jasmim e a neve
sobre o rito
48
R U R A L
Como chove, Cacilda!Como vem a o Inverno, Cacilda!Como tu ests, Cacilda!
Da janela da choa o verde um prato que deve ser lavado, Cacilda!E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!E o arroz a batata o agrio, Cacilda! J cozeste?
Eu logo passo outra vez.Em prosa, provvelmente.Arrozinho, Cacilda!Os melhores anos da nossa vida, lida!
Ausente.
50
POEMA
Ao Paulo luard
Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.Deix-lo.
Coitadinho.Carvo de coque.
Mat-lo. Devagarinho. L vai ele a reboque. Cavalo.
Cavalinho.Cavalicoque.
RAIO DE LUZ
Burgueses somos ns todos ou ainda menos.
Burgueses somos ns todos desde pequenos.
Burgueses somos ns todos literatos.
Burgueses somos ns todos ratos e gatos.
52
Burgueses somos ns todos por nossas mos
Burgueses somos ns todos que horror, irmos.
Burgueses somos ns todos desde pequenos.
Burgueses somos ns todos ou ainda menos.
53
UM AUTO PARA JERUSALM(fragmento segundo um conto de luiz pacheco)
Personagens, por ordem, de entrada no palco :
0 Orador 0 Servo-Porteiro Matatias, o Sbio Rezingo Eleazar, o Intelectual Snobe Tobias, o Sensato O Menino Jesus 0 Homem da Gestapo
A cena passa-se num tugrio desmantelado que apresenta bem visvel o dstico Acdmico-Clube dos Sbios de Je-
57
rusalm. Tobias e Matatias usam tnica e compridas barbas, Eleazar jovem e traja com distino. O Orador veste um guarda-p cinzento, aberto, mangas arregaadas, chapu colonial. O Homem da Gestapo aprece numa luxuriosa fantasia abundando em, plumas e aknuletos. Capacete romano na mo direita. Botas de tenente.
No proscnio, cadeira e mesa D. Joo V, em cima de um estrado, para o Orador. Sobre a rhesa, um grande livro fechado, candeeiro, sineta, e o chapu do Orador. Atrs da mesa um vetusto relgio de caixa alta, sem ponteiros.
O rador saindo ao proscnio Minhas queridas senhoras, estimados senhores : quando o pano cair sobre a ltima cena do mundo que j rola atrs desta cortina, per- cebereis que eu nem sequer chego a representar. Que vos aproveite a descoberta! Por expressa vontade do Autor o meu papel resume-se a, como se diz?, cla-ri-fi-car tudo o que vai passar-se neste palco. Por vezes intervirei tenho poderes para isso. Mas nunca directamente : por interposta figura. Assim uma coisa grega. Evidentemente, eu, como actor, quereria dar mais. Muito mais. Bastante m ais! No pde ser.
> Enfim, quando as coisas no vo pelo caminho dos nossos desejos, o melhor que h a fazer levar os nossos desejos pelo caminho que as coisas vo tomando, j Parece-nos. (Tira
58
um vasto leno do guarda-p e amarra-o ao pescoo). Vou dar incio. (Dirige-se sua secretria, senta-se, abre o livro, faz uma rpida simulao de leitura e encara de novo io pblico.) A pea admirvel! (Indica o livro) Est aqui toda. Todinha! Uma maravilha. Garanto que nunca vistes disto em lado nenhum. certo que os actores vo entrar por a com roupas mais excelentes num espectculo de feira que no favor da vossa inteligncia. Mas no vos perturbeis muito com isso. tudo um tudo-nada para disfarar. O rapazinho que tambm no traz roupa de cristo tambm , oh se , para disfarar. (Alteando a voz) E assim que est certo porque sem disfarce no h cenas e sem cena no h teatro. (Abre-se o pano) Ora muito bem : cena j ns temos. (Apontando) Um Acadmico-Clube dos Sbios de Jerusalm. Secretrias, tocheiras, janela para se poder respirar... (Pe o chapu colonial na cabea). Ora pois;
era isto no tempo em que os animais falavam; Jerusalm estava em festa e os meninos fugiam da com
panhia dos pais;iam aos magotes para os brejos, berravam entre as silvas
at vir a noite;outros metiam-se pelas veredas, iam para a feira ver os
cavalinhos.
Mas este, de que fala o grande livro, no fugira para gozos e arruaas;
59
fora procurar os Doutores.
Entra o Servo-Porteiro trauteando uma musicata qualquer. Acende as velas das trs mesas de estudo que atravancam o tugrio. A sua entrada interrompe o Orador, que o fita com cara de pouca pacincia.
O rador P s t! Quero a cena deserta.S ervo- P orteiro Tenho de sair j, meu senhor?O rador Sabes muito bem que sim.S ervo- P orteiro J? J? Eu n o d e v ia t e r e n t r a d o .
O p a n o s u b ia , v ia m -s e a s v e la s j a c e s a s , e p r o n to , n in g u m
d a v a p e la m in h a f a l t a .
O rador Ah isso com certeza.S ervo- P orteiro Sou um tolo, um frustre, um facil
mente dispensvel. No sei ler nem escrever, embora o meu autor me faa falar com certa elegncia.
O rador Eu sei. As exigncias do estilo. Ests a para dar ritmo representao.
S ervo- P orteiro Para dar ritmo, pois.
Breve pausa.
60
O rador Ento? Estamos espera!S ervo- P orteiro aproximando-se do Orador Se sou-
besses que bocados de ideias, que espcies de sentimentos fervilharam em mim quando me disseram : Tu fazes o Servo-Porteiro, fazes o escravo. Entras, acendes a velnha, e de boca bem fechada, tratas de sair. Claro que posso sair, sumir-me, no aparecer mais!
Orador o m a is c o r r e c to .
S ervo- P orteiro Escuta. Tu s quem tudo pode e manda neste palco enquanto durar a representao da nossa misria. Peo-te um acto grande, um acto que altere o curso de certos acontecimentos.
O rador tocando a sineta Peo que tirem este homem daqui para fo ra!!
S ervo- P orteiro Diz-lhes, ao menos, quem sou! Ou quem o que fao nesta terra. No, o que fao, no! O que s vezes parece que gostaria de querer fazer...
O rador irado Mau! Eu no tenho o poder que me atribuis, no posso adiantar-me ao que est escrito neste livro!
S ervo- P orteiro caindo aos ps do Orador E ra to simples! Era to pequenino! Talvez at depois nem fosse precisa esta pea!
O rador Bom, de joelhos, no! Levanta-te, chega de
61
lamrias tolas. Se prometes sair mal lhes diga quem s... Mas tens de prometer!
S ervo- P orteiro Juro, senhor, juro pela cabea do Profeta!
O rador Este o Servo-Porteiro da douta Academia dos Sbios de Jerusalm. No serve para coisa nenhuma a no ser para o que no presta. Nasceu num dia em que a Terra se esqueceu de girar em volta do Sol...
S ervo- P orteiro Ainda Moiss no tinha escrito as sacras tbuas!
Orador ...e o homem aproveitou a escurido para cometer j no se sabe que horrvel perfdia. Desde ento, ficou assim. No sabe quem , desconfia do que pode vir a ser e anda meio tonto procura de qualquer coisa. Numa palavra: este aquele que tendo sido criado com alma de criado assim criado ficou por dentro e por fora.
S ervo- P orteiro num salto Mentes, ladro!O rador friamente Eu sei que minto. E agora vai
l para dentro. Ainda no foi a hora da tua verdade.
O Servo-Porteiro retira-se desalen- tadamente.
O rador Safa! ia estragando tudo! (Retoma a sua mesa e a leitura):Ora pois ;
62
era isto no tempo em que os animais falavam ; e o menino Jesus fugiu mesmo : ia procurar os Doutores ; estes reuniam-se todas as tardes nesta cena que aqui vedes ; neste horrvel casaro judeu.
Entra Matatias, o Sbio Rezingo; avana majestoso com vrios livros a tiror-colo. Vai para a sua secretria e dispe-na para trabalhar.
O rador sem interrupo Reuniam-se sada dos seus empregos cinco horas cinco e meia ;
e falavam de coisas vrias mas profundas : filosofia, religio, costumes principalmente costumes ; coisas estas muito acima dos entendimentos vulgares.
Depois das falas vinham os trabalhos. Preparavam um livro obra colectiva a que eles davam suma importncia.
Ttulo, ainda no tinham. L mais para o fim se veria ; mas era certo tratar-se das cem mais lindas maneiras de
grafar o hebraico ; regras, acordos e apndices.
M atatias J esperava isto mesmo. Os meus caros colegas andam sempre atrasados. Depois, no h tempo para nada.
63
O rador Matatias, o Sbio Rezingo. Doutor em Literatura, Crtica e Religies. Empregado nos correios desta cidade. Mulher e filhos na mais negra misria. Ligaes duvidosas, mas, no fundo, um excelente corao. s tu?
M atatias Discordo de certos pormenores, mas, a trao largo, esse o meu retrato. Quem to forneceu?
O rador Est tudo neste livro, meu caro doutor. A vida e a morte, a noite e o dia...
M atatias Sim ? Deixa-me ver...O rador reconduzindo Matatias Querido Mestre!
Nunca me perdoaria se, por mero instante que fosse, o desviasse de um trabalho que sei notvel e em boa hora posto em mos de V. Ex.a!
