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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Daniela dos Santos Costa ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO Belo Horizonte 2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS · 2017. 6. 23. · Desse ponto de vista delimitou-se o objeto de estudo: as operações de interlocução, responsáveis pela construção

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Daniela dos Santos Costa

ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À

LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO

Belo Horizonte

2013

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Daniela dos Santos Costa

ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À

LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Universidade Católica de Minas Gerais

como parte dos requisitos para obtenção do grau de

Doutor em Letras, área de Linguística e Língua

Portuguesa.

Orientador: Prof. Dr. Milton do Nascimento

Co-orientador: Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira

Belo Horizonte

2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Costa, Daniela dos Santos

C837a Aspectos percepto-cognitivos no processo de interlocução à luz da

linguagem como um sistema complexo / Costa, Daniela dos Santos. Belo

Horizonte, 2013.

180f.: il.

Orientador: Milton do Nascimento

Coorientador: Marco Antônio de Oliveira

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Linguagem 2. Cognição. I. Nascimento, Milton do. II. Oliveira, Marco

Antônio. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Letras. IV. Título.

CDU: 800.1

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Daniela dos Santos Costa

ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À

LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO

Tese defendida publicamente no Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Católica de

Minas Gerais, área de Linguística e Língua

Portuguesa, aprovada pela seguinte Comissão

Examinadora:

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Milton do Nascimento (orientador) - PUC Minas

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira (co-orientador) - PUC Minas

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Marco Antônio Rodrigues Vieira - UNIMONTES

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes - UFOP

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Josiane Andrade Militão - PUC Minas

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Sandra Maria Silva Cavalcante - PUC Minas

Belo Horizonte, 04 de março de 2013.

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Aos meus filhos, Beatriz e Lucas, para que se mirem no

trabalho construído com esforço e dedicação.

A Cleber, pelo amor dedicado.

A minha mãe, Terezinha, pelo exemplo de coragem.

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AGRADECIMENTOS

A Universidade Federal de Viçosa por proporcionar este treinamento.

Aos professores Dr. Milton do Nascimento e Dr. Marco Antônio de Oliveira, pela

orientação.

A todos os professores do Programa Pós-Letras PUC-Minas, por contribuir para a

minha formação.

Às secretárias do Programa, Vera, Berenice e Rosária, pela dedicada atenção.

À FAPEMIG, através do programa PMCD, pela concessão da bolsa de estudos.

Aos informantes: Christiane, Cleber, Gerson e Valquíria pela importante contribuição

e pela generosa cessão de imagem e som.

A Humberto Jesus da Silva, pela inestimável contribuição na lida tecnológica e com os

programas de imagem e som.

A Heloísa Alves, pela revisão cuidadosa e pela leitura sagaz e caprichosa.

A Silvana Alves, pelo desprendimento por contribuir com a versão traduzida do

resumo.

A minha família, pelo conforto da companhia no dia a dia.

A Cleber, pelo estímulo, pela paciência de ouvir e pelos palpites sensatos nos

momentos complicados.

A Marilda, por proporcionar um ambiente ideal para o meu trabalho.

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(A vida) é um processo material, que peneira a matéria e desliza sobre ela como uma

onda estranha e lenta. É um caos artístico controlado, um conjunto de reações

químicas desnorteantemente complexo, que produziu, há mais de 80 milhões de

anos, o cérebro de mamífero que hoje, sob a forma humana, redige cartas de amor e

usa computadores de silício para calcular a temperatura da matéria na origem do

universo. (MARGULIS; SAGAN, 2002, p. 44).

