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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA/UFBA POLÍTICA EM DANÇA: O ESVAZIAMENTO CRÍTICO Anais Fátima Wachowicz, Adriana Bittencourt e Fátima Daltro (Org.)

POLÍTICA EM DANÇA: O ESVAZIAMENTO CRÍTICO - Ufba · 2019-06-10 · UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA/UFBA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA

IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA/UFBA

POLÍTICA EM DANÇA: O ESVAZIAMENTO CRÍTICO Anais

Fátima Wachowicz, Adriana Bittencourt e Fátima Daltro (Org.)

Reitora: Dora Leal Rosa Vice-Reitor: Luiz Rogério Bastos Leal

Diretora da Escola de Dança: Leda Iannitelli Vice-Diretora da Escola de Dança: Adriana Bittencourt Machado

Coordenadora do Programa da Pós-Graduação de Dança: Lúcia Matos Vice-Coordenadora da Pós-Graduação de Dança: Gilsamara Moura Robert Pires

COMISSÃO CIENTÍFICAProfª. Drª. Gilsamara Moura

Profª. Drª .Fátima DaltroProfª Drª Lucia Matos

Profª. Drª Daniela AmorosoProfª Drª Adriana BittencourtProfª Drª Fátima Wachowicz

COMISSÃO ORGANIZADORAProfª. Drª Gilsamara Moura

Profª. Drª Fátima DaltroProfª. Drª Lucia Matos

Profª. Drª Daniela AmorosoProfª. Drª Adriana BittencourtProfª. Drª Fátima Wachowicz

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA

IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA/UFBA

POLÍTICA EM DANÇA: O ESVAZIAMENTO CRÍTICO Anais

SalvadorUFBA2014

* Os Anais do IV Seminário de Pesquisa do PPGDança foi produzido com recursos oriundos do “Projeto de Qualificação do Programa de Pós-Graduação em Dança/UFBA, aprovado no edital 04/2013, Apoio a Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu, acordo Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

EditoresFátima WachowiczAdriana Bittencourt

Fátima Daltro

EdiçãoPpgdança/Escola de Dança – Universidade Federal da Bahia Editoração

PPGDança – Escola de Dança da UFBAAv. Ademar de Barros s/n - Campus Universitário - Ondina

CEP 40170-110 - Salvador, BATel.: (071) 3283-6572 Fax: (071) 3283-6581Email: [email protected]

Sistema de Bibliotecas - UFBA

 

   

Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Dança/UFBA (4. : 2014 : Salvador, BA). Anais [do] IV Seminário do Programa de Pós-Graduação em Dança/UFBA / Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança ; Fátima Wachowicz, Adriana Bittencourt, e Fátima Daltro (Orgs.). - Salvador : UFBA, 2014. 215 p. Tema: Política em dança: o esvaziamento crítico. ISSN 2316-9443

1. Dança - Congressos. 2. Dança - Aspectos políticos - Congressos. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. II. Wachowicz, Fátima. III. Bittencourt, Adriana. IV. Daltro, Fátima. V. Título. VI. Título: Política em dança: o esvaziamento crítico.

CDD - 792.8

                                                                                                                                                                                                                                         

SUMÁRIO

Editorial 7

A dança afro-brasileira como proposta pedagógica na Escola Municipal Malê Debalê 9 Alexandra da Paixão Damasceno de Amorim, Haialla Pereira de Souza

Tanatológica na dança: reflexão sobre regeneração, degeneração e biopoder 21 Ana Carolina Frinhani

Estéticas do acontecimento: corpo, intersemiose e risco como agente compositivo 33 Anderson Marcos da Silva

Condições (in)visíveis 41 Bruna Roncari

O problema corpo-mente: e algumas de suas implicações políticas e sociais 51 Charlene Simão

A atuação do Pibid/Dança em escolas da rede pública de Salvador 61 Clarice Contreiras, Marília Curvelo, Maira di Natale, Rita de Cássia Rodrigues, Maria de Fátima Borges

O crítico espectador: reflexão, discurso e visibilidade na dança contemporânea 73 Cláudia Góes Müller

Improvisação em dança: padrão como sobrevivência, memória como atualização, ruptura como desafio 81 Claudinei Sevegnani

Tensões políticas na discussão entre tradição e contemporaneidade sobre o fazer da dança 93 Fernando Davidovitsch

Canônicas metamorfoses da área de conhecimento Dança 105 Lígia Maria Louduvino Martins, Anette Lubisco Lopes

O processo de criação compartilhado: dançando em coletivo 117 Lucas Valentim Rocha

A imprevisibilidade nos processos criativos de dança: quem move o que move? 129 Ludmila Aguiar Veloso

Ambiguidade e complexidade – possibilidades de fazer dança 139 Mabile Borsatto

A dança nas escolas de ensino médio da rede pública estadual de Salvador 149 Marília Nascimento Curvelo

Dança digital na potência de uma biodança 161 Natalia Pinto da Rocha Ribeiro

Programação cultural como embrião para uma política para a dança 171 Neila Cristina Baldi

Escrita metafórica: uma operacionalidade simultânea de percepção, comunicação e emancipação do corpo na dança 181 Patrícia Cruz Ferreira

Dança como campo de ativismo político: o Bicho Caçador 193 Verusya Santos Correia

Alteridade e autonomia: um outro discurso da dança 205 Vivian Vieira Peçanha Barbosa

EDITORIAL

O IV Seminário de Pesquisa em Dança, “Política em dança: o esvaziamento crítico” apresentou a discussão sobre o papel da dança enquanto ação política em seus múltiplos discursos. A reflexão do fazer crítico torna-se possível me-diante contradições entre posicionamentos, ações e pensamentos, produzindo tensões entre ambientes e suas relações de poder. Há na dança o exercício da crítica como forma de interditar modelos hegemônicos e padrões de conduta? Desse modo, o interesse foi problematizar a condição política da dança em suas relações com os diferentes contextos. O entendimento é de que a crítica não pro-duz consensos, mas diferenças, nos diversos contextos que subsidiam as ações e políticas do campo da dança.

O IV Seminário “Política em Dança: o esvaziamento crítico” ofereceu a per-cepção de uma trajetória ao longo de quatro edições sobre a relevância da ação acadêmico-artística, em sua vertente diversificada, inserida no pensamento con-temporâneo de dança.

O Seminário foi organizado nas seguintes mesas temáticas: Política em dança no contexto educacional; Política em dança no contexto artístico e cultural; Polí-tica em dança e propostas transdisciplinares; e, Política em dança para a difusão e produção de conhecimento.

Vale ressaltar que nesta edição recebemos para a conferência de abertura o Prof. Dr. André Lepecki (New York University), com o tema “Coreo-política e co-reo-polícia: mobilização, performance e contestação nas fissuras do urbano”.

Agradecemos aos participantes e autores que aqui contribuíram para fomentar o campo de conhecimento em Dança, com seus textos e ideias, na perspectiva de futuros reencontros.

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A dança afro-brasileira como proposta pedagógica na Escola Municipal Malê Debalê

Alexandra da Paixão Damasceno de Amorim (UNEB)1

Haialla Pereira de Souza (UNEB)2

Resumo

No campo educacional, a lei 10.639, torna obrigatório o ensino da história e cultura africana. A dança afro-brasileira é uma importante manifestação artístico-cultural que valoriza a cultura negra e as matrizes africanas. Existem diversos blocos afros em Salvador-BA, vinculados a escolas municipais. Assim, o presen-te texto tem como objetivo identificar a concepção curricular da dança afro-brasi-leirana Escola Municipal Malê Debalê. Tratou-se de uma pesquisa de campo que utilizou de análise documental e entrevista para coleta de informações. Como instrumento de análise dos resultados utilizou-se a análise de conteúdo. A pro-posta pedagógica da Escola Municipal Malê Debalê é voltada para introdução de ritmos, símbolos e saberes elaborados e desenvolvidos nas quadras dos blocos afros. As aulas buscam valorizar a mulher e o homem negro. Atualmente ocor-rem duas vezes na semana a partir de demandas advindas dos alunos, alian-do atividades coreográficas com experiências teóricas interdisciplinares sobre temas que remetem à cultura negra. Conclui-se que na Escola Municipal Malê Debalê há uma preocupação e aplicação do processo de ensino-aprendizagem da história e cultura africana numa experiência vivida, valendo-se da dança afro-brasileira como importante estratégia didático-pedagógica para tratar sobre este conhecimento, partindo desde um viés biológico ao corpo até um viés sócio-his-tórico-cultural.

Palavras-chave: Dança. Dança afro-brasileira. Ensino Fundamental.

Abstract

In the educational field, the law 10.639, mandating the teaching of African history and culture. The african dance is an important artistic and cultural event that appreciates black culture and African origin. There are many afros blocks in Salvador-BA, linked to municipal schools. Thus, the present article aims to identify the curricular conception of African dance at the Escola Municipal MalêDebalê.

1 Licenciada em Educação Física pela Universidade Católica de Salvador (UCSal). Especialista em Edu-cação Física Escolar da Universidade Gama Filho (UGF) e em Metodologia da Educação Física e do Esporte pela Universiddae do Estado da Bahia (UNEB). Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Cultura e Saúde (GEPEECS), e-mail: [email protected]

2 Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus IV – Jacobi-na. Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Cultura e Saúde (GEPEECS), e-mail: [email protected]

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This was a field study that used document analysis and interview to collect information. As a tool for analysis of the results we used the content analysis. The pedagogical proposal of the Escola Municipal MalêDebalê is geared towards introducing rhythms, symbols and knowledge elaborated and developed in blocks of afros blocks. The classes seek to enhance a woman and black man. Currently occur twice a week demands arising from combining choreographic activities of students with interdisciplinary theoretical experiences on topics that refer to black culture. It is concluded that the Escola Municipal MalêDebalê there is a concern and application of teaching-learning of African history and culture in a lived experience making use of african dance as important didactic-pedagogic strategy to address on this knowledge starting from a biological bias the body to a socio- cultural-historical bias.

Keywords: Dance. Afro-Brazilian Dance.Basic Educacation.

Introdução

A dança é uma forma de expressão e comunicação dos movimentos que, aplicada ao conteúdo escolar, deseja proporcionar aos alunos um contato com a possibilidade de se expressar através das práticas corporais. O ensino da dança nas escolas pode ampliar os olhares que perpassam as artes, estimulando a sua criatividade e a criticidade.

Neste contexto, as compreensões dualistas e fragmentadas do corpo contribuem para experiências educacionais que hipervalorizam conhecimentos ligados à matemática, português, história, geografia, física, biologia e química cobrados no vestibular ao privilegiar a “mente”. Experiências educacionais que colocam o corpo como eixo central do processo de ensino-aprendizagem não são valoriza-das e áreas do conhecimento como a Educação Física, Artes e Dança ocupam lugares inexpressivos no cotidiano pedagógico. (CURVELO, 2013)

É de conhecimento dos responsáveis legais pela Educação Básica a necessidade de atender as alterações promovidas na Lei de Diretrizes e Bases nº 9394 (BRASIL, 1996), pela Lei nº 10639 (BRASIL, 2003) e pela Lei nº 11645 (BRASIL, 2008) que tratam da inclusão na rede de ensino da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

O processo de construção histórica e identitária do negro (a) no Brasil abarca um processo de negação de acesso a este conhecimento no currículo escolar ao longo dos tempos. “A (re)tomada de valores ético-estéticos dos vários povos que foram mantidos fora do currículo, ao longo desse perverso processo colonial homogeneizante e globalizante, é fundamental”. (ATAÍDE; MORAIS, 2003, p. 83)

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Para Lobato (2007, p. 35), o corpo diz muito sobre as pessoas, é a partir dele que há interação com o mundo, no entanto, “essa célula viva, que é o corpo, vem sendo moldado pelos diversos regimes sócio-político-culturais das diferentes ci-vilizações época. [...] Assim, o corpo é a incorporação viva da memória genética e da cultura de um povo”.

Entende-se que as práticas corporais de matriz africanas desenvolvidas e prati-cadas no Brasil poderiam se tornar importante meio para contribuir no processo de ensino-aprendizagem tendo o corpo como eixo principal, atrelado às implica-ções e demandas impostas pela legislação educacional. Estes conhecimentos são capazes de envolver as temáticas abordadas nas dimensões física, bio-lógica, cultural, histórica, filosófica, social, dentre outros; seja na capoeira, no samba-de-roda, puxada de rede, dança afro-brasileira, maculelê, tornando as experiências vividas mais significativas aos sujeitos envolvidos no processo.

As tradições africanas possuem como um de seus elementos mais fortes a dan-ça. “Os nossos ancestrais negros expressavam todos os acontecimentos natu-rais da organização da sua comunidade: agradecer às colheitas, o nascimento, a saúde, a vida e até a morte”. (OLIVEIRA, 2005, p. 62)

A dança afro-brasileira surge também como manifestação artística dos negros que, através de matrizes estéticas, configuraram características peculiares a sua compreensão de movimento corporal no tempo e no espaço. “O negro educou-se ouvindo dizer que o seu corpo era feio e grosseiro, que não podia dançar balé clássico por ter o seu quadril largo e os pés chatos”. (OLIVEIRA, 1992 p.53)

Nesse contexto, considerando o desejo de explorar o ensino da dança afro-bra-sileira nas escolas municipais de Salvador, mantidas por blocos afros, este texto pretende Identificar a concepção curricular da Dança Afro-brasileira no projeto político-pedagógico (PPP) da Escola Municipal Malê Debalê.

Metodologicamente, trata de um estudo de caso que se constitui como um “estu-do profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu amplo e detalhado conhecimento”. (GIL, 2010, p.37) De forma complementar, Yin (2005, p. 19) afirma que o estudo de caso representa a “estratégia preferida quando se colocam questões do tipo ‘como’ e ‘por que’, quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real”.

Para desenvolver essa pesquisa foram realizadas visitas à Escola Municipal Malê Debalê. Essas visitas permitiram que tivéssemos acesso ao material que

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viabilizou o andamento do estudo: o Projeto Político Pedagógico, os Portfólios e algumas informações fornecidas pela professora de dança, a partir das técnicas de coletas de informação chamadas de levantamento documental e entrevista. (GIL 2010) Como instrumento de análise dos resultados utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin (2011).

Identidade

Existe uma imensidão de questões que influenciam o sujeito na construção da sua identidade e da sua cultura: a crise de identidade por vários deslocamentos, pluralidade de centros de poder, identidade multicultural e os processos identitá-rios. As discussões sobre identidade permitem “uma maior mobilidade do concei-to, proporcionando um campo mais amplo que estamos analisando a retomada de tradições culturais, reformulado e atualizado ao conceito de cultura popular”. (ABIB, 2005, p.41)

O debate sobre “cultura e identidade cultural” ganhou tantas expressões, que acabou despertando certa consciência por parte do público. “A cultura passa a ser, a partir desse viés, um campo de significações e um terreno de luta, nos quais os processos de identificação se dão de acordo com as necessidades históricas dos sujeitos que compõem os grupos protagonistas desses projetos”. (ABIB, 2005, p.47)

Em alguns casos elas ressurgem de tal forma que os olhos brilham, o corpo ar-repia, sentindo a emoção de ter a reconstrução das nossas “raízes” que foram esquecidas nos nossos passados. Amoroso (2009), a partir de um entrelaça-mento teórico de Hall (2006) e Gilroy (2001), apresenta um conceito de estética da diáspora que se configura na tecitura das múltiplas encruzilhadas (influências de diversas culturas), misturas e hibridismos que constituiu a cultura brasileira. “A estética da diáspora está, desta forma, relacionada com as questões de iden-tidade, oralidade e musicalidade”. (AMOROSO, 2009, p. 72)

“O corpo negro retrata a possibilidade na qual através da dança e da estética mostra-se presente no mundo, representando a filosofia de uma civilização sus-tentada por fundamentos rituais e mitológicos de cunho religioso”. (OLIVEIRA, 2005, p. 63) Neste ínterim, a percepção corporal para a dança afro-brasileira deve estar articulada às razões históricas em que se fundam o ritmo e a musica-lidade em suas manifestações.

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Entende-se que a noção de corporeidade necessita “uma aceitação do seu cor-po, do corpo do outro e de suas raízes africanas para ser fiel ao que a dança-afro brasileira se propõe: provocar emoção e reconhecimento histórico”. (SILVEIRA;-SIVEIRA; PAZ, 2011, p. 9)

Para além de atender aos expostos legais, o processo de legitimação de uma ação perpassa por atitudes favoráveis ao desenvolvimento e criação de práticas que representem melhorias significativas no campo educacional. As proposições da valorização da cultura afro-brasileira remetem a uma história de resistência e sobrevivência de um povo que ajudou a construir a identidade brasileira ao longo de um tempo.

Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, forma-ções sociais defasadas se enfrentam e fundam para dar lugar a um povo novo [...]. Novo porque surge como uma etnia na-cional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. (RIBEIRO, 2006, p. 17)

Nesse contexto, o ensino da dança afro-brasileira nas escolas compreendida enquanto atos de currículo representa mais do que proporcionar aos estudantes acesso a um conhecimento negligenciado nas escolas tradicionais, representa possibilidade de oportunizar a tomada de consciência sobre os temas aborda-dos, corroborando com as ideias de Freire (2007, p. 19):

Seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar a responsabilidade ética no meu mover-me no mundo [...]. Isto não significa negar os condicio-nantes genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a história é tempo de possibili-dade e não de determinismo, que o futuro, [...] é problemático e não inexorável.

Ensino de dança na escola

Neste momento, começa a ser tratada a dança inserida no processo de ensino-aprendizagem na escola. Para isso, faz-se necessário pensá-la de forma que possa atrair e motivar a partir da proposta das atividades. Assim, Rangel (2002, p. 51) diz que “no que se refere a dança, [...] é possível encontrar esta atividade

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exercendo um papel educacional, de modo que sua prática visasse possibilitar uma diversidade de experiências de movimentos.” Assim, ela é tratada como um importante pré-requisito na formação educacional do homem, pela responsabili-dade que assume e contempla na execução de sua metodologia e extensão da sua prática.

A escola é um espaço no qual a sistematização de conceitos e opiniões con-duzem à construção social de cada elemento inserido nesse ambiente. Dessa forma, a educação, suposta por sentidos que embasam e traduzem os objetivos da dança, trata-se de:

Um fenômeno adquirido que norteia a vida do ser humano, refle-tindo o homem como ele é na sua essência e na sua existência, em relação consigo, com os outros e com a natureza. Ela é, por-tanto, pertinente ao homem e que por ele pode ser manuseada em virtude de suas necessidades. (RANGEL, 2002, p. 54)

O processo de ensino na escola pretende permitir a relação consigo mesmo (desejos e sentimentos), com o outro e com o mundo. Prioritariamente, não visa formar profissionais, mas pretende fornecer elementos que estimulem um co-nhecimento corporal, crítico e autônomo.

Concretizar a dança na escola não significa apenas proporcionar vivências que possibilitem, através dos movimentos, a expressão corporal. Esta tarefa com-preende a execução de princípios pedagógicos que se preocupam com o desen-volvimento dos níveis de aprendizagem, a seleção de atividades que estimulem o crescimento e a maturação dos alunos a partir de exercícios que tem seu grau de dificuldade aumentado de acordo com o rendimento do grupo.

O ensino de dança na escola deve proporcionar liberdade de expressão e es-timular a espontaneidade, não se limitando à técnica. É essencial que o aluno tenha a sensibilidade estimulada para que possa construir e expressar suas opi-niões, tornando-se, assim, crítico e participativo perante a sociedade.

O homem, a partir da exploração dos movimentos é considerado como um “sujei-to da educação evidenciada por uma tendência interacionista, já que a interação homem-mundo, sujeito-objeto é imprescindível para que o ser humano se desen-volva e se torne sujeito de suas práxis.” (NANNI, 1995 apud RANGEL, 2002, p. 6).

Nesse contexto, é profícua a inserção da temática dança no ambiente escolar. Opta-se pelos princípios educacionais de Paulo Freire. No campo das dimen-sões da dança na educação, as contribuições de Matos (2010, p.3) sinalizam que o professor deve:

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ter como princípio o entendimento da prática pedagógica como uma ação complexa, política e compartilhada, torna-se neces-sária a instauração de processos dialógicos, permeados pelas incertezas dos discentes e docentes. Por esse prisma, incentiva-se em sala de aula que o(a) aluno(a) realize uma leitura crítica sobre a dança, o contexto de sua atuação e comece a buscar em si mesmo(a), a partir de uma ação reflexiva, a construção de sua própria práxis.

Assim pensado, implica na possibilidade de transformação do sujeito à medida que novos padrões de percepção da realidade se instauraram e outras formas de dançar e compreender o ato de dançar se inseriram no contexto social. Seja atre-lado pelas tecnologias e as notações coreográficas de Spanghero (2011) seja pe-las atuais configurações de tempo e espaço de Aquino (2008). A dança moderna rompe com as danças pré-clássicas baseadas em padrão de movimentos rígidos e metrificadas no tempo e se configura como “uma nova concepção de espaço e tempo [...] A dança é retirada do espaço absoluto, pré-determinado e passa a en-gendrar seu próprio espaço de configuração”. (AQUINO, 2008, p. 25-26)

Nessa prerrogativa, ao assumir uma noção de corpo faz-se necessário a com-preensão das dimensões indissociáveis do corpo, num organismo que estabe-lece relação consigo e com o outro, contribuindo para a percepção de si e dos pares que nos cercam. Assim, “os fenômenos sociais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação com o ambiente que o rodeia”. (DAMÁSIO, 2001, p.17)

Greiner (2005, p. 66) acrescenta para esta lógica dialética o princípio de ação ao sinalizar que o corpo “vivo se constrói como uma espécie de modelo semântico e este modelo emerge sempre da ação. Ele não a precede. Os conceitos são gerados ou tornados conscientes pelo corpo vivo, no fluxo da vida cotidiana”.

A compreensão da dança afro-brasileira inserida numa rede de evidências de complexidade onde os processos artísticos que caracterizam a especificidade da dança corroboram para experiências de doação e entrega corporal pelo ritmo e musicalidade forte e expressiva que transcende e se insere no contexto social a ser percebido como aspecto constituinte de uma formação identitária.

Resultados e discussão

Os blocos afros, representados pelo Malê Debalê nas reflexões de Lobato (2009), exercem um papel social que permite considerá-los uma comunidade com características que Maffesoli (1998 apud LOBATO, 2009, p. 141) atribui de

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transcendência imanente, “aquilo que ao mesmo tempo ultrapassa os indivíduos e brota da continuidade do grupo”, emergindo um sentimento de pertencimento, vitalismo, identificação e solidariedade.

Considerando a Escola Municipal Malê DeBalê como um espaço de formação de cidadãos conscientes e críticos, o Projeto Político Pedagógico se trata do conjunto de mecanismos elaborados para alcançar seus objetivos. Ele organiza as atividades e projetos visando maior eficiência no processo de ensino e apren-dizagem e, para isso, expõe propostas de ação para execução nos períodos programados.

A concepção que orienta a escola está paltada na valorização de elementos da cultura afro-brasileira. “A proposta pedagógica da EMMD é voltada para introdu-ção de ritmos, símbolos e saberes elaborados e desenvolvidos nas quadras dos blocos afros.” (ESCOLA MUNICIPAL MALÊ DEBALÊ, 2012)

Tal afirmação corrobora com as prerrogativas trazidas por Nanni (2008, p. 70) sobre a temática

O planejamento curricular deverá se estruturar de forma contex-tualizada voltada para as características peculiares do ambiente escolar, engajando na realidade, nas necessidades básicas e interesses peculiares do grupo. Os questionamentos veicula-dos deverão conter valores filosóficos; socioculturais e estéticos aplicados a práxis educativa; a assimilação do caráter regional com inclusão dos elementos da cultura regional [...] Os meios auxiliares usados podem ser os mais variados possíveis onde a criatividade do professor será o fator de mais importância no processo.

Um aspecto peculiar a ser considerado recai sobre o fato de as aulas de dan-ça afro-brasileira serem realizadas no primeiro momento, em apenas um dia e, atualmente, são dois dias de aula. Para a professora, as motivações recaem sobre a aceitação e participação dos alunos nas atividades. “Essa necessidade veio a partir do retorno dos alunos: o interesse, a melhora na postura, na autoes-tima, na interação dos mesmos com a dança, na aceitação e afirmação da raça negra.” (Informação verbal da professora de dança da escola)

Estes aspectos são peculiares e inerentes à compreensão do significado da dan-ça afro-brasileira que,

com seu ritmo e musicalidade, não se pauta por técnicas me-tódicas de movimentos, pois respeita as vivências corporais de seus praticantes, caracterizando-se por ser uma dança enérgica e com um ritmo frenético, onde se faz necessário uma entrega

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corporal, a ponto de perceber a perfeita sincronia entre os movi-mentos e o ritmo empregado na sua execução. Seus movimen-tos estão centrados na cabeça, tronco, quadril e pés. Estes mo-vimentos vão se completando simultaneamente, sendo possível para quem observa esta dança, confundir o ritmo tocado com os corpos em movimento como se estes dois elementos distin-tos fossem apenas um na sua execução. (SILVEIRA; SILVEIRA; PAZ, 2011, p. 9)

“No processo de construção identitária, o reconhecimento da corporeidade ne-gra e sua valorização significam fator de consolidação de uma identidade negra”. (SILVEIRA; SILVEIRA; PAZ, 2011, p. 4)

O sujeito da pesquisa revela as intenções com as aulas para além da dança, mas sem perder de vista a especificidade da mesma. “A intenção é que as aulas de dança não sejam somente práticas, e sim, que haja uma interação daquilo que é ensinado em sala de aula” (Informação verbal da professora de dança da escola).

A dança afro-brasileira enquanto matriz artística da dança e da arte “está im-buída de um gestual e de um dinamismo próprios, cuja simbologia não pode ser dissociada de sua matriz cultural, em especial a africana, onde o dançar se traduz como poder de comunicação em sentidos mais profundos”. (OLIVEIRA, 2005, p. 62)

Percebe-se que na Escola Municipal Malê Debalê há uma preocupação em possibilitar aos alunos acesso ao conhecimento advindo da cultura afro-brasileira, em especial a história do bloco afro Malê Debalê, mantendo uma concepção cur-ricular que privilegia estas discussões, sendo um espaço profícuo para valoriza-ção das práticas corporais de matriz africana, neste caso, a dança afro-brasileira.

Considerações finais

No Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal Malê Debalê há uma preocupação que se materializa de aplicação do processo de ensino-aprendizagem da história e cultura africana numa experiência vivida, valendo-se da dança afro-brasileira como importante e principal estratégia didático-pedagó-gica para tratar sobre este conhecimento, partindo desde um viés físico-biológico do corpo até um viés sócio-histórico-cultural.

Tratar de dança é também refletir acerca do corpo e sobre as mudanças que so-bre ele operam as diferentes culturas, uma vez que o corpo é um dos elementos

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fundamentais que compõem o sistema dança, garantindo tanto a especificidade dos processos em dança quanto localizando suas discussões nas esferas sócio-político-culturais.

Estudos mais aprofundados se fazem necessários para melhor se apropriar da temática e outros aspectos não tratados neste texto, como as percepções dos envolvidos ao longo do período escolar sobre as aulas de dança e as inter-re-lações das experiências e vivências com a formação identitária dos envolvidos, por exemplo.

ReferênciasABIB, P. R. J. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda.Campinas, SP: UNICAMP/CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. 244p

AMOROSO, D. M. Levanta mulher e corre a roda: dança, estética e diversidade no samba de roda de São Félix e Cachoeira. Salvador: UFBA, 2009. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, 2009.

ATAÍDE, Y. D. B; MORAIS, E. S. A (Re)Construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural. Revista da Faeeba – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 19, p. 81-98, jan./jun., 2003.

AQUINO, D. A dança como tessitura do espaço. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Salvador, Ano VI, número especial, p. 17 - 28, 2008.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70 - Brasil, 2011.

BRASIL. Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, nº 248, dez. 1996. P. 27.833-27.841.

BRASIL. Lei nº 10639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

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Tanatológica na dança: reflexão sobre regeneração, degeneração e biopoder

Ana Carolina Frinhani (UFBA1)

Resumo

Tomando como referência o texto “Tanatopolítica (O ciclo de Ghenos)” do livro Bios: biopolítica e filosofia, no qual Roberto Espósito (2010) discorre sobre a bio-política nazi préviamente interpretada por Michael Foucalt, reflete-se nesse arti-go sobre uma possível tanatológica seguida pela dança em algumas instâncias. O que se propõe aqui é construir um diálogo entre regeneração, degeneração e biopoder na dança e ainda pensá-la como uma estrutura mutável que se movi-menta dentro de uma conjuntura específica, podendo passar por estados tanto de exceção quanto de norma, desconstruindo-se e reconstruindo-se das mais diversas maneiras possíveis.

Palavras-chave: Tanatopolítica. Degeneração. Regeneração. Dança.

ABSTRACT

Taking as a reference the text “Tanatopolítica (O ciclo de Ghenos)” of the book Bios: biopolítica e filosofia, which Roberto Espósito (2010) talks about the nazis biopolitic that was previously analysed by Michael Foucault, this article brings a reflection about the thanatological in the dance in some instances. What is proposed here is to construct a dialog between regeneration, degeneration and biopower in the dance and think about it as a mutable structure that moves inside a specific conjuncture, being able to pass both the states of exception as the norm, deconstructing and reconstructing itself in various possible ways.

Keywords: Tanatopolítica. Degeneration. Regeneration. Dance.

1 Introdução

Este artigo pretende refletir sobre uma possível tanatológica que parece operar em algumas instâncias da dança. Para isso, fez-se necessário um esmiuçado estudo do texto “Tanatopolítica (O ciclo de Ghenos)” do livro Bios: biopolítica e filosofia, no qual Roberto Espósito (2010) traz à luz a política nazi como um exemplo de cumprimento de uma tanapolítica, onde a morte acontece em um 1 Aluna do mestrado do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gradua-

da em Licenciatura e Bacharelado em Dança também pela UFBA.

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suposto favor à vida, mediada pela eugenética numa cadeia lógica e semântica que liga degeneração, regeneração e genocídio.

O autor explica, no decorrer de seu texto, que o regenerado é aquele que corres-ponde às características de vida válida em um determinado espaço (os alemães) e o degenerado, por outro lado, é considerado um anormal, aquele que foge às regras e que ameaça a sobrevivência do regenerado, pois é considerado princí-pio de contaminação tanto vertical – hereditária – quanto horizontal – contagiosa – (os judeus) e, nesse caso, deve ser aplicado ao degenerado, um procedimento artificial, a eugenética, que atua na vida de um modo técnico, modificando o seu desenvolvimento espontâneo a fim de querer corrigir os procedimentos que in-fluenciam negativamente o curso da natureza. E ainda, o genocídio que elimina qualquer forma de vida não detentora do direito a ela.

A dança na contemporaneidade parece estar compartimentalizada, separada por modalidades, estilos, técnicas ou qualquer outro nome que se queira dar a essas danças, escrita no plural justamente porque parece haver um preconceito que as encaixota separadamente e legitima cada qual em um determinado es-paço de atuação. A dança que se faz na universidade é diferente da dança que é praticada nas escolas técnicas que, por sua vez, pode não se enquadrar como uma dança apta a participar de editais de fomento à cultura e que, certamente, não se aproxima da dança elaborada nas academias de ginástica, que tem o intuito apenas de entreter e exercitar o corpo.

Mas afinal, quem legitima o que pode ou não atuar dentro desses espaços da dança? Será mesmo possível falar sobre a dança por um veio tanatológico? Será realmente necessário o detrimento de uma dança em favor da sobrevivên-cia de outra?

Tentar-se-á discutir no decorrer deste artigo essas perguntas ainda tão embrio-nárias no tocante a uma reflexão mais profunda do estado da dança na contem-poraneidade. Porém, é possível adiantar que são as perguntas que movem o mundo e que, certamente, você, leitor, não encontrará respostas definitivas aqui.

2 Tanatopolítica

Em seu texto “Tanatopolítica (O ciclo de Ghenos)” do livro Bios: biopolítica e fi-losofia, Roberto Espósito2 (2010, p. 159) faz uma análise sobre uma biopolítica

2 É um dos pensadores mais prolíficos e importantes da teoria política italiana contemporânea. Seu primei-ro livro a ser traduzido para o Inglês baseava-se em duas décadas de pensamento altamente reconhecido.

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que segue uma tanatológica onde a morte acontece em um suposto favor à vida, mediada pela eugenética numa cadeia lógica e semântica que liga degeneração, regeneração e genocídio.

Na primeira parte desse capítulo, Espósito (2010, P.159) analisa a biopolítica nazi interpretada pela primeira vez por Michael Foucault,3 que enfatizou o seu re-ducionismo ao princípio de que a vida só é capaz de se defender e desenvolver através de um “alargamento progressivo do círculo da morte” (ESPÓSITO, 2010, p.159). Deste modo, os paradigmas da soberania da biopolítica experimentam uma indistinção entre essas condições – vida e morte – de maneira reversa e complementar, sendo o meio deste processo identificado por Foucault como ra-cismo que, por sua vez, sendo instaurado nas práticas de biopoder, assume a função de decidir quem deve morrer ou viver, estabelecendo, ainda, uma relação direta entre essas duas condições, onde os segundos devem morrer em prol da sobrevivência facilitada dos primeiros.

Segundo Espósito (2010, p. 160), Foucault, em sua interpretação, tenta esta-belecer uma descontinuidade entre as linguagens conceituais do nazismo e do modernismo propondo que sejam duas filosofias diferentes, mas ao invés disso, ele as aproxima. Complementa dizendo ainda que o nazismo não é, e nem pode ser, uma realização filosófica porque é uma realização biológica que nasceu da decomposição da modernidade.

Nesse sentido, o autor observa que a política nazi agia de acordo com uma ciên-cia identificada com a biologia que compara raças humanas e animais, e ainda diz que o termo apropriado para o massacre nazi, ao invés de “holocausto”, deveria ser “extermínio” (ESPÓSITO, 2010, p.168), exatamente como é usado o termo. O extermínio de ratos, piolhos, bactérias, micróbios, parasitas, vírus e muitas outras pragas às quais equivaliam e denominavam os judeus.

O que se queria necessariamente era evitar a qualquer custo o contágio de se-res superiores – os alemães – por seres inferiores – os judeus. E não havendo a possibilidade de desinfetá-los, visto que eles eram mais do que animais – pois o próprio Hitler era defensor dos animais –, eram a morte em pessoa, a solução foi isolá-los em um campo de concentração contaminado, o que obviamente os fez realmente doentes e por fim, “os médicos tinham toda razão em exterminá-los” (ESPÓSITO, 2010, p.169), mantendo assim uma ética médica “pervertida no seu contrário”. (ESPÓSITO, 2010, p. 166) De acordo com o autor, a biopolítica nazi não era uma biopolítica, e sim uma zoopolítica (ESPÓSITO, 2010, p.168), 3 Pensador e epistemólogo francês contemporâneo, sua obra contribuiu para o movimento antipsiquiátrico

e antipedagógico.

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onde o poder médico entrelaçado ao poder político-jurídico, seguindo uma lógica eugenética de cura através da morte, justificava o genocídio.

Espósito (2010, p. 182) explica a eugenética como sendo um procedimento que atua na vida de um modo técnico a fim de modificar o seu desenvolvimento espontâneo. A eugenética declara querer corrigir os procedimentos que influen-ciam negativamente o curso da natureza. Nesse sentido, sua aplicação consiste na regeneração de uma legitimada parte modelo de uma população com relação aos degenerados, seja via eliminação, seja via manipulação genética.

Segundo o autor, a degeneração acabou por assumir um caráter negativo, carre-gado da ideia de anormalidade. O homem que vai além do humano e assume um estado de não presença, o “não-homem no homem e, assim, o homem-besta”. (ESPÓSITO, 2010, p. 172) A degeneração é uma espécie de doença que segue uma linha vertical ou hereditária que é conjuntamente horizontal ou contagiosa que ameaça a vida dos regenerados. Mais à frente, o autor traz à luz outras interpretações sobre a degeneração não mais como a sobra negativa de um processo, mas como outra forma de ser que deriva dele, uma possibilidade de evolução, pensando-a como uma manifestação útil e não danosa à adaptação do corpo humano nas condições de vida mais variadas.

3 A tanatológica na dança

Refletindo sobre essa tanatológica da política nazi, interpretada por Espósito (2010), seria possível pensar uma biopolítica da dança, onde uma é suprimida em prol da legitimação de outra? Num espaço específico, onde determinada dança acontece, quem é o responsável por legitimá-la enquanto detentora de vida válida num ambiente que ela habita num dado momento?

Essas perguntas sugerem uma reflexão sobre o estado contemporâneo da dan-ça, ela parece estar compartimentalizada, separada dentro de caixinhas de for-mas e cores diferentes e distribuídas em diferentes espaços. Nesse sentido, se-ria mais adequado o uso do termo “danças para falar de dança”4. E que danças seriam essas?

Discorrer-se-á aqui as seguintes danças que, em uma tácita observação, pare-cem devir tanatologicamente. Na universidade, por exemplo, parece legítima a

4 Faz-se uma reflexão sobre o estado da arte na contemporaneidade e pensa-se que a dança está compar-timentalizada e por isso trata-se dela por danças, exatamente por se tratarem de modalidades diferentes que atuam em espaços deferentes.

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dança que pensa, que mescla teoria e prática e que propõe formas outras que fogem das preestablecidas por modalidades de danças de caráter, que, por sua vez, são legítimas nas grandes academias de balé clássico e escolas técnicas de dança que ensinam diferentes modalidades como o jazz, o sapateado, o fla-menco, a dança de salão etc. Por outro lado, os editais de fomento à cultura vêm exigindo que a dança que se apresente nesse espaço seja social e de fácil mo-bilidade, que transite na maior quantidade possível de endereços, mantendo um melhor custo benefício. Ainda podemos identificar uma dança feita apenas para entreter ou com fins de exercício físico em academias de ginástica, são essas que vêm junto com as músicas da moda, tendo um cunho gestual e seguindo, através do movimento do corpo, as letras das músicas.

Se pensarmos a dança por esse veio de encaixotamento, nos aproximamos do conceito de regeneração/degeneração que Espósito (2010) traz em seu tex-to. Uma vez que uma dança específica é legitimada dentro de um espaço de atuação, ela seria a norma ou a dança regenerada, enquanto que todas as outras seriam periféricas, danças degeneradas ou anormais.

Continuando esse pensamento, o que aconteceria se uma dessas danças des-critas acima – que serão chamadas aqui de: dança universidade; dança técnica; dança edital; dança academia – tentasse adentrar no espaço de atuação de outra? Imagine um professor de dança universidade, tendo como foco principal a dilatação do tempo e o pensar no corpo, tentando dar aula de dança academia com a música da última moda. Seria no mínimo estranho! E se dentro da univer-sidade fosse produzida uma obra de jazz sem outro intuito além de executar os movimentos característicos dessa dança e seguir a música, como seria a reação dos estudiosos da dança universidade? Provavelmente Estranhariam! Ou ainda, um balé clássico de repertório preparado para ser apresentado no maior teatro da cidade em que é produzido, que além de utilizar cenários ainda reúne um elenco numeroso. Será que estaria dentro do perfil da dança edital? Talvez com o nome de um artista de destaque na mídia televisiva envolvido, mas, certamen-te, se um dançarino com competência de sobra, mas com um currículo um tanto modesto, inscrevesse uma obra desse tipo em um edital de fomento à cultura, muito provavelmente, ele não seria aprovado. Seria estranho!

É justamente nesse estranhamento causado pelo que é diferente ao que se cos-tumou ver que podemos identificar o degenerado, entendendo que, na dança, o degenerado de um espaço pode ser o regenerado de outro e que quando esse degenerado (anormal) adentra um espaço de um regenerado (normal) algo pode vir a se modificar mesmo que, a priori, cause repulsa. Tudo vai depender

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daqueles que possuem o poder de determinar a vida válida nesse espaço, seja o público, seja o bailarino, o diretor, o estado, o financiador etc., que podem aplicar uma espécie de genocídio da dança anormal antes dela germinar.

O lugar de reflexão que se quer chegar aqui está justamente nesse diálogo entre regeneração/degeneração e biopoder na dança. Se olharmos um pouco mais de perto para essas duas características do degenerado, exemplificadas por Espó-sito (2010.p. 177) e discorridas no final do primeiro tópico deste artigo, podemos perceber que ambas implicam mudanças e, a dúvida que se imprime aqui, é a de que até que ponto essas mudanças se constroem de maneira respeitosa. Será mesmo necessária a negação de uma dança para a legitimação de outra?

Antes de concluir essas reflexões construídas nesta escrita, é importante esclare-cer que está sendo apropriada aqui, para falar de dança, a tanapolítica de Espósito (2010), porque acredita-se que também, em algumas instâncias, a dança segue uma tanatológica. Porém, não podemos aplicar esse conceito de maneira generali-zada e nem equiparar ipsis litteris5 o que acontece na dança ao que foi o holocausto.

4 A dança: estado de exceção ou de norma

Com Espósito (2010), pudemos refletir sobre a dança degenerada e regenerada numa relação de biopoder, entretanto sentiu-se necessário a aproximação de um conceito que fundamentasse esse movimento que, proposto aqui, acontece para que haja mudanças nos espaços de atuação da dança.

O filósofo italiano Giorgio Agamben6 (2004, p. 18) fala sobre um “estado de ex-ceção” que, para ele, seria a forma pela qual o estado se utiliza de dispositivos legais a fim de suprimir os limites de sua atuação, não mais de forma excepcio-nal, mas tornando-se padrão, legalizando o que não deveria ser legal.

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guer-ra civil mundial’, o estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transfor mar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional

5 É uma expressão de origem latina que significa “pelas mesmas letras”, “literalmente” ou “nas mesmas palavras”. Utiliza-se para indicar que um texto foi transcrito fielmente. No caso desta escrita essa pala-vra foi utilizada para explicar que o que acontece na dança não é exatamente a mesma coisa que aconte-ceu no Holocausto.

6 É professor de Filosofia Teorética na Faculdade de Artes e Designer do Instituto Universitário de Arqui-tetura de Veneza, publicou uma extensa e importante obra traduzida em diversas partes do mundo.

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entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indetermi-nação entre democracia e absolutismo. (AGAMBEM, 2004, p. 18).

Nesse sentido, pode-se perceber exemplos de como esses estados de exceção tornam-se regra. No Brasil, por exemplo, o que não deveria ser a norma o é: encontrarmos pessoas morando nas ruas, animais abandonados e sofrermos assaltos. Entretanto, poderiam os mendigos serem reiterados à sociedade, os animais recolhidos e os assaltantes presos, dessa forma, a norma seria outra.

O maior interesse aqui não está exatamente em toda a reflexão que Agamben (2004, p. 18) faz acerca do estado de exceção, mas está, especificamente, no entendimento de “estado”7 como algo que não é fixo ou engessado, mas que pode se movimentar ou multar-se. Pois o estado de exceção só se torna a norma porque também a norma é um estado; O estado de norma.8

Contudo, quando uma dança adentra um espaço de atuação de outra e, por imposição dos que detêm o poder de atuação nesse espaço, é legitimada como identidade dele, pode-se dizer que ela está em estado de norma dentro de uma conjuntura específica, mas que, por se tratar de um estado, ela pode dar lugar ou transformar-se em outra dança.

Segundo Mark Franko9 (2006, p.02), em seu texto Dance and the Political: States of Exception, esse movimento acontece numa relação de poder entre as enti-dades interessadas, ele cita a dança de Martha Graham10 – que em dado mo-mento da história tornou-se símbolo da cultura estadunidense – como exemplo de como uma dança pode agenciar poder e corroborar na construção de uma suposta identidade cultural, e por outro lado, como os interessados em dar uma identidade específica a um país, podem legitimar uma dança como a represen-tação de toda uma cultura da dança dentro dele.

A partir desse exemplo pode-se propor aqui, que exista uma tanapolítica na dan-ça, visto que apesar de estarem acontecendo diversas manifestações de dança

7 Equiparado a “estar” e opondo-se a “ser”.8 Termo criado nesta escrita para explicar que a norma também é um estado móvel quando relacionado ao

estado de exceção. 9 Antes de ingressar à Universidade de Temple, Mark Franko foi professor de Dança e Diretor do Centro

Interdisciplinar de Estudos Visuais e Performance da Universidade da Califórnia, Santa Cruz. Ele é professor de Dança e Performance na Universiteit Berlim, e professor visitante na DOCH (Dans och Cirkushögskolan, da Universidade de Estocolmo), e nos departamentos de dança de Université de Paris (Vincennes), Université de Nice (Sophia -Antipolis), Escola Columbia University of the Arts, Bard College, Desempenho Estudos NYU, e no departamento de literatura francesa na Universidade de Prin-ceton, Universidade da Columbia, Universidade da Purdue e Université Paul Valéry (Montpellier 3). Além disso, é professor de Estudos Visuais e Performance na Middlesex University (Londres).

10 Foi uma dançarina e coreógrafa estadunidense que contribuiu com a história da Dança Moderna.

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nesse mesmo período, foi a dança de Marta Graham, a eleita para se tornar o símbolo de toda uma cultura da dança dentro de um país, tornando invisíveis todas as outras. Invisíveis mas existentes e bem vivas, e por isso ameaçadoras no sentido de que poderiam essas outras danças entrarem, em algum momento, em estado de norma. Faz-se, portanto, importante perceber que as coisas não são puras – no sentido de serem unificadas –, mas construídas como num Play-mobil,11 peça por peça até chegar a uma forma final que, por sua vez, também é móvel, pois pode ser desmontada e remontada inúmeras vezes.

Sobre esse assunto, Stuart Hall12 (2005, p.38) acredita que a identidade não é adquirida de forma inata, mas sim, formada ao longo do tempo através de pro-cessos inconscientes. Ela permanece inacabada, sempre “em processo”, sem-pre “em formação” e, segundo o autor, por esse motivo, deveria ser chamada de identificação (HALL, 2005) ao invés de identidade, como se costumou nomear esse processo continuum de formação cultural.

Hall (2005, p. 62), em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, ainda fala sobre o que seria uma identidade nacional e propõe que ela seja descons-truída enquanto uma “identidade que anula e subordina a diferença cultural” para dar lugar a “diferença como unidade ou identidade” de uma nação. Para o autor, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais”.

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deve-ríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes for-mas de poder cultural. (HALL, 2005, p. 62)

Dessa forma, seria um equivocado dizer que carioca é samba, baiano é afro e capixaba é congo. Visto que todas essas danças nascem do cruzamento das mais variadas manifestações culturais e ainda, “nem toda brasileira é bunda!”, – existem cariocas magras, que não sabem sambar e que comem sushi todos os dias – por menos visibilidade que se tenha, existe uma série de outros aconteci-mentos e formas nesses espaços. E é justamente nessa invisibilidade que está a parte sem a qual o todo não existiria.

11 Playmobil é uma linha de brinquedos criada por Hans Beck (1929 - 2009) em 1974 e vendida mundial-mente a partir de 1975. A linha consiste em pequenos bonecos com partes móveis e uma série de objetos, veículos, animais e outros elementos com os quais esses bonecos irão se integrar compondo uma série de cenários, sempre dentro de uma temática específica.

12 É professor da Open Univerty, Inglaterra. Foi um dos fundadores do importante Centre for Contempo-rary Cultural Studies, da Universidade de Birminghan, Inglaterra, tendo sido seu diretor de 1970-79. É uma das figuras mais importantes da área de estudos sociais.

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É nessa invisibilidade que estão os “degenerados”, que por sua vez, detém a força vital dos mais poderosos vírus, bactérias, micróbios, parasitas e pragas, de abrir, mesmo que lentamente, fendas nas crostas dos centros e adentrá-los, provocando mudanças também móveis em um fluxo que não cessa, a não ser que haja antes um extermínio em massa nessa relação de biopoder.

Nesse contexto nasce a importância de não se olhar fixamente para um único lado da história (ADICHIE, 2009), mas saber que existe um sítio de histórias que se entrelaçam, cruzam e se encontram dentro de um espaço/temporal conti-nuum que não se cansa de recontar a partir dos mais diversos pontos de vista.

Assim, é o diferente que fermenta modificações. É o que navega contra a maré que vai tecer a atualidade. Inclusive porque o neutro é uma ilusão, os fantasmas sempre insistirão em levar para a horizontalidade o que tenta permanecer na vertical. Então por que não explorar essa horizontalidade característica da morte que é inerente à vida?

Uma dança aberta para uma política de chão é uma dança aber-ta para aceitar experimentar com efeitos cinéticos das matérias fantasmas que interrompem a ilusão de uma dupla neutralidade, a do espaço e a do nosso movimento nele. [...] Abraçar a hori-zontal só por um momento, ou por longos dias, ou para o resto da vida, para ver o que se ganha quando se perde verticalidade e o que se ganha quando se ganha horizontalidade. Em vez de caminhar no chão aplainado pelas violências idiotas, fazer para si mesmo - com seu corpo e se movendo no plano que agencia o desejo - seu chão. (LEPECKI, 2010, p.18)

A dança não nasce e nem morre puro sangue,13 ela é continuamente modifi-cada e reconstruída das mais diversas formas possíveis. Todas as danças são híbridos culturais,14 bem como todas as nações modernas.15 Recebem outros nomes, outros ritmos e acontecem em outros espaços, mas no fim, é sempre da dança que falamos, fazendo cair por terra essa tanatológica que elege vampi-ros – analogia do Conde Drácula feita por Espósito (2010, p. 81) para explicar o modo como os nazis viam os judeus – às danças, que repelidas pela vida e pela morte, anormais/degeneradas, antes não pertenciam a lugar nenhum e agora podem ser vistas como partes necessárias às mutações e reorganizações que constituem o todo.

13 Termo utilizado para identificar animais sem inclusão de nenhum material genético de outro animal similar. Ou seja, é um animal de raça ou família e/ou gênero, e/ou espécie específico. Puro-sangue são aqueles que provêm de cruzamento de uma mesma espécie, com características anatômicas e fisioló-gicas exclusivas. Nesta escrita estamos utilizando esse termo para falar que a dança não é pura, ela é sempre uma mescla de diversos elementos que a constituem.

14 Ver em página 8 deste artigo.15 Ver em página 8 deste artigo.

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E é, justamente, nessa mutação de estado, ou nesse olhar que enxerga as várias partes que constituem um todo, onde se pode revelar novas produções artísticas e modos de se fazer dança, epistemologias da dança e discursos que poderiam ser suprimidos antes mesmo de serem notabilizados.

A biopolítica nazi é apresentada por Espósito (2010, p.159) como sendo uma po-lítica de vida onde a morte dos segundos acontece em favor da facilitação da vida dos primeiros. Talvez isso aconteça também na dança e cabe a nós perceber-mos que as danças podem coexistir no mesmo espaço, multando-se, fundindo-se, complementando-se, dialogando umas com as outras, praticando uma biopolítica diferente, não preconceituosa, onde o que prevaleça seja diálogo benéfico e res-peitoso entre as diversas danças, pois, afinal, todas as danças são também dança!

Para finalizar, traz-se aqui uma citação de André Lepecki16 (2010, p. 20) que, em seu último plano de composição, parece sintetizar o que se propõe nesse artigo, para refletir sobre a dança como arte possível de dialogar com ela própria e com qualquer outra área do conhecimento de maneira benéfica e proveitosa, sem receitas prévias, nem estados engessados com o objetivo apenas de fazer-se dança das mais diver-sas formas possíveis. E que essa dança seja vista e sentida sem preconceitos.

Com a exposição desses planos, de modo algum se pretende advogar um modo privilegiado ou único ou hegemônico de fazer dança, nem um modo único ou privilegiado ou hegemônico de pensar dança. Dança é aquilo que ela quiser fazer. E o pensa-mento sobre dança deve com ela se fazer, que ambos se façam sempre num plano de consistência mútuo - para evitar as idio-tias. Eu quis apenas apresentar esses planos para esclarecer eventuais mal-entendidos que ameaçavam, e ainda ameaçam, a recepção e por vezes mesmo a circulação, o apoio e a produção de algumas propostas de dança contemporânea que escapam a ontologizações estetizantes, expectativas teórico-críticas acade-micistas e hábitos de composição e de dançar que impedem que os fazeres se façam. Cada um que pense e que faça a dança que queira ser feita. Ou desfeita. (LEPECKI, 2010, p. 20)

4 Considerações finais

A partir dos estudos realizados para o desenvolvimento deste artigo, pude-mos refletir sobre o estado da dança na contemporaneidade dentro de uma 16 Professor associado no Departamento de Estudos da Performance na Universidade de Nova York desde

2000. Doutorado pela NYU. Curador, crítico e dramaturgista. Autor de Exhausting Dance (2006), or-ganizador das antologias Of the Presence of the Body (2004), The Senses in Performance (Com Sally Banes, 2007) e Planes of Composition (com Jenn Joy, 2010). Curador do Festival Nomadic New York (2007) e diretor/curador do Festival In Transit (2008 e 2009) de Berlim.

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perspectiva tanatológica que relaciona o entendimento de regenerado, degene-rado, eugenética e genocídio.

Além disso, foi proposto que acontece um movimento na dança, que vê o dege-nerado, não mais uma ameaça mortífera, mas como algo que vem para transfor-mar o que é considerado normal, sem limitar nenhum desses modos de existir. Na verdade, o que se propõe é que não haja essa separação degenerado/rege-nerado, mas que o diferente, o comum e o novo convivam sem julgamentos de valores.

Nesse sentido, pôde-se sugerir que determinadas danças encontram-se encai-xotadas em diferentes espaços de atuação, separadas de acordo com a prefe-rência dos que detêm o poder de legitimar o que pode ou não pertencer àquele espaço específico. Porém, o que se propõe nesse artigo, é que se construa um outro modus operandi,17 onde as danças possam ser referenciadas também no singular e não apenas plural. Que os estados na dança – estados de exceção e de norma – sejam sempre móveis ou que apenas não existam, e que o precon-ceito seja finalmente extinto. Pois nenhuma dança é só ela. Em si, qualquer dan-ça é uma grande mescla de tantas outras danças que, por vezes, nem podemos imaginar de onde vem.

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MIRZOEFF, Nicolas. Introduction in Bodyscape , London: Routledge, 1995.17 É uma expressão em latim que significa “modo de operação”. Utilizada para designar uma maneira de

agir, operar ou executar uma atividade seguindo sempre os mesmos procedimentos. Esses procedimen-tos são como se fossem códigos.

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Estéticas do acontecimento: corpo, intersemiose e risco como agente compositivo

Anderson Marcos da Silva (UFBA)1

Resumo

Neste artigo, pretende-se desenvolver relações entre conceitos da termodinâmi-ca de não equilíbrio e processos de criação em dança. A partir da fundamenta-ção na irreversibilidade do tempo e com a compreensão de que a instabilidade impulsiona a evolução dos sistemas, a dança pode ser pensada como emergên-cia em um espaço-tempo de sucessivas (inter)semioses, visto que sua constitui-ção seria resultante de acordos provisórios entre corpo e ambiente em busca de metaestabilidades. Quando não há a pretensão da previsão ou da repetição nos processos criativos e as escolhas estéticas e políticas se dão de forma contex-tual, o caráter autorreferencial do signo estético é potencializado, de modo que a obra se torna, explicitamente, signo de si e fenômeno. Tais referenciais permitem concluir que, nas configurações em que as coerências são criadas em tempo real, o risco pode se tornar agente compositivo. Nesses casos, a dança parece se afastar dos códigos e dos modelos preestabelecidos e poderia se configurar como um acontecimento, já que a experiência estética é construída por tensões, negociações e contaminações temporárias entre os diferentes sistemas de sig-nos que a constituem.

Palavras-chave: Dança. Estética. Intersemiose. Risco.

Abstract

In this paper, we intend to develop relations between concepts of thermodynamics of nonequilibrium and processes to creating dance. From the reasoning in the irreversibility of time and with the understanding that the instability drives the evolution of systems, the dance can be thought of as an emergency in a spacetime of successive semiosis, since its constitution was the result of interim agreements between body and environment for create metaestabilidades. When there is no pretense of prediction or repetition in the creative process and the aesthetic and political choices occur in a contextual way, the self-referential character of aesthetic sign is enhanced, so that the work of art is explicitly be a sign of self and a phenome. Such references can be concluded that, in settings where the coherences are created in real time, the risk can become compositional agent. In these cases, the dance seems to depart from the codes and pre - established models and could be configured as a event, as the aesthetic experience is 1 Bacharel em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestrando no Programa de

Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia, onde é membro do Grupo de Pesquisa Laboratório Coadaptativo. Bolsista Capes.

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constructed by tensions, negotiations and temporary contaminations between different sign systems that constitute it.

Key-words: Dance. Aesthetics. Semiosis. Risk.

Devir-dança. Em meio à heterogeneidade do universo, diante das tensões e dos acordos que se estabelecem nos fluxos de informação, a dança é uma possibili-dade. Nesta investigação, em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia, em nível de Mestrado, pretende-se construir uma compreensão acerca dos processos de composição em dança em que a estrutura da obra não precede o momento de apresentação. Obra-proces-so, acontecimento de dança. Este interesse é decorrente do entendimento de que, quando não há o objetivo da previsibilidade ou da repetição, cada obra pode estabelecer suas coerências internas enquanto se faz. A instabilidade e a tran-sitoriedade, características constitutivas da realidade, se transformariam, então, em agentes de composição nos processos criativos, explicitando sua inscrição em uma temporalidade unidirecional, irreversível.

Foram elencadas neste trabalho os conceitos centrais e algumas de suas arti-culações possíveis, de modo que sejam criadas as condições de existência da referida investigação. De maneira análoga às configurações que são o objeto deste estudo, é sabido que outras coerências serão estabelecidas no decorrer do processo, de modo que esta proposta possa alcançar níveis crescentes de complexidade e criar outras estratégias para permanecer diante das instabilida-des – corporais, epistemológicas, estéticas, políticas etc. – que atravessam o fazer acadêmico. Não há modelo a ser seguido e existe a compreensão de que os resultados serão sempre provisórios.

Podemos dizer que a dança se faz das relações de corpos, espaços, tempos, mas, enquanto existente, não corresponde à soma simples das partes que a compõe. A dança se faz entre. São as propriedades partilhadas que emergem nas atividades auto-organizativas de um sistema que o definem como tal, criam sua particularidade, características que desapareceriam se este fosse reduzido às suas partes. Cada dança se organiza a partir de relações singulares, locali-zadas. Esta ação organizativa consolida possíveis articulações entre as informa-ções que compõem um sistema e coordena suas relações com o ambiente, de modo que sejam criadas coerências, resoluções temporárias para a permanên-cia. A dança se faz entre.

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A complexidade também é fruto das propriedades emergentes. Conforme aponta Bittencourt (2001), a evolução se processa em ganhos de complexidade decor-rentes de estratégias adaptativas singulares, o que permite a expansão do reper-tório de informações e o aumento da sensibilidade e da seletividade para futuras trocas. Os processos evolutivos se desenvolvem a partir de diversas tensões en-tre as necessidades que precisam ser satisfeitas para a permanência e o acaso.

Uma compreensão sistêmica da realidade permite evidenciar na dança as impli-cações estéticas, políticas e epistemológicas que se constituem em seu fazer, pois, enquanto sistema de signos, pode ser pensada como interlocutora nos pro-cessos de comunicação que criam sentidos e significados acerca dos diversos campos de conhecimento que a atravessam.Neste contexto, a discussão dos processos criativos contemporâneos que se pretende desenvolver vai ao encon-tro da abordagem proposta por Vieira (2000), que defende que um conceito de sistema em sua fundamentação ontológica seria pertinente para construir uma compreensão acerca da alta complexidade dos sistemas culturais. Desse modo, a dança pode ser pensada como materialização de uma de suas possibilidades de vir-a-ser, fruto dos trânsitos sígnicos entre corpo e ambiente e das metaesta-bilidades temporárias decorrentes.

Pensar a dança como sistema vai de encontro às ideias de corpo genérico e de ambiente ideal, pois, são as singularidades e as instabilidades que impul-sionam as trocas de energia, matéria e informação entre diferentes sistemas, coadaptações que se configuram como estratégias para a construção de me-taestabilidades, o que permite a permanência no tempo. É a heterogeneidade compartilhada que impulsiona a evolução. A organização, último dos parâmetros evolutivos numa escala de complexidade crescente, seria decorrente, portanto, de uma composição sistêmica em que subsistemas têm funções e conexões com graus variados de importância, gerando uma totalidade irredutível. Ainda segundo Vieira, é pertinente esclarecer que, embora associada comumente à entropia ou ao caos, a complexidadeestá presente desde as condições primárias de um sistema até a sua organização, e pode se manifestar através do caótico, do organizado, do estético etc.

Como aponta Prigogine (2011), para os sistemas em equilíbrio ou perto do equi-líbrio, as leis da natureza são universais. Nesses casos, as instabilidades não modificam efetivamente a estrutura e a organização dos sistemas que, para a manutenção de suas existências, logo reestabelecem seu comportamento pa-drão. Longe do equilíbrio, entretanto, a matéria adquire outras propriedades e as instabilidades se tornam essenciais na definição de suas leis específicas. A cada

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instabilidade – ou flutuação – são criadas outras possibilidades de existência, emergem pontos de bifurcação que conduzem às adaptações. A vida é fruto de reações físicas e químicas que se processam longe do equilíbrio, fato que revela a sua inserção em uma temporalidade irreversível.

Não há corpos universais e nem ambientes em que a dança não esteja sujeita ao acaso, desse modo, cada obra se faz a partir de negociações particulares e pode ser desenvolvida a partir de tentativas de aproximação dos modelos predefinidos ou não. No caso das configurações em que não há acordos prévios, as estrutu-ras dissipativas, organizações espaço-temporais que aumentam a produção de entropia e que passam a compor os sistemas a partir de uma distância crítica do equilíbrio, podem ser relacionadas à auto-organização, pois, embora seja possí-vel conhecer o estado inicial da configuração, somente durante o seu processo evolutivo as possibilidades de existência serão delineadas, o que lhe confere o caráter de imprevisível, obra-processo.

A irreversibilidade do tempo, portanto, ratifica que as atividades criativas hu-manas não são estranhas à natureza, mas sim procedimentos de ampliação e intensificação de traços já presentes no mundo físico (PRIGOGINE, 2011). A dança, como expõe Bittencourt (2012), é fruto de regularidades e dissipações e, desse modo, não pode ser repetida com perfeição, somente reorganizada. Não há equivalência entre passado e futuro, de modo que cada movimento decorre de incessantes negociações e está sujeito ao acaso. A partir de imagens, mapas neuronais organizados com os estímulos do sistema sensório-motor, são (re)criadas experiências (e conhecimento) que caracterizam cada dança, resultan-tes temporárias das interferências trocadas entre os corpos que dançam, os que assistem e o ambiente.

A possibilidade de conciliação entre uma visão sistêmica da dança e a semiótica de Charles SandersPeirce, articulação muito pertinente para a fundamentação da abordagem proposta nesta investigação, se dá com a compreensão de que a realidade se estrutura a partir de um sem número de sistemas abertos, “[...] tal que a conectividade entre os seus subsistemas, com o consequente trans-porte de informação, gera a condição de que cada subsistema é mediado ou vem a mediar outros, comportando-se como signo [...]”. (VIEIRA, 2000, p. 14) Esta capacidade de mediação, inerente aos signos, está explícita na definição de Peirce (2010), que os conceitua como objetos perceptíveis, imagináveis ou inimagináveis que representam algo para alguém. Em relação ao seu objeto, no entanto, o signo pode ser compreendido como uma emanação, pois é incapaz de expressar sua totalidade. Tal incompletude impulsiona a semiose, que cor-

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responde ao movimento incessante de criação de signos mais complexos, numa série de interpretantes sucessivos.

Nos sistemas de signos, as linguagens, as instabilidades e os fluxos também im-pulsionam a sua evolução. Tendo em vista este processo de constante adapta-ção, a impossibilidade de comunicação se apresenta em dois casos: na extrema previsibilidade da mensagem, caracterizada por alto nível de redundância; ou na imprevisibilidade total, quando o grau de originalidade é tão elevado que não se processa a decodificação. A natureza codificada da informação, como expõe Bittencourt (2001), se constitui em uma possibilidade de permanência por sua atuação estratégica na formação e replicação de padrões, porém, também pode levar um existente à morte quando não há possibilidade de reconhecimento da mensagem expressa. São os trânsitos entre informação e entropia, em proces-sos orientados no tempo, que permitem que cada configuração se estruture a partir de regularidades, de modo que seja criada uma coesão interna ao sistema, mas que tal fato se dê junto a uma renovação das capacidades comunicativas através de uma desorganização que gera complexidade. Uma configuração de dança,portanto, torna-se autorreferente ao criar sentidos singulares para as in-formações compartilhadas em um ambiente.

O caráter autorreferencial dos signos fundamenta uma tradição estética que re-conhece a possibilidade da obra de arte ser representamen de si mesma (NÖTH, 2009). Quando a função poética predomina na mensagem, situação que caracte-riza a arte, o signo se apresenta na forma de ícone e o processo de significação se dá através de suas qualidades intrínsecas. O ícone compõe, junto ao índice e ao símbolo, a mais importante divisão dos signos proposta por Peirce (2010) e, como se estabelece no domínio da primeiridade, representa o seu objeto através de qualidades similares compartilhadas. O signo estético, ao se comportar como ícone, tende a negar o processo de semiose, pois, não oferece condições propí-cias para a construção de outros signos que se configurem a partir do contraste, contiguidade física ou afetação (representação indicial) ou de forma arbitrária, tal qual uma lei (representação simbólica). Desse modo, as obras de arte, sistemas em que predomina a função poética da linguagem, oscilam entre ser signo e fenômeno, de modo que possam “[...] produzir como interpretante simplesmente qualidades de sentimentos inanalisáveis, inexplicáveis e inintelectuais. O seu ca-ráter de ‘imediato insusceptível de mediação’ gera um tom absoluto e totalizador [...]”. (PLAZA, 2008, p. 25)

A tradução entre signos está inclusa na natureza da semiose e funciona como uma constante atualização de sentidos e significados. O processo de tradução de

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signos estéticos, porém, esbarra na intraduzibilidade de suas qualidades cons-tituintes, o que faz com que a transposição intersemiótica, ou seja, a passagem de um sistema de signos para outro – de um corpo a outro, do corpo para o am-biente e vice-versa – seja uma operação essencialmente criativa. Nesses casos, a busca por correspondentes qualitativos em linguagens – ou corpos – distintos não deveria ter como finalidade a ocultação ou superação do original, ou de um modelo, mas sim a busca de possibilidades de complementá-lo, descobrindo – ou criando – novas formalizações estéticas para informações preexistentes. A Tradução Intersemiótica, como aponta Plaza (2008), se limita em estabelecer relações de similaridade. Cada configuração artística, desse modo, está sujeita à ação do tempo, de regularidades e dissipações, e criará suas próprias estraté-gias de permanência diante das instabilidades contextuais.

Para dar prosseguimento à discussão da autorreferencialidade em configura-ções de dança, parece pertinente apresentar uma breve definição de outra das funções da linguagem, a função metalinguística, que se explicita quando o códi-go é o elemento primordial na construção das mensagens. Quando a linguagem materializada, ou linguagem-objeto, “[...] se volta sobre si mesma, ela tende a ser metalinguagem, beneficiando-se da fenomenologia. [...]. Segue-se daí que toda metalinguagem é marcadamente sintática, formal, estrutural [...]”. (PIGNATARI, 2002, p. 46) Quando na criação de signos estéticos, cuja autorreferencialida-de já foi exposta, as possibilidades de configuração do código são explicitadas, configura-se a metalinguagem das formas poéticas. A mensagem cuja estrutura de arranjos sígnicos é exposta tem seu sentido ligado ao exercício de reflexão e crítica sobre os elementos que a compõem. (CHALHUB, 2005)

Em processos de criação artísticos que se constituem a partir da confluência entre as funções poética e metalinguística da linguagem, parecem decorrer con-figurações que não respondem ao cumprimento de metas, a uma funcionalidade específica, ou a reprodução de um modelo. Tais características podem apro-ximá-los da noção não teleológica de sistema apresentada por Vieira (2000), pois, não havendo propriedade partilhada a priori, as relações entre os diversos corpos e códigos envolvidos serão fruto de negociações temporárias, criando conexões e coerências singulares, situação que desafia os parâmetros institu-cionalizados da arte e da estética. Estas configurações se afastam do funciona-lismo dos sistemas criados pelo homem, inclusive se a função pretendida fosse tão somente ser arte. Diante desta forma de organização, podemos dizer que a noção de autoria se fragmenta, deixando de se localizar na figura do artista e se desenhando nas relações que se constroem durante o fazer.

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Em uma aproximação com a Teoria Geral dos Sistemas, poderíamos pensar nas funções poética e metalinguística da linguagem como condições de permanên-cia nas configurações cujas coerências se estabelecem processualmente. Mais do que objetivo, comportar-se como signo estético seria, portanto, uma condição para a existência dessas configurações, impulso para seu processo evolutivo. Desse modo, parece ser possível pensar processos de criação que se desen-volvem alheios à mimese, definida por Aristóteles como fundamento da pintura, poesia e música através da representação verossimilhante dos modelos ideais de beleza e desvinculada de uma cadeia produtiva da arte, construída pela justa-posição da identidade sobre a obra a partir da criação de um objeto colecionável e de valor distintivo (CAUQUELIN, 2005), situações que caracterizam os regi-mes Clássico e Moderno da arte, respectivamente. Estas obras seriam fruto de acordos entre corpos e signos que se estabelecem no espaço-tempo determina-do da ação e, como tal, teriam o seu desenvolvimento sujeito à imprevisibilidade, características que as aproximam da ideia de acontecimento.

Em geral, nos processos tradicionais de criação se busca a constituição de uma obra cuja validação esteja associada ao seu grau de conservação em relação ao modelo, fato que a torna mais coesa e menos susceptível a variações aleatórias. As configurações que se aproximam da noção de acontecimento, no entanto, vão ao encontro das instabilidades. A repetição, entendida como meio para se alcançar o movimento perfeito, é ressignificada através da impossibilidade de reversão temporal e da crise do paradigma mimético e, não havendo modelo, as características estéticas da obra serão definidas no processo. O risco se torna fator compositivo, pois, é a iminência de morte do sistema diante das flutuações em curso que orienta as conexões, que cria coerências entre os corpos e seus repertórios de signos. Nestes casos, é a distância crítica do equilíbrio que possi-bilita a existência da obra.

São os acontecimentos, conforme Prigogine (2009), que evidenciam as diferen-ças entre o passado e o futuro. Associados à incerteza, são pontos de fuga para os determinismos – econômicos, sociais, políticos, científicos, estéticos etc. – pois fazem emergir possibilidades que superam o provável. Um acontecimento não tem autor, é fruto de flutuações, de instabilidades compartilhadas pelos sis-temas e que produzem resultantes imprevisíveis. É possível pensar, portanto, uma estética em que os processos de criação sejam desvinculados da genia-lidade romântica, que ainda ressoa no senso comum, a partir da aproximação da obra da ideia de processo. Longe de uma apologia à efemeridade, termo presente em discussões controversas no campo das artes do corpo, pretende-se construir um entendimento de que cada obra se faz em trânsitos permanentes

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entre conservação e dissipação. Arte que é corpo. Para uma obra, enquanto arranjo de informações, sistema auto-organizado de signos, permanecer não significa manter-se inalterada, cristalizar-se, mas sim continuar seu processo de adaptação e replicação ao longo do tempo.

Abdicar das certezas e dos modelos preestabelecidos é um exercício do risco. A instabilidade que constitui a realidade pode se traduzir em opção estética quando há a abertura dos processos de criação para o imprevisível. Corpo, es-paço, tempo: trânsitos de signos em (des)acordo, mensagem que se constrói no risco de não ser. Dança como acontecimento, experiência entrópica e estética. Como a vida.

ReferênciasBITTENCOURT, Adriana. Imagens como acontecimentos: dispositivos do corpo, dispositivos da dança. Salvador: Edufba, 2012.

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas – tempo, caos e as leis da natureza. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

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VIEIRA, Jorge Albuquerque. Organização e sistemas. Informática na educação: teoria e prática. v. 3, p. 11-24, set. 2000.

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Condições (in)visíveis

Bruna Roncari (UFBA)1

Orientadora: Gilsamara Moura

Resumo

Este artigo apresenta conexões transitórias entre conceitos, ações e fragmen-tos de diálogos produzidos em laboratórios teórico-práticos, realizados com ou-tros alunos do mestrado em Dança da UFBA. Aponta algumas oposições – ser/ter, visível/invisível, homem/mulher – como pontos de tensão de condições de existência subjetiva. Alude ao devir-mulher como linha de fuga, e a estratégias de envolvimento em processos criativos como possibilidade de desestabilização dessas posições, buscando outras visibilidades, formas de ver/ouvir/tocar a dan-ça, e abrindo acesso mútuo entre corpos.

Palavras-chave: Visível/invisível. Devir-mulher. Potências de ação.

Abstract

This paper presents transitory connections between concepts, actions and dialogue fragments produced in theoretical and practical laboratories conducted with other students of the Masters in Dance from UFBA. Points out some oppositions – to be/to have, visible/invisible, man/woman – as tension points of subjective conditions of existence. Alludes to the becaming-woman as a line of flight, and the involvement strategies in creative processes as a possible destabilization of this positions seeking other visibilities, ways of seeing/hearing/touching dance, and opening mutual access between bodies.

Keywords: Visible/invisible. Becoming-woman. Action potenciality.

Corpos (im)próprios

Nem todo mundo tem corpo. Não o corpo todo pelo menos. Há uma infinidade de exemplos de corpos desmantelados, tomados por suas partes. Aos represen-tantes do sexo masculino, por exemplo, frequentemente falta a bunda. Enquanto que representantes do sexo feminino são, também com frequência, só bunda. Alguns são cabeças flutuantes. Tem quem seja só língua, às vezes também cor-das vocais. Ultimamente muita gente é só dedos, e cada vez menos dedos, às 1 Mestranda em Dança pela UFBA, graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de São

Paulo (UNESP). E-mail: [email protected].

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vezes só indicador e polegar. Quando é útero, podemos compreender a parte que se desprende do todo. Úteros geram vida. Proteger a vida é proteger o útero, blindá-lo de dentro para fora, ao preço da negação do todo.

Ser um corpo não garante, portanto, direito sobre o próprio corpo, tanto quanto ser uma vida não garante direito sobre a própria vida. Entre o poder que protege a vida e o que a controla (ESPOSITO, 2010, p. 32) os processos de subjetivação determinam as possibilidades de existência e de ação individuais e coletivas. Cria-se uma distância entre o sujeito e o sujeito fixo.

A condição de existência de um corpo fica condicionada à forma como esse corpo se apresenta, como é mostrado, às práticas que realiza. O que fica visível depende do que interessa, e a quem interessa, que seja visível, normatizando as formas de apresentação. O que é dissidente é identificado como ameaça. O que é dissidente é impróprio, no sentido de ser inadequado, mas também no sentido de ser expropriado do próprio corpo, como se o corpo pertencesse à norma, e não ao ser-corpo.

Como coloca Nicholas Mizoeff (1995), o corpo está envolvido em questões po-líticas que são inescapavelmente questões de representação. Não deixam de ser questões gramaticais. Se meu próprio corpo não sou eu, mas é meu, o uso de pronome possessivo indica a distância entre nós e nós mesmos. Logo no início de seu livro, O Corpo, Christine Greiner conta a história do contador que esquecia que tinha um corpo. Arrisco dizer que a invisibilidade dessa posse se confunde com a invisibilidade de sua própria existência.

Talvez, em certa medida, a dança possa ser indicada como uma forma de tornar outros corpos visíveis, ou até mesmo outros sujeitos possíveis, e de explicitar uma existência que se acessa através de um devir-dança, do corpo, e por fim de nós mesmos.

G: E o que é um devir na dança?

A: Isso é ótimo, porque eu também quero saber isso.

G: Por isso que eu te chamei.

A: Pra mim, um devir de dança é uma ação, um objeto, uma coisa, um corpo, que carrega a potencialidade de ser linguagem de dança, ou de estabelecer algum tipo de diálogo ou de conexão com a dança, sem necessariamente levar em con-sideração o que o senso comum ou o que a ideia geral de dança é. Eu acho que um devir de dança ou um devir-dança é uma potencialidade de virar dança, mas

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meio que subvertendo o que é a dança na estrutura tradicional ou na concepção tradicional de dança. Que é um, sei lá, não é só dançar, porque qualquer pessoa pode dançar, mas é como essa pessoa, essa coisa se relaciona com dança e constrói uma imagem de dança, ou uma ação de dança, ou o que quer que seja de dança, que é o que desestabiliza a dança do lugar que ela está no senso co-mum, ou no lugar que ela está na hierarquia estética, artística, laralaralá.2

Corpos visíveis

Sempre que a dança é tratada como linguagem, implicitamente carrega a proposta de que é uma das línguas nas quais o corpo se manifesta, e então, adentra nas implicações da língua aqui expostas. E, no caso da língua da dança, a visualidade se des-taca como uma questão. (GREINER; KATZ, 2012, p. 4)

A dança torna o corpo visível. Ou torna visível alguma coisa no corpo. A visuali-dade a vincula a um discurso confessional, em que o dançarino expressa uma “verdade interior”. A condição de existência do dançarino passa pela visibilidade, e a da dança pela possibilidade de tradução do que é visto. Como explicam Grei-ner e Katz, a partir de Foucault, a agência de dominação reside naquele que vê, na fala que traduz o que é visto, e não naquele que é visto.

Sem esse vínculo com algo invisível que se torna visível pela dança, a tendência é concordar que se não há nada para ser traduzido, não é dança, porque está rompendo o contrato tradu-tório entre a ‘verdade interior’ e a forma que ela pode tomar na dança. Não sem motivos, o pensamento crítico precisa de um certa obscuridade para se construir, o que faria da dança confes-sional um exercício de submissão, sem autonomia. (GREINER; KATZ 2012, p. 5)

A forma como a dança é representada submete sua validação à normalidade de sua apresentação. As autoras utilizam o paradigma da imunização de Roberto Esposito para determinar a visualidade na dança como forma imunitária. Sendo o centro da autorrepresentação moderna, essa semântica imunitária implicaria numa condição que dispensa os membros envolvidos de uma obrigação recípro-ca, exonerando o ônus da relação. (GREINER; KATZ, 2012, p. 9)

Em sintonia com este pensamento, Peggy Phelan (2005) sugere que o performer sempre está na posição feminina em relação ao poder, sendo que mulheres e performers se encontram frequentemente na posição de vender ou confessar algo a alguém que está na posição de comprar ou perdoar. A autora problematiza 2 Fragmento de diálogo entre a autora (G) e Anderson Marcos da Silva (A), em laboratório teórico-prático

realizado em 12 de agosto de 2013.

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assim a evocação do desejo baseado na desigualdade entre performer e espec-tador – o último estando em condição de silenciosa dominação – num modelo aparentemente compatível com o desejo masculino tradicional, revelando posi-ções dependentes da visibilidade e de um ponto de vista coerente.

Se a agência de dominação reside em quem olha, ou seja, no caso da dança, em quem assiste a dança, e se trouxermos o conceito de interpelação, que le-vanta que a dança também pode colocar o público em situações de submissão (FRANKO, 2002 apud Lepecki, 2006, p.26), resta saber como podem se de-senrolar esses processos e que papel o movimento e a visualidade têm neles. “A questão é saber se o dominante se move e como. Assim como saber quan-do, o que e a quem o dominante exige que se mova” (LEPECKI, 2006, p. 31)3 e apontar, como faz Peggy Phelan (2005, p.163), a necessidade de performers e seus críticos começarem a redesenhar esse estável conjunto de suposições sobre as posições das trocas teatrais.

Flusser (2002) indica que o mal-estar da humanidade está associado a um mal-estar da visualidade. Talvez a dança possa olhar para o invisível. Prestar aten-ção às invisibilidades do pesquisador, do performer, do dançarino, do público, podendo as tornar não só visíveis, mas perceptíveis, sensíveis.

Afetos controlados e outros corpos visíveis

A: Fiquei pensando na história do devir corpo feminino, que eu não conhecia e que eu lembrei, uma hora, acho que depois do rizoma, você estava fazendo um movimento supersuave no chão, superfluido, aí eu pensei ‘ai, que coisa bonita, é uma coisa assim sensível, uma coisa, sei lá, não sei se é feminino’ aí na hora que eu pensei isso ‘devir corpo feminino, como é que é isso?’ E eu fiquei pensando bem em mim, como de uns tempos pra cá eu não tenho mais a preocupação de ter um corpo masculino, na dança, na maneira como eu danço, na maneira como eu falo. Sabe, porque era uma preocupação que eu tinha sim, da minha vida.

G: Você conseguia sentir isso no seu corpo mesmo?

A: No corpo mesmo, porque é uma coisa doida, porque enrijece tudo, não é só uma rigidez de atitude, é uma rigidez corporal [...] não é um dispositivo só social, é um dispositivo corporal, lato sensu.

3 “La cuestión es saber si lo dominante se mueve y como. Así como saber cuándo, qué y a quién exige lo dominante que se mueva”. Tradução da autora.

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G: Tem coisas que literalmente o seu corpo, como homem, não pode fazer.4

As lutas sociais e políticas pelos direitos das mulheres e dos homossexuais não dizem respeito apenas a eles, mas ao direito de exercer livremente a sexualida-de, a sensibilidade e a política. Tais lutas apontam a insuficiência do princípio de contrariedade como base da concepção de valores acerca do que se considera certo ou errado, bom ou ruim, normal ou anormal. O que parece importante é a capacidade que as operações binarizantes têm de criar regimes de poder a partir de categorias que, por serem definíveis, são mais facilmente controláveis. “O casal feminino-passivo/masculino-ativo permanece assim uma referência tornada obrigatória pelo poder, para permitir-lhe situar, localizar, territorializar, controlar as intensidades do desejo”. (GUATTARI, 1981, p. 41) Sob esse prisma podemos observar o controle da afetividade em virtude da definição de valores a partir da oposição, e apontar o devir-mulher como ponto de desestabilização para ver, ouvir, sentir outras possibilidades de ser.

C: É, eu também acho, passar de um estado para outro, como se fosse uma transformação. Mas não no sentido místico. Isso entra em choque com minha noção de permanência – que não é só minha – em processos de evolução per-manência como uma continuidade dos processos de transformação. Mas pode fazer sentido, o rito pode ser visto como essa possibilidade de processo de trans-formação, mas esse transformar não é mudar para outra coisa completamente diferente.

Permanência é processo de transformação. Eu sou permanente porque sempre me modifico, mas sem ‘saltos’.

G: Isso parece o devir.

C: Fale mais sobre isso. Escreva mais sobre isso.

G: Devir é o processo de se transformar em outra coisa sem deixar de ser o que é. É um processo de vir a ser, sem nunca chegar. Não sei se é nunca chegar ou nunca parar de chegar.

Nunca chegar a ser outra coisa, mas nunca parar de chegar a ser outra coisa, porque ainda permanece você mesmo. É sempre um processo, não atinge um fim.5

4 Fragmento de diálogo entre a autora (G) e Anderson Marcos da Silva (A), em laboratório teórico-prático realizado em 12 de agosto de 2013.

5 Fragmento de diálogo entre a autora (G) e Claudinei Sevegnani (C), em laboratório teórico-prático rea-lizado em 26 de agosto de 2013.

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Um processo que não procede por semelhança ou analogia, mas que se avizi-nha de outro modo de ser. O devir-mulher em um homem não é a imitação de uma mulher, nem a transformação, mágica ou cirúrgica, deste homem em uma mulher, mas uma composição de afetos entre indivíduos diferentes. (DELEUZE, GUATTARI, 1996) E por isso pode se dar também em uma mulher, porque impli-ca numa passagem de um estado a outro.

Nesse sentido, enxergo no devir-mulher essa possibilidade de tornar outros cor-pos visíveis, mais sensíveis, e até mesmo mais sensuais. É interessante indicar que um sinônimo de sensualidade é lubricidade, que significa escorregadio. Não consigo deixar de ver no termo uma fluidez e um sentido inerente de liberdade e de possibilidade de escapar, de permitir desejos, de gerar no corpo uma su-perfície de experimentação. A permissividade provoca esse devir-mulher, que se mostra não como identidade, mas como potência de ação. Corpos que seduzem por revelar um fato encantador: sua existência.

Potências de ação e processos criativos

Se invocarmos os pares virtual-atual e real-possível6, podemos compreender que uma possibilidade é dada a partir do real e para o real. A realização de algo que é possível é uma reprodução de algo que já existe em realidade. O virtual indica o potencial, algo que ainda não encontrou uma forma concreta de existir na realidade, mas existe em potência. “Virtualizar uma entidade qualquer con-siste em descobrir uma questão geral a qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular”. (LÉVY, 1996, p. 7)

O que me pertence é o desejo de que uma potência se atualize em ação, em existência concreta. É esse desejo que desencadeia a organização de estra-tégias, que já posso entender como processo de criação, para envolver outras pessoas em novas ações, gerando uma experiência, que também posso en-tender como processo de criação. Quem cria mesmo é o processo, e ele não é exterior a mim, mas não coincide comigo.

A: Ai, teve uma coisa ótima, que foi na hora que a gente começou a fazer uma brincadeirinha meio que de encaixe, eu fiquei pensando: “gente parece um rizo-ma”.

6 Pierre Lévy reelabora estes conceitos, principalmente o de virtualização, em “O que é virtual”, a partir de Gilles Deleuze em “Diferença e Repetição”.

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G: Ai, que gostoso!

A: Depois eu fiquei pensando: “não, parece a interação de uma coisa com outra”. Acho que o devir-dança, essa potência, opera daquela forma. Você começa a procurar os espacinhos, começa a procurar os espaços entre, e depois você já está totalmente implicado, não dá pra tirar mais, não dá pra simplesmente sair, pra sair você tem que arranjar um espacinho muito específico.

G: Você precisa de outros espacinhos.

A: E é uma implicação assim muito... e que não é confortável. Eu fiquei pensando nisso também, enquanto a gente estava fazendo não era confortável pra gente [...] não é um encaixe simples e confortável, tem que gerar uma desestabilidade, uma instabilidade no negócio, e o negócio...

G: Na hora que estabiliza, você tem que desestabilizar de novo pra continuar.

[...]

G: Valorização do momento presente. Quando a gente começou a criar uma me-mória daqui, acho que a gente estava entrando um pouco nisso, prestar atenção aqui.

A: É engraçado isso, tem um deslocamento do que era a memória de antes e como a gente presentifica isso e como essa presentificação da memória passa-da vira uma coisa daqui, depois.

G: Atualiza.

A: Atualiza, é, primeiro a gente traz, e depois ela não é mais aquela coisa, porque no fluxo da interação virou outra coisa, diferente.

G: A mesma coisa, só que outra coisa.7

Ao invés de falar em processos criativos colaborativos, gostaria de poder falar em processos criativos envolventes, em estratégias de envolvimento, mais do que de colaboração. Por sempre pensar que há algo que existe no “entre”, e que o processo criativo é isso que existe na relação entre mim e alguma outra coisa. Talvez envolver possa assumir o sentido de seduzir. Envolver pode se relacionar também ao inframince, conceito de Marcel Duchamp que trata das dimensões temporais e físicas ultrafinas entre os modos de perceber. (GREINER; KATZ,

7 Fragmento de diálogo entre a autora (G) e Anderson Marcos da Silva (A), em laboratório teórico-prático realizado em 12 de agosto de 2013.

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2012) Se buscarmos uma percepção inframince, que implique intervalos imper-ceptíveis entre ver/ouvir/tocar, podemos entender melhor o sentido que seduzir assume aqui, querendo indicar relações que têm a ver com outras sensações que não apenas as visuais.

Estratégias de envolvimento podem ser condições de acesso a determinado processo. A ideia de acesso lida com a impossibilidade de neutralidade, seja do espaço, do corpo, do movimento, e está sintonizada à virtualidade concreta de matérias fantasmas, de que André Lepecki fala em Planos de composição. É uma espécie de percepção delicada, de encontrar formas de iniciar fluxos de interação, de abrir acessos mútuos entre dentro e fora, agora e daqui a pouco, aqui e ali, eu e você.

G: Mas acho que tem essa coisa de entrar em outro lugar.

C: Quando fala de ritual me vem muito rito de passagem, a questão do limiar, da liminaridade, como se existisse uma fronteira entre uma coisa e outra. Uma por-ta, a porta é o limiar, da porta de um lugar que vai pra outro. Entra em outra sala.

G: No corredor.

C: Do corredor pra sala. Da sala pro corredor.

G: Uma passagem.

C: Janelas também podem ser limiar.

[...]

Isso me lembrou uma entrevista que eu li com a Marina Abramović, que ela fala que o melhor lugar para ela estar é entre os lugares, por exemplo, de um lugar a outro, esse meio pra ela é o mais produtivo.

G: A liminaridade.

C: É, liminaridade, é ali, esse meio.

G: Eu andei pensando muito em ritual, mas não é exatamente o ritual, é essa passagem de estado mesmo, que vai de uma coisa pra outra.

C: Que pode ser então ritualidade, não sei, talvez?

G: Não sei.

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É legal ver como se desenvolve a improvisação que começa quase sem...

C: Como se não tivesse um acordo. Assim vão estabelecendo pequenos acor-dos e esses acordos vão criando talvez uma complexidade maior de acordos, e esses acordos que vão criando essas memórias dentro desse sistema, e antes, a princípio, era uma coisa muito...

G: é, parece que começa sem ter onde chegar, depois chega um ponto que a gente está chegando em algum lugar.8

ReferênciasDELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1996.

ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.

GREINER, Christine. Katz, Helena. Visualidade e imunização: o inframince do ver/ouvir a dança. In: CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA. 2., 2012, São Paulo. Anais... São Paulo: ANDA, 2012.

GUATTARI, Felix. A revolução molecular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

KATZ, Helena. Dança, coreografia, imunização. In: NOLF, Angêla; MACEDO, Vanessa. (Org.). Pontes móveis: modos de pensar a arte em suas relações com a contemporaneidade. São Paulo: Cooperativa Paulista de Dança, 2013.

LEPECKI, Andre. Agotar la danza: performance y política del movimento. Espanha: Universidade de Alcalá, 2006.

LEPECKI, André. Planos de composição. In: GREINER, Christine; SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia. (Org.). Cartografia: Rumos Itaú Cultural 2009-2010 (pp. 13-20). São Paulo: Itaú Cultural, 2010.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

MIRZOEFF, Nicholas. Bodyscape: art, modernity and the ideal figure. London: Routledge, 1995.

PHELAN, Peggy. Unmarked: the politics of performance. Nova York: Taylor & Francis, 2005.

8 Fragmento de diálogo entre a autora (G) e Claudinei Sevegnani (C), em laboratório teórico-prático rea-lizado em 26 de agosto de 2013.

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O problema corpo-mente: e algumas de suas implicações políticas e sociais

Charlene Simão (UFBA)1

Resumo

O presente artigo estabelece uma relação entre o dualismo que separa corpo e mente e algumas de suas reverberações políticas e sociais. Inicialmente, aborda como um problema ontológico a divisão corpo-mente. Através dos estudos do filó-sofo Paul Churchland, explica essa divisão, por meio de teorias dualistas da mente como o dualismo de substância e o dualismo de propriedade. Investiga os primeiros vestígios da separação corpo-mente e chega à conclusão de que esse dualismo é aceito pela maioria das pessoas, por motivos religiosos ou não. Em seguida, o traba-lho investiga quais implicações políticas e sociais que o problema ontológico corpo-mente pode gerar. Para isso, traça um paralelo entre alguns aspectos dos conceitos de biopolítica e de tanatopolítica, discutidos a partir do filósofo Roberto Esposito e a desvalorização de um corpo apartado de sua mente. Analisa também de que modo a divisão corpo-mente reverbera em outros modos dualistas de entender o corpo utilizando textos de Christine Greiner e Denise Najmanovich. Por fim propõe que, por meio de estudos cognitivos, que entendem mente e corpo sempre como compo-sição de um organismo, será possível não apenas superar o dualismo corpo-mente como repensar e modificar suas implicações políticas e sociais.

Palavras-chave: Corpo-Mente. Dualismo. Política. Sociedade.

The body-mind problem: and some of its political and social implications

Abstract

This paper establishes a relationship between the dualism that separates body and mind and some of his political and social reverberations. Initially, addresses the body-mind split as an ontological problem. Through the studies of the philosopher Paul Churchland, it explains this division through dualistic theories of mind as substance dualism and property dualism. It investigates the first traces of body-mind separation and comes to the conclusion that this dualism is accepted by

1 Mestranda em Dança (UFBA), especialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela mesma insti-tuição, graduada em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

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most people, for religious reasons or not. Then, this work investigates what social and political implications that the ontological body-mind problem can generate. For this, draws parallels between some aspects of the concepts of Biopolitics and Tanatopolítica discussed from the philosopher Roberto Esposito and devaluation of a body apart from your mind. It also examines how the body-mind split reverberates in other dualistic ways of understanding the body using texts from Christine Greiner and Denise Najmanovich. Finally proposes that, through cognitive studies, we understand the mind and body always like an organism composition, it will be possible not only overcome the body-mind dualism, but also how to rethink and modify their social and political implications.

Keywords: Body-Mind. Dualism. Politics. Society.

O problema ontológico

Algumas questões sempre estiveram e estão presentes no imaginário popular, elas tiraram o sono dos primeiros filósofos e, hoje em dia, fazem parte das pesqui-sas mais avançadas nas áreas de neurociências e ciências cognitivas. São elas:

Do que somos feitos? Existe algo além do corpo? Além de nós mesmos? Ao mor-rermos, algo sobreviverá? O que é a mente? Uma faculdade do corpo e, assim como ele, finita? Ou uma faculdade do espírito e, sendo assim, imortal?

Para o filósofo Paul Churchland (2004), na obra Matéria e Consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente, as indagações acima tratam de um problema ontológico, o problema corpo-mente, e para resolução desse Pro-blema2 existem algumas teorias da mente. Entre elas, a mais antiga e difundida é a dualista, nela a mente seria algo não físico e, por isso, impossível de ser ex-plicada em termos físicos. Disso surge a separação entre o que é físico – o corpo – e o que não é – a mente. Churchland afirma que essa separação, mesmo não agradando boa parte da comunidade científica, ainda é referencial para a maio-ria das pessoas, visto que provém de boa parte dos pensamentos religiosos. O dualismo que separa corpo e mente se divide ainda em duas outras teorias, o dualismo de substância e o dualismo de propriedade.

Dualismo corpo-mente

Antes dos primeiros estudos de anatomia, era extremamente difícil entender o funcionamento do corpo. Este estava mais atrelado à religião do que à ciência. 2 Problema escrito em itálico e com a primeira letra maiúscula será utilizado sempre ao referir-se ao pro-

blema ontológico corpo-mente.

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O corpo era considerado um instrumento da alma, o que daria a ele a mera fun-ção de um recipiente que abriga a alma e a mente.

Considera-se historicamente que tal pensamento originou-se em Platão (428-348 a.C), ou seja, há quatro séculos antes de Cristo. Segundo Margarida Nichele Pau-lo (1996), no livro Indagação sobre a imortalidade da alma em Platão, Platão acre-ditava na imortalidade da alma e que ela continha a mente. A alma vivia sem corpo antes de encarnar em uma forma humana e assim que o corpo morresse ela con-tinuaria a existir, conservando sua individualidade, sua identidade e conhecimento.

Platão introduz uma divisão na forma de ver a realidade. Para ele existiam dois mundos: o sensível e o inteligível. Como afirma Marilena Chauí (1997), no livro Convite à filosofia, o primeiro é o das coisas, da aparência, do corpo, da carne, e o segundo das ideias, da alma e da verdade. O mundo das ideias seria somente conhecido através da mente, do intelecto puro, sem qualquer interferência dos sentidos e das opiniões mundanas, sendo, portanto, superior ao mundo sensí-vel. Nessa relação entre os mundos – a natureza humana e a supremacia das ideias –, o “corpo físico”, de acordo com Chauí (1997), era visto como veículo com o qual o mundo inteligível se expressava ao mundo sensível. O ser humano deveria ser trabalhado em sua completude mente-corpo, porém o adestramento do corpo era visto apenas como um meio de formação do espírito e da moral.

Nessa análise platônica, o corpo e a mente são tratados como coisas distintas e com uma relação hierárquica definida em que o corpo é tido como pertencente ao estado inferior do homem, um invólucro que confunde e limita a mente e seus conhecimentos. A verdade, a beleza e a perfeição só poderiam ser atingidas através da mente, no plano das ideias.

Já no século XVII, o filósofo René Descartes (1596-1650) reforçou esse pensa-mento dualista platônico e definiu que mente e corpo possuem substâncias dis-tintas, a da mente não seria ainda conhecida e a do corpo seria física, surgindo, então, o dualismo de substância.

Filósofo, físico e matemático do séc. XVII, Descartes acreditava na razão cons-ciente do ser humano, que seria feita de uma substância distinta daquela do cor-po. Para ele, o espírito seria o reservatório que abriga a razão – entendida aqui como a mente – e apregoava ao espírito a única forma de conhecer a verdade, sobrepondo-o, assim, aos sentidos do corpo.

Mas, enfim, eis que insensivel-mente cheguei aonde queria; pois, já que é coisa presentemente conhecida por mim que, propria-mente falando, só concebemos os corpos pela faculdade de en-

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tender em nós existente e não pela imaginação nem pelos senti-dos, e que não os conhecemos pelo fato de vê-los ou de tocá-las, mas somente por concebê-los pelo pensamento, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito. Mas, posto que é quase impossível desfazer-se tão prontamente de uma antiga opinião, será bom que eu me detenha um pouco neste ponto, a fim de que, pela amplitude de minha meditação, eu imprima mais profunda-mente em minha memória este novo conhecimento. (DESCARTES, 2008, p.106)

Um de seus primeiros conceitos é o de que razão seria composta por algo que não é físico, enquanto que o corpo é composto por matéria física. Em Medita-ções, Descartes (2008) diz que a substância da mente é diferente da do corpo, pois é indivisível, não ocupa lugar no espaço e se ocupa da atividade de pensar. Entretanto, para a mente operar sobre o corpo, Descartes (2008) acreditava no que ele denominou de “espíritos animais”, que seriam feitos de uma sustância sutil e transmitiriam as informações da mente ao corpo, entretanto ele não con-seguiu provar a existência desses “espíritos animais”.

Já no dualismo de propriedade, não existe substâncias distintas para a mente e para o corpo. O cérebro humano além de ser físico, possui um conjunto de propriedades especiais. Conforme Chuchrland (2004, p.30), “as propriedades em questão são as que se pode esperar: a propriedade de sentir dor, a de ter a sensação de vermelho, a de pensar que P, a de desejar que Q e assim por diante. Essas são propriedades da inteligência consciente”. Como essas proprie-dades não são físicas, pois não podem ser explicadas em termos das ciências físicas habituais, exigem uma nova ciência, denominada por Chuchrland (2004) de “ciência dos fenômenos mentais”. Como o epifenomenalismo, em que as pro-priedades e processos mentais estão acima da esfera física e não estabelecem uma relação causal com ela.

O epifenomenalista sustenta que, embora os fenômenos men-tais sejam causados pelas diversas atividades do cérebro, eles, por sua vez, não têm quaisquer efeitos causais. Eles são to-talmente impotentes com respeito a efeitos causais no mun-do físico. São meros epifenômenos (para dar uma ideia mais clara disso, aqui pode ser útil uma metáfora vaga: pense em nossos estados mentais como pequenas cintilações de uma luz tremeluzente, que ocorram na superfície enrugada do cérebro, cintilações causadas pela atividade física do cérebro, mas que, por sua vez, não têm efeitos causais, sobre o cérebro). (CHUR-CHLAND, 2004, p.31)

Desse modo, para os epifenomenalistas, o pensamento de que nossas ações são determinadas por nossos desejos e volições é falso, já que nossas ações seriam determinadas por efeitos físicos no cérebro.

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Para encerrar esses apontamentos acerca do dualismo corpo-mente, Churchland (2004) afirma que, nos dias atuais, o pensamento mais recorrente quanto à men-te, é que ela controla o corpo e se localiza dentro da cabeça conectada de algum modo ao cérebro. Esse pensamento é comum à maioria das pessoas, religiosas ou não. Contudo, ele abarca implicações que ultrapassam a esfera individual na crença de uma vida após a morte, com a sobrevivência de uma alma – portadora da mente – e também as sensações pessoais de que o raciocínio não seria algo físico, que seria uma propriedade não física da mente.

Implicações do Problema corpo-mente

O dualismo corpo-mente, além de fazer parte do ideário das pessoas, desmem-bra outros pensamentos dualistas a respeito do corpo, assim como algumas situações político-sociais, seja na vida bem como na arte, proveniente destes.

Podemos então partir da indagação:

De que modo um olhar que privilegia a mente, associando essa a algo imaterial como o espírito, em detrimento do corpo, pode refletir subjugações do/no corpo?

Apenas para exemplificar, se pensarmos nas grandes guerras mundiais e nas inúmeras guerras civis que aconteceram e estão acontecendo pelo mundo, e tentarmos imaginar as milhares de vidas perdidas sobre um parco índice que não as contabiliza, mas que conta apenas corpos, podemos perceber o quão perigosa pode ser esta separação entre corpo e mente. Pois no que convémaos Estados, seres humanos podem facilmente ser ressignificados a corpos perdi-dos, porém com suas almas intactas. De fato, há uma desvalorização da vida ao separar o corpo e espírito, sendo este considerado o guardião da mente. Podemos também pensar, a partir desse duro e triste exemplo, quantas outras formas de manipulação da vida podem estar embasadas no antigo Problema ontológico.

O filósofo Roberto Esposito (2010, p. 65), no capítulo O enigma da biopolítica do livro Bios: biopolítica e filosofia traz uma possibilidade de repensar a política atra-vés da biopolítica, “que se caracteriza por um conjunto de ações e estratégias políticas que tem por objetivo a promoção e proteção da vida e da subjetividade”. Contudo, Esposito se preocupa em decifrar o enigma de como a biopolítica pode decair em uma tanatopolítica, ou seja, na adoção de medidas que suprimem for-mas de vida tomadas como dispensáveis e perigosas à comunidade.

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Qual o efeito da biopolítica? Chegado a este ponto a resposta do autor [isto é, Foucault] parece bifurcar-se em direções diver-gentes que levam em conta outras duas noções, desde o início implicadas no conceito de bios, mas situada nos extremos de sua extensão semântica: aquela de subjetivação e aquela de morte. Ambas – no que diz respeito à vida – constituem mais do que duas possibilidades. São ao mesmo tempo sua forma e seu fundo, sua origem e seu destino. Mas em cada caso, segundo uma divergência que parece não admitir mediação: ou uma ou outra. Ou a biopolítica produz subjetividade ou produz morte. Ou torna sujeito o próprio objeto ou o objetiva definitivamente. Ou é política da vida ou sobre a vida. (ESPOSITO, 2010, p. 54)

Não seria então possível estabelecer uma relação entre a tanatopolítica e o exemplificado anteriormente, sobre as implicações que o Problema corpo-mente pode trazer à vida social, artística e afetiva das pessoas, utilizando discursos para justificar o genocídio? Não seria favorável a separação entre mente e corpo a esse discurso em que aquilo que precisa ser eliminado, de fato o é, retirando dele primeiro sua característica fundamental – ser humano, ser vivente – para em seguida massacrá-lo?

Com esses apontamentos apresentados, o intuito é argumentar que existe al-guma relação entre o Problema corpo-mente e a política que está inserida na vida. Do mesmo modo perceber outras implicações desse problema em outras esferas, como a da arte, e no caso específico, a dança.

Greiner (2011) no artigo Os novos estudos do corpo para repensar metodologias de pesquisa exemplifica alguns dualismos oriundos da separação corpo-mente: cognição/emoção, fato/valor, conhecimento/imaginação, pensamento/sentimen-to. E também aborda outros advindos da separação entre teoria-prática: teoria-política; opressor-oprimido; centro-periferia; imagem positiva-negativa, contu-do afirma que mesmo esses, decorrentes da teoria X prática, vêm do dualismo corpo-mente.

Gostaria de propor, para aprofundar um pouco mais essas no-ções de mediação e processos de tradução entre teoria e prá-tica, palavra e ação, que será preciso enfrentar outro tipo de binarismo formulado antes de todos. Trata-se do binarismo cor-po/mente e que está absolutamente relacionado a um problema característico da existência humana: as pessoas querem que sua vida seja significativa, e esta é uma vontade e uma necessi-dade que permeia toda e qualquer ação política. O filósofo Mark Johnson (2008) explica que esse desejo de significar é tão for-te que é possível que se arrisque a própria vida buscando dar um sentido às experiências, testemunhar a nossa existência. A questão que nos interessa neste momento é que o significado é sempre corporal. Ou seja, discutir sua natureza corpórea pode

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ser uma forma de romper o binômio corpo/mente que, por sua vez, fundamenta as relações hierárquicas entre teoria e prática. (GREINER, 2011, p. 6-7)

A pesquisadora e professora Christine Greiner justifica em seu texto que, se o Problema corpo-mente acarreta outros problemas dualistas que reverberam na vida sociale política (acrescento artística) das pessoas, então apenas repensan-do corpo-mente, poderemos promover mudanças efetivas.

Em outro texto, na introdução da obra Leituras do corpo, ChristineGreiner, em parceria com Cláudia Amorin, também questiona corpo-mente ao afirmar que:

[...] alguns cânones da filosofia precisam ser repensados com urgência, como, por exemplo, o imbatível dualismo cartesiano que entende a mente na perspectiva de uma natureza distinta do corpo. [...] No primeiro momento, este parece um problema que só diz respeito a questões filosóficas e análises do discurso. Porém, é muito mais do que isso. As novas investigações refe-rem-se aos estudos da cultura, da arte, da história, da política, do acesso às novas tecnologias e assim por diante. [...] Uma tarefa importante é discutir o entendimento do corpo como ins-trumento. Muitas pesquisas das chamadas décadas do corpo chamam a atenção para a sua existência no mundo contem-porâneo, mas são quase sempre apenas nova roupagem para antigos pensamentos e convicções como a de que o corpo é apenas uma máquina habitada por alguma substância hierar-quicamente mais importante, e menos perecível do que a carne. [...] Qualquer referência ao corpo como sujeito de si mesmo e mídia do conhecimento é considerada como perigosa porque propõe analisar seu funcionamento genético e neurofisiológico. Esta é a armadilha mais saborosa das novas pesquisas porque é só estudando mais de perto este ‘como o corpo funciona’ que parece possível compreender como as informações do mundo são internalizadas no organismo e, então, modificadas. (GREI-NER;AMORIM, 2003,p.12)

Contudo, afirmam que algo mudou nos últimos anos por conta de pesquisas em neurociências e ciências cognitivas.

Denise Najmanovich (2009) no artigo El cuerpo Del conocimiento, el conoci-miento Del cuerpo também aponta a necessidade de repensarmos os dualis-mos que operam sobre o corpo e reverberam em várias instâncias da sociedade. A autora afirma que o homem isolou o corpo de seu meio, de sua comunidade e ainda o fragmentou em diversas áreas separadas de estudo. No entanto, criticar o dualismo e tentar unir essas separações não seria o melhor caminho, pois o que pre-cisamos, conforme Najmanovich (2009), é elaborar outras metáforas e cartografias para criar um lugar em que as diversas formas de corporalidade coabitem.

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Para a autora, um primeiro passo seria nos abrirmos para a multidimensionalida-de de nossa experiência corporal e compreender suas relações com os discur-sos sobre o corpo. Contudo, segundo Najmanovich (2009, p.6, trad. nossa), “as dimensões da corporalidade não são ‘partes’ do corpo, são modos de focalizar a experiência que temos como seres corpóreos. E, essa experiência nos afeta globalmente [...]”.3

E, em contraponto ao dualismo, Najmanovich (2009) afirma que nas últimas dé-cadas está começando a surgir uma estética de redes fluidas que nos permite experimentarmo-nos como partes indissociáveis do universo, entendido como uma infinita estrutura vital. Najmanovich (2009) traz o filósofo Baruch Spinoza como um dos primeiros a propor esse modo de pensar, já no Século XVII. Dife-rente de Descartes que concebeu um mundo mecânico rigidamente estruturado em coordenadas cartesianas, Spinoza nos oferece um universo todo enredado e ativo. A natureza seria, “uma rede infinita de intercâmbios em que nada está isolado e, que cada entidade precisa das demais para existir”.4 (NAJMANOVICH, 2009, p.9, tradução nossa) Todas as partes afetam-se mutuamente e se transfor-mam. Para a autora, se seguirmos as pegadas de Spinoza, poderemos começar a ter uma visão não dualista.

Breves considerações

Do pensamento dualista que divide corpo e mente, surgem outras divisões no próprio corpo, como a separação entre dentro e fora, que entende o corpo como um invólucro impermeável que possui seu limite com o exterior na pele; a sepa-ração entre centro e periferia,em que existiria um centro no corpo (por exemplo, o centro gravitacional ou o centro emotivo) que irradiaria informações até a peri-feria; e uma separação entre as partes e o todo, em que é possível fragmentar o corpo em várias partes (como fazem os estudos de medicina) para compreender o todo. Podemos então pensar quais outras possibilidades de reverberações desses dualismos do corpo acarretam implicações sociais, artísticas e políticas.

De todo modo, o necessário seria repensar o grande Problema ontológico se quisermos modificar várias circunstâncias de nossa vida e da arte que faze-mos. Christine Greiner (2011) e Denise Najmanovich (2009) apontam algumas

3 “Las dimensiones de La corporalidad no son ‘partes’ Del cuerpo, son modos de focalizar La experiencia que tenemos como seres corpóreos. Esa experiencia nos afecta globalmente [...].”

4 “[...] una red infinita de intercâmbios en la que nada está aislado y enla que toda entidad singular precisa de lãs demás para existir.”

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possibilidades. Para ambas as autoras, o caminho para se repensar o problema está em estudar o corpo em sua grande complexidade.

Para isso, estudos, pesquisas e descobertas nas áreas das neurociências e ciências cognitivas têm desempenhado importante papel, pois abordam corpo e mente como integrados desde sempre.

Para Churchland (2004), um dos pontos importantes, pois auxilia a refutar o pensamento que divide corpo e mente, está na ideia de que ambos possuem substâncias distintas. Para o autor, a matéria física do corpo é conhecida, já a da mente não. Ou seja, por meio de estudos científicos, como os relacionados à anatomia humana, se tem hoje um conhecimento vasto sobre como é, e como funciona o corpo humano. Entretanto, nenhum estudo científico ainda foi ca-paz de provar como seria a matéria espiritual da mente, do que é feita e como funciona. Então a crença em uma matéria espiritual para a mente não pode ser provada. Isso sugere a mente seria também física.

Em resumo, o neurocientista pode nos dizer muita coisa sobre o cérebro, sobre a constituição e sobre as leis físicas que o gover-nam; ele já pode explicar boa parte do nosso comportamento em termos das propriedades elétricas, químicas e físicas do cére-bro; e ele tem disponíveis recursos teóricos para explicar muito mais, a medida que nossas explorações forem avançando [...]. Comparemos agora o que o neurocientista pode nos dizer sobre o cérebro, e o que ele pode fazer com esse conhecimento, com o que o dualista pode nos dizer sobre a substância espiritual, e o que ele pode fazer com essas suposições. O dualista pode nos dizer algo sobre a constituição interna da coisa-mente? Sobre os elementos não materiais que a constituem? [...] O fato é que o dualista não pode fazer nada disso, porque jamais foi formulada uma teoria detalhada sobre a coisa-mente. Em comparação com o êxito em termos de explicação e aos amplos recursos do mate-rialismo atual, o dualismo é menos uma teoria da mente do que um espaço vazio à espera de uma genuína teoria da mente que possa ser nele colocada. (CHURCHLAND, 2004, p.44)

Já o neurocientista português António Damásio há muitos anos estuda as rela-ções entre cérebro, mente, meio ambiente e emoções. Damásio, na obra O erro de Descartes, Emoção, razão e o cérebro humano (1996), traz uma compreen-são ampliada da antiga relação corpo e mente ao debater conceitos dualistas, como a ideia de corpo como um contêiner que abriga a mente, e o pensamento de que a mente seria algo não físico conectada de alguma forma ao cérebro. Para Damásio (1996), a mente surge das atividades neurais enquanto essas estão sempre sendo reconfiguradas pelo organismo. A mente faz parte desse organismo (corpo-cérebro) que a todo instante está se reconstituindo.

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Para encerrar este texto, mas de modo algum as discussões levantadas nele, percebe-se então o quão os estudos cognitivos não estão aparte dos estudos políticos, sociais e artísticos; eles compõem uma grande rede multidimensional. Do mesmo modo como Damásio (2004, p.203) afirma no livro Em busca de Espi-nosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos: “de certo modo, retirar a presença do corpo é como retirar o chão em que a mente caminha”, ao apartarmos nossas experiências cognitivas de nossas vivências artísticas e sociais estaríamos refor-çando mais um modo dualístico de entender o que sempre foi e será integrado.

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A atuação do Pibid/Dança em escolas da rede pública de Salvador

Clarice Contreiras (UFBA)1

Marília Curvelo (UFBA)2

Maira diNatale (UFBA)3

Rita de Cássia Rodrigues UFBA)4

Maria de Fátima Borges UFBA)5

Resumo

Este artigo relata a experiência das atividades do Programa Institucional de Bol-sas de Iniciação à Docência – Pibid/Dança em cinco escolas da rede pública de Salvador. O Pibid, instituído pelo Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação Superior (SESu), da Fundação Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Fundo Nacional de De-senvolvimento da Educação (FNDE), promove uma articulação entre a educa-ção superior (licenciaturas) e as secretarias estaduais e municipais de educação a favor da melhoria do ensino nas escolas públicas de todo o país. O programa possibilita a inserção e o contato do licenciando nas escolas da rede estadual e municipal de ensino. O subprojeto “Arte Fora dos Muros da Escola: educando o olhar”, criado em 2010, sob a coordenação da professora mestra Virgínia Maria Suzart Rocha, tem como foco a atividade sistemática de apreciação estética e a inserção da Dança como prática educacional para os educandos do ensino fun-damental e médio das escolas envolvidas. A metodologia utilizada neste relato é o estudo qualitativo, de natureza exploratória e descritiva, visando o registro das atividades realizadas nas escolas. O projeto Pibid eleva, questiona e redimensio-

1 Clarice Contreiras – Mestra em Dança (UFBA-2012), professora supervisora do Pibid/ Dança /UFBA do Colégio Central e professora concursada nas redes estadual e municipal da cidade de Salvador. E-mail: [email protected]

2 Marília Curvelo – Mestra em Dança (UFBA-2013), professora supervisora Pibid/Dança/UFBA do Co-légio Estadual Thales de Azevedo e professora concursada na rede estadual de ensino da cidade de Salvador.E-mail: [email protected]

3 Maira diNatale – Licenciada em Dança (UFBA), professora supervisora Pibid/Dança/UFBA; professora da Escola Municipal Malê de Balê e professora concursada na rede municipal da cidade de Salvador. E-mail: [email protected]

4 Rita de Cássia Rodrigues – Metra em Artes Cênicas (UFBA), professora supervisora Pibid/Dança/UFBA do Centro de Esporte, Artes e Cultura César Borges – Ceac, professora concursada na rede estadual de ensino da cidade de Salvador. E-mail: [email protected]

5 Maria de Fátima Borges – Licenciada em Dança (UFBA), professora supervisora Pibid/Dança/UFBA na Escola Municipal Osvaldo Cruz e professora concursada na rede municipal de ensino da cidade de Salvador. E-mail: [email protected]

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na a qualidade de ensino oferecido aos educandos da rede pública de ensino e a prática dos educadores das escolas envolvidas. Portanto, a reflexão sobre as ações da supervisão nas escolas favorece a importante articulação teórico-prá-tica, a formação dos licenciandos, a prática docente e o aprendizado escolar, além de contribuir para a inserção da dança como área de conhecimento.

Palavras-chave: Dança. Formação profissional. Educação. Pibid.

Abstract

This article reports the experience of the activities of Pibid-Dancing in five public schools in Salvador. The Scholarship Program for Initiation to Teaching, established by the Ministry of Education, through the (SESu) Department of Higher Education, Capes - Coordination Foundation for the Improvement of Higher Education Personnel - and the National Fund for Education Development – (FNDE), promotes articulation between higher education (undergraduate) and state and local departments of education for the improvement of teaching in public schools across the country. The program enables the insertion and contact by licensing in schools of the state and municipal schools. The sub-project “Art Outside the Walls of the School: educating the eye” created in 2010 under the coordination of Master Teacher Virginia Maria Suzart Rocha, focuses on the systematic activity of aesthetic appreciation and inclusion of dance as an educational practice for students of elementary and secondary schools involved. The methodology used in this report is the qualitative study of exploratory and descriptive nature aiming the record of the activities carried out in schools. The Pibid project raises, questions and resizes the quality of education offered to the students of public schools and the teaching practice of teachers of the schools involved. Therefore, the reflection on the actions of supervision in schools promotes the important practical theoretical articulation, training of undergraduates, teaching practice and school learning and contributes to the inclusion of dance as a field of knowledge.

Keywords: Dance. Professional formation. Education. Pibid.

Introdução

No ano de 2010, a professora adjunto da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) do curso de Licenciatura em Dança da mesma institui-ção, Me. Virgínia Maria Suzart Rocha, teve seu projeto aprovado para integrar o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Pibid/UFBA. O Pibid, instituído pelo Ministério da Educação, por intermédio do SESu, da Capes e do FNDE, que promove uma articulação entre a educação superior (por meio das licenciaturas) e as secretarias estaduais e municipais de educação a favor da melhoria do ensino nas escolas públicas de todo o país.

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Desta forma, o Pibid, através das parcerias MEC/Capes/IES/SEC, se apresenta no cenário educacional como uma tentativa de valorizar e fortalecer os cursos de licenciatura e melhorar a qualidade de ensino da escola básica da rede pública de ensino estadual e municipal, objetivando “elevar a qualidade da formação inicial de educadores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre a educação superior e a educação básica”. (BRASIL, 2013).Os projetos do Pibid devem inserir os graduandos dos cursos de licenciatura, que participam do pro-grama, no contexto das escolas públicas desde o início da sua formação acadê-mica. Assim, os licenciandos desenvolvem atividades didático-pedagógicas, sob a orientação do coordenador do projeto (professor da universidade) e professor supervisor (educador da escola).

O subprojeto apresentado no ano de 2010 pela professora da Escola de Dan-ça (UFBA) e coordenadora do Pibid/Dança/UFBA, Virgínia Maria Suzart Rocha, intitulado Arte fora dos Muros da Escola Pública: educando o olhar, o qual, se-gundo a autora, tem como eixo condutor a arte contemporânea e a “educação do olhar”, considerando o exercício da apreciação estética fundamental para a construção de significados e ressignificação de conceitos e ideias em arte em dança. O objetivo principal é (re)inserir e fortalecer o ensino da Dança como área de conhecimento nas escolas da rede pública de ensino envolvidas, seja esta inserção no componente curricular Arte/Dança ou na forma de oficinas de dança oferecidas para toda a comunidade escolar, como cita a coordenadora em seu relatório do período de 2010.

O trabalho se pauta na discussão e possibilidade da (re) inser-ção do ensino dança como área de conhecimento no projeto po-lítico pedagógico da Escola Pública, buscando identificar a sua estrutura e funcionamento, enquanto componente curricular no Ensino Médio a partir da atuação dos licenciandos em Dança da Escola de Dança da UFBA, com o objetivo de oferecer aos alu-nos de Dança a possibilidade de desenvolver habilidades con-cretas por meio da aplicação de conhecimentos apreendidos na academia e contribuir com a comunidade das Escolas Públicas enquanto agentes de transformação social. (ROCHA;2010, p.6)

Atualmente o projeto Pibid/Dança conta com a participação efetiva de: uma coor-denadora da área (professora da faculdade Escola de Dança/UFBA), cinco su-pervisoras (professoras da rede pública estadual e municipal de ensino) e vinte e cinco bolsistas graduandos do curso de licenciatura em dança da UFBA. As escolas parceiras do projeto são: Colégio Estadual Thales de Azevedo, Colégio Estadual da Bahia – Central, Centro de Esporte, Artes e Cultura César Borges – Ceac CB, Escola Municipal Malê Debalê e Escola Municipal Osvaldo Cruz.

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Como um programa de valorização do magistério, o Pibid incentiva as escolas da rede pública de educação básica a mobilizar seus educadores para que estes se tornem supervisores da área em questão e deste modo, tornando-os prota-gonistas no processo de formação inicial dos licenciandos, futuros educadores.

De acordo com Paulo Freire (2009), não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pes-quisa, portanto, o professor enquanto ensina continua buscando, questionando, aprendendo. Nesse sentido, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Pibid/Dança reafirma esta prática quando articula o ensino superior e as escolas da rede estadual e municipal de educação.

O Pibid, por ser um programa inovador, é um desafio para todos os envolvidos. Para os estudantes de graduação, o contato com as escolas e seus alunos pro-porciona a ambiência propícia para adentrar ao estudo teórico-prático da Arte/Dança. Para os supervisores, a complexa tarefa de mostrar aos bolsistas a rea-lidade das escolas públicas, porém, ao mesmo tempo, enfatizar a possibilidade de se fazer um trabalho de qualidade, mesmo em condições adversas.

Ampliando o olhar para a prática pedagógica

No primeiro momento para se iniciar as ações do Pibid/Dança nas escolas, a orientação da coordenadora para os licenciandos junto às professoras supervi-soras, foi de participar de visitas às escolas, desenvolver planos de atividades, realizar questionários institucionais e perceber a relação de convívio entre pro-fessor, licenciando, alunos e funcionários, administração, vice-direção e direção. Esta medida foi realizada nas cinco escolas.

Com base nas observações diagnósticas nas escolas e em sala de aula, o pla-nejamento foi elaborado e executado, considerando a realidade e necessidade de cada um desses espaços educacionais, em consonância com os objetivos do subprojeto Arte fora dos Muros da Escola Pública: educando o olhar, sendo um dos mais relevantes: oportunizar aos estudantes experiências em atividades de apreciação estética, fazendo emergir a necessidade de propor/criar espaços de discussão no contato direto com o mundo da arte e da cultura nas suas mais variadas configurações, em sala de aula ou fora dela, com visitas a museus e teatros da cidade de Salvador.

Apreciações estéticas ampliam o olhar sobre o corpo, cultura e arte contemporânea nas experiências vividas fora dos muros da escola e dentro da práxis pedagógica.

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Há uma continuidade entre a experiência cotidiana e a experiên-cia estética artística mais refinada, de tal forma que uma pre-cisa ser construída a partir da outra. É imprescindível partir do cotidiano das pessoas, da realidade vivida e dos significados compartilhados com a comunidade imediata para, então, pouco a pouco, ir construindo a experiência estética singular. Esse pro-cesso de construção precisa ser realizado a partir de situações de ensino planejadas, mas incentivando problematização e a in-vestigação permanente por parte do aluno. (DEWEY, 2010)

Portanto, as aulas de dança ocorridas nas cinco escolas parceiras contemplaram os desejos e necessidades dos envolvidos de modo a oportunizar aos estudan-tes o conhecimento de novas formas de expressão e comunicação. Tentando, assim, cumprir com um dos objetivos específicos do subprojeto que é ressigni-ficar conceitos e ideias no que se refere à Arte, especificamente neste caso, à Dança.

As atividades de apreciação estética propostas pelo subprojeto “Arte fora dos muros da escola”, envolvem tanto os estudantes de dança quanto os demais, que não frequentam as oficinas. São visitas mediadas a museus e ida a teatros para fruição de espetáculos de dança, favorecendo o estabelecimento de diálo-go entre os estudantes e a arte que é produzida na sua cidade e no mundo. Essa ação pode contribuir para o desenvolvimento de uma postura crítica-reflexiva sobre as ofertas artísticas e midiáticas postas na contemporaneidade.

Discussões, diálogos e análises após estas “saídas dos muros da escola”, além de possibilitar uma maior integração dos estudantes, bolsistas e professores, proporcionam também troca de informações e de pontos de vista sobre a dança entre todos os envolvidos, fundamental para o desenvolvimento de um olhar mais amplo, estético e sensível em relação às obras de Arte, em geral, e às pro-duções de Dança, em particular.

Dessa forma, o Pibid/Dança favorece o contato dos estudantes com a arte que existe na cidade e no mundo, proporcionando uma postura crítico-reflexiva pe-rante as obras visitadas/apreciadas e, consequentemente, uma ampliação do acesso à cultura. Como esclarece Barbosa,

O que a arte na escola principalmente pretende é formar o co-nhecedor, fruidor e decodificador da obra de arte [...]. A escola seria a instituição pública que pode tornar o acesso à arte pos-sível para a vasta maioria dos estudantes em nossa nação [...]. (BARBOSA,1991, p. 10)

Pode-se destacar como um ganho para o programa Pibid a inserção da lingua-gem artística Dança no componente curricular Arte no Colégio Estadual da Bahia

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– Central. No início do ano letivo de 2011, segundo relato da supervisora dessa unidade escolar, Clarice Contreiras, todos os alunos da 2ª série do ensino mé-dio passam a participar das aulas de Dança, que é proposta pela escola como atividade curricular obrigatória inserida na disciplina Arte. Estas aulas de caráter teórico-prática têm como objetivo incentivar o reconhecimento do corpo e suas possibilidades de movimento, experimentando elementos básicos da dança, es-timulando os alunos no seu processo criativo, levando-os a reconhecer a dança como linguagem artística na sua forma mais ampla, sem restringi–la a estilos. Ainda em 2011, foi formado um grupo de Hip-Hop (iniciativa dos alunos) que, sob a coordenação de um bolsista do Pibid, construíram uma coreografia apresenta-da em alguns locais da cidade de Salvador.

No momento que a escola assume e implanta a Dança no com-ponente curricular, essa ação fortalece a aprendizagem desta linguagem artística enquanto área autônoma de conhecimento. “Nesse sentido trabalhar com a dança nesse espaço sociocultu-ral garante um ambiente de liberdade para acionar os processos criativos dos estudantes, facultando a emergência de potenciais expressivos”. (ROCHA;2010, p. 8)

Em 2012, Marília Curvelo, supervisora e professora do Colégio Estadual Thales de Azevedo conta que, após uma greve de 115 dias, que interrompeu completa-mente o trabalho nas escolas, teve que desenvolver inúmeras estratégias para reconquistar os estudantes para a Dança e compensar de alguma forma o tempo parado. Foi produzido o musical regional O Baile do Menino Deus se utilizando de músicas regionais, dança e teatro. Essa peça envolveu estudantes e bolsistas durante os meses após o retorno da greve e proporcionou o contato de todos os envolvidos com diversas linguagens artísticas (dança, música e teatro) além de uma maior proximidade com elementos da cultura popular (boi, burrinha, cabocli-nhos, pastorinhas, entre outros). Este musical foi apresentado com bastante su-cesso no mês de dezembro na escola (nos três turnos) e no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, sendo a produção bastante elogiada por todos que assistiram.

O ano de 2012 foi marcado por uma grande greve dos professores da rede esta-dual de ensino sendo necessário, no retorno às aulas, serem criadas novas es-tratégias por conta da desmotivação em que todos se encontravam no ambiente das escolas estaduais nas aulas pós-greve.

Este foi um desafio que o grupo Pibid/Dança/UFBA (bolsistas/ coordenadora/supervisoras/ estudantes) encontrou, mas, compreendendo que quanto aos ob-jetivos específicos na atuação do bolsista licenciando no início do exercício do-cente evidenciam-se as seguintes ideias: ampliar na prática da sala de aula o

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conhecimento teórico apreendido na universidade; considerar os aspectos do ambiente escolar para aplicar o plano de atuação; buscar novos elementos para a construção da prática em sala de aula; aprender a ser flexível no que se refere ao cotidiano escolar, afinal, muitas vezes o planejamento sofre alterações devi-do às dificuldades encontradas e à busca pelas possíveis soluções de modo a poder desenvolver o trabalho desejado, a situação imposta no retorno da greve beneficiou o aprendizado de todos os envolvidos.

Um dos objetivos, observado pelo grupo Pibid/Dança, que norteia o programa das aulas promovidas pelo PIBID nas unidades escolares é construir junto com os estudantes, a partir de suas necessidades e do contexto que se apresenta uma prática em sala de aula que possibilite a eles outra vivência corpo – espaço além daquela já experimentada em uma sala de aula tradicional. Através dos movimentos da dança os educandos passam a refletir sobre a história de seus corpos e as relações que estabelecem com o ambiente interno e externo à es-cola em seu cotidiano.

Desse modo, os bolsistas licenciandos que atuam no projeto aproveitam a opor-tunidade para buscar novas pesquisas, experiências e conhecimentos na área da Dança e na educação, o que contribui para a formação acadêmica desses bolsistas e em sua atuação como futuros professores de dança.

No ano de 2012, o Pibid/Dança foi implantado no Centro de Esporte, Arte e Cultura César Borges (Ceac-CB), tendo como supervisora a professora Rita de Cássia Rodrigues. Essa unidade da rede de ensino estadual tem um caráter di-ferenciado dos outros colégios que também fazem parte do Pibid/Dança/UFBA, pois este espaço criado em 2002 desenvolve atividades de Esporte, Arte e Cul-tura no turno diferente do regular. Podem participar estudantes da rede estadual e pessoas da comunidade. Atualmente são oferecidos cursos de futebol, karatê, capoeira, teatro, dança, música, ginástica rítmica e artes visuais.

Os licenciandos inseridos no cotidiano do Ceac-CB vivenciaram a criação em dança e participaram de experiências metodológicas interligadas aos objetos de estudo de interesse conjunto, buscando caráter inovador das ações para superar questões postas na aprendizagem pedagógica. Resultando na criação proces-sual intitulada Corpo Sonoro.

A supervisora Rita de Cássia Rodrigues apresenta a metodologia desenvolvida no Ceac, em que, a cada processo, o resultado criativo construído pela equipe ia reconfigurando as cenas da coreografia corpo sonoro. O título surgiu no es-boço de um processo criativo antes vivido pela professora-supervisora, que in-

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tencionava conexão investigativa do corpo e do ritmo pelo movimento de dança. Entretanto, nessa experiência, corpo sonoro constrói princípios (dança/música) arquivados na memória corporal do dançarino, os quais podem ser acessados em qualquer tempo e espaço que se queira dançar. Foi tomando corpo como um “lugar” de entrada e saída de múltiplas configurações acessadas na memória corporal.

O trabalho ganhou visibilidade e impacto no Centro Cultural de Plataforma pela qualidade de ideias e materiais ressignificados. Aflorou e reforçou potencial ar-tístico de alunos, demonstrando a habilidade e competência dos licenciandos ao investigar, organizar e produzir o resultado provisório, através de mostras artísticas.

A experiência contribuiu para a construção de dois Relatos de Experiências sob os títulos: “Perspectivas para abordagens de danças populares brasileiras em práticas educacionais no Pibid-UFBA”, apresentado no Seminário Interseções Corpo e Memória, realizado na Universidade Federal de Pernambuco (2012) e “Corpo-memória: Práticas de investigação e criação em dança com ênfase nos elementos da cultura afro-brasileira”, apresentado em comunicação proferida no Seminário do Pibid realizado em São Luís do Maranhão (2012).

A Escola Municipal Osvaldo Cruz e a Escola Municipal Malê Debalê que têm como supervisoras as professoras Maria de Fátima Borges e Maira di Natali, respectivamente, passaram a participar do programa Pibid/Dança/ UFBA no ano de 2012, e apresentam nos seus planos de trabalho ações que visam à valori-zação do sujeito (estudante da rede municipal), a partir de uma experiência vol-tada para formação cidadã. Livre de padrões corporais estéticos e metodologias absolutas, afirmando que todo trabalho corporal é válido para alcançar todos os corpos e suas potencialidades.

Esse processo, de acordo com as supervisoras, provoca no educador, ou naque-le que se dispõe a sê-lo, uma atitude de entendimento de todo o contexto que cerca esse educando. A partir dessa reflexão, as bolsistas Pibid– Dança, são mobilizadas a entender seu papel como educadoras e a importância do ensino da arte enquanto via para uma possível transformação social.

Ao possibilitar esta ponte entre a universidade e a escola pública, o programa Pibid estimula a formação continuada dos professores da rede pública e favore-ce o diálogo entre os bolsistas graduandos em Dança, com suas novas ideias e propostas e a experiência dos docentes nas escolas. O desejo de compartilhar com os bolsistas a possibilidade de se fazer um trabalho de qualidade com Dan-

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ça nas escolas públicas, mesmo em condições difíceis, é realmente o grande desafio para o trabalho da supervisão.

Esta troca de conhecimento entre graduandos e professores supervisores enri-quece o trabalho na escola. Formação é um contínuo. Jaques Delors (2006), no relatório para a Unesco sobre a educação para o século XXI, aponta quatro pi-lares para educação, são eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Esses conceitos se adaptam perfeitamente aos princípios do Pibid, destacando aprender a fazer, pois este não está relacionado apenas a qualificação profissional, mas, às competências que tornam a pessoa apta a enfrentar as diversas situações e a trabalhar em equipe.

Atualmente, o mundo no seu conjunto evolui tão rapidamente que os professores, como, aliás, os membros das outras profis-sões, devem começar a admitir que a sua formação inicial não lhes bastam para o resto da vida: precisam se atualizar e aper-feiçoar os seus conhecimentos e técnicas, ao longo de toda a vida. (DELORS, 2006, p.162)

Nesse aspecto, a inserção do Pibid/Dança nas escolas parceiras proporcionou uma troca de conhecimento que afeta diretamente a prática docente. O contato com os bolsistas licenciandos leva todos os envolvidos a refletir sobre as au-las, conduzindo a outro lugar que não fosse do comodismo e do desgaste pelo cotidiano escolar, mas a uma necessidade de atualização de conhecimentos e competências.

Conclusão

O Pibid/Dança/UFBA nos espaços retratados tornou-se um referencial para os estudantes das escolas e os graduandos do curso de licenciatura em dança, posto que na sala de aula e fora dos muros da escola, agregou valores, ensino e pesquisa para superar os desafios que surgem com a vivência pedagógica, com estratégias e ações supervisionadas pelas professoras e orientadas pela coordenadora do projeto. Além disso, a possibilidade de troca entre os bolsistas e supervisores dos diversos espaços escolares favorece o crescimento do grupo através da troca de experiências e estratégias, reforçando ações significativas na prática pedagógica. Como esclarece Morin,

É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do com-plexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto. (MORIN, 2010, p. 89)

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A apreciação estética favorece a criação processual e configura suas interfaces, alia objetos de pesquisas dos licenciandos que planejam em diálogo com os apor-tes teóricos, reforçando o diálogo interdisciplinar entre as modalidades em curso.

As atividades de supervisão pedagógica visaram: a preparação das oficinas de dança; pesquisa de campo em dança popular de matrizes africana e indígena (no Ceac); memórias-registro/visuais/audiovisuais/entrevistas; mostra do tra-balho no Seminário Interno Pibid-Dança e Acta; aprofundamento dos trabalhos teórico-práticos realizados, registros em diários, questionários, leitura de textos e resumos, articulação com as experiências vividas; elaboração de relatos de experiência individual e coletiva; mostras coreográficas e bate-papo sobre os processos de ensino-aprendizado; apreciação estética em espetáculos, encon-tros culturais, teatros, museus e manifestações culturais de cunho diverso.

O Pibid/Dança através de suas ações nas escolas amplia o olhar de todos os envolvidos, possibilita novas leituras da realidade, modifica o ambiente escolar, dinamizando ações para o aprendizado significativo e ajuda a pensar as diversas culturas, fortalecendo a educação, arte e cidadania no Brasil.

Socializar esta experiência de ensino da dança que acontece no Pibid pode con-tribuir para os profissionais da dança, em geral, como reflexão sobre a prática docente, valorização da dança no espaço escolar e seu definitivo reconhecimen-to como campo/área de conhecimento.

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O crítico espectador: reflexão, discurso e visibilidade na dança contemporânea

Cláudia Góes Müller (UFU)1

Resumo

Ao longo do processo de HELP! I need somebody, trabalho artístico da autora, estreado em 2013, um físico, percebendo a preocupação sobre a relação com o público, afirmou: – Este espetáculo deveria estrear no mundo quântico! Ao que acrescentou: – Já foi comprovado que, no mundo das partículas (moléculas, átomos e partículas subatômicas), não há como observá-las sem interferir em seu comportamento e organização. Em HELP!, durante o chamado Serviço de Atenção ao Espectador (S.A.E.), o público é convidado a ocupar o lugar de críti-co. No presente artigo, pretendo discutir as políticas do encontro e de participa-ção presentes na interseção obra-público-artista em dança contemporânea: de que modo a produção artística neste campo torna-se (in) acessível ao público e como considerar, no processo e na construção da obra, os seus próprios modos de visibilidade e de construção de discurso crítico.

Palavras-chave: Espectador. Crítica. Dança contemporânea.

Abstract:

During the process of HELP! I need somebody, an artistic project from this article’s author premiered in 2013, a physicist, aware of the audience relations concern, affirmed: - This spectacle should be premiered in the quantum world! And added: - It has been already proved that, in the world of particles (molecules, atoms and subatomic particles), there’s no way of observing them without interfering in their behavior and organization. Within HELP! the audience is invited to take the place of critic, during the called S.A.S. (Spectator Attention Service). In this article, I intend to discuss the encounter and participation politics in the work-spectator-artist intersection of contemporary dance: how artistic work becomes (in) accessible for the audience, and how to consider, in the process and construction of the work, their own ways of visibility and construction of critical discourse.

Keywords: Espectator. Critic. Contemporary dance.

Em agosto de 2010 recebi três e-mails criticando, negativamente, um de meus trabalhos apresentado no Teatro do Sesi, São Paulo, por ocasião do Panorama 1 Artista com projetos desenvolvidos em dança contemporânea e performance. É professora efetiva do

Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Uberlândia ([email protected]).

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Sesi de Dança daquele ano. Os remetentes não eram críticos profissionais ou curadores. Tratava-se de espectadores indignados, que, através do Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) da instituição, manifestavam sua insatisfação com o espetáculo. Pedi à curadoria do evento que me repassasse as mensagens. As li com atenção, mas, naquele momento, considerei-as fruto da “incapacidade” do público de observar e perceber a proposição em jogo.

Foram necessários seis meses até que pudesse assistir às imagens daquelas apresentações. Levei outros três anos, pensando no significado das reclama-ções dirigidas ao SAC e no que isso poderia dizer respeito ao meu trabalho e à (im)possibilidade de diálogo daquela obra com o público.

Naquela ocasião, mais de uma centena de pessoas aguardavam a distribuição de ingressos numa calçada de uma das principais avenidas da cidade de São Paulo. Nos dias que antecederam aquela data, me reuni com a equipe do evento e da instituição: produtores, curadores, seguranças, bilheteiros. Ofereci informa-ções detalhadas sobre o que teria lugar ali. Diversas questões e dúvidas foram respondidas. Na noite gélida do evento, quando a primeira ação aconteceu na bilheteria, com a aparição de uma performer, fazendo as vezes de produtora e informando que a lotação do espetáculo para aquela noite já estava esgotada (a capacidade de público de Exhibition se restringe a 40 pessoas); boa parte do público se enfureceu (e com razão). Mas, parte dos que adentraram o saguão do teatro, ainda permaneceu extremamente irritada. A performer/produtora obe-decia aos protocolos do trabalho, deflagrando a questão principal que perpassa, o tempo todo, aquela obra: os mecanismos de inclusão e exclusão em inúmeros contextos sociais. Corria um vento impiedoso no espaço demasiadamente am-plo para abrigar as pessoas autorizadas a adentrar o foyer do teatro. Além da temperatura desagradável, uma tensão pairava no ar, fruto de uma montagem técnica apressada, recheada de falhas de comunicação entre minha equipe e a da produção do evento. Somado a isso, Exhibition era uma obra a ser problema-tizada, revista e carente de discussões mais amplas.

O trabalho só voltou à cena 10 meses depois, em versão mais claramente irôni-ca, com diversos aspectos mais articulados e discutidos. Em suas apresenta-ções, Exhibition ainda hoje causa estranhamento e reações inflamadas, mas prevê, a cada remontagem, modificações e questionamentos, necessários nos encontros e embates com espectadores diversos.

O S.A.E. finaliza HELP! I need somebody, espetáculo de minha autoria, em colabo-ração com Clarissa Sacchelli e Juliano Gomes. Os três artistas posicionam outras

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três cadeiras em frente às suas, de modo a propiciar um encontro próximo com quaisquer pessoas do público que desejem dialogar, deixar seu depoimento, críti-ca, sugestão ou reclamação. Esta experiência surgiu, sem nenhuma dúvida, como reverberação de Exhibition e dos acontecimentos no Sesi São Paulo. A ideia não é atender ao cliente, mas dar visibilidade ao espaço já existente entre a obra e seu público e instaurar um lugar de potência para o diálogo e a discussão. Aos outros ar-tistas e a mim, interessava ver o espectador, percebê-lo ao longo de todo o processo de criação. Essa foi, desde sempre, a questão deste trabalho, em especial. Muitas formas de percebê-lo foram colocadas em questão. Um problema me inquietava: como tornar um ambiente, de fato, receptivo à escuta, se nas conversas públicas após o espetáculo, normalmente o “diálogo” atende apenas aos mais extrovertidos ou aos experts no assunto, que não se intimidam com a exposição pública?

Nos últimos 15 anos proliferaram conversas após os espetáculos em festivais de dança contemporânea2 e outros contextos dedicados às artes performativas. Mediadas por artistas, críticos, pesquisadores e toda a ordem de especialistas em dança, teatro, performance, filosofia, antropologia ou áreas correlatas. O que, a princípio, pretende construir uma ponte entre obra, artista e público, pode reve-lar-se, frequentemente, uma armadilha. O debate após a apresentação pode ser, sem dúvida, profícuo. Mas como livrar-se do estigma da aparente democratiza-ção da arte contemporânea? Como isentar-se do papel de “explicador” da obra? Como tornar acessível um processo de criação que, muitas vezes, sequer apare-ce na cena? E se, diante da fachada da acessibilidade, jaz a ditadura da conver-sa após o espetáculo? O autoritarismo avizinha-se: a conversa pode impor uma lente através da qual o espectador deve perceber uma obra. E há, ainda, que se considerar as obras que nos embalam por meio de sensações, nos mobilizam e, em certas circunstâncias, não criam desejo algum de verbalização.

Em HELP!, elegemos particularizar cada espectador para ouvi-lo no S.A.E. Aves-sos ao mal-estar e à exposição da conversa ou debate pós-espetáculo, preferi-mos propor a situação téte-a-téte (um a um ou em pequenos grupos, quando nos solicitassem), de forma que cada performer ficasse à disposição dos espectado-res durante meia hora após cada apresentação. Durante a temporada de estreia (16 apresentações), passamos de 30 a 90 minutos por dia, ouvindo comentários, críticas e respondendo a inúmeras perguntas. A cada dia, nós, artistas, trocáva-mos impressões sobre o que tínhamos ouvido e debatíamos longamente sobre as reflexões que nos eram trazidas, as observações surpreendentes e os con-sequentes (e necessários) ajustes no trabalho. “Não entendi” – era a frase mais

2 Percorrendo o Brasil e alguns países europeus, em diversos eventos e festivais, percebe-se que este mo-delo é recorrente, sobretudo, a partir do final dos anos 1990.

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constante no início dos diálogos. Entretanto, essas duas palavras, geralmente, revelavam uma compreensão particular, considerada inválida por aqueles que as proferiam. Era o que notávamos ao avançar pelas veredas das conversas que podiam durar mais até do que a meia hora prevista inicialmente.

Nosso desejo em HELP!, ainda em começo de trajetória, foi, desde o início do processo, potencializar o encontro através do coletivo temporário formado en-tre artistas e espectadores por meio de um projeto artístico. E, no decorrer do caminho, na vivência de cada apresentação, buscamos permanecer atentos a essa motivação primeira, em toda a gama de possíveis leituras propiciadas pela escuta de cada outro-espectador, alertas para não ignorar o dissenso – cerne da experiência política. A alteridade, praticada diariamente, tem nos levado a uma reflexão constante sobre as noções de autoria, autoridade e crítica, transitando por uma possível morte do autor, apontada por Barthes:

Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita. Esta concepção convém perfeitamente à crítica, que pretende então atribuir-se a tarefa importante de descobrir o Autor... sob a obra: encontrado o Autor, o texto é ‘explicado’, o crítico venceu; não há pois nada de espantoso no fato de, historicamente, o reino do Autor ter sido também o do Crítico, nem no de a crítica (ainda que nova) ser hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor. (BARTHES, 2004, p. 4)

O Projeto DR,3,um coletivo de quatro artistas sediadas em São Paulo, interes-sadas nos limites tênues entre processo e apresentação, em espetáculos “não espetaculares” demonstra seu interesse por outras possibilidades de crítica em suas pesquisas. Em Episódico, projeto estreado em 2009, o que se apresenta é um híbrido de processo e produto artístico/espetáculo onde as cenas se formam, seguindo uma certa estrutura de regras, permitindo uma grande dose de plastici-dade a cada performance. Ao final de Episódico, o público é convidado a avaliar o espetáculo, as intérpretes e sua própria avaliação. O modo bem-humorado de lidar com a metalinguagem e a crítica coloca em xeque as noções de obra, pro-cesso e crítica. A avaliação da avaliação integra a obra, tanto quanto qualquer outra parte, trazendo à tona a noção de Duchamp de coeficiente da arte:

Em última análise, o artista pode proclamar de todos os telha-dos que é um gênio; terá de esperar pelo veredicto do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte [...] Por conseguinte na cadeia de reações

3 Laura Bruno, Mara Guerrero, Tarina Quelho e Sheila Arêas são as artistas que integram o Projeto DR, cujos principais interesses residem na relação entre processo e produto artístico, a formalização da dan-ça, a criação coletiva, as possibilidades de produção e divulgação de trabalhos.

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que acompanham o ato criador falta um elo. Esta falha que re-presenta a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte. [...] Resumindo, o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualida-des intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador. Isto torna-se ainda mais óbvio quando a posteridade dá o seu veredicto final e, as vezes, reabilita artistas esquecidos. (DUCHAMP, 2004, p. 23)

Se aquele que assiste é, para a arte contemporânea, em que não há mais es-paço para o espectador meramente contemplativo, parte fundamental do seu sistema; pressupõe-se um espectador que constrói discurso diante do que vê. Mas, que tipo de engajamento o artista e obra almejam com relação ao público? O que se espera e se quer do público?

O público de dança ou teatro é, geralmente, coreografado de acordo com um “manual” que pouco varia: Deve dirigir-se à bilheteria para adquirir sua entrada, adentrar a sala de espera, onde, no horário devido, lhe será facultado o ingresso na sala de espetáculos. Em caso de urgência, sairá discretamente flexionando os joelhos e curvando seu tronco à frente. Não falará em voz alta, mas partici-pará, se interpelado. Quando reconhecer o fim, saberá que é chegada a hora de aplaudir (mais ou menos, segundo o calor do momento) e de sair do teatro. Dele se espera educação e bons modos, evitando ruídos desnecessários, movimen-tos considerados inadequados para a situação, manifestações não previstas. Os artistas (e também as instituições) almejam a participação do público, desde que, medida, coreografada, normatizada.

Basbaum, chamando atenção para diversos artistas e pensadores preocupados com a questão, salienta que

O próprio conceito de ‘arte contemporânea’ hoje envolve a parti-cipação, no sentido de que se não houver mobilização ativa das vontades do ‘sujeito fruidor’ o trabalho não acontece: os traba-lhos são ativados pelo espectador, numa absorção das teorias da ‘obra aberta’, ‘estética da recepção’ e ‘espectador participan-te’ - dos anos 50/60. Estas teorias podem ser complementadas pelas idéias das ‘tecnologias de si’ (Michel Foucault) e ‘autono-mia’. [...] Vê-se que o sujeito contemporâneo poderia estar bem ‘aparelhado’ na defesa de seus interesses, um espectador que é potencialmente um artista... (BASBAUM, 2002)

Entretanto, eis que o espectador encontra-se diante de um paradoxo: Dele se espera atividade (intelectual) e passividade (física). Deve decifrar códigos, per-

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ceber detalhes, ser capaz de articulações inteligentes de forma a não aplaudir o “artista-criador-demiurgo” apenas por educação. Mas, por outro lado, exige-se que perceba os “códigos de conduta” do espaço artístico. Se o público é neces-sário para que um trabalho de dança contemporânea ganhe existência, se ele dá sentido à obra, se, em alguns casos, ele é apontado como coautor de projetos desta natureza; é preciso pensar de que forma ele integra a construção da obra, ao longo de todo o processo e não apenas aquele a quem se vê, na melhor hi-pótese, no ensaio aberto antes da estreia.

A crítica e o discurso “especializado” definem uma hierarquia: quem fala, quem pode falar, quem é autorizado a produzir discurso com e sobre trabalhos artísti-cos. Se o espectador é potencialmente artista4, porque não seria ele também um crítico? Se ainda perdura a ideia de que é preciso “entender” uma obra, já é hora de suspender este verbo que não nos amplia possibilidades, seja em relação ao espectador, seja em relação ao nosso próprio fazer como artistas, pesquisadores, curadores, docentes. Ao artista e ao crítico não cabe explicar a obra. Logo, tam-pouco se trata do público “entender” a obra, como uma charada ou um código a ser decifrado. Se a arte contemporânea “dá o que falar”, suscita comentários, reações, indignações; claramente produz discursos críticos por parte do espectador – aque-le que fala na proximidade daquilo que o provoca, sem compromisso com o metier ou com a repercussão de sua crítica. Se seu discurso traça percursos interessan-tes, alinhava pensamentos coerentes, demonstra familiaridade com o assunto ou se faz uso de parâmetros que não nos aproximam da arte contemporânea, isto já é assunto para outro artigo que se dedique a debruçar-se detalhadamente sobre esta questão. Antes desta, uma outra reflexão me ocupa:

Tal é o círculo vicioso da escrita sobre a arte: artistas fazem o trabalho; críticos comentam. Existe alguma essência natural pertencente às palavras, trabalhos de arte ou à percepção que poderia garantir que as coisas deveriam proceder assim? Ao reproduzir infinitamente essa estrutura, uma certa hierarquia é produzida: artistas na base, como produtores de imagens; crí-ticos e curadores (e galeristas) no topo, como aqueles respon-sáveis por organizar a discussão sobre o sentido dos trabalhos. (BASBAUM, 2013, p. 42)

À crítica da dança contemporânea no Brasil corresponde uma imagem de ausência e vazio5. Além dos escassos espaços para publicação e abertura de

4 Refiro-me a uma corrente de estudiosos, pesquisadores e a artistas como Lygia Clark e Helio Oiticica (para citar apenas dois, de diversos exemplos cabíveis) que se assumem simplesmente como proposito-res, cuja obra existe somente por meio da participação do espectador.

5 Evidentemente, a visão apresentada aqui lamenta um panorama mais geral da crítica e, de forma algu-ma, invalida o trabalho árduo e sério dos poucos críticos e pesquisadores que têm dedicado sua vida a acompanhar e discutir a dança contemporânea brasileira.

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um debate público, poucos críticos são compelidos ao papel profissional que lhes cabe e, claramente, optam por assistir apenas pequena parte das produ-ções em cartaz. Ao longo de suas trajetórias, escassos artistas envolvidos com a dança contemporânea se deparam com críticos dispostos a acompanhar e debater seus processos, suas pesquisas, interesses e motivações.6

Vejo, como artista, que me cabe também o papel múltiplo de refletir sobre os contextos nos quais as obras artísticas são vistas, percebidas e discutidas. Se, como à Rancière, nos interessa também (como artistas) um projeto de eman-cipação do espectador, precisamos percebê-lo em corpo, voz e pensamento. “Abrir” um debate como quem cumpre a contrapartida de um projeto, reforça apenas o interesse no número de ingressos contabilizados, como uma espécie de atestado de sucesso de bilheteria de um espetáculo em conivência com os departamentos de marketing das empresas ou instituições patrocinadoras.

Conversando com amigos físicos sobre as questões que me instigavam durante o processo de investigação do meu último projeto artístico, ouvi: – HELP! deveria estrear no mundo quântico – foi a observação de um deles, que prosseguiu: A fí-sica já comprovou que qualquer observação altera o comportamento de suas mo-léculas, átomos e partículas subatômicas. Não há como utilizar luz para observar estas partículas, pois a luz é feita de fótons que são partículas aproximadamente do mesmo tamanho das que queremos observar. Um fóton, em contato com outra partícula atômica, pode modificar seu comportamento ou mesmo destruí-la. Pode-mos utilizar outros equipamentos, como um colisor de partículas. Mas, qualquer tentativa de observação deste mundo altera sua rotina. E é por isto que os físicos comumente dizem que não há espectadores passivos no mundo quântico.

ReferênciasBARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. Rumor da Língua. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/164728313/BARTHES-Roland-A-morte-do-Autor-in-O-Rumor-da-lingua>. Acesso em: 21 dez. 2013.

6 Uma das poucas experiências, nesse sentido, da qual participei, aconteceu durante o festival Interação e Conectividade em Salvador-BA, no ano de 2010. Na ocasião, cabia aos críticos e jornalistas escreverem, não a partir de um espetáculo específico de um dos artistas convidados, mas, após um contato mais in-tenso ao acompanhá-lo durante uma semana em todas as suas atividades. Em outra das raras iniciativas neste sentido, diversos artistas cariocas lembrarão dos anos de 2004 e 2005, quando Eduardo Bonito, recém chegado à cidade, visitava salas de ensaio, mapeando a produção cultural, no campo das artes performativas, da cidade. Apesar de não ocupar a posição de crítico, esta foi uma ação importante para o reconhecimento dos processos de uma geração de artistas (sobretudo na ausência da crítica) e diversas ações do Festival Panorama de Dança foram semeadas ali, incluindo a criação de uma biblioteca pela Associação Panorama. Mais recentemente, o 7x7, projeto idealizado pela artista Sheila Ribeiro, procura problematizar este vazio, dando voz a artistas que escrevem a respeito dos trabalhos de seus pares.

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BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

____________ 25ª Bienal de São Paulo. In: LOPES, Fernanda. Entrevista com Ricardo Basbaum. São Paulo: Obraprima.net, 2002. Disponível em: <http://rbtxt.files.wordpress.com/2009/09/entrevistas_bienal_fernanda_lopes.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2013.

BISHOP, Claire (ed.). Participation. London: Whitechapel Gallery, 2006.

DR, Projeto. Apresentação. Disponível em: <http://www.dr.art.br>. Acesso em 29 dez. 2013.

DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 2004

RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Vilaboa: Ellago Ediciones, 2010.

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Improvisação em dança: padrão como sobrevivência, memória como atualização, ruptura como desafio

Claudinei Sevegnani (UFBA)1

Resumo

A improvisação pode ser entendida como um sistema evolutivo em que se ope-ram processos de troca e de transformação de informações entre corpo e am-biente que a fazem evoluir na duração do tempo. As memórias são um dos subs-tratos de atualizações e refazimentos de movimentos, constituindo espaços de pesquisa para compreender que o que dançamos hoje não é resultado de um progresso – no sentido de melhoria, portanto, carregado de aspectos de valora-ção –, mas sim no sentido de evolução, constituído por processos que aconte-cem ao longo do tempo e que permitem transformações, sem noção de meta a ser atingida. A improvisação, numa perspectiva de processo evolutivo, encontra na memória sua base de continuidade e de permanência. A ruptura de padrão instaura possibilidades de sobrevivência através de ações reflexivas e críticas sobre os modos de constituição da improvisação e das memórias do corpo.

Palavras-chave: Improvisação em dança. Memória. Processos evolutivos.

Abstract

Improvisation can be understood as an evolutionary system where operates processes of exchange and transformation of information between body and environment that make it evolve in time duration. Memories are one of the substrates of updates and remakes of movements, providing spaces for research to understand what we dance today is not the result of progress – in the sense of improvement, so laden with aspects of valuation – but in the sense of evolution, constituted by processes occurring over time that permit transformations, without a notion of goal to be achieved. The improvisation, in a perspective of evolutionary process, finds in memory its base of continuity and permanence. The rupture pattern establishes survival possibilities through reflective criticism actions about the ways of improvisation constitution and body memories.

Keywords: Dance improvisation. Memory. Evolutionary processes.

1 Claudinei Sevegnani, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dança da Escola de Dança da

UFBA. E-mail: [email protected]

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A improvisação em dança pode ser compreendida como um sistema aberto que se caracteriza por processos evolutivos. É composição em tempo real, no aqui e agora, que opera na adaptação através das restrições e das possibilidades de acontecimentos. A possibilidade de um sistema de selecionar informações que possam garantir sua sobrevivência chama-se evolução. Por ser um sistema aber-to, o corpo seleciona informações, caracterizando-se como um sistema dissipati-vo que transforma energia num ambiente físico e cultural. (MARTINS, 1999)

Os processos evolutivos são aqueles caracterizados a partir da teoria da evolução de Charles Darwin,2 que, grosso modo, diz respeito às mudanças de caracterís-ticas hereditárias de uma determinada espécie de uma geração para outra. Este processo ocasiona diversificação de populações de organismos ao longo do tem-po. Num ponto de vista genético, a alteração de números de genes já caracteriza evolução. As mutações em genes produzem ou alteram características já exis-tentes, o que resulta numa diferenciação hereditária entre os indivíduos de uma mesma espécie. A evolução ocorre através da seleção natural, sempre implicando em mudança. “A seleção natural é o mecanismo de mudança, que depende de de-terminadas condições. A evolução é o resultado dessas condições, e os padrões evolucionários variarão na medida em que essas condições variarem”. (FOLEY, 2003, p. 44) Evolução, portanto, é transformação ao longo do tempo.

A improvisação em dança pode ser vista como um processo evolutivo, num en-tendimento de sistema que coevolui com o ambiente. Os sistemas, segundo a Teoria Geral dos Sistemas de Mário Bunge,3 estão interagindo a todo instante com o ambiente e, “imersos em relações com o externo, ao longo do tempo, co-meçam a internalizar elementos. Essa internalização passa a compor o processo evolutivo de todo ser vivo, inclusive no que diz respeito a seu próprio código ge-nético”. (MARTINS, 1999, p. 29)

A improvisação em dança constitui nas memórias suas atualizações e diálogos com o mundo. As memórias do corpo podem ser entendidas como uma seleção natural de informações em dança que estão em negociação, adaptação e atuali-zação. A história da evolução apresentada por Richard Dawkins – neodarwinista comumente reconhecido por popularizar o gene como a principal unidade de seleção na evolução – possibilita entender a improvisação como um sistema evolutivo que gera informações sem uma arrogância da interpretação a posteriori, fazendo alusão a um dos capítulos do seu livro A grande história da evolução:

2 Charles Darwin (1809-1882) foi um naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da sele-ção natural.

3 Mário Augusto Bunge (1919), filósofo e físico teórico argentino.

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“Um ser humano sempre está às voltas com a sobrevivência em seu próprio meio. Ele nunca é inacabado – ou, em outro sentido, ele é sempre inacabado. Assim como nós, provavelmente, também somos”. (DAWKINS, p. 22, 2009)

A arrogância da interpretação a posteriori reproduz um entendimento equivoca-do sobre a evolução. Nesta interpretação, tudo o que somos hoje, toda a história da evolução, todos os processos de transformação aconteceram da forma que aconteceram com uma intenção planejada de se chegar a objetivos específicos, como, por exemplo, nossa constituição física, nossa capacidade de fala, nossa capacidade de consciência. Esta arrogância da interpretação a posteriori reduz a diversidade e a complexidade dos modos de operação da vida e do proces-so de evolução, pois justamente pressupõe que exista um objetivo e, portanto, um progresso. Porém, o que a história da evolução nos mostra é justamente o inverso: não existe um ponto de partida e não existe um ponto de chegada, a evolução opera de modo cego e não almeja atingir especificidades (a não ser o da permanência).