M atatias Compreendo. Provvelmente...O rador E j anteontem, com o sieur Mabuze... Belo
sindrio. No acha?M atatias sentando-se Muito obrigado. No viu por
acaso, j, o doutor Tobias? Como diz? (outro tom) O mundo est cheio de tolos e os sbios nas mos deles!
Orador j sua banca Muito bem. Siga a pea!
Entra Eleazar, o Intelectual Snobe.Fala atabalhoadamente e com requinte.
E leazar No ralhes, querido Matatias... Trago-te uma
64
em primeira mo! Calcula tu que Judite, conheces, Judite, a fmea pblica, teve o arrojo de ir ao palcio de Herodes protestar contra o imposto que acabam de lanar sobre a sua gente! (senta-se) Ai, deixa-me contar... Foi um papelinho! Bateu com as mos, com os ps, com as ancas, porta dos jardins do palcio, e tanta bulha fez, tanta gente juntou, que Herodes apareceu janela do segundo andar e, zs! concedeu-lhe audincia!
M atatias sem deixar os alfarrbios Sim ? E depois ?E leazar Depois, no sei, s isto... Mas j h quem
diga que Judite vai vencer Herodes numa batalha de prostitu ta contra monarca!
M atatias E por esses dichotes que te atrasas ?E leazar No ralhes, Matatias, eu acho isto to sensa
cional ! Ningum se atreve a levantar a voz quando Herodes est presente, e essa meretriz arrombou-lhe o palcio com as ancas! Que nmero para A Voz de Jerusalm! (inspirado) Vou escrever um poema!
Orador Eleazar!E leazar Senhor...O rador Diz ao p b lic o q u e m s.E leazar Eu, a falar de mim? Pois muito prazer. Sou
Eleazar, o Intelectual Snobe. Tenho muito geito para abrir e fechar as portas por onde os outros entram e saem. (gesto) Reveste-me certa distino, atraio bem as mulheres e no
65
me queixo dos homens. Ando a ver se trabalho num jornal, A Voz de Jerusalm, escrevi uma tragdia ao gosto persa, A Tropa de Jerusalm, e tenho praticamente concludos cinco livros de versos proletrios, O Grito de Jerusalm. Mas to difcil publicar nesta terra! O jornalismo, ento, um horror! De forma que me decidi a trabalhar com os sbios e os filsofos... e aqui estou. So muito mais seguros.
O rador Eleazar.
E leazar Senhor.
O rador Diz com quem vives.
E leazar Ora. Que interessa isso a estes senhores?
O rador Interessa tudo muito a estes senhores.
E leazar Vivo com a minha irm que me sustenta, pois estou desempregado. Por enquanto. A ela no lhe custa : podre de rica. A nossa casa fica a quatro passos do trono de Herodes, na rua dos milionrios de Jerusalm. Mas eu detesto os ricos e estou ao lado dos pobres. So to infelizes coitadinhos!
M atatias Pobres de Jerusalm! Que Messias vir para salv-los! Cheiram to mal, os desgraados...
E leazar Mas os mais infelizes de todos ainda so os pobres de esprito, no verdade, Mestre?
M atatias s um vaidoso, Eleazar! Seria melhor que desses conta do muito que h a fazer. Passaste a limpo o
66
propsito 4. do captulo 6 fascculo 2. da nossa grande obra?
E leazar dando um papelinho Aqui est, quase todo. (sonhador)'?Fi-lo ontem noite, ao sabor das estrelas e do vento do outono... Que cu maravilhoso o nosso, M atatias... Faz-nos esquecer a arrogncia dos legionrios de Roma. Ah! por falar nisso! Sabes que a minha irm vai casar com um fascista desses? A descarada!
M atatias A uma e uma caem as praas fortes que outrora defendiam, com alto e so orgulho, o povo do Senhor... Quem o intruso?
E leazar Um Marco Pncio, ou Marco Estrncio, ou l o que . Um Marco qualquer.
M atatias Um ig n o r a d o ?E leazar Ah, no. Um convencido. Passa as tardes a
cacarejar-lhe os Cantos de Salomo.M atatias Que humilhao para a Casa de David!E leazar Pois sim, mas ela gosta. J com muita negaa
lhe pediu o intercmbio: quer ler autores romanos. Petrnio antes dos outros...
M atatias escrevendo ............... le, como creme.E leazar idem A...............g, como j est.M atatias J............... t a , co m o c a p o ta .E leazar Til, com o p a u - b r a s i l .O rador Linda coisa ver trabalhar ! Mas h trabalho
67
que presta e trabalho que no presta. Prestar para alguma coisa a trabalheira destes dois doutores? (Entra Tobias que vai para a sua mesa sem interromper os doutos colegas). Os ltimos sero os primeiros. Quem d aos pobres empresta a Zus. Entre seja quem for no se mete o sarrafo. Boa noite, Tobias.
T obias Boa noite.O rador E s t iv e s t e p a r a n o v i r .
T obias Pela terceira vez.O rador Fazias mal. Hoje, se desses falta, acabava-se
a obra... (volta a ler) Ora pois; era isto no tempo em que os animais falavam.Dizia-se que Herodes, pai de Salom, era um antigo aprecia
dor de cabeas e que l nisso era ele como a filha servidas no prato todas em cima dos ombros nem uma; ora uma vez, no prprio dia que Jesus escolhera para falar
aos doutores...(Batem a uma porta. O Orador entra em grande
agitao) Respeitvel pblico! Chegou o momento! Chegou o grande momento! Oh, se neste teatro houvesse um carrilho, uma orquestra de cmara ou at mesmo um pfaro, digo-vos que neste momento tocariam msicas, ouvi- rieis sinos, assobiavam pfaros! No sabeis porqu? que no sabeis porqu? Ora, sabeis muito bem porqu. O menino
68
Jesus vai entrar neste palco! Ele, o filho do homem, ele, o nosso amor, ele, a nossa esperana, acaba de bater porta deste velho casaro judeu. Bateu porta porque uma criana, no sabe que a porta est aberta! Oh, no haver mais luz do que todas as luzes para iluminar a entrada do filho do homem! Eleazar! Bateram porta! Matatias! Tobias! Larguem isso! Faam qualquer coisa! Oh meu Deus! (Tira o chapu, limpa o suor da cara e do pescoo e fica longo tempo de cara escondida entre as mos).
T obias sem deixar os alfarrbios Parece que bateram a uma porta.
M atatias Tolice.E leazar Ouvi bater porta.M atatias No h porta, por que haviam de bater
porta que no h?T obias Ser o Presidente da Academia? Dizem que
ele enlouqueceu.M atatias Impossvel. Alm de no haver porta, ele
no precisa de bater.E leazar trmulo E se fosse a polcia de Herodes ?
M atatias exasperado Que parvoce, Eleazar! A polcia de Herodes no bate s portas. Arromba-as.
T obias J tm batido, s para disfarar...E leazar aterrado, erguendo-se Para melhor nos
levar! ela! (grita) A Gestapo!
69
M a ta tia s Se , estam os perdidos...
T obias Desterrados,..T odos Crucificados!M a t a t i a s O Tratado! Ateno ao Tratado!
Escondem os livros debaixo das secretrias. Brevssimo silncio. Fora, batem de novo.
M atatias m e lh o r i r l v e r .
T obias No. melhor esperar.
A voz, fresca, de Jesus, ainda nos bastidores: No est ningum nesta casa? No aqui que se renem os Doutores? No ... (entra e fica um pouco confuso vista dos trs homens. Mas avana lentamente. Logo atrs, seguindo-o, farejando-o, vem o Servo- -Porteiro).
M atatias furioso Ora adeus! um garoto!T obias No te exaltes, Matatias, Ainda bem que um
garoto!M atatias repondo as coisas em cima da m esa-M a s
70
quando que ns vamos poder trabalhar!? Em casa de Eleazar no podia ser, por causa das bailias. Em minha casa, o que se sabe! No chalet do Tobias, foi o que se viu. / dramtico, pondo as mos) Eli, Eli, por que nos persegues?
/Teremos de ir escrever para o deserto?T obias O g a r o to n o f a z m a l a u m a m o sc a . E d e c e r to
q u e e s te e n t r o u a q u i p o r e n g a n o . . .
J esu s No foi engano, irmos doutores. Eu vim para vos falar.
E leazar Menino, temos mais que fazer!T obias carinhoso Escuta, pequeno. Eu e estes se
nhores que aqui vs, estamos a escrever um livro de que toda a Judeia se orgulhar. So cinco volumes, percebes?, cinco graaaaandes volumes onde se explica, grafa e determina a mais linda maneira de falar a nossa lngua. Ora Herodes, rei dos judeus, escreve e fala horrivelmente mal o hebraico...
E leazar .. .o aramaico.T o b ia s ...e se ele sabe do que estamos fazendo haver
grande sarilho. De forma que das cinco s sete e meia no queremos gente estranha nesta douta Academia.
E leazar Livre-nos Deus!T obias Enquanto no acabarmos esta obra...E l e a z a r ...A nossa grande obra.T obias" ^ - . . . E tu vais brincar l para fora que para
71
ns continuarmos a labutar pela maior glria de Isel. Valeu? V, toma l meio dracma e no maces mais.
J e s u s sumindo o meio dracma Mas eu preciso falar-vos. Andei lguas para vos falar.
M atatias Tobias! Se essa criana no sai imediatamente, saio eu. No respeita a velhice, nem a doutorice, nem a filosofia, nem o silncio! Saio eu, compreendeis ?