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RESUMO

Neste trabalho, objetivou-se mostrar que propriedades características dos sistemas complexos,

como abertura, não-linearidade e dissipação podem ser encontradas nas operações de

interlocução e, por meio dessa confirmação, reforçar a tese de que a linguagem humana

obedece a princípios que a caracterizam como um sistema complexo biocultural auto-

organizador. Desse ponto de vista delimitou-se o objeto de estudo: as operações de

interlocução, responsáveis pela construção do locutor na relação enunciador-enunciatário

(EU↔TU). A fim de alcançar o objetivo proposto, analisaram-se os elementos linguísticos

apontados como organizadores da interação e do discurso, denominados marcadores

discursivos (MDs), considerando-se o modo de sua ocorrência no presente imediato da

enunciação. Efetuou-se essa análise através do registro, em áudio e vídeo, de um evento de

interlocução preparado cautelosamente para que se aproximasse de uma cena o mais

espontânea possível. Além disso, em pesquisa bibliográfica, procurou-se unir pontos

convergentes de diferentes áreas do conhecimento, propondo uma visão interdisciplinar para

abordar o fenômeno da interlocução que se manifesta pela interação do sistema da língua com

outros subsistemas que vão desde as condições intencionais mais subjetivas até os sistemas

mais objetivos como o tempo e espaço da interação. Constatou-se que as operações de

interlocução obedecem a padrões estruturais característicos dos sistemas complexos tanto em

sua base biológica, sensório-motora, quanto em sua base mental, conceitual-intencional.

Concluiu-se também que os textos simultâneos aos gestos, movimentos corporais e

modulação da entonação compõem um todo do qual vai emergir a significação.

Palavras-chave: Linguagem. Cognição. Interlocução. Sistemas vivos complexos.

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ABSTRACT

This work aimed to show that the characteristic properties of complex systems, such as

opening, nonlinearity and dissipation can be found in the operations of interlocution and,

through this confirmation, strengthen the thesis that human language obeys the principles that

characterize as a complex system biocultural self-organizing. From this view point, was

delimited object of study: the interlocution operations, responsible for the construction of the

speaker in relation enunciator-enunciatee (I ↔ YOU). To achieve the objective, analyzed the

linguistic elements identified as organizers of interaction and discourse, called discourse

markers (DMs), considering the manner of its occurrence in the immediate present of

enunciation. This analysis was conducted by recording, audio and video, from an event for

interlocution, carefully prepared, for approaching a scene as spontaneous as possible.

Moreover, in literature, sought to join converging points of different areas of knowledge,

proposing an interdisciplinary vision to address the phenomenon of interlocution that is

manifested by the interaction of the system of language with other subsystems ranging from

the most subjective to intentional conditions until the systems more objective, as time and

space of interaction. It was found that the operations of interlocution obey structural patterns

characteristic of complex systems in both its biological basis, sensorimotor and mental, and in

its base conceptual-intentional. It was also concluded that the simultaneous texts to gestures,

body movements and modulation of intonation which make up a whole will emerge

signification.

Keywords: Language. Cognition. Interlocution. Complex living systems.

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LISTA DE FOTOS

Foto 01 – Ângulo principal de captação da imagem .......................................................... 45

Foto 02 – Ângulo secundário de captação da imagem ....................................................... 45

Foto 03 – C recupera o turno coordenando fala e movimento corporal ............................. 49

Foto 04 – K toca braço de G ............................................................................................... 131

Foto 05 – C e CL olham K que domina o turno ................................................................. 139

Foto 06 – G levanta o braço para manter o turno ............................................................... 141

Foto 07 – C emite ah:: ........................................................................................................ 144

Foto 08 – C toca o braço de G ............................................................................................ 144

Foto 09 – C reintroduz o tópico uma carreta invadiu ........................................................ 145

Foto 10 – C ilustra o tópico ................................................................................................ 145

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LISTA DE ABREVIATURAS

C – Christiane (informante)

CL – Cleber (informante)

G – Gerson (informante)

K – Valquíria (informante)

CEL – Conversa espontânea livre

EU↔TU – Relação enunciador-enunciatário

MD – Marcador discursivo

OI – Operação de interlocução

SAC – Sistema adaptativo complexo

TSGN – Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais

Ŧ – Tempo e espaço enunciativo, presente enunciativo

(T/E)n – Tempos e espaços simbólicos

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SUMÁRIO

1 INTERLOCUÇÃO: BASE PARA A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO ............ 23 1.1 Introdução .................................................................................................................... 23

