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Poesia e política no monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas (Rio de Janeiro, 1893).
Silvia Cristina Martins de Souza
(UEL/PR)1
Resumo: De acordo com Robert Darnton, em sociedades do passado, com baixo índice de letramento, as poesias criaram redes de comunicação que funcionavam como jornais. Nelas a música foi um instrumento mnemônico eficaz para comentar e refletir sobre fatos do cotidiano. Partindo deste pressuposto, este artigo analisa as partes poéticas de do monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas, publicado em encenado no Rio de Janeiro em 1893. Nosso objetivo é compreender de que forma o autor utilizou-se da poesia para refletir sobre um processo mais amplo de modernização pelo qual passou o Rio de Janeiro no qual se assistiu à criminalização de certas práticas populares, dentre elas a do jogo do bicho. Palavras chave: história; poesia; política; jogo do bicho.
Introdução/justificativa
No século XIX, a música ocupava diferentes espaços da cidade do Rio
de Janeiro a ponto de o crítico e libretista Antônio Cardoso de Menezes dizer
que não apenas das ruas e dos becos, mas também dos sobrados, eram
emitidos sons musicais de piano que qualquer um que passasse “atarefado, na
luta pela existência” poderia escutar. Executadas por bons e maus músicos,
tais canções, concluía Cardoso de Menezes, transformavam a cidade no palco
de um “medonho e desapiedado concerto-charivari”. [grifo no original] 2
A expressão “concerto-charivari” é, sem dúvida, pejorativa e, vinda de
Cardoso de Menezes, explicita seu desconforto com um panorama polifônico
tecido pela diversidade no qual se misturavam músicos e músicas de todos os
tipos criando, na sua visão, obstáculos concretos para que a “arte” e os
“verdadeiros” talentos emergissem.
Robert Darnton observou que em sociedades do passado, com baixo
índice de letramento, como a parisiense do século XVIII, as poesias exerceram
1 Doutora pela UNICAMP; professora de Historia Do Brasil Imperio da UEL (PR) e dos programas de Pós Graduação em Historia da UEL e UEPG (PR). Bolsista Produtividade Nivel 2 – CNPq. 2 Apud MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, indústria e
diversidade cultural no Rio de Janeiro. Campinas, 2003. 312 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, p. 207
o papel de redes de comunicação que funcionavam como jornais. Neste
processo, continua o autor, a música foi um instrumento mnemônico eficaz em
oferecer “uma crônica sobre os fatos do momento”.3 No caso da sociedade
brasileira oitocentista, reconhecida como majoritariamente iletrada, as poesias
compostas para certas canções parecem ter assumido este mesmo papel de
instância de comunicação e veículo ampliado de opiniões, valores, ideias e
identidades.
As canções que foram entoadas e escutadas em diversos espaços da
cidade muito deveram ao teatro, pois foi a partir do sucesso alcançado nos
tablados que muitas delas passaram circular através de outros suportes
materiais tais como brochuras baratas, cancioneiros e partituras musicais.4.
Neles, as músicas que ganhavam a “consagração do assobio e da cantarola
noturna” 5 encontraram mais um espaço que lhes garantiu presença efetiva no
cotidiano da vida urbana.
Objetivos e Resultados
Levando em consideração esta íntima relação entre as canções com o
tempo vivido, elegemos como fonte para este artigo a parte poética do
monólogo O jogo dos bichos, de Augusto Fábregas, que foi interpretado em
teatros cariocas e publicado no Rio de Janeiro no ano de 1893. Nosso objetivo
é compreender como esta poesia foi utilizada como instrumento de intervenção
política do seu autor num processo de modernização pelo qual passou o Rio de
Janeiro, em fins do século XIX, no qual, em nome do progresso, da ordem, da
modernidade e do saneamento assistiu-se à criminalização de certas práticas
populares, dentre elas a do jogo do bicho.