J e s u s batendo o p Ai, ai, i, ai! deixem-me falar! Deixem-me falar ou, com mil diabos, viro-os a todos em papagaios! Em papagaios, ouviram?
E leazar rindo a bandeiras despregadas Em papa... em papa... Ah-ah-ah-ah! J ganhmos para o susto, agora para o tabaco! Matatias, ouamos o rapaz... Quanto mais no seja ele pode trazer nossa Academia a publicidade de que ela tanto necessita... Olhem-me estas paredes...
T obias Voto no intervalo. Livros so livros, descansemos um pouco destas matemticas... (anda em volta de Jesus) Tantos so os casos maravilhosos e inexplicveis que se tm dado na Judeia... Tantos rumores correm anunciando a vinda do Messias, salvador e redentor do povo eleito... No vir ele da parte desse que baptisava no Jordo? Se o expulsamos, ficaremos livres de um sentimento de culpa, para no dizer remorso ?
E leazar Alm disso, fazamos uma edio especial do Dirio de Jerusalm. Imagina que furo! UM GAROTO
72
DESCONHECIDO VAI FALAR AOS DOUTORES!! Isto em letra-caixo, cursivo dezasseis. E mais abaixo, para o normando sete: ontem, inesperadamente, entrou na Academia das Cincias, desta cidade, um garoto mal vestido que...
M atatias Basta, Eleazar, basta! Ouamos o rapaz. Antes ele do que tu e creio que no te podes queixar...
E leazar sentando-se Pronto.J e s u s Meus irmos...
73
LOUVOR E SIMPLIFICAO DE LVARO DE CAMPOS
( f r a g m e n to )
H uma hora, h uma hora certaque um milho de pessoas est a sair para a ruaH uma hora desde as sete e meia horas da manhque um milho de pessoas est a sair para a ruaEstamos no ano da graa de 1946em Lisboa a sair para o meio da rua
Samos? mas sim, samos!Samos: seres usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas,
77
gente feliz gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos
mictrios para apanhar elctricos, gente atrasada em relao ao barco para o Barreiro que afinal ainda l estava apitando estridentemente, gente de luto, normalmente silenciosa mas obrigada a falar ao vizinho da frente na plataforma veloz do elctrico em marcha, gente jovial a acompanhar enterrose uma me triste a aceitar dois bolos para a sua menina. H uma hora, isto: Lisboa e muito mais.Humanidade cordial, em suma,com todas as conseqncias disso mesmoe a sair a sair para o meio da rua.
E agora, neste momento que horas so ? a telefonista guarda o baton na mala usa os auscultadores
liga elctricamente Lisboa a Santarm e comeou o diao pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou qual
quer coisa para comear o diao banqueiro sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou
78
um bocado na famlia e comeou o diaa varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira e comeou o diao desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraa, e imagi
nou-se banqueiro para comear o diae o presidirio, ouvindo a sineta das nove, comeou o seu dia sem dar incio a coisa alguma.
Agora fumo, trepidao,correias volantes de um a outro extremo da fbrica isolada, cigarros meio fumados em cinzeiros de prata, bater de portas ps! em muitas reparties, uma velha a morrer silenciosamente em plena rua e um detido a apanhar porrada embora acreditem nele. Agora pranto e prantona bata da., manucure apetitosa do salo Azul.Agora, regresso, milhes de anos para trs,patas em vez de mos, beios em vez de lbios,crocodilos a rir em corredores bancriosapesar das mulheres terem varrido muito bem o cho.Agora tudo isto e nada distoem plena e indecorosa licenciosidade comercialpregando partidas, coando, arruinando, retorcendo o facto
79
atrs dos vidros
um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre s ordens! (a velha j morreu e no seu leito de morte est agora um automvel verdadeiramente aerodinmico e a tocar telefonia: and you, and you my darling?)H uma hora, Isto! H duas, ISTO!E eu?
Eu, nada. Eu, eu, claro...
Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove) e vejo um gato branco janela de um prdio bastante alto Penso que a questo esta: a gente certa gente sai
para a rua,cansa-se, morre todas as manhs sem proveito nem glriae h gatos brancos janela de prdios bastante altos!Contudo e j agora pensoque os gatos so os nicos burguesescom quem ainda possvel pactuar vem com tal desprezo esta sociedade capitalista!Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...No, a probabilidade do dinheiro ainda no estragou intei
ramente o gato mas de gato para cima-nem pensar nisso bom! Propalam no sei que nusea, retira-se-me o estmago s
80
de olhar para eles!So criaturas, verdade, calcule-se, gente sensvel e s vezes boamas to recomplicada, to bielo-cosida, to ininteligvel
que j conseguem chorar, com certa sinceridade, lgrimas cem por cento hipcritas.
E o certo que ainda tm rapazes de Arte, gente que ps a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite foi
comprar para o cinema porque h que ir ao cinema, ele por fora, por amor
de Deus, ah, no! no! isso no!, no se atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar to bem! Vai tudo ser To Bonito!
Ah, e quem que v o logro? A quem que isto cheira a rano ?
Porque que a freguesa de Panos Limitada no exige trs quartas de cinema
e sim trs quartas partes pretas de l carneira?Porque que a pianista compra do Alves Redol quando est a pensar nas pernas e no peito do louro gal
yankee?E porque raio despede o senhor Director trs humlimos
empregados
81
quando a verdade que j l vo trs meses e ainda no viu um que lhe enchesse as medidas?
Com certa espcie de solidariedade
lembro-me de ti, Mrio de S-Cameiro, poeta-gato-branco janela de muitos prdios altos Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te, para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!Fizeste bem, viva Mrio!, antes a morte que isto, viva Mrio a lanar um golpe de asa e a estatelar-se todo
c em baixo(viva, principalmente, o que no chegaste a saber, mas isso
j outra histria...)
E com uma solidariedade muito mais viva lembro-me de ti,'m eu vizinho de baixo, sapateiro-gato-braneo mas no rs-do-cho, desta vez... curioso que no te possas suicidar s porque a tua janela est ao nvel do mundo e que cantes alegremente de manh noite com uma casa de seis andares em cima de ti.Tambm tu foste empurrado, tambm te disseram: Fora,
gato!Mas achaste isso quase natural (e no o , deveras?)E agora, guardando em ti todas as tuas grandes qualidades
82
vais vivendo um pouco margem, um pouco no quinto andar...
Deito fora o cigarro que j me sabia a amargo e decido-me a andar mas para qu? Mas para onde?As lojas esto todas abertas mas nunca se viu coisa to
fechadaAh! heris do trabalho, que coisas raras fazeis!No sou um proletrio v-se logo mas odeio cordialmente a gataria e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoolgico me atraem quanto mais estes! E aqui que comea o embrglio...
0 pouco amor que eu tive burguesiadeixei-o todo numa casa de passequando me perguntaram: quer assim? Ou assim?E agora, era fatal, falto ao escritrio,falto ao escritrio, pontualmente, todas as manhs.Mas vejamos, minha alma, se podes, arrumemos um pouco a casa escura que te deram. - Euestudei msica, como toda a gente
(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)
83
No. Por aqui no nos entenderemos.Estudemos outro papel. Outro fim. Outras msicas.
Recomecemos: Um:Estes versos no querem de modo algum ser versos porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer
versos versos est em muito maus lenis (este o primeiro artigo da minha constituio)
Segundo:Apesar de tudo, sa para a rua com bastante naturalidade e que vi eu? Que isto? (E que esperava eu ver?)
Terceiro:(E aqui comea, talvez, o desembrglio)vi tambm um vapor que ia para o Barreiroe tive pena de no ir com elemas no sou um proletrio (no, ainda no)
e atravessar a nado quem que disse que pode?
Fiquei-me a v-lo: primeiro junto ao caiscom um certo ar simptico de proletrio dos marese apinhado de gente tanta espcie dela!Depois a meio do rio, destacado e ntido,
84
depois um ponto vago no horizonte ( minha angstia!) ponto cada vez mais vago no horizonte e de repente, ao virar uma esquina, j depois de outra
esquina,vejo uma nova espcie de enforcado um homem novo em cima de um escadote a colar afixar cartazes deste gnero:
85
D I S C U R S O SOBRE A REABILITAO DO REAL QUOTIDIANO
DISCURSO
1
Quando aqueles que chegavam olhavam os que partiam os que partiam choravam os que ficavam sorriam
89
II
Como a vida sem caderneta
como a folha lisa da janela como a cadela violeta ou a violenta cadela?