1.2 Organização da pesquisa ............................................................................................ 25 1.3 Justificativa .................................................................................................................. 26 1.4 Metodologia .................................................................................................................. 29 1.4.1 Objeto de estudo ......................................................................................................... 29 1.4.2 Percurso para a construção do objeto de estudo ...................................................... 31

1.4.2.1 Os componentes físico e simbólico do objeto ...................................................... 31 1.4.2.2 Interlocução: a ação no evento de interação ....................................................... 33 1.4.2.3 Análise da conversação e interlocução ................................................................ 34 1.4.2.4 A dinâmica interlocutiva ....................................................................................... 37

1.5 Objetivos ....................................................................................................................... 38 1.6 Opções metodológicas ................................................................................................. 40 1.6.1 Busca qualitativa do padrão ...................................................................................... 40

1.6.2 Em busca de um corpus ............................................................................................. 41

1.6.3 Definindo o corpus .................................................................................................... 42 1.6.4 O espaço físico ........................................................................................................... 43 1.6.5 A gravação ................................................................................................................. 44

1.7 Os dados ....................................................................................................................... 45 1.7.1 As amostras ................................................................................................................ 50

1.8 O que fica e por que fica fora da análise? ................................................................. 51 1.8.1 Critério para a seleção das ações .............................................................................. 52 1.8.2 As fronteiras das OIs ................................................................................................. 53

1.8.3 Natureza das OIs: matéria e movimento .................................................................. 53

2 O SER DE LINGUAGEM ............................................................................................. 55

2.1 Seres vivos .................................................................................................................... 55 2.1.1 Organização e estrutura ............................................................................................ 56

2.1.2 A vida em redes .......................................................................................................... 57 2.2 Sobre a condição de seres de linguagem .................................................................... 59 2.2.1 Arquitetura cerebral .................................................................................................. 61 2.2.2 Noções da Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais............................................... 63

2.2.3 Consciência ................................................................................................................ 65 2.2.4 Memória ..................................................................................................................... 68 2.2.5 Aparato sensorial ....................................................................................................... 71 2.2.6 Sistema motor ............................................................................................................ 72 2.2.7 Sensação e percepção ................................................................................................ 74

2.2.8 Emoção ....................................................................................................................... 76

2.2.9 Atenção ....................................................................................................................... 78

2.2.10 Crença e desejo ........................................................................................................ 79 2.2.11 Cognição: um processo global ................................................................................ 80 2.3 Construindo uma noção de linguagem ...................................................................... 82 2.3.1 Adotando perspectivas da linguística cognitiva ........................................................ 83 2.3.2 Linguagem atividade constitutiva ............................................................................. 85 2.3.3 Por que constitutiva? ................................................................................................. 86 2.3.4 Linguagem como objeto do mundo natural .............................................................. 89 2.3.5 Uma emergência no nicho biocultural ..................................................................... 92

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2.3.6 O componente cultural .............................................................................................. 93

2.3.7 As convenções sociais ................................................................................................ 97 2.3.8 Discurso e texto .......................................................................................................... 99 2.3.9 Evento e gênero ......................................................................................................... 100 2.4 Conversação ................................................................................................................. 102 2.4.1 Conversação e a conversa espontânea livre (CEL) .................................................. 102

2.4.2 Verbal e não-verbal ................................................................................................... 104 2.4.3 Organização da conversação ..................................................................................... 105 2.4.4 Interlocução ............................................................................................................... 107 2.5 A interlocução como um sistema complexo adaptativo (SAC) ................................ 108 2.5.1 Noções teóricas sobre complexidade ......................................................................... 108

2.5.1.1 Espaço fase ............................................................................................................. 109 2.5.1.2 Atrator .................................................................................................................... 110 2.5.1.3 A condição emergencial dos atratores na relação organismo-ambiente .......... 112