A improvisação em dança é, numa certa medida, regulada por essa ideia de processo cego de evolução, numa inconclusão em fluxo. Assim como a improvi-sação em dança, assim como o improvisador, assim como as memórias, estes processos evolutivos caracterizam-se pelo seu inacabamento, pela sua “inestan-cabilidade”, por fluxos que descaracterizam qualquer noção de meta cristalizada a ser atingida. O que se opera são processos de permanência: “A permanência, correspondendo ao conceito definido pela Teoria Geral dos Sistemas [...], refe-re-se ao sentido de continuidade dos processos de transformação”. (BRITTO, 2008, p.41) Nesse sentido, permanência é diferente da noção de estabilidade e conservação. A permanência significa transformação ao longo do tempo, algo que está em contínuo acontecer. Esta é a noção da improvisação, um processo de permanência no tempo que se modifica no seu refazimento. “A continuidade entre todas as coisas vivas é um elemento essencial do pensamento evolucio-nista, e permanece sendo uma das consequências de maior alcance da ideia darwiniana”. (FOLEY, 2003, p. 47)

Com o apagamento de uma arrogância da interpretação a posteriori, a improvi-sação pode ser entendida como um sistema de transformação de informações, onde as memórias corporais são selecionadas e atualizadas de acordo com o corpo e com o ambiente, num processo coevolutivo. A transdução – meio pelo qual uma energia se transforma em outra de natureza distinta – pode ser vis-ta como uma possibilidade de compreensão deste processo de comunicação e transformação. Estímulos do ambiente são transduzidos em sinais elétricos,

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no corpo, caracterizando-se como informações para as memórias. Do mesmo modo, as memórias do corpo atualizam-se constantemente a partir – e não so-mente a partir – destas informações, e geram outras respostas ao ambiente. A transdução é uma via – ou muitas vias – de construção de habilidades de cor-po. E as memórias, em suas instâncias, caracterizam padrões de movimento.

A cada nova improvisação, os níveis de memória atuam e codificam informa-ções para que elas possam fazer parte da coleção de informações do corpo que dança. Sabe-se que a consolidação da memória é o processo de integrar novas informações nas informações já armazenadas anteriormente e, quanto maior o nível de processamento, maior é a probabilidade de a informação ser acessada posteriormente.

Há, basicamente, três níveis de memória: sensorial, de curto prazo e de longo prazo. A memória sensorial descreve a habilidade da retenção de informações que chegam através dos sentidos por poucos segundos. É o tipo de memória que dá tempo suficiente para processar, analisar e interpretar qualquer informa-ção. Se determinada informação for considerada importante para o sistema, ela será assimilada a outro nível de memória. Deficiências na memória sensorial po-dem gerar dificuldades na execução de tarefas simples, como ler ou escrever – em se tratando de memória visual –, ou no entendimento de informações verbais que acabaram de ser pronunciadas – no caso da memória auditiva. É importante salientar que, apesar dos níveis distintos entre as memórias e das subdivisões estabelecidas dentro de um determinado nível – como a memória sensorial que é subdividida em memória visual, auditiva, olfativa etc. – todos estes processos acontecem de modo integrado e não segmentado. O corpo é sistêmico, num continuum entre sensação, percepção e consciência.

A memória de curto prazo acontece após a vivência de um estímulo na memória sensorial. Quando a informação é interpretada com um nível maior de importân-cia, ela é “movida” para a memória de curto prazo. Isso acontece por conta de estímulos de atenção. Esse tipo de memória auxilia na lembrança de informa-ções visuais e espaciais, coordenando atividades cognitivas e planejando es-tratégias, e é “imediata do material que está sendo correntemente processado”. (WACHOWICZ, 2009, p. 74)

A memória de longo prazo diz respeito às informações mais consolidadas, de um longo alcance no tempo. Constitui-se de memória semântica (ideias, significados e conceitos, conhecimento geral sobre o mundo), procedural (de procedimento, acionadas na execução de atividades específicas, como andar de bicicleta, dan-çar) e episódica (experiências pessoais específicas do passado e seus contextos).

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Em dança, a memória procedural exerce papel fundamental no momento de de-terminadas improvisações. Este tipo de conhecimento diz respeito à habilidade de se fazer algo, como dirigir um carro ou pedalar uma bicicleta (MATLIN, 2002 apud WACHOWICZ, 2009). A repetição é que ocasiona a efetivação – não cris-talizada – de tarefas específicas, potencializando seus processos de execução de um modo mais hábil e em conexões com outras informações que possam aparecer no decurso de uma improvisação.

A memória procedural é implícita, ou seja, constitui-se de informações já con-solidadas – memória de longo prazo – que auxiliam no desempenho de uma atividade específica sem que haja uma conscientização das experiências an-teriores que levaram à consolidação dessas informações. É o que acontece, por exemplo, em improvisações praticadas por muito tempo por determinado dançarino que possui conhecimentos sobre suas possibilidades de movimento, evocando-os de modo processual, respondendo às emergências do momento. Neste processo, sua memória procedural em dança também pode sofrer peque-nas modificações, mas isso acontecerá de modo inconsciente, ao menos que o dançarino provoque um ato reflexivo sobre o seu próprio fazer.

A memória explícita refere-se a especificidades de tempo e espaço. Existe cons-ciência sobre os processos da memória explícita, como em evocações sobre informações episódicas ou semânticas. O que se enfatiza nesta pesquisa é a memória procedural, portanto implícita, ativada através do sistema sensorial e motor. “A memória implícita mostra os efeitos da experiência anterior que se move, lenta e continuamente, em nosso comportamento quando não estamos fazendo um esforço consciente para memorizar o passado”. (MATLIN, 2002, apud WACHOWICZ, 2009, p. 80)

As memórias possuem plasticidades, podendo ser alteradas depois de adqui-ridas (IZQUIERDO, 1988). A evocação, por exemplo, é um dos momentos em que essa alteração pode ocorrer. Cada vez que uma lembrança é evocada, ela se redimensiona para poder atender às necessidades do momento. O processo de priming sugere a evocação de memórias corporais através da apresentação de informação parcial, e isso faz gerar uma modificação – mesmo que sutil – e reinterpretação de uma memória.

As memórias implícitas são atualizadas sem que exista um processo consciente de “resgate” de determinada informação. Memórias são “acordadas de novo” a todo tempo, cotidianamente, de um modo inconsciente, pois movimentamos as informações que adquirimos e as modificamos para as adaptações. Este incons-ciente é numa acepção de que não possuímos controle sobre muitos processos

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corporais, como os batimentos cardíacos, processos circulatórios etc. Portanto, o acionamento de memórias não depende exclusivamente de processos cons-cientes e habituais do entendimento de memória.

A maioria dos improvisadores em dança busca certa construção de novidade em suas danças, e para isso lançam mão de mecanismos que coadunem com este anseio de evitar os padrões mais comuns. O fazer da dança em improvisação é um esquema corpóreo que reproduz movimentos e confere segurança num tempo e num espaço contínuos. Toda vez que a repetição de um padrão aconte-ce, ela pode se transformar no corpo, exigindo novas organizações perceptuais. Além de existir repetição, também ocorre a modificação de entendimento de corpo, no sentido de reelaborar determinados movimentos com maior nexo de sentido para o sistema.

Os padrões provocam ajustes e adequações “entre as condições que a estrutura de um organismo vivo apresenta e as que encontram pela frente, com operações respondendo a necessidades de tornar favorável sua permanência”. (QUEIROZ, 2011, p. 179) Toda vez que uma improvisação é realizada, as memórias ativam estados de corpo para a resolução do problema que se apresenta. É o que po-demos chamar de memória de trabalho, toda esta ativação de memórias para a resolução da presentificação de um problema. Essas memórias, sempre evoca-das, já trazem substratos de outras experiências que se atualizam na presentifi-cação, realizando transduções. E toda transdução envolve perda e ganho de in-formação, pois o corpo, entendido enquanto sistema, é dissipativo. As memórias solidificam padrões, mas esta solidificação não é impenetrável: ela possui suas fissuras que variam entre rigidez e fragilidade, mas de um modo talvez impossí-vel de se mensurar. A “força” de uma memória é que vai determinar a sua sobre-vivência num esquema de padrão. E é justamente esta força que é imensurável, pois se trata de qualidade de estados de corpo.

Os padrões, portanto, são importantes para a sobrevivência de vocabulários e para a manifestação da articulação entre aquilo que é aprendido recentemente e o que é tido como novo. Quando a repetição de um padrão acontece, configu-ram-se, nessa repetição, possibilidades de análise dos repertórios já existentes.

“A relação entre o conhecimento procedural e a memória de longo prazo pa-rece ser responsável pelos nossos padrões corporais”. (WACHOWICZ, 2009, p. 200) É através desse processo entre procedimento e memória que se consti-tuem memórias corporais, que leva tempo para ser adquirida e de difícil ruptura justamente pelo seu aprendizado. Quanto mais tempo repetimos uma informa-

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ção, mais a reaprendemos. A isso se chama curva de retenção, a possibilidade de reaprendizado de uma mesma informação através da repetição. (CORRÊA, 2008, apud HASKEL, 2010) E é essa curva de retenção que pode acontecer em improvisações, provocando as suasatualizações. A produção de novidade, de movimentos diferenciados, pode acontecer a partir de processos de reconheci-mento e repetição, entre regularidades desses movimentos e suas divergências (GUERRERO, 2008), num ato reflexivo crítico sobre o seu fazer.

A improvisação pode sugerir um efeito de autorreferência, já que o improvisador sempre – ou quase sempre – tem que lidar com as suas próprias informações para a construção de uma dança. A autorreferência é distintiva. Cada improvisa-dor possui um esquema organizado sobre si próprio, conhecendo suas pistas, atributos e experiências. O improvisador formula suas próprias pistas no fazer de sua dança, consolidando seus caminhos. “Quando geramos nossas próprias pis-tas, demonstramos níveis muito mais altos de recordação do que quando outras pessoas geram pistas para que usemos”. (STERNBERG, 2008, p. 167) E essas pistas inserem-se numa noção de repetição e tentativa de ruptura de padrão.

As práticas da improvisação em dança podem ser estruturadas “com o objetivo de ‘desautomatizar’ o corpo, visando à ampliação de repertórios de movimentos, de atenção, de percepção e de entendimento sobre composição”. (GUERRERO, 2008, p. 10) As práticas também envolvem repetições, e se há repetições, há a construção de padrões e de reconfigurações de padrões já existentes. Repetição envolve relembrança, e significa “reconhecer as experiências do corpo sob novas interpretações”. (BITTENCOURT, 2012, p. 24) Uma memória nunca é uma cópia fiel daquilo que aconteceu. As memórias se caracterizam pela sua plasticidade e ressurgimento não controlado, não premeditado. As memórias constroem no-vas informações no refazimento das ações. As memórias participam da geração dessas informações, por isso elas não são estanques. Repetição é o refazimento das coisas num sentido de dessemelhança: nunca se volta no tempo e, portanto, repetir é refazer com modificação. (BITTENCOURT, 2012, p. 24) A novidade em improvisação, portanto, seria a conexão de informações já existentes.

Estas informações específicas são combinadas de um jeito diferente, de uma nova maneira. É aí que a novidade surge. O novo é uma organização ímpar, uma conexão diferente de informações específicas. A reorganização será sempre sin-gular, porque nunca se pode voltar no tempo, nunca se pode repetir com fidelida-de o que já passou. São micro mudanças encontradas no ato da repetição. Por vezes, essas mudanças não são perceptíveis de imediato. É através da duração de um tempo que as mudanças poderão se tornar mais visíveis e efetivas, e são

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essas pequenas mudanças que caracterizam, em parte, um processo evolutivo em improvisação em dança.

Por mais que exista um objetivo do improvisador de desautomatizar padrões, a repetição constante de determinados movimentos pode provocar mudança de alta complexidade ao longo do tempo, sem que para isso tenha existido este objetivo específico. A repetição, no sentido de refazimento e mudança, pode pro-vocar as adaptações necessárias para que determinado padrão de movimento sobreviva. A adaptação é uma consequência de um processo evolutivo. (FOLEY, 2003) Na evolução, não existem predeterminações, os seres não “escolhem” para onde ir. A adaptabilidade ao ambiente e os erros decorrentes destas inser-ções provocam o processo evolutivo. Improvisar pode ser uma adaptação ao ambiente, uma coevolução entre corpo e meio, entendimento este que apaga uma arrogância de interpretação de improvisação como progresso.

Nossos procedimentos de valoração tendem a mensurar o tempo como uma possibilidade de compreender que as coisas que aqui estão hoje caracterizam um processo de evolução – no sentido de progresso – de coisas antes obsole-tas ou não tão ajustadas ao seus “verdadeiros” propósitos. A compreensão de improvisação aqui tenta escapar deste esquema de valoração de configurações de movimentos que vão se atualizando no corpo, como o entendimento equivo-cado de que o “melhor” para a improvisação é escapar de seus automatismos de padrão. Por mais que exista a vontade de escapar de padrões, não significa que repetir um padrão torna a improvisação menos interessante ou com menor potencialidade de articulação de conhecimentos. Do mesmo modo, uma impro-visação que está a todo tempo se questionando sobre suas configurações coti-dianas – tentando sair de seus padrões – não é melhor do que a improvisação que lança outras qualidades de questionamento. É preciso compreender que há modos de se operar em improvisações, e que cada improvisação tem seu lugar no tempo e no espaço.

Na tentativa de apagar a arrogância da interpretação a posteriori, pode-se cair no seu inverso. O inverso deste apagamento é o próprio destaque que se dá ao processo de construção de um improvisador em dança – ou pelo menos daquele improvisador que busca romper com padrões de movimento, que é um objeti-vo compartilhado por muitos improvisadores. Aqui, aparece a palavra “objeti-vo”. Objetivar alguma coisa é necessário para que se possa construir diretrizes, metodologias, jeitos e rigores de pesquisa. Isso é uma coisa. Já o objetivo visto como melhoria é outra coisa completamente diferente. O que somos hoje não é um projeto que foi pensado e melhorado ao longo do tempo.

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Somos conscientes por acasos que foram se efetivando como necessidade, pois a mente humana, nesta forma consciente, “nos proporcionou escolhas, possibi-litou uma regulação sociocultural relativamente flexível além daquela complexa organização social que vemos tão espetacularmente, por exemplo, nos insetos sociais”. (DAMÁSIO, 2011, p. 54) Nós sobreviveríamos, talvez, sem a capacida-de da mente. Porém, não seríamos nós, não seriam os outros. Existe organiza-ção social em determinados contextos de vida, como nos insetos sociais, tais como em colônias de formigas. Porém, essa vida social não passaria de uma complexidade de organização para a sobrevivência da espécie. O que a mente consciente faz é atribuir uma identidade, o self, possibilitando outros níveis de complexidade de vida, outros horizontes de sociedade e cultura.

Esta é a arrogância da interpretação a posteriori: pensar que o que somos é uma melhoria de milhares de anos de evolução, com um objetivo muito específico, ou, na improvisação, que somos melhoramentos no tempo. Porém, o improvisador de que discorro possui seus objetivos: romper com padrões é um deles. Este ob-jetivo colocado não significa enfatizar um sistema de valoração para os seus pró-prios movimentos, já que todos seus movimentos possuem seus lugares e não lugares em termos de composição cênica e de possibilidade de pesquisa. Aqui, não existe uma arrogância de uma interpretação a posteriori, pois improvisação é uma incessante atualização de memórias corporais, e se existe atualização, significa que sempre estará mudando. Já uma interpretação a posteriori suben-tende uma estagnação no tempo, um objetivo – que não este do improvisador – que foi alcançado e, portanto, cumprido. Missão cumprida no tempo = morte do sistema. Se essa valoração acontecesse, o sistema improvisação morreria, pois atingiria este entendimento de objetivo, e com objetivo atingido, tornar-se-ia rígido demais. Sistemas com grau extremamente forte de rigidez tornam-se fechados e não trocam informações com o externo. Sem trocas não há atualiza-ções, sem atualizações não há permanência. E permanência é um dos termos fundamentais em processos evolutivos.

As atualizações acontecem porque as estabilidades do corpo são temporárias. Como um sistema que está longe do equilíbrio, o corpo “não participa de regras universais, e sim locais, pois depende do tipo de processo em que se encontra. O corpo, então, media esses fluxos para atingir uma metaestabilidade: breves transações de acomodações temporárias”. (BITTENCOURT, 2012, p. 37) As re-gras são locais, no sentido contextual. A universalidade sugeriria uma estabi-lidade contínua do corpo, quando o que acontece são somente estabilidades temporárias. As instabilidades são necessárias para que os processos evoluti-vos possam acontecer, para que os processos adaptativos do corpo apareçam

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como potencialidade geradora de vida. A estabilidade é circunstancial, por isso, temporária e adaptativa, fortalecendo o entendimento de uma não objetividade específica de construção de corpo. É o que acontece em modos de entender improvisação: processos de instabilidade que geram metaestabilidades e que impulsionam outras maneiras de articulação no corpo que dança.

Este é o ponto: improvisação como sistema aberto e atualizado a todo – ou quase todo – instante. Por isso não há um objetivo fechado, mas sim aquele objetivo que não cessa de permanecer em constante desafio, em constante tes-te, em constantes transduções, um objetivo que difere do entendimento de pro-gresso. Portanto, é um objetivo que objetiva não se objetivar hermeticamente.

As memórias, assim, se caracterizam pelo seu modo de movimento, de trânsito, provocando alterações, fazendo “acordar de novo” recordações já adquiridas e modificando-as, de certo modo, além de “convocar” novas informações para in-tegrarem-se às “antigas”, ao mesmo tempo remodeladas, revisitadas, colocadas em fluxo. São memórias corporais em movimento que ampliam possibilidades de investigação nesta tentativa de entender a ocorrência das interações entre movimento, improvisação e memória. Neste estudo, muitos caminhos podem ser traçados e cruzados, pois a memória, assim como o movimento, parece ser uma inesgotável fonte de questionamentos entre fluxos e estancamentos, liberações e supressões, esconderijos e campos abertos.

Somos conexões neuronais de descargas químicas elétricas, o corpo que so-mos é uma organização simulada dessa atividade frenética dos neurônios e das sinapses que não são visíveis a olho nu. Do mesmo modo, esta atividade pode ser declaradamente exposta no corpo habilidoso, aquele corpo que dosa suas tensões, que explora possibilidades nas medidas das suas especificidades, que planeja e antecipa os acontecimentos, que opera a sua própria instabilidade.

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Tensões políticas na discussão entre tradição e contemporaneidade sobre o fazer da dança

Fernando Davidovitsch (UFBA)1

Orientadora: Drª Lenira Peral Rengel

Resumo

O presente artigo coloca em evidência como as atitudes políticas na dança estão implicadas tanto em grupos sociais que têm as tradições populares como formas de expressão, que valorizam o grau de preservação em seu modo de fazer, quanto em outros grupos que propõem trabalhar com tradições populares, tendo como foco o diálogo deste fazer na contemporaneidade. Serão observadas as tensões geradas entre ambos os grupos e como as decisões de cada um deles são soluções políticas que, a partir de seus respectivos pontos de vista, vão em defesa das danças tradicionais e os seus fazeres coreográficos.

Palavras-chave: Danças tradicionais. Contemporaneidade. Políticas. Imunização.

Abstract

This article highlights how the political attitudes are involved in social groups which have popular traditions as a form of expressions, that value the degree of preservation in the way of doing it, and also in others groups which propose to work with the popular tradition, having a focus on a dialog between this traditions with the contemporariness. It will be observed the tensions produced between the both groups and how the decisions of each one are political solutions that, by their own point of view, go in defense of traditional dances and your chorographical doing.

Keywords: Traditional dances. Contemporariness. Politics. Immunization.

Introdução

Política é uma palavra que hoje, no senso comum, tem como entendimento aqui-lo que envolve o governo nos âmbitos federais, estaduais e municipais e toda a gama de partidos (políticos) que estão na disputa de poder para a ocupação 1 Mestrando em Dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista e graduado em Dança

pela mesma instituição. [email protected]

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destes lugares governamentais. Ser um indivíduo político é, em muito, com-preendido como ser alguém que está ligado aos conhecimentos de princípios destes partidos, cuja briga interpartidária parte da ideologia de ocupar um lugar de poder estatal para poder fazer mudanças sociais necessárias a toda uma comunidade (ao menos é isso que se costuma ser dito). Ainda que seja já bem conhecido o fenômeno da corrupção em meio aos políticos no Brasil, o princípio fundamental sobre atuação política ainda é esse, mesmo que bastante desacre-ditado. Não apenas atuar dentro dos partidos, mas fazer parte de sindicados que estão ligados a esses partidos também é uma ação comumente reconhecida como política. É muito comum ouvir chavões como “não gosto de política”, “não me envolvo com política”, mas política está em todo lugar e muitas ações que fa-zemos reverberam em outras instâncias políticas ainda que sequer percebamos. Somos, todo o tempo, seres políticos.

Na dança, encontramos políticas não apenas nas políticas públicas que envol-vem editais e verbas do governo, mas em diversas outras esferas dentro deste universo. Mark Franko (2012), em seu texto Dance and the political: States of exception (Dança e a política: Estados de exceção) aborda as formas de imbri-cação entre dança e política em distintas circunstâncias, tais como: a relação entre elas dentro de um determinado contexto (espaço e tempo) histórico-social, expondo como a dança serviu para o fortalecimento das nações quanto identida-des nacionais; a relação da política da dança para construção da epistemologia da própria dança, cujo sistema dentro do seu ambiente inclui ou exclui produ-ções de conhecimentos de acordo com um pensamento dominante que define o que deve, ou não, servir para a contribuição desta epistemologia; e a microfísica da política e do poder presente na própria relação entre coreógrafos e bailarinos, na qual a condição de autonomia do bailarino deixa evidente um posicionamento político no próprio modo de fazer dança. Franko (2012) deixa em seu texto um espaço de reflexão para observarmos como na história e na contemporaneidade as relações entre dança e política suprimiram, e ainda suprimem, discursos, pro-duções artísticas e construções de novas epistemologias da dança. Ao falar de “estados de exceção”, ele se refere a outras/novas possíveis políticas para furar, ou atravessar fissuras, numa política hegemônica já consolidada.

São muitos os modos como a política se incide na dança e vice-versa. O assunto que iremos discutir neste artigo traz as atitudes políticas na dança implicadas tanto em grupos sociais, que têm as tradições populares como formas de ex-pressão que valorizam o grau de preservação em seu modo de fazer, quanto em outros grupos que propõem trabalhar com tradições populares, tendo como foco o diálogo deste fazer na contemporaneidade.

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Tradições populares em questão

Como coloca Santos (2011, p.53), a tradição pode ser entendida como sendo aquilo que persiste do passado no presente. Ela, então, no presente, sendo aceita pelos que a recebem, continua agindo e sendo repassada ao longo das gerações. Todavia, assim como o próprio autor salienta, a tradição cultural não pode ser pensada como uma reprodução idêntica de hábitos imutáveis, afinal “as culturas mudam, pois estão imersas nas turbulências históricas e integram os processos de mudança” (SANTOS, 2011, p. 53).

A tradição cultural está associada à memória social e ao sentimento de pertenci-mento de um indivíduo, ou grupo, em um grupo maior. É muito comum encontrar discursos, cuja relação entre identidade e tradição cultural é colocada como ponto central para este entendimento de pertencimento. A concepção sobre identidade, nesse caso, ainda é muito compreendida como algo estável, fixo e unificado. Porém esta ideia, que durante muito tempo estabilizou o mundo social, está em declínio e hoje, como defende Hall (2006), surgiram novas identidades e os sujeitos sociais se caracterizam pelo fragmentado, ao invés de unificado. As várias identidades de um sujeito social podem até mesmo ser contraditórias, ou mal resolvidas. Santos (2011) pontua que no atual mundo, caracterizado por mudanças rápidas e uma multiplicidade de referências, tem-se produzido sujei-tos multirreferenciados. Por isso, para Santos (2011), talvez seja mais pertinente falar de identificação do que de identidade, visto que identidade refere-se a um estado mais definido e consolidado e identificação a um processo em andamen-to, contextual e flutuante. Existe um grau de permanência, afinal as pessoas não perdem sua língua e suas referências, transitando facilmente para um outro contexto totalmente diferente, mas este conceito de identificação admite uma possibilidade mais móvel nesta estrutura cultural.

Toda esta discussão sobre identidade unificada, identidade fragmentada e iden-tificação é resultante do fenômeno da contemporaneidade conhecido como glo-balização. A globalização afetou diretamente as identidades culturais. Ao mesmo tempo em que existe uma homogeneização no mercado global (pelas multinacio-nais e indústria cultural, por exemplo), há também uma valorização e fascínio pela diferenciação local e pelas diferenças étnicas. A heterogeneidade cultural no inte-rior de cada território nacional, resultante dos processos migratórios por diferentes grupos culturais em lugares diversos, gerou o aspecto do borrado cultural que problematiza hoje o pensamento sobre identidade nacional (HALL, 2006). Não se destrói identidades, ou melhor, identificações locais, mas a tendência é se produzir novas. Isso tem chamado a atenção de grupos que receiam a integridade de suas

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tradições culturais. Segundo Santos (2011, p. 56), “essa tendência dá sentido às tentativas de reconstruir identidades purificadas, para restaurar a coesão, o fecha-mento e a tradição, frente ao hibridismo e à diversidade”.

Este aspecto exposto por Santos (2011) pode, em muito, ser observado em di-versos ambientes em que se encontram grupos que propõem produção de dan-ças tradicionais (incluem-se aqui danças étnicas, folclóricas e populares). Em reação ao movimento hegemônico da globalização, uma grande parte dos am-bientes onde se produzem danças tradicionais fecha-se e adota políticas para se proteger. Estabelecendo uma relação com a biopolítica de Espósito (2010), a autoimunização é um exemplo de medida política adotada em defesa da preser-vação destas danças tradicionais. Estratégias e meios (bio)políticos em prol da defesa da preservação da tradição são adotados em diversos ambientes onde se produzem estas formas de expressão de dança. Esses ambientes são muitas vezes administrados por entidades e/ou instituições responsáveis ou também por grupos de sujeitos (não institucionais) que em comum acordo estabelecem espécies de critérios sobre como e por quais parâmetros se deve conceber uma determinada coreografia e quais os níveis de variantes permitidas nos princípios organizadores coreográficos. Promove-se assim um sistema que define bem o que deve, ou não estar incluído no mesmo.

Esse(s) sistema(s), ainda que em muitos deles existam relações de poder no in-terior de sua administração, como é o caso dos lugares cuja responsabilidade está atribuída a entidades e/ou instituições, que promovem eventos (festivais e mostras, por exemplo) e atividades de formação (ações educativas em dança), a consolidação da ideia de preservação só tem possibilidade de existência por ser uma ideologia de acordo comum de um coletivo. Segundo Pinker (2013), quando se estabelece um comum acordo ideológico dentro de um grupo, a tendência é uma homogeneização das opiniões, equalizando-as e diminuindo as variantes das diferenças. A ideologia tem como fim “a concepção de um bem maior” (PINKER, 2013, p.746). Um problema identificado por Pinker nessa questão é que muitas vezes tem que se traçar meios desagradáveis para atingir fins desejáveis.

A equalização das opiniões nos ambientes onde se produzem danças tradicionais e que têm como ideologia a preservação no seu modo de fazer, reverbera também na supressão das variantes das diferenças nos próprios princípios organizadores que estão no interior das coreografias produzidas. Para certificar-se desse fato, basta frequentar festivais e mostras de dança flamenca, dança israelita, dança do ventre, frevo e diversas outras espécies de danças tradicionais. As variantes exis-tentes alcançam graus limitados que estão definidos por parâmetros interiorizados

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no entendimento no modo de fazer coreográfico e que estão sustentados por uma ideologia de um grupo e por gestões responsáveis que as administram, excluindo e/ou incluindo as produções em dança dentro de seus circuitos culturais. A exclu-são de possíveis outros modos para conceber uma coreografia em dança tradicio-nal num determinado ambiente onde se produzem estes tipos de danças é, assim, seguindo o pensamento de Pinker (2013) uma espécie de meio desagradável para atingir o fim desejável de uma ideologia: a preservação.

O Ciclo de Ghenos (a tanatopolítica) como estratégia de defesa da permanência em tradições populares

Proponho aqui observar a presença do Ciclo de Ghenos, ou a tanatopolítica, no sistema de política de defesa da preservação das danças tradicionais. Espósito (2010) faz uma explanação dessa tanapolítica através de uma leitura aprofunda-da sobre a relação entre biologia e política para a construção da filosofia e cons-trução do pensamento nazista na Alemanha de Hitler. Desenvolve, assim, o seu modo de leitura dentro da perspectiva da biopolítica. De forma alguma a ideia aqui é colocar as práticas políticas de preservação das danças tradicionais no mesmo lugar das atrocidades cometidas pelo regime nazista. Trata-se de uma aproximação conceitual do Ciclo de Ghenos de Espósito, que foi exemplificado pelo próprio autor por meio da explanação sobre o funcionamento do regime nazi. Será só um apanhado dos princípios conceituais do Ciclo de Ghenos.

No Ciclo de Ghenos, de Espósito (2010), uma das ideias centrais é a imunização como meio de defesa contra doenças infecciosas. A morte de seres infecciosos, parasitas, bactérias, vírus e micróbios facilita a sobrevivência daqueles que de-vem permanecer vivos e evita que os mesmos possam sofrer contágios. Espó-sito faz sua abordagem relacionando as medidas adotadas pelo regime nazista, que considerava que a saúde e vida dos alemães sofriam ameaças de outros seres infecciosos, como os judeus. A ideia da regeneração, um dos pontos do Ciclo de Ghenos, é de que o “princípio da vida só se defende e se desenvolve através de um alargamento progressivo do círculo da morte” (ESPÓSITO, 2010, p. 159). Como o autor complementa, o ideal racista inscrito nas práticas de bio-poder nazista definiu de forma biológica os que devem permanecer vivos e os que devem ser lançados à morte e, ainda, que é a morte dos segundos que per-mite a sobrevivência facilitada dos primeiros.

A regeneração é necessária para impedir o progressivo caminho da degeneração. O termo “degeneração” está associado a sentidos negativos como “decadência”,

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“degradação” e “deteriorização”. O degenerado caracteriza-se pela sua distância da norma. Biologicamente a degeneração é considerada como uma anomalia. O degenerado é um tipo mutante, o não homem, assim como foram considerados os judeus pelos nazistas. Na norma jurídico-política, conforme coloca Espósito (2010), os degenerados são identificados em cada vez mais categorias sociais, como os alcoólicos, sifilíticos, homossexuais, prostitutas, obesos e até mesmo o proletariado urbano. Para os nazistas o fato da hereditariedade predetermi-nava a proliferação dos degenerados no decorrer das gerações, ameaçando a integridade da saúde daqueles que mereciam estar vivos. Assim, a eugenética aparece como meio e técnica para salvar os “povos civilizados” da progressiva degeneração.

A eugenética cunha de meios artificiais para intervir no natural. Pretende-se com a eugenética criar imunizações contra as possíveis contaminações pelas bac-térias infecciosas. No pensamento nazista isso era entendido como “higiene ra-cial”. Imuniza a raça e a vida em relação aos venenos que a ameaçam. Um dos pontos utilizados pelos nazistas foi a esterilização para atingir o ponto original em que se dá a vida. A eutanásia foi um outro recurso da eugenética utilizado pelo governo nazi. Os degenerados são vidas privadas de valor e o Estado tem direito de interrompê-las em prol do bem-estar da saúde dos que merecem viver.

Por fim, no Ciclo de Ghenos, temos o genocídio. Nesse ciclo está presente uma cadeia lógica na qual a regeneração vence a degeneração através da eugené-tica e, principalmente, através do genocídio. Tal sistema paradoxalmente une morte à vida e vice-versa. A vida se preserva pela morte dos outros. E até mes-mo o genocídio de judeus para os nazistas não era a morte de algo vivo, mas a matança da própria morte. Os judeus para eles eram seres habitados pela morte.

Trazendo, então, a ideia do Ciclo de Ghenos para os ambientes de produção em danças tradicionais que têm como ideologia a preservação de suas espécies, a ideia de imunização e precaução contra o contágio também está presente. Torno a dizer que o discurso aqui não estabelece uma equivalência entre estes ambientes de dança com o regime nazista, mas retoma os princípios do concei-to da tanatopolítica de Espósito, que, por sua largamente abrangente reflexão filosófica e social, pode ser utilizado nos mais variados contextos e instâncias.

Assim, ao pensar nas políticas adotadas em vários ambientes de produção de danças tradicionais, a ideia de imunização e preservação contra o contágio está presente. A tanatopolítica nesse caso ocorre na exclusão de pensamentos e modos de conceber dança que não condigam com o que tal ambiente social está

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(pré) disposto a aceitar. A exclusão nesse caso é a garantia e autoimunização contra contágios que poderiam comprometer a vida desta tradição. Trata-se do conceito de regeneração do Ciclo de Ghenos. As produções de dança que fogem da norma estabelecida dentro dos parâmetros de variantes permitidas nos prin-cípios organizadores coreográficos produzem as espécies de degenerados. Os degenerados, se presentes nestes ambientes podem contagiar outros artistas coreógrafos do mesmo grupo social e até mesmo se replicar para gerações futu-ras, colocando em risco a integridade da preservação de determinada expressão cultural. Dessa maneira a exclusão e entraves a proposições artístico-coreográ-ficas que saiam dos parâmetros permitidos pela norma, são meios e tentativas de “matar” aquilo que ameaça a preservação da tradição. Pode ser identificada aqui a relação do embricamento entre morte e vida. Pois estes sistemas políticos dos ambientes que promovem a expressão de danças tradicionais, e que de-fendem a ideologia da preservação, entendem que estas produções que fogem dos parâmetros ideais das variantes possíveis são na realidade uma espécie produzida que carrega no seu interior a morte. Essa morte que tal(is) obra(s) carrega(m) tem potencial para causar a morte futura da tradição.

Portanto, o que pode ser considerado como a ousadia de ressignificar e recon-textualizar formas de danças tradicionais a partir de propostas contemporâneas que buscam discussões que aprofundam o pensamento sobre o fazer coreográ-fico são na maioria das vezes vetadas nestes ambientes, pois não são obser-vadas como algo com vida que traz a vida. Elas existem como vida, mas são carregadoras da morte. A exclusão dessas é como autoimunização de seres infecciosos e degenerados que podem trazer a morte.

Danças tradicionais e as políticas do chão

Se tal política de autoimunização destes ambientes, que pretendem manter suas tradições intocadas e preservadas de qualquer contaminação externa, for pen-sada a partir da reflexão sobre “políticas do chão”, de André Lepecki (2010), perceberemos que está presente aí uma segurança resguardada na condição de sua terraplanagem. O entendimento de chão, colocado por Lepecki, vai desde o seu sentido denotativo (como um chão, propriamente dito, a base onde pisa-mos), até o seu sentido conotativo (um modo de se inferir às bases estruturais que fundam as nossas formas de se relacionar com o mundo e com os outros e, por conseguinte, os fazeres coreográficos na dança). Frantz Fanon, fenome-nologista de uma política cinética do tropeço, fala sobre as forças hegemônicas

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e contra hegemônicas que atravessam os planos de chão e de movimento e “descobre por meio do tropeço que um chão não é só terreno, mas é sempre composto também de atos de fala. E descobre que todo ato de fala é um corpo a corpo como linguagem, um embate que o terreno social se organiza produzindo e reproduzindo corpos” (LEPECKI, 2010, p. 17).

O controle das variantes dos princípios organizadores dessas expressões de dança é, assim, uma tentativa para uma terraplanagem, ou seja, para um chão liso, sem tropeços e sem alterações em seus relevos. Conforme o pensamento da política de preservação do modo de se fazer danças tradicionais, qualquer acidente e alteração em seu relevo coloca em risco a estabilidade de sua cultura.

O modo coreográfico que se pauta na terraplanagem, conforme pretendem os ambientes de produção de danças tradicionais, é, em muito, caracterizado por um modo despolitizado, uma vez que ele é a-histórico e ignora questões presen-tes no ambiente da contemporaneidade em que vivemos. Ignora as relações de poder existentes no seu ambiente e se propõe a viver cegamente no seu mundo liso, neutro e sem acidentes. Assim como esclarece Lepecki (2010, p. 15)

Apenas depois de um chão se tornar tão liso, vazio e chato como uma folha de papel em branco [...], o dançarino pode entrar em cena, de modo que sua execução de passos e saltos não tenha que negociar “acidentes de terreno”. Ora, esses acidentes não são mais que inevitáveis marcas das convulsões, da história na superfície da terra – cicatrizes de historicidade. É como se uma topografia da dança já indiciasse a predileção dessa arte pelo esquecimento, o problemático a-historicismo constitutivo da dança. Se Deleuze nos falou da folha em branco como repleta de clichês que devem ser desfigurados de modo que algo novo possa se expressar em seu plano, o caso aqui é de um espaço em branco repleto de violência que o fez e que o constitui como ilusoriamente “neutro”.

Assim, como Lepecki observa, neutralizar um espaço é um ato violento e brutal em prol da ilusão de que o chão de determinada dança é um espaço em branco, neutro e liso. No caso dos ambientes onde se produzem danças tradicionais, essas violências se dão através de um sistema de tanatopolítica, conforme ex-posto. Fugir das normas, ser um degenerado (ESPÓSITO, 2010) é tentar sair da terraplanagem como estrutura e adentrar outros planos de composição (LE-PECKI, 2010). Artistas que se propõem a trabalhar com recontextualização de danças tradicionais estão buscando outros planos de composição que não a do chão liso, levantando indagações que trazem para as danças tradicionais os acidentes, os buracos e os relevos do chão de sua cultura. Perguntas de caráter ético-político, como “Que chão é este que eu danço? Que chão eu quero dan-çar?” (LEPECKI, 2010, p. 15).

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Reconhecer como o borrado cultural e como a contaminação do fenômeno da globalização afeta uma determinada cultura e trazer este assunto problemati-zado na dança é uma maneira de agir com a política do chão, por exemplo. Ao invés de seguir uma cartilha que brutalmente intenta trazer a ilusão de um chão liso, branco e neutro, como algo não afetado pelo ambiente cultural da contem-poraneidade, as proposições de recontextualizações de danças tradicionais tra-zem discursos que promovem tropeços, advindos de seu chão acidentado, em todas as instâncias: tropeços do artista em cena, tropeços do espectador que a assiste, tropeços da obra em si e tropeços da cultura em questão em si.

Repensar os fazeres coreográficos, observando os elementos criativos consti-tutivos, adentrando outros planos de composição são ações políticas com es-sas danças tradicionais. Problematizar a maneira codificada do movimento, ex-perimentar se mover diferente daquilo que já está previsto, deixar que o devir aconteça durante o fazer coreográfico, valorizar o processo ao invés do produto, aceitar os acidentes e os acasos como elementos constitutivos para a obra, são exemplos de ações que deslocariam o fazer coreográfico de sua terraplanagem. Adentra-se, assim, na política do chão de Lepecki. Constituem “Estados de Ex-ceção” (FRANKO, 2012), pois adentram outras formas políticas, atravessando fissuras numa política hegemônica estabelecida. Em meio ao ambiente de polí-ticas de preservação de danças tradicionais, tais obras constituiriam, seguindo a nossa análise aqui, a categoria dos degenerados, que, perigosos, poderiam contaminar todo um ambiente e propiciar a multiplicação de mais degenerados, sendo uma ameaça à determinada cultura e tradição.

O sistema fechado dos ambientes onde se produzem danças tradicionais limita que o público que tenha interesse por determinada forma de expressão consiga acessar trabalhos coreográficos de outros artistas, que se propõem a ultrapassar os limites ditados sobre os permitidos graus de variantes dos princípios organizadores des-tas expressões de dança. Os artistas que produzem estes tipos de propostas para com uma determinada expressão de dança tradicional, por serem isolados desse meio através das políticas de imunização da dança tradicional, acabam recorrendo a outros meios, como o ambiente da dança contemporânea, que, em geral, é bem acolhedor a trabalhos que se propõem a percorrer chãos acidentados e não lisos.

Considerações

É importante observar que tanto os ambientes que valorizam o grau de preserva-ção no modo de fazer das tradições populares, quanto os artistas que propõem

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realizar o seu fazer de forma recontextualizada, estão na realidade agindo em prol da defesa desta tradição.

A política adotada pelo grupo mais conservador encontra soluções para defen-der a tradição através de um sistema de hierarquias de poder, que mantém o controle de sua preservação por meio do domínio do que se produz e o que pode ser exposto, ou não, ao grande público. É uma política que propõe um for-talecimento no interior do próprio ambiente de produção destas danças tradicio-nais. Um modo de funcionamento destes ambientes que tem como pensamento ideológico movente a sobrevivência destas expressões culturais e que isto só acontece se estas forem preservadas e defendidas dos contágios advindos dos meios exteriores a ela.

A política de repensar o modo de fazer estas danças tradicionais, pode ser vista também como estratégia de sobrevivência para esta tradição, uma vez que as-sim está sendo estabelecida uma relação dialógica de maior proximidade entre determinada expressão cultural com novos/outros pensamentos da contempora-neidade. E isso promove um espaço integrativo entre culturas e é um facilitador para adaptação e sobrevivência da tradição neste ambiente.

A sobrevivência de determinada expressão cultural é assunto de importância para ambos os grupos, porém pelo fato de acreditarem em caminhos diferentes para isso, estabelecem entre si linhas abissais. Vivem, assim, cada um com seus respectivos pares que pensam como eles e que tem seu(s) público(s) próprio(s). A ecologia dos saberes (SANTOS, 2010) entre ambos os grupos ainda não al-cançou um grau avançado neste aspecto. Infelizmente ainda não se percebeu que os dois grupos são complementares. Como um sistema vivo, este tem como premissa básica para a sua sobrevivência ambas as condições: tanto o grau de permanência de sua estrutura possibilita sua vida, como também o grau de transformação que ocorre através do contato com o ambiente ao redor e outros sistemas. A eliminação de qualquer uma dessas duas possibilidades levaria um sistema à morte. Ambas as proposições políticas em prol de determinada ex-pressão de tradição são, assim, complementares.

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Canônicas metamorfoses da área de conhecimento Dança

Lígia Maria Louduvino Martins (ULBRA)

Anette Lubisco Lopes (orientadora) (ULBRA)

Resumo

A consolidação da Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 e a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, no que diz respeito ao ensino das artes, foram fatores preponderantes na legitimação das linguagens artísticas, princi-palmente cênicas, na escola. A presença da dança no currículo escolar culminou na necessidade de professores com formação específica para ministrar esta dis-ciplina, impulsionando a criação de mais licenciaturas em dança. O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) na última década possibilitou um novo momento de expansão do ensi-no superior federal. O objetivo geral deste artigo foi contextualizar a formação em Dança no ensino superior do Brasil. Os objetivos específicos foram mapear os cursos existentes, analisar a legislação e contextualizar as disciplinas espe-cíficas de Dança. Como metodologia adotou-se uma pesquisa bibliográfica e qualitativa. Averiguando pressupostos das Diretrizes Curriculares Nacionais e suas (in)flexibilizações em breves espaços reservados a indicadores e o projeto político pedagógico na consolidação dos currículos de Dança no país. Nestas seis décadas de história de dança sendo pensadas nos aquedutos do conhe-cimento científico no Brasil, observa-se o constante aprimoramento do diálogo entre a formação do educador e do papel das disciplinas específicas de Dança. Na polifonia das reflexões/dançadas, agentes e instituições, sendo modificados e modificando este sistema, transformam esta trajetória na legitimação da dança enquanto área de conhecimento específica.

Palavras-chave: Arte. Ensino. Sociedade.

Abstract

The consolidation of the Law of Guidelines and Bases 9394/96 and implementation of the National Curriculum Parameters, with regard to the teaching of the arts, were prevalent in the legitimation of artistic languages , especially scenic, school factors. The presence of dance in the school curriculum culminated in need of teachers specially trained to teach this discipline, promoting the creation of more degrees in dance. The Support Program Plans Restructuring and Expansion of

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Federal Universities (Reuni) in the very last decade allowed for a new period of expansion of the federal higher education. The purpose of this paper was to contextualize the dance training in higher education in Brazil. The specific objectives were to map existing courses, analyze legislation and contextualize the specific disciplines of dance. The methodology adopted was a literature and qualitative research. Ascertaining assumptions of the National Curriculum Guidelines and its (in)flexibilities in short spaces reserved for the indicators and the political pedagogical project in consolidating the curriculum of dance in the country. In those six decades of history of dance being thought through aqueducts of scientific knowledge in Brazil, there is the constant improvement of dialogue between teacher education and the role of specific disciplines of dance. In polyphony Reflections / danced, actors and institutions, being modified and modifying this system, turn this trajectory in legitimizing dance while specific area of expertise.

Keywords: Arts. Education. Society.

Reflexões/dançadas: contextualização

Cursos de formação em Dança oferecem diversos níveis de preparação: cursos livres, cursos técnicos, graduações e pós-graduações (atualmente, no Brasil, existem pós-graduações: especializações, MBA e mestrado). É datada de 1956 a implementação do primeiro curso de graduação em dança do Brasil, na Uni-versidade Federal da Bahia. Desde então, verifica-se um aumento significativo na implantação de graduações em Dança no Brasil, principalmente licenciaturas.

Um fator preponderante é a formalização do Ensino das Artes, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação1 (Lei nº. 9394/96), que em paralelismo comos Parâmetros Curriculares Nacionais2 legitima como currículo escolar para o Ensi-no das Artes a: Dança, Música, Artes Visuais e o Teatro.

O Objetivo Geral deste artigo é contextualizar a formação em Dança no Ensino Superior no Brasil, observando a estruturação curricular nas Instituições de En-sino Superior3.

São objetivos específicos:

• Mapear os cursos existentes;• Analisar a legislação que a regulamenta;

1 Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB.2 Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN.3 Instituições de Ensino Superior – IES.

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A presente pesquisa justifica-se, tendo em vista a crescente implementação de licenciaturas em Dança conduzindo uma formação mais específica à arte-edu-cadores, produtores culturais, curadores, coreógrafos, críticos, diretores, bailari-nos, entre outros.

Refletindo um crescente volume de pesquisas em dança, e que se consolida como importante instrumento de comunicação para as áreas de conhecimento. Tendo em vista que as universidades são locais de articulação do conhecimento, aquedutos da criação e do pensamento reflexivo, espaço fértil para a reflexão crítica e para o delineamento da trajetória da dança no Brasil em um aporte educativo e cultural. Além de questões substanciais à sustentabilidade de profis-sionais da dança, no que tange uma maior estabilidade profissional, concursos e efetivações, e outras garantias de empregabilidade e renda.

Esta pesquisa busca verificar as Diretrizes Curriculares Nacionais para Dança4, entendendo-as como pressupostos à criação, implementação e avaliação das grades curriculares. A problematização tem como premissa as DCN enquanto balizadores para as IES, já que estas apontam questões que devem ser enten-didas enquanto genéricas à área da Dança.

A metodologia da pesquisa é bibliográfica, de cunho qualitativo, em formato des-critivo. Pressupõe-se uma coleta de dados feita por pesquisas de arquivos, sites oficiais, matriz curricular, LDB, Plano Nacional de Educação5, PCN, DCN, além de demais documentos necessários.

Reflexões/dançadas: mapeamento

Os cursos de Licenciatura em Dança abrem-se como espaço fecundo para o ensino, com o objetivo de preparar a atuação do acadêmico no mercado da dança. De acordo com pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)6, em 2011 existem no Brasil 27 instituições oferecendo graduações em Dança (em 2013 este número aumentou para 34), distribuídas pelas cinco regiões do país, da seguinte forma:

Região Norte: UFPA – Universidade Federal do Pará (licenciatura), UFRN – Uni-versidade Federal do Rio Grade do Norte (licenciatura) e UEA – Universidade Estadual do Amazonas (licenciatura e bacharelado).

4 Diretrizes Curriculares Nacionais para Dança - DCN para Dança.5 Plano Nacional de Educação – PNE.6 Dados disponíveis no site: www.inep.gov.br acessado em 15 de novembro de 2011.

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Região Nordeste: UFS – Universidade Federal do Sergipe (licenciatura), UFAL – Universidade Federal de Alagoas (licenciatura), UFBA – Universidade Federal da Bahia (licenciatura e bacharelado) e UFC – Universidade Federal do Ceará (licenciatura e bacharelado).

Região Centro-oeste: UEMS – Universidade do Estado do Mato Grosso do Sul (licenciatura, intitulado Artes Cênicas e Dança), UFG – Universidade Federal de Goiás (licenciatura) e IFB – Instituto Federal de Brasília (licenciatura).

Região Sudeste: PUCSP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (licen-ciatura, intitulada Comunicação das Artes e do Corpo – Dança), UNISO – Uni-versidade de Sorocaba (licenciatura), UNICAMP – Universidade de Campinas (bacharelado e licenciatura), FPA – Faculdade Paulista de Artes (licenciatura), UAM – Universidade Anhembi Morumbi (bacharelado e licenciatura), UNIVER-CIDADE – Centro Universitário da Cidade (licenciatura), UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro (bacharelado, licenciatura e Teoria da Dança), FAV – Faculdade Angel Vianna (bacharelado e licenciatura), TIJUCUSSU – Faculdade Tijucussu (licenciatura), UFV – Universidade Federal de Viçosa (bacharelado e licenciatura), UFU – Universidade Federal de Uberlândia (bacharelado) e UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais (licenciatura).

Região Sul: FAP – Faculdade de Artes do Paraná (bacharelado e licenciatura), UERGS – Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (licenciatura), UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (licenciatura), ULBRA – Universi-dade Luterana do Brasil (licenciatura), UFPEL – Universidade Federal de Pelotas (licenciatura).

Percebe-se neste mapeamento a predominância das licenciaturas, em institui-ções públicas federais, em maior número situadas na região Sudeste, sobretudo no estado de São Paulo.

Reflexões/dançadas: instituições e dança

Entender que a graduação transborda as fronteiras espaço-temporais das salas de aula, sua capacidade de disseminação e abrangência de atos facilmente ul-trapassam as fronteiras físicas das universidades. E não poderia ser diferente, já que um dos principais papéis das IES é a promoção da criação cultural, do espírito científico e do pensamento reflexivo, no desenvolvimento da sociedade brasileira.

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Segundo Molina (2008, p. 45), “há, portanto, um caminho de mão dupla: o profis-sional modifica o meio, que por sua vez também modifica o profissional”. Cons-tata-se que, o compromisso principal com a formação vem envolto pela cinesfera da transformação. As IES têm um papel implícito na moldagem social, visto a universidade preparar e motivar seus egressos, a inserirem-se nos diversos con-textos, relativos à sociedade.

No mundo contemporâneo, as rápidas transformações destinam às universidades o desafio de reunir em suas atividades de en-sino, pesquisa e extensão, os requisitos de relevância, incluin-do a superação das desigualdades sociais e regionais, quali-dade e cooperação internacional. As universidades constituem, a partir da reflexão e da pesquisa, o principal instrumento de transmissão da experiência cultural e científica acumulada pela humanidade. Nessas instituições apropria-se o patrimônio do saber humano que deve ser aplicado ao conhecimento e de-senvolvimento do País e da sociedade brasileira. A universidade é, simultaneamente, depositária e criadora de conhecimentos. (BRASIL, 2001, p.41)

A dança que no cotidiano, desde os primórdios, detém um papel de comunicação e arte, passa a desenhar sua trajetória enquanto área de conhecimento legítimo e específico. Já que as IES são imponderadas deste compromisso e privilégio social, na criação, condução e legitimação das áreas de conhecimento.

O Brasil é um país de proporções continentais com grande diversidade cultural. As diferenças, não só culturais, abrangem noutros aspectos e influenciariam na multiplicidade deste país. Observa-se que o perfil e as trajetórias dos cursos de Dança seguem caminhos distintos, variando de acordo com questões regionais, a instituição de ensino, o centro de pesquisa e a efetiva participação dos do-centes e acadêmicos, que se estabelece como preponderância decisiva neste contexto.

Em novembro de 2009, aconteceu o primeiro “Encontro das Graduações em Dança do Estado do Rio Grande do Sul”, um espaço para discussão da forma-ção do profissional da dança. A citação a seguir, transcrita por Paludo (2010, p.4), na “Apresentação dos Anais do evento”, releva uma classe em busca de legitimidade: “O que pude perceber é que todos os participantes tinham uma causa imediata em comum: estarem trabalhando para a construção de um cam-po de conhecimento legítimo da dança.” (PALUDO, 2010, p.4)

Entende-se que o ato dos egressos – professores de dança – no ensino formal de artes na educação básica é prerrogativa para o fortalecimento de pensamen-to reflexivo sobre a dança/educação, visando articulações políticas que ressig-

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nifiquem a arte-educação, inclusive através da implementação de legislações municipais, estaduais e federais para a área que garantam um contínuo pro-cesso de fortalecimento e garantia da longevidade das experiências e projetos implantados.

Faz-se importante investigar de que forma os cursos sistematizam suas propos-tas curriculares, a partir dos princípios de integração entre teoria e prática e a conexão de saberes. (MOLINA, 2008) Compreender de que maneira é possível constituir a conexão de saberes já que há conteúdos específicos e disciplinas diversas.

Segundo Marques (2003, p.23), os conteúdos específicos de dança na escola podem ser:

Aspectos e estruturas do aprendizado do movimento (coreolo-gia, consciência corporal e conhecimento físico); disciplinas que contextualizem a dança (história, estética, apreciação e crítica, sociologia, antropologia, assim como saberes de anatomia, fisio-logia e cinesiologia) e possibilidades de vivenciar a dança em si (repertórios, improvisação e composição coreográfica).

As disciplinas encontradas nos currículos das graduações parecem buscar res-ponder peculiaridades, relevâncias e particularidades necessárias ao legítimo responder responsável (BAKHTIN) dos acadêmicos em constante processo de profissionalização.

A educação básica demandou por professores, o que veio a realçar o processo de abertura das universidades para a dança. Porém, como estão sendo cons-truídos estes saberes que seguem as proposições de DCN? É proposta desta pesquisa, que instiga a compreender sobre os efeitos da compartimentação dos saberes e a capacidade de articulá-los. (MEYER, 2009)

Segue-se três subtítulos que dialogam sobre os regimentos de educação em dança, as diretrizes curriculares para o ensino superior e os saberes específicos de dança:

• Eixo Sociedade – a legislação;• Eixo Ensino – as Diretrizes Curriculares Nacionais;• Eixo Arte – disciplinas técnicas.

Para a enunciação destes títulos utilizou-se como inspiração a um entrecruza-mento, análogo a proposta de “Linguagem da Dança”, de Isabel Marques, no tripé: Arte, Ensino e Sociedade.

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Eixo Sociedade – a legislação

Este subcapítulo versa sobre LDB e PNE, instrumentos da legislação brasileira que conduzem importantes parâmetros na construção das Diretrizes Curricula-res Nacionais.

Conforme prevê o artigo 62 da LDB 9394/96, “a formação do professor para atuar na educação básica deverá ocorrer em nível superior, de licenciatura, de graduação plena, em universidade e instituições superiores de educação”. (BRA-SIL, LDB, 1996) O artigo 65 da LDB prescreve um mínimo de 300 horas para “Pratica de Ensino”, tratando-se de um componente curricular obrigatório para os futuros docentes, visando colocá-los em contato com a realidade escolar e seus afazeres didáticos.

O PNE propõe que o processo de formação de professores seja entendido en-quanto um momento inicial de uma trajetória que coloca o profissional em cons-tante formação. Segundo Molina, “[...] propor a articulação de saberes, numa perspectiva interdisciplinar com ênfase nos processos de observação e refle-xão.” (2008, p. 53)

Sendo assim, o PNE estabelece preceitos historicamente consolidados através da Constituição Brasileira, da Carta Magna e do entendimento dos indicadores da educação superior da contemporaneidade, na redução das desigualdades.

As IES têm muito a fazer, no conjunto dos esforços nacionais, para colocar o País à altura das exigências e desafios do Séc. XXI, encontrando a solução para os problemas atuais, em todos os campos da vida e da atividade humana e abrindo um horizon-te para um futuro melhor para a sociedade brasileira, reduzindo as desigualdades. (BRASIL, 2001, p. 41)

O Plano Nacional de Educação estabelece em seus Objetivos e Metas do Ensino Superior (2001, p.44), a garantia da flexibilidade e diversidade dos programas de estudo oferecidos pela IES.

Estabelecer, em nível nacional, diretrizes curriculares que asse-gurem a necessária flexibilidade e diversidade nos programas de estudos oferecidos pelas diferentes instituições de educa-ção superior, de forma a melhor atender às necessidades dife-renciais de suas clientelas e às peculiaridades das regiões nas quais se inserem.

No entendimento de Molina, ao cunhar sobre o PNE afirmando que “é preciso superar a histórica dicotomia entre teoria e prática e o divórcio entre a formação pedagógica e a formação no campo dos conhecimentos específicos que serão

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trabalhados na sala de aula.” (2008, p.53) A instabilidade de verdades e da tran-sitoriedade de conceitos exige do profissional da dança o difícil e importante papel de superar a dicotomia teoria e prática e buscar a conexão da formação pedagógica das vivências em dança.

Eixo Ensino – Diretrizes Curriculares Nacionais

Assim sendo, as DCN recomendam todo e qualquer curso de graduação, dentre outras coisas (MOLINA, 2008, p. 122):

I.a promoção de autonomia para as instituições de ensino supe-rior na definição dos currículos de seus cursos, com um modelo pedagógico adaptável à dinâmica das demandas da sociedade, enquanto etapa inicial de um processo de formação;

II. a proposição de carga horária mínima que permita a flexibili-zação do tempo de duração do curso de acordo com a disponi-bilidade do aluno;

III. A possibilidade de estruturação modular dos cursos, permitin-do um melhor aproveitamento dos conteúdos ministrados;

IV. Favorecer o reconhecimento de habilidades e competências adquiridas fora do ambiente escolar, contempladas nas atividades de estágio, integrando o saber acadêmico à prática profissional.

Entendendo a necessidade de que cada instituição venha a adequar seu con-texto, concretiza-se uma determinada autonomia e flexibilização para a interfase com o Projeto Político Pedagógico (PPP) e com as relações estabelecidas pela característica das instituições de ensino.

No que tangem as DCN para formação de professores da educação básica, do qual também se inserem as licenciaturas em Dança. Aprovada pela Resolução CNE/CP nº. 1/2002, que estabelece com principal norteador o preparo do profis-sional para o exercício de sua profissão, tais como:

1. A coerência entre a formação oferecida e a prática esperada do futuro professor;

2. A pesquisa, com foco no processo de ensino e de aprendizagem, uma vez que ensinar requer tanto dispor de conhecimentos e mobilizá-los para a ação, como compreender o processo de construção do conhecimento.

Os caminhos trilhados entre o processo de legalização do ensino e a formação dos profissionais que virão atuar neste campo passam por questões como “o re-

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conhecimento da Dança como área autônoma de conhecimento, até à produção de conhecimento específico para esta área de atuação”. (MOLINA, 2008, p. 43) E suas fronteiras borradas com outros campos de conhecimento, como a educa-ção física e o teatro (principalmente).

A DCN para Dança, resolução CNE/CES n° 3, de 2004, prescreve em seu artigo quinto, os pressupostos básicos para a matriz curricular de graduação em Dança.

Art. 5° O curso de graduação em Dança deve contemplar em seu projeto pedagógico e em sua organização curricular, os se-guintes conteúdos interligados:

I – conteúdos Básicos: estudos relacionados com as Artes Cêni-cas, a Música, as Ciências da Saúde e as Ciências Humanas e Sociais, com ênfase em Psicologia e Serviço Social, bem assim com as diferentes manifestações da vida e de seus valores;

II – conteúdos Específicos: estudos relacionados com a Estética e com a História da Dança, a Cinesiologia, as Técnicas de Cria-ção Artística e de Expressão Corporal e Coreografia;

III – conteúdos Teórico-Práticos: domínios de técnicas e princí-pios informadores da expressão musical, envolvendo aspectos Coreográficos e de Expressão Corporal, bem como o desenvol-vimento de atividades relacionadas com os Espaços Cênicos, com as Artes Plásticas, com a Sonoplastia e com as demais prá-ticas inerentes à produção em Dança como expressão da arte e da vida. (BRASIL, 2004, p. 2)

Em concordância com Molina (2008), as instituições têm organizado as suas estratégias de formação profissional de acordo com características de hibridiza-ção e a permeabilidade disciplinar, entre as áreas distintas de conhecimento, na culminância das DCN de Dança e DCN formação de professores.

O currículo mínimo tem por objetivo fixar tempo útil mínimo e máximo para a duração dos cursos, além de observar normas gerais para oportunidades tais como: o mesmo estudo, os mesmos conteúdos e a mesma duração em qualquer instituição. (MOLINA, 2008) Esse fato facilitaria a transferência de alunos entre instituições e asseguraria uniformidade mínima a todos os graduados do país.

2.3 Eixo Arte – Disciplinas técnicas

As disciplinas técnicas de dança são os principais norteadores das atividades profissionais, pois trazem a relação ao conhecimento específico e exclusivo da área da Dança. Pensa-se estas disciplinas como questões específicas e perti-nentes ao entendimento das vivências artísticas em dança.

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Porém, verifica-se certa dificuldade na escolha das disciplinas técnicas a serem trabalhadas aos acadêmicos. Grande parte das universidades utiliza-se das se-guintes nomenclaturas: Técnica corporal, Técnica de dança e/ou Laboratório de dança, entre outros. Segue essas nomenclaturas, uma raiz cartesiana de sub-sequentes numerações que nomeariam as demais técnicas a serem ensinadas.

Eventualmente as disciplinas técnicas teriam relação com o contexto histórico e relativo a certos conhecimentos de dança. Pode ser balé clássico, dança moder-na ou contemporânea, entre outros. Estas técnicas valorizam os criadores que transitam em dois eixos principais: Estados Unidos e Europa. Mas seria o ensino de dança um só para todos? Poderia estar traduzindo aspectos institucionais de nações culturalmente etnocêntricas?

“No curso de Licenciatura em Dança, deixamos aberto a opção estética” (STRA-ZZACAPA, 2001, p. 73). De que maneira isso é possível? A preconização de uma dança isenta de estética, seria possível? Ou estaria em tessituras de uma dança importada ou globalizada.

Por isto, decorre outra questão importante: quais as técnicas devem ser ensina-das nos cursos superiores?

Aceitar o balé como algo a priori, na ordem do pensamento em dança se encontra na posição inicial ou, para usar um termo de Foucault (2004) de ‘texto primeiro’, é encarnar uma postura simplificadora em relação às questões da dança como um todo numa ficcional ‘linha do tempo’ progressiva. (SAMPAIO, 2007, p.43)

Em contrapartida, isentar o balé das linguagens de dança no ensino superior pode ser possível? Já que esta técnica é amplamente difundida em sociedade?

Se pensarmos na consolidação de técnicas de dança que considerem o de-senvolvimento integral do indivíduo na escola, esbarraremos nas fronteiras de entendimentos consolidados por teóricos como Laban, Bartenieff, Feldenkais, entre outros estudiosos de técnicas corporais e até mesmo de educação somá-tica. Porém, Strazzacappa (2001, p. 73) coloca que “o que importa não é a linha escolhida, mas como através dela pode-se trabalhar os elementos que conside-ramos importantes para o desenvolvimento integral do indivíduo na escola”.

Ressalta-se a perseverante assertiva de pesquisadores brasileiros dispostos a entender as necessidades do contexto nacional, aliado ao histórico geral de danças. Entre alguns dos pesquisadores brasileiros de técnicas encontram-se: Klauss Vianna (pesquisador em educação somática), Isabel Marques (pesqui-

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sadora da metodologia de ensino da Dança – como: Linguagem da Dança: Arte e Ensino), Graziela Rodrigues (autora da metodologia BPI - Bailarino - Pesqui-sador - Intérprete), Flavia do Valle (autora dos Referenciais Curriculares do Rio Grande do Sul para a dança) Angel Viana, Márcia Strazzacappa, entre outros.

As disciplinas técnicas das graduações têm por objetivo, contextualizar teorica-mente, para que os acadêmicos intentem praticá-las e ensiná-las. Neste sentido, conjugar a prática e a teoria é imprescindível. O que nesta pesquisa compreende as reflexões/dançadas, que se trata de “refletir dançando” ou “dançar refletindo”, entendendo a não sobreposição, e sim as imbricações linguísticas.

Reflexões finais

A presente pesquisa “Canônicas metamorfoses da área de conhecimento Dan-ça” apresentou regimentos para educação em dança, que nas ultimas décadas vêm consolidando novas perspectivas para a arte da dança em todo país, prin-cipalmente para seu ensino.

Apresentando a relação canônica das legislações vigentes, Constituição Bra-sileira, Lei de Diretrizes e bases da Educação, Plano Nacional de Educação e demais Pareceres e Diretrizes Curriculares Nacionais. Entendendo tais regimen-tos como balizadores das (in)flexibilizações da matriz curricular para a dança em todo país. E das breves possibilidades de flexibilizações para que cada IES atribua a sua Matriz Curricular os indicadores e ao Projeto Político Pedagógico de cada curso.

Observa-se a possibilidade de que as DCN operassem por compreensão à com-plexidade de contextos, possibilitando o entendimento da representatividade da diversidade efetiva na área da Dança e com isso possibilitar um maior transbor-dar e transparência das metodologias e as assinaturas docentes para a com-preensão do contexto da criação e articulação de saberes em dança.

Cercado de otimismo, agentes e instituições, sendo modificados e modificando este sistema, transformam esta trajetória demonstrando grande empenho e pro-fissionalismo no fortalecimento da área de conhecimento – Dança. Na polifonia das reflexões/dançadas, agentes e instituições, sendo modificados e modifican-do este sistema, transformam esta trajetória na legitimação da Dança enquanto área de conhecimento específica.

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O processo de criação compartilhado: dançando em coletivo

Lucas Valentim Rocha (UFBA)1

Resumo

Este trabalho busca discutir especificidades do processo de criação compartilha-do, com foco na Dança. Entretanto, as questões aqui apontadas extrapolam os limites desta área de conhecimento, tocando em assuntos que perpassam ou-tros processos criativos. Estaremos nos referindo a algumas características que tornam o exercício da coletividade uma política de fortalecimento das potências criativas dos sujeitos em processo e, ao mesmo tempo, um desafio constante em favor da comunidade. A primeira questão que discutiremos relaciona-se com a noção de “inacabamento” do processo de criação, no sentido de que parece incongruente falar de ponto de origem e de ponto final quando nos referimos a tais processos. Essa é uma questão observada pela professora Cecília Salles e que nos serve como detonadora para pensar um processo de criação no gerúndio. A segunda parte do trabalho discutirá as noções de autonomia e colaboração a partir do ponto de vista de alguns teóricos como Edgar Morin, Paulo Freire, Christine Greiner e Stephen Nachmanovich. Por fim, e não obedecendo, ne-cessariamente, uma ordem cronológica, trataremos das correlações entre que hierarquia e autoria, conceitos sempre presentes no cotidiano de artistas que se permitem experienciar processos colaborativos. Diante da impossibilidade de tratar sobre tais questões sem observar como se configuram as relações de po-der nos processos colaborativos, incluiremos nesta discussão os conceitos de biopotência, biopoder e imunização, tratados por Roberto Esposito no livro Bios: bipolítica e filosofia.

Palavras-chave: Criação. Colaboração. Autonomia. Poder.

Abstract

This work aims to reflect upon specificities of the shared creative process, focusing on Dance. However, the issues here addressed cross the boundaries of this knowledge field and touch issues that concern other types of creative processes. We will be referring to some features that make the exercising of collectivity the politics of strengthening people´s creative powers in process and, at the same time, a constant challenge in favor of the community. The first issue we will address is related to the notion of incompleteness of the creative process, in the sense that it seems incongruent to talk about a starting or final point when it comes to these processes. This is an issue addressed by professor Cecília 1 Mestre em Dança pelo Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA. Integrante do Núcleo VA-

GAPARA desde sua formação, é diretor, dançarino, ator, coreógrafo, produtor e professor. [email protected]

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Salles and triggers us to think of a creative process “in gerund”. The second part of the paper will discuss the notions of autonomy and collaboration from the point of view of theoreticians such as Edgar Morin, Paulo Freire, Christine Greiner and Stefan Nachmanovich. At last – but not observing any kind of chronological order – will be addressing the relationships of hierarchy and authorship, concepts that have always been present in the daily lives of artists who experience collaborative processes. Facing the impossibility of addressing those questions without noticing the power relationships in collaborative processes, we will include here at this discussion concepts of biopower, biopolitics and immunization brought by Roberto Esposito in the book Bios: Biopolitics and Philosophy.

Keywords: Creation. Collaboration. Autonomy. Power.

Nos anos 70, o termo Grupo foi adotado como forma de diferen-ciação dos modos de produção exercidos pelas Companhias de Dança (oficiais ou extraoficiais). Este outro tipo de enunciado, embora possuidor da premissa de distinção, ainda apresenta-va a figura de seu fundador como mentor do grupo. Somente a partir dos anos 80, os grupos surgidos pela associação de artistas com interesses comuns, de fato estabeleceram relações produtivas colaborativas, eliminando a dualidade entre aquele que decide daquele que executa. (HÉRCOLES, 2013, p. 15)

O interessante é perceber que, naquele momento, a mudança de enunciado surgiu a fim de provocar certa diferenciação de outro modelo existente (o de Companhia). A partir dos anos 80, o surgimento de mais grupos interessados em trabalhar de maneira “horizontalizada”, no sentido de não sustentar o lugar de um único diretor gerou, de certo modo, a necessidade de se rever conceitual-mente a ideia de Grupo. É importante dizer que esse movimento não se restrin-giu apenas à área da Dança: também é possível percebê-lo em outras formas de produções artísticas, como o teatro, as artes visuais, a performance, dentre outros. Mas, como dizíamos, é possivelmente neste período que começaram a surgir os chamados Núcleos e Coletivos.

Um traço marcante nessa maneira de organização é que esses artistas estão propondo, de maneira cada vez mais radical, articulações temporárias, inver-sões de papéis, parcerias e descentralização de poderes, impondo a necessida-de ainda mais urgente de lidar com a complexidade das relações na atualidade. O que nos faz atentar para o fato de que nos processos de criação, assim como na vida, estamos lidando, a todo tempo, com transformação e avaliação dos procedimentos escolhidos, bem como dos resultados e efeitos de tais escolhas.

É justamente essa condição processual do movimento criativo que proponho dis-cutir neste trabalho. Iremos tratar do tecido de relações, imbricamentos e com-

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partilhamentos evidenciados na criação em dança, buscando entendê-la como emergência circunstancial e temporária de/em processo.

Processo de criação artística

O saber de hoje não é necessariamente o de ontem nem tam-pouco o de amanhã. O saber tem historicidade. Nunca é, está sempre sendo. (FREIRE, 2012, p. 29)

[...] Pois o ato criador se realiza na ação. (SALLES, 2011, p. 29)

[...] cada momento é um ponto de partida e não uma chegada. (SALLES, 2011, p. 47)

O que propomos pensar aqui é que estamos todos imersos em um processo evolutivo, do qual não há como fugir. Desse modo, viver implica em se modificar. No entanto, precisa ficar claro que “evolução”, neste caso, tem a ver mais com “transformação” que com “progressão”. Ou seja, nós – seres vivos – estamos em constantes mudanças a fim de nos adaptarmos às condições do corpo e do ambiente. Isso não significa, necessariamente, que estamos “melhorando”, mas que estamos nos “modificando”.

Esta característica processual da vida é observada, sob o viés do processo de criação, pela professora Cecília Almeida Salles2 ao abordar a ação criativa sob o ponto de vista de um gesto inacabado.3 Salles (2011) desenvolve seu argumento a partir da aproximação com a Semiótica4. Katz (2010) nos esclarece, de manei-ra bastante sucinta e precisa, algumas noções que permeiam tal pensamento e que estão relacionadas com a proposta de Salles (2011):

Entendendo-se a semiose como a relação entre os três termos necessários, suficientes e irredutíveis que, segundo Peirce, constituem o seu processo (signo é o primeiro termo, objeto é o segundo, e o terceiro é interpretante), pode-se inferir que essa relação se faz com um padrão irredutivelmente triádico dos ter-mos nela conectados. A relação triádica entre signo, objeto e interpretante é irredutível no sentido de que não pode ser de-composta em outra relação mais simples. Por ser processual, envolve tempo, o que faz da semiose um processo irreversível. (KATZ, 2010, p. 162)

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).

3 Ver Salles (2011).4 Salles e Katz se referem à teoria do filósofo semioticista Charles Sanders Peirce e relacionam a outras

redes. São questões bastante complexas, em geral, tratadas na área da comunicação; não temos a preten-são aqui de aprofundar nem de adentrar em suas especificidades, por enquanto nos restringimos ao olhar das duas pesquisadoras.

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Ao discutir a criação como processo semiótico, Salles (2011) nos alerta que não há signos isolados; afinal, um sistema de representação só pode ser compreen-dido em seu contexto de processo triádico (objeto/signo/interpretante). Além dis-so, a principal função do signo é, segundo a própria autora, interpretar e ser interpretado simultaneamente. Por esse motivo, não existe a possibilidade de se pensar um signo sem conexão com outros signos. Trata-se sempre de uma cadeia contínua e infinita onde um signo está ligado a outro signo, que origina, inevitavelmente, outro signo e assim por diante. Um gesto inacabado.

A constatação de que o gesto criador é sempre inacabado é, portanto, estreitamente ligada à conceituação da criação como processo sígnico (e, portanto, contínuo), que olha para todos os objetos de nosso interesse – seja um romance, uma instalação, um artigo científico, uma matéria jornalística ou uma peça publi-citária, – como uma possível versão daquilo que poderia vir a ser ainda modificado. Relativiza-se, assim, a noção de conclusão como uma forma única possível. Qualquer momento do proces-so é simultaneamente gerado e gerador. (SALLES, 2011, p.165)

Diante da proposta lançada por Salles (2011), convido o leitor a investirmos na provocação de algumas fissuras acerca de ideias como origem e produto:

É possível e necessário identificar o momento de início de uma criação? A obra que se dá a ver é resultado final do processo criativo? Quando pensamos so-bre uma ideia que motiva a formulação de uma dança, já estamos criando ou dançando? Quando fazemos dança, estamos pensando? Ao criar movimentos configurados enquanto dança nos deparamos com experiências de aprendiza-gens? O processo criativo no senso comum percorre um caminho linear que vai do caos (ideias iniciais) à ordem formalizada (cena)?

Estas são perguntas que parecem fazer parte do cotidiano de diversos artis-tas e pesquisadores não só da dança, mas que se mostram interessados nos processos de criação do corpo-em-arte. Justamente por estar lidando com um fenômeno complexo, simultâneo e não linear, seria arriscado demais apresentar respostas definitivas para tais questionamentos. Desse modo, apontamos neste texto algumas pistas que talvez sirvam para alimentar as ideias e criações de outros artistas e pesquisadores.

Uma visão simplificadora do gesto criador mostra um percurso que tem origem em um insight arrebatador, que se concretiza ao longo do processo criativo. Um caminho do caos inicial para a ordem que a obra oferece. Esta perspectiva contém uma lineari-dade que incomoda aqueles que convivem com a recursividade e a simultaneidade desse fenômeno. Seria uma forma limitadora de olhar para esse trajeto. Uma representação que não é fiel à complexidade do percurso. (SALLES, 2011, p. 29)

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Entretanto, sabemos que compartilhar esta proposta implica em compreender o estado de constante busca, inerente à própria concepção de processo (do latim, proceder – avançar, mover adiante). Sobre isso nos fala o educador Paulo Freire:

Não apenas estamos sendo e temos sido seres inacabados, mas nos tornamos capazes de nos saber inacabados, tanto quan-to nos foi possível saber que poderíamos saber melhor o que já sabíamos ou produzir o novo saber. E é exatamente porque nos tornamos capazes de nos saber inacabados que se abre para nós a possibilidade de nos inserir numa permanente busca. (FREIRE, 2012, p. 123)

Diante das questões de inacabamento do processo criador, vejamos o que nos fala novamente a professora Cecília Almeida Salles:

O percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua conti-nuidade coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente ligadas. O ato criador aparece, desse modo, como um processo inferencial, na medida em que toda ação que dá forma ao sistema ou aos ‘mun-dos’ novos, está relacionada a outras ações e tem igual relevân-cia, ao se pensar a rede como um todo. Todo movimento está atado a outros e cada um ganha significado, quando nexos são estabelecidos. (SALLES, 2011, p. 94)

A natureza inferencial do processo significa a destruição do ideal de começo e fim absolutos. Para essa discussão a ênfase recai com maior força na impossibilidade de se determinar um primei-ro elo da cadeia ; no entanto a constatação de que o ato criador é uma cadeia implica, necessariamente, em igual indetermina-ção de últimos elos. (SALLES, 2011, p. 94)

Essa visão do movimento criador, como uma complexa rede de inferências, contrapõe-se à criação como uma inexplicável reve-lação sem história, ou seja, uma descoberta espontânea (como uma geração espontânea) sem passado e futuro. (SALLES, 2011, p. 94)

Desse modo, assumimos diante do leitor a incongruência em identificar de ma-neira precisa o ponto de partida e de finalização de um processo criativo. Reco-nhecemos que há sim, escolhas circunstanciais, nas quais cabe ao artista decidir começar a configurar uma obra e determinar o momento de compartilhá-la com o público; no entanto, isso não garante o ponto inicial, nem tampouco a capaci-dade de permanência do movimento criador.

Ainda sobre este aspecto cabe falar sobre o problema da dicotomia, bastante recorrente nos enunciados acerca de processos de criação, estamos falando da distinção entre processo e produto, ou, processo e resultado como partes iso-ladas que se organizam de maneira sequencial, ou seja, primeiro eu vivo o pro-

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cesso e depois eu configuro o resultado. Este entendimento cristaliza a noção de processo e produto não possibilitando compreender a coexistência desses dois aspectos da criação, visto que o próprio resultado é configuração circunstancial e temporária.

Após configurarmos esse tecido de informações, a fim de localizar melhor o que seriam processos de criação, iremos agora adentrar um pouco mais em aspectos relevantes ao modo como alguns artistas vêm lidando com a criação compartilhada.

Autonomia-colaborativa

Se a História fosse um tempo de determinismo em que cada pre-sente fosse necessariamente o futuro esperado ontem, como o futuro de amanhã será o que já se sabe que será, não teríamos como falar em opção, ruptura e decisão. (FREIRE, 2012, p. 64)

A definição, aqui tomada por autonomia, se refere à faculdade de governar-se por si, tomar conta de suas escolhas (do grego: autos, próprio + nomos, lei). No entan-to, ao perceber/entender a condição humana de ser biológico-cultural, ou seja, que o que somos é sempre resultado parcial e circunstancial decorrente da coevolução entre corpo e ambiente, é possível dizer que o exercício de governar-se implica em reconhecer o outro (alteridade) e os contextos onde se inserem os sujeitos.

A noção de autonomia humana é complexa, já que ela depende das condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos é preciso aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é preciso que essa própria cultura seja bastante variada para que possamos escolher no estoque das ideias existentes e refletir de maneira autônoma. (MORIN, 2011, p. 66)

Tal procedimento é corpóreo e opera constantemente estabelecendo trocas en-tre o ambiente/contexto e os corpos/sujeitos, ou seja, trata de uma relação que se configura sempre em processo, nunca fixa ou estática. O que parece interes-sante perceber é que a conexão entre esses processos é tão complexa que faz de nós, seres humanos, simultaneamente, autônomos e dependentes. Pois: “[...] essa autonomia se alimenta de dependência; nós dependemos de uma educa-ção, de uma linguagem, de uma cultura, de uma sociedade, dependemos claro de um cérebro, ele mesmo produto de um programa genético, e dependemos de nossos genes.” (MORIN, 2011, p. 66)

Já dissemos que não estamos lidando aqui com sujeitos isolados, como se fosse possível uma suspensão do espaço-tempo em que estamos inseridos. O que somos é um trânsito entre o eu, os outros e o meio-ambiente. Em processos de

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criação compartilhados, essas questões ficam bastante evidentes, por exemplo, no tecido de negociações e escolhas estabelecidas por/entre os sujeitos-apren-dentes-criadores envolvidos. Neste sentido, visualizamos uma trama onde coa-bitam os sujeitos criadores (com suas histórias, desejos, anseios e limitações), o contexto da criação (social, político, ético, estético) e algo determinante nesse processo: o objetivo de produzir arte. Este desejo, compartilhado, de criar pres-supõe um ambiente de negociações constantes, onde emergem as singularida-des diante de uma ação coletiva. Poderíamos dizer, neste caso, que um proces-so colaborativo se auto-organiza em complexidade? Talvez sim, pois como nos atenta o próprio Morin (2011), complexidade é o que é tecido junto.

Esta noção trabalhada por Edgard Morin nos remete a pluralidade do coletivo, deste modo, falar sobre autonomia e colaboração em processos de criação im-plica em reconhecer que “[...] são necessários dois para se conhecer a unidade.” (BATESON apud NACHMANOVITCH, 1993, p. 91) Tal questão perpassa muitas áreas do conhecimento e toca em conceitos como identidade e unidualidade5. Para nossa conversa, o que se torna importante perceber é que:

O reconhecimento de uma identidade, por exemplo, já traz con-sigo o reconhecimento da impureza dos processos, não é ape-nas o que superficialmente parece a diferença em relação ao outro. É isso e simultaneamente a contaminação com os outros domínios. O que a caracteriza como identidade é um modo sin-gular de organização, mas não a coisa em si, o corpo em si, os ambientes ou sujeitos em si mesmos. (GREINER, 2005, p. 87)

Contudo, sabemos que o processo de colaboração artística e o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos envolvidos não são uma especificidade dos trabalhos de núcleos e coletivos; em verdade, essas características perpassam outros mo-dos de organização em grupo, em diferentes graus:

A colaboração artística pode percorrer toda uma escala, desde uma hierarquia totalmente estruturada como, por exemplo, a de uma equipe de cinema que trabalha a partir de um roteiro, até um grupo de artistas performáticos que, não tendo um diretor, partilham a responsabilidade por tudo o que acontece no espe-táculo. (NACHMANOVITCH, 1993, p. 94)

Desta maneira, a escolha por tratar de autonomia e colaboração a partir de um olhar acerca de certos tipos de organização em dança, que se assemelham mais ao segundo exemplo dado por Nachmanovitch (1993) na citação acima, nos leva a questionar como vem se dando entre os artistas integrantes desses núcleos e coletivos as relações de poder.

5 Conceito utilizado por Edgard Morin (2001) que se refere à relação indissociável entre corpo e ambiente.

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Hierarquia e autoria

Existem diversos desafios na escolha de viver um processo compartilhado, o que deflagra a necessidade de tomadas de posições e reelaborações constan-tes, por parte dos sujeitos do processo. Justamente nesse ambiente de nego-ciações é que parecem ser mais evidentes as relações de poder, o que torna as noções de hierarquia e autoria questões que permeiam o trabalho de diversos artistas desafiando a escolha de desenvolverem trabalhos coletivos.

Etimologicamente, é possível perceber que tais palavras estão intimamente cor-relacionadas com perspectivas de superioridade e autoridade. Vejamos: o subs-tantivo feminino “hierarquia” é derivado do latim hierarchia, que significa divisão dos anjos por ordem de importância e do grego hierarkhia, que trata do comando de um alto sacerdote, esta palavra surge a partir da junção entre as expressões ta hiera (ritos sagrados), mais arkhein (comando, domínio); já a ideia de autoria vem do Latim auctor, que se refere àquele que aumenta – o mestre, o líder.

Diante desta breve apresentação perguntamos: como as noções de autoria e hierarquia, na contemporaneidade, afetam as relações de compartilhamento no ambiente de criação artística?

Se os “seres artistas” não se encontram isolados do mundo, então, as relações de poder estabelecidas no mundo também perpassam os processos de cria-ção e, consequentemente, a escolha de trabalhar em coletivo. Por exemplo, ao borrar as noções de hierarquia e autoria, estes coletivos demonstram um posi-cionamento político em resposta ao poder arbitrário e soberano – muitas vezes exercido pelo diretor do grupo. Entretanto, reconhecer como esses poderes se manifestam em nossas relações parece não ser tão simples assim, pois:

[...] o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou to-das as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, a pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquis-mo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropria-do pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as ciências, o capi-tal, o Estado, a mídia etc. (PELBART, 2007, p. 57)

Esta relação entre poder e vida, segundo o próprio autor, aponta duas direções principais que caracterizam estágio do capitalismo em que estamos. Para tratá-las, iremos permear o ambiente ainda bastante enigmático da biopolítica.

A primeira tem a ver com o modo como os mecanismos pelos quais se exercem os poderes na atualidade se configuram. Segundo ele, tais mecanismos “[...] são

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anônimos e se encontram esparramados, flexíveis. O próprio poder se tornou pós-moderno. Isto é, ondulante, acentrado (sem centro) em rede, reticulado, mo-lecular.” (PELBART, 2007, p. 57)

Assim, esta característica do poder se configura como um poder sobre a vida. Por outro lado, e esta é a segunda direção a qual se refere o autor, aquilo que parecia, de certo modo, submetido e controlado (a vida) revela simultaneamente uma potência indomável. “[...] ao poder sobre a vida, responde a potência da vida. Mas esse responder não significa uma reação, já que o que se vai consta-tando cada vez mais é que essa potência de vida já estava lá e por toda parte, desde o início.” (PELBART, 2007, p. 58) Por este motivo, o biopoder e a biopo-tência, ou seja, o poder sobre a vida e as potências da vida, “São como o avesso um do outro. Se você seguir em linha reta você chega ao outro e vice-versa”. (PELBART, 2007, p. 58)

Ora, mas o que esta discussão tem a ver com a nossa questão? Precisamente porque estamos falando de dança – dos processos de criar e aprender – e não há como pensar dança dissociado de corpo, um corpo que por si só já é plural e que lida, a todo o momento, com outros corpos situados em um contexto. E “tan-to o biopoder como a biopotência passam, necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo.” (PELBART, 2007, p. 58) Pois, “já mal sabemos onde está o poder e onde estamos nós. O que ele nos dita e o que nós dele queremos. Nós próprios nos encarregamos de administrar nosso controle, e o próprio desejo já se vê inteiramente capturado.” (PELBART, 2007, p. 58)

Também podemos perceber que as mudanças de nomenclaturas referidas no início deste texto (companhia, grupo, núcleo e coletivo) estão diretamente re-lacionadas às questões de hierarquia e autoria, visto que muitas vezes essas são as molas propulsoras de tais mudanças. Entretanto, o que percebemos é que tais mudanças não eliminam a existência de funções, nem tampouco a assi-natura que os trabalhos carregam. Ou seja, a questão não é que desaparece a relação de autoria e de hierarquia a partir da escolha por se organizar em cole-tivo ao invés de grupo, nem tampouco é diminuído o poder. O que ocorre é uma descentralização desse poder, que se configura ondulante e em rede, temporário e provisório. A questão está no modo como os sujeitos envolvidos no processo escolhem lidar com estes aspectos.

Um ponto determinante apresentado por Esposito (2010) e que significa, de cer-to modo, um avanço nas questões trazidas inicialmente por Foucault em suas pesquisas acerca da biopolítica se refere ao paradigma da imunização. Esta perspectiva parece fazer muito sentido para nossa discussão. Vejamos o porquê:

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[...] a categoria da imunização permite-nos ainda dar um ulterior passo à frente ou, talvez melhor, para o lado, também no que se respeita à bifurcação entre as duas declinações prevalecentes do paradigma da biopolítica – a afirmativa e produtiva e a nega-tiva e mortífera. Já se viu como estas tendem a constituir-se sob uma forma reciprocamente alternativa que não prevê pontos de contato: ou o poder nega a vida ou aumenta o seu desenvolvi-mento; ou a violenta e exclui ou a subjetiviza – sem meio termo ou pontos de passagem. Ora a vantagem hermenêutica do pa-radigma imunitário está precisamente na circunstância de que estas duas modalidades, estes dois efeitos de sentido – positi-vo e negativo, conservador e destrutivo – encontram finalmente uma articulação interna, uma charneira semântica, que os colo-ca numa relação causal – mesmo que seja de tipo negativo. [...] Deste ponto de vista pode bem dizer-se que a imunização é uma projeção negativa da vida. Ela salva, assegura, conserva o orga-nismo, individual ou coletivo, a que é inerente – mas não de uma maneira direta, imediata, frontal; submetendo-o pelo contrário, a uma condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz a força expansiva. (ESPOSITO, 2010, p. 74-75)

Talvez essa seja uma chave para entendermos a dificuldade de se estabelecer trabalhos comuns, pois como afirma Esposito (2010), a tendência à imunidade está relacionada à formação e ao impedimento de formação da comunidade. Pois, reconduzida à sua raiz etimológica, a immunitas revela-se como a forma negativa, ou privativa, da communitas.

Retomando aspectos inerentes ao paradigma da imunização e ao assunto abor-dado aqui por nós, sobre a descentralização de poder, como posto acima, onde tal poder se configura ondulante e em rede, temporário e provisório, podemos associar estas derivações às apresentadas por Esposito, nas quais tais decli-nações se abrem como afirmativas e letais. As singularidades de processos de criação coletivo e compartilhados são plurais e, às vezes, controversas, são construídas e inacabadas.

Não à toa, parece mais claro estabelecer relações entre hierarquia e poder. En-tretanto, seria um equívoco achar que se resume a este ponto. O autor da obra, ou seja, aquele que assina enquanto o feitor do trabalho tem relação direta com o poder sobre a obra e os demais constituintes dela.

O problema da autoria tem reverberações em outros tempos. Não podemos es-quecer os célebres textos “A morte do autor” de Roland Barthes e “O que é um autor” de Michael Foucault, escritos na segunda metade dos anos de 1960. Ambos discutem o papel do autor diante da impossibilidade de se reconhecer a origem das ideias que constituem uma escrita. Assim, Barthes e Foucault reconhecem que todo discurso é resultado parcial de uma série de outros discursos que o compõe.

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No entanto, é certo que ao enunciar a “morte do autor”, Barthes não decretou o fim da existência dos autores, afinal ele próprio assina o texto em questão. O que se discute é justamente outra noção de autoria que parece surgir.

O que é necessário para que as ideias de hierarquia e autoria se reelaborem nos processos de criação compartilhados é entender que sempre haverá mar-cas das singularidades no projeto coletivo. Algumas mais evidentes que outras. Entretanto, tais singularidades já são plurais, pois cada identidade é constituída de diversos “outros” sujeitos que se apropriam de nós e nos apropriamos deles. A originalidade da criação “[...] encontra-se na unicidade da transformação: as combinações são singulares. Os elementos selecionados já existiam, a inovação está no modo como estão colocados juntos.” (SALLES, 2011, p. 94-95)

Ao nos encaminharmos para o fim desta escrita, proponho uma breve atualiza-ção das questões tratadas, de modo a configurar “inconclusões” preliminares:

1. É necessário aceitarmos e, além disso, insistirmos no inacabamento dos processos, que se reflete na inconclusão deste artigo, ou seja, não se trata de resultados fixos, tampouco um produto final ou um caminho assertivo único.

2. É no fazer, pensar, criar, no movimento do poder negativo e positivo da vida que também se dá o processo compartilhado. Hierarquia, autoria, autonomia e colaboração não são conceitos e proposições estanques, elas se alternam e se destacam de diferentes formas em processos distintos.

3. O paradigma da imunização nos ajuda a pensar que a escolha pelo trabalho comum nem sempre é tão fácil quanto parece; há dificuldades que retroali-mentam esses processos e os mantêm vivos ao negá-los.

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A imprevisibilidade nos processos criativos de dança: quem move o que move?

Ludmila Aguiar Veloso (UFBA)1

Orientadora: Profa. Dra. Adriana Bittencourt Machado2

Resumo

O presente artigo parte de uma pesquisa em estado inicial no Programa de Mes-trado em Dança da UFBA (2013-2014), que propõe estudar o corpo nos proces-sos de criação em dança onde a imprevisibilidade opera como parâmetro para criação. Tendo como fundamentação a ideia de que o corpo mediante o não previsto, o inusitado, gera modos de organização e soluções que o desvincula da condição de reprodução de regras preestabelecidas para a condição de in-vestigação, desdobra-se as seguintes problemáticas: Como a investigação em processos de criação que lidam com a imprevisibilidade é vivenciada? O que move a tessitura das criações em dança acordadas na e pela relação com o tempo real? A imprevisibilidade em processos criativos de dança: Quem move o que move? desdobra-se sinalizando como o corpo no e pelo mover testa acor-dos com o inusitado como ação investigativa . Vem tratar os processos criativos em dança como possibilidade dos corpos, ao movimentarem ideias-pensamen-tos, refletirem seus posicionamentos. É um jeito de fazer dança que não está descolado do modo como o corpo convive no mundo que assim aposta na ideia da dança como ação política. Fazer artístico, que, como pensamento do corpo, compartilha e movimenta inquietações, dúvidas e conhecimentos tecidos na re-lação sujeito e ambiente.

Palavras-chave: Dança. Imprevisibilidade. Processos de criação. Investigação.

Abstract

The article paper proposes study the body in the process of creating dance where unpredictability behave as a parameter for creation. Has as grounding the idea that the body by means of the not foreseen, the unexpected, creates modes of organization and solutions that unlinks of the condition of reproducing predetermined rules for investigation condition. unfolds signaling how the body, at or by the move, tests agreements with the unusual as investigative action. Comes deal the creative processes in dance as possibility of the bodies, in moving ideas- thoughts, in reflecting their positions. It is a way of making dance

1 Artista – Discente do Programa de Mestrado em Dança, Universidade Federal da Bahia. Artista-inte-grante do coletivo Entretantas Conexão em Dança. Graduada em Dança pela Faculdade de Artes do Paraná (2007-2010). [email protected]

2 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora Adjunto da Escola de Dança da Univer-sidade Federal da Bahia (UFBA).

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that is not unglued of how the body lives together in world and that bet on the idea of dance as political action. Do artistic that as a thought of the body, share and move restlessness, questions and knowledge, weaved in the relationship between subject and environment.

Keywords: Dance. Unpredictability. Investigative processes.

As configurações em/de danças: regras que movimentam modos distintos e diversos de se fazer

As configurações de danças se caracterizam e se diferenciam de acordo como os diálogos são tecidos entre as informações que a compõem. As maneiras como as relações são tecidas no decorrer do trabalho especificam o processo criativo, evidenciando escolhas nos modos de criar e, consequentemente, dançar. Para tanto, as especificidades e distinções existentes nos modos de compor danças são acordadas em diálogo com as regras operantes no processo de construção do fazer artístico. Regras essas que delimitam os modos de articular as informa-ções e, assim, direcionam os possíveis desdobramentos da criação.

As regras são direcionamentos incidentes na construção dos fazeres artísticos, contudo não são estabelecidas de maneira similar em todas as criações. (BITTEN-COURT; SIEDLER, 2012) As escolhas de como lidar e estabelecer regras emer-gem no diálogo com a proposta do trabalho e suas necessidades. São delimita-ções que direcionam o desdobrar da criação e, portanto, caracterizam sua feitura.

As especificidades e diferenciações existentes em como as regras são estabele-cidas no processo criativo evidenciam a diversidade nos modos de compor dan-ças. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012) Em configurações que visam à remon-tagem e replicação de trabalhos artísticos anteriores, o corpo apresenta uma composição preestabelecida a ser cumprida, já que possíveis articulações com as informações imprevisíveis do momento não são vistas como parâmetros para criação. Nesse caso, as regras são preestabelecidas e solicitam do intérprete o exercício de vincular suas atuações a certas diretrizes.

Diferenciando-se dessas composições com regras e trajetórias predefinidas, te-mos configurações de danças que se desdobram como soluções, no exercício de lidar com as imprevisibilidades do tempo presente. Nesse caso, as regras se tecem em acordo com as necessidades que ocorrem na relação do corpo com as informações imprevisíveis. Portanto, são critérios móveis e transitórios. O que não significa que nessas circunstâncias o que impera seja o “vale tudo”.

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As regras operantes em criações que lidam com a imprevisibilidade também atuam selecionando quais e como as informações do ambiente participam do desdobrar das criações, contudo são diretrizes que negociam com as circunstân-cias do ambiente e, portanto, não são parâmetros fixos. São regras que

[...] vão se configurando e se transformando no momento em que a dança está acontecendo. São soluções que ocorrem no momento de execução como dispositivo de organização e com-posição uma vez que há inúmeras possibilidades de se fazer dança. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012)

Para tanto, as feituras de dança que se configuram na relação com as circuns-tâncias do ambiente tem como fator caracterizante a provisoriedade de seus fazeres. O trabalho vulnerável às instâncias inusitadas do ambiente faz ajustes constantes para continuar existindo em relação. O que faz com que o futuro dessas criações artísticas não possa ser previsto: são as interações constantes do corpo com as informações emergentes do ambiente que possibilitam o des-dobrar do fazer artístico.

Em uma configuração onde sua composição imprime como condi-ção de sua feitura o não previsto, testando os modos possíveis de articulação e a emergência da diversidade, a auto-organização é testada em tempo real, nas soluções coletivas dos corpos e o que é possível prever como resultado são as correlações de conjunto, uma vez que as condições iniciais não são arbitrárias, mas evolu-tivas de um processo, impossibilidade de medir o comportamento em termos de trajetória. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012)

As danças implicadas nas correlações com o ambiente contestam, em seu fazer, a compreensão do processo criativo como um produto que se faz em trajetória linear, previsível; como se pelas informações e circunstâncias inicias do trabalho pudéssemos antecipar, prever, o futuro da criação. O fazer se posiciona vulnerável ao inusitado; flexível às relações com o tempo presente. Condição que caracteri-za essas criações como espaço de probabilidades acordados nas correlações do conjunto; nos diálogos circunstanciais e constantes tecidos entre as informações que se fazem compondo o ambiente. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012)

Vale ressaltar que refletir sobre as danças que lidam com a imprevisibilidade3, não significa eliminar a existência de ocorrências inusitadas em trabalhos com 3 O entendimento de imprevisibilidade como característica do tempo em seu caráter evolutivo foi apre-

sentado pelo físico-químico Ilya Prigogine no séc. XX, de modo a possibilitar o “[...]surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexi-dade do mundo real (PRIGOGINE, 1996, p. 14).” Prigogine através de uma descrição evolucionista problematiza “o dilema do determinismo” que cerceava as ciências clássicas e, consequentemente nossa existência, introduzindo a ideia da flecha do tempo para explicar a irreversibilidade, a distinção entre passado e futuro, que caracteriza a natureza: sua unidade e diversidade.

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movimentos e configurações preestabelecidas. Afinal, a imprevisibilidade é ope-rante em todos os trabalhos artísticos, visto que “[...] o futuro do universo não está de fato determinado, ou pelo menos não está mais do que qualquer outra coisa que faça parte da vida do homem ou da vida da sociedade”. (PRIGOGINE, 1996, p. 21)

As ocorrências imprevisíveis constituem a realidade espaço-temporal e estão a solicitar possíveis ajustes nas configurações de danças. Como já citado ante-riormente, temos danças em que os movimentos a serem realizados estão pre-definidos e, que assim, traçando uma relação com as danças que se movem e se desdobram em acordo com as informações não previstas, podem apresentar gradações menores de mudanças em sua estrutura. O que não convém rotular: danças que lidam com a imprevisibilidade x danças que não lidam com a impre-visibilidade. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012)

Todos fazeres, com suas particularidades, estão sujeitos à imprevisibilidade; contudo, em níveis diferenciados. Este estudo, especificamente, não visa com-parar e quantificar as danças que lidam mais ou menos com a imprevisibilidade. Mas sim, tem como mote estudar como o corpo, mediante a imprevisibilidade, opera em processos criativos.

A investigação em dança: modo de operação do corpo em processos criativos que lidam com a imprevisibilidade

As configurações de dança que lidam com a imprevisibilidade como parâmetro para criação desdobram-se no decorrer das interações do corpo com as infor-mações do ambiente. São criações que se fazem em ação de negociação com o inusitado. Condição em que o corpo gera modos de organização que o desvin-cula da condição de reprodução de padrões preestabelecidos para a condição de investigação.

O fazer artístico que se propõe dialogar com as circunstâncias imprevisíveis do ambiente vai se compondo nas relações. Concepção que descarta a ideia de criação em dança enquanto “presente divino”, que surge do nada. O exercício de composição nessas feituras se tece implicado nas soluções corporais mediante o inusitado. Ou seja, o dançar vai se fazendo no decorrer da ação de investiga-ção, a qual

[...] não opera de maneira isolada, uma vez que se encontra implicado em uma rede de possíveis conexões que resvalam

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em permanentes questões e promovem elaborações e soluções provisórias. O corpo que investiga tece continuamente um tipo de procedimento que incide no levantamento de questões e na elaboração de soluções provisórias a suas perguntas. Trata-se de um corpo atento para suas relações com o ambiente, que, por sua vez, não é um lugar fixo, e sim um conjunto móvel de possibilidades de informações. (TRIDAPALLI, 2008, p. 26)

O corpo que dança investigando é um corpo atento para seus modos de estar sendo com o ambiente. Move em exercício de reflexão, reconhecendo e investi-gando possíveis modos de se relacionar. Experiência em que, pela necessidade de compreender aquilo com o qual convive, o corpo busca estratégias de esta-belecer vínculos, diálogos; enfim, entendimentos.

As investigações são experiências em que o corpo tem a oportunidade de reco-nhecer e refletir suas produções enquanto as vivencia. O corpo faz-se, assim, espectador de seu próprio processo de criação. Observa e testa procedimentos criativos na e pela relação; questionando e formulando as possibilidades. Para tanto, a condição de questionamento e negociação do corpo nos processos in-vestigativos está interconectada

[...] com sua capacidade de perceber e de elaborar a informação enquanto percebe. Não se trata de um corpo observador sepa-rado do ambiente, que olha de fora para dentro, mas, si, de um corpo que percebe agindo e age percebendo, que observa e mo-difica, é observado e modificado. (TRIDAPALLI, 2008, p. 65-66)

O corpo que dança investigando move no e pelo exercício de percepção das informações em contato. O movimento é o modo como o corpo aciona e vivencia as informações. Relação que transita entre estados de estranhamento devido o contato com fatos desconhecidos e criação de entendimentos.

É no e pelo movimento que as interrogações acontecem. É nes-sa experiência que o corpo se move em condição de possibilida-des. No exercício intuitivo e especulativo, o movimento permite a experiência do, embora sempre incompleto, entendimento de suas possibilidades e limites, ou seja, no entendimento de sua lógica de funcionamento e das possibilidades. (TRIDAPALLI, 2008, p. 65)

Nessa perspectiva, reconhece-se que o modo como o sujeito se move ao se relacionar com as informações é processo dinâmico e flexível que depende da experiência perceptiva, ou seja, do “modo como percebemos, ou como a expe-riência é experimentada”. (VELLOSO, 2007, p. 36) Os arranjos de movimentos tecidos pelo corpo no espaço se configuram comunicando como o mesmo per-cebe as informações do ambiente.

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Nas configurações de dança que lidam com a imprevisibilidade os movimentos são, assim, caminhos construídos no decorrer das vivências dos corpos com as informa-ções emergentes do ambiente. O movimento acontece e se desdobra em exercício de diálogo, na construção de proximidades com a informação em contato.

O corpo, na tentativa de criar entendimentos para suas relações, dança, no trân-sito entre perguntas e respostas. O que impulsiona a construção de um dançar que visa no e pelo movimento compreender e criar modos de estar sendo com o ambiente. Condição que possibilita vislumbrar os movimentos produzidos pelo corpo como ação reflexiva do “[...] próprio movimento ‘em movimento’. É no e pelo movimento que o questionamento acontece como exercício especulativo do corpo, gerando outras possibilidades de organização”. (TRIDAPALLI, 2008, p. 64) Circunstância em que o corpo

[...] movimenta-se a partir de um exercício interrogativo, duvi-dando de seus modos corriqueiros de operar e que experimenta um conjunto de outras possibilidades. O corpo duvida, cria mo-dos de responder às surpresas, aos inesperados, para perma-necer em relação: o corpo, pela necessidade continuar estabele-cendo nexos de sentidos com o seu ambiente, constantemente interroga, levanta hipótese, muda, resolve e se transforma. (TRI-DAPALLI, 2008, p. 56-57)

A experiência de criação de movimentos na relação com o ambiente e suas ocor-rências inusitadas faz o corpo vivenciar a busca onipresente de modos de estar sendo em relação. O corpo busca estratégias de compreender as informações em diálogo enquanto as experiencia. Processo que possibilita a emergência de outros conhecimentos. Outras habilidades corporais são descobertas mediante a disponibilidade do sujeito em negociar e, consequentemente, criar maneiras de dialogar.

Dessa forma, o exercício de diálogo com o que não estava previsto amplia as capacidades do corpo se mover no espaço. O corpo, ao se permitir vivenciar e aprender com informações desconhecidas, testa e investiga outras habilidades corporais. Exercício o qual se faz questionando hábitos anteriores, buscando a criação de outras maneiras de estar sendo.

Os modos dinâmicos e flexíveis de estabelecer relações a partir da realidade do tempo-espaço propiciam o corpo experienciar momentos de imprevisibilidade, negociações e descobertas que podem desenrolar modos distintos de existir.

Assim é possível pensar que a imprevisibilidade promove a ob-servação de ações e soluções como informações novas, varia-ções e distinções, em relação aos modos habituais e familiares,

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informações já estabilizadas, promovendo outras conexões. (BI-TTENCOURT; SIEDLER, 2012)

Enfim, os processos de criação em dança que se tecem em exercício de nego-ciação com o ambiente e suas ocorrências imprevisíveis possibilitam, em seu fazer, compartilhar outras possibilidades de pensar-fazer dança que não se con-tentam “[...] com as regularidades e experiências resultantes de certezas ou de resultados possíveis e fechados”. (TRIDAPALLI, 2008, p. 64) Visa à construção de um dançar como exercício mobilizador de diálogos e aprendizagens com o ambiente que assim refutam a

[...] visão mecanicista do funcionamento do corpo que age em busca de estabilidade e funcionamento ‘perfeitos’, nos quais as alterações do ambiente em nada podem alterar sua ação-uma visão que ainda norteia grande parte das práticas corporais. (TRIDAPALLI, 2008, p. 65)

A imprevisibilidade vivenciada em ações investigativas de dança propicia o corpo testar modos diversos e distintos de se mover com o ambiente. Propõe em seus fazeres artísticos a criação como espaço de emergência de diversidade. (BITTEN-COURT; SIEDLER, 2012) Fato que distancia o dançar que lida com a imprevisibi-lidade de ações que agem pela repetição, pela reprodução de passos preestabe-lecidos. Ou seja, “[...] em configurações que apostam na incerteza como condição de sua feitura, o indeterminado propicia gerar heterogeneidade como ingrediente compositivo de diversidade”. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012)

A imprevisibilidade nos processos criativos de dança: Quem move o que move?

Vivenciar a dança como espaço de relação com o ambiente e seus fatos inusita-dos é condição que permite a mobilidade de lugares já conhecidos. Possibilidade de criar e, consequentemente, se dizer de diferentes maneiras. Oportunidade de reconhecer outras habilidades e capacidades corporais pelo exercício de estar sempre se transformando, aprendendo nas e com as relações.

Arrisca-se dizer que o exercício de dançar refletindo e questionando os modos de lidar com as informações é uma possibilidade de vivenciar a criação como ação problematizadora de como nos predispomos a conviver e entender o mun-do. Afinal,

O mundo se torna para nós disponível quando nos movemos em relação a algo, na interação com o outro, a partir da ação,

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no fazer um movimento em direção a. A aparência de algo irá se modificar aos nossos olhos conforme nos movemos em relação a isso ou dependendo de como isso se move em relação a nós. (NÖE apud VELLOSO, 2007, p.34)

Nessa perspectiva, o exercício de lidar com o inusitado em criações de dança é possibilidade para traçar outros entendimentos. Outros olhares para os mo-dos de estar sendo em relação. Condição móvel em que o corpo, vulnerável às condições do ambiente, possibilita vivenciar, no dançar, as ocorrências inusita-das como aprendizado contínuo. O corpo se dispõe a reconhecer no e com o ambiente a potencialidade de viver em relação: transformando e ressignificando seus modos de existência.

Para tanto, A imprevisibilidade nos processos criativos de dança: Quem move o que move? ao escolher falar sobre uma possibilidade de vivenciar a dança e seu fazer não tem como proposta valorizar um modo em detrimento de tantos outros. O interesse é elucidar como as criações que se fazem nos acordos com o inusita-do podem propiciar a emergência de outras possibilidades dos corpos se move-rem. Vem pensar a dança e seu fazer como espaço de emergência de diversidade. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012) Concepção que desvia da ideia de um modelo único e ideal de se dançar em prol de modos diversos e distintos de se fazer.

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QUEIROZ, Clélia Ferraz Pereira de. Corpo, mente e percepção: movimento em BMC e dança. São Paulo: Anablume, Fapesp, 2009.

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: Editora da UFBA, 2008.

SIEDLER, Elke. Configurações de dança: a incerteza como condição de existência. 2012. Dissertação (Mestrado em Dança) Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, 2012.

TRIDAPALLI, Gladistoni. Aprender investigando: a educação em dança é criação compartilhada. 2008. Dissertação (Mestrado em Ddança), Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, 2008.

VELLOSO, Marila. Invertendo Lentes: entre a possibilidade e o aprisionamento da experiência. In: CORPO E MOVIMENTO 2007 – Seminário Corpo e

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Movimento. 1. 2007, Curitiba. Anais..., Curitiba: Faculdade de Artes do Paraná, 2007, p. 33-44.

VIERA, Jorge de Albuquerque. Teoria do conhecimento e Arte. Formas de conhecimento: Arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008.

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Ambiguidade e complexidade – possibilidades de fazer dança

Mabile Borsatto (UFBA)1

Resumo

Esta proposta nasce da percepção de que há comportamentos e espaços cris-talizados na dança que se distanciam dos processos de ensino e aprendizagem pela experiência. Acredita-se, então, que os modos onde há hierarquia de poder nas relações de aprendizado e que sobrepõem a experiência podem ser subver-tidos pela ambiguidade e pela complexidade, uma vez que as mesmas operam contemplando a diferença como experiência singular de cada corpo. Ao procu-rar pela mobilidade e flexibilidade de distintos modos de fazer e solucionar do corpo nos processos de ensino e aprendizagem, bem como pela promoção do entrelaçamento entre perspectivas de diferentes sujeitos e diferentes contextos, busca-se a realização da dança como um espaço de percepções híbridas capaz de inventar, transformar, aprimorar, ampliar sentidos e mover contextos. Nesse sentido, percebe-se que as experiências não se reduzem, nem se simplificam, mas geram uma nova tessitura entre o conhecido e o desconhecido, entre o con-vencional e o inovador, entre a ordem e a desordem. A possibilidade de situar a ambiguidade e a complexidade como um sinal de reconhecimento para a cons-trução de lógicas de conduta e operacionalidades em dança incide como princí-pio norteador da auto-observação e do autoconhecimento e permite que outros modos de ensinar e aprender sejam inventados. Esse enfoque traz a percepção de que o conhecimento é construído em intercâmbios entre os participantes e que nada é linear ou rígido no processo de aprendizagem. O conhecimento, nessa perspectiva, ocorre na percepção das urgências do momento, pelas cor-relações possíveis e por ações não determinadas.

Palavras-chave: Ensino. Aprendizagem. Complexidade. Ambiguidade.

Abstract

This proposal arises from the perception that there are behaviors and crystallized in dance that are alien to the processes of teaching and learning through experience spaces. Then it is believed that the modes where there is hierarchy of power relations in learning and experience overlap, can be subverted by ambiguity and complexity, since they operate contemplating the difference as a unique experience of each body. When looking for the mobility and flexibility of different modes for the body and resolve the processes of teaching and learning , and by promoting the intertwining perspectives of different subjects and different 1 MabileBorsatto é mestranda em Dança pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da

Bahia. Fez graduação e especialização em Dança na Faculdade de Artes do Paraná – Curitiba – PR. [email protected]

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contexts , we seek the realization of dance as a space of hybrid perceptions able to invent , transform, enhance , magnify senses and move contexts . In this sense, it is noticed that the experiences are not reduced, nor simplify, but generate a new fabric between the known and the unknown, between the conventional and the innovative, between order and disorder. The possibility of placing the ambiguity and complexity as a sign of recognition for building logical and operability of conduct focuses on dance as a guiding principle of self-observation and self-knowledge and allows other modes of teaching and learning are invented . This approach brings the realization that knowledge is constructed in exchanges between participants and that nothing is straight or drive in the learning process. Knowledge, in this view, is the perception of the urgency of the moment, the possible correlations and actions are undetermined.

Keywords: Teaching. Learning. Complexity. Ambiguity.

Complexidade nos processos de ensinar e aprender

Pensar nos modos de ensinar e aprender tendo a complexidade como geradora das relações, nos aponta para uma afirmação inicial e fundamental de que a complexidade é um desafio, e, muitas vezes, um problema, exatamente por não ser um modelo e nem uma resposta. Como entender e lidar com a complexidade como condição de evolução e transformação nas ações de ensinar e aprender?

A palavra complexidade pode nos remeter à ideia de conjunto, ligação, proces-sos que se tecem em rede, e é partindo disso que esta discussão se instala nos processos de ensino e aprendizagem em dança. Parte da ideia de que se existe conjunto, existe um processo que precisa enxergar esse conjunto em todas as suas instâncias, um processo de ensinar e aprender dança preocupado com o que o diverso pode construir.

Amplia-se então a noção de complexidade, visto que essa rede de relações re-conhece dentro dessa teia a desordem, o imprevisto e a incerteza em todas as coisas, enxergando isso como parte inevitável da construção de conhecimento de maneira crítica e sensível entre corpos e contextos. Isso nos faz refletir que saberes absolutos e fixos devem ser extintos, e que pode-se pensar no ataque a toda e qualquer fixação que anula e cerceia a complexidade dos processos de ensino e aprendizagem em dança.

Compreender a complexidade não como um simples conceito teórico, mas sim, como um fato da vida, reorientando a visão para a diversidade, as inter-relações e os mecanismos de adaptação e transformação que ocorrem entre corpo e ambiente, escola e contexto, professor e aluno. Investigar a complexidade cor-

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responde a investigar a diversidade, ao entrelaçamento e acontínua interação entre sistemas e fenômenos que constituem o mundo. Tal pensamento configura uma nova perspectiva de compreensão do mundo, que aceita e tenta entender as mudanças contínuas da realidade e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas. Como exemplo disso está o ensino e a aprendizagem. Em que lugar dessa troca de expeiências a comple-xidade deixou de existir? Desse modo, reconhece-se na complexidade a possi-bilidade de uma evolução nos processos de ensino e aprendizagem no que se refere aos princípios deterministas cunhados por um pensamento dominante, enrijecido e congelado no tempo e espaço.

Esta percepção indica que há comportamentos e espaços cristalizados na dan-ça, ambientes moduladores que ultrapassam as academias tradicionais de dan-ça e estão imersos nos processos formadores em todos os seus níveis. Esses ambientes se distanciam dos processos de ensino e aprendizagem pela expe-riência. A palavra experiência está sendo apropriada nesse contexto, não para ser entendida como descritiva de um ato julgado em termos de sucesso e fracas-so, mas como um ato cujo resultado é desconhecido.

Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzi-da. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’. (BONDÍA, 2001, p. 28)2

Por tal motivo, a noção de experiência trazida aqui parte da ideia de modos de ensinar e aprender que contemplam a ampliação do sujeito e promovem um lugar de encontro e vivência de algo, onde a aprendizagem significativa não per-der espaço para a aceleração cega da educação sempre em busca do novo. Ao procurar pela mobilidade e flexibilidade de distintos modos de fazer e solucionar do corpo nos processos de ensino e aprendizagem, bem como pela promoção do entrelaçamento entre perspectivas de diferentes sujeitos e diferentes contex-tos, busca-se a realização da dança como um espaço de percepções diversas, móveis, capazes de inventar, transformar, aprimorar, ampliar sentidos e mover contextos. Olhando para a experiência em dança como um processo de inves-tigação e não apenas reprodução de passos ou conceitos. Nesse sentido, per-cebe-se que as experiências não se reduzem, nem se simplificam, mas geram

2 Jorge LarrosaBondía em citação do texto Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Conferên-cia proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001, por Leituras SME. Bondía é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é professor titular de filosofia da educação.

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uma nova tessitura entre o conhecido e o desconhecido, entre o convencional e o inovador, entre a ordem e a desordem.

A falsa racionalidade técnica, as formas de pensamento unilateral, dogmático, quan-titativo e instrumental consistem em reduzir a realidade e os processos de ensino e aprendizagem a um único pensamento, fragmentado, lógico, mecanicista, que o torna incapaz de, por si só, compreender a complexidade e multidimensionalidade desta mesma realidade. Assim, o que ainda se configura após estas ideias e em-preendimentos é uma visão de mundo sustentada em premissas tais como a ordem das coisas, a legislação universal, a sistematização do real, o absoluto, o determi-nismo mecanicista, o rigor metodológico e a razão suprema. Esta compreensão de mundo vai exercer influências em outros campos do saber, e o ensino da dança não escapa disso. Contudo, não se trata de simplesmente rejeitar esse tipo de raciona-lidade técnica, pois seria uma postura tão reducionista quanto à da falsa racionali-dade técnica. Ou seja, deve-se rejeitar a dicotomia entre a racionalidade técnica e o pensamento complexo, introduzindo o diálogo entre ambas.

Esse enfoque traz a percepção de que o conhecimento é construído na relação dos saberes entre os participantes e que nada é linear ou rígido no processo de aprendizagem. Mundo e sujeito são colocados em situação de reciprocidade e inseparabilidade.

Para Morin3, autor que contribui para a discussão de complexidade nesta pesqui-sa, uma vez que a natureza humana é complexa, da mesma forma ela deve ser vivenciada, e por isso a sociedade que mais favorece as autonomias individuais é a sociedade complexa. “A alta complexidade está ligada ao desenvolvimento das comunicações, das trocas econômicas e de ideias, ao jogo dos antagonis-mos entre interesses, paixões e opiniões”. (MORIN, 2005, p. 274) Quanto maior os pluralismos no campo econômico, político, cultural, educacional, maior são as possibilidades de liberdade e escolha individual e menos nossa vida é programa-da e restrita aos padrões. A complexidade é o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos que constitui esse processo.

O conhecimento, nessa perspectiva, ocorre na percepção das urgências do mo-mento, pelas correlações possíveis e por ações não determinadas. Isso significa dizer que estamos diante do desafio de superar concepções que não dão mais conta do processo educativo no qual estamos envolvidos. É preciso um pensar complexo, para criar outras formas de conceber e desenvolver o ensino e a aprendizagem da dança. 3 Sociólogo, epistemólogo e filósofo francês, formado em História, Geografia e Direito. Pesquisador emé-

rito do Centre National de laRechercheScientifique. Um dos principais pensadores sobre complexidade.

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Diferente das práticas tradicionais e, por vezes, ultrapassadas do ensino da dan-ça que, em muitos casos, fecha e cerceia as possibilidades de compreensão desse fazer artístico, pois coloca padrões, técnicas e leituras fixas na frente da criatividade de seus participantes, esse possível entendimento de fazer dança, embricada nas experiências como potências criativas, possibilita que a ideia de complexidade emerja como fundamental dessa teoria/prática. A necessidade atual que impulsiona a vontade de pesquisar é compreender como essa reflexão pode gerar um outro modo de operação no processo de ensino e aprendizagem, outras maneiras de lidar com o conhecimento, e diferentes formas de relação entre professores e alunos. Visto isso, levanta algumas inquietações: É possível criar dança a partir e com o contexto em que alunos e professores estão inseri-dos? É possível criar dança que fuja da transmissão de informações previamen-te codificadas? É possível pensar em processos de ensino e aprendizagem que mobilizem e transformem a hierarquia, por vezes, tão rígida entre professor e aluno?

Tantas indagações levantam o primeiro questionamento essencial desta pes-quisa: Os modos de fazer dança, onde há hierarquia de poder nas relações de aprendizado e que sobrepõem a experiência, podem ser subvertidos pelo enten-dimento de um modo de operação em dança que estude e viva a complexidade?

Entende-se que o modo com o qual olhamos e vivenciamos o mundo está rela-cionado com a capacidade individual de se identificar, elaborar e relacionar cons-tantemente com a realidade que nos cerca. Refletir a complexidade é contemplar a diferença como experiência singular de cada corpo, é reconhecer que a com-plexidade está presente no modo como o nosso corpo é e funciona, bem como no modo de se organizar em sociedade. Visto isso, deve estar e ser ingrediente gerador da dança também.

Nesse processo de novas articulações entre o ensino e a aprendizagem, o en-contro com a teorização proposta pelos autores pós-coloniais, em especial com HomiBhabha, tem permitido que as interrogações geradoras suscitem movimen-tos que desafiam as formulações sobre o ensino da dança e a necessidade de diálogo com o mundo. A interlocução com esse autor passa pelo entendimento de que os processos de ensino e aprendizagem em dança, em muitos casos, abandonam a complexidade de corpo e cultura. Busca-se refletir sobre a com-plexidade cultural, cuja marca é a não fixidez e a transitoriedade, assim os pro-cessos de ensino e aprendizagem, se quiserem fomentar a sensibilidade e a crítica sobre isso, devem trabalhar com um conhecimento pertinente capaz de enfrentá-la.

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A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e cos-tumes culturais pré-dados; mantida em um enquadramento tem-poral relativista, ela dá origem a noções liberais de multicultu-ralismo, de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a representação de uma retó-rica radical da separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, pro-tegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva. (BHABHA, 1998,p.63)

Bhabha argumenta em favor da identificação e problematização do lugar híbrido da cultura, afirmando que na cultura da sobrevivência reside a potencialidade de assumir o diverso. Ensinar e aprender em dança, nessa perspectiva, pressupõe e implica em ajudar as pessoas a perceberem a complexidade e tomarem cons-ciência da condição complexa do humano, a relativizarem as suas certezas, a aprenderem a tolerar aos outros e a si próprios nas suas limitações e falhas e a aceitar e conviver com as várias possibilidades de entendimento e resistência sobre a realidade. Realidade aqui, das aulas de dança.

Esta abertura para diferentes entendimentos no modo de operação em dança, de maneira nenhuma deve ser vista como frágil ou mal-intencionada por parte de quem participa desse processo de ensinar e aprender; ao contrário, expressa a riqueza de possibilidades de formulações do conhecimento em dança, assim como discussão da realidade diversa da qual fazemos parte. O reconhecimento de fronteiras culturais complexas que desafiam totalizações propõe uma mudan-ça nas grandes narrativas unificadoras da nação, do povo, da cultura, da tradi-ção e em especial para esta pesquisa, do ensino da dança. Admite-se, então, mais de um tipo de compreensão do que se é discutido em uma aula de dança, proporcionando a reflexão, o debate de ideias e um possível deslocamento e mudanças de posições fixas e concretas.

O que aparenta é que, quando o excesso e fixidez das classificações são recor-rentes na realidade de ensino em dança, a possibilidade de gerar diálogos mais abertos e transformadores entre corpo e ambiente fica comprometida. O apren-dizado que poderia ser ventilado e marcado pelos férteis diálogos entre o aluno, o professor, e suas experiências cotidianas, contextuais e, portanto, de vida, são restritas a experiências, muitas vezes, classificatórias de conteúdos rigidamente preestabelecidos em dança. Assim, o processo de ensinar e aprender apresen-ta-se em constante reconstrução, tendo como fonte maior o diálogo e a troca de informações na direção da autoformação crítica e reflexiva dos sujeitos e da sociedade, trazendo vários olhares móveis, caracterizando um processo plural de dança.

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Nos processos de ensinar e aprender em dança busca-se, então, um dinamismo organizacional que realmente observe as escolhas, as informações de cada par-ticipante e as coloque como parte da produção de conhecimento. Tais escolhas de professor e aluno dão autonomia reflexiva às partes, possibilitando uma maior aproximação criadora.

Ao contrário do que se possa imaginar, o caminho da dúvida faz com que os professores e alunos reflitam sobre os limites das teorias e práticas que eles lidam nos modos de operação em dança. Morin (2000) nos ajuda a negar os pressupostos da linearidade, a abandonar os reducionismos, dando abertura de horizontes para a incerteza e para o ato de repensar-se continuamente diante do processo de ensino da dança. Associar sem fundir, distinguir sem separar, mu-dar de paradigma, são alguns pontos que a complexidade gera nas discussões desse autor e tecem diálogo direto com essa pesquisa.

O pensamento complexo é, pois, essencialmente o pensamento que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organi-zação. É o pensamento capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntamente), de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de reconhecer o singular, o individual, o concreto. (MORIN, 2000, p. 207)

O desafio de compreender e se comprometer com essa formulação traz o en-tendimento das discussões acerca de corpo e cultura a partir da defesa destes como produções híbridas. Assim, articulados nos interesses deste projeto ques-tiona-se todas essas formas de pensamento unilateral, dogmático, quantitativo ou instrumentalista que podam a vivência da complexidade que é corpo e am-biente. O que se propõe para diferenciação deste modo de operar em dança é uma tessitura comum que coloca como inseparavelmente associados o indiví-duo e o meio, o sujeito e o objeto, a ordem e a desordem, o professor e o aluno e os demais tecidos que regem os acontecimentos, as ações, a vida e os proces-sos de ensino. Esse enfoque traz a visão de que o conhecimento é construído a partir de intercâmbios nutridores entre os participantes, em que nada é linear ou rígido a ponto de não perceber as urgências do momento, mas, sim, relacionais e indeterminados.

Os sistemas de ensino nos ensinaram a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em vez de reunir e integrar. Assim, obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado; a decompor, e não a recom-por; e a eliminar tudo que causa desordens ou contradições em nosso entendimento. O pensamento que recorta, isola, permi-te que especialistas e experts tenham ótimo desempenho em

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seus compartimentos e cooperem eficazmente nos setores não complexos de conhecimento, notadamente os que concernem ao funcionamento das máquinas artificiais; mas a lógica a que eles obedecem estende à sociedade e às relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos da máquina arti-ficial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, forma-lista; e ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre e criador. (MORIN, 2003, p. 15)

Uma educação baseada no pensamento complexo ajuda a entender melhor a relação complexa e contraditória entre os desejos que nascem do indivíduo e os princípios organizativos da sociedade. Estas sensibilidades compartilhadas, que fazem emergir novas investigações, precisam se tornar atratores de novos princípios para o processo de ensino e aprendizagem da dança.

Complexidade e ambiguidade

É da natureza social e humana a experiência da ambiguidade e assim devem ser os procedimentos de ensino e aprendizagem, tentando contemplar isso que já é humano, visto que o ensino é tecido da mesma natureza. Noções fixas e tradicionais da dança empenham-se em definir, classificar, mas tudo o que lhe escapa a esta classificação é a ambiguidade.

A consciência da natureza ambígua, cheia de simultâneos e diferentes sentidos, marcada pela diferença em muitos níveis, pode provocar uma maneira flexível de ensinar e aprender dança. Flexíveis e adaptáveis como humanamente conti-nuamos a nossa relação de evolução e diálogo com o ambiente. “A ambiguidade que a mentalidade moderna acha difícil de tolerar e as instituições modernas se empenharam em aniquilar reaparece como a única força capaz de conter e isolar o potencial destrutivo genocida da modernidade”. (BAUMAN, 1999. p. 60)

São nos corpos e ambientes nos quais se constroem os saberes da educação. É nesse ambiente complexo de informações que a dança atua, como problematizadora das questões cotidianas de corpo, espaço e tempo. Assim nasce a falta de certezas e a ambiguidade, como frutos da busca pela clareza. A solução de um problema cria outro e, então, (re)produz a ambiguidade, ele-mento fundamental para uma dança preocupada com a diversidade no processo de ensinar e aprender.

Situar a ambiguidade e a complexidade como um sinal de reconhecimento do que somos feitos é o princípio da auto-observação e do autoconhecimento, instauran-do o diálogo como um modo importante do agir educacional preocupado com a

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realidade. O pensamento complexo de dança nos processos de ensino e apren-dizagem apoia-se na necessidade de um pensamento multidimensional, dialético, dialógico e sem conceitos fechados, para articular saberes que se encontram divi-didos, compartimentados em limites fixos que não mais se sustentam.

Assim, fazer arte na escola é polemizar e lançar no mundo novas maneiras de ver o que está óbvio e fixado como uma via única. Acredita-se, então, que os modos onde há hierarquia de poder nas relações de aprendizado e que sobre-põem a experiência podem ser subvertidos, e reconhecer e viver a ambiguidade é uma maneira de subveter e compartilhar ideias. “Uma ideia compartilhada, ao contrário, promete um abrigo: uma comunidade, uma fraternidade ideológica, de destino ou missão. A tentação de compartilhar é esmagadora. E, a longo prazo, difícil de resistir”. (BAUMAN, 1999. p. 260)

Essa ideia de dança que se realiza e apresenta de natureza ambígua e comple-xa é capaz de adotar um posicionamento perante o todo e as partes que formam os pensamentos em arte. Ela encontra relações entre o particular e o coletivo, usando isso como material de suas criações e metodologias. Desse modo, o todo determina a organização/ação das partes tanto quanto estas determinam a organização/ação do todo.

ReferênciasBAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

BONDÍA, Jorge, L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000100003>. Acesso em: dez. 2013.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Doria. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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A dança nas escolas de ensino médio da rede pública estadual de Salvador

Marília Nascimento Curvelo (UFBA)1

Resumo

Este estudo teve como objetivo discutir a presença/ausência da dança nas es-colas de ensino médio da rede pública estadual de Salvador. Apoiado nos do-cumentos oficiais para o ensino médio, federais e estaduais, em autores que discutem de forma crítica esta etapa da educação básica, nas entrevistas com gestores, professores, coordenadores e estudantes de dança de três escolas da rede pública estadual, assim como na experiência da autora como docente que atua nesse nível de ensino com dança, o estudo propõe a análise das atuais for-mas de inserção da dança no ensino médio. Esta pesquisa de abordagem qua-litativa se configurou como uma pesquisa exploratória (GIL, 2008) que realizou um levantamento preliminar da inserção da dança no ensino médio da rede esta-dual, tendo sido identificadas três escolas que, com seus gestores, alunos e pro-fessores, se tornaram três unidades de análise, cujos dados foram triangulados com a análise documental e o referencial teórico. Os dados revelam que existem poucas iniciativas de dança nas escolas de ensino médio da rede estadual em Salvador, e que estes são pequenos focos de resistência para o ensino da dança nesse nível de educação. Essas proposições permanecem na (in)visibilidade do Sistema Educacional, que estimula a hierarquização dos saberes, não favorece a sua inserção na matriz curricular das escolas e nem o reconhecimento dessa linguagem artística como área de conhecimento.

Palavras-chave: Ensino da Arte. Dança. Ensino médio. Escola Pública. Salvador.

Abstract

This study aimed to discuss the presence / absence of dance in the high schools of public schools in Salvador. Supported in official documents for Secondary Education, federal and state, in which authors discuss critically this stage of basic education, in interviews with administrators, teachers, engineers and students at three dance schools in public schools, as well as the experience the author as a teacher who works in this level of education with dance, the study proposes the analysis of current forms of insertion of Dance in High School. This qualitative study was configured as an exploratory research (Gil, 2008) who conducted a preliminary survey of the insertion of Dance in High School state network of three 1 Mestre em Dança pela UFBA; Especialização em Arte Educação: Cultura Brasileira e Linguagens Ar-

tísticas Contemporâneas (UFBA); Professora de Arte/Dança SEC-BA. [email protected]

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schools that have been identified with their managers, students and teachers have become three units of analysis, the data were triangulated with document analysis and theoretical framework. The data reveal that there are few initiatives in dance in high schools of the state system in Salvador, and that these are small pockets of resistance to the teaching of dance in education. These propositions remain in the (in) visibility of the Educational System, which stimulates the hierarchy of knowledge, does not favor their inclusion in the curriculum of the schools nor the recognition of artistic language as a field of knowledge.

Keywords: Teaching Art. Dance. Secondary School. State Schools. Salvador.

Esta pesquisa se desenvolveu em um período extremamente tumultuado da educação pública do estado da Bahia. No momento de contato inicial com as escolas escolhidas como objeto desse estudo e subsequente coleta de dados foi deflagrada uma greve dos professores, decretada em abril e só encerrada em agosto de 2012 (115 dias). Além do desgaste da categoria, causado pelos três meses de um abrupto corte de salários, falta de diálogo e o não cumprimento das suas reinvindicações pelo governo estadual, no retorno às aulas os profes-sores tiveram de administrar um ano letivo atípico e, naturalmente, já bastante comprometido, em relação ao processo de ensino-aprendizagem dos alunos. O calendário de reposição se prolongou, na busca do cumprimento dos 200 dias letivos obrigatórios e os alunos e professores passaram o período das festas de final de ano e os meses de janeiro e fevereiro em aulas nas escolas.

Esta paralisação das atividades nas escolas não apenas interrompeu o contato ini-cial e a coleta de dados da pesquisa de campo, mas comprometeu também, de forma bastante significativa, todo o processo subsequente. Na volta às aulas as escolas de ensino médio perderam uma quantidade significativa de alunos que mi-graram para escolas particulares na busca de evitar as aulas nas férias; as turmas de dança que trabalhavam em turno oposto tiveram de ser refeitas, devido à pe-quena quantidade de alunos que retornaram às aulas; os estudantes se mostraram desmotivados, especialmente no período que normalmente corresponde às férias escolares, e, por fim, o cotidiano das escolas se voltou completamente ao calendário de reposição de aulas, avaliações e notas, buscando a minimização dos prejuízos causados pela extensa greve, tendo as atividades artísticas, em geral, perdido ainda mais espaço nesse processo. Essas questões foram relatadas pelos professores de todas as escolas pesquisadas e observadas por nós durante o percurso.

Paralelo à questão da greve, outra dificuldade encontrada foi a coleta de dados junto à Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC-BA) em relação às in-

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formações básicas sobre o quantitativo de escolas que oferecem a disciplina de Dança aos estudantes (na matriz curricular ou turno oposto), e também sobre a localização dos professores de Dança da rede pública estadual de Salvador. A jus-tificativa da SEC-BA para a não disponibilização dessas informações, além de um desconhecimento acerca da lei sobre a transparência no acesso à informação,2 é que não existem filtros no sistema da instituição suficientes para a localização des-sas informações específicas, como também ficou claro um grande desinteresse de funcionários públicos em colaborar para esta ou qualquer outra pesquisa.

Depois de muita insistência na busca dessas informações foi disponibilizada pela SEC-BA uma lista, supostamente de todos os professores de Arte da rede pública estadual de Salvador. Nos dados fornecidos pela SEC, consta um total de 414 professores de Artes Visuais atuantes na rede pública estadual de Sal-vador. Vale ressaltar que por meio desses dados apresentados não constam informações sobre os professores de Dança, Teatro e Música. Ao indagar ao informante da SEC sobre a ausência desses dados foi apresentada a justificativa de que o setor de programação de carga horária da Secretaria de Educação não registra os professores de Artes por meio da especificidade de suas linguagens de atuação e que os professores de Dança, Teatro e Música são vinculados à disciplina ARTES e, por esse motivo, a programação não tem acesso às informa-ções de quem são esses professores, onde estão lotados e se ainda continuam lecionando dança nas suas escolas. Por outro lado, torna-se estranha a falta dos dados desses professores, visto que os únicos que aparecem pela especificida-de de sua formação são os docentes de Artes Visuais. Este fato dá uma ideia de quanto o ensino das Artes, para a SEC-BA, é reconhecido apenas como Artes Visuais e de como são negligenciadas as outras linguagens artísticas, apesar de incluídas e garantidas pela legislação vigente (LDB n. 9.394-96), o que se torna mais um agravante para a invisibilidade da Dança e dessas outras linguagens no âmbito da rede estadual de ensino.

A constatação dessa realidade vai ao encontro do posicionamento de Morandi, ao afirmar que

O grande problema enfrentado pela dança e pelas outras lingua-gens consiste na predominância ainda do ensino das artes vi-suais. O paradigma do ensino de arte vinculado às artes visuais vem se mantendo há bastante tempo no ensino, e o próprio ter-mo arte vincula-se frequentemente ao universo da pintura, da escultura, etc. (STRAZZACAPPA;MORANDI, 2006, p. 78)

2 Lei n. 12.572/ 2011, que abrange as instâncias federal, estadual e municipal e prevê em seu artigo 3º procedimentos que “destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública”.

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A pesquisa de Matos (2011), mesmo trazendo o recorte das séries finais do en-sino fundamental, aponta alguns resultados sobre o quantitativo de professores que têm formação em Dança, nas séries finais do ensino fundamental, que po-dem ser ampliados e servir como referência para toda a Educação Básica brasi-leira, inclusive para o ensino médio de Salvador, objeto desse estudo:

Refinando ainda mais essa pesquisa, quando se analisa a for-mação específica dos 25,7% dos professores que possuem for-mação em Artes, esses dados tornam-se ainda mais preocupan-tes para os profissionais da dança: a dança se dissipa entre o pequeno contingente de 2,4% de formação na área enquanto os demais 23,3% correspondem à formação no mesmo curso (Ar-tes Plásticas/Belas Artes/Educação Artística). Apesar da legisla-ção apontar a possibilidade das 4 linguagens artísticas atuarem na escola, ainda há uma predominância majoritária de profissio-nais de Belas Artes/Artes Plásticas/Educação Artística e a dan-ça como área de conhecimento nem sequer aparece nos dados estatísticos. (MATOS, 2011, p. 51)

Estes dados, se colocados em perspectiva para a rede pública estadual de Sal-vador, demonstram, no mínimo, um descompasso entre o contingente de licen-ciados em Dança oriundos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) (primeira Escola de Dança de nível superior do Brasil) e a pequena quantidade desses profissionais presentes na rede estadual.

No desenvolvimento deste estudo, a identificação das escolas de ensino médio que possuem aulas de dança só foi possível após a obtenção com a SEC-BA de uma lista de contatos de todas as escolas de ensino médio de Salvador, cuja averiguação da existência ou não de aulas de Dança foi feita por meio de con-tato telefônico. Nesse processo, buscamos encontrar escolas que atendessem aos seguintes critérios, definidos para pesquisa de campo: 1) Identificar escolas estaduais com curso de ensino médio que ofereçam aulas de Dança na Matriz Curricular ou em turno oposto; 2) Priorizar a seleção de escolas cujas atividades de dança sejam ofertadas por licenciados em Dança.

Das 129 escolas estaduais que oferecem ensino médio em Salvador que cons-tavam da listagem da SEC-BA, foi possível identificar a existência de cinco pro-fessores de Dança em atividade, atuando em quatro escolas (incluindo a em que atuo). Ao mesmo tempo, no contato direto com a direção ou secretaria das escolas, pode-se perceber que na realidade da rede estadual de Salvador a maioria das escolas, por abrangerem tanto o ensino fundamental quanto o ensi-no médio, disponibilizam a dança, quando esta existe, através do Programa Mais Educação.3 Este Programa atua com contratação temporária de oficineiros ou 3 O Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo

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monitores, através do regime de Prestação de Serviços Temporários (PST) ou do Regime Especial de Direito Administrativo (Reda). Vale ressaltar que da for-ma como vem sendo implantado esse projeto, com poucos cuidados pedagógi-cos e com muitos oficineiros sem nenhum conhecimento sobre as áreas em que atuam, esse programa só está servindo para contabilizar a ampliação de uma carga horária, mesmo que seja duvidosa a qualidade da ação pedagógica, mas viabiliza ao Governo federal o aumento dos seus dados quantitativos quanto ao tempo de permanência de alunos na escola.

Diante da escassez de escolas públicas de ensino médio de Salvador que oferecem dança, selecionamos três unidades possíveis de serem incluídas neste estudo: o Colégio Landulfo Alves, que está situado no mesmo prédio de Centros Interdisci-plinares, que oferecem dança também em turno oposto para os alunos das esco-las da rede estadual, além de alunos egressos e pessoas da comunidade, como complemento da escolarização básica e que tem um professor de Dança. O Centro Educacional Carneiro Ribeiro – Escola Parque, que funciona com a Dança em turno oposto de aulas, também como complemento da escolarização básica e que tem dois professores de Dança da SEC e onze professores de programas de contrata-ção temporária. E o Colégio Estadual da Bahia – Colégio Central, que oferece dança incluída na disciplina Artes, na Matriz Curricular, e tem um professor de Dança.

A quarta unidade identificada refere-se ao Colégio Estadual Thales de Azevedo, no qual atuo como docente de Dança e de Arte4 e, por esse motivo, optamos metodologicamente de não ser este colégio uma unidade específica de análi-se, mas um ponto de conexão com as demais escolas por meio de relatos da presença da dança nessa escola e de minha prática pedagógica. Vale ressaltar que nessa Instituição a Dança é oferecida no ensino médio como oficina, fora da Matriz Curricular, em turno oposto às aulas (assim como oficinas de Desenho, Artes Visuais e Teatro).

Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para induzir a ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva da Educação Integral. As escolas das redes públicas de ensino estaduais, municipais e do Distrito Federal fazem a adesão ao Programa e, de acordo com o projeto educativo em curso, optam por desenvolver atividades nos macrocampos de acompanha-mento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica. Para o desenvolvimento de cada atividade, o governo federal repas-sa recursos para ressarcimento de monitores, materiais de consumo e de apoio segundo as atividades. As escolas beneficiárias também recebem conjuntos de instrumentos musicais e rádio escolar, dentre outros; e referência de valores para equipamentos e materiais que podem ser adquiridos pela própria escola com os recursos repassados. Fonte: Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=-com_content&view=article&id=16690&Itemid=1115>. Acesso em: 14 jul. 2012.

4 A Arte no Colégio Estadual Thales de Azevedo funciona inserida na matriz curricular, direciona-se na primeira série para a sensibilização estética dos estudantes em relação às principais linguagens artísticas (Dança, Teatro, Música e Artes Visuais) e, a partir da segunda série, pelo estudo da História da Arte, focado apenas nas Artes Visuais.

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A partir desse cenário, das observações feitas no campo e das entrevistas com gestores da SEC e diretores, coordenadores, professores e estudantes das es-colas pesquisadas, foi possível estabelecer trânsitos entre o discurso de cada um dos entrevistados, os textos dos documentos oficiais, a realidade do ensino médio e os autores que concebem a dança como linguagem artística construtora de conhecimento.

Na observação do currículo do ensino médio percebe-se que, na maioria das es-colas, só existe Arte na matriz curricular com conteúdos de Artes Visuais e, mes-mo assim, não em todas as séries. Dessa forma, lembrando que as linguagens artísticas que constam nos Parâmetros Curriculares Nacionas (PCNs) – Dança, Teatro, Artes Visuais e Música – poderiam ser oferecidas nessa disciplina, os poucos professores das outras linguagens, especialmente Dança e Teatro, não conseguem escolas para lecionar e muitos terminam desistindo da dança em prol de alguma disciplina que esteja na matriz curricular sugerida pelos gestores, normalmente, da Parte Diversificada do currículo ou até mesmo acabam na si-tuação de excedentes (à disposição da SEC).

Observa-se, dessa forma, apesar do discurso dos textos oficiais previrem a pre-sença da Arte em suas múltiplas linguagens no ambiente escolar em todas as etapas da Educação Básica, a Arte ainda não é entendida como área de conhe-cimento e a Dança, nesse contexto, torna-se praticamente invisível, especial-mente no que se refere às escolas de ensino médio da rede pública estadual de Salvador.

Ao analisarmos as relações da dança com as outras disciplinas do currículo, per-cebemos que nenhuma das escolas estudadas tem proposições pedagógicas que articulem a Dança com as demais disciplinas do currículo.

A Dança, como uma presença-ausência nas escolas de ensino médio da rede pública de Salvador, nas raras vezes em que é oferecida, é colocada à margem do currículo, como atividade fora da matriz curricular. Como o ensino médio no Brasil é voltado essencialmente para uma preparação para o vestibular, a Arte/Dança, que já possui uma menor valia no ranking de profissões e na hierarquia do conhecimento que é privilegiado nessas avaliações, se torna também pouco valorizada pelos gestores, coordenadores e professores das demais disciplinas do currículo. Além disso, nas poucas vezes em que acontece a inserção da Dan-ça nas escolas, para a Secretaria de Educação o trabalho se configura como invisível, já que a monocultura do pensamento científico não consegue perceber nesta experiência uma construção de conhecimento. Estas questões podem,

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dessa forma, serem percebidas como os motivos de não terem sido encontradas articulações entre a dança e as demais disciplinas do currículo nas escolas de ensino médio contempladas por este estudo.

Essa subutilização da dança no contexto do currículo das escolas favorece a fragmentação e a hierarquização dos saberes, tanto no sentido da desvaloriza-ção da dança em relação às demais disciplinas quanto em relação às outras lin-guagens artísticas, como Artes Visuais e Música, além de ser uma das possíveis causas da (in)visibilidade posta a esta linguagem artística.

Em geral, o que acontece são tentativas de articulação entre os próprios profes-sores de arte, em suas diversas linguagens, ou algumas parcerias entre profes-sores de Dança e professores de outras disciplinas, com quem tenham alguma afinidade, e acontecem a partir de acordos realizados entre eles, não sendo pro-postas nem articuladas através da coordenação/direção das escolas. Por outro lado, vale também pensar se essa falta de articulação também não é sustentada pelas práticas de muitos docentes de Dança que ainda mantêm, no ambiente escolar, concepções estagnadas de dança, corpo e educação.

Nas entrevistas com os gestores das escolas ficou visível a existência de vá-rias concepções de dança e a visão instrumental da dança se configura como preponderante. Nessas escolas, os discursos dos gestores transitam entre a percepção da dança como inclusão e respeito à diversidade e a concepção de dança como entretenimento e lazer, além de abordarem essa linguagem artística de uma forma tradicional, como combinação de passos que seguem uma músi-ca. Para a maioria desses gestores, a dança é uma atividade que transforma a vida das pessoas, denotando um cunho nitidamente assistencialista, como se a dança pudesse assumir o papel de “salvadora” dos jovens da escola.

Apesar de a dança realmente apresentar algumas características que podem favorecer a inclusão, esta não é a sua “missão” enquanto disciplina que constrói conhecimentos. Nesse caso específico, além da necessidade de serem efetiva-das mudanças paradigmáticas na Secretaria de Educação sobre o entendimento do que é Arte/Dança, poderia ser produtivo um trabalho conjunto que integrasse as escolas com a universidade visando uma discussão sobre o papel da dança nas escolas. A Escola de Dança da UFBA, que já tem acesso à SEC-BA, pelo PIBID, e que é, por enquanto, a única instituição, em Salvador, formadora dos licenciados em Dança que atuam na SEC, pode se responsabilizar por propor espaços de dialogia entre essas instâncias visando colaborar na mudança dessa conjuntura.

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Estes encontros poderiam possibilitar aos diversos âmbitos da escola e profes-sores de Dança das diversas escolas da rede estadual, e até aos gestores da SEC-BA, a oportunidade de compreensão das novas concepções e tendências contemporâneas da Dança como ação cognitiva e todas as múltiplas possibili-dades de articulação/integração dessa linguagem com as demais disciplinas do currículo, visando a diminuição das fronteiras entre os saberes e a não hierar-quização dos diversos componentes curriculares presentes no espaço escolar.

Em relação à inserção da dança, observa-se que ocorre praticamente da mesma forma em todas as escolas. Apenas uma escola, o Colégio Central, como já foi explicitado, inseriu a dança na matriz curricular, na disciplina Arte. As demais escolas, incluindo o colégio onde atuo, tratam a dança como atividade comple-mentar, em oficinas em turno oposto de aulas.

Dessa forma, sobre a presença da dança nas escolas, foi observado que os gestores têm ideias divergentes: alguns relatam que acham importante o ensino da dança, porém, na verdade, não parecem ter nenhuma intenção de favorecer a sua inclusão na Matriz Curricular (Colégio Landulfo Alves e, nesse viés, incluo o Colégio Estadual Thales de Azevedo). Os demais, cujos espaços são forma-tados como Complementação da Educação Básica (Escola Parque e Cenint), apoiam a existência da dança como “modalidade”, oferecendo, dessa forma, várias possibilidades de oficinas com abordagens diversas no turno oposto de aulas, de acordo com a proposta do governo de educação em tempo integral, explicada anteriormente.

A partir dessas observações de campo, dos estudos dos documentos oficiais e de autores que se dedicam a uma análise crítica do ensino médio, pudemos perceber que, apesar da existência de algumas ações, as políticas públicas edu-cacionais voltadas para o ensino da Arte, especificamente da dança nas escolas, ainda são inexistentes; ainda não se vê muita coisa acontecer no país como um todo e, particularmente, no estado da Bahia. Esse perfil de descaso e des-comprometimento com uma disciplina integradora é visto nas pequenas e gran-des ações, seja das gestões escolares ou da própria Secretaria de Educação. Os técnicos e gestores das Secretarias de Educação não parecem ter clareza quanto à conduta que deva ser adotada em relação aos professores de Arte, em geral, e, o que é mais grave, não descobriram ainda, e não parecem interessa-dos em descobrir, como implementar nas escolas as questões postas nos textos oficiais em relação à Arte/Dança. É necessário, pois, que essas propostas saiam do papel e façam parte do cotidiano das escolas.

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Além disso, e na contramão dos documentos oficiais, para os gestores da SE-C-BA, a única forma que visualizam para a inserção da Arte nas escolas de ensino médio é através dos projetos estruturantes do MEC (Mais Educação ou Ensino Médio Inovador) ou algum dos projetos de Arte da própria SEC-BA (Face, AVE, TAL, Prove, entre outros), todos eles atrelados a complementação de car-ga horária. Para eles, os projetos estão acontecendo com sucesso, e a grande questão se resume apenas a como fazer a articulação desses projetos com o currículo do ensino médio. Esta concepção demonstra que as discussões atuais que ocorrem sobre o currículo dessa etapa da educação básica não pretendem validar a dança como conhecimento e, muito menos, favorecer a sua inclusão no currículo.

Por outro viés, vale registrar o visível descaso do MEC e da SEC com a necessá-ria formação dos oficineiros que trabalham nesses projetos, o que parece apon-tar para o fato de que, para estas instituições, a educação em tempo integral se restringe apenas à ampliação do tempo de permanência dos estudantes na escola, e não à qualidade da atividade artística proposta e sua articulação com as demais disciplinas.

A análise dos dados coletados nas escolas revelou que existem poucas inicia-tivas de ensino da dança nas escolas de ensino médio de Salvador, as quais podem ser consideradas, inclusive, como pequenos focos de resistência. Es-sas raras iniciativas permanecem na (in)visibilidade, a partir, principalmente, da omissão do Sistema Educacional e da compreensão equivocada e ultrapassada de Educação e de Dança compartilhada pelos gestores das escolas que con-tinuam favorecendo a hierarquização dos saberes e o não reconhecimento da dança como possibilidade de construção de conhecimentos, não estimulando, dessa forma, a sua presença nas escolas.

Diante de todo esse contexto desfavorável, faz-se necessária a busca por al-ternativas que viabilizem o ensino da arte, em geral, e da dança, em particular, que favoreçam a criação e contextualização em Arte, revelando conteúdos que façam parte da realidade dos estudantes, possibilitando a construção de pontes com a arte produzida na sociedade. De acordo com Matos,

Com o ensino crítico da dança, ultrapassando as expectativas e representações do senso comum do que é dança, os educandos têm a chance de serem sujeitos-propositores no fazer, conhecer, contextualizar e apreciar a dança, o que contribuirá para a cria-ção de fluxos de informações entre seus diferentes referenciais culturais e diferentes formas de estar no mundo e dar significado a ele. (MATOS, 2011, p. 55)

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Dessa forma, a Dança pode vir a reduzir e/ou minimizar o vácuo existente na escola em relação às atividades artísticas e reflexões estéticas, ao tempo em que encara o desafio de democratizar o seu acesso enquanto conhecimento, buscando contribuir para uma educação que favoreça o pensamento estético e sensível.

Ao final deste estudo, administro múltiplas emoções, que transitam entre a ale-gria pelo término dessa jornada de estudo e a tristeza decorrente da clareza com que pude perceber as dificuldades da Educação Básica e a comprovada (in)visibilidade da Dança nas escolas de ensino médio da rede pública estadual de Salvador. Após quase 23 anos como professora de Dança da Educação Básica, dos quais os últimos dezesseis foram no ensino médio, acreditando que a Arte/Dança é capaz de construir conhecimentos e colaborar, em igualdade de condi-ções com as outras disciplinas, para a formação integral dos estudantes, é muito deprimente perceber o estado de abandono em que a Dança e seus professores se encontram na Educação Básica.

No sentido de reverter ou minimizar esta situação caótica, seria aconselhável que os professores de Dança, responsáveis por estes pequenos focos de resis-tência que é a dança nas escolas, se mobilizem na busca pela difusão de um en-tendimento mais amplo de Dança e, ao mesmo tempo, se fortaleçam enquanto categoria profissional.

Essas ações poderiam gerar amplos debates com os órgãos gestores da Edu-cação visando refletir sobre a presença/ausência da dança nas escolas da rede pública estadual, a busca de melhores condições de ensino e, o mais importante, a criação de macropolíticas que envolvam ações concretas que possam possibi-litar e favorecer a diminuição das fronteiras entre os saberes e a valorização das linguagens artísticas como campo/área de conhecimento.

Além dessas ações, os professores poderiam contribuir para a visibilidade da dança evitando a sua “acomodação” funcional na opção de lecionar disciplinas que não sejam as de sua formação (Artes Visuais ou qualquer outra disciplina) e acreditando que, mesmo em salas de aula tradicionais (com cadeiras), é pos-sível a construção de conhecimentos em dança e a articulação desses conheci-mentos ao contexto da escola, cidade, país e do mundo. Seria oportuna também a consciência da função do ensino da dança nas escolas como foco de resistên-cia, como uma emergência, no sentido de Santos (2007), que favoreça, um dia, a revolução na educação desse estado e desse país, que os jovens estudantes tanto merecem.

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ReferênciasBRASIL.Lei de Diretrizes e Bases. LDB nº 9.394, 2006.

Disponível em:<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/ldb_6ed.pdf?sequence=7>. Acesso em: 10 jun. 2012.

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Dança digital na potência de uma biodança

Natalia Pinto da Rocha Ribeiro (UFBA)1

Resumo

Este artigo pretende fomentar um debate político entre ciência, capital e arte. Para este fim, propõe a dança digital também como uma categoria de biodança, uma inspiração na biopolítica de Esposito (2010), bios e dança, não a dança da vida, mas a dança que considera e subjetiva a vida que lhe expressa, ainda que não haja sempre vida humana ali expressa no momento do seu acontecimento. A dança digital pode ser uma dança que respeita a vida ou biodança, porque ao menos na sua criação foi produzida por uma relação do humano com uma tec-nologia digital, esta que em várias instâncias atravessa a vida mesmo em neces-sidades rotineiras e possibilita outra de si mesma. O aparato tecnológico poderia ser considerado um dispositivo de excesso do biopoder, quando Flusser (1985) nos adverte que existe um limite de atuação sobre ele, uma liberdade ilusória, já que este aparato tem uma programação prévia, pensada em uma lógica de mercado, para padronizar o funcionamento e os resultados do seu uso. Nesta dança se manifestam comportamentos do seu tempo, contudo, pode por isso também servir a uma lógica de mercado, em um excesso de poder da indústria tecnológica. A questão que se coloca, é como a dança digital pode subverter este domínio posto através de programações prévias, sem a participação artís-tica. Contudo, Louppe (2012) propõe que o bailarino não siga modelos, mesmo corporais, que descubra o seu potencial específico, a sua forma única de fazer arte, a sua poética.

Palavras-chave: Dança digital. Biodança. Programação. Subversão.

Abstract

This article aims to promote a political debate between science , art and capital. To this end , propose the digital dance also as a category of biodance, an inspiration in biopolitic of Esposito (2010), bios and dance, not the dance of life, but the dance that considers and subjectivises life that expresses, though there isn’t always human life at the time of its happening. The digital dance can be a dance that respects life or biodance, because at least in its creation was produced by a human relationship with digital technology, which in many instances this goes through life even in routine needs and allows herself another. The technological apparatus could be considered a device excess of biopower when Flusser (1985) warns us 1 Dançarina, atriz e pedagoga. Graduação em Artes Cênicas, especialista em Estudos Contemporâneos

em Dança pela Universidade Federal da Bahia, assim como é graduada em Pedagogia e especialista em Metodologia do Ensino, da Pesquisa e Extensão pela Universidade Estadual da Bahia. No momento, cursa o Mestrado em Dança na UFBA, cuja pesquisa tem como tema a poética do corpoimagem na dança digital.

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that there is a limit to operate on him, an illusory freedom, since this apparatus has a previous programation, designed in a logical market for standardize the operation and the results of its use.In this dance manifests behaviors of their time, yet can therefore also serve a market logic in an excess of power technology industry. The question that arises is how the digital dance can subvert this field through post preliminary schedules, without the artistic participation. However, Louppe (2012) proposes that the dancer does not follow models , even bodily, who discover their specific potential, their unique way of making art, his poetic.

Keywords: Digital dance. Biodance. Progamation. Subvertion.

No processo histórico da existência humana, sempre foi desenvolvido algum tipo de tecnologia para que algumas ações fossem facilitadas ou mesmo realizadas. Nesse sentido, podemos pensar que a tecnologia não está fora da vida da huma-nidade, pelo contrário, ela sempre foi criada pela humanidade e sempre esteve ao lado dela, potencializando suas habilidades, seja de locomoção, na caça para sobrevivência, na comunicação e, inclusive, na cura de doenças.

Como em toda ação humana, a arte e, neste caso, a dança absorveu a neces-sidade de utilização tecnológica na sua construção e expressão artísticas. Pelo menos, desde a década de 1940, alguns artistas ao redor mundo, produziram configurações que misturavam a dança com a tecnologia digital desenvolvida na época, que, no momento, tinham de mais acessível, o vídeo. Como foi o caso de Maya Deren, uma das pioneiras nesta área que criou obras de dança com vídeo como: Meshes on the Afternon e A Study of Choreography for Camera.

Por essa razão, considero aqui, o processo evolutivo do qual faz parte a dan-ça digital, ou seja, como esta é uma emergência do seu tempo. A dança digital traz na sua poética elementos constituintes do tempo em que é representante, utilizando em sua composição os aparelhos que estão em nosso cotidiano, ou seja, as tecnologias digitais. Mais do que isso, também manifesta o modo como o corpo se desenvolve e se reorganiza na relação com essas tecnologias em for-mas de entendimento, de pontos de vista, em formas de gostos também. Dança digital é um termo que proponho como uma tradução não literal do termo media-dance, de Schiller (2003). Por dança digital, compreende-se a dança que pode acontecer em qualquer ambiente e em temporalidades diversas ou não, mas que em sua expressão necessariamente se utilize o digital, podendo ou não ter uma presença física humana como corpo dançante.

Os artefatos, vídeo, jogos, sensores, software, que, em alguns casos, já foram ou ainda são usados como cenários, agora, na proposta de dança digital, alinha-

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da com a categoria de Schiller (2003) de mediadance, esses elementos se tor-nam agentes compositivos, e a dança produzida é criada nessa relação. Schiller agrupa no termo mediadance as formas de vídeodança, cinedança, e também danças que dialogam com a tecnologia digital.

Pensar a dança digital na potência de uma biodança surgiu através de uma apro-ximação dos meus estudos com um termo, cujo teórico italiano Roberto Esposito promove uma extensa pesquisa, a biopolítica, “uma política em nome da vida”. (ESPOSITO, 2010, p. 32) A partir do entendimento de Esposito que se segue logo abaixo, fiz um singelo deslocamento de conceito para a dança digital.

Se quisermos ficar-nos pelo léxico grego, e em particular aristo-télico, de facto, mais que para o termo bios, entendido no sen-tido de «vida qualificada» ou de «forma de vida», a biopolítica remete sem mais para a dimensão da zoé, ou seja da vida na sua expressão biológica mais simples ou, quando muito, à linha de conjunção ao longo da qual o bios emerge sobre a zoé natu-ralizando-se também ele. (ESPOSITO, 2010, p. 31)

Quando o autor coloca a palavra vida, não está denominando somente sob o as-pecto natural ou físico, mas significa também a vida cultural, presente também no sentido grego. Para este fim, proponho a dança digital também como uma forma de biodança, bios e dança, não a dança da vida, mas a dança que considera e subjetiva a vida que lhe expressa, potencializando essa vida enquanto sujeito de ações.

Compreendo que subjetiva porque, em qualquer forma de expressão da dança digital, a presença do sujeito é sempre constante, ainda que não visível para o público na sua exibição. O aparato tecnológico é criado e programado pelo hu-mano, este seria o primeiro ponto, o segundo, é que nos softwares de dança, os bonecos virtuais que dançam, para serem gerados necessitaram de informações obtidas a partir da captura de um corpo humano.

Ainda que em algumas instâncias possa se argumentar que não há sempre vida humana ali expressa no momento do seu acontecimento, ou seja, em uma apre-sentação de dança digital na qual só se utiliza projeções e não um corpo humano em vivo, é fato que essa projeção, seja criada por um vídeo pré-gravado ou não, foi gerada por um corpo humano (biológico, social, psicológico etc). Sobretudo, o aspecto fundamental dessa subjetivação se configura no momento em que esta dança manifesta uma necessidade dos artistas de sua época, na qual ela se torna uma necessidade singular de expressão.

Os aparatos que a dança digital utiliza em sua poética são compartilhados no nosso cotidiano, não só dos artistas, são tecnologias inseridas em nossas vidas,

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não externas a elas. As configurações estéticas que surgem quando nós, artis-tas, dialogamos com a tecnologia é oriunda daquilo enquanto sujeitos provoca-mos e desejamos expressar.

A dança digital, assim como outras danças, pode ser uma dança que respeita a vida, ou uma biodança, porque ao menos na sua criação foi produzida por uma relação do humano com uma tecnologia digital, esta que em várias instâncias atravessa a vida mesmo em necessidades rotineiras e possibilita outra de si mesma, “Ainda mais hoje, quando o corpo humano aparece sempre mais desa-fiado, e até literalmente atravessado, pela técnica(1)”. (ESPOSITO, 2010, p. 31) Em contrapartida, ainda que consideremos toda dança biodança, pensamos que ela surge de um processo da própria vida, de um processo evolutivo humano, que experimenta cultural e socialmente relações intrínsecas com os aparatos tecnológicos.

A arte é vista, de maneira geral, como uma variedade de possibilidades criativas, uma expressão de liberdade. Mas é sempre assim? O artista tem sempre contro-le e independência na sua expressão? Caso haja um limite no potencial criativo, consequentemente a poética de uma obra será afetada, por essa razão preci-samos refletir um pouco sobre o contexto atual da arte com tecnologias digitais.

Antes de finalizar o estudo, é importante trazer uma análise crítica que Arlindo Machado (2010) estabelece em relação à utilização dos aparatos tecnológicos na arte. Ele discute sobre as correntes de pensamento que refletem sobre a mediação tecnológica, salientando em especial Flusser, um teórico que alerta para a manipulação política implícita nos medias e que regulam o processo de criação artística.

Machado (2010) afirma que, por exemplo, as críticas baseadas em uma tendên-cia tecnofóbica ainda não conseguiram discutir as novas tecnologias. A questão é que ele percebe que quanto maior o avanço e o poder dos aplicativos de computadores, maior também é a dificuldade em distinguir entre “a contribuição original de um criador e a mera demonstração das virtudes de um programa.” (MACHADO, 2010, p. 38)

Portanto, acredita que a capacidade que temos em atribuir um valor aos produ-tos artísticos se torna mais frouxa. No momento em que precisamos julgar um trabalho de arte com mediação tecnológica, ficamos condescendentes, pois não possuímos critérios suficientes para analisar a contribuição do artista que realiza essa obra. Por isso, nos entusiasmamos com qualquer obra que esteja dentro da “tendência” da tecnologia.

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O que Machado pretende com tudo isso é fomentar um debate político entre ciência, capital e arte, para que possamos refletir não só artística como politica-mente, sobre a arte que estamos realizando, bem como em relação aos instru-mentos que elegemos nesse fazer. Ele descreve a contribuição de Vilém Flusser para esse debate, porque o considera como um teórico que faz essa análise crítica com maior critério.

Toda notoriedade post mortem que Flusser vem recebendo em grande parte do mundo se explica, entre outras coisas, pelo fato de seu pensamento ser absolutamente certeiro na análise das mutações culturais, sociais e antropológicas que estão ocorren-do no mundo contemporâneo, e também o mais convincente na advertência dos riscos que corremos. Na verdade, o filósofo tcheco-brasileiro só reconhece uma época comparável com a nossa: a Antiguidade, quando o homem passou de um estágio pré-histórico e mítico para uma fase histórica, lógica e basea-da nas escritura alfanumérica. No atual estágio, chamado por Flusser de pós-histórico, a ‘escritura’ é construída com ou por máquinas e consiste essencialmente numa articulação de ima-gens – no limite, imagens digitalizadas, multiplicáveis ao infinito, manipuláveis à vontade e passíveis de distribuição instantânea a todo o planeta. Caracteres se tronaram bytes, sequências de texto se converteram em sequências de pixels, os fins e os meios são substituídos pelo acaso, as leis em probabilidades e a razão pela programação. É certo que muitos pensadores contempo-râneos – de Mcluham a Kerckhove, de Debord a Baudrillard, de Ong a Levy – buscaram ou continuam buscando exprimir algo semelhante por outras vias e com outros argumentos, mas Flus-ser o fez não apenas mais precocemente que os outros, mas também com uma clareza, precisão e radicalidade que tornam todos os outros caminhos mais tortuosos, áridos, retóricos, com-prometidos e estrategicamente menos eficazes. (MACHADO, 2010, p. 40-41)

Em alguns termos, Laurence Louppe (2012), como abordado mais adiante, se aproxima da ideia de Flusser, quando este indica que a utilização dos aparatos tecnológicos deveria se constituir com uma maior liberdade de criação. De ma-neira geral, esses aparatos já vêm pré-programados e o artista os utiliza, muitas vezes, sem conhecer o modo de funcionamento deles, sem poder interferir nas suas formas de programação.

Na obra Filosofia da caixa-preta, Flusser (1985) trata especificamente da fo-tografia, contudo, traz contribuições bastante significativas para o pensamento crítico da utilização da tecnologia que podem ser abrangidas para qualquer tipo de arte. No entender dele:

Enquanto objeto duro, o aparelho fotográfico foi programa-do para produzir automaticamente fotografias; enquanto coisa

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mole, impalpável, foi programado para permitir ao fotógrafo fa-zer com que fotografias deliberadas sejam produzidas automati-camente. São dois programas que se co-implicam. Por trás des-tes há outros. O da fábrica de aparelhos fotográficos: aparelho programado para programar aparelhos. O do parque industrial: aparelho programado para programar indústrias de aparelhos fotográficos e outros. O econômico-social: aparelho programado para programar o aparelho industrial, comercial e administrativo. O políticocultural: aparelho programado para programar apare-lhos econômicos, culturais, ideológicos e outros. Não pode ha-ver um ‘último’ aparelho, nem um ‘programa de todos os progra-mas’. Isto porque todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima. Isto implica o seguinte: os programadores de determinado pro-grama são funcionários de um metaprograma, e não programam em função de uma decisão sua, mas em função do metaprogra-ma. De maneira que os aparelhos não podem ter proprietários que os utilizem em função de seus próprios interesses, como no caso das máquinas. O aparelho fotográfico funciona em função dos interesses da fábrica, e esta, em função dos interesses do parque industrial. (FLUSSER, 1985, p. 17)

A criação artística fica limitada ao que a máquina foi programada previamente na sua fabricação. Portanto, o artista pode criar a partir de um modelo “poético”, um modo de organização predeterminado daquele aparato que lhe fornece pos-sibilidades limitadas. Apesar de Flusser (1985) considerar o ponto de vista da fotografia, podemos abranger o seu estudo e englobar uma área bastante próxi-ma: o vídeo. A captura e projeção de imagens, que são muito utilizadas na dança digital, também podem ser incluídas na observação de Flusser.

Louppe (2012), contudo, fala sobre o corpo humano, o corpo do bailarino, que é a sua maior possibilidade criativa. Ela fala de “ferramenta”, mas nós não adotamos aqui esse termo, por entendermos que não somos máquinas e sim um complexo biológico e social, cognitivo, emocional, fisiológico etc. Mas o que nos interessa do pensamento de Louppe, é que ela propõe que o bailarino não siga modelos, mesmo corporais, que descubra o seu potencial específico, a sua forma única de fazer arte, a sua poética: “O grande artista da dança é aquele que optou, de maneira autônoma e consciente, por um certo estado do corpo.” “[...] afiguram tão poderosos enquanto inventores da sua própria corporalidade, à margem de qualquer modelo ou mesmo de qualquer orquestração prévia”. (LOUPPE, 2012, p. 69/70)

Parece que esta proposta também seria o desejo de Flusser (1985) em relação à utilização dos aparatos tecnológicos como possibilidades criativas. O que en-tendemos é que, na relação com o corpo humano, podem trazer limitações de interferências no momento do processo criativo.

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A obra de Flusser (1985) diz mais, e demonstra um desconhecimento da socie-dade sobre essa situação. Cada vez mais, nos tornamos operadores de máqui-nas, lidamos com experiências programadas e não temos consciência delas. Segundo ele, a possibilidade de escolha é ilusória, acreditamos que temos esco-lha, o que provoca as sensações de criatividade e liberdade. Porém essas duas estão limitadas à ação de um software, ou melhor, ao conjunto pré-programado de possibilidades e que não podemos dominar completamente, agimos a partir dos dados que o software nos fornece. Este teórico propõe uma discussão crí-tica sobre as possibilidades de liberdade e de capacidade de invenção de uma “sociedade cada vez mais programada e centralizada pela tecnologia.” (MACHA-DO, 2010, p. 46)

O risco que o autor adverte surge quando o artista não é capaz de criar o equipa-mento que ele próprio necessita, ou pelo menos, de reprogramar o equipamento que está utilizando. Dessa forma, ele se torna um mero operador de máquinas fabricadas sem a sua ação, ou ainda, um funcionário do sistema produtivo que não consegue acabar com o jogo programado e criar novas possibilidades ou categorias.

Nos eventos internacionais de arte e tecnologia, segundo Machado (2010), pode-mos perceber a consequência das limitações de programações tecnológicas ar-tísticas, pois os resultados das experiências apresentadas nesses eventos mais parecem uma demonstração de utilidades funcionais dos aparelhos. Ele afirma que obviamente as expressões artísticas desse gênero manifestam uma homo-geneidade, uma estereotipia, em virtude das restrições de possibilidades criati-vas. O software, que é vendido pré-programado e exatamente do mesmo modelo em larga escala, padroniza a arte, tornando os seus resultados impessoais.

Então, como poderíamos transformar a experiência da homogeneidade artística, libertar a arte dos padrões industriais e comerciais? Para isso, Machado sugere mudanças comportamentais, vislumbrando promover outras perspectivas:

Necessário seria restabelecer o elo perdido entre a atual ativi-dade de criação e a melhor tradição de inconformismo da arte contemporânea, elo este que foi artificialmente cortado por um certo número de teses obtusas sobre a pós-modernidade. Nada pode ser mais inconcebível do que toda uma geração de yuppies desinformados que produz trabalhos de autoria em multimídia, utiliza dispositivos de edição não linear, diagrama suas homenagens na internet, mas nunca viu um filme de Ver-tov, nunca leu Artaud, jamais ouviu falar de Beckett ou tocou num bicho de Lygia Clark. Em segundo lugar, temos de buscar critérios mais severos e mais rigorosos para separar o joio do trigo dentro desse terreno movediço das poéticas tecnológicas,

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de modo a diferenciar e privilegiar trabalhos feitos para marcar o seu tempo, trabalhos que tragam uma contribuição efetiva e duradoura, trabalhos, enfim, que apontem para perspectivas de invenção, liberdade e conhecimento. (MACHADO, 2010, p. 56)

O próprio comportamento instintivo do artista pode libertá-lo de padrões, comer-ciais ou não, que pretendem controlar a manifestação artística. Podemos ob-servar que sempre é preciso manter o vínculo com o “comportamento” artístico, este que é provocador, pesquisador, que vibra em buscar inovações, ou melhor, novas formas de realizar, e, principalmente, descobre o seu jeito particular de expressar um pensamento, de criar, de organizar sua forma de fazer arte, sua poética.

Assim, refletimos de que forma a utilização de tecnologias digitais na arte trouxe um acréscimo de qualidades diferentes ou novas formas de expressões. Um exercício de talvez identificar onde estão as pequenas mudanças que o ambien-te digital proporcionou, ou mesmo, identificar aquelas expressões que lograram trazer novas informações ou qualidades de maneira criativa.

Contudo, que linha tênue separa a dança digital que emerge como uma expres-são singular artística, da dança digital que se torna ou mais parece uma vitrine, na qual se banaliza a utilização dos aparatos tecnológicos digitais, entrando em uma lógica de execução de possibilidades e funções. Podemos ou não subverter as programações dessas tecnologias? Podemos colocá-la em outro lugar, lugar de coisa, para que possa tomar posse de si mesma.

O corpo que sempre está sendo, em contínuo movimento de fluxo de informa-ções, constrói conhecimentos e descobre a si mesmo nas relações que expe-rimenta com o ambiente. Louppe (2012, p. 70-71) acrescenta que “Toda a in-vestigação do corpo demanda esse silêncio meditativo e concentrado, em que o sujeito do corpo parte à pesquisa de si – do outro em si ou de si no outro...” Em tal situação, a máquina propõe esta troca de informações. Vale fazer uma ressalva, pois Louppe parece que separa o sujeito do corpo, como se existisse um sujeito exterior ao corpo e ao mesmo tempo pertencente a ele. Neste estudo, compreende-se que o sujeito é o próprio corpo. Contudo, ela prossegue falando da relação entre corpos e toca em um tema bem interessante, a formação da imagem do corpo:

[...] e o corpo do outro nos seus suportes, nos seus contatos ou mesmo na sua observação tátil ou visual, revela o meu próprio corpo. Essa busca raramente passará pela imagem ou pela figu-ra anatômica mas, sobretudo, pelas sensações e intensidades. (LOUPPE, 2012, p. 72)

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Entretanto, o aparato tecnológico poderia ser considerado um dispositivo de ex-cesso do biopoder, “uma vida submetida ao comando da política” (ESPOSITO, 2010, p. 32), quando Flusser nos adverte que existe um limite de atuação sobre ele, uma liberdade ilusória, já que este aparato tem uma programação prévia, pensada em uma lógica de mercado, para padronizar o funcionamento e os re-sultados do seu uso.

Todavia, a dança digital, como uma biodança, não supõe uma oposição de ter-mos, ou uma tentativa de controle de um sobre outro, como marca o desenvol-vimento histórico do temo biopolítica trazido por Esposito (2010). Dança e vida estão ligadas, podendo uma estar contida na outra, assim como o digital e a dança não se opõem, mas se relacionam com uma interação que provoca ampli-tudes de percepção, de distensões. E ainda, dançarino e tecnologia estão neste ambiente de relações em que um atravessa o outro, fornecendo outras e mais possibilidades de experimentação.

Esposito (2010) retoma um pensamento de Foucault, advertindo que onde há poder, há resistência. Isso faz parte da dinâmica de existência do poder, ao mes-mo tempo que somos livres para exercer algum poder, também podemos nos opor a ele. Por isso, descobriremos as formas de subversão do excesso de bio-poder que está posto pela indústria tecnológica dos aparelhos que utilizamos para nossas vidas e nossa criação artística.

Talvez Louppe (2010) possa nos auxiliar quando deslocamos a sua ideia de corpo – “que não é dado, mas descoberto, ou que está ainda por inventar” (p. 73) – para um aparato tecnológico. Ou seja, podemos participar com maior inten-sidade nas invenções e programações dos equipamentos digitais que utilizamos na criação artística. O fato é que pouquíssimos possuem condições de fazer isso, seja por não possuírem conhecimentos específicos ou por condições finan-ceiras e estruturais. De todo modo, continuamos produzindo e buscando novas poéticas, apesar das adversidades comerciais, e sempre teremos a alternativa de subverter aquele aparato pré-programado.

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MACHADO, A. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

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SCHILLER, G. E. The kinesfield: a study of movement-based interactive and choreographic art. Plymouth. 2003. Tese (Doutorado em Computação), School of Computing, Faculty of Technology University of Plymouth, England, 2003.

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Programação cultural como embrião para uma política para a dança

Neila Cristina Baldi (Uesb)1

Resumo

O presente artigo é resultado da pesquisa desenvolvida na Especialização em Gestão Cultural pelo Senac-DF, defendida em julho passado. O trabalho discu-te formas de viabilizar a criação e manutenção de uma programação cultural permanente para o Centro de Dança do Distrito Federal e fazer com que essa seja o embrião de uma política pública para a dança naquela Unidade da Fede-ração. Criado na década de 1990, o espaço é destinado à pesquisa, ensaios e cursos de dança. Até 2010, sua ocupação se dava por um edital público. Desde 2011, a seleção dos projetos é feita por ordem de chegada. Não existe um pro-jeto de programação para o espaço e este trabalho apresenta esta formulação. Para tanto, foi feito um diagnóstico do funcionamento do local, abrangendo seu contexto histórico e social, e formuladas ações, com programação orçamentá-ria, bem como com proposição de parcerias. No Distrito Federal, apesar de ha-ver conselheiros na área de Dança, não há, de fato, uma política para o setor. Quando o Estado não propõe ações culturais para uma área ou quando propõe ações isoladas, sem planejamento, sem direcionamento, também faz uma opção política. Partindo desse pressuposto, o trabalho propõe ações para o espaço, pensando sob o ponto de vista de cultura em três dimensões: simbólica (fazer criativo), cidadã (democratização do acesso) e econômica (desenvolvimento do setor). A ideia é que esta programação fomente as três dimensões culturais da dança, e, desse modo, possa ser usada como embrião para uma política cultural para a dança no Distrito Federal.

Palavras-chave: Dança. Política cultural. Gestão.

Abstract

This article is the result of research produced in the Specialization in Cultural Management at Senac-DF, defended in last July. This paper discusses ways to feasible the creation and support of one continuous cultural programming for 1 Neila Baldi é jornalista e artista da dança. Atualmente é professora dos cursos de Licenciatura em Dança

e Teatro da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). [email protected]

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the Centro de Dança do Distrito Federal and to make with it be an embryo of a public policy for the dance in this state. It is institute in the 1990s, this place is destined for research, for rehearsal and for workshop of dance. Until 2010, its occupation happened by public edict. Since 2011, the choice of projects is making by order arrival. There isn’t a programming project to the place and this paper introduces this formulation. For this, it did a diagnostic about the operation of the place, including its historical and social context, and it formulated actions, with the budgetary programming, as well as with statement of partnership. In the Distrito Federal, although there are counselors of culture in the dance area, there isn’t, indeed, a policy for the field. When the Government doesn’t propose culture actions to one field or when it proposed isolation actions, without planning, with-out way, also it did a policy option. With this plan, this paper proposes actions for the place, thinking from the point of view of culture in three dimensions: symbolic (make creative), citizen (access democratic) and economic (growth of the field). The idea is that the programming will promote the three dimensions of the culture in the dance and, so, it could be an embryo to a cultural policy of dance in the Distrito Federal.

Keywords: Dance. Cultural policy. Management.

Introdução

O presente artigo é resultado da pesquisa desenvolvida na Especialização em Gestão Cultural pelo Senac-DF, defendida em julho passado. O trabalho discute formas de viabilizar a criação e manutenção de uma programação cultural per-manente para o Centro de Dança do Distrito Federal e fazer com que essa seja o embrião de uma política pública para a dança naquela Unidade da Federação.

Criado na década de 1990, o espaço é destinado à pesquisa, ensaios e cursos de dança. Até 2010, sua ocupação se dava por um edital público que, no entan-to, não contemplava uma diretriz de política pública: o que se quer realizar ali? Que manifestações da dança terão prioridade? Para que público? Entre outras questões.

Desde a atual gestão, a partir de 2011, não há mais edital de ocupação. Em 31 de janeiro daquele ano foi publicada a Portaria nº 3 da Secretaria de Estado de Cultura que dizia que, no período de 15 de fevereiro a 31 de julho, os espaços culturais – incluindo o Centro de Dança do Distrito Federal – seriam ocupados por atividades da Secretaria ou apoiadas por ela. Mas acrescentava que pedidos

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de ocupação poderiam ser solicitados ao secretário, a qualquer tempo. Portaria semelhante foi publicada para o segundo semestre daquele ano.

As portarias não especificavam os critérios para o uso do espaço e, na prática, o que ocorreu foi a concessão por ordem de entrada do protocolo na secretaria. Na época, o novo governo que assumia pretendia discutir com a classe artística o uso do local e também uma política para a dança. Houve diversas reuniões com entidades de classe, que culminariam em um grande seminário, previsto para junho de 2012 – o que não ocorreu.

Política cultural

De acordo com Turino (2003-2004), “gestão é – antes de tudo –, definição de po-lítica. E definição de política implica em posicionamento ideológico, não podendo ser confundida com um processo neutro de gestão”.

O gestor cultural é, assim, tanto aquele que formula quanto aquele que adminis-tra. Desse modo, propor ações culturais é, inevitavelmente, pensar politicamente sobre um segmento cultural. Quando o Estado não propõe, também está agindo politicamente. Da mesma forma que, quando propõe ações isoladas, sem pla-nejamento, sem direcionamento, também fez uma opção política. Portanto, não ter, por exemplo, uma política para um setor é uma estratégia política. Segundo Botelho (2001):

ter um planejamento de intervenção num determinado setor sig-nifica dar importância a ele [...]. Significa [...] o reconhecimento, por parte dos governantes, do papel estratégico que a área tem no conjunto das necessidades da nação. (BOTELHO, 2001, sn)

O que existe atualmente, na área de política cultural do Distrito Federal, é o Fun-do de Apoio à Cultura – criado em 1991 – que oferece apoio financeiro a fundo perdido, e seus projetos são selecionados por editais públicos. A principal fonte de recursos do Fundo consiste em 0,3% da receita corrente líquida do Governo do Distrito Federal.

Os editais do FAC são divididos em: Difusão e Circulação (difusão de todas as atividades artísticas e culturais); Criação e Produção (audiovisual: cinema, mú-sica, televisão e rádio); Montagem de Espetáculos (linguagens espetaculares: dança, teatro, circo e cultura popular); Registro e Memória (publicações literárias e demais publicações e registros em todas as linguagens); Informação, Indicado-res e Qualificação (gestão cultural, formação e qualificação dos segmentos artís-

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ticos); e Manutenção de Grupos e Espaços (sustentabilidade dos grupos artísti-cos e espaços privados de uso público). Cabe ao Conselho de Cultura – formado por representantes de diversas linguagens artísticas – definir quem pode ou não concorrer aos recursos do fundo, por meio da aprovação ou não do Cadastro de Ente e Agente Cultural (Ceac). Para Velloso (2011, p. 16), a manutenção de editais conjuntos “impede o avanço e a valorização destas áreas artísticas por manter fórmulas distantes das realidades das especificidades das áreas”.

Não existe, portanto, um projeto de programação para este espaço cultural, muito menos uma diretriz específica para a dança ou para qualquer segmento cultural. Velloso (2010) fala da importância de uma política setorial para fortalecer uma área de atuação. Segundo ela, as necessidades de uma área são definidas, em parte:

pelas demandas existentes e também por aquelas existentes mas ainda não reconhecidas como existentes nos discursos e na dis-tribuição de recursos. E, ainda, pelas demandas aparentemente não existentes, mas que se apresentam como emergentes.

Este trabalho discute formas de viabilizar a criação e manutenção de uma pro-gramação cultural permanente para o CDDF. Para tanto, foi feito um diagnós-tico do funcionamento do local, abrangendo seu contexto histórico e social, e formuladas ações, com programação orçamentária, bem como com proposição de parcerias. Com isso, o CDDF deixa de ser apenas um espaço para aulas e ensaios, mas poderá se tornar um espaço cultural efervescente da dança do Distrito Federal. Isto porque:

A tendência mundial aponta para a necessidade de uma maior racionalidade do uso dos recursos, buscando obter ações ou produtos (um centro de cultura, um museu, uma biblioteca, um curso de formação) capazes de se transformar em multiplicado-res desses ativos culturais. (CALABRE, 2007)

Ou seja, é possível, por meio das parcerias propostas e da otimização dos recur-sos humanos e financeiros aplicados no projeto, transformar o equipamento em um espaço cultural.

Sabemos, como nos mostra Pires (2008), que é possível, ainda, por meio de algu-mas ações culturais, começar a implantar uma política para um segmento, como o caso ocorrido em Araraquara (SP) e discutido pela autora. Naquele município, a criação de um festival de dança – e não mais concursos de competições de bailari-nos – e, posteriormente, de uma escola de formação de bailarinos, possibilitou, en-tão, a instituição de uma política para a dança na cidade. Fonseca (2005) diz que é evidente que a política cultural “é um projeto de intervenção no processo cultural em que se define o que será atendido, onde, como, com que recursos, segundo

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que metas e com quem e para quem será feito”. É neste sentido, portanto, que o projeto – do mesmo modo como ocorreu em Araraquara (SP) – pode fomentar a implantação de uma política cultural para a dança no Distrito Federal.

“É fundamental constatar que toda política cultural traz embutida, de modo explí-cito ou não, uma concepção a ser privilegiada de cultura”. (RUBIM, 2007, p. 149) Partindo desse pressuposto, o trabalho propõe ações para o espaço, pensando sob o ponto de vista de cultura em três dimensões: simbólica (fazer criativo), cidadã (democratização do acesso) e econômica (desenvolvimento do setor), conceito que norteou o Plano Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura.

Assim, a dimensão simbólica é aquela do “cultivo” (na raiz da palavra “cultura”), da criação. É, portanto, a do criativo, a do artista. Mas não adianta apenas criar, a arte precisa de público. Do mesmo modo que não se faz arte sem artista, ela também não existe sem aquele que a usufrua e frua. Portanto, a dimensão ci-dadã consiste no reconhecimento do acesso à cultura como um direito. Ou seja, trata-se do acesso universal às artes, à democratização do acesso. Na dimensão econômica, inscreve-se o potencial da cultura como vetor de desenvolvimento. Esta está intrinsecamente ligada também ao fazer.

São premissas também deste projeto cultural entender que vivemos em um mundo de hibridismo, em que a dança dialoga com outras linguagens – o que o pensador português António Pinto Ribeiro (2000) chama de as Artes do Corpo (teatro, dança e performance). Vivemos em uma era em que a transversalidade é a palavra-chave. Eu não sou mais apenas isto ou aquilo; sou isto e também aquilo. Eu sou tantas quantas forem as possibilidades da minha arte e se elas são tão abertas não é possível pensar a dança de uma forma estanque e fe-chada. Portanto, não é possível pensar em dança, mas, do mesmo modo como vemos a cultura como plural, pensar em danças ou em artes do corpo.

Pensar a dança sob essa perspectiva é também estar atenta às conceituações mais atuais em relação às políticas públicas. Calabre (2007) diz que: “Uma polí-tica cultural atualizada deve reconhecer a existência da diversidade de públicos, com as visões e interesses diferenciados que compõem a contemporaneidade”.

Sobre o Centro de Dança

O Centro de Dança do Distrito Federal está localizado na região central de Bra-sília – Via N2, como Anexo do Teatro Nacional, composto por cinco salas de aula e uma videoteca.

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O CDDF não desenvolve pesquisa de público, o máximo que tem sido feito é o questionamento aos professores sobre a quantidade de alunos que frequentaram os cursos por eles ministrados nesse espaço. Além das oficinas realizadas ali – quase todas para adultos (faixa etária principal do espaço), as salas são locadas também para companhias de dança. Nesse caso, o público é formado por artistas – todos também adultos. Há a exceção do Projeto Arte Viva Arte, desenvolvido por uma ONG, que tem crianças e adolescentes – num total de cerca de 60. Grande parte do público mora no Plano Piloto – exceto os atendidos pela ONG, que são moradores das regiões administrativas do DF. Os cursos preferenciais no espaço são de dança clássica e contemporânea. Podemos afirmar, assim, que uma das especificidades deste público é ser formado por bailarinos: profissionais ou amadores.

E quem não dança, mas aprecia a dança, não pode conhecer o espaço, não pode ter programação para este público? E se esse novo público trouxer outro e assim sucessivamente? Com uma divulgação mais massiva atinge-se outro público que não apenas o de dança que já conhece o local. Podem-se atingir pessoas que apreciem dança e não dancem e também aqueles que gostem de dançar, mas não conhecem o local e não sabem que ali há oficinas gratuitas e outras a pre-ços acessíveis – considerando o valor médio do cobrado na maioria das escolas de dança do DF. Muitos horários ficam desocupados durante o dia, são períodos onde a intervenção estatal poderia ocorrer no sentido de ofertar cursos gratuitos.

Ações culturais

O plano de ações apresentado neste projeto pode ser executado totalmente com recursos do governo do Distrito Federal. Ou ser também uma parceria público-privada (PPP), por meio de entidades assistenciais ou de educação ou até mes-mo por meio de associação de classe. Parte da programação também poderia ocorrer por meio de edital nos moldes dos realizados pela Fundação Nacional das Artes (Funarte), do Ministério da Cultura, para a ocupação de seus espaços, em que uma empresa de gestão cultural recebe recursos públicos para gerir e propor a programação.

O projeto propõe uma série de ações, considerando as três dimensões da cul-tura: simbólica, cidadã e econômica. Aliado à implantação das ações propostas haveria também o lançamento de um edital de ocupação do espaço.

Considerando as dimensões simbólica e cidadã, o projeto propõe uma ação de-nominada “Dança para todos”, que consistiria na parceria com instituições de

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ensino superior para que os licenciados das Artes do Corpo realizassem ofici-nas gratuitas no espaço. A proposta é que pelo menos 20% do horário total de funcionamento do espaço fosse ocupado com este projeto. Esta ação permitiria acesso aos bens culturais a uma gama maior de pessoas – aquelas que não têm condições de pagar – e, ajudaria, a iniciar também uma formação futura de público para a dança no Distrito Federal. Isto porque:

Sabe-se que uma das mais importantes maneiras de se formar um público é a partir da experiência vivida pelos indivíduos: ou seja, ter a possibilidade de fazer dança, teatro ou música é uma maneira de aprofundar a relação com as artes que incide sobre as formas de fruição de um indivíduo. (BOTELHO, 2007, p. 179)

A partir da discussão com as associações de classe lançar-se-ia um edital de ocupação para o Centro de Dança do Distrito Federal, que contemplaria tanto o uso do espaço para oficinas de dança – considerando-se as mais diferen-tes vertentes da dança, sob o aspecto de artes do corpo – ensaios e mostras. O edital teria espaço para a proposição de atividades gratuitas – custeadas pela Secretaria de Cultura, FAC ou ONG – e atividades pagas. A ideia é que 60% dos horários disponíveis do espaço fossem selecionados para este projeto e que, invariavelmente, aqueles que ocupassem o espaço para ensaio – com valores subvencionados – tivessem como contrapartida a realização de ensaios abertos ou pequenas mostras coreográficas.

Além das salas de aula, o Centro de Dança do Distrito Federal tem uma videoteca – que segundo o site, tem amplo material audiovisual de dança e fun-ciona das 9h às 17h, com agendamento. E, também, uma biblioteca. Com a ação “Obra aberta”, em que uma vez por mês seria realizado um cine-debate, utilizar-se-ia o acervo da videoteca do Centro de Dança e, através da parceria com as instituições de ensino superior, um pesquisador da área conduziria a discussão. Também poderia ocorrer o debate sobre um livro específico, de modo a fazer o usuário a conhecer a riqueza deste acervo, ou durante o cine-debate sugerir livros que tenham relação com o tema abordado na obra apresentada.

Também visando a formação de futura plateia, haveria a ação “Sexta no Centro”, em que todas as sextas-feiras, na happy hour, o saguão, o jardim de inverno ou uma das salas de dança seja aberta para uma Jam session de profissionais da dança ou de alunos das oficinas que utilizam o espaço durante a semana.

Além das ações propostas dentro do espaço físico do Centro de Dança, convê-nios com as instituições de ensino superior que formam profissionais das Artes do Corpo podem alavancar ações de expansão para fora de seu entorno. A ideia

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é usar a rede de espaços destas instituições e da Secretaria de Cultura ou de Esporte e a disponibilidade de profissionais oriundos destas instituições de ensi-no superior para realizar oficinas descentralizadas.

Esta ação se faz importante porque o CDDF está localizado no Plano Piloto, ou seja, na área central de Brasília e, consequentemente, no Distrito Federal. No entanto, aquela unidade da federação é formada por diversas regiões adminis-trativas, muitas sem espaços culturais e, de acordo com Nussbaumer (2007, p. 188), pesquisas demonstram que “quem mora em áreas de concentração de equipamentos culturais e melhor sistema de transporte, entre outras vantagens, tem quase três vezes mais chance de ser um praticante cultural, em relação a quem reside em outras regiões”.

Esta ação de descentralização poderia ser encarada em um sentido triplo: sim-bólico, cidadão e econômico. Isto porque, ao abrir os espaços das instituições para as oficinas, poder-se-ia, posteriormente, ofertá-los também para grupos destas localidades ensaiarem e produzirem artisticamente. Uma vez que, pro-mover acesso:

[...] é promover o diálogo de culturas em contextos de igualdade e cooperação, disponibilizando a todos as mesmas condições para participar da vida pública, imprimindo transparência à disputa por recursos, garantindo bens e serviços culturais com a mesma qualidade em todos os espaços e a todos os setores da sociedade, independente de classe social ou local de moradia. (PORTO, 2007, p. 169)

Com estas ações, o foco passa a ser o desenvolvimento do indivíduo e não a preo-cupação com ele como consumidor. Isto porque, segundo Botelho (2007, p. 180), “a literatura aponta que quem teve a chance de vivenciar os fazeres artísticos é potencialmente o melhor público para as manifestações artísticas e culturais”.

(In)conclusões

Ao planejar ações para o espaço, me debrucei em outras experiências bem-su-cedidas, em outros lugares: o que temos feito Brasil ou mundo afora que vale a pena ser replicado? E o que é local? Foram indagações ao longo do caminho.

Mas, planejar, no entanto, é pouco. É preciso ação. Portanto, espero que o presen-te trabalho possa servir de reflexão para o governo local – mesmo que não venha a ser implantado em sua totalidade ou em parte dele – de que é possível fazer mais do que está sendo executado. A dança do Distrito Federal merece mais.

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Escrita metafórica: uma operacionalidade simultânea de percepção, comunicação e emancipação do corpo na dança

Patrícia Cruz Ferreira (UFBA)1

Resumo

A dança, assim como em nosso cotidiano, é permeada de objetos – imagens, palavras, pessoas, movimentos, entre outros, que se efetivam significativamente como ambientes de representação, organização, disseminação e apresentação das informações. Nesse universo, o corpo, em todos os seus aspectos e modos de operar, desempenha um importante papel cognitivo na estruturação das lin-guagens enquanto leituras sígnicas verbais e não verbais do mundo: textos do procedimento metafórico do corpo (LAKOFF e JOHNSON, 1999, 2002; RENGEL, 2007). Dançarino e espectador comunicam signos realizados e constantemente atualizados com o entorno, compondo uma escrita metafórica. Perceptualmente, ambos selecionam, percorrem e descobrem espaços sensíveis. A proposta é refletir que tal operacionalidade metafórica – enquanto um modo de relação com o mundo – é uma postura crítico-política em que se evidencia a emancipação do corpo na dança concomitante com a compartilha do espaço cênico. Ação que possibilita reorganizar informações habituadas aos entendimentos dicotômicos como passividade/atividade; olhar/agir; e o dualismo corpo/mente.

Palavras-chave: Dança. Escrita metafórica do corpo. Comunicação. Emancipação.

Abstract

The dance, as well as in our daily lives is permeated with objects - pictures, words, people, movements, among others, are significantly characterized as environments of representation, organization, dissemination and presentation of information. In this universe, the body, in all its aspects and modes of operation, plays an important role in the cognitive structure of languages while verbal and nonverbal signal readings of the world: texts of the metaphorical procedure of the body (LAKOFF e JOHNSON, 1999, 2002; RENGEL, 2007). Dancer and spectator communicate signs made and constantly updated with the surroundings, making a metaphorical writing. Perceptually, both select, run and discover sensitive spaces. The proposal is to reflect that such metaphorical operation - as a way of relating to the world - is a critical- political stance that is evident the emancipation of the body in dance concomitant share of the scenic area. Action that enables to reorganize information accustomed with dichotomous understandings as 1 É mestre em Dança (PPGDança/UFBA). Bolsista Fapesb. Membro do Grupo de Pesquisa Corponecti-

vos em Dança, Artes e Interseções (UFBA). Licenciada em Letras (FUNCESI) e bacharel e licenciada em Dança (UFV). [email protected] ou [email protected].

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passivity/activity; look/act, and the body/mind dualism.

Keywords: Dancing, Writing Metaphoric of the Body, Communication, Emancipation.

Movimento em cena como dança: universo de informação

Nosso cotidiano é permeado de objetos – imagens, textos, pessoas, lugares, movimentos, entre outros – que informam, representam o mundo, a nós mes-mos. Se, de fato, somos incessantemente tocados por informações em qualquer ambiência, vale refletir que o mesmo se efetiva no contexto do movimento em cena como dança.

Se alguém solicitar que descrevamos alguns elementos que constituam um es-petáculo de dança, poderemos subitamente listar coisas como movimentos, cor-pos (dançarino, espectador, espaço, objetos etc.), passos específicos de moda-lidades de dança, música, release, entre outros, variando a depender da relação de proximidade/distância entre nós e essa forma de arte. A percepção desses elementos verbais e não verbais que juntos compõem a dança podem elucidar imagens, impressões e até construções de significados. Nesse sentido, hou-ve um processo dinâmico de criação de pensamento estabelecido pela relação entre o corpo (que faz a dança ou que a assiste) e os objetos que compõem a dança em acordo com o ambiente. A tradução em forma de representação e in-terpretação dos objetos de percepção na dança é um ato de comunicação.

Tanto o corpo que apresenta dança quanto o que a assiste não saem ilesos da experiência. Questões como “o que é isto”, “o que o dançarino quer dizer” ou “não entendi aquela dança”, em meio ao estranhamento da experiência estética já são sinais de outros sinais se processando. Sinais de seleção, de busca (mes-mo que frustrante) por aproximações e decifrações particulares que, inevitavel-mente, o corpo opera. Nesse sentido, mesmo no silêncio discreto das danças aparentemente incomunicáveis há trocas de informações, há sinalizações no/pelo corpo, ou seja, “o organismo humano sempre responde ao que lhe chega através da percepção sensório-motora”. (KATZ, 2003, p. 41)

A proposta aqui é mostrar que dança é um ambiente de ação cognitiva dos cor-pos envolvidos, que expõe a complexidade do trânsito (corpo e ambiente, abs-trato e sensório-motor, verbal e não verbal) em que nele ocorre. Assim, o corpo na dança não é algo que pode ser separado em partes contendo significados

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legivelmente precisos, tal como aparentemente ocorre com as palavras (enten-da-se que mesmo as palavras para serem decodificáveis não podem ser sepa-radas de seus contextos de uso). E tampouco o contexto da dança é um lugar estático que não influencia sensivelmente nas possíveis interpretações dos seus sujeitos-compositores. Dança e corpo que dança, assim como o mundo, não são uma coisa à espera de um leitor atento aos seus sinais. Sinais ocorrem na dança e nos corpos desse ambiente pela própria natureza relacional entre pessoas e mundo.

Signo, linguagem e procedimento metafórico do corpo

De acordo com a teoria dos signos de Peirce, o signo “é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível intérprete)”. (SANTAELLA, 2004, p. 7) Em síntese, para conhecermos as coisas e a nós mesmos só o efetivamos por meio da mediação dos signos, porque de algum modo representamos essas coisas e só as interpretamos através de outra representação, que é a própria ação interpretante – signo gerando signo em um processo via à continuidade da interpretação. Peirce a denominou de Semiose. (PEIRCE, 2010)

Assim estruturados, os signos são tra(du)zidos e aparecem à consciência. Como esclarece Santaella (2012), a consciência em Peirce é o lugar onde os fenôme-nos são apreendidos, onde as ideias (suas partículas materiais) se localizam em diferentes profundidades e em mobilidade contínua. É um estado e é na consciência do intérprete, ou seja, na própria pessoa que os signos se originam, pois ela só pode ser vivenciada da perspectiva de cada um ou cada uma (cada pessoa, cada corpo, cada intérprete).

Um desenho, uma bola de brincar, uma ação, um movimento de dança são fenô-menos. Se, ao contato com eles, somos afetados de tal modo que produza algo reativo (pensamento, imagem, sensação) imediatamente devido aos mesmos, pode-se considerá-los como signos. Eles representaram uma coisa (seu objeto), pelo menos em parte, para esse alguém.

Com efeito, qualquer coisa de qualquer espécie pode funcionar como signo. Tal como a definição peirceana de signo é abrangente o mesmo se aplica para a de linguagem. Pelo enfoque da Semiótica de Peirce, Santaella (2012, p. 18) explica que “todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática

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social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido”.

Essa constatação evidencia que além do sistema linguístico manifestado em suas formas oral e escrita, existe uma variedade de outros modos de comunica-ção que cumprem as condições necessárias ao funcionamento como linguagem – as linguagens ditas não verbais. Há uma pluralidade de linguagens indepen-dentemente de onde se localizam (no ar, mar, floresta, ruas, casas, instituições escolares, museus, palco etc.), dos meios em que são veiculadas (televisão, rádio, celular, tela digital, impressão gráfica, entre outros), da espécie (humana ou não humana), de serem reais ou irreais, naturais ou artificiais. São linguagens que nos constituem e as quais constituímos no intuito de compreensão de si, do outro, do mundo.

É alicerçada por essa perspectiva que a dança, especialmente em seu contexto de acontecimento cênico é um modo de linguagem. Afinal, que sentido se faz ao dançarino sentir o asfalto da rua-palco escorregadio e relacionar o fato à ideia de um passado de chuva? Ou o espectador achar que a iluminação azul no fundo do palco lembra um céu veranil? Desse ponto de vista, pode-se cogitar um sen-timento, uma lembrança, uma imagem como significativos e o corpo na dança (dançarino e espectador) como construtor de significados. Significados que se constroem especialmente pelo papel do não verbal.

Ruthrof (2000) explana que a linguagem enquanto apenas o conjunto de expres-sões linguísticas ou palavras não é capaz de significar, é vazia. Nada se torna significativo em um sentido social se os esquemas de expressões linguísticas ou palavras não forem combinados com os signos não linguísticos (as leituras sen-sório-motoras e neurais do mundo realizadas a todo momento pelo corpo, que também constituem o linguístico).

O significado implica uma relação entre uma pessoa e a experiência perceptual dessa pessoa. (JOHNSON, 2007) Nesse sentido, também na dança o significa-do não é uma construção a priori, mas é um pacote completo. É formado no con-tato entre o conjunto de elementos coabitantes como corpos, ambiente, signos heterogêneos, imaginação, cultura, metáforas.

Como explicaram Lakoff e Johnson (2002, p. 47-48), metáfora “é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” e diz respeito ao nosso dia a dia. A partir dessa visão, a metáfora é entendida como uma operação cognitiva própria à natureza do corpo em qualquer atividade cotidiana, não simplesmente um recurso da linguagem verbal (uma figura recorrente do discurso poético, da

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linguagem subjetiva – os valores morais, os julgamentos abstratos, os conceitos etc.). (RENGEL, 2007; RENGEL; FERREIRA, 2012)

Segundo Lakoff e Johnson (1999; 2002), o pensamento é governado por con-ceitos. Além disso, eles afirmam que os conceitos governam não somente os pensamentos, mas também as atividades habituais em seus mínimos detalhes. Eles, de fato, são os responsáveis pela estruturação de comportamentos e da percepção do mundo, sendo grande parte do sistema conceitual de natureza metafórica, no inconsciente cognitivo.

É o sistema conceitual inconsciente que dá forma ao pensamento consciente. Para os autores, isso é o que, por exemplo, torna alguém capaz de imaginar uma guerra travada consigo mesmo. Essa associação se dá devido à metáfora permitir que imagens mentais convencionais adquiridas a partir da experiência sensório-motora no mundo (a luta travada entre dois sujeitos opostos, dois inimigos) sejam utilizadas para o domínio da experiência subjetiva (o sujeito lutando consigo mesmo, agindo contra seus valores morais e crenças).

Nesse sentido, não há entendimento, significado e comunicação sem a ação da metáfora. Conforme Rengel (2007, p. 75), “a membrana entre corpo e palavra tem sido tecida por uma maneira de proceder do corpo que é metafórica, e não nos damos conta disso”. Em sua tese de doutoramento, a autora propõe uma continuidade e avanço na teorização de Lakoff e Johnson (1999, 2002) ao de-senvolver e demonstrar que não somente as metáforas linguísticas, mas outras figuras de linguagem como a metonímia (recurso de linguagem característico por representar a parte pelo todo), bem como um incontável número de gestos e movimentos de dança, ou não, são emergentes desse modo de operar do corpo.

Rengel (2007) vai denominar de “procedimento metafórico do corpo” a elabora-ção metafórica do próprio. Um constante pensar/agir sensório-motoramente em termos do abstrato e pensar/agir abstratamente em termos do sensório-motor. Um trânsito incessante de informações que ocorre tanto entre os sistemas inter-nos e externos do corpo (corpo-ambiente) quanto entre os sistemas internos do corpo (sistema nervoso, sensório-motor, vísceras). Nesse viés, o procedimento metafórico é uma ação corpórea e mecanismo cognitivo no sentido mais englo-bante do que a compreensão de pensamento metafórico defendida por Lakoff e Johnson (2002, 1999).

Quando um professor de dança pede para um aluno passar a coreografia “em cima do tempo”, a comunicação, ou seja, a compreensão do pedido se dará de-vido ao fato de que esse aluno entende sensório-motoramente. Com corpo, ele

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já sabe/percebe que há um tempo e ritmo determinado para a realização de cada movimento de dança, porque da mesma forma já sabe/percebe corporalmente que existem tempos/ritmos para quaisquer movimentos na vida (do batimento do coração, da respiração pulmonar, do fluxo sanguíneo, do crescimento capilar, de ações como caminhar, correr, beijar, escrever, entre outros). De fato, há “um cruzamento em simultaneidade de processos sensório-motores e abstratos: o procedimento metafórico”. (RENGEL, 2007, p. 78)

O procedimento metafórico do corpo evidencia que corpo, mente e ambiente seguem de mãos dadas coevoluindo, possibilitando semiose. Enquanto isso, seguimos na dança procurando “preencher todos os espaços”, “prendendo e soltando o ar”, tentando “não entrar no espaço do outro”, “marcando o tempo” na “criação de células”.

A (com)posição emancipatória do corpo na dança

Falar sobre corpo na dança, isto é, no contexto do movimento em cena, é discor-rer/refletir sobre relações. À primeira vista, pensamos sobre dois tipos de corpos (humanos) que compõem essa ambiência, dançarino e espectador. O problema é que, na maioria das vezes, quando idealizamos sobre a relação espaço cênico/obra/dançarino/espectador, nosso pensamento/corpo age decompondo exata-mente assim: de um lado está aquele que dança, enquanto que de outro lado está aquele que vê dança. Em outras palavras, há quem faz/oferece/é ativo na dança e há quem observa/recebe/é passivo nela. Desse modo, ambos suposta-mente ocupam lugares e importâncias funcionais hierarquicamente distintas no mesmo espaço/tempo.

Compreendendo que nosso sistema conceitual assim como nosso pensar e agir no mundo é de natureza metafórica e que esse trânsito incessante entre pen-samento e ação é o modo comum de operar do corpo denominado por Rengel (2007) de procedimento metafórico do corpo, não poderíamos deixar de pensar na natureza desse transporte como influência organizadora da percepção dos corpos no ambiente-dança.

Lakoff e Johnson (2002) estudaram a metáfora a partir da linguagem verbal evi-denciando que uma série de expressões linguísticas funciona correntemente como metáforas e que há tipologias de conceitos metafóricos ou metáforas no sistema conceitual. Dois tipos delas são as metáforas de orientação ou orienta-cionais e as metáforas de recipiente.

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As metáforas orientacionais se relacionam, em sua maioria, com a organização espacial em um ambiente físico. Elas organizam um sistema de conceitos em re-lação a outro sistema conceitual ligados a orientações espaciais do tipo dentro-fo-ra, em cima de - fora de, para cima - para baixo, central-periférico, frente-trás etc. Conforme demonstram os autores, um exemplo é o conceito metafórico orienta-cional “Feliz é para cima” no qual implica a relação entre a experiência física no espaço, a experiência subjetiva e a experiência cultural (no entendimento do con-ceito metafórico). (LAKOFF; JOHNSON, 2002)Por outro lado, a delimitação do corpo com o espaço, o limite entre a superfície da pele com o mundo externo, ou seja, fora de si mesmo é o que concebe os conceitos metafóricos de recipiente. Pela orientação dentro-fora (lado interno e lado externo) há a projeção de si mes-mo e de si mesmo em relação aos outros objetos físicos como recipientes pela delimitação das próprias superfícies, semelhante à demarcação de territórios.

O entendimento de corpo como recipiente e as orientações espaciais como den-tro-fora ou em cima de – fora de, que nos levam a impor fronteiras entre nós e outras pessoas ou entre nós e quaisquer objetos físicos, permeiam quase todo pensamento/comunicação/ação no dia a dia já que “[...] a maioria das ações tem a ver com o entrar e sair de lugares, recipientes, situações, sonhos, pesadelos e assim por diante”. (GREINER, 2003, p. 52)

Em se tratando da ambiência da dança, o mesmo fato é identificável. Especifi-camente, na relação dançarino-espectador. A ideia de que o espectador é um receptor passivo, que somente observa e não participa, conhece, cria, apresenta interferências dos conceitos metafóricos de orientação espacial e de recipiente. Orientação espacial porque devido ao espectador ocupar um lugar no teatro (ou qualquer outro espaço/ambiente em que ocorra uma cena artística de dança) em que quase sempre se encontre sentado ou em pé, estático, delimitado pela linha do palco ou qualquer outro objeto que demarque o espaço cênico, há o entendimento/percepção de que este corpo se posiciona em área separada da cena, portanto, está fora do espaço de ação. E, dessa forma, como o espectador ocupa fisicamente um lugar fora do palco, aparentemente “somente observando” a dança, gera-se a compreensão de que ele apenas recebe as informações de fora como um recipiente vazio.

A partir daí uma consequência é imposta na relação dançarino-espectador: o que Rancière (2010) denomina de paradoxo do espectador. Segundo o autor, desde Platão difunde-se a ideia de que o teatro é o lugar das ilusões, da emoção e não o lugar da verdade, sendo os seus espectadores ignorantes da verdade, pois somente observam sem conhecer as condições reais da aparência. (RAN-

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CIÈRE, 2010) Na ideia de diferença de capacidades de inteligência, de percep-ção, o espectador apresenta uma condição ruim e inferior, é passivo. Olhar não equivale a agir, a conhecer.

No entanto, não há espectador passivo e olhar inocente daquilo que percebe. Estudos do corpo como o da Teoria Corpomídia (KATZ e GREINER, 2005) já de-monstram que corpo não deve ser pensado como um simples local de processa-mento e estocagem das informações de fora. Como Katz (2003, p. 3) aclara, “so-mos cocriadores das informações que recebemos, ao mesmo tempo que seus transformadores e disseminadores”. Quando as coisas são percebidas – ato que se dá pelas leituras verbais (signos linguísticos) e não verbais do mundo (visão, olfato, paladar, tato, audição e outros sentidos adicionais) – de fato, o corpo age. Por operacionalidade metafórica.

Nöe (2004, 2012) também propõe pensar a percepção como ação cognitiva do corpo. Segundo ele, perceber é agir, é uma forma direta de selecionar, coletar e agrupar informações. Desse modo, Nöe (2012) afirma que não há experiência perceptiva independente do exercício de um tipo de conhecimento especial que qualquer pessoa possui desde a infância, o sensório-motor.

Destarte, é devido à preocupação no enfoque da igualdade de capacidades in-telectuais/perceptuais que Rancière (2010) propõe a emancipação de inteligên-cias, no sentido do embaçamento de oposições de capacidades – o embaça-mento da oposição entre os que olham e os que agem – a ser pensada para o campo das Artes Cênicas. Essa é a ideia de um novo teatro sem a condição (distanciada da atividade) de espectador. Todos os corpos/pessoas – mestres, cientistas, atores, dançarinos, espectadores, alunos, coreógrafos, escritores, lei-tores... – aprendem as coisas de modo igual: observando, experienciando, co-criando, comparando metaforicamente com o que já vivenciou.

Pensemos o que acontece com os corpos na dança, um ambiente aberto à ação do interpretante situado por Peirce (2010, 1975). Concomitantemente, comparti-lhando do mesmo contexto, o corpo que dança percebe/traduz: o olhar atento do espectador, um suspiro ou murmúrio vindo da plateia, a respiração ofegante do parceiro de cena quando seus corpos se tocam etc. Enquanto o espectador da dança percebe/traduz: o som relaxante da música, um determinado movimento que remete a uma ação cotidiana, o incômodo na sua coluna vertical causado pela desconfortável poltrona do teatro ou por estar muito tempo em pé, entre outros. São tantas as possíveis imagens que o corpo na dança mostra e (re)constrói continuamente na interação com o ambiente (teatros, praças, escolas,

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calçadas de ruas, museus etc.) e com outros corpos (outros dançarinos, pes-soas, objetos cênicos etc.). Imagens/informações que muitas vezes resultam de ações propositais do trabalho artístico.

Godard (2002) argumenta que na dança, de fato, a informação visual provoca imediatamente no espectador uma experiência sinestésica (que se relaciona à percepção de movimentos musculares). Ver o movimento do outro é suficiente para que o espectador experimente sensações internas de seu próprio movi-mento do corpo.

Como espectador da dança, será mesmo que o que vejo não me afeta abstrato-sensoriamente? E do outro lado, como fazer essa dança e não conseguir per-ceber/afetar-se pelo outro que me observa, pelo outro que me acompanha em cena, pela temperatura ou cheiro local? Não perceber qualquer resposta do/ao outro, visual, sonora, verbal, multissensorial? Ou seja, a percepção e significa-ção do movimento do outro na dança leva em conta uma rede de informações/unidades perceptuais. Micropercepções.

Da junção associativa entre ilimitadas micropercepções organizadas pelo corpo durante a realização da dança, emergem o que denomino de escritas metafóri-cas. Na dança, quando há o movimento de seleção e combinação de unidades mínimas perceptuais (por exemplo, a atividade neuronal do córtex motor e do sensório ligado a um movimento dançado que se remete a um conceito que se associa a uma ação cotidiana...), tem-se o surgimento de novo(s) signo(s).

A ação interpretante de construção dos signos equivale à composição corporal das escritas metafóricas na dança. Já os próprios signos verbais e não verbais – as leituras da experiência perceptiva – são os textos ou escritas metafóricas do corpo. Permanentemente e simultaneamente, com uso da memória em devir (PRIGOGINE, 1996), a essas séries de imagens conectadas advêm do procedimento metafórico do corpo. Desse modo, na exploração da cena artística da dança, por procedimento metafórico e por construções sígnicas, os corpos se sentem/percebem como escritores ao mesmo tempo em que funcionam também como escritas para o outro.

No dia a dia, o modo como eu me movo (como eu corro, durmo, alimento, caminho, trabalho etc.) denuncia uma forma específica de me organizar no espaço. Porque integro um tipo de espécie e um grupo social, essas escolhas estão imbuídas de minhas crenças, valores, aprendizagens, capacidades fisiológicas e cognitivas, conceitos, enfim, de informações tanto biológicas quanto socioculturais, políticas. Signos estampados no corpo para quem se habilite a desvendá-los.

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No universo da dança, o movimento do corpo-dançarino também é indicador de como ele organiza seus pensamentos no formato de dança, como ele escreve suas impressões e se mostra como escrita artística, como forma disponível de lei-tura significativa para o outro. É imagem modelada pelo contexto social no qual se insere e a quem também modifica. O espectador, do mesmo modo, funciona para o artista como esse tipo de escrita, pois esse corpo também indica imagens, pode sugerir estados emocionais, sentimentos, como empatia pela obra, entre outros.

Na interação entre dançarino, espectador e ambiente os textos/imagens/signos ora se constroem e se apresentam de forma densa, lenta e insólita, ora de forma estreita, rápida, automática. São frutos de percepções, de associações indivi-duais e circunstanciais desses corpos e, também, de acordo com as qualidades intrínsecas da cena de dança. Percorrendo territórios sensíveis da dança, todos se constituem como corpos emancipados, com igualdade de capacidades per-cepto-intelectuais, e com autonomia em relação à construção significativa do referente, da experiência artística, de suas próprias escritas.

Aqui se muda da posição de partilha do sensível refutada por Rancière (2010) para a consciência de compartilha do sensível. Não há a negação de que o espa-ço é ocupado diferentemente conforme a função organizada pelo corpo na dan-ça. É notável que o corpo que apresenta movimentos de dança não se mostra/se organiza tal como o corpo que assiste/se organiza como espectador de dança e que esse fato colabora para o surgimento dos conceitos metafóricos, como foi visto. Contudo, o que chamo a atenção é para o fato de que ambos são atuantes e emancipados na dança e suas ações emergem do mesmo lugar, o corpo.

O compartilhamento se refere à mesma habilidade cognitiva do corpo para a construção de conhecimento, de significação dos objetos e eventos, assim como também é compartilha do mesmo ambiente artístico. Corpos se diferem no modo da/e na composição, mas não na capacidade de fazê-la.

Considerações

O corpo na dança, assim como em qualquer outra instância na vida, é indicador de como se sente, pensa e se organiza com/no entorno. Ele é resultado das suas negociações perceptuais de informações que permanentemente se atualizam através de seu encontro interativo com o ambiente, com outros corpos. Como parte desse encontro dinâmico, o signo só poderia ser igualmente dinâmico, sem-pre comprometido com o novo, com a geração de outro que já não ele mesmo.

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Entre combinações de ação e representação e pela capacidade de construir significados de suas experiências, o corpo na dança segue criando metaforica-mente seus significados, suas (re)escritas. Atos de comunicação do corpo que vê dança e que faz dança – corpo emancipado. Ações que emergem do mesmo lugar (corpo) e do mesmo contexto em movimento (dança). Portanto, há que se (re)pensar a relação dançarino-espectador por esse outro viés, uma relação que por procedimento metafórico do corpo todos são sujeitos construtores-escritores daquilo que percebem, sem fronteiras claras entre palco e plateia, olhar e agir.

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Dança como campo de ativismo político: o Bicho Caçador

Verusya Santos Correia 1

ResumoEste artigo pretende mostrar que as danças criadas como manifestações popu-lares de grupos sociais espontaneamente organizados, que ocorrem na rua e se baseiam nas suas experiências cotidianas dos espaços públicos em que vivem, produzem um tipo de transgressão das normas tanto de organização urbanística quanto da dinâmica sociourbana vigente e da própria prática artística coreográ-fica, na medida em que subvertem a lógica segregatória e espetacular que se impõe atualmente como modelo hegemônico de cidade, de arte e inclusive de corporalidade. (BRITTO; JACQUES, 2008, 2010)O objeto tomado para análise é a manifestação anual do Bicho Caçador, criada e realizada pelos habitantes do bairro Porto de Trás, na cidade de Itacaré (BA). Partindo da minha própria experiência de coreógrafa mobilizada por questões de segregação social, o estudo se desenvolve articulando depoimentos coletados e dados históricos contextuais, com as noções de coimplicação entre corpo e ambiente (Britto, 2008), corpografia urbana (BRITTO; JACQUES, 2008, 2010) e profanação (Agamben, 2007), para mostrar como o Bicho Caçador transgride (desde o nome) as regras de convívio e ocupação do espaço urbano, pelo seu uso dessacralizador da segregação espacial, socioeconômica e étnico-cultural vigentes na cidade.Pretende-se, desse modo, sugerir que a dança pode ser um tipo de ação crítica, de desvio ou resistência aos modelos hegemônicos de pensamento e comporta-mento promotores da espetacularização – papel que denominaremos de ativis-mo político.

Palavras-chave: Dança. Ambiente urbano. Coimplicação. Ativismo politico.

AbstractThis research investigates the hypothesis that the dance can be a form of political activism, when its production and mode of occurrence happens margin market rules and the official system of professionalization.It is intended to show that the dances created as manifestations of popular social groups spontaneously organized, occurring on the street and are based on their daily experiences of public spaces in which they live, produce a kind of transgression of the rules of both the urban organization as dynamic partner urban-effective and choreographic own artistic practice, in that subvert the logic segregated and spectacular that imposes itself now days as the hegemonic model of the city, including art and corporeality (Britto and Jacques, 2008, 2010).

1 Coreógrafa, dançarina, instrutora de pilates e mestre em dança pelo programa de pós-graduação da UFBA. Idealizadora e diretora artística do Festival de DançanItacaré. [email protected]

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The object taken for analysis is the annual event of the BichoCaçador created and performed by the inhabitants of the district of Porto de Traz in the city of Itacare (Bahia). From my own experience of choreographer mobilized by issues of social segregation, the study develops articulating testimonies collected contextual and historical data, with the notions of co-implication between body and environment (Britto, 2008), urban bodygraphy (Britto and Jacques, 2008, 2010) and desecration (Agamben, 2007), to show how the BichoCaçador transgresses (from the name) the rules of coexistence and occupation of urban space, by its use unsacred spatial segregation, socio-economic and ethno-cultural force in the city.It is intended, therefore, suggest that dancing can be a kind of critical action, diversion or resistance to hegemonic models of thought and behavior promoters spectacle - which will be called role of political activism.

Keywords: Dance, Urban atmosphere. Co-Implication. Political activism.

Este artigo é um recorte da pesquisa que foi desenvolvida no programa de pós-graduação de dança da UFBA. O presente artigo procura demonstrar que esta manifestação o Bicho Caçador é um exemplo de ideia de dança que cumpre uma função de desvio ou resistência profanatória, como diz Agamben (2007), aos modelos promotores da espetacularização – papel ao qual denominaremos ativismo político.

Tal propósito focaliza a manifestação o Bicho Caçador por tratar-se de um ato de resistência à segregação socioespacial, instaurado pelas ações de dança. As ca-racterísticas peculiares desta conjuntura serão analisadas a partir das relações de coimplicação entre corpo e ambiente descrita pelas autoras Fabiana Dultra Britto e Paola Berenstein Jacques (2008, 2010) como corpografia urbana.

A noção de corpografia como um “processo de configuração recíproca entre cor-po e ambiente” (BRITTO; JACQUES, 2008, 2010) pode ser entendida como um modo de tomar consciência de si em seu lugar, ou seja, da sua própria situação. Corpografia urbana é a própria síntese da interação do corpo urbano com o corpo do cidadão. Dessa interação o corpo nos apresenta a sua corporalidade, ou seja, a configuração de sua experiência da cidade, sua grafia urbana. Cor-poralidade como resultante do processo de relacionamento do corpo com tudo o que compõe seu ambiente (as condições relacionais), que se expressa como corpografia, configuração deformulação em uso – elaborada pelo uso.

A corpografia é a cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia)ou seja, parte da hipótese de que a experiência urba-na fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta,e dessa forma também a define, mesmo que involuntariamente.(BRITTO; JACQUES, 2003, p.79)

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E que o estudo das relações entre o corpo e a cidade pode nos mostrar pistas, nos apresentar micropolíticas, desvios ao processo de espetacularização das cidades contemporâneas.

A cidade

“A revolução urbana” chega em Itacaré com o turismo, com a finalização da es-trada BR 001 em 1998. Transformações geoeconômicas começam a acontecer neste município, até então uma sociedade predominantemente rural, 14 anos mais tarde apresenta um alto salto, a urbanização prevalece apresentando um aumento do índice de concentração populacional na sua sede. (COUTO, 2007) A cidade desenvolveu-se de forma abrupta. A corrida imobiliária, com os seus preços altíssimos, empresários de diferentes localidades, mais especificamente vindos do Sul – com o padrão de vida elevado, instalam-se na cidade à procura de uma vida mais tranquila para investir nos seus belos e luxuosos empreen-dimentos (resorts, pousadas, restaurantes etc.). Imaginou a cidade de Itacaré como um lugar de estabilidade, de pessoas tranquilas a partir do progresso tu-rístico? Esta ilusão popular fica mais cristalizada quando se tem em conta toda a potência ambiental com suas cachoeiras e rios, praias com diferentes atrativos, mata atlântica, mangue, modo de vida pesqueira, quilombos e ações socioam-bientais. Pode-se ver que as relações sociais são mais complexas e confusas ao que é mostrado nas agências de viagens como venda nos seus pacotes de turismo, como também os seus terrenos espalhados pela cidade.

Espaços que antes que serviam como ponto de encontro não há mais na ci-dade, a exemplo disso a Praça São Miguel – ora está interditada, ora está em obras, e com isso já se vão seis anos. Na gestão do governo Jarbas (2000 a 2008), foi proposto um projeto do Governo de Estado para a revitalização da praça e da orla. Porém, o ex-prefeito Jarbas não aceitou esse projeto. E com verba do município, sem nenhuma consulta pública, colocou abaixo toda a pra-ça municipal, no calar da noite, tendo em suas mãos um projeto arquitetônico para essa praça.

Durante este período houve um movimento organizado pelo grupo da terceira idade, junto ao Ministério Público, que embargou a obra. A praça, alvo de tantos comentários, choros, belas e tristes lembranças, na gestão do atual prefeito An-tônio de Anísio, teve a sua obra iniciada, com o novo projeto, que não foi 100% concluída, esse novo projeto tem a aprovação do Ipac.

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Essa praça era o ponto de encontro de muitas pessoas, mesmo em sua constru-ção inicial tendo um modelo importado, sem nenhuma relação com a história da cidade, fala de um morador do Porto de Trás, Valmilson dos Santos:

[...] tinha um coreto, mas nunca houve neste espaço discursos políticos ou decisões referentes à cidade construídos juntos com a população, e decisões de guerra, etc. O famoso pirulito, tão falado, não tinha utilidade nenhuma, era um monumento deixa-do pelos jesuítas para marcar e indicar aos navegantes o seu domínio territorial [...]2

O que está na memória corporal da população do bairro do Porto de Trás em relação a esta praça é a segregação espacial na época dos veranistas, entre as décadas de 1960 a 1980. Pois os moradores deste bairro não se sentiam à vontade em circular pela praça, não se sentiam pertencentes a ela, à cidade. Ficavam afastados na balaustrada da Igreja, que dava acesso para ver de cima e de longe todo o movimento da Praça São Miguel.

O bairro

O processo de turistificação urbana em uma cidade tende à borrar os traços culturais das localidades onde este fenômeno aporta, a permanência das singu-laridades; e a organização do bairro do Porto de Trás fez com que essa área se tornasse um símbolo de resistência cultural dos novos tempos citadinos. O que nós podemos ver é uma tentativa dos órgãos do turismo de rotular o bairro do Porto de Trás a ser reconhecido no imaginário urbano como o guardião da “ver-dadeira cultura nativa” da cidade de Itacaré. Porém, o que vimos é uma ma-nobra para o esquecimento de todo o processo de rejeição e falta da assistência do poder público no bairro do Porto de Trás. Pois, no passado, durante o auge da culturado cacau, este núcleo de ocupação tinha suas representações como lugares, remetidos ao espaço de moradia dos negros, ex-escravos, servidores dos senhores do cacau. A geografia deste confinamento se revela na própria posição que ocuparam dentro do espaço urbano. Enquanto os brancos ricos ou remediados do lugar se fixaram na região do centro, próximo a Igreja e construí-ram seus casarões na colina ou beira-mar, os pretos e pobres elevaram suas casas de taipa numa área sucessiva beira-rio, num espaço de sombra, invisível à vigilância e abastança dos primeiros.

Esta segregação racial, social e econômica, explicitada na própria configura-ção do espaço urbano em suas áreas de confinamento e interação social, foi 2 Caderno de campo 23/9/2011.

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condição para a constituição da corporalidade dos moradores do Porto de Trás, caracterizando suas corpografias urbanas, conforme explicam as autoras Fabia-na D. Britto e Paola B. Jacques (2008). Portanto, não se trata da preservação de práticas culturais por uma situação de isolamento, mas sim de uma memória coletiva e coimplicada na construção de referenciais a partir do meio urbano e amparados nas relações de pertencimento, exclusão, segregação e interação entre os moradores do bairro e os demais habitantes da cidade.

A configuração e a argumentação que se articulam em torno do Porto de Trás têm como características um espaço comum a famílias negras que se uniram por alianças matrimoniais até constituírem uma coletividade.

A própria geografia do bairro do Porto de Trás contribuiu para a organização desta população. Nesta área de ocupação, os diálogos e as ações culturais se fortalece-ram. E o que ocorreu foi uma continuidade da apropriação dos fazeres locais, tais como: o samba de roda, a dança davolta da jibóia, o Bicho Caçador, a capoeira e as festas de São João, todas essas ações são voltadas para a população do bairro.

O bicho

O Bicho Caçador: um cortejo que percorre as ruas de Itacaré. Uma meia lua se forma em frente da casa onde a dança acontece, os dois bichos e o caçador entram na casa e todos em volta esperam a saída dos bichos e do caçador para o confronto; e em meio a essa espera o que sustenta o grupo que acompanha o cortejo é o samba duro. Neste caminhar pelas ruas da cidade, o bater das pal-mas, as cantigas e o toque do timbau compõem este cortejo. A formação básica do cortejo inclui três timbaus, quatro pandeiros, um agogô e um reco-reco, um caçador, dois bichos e os responsáveis pelo samba e canto. Todos os partici-pantes são moradores do Porto de Trás e todos que queiram seguir esta prática social (uma caminhada dançante pelas ruas do centro de Itacaré). O Bicho Ca-çador é uma festa que acontece no mês de janeiro no município de Itacaré/BA. Não há registros escritos até então, toda a organização desta manifestação foi transmitida de forma oral. Porém, sabe-se que houve muita resistência dos mais velhos em transmitir seus conhecimentos para os mais novos por medo ou até mesmo por conta da discriminação que sofreram anteriormente por residirem no bairro Porto de Trás, por serem negros e por terem uma baixa condição socioe-conômica. Hoje, o que se vê é uma nova e diferente atitude que se observa nos habitantes participantes. Há um grupo responsável por toda a parte criativa que estimula os novos sucessores deste encontro.

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O sentido no Bicho Caçador não é simplesmente ir para rua, é a valorização do nome do bairro do Porto de Trás que é exposta. São esses corpos que invadem, que atravessam as ruas da cidade. São os modos de se dançar deste bairro que é posto em visibilidade. É a impressão dessa dança que fica marcada na memória da cidade, nos corpos que dançam e de quem acompanha essa ma-nifestação. Pois esta característica profanatória, no sentido de “uso” proposto por Agamben, de criar, produzir suas próprias festas e encontros tendo relação direta com o espaço público, podemos ainda encontrar no bairro Porto de Trás e um pouco no bairro do Marimbondo, porque esta prática social não se limita só a este bairro.

Todos do cortejo, a população do bairro, com sua ala de músicos e os interes-sados, seguem o pilar – os dois bichos e o caçador –, desse encontro popular que dança em frente às casas e se configura como o Bicho Caçador. Não há lugar preferencial, a composição é caminhar nas ruas no ritmo acelerado, um tanto agressivo. É possível ver crianças por todos os lados, as senhoras indo de mãos dadas com seus filhos e/ou amigos para darem suporte e ajudar no seu deslocamento. Grupos cortam caminhos para chegar perto dos bichos e do ca-çador. Muitos já não podem acompanhar por conta do ritmo e ficam à esperano bairro Porto de Trás para verem o combate final e o samba. Existem as casas que frequentemente o Bicho Caçador dança, mas ninguém sabe ao certo o ro-teiro. A cada ano, o percurso muda em razão do horário de saída e embriaguez dos participantes. Dependendo da hora, muitas casas já estão fechadas e seus moradores já recolhidos para dormir. Pode acontecer também de a organização mudar a casa durante o cortejo ou alguém pedir para que isso ocorra. Todos-da organização ficam muito atentos a esta caminhada dançante. Neste jogo de brincadeira, os moradores de Porto de Trás estão vigiando, estão atentos, pro-tegendo os dois bichos e o caçador – os mascarados, para que nada de errado aconteça.

O campo dessa manifestação é a própria cidade de Itacaré. Essa organização parece pequena e restrita a um bairro, mas ainda assim, neste compasso íntimo, o estar junto é confrontado por desafios monumentais. A população do bairro Porto de Trás, com esta manifestação, convence-nos de que tais desafios de estarmos junto são válidos; e coloca em xeque o tão complexo “o que é” e “como foi a relação dos dominantes com os dominados em Itacaré”.

[...]Muitos pensam que o Bicho Caçador tem só a conotação da natureza, entre o caçador e o bicho, estes personagens. Para mim vai além. Vejo uma relação ancestral, até sobre as histórias também dos escravos, do homem negro sendo

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escravizado, acho que tem este significado, que está intrínseco, que fica mais subjetivo, pois é uma manifestação forte, e por trás da cultura, da dança e da brincadeira existe um pouco de protesto. Quando cheguei aqui eu não tinha idéia da dimensão da dificuldade de aceitação das pessoas daqui com as pessoas de fora. Eu não percebia isto. Com o tempo, eu fui percebendo, sim que existe uma dificuldade de interação [...] (Informação Verbal)3

A característica incomum na Manifestação do Bicho Caçador está na construção dos seus personagens que dançam: os dois bichos e o caçador. Poderíamos imaginar uma caçada planejada com todos os suportes para o caçador (repre-sentando o poder hegemônico) capturar o bicho (representando a resistência) o mais fácil/frágil possível. O que nós encontramos é um combate intenso a cada casa em que esta manifestação passa. O bairro rasga a cidade oferecen-do o livre-arbítrio para todos os que veem a opção de seguir, ou de participar, ou de ignorar essa manifestação. Os padrões vão se quebrando aos poucos. O encontro não acontece durante dia, no clarão do sol, na potência maior da visibilidade espetacular, só acontece à noite. Isso está relacionado com o regi-me de visibilidade tratado por Didi Huberman ao se referir aos vagalumes como resistência:

[...] Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atra-vessado por lampejos. No centro da luz, como nos querem fazer acreditar, agitam-se aqueles que chamamos hoje e hollywoo-diana antifrase - alguns poucos people, ou seja, as stars - as estrelas, que como se sabe, levam nomes de divindades - sobre as quais regurgitamos informações na maior parte inúteis. [...] Mas, nas margens, isto é, através de um território infinito, mas extenso, caminham inúmeros povos sobre os quais sabemos pouco. Logo, para os quais uma contrainformação parece sem-pre mais necessária. Povos-vagalumes, quando se retiram na noite, buscam como podem sua liberdade de movimento, fogem dos projetores do ‘reino’, fazem o impossível para afirmar seus desejos, emitir seus próprios lampejos e dirigi-los a outros. (DIDI-HUBERMAN, 2011. p.155)

Por exemplo, a cidade neste momento está no comando do bairro do Porto de Trás – “É noite! Vumbora!”. O ambiente vai testá-lo no objetivo de alterá-lo.

A manifestação do Bicho Caçador apresenta ruptura em diversos padrões: a própria descontinuidade do seu roteiro, a embriaguez, o modo agressivo e a par-ticularidade de dançar etc. Muitas casas ficam à espera para recebê-lo e, muitas vezes, essa expectativa não é cumprida. O sentido de ambiente é diferente do 3 Caderno de campo, depoimento - Juliana Machado, 2011.

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santuário, as pessoas se tornam vivas expondo-se, reconhecendo e dialogando com partes discordantes.

Qual o valor de uma crítica dessas para nós que habitamos ci-dades cheias de contradições étnicas, sexuais, etárias e de clas-se? Como a sociedade multicultural pode precisar de desenrai-zamento, ao invés de segurança e conforto? (SENNETT, 2003, p.286)

O que aparece nesses corpos que dançam e compõem o Bicho Caçador não é mais do que a tenacidade de um projeto, uma força de um desejo de imprimir seus movimentos na tão estratificada cidade de Itacaré.

Modo de participação

Na composição do Bicho Caçador há diferentes papéis que se apresentam nesta caminhada dançante. Temos o caçador, com uma certa perspicácia que demons-tra o desejo de capturar a sua presa, representando assim o poder hegemônico. Em seguida, vêm os dois bichos que trazem para a cena o “tremer”, como um design próprio de corpo e movimento por conta da vestimenta. A instabilidade dessas suas movimentações, sugerindo uma tensão entre a relação dos domi-nantes com os dominados estabelece assim as bases do confronto. No decorrer desta caminhada, pode-se ver “acompanhantes-protetores” do Porto de Trás que vigiam este pilar. Estão ali para protegerem principalmente os bichos, tomando conta das vestimentas e atentos às necessidades deste trio. Eles se camuflam no meio do aglomerado, correndo e dançando com os demais. Os moradores das casas que se abrem são os apoiadores, cada um contribui a seu modo para a continuidade deste encontro. E é no espaço privado dessas casas que o pilar se reoganiza, se prepara para o combate no espaço público e, ao mesmo tempo, esses moradores juntam-se com os habitantes dos outros bairros e turistas para correrem, dançarem, verem o caçador e os bichos confrontarem entre si.

Nesta composição não há “espectador”, com um espaço reservado, separado, o que existe é um “corpo” de participantes assim composto: os “acompanhantes-protetores” do bairro do Porto de Trás, os moradores das casas que se abrem, os habitantes dos outros bairros e os turistas. Este cortejo requer a participação corporal deste “corpo”, pois além de ser seguido, o cortejo requer que se veja, que se movimente, que se cuide e, em última análise, que se dance. Percebe-se a espontaneidade da composição na sua estrutura. Essa prática social tem como princípio a ação participativa pela ideia de coletividade anônima, incorporada nos habitantes do bairro do Porto de Trás. Como o aglomerado segue o pilar com

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uma certa dispersão, as pessoas dançam sozinhas, mas como um grupo coeso. O corpo se apresenta não como suporte, mas com a possibilidade de descoberta da experiência do próprio corpo.

O campo de participação oferecido pela dinâmica do acontecimento estabelece uma coautoria deste “corpo” citado acima, juntamente com os organizadores, o caçador, os bichos e os moradores do bairro. Todo o processo da sua construção e a dinâmica da sua evolução nas ruas do centro da cidade mostram a importân-cia deste poder compartilhado em torno dos valores que são defendidos nesta manifestação, a exemplo da heterogeneidade das funções; da maneira da dança ser inventada no instante em que acontece; do roteiro não definido mas a se construir durante a sua realização, da espontaneidade corporal, do anonimato.

A ideia de participação vigente no Bicho Caçador compõe um bloco com todos os envolvidos, nos seus diferentes níveis de envolvimento neste ambiente e di-ferentes escalas de temporalidade deste envolvimento.

Considerações finais

Ainda que consideremos o fenômeno turístico como uma lógica de consumo hegemônica que reforça o modelo urbanístico de espetacularização das cidades e que provoca mudanças avassaladoras em quase todas as sociedades onde aporta, é preciso observar que nem todas as mudanças implicam apenas num processo de descaracterização das culturas locais. No caso do Porto de Trás, o turismo, decorrente da construção da estrada, provocou a reconfiguração do es-paço urbano e acirrou a resistência mediante as novas copresenças, ao mesmo tempo em que possibilitou novos processos de organização social. São essas organizações em torno de atividades coletivas que permitem a atualização e identificação dos legados culturais locais e desafiam as normas segregatórias cotidianas dos espaços públicos.

Que não se pense que o reconhecimento e a visibilidade tornaram os morado-res do Porto de Trás menos atentos. As modificações vindas pelo turismo não apagaram as lembranças da segregação socioeconômica sofrida por mais de um século, mas é fato que parecem mais convictos ou conscientes do diferencial que construíram. Pois elaboraram práticas de sobrevivência, formas de sociabi-lidade e ações criativas com recursos disponíveis à sua volta – aqui, compreen-didas como consciência política da diferença. É a construção de um outro saber, de uma outra dança.

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Segundo Ana Clara Torres Ribeiro, “entre as resistências, incluem-se as práticas sociais que buscam garantir a circulação e a permanência do Outro nos espaços públicos”. (RIBEIRO, 2004 apud JACQUES, 2011, p. 297)

Neste estado de captura hegemônica do Outro, tudo que se cria serve de merca-doria, objeto isolado em si, um total monitoramento de assédios. Olhamos para o Bicho Caçador e ele nos oferece uma “sismografia” íntima de uma parte da história política de Itacaré, na medida em que “[...] não propõem uma representa-ção realista da realidade, mas que não deixam de lançar uma luz particularmente sobre a realidade de onde elas são provenientes.” (KOSELLECK, 1981 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 137) As experiências vividas na cidade de Itacaré tornam-se, através do Bicho Caçador, imagens, percursos e experiências produ-zidos a partir das memórias e rastros dessas vivências. Não podemos renunciar a observar com os nossos olhos em direção a esses ambientes improváveis das cidades contemporâneas.

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Alteridade e autonomia: um outro discurso da dança

Vivian Vieira Peçanha Barbosa (UFU)1

Resumo

Com os temas da inclusão, da diversidade e da tolerância ocupando lugar de destaque, seja no rigor do meio acadêmico ou no cotidiano e na mídia, torna-se relevante propor uma reflexão mais profunda sobre a relação dialética entre as forças do coletivo e a lógica do fortalecimento da individualidade. Ao considerar-mos que a experiência da dança se dá, quase que exclusivamente, dentro de processos coletivos, como dar destaque à autonomia e à singularidade de cada indivíduo? E, ao mesmo tempo, como dar destaque à singularidade e à indivi-dualidade, sem perder de vista a inserção do indivíduo em um corpo coletivo, em sua relação com os outros? Tendo como norte a Teoria Crítica de Theodor Adorno, percorremos as projeções dos conceitos de autonomia e alteridade para meditar sobre a dança e a construção de um pensar-fazer artístico e formativo e a invenção de novas corporeidades e modos de compartilhamento de experiên-cias, que levem a discursos outros, de não identidade e de inadequação.

Palavras-chave: dança, alteridade, autonomia.

Abstract

With the themes of inclusion, diversity and tolerance occupying a prominent position, either in the rigor of academia or in daily life and in the media, it becomes relevant to propose a deeper reflection on the dialectical relationship between the forces of collective and the strengthening individuality logic. When we consider that the experience of dance occurs, almost exclusively, in collective processes, how to give prominence to autonomy and uniqueness of every individual? And, at the same time, how to give prominence to singularity and individuality, without losing sight of the insertion of the individual into a collective body, in his relationship with others? Having as north the Critical Theory of Theodor Adorno, we have travelled the projection of his concepts of autonomy and otherness to meditate on the dance and the construction of an artistic and formative thinking-doing and the invention of new corporealities and ways of sharing experiences, leading to others speeches, of non-identity and inadequacy.

Keywords: dance, otherness, autonomy.

1 Professora Assistente no curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Uberlândia. Mes-tre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense, e bacharel em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Existem, pelo menos, duas maneiras de pensar a alteridade. A primeira, a partir do reconhecimento do eu, diz que o outro é tudo o que não sou eu. (LALANDE, 1996) A segunda, que corresponde à articulação feita por Theodor Adorno, prin-cipalmente na Dialética do esclarecimento (1985), trata a alteridade como tudo aquilo que não se identifica e não se adapta ao que está posto: a alteridade é o que se diferencia em um sistema vigente de valores. Ou seja, a alteridade pode estar não somente nesse outro externo a mim mesmo, mas também no próprio eu. Assim, aquele que não sou eu não necessariamente configura alteridades, bastando, para tal, que o sujeito suprima as diferenças em seus atos, pensamen-tos e modos de existir.

A alteridade, enquanto não identificação com o existente, as regras gerais e os consensos, é parte da natureza interna e externa ao ser humano. No âmbito da dança, podemos pensar em vários exemplos dessa não identificação: os bióti-pos que não se adaptam, os modos de pensar, organizar e produzir a dança, as crenças e valores, as propostas estéticas, as origens socioculturais que não se adaptam. Tudo o que, de alguma forma, não se adapta, é o “outro”; e o embate entre a criação e a supressão desse “outro” perpassa grandes discussões sobre a dança e as artes de maneira geral. Basta lembrarmos, para citar um exem-plo muito emblemático, que o governo nazista acusou toda arte de vanguarda produzida na época – e que não se adaptava ao ideal neoclássico de beleza – de arte degenerada, realizando exposições destas “manifestações patológi-cas” com obras de artistas como Wassily Kandinsky, Piet Mondrian e Paul Klee. Muitas das obras foram confiscadas e destruídas com o apoio de leis específi-cas instituídas pelo Partido Nazista – que levou a supressão das diferenças às últimas consequências.

Assim, para compreender esse “outro” em Adorno, é necessário pensar na exis-tência de uma força coletiva e de um conjunto de crenças e valores universais previamente colocados por um sistema que, em sua compulsão por identidade, pasteuriza e homogeniza tudo aquilo que poderia acontecer por fora dos circui-tos e do modus operandi. Essa força identificatória suga e enquadra mesmo a arte mais autêntica, que escapa aos procedimentos e códigos-padrão, mas que, por uma via ou outra, vai caindo nos moldes da chamada Indústria Cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), que se constituiria como um dos modos de dominação e de supressão das diferenças. Tal supressão, criaria as condições objetivas para a barbárie, pois é “a necessidade de uma tal adaptação, da iden-tificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, [que] gera o potencial totalitário.” (ADORNO, 1995, p. 43) A necessidade de dominação e controle do que está fora, do que escapa à regra, do que não se adapta, é a

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necessidade de “exorcizar” o desconhecido e, por fim, excluí-lo. E é no caráter acentuadamente dogmático atribuído ao binômio ciência e técnica, que esse controle encontra seu principal ponto de apoio, em nossa sociedade “esclareci-da”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985)

A sociedade tecnificada reduziu drasticamente o espaço de li-berdade dos indivíduos na medida em que quase tudo passou a ser mediado pela técnica. Decorre desta perspectiva que, tan-to os aspectos materiais da existência, quanto os aspectos hu-manos e sociais propriamente ditos, passaram a ser objeto da investigação científica, do controle administrativo e da planifica-ção social geral. (PALANCA, 2005, p. 58)

É impossível não pensar, aqui, no crescimento e solidificação da dança dentro das universidades brasileiras, e nas implicações da adoção do discurso científico que vem legitimando uma gama muito diversa de saberes – note-se as Humani-dades que se tornaram “Ciências Humanas” a partir do século XIX em busca de um atestado/estatuto de cientificidade – e na adoção dos discursos da eficiência técnica. Por outro lado, se a dança, em seu saber-fazer, se constitui inevitavel-mente enquanto técnica, como propor nestas práticas e formas de organizar o corpo e o movimento uma poética de alteridades? Seria possível estruturar a dança de modo menos dogmático? Seria possível formar sem formatar? Existiria um outro modo de compreender a própria técnica?

A dificuldade de pensar a técnica em dança também como modo de produção de alteridade está atrelada à visão de que a técnica funciona sempre como um modo imutável e fechado e quase nunca um modo transitório e aberto de fazer e pensar a dança. As tradições de dança padecem com esta perspectiva, e, muitas vezes, não se dão conta de que é no ato de abraçar a incerteza, a contradição e a reflexão, que as próprias tradições podem se transformar e, assim, continuar em um movimento não só de repetição, mas de diferença.

Olhar a técnica, seja ela qual for, como um processo aberto e criativo significa que, ao mesmo tempo em que se fornece bases para diversas organizações corporais, se cria espaço para o pensamento crítico, que coloca em questão os consensos. A técnica colocada como mera formatação do corpo e dos movimen-tos dentro das limitações de um determinado modelo não oportuniza, ou pouco oportuniza, a existência desse “outro” que se configura em corporeidades hete-rogêneas. Daí a necessidade e a busca dos bailarinos contemporâneos por uma formação em diversas técnicas fechadas: para oportunizar a heterogeneidade, abrir brechas para o pensamento crítico e para as escolhas estéticas e éticas individuais.

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Os valores impostos por estes modos tão fechados de fazer vão fabricando cor-pos “limpos” de sua heterogeneidade: “um corpo ideal no qual toda subjetividade seria dissolvida em proveito de uma dança absolutista” que também nega ao es-pectador, em um segundo momento, “a existência de outros valores, outros sen-tidos”. (GINOT; LAUNAY, 2003) Como em um ciclo, a formação afeta a criação, que afeta a produção, que afeta a fruição, que, por sua vez, afeta a formação. Há sempre o perigo da técnica que dita o projeto estético, como se ela fosse um fim em si mesma, impossibilitando outros discursos sobre o corpo, o movimento, a dança. Por isso, a produção de alteridade, de ruptura dos consensos, e da pro-blematização das tradições deve ser pensada em todas as instâncias da dança.

Adorno enfatiza que, o olhar para esse “outro” – e sua não supressão – se torna possível pela via crítica. E, por esta via, também se torna possível valorizar as sensibilidades individuais, promovendo a saída do si interior em direção ao ex-terior, sem submeter o primeiro ao segundo e vice-versa. Torna-se fundamental pensar esse trânsito, visto que, tanto os processos artísticos como os processos educacionais em dança (que deveriam acontecer de modo inseparável) se dão em um âmbito coletivo. Nesse sentido, o sujeito, no ato da não adaptação, pro-duziria alteridades, tornando-se um indivíduo crítico na relação com os “outros” de si e com os “outros” externos a si mesmo. Por esta via de tensões, o conceito de alteridade está diretamente ligado à questão da autonomia em Adorno.

Para o autor, a autonomia existe pelo fortalecimento do indivíduo frente ao poder do coletivo, pelo pensamento crítico. Pensar o próprio pensamento vira condição para a autonomia. Tal engajamento coloca o próprio sujeito como produtor de alteridades, já que a lógica da sujeição diante dos processos coletivos de per-petuação do sempre-idêntico pode, então, ser quebrada. Pensar a alteridade e a autonomia na dança significa deslocar a figura do bailarino que só faz – e não fala e nem pensa – e colocá-la, como já vem sendo proposto há algum tempo, em um lugar diferente, no qual a construção e a articulação críticas são funda-mentais. Aqui se torna possível olhar para fora e para dentro de si e ver o mundo não como algo dado, acabado, conceituado genericamente dentro dos discursos vigentes e, portanto, diminuído por olhares únicos e universalizantes. Pensar o pensamento da dança pressupõe colocar o que está posto em questão.

No entanto, o que é absolutamente diferente escapa de forma apavorante ao pensamento. Por isso, e muitas vezes, o diferente não se enquadra na ótica universalizante que conceitua para determinar e dominar, e tende a ser excluído. Adorno e Horkheimer (1985) acreditam que a origem desse medo do “outro” está no medo que o homem possui da própria natureza e que só é superado histo-

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ricamente pela dominação desse “outro”, no caso, a natureza. Entretanto, esse “outro”, sujeito à dominação do homem, não lhe é totalmente diferente, pois, o próprio ego, enquanto natureza interior que também é, não pode se constituir num alter de si mesmo. (PALANCA, 2005, p. 47- 48) Decorre disso, que o domí-nio do homem sobre a natureza, implique, necessariamente, também o domínio de si próprio – de sua natureza interior.

Adorno e Horkheimer (1985) defendem que, esse domínio do “outro” se deu, primeiramente, pela criação dos mitos e, depois, pela invenção da ciência como derivação da explicação mitológica. Os autores concluem que a promessa ilumi-nista de emancipação do homem pela razão é falha, pois a razão vem servindo como instrumento de autopreservação e de perpetuação do sempre-idêntico pelo distanciamento analítico e pelo reducionismo explicativo. A vontade de permane-cer o mesmo supõe uma visão tão uniformizada, sistematizada, burocratizada e administrada do mundo que justifica a adaptação à tudo aquilo que acontece e à religião do fato consumado.

Colocar-se diante do mundo tentando se despir de todos os à priori colocados pelos consensos, pelos conceitos filosóficos ou científicos, torna-se uma atitude política: talvez assim não percamos a capacidade de nos relacionar realmente conosco e com o mundo, com algo efetivamente exterior, para além da realidade representada por um discurso oficial que não comporta e nem tolera a diferença.

Essa intolerância aos “outros” do mundo – e de nós mesmos – é replicada em processos formativos respaldados por conceitos totalizantes e desenvolvidos como receituário técnico-instrumental, chamados por Adorno (1995) de semifor-mação. O empobrecimento e o travamento da experiência educacional “deve-se à repressão do diferenciado em prol da uniformização da sociedade administra-da, e à repressão do processo em prol do resultado, falsamente independente, isolado.” (ADORNO, 1995, p. 25) Tais processos levariam à heteronomia e não à emancipação, e criariam as condições objetivas para a barbárie, contrariando a primeira e principal exigência adorniana para a educação: que Auschwitz não se repita! (ADORNO, 1995, p. 119)

A questão da autonomia na própria criação artística também é pensada na Teoria Estética de Adorno (1970). Na ausência de conceitos prévios e na recusa de nor-mas universais, a obra individual almeja conseguir um conceito próprio. Da mes-ma maneira, a arte que não se submete a um dado estilo, mergulha na busca de seu estilo próprio. A arte pode se colocar como “uma crítica radical pelo particular ao universal”, se esforçando por alcançar “sua coerência interna própria inde-

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pendente de fórmulas que antecipem uma resolução formal garantidora de sua identidade.” (FREITAS, 1996, p.35) As artes autênticas, para Adorno (1970, p. 13) “não podem classificar-se em nenhuma identidade ininterrupta da arte” e são interpretáveis apenas “pela lei do seu movimento e não por invariantes”.

Pelo viés da contradição, da dissonância, da fragmentação e da incoerência, a arte pode se constituir como unidade formal, assim como o próprio pensamento. Nesse sentido, Adorno sugere a subversão dos sistemas teóricos totalizantes e pensa em contradição e fragmentação também para acessar os objetos de aná-lise, enfatizando a impossibilidade de vislumbrar a totalidade de qualquer coisa. O conceito, para Adorno, nunca dá conta do objeto a que se reporta; ele é sem-pre parcial e apresenta apenas uma dentre tantas outras interpretações possí-veis. A partir dessa perspectiva, Adorno busca desenvolver um conjunto de con-ceitos que envolvam o objeto, uma “constelação”2 que gera uma tensão dialética entre estes diversos conceitos e o objeto, e entre os conceitos em si. Ao desvelar outras facetas de um mesmo objeto, cria-se, então, uma tensão que promove a ruptura com o pensamento identificatório advindo da visão restrita inerente aos consensos apoiados tanto pela especificidade do método científico como pelo pensamento filosófico tradicional. Surge, para o indivíduo e consequentemente para o seu fazer e pensar artísticos, uma possibilidade de abrir caminho para o diferente, para o complexo, para o singular, para a alteridade.

Tanto a leitura como a construção das constelações e seus campos de força devem tensionar as diversas estrelas (a saber, os conceitos e suas configura-ções), a partir das forças que emanam do tempo presente. Adorno, ao contrá-rio de Platão (para quem o mundo das Ideias é imutável), dá destaque, assim, ao efêmero e ao transitório – características tantas vezes atribuídas ao próprio movimento da dança. O ideal não é para ele o saber claro e distinto, mas sim a fidelidade à dúvida e à resistência dos objetos ao saber. Pela crítica aos grandes sistemas da filosofia e contra o desejo de construir dedutivamente um todo sem lacunas, Adorno prega um antissistema, pautado no trabalho das imagens com suas rupturas e descontinuidades: como num mosaico, a totalidade deve brilhar, num lampejo, apenas com base na visão de seus provisórios fragmentos. Essa seria a única fidelidade possível ao “todo”. Assim, o conceito cai de seu pedestal de onipotência e superioridade dentro dos sistemas, e esta queda é o que viabi-liza a própria crítica. O objeto pode, então, deixar de ser dominado pelo caráter ilusoriamente totalitário de seu conceito.2 Adorno traz a metáfora da “constelação” emprestada de Walter Benjamin, que a emprega pela primeira

vez em sua tese de Livre-Docência, publicada no Brasil sob o título de Origem do drama barroco ale-mão, na qual o filósofo alemão diz: “As ideias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas.”

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A primeira conseqüência para o exercício da filosofia, segundo a ótica adorniana, é que esta não comporta a idéia de totalidade (sistema). Observa Adorno que a dialética negativa é “um anti-sistema” que denuncia a impropriedade da identidade pressu-posta por Hegel entre o conceito e a coisa. (PALANCA, 2005, p. 82)

Cada estrela de cada constelação é um conceito que oferece uma visão parcial e provisória a partir do seu tensionamento com outros conceitos existentes. Faço um paralelo entre o pensamento constelar adorniano e a Teoria das Estranhezas, desenvolvida por Ued Maluf (2002), que admite a apreensão de um todo pela imagem de mosaicos (unidades complexas e abertas) que comportam ideias assimétricas ou até mesmo opostas entre si, em transformações sempre “sujeito dependentes”. (MALUF, 2000, p. 69) Aqui é possível contrapor uma objetividade excludente das alteridades ao princípio da não reflexividade ou da contradição, empregado na Teoria das Estranhezas. Ao invés de nos fundamentarmos na ideia de que, se A é igual a A, logo A não pode ser diferente de A ou igual a B; empregamos a ideia de que, se A é igual a A, A também pode ser diferente de A, e igual a B e C. Trata-se de um modo outro de abordar a ideia de sistema, mais condizente com as chamadas áreas Humanas, nas quais a existência de elementos diversos, singulares e até mesmo opostos na fluidez de suas transfor-mações é que dão corpo ao pensamento.

Apesar do posicionamento adorniano ser radicalmente contrário aos sistemas em si, ele admite a diferença entre “espírito de sistema” e “espírito sistemático”, pois o segundo, por não comportar a perspectiva de um fechamento em si, con-templaria a possibilidade de aberturas não limitadas. (PALANCA, 2005, p. 67)

Nesse ponto, enxergo a possibilidade de ver o Sistema de Análise do Movimento desenvolvido por Rudolf Laban, como uma das constelações possíveis (nunca a única) para acessar a dança, o corpo e o movimento, e que suas estrelas-concei-tos poderiam se tensionar e promover aberturas não limitadas e, com isto, gerar alteridade e estimular o indivíduo em sua autonomia, por um pensar-fazer crítico. Torna-se possível compreender o Sistema, via Teoria das Estranhezas, como um Mosaico instaurador de “[...]singularidades que remetem ao todo, mas um todo que não totaliza; que não submete a diversidade a uma homogeneização da identidade do um, sendo, simultaneamente, diferença e repetição.” (MOTTA, 2006, p. 38)

Esse tipo de abordagem torna possível, por exemplo, trabalhar as polaridades dos fatores de movimento na Eukinética labaniana, ou seja, os opostos, simulta-neamente no corpo. Isto significa que o corpo que dança pode estar em tempo

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súbito/urgente e em tempo sustentado, pode ser leve e firme, direto e indireto, livre e contido, ao mesmo tempo. Tais categorias ou conceitos pertencentes ao Sistema, a partir do tensionamento em constelação, irão se desvelar de modo singular para quem se põe a pensar-mover tais estruturas. Cria-se, então, um processo de fluidez, de movimento intérmino em suas particulares aplicações, a partir do qual os resultados se definem sem ser definitivos.

No entanto, isso não quer dizer que outras constelações seriam excluídas na construção do pensamento e do fazer na dança. Pelo contrário: se podemos enfatizar uma constelação particular para conceber a dança (seja na criação, na apreciação e/ou na formação), podemos também colocar outras constelações em tensionamento com a primeira.

Se no pensamento de Klauss Vianna, as oposições e a criação de “espaços in-ternos” se destacam na investigação de novas possibilidades de movimento (QUEIROZ, 2011, p. 72, 84), no Axis Sillabus,3 desenvolvido por Frey Faust, é pela ênfase nos encaixes ósseos e não pelo seu afastamento que se exploram os movimentos. São possibilidades diferentes de pensar e estruturar o corpo; possibi-lidades diferentes de acessar o próprio movimento. Do mesmo modo, o balé, o Tai chi chuan, a capoeira, formam outras constelações que não necessariamente são autoexcludentes, pois pensar o pensamento e trabalhar com o tensionamento das alteridades na dança implica em incluir as mais diversas formas de compreender o mundo, ao invés de negar às coisas a possibilidade de sua existência.

Mesmo a alteridade, tal como abordada em Adorno, só é possível porque existe o que está posto, os discursos vigentes, as identidades. Assim, a busca por um corpo “natural” em Isadora Duncan não faria sentido como produção de alterida-de se não existisse um corpo “artificial” como discurso oficial; se assim fosse, o corpo “natural” de Duncan seria mais um discurso hegemônico.

[...] não se pode substituir uma ideologia dominante por outra, mesmo que esta seja, em aparência, menos disciplinar. A hege-monia dos ‘corpos moles’ não é em nada mais satisfatória que a dos corpos vencedores ou virtuosos: o ‘release’ tem sua per-tinência em um regime de tensão, porque ele introduz a alteri dade, e porque vem minar a hegemonia de um modelo único de corpo e de gesto. (GINOT; LAUNAY, 2003)

A imagem da fita ou banda de Möebius – como o espaço torcido da lemniscatic band of knot concebida por Laban (1966: 98) – ajuda a pensar esse trânsito. Na fita de Möebius, uma única torção e conexão de uma superfície fazem com que 3 Sobre esta abordagem de movimento, consultar: FAUST, Frey. The Axis Syllabus: universal motor prin-

ciples. Human movement analysis and training method. Edited by Sebastian Grubb. 3rd edition, 2011.

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se alcance “o outro lado” estando ainda no “mesmo lado”. As dualidades, nesse caso, pertencem a uma mesma realidade oscilante e mutante, como também po-demos observar na imagem do Tai Chi representando a dialética do yin e do yang na cultura chinesa. Nos discursos e modos de pensar e fazer dança, sejam estes hegemônicos ou não, é possível vislumbrar o tanto de subjetividade que há na objetividade, o tanto de processo que há no resultado, o tanto de sentir que há na forma, o tanto de individualidade que há na coletividade e vice-versa. E perceber também como é possível deslocar essas categorias, redimensioná-las pela via crítica que enfatiza a contradição e não a solução apaziguadora e excludente.

Podemos evidenciar os “outros” de um determinado discurso da dança partindo de uma perspectiva na qual o objeto é sempre mais que seu(s) conceito(s), sen-do o conceito compreendido como formas ou modos de ser interpretados pelo pensamento. As relações de contradição e tensão entre os conceitos que se formam sobre um mesmo objeto – por exemplo, a noção de ritmo no movimen-to – revelam e apreendem, sempre parcialmente, uma realidade dinâmica que se contrapõe à realidade petrificada pelos consensos. Deste modo, é possível visitar também as tradições de movimento de uma outra forma e perceber que, pensar os pensamentos já instituídos sobre o corpo, o movimento e a dança, são atitudes não só de curiosidade, mas de insatisfação: são atitudes políticas.

A generalidade conceitual que promove o princípio da identidade sempre pode ser contrariada pelo jogo de tensão instaurado na formação de constelações conceituais que trazem à tona a incompletude, a insatisfação, a heterogênese, a fragmentação, a provisoriedade, o não idêntico – a diferença.

Viver a diferença e produzir diferença interrompe o processo social geral de indi-ferenciação – que nos torna frios, distantes e indiferentes a nós mesmos e a todo o mundo – que empobrece nossas experiências e nossas relações. E, quanto mais a alteridade se revela e se destaca nas bases e nas estruturas das coisas, e não em suas superfícies (como pseudodiferença), mais podemos nos tornar conscientes da diversidade e produzir nossa arte de maneiras diversas – inclu-sive nos processos formativos institucionalizados. Por esta lógica, o professor de dança pode se colocar como um incentivador de alteridades ao buscar a di-versificação de suas propostas, das estruturas de suas aulas, dos pensamentos que estruturam seus movimentos, sendo, ele mesmo, um explorador e criador de diferença. Assim, nos processos educacionais de compreensão e contextualiza-ção dos diferentes modos de construir pensamento e corpo na dança, torna-se possível abraçar a alteridade e a contradição como possibilidade de construção de si e do mundo.

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Se o sujeito se vivencia como projeto, se pode imaginar um fu-turo ‘outro’ que a situação por ele experimentada, ele vive na expectativa e, necessariamente, em uma situação de angústia latente. Mas está, também, em busca de sua autonomia, expec-tativa que, sendo a fonte de uma autocriação de si mesmo, exi-ge um descentramento, um distanciamento de si pela reflexão. (ANSART-DOURLEN, 2012, p. 35)

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