Como o estar egpcio e mudado
no salo do navio de espelhos como o nunca te r embarcado ou s ter embarcado com velhos
90
Como ter-te procurado tanto que haja qualquer coisa quebrada como percorrer uma estrada com memrias a cada canto
Como os lbios prendem o copo como o copo prende a tua mo como se o nosso louco amor louco estivesse cheio de razo
E como se a vida fosse o foco de um bao, lento projector e ns dois ainda fssemos pouco para uma tempestade de cor
Um ao outro nos fssemos pouco meu amor meu amor meu amor
91
III
No pas no pas no pas onde os homens so s at ao joelho e o joelho que bom s at ilharga conto os meus dias tangerinas brancas e vejo a noite Cadillac obsceno a rondar os meus dias tangerinas brancas para um passeio na estrada Cadillac obsceno
E no pas no pas e no pas pasonde as lindas lindas raparigas so s at ao pescooe o pescoo que bom s at ao artelho
92
ao passo que o artelho, de propores mais nobres, chega a atingir o crebro e as flores da cabea, recordo os meus amores liames indestrutveis e vejo uma panplia cidad do mundo a dormir nos meus braos liames indestrutveis para que eu escreva com ela s at ilharga
a grande histria do amor s at ao pescoo
E no pas no pas que engraado no pas onde o poeta o poeta s at plume e a plume que bom s at ao fantasma ao passo que o fantasma ora a est no outro seno a divina criana (prometida) uso os meus olhos grandes bons e abertos e vejo a noite (on ne passe pas)
Diz que grandeza de alma. Honestos porque. Calafetagem por motivo de obras. relativamente queda de gua e j agora h muito no doutra maneira no pas onde os homens so s at ao joelho e o joelho que bom est to barato
93
IV
A velha que vende bananas o velho roxo de calor o rapaz que grita sacanas dem-me um pouco de amor
A outra viagem por mar o jovem que j livreiro a camionete a esmagar o tmulo de S-Carneiro
94
0 sapato branco do rua imobilidade do ratoque ri a ala esquerda do hidro
A mo erecta contra o cu o cu de sbito contracto a gua a morte a mosca o vidro
95
VFalta por aqui uma grande razo uma razo que no seja s uma palavra ou um coraoou um meneio de cabeas aps o regozijo ou um risco na mo ou um coou um brao para a histria da imaginao
Podemos pois est claro transferir-nos
96
e imaginar durante um quarto de hora os sculos que viro os sculos um e doisda colonizao depois este cair na madrugada ardente na madrugada de constantemente sem sol e sem arpo
Faltas tu faltas tu falta que te completem ou destruamno da maneira rilkeana vigilante mortal solcita e
obrigada no, de nenhuma maneira resultante!Nem mesmo o amorno o amor que falta falta uma grande realmente razo apenas entrevista durante as negociaes oclusa na operao do fuzilamento cantante rodoviria na chama dos esforos hercleos morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
97
Falta uma flormas antes de arrancada
Falta, Lautramont, no s que todo o figo coma o seu burro
mas que todos os burros se comam a si mesmos e que todos os amores palavras propenses sistemas
de palavras e de propenses se comam a si mesmos muitas horas por dia at de manh cedo at que s reste o a o b e o c das coisas para o espanto dos parvos que alis no esto a mais
Isso eu o espero e o faojunto imagem da criana mortadepois que Pablo Picasso devorou o seu figo sobre o cadver dela e longas filas de bandeiras esperam devorar Picasso que perto da criana, ao lado da boca minha.
98
V I
Afinal o que importa no a literatura nem a crtica de arte nem a cmara escura
Afinal o que importa no bem o negcio nem o ter dinheiro ao lado de te r horas de cio
Afinal o que importa no ser novo e galante ele h tanta maneira de compor uma estante
99
Afinal o que importa no ter medo : fechar os olhos frente ao precipcio
e cair verticalmente no vcio
No verdade rapaz? E amanh h bola antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa no haver gente com fome porque assim como assim ainda h muita gente que come
Que afinal o que importa no ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao p de muita
gente :Gerente! Este leite est azedo!
Que afinal o que importa pr ao alto a gola do peludo sada da pastelaria, e l fora ah, l fo ra ! rir
de tudo
No riso admirvel de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos mostra
100
VII
Queria de ti um pas de bondade e de bruma queria de ti o mar de uma rosa de espuma
101
vm
Um grande utenslio de amor meia laranja de alegria dez toneladas de suor um minuto de geometria
Quatro rimas sem corao dois desastres sem novidade um preto que vai para o serto um branco que vem cidade
102
Uma meia-tinta no sol cinco dias de angstia no foro o cigarro a descer o paiol a trepanao do touro
Mil bocas a ver e a contar uma altura de fazer turismo um arranha-cus a ripar meia quarta de cristianismo
Uma prancha sem porta sem escada um grifo nas linhas da mo uma ibria muito desgraada um rocio de solido.
103
IX
E preciso correr preciso ligar preciso sorrir preciso suor
preciso ser livre preciso ser fcil preciso a roda o fogo de artifcio
preciso o demnio ainda corpulento preciso a rosa sob o cavalinho preciso o revlver de um s tiro na boca preciso o amor de repente de graa preciso a relva de bichos ignotos e o lago preciso digam que preciso
104
no falem mais logo mais noite mais nunca depois sim mas no preciso preciso preciso comprar movimentar comrcio preciso ter feira nas vrtebras todas preciso o fato preciso a vida da mulher-cadver at de manh preciso um risco na boca do pobre para averiguar de como que eles entram preciso a mquina a quatro mil vltios preciso a ponte rolante no espao preciso o porco preciso a valsa o estrdulo o roxo o palavro de costas preciso uma vista para ver sem perfume e outra menos vista para olhar em silncio preciso o logro a infncia depressa o peso de um homem demais aqui preciso a faca preciso o touro preciso o mido despenhado no tnel preciso foras para a hemoptise preciso a mosca um por cento domstica 6 preciso o brao coberto de espuma a luz o grito o grande olho gelado
10 preciso gente para a debandada preciso o raio a cabea o trovo
105
a rua a memria a panplia das rvores preciso a chuva para correres ainda preciso ainda que caias de borco na cama no choro no rogo na treva precisa a treva para ficar um verme roendo cidades de trapo sem pernas
106
XAs linhas os carros aerodinmicos a nuvem cinzenta por cima de mim a sapateirinha noiva de trs o jovem operrio presa de mil o salto que dei galgando o passeio o lpis mido no bolso de trs os versos que fao
107
sem grande alegria a voz dos amigos amigos amigos negcios parte sempre (qualquer dia) me daro alento
Bem vem pensei que a coisa era outra desculpa sou jovem tenho incongruncias Pensei... bem, pensei em vida que o fosse no deu resultado no d resultado
Amigos, dizei, deu-vos resultado?
Resultado o qu?
Abrir a barragem vazar a dispensa brincar ao heri ou ser heri mesmo
108
Heri? Heri como?
Pois . Sou novato no tenho experincia J disse : pensei que fosse possvel mas pronto. Acabou.Juro envelhecer!
enforcados o tempo passa o tempo passa que desgraa!
Passa nada, amigos!A nica coisa que passa o publicista Azeredo que chauffeur de praa Paragem. Aprto.Vai isso? Vai isso?Vai mal, obrigado. Palestras? Pois sim, entrego depois ...E o que que ?Ah, isso, veremos.
109
Cinema. Teatro. Poesia, talvez.Bem, bem ...Bom, bom ...Sade.Adeus.
Aperto. Partida.
Fico no meu stio.L vem o elctrico amarelssimo.
As ruas as casas de zincogravura os barcos que saem a barra que eu vejo o freio nos dentes do burro inocente o forte em Monsanto o santo em Monforte o homem que fraco o homem que forte sempre (qualquer dia) me daro alento.
110
X I
Hoje, dia de todos os demniosirei ao cemitrio onde repousa S-Carneiroa gente s vezes esquece a dor dos outroso trabalho dos outros o covaldos outros
Ora este foi dos tais a quem no deram passaporte de forma que embarcou clandestino N tinha poltica tinha fsica
111
mas nem assim o passaram E quando a coisa estava a ir a mais tzzt... uma poo de estrienina deu-lhe a molesa ... foi dormir
Preferiu umas dores parece que no lado esquerdo da alma
Uns disparates com as pernas na hora apaziguadora. Heri sua maneira recusou-se a beber o ptrio mijo
Deu a mo ao Antero, foi-se e pronto.Desembarcou como tinha embarcado :
Sem Jeito Para o Negcio
112
X II
Estou muito zangado tudo isto cheira a trapo e a ervanria tudo isto cheira a hera para esttuas lricas e eu nasci
em perfeitas condies de trabalho que fazer? que fazer? a oxidao seria um escndalo gigante um brao de cristal servindo de sirene s aves trpegas de tanta msica grtis
Nem os teus olhos nem o teu cabelo
8113
me tiram hoje deste vento de cinzas armazm de retm de sofistas menores lata de tin ta de borrar a vida enquanto no chega a mo definidora
Zangado muito zangado
o vento alisa as frinchas do organizadoanoitecer gerale a morte ronda pertoprxima como nunca da garganta dos lobos
Vamos crianas para a cova espigar um rato cinzento vamos cessando connosco todo o murmrio
114
X I I I
Pequeno tambor orgia modesta o lago tranqilo a descolorao tintura de brancos e verdes floresta o lago tranqilo a prostituio candura doura nos olhos em festa mo no corao
A bola de vidro rola vis-a-viscom as flores que altas so no jardim.H justos e rprobos porque o senhor quis vingar-se de ns porque sim
115
X V
Eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa) num caf da baixa por ser incapaz coitados deles de escrever os meus versos sem realizar de facto neles, e volta sua, a minha prpria unidade fumar, quere-se dizer.
Esta, que no brilhante, que ningum esperava ver num livro com versos. Pois verdade. Denota
116
a minha essencial falta de higiene (no de tabaco) e uma ausncia de escrpulo (no de dinheiro) notvel.
O Armando, que escreve minha frente o seu dele poema, fuma tambm.
Fumamos como perdidos escrevemos perdidamente e nenhuma posio no mundo (me parece) mais alta mais espantosa e violenta incompatvel e reeonfortvel do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros (excepto coisas como vergonha, naturalmente, e mortalhas)
(Que se saiba) esta a primeira vez que um poeta escreve to baixq (ao nvel das priscas dos
outros)Aqui, e em parte mais nenhuma, que cintila o tal condi-
cionalismo de que h tanto se fala e se dispe discretamente (como quem as apanha).