2.5.1.4 Abertura, não-linearidade e dissipação ............................................................... 113 2.5.2 A construção do espaço enunciativo ......................................................................... 115

3 INTERLOCUÇÃO: UM SISTEMA COMPLEXO..................................................... 117

3.1 Retomando o objeto ..................................................................................................... 117 3.2 Descrição das amostras ............................................................................................... 118

3.3 Ações componentes das OIs ........................................................................................ 129 3.4 Descrição individualizada das ações .......................................................................... 130 3.4.1 Contato físico ............................................................................................................. 130

3.4.2 Entonação .................................................................................................................. 132 3.4.3 Emissão de itens gramaticais e supragramaticais .................................................... 136

3.4.4 Repetição .................................................................................................................... 139 3.4.5 Expressão corporal .................................................................................................... 141 3.4.6 Narrativa .................................................................................................................... 142

3.5 A dinâmica interlocutiva ............................................................................................. 144 3.5.1 O padrão na organização da OI ................................................................................ 147

3.6 Abertura, não-linearidade e dissipação no processo interlocutivo ......................... 148 3.6.1 Abertura ..................................................................................................................... 148

3.6.2 Não-lineridade ........................................................................................................... 151 3.6.3 Dissipação .................................................................................................................. 152 3.7 Degenerescência nas operações de interlocução ....................................................... 154

3.7.1 A dimensão multimodal e cognitiva no processo de Interlocução ........................... 156

4 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 159

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 165

APÊNDICES ...................................................................................................................... 171

APÊNDICE A – Termo de cessão de imagem ................................................................. 172 APÊNDICE B – Notação para a transcrição .................................................................. 173 APÊNDICE C – Amostra 1 e Amostra 2 ......................................................................... 174 APÊNDICE D – DVD ........................................................................................................ 180

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1 INTERLOCUÇÃO: BASE PARA A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO

Neste capítulo pretende-se mostrar que a produção de sentido a partir dos textos

construídos na comunicação face a face tem recebido atenção dos pesquisadores da língua falada

no que se refere aos aspectos pragmáticos envolvidos na interação de linguagem. Estudos

indicam que a formulação dos textos vai além da organização das estruturas linguísticas ao

incorporar aspectos pragmáticos da interação (JUBRAN; KOCH, 2006). Nesta pesquisa, busca-

se investigar como aspectos entonacionais, gestuais e demais modelações expressivas cooperam

constituindo-se em elementos que devem ser computados para a construção da relação

enunciador-enunciatário, decisiva para a significação. Os textos falados devem, então, ser

compreendidos em sua emergência num tempo e espaço de onde são considerados diversos

fatores enunciativos que servirão para a construção da referência e do sentido.

1.1 Introdução

Considerada como o objeto primordial da Linguística, a língua falada pode ser

entendida, sob a perspectiva evolucionista, como uma materialidade artefactual, desenvolvida

pelos humanos com fins adaptativos. A língua será, neste trabalho, considerada como um

sistema que opera simultaneamente com outros tipos de sistemas na constituição da

linguagem, esta entendida como um sistema maior que engloba os sistemas da fala, do olhar,

do gesto, da inflexão, enfim, que se constitui por uma rede de interações não-lineares que vão

somar para as computações do significado. Quando a pessoa fala, ela imprime na língua

determinados acentos que são de origem emocional, pragmática, cognitiva e cultural. E esses

acentos contribuem para a construção do significado que acontece em uma interação.

Interessa-se pela linguagem como um sistema complexo que existe somente pela

possibilidade de interação entre sistemas distintos, porém interdependentes. Pretende-se

mostrar que a interação de linguagem organiza-se a partir de duas perspectivas: a perspectiva

do tópico e a perspectiva da organização da interação. Numa conversa desenvolve-se o tópico,

isto é, um tema para o qual as atenções voltam-se; sua característica formal é a terceira pessoa

do discurso, ele é introduzido e pode ser construído e reconstruído, interrompido, retomado e

reformulado ao longo da interação. Muitos estudos interessam-se pela organização e pelo

desenvolvimento do tópico, entretanto, apesar de reconhecer que não se pode separar a

organização tópica da organização da interação, a investigação será focada no modo como os

interlocutores organizam-se para orientar a construção e interpretação dos textos que são

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produzidos. O posicionamento dos interlocutores no tempo e espaço forma a origem de todo o

texto e do discurso que vai emergir em uma interação de linguagem.

