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A caçada, de Paolo Uccello (Ashmolean Museum, Oxford)

Poesia de Bruno Tolentino

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Literatura

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A caada, de Paolo Uccello(Ashmolean Museum, Oxford)PoesiaBrunoTolenti noO espectroA Ivan JunqueiraNo h como agarrar-te naturezaquando a asa da noite baixa e faza sombra sobre a acha, a lenha presa luz da labareda que a desfaz;morres despreparado ou morres bem,mas passas pela cinza, meu rapaz.Tudo talvez ressurja mais alm,mas a abutre, albatroz, guia ou condoro vo acaba por pesar e temque perder altitude no esplendor:dos pramos esteira de uma naveestende-se a amplido, mas sem repor189Poeta, ensasta,professoruniversitrio.Obra potica:Anulao e outrosreparos (1963);Os sapos de ontem,As horas deCatharina1971-93(1994); Os deusesde hoje (1996); Abalada do crcere(1996; PrmioAbgar Renaultde Poesia 1997, ABL);O mundo como idia(2002).flego a um corao at que a averecolha a asa e pronto, se acabou,foi-se o que era to doce! To suavelevitou-se e mais nada lembra o vo...Nada, nem mesmo a terra, eqidistantedo que caiu como do que voltou,com uma equanimidade impressionante.E caso a interpelassem que diria?Nada outra vez, ou menos que o ex-amantefingindo-se impassvel se algum diaouve dizer que tudo acaba assim.Pois foi assim que o espectro da poesiasurgiu-me um belo dia, e veio a mimassim que eu consegui levar a srioos canteiros de Kant num jardim beira Tmisa, ante um cemitrio...L estivera eu de mo no queixo,a espanar as lombadas do mistrio,seguindo a lgica ao seu belo fecho:afinal, se a equao mais arbitrriaconseguira amarrar a Terra a um eixo,qualquer cogitao imaginriano seria nem mais nem menos frgil;divagaes da hora solitria,190BrunoTolenti noarabescos da mente, sempre gilao fazer de um trapzio o seu lugar.Pois foi ento que, assim como um pressgioobriga a respirar mais devagar,mas faz bater mais forte o corao,eu primeiro senti aquele olharantes de perceber a assombraoque entre o rio, o junquilho e o malmequervi caminhar em minha direo.Atnito, amparei-me a uma mulher,semidesfalecido: o encapotadoera a cara do Charles Baudelairedo retrato, cuspido e escarrado!Ningum via o que estava acontecendo,em toda aquela gente ali ao ladoningum notava aquele rosto idntico corola da rosa corrodaem que Blake encarnara o sofrimento.E l vinha ele andando! Espavoridamas alerta, habilssima colmia,a mente me exigia uma sadae, assim como o avestruz ante a alcatia,insistia em no ver: no, no seria,no podia ser ele, era outra idia191Poes i aa espumejar na velha alegoriados nevoeiros que complicam Londres...Mas no havia erro! A ventaniahavia depenado tanto as frondesque atirava topzios e safirascontra o bueiro em brasas do horizonte,mas nele havia o ar dessas mentirasque dizem a verdade: confrontou-mee num rpido olhar deixou-me em tirasos trapos da razo era o meu homem!H mmias que uma vez desembrulhadastm escrito na cara o nosso nome.Carros, nibus, gente nas caladas,um semforo ao longe, vaga-lumeesttico entre sombras apressadas,e aquilo a se agitar que nem um cumede palmeira no ar e andando, andandoe desferindo o olhar como um perfumede gangrena fatal ensarilhandoo eterno cncer da imaginaoque desorbita a mente como um bandode morcegos agrava a escurido.Por fim parou-me ao lado e imagineiouvir (talvez sonhasse, talvez no...)192BrunoTolenti noum balbucio familiar e cheiode ecos aos que andamos pelo canto: Andaste num vazio sempre alheio,entre noes apenas, e no entantonunca bastou sequer a consolar-tetanta fabulao cheia de espanto,de dor... Buscas o todo parte a parte,queres as perfeies da geometria,e ao fim do sonho circular da arteentregas tudo fantasmagoria,aos jogos malabares da iluso.Andas equivocado e nem seriade surpreender tua equivocao,porque, se alguma vez desconfiastedessa imprudncia, abriste o corao luz conceitual, o belo