Sirva tudo de lio aos presentes e futuros nas tamnidas (vrias) da poesia local Antes andar por a relativamente farto antes para tabaco que para Cesariny (Mrio) de Vasconcelos
117
X V I
Uma corda. Uma garganta.Duas dores. 0 Infinito.Um irmo que chora. Uma me que canta. E uma noiva que diz ai que eu grito.
Um soluo uma noite uma aurora Uma mesa um suicida esquisito.Um irmo que sai porta fora Um menino que compra um apito.
118
Uma senhoria irritada Dois odores a gato pingado.Uma noiva inconformada, coitada. Uma mala muito bem fechada.Um quarto de novo alugado.
Uma me que sorri. Algum que ama um corpo quente que nem qu.Uma rua cheia de lama.Uma noiva que sabe porqu.
119
X V II
Ia muito bem a guiar o automvelquando ao fazer a mudana (necessria?)tudo mudou muito mais do que esperava:o automvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo
e ela aflio! passou a ser apenas um busto fora do caixote fechado e a dar manivela muito depressa ...
120
A rua era comprida? perguntou a que tambm estava quo contou de repente que com ela era assim:
uma escada para o alto, que nunca mais acabava... Tambm havia quem viajasse muito todas as noites, e no mesmo sentido.
lstava esse muito carsado, pois com os comboios normaisbasta no querer e pronto, mas se sonhono h manobra possvel, tem de se ir mesmo.
121
X V III
hora X, no Caf Portugal mesa Z, sempre a mesma cena : uma toupeira ergue a mozinha e acena ... Dois picapaus querelam, muito entusiasmados : que a dita dura dura que no dura a dita dita dura dura desdita!Um pssaro cantor diz que isto assim pena e um senhor avestruz engole ovos estrelados
122
X IX
A noite como um prego a noite louca a noite com rvores na boca
123
X X
Arrumaram-se luz de um candeeiro a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre h dinheiro. assim mesmo!... Bolas!
No fazem pena. No fazem coisa alguma.Esto ali.
Ela, tem a boca cheia de espuma e ele, cego, sorri.
124
X X I
E em toda a parteo sexo feminino estadista e generalextra-strong e super-creamprocura uma sada em caso de acidentemortalem toda a parteduplicaes de indivduos estranhosesperam indicaes teis com o auscultador no ouvido enquanto cinqenta anos de vida missionria fazem descer o preo do caf que tomamos com o vesturio em chamas em toda a parte
125
aparece a palavra Napoleono cotovelo de indivduos portadoresdas mais recentes leis da maternidadetanto para senhoras como para os rapazes em toda a parteum mendigo dactilgrafo corta fiambrepara a edificao da grande rvoreenquanto o marinheiro limpa a sua unhaem toda a partee um crocodilo que nasceu de costasaguarda assim a deciso injusta dos tribunais competentes
de toda a parte.
126
POEMA
PODENDO SERVIR DE POSFCIO
Ruas onde o perigo evidente braos verdes de prticas ocultas duendesbarcos de silncio que atravancam cadveres tona de gua
127
girassis e um corpoum corpo para cortar as lmpadas do dia um corpo para descer uma paisagem de aves para ir de manh cedo e voltar muito tarde rodeado de anes e de campos de lilases um corpo para cobrir a tua ausncia como uma colcha um talher um perfume
Isto ou o seu contrrio, mas de certa maneira hiante e com muita gente volta a ver o que isto ou uma populao de sessenta mil almas devorando
almofadas escarlates a caminho do mar e que chegam ao crepsculo encostados aos submarinos isto ou um torso desalojado de um verso e cuja morte o orgulho de todos plida cidade construda como uma febre entre dois patamares!
Vamos distribuir ao domiclio terra para encher candelabros
128
leitos de fumo para amantes erectos tabuinhas com palavras interditas uma mulher para este que est quase a perder o gosto
vida tome l dois netos para essa velha a no fim da fila no temos
mais saquear o museu dar diadema ao mundo e depois obrigar
a repor no mesmo stio e para ti e para mim, assentes num espao til, veneno para entornar nos olhos do gigante
Isto ou um rosto um rosto solitrio como barco em demanda de vento calmo para a noite
se ns somos areia que se filtre a um vento dbil entre arbustos pintados se um propsito deVe atingir a sua margem como as cor
rentes da terra nufragos e tempestade se o homem das penses e das hospedarias levanta a sua
fronte de cratera molhada se na rua o sol brilha como nunca se por um minuto vale a pena esperaristo ou a alegria igual simples forma de um pulso aceso entre a folhagem das mais altas lmpadas
129
isto ou a alegria dita o avio de cartas entrada pela janela sada pelo telhado
Ah mas ento a pirmide existe?Ah mas e ento a pirmide diz coisas?Ento a pirmide o segredo de cada um com o mundo?
Sim meu amor a pirmide existe a pirmide diz muitssimas coisas a pirmide a arte de bailar em silncio
e em todo o caso
h praas onde esculpir um lrio zonas subtis de propagao do azul gestos sem dono barcos sob as flores uma cano para ouvir-te chegar
130
PENA CAP I TAL
NOTCIA
Enquanto trs camelos invadiam o aeroporto do Cairo e o pessoal de terra loucamente tentava apanhar os animais
eu limpava as minhas unhasquando acabava de ser identificada a casa onde viveu
Miguel Cervantes, em Alcal de Henares eu saa para o campo com Rufino Tamayo enquanto um portugus vivia trin ta anos com uma bala
alojada num pulmo chegava eu ao conhecimento das coisas
135
Agora j no h braseiros os destroos foram removidos
os animais espantaram-see como se isso no fosse desde j um admirvel e sur
preendente esforo na nossa aco de escritores afogado num poo canta um homem
ORADOUR- SU R- GLANE
Gritos brancos gritos pardos gritos pretos no mais haver braseiros os destroos foram
removidos
E no esquecendo o esforo daquele outro que para aquecer o ambiente apareceu morto e no enviou convite nem notcia a ningum
Mundo mundo vasto mundo(Carlos Drummond de Andrade)os conspiradores conspiramos transpiradores transpiramos transformadores aspirame Deus acolhe tudo num grande cesto especial
136
A lei da gravidade dos teus olhos, me,a lei da gravidade aqui est um poetanum barco a gasolina no no no um operriocom um martelo na mo muito depressaos automveis passam o rapazio gritao criado serve (se no servisse morria)os olhos em vo rebentam a pessoa levantou-setantas crianas meu Deus l vai o meu amor
Tambm ele passou trezentas vezes a rampa que estranhas coisas passaram os poetas que
sabem
construo construo progresso no transporte
ORADOUR- SU R - GLANE
Souviens-toi
REMEMBER
137
H O M E N A G E M A CESRIO VERDE
Aos ps do burro que olhava para o mar depois do bolo-rei comeram-se sardinhas com as sardinhas um pouco de goiabada e depois do pudim, para um ltimo cigarro um feijo branco em sangue e rolas cozidas
138
Pouco depois, cada qual procurou com cada um o poente que convinha.Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesrio
Verdeque ainda h passeios ainda h poetas c no pas!
139
V IN T E Q U A D R A S P A R A U M D D
Eu estou presente todo eu sou sim e de repente no dou por mim!
Um bom vazio me vem encher (nem sinto o frio de me no ver)
140
Heris antigos olhos cientes passam amigos dizem parentes
Passam os manes do eternal e os ademanes do amoral
Passam aqueles com os aquelas tanto sou deles quanto sou delas
Sou de ningum estou em olvido e mais despido que Pedro Sem
Coloraes Trigos e joios Caem avies? Chegam comboios.
141
Os tristes olham o escasso cais que as ondas molham (gua demais ...)
Os brios, esses passam de largo Ai S-Carneiro Carneiro amargo
Praas pequenas como alapes.So os cinemas?Sero ladres?
E eu que no puxo cabo ou comeo moderno bruxo olho; arrefeo.
Esfriei a rua das Grandes Dores fritei-lhe a lua raspei-lhe as flores
142
Fui-me de lata sangrenta escura patrcia pata da dita dura
Esfriei-lhe o jeito de assassinar comi-lhe o peito mais pulmonar
Esfriei as frentes esfriei as trazes fiquei sem dentes merda, rapazes!
Gritar no grito esperar demora. Viva o infinito! Ora, ora, ora.
Altas, morenas, com janeles boas pequenas estas prises!
143
Do l por dentro gozos astrais. Anda-se menos pensa-se mais.
burguesinhos que quereis fazer que heis-de fazer queridos vizinhos?
Sabeis lutar?Sabeis perder? Viver? Morrer?Que heis-de fazer?
Eu que no puxo cabo ou comeo fluxo... defluxo... e no sei. Nem peo.
E multido contente e s eles que so e eu que estou
144
apenas vejo como se ouvisse um negro harpejo que nem florisse
Pois no que vi no ver que h e eu estou ali no estando l.