Estudos como a Gramática do Português Culto Falado no Brasil (JUBRAN; KOCH,

2006) apresentam uma proposta de análise do texto conversacional a partir da distinção entre

o desenvolvimento do tópico e a organização da conversa. Os elementos linguísticos que

esses estudos apontam como organizadores da conversa são denominados marcadores

discursivos (MDs). Os MDs serão, nesta tese, tomados de uma forma mais abrangente, pois

serão consideradas não só as emissões linguísticas verbais, mas também a forma como os

textos são emitidos, os gestos, os movimentos corporais, a modulação da entonação. Isso

porque se supõe que a maneira que uma forma linguística aparece quase sempre “emoldurada

em um modo” compete para as computações que vão gerar os significados. Assim, a função

dos MDs parece ir além da organização tópica, eles parecerem ser mais abrangentes e mais

significativos. Uma observação mais detalhada indica que esses marcadores funcionam como

constituintes do espaço de interação e de expressão dos locutores. Os marcadores

desempenham funções de manter os interlocutores em contato, de controlar e balancear o

conhecimento necessário dos enunciadores sobre o tópico e sobre si mesmos.

A proposta é aproximar conhecimentos linguísticos a perspectivas de áreas diferentes

como biologia, física, química, antropologia, neurociência, ciências cognitivas que parecem

apresentar pontos que convergem para explicar a linguagem como um sistema dinâmico.

Desse ponto de vista, será delimitado o objeto de estudo desta pesquisa, que são as operações

de interlocução, aquelas responsáveis pela construção do locutor na relação enunciador-

enunciatário (EU↔TU). Do estabelecimento dessa relação, partem todas as outras referências

de tempo e espaço que vão se manifestar no discurso. Portanto, o alvo da pesquisa são as

operações específicas de organização da interação, operações essas que figuram “simultâneas”

às operações tópicas.

É válido ressaltar que, nesta pesquisa, considera-se que a construção do sujeito

linguístico que se institui pela língua também se institui como um ser sensível, emocional e

que essas qualidades também se revelam nas formulações textuais e na construção dos

sentidos. Os interlocutores revelam quem são e, também, suas preferências e intenções.

Supõe-se que o processamento discursivo, na conversação, realiza-se por uma

atualização de subsistemas em interação, indiciando que a modulação da fala contribui como

um recurso que direciona a interpretação do texto. Nessa direção, o sentido constrói-se pela

formação de um todo significativo, isto é, compreendem-se as palavras impregnadas de

modos que, muitas vezes, podem definir o significado delas. Os sistemas percepto-cognitivos

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contribuem para as computações e essa ativação simultânea assemelha-se ao funcionamento

dos sistemas vivos complexos que têm como uma das características primordiais manterem-se

em interação com outros sistemas. A construção do texto linguístico emerge a partir de uma

relação entre os sistemas cognitivos e linguísticos de forma que a construção do significado

vai se concretizando à medida que os elementos linguísticos vão sendo marcados por

contornos que, muitas vezes, são imperiosos para a construção do sentido. Vista dessa forma,

a interação de linguagem envolve uma cooperação que vai além do caráter puramente

linguístico ao ativar sistemas como a visão, a audição, o gesto, o olhar e, possivelmente,

combinações entre eles; tudo coordenado pelo sistema de atenção, contribuindo para a

organização e coerência do discurso.