3DARNTON, Robert. Poesia e Polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 84. 4 MENCARELLI, 2003; FERLIN, Uliana. A Polifonia das Modinhas. Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o século XX. Campinas, 2006. 211f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, 2006. Cancioneiros eram publicações que traziam letras de canções e mais raramente partituras. 5 A expressão é tomada de empréstimo a Machado de Assis e encontra-se na Gazeta de Notícias do dia 29 de junho de 1888.
A introdução de jogos e loterias no Rio de Janeiro ocorreu nos anos
1840 e partiu do próprio governo imperial, que se utilizou das loterias como
forma de aumentar reservas para suprir investimentos no país tais como o
estabelecimento de fábricas e a subvenção a instituições.
A comercialização dos bilhetes de loterias não era feita por agentes do
poder público, mas por pessoas que assinavam um termo de fiança com o
Tesouro e, de posse de uma permissão, vendiam os bilhetes e recebiam uma
comissão pelo serviço executado. 6
Nos anos 1850, os à época denominados “vendedores de vigésimos” já
compunham grande contingente de ambulantes e pregoeiros que oferecia
bilhetes em lugares como a frente dos teatros, quiosques, lojas, salões de
engraxates, barbearias e cafés. Eles eram, na sua maioria, homens pobres que
não encontravam empregos fixos que garantissem seu sustento e o de suas
famílias e muitas vezes exerciam suas atividades sem permissão do governo.
Aos vendedores de vigésimos foram sendo despachados para o submundo
legal e vistos como “cancros roedores das algibeiras alheias”.7 Estes
personagens se tornaram parte da paisagem cultural da cidade e chegaram a
servir de fonte de inspiração a peças de teatro como a cena cômica O fim do
ano por um vendedor de vigésimos, escrita e encenada pelo ator e dramaturgo
Francisco Correa Vasques em 1872.8
Na década de 1860 surgiram os primeiros escritórios especializados no
comércio de bilhetes de loterias, o que nos leva a sugerir, com outros autores,
que quando o jogo do bicho apareceu no Rio, a cidade já possuía um mercado
consumidor propício a este tipo de comércio e uma complexa rede de vendas
que envolvia desde lojas a vendedores ambulantes.
6 Idem,p. 74. 7 Jornal do Commercio, 30 de dezembro de 1872. 8 SOUZA, Silvia Cristina Martins de.Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Revista História e Perspectivas. Uberlândia, vol. 1, n. 34, 2006, p. 231.
É conhecida, e alguns autores já exploraram com resultados apreciáveis,
a história do jogo do bicho no Rio de Janeiro.9 Não é nossa intenção oferecer
mais uma interpretação sobre este tema. Para nossos objetivos, basta
elaborarmos algumas considerações, com base no trabalho destes autores,
que nos ofereçam elementos necessários para analisarmos a poesia do
monólogo que elegemos como fonte principal para este texto.
O jardim zoológico criado pelo Barão de Drummond, em 1888, aliou
interesses empresariais do barão “ao interesse publico de concretização dos
ideais de modernização da capital do Império”.10 Homem de empreendimento,
Drumonnd fundou a Companhia de bondes de Vila Izabel, foi acionista do
Jornal do Brasil e sócio da Companhia Arquitetônica, juntamente com Visconde
de Silva, Barão de S. Francisco Filho, Bezerra de Meneses e Temístocles
Petrochino.
A Companhia Arquitetônica urbanizou e loteou a antiga Fazenda do
Macaco, dando origem ao bairro de Vila Isabel. Seu zoológico, construído
neste bairro, não apenas contribuiu para valorizá-lo, como para proporcionar
distração a seus moradores e aos de outros bairros que a ele se dirigiam em
seus momentos de lazer. 11
Drummond firmou com a Câmara do Rio, em 1884, um contrato em que
se comprometia a criar um jardim zoológico dentro do prazo de dois anos a
contar da assinatura do acordo. Este zoológico deveria ser aberto à visitação
pública mediante o pagamento de uma entrada que não deveria ultrapassar o
valor de mil réis. Além disto, uma vez por semana ele deveria ser fechado ao
público e sua entrada franqueada aos alunos de cursos superiores,
devidamente acompanhados por seus professores, para que pudessem “fazer
seus trabalhos de estudos, livres da concorrência e embaraços dos
9 CHAZKEL, Amy. Leis da sorte: o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana. Campinas: Editora da Unicamp, 2014; MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro, 2005. 183 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 10 MAGALHÃES,obra citada, p.21. 11 Idem, p, 21.
visitantes”.12 Em contrapartida, a Câmara isentava o zoológico do pagamento
de impostos e garantia a Drummond exclusividade na exploração deste tipo de
empreendimento pelo prazo de vinte e cinco anos. Em janeiro de 1888, em
caráter provisório, foi aberto o zoológico do Barão que, seis meses depois, foi
inaugurado oficialmente. 13
A abertura do zoológico ocorreu num momento em que o mercado de
diversões do Rio de Janeiro começou a passar por um processo de expansão e
alteração no qual o poder público tornou-se responsável pela permissão e
proibição da instalação de espaços de lazer tais como frontões, jogos de
pelotas, turfes, corridas de cavalos, regatas, belódromos e boliches.
Para que estabelecimentos desta natureza tivessem aprovados seus
pedidos de licença ou renovados os já concedidos, exigia-se que a eles
estivessem aliadas a noção de divertimento moderno e saudável que se
imbricava com a de utilidade pública consubstanciada na ideia de que o tempo
destinado ao lazer deveria ser de caráter pedagógico e voltado para o
aprimoramento social.
Ancorado neste pressuposto que combinava saneamento, ordem e
modernização, Drummond enviou uma nova petição ao Conselho da
Intendência Municipal da Capital Federal, dois anos após abrir seu zoológico.
Baseando-se no argumento de que os acionistas do seu empreendimento
encontravam-se incapacitados de reaver seus investimentos, ele propunha
transformar seu zoológico num Jardim de Aclimação de animais e plantas
exóticas e indígenas. Para tanto, solicitava um auxílio governamental que seria
fornecido não em termos pecuniários, mas através da aprovação de uma
licença para explorar jogos lícitos no interior do parque. 14
Aprovada e assinada um mês após ter sido encaminhada ao Conselho
da Intendência, a proposta de Drummond foi incluída como aditamento ao
acordo celebrado em 1884. Nele ficou determinado que a empresa
12 Idem, ibidem. 13 MAGALHÂES, obra citada, p.p. 24-26. 14 Idem, p. 27.
transformaria o parque em Jardim de Aclimação de animais e plantas exóticas
indígenas, que manteria uma aula de Zoologia e Zootecnia e “um palácio de
exposição permanente para os produtos da Flora Brasileira e de animais de
utilidade pública”, além de se comprometer a conservar as matas do jardim e
das montanhas do seu entorno. Também foi concedido à empresa o direito de
explorar “jogos públicos lícitos e mediante módica contribuição” dentro do
parque ficando os mesmos sujeitos à fiscalização da polícia”. 15
No dia 3 de julho de 1892 foi realizada a primeira extração do jogo do
bicho (ou jogo dos bichos e sorteio dos bichos, como também era chamado)
que funcionava da seguinte maneira: ao adquirir a entrada de mil réis para o
zoológico, o comprador recebia um bilhete que incluía a passagem de ida e
volta de bonde ao parque, o qual trazia a figura de um animal impressa. Era o
próprio Drumonnd quem no início do dia selecionava o animal a ser sorteado,
dentre os vinte e cinco que apareciam estampados nos bilhetes. Diariamente
às 5 horas da tarde era revelado ao público o nome do bicho sorteado e os
contemplados voltavam para casa com um prêmio em dinheiro. 16
O sucesso do sorteio dos bichos foi imediato e logo o zoológico passou
a ser maciçamente procurado por visitantes a ponto de novas linhas de bondes
serem criadas pela Companhia de Vila Isabel para atender o aumento da
afluência. Não conseguindo atender à demanda pela compra dos bilhetes,
Drummond estabeleceu pontos de venda fora das dependências do parque,
mais especificamente em uma loja situada no n. 129 da Rua do Ouvidor. Mais
ainda: os bilhetes passaram a trazer o aviso “Válido por 4 dias”, o que significa
que o apostador não precisava ir ao parque para adquiri-lo, nem nele estar
presente no momento da apuração.17 Diante disto, pode-se dizer que o sistema
adotado por Drummond ensejou a transformação do sorteio dos bichos numa
loteria ilícita.
15 Idem, 41. 16 CHAZKEL, obra citada, p. 58. 17 Anúncios de vendas dos bilhetes chegaram a ser publicados no jornal O Tempo no dia 16 de julho de 1892.
O clima de euforia em torno da nova diversão teve vida breve, pois não
tardaram a aparecer menções e críticas ao “antro de jogatina” em que o
zoológico se transformara. Em 12 de fevereiro de 1893, o Jornal do Brasil
noticiou que o chefe de polícia Bernardino da Silva mandara acabar com o jogo
dos bichos, no Jardim Zoológico. 18
No mês de abril de 1895 foi rescindido o contrato com Drumonnd e
exigida a imediata cessação dos jogos no zoológico. Nesta ocasião, porém, o
jogo do bicho já se espalhara pela cidade e pequenos comerciantes e um
imenso contingente de vendedores ambulantes já atuavam diariamente nas
operações de venda dos bilhetes, pagando os vencedores com recursos
próprios obtidos na venda ou revenda de bilhetes oficiais. 19
O jogo do bicho foi assunto bastante explorado nos teatros que se
dedicavam aos gêneros chamados musicados. As canções interpretadas nos
seus tablados dialogavam, no calor dos acontecimentos, com assuntos do
interesse da população com os quais muitos dos espectadores encontravam-se
direta ou indiretamente envolvidos, sendo este um dos segredos da atração
exercida por este tipo de dramaturgia.
Como dito anteriormente, em fevereiro de 1893 o jogo do bicho foi
proibido. Nove dias depois da proibição, o monólogo O jogo dos bichos de
autoria de Augusto Fábregas, estreou no teatro Santana, numa récita oferecida
em comemoração ao aniversário da proclamação da República. 20
Monólogo é uma peça dramática ou cômica escrita em versos para
serem declamados ou cantados com fundo musical nos intervalos dos
espetáculos teatrais. O dramaturgo e empresário teatral Souza Bastos
observou que a característica mais importante do monólogo é que ele, para ser
bom, não deveria enfastiar o público.21 Não enfastiar o público, nos idos do
século XIX, era algo que dizia respeito não apenas ao tamanho do texto, mas
18 Jornal do Brasil, 12 de fevereiro de 1893. 19 CHAKEL,obra citada, p. 60. 20 O Tempo, 21 de fevereiro de 1893. 21 SOUZA BASTOS. Dicionário do Teatro Português. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1908, p. 61.p. 92.
também à performance do ator e neste sentido deve ter pesado para o sucesso
deste monologo o fato de ele ter sido escrito especialmente para ser
interpretado pelo famoso ator cômico João Augusto Soares Brandão, também
conhecido como Brandão, o “popularíssimo”.
A respeito do monólogo O jogo dos bichos vale mencionar ainda que em
março de 1893 uma coleção de pequenas peças de autoria de Augusto
Fábregas, denominada Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de
Janeiro,22 dentre as quais ele se encontrava, já podia ser adquirida na entrada
de alguns teatros da cidade, 23 assim como na charutaria junto ao teatro Apolo
e no escritório do jornal O Tempo. 24 Não tardaria para que saísse uma
segunda edição da coleção que poderia ser comprada no escritório d`O
Tempo, nas “várias casas comerciais onde essas brochuras são anunciadas” e
até mesmo na elegante livraria Garnier. 25
Mesmo se levarmos em conta que as outras peças que compunham
esta coleção possam ter ajudado na sua venda, uma vez que todas elas já
haviam feito sucesso nos tablados, o fato de O jogo dos bichos ter sido
posteriormente publicado numa edição em separado, vendida por duzentos réis
numa “loja da rua da Conceição, n. 108, sobrado” é mais um indicativo de que
este monólogo fez bastante sucesso. 26
A atenção dispensada pelos dramaturgos que se dedicaram ao teatro
musicado a questões que mobilizavam a atenção pública, como já dito,
transformava seus textos dramáticos em espécies de pequenas crônicas que
dialogavam com seus ouvintes, o que deve ser levado em conta como outro
elemento para que tais textos fizessem sucesso. O monólogo O jogo dos
bichos também encontra-se neste caso.
Augusto Fábregas (1859-1893), seu autor, foi jornalista do jornal O Paiz,
além de dramaturgo, adaptador de textos teatrais e compositor de poesias de
22 FABREGAS, Augusto. Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Montealverne, 1893. 23 Jornal do Brasil, 3 de março de 1893. 24 O Tempo 12 de março de 1893. 25 O Tempo, 23 de março de 1893. 26 O Paiz 18 de junho 1894.
monólogos e cançonetas. Fábregas dedicou várias de suas composições a
atores famosos, a exemplo da coleção em que foi publicado este monólogo na
qual cada poesia foi escrita e oferecida a um ator pensando na sua
interpretação.27
Como dramaturgo, Fábregas parece ter sido polêmico, tanto que teve
vários problemas com a censura do Conservatório Dramático Brasileiro. Nos
anos 1880 ele fez uma adaptação para o teatro de um romance de Eça de
Queiroz, à qual deu um título homônimo ao do romance: O crime do padre
Amaro. A peça foi rejeitada quatro vezes pela censura 28. Em 1886, sua revista
de ano O boato, também teve licença negada para encenação.
Embora parecesse não gozar da simpatia da censura, Fábregas tinha
seus admiradores e admiradoras anônimos ou conhecidos. Uma delas,
Josefina de Azevedo, editora do jornal A Família, diria considerá-lo “uma das
individualidades mais simpáticas da imprensa” carioca, que tinha os méritos de
ter-se feito “sem ter tido padrinhos” e de escrever “com uma fecundidade
admirável, com um humor que o tornam distinto”. 29
Humor sem dúvida não falta ao monólogo O jogo dos bichos. Nele pode-
se observar que, em poucos versos, Fábregas dava conta de forma crítica e
risível da situação vivenciada pelo jogo e jogadores do bicho na cidade do Rio
de Janeiro naqueole ano de 1892. Reproduzimos, a seguir, alguns destes
versos.
Não, senhor! Foi um abuso Da força policial.
Que! Você é despeitado, Não pega na sua moral.
Quer por força convencer-me,
Mas perde a sua perícia. Com o joguinho dos bichos Não tinha nada a polícia.
................................ Acabar com este jogo!
Vamos lá, prá que isto presta? É tirar meio de vida
27 SOUZA BASTOS.obra citada, p.614. 28 O Paiz, 17 de abril de 1890. 29 A Familia, 1889, ano 1, n. 39.
A muita gente honesta.30 (grifo no original)
A proibição do jogo vista como um “abuso” é a mensagem que emerge
destes versos apontando para a questão central que, na visão do autor, estava
em jogo naquele contexto: as ambiguidades geradas entre a aplicação da lei e
a prática popular Afinal, era em nome de questões de ordem moral, que se
proibira o jogo, embora este argumento servisse para encobrir o real objetivo
de delimitar as fronteiras que envolviam uma competição comercial indesejada
que tinha, de um lado, os vendedores varejistas de bilhetes e, de outro, os
concessionários com privilégios legais garantidos pelo governo para atuar
nestas transações As loterias, como todos os habitantes do Rio sabiam, eram
tradicionalmente um negócio utilizado pelo governo para obter recursos
próprios para aplicar em obras públicas. O jogo do bicho, todavia, escapara do
controle do governo propiciando que uma multidão de vendedores varejistas
não licenciados nele atuassem e dele retirassem o sustento de suas famílias
sem que deste comércio o governo pudesse auferir lucros na forma de
impostos e taxas de licenciamento. Desta forma, nas palavras de Chazkel, o
que o jogo do bicho fazia era ameaçar “uma variedade de atores que tinham o
poder de promulgar e de fazer cumprir leis que buscavam seu fim”.31 Diante
disto, e na visão do autor deste monólogo, o que esta proibição acabava por
fazer era “tirar meio de vida a muita gente honesta” que realizava este
comércio de uma forma que tecnicamente passou a ser vista como ilícita o que
indica, por extensão, que, apesar de diferentes segmentos sociais apostarem
no bicho, como vários historiadores já convincentemente demonstraram, ele
assumiu significados peculiares para as pessoas pobres que o transformaram
em meio de vida.
O jogo dos bichos também explorava três outros assuntos, como se
pode ver nos seguintes versos:
Eu, por exemplo, confesso
30 FABREGAS, obra citada, p. 71, 31 CHAZKEL,obra citada, p.p. 93-4.
Não passava um santo dia, Sem que ganhasse dinheiro,
Jogando na bicharia.
E lá em casa éramos todos, De extraordinário palpite: Eu, a mulher e um primo,
- Custa até que se acredite.
(...) Se achava a mulher zangada, Cara feia, ar petulante,
Pensava eu “mulher de trombas...” E comprava o elefante
(...) Vejam lá se é suportável,
Se tem justificação, Jogo em que as moças se empenham
Ser sujeito a suspensão.32
Alguns autores argumentam que “entre 1892 e 1895, não parece ter
havido uma tendência de se oferecer palpites para o `sorteio` do Jardim”.33 O
que estes versos sugerem, no entanto, é que as práticas de se palpitar já eram
comuns neste período, mas que ao invés de circularem por jornais, como ficou
mais comum a partir dos últimos anos da década de 1890, elas eram
disseminadas de boca em boca e por meio de poesias e canções que criavam
verdadeiras redes informais de informação.
Outros pontos que devem ser levados em consideração nestes versos
por apontarem para dois elementos que, de acordo com Chazkel, se tornaram
cruciais para a popularidade e poder de permanência do jogo do bicho: a
operação diária e sua dependência de intermediários.34 As facilidades para
apostar no jogo do bicho eram muitas, pois seus vendedores podiam ser
encontrados em casas de particulares, cortiços, pontos de bondes, quiosques,
lojas, enfim, numa infinidade de locais. As apostas variavam entre 500 a 5 mil
réis, um preço que variava ao equivalente a uma xícara de café ao salário
diário de um trabalhados, ou seja, o jogo era adequado ao tamanho do bolso
de diferentes apostadores 35 O jogo do bicho era atrativo, também, porque
32 FABREGAS, obra citada, p.p. 71-73. 33 MAGALHÃES, obra citada, p. 62. 34 CHAZKEL, obra citada, p. 63. 35 Idem, p. 68.
propiciava ao ganhador receber prêmios que, ainda que menores do que os de
outros jogos e loterias, eram constantes e estavam sujeitos a menos riscos.