10145
P A R A D A
Com um grande termmetro no chapu e um certo ar marcial de gnero equidistante todos sairam hoje das suas casas na duna para a rua a soprar o vento que vem de longe a certeza que h-de vir de longe a formiga que vem de muito muito longe
146
Os prisioneiros polcias dos polcias prisioneiros nas montras nos passeios por baixo dos bancos passam os pontos escuros para o outro lado sem esquecer o espelhosem esquecer o aranhio meticulosamente pequenino
para fazer a surpresa sem esquecer a borboleta tonta que sobe no hori
zonte da cor do solo pescoo da nossa felicidade
147
DE PROFUNDIS A M A M U S
Ontem s onze fumaste um cigarro encontrei-te sentadoficmos para perder todos os teus elctricos os meusestavam perdidos por natureza prpria
148
Andmos dez quilmetros a pningum nos viu passarexceptoclaroos porteiros da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros
Olhacomo s tu sabes olhar a rua os costumes O Pblicoo vinco das tuas calas est cheio de frioe h quatro mil pessoas interessadas nisso
No faz mal abracem-me os teus olhosde extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrero muitos sculos antes de ns mas no te importes
149
no te importes muitons s temos a ver com o presente perfeitocorsrios de olhos de gato intransponvel maravilhados maravilhosos nicos nem pretrito nem futuro tem o estranho verbo nosso
150
A U M RATO M O R T O E N C O N TR A D O
N U M PARQUE
Este findou aqui sua vasta carreira de rato vivo e escuro ante as constelaes a sua pequena medida no humilha seno aqueles o que tudo querem imenso e s sabem pensar em termos de homem ou rvore pois decerto este rato destinou como soube (e at
como no soube) o milagre das patas to junto ao focinho! que afinal estavam justas, servindo muito bem para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar
atrs de repente, quando necessrio
151
Est pois tudo certo, Deus dos cemitrios pequenos?Mas quem sabe quem sabe quando h enganonos escritrios do inferno? Quem poder dizerque no era para prncipe ou julgador de povoso mpeto primeiro desta criaoirrisria para o mundo com mundo nela?Tantas preocupaes s donas de casa e aos mdicos
ele dava!Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam? Algum rapazola entendeu sua esta vida to mpar e passou nela a roda com que se amam olhos nos olhos vtima e carrasco
No tinha amigos? Enganava os pais?
Ia por ali fora, minsculo corpo divertido e agora parado, aquoso, cheira mal.
Sem abusoque final h-de dar-se a este poema?Romntico? Clssico? Regionalista?
Como acabar com um corpo corajoso e humlimo morto em pleno exerccio da sua lira?
152
O J O V E M M G I C O
0 jovem mgico das mos de ouro que a remar no se cansa muito e olha muito depressa (como se fosse de moto) veio hoje ficar a minha casa
Vivia longe longe j se sabiato longe que era absurdo querer determinarmetade campo metade luza era a sua casa o stio onde era longe
153
mesmo de olhos fechados (como ele estava) e de braos cruzados (como parecia dormir) o jovem mgico das mos de ouro que era todo de emprstimo minha noite
que falou por acaso que nem se chamava assim (segundo tambm contou) tinha vivido h muito ele, que estava ali, era um falsrio um fugido de outro basta ver os meus olhos
nada sabemos de ns a no ser que chegmos sem uma luz a esconder-nos o rosto belos e apavorados de estranhos casacos vestidos altos de meter medo s aves de longo curso
nem h noites assim no h encontros ao longo das enseadasno h corpos amantes no h luzeiros de astros sob tanto silncio to duradoura treva
e no me fales nunca eu sou surdo eu no te oio eu vou nascer feliz numa cidade futura eu sei atravessar as fronteiras das coisas olha para as minhas mos que te pareo agora?
154
No entanto surgiu como simples criana conseguia sorrir sentar-se verter guas com as mos na cintura livre natural ele que era um fantasma um fugido de outro
um que nem mesmo se chamava assim o jovem mgico das mos de ouro desaparecido nu de todos os stios da Terra
155
UMA CERTA QUANTIDADE
Uma certa quantidade de gente procura de gente procura duma certa quantidade
Soma :uma paisagem extremamente procura o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha) e o problema do quarto-atelier-avio
156
Entretantoe justamente quandoj no eram precisosaparecem os poetas procurae a querer multiplicar tudo por dezm raa que eles tmou muito inteligentes ou muito estpidospois uma e outra coisas eles so
Jesus Aristteles Plato abrem o mapa : di aqui di acol
E resulta que tambm estes andavam procuraduma certa quantidade de genteque saa procura mas por outras bandasbandas que por seu turno tambm procuravam imensoum jeito cerU/ de andar procura delesvisto todos buscarem quem andasseincautamente por ali a procurar
Que susto se de repente algum a srio encontrasse que certo se esse algum fosse um adolescente como se uma nuvem um atelier um astro
157
BARRICADA
Quando j no pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplcios e olhando para trs virmos apenas homens desmaiados, ento algum saltar para o passeio, com o rosto j belo, j espontneo e livre, e uma cano nascida de ns ambos, do mais fundo de ns, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela moblia de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criana a quem j s falta
158
cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho insuportvelmente puro e nosso, um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, um rapaz crescendo ao longo dos teus braos, um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio uma praa para fazer chorar. Salv, arquitectos! Mas choremos tanto que ser um dilvio. Automveis- -dilvio. Sobretudos-dilvio. Soldadinhos-dilvio. E quando essa gua morna inundar tudo, ento, arquitectos, tra balhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade : vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
159
POEMA
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco conheo to bem o teu corposonhei tanto a tua figura
l
que de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura
160
e bebo a gua e sorvo o ar que te atravessou a cintura tanto to perto to real que o meu corpo se transfigura e toca o seu prprio elemento num corpo que j no seu num rio que desapareceu onde um brao teu me procura
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco
ii
161
OS BANTS E AS AVES
Junto da pobre praia sempre sujaonde desconhecido o automvel por dentroele repousa da sua longa misriaouvindo o pssaro-bicho canta que cantamirando o rio-pluma desce que desceo molhado batuque das cinturasSobre a areia da cerca canta que cantaele repousa ignoto na sua moque no tem que fazer. Na sua auroraque no tem que raiar. Na sua camavincada h dois mil anos para ele
162
Convm que seja noite porque ele ri e o seu riso uma coisa insuportvel, uma ferica praia muito limpa coberta de pancada e de gua escura
entrada da cerca canta que canta assomou para ele o noivo estranho com o seu passo de Um dia de descanso seu riso de gua doce pela boca (na cinta a chibatinha e a lanterna na mo os dedos com que guarda tudo)
Condicionalismo econmico! Condicionalismo econmico! protesta o pssaro-bicho canta que canta gorgeia o rio-pluma desce que desce ao dente sexual do automvel por dentro
No entanto eles entram na cubata juntos repousam nus do mesmo inferno seus corpos eriados de diamante seus olhos de mrmrio e de pacincia so uma grande selva inconquistvel
163
R A D IO G R A M A
Alegre triste meigo feroz bbedo lcidono meio do mar
Claro obscuro novo velhssimo obsceno puronomeio do mar
Nado-morto s quatro morto a nado s cincoencontrado-perdidono meio do mar no meio do mar
164
2
Y O U A R E WELCOME TO ELSINORE
Entre ns e as palavras h metal fundente entre ns e as palavras h hlices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de ns o mais til segredo entre ns e as palavras h perfis ardentes espaos cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ' ponteiros e crianas sentadas espera do seu tempo e do seu precipcio
167
Ao longo da muralha que habitamos h palavras de vida h palavras de morte h palavras imensas, que esperam por ns e outras, frgeis, que deixaram de esperar h palavras acesas como barcos e h palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posio
Entre ns e as palavras, surdamente, as mos e as paredes de Elsenor
E h palavras nocturnas palavras gemidospalavras que nos sobem ilegveis bocapalavras diamantes palavras nunca escritaspalavras impossveis de escreverpor no termos connosco cordas de violinosnem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do are os braos dos amantes escrevem muito altomuito alm do azul onde oxidados morrempalavras maternais s sombra s soluos espasmo s amor s solido desfeita
Entre ns e as palavras, os emparedados e entre ns e as palavras, o nosso dever falar
168
AUTOGRAFIA
Sou um homem, um poetauma mquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configuradaum avio que sobe levando-te nos seus braos que atravessam agora o ltimo glaciar da terra
169
0 meu nome est farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado morte!
os dias e as noites deste sculo tm gritado tanto no meu peito que existe nele uma rvore miraculada
tenho um p que j deu a volta ao mundo e a famlia na rua um loiro outro moreno e nunca se encontraro conheo a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te j eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a gua do mar minha espera quando amo imito o movimento das mars e os assassnios mais vulgares do ano sou, por fora de mim, a minha gabardine e eu o pico do Everestposso ser visto noite na companhia de gente altamente
suspeitae nunca de dia a teus ps florindo a tua boca porque tu s o dia porque tu s a terra onde eu h milhares de anos vivo a parbola do rei morto, do vento e da primavera
170
Quanto ao de toda a gente tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris j se arranjaram algumas.Enlaces e divrcios de ocasio no foram poucos. Conversas com meteoros internacionais tambm j por
c passaram.Eu sou, no sentido mais enrgico da palavra uma carruagem de propulso por hlito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por
onde passei uma s vez tudo isso vive em mim para uma s histria de sentido ainda oculto magnfica irrealcomo uma povoao abandonada aos lobos lapidar e secacomo uma linha frrea ultrajada pelo tempo por isso que eu trago um certo peso extinto nas costasa servir de combustvele por isso que eu acho que as paisagens ainda ho-de vir
a ser escrupulosamente electrocutadas vivas para no termos de atir-las semi-mortas linha
E para dizer-te tudodir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existncia solar
estou em franca ascenso para ti O Magnfico
171
na cama no espao duma pedra em Lisboa-Os-Sustos e que o homem-expedio de que no h notcias nos jornais
nem lgrimas porta das famlias sou eu meu bem sou eu partido de manh encontrado per
dido entre lagos de incndio e o teu retrato grande!
II
Em Portalegre o cemitrio deita por cima dos ciprestes no leve, solto azul funreo, o exterior vu de mistrio que tem qualquer cemitrio
III
E era uma vez este homem que era um Chevrolet casado com uma mulher de vidro que era uma colher de prata Tempos depois sobreveio uma zanga
172
que era uma criana nuaentre umas tbuas de passar a ferroe dois elevadores lindssimos
Metrnomo (disseram eles)
Verdadeira saudade pernilongao pra-raios ps-se a esfalfar romnticamente o toldo de uma mquina de escrever disposta para o amor s quatro
no interior de um quarto que era uma plancie redonda semeada de vrgulas violeta com um pequeno garfo nas costas que era o amanhecer que uma rvore na boca de uma mosca de veludo rosa
Metrnomo metrnomo (disseram eles ainda) uma rvore uma pedra que vai comear o terceiro canto ?
a aflio dos outros, meu amor.
Lembro-me de tudo como se fosse hoje as crianas brincavam nos jardins com um pequeno garfo nas costas sem dvida o mesmo de h bocado e at era domingo v l tu
173
de repente apareceste muito devagar a meu lado arrastando sem esforo dois aparadores baratssimos ai! a minha tristeza no era uma barca breve houve lapidaes em srie com um ligeiro clic de ehaufagem aberta todos os meus irmos comearam a andar velozmente
para trspobres dos meus irmos que ser feito deles e de ns que
fizemos ?
Impossvel saber-se at onde ir connosco a nossa confiana
Ficaste, mo que aperto todas as manhs para atravessar inclume os espaos vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre !os bichos e eu
tu meu nico amor meu amor meu mltiplo amor meu tu que s uma mesa redonda enamorada dos seus prprios
crculosum alcaide sem discos um mao de cigarrosque se descobriu florque se descobriu guaque se abriu de repenteque gritou de repenteque implantou na minha vida de repente a corola perfeita da desorganizao
174
No me encontrars como um anel na curvatura I Z do teu dedo mindinho
nem na treva que exalta os teus cabelos nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadssima encontrar-me-s numa nuvem de escamas milimtricas em
tomo da tua boca com toda a fora principal na boca ou nesta casa que um homem morto rodeado de rostos sempre translcidos
Onde est o homem que era um Chevrolet casado com uma vrgula de amianto?Certo e sabido que anda sobre as guas que o matei sem
quererestas estrelas brilham com tal nitidez que acabam sempre por tomar-se suspeitas
No importa transfigur-lo-ei em poderoso egpcio
Abracadabra! Vram! Abracadabra!
Os teus olhos esto belos como a lua dos rios exteriores
175
IV
Reconheo este quarto impermevel reconheo-te ests adormecido o peito muito aberto as mos luminosas o grande talento dos teus dentes midos
H o perigo de um grito lindssimo quando andas assim comigo no invisvel
Quando a manh vier sairs comigopara o espao que nos falta para o amorque nos falta
A aurora est fatigada
A auroracomo um rio nosso em torno dos elevadores
176
Tinha eu a idade de um marselhs silencioso
e tmido
Tu davas-me a lousa dos magos o teu riso as letras
mais obscuras do alfabeto
Foi h muito tempo ou agora
na caverna dos lees expressivos
A caverna que d para a caverna a caverna os lagos diligentes
Belo tu s belocomo um grande espao cirrgico
Porque tu no tens nome existes
12177
A minha boca sabe tua boca
A minha boca perdeu a memria no pode falar as palavras entram no seu tnel e no preciso segui-las
Disse que s alto altobranco e despovoado
*
V
Faz-se luz pelo processode eliminao de sombrasOra as sombras existemas sombras tm exaustiva vida prpriano dum e doutro lado da luz mas no prprio seio dela
178
intensamente amantes loucamente amadas e espalham pelo cho braos de luz cinzenta que se introduzem pelo bico nos olhos do homem
Por outro lado a sombra dita a luz no ilumina realmente os objectos os objectos vivem s escuras numa perptua aurora surrealista com a qual no podemos contactar seno como os amantes de olhos fechados e lmpadas nos dedos e na boca
179
A E D G A R A L L A N P E
Meu relgio soando de ps nus a quinta hora da noite italiana
minha cabea de anis dolorosos como jacintos pretos recm- -colhidos
minha criana grande escorregando pelos braos da me quando mil candelabros dardejando nas escadas dos palcios anunciavam um corpo delicado e quente
minha caranguejola de diamante entre a vida e a morte a graa e a desgraa a verdade e o erro
meu malfadado e misterioso homem figura descida figura embrulhada figura muitos ps
180
acima de si mesma e no entanto figura de claridade figura de homem deitado com uma estrela na boca escor
rendo gua meu Eliseu do m ar amado das estrelas segredo das suas guas silenciosasmeu rio negro spero venenoso cintilante e tremente
esmeralda e violeta por onde mil nadadores lutando contra a corrente procuram
ainda em vo superfcie o que s no mais fundo da gua resplandece
a tua parede branca de aparies fumegantes
LIGE IAacima ou fora da matria, s comparvel estrela de sexta grandeza, dupla e varivel, que se encontra prximo da estrela grande da Lira
MORELLAde mos frias e agudas, falando, falando sempre, porque as horas de felicidade passam e a alegria no se colhe duas vezes na vida, como as rosas de Paestum duas vezes no ano
181
RODERICOos cabelos sedosos em torno da face, os olhos grandes, hmidos, luminosos, os lbios numa curva extremamente bela
Contei-lhes a minha histria no quiseram acreditar-me!
Mas h, sim, outros mundos alm deste, outros pensamentos alm dos pensamentos da multido, arcanjos que se ergueram para cobrir desertos aonde s o universo ardeporque dois lbios finamente delineados tremem porque Mentoni ainda ri, em traje de cerimnia, com a sua
figura de stiro porque no houve forma de passarmos adiante e uma terr
vel nuvem cor de chumbo enche de espantosa velocidade o espao
Maelstrom Maelstrom dos teus olhos no mundo Maelstrom destruindo caixas sobre caixas sobre o ventre
total de uma caixa de msica americana como as que s vezes se vem nos pores as mos brancas e nuas de firmes aranhas de prata
182
A AN T N IO M ARIA LISBOA
0 rato abriu o interior da cpula os amantes acharam gua e mrmore criana de olhos de oiro ergue-te e anda as portas esto abertas escancarado o mundo das distncias incalculveis e as palavras sentadas inteis porta dos dias as trmulas palavras ainda quentes dos machados de seda dos teus lbios procuram sem cuidado a vertical da nova supliciada arquitectura
183
O amor um sentido! 0 amor um sentido!0 AMOR UM SENTIDO!
0 amor uma chave que deve perder-se um burro que tropea na vastido dos mares um solrio na areia para soldados meninos uma luz e uma sombra a cercar-nos a lngua
Mas tu chegaste antes das pedrarias antes de todo o intervalo para o crime um risco de bondade separava as esttuas e a treva era paciente no teu joelho
E depois longo tempo eu te perdi de vista M longe, numa fonte cheia de fogos ftuos
De andaime para andaime o rato PASSA de estrela em estrela rumo aos arquiplagos uma minscula mo percorre o espao como tu, Duque, deveste correr a p os mais altos montes como ris no Himalaia antes de l chegarem com a arca de no e quatro ou cinco dvidas suple ^
mentares os de sempre os
184
mestres Mestres em morte! (Eles agora pensam que chegada a altura
de ensinar os montes a ler e a escrever...)
Estrela de Todas as Horas Odasashor Asest R
Daqui at Saturno sempre houve muito que andar a no ser que se tome o caminho mais ngreme eu tomei se tomei! o caminho mais ngreme a raia da floresta entre onda e lua quando voltei no estavas s a sombra de um deus falava da tua fora e do teu hbito
Mas hoje as tuas mos parecem-se comigo
J no se tra ta de danar com os mortos ou de pedir vida catedrais maiores que o outro sono
J no se tra ta de elmos e clareiras onde o demnio grita deslumbrado
Mas de se olhar nos olhos a torrente mas de tocar com o pulso um sol antigo l longe, onde se cruzam as nascentes
185
A A N T 0 N 1 N A R T A U D
l
Haver gente com nomes que lhes caiam bem. No assim eu.De cada vez que algum me chama Mrio de cada vez que algum me chama Cesariny de cada vez que algum me chama de Vasconcelos sucede em mim uma contraco com os dentes h contra mim uma imposio violenta uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
186
Como assim Mrio como assim Cesariny como assim meu deus de Vasconcelos?