Essa visão leva ao questionamento sobre os já amplamente estudados marcadores

discursivos: A categoria dos marcadores discursivos, na conversação, partilha um espaço com

outra categoria que vai além do material linguístico? Que outros recursos são utilizados para a

organização da interação de onde e quando emerge o discurso? A hipótese a ser levantada a

respeito dessa pergunta é de que a perspectivização do par enunciador-enunciatário – relação

que será representada doravante por EU↔TU – é atualizada conforme computações que

congregam elementos linguísticos com elementos espaçotemporais, que serão chamados

recursos cognitivos por resultarem de computações que emergem apenas em decorrência da

conformação interativa.

Os falantes partilham um espaço e um tempo de onde advêm computações que são

consideradas na construção do discurso, indicando que o sistema sensório-motor contribui

para a construção do texto. A continuidade tópica pode ser interrompida, fragmentada e

retomada com base no espaço físico que os falantes ocupam, no que eles veem e ouvem.

Assim sendo, observa-se a participação de aspectos cognitivos tomados como demarcadores

do espaço de interlocução conduzindo a interação e o discurso. A atividade enunciativa e sua

ancoragem pragmática indicam que a produção discursiva congrega sistemas de naturezas

diferentes, levando à hipótese de que a organização dos marcadores discursivos obedece a

padrões dinâmicos, tais como os sistemas complexos adaptativos. Um novo enquadre em

relação à concepção de linguagem requer novas maneiras de interpretar o objeto linguístico

para dar conta de sua complexidade e dinâmica.

1.2 Organização da pesquisa

A pesquisa está organizada em quatro capítulos, apresentados adiante.

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O primeiro apresenta a questão que motiva a tese, isto é, a construção do sentido na

língua falada ampara-se apenas nos itens linguísticos ou também em outros aspectos

cognitivos? A hipótese apresentada é de que, além desses itens, outros aspectos contribuem na

busca pela significação, indicando que as operações de interlocução congregam vários

sistemas. Supõe-se que o fator primordial para a construção dos significados é o

estabelecimento da relação enunciador-enunciatário, que compreende não apenas a

identificação e espacialização desses elementos, mas também aspectos cognitivos que

envolvem, entre outros, estados interiores, emoções, intenções e relações socioculturais. Em

seguida é apresentado o objeto de estudo, os objetivos, os procedimentos realizados na

construção do corpus e na realização da análise.

O segundo capítulo constitui-se do quadro teórico adotado, compreendendo: a)

aspectos relacionados ao ser de linguagem, ou seja, circunstâncias que determinam a

existência da linguagem humana; b) noções para a construção de uma concepção de

linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural.

O terceiro capítulo consta da análise das operações de interlocução a partir de uma

abordagem de sistemas perceptivos multimodais, contemplando a cognição como um

processo de percepção global, atualizado na correlação de categorias que operam na interação

do homem com o ambiente.

No quarto capítulo, apresenta-se a conclusão de que a produção de sentido na conversa

espontânea livre tem como fundamento precípuo a constituição dos organismos em

enunciadores a partir de marcas temporais, espaciais, psicológicas, intencionais, sociais,

enfim, a constituição de um ser completo em cujas ações de linguagem manifestam-se

características dos sistemas adaptativos complexos.

1.3 Justificativa

A contribuição deste estudo orienta-se para uma nova forma de conceber o fenômeno

linguístico da interlocução: como um conjunto de operações que revelam um fenômeno

natural processado por ações materiais, observáveis. Tais operações mantêm padrões de auto-

organização com fins adaptativos, indo do equilíbrio ao estado de desequilíbrio, o que resulta

na permanente reorganização do sistema à medida que a conversa desenvolve-se. Capra

(2006) assume que a sensibilidade às pequenas mudanças no meio ambiente, a relevância da

história anterior em pontos críticos de escolha, a incerteza e a instabilidade do futuro são

características-chave das estruturas dissipativas. Essas características são básicas dos sistemas

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vivos que, como tal, são sistemas complexos. Nesta pesquisa, pretende-se assumir a

interlocução como um sistema vivo, isto é, um sistema adaptativo complexo auto-organizador

devido às características de suas operações identificarem-se com os princípios de organização

dos sistemas complexos.