trasteque temes porque o adoras e te leva,como o refm que s do que adoraste,de lio em lio mesma treva. tudo sempre a treva tumultuosa,no por causa da carne, que se elevaquando quer estao miraculosa,mas por causa do olhar que no quer vere abisma-se em si mesmo, como a rosa193Poes i aamada pelo verme e sem poderde o recusar, tentando resignar-se.No te resignes mais a conceberum triunfo de idias, um disfarcepara as caras da morte neste mundo,uma equao qualquer que a mascarasse,como o mdico mente ao moribundoe o coitado a si mesmo: tambm eumeti-me com paixo nesse infecundoescrnio de iluses, mas vem do cua luz que nos sustm, a que alucina,a luz conceitual, nasce de um breu.No sigas mais a falsa peregrinaque rapta a imagem, rouba-lhe o reflexoe entrega os dois a um jogo que terminapor desfazer de tudo a cada nexo.A terra provisria e improvidente,tudo relmpago entre a morte e o sexo,mas a alma faminta no consenteque lhe mintam! A Idia te convidamas no recebe nunca e, de repente,entre a porta da entrada e a da sadaperdes as propores e logo a conta,o fio da meada e o dom da vida;194BrunoTolenti nofecha-se a ltima jaula e a fera tontadescobre que agoniza e morre presa.E no entanto repara: o cisne apontapara a altura cantando, e com certezaessa cano no extremo transfiguraa coisa moritura e a alma surpresaentre o nmero, o nada e a noite escura...A grande alma penadaLe Silence ternel de ces espacesinfinis meffraie...PASCALSe Baudelaire, diferena de Pascal,odiou a amplidoe no soube conter a vertigem do malno drama da razo,ter sido talvez porque insistiu em vero olhar que usurpa e mata:a Medusa da Idia, esse avatar do serque vai virando esttua.Pascal calou-se ante os silncios infinitose ouviu de Deus a cura;o outro, o ceifador do mal, saiu aos gritos,como um louco procura195Poes i ada comiserao que os abismos no tm.A simples diferenaentre o temor a Deus e o pnico de algumque O no escuta imensa.Um radical, um jansenista, um puritanoda estirpe de Pascal,teme a misericrdia de Deus (se no me engano);mas nem em Port Royal,aquela fortaleza do orgulho, houve lugarjamais para um bueirode que o Cu se tornasse a tampa tumulare o velho desesperoa bssola da vida, ou um contrapeso a ela.Vira a alma penadao poeta imortal que ao abrir a janelavai do Infinito ao Nada.196BrunoTolenti noPoemasAdaPellegri ni Gri noverAs neves do KilimanjaroEscrevi tantas coisas que no queria escrever.As inscrevi em minhalma, sem usar o papel.As inscrevi no sangue, tinta viva e escarlate.So coisas que escrevino pressgio dos erros, das maldies, das dores,nas amargas derrotas,nas vergonhas profundas,nas abruptas muralhas de minha solido.E quando a minha vida, assim dilacerada,se apresentou a meus olhos via-crcis esculpida, marmrea, entalhada quis escrever meus sonhos:da vida fantasia, levemente tecidanas asas da poesia.197Ada PellegriniGrinover professora titularde DireitoProcessual naFaculdade deDireito de USP.Alm de obrasjurdicas,publicou Amenina e a guerra,memrias dainfncia (1998). membro daAcademiaPaulista deLetras (Cadeirano9).Mas h algo no peito que guardo praescrever e nunca escreverei:o momento supremo em que todo meu serconseguir fundir o sonho e a realidadee na sntese extremaentre o princpio e o fimeu s terei frente,incrivelmente brancas no sol alucinante,as eternas neves do Kilimanjaro.AutismoVoltarei um dia nossa praiae na areia cinzentaconstruirei uma cabana.Pelas tbuas porosasincrustadas de algaso sol no filtrare nem a luae o sonido das ondasno quebrar o silncio.A soleira de espumaimpedir o acessoesbarrando a paisageme a maresia.E nunca maispegarei na tua mo.198AdaPellegri ni Gri noverPresenaQuando a morte viere me tocar no ombrodeixarei as folhas sobre a mesa,o livro aberto, a mquina ligada.E a seguirei em pazsabendo que meu serimpregna essas paredes.199PoemasAlfred de MussetMedalha de David dAngers, 1831(Louvre / Giraudon)Alfred de Musset, por Paul DelarocheMedalha de David dAngers, 1831(Louvre / Giraudon)Alfred de Musset, de Charles Landelle, 1855Medalha de David dAngers, 1831(Louvre / Giraudon)A noite de maioAlfreddeMus s et