Porque que querem fazer passar para o meu corpo uma caricatura a todos os ttulos porca?Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos
baptistriospara que eu recebesse em plena cara semelhante feixe
de estruturas to inqualificveis quanto inadequadas ao acto em mim sozinho como a vida puro eu no sei de vocs eu no tenho nas mos eu vomito eu no queroeu nunca aderi s comunidades prticas de pregar com
pregosas partes mais vulnerveis da matria
Eu estou s neste avano de corpos contra corpos Inexpiveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar tenebroso e cantante suficientemente glaciado e horrvel
para que seja impossvel encontr-lo
187
sem de alguma maneira enveredar pela estrada Da Coragemporque a este respeito e creio que digo bem nenhuma garantia de leitura grtis se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nomeum nome que me fosse realmente o meu nomeisso provocariacalamidadesterrveiscomo um tremor de terradentro da pele das coisasdos astrosdas coisasdas fezesdas coisas
I I
Haver uma idade para nomes que no esteshaver uma idade para nomespurosnomes que magnetizem
188
constelaespurasque faam irromper nos nervos e nos ossos dos amantesinexplicveis contrues radiosas prontas a circular entre a fuligem de duas bocas puras
Ah no ser o esperma torrencial diuturnonem a loucura dos sbios nem a razo de ningumNo ser mesmo quem sabe nico mestre vivoo fim da pavorosa dana dos corposonde pontificaste de martelo na mo
Mas haver uma idade em que sero esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos s coisas
Haver um acordar
189
DO CAPTULO DA DEVOLUO
Hoje venho dizer-te que morreste e que velo teu corpo no meu leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensvel
aquele desespero que deixou de ter foras para erguer os portais do outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, at a tinta e as flores e o prazer de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque a tua maneira de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda no sabes a que ponto morreste; vais at janela, aspiras com cuidado o oxignio que o espao te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condio de animal fulminado
190
depois olhas para mim, olhas as tuas mos, e elas ambas, to claras, to seguras, so as mos de um soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo deserto
mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mo do homem doce e iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre os hospitais
tivemos uma histria mas a histria foi-se, em fileiras anglicas e gratas, a fazer a manh de outras paragens; outra sombra, outros olhos semelhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansao e a minha misria, os teus braos e os meus, altos como cidades, altos como flores
parou o automvel, l em baixo, e eu no tenho mais que descer as escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de um pulo a minha prpria vida
agora posso sonhar at deixar de te ver
belo rio sem lgrimas
191
D1T1RAMB0
Meu maresperantottmico minha mlanimatgrafurriel minha noivadiagem serpente meu litrpolipo polar
meu fiambre de sol de roseira
192
minha musa amiantuliplida meu lustrefrenado cu grande minha afiurora-manh
minha fgcia de esttuas minha lbiquimia cerrada minha ponta na terra meu rsgrima
meu diamantermita acordado!
13
193
CONCREO DE SA TU R N O
Vem dos comboios lentosdo cristal dos gritos
das mos prodigiosas e dos seios de pedra corrompida vem do fim das palavras inaudveis como um tremor de terra nos ouvidos girando em tua rbita de agulhas belo e desaparecido como o caf chins da Pvoa de
Varzim dos tempos da minha infncia
194
alto como dois rios inimigose perplexo e leal como um cometa arrastando as estre
las podres da memria para a ponte velocssima onde geme a farinha deste
silnciopara o latido dos ces de que s resta a baba donde
emergescom os teus prstitos de facas adorveis setentrionais
e unas como orelhas com os teus lares de vrgulas ferozes
sem rosto contra a lua meu barco de sempre
minha rota suspeita meu grande ornitorrinco deportado por enormes tra
vessas sem orculo por teus chumbos de discrdia teu hlito seminal
de liberdade de homem de homem-me
minsculo ovo azul na plpebra secreta dos meus dedos encontrado-pordido encontrado-perdido
no erro dos aviadores quando tentam explicar determinadas sensaes que o andar pelo espao causa ao homem
195
na festa magnfica de um reposteiro de veludo preto meticulosamente abandonado fria de uma cama
nos dois tentculos de rvore que apesar de tudo jorram da minha vida s dez e trin ta da noite esperana macho
nos dias em que marcho sem esperana at que um gro de areia fura toda a barragem subindo rpidamente ao corao
Falo de uma montanha presa pela cinta falo da festa mgica para a morte dos nomes falo como se a aurora nos banhasse como se nada houvesse contra nscomo se entre o teu rosto e a minha carapaa no mediasse
esta ausncia de um grito este lugar frissimo e necessrio
e falando de ti anmona-menina em qualquer ponto da praia falo de ti Saturno antilnio antimuro antiaspirao ao
desaparecimento
O nico fim que eu persigo a fuso rebelde dos contrrios as mos livres os
grandes transparentes
196
a primeira coisa que me alegra o doce roncar do avio em cada ave que vo voa um homem nunca foi to exacto falar de realidade mas a ciso do homem contra o homem instalou a espi
ral do grande assassinato o bibe das mulheres miraculosas sob o arco voltaico da
paradapara a consagrao do acto macho para o tan-tan da adorao sem escrpulos escuta-os chegar Saturno afixa o teu revlver arruina a esperana das cidades levando-lhes ao
domingo o teu rosto suspeito colore a mo das esttuas cintilantes j ests grande demais para o teu leito
instala-te de lado o perigo enorme
barbeia-te com dio a barba ajuda
197
LEMBRA - TE
Lembra-teque todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos iro achando sem fim seu ansioso lugar seu boto de florir
198
o horizonte e que dessa procura extenuante e precisa no teremos sinal seno o de saber que ir por onde fomos um para o outro vividos
199
INTENSAM ENTE LIVRE
Intensamente livre o homem dirige-se para a praia mais pequena que ele
leva na mo um mapa-mundi azul a custo que desce as dunas mais pequenas que ele
e sem ningum que ateste a visibilidade radiogoniom- trica destes seres
o homem perfura o poo mais pequeno que ele abrindo o leo de costas que h no fundo do poo o doce leo alado muito limpo que h no fundo do poo
200
Como ver este homem o seu dorso a sua cabeleiracorreria nocturna ao longo de um tnel em transeonde ser verdade onde rosa irisque este homem sobrevivesob o seu talhe mais pequeno que elesob o seu pedestal a sua obscura fora militare o seu porte essa porta essa made vinagreessa locomotiva feita armada pronta para surgir arrastando uma poca sem calendrios cheia no s de estradas mas de signos de estradas estrada-dedal estrada-violino corpo-estrada de Rei
RapAz de Estrada
H muito que vou com ele por um caminho livre quem cessar primeiro? ele? o caminho?
Este homem que apenas nasceu este homem sem lgrimasvoltou-se! prodigioso o espao que arde na sua sombra face rida lisa para o incndio com as mos
201
3
CORPO VISVEL
A esta hora entre os blocos de prdios enevoados a bela mancha diurna dos calceteiros na praa
e os dois amantes que hoje no dormiram vo partir nos braos da sua estrela
beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro uma cartauma letra muito fina extremamente caligrfica onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe
so remetidas deixou a sua marca
205
e o duque da terceira levanta o brao comentado seguido pelas aves que acordam a duzentos e
mais metros de altura o que no ainda a grande altura sim sim
no noquem sabe
Dentro do grande tnel digo-te a vida esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
como a proa de um barco bateira que me trs os dados e a roleta onde no branco ou
no preto devo jogar jogando-me contigo malmequer bem-me-querou muito ou pouco
ou nadao que s com as mos pode ser soletrado s nos teus olhos nos teus olhos escrito
Dentro do grande tnel digo-te a vida o moo que h uma hora no fazia seno fumar cigarros o mesmo que julgou ter a noite perdida que maada sempre encontrou o seu par l vo eles j no extremo do
206
outro lado da praa ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto imper
tinente e desde logo minha segundo a qual no amor toda a entoao da voz humana
tende a reduzir o indivduo receptor ao estado de serpente fascinada
sem que da advenha a petrificao estrela cadente ou qualquer outra espcie de perturbao durvel
Eu digo que h tambores mapa louco riscado sobre a areia h o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra h o gato to limpo e ainda e sempre a lavar-se soleira
da porta a tua porta quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu,
da viagem e no vitral de tudo o que eu mais adoro a dez mil metros de profundidade l onde a carpa avana
sem deixar qualquer rasto h o campo selvagem dos teus ombros espreitando contra a luz na orla do rio a nuvem
de corsrios que sou euvestido de andaluz para o baile em chamas digo o grande
baile do sculo na ilha
207
0 havermo-nos encontrado na horrvel sala dos passos perdidos
o que levarei mil anos a decifraro teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos
meus dedos o santo e a senha do percurso na sombra o gesto com que voltas de repente a cabea interrompendo
o fio da meada sem que engraado hajam batido porta entrado ou sado algum
so os astros o sangue e os jardins de Brauner e a tua mo posta em arco sobre a minha boca uma nova roscea sobre o mar
Livres digo Livrese isso no s a grande rua sem fim por onde vamos viemosao encontro um do outroa esta casa dorso de todas as casas e no entanto a nica
perfeita silenciosa fresca mas e tambm as chamas que acendemos na terra da floresta humanano s ao longo dos lamos gigantes e das clareiras mais
espectaculares a a memria fcil mas na eroso fsica de cada folha no vento
208
tudo o que teve ter a sua vez connosco a haver de ns a mesma ddiva recproca porque tu vsde costas para a janela tu que disseste :
vai haver uma grande guerra nenhum de ns eu sei escapar vivo
vs to bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china onde ainda estamos
nada de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada na areia
o cran que florescecomo tu como eu nos tubos que dissemos fizemosfaremos acordar
e at quando?
Amoramor humano
amor que nos devolve tudo o que perdssemos amor da grande solido povoada de pequenas figuras cin
tilantesdigo: a constelao de peixes rpidos do teu corpo em sossego