Dessa perspectiva espera-se mostrar como o processo interlocutivo adapta-se às

interações, transformando-se continuamente, ao mesmo tempo em que resguarda sua

identidade, sendo esta uma importante característica na definição de sistemas complexos.

Propõe-se, a partir de novos elementos teóricos, mostrar evidências de que o processo de

interlocução funciona como um sistema complexo adaptativo: é aberto e dinâmico, porque se

mantém em movimento e realiza trocas com o meio; é heterogêneo, porque se compõe de

subsistemas inseparavelmente associados; e, por último, é não-linear, porque as relações entre

seus componentes e com o meio não são totalmente fixas e permite ao sistema formar

determinados tipos de rede que podem sofrer alterações conforme emergem os atratores

internos e externos ao espaço fase1.

Dentre várias categorias os marcadores discursivos, os MDs, figuram como elementos

que possuem a função de conduzirem o discurso e também a organização da interação.

Estudar esses elementos através de diferentes lentes do conhecimento, ao invés de adotar uma

perspectiva exclusivamente linguística, permite que sejam tomados como operações que

compreendem sistemas diversos, como a percepção, a atenção, enfim, explorando todo o

sistema de conhecimento. Nesta pesquisa, propõe-se que os MDs sejam flagrados no

momento de sua emissão, mostrando que muitos aspectos relacionados à interação dos

interlocutores no ambiente concorrem para a formulação dos textos e construção do

significado. Assim, aspectos como repetições de itens, prolongamentos de sons, hesitações,

pausas e outros podem estar ligados a sistemas como o de atenção, por exemplo, e pode

provocar reflexos no texto. A altura de voz pode ser determinada por um ruído no espaço

enunciativo, ou como um recurso para tomar ou manter um turno ou mesmo por outro motivo.

Uma hesitação, por sua vez, pode ser reflexo de que o falante esteja percebendo algo que lhe

tira o foco da atenção, provocando a hesitação que aparece na superfície do texto.

Recentes contribuições para o estudo dos fenômenos linguísticos têm sido as noções

de sistemas complexos. Essas se apresentam como uma alternativa para dar conta da

dinamicidade dos fenômenos e de sua submissão ao tempo ao espaço e ao movimento. Nessa

perspectiva, emerge outra maneira de se conceber a linguagem, ou seja, um sistema

1 Os conceitos de atratores e espaço fase serão discutidos no segundo capítulo.

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adaptativo complexo, formado por elementos bioculturais, que se integram coordenadamente

na construção dos processos de interação. Este estudo consiste na apresentação da linguagem

do ponto de vista da complexidade, a partir de um de seus aspectos operatórios: a

INTERLOCUÇÃO. Por aceitar que sistemas e subsistemas vivos operam em cadeia, ou

melhor, em redes, pretende-se mostrar que a interlocução constitui-se de subsistemas,

permitindo-se encontrar padrões pelos quais ela se organiza e buscar os princípios de

organização das operações de interlocução que a caracterizam como um sistema aberto,

dinâmico, heterogêneo e não-linear, portanto, um sistema complexo.

A dinâmica das atividades linguísticas leva a considerar que, tal como o metabolismo

dos organismos vivos, a linguagem também se submete às ações metabólicas socioculturais

que a mantém em constante movimento, sendo, nessa abordagem, um subsistema de um

sistema maior que é o ser humano que, por sua vez, inscreve-se em um sistema maior que é o

ambiente. Neste trabalho, conforme os pressupostos teóricos que serão apresentados, a

linguagem será considerada um fenômeno natural, figurando como uma das facetas do modo de

ser do organismo humano, imerso no ambiente-nicho-mundo, em atividade para manter a vida.

Seguir-se-á as tendências recentes da linguística cognitiva, direcionando o objeto da

investigação para a linguagem como uma propriedade humana decorrente do entrelaçamento

dