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Poesia Ingenua e Sentimental pt 2 - Friedrich Schiller

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Page 1: Poesia Ingenua e Sentimental pt 2 - Friedrich Schiller

Por certo, o que parece conter muito mais dificuldade é que mesmoo grande homem de Estado e o grande comandante mostrarão um caráter

ingênuo, tão logo sejam grandes por seu gênio. Quero lembrar aqui, entreos antigos, apenas Epaminondas e Júlio César; entre os modernos, apenasHenrique IV da França, Gustavo Adolfo da Suécia, e o czar Pedro, oGrande. Os duques de Marlborough, Turenne e Vendôme nos mostrartl,todos, esse caráter. Ao outro sexo, a natureza reservou a _S_lJpremaperfei­ção no caráter ingênuo. Não há nada por que lute tanto o coquetismofeminino quanto pela ·(lpar~'!:.f!ado ingênuo! prova suficiente, se não sedispusesse de nenhumà-õuií:a, de que o maior poderdessesexoxeside emtal qualidade. Visto, porém, que os princípios dominantes na educaçãofeminina estão em eterno conflito com esse caráter, é igualmente difícilpara a mulher no plano moral, como para o homem no intelectuaI,conservar incólume esse magnífico presente da naturezajlmtamente comas vantagens. da boa educação; e a mulher28 que alia esse ingênuo doscostumes a um comportamento adequado ao grande mundo é tão dignade apreço quanto o douto que une liberdade genial de pensamento a todoo rigor da escola.

Do ingênuo na maneira de pensar decorre também, necessariamente,uma expressão ingênua tanto em palayras quanto em gestos, e este é '0componente mais importante da graça.29 Com essa graça ingênua, ogênio exprime seus pensamentos lTiais sublimes e profundos; são orácu­

los divinos na boca de uma criança. Enquanto, sempre receos~ do erro,o entendimento escolar prega suas palavras e conceitos na cruz dagramática e da lógica; é duro e inflexível para não ser impreciso; é prolixopara não dizer demais, e de preferência diminui a força e a agudeza deseu pensamento para não ferir o desavisado, o gênio empresta ao seu,com uma única e bem-sucedida pincelada, um contorno eternamente

determinado, filme e, não obstante, totalmente livre. Se lá o signopennanece eternamente heterogêneo e estranho ao designado, aqui alinguagem brota do pensamento como por necessidade interna e lhe estátão unida, que o espírito aparece como que despido, mesmo sob o véucOl·páreo. Esta espécie de expressão, onde o signo desaparece por inteirono designado, e onde de certo modo a linguagem põe a nu o pensamentoque exprime, lá onde a outra espécie nunca pode expô-Io sem ao mesmotempo velá-Io, é aquilo que acima de tudo se chama gemal e cheio deespírito no estilo.30 --.- -.--

A inocência do cotação se exprime livre e naturaImente nas relaçõesda vida, assim como .b gênio rtas obras de seu espírito. Na vida social,notoriamente se desviou da simplicidade e da rigorosa verdade daexpressão na mesma rI1edida que da simplicidade das intenções, e a culpafácil de melindrar bem como a imaginação fácil de seduzir tomaram

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necessário um escrupuloso decoro. Sem ser falso, amiúde se fala demaneira diferente da que se pensa; é preciso fazer desvios para dizercoisas que só causam pesar a um amor-próprio enfermo, que só podemtrazer perigo a uma fantasia corrompida. Um desconhecimento dessasleis convencionais, aliado à sinceridade natural que despreza todo rodei 0e todo brilho da falsidade (mas não rudeza, que, por aquelas lhe sere,importunas, não as toma em consideração), gera no relacionamento ur,ingê~_da_expressªo,31 que consiste em chamar, pelo próprio nome epelo caminho mais curto, coisas que de maneira alguma ou só artificial-­mente se permitem designar. Dessa espécie são as expressões usuais dascrianças. Provocam riso por seu contraste com os costumes, mas nocoração sempre se reconhecerá que a criança está certa.

Em sentido próprio, o ip.gên,uo da intenção pode ser atribuído tão-sóao homem, como um ser não absolutamente subjugado à natureza, masapenas se a natureza pura ainda continua realmente agindo nele; por umefeito da irnaginação poetizante, porém, muitas vezes ele é transferidodo racionaI para o irracional. Assim, freqüentemente atribuímos umcaráter ingênuo a um animal, a uma paisagem, a um edifício e mesmo ànatureza em geral, por oposição ao arbítrio e aos conceitos fantasiososdo homem. Mas isso sempre exige que, em nossos pensamentos, empres­temos uma vontade ao desprovido de vontade e observemos sua orien­tação rigorosa segundo a lei da necessidade. O descontentamento com omau..JlSOde nossa própria liberdade e com a falta de harmonia ética que­sentimos em nosso agir leva facilrrlente a uma tal disposição em quedirig"iirios-ii'palavra ao -irracional, como a uma pessoa, e, tornando suaeterna uniformidade mérito seu, invejamo-lhe o comportamento tranqüi­lo, como se realmente tivesse tido de lutar com uma tentação emcontrário. Num tal instante, condiz bem conosco que considere1nos aprerrogativa de nossa razão como uma maldição e um inforrrmio e que,ante o vivo sentimento da imperfeição de nosso desempenho real,deixemos de render justiça à nossa predisposição e destinação.

Vemos, então, na natureza irracional apenas uma irmã mais feliz quepermaneceu no lar materno, de onde, no excesso de nossa liberdade,precipitamo-nos no desconhecido. Com doloroso anseio, desejamos paralá voltar tão logo começamos a experimentar os tormentos da cultura ea ouvir, no país longínquo da arte, a comovente voz materna.3Z Enquanto

) ; ~~r()~Ji.lhOS da. naturez.a, fOrnOSfeliz~s e p~Ifeito. s.; tornan:o-nÔSI!VreS,e perdemos as duas. COlsas.'Surge dal uma dupla nostalgIa, e bastante, desigual, em relação à natureza: uma nostaIgüide suafelicidade e uma

nostalgia de sua peifeição. O homem sel1sível só lamenta a perda daprimeira; apenas o homem trrõfãfpôde entristecer-se pela perda da

segunda. \\

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Pergunta-te, pois, amigo sentimental da natureza, se tua preguiçasuspira por seu repouso ou se tua moralidade ofendida suspira por suahannonia.33 Perglfnta-te, quando a arte te repugna e és impelido à solidãoda natureza inanimada pelos abusos da sociedade, se o que nesta abomi­nas são as espoliações, os encargos, as dificuldades ou a anarquia moral,o arbítrio, as desordens. Tua coragem tem de arremeter com alegriacontra aqueles abusos e tua compensação tem de ser a própria liberdadede onde eles provêm. Podes muito bem ter remotamente por alvo atranqüila felicidade da natureza, mas apenas se ela é o prêmio de tuadignidade. Portanto, nada de queixas contra a complicação da vida,contra a desigualdade das condições, contra a pressão das circunstâncias,contra a incerteza da posse, contra ingratidão, opressão, perseguição;tens de submeter-te, com livre resignação, a todos os males da cultura,tens de respeitá-Ios como as condições naturais do Bem único; tens dequeixar-te apenas de sua maldade, mas não somente com lágrimas delangor. Cuida antes para que tu próprio ajas com pureza sob aquelasignomínias, com liberdade sob aquela servidão, com constância sobaquela altemância de humor, com respeito à lei sob aquela anarquia. Nãotemas a ~,!sã().--:.~.l~~Ugui, mas a confusã.()..~m ti; empenha-te pelatranqüilidade, mas mediante o êqulIípfi.õ~nao mediante a inércia de tuaatividade. Aquela natureza que invejas no irracional não ,é digna denenhum respeito nem de nenhuma nostalgia. Ela permanece atrás de ti,tem depennanecer eternamente atrás de ti. Sem o amparo da escada quete sustentava, já não te resta nenhuma escolha senão agarrar, comconsciência e vontade livres, a lei, ou cair, irremediavelmente, numabismo sem fundo.

Mas se estás consolado da perda dafeliddade da natureza, deixa quea perfeição desta sirva de modelo para teu coração. Se ao buscá-Ia saisfora de teu CÍrculo artificial, se ela está diante de ti em sua grande

quietude, em sua beleza ingênua, em 'sua inocência e simplicidade.infantis - detém-te perante esse quadro, cultiva esse sentimento, ele édigno de tua mais esplêndida humanidade. Deixa de pensar em quererestar no lugar dela, mas toma-a em ti e empenha-te em esposar seuprivilégio infinito com tua própria prerrogativa infinita, e em gerar, deambos, o divino. Que ela te envolva como um amável idílio, no qualsempre te reencontres das confusões da arte, e junto ao qual reúnascoragem e renovada confiança para o percurso, acendendo de novo emteu coração a chama do Ideal, que tão facilnlente se apaga sob astormentas da vida.

\Qtiãndo se recorda a bela natureza que envolvia os gregos antigos;quando se reflete sobre quão intimamente esse povo podia viver com anatureza livre sob seu céu feliz; quão mais próximos estavam da natureza

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simples seu modo de representar, sua maneira de sentir, seus costumes,e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas, é de estranhar aconstatação de que nesse povo se encontrem t~o poucos vestígios dointeresse sentimental com que nós outros moden1:os podemos apegar-nosa cenas e caracteres naturais.34 Com efeito, o g[ego é sumamente exato,fi~J e minucioso na descrição deles, embora não tanto e nem com maisparticipação do coração do que na desclição de um traje, de um escudo,de uma arma, de um utensílio doméstico ou de qualquer outro produtomecânico. ~l~\Se.u amor pelo objeto, parece não f~zer nenhuma diferençaentre o .que-é por si mesmo e o que é péla arte e vontade humana. Atiãt"üieza parece Interessar mais seu entendimenip e sua avidez de saberdo que seu sentimento moral; não se apega a '~ela com afeição, comsentimentalismo, com doce melancolia, como nós outros modernos. Aopersonii[~á~la e deificá-Ia em suas manifestações lsoladas e ao expor seusefeitps como ações de seres livres, suprime nela a tranqüila necessidademediante a qual justamente é para nós tão atrael)te. Sua fantasia impa­ciente o leva, para além dela, ao drama da vida h~mal1a. Apenas o que évivo e livre, apenas caracteres, ações, destinos e çostumes o satisfazem,e se ,em certas disposições da mente nós outros 'podemos desejar, pelanece~sidade sem escolha, porém tranqüila, do irl-acional', abrir mão doprivilégio da liberdade de nossa vontade, que rios abandona a tantosconflitos com nós ,próprios, a tantas inquietações e confusões, a fantasiado g'rego, exatamente ao contrário, aplica-se em iniciar a naturezahumana já no mundo inanimado e em conceder influência à vontade alionde impera uma cega necessidade.

Donde, pois, esse espírito diverso? Como é que, sendo em tudo o queé natureza infinitamente suplantados pelos antigos, podemos justamenteaqui homenagear a natureza num grau mais elevado, apegar-nos a elacom afeição e mesmo abraçar o mundo inanimado com a mais calorosasensação? Isso decorre de que, enl!e nós, a naturez~ desapareceu dahumanidade,e de quesi)"areeiiêejiitiü-nÓs'emsúã'verdade fora desta, no~iiãiiimadõ."Não' é-n:ossanraiõfcófijor:mid'ade, mas, muito aocoríiiifriü; é a contrariedade com a natureza35 de nossas relações, estadose costumes que nos impele a alcançar no mundo físico, uma vez que nãopode ser esperada no moral, uma satisfação para o crescente impulso deverdade e simplicidade, que, como a predisposição moral de onde emana,,reside incorruptível e indelevelmente no coração de todos os homens.36

'.~\Porisso, o sentimento com que nos apegamos à natureza é tão aparentador àquele com que lastimamos a época passada da infância e da inocênciaiinfantil. Nossa infância é a única natureza intacta que ainda encontramos

\~a humanidade cultivada; não espanta, por isso, que todo vestígio danatureza fora de nós leve-nos de volta a no~sa infância.

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Com os gregos antigos foi muito diferente." Entre eles, a cultura nãodegenerou tanto a ponto de se abandonar a natureza. Todo o edifício desua vida social estava erigido em sensações, não num trabalho de artemal acabado; mesmo sua mitologia era o estro de um sentimento ingê­nuo, o rebento de uma imaginação jovial, não da razão meditabunda,como a fé eclesiástica das nações modernas; portanto, já que não perdera·a natureza na humanidade, também fora d~la o grego não podia ser porela surpreendido e nem ter uma necessidade tão premente de objetos nosquais a reencontrasse. Uno consigo mesmo e feliz no sentimento de sua;humanidade, esta era o máximo no qual precisava deter-se e do qual tinha .de empenhar-se em aproximar todo o resto; ao passo que nós outros,cindidos de nós mesmos e infelizes em nossas experiências da hUluani­dade, não temos nenhum interesse mais premente do que dela fugir eafªstar de nossos olhos uma forma tão malograda.

/'.... O sentimento de que se fala aqui não é, pOltanto, aquele que os( antigos tinham; é, antes, igual ao que temos pelos antigos.37 Eles sentiam

(_ naturalmeIlte; H.qS, outros sen!.un0s().n!.':tural. Foi, sem dúvida, um senti­mento de todo dIferente o que encheu a alina de Homero quando fez odi vino guardador de porcos hospedar Ulisses, e o que emocionou a almado jovem Werther ao ler esse canto após uma reunião social enfadonha.381

Nosso sentimento pela natureza assemelha-se à sensação do doente emi'relação à saúde. . .

.Al11edida que a natureza foi, pouco a pouco, desaparecendo da vidahumana como' experiência e como sujeito (agente' ti pãCíenfeJ~-iiÓiavemos assomar no mundo poético como Idéia e coriiõ~oõJero:-ÃqueIanação que a um só tempo foi mais longe no iriátural e na refleX:~~~Q!ieele deve ter sido a primeira a ser o mais fortemente comovida pelofenômeno do ingênuo e a dar-lhe um nome. Esta nação foi, tanto quantosei, a dos franceses.39 Mas a sensação do ingênuo e o interesse por ele

(*)Mas também apenas entre os gregos; pois era preciso justamente um intenso mov.imen­

to e uma grande profusão de vida humana, tais como os que envolviam os gregos, para

dar vida também ao inanimado e perseguir com tal zelo' a imagem da humanidade. Omundo humano de Ossitin, 'por exemplo, era escasso e uniforme; O inanimado ao seu

redor era grande, colosdal, poderoso, impondo-se e afirmando seus direitos sobre o

homem. Por isso, nas canções desse poeta, a nattlreza inanimada (em oposição ao

homem) sobressai ainda muito mais como objeto da sensibilidade. Entretanto, também

Ossian já se queixa de uma decildência da humanidade, e por menores que fossem a

esfera e as corrupções da cultura em seu povo, a expeliência destas era, contudo,suficientemente viva e penetrante para afugentar de novo ao inanimado o bardo moralcheio de sentimentos, e velter em suas canções aquele tom elegíaco que as toma paranós tão comoventes e atraentes.

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são, naturalmente, muito mais antigos e datam já do início da corrupçãomoral e estética. Essa mudança na maneira de sentir já é extremamentevisível, por exemplo, em.Eurípedes, quando comparado a seus predeces­sores, sobretudo a Ésquilo, ainda que aquele poeta fosse o favorito deseu tempo. Revolução semelhante também pode ser mostrada entre oshistoriadores antigos. Horácio, o poeta de uma época do mundo cultiva­da e corrompida, exaltail tranqüila felicidade em sua Tíbure, e poder-se­ia chamá-Io o verdadeiro fundador do gênero poético sentimental, neletambém sendo um modelo ainda não suplantado. Em Propércio, Virgílioe outros, também se encontram traços dessa maneira de sentir; em menormedida em Ovídio, para quem faltava a abundância do coração e que,em seu exílio em Tomos, almejava dolorosamente a felicidade queHorácio de bom grado dispensava em sua Tíbure.40

Já por seu conceito os poetas são em toda parte os guardiães danatureza. Onde já não o possam ser completamente, onde já tenhamexperimentado em si mesmos a influência de formas arbitrárias e artifi­ciais ou tenham tido de combatê-Ia, surgirão como testemunhas ouvingadores da natureza. Serão natureza ou buscarão a natureza perdida.Daí nascem duas maneiras poéticas de criar completamente distintas,41mediante as quaisse esgota e mede todo o domínio da poesia. Todos os - Ique realmente são poetas pertencerão ou aos ingênuos ou aos seritimen­'tais, conforme seja conStituída a época em que florescem ou conforme'cóndiçõesaCidentais exerçam influência sobre a fOlmação geral ou sobrea disposição momentânea de suas mentes.

!'f' O poeta de uni mundo juvenil ingênuo e cheio de espírito, bem comoJ o que dele mais se aproxima nas épocas de cultura artificial, é severo e\ retraído, como em seus bosques a virgem Diana; sem nenhuma intimi­\ dade, foge do coração que o busca, do desejo que quer envolvê-Io.42 A\ seca verdade com que trata o objeto aparece não raro comoinsensibili­\ dade. O objeto o possui por inteiro; seu coração não jaz, como um metal: ruim, logo abaixo da superfície, mas quer, como o ouro, ser procurado

na profundeza. Está por detrás da obra, assim como a divindade está pordetrás do edifício do mundo; ele é a obra, e a obra, ele; é preciso não serdigno, não estar à altura ou já estar dela enfastiado para perguntar tão-sópor ele.

É assim que se mostram, por exemplo, Homero entre os antigos eShakespeare entre os modernos: duas naturezas sumamente distintas eseparãdáspela imensurável distância entre as épocas, mas de todo iguaisnesse traço de caráter. Quando pela primeira vez, ainda em muito tenraidade, travei contato com este último poeta,43 indignou-me sua frieza,sua insensibilidade, que lhe permitia gracejar em meio ao pathos maiselevado, interrompendo as cenas lacerantes do Hamlet, do Rei Lear, do

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Macbeth etc. mediante um bufão, e que ora o detinha, ali onde minhasensação se apressava, ora o arrastava friamente, ali onde o coraçãoficaria de bom grado em repouso. Induzido pelo contato com poetasmodernos a procurar na obra primeiramente o poeta, a encontrar seucoração, a refletir junto com ele sobre seu objeto, em suma, a intuir oobjeto no sujeito, era-me insuportável que, ali, o poeta não se deixasseapreender em parte alguma e, em parte alguma, quisesse prestar-mecontas. Já há muitos anos tinha toda a minha admiração e para ele sevoltava meu estudo, antes que aprendesse a afeiçoar-me pelo indivíduo.Ainda não era capaz de entender a natureza em plimeira mão. Só podiasuportar sua imagem refletida pelo entendimento e ajustada pela regra,e para isso os poetas sentimentais franceses e mesmo alemães dos anosde 1750 a cerca de 178044 eram justamente os sujeitos apropriados. Nãome envergonho, de resto, desse juízo infantil, pois a crítica mais experi­mentada emitia um juízo semelhante e era ingênua o bastante parainscrevê-Io no mundo.45

O mesmo sucedeu-me com Homero, com quem travei contato.numperíodo posterior.46 Lembro-me ainda agora da extraordinária passagemdo livro sexto da Ilíada, em que Glauco e Diomedes vão de encontro umao outro em meio ao combate e, reconhecendo-se como hóspedes, trocampresentes. A esse quadro comovente da piedade, com a qual mesmo naguena se observavam as leis da hospitalidade, pode-se equiparar umadesclição da nobreza cavalheiresca ~m Ariosto, onde dois cavaleirosrivais, Fenaú e Rinaldo, este um crist~o, aquele um sarraceno, fazem aspazes depois de um violento combate e, cobertos de felimentps, montamo mesmo cavalo para buscar a fugitiva Angélica. Os dois exemplos, pormais diferentes que de resto possam ser, quase se igualam no efeito sobrenosso coração, porque ambos pintam a bela vitória dos costumes sobrea paixão e nos comovem pela ingenuidade das intenções. Cidadão de ummundo poste110r que se desviou da simplicidade dos costumes, Aliostonão pode ocultar o próp110 assombro, a própria comoção, ao narrar esseepisódio. Subjuga-o o sentimento da distância entre aqueles costumes eos que caracterizam sua época. De súbito, abandona o quadro do objetoe aparece em pessoa. É conhecida e, sobretudo, sempre admirada a belaestança:

"O Edelmut der alten Rittersitten!Die Nebenbuhler waren, die entzweit1m Glauben waren, bittem Schmerz noch littenAm ganzen Leib vom feindlich wilden Streit,Frei von Verdacht und in Gemeinschaft rittenSie durch des krummen Pfades Dunkelheit.

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Das Ross, getrieben von vier Sporen, eilte,.Bis wo der Weg sich in zwei Strassen teilte."*

E agora o velho Homero! Mal fica sabendo, pela narrativa do inimigoGlauco, que este é hóspede de sua estirpe d~sde os tempos de seusantepassados, Diomedes finca a lança na terra, conversa amistosamente'coiu ele, combinando futuramente esquivarem~se um do outro no com-ba~e. Mas que se ouça o próprio Homero: .

"Also bin ich nunmehr dein Gastfreund mitçen in Argos,Du in Lykia mil', wenn jenes Land ich besuçhe.Dmm mit unsern Lanzen vermeiden wir unS im Getümmel.Viei ja sind der Troer mir selbst w1d der rüh!nlichen Helfer,Dass ich tote, wen Gott mil' gewahrt und di~ Schenkel erreichen;Viel auch dir der Achaier, dass, welchen du~annst, du erlegest.Aber die Rüstungen beide vertauschen wir, pass auch die andemSchaun, wie wir Gaste zu sein aus Vaterzeit~n uns rühmen.Also, redten jene, herab von den Wagen sicf! schwingend,Fassten sie beide einander die Hand' und gelobten sich

. [Freundschaft."4~

Dificilmente um poeta moderno (pelo menos, dificilmente um que oseja' no' sentido moral da palavra) podetia esperar até aqui para testemun­har sua alegria com tal ação. Nós facilmente lho perdoaríamos, tanto maisque também nosso coração faria uma pausa na leitura e de bom grado sedistanciaria do objeto para olhar em si mesmo. De tudo isso, porém,nenhum vestígio em Homei-o; como se tivesse relatado algo corriqueiro,como se ele mesmo não tivesse no peito um coração, prossegue em suaseca veracidade:

"Doch den Glaukus erregete Zeus, dass er ohne Besinnung,Gegen den Held Diomedes die Rüstungen, goldne mit ehrnen,Wechselte, hundert Farren wert, neun Farren die andem."**

! Poetas desse gênero ingênuo já não estão em seu devido lugar numa; épo~~_aJ:1ifi.fX~Ldomundo. Nela também já não são quase possíveis, aomenos não são pcíssJveis de nenhum outro modo a não ser que andem aoarrepio de sua época e sejam protegidos por um destino favorável contra

(*)Orlando Furioso, Canto i, Estança 32.47

(**)/líada, tradução de Voss, volume I, p. 153.49

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sua influência mutilante. Jamais podem surgir da própria sociedade; porvezes ainda se mostram fora dela, porém antes como estranhos, que nosassustam, e como filhos malcriados da natureza, que nos aborrecem. Pormais que sejam apariçÕes benéficas para o artista que os estuda e para oconhecedor genuíno que sabe honrá-Ias, no todo não têm muita sorte emseu século. A marca do soberano está-Ihes estampada na fronte;50 nósoutros, ao contrário, queremos ser embalados e carregados pelas musas.São odiados pelos críticos, as verdadeiras sentinelas do gosto, comddestruidores de fronteiras que de preferência se desejaria suprimir; poiso próprio Homero deve apenas à força de um testemunho mais quesecular, se tais juízes do gosto o aceitam; também lhes é bastante árduosustentar suas regras contra o exemplo dele, e o prestígio dele contra suasregras.' I

,'-' .O poeta, digo,52 ou é natureza ou a buscará. No primeiro caso,-}; constitui-se o poeta ingênuo; no segundo, o poeta sentimental.

O espírito poético é imortal e inamissível na humanidade; não 'podese perder senão juntamente com ela e com a predisposição para ela. Pois,se mediante a liberdade de sua fantasia e de seu entendimento o homemse afasta da simplicidade, verdade e necessidade da natureza, o caminho

\ para esta, no entanto, não apenas sempre lhe permanece aberto, mastambém um poderoso e inextinguível impulso, o imp.!1Jsomoral,ininter­ruptamente o impele de volta para ela e é justamérite com'esse impulsoque está na mais eS_tJ:~~taafinidade a faculdadepoéticª,~:3 Esta, P9rtanto,não se perde junhimentecoIll a'simpliCidãde natural, mas apenas atuanuma outra direção.

A natureza também agora é a única chama de que se alimenta oespírito poético; somente dela extrai todo o seu poder e somente para elafala, mesmo no homem artificial inselido na cultura. Qualquer outramaneira de atuar é estranha ao espírito poético; por isso, diga-se depassagem, todas as chamadas obras engenhosas54 são bem incorreta­mente denominadas obras poéticas, embora por muito tempo as tenha-

. mos confundido com estas, induzidos pelo prestígio da literaturafrancesa. A natureza, digo, é ainda agora, no estado artificial da cultura,aquilo mediante o que o espírito poético é poderoso, ainda que agoraesteja numa relação de todo difer~!1te com ela·

Enquanto ainda é natureza purà! quer dizer, não é natureza rude, ohomem atlJ:i como indivisa unidadé sensível e como todo h,armQnizante.Sentidos e razão.~faculdade receptiva e espontânea aindªnão se cindLraill-'je muito menos estão em de~acordo. Suas sensações naõ~sãõõ~fõgo-'informe do acaso, nem' seus pensamentos o jogo sem conteúdo dafaculdade de representaçao; aquelas pn.:lyêJnd~lei d~.necessidade; estes,da realidade. Se o homelh entrou nO',estado de cultüra~ a altenele pousou

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a mão; ~upri~.::~e..a~~8!1~~~e~s!v~I:)e ele ainda pode se m~nifestarapenas comoi~I11aaae moral, ou seja, empenhando-se pela umdade._~

hll!.fll0nia entre seu' se'iitii'e pensar,qu_e!10. primeiro estado ocorria;:êal~nte ~agõiã'àíSte .apenas'ldealmente; já não' está .rieIe,mas fora,cõITioum periSaméiitõ'quedevepÍlmelramente ser realizado, não maiscomo um fato de sua vida. Aplicando-se, então, àqueles dois estados oconceito de poesia, que não é outro senão o de dar à humanidade a suaexpi'êssáo mais complêta possível,55 resulta que, no estado de simplici­dãde natUral, onde o homem ainda atua simultaneamente com todas assua"Sforças como uma Unidade harmônica, onde, por conseguinte, o todode sua natureza se exprime plenamente na realidade, o que tem deámstituir o poeta é a iriútaçáo mais completa possível do real- que noestado de cultura, ao contrário, onde o atuar em conjunto harmônico detoda a natureza é apenás uma Idéia, o que tem de constituir o poeta é aelevação da realidade aiOIdeal ou, o que dá no mesmo, é a exposição doIdeal. E estas são também as duas únicas maneiras possíveis nas quaisem geral pode se manifestar o gênio poético. São, como se vê, extrema­mente diferentes uma da outra, mas há um conceito mais alto que abarcaas duas, e não é de estranhar que esse conceito coincide com a idéia dahumanidade.

Aqui não é lugar de dar seqüência a esse pensamento, que só umaapresentação própria pode iluminar plenamente.56 No entanto; poderáfacilmente se convencer de sua verdade quem for capaz de estabeleceruma69!J1.Q~ação qualquer, segundo o espírito e não meramente segundo

!: fOlmas contingentes, etItre ~ntigos e modernos.'" Aqueles nos~2!J10vem.p~tLn~tEI"~~1l,pela verdad~se?slvel :'pelã'pies~nç'â-vi\'-â;" t'stesnos'cüffiÕvempelas Idéiiis': '... . '."'·'-Bste-camlillIo·que·{}s poetas modernos seguem é, de resto, o mesmoque o homem em geral tem de trilhar, tanto individualmente quanto notodo. A natureza o.faz uno consigo; a arte o cinde e desune; pelo Ideal,ele.r.e.!c:>~.a.~.Uíiídáde. Visto, porém, que o Ideal é um infinito que nUl}Çaalcança, o homem cúftlviidü jamais pod,~ se' tomar perfeito em sua

~spêcie;taléomo o homem natural pode se t?niarn~ sua: Teria de ficar

(*)Talvez não seja supérfluo lembrar que, se aqui os poetas modernos são opostos aosantigos, a diferença não deve ser entendida apenas como diferença de época, mast<imbémcomo diferença de maneira. Também nos tempos modernos temos poesiasingênuas em todas as classes, embora não mais de espécie inteiramente pura, e nãofaltam poetas sentimentais entre os antigos poetas latinos, e mesmo entre os poetasgregos. Não' apenas no mesmo poeta, também na mesma obra amiúde se encontramambos os gêneros unidos, como, por exemplo, nos·Soji-imellfos de Werlher, e taisprodutos sempre causarão o maior efeito.

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infinitamente aquém deste em perfeição, caso se atentasse unicamentepara a relação em ql.le ambos se encontram com sua espécie e com seuponto máximo. Se, ao contrário, se comparam, uma com a outra, as

próprias espécies, fica patente que a ~etapela qual o homem se empenhamediante a cultura é infinitamente preferível àquela que alcança me­diante a natureza. Um obtém, portanto, seu valor pelo alcance absolutode uma grandeza finita; o outro o atinge por aproximação de umagrandeza infinita. Mas como só a última possui graus e um progresso, ovalor relativo do homem inserido na cultura jamais é determinadoenquanto todo, embora, considerado individualmente, encontre-se numadesvantagem necessária em relação àquele no qual a natureza atua emtoda a sua perfeição. 57 No entanto, como a Illeta suprema da humanidadenão é alcançável senão por progressão, e como aquele não pode progredirsenão à medida que se cultÍva e;-por conseguinte, se converte neste, nãocabe perguntar a qual dos dois compete a vantagem no que diz respeitoà meta suprema.

O mesmo que se disse aqui das duas formas diferentes da humanidadetambém pode ser aplicado àquelas duas fonnas de poetas que lhes sãocorrespondentes.

Por isso, ou não se deveria de modo algum comparar poetas antigose modernos - ingênuos e sentimentais -, ou só se deveria compará-Iossob um conceito mais alto comum âos dois (um tal conceito realmenteexiste). 5~ Pois, decerto, abstraindo-seprévia e unilateralmente o conceitogenérico de poesia dos poetas antigos, nada mais fácil, mas também nadamais trivial, do que rebaixar perante estes os poetas modernos. 59 Caso sechame poesia apenas àquilo que em todos os tempos atuou uniforme­mente sobre a natureza simples, tal só poderá ocorrer se se recusar aospoetas modernos, precisamente em sua beleza mais própria e sublime, onome de poetas, uma vez que aqui só falam ao pupilo da arte e nada têma dizer à natureza simples. * Para aquele euja mente não esteja desde logopreparada para ir, além da realidade, ao reino das Idéias, o mais rico

(*)Como poeta ingênuo, Moliere podia, se fosse preciso, deixar à sua criada a decisão do

que devia permanecer ou ser eliminado em suas comédias; também teria sido desejável

que os mestres do cotum060 francês por vezes tivessem feito essa prova com suastragédias. Mas não aconselharia que se fizesse uma pro",a semelhante com as odes deKlopstock, com as mais belas passagens do Messias, do Paraíso Perdido, do Natã. o

Sábio, e de muitas outras peças. Mas que digo eu? Essa prova já foi realmente feita, ea criada de Moliere raciocina extensamente sobre poesia, arte e similares em nossasbibliotecas críticas, em anais filosóficos e literários, e em descrições de viagens,

embora, como é justo em solo alemão, de uma maneira um pouco mais insípida do queem solo francês, e tal como convém ao quarto de criadas61 da literatura alemã.

62

1~C

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conteúdo será aparência vazia e o mais alto ímpeto poético, extravagân­cia. A ninguém razoável pode ocorrer o pensamento de querer colocaralgum moderno ao lado de Homero naquilo em que este é grande, e ébastante ridículo ver um Milton ou Klopstock honrado como nome deum Homero moderno. Mas tampouco um poeta aI;J,tigo,e menos aindaHomero, poderá resistir à comparação com o poeta lllOderno naquilo queo distingue caracteristicamente. Aquele, se assim p~desse expressar-me,é poderoso pela arte da limitação; este o é pela.a* do infinito.

. "A grande vantagem que as artes plásticas da Antiguidade afitmamsobre as dos tempos modemos e, acima de tudo, a:relação desigual devalor em que estão a poesia e as artes plásticas mod~mas em face dessesdois gêneros artísticos na Antiguidade explicam-se.]ustamente pelo fato

~a fQ~ d9~~ista ~~g.~~~"~~~~açã()(e_ q quê foi ditõaqiü dopoeta pode, sob as restrições que se tmpõem por si, ser estendido aoartista'em geral). !:!!l.!-ª-º1Jg_12ª.@_2olli9_sÓenco~tra sua perfeição nalimitação; uma obra para a imaginação pode alcahçá-Ia também peloilimltatlo. Por-rssõ;ãsupenoria"ãéte'Cio moderno emJdéias pouco o ajudaem õõfas plásticas; aqui, ele é constrangido a deteJ.·minar com a maiorprecis~o no espaço a imagem de sua imaginação ~, por conseguinte, amedir-~e com o artista antigo exatamente naquela qualidade em que estetem sUj:lincontestável vantagem.62 Em obras poéticas, isso é diferente, ese aqui os poetas antigos também vencem na simplicidade das formas,naquilo que se pode expor sensivelmente e é cmpóreo, o moderno, porsua vez, pode deixá-Ios para trás na riqueza da matéria, naquilo que nãose pode exepor e é inefável, em suma, naquilo que nas obras de arte sechama espírito.63

. ~to que segue apenas a natureza simpl~~"e_~s,~!J~!JiJiºª4e._,-~lU!~"selitnita-àmera..®-itaç~a(:l-i;f&:r:eãH'liae:õ:'p'Q:e1âmi~,Q.la.mltém_~º-12ººe t~rUIl1"ÓillC'cLY.ínçlUQ cQ..msei! objeto t:,J}.ª-QJ1!.Q~~_el~1._~.e_S:Sf.J!§.J?~~to,nenhuma es.c.nlhaJ.le ..•lm.t,llJD~ntQ. A impressão diversa despertada porpoesias Ingênuas reside (supondo-se que se abstraia tudo o que nelaspertença ao conteúdo e se considere essa impressão apenas como obrapura do tratamento poético) reside, digo, apenas no grau diverso de umaúnica e mesma maneira de sentir; a própria diversidade nas formasexteriores não pode produzir nenhuma mudança na qualidade dessaimpressão estética. Seja a forma lú-ica ou ép1ca, dramática ou descritiva:podemos, decerto, ser comovidos com menos ou mais força, mas nunca(tão logo se abstraia a matéria) de maneira diversa. Nosso sentimento é,sem exceção, o mesmo, inteiramente de um único elemento, de modoque nada podemos nele distinguir. A própria diferença de línguas eépocas nada muda aqui, pois essa unidade pura de sua causa e de seuefeito é justamente um dos caracteres da poesia ingênua.

63

Page 7: Poesia Ingenua e Sentimental pt 2 - Friedrich Schiller

~.9 de, todq gi ve.~S2J?.ç21!~.~?El.2..PQ~lli.§.~.~~lJlaJt,Este rd.!e te64

sobre _.ª. imp.resª-~Q._9J!~LQsobjetos lhe causam e tão-somente nessai~~Xã() f~!!9':1:S~,.Ii"co.fi.lg,ç~Ô~i~[lí~-'e1e.ll},:QP[iq]~§~~P?~t~??~fransporta. O objeto, aqui,. é referido a uma Idéia,. e sua força poéticareside a'p~nàS'~ri~§~ãx~f~~~riç!a'-Por isso : ü'poetãsentíiiientafS'empre"'temde lidar com duas representações e sensações conflitantes, com a reali­dade enquanto limite e com sua Idéia enquanto infinito, e o sentimehtomisto que desperta sempre testemunhará essa dupla fonte.* Visto, por­tanto, que aqui ocorre uma dualidade de princípios, depende dequaI dosdois predominará na sensação e na expressão do poeta, sendo possível,conseqüentemente, uma diversidade no tratamento. Surge, pois, a ques~tão de saber se pretende deter-se mais na realidade ou mais no Ideal­se pretende apresentar aquela como um objeto de aversão ou este comoum objeto de propensão. Sua expressão será, portanto, ou satírica: ouelegíaca (num sentido mais amplo dessa palavra, que post6norrllente seesclarecerá); todo poeta sentimental observará lima dessas duas maneirasde sentir.

, O poeta é satírico,65 se toma como objeto o afastamento em relação, \ à natureza e a contradição da realidade com o Ideal (ambos são idênticos

) no efeito sobre a mente). Isso ele pode executar tanto seriamente e com.' afeto, quanto jocosamente e com jovialidade, conforme se detenha no

domínio da vontade ou no do entendimento. O primeiro caso ocorremediante a sátira punitiva ou patética; o segundo, mediante a sátirajocosa.

Na verdade, tomado rigorosamente, o fim do poeta não suporta nemo tom da punição nem o do divertimento. Aquele é muito sério para ojogo que a poesia sempre deve ser; este, muito frívolo para a seriedade

(*)Alguém que observe em si a impressão causada por poesias ingênuas e seja capaz de

nela separar a porçãá que cabe ao contéudo, achará essa impressão sempre jovial,

sempre pura, sempre c3hna, mesmo em objetos bastante patéticos; em objetos senti­

mentais, será sempre 'algo séria e tensa. Isso se dá porque nas formas de expressãoingênua, seja qual for o seu assunto, sempre nos alegramos com a verdade, com a

presença viva do objeto em nossa imaginação e não buscamos nada mais além desta;

nas formas de expressão sentimental, ao contrário, temos de unir a representação daimaginação a lima Idéia da razão e, assim, sempre vacilamos entre dois estadosdiferentes.

64

que deve servir de fundamento a todo jogo poético.66 Contradiçõesmorais interessam necessariamente nosso coração e, por isso, roubam aliberdade à mente; e, não obstante, todo interesse pessoal, ou seja, todareferência a uma necessidade deve ser banida de comoções poéticas.Contradições do entendimento, em contrapartida, deixam indiferente ocoração; e, não obstante, o poeta tem de lidar com o anseio supremo docoração, com a natureza e o Ideal. Por isso" não é para ele pequena tarefanão ferir, na sátira patética, a forma poéttca, que consiste na liberdadedo jogo, nem faltar, na sátira jocosa; ao conteúdo poético, que sempretem de ser o infinito. Essa tarefa só pode ser solucionada de uma únicamaneira. A sátira punitiva obtém liberdade poética ao converteNe nosublime; a sátira burlesca consegue conteúdo poético ao tratar combeleza seu objeto.67

Na sátira, a realidade, como falta, é contraposta ao Ideal, comorealidade suprema. De resto, não é de modo algum necessário que esteúltimo sejaexpresso, st}o poeta for capaz de suscitá-Io na mente; mas éabsolutamente necessário que o seja, ounãõ' atuará poeticámente. A.',

realidade, portanto, é aqui um objeto necessário de aversão, mas tudo o ! '-\:que importa é que essa própria aversão tem de nascer, de novo necessa- \namente, do Ideal que se opõe à realidade. Ou seja, também pOderi8; ter ,,:~uma fonte meramente sensível e ser fundada apenas na carência com áqual a realidade conflita; e com muita freqüência acreditamos sentir umaindignação moral com o mundo, quando o que nos exaspera é o meroconflito entre ele e nossa inclinação.. É esse interesse material que o

s.~~íricovulgar põe em jogo e, como não deixa de nos transportar ao afetopor essa via, acredita ter nosso coração em seu poder e ser mestre nopatético. Mas todo palhos dessa fonte é indigno da poesia, que só pode

'nos comover através de Idéias e tomar o caminho de nosso coraçãoatravés da razão. Esse palhos impuro e material, ademais, sempre serevelará por uma preponderância da paixão e por um constrangimentopenoso da mente, ao passo que o pathos verdadeiramente poético éreconhecível por uma preponderância da espontaneidade e por umaliberdade da mente que subsiste mesmo durante o afeto. Ou seja, se acomoção nasce do Ideal que se contrapõe à realidade, todo sentimentoconstrangedor desaparece na sublimidade deste último, e a grandeza daIdéia da qual somos imbuídos eleva-nos acima de todas as limitações daexperiência. Por isso, ao expor a realidade revoltante, tudo depende deque o necessário seja o fundamento sobre o qual o poeta ou o narradorcolocam o real, de que saibam dispor nossa mente para Idéias. Quandojulgamos, nãoé de nenhuma importância que o objeto permaneça pro­fundamente abaixo de nós, contanto que ao menos nós estejamos eleva-

65I

. /"'.

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dos. Quando o historiógrafo Tácito nos descreve o profundo declínio dosromanos do primeiro século, é um espírito elevado que do alto olha paraaquilo que é baixo, e nossa disposição é verdadeiramente poética, poisapenas a altura em que ele mesmo se encontra, e à qual soube alçar-nos,tornou baixo o seu objeto.

Assim, a sátira patética sempre tem de provir de uma mente viva­mente penetrada pelo Ideal. Apenas um dominante impulso para aharmonia pode e permite gerar aquele sentiménto profundo das contra~dições morais e aquela vívida indignação com a perversão moral, quese torna entusiasmo num Juvenal, num Swift, num Rousseau, num

Iialler e em outroS.68 Se desde cedo causas cÓntingentes nã~ tivessemdado tal direção determinada a suas mentes, esses poetas teriam poeti­zado, deveriam ter poetizado com o mesmo êxito rios gêneros como­ventes e delicados; embora em parte realmente o tenham feito ...!9<19sos mencionados ou viveram numa época degenerada, tendo diante dosolhci-S-lii.'naexperiência atelTadora da decadência moral, ou o destinopessoal semeou a amargura em suas almas. Também o espírito filosófi­co, ao separar, com rigor implacável, a aparência da essência e penetrarnas profundezas das coisas, inclina a mente para a dureza e a austeridadecom que Rousseau, Haller e outros pintam a realidade. Mas essasinfluências externas e contingentes, que sempre atuam de modo restri­tivo, podem no máximo determinar a direção, jamais fornecer o conteú­do do entusiasmo. Este tem de ser o mesmo em todos e provir, puro detoda carência extema, de um vívido impulso para o Ideal, impulso queé a única e verdadeira vocação do poeta satíriço, bem como, em geral,do poeta sentimental.

Se a sátira patética só assenta bem em almas sublimes, a sátiraescarnecedora só tem êxito para um coração belo. Porque aquela já estáa salvo da frivolidade mediante seu objeto sério, mas esta, que só pode

tratar de um objeto moralmente indiferente, nela cairia inevitavelmentee perderia toda a dignidade poética, se o tratamento não enobrecesse oconteúdo e o sujeito do poeta não substituísse o seu objeto. Contudo, sóao belo coração é dado imprimir em todas as suas manifestações umacompleta imagem de si mesmo, independentemente do objeto de seu agir.O caráter sublime pode se revelar apenas em vitórias isoladas sobre aresistência dos sentidos, em certos instantes de ímpeto e de esforçomomentâneo; na bela alma, ao contrário, o Iô.eal atua como natureza,uniformemente portanto, e com isso também pode se mostrar numestado de tranqüilid~de. O mar profundo aparece do modo mais sublimeem seu movimento; o riacho claro aparece do modo mais belo em seu

fluxo tranqüilo.

66

li,....J,

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Muitas vezes debateu-se sobre qual das duas, tragédia ou comédia,terüi primazia sobre a outra. Se com isso apenas se pergunta qual dasduas trata do objeto mais importante, não há dqvida de que a primeiraàfitma sua vantagem; se, porém, se quer saber qyal delas exige o sujeitomais importante, o veredicto poderia ser pronunçiado antes em favor dasegunda. - Na tragédia, muita coisa já ocorre por meio do objeto; nacomédia, porém, tudo ocorre por meio do poçta, e nada mediante oobjeto.69 Ora, uma vez que nos juízos de gosto jamais se leva em contaa matéria, o valor estético desses dois gêneros i,írtísticos, naturalmente,terri de estar numa relação inversa à de sua importfincia material. O objetosus~enta o poeta trágico; o cômico, ao contrário,"tem de manter o objetoem elevação estética mediante seu sujeito. Aquele pode tomar umimpplso para o qual não é preciso muito; este tejn de permanecer iguala si mesmo, já tem, pois, de estar ali, de estar en;lcasa, onde aquele nãochega sem um estímulo. E nisso, precisamente, ri caráter belo se diferen­cia do caráter sublime.7° No primeiro já está contida toda a grandeza, queem4na sem constrangimento e sem esforço de sua natureza; é, segundoa PQtencialidade, um infinito em cada um dos pontos de sua trajetória; osegundo podetensionar-se e elevar-se a toda grandeza, pode arrancar-sede todo estado de limitação mediante a força de sua vontade. Este é,portanto, livre apenas em intervalos e apenas com esforço; aquele o écom facilidade, e sempre.

A béla tarefa da comédia é produzir e alimentar em nós essaliberdade da mente, assim como a tragédia se destina a ajudar arestabelecê-Ia pela via estética, se tiver sido violentamente suprimidapelo afeto. Assim, na tragédia, a liberdade da mente tem de sersuprimida de modo artifical e como experimento, porque aquelademo~stra sua força poética no restabelecimento desta; na comédia,ao contrário, é preciso evitar que se chegue à supressão de talliber­dade. 'Por isso, o poeta trágico sempre trata seu objeto de maneiraprática, enquanto o poeta cômico sempre trata o seu de maneirateórica, mesmo quando aquele tenha o capricho (como Lessing emseu Natã) de trabalhar com uma matéria teórica, e este, com umamatéria prática. O que toma o poeta trágico ou cômico não é o domínio

de onde extraiu o objeto, mas o foro ante o qual o apresenta. Q..lf~~i~otem de acautelar-se contra o raciocínio tranqüilo, sempre interessando ocoração; o cômico tem de proteger::seaõpãülài;,"sémpre-ênci'eten-êió"üentendill:íêiito.~Aqtiele mostrâ, pois', sua arte mediante uma excitaçãoconStãilte-ãã-paiXão',-este; mediante um desarmamento constante dela; eem ambos os lados essa arte é natw-almente tanto maior, quanto mais oobjeto de um seja de natureza abstrata, e o objeto do OU1TO incline ao

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patético.'" Assim, se a tragédia parte de um ponto de vista mais impor­

tante, por outro lado é preciso conceder que a comédia vai ao encontrode um alvo mais importante, e se o alcançasse, tornaria toda tragédiaSupélflua e impossível. Seu alvo é idêntico àquilo pelo que de maiselevado o homem tem de lutar: ser livre de paixão, sempre olhar comclareza e tranqüilidade à sua volta e em si, encontrar em toda parte maisacaso que destino, e antes rir do disparate que enfurecer-se com amaldade ou por ela chorar. 71

Tal como na vida ativa, também nas formas de expressão poéticaamiúde se costuma confundir a mera desenvoltura, o talento agradável,a bonomia jovial com beleza de alma, e, uma vez que o gosto vulgarjamais se eleva acima do agradável, é fácil para tais espíritos amáveisusurpar essa glória tão difícil de merecer. Mas há uma prova infalível pormeio da qual se pode distinguir entre a desenvoltura do natural e a

desenvoltura do Ideal, bem como entre a vu1ude do temperamento e.averdadeira moralidade do caráter, e essa prova se dá quando são téstadosnum objeto difícil e grande. Neste caso, o gênio amável infalivelmentese converte em algo trivial, assim como a vll1ude do temperamento, emalgo material; com igual certeza, porém, a alma verdadeiramente bela seconverte na sublime.

Enquanto apenas fl.lstiga o disparate, como nos Votos, nos Lápitas,no Júpiter Trágico, ert,tre outros, Luciano permanece escarnecedor, re­galando-nos com seu humor jovial; mas se torna um homem de tododiferente em muitas passagens do Nigrinus, do Timão, do Alexandre, nasquais sua sátira tambénl aceIta a corrupção moral. "Infeliz!", assim iniciano Nigrinlls72 o quadrb revoltante da Roma de então, "por que deixastea luz do sol, a Grécia, e vieste para cá, para esse alvoroço de suntuosasubserviência, de visit~s e banquetes, de sicofantas, aduladores, envene­nadores, papa-heranças e falsos amigos? etc." Em ocasiões como esta, épreciso que se revele a elevada seriedade do sentimento, que tem de estar

(*)Isso não ocorreu no Natã, o Sábio: aqui, a natureza glacial da matéria esfriou toda a

obra. Mas o próprio Lessing sabia que não estava escrevendo uma tragédia e, huma­

namente, apenas esqueceu em seu próprio trabalho a doutrina, apresentada na Drama­turgia, de que o poeta não está autorizado a utilizar a forma trágica senão para um fim

trágico. Sem alterações bem substanciais quase não teria sido possível transformar essepoema dramático numa boa tr<lgédia; mas com alterações meramente acessórias, elepoderia ter dado uma boa comédia. Ou seja, para esse último fim, ter-se-ia de sacrificar

o patético; para aquele, o raciocínio; e não cabe perguntar em qual dos dois resideprincipalmente a beleza desse poema.

68

na base de todo jogo, caso deva ser poético. Mesmo através do gracejomaligno com que tanto Luciano quanto Aristófanes destratam Sócrates,deixa-se entrever uma razão severa, que vinga a verdade contra o sofistae sempre luta por um Ideal, embora nem sempre o exprima. Sem dúvidaalguma, em seu Diógel1es e em seu Demonax,73 o primeiro também fezjus a esse caráter; entre os modernos, que grande e belo caráter nãoexpressa Cervantes em toda ocasião digna no seu Dom Qllixote; quemagnífico Ideal não devia viver naalma do poeta que criou um TomJones e uma Sofia;74 com que grandeza e força pode emocionar nossamente o risonho Yorick,75 tão logo o queira! Também em nosso Wielandreconheço essa seriedade da sensação; a graça do coração anima eenobrece mesmo os jogos caprichosos de seu humor, imprime a marcaaté no ritmo de seu canto, e nunca lhe falta a força de enlevo para, tãologo seja preciso, alçar-nos àquilo que é mais alto.

Sobre a sátira de Voltaire não se pode emitir um juízo semelhante.Decerto, é também unicamente por meio da verdade e simplicidade danatureza que, por vezes, esse escritor nos comove de modo poético, querrealmente a alcance num caráter ingênuo, como freqüentem ente em seuIngênuo, quer a busque e vingue, como, entre outros, em seu Cândido.Quando nenhum destes é o caso, pode nos divertir como homem enge­nhoso, mas não certamente nos emocionar como poeta. Em toda parte,aliás, muito pouca seriedade serve de flmdamento a seu escárnio; e issotorna suspeita, com justiça, a sua vocação poética. Sempre deparamosapenas com seu entendimento, não Com seu sentimento. Nenhum Idealse mostra sob aquele invólucro de are quase nada, de absolutamente filmenaquele moto-contínuo. Sua maravilhosa diversidade em formas exte­riores, longe de demonstrar algo da profusão interior de seu espírito,presta antes um testemunho que faz pensar no contrário, pois, a despeitode todas aquelas formas, não encontrou uma na qual tivesse podidoimprimir um coração. Por isso, é quase de temer que, na riqueza desse·gênio, foi tão-só a pobreza de coração que determinou sua vocação paraa sátira. Fosse diferente, deveria ter saído dessa trilha estreita em algumlugar de seu longo caminho. Contudo, apesar de tão grande alternânciada matéria e da forma exterior, vemos a forma interior retomar numaperpétua, numa parca uniformidade, e a despeito de sua vasta carreira,não cumpriu em si mesmo o ciclo da humanidade, que se encontraalegremente percorrido nos satíricos acima mencionados.

Chamo de elegíac076 o poeta, se opõe a natureza à arte e o Ideal àrealidade, de modo quê a exposição dos primeiros predomine e a satis-

. fação comeTes"se tome sensação preponderante. Como a sátira, esse

gênero também abrange-duas classes. Oua natureza e o Ideal são umobjeto de tri§teza,quando se. expõe aqüé!acoino perdida e este como• ••.•.• , .". • '. __ ,.,.,,' .. , ' '.'.' , ,- .",' -- < " -'-~""~,, ',' ,-"',.' ,"," ~ ••• , •• ., r' ,.' ,-,.,_,,'~~• ....-,>., .. , _"".~ ~..", __, ._.",,",:>, ..~ , •.~_.~_ ",''''~'''' ,--"",~.<-,.."--,,,~.._,,-•.'..

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inatingível. Ou ambos são um objeto de alegIia, se representados como~No primeiro caso, tllQ}':ÂÇ<JLe.legia-em:Si.gni.ílcidójI@i~stfi~;fíÔ

segull<!.Cl_,Oi.dílio,em significado mai.Slnl1'plo.* -'t'-----Assim como a indignação na sátira patética e o escárnio na sátira1­jocosa, a tristeza na elegia só pode provir de um entusiasmo despertado

pelo Ideal. Apenas por seu intermédio a elegia obtém conteúdo poético,e qualquer outra fonte está inteiramente abaixo da dignidade da poesia.O poeta elegíaco busca a natureza, mas naquilo em que é bela, não apenasnaquilo em que é agradável; em sua harmonia com Idéias, não apenasem sua transigência para com a privação. A tristeza com alegrias perdi­das, com o desaparecimento da época de ouro do mundo, com a venturaque se deixou escapar na juventude, no amor etc., só pode vir a sermatéIia de uma poesia elegíaca se tais estados de paz sensível puderem

(*)Para os leitores que penetrem mais profundamente na questão, não precisarei quase

justificar-me por utilizar as denominaç~es de sátira, elegia e idílio num sentido maisamplo do que comumente ocorre. Meu propósito aqui não éde maneira alguma deslocar

os limites que o uso até agora impôs, C9m bom fundamento, tanto à sátira e à elegiaquanto ao idílio; tenho em vista simpleimente a maneira de sentir dominante nessas

espécies de poesia, e sabe-se muito bem 9ue ela não se deixa de fOlma alguma encerrarnaqueles estreitos limites. A elegia, assilh chamada de modo exclusivo, não é a única

que nos comove elegiacamente; o poetú dramático e o poeta épico também podem

emocionar-nos de maneira elegíaca. N~Messíada, nas Estações de Thomson, noParaíso Perdido, na Jerusalém Libertadà" encontramos diversos quadros que, de resto,

só são próprios do idílio, da elegia, da sá!jra. Assim também, em maior ou menor grau,em quase todo poema patético. Mas que çu inclua o próprio idílio no gênero elegíaco,parece precisar de uma justificativa. Le.Jlbre-se, todavia, que aqui só se fala daquele

idílio.que é uma espécie da poesia sentim:~ntal, de cuja essência faz parte que a naturezaseja oposta à arte, e o Ideal à realidade. Ainda que isso ocorra de modo não expressopelo poeta, e ainda que este ponha punt e autonomamente diante de nossos olhos o

quadro ela natureza não-con'ompida ou ~o Ideal acabado, essa oposição está em seucoração e se reyelará, mesmo involuntari'amente, a cada pincelada. E ainda que assimnão fosse, a linguagem de que tem ele sel'Vir-se, pois ela carrega em si o espúito do

tempo e experimenta a influência da arte, já trada à lembrança a realidade com suas

limitações'e a cultura com sua artificialidade; nosso próprio coração contrapoda a

experiência da corrupção àquela imagem da natureza pura, e tomma em nós elegÍacaa maneira de sentir, mesmo que o poeta não o tivesse pretendido. Isso é tão inevitável,que mesmo a fruição suprema que as mais belas obras do gênero ingênuo de tempos

antigos e modernos proporcionam ao homem cultivado não pode pennanecer pura pormuito tempo, mas será, cedo ou tarde, acompanhada de uma sensação elegíaca. Porfim, obselvo ainda que, precisamente por fundar-se na Illera diferença da maneira de

sentir, a divisão aqui pretendida não deve detenninar absolutamente nada na divisãodos próprios poemas e na dedução dos gêneros poéticos; pois não pode ser derivadadestes últimos, mas deve sê-Io da fonna de expressão, visto que o poeta não se prende

de modo algum, nem sequer numa mesma obra, à mesma maneira de sentir.

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ser ao mesmo tempo representados como objetos de harmonia moral. Porisso, não posso considerar inteiramente como obra poética as canções delamento que Ovídio entoava de seu exílio em Euxino,77 por mais como­vel).tes que sejam e por mais que algumas passagens isoladas tenhammqito de poético. Há muito pouca energia, muito pouco espírito enobreza em sua dor. A privação, não o entusiasmo, extemava aqueleslan,lentos; ali respira, se não uma alma vulgar, ao menos a disposiçãovulgar de um espírito mais nobre, a quem o destino pôs por terra.Certamente perdoamos a dor ao filho da alegIia, quando nos lembramosde que é Roma, e a Roma de Augusto, aquela pela qual se entIistece; masse ~imaginação não a enobrecer previamente, mesmo a magnífica Roma,corp todas as suas felicidades, será apenas uma grandeza finita, umobjeto, pois, indigno da poesia, que, sublime acima de tudo o que areajidade apresenta, tem apenas o direito de entristecer-se pelo infinito.

Portanto, o .~2!!!~~doc!Q JªP1~JÚo po~tico 88 PQd.e~~E~~.~mpr~, um

~~jt:t~"~~~~J:!}gj~~I,jama~_~~ ?~j~to ~xte11'l.()j"I[l~:,~?51~q2.~e..~E:tEs-tece por uma perda real, tem ae transforma-Ia numa perda Ideal. O@!iii.~~!2P~_~tic9.reside·propr{ame.liiti nes~~çõny~!~~~~!!Jynitaddriülüm.finü.Q .•A matéria exterior sempre é indiferente. em si mesmã, poi:q\ie apo~~ia jamais pode utilizá-Ia tal como a encontra, dando-lhe dignidadepoética apenas mediante aquilo que dela faz. q poeta elegíaco busca anat~reza, porém enquanto Idéia e numa perfeiçãp em que jamais existiu,ainga que a chore como algo passado e agora perdido. Quando Ossianno~}ala dos dias que já não existem e dos heróis (iesaparecidos, sua força

poép.ca há muito tempo transfigurou, em Ideà,is, aquelas imagens dareci'lrdação e, em deuses, aqueles heróis. As experiências de uma perdadet~rminada se generalizaram na Idéia do perecupento de todas as coisas,e o':bardo comovido, a quem a imagem da ru~ onipresente persegue,arroja-se ao céu para encontrar, na eclíptica, um slmbolo do imperecível. *

NOlto-me agora para os poetas modernos no' gênero elegíaco. Tantocomo filósofo quanto como poeta, Rousseau não tem outra tendêndiasenão a de buscar a natureza ou a de vingá-Ia da arte. ConfOlme seusentimento se detenha numa ou noutra, encontramo-Io' ora comovidoelegiacamente, ora entusiasmado pela sátira juvenaliana, ora, como emsua Julie,78 enlevado no campo do idI1io. Visto que tratam de um Ideal,suas poesias têm, irrefutavelmente, um conteúdo poético, embora nãosaiba utilizá-Io de maneira poética. ~or certo, seu caráter sério jamais odeixa descer à frivolidade, mas também não lhe permite elevar-se ao jogo

(*)Leia-se, por exemplo, o extraordinário poema intitulado Carthon.

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