Por fim, é digno de nota nestes versos que o autor tenha tratado da
participação de mulheres de diferentes segmentos sociais no jogo, assunto que
também já foi tratado por vários historiadores. Sabe-se que mulheres
“respeitáveis” jogavam, que mulheres pobres jogavam e vendiam havendo
ainda as que davam palpites. O interessante nestes versos, para além de ser
mais um testemunho que desmistifica uma visão do mundo do jogo como
exclusivamente masculino, é que eles utilizavam-se do fato de moças de
“família” se empenharem no jogo como argumento em defesa da sua
moralidade e decência, e como questionamento do status criminoso que lhe
era atribuído o que, por extensão, servia para criticar a repressão policial ao
jogo.
Considerações Finais
As apresentações do monólogo O jogo dos bichos atingiram o cem
representações dez meses após sua estreia 36 tendo sido encenado nos teatros
de Variedades, Santana, Lucinda e no Politeama Fluminense. Mas bem antes
de atingir esta marca considerada significativa naqueles tempos, começaram a
aparecer paródias à interpretação do ator Brandão, tal como uma interpretada
pelo ator Leonardo, no Santana. 37 Até mesmo grupos amadores utilizaram o
monólogo de Fábregas em suas representações, como a Arcada Dramática
Esther de Carvalho, na qual ele foi interpretado pelo ator Mariano 38 e o Club
Dramático, onde foi representado pelo menino José Continentino. 39
No ano de 1895, a edição do monólogo ainda podia ser adquirida no
saguão do teatro Lucinda, para os que quisessem se deleitar com seu texto
nos seus momentos de lazer, 40 e no ano de 1898 o jornal Rio Nu anunciava
36 O Paiz 16 de dezembro de 1893. 37 O Paiz 12 de maio de 1893. 38 O Paiz 26 de junho de 1893. 39 Jornal do Brasil, 29 de julho de 1893. 40 O Paiz, 12 de fevereiro de 1895.
sua venda ao mesmo preço de duzentos réis. 41 No carnaval do mesmo ano de
1898, a Sociedade Estrela do Oriente ofereceu uma série de intermédios
durante seus bailes, dentre eles o monólogo O jogo dos bichos, que foi
interpretado por L. Curcino. 42 Vindo coroar esta trajetória de sucesso, o
monólogo foi transformado em polca que foi interpretada pela primeira vez no
intervalo de uma récita no teatro Recreio Dramático, polca esta que foi
gravada, em 1902, na voz de Bahiano, pela Casa Edison.43
De tudo o que foi dito, cremos ser possível afirmar que o sucesso
alcançado por este monólogo é mais um indicativo da popularidade do jogo do
bicho no século XIX e, simultaneamente, da forma como as mensagens sobre
questões de interesse de pessoas comuns eram moduladas pelas poesias as
quais, nas mãos de seus autores, transformavam-se em verdadeiras “crônicas
dos fatos do momento”.
Referências
CHAZKEL, Amy. Leis da sorte: o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. DARNTON, 2014, p. 84) FABREGAS, Augusto. Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Montealverne, 1893. FERLIN, Uliana. A Polifonia das Modinhas. Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o século XX. Campinas, 2006. 211f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, 2006. MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro, 2005. 183 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, indústria e diversidade cultural no Rio de Janeiro. Campinas, 2003. 312 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2003. SOUZA BASTOS. Dicionário do Teatro Português. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1908
41 Rio Nu, 28 de novembro de 1898. 42 Jornal do Brasil, 8 de janeiro de 1898. 43 ULHOA, Martha T. A música popular gravada: modinhas e lundus. Disponível em http://livrozilla.com/doc/414983/bahiano
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. As Noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868). Campinas. Unicamp: 2002. SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Revista História e Perspectivas. Uberlândia, vol. 1, n. 34, p.p. 225-259, 2006. ULHOA, Martha T. A música popular gravada: modinhas e lundus. Disponível em http://livrozilla.com/doc/414983/bahiano