Traduo de Pedro LyraParaCatherine DumasAnne-Marie QuintIlda Mendes dos Santos: por toda colaborao,toda amizade. O poema A noite de maio foi escrito em duas noites de maro de 1835, aps aruptura definitiva do romance do poeta com George Sand. Publicado na Revue des DeuxMondes: Paris, 15.6.1835. Includo em Posies nouvelles, terceira seo da primeira edio dasPosies compltes: Paris, Charpentier, 1840. Esta traduo (e das outras trs Nuits) foi lida em sesso pblica na AcademiaBrasileira de Letras, no dia 29.9.2002. Pedro Lyra, poeta, crtico, ensasta e professor universitrio, publicou Sombras(1967), Poesia cearense e realidade social (1975), O reduto ontolgico do poema (tese, 1978), O redutoideolgico do poema (tese, 1981), Deciso Poemas dialticos (1985), Conceito de poesia (1986) e or-ganizou antologias.201Escritor francs(1810-1875),autor de Contos daEspanha e da Itlia(1830), ensaiossobre teatro,peas teatrais, ospoemas de Asnoites(1835-1837) eum romanceautobiogrfico, Aconfisso de um filhodo sculo (1836).A musaPoeta, toma a tua lira e d-me um beijo.1A rosa agreste sente o boto que se enflora.Nasce hoje a primavera. O ar de desejo.E a cotovia alegre,2 espera dessa aurora,Aos primeiros verdores ensaia o seu adejo.3Poeta, toma a tua lira e d-me um beijo.O poetaComo est negro este valado!4Julguei que algum vulto veladoFlutuasse pela campina.De l do prado ela saaRoando a erva que floria. uma estranha fantasia;Ela se some na surdina.A musaPoeta, toma a lira; a noite, relva crespa,O Zfiro balana em seu vu de perfumes.Ao morrer, seduzindo-a, curvada sobre a vespa,202AlfreddeMus s et1Traduo literal, mas com permuta mtrica: um trmetro no lugar do alexandrino clssico dooriginal. nica maneira de reproduzir o esquema rimtico de toda a estrofe, com os mesmos fonemasrimantes bsicos (/) nas mesmas posies (A-B-A-B-A-A).2Adjetivo introduzido para reproduzir o hemistquio, com manuteno do ritmo e da vogal tnica ().3Alternando-o com o clssico, o tradutor recorreu ao alexandrino espanhol, ao perceber que esteensejaria uma traduo bem mais prxima do original.4Esta estrofe se abre no presente da narrao (v. 1), desenvolve-se com uma evocao do passado (v.2-3-4-5) e se encerra de novo no presente (v. 6-7).A rosa, ainda virgem, se fecha com cimes.5Ouve: tudo se cala; sonha com tua amada.Sob as tilhas, de noite, sombria ramada,O raio deste ocaso deixa um adeus tocante.Tudo, esta noite, vai florir: a naturezaSe enche de aromas, de murmrios, de beleza,Como o leito feliz de dois jovens amantes.O poetaMas por que meu corao grita?Que tenho em mim que assim se agitaE me retm nesta ansiedade? algum que bate minha porta?Por que essa luz, j meio morta,Me cega com tal claridade?Deus! Meu corpo no se contm.Quem ? Quem me chama? Ningum.Estou s: a hora que vem. privao! soledade!6A musaPoeta, toma a lira; vinho da mocidade,Pelas veias de Deus, esta noite derrama.Meu peito est inquieto; a volpia o invadeE este vento crispado os lbios pem-me em chama.203Anoi tedemai o5Transposio dos v. 3 e 4 para aproveitar a naturalidade da rima portuguesa cimes/perfumes,termos do original.6Transposio dos termos, por razes de rima. H algumas outras ocorrncias, que no voltaremos aapontar.Indolente criana! Repara: sou to bela!Nosso primeiro beijo, no lembras seu encanto,Quando te vi to triste, minha asa singela,E caste em meus braos com teus olhos em pranto?Ah! eu te consolei de uma amarga paixo.Que pena! Ainda jovem, ias morrer de amar.Consola-me esta noite, eu morro de aflioE, pra transpor o dia, preciso de rezar.O poeta tua esta voz que me apela,7Minha pobre Musa, ser? minha flor, e to singela!nica alma, pura e bela,Que ainda me podia amar.Sim, tu prossegues em meu mundo,Tu, minha irm, minha razo!E eu sinto, no abismo profundo,Que em teu manto de ouro me inundo,Com seus raios, o corao.A musaPoeta, toma a lira; sou eu, tua companheira,Que te vi esta noite, mudo e triste, a penar,E que, como uma ave que evoca a prole inteira,Desci do alto dos cus pra contigo chorar.Vem, tu sofres, amigo. Algum tdio te aterra,204AlfreddeMus s et7Suponho que a justificativa para a verso de appelle por apela seja auto-evidente.Algo muito secreto o peito te amargura.Um amor te nasceu, como se v na terraUa sombra do prazer, um vulto da ventura.Vem, cantemos a Deus; s venturas sonhadas,Aos prazeres perdidos, s angstias passadas;Vamos, num beijo, regio desconhecida.Despertemos ao lu os ecos desta vida.Falemos de loucura, de glria e de alegria,E que isso seja apenas nossa primeira orgia.Inventemos um pouso onde tudo se olvida.Vamos partir, estamos ss, nosso o cu.Aqui, a verde Esccia e a Itlia ensombrecida;8E a Grcia, minha me, onde mais doce o mel;Argos, e Pteleon,9cidade combalida;E Messa,10a divinal, dos pombos preferida;E o mutante Pelion,11com seu perfil relvado;E esse azul Titarese,12e seu golfo prateado,Que mostra em suas guas, onde o cisne se mira,A branca Oloossone ante branca Camira.13Que sonho de ouro nossos cantos vo tanger?Donde viro os prantos que havemos de verter?De manh, quando o sol tua pele tocou,Que anjo triste ao travesseiro se curvou,205Anoi tedemai o8Esta seqncia de 6 versos em /i/ do original.9Os nomes citados neste verso e nos seguintes so retirados do segundo canto da Ilada. Homerositua Argos e Pteleon na Tesslia.10Cidade da Lacnia.11Montanha da Tesslia, escalada pelos Gigantes revoltados. Eles amontoaram Pelion sobre Ossa afim de poder escutar o Cu.12Rio da Tesslia.13Essas duas cidades no podem, de fato, se mirar nas mesmas guas, pois Camira est situada smargens da ilha de Rodes, e Oloossone, cidade da Tesslia, no interior.Sacudindo o lils da sua mantilha, ouTe contando em surdina amores que sonhou?14A alegria, a tristeza: qual deve ser louvada?Os bravos batalhes, de sangue nutriremos?Ergueremos o amante ao alto de uma escada?A espuma do cavalo, ao vento lanaremos?E diremos que mo, pelo slio divino,Com lmpadas sem conta alimenta o esplendorDo santo leo da vida e do infinito amor?J hora: eis a sombra! diremos a Tarqunio.15Buscaremos a jia onda encapelada?Levaremos a cabra floresta ignorada?Mostraremos o cu a tal desolao?Vamos com o caador montanha inclemente?A cerva o observa: ela suplica em vo.Sua charneca a espera; a prole ainda recente.Ele se abaixa e a mata; e o corao vivente,Entre os ces em combate, atira pra carnia.Pintaremos a virgem, rosada adolescente,Com seu pajem fiel dirigindo-se missa,Da me acompanhada, com a vista distrada,Os lbios entreabertos, e da prece esquecida?Ela escuta tremendo, aos ecos sensuais,Soar os espores de um cavaleiro audaz.Diremos aos heris deste velho pasPara armados subir aos pncaros das torres,Para ressuscitar o romance felizCuja glria esquecida o ensina aos trovadores?206AlfreddeMus s et14Este quarteto com a mesma rima em /ou/ procura a equivalncia do original, todo em /e/.15Tarqunio Sexto (filho de Tarqunio o Soberbo, rei da Roma antiga), que perseguiu Lucrcio.Cobriremos de branco uma nnia sentida?O homem de Waterloo nos contar sua vidaE tudo o que ceifou ao tropel dos irmos,Antes que o enviado da noite glacialVenha, na solido, dar-lhe o golpe fatal,E ao seu peito de ferro cruzar-lhe as duas mos?De stira mordaz cravaremos no mastroO nome revendido de um pobre poetastroQue, do fundo do nada, e de fome transido,Vem, todo tiritante de inveja e insegurana,Sobre a fronte do gnio insultar a esperanaE corroer o louro por seu sopro ofendido?Toma a lira! No posso silenciar agora.Minha asa me eleva no ar da primavera.O vento vai levar-me, eu vou deixar a terra.Uma lgrima tua! Deus me escuta: a hora.O poeta minha irm, se teu desejo to somente por meu beijo,De uma lgrima em teu regao,Eu tos darei e sem langor.E que te lembre nosso amorSe j retornas ao espao.Eu no canto nem a ventura,Nem a glria, nem a iluso,Ai! nem sequer a desventura.E silencia a boca impuraPara escutar o corao.207Anoi tedemai oA musaComo o vento do outono, acreditas que eu seja?Que at sobre uma tumba se alimenta de mgoaE para quem a dor s ua gota dgua? poeta! um beijo, sou eu mesma quem te beija.A erva que eu queria banir deste lugar a tua ociosidade;16Deus sabe o teu penar.Qualquer que seja o mal que aflige a tua vida,Deixa que ela se estenda, esta santa feridaQue ao fundo de tua alma um anjo mau cavou.Nada grandes nos faz como uma grande dor.Mas para o compreender, poeta, no se creiaQue a tua voz aqui deva manter-se alheia.Os mais desesperados so os mais belos cantos.17Sei de alguns, imortais, que so s desencantos.Pois quando o pelicano, cansado da viagem,Pelas nvoas da noite retorna aos seus recantos,Os filhotes, ao v-lo, acorrem para a margemE se lanam na gua, em nsias e quebrantos.Ento, crendo apanhar e partilhar a caa,Eles correm ao pai com gritos de arruaa,208AlfreddeMus s et16Verso nuclear de Les nuits, que expressa a atitude e o objetivo da Musa em relao ao Poeta:retir-lo da vida mundana e devolv-lo criao. Em A noite de outubro, justamente a ltimada srie, ele vai exaltar o trabalho o trabalho potico, claro. Neste verso, foi impossvel mantero hiato; mas, em se tratando do verso nuclear do poema, era melhor preservar a idia e aspalavras.17Este verso, que um dos mais belos e mais emblemticos de todo o Romantismo universal, esttraduzido literalmente: foi esta feliz possibilidade que induziu o tradutor a recorrer ao alexandrinoespanhol.Agitando seus bicos sobre os papos trementes.18E ele, escalando lento uma montanha ingente,Qual pescador tristonho, contempla o cu poente,Mas abrigando a prole sob as asas pendentes.Corre do peito o sangue por uma chaga aberta.Em vo sondou o mar ao fundo do seu leito:O mar era vazio e a praia era deserta.O alimento que traz o seu prprio peito.E silente e sombrio, sobre as rochas eternas,Partilhando entre os filhos as entranhas paternas,Ele acalenta a dor em seu amor perfeito.Contemplando a escorrer seu corao sangrento,Em seu festim de morte ele tomba um momento,De volpia, de horror, de ternura desfeito.Porm, no meio do divino sacrifcio,Cansado de morrer num to longo suplcio,Desconfia que os filhos lhe negaro a morte.Ento ele se eleva e, abrindo asas sorte,Rasga seu corao com um grito to selvagemE espalha pela noite um to fnebre adeusQue os pssaros do mar desertam-lhe da margem;E o viajor tardio, retido na paisagem,Vendo a morte passar, recomenda-se a Deus.Poeta, assim que fazem os maiores poetas:Deixam se divertir os que vivem uns anos;209Anoi tedemai o18Expressiva seqncia de 14 rimas em /e/, no original, alternando abertos, fechados e nasais seqncia mantida na traduo, nas mesmas posies. As quatro primeiras so fechadas, intercalandoduas no plural entre duas no singular, nasais na traduo, com permuta entre o terceiro e o quartoversos para manter o esquema. O tradutor confessa que esta foi a passagem mais trabalhosa portanto, a que mais lhe deu prazer.As notas de 9 a 13 so traduzidas de Gennevive Bulli, in: Musset, Alfred de. Posies. Paris,Gallimard, 1966.210AlfreddeMus s etMusset, Delacroix, Berryes em um salonEsboo de Eugne Lami(Col. A. Guillaume Bulloz)Mas o banquete humano servido em suas festasSe assemelha bastante ao desses pelicanos.Quando falam assim de esperanas truncadas,De amor, de esquecimento, de tdio, de sofrer,No se trata de canto a dilatar o ser.Suas declamaes so frias como espadas:Elas traam no ar um ciclo deslumbranteMas dele pende sempre uma gota sangrante.O poeta Musa! Deusa insaciada,No me demandes tanto, no.Na areia no se escreve nada.Na hora em que passa o aquilo,Vi o tempo em que a juventude,Pelos meus lbios, amide,Cantava como uma ave rara.Quero esquecer o que me fira;Pois, por menos que ora o refira,Se o ensaiasse, a minha lira,Como um canio, se quebrara.211Anoi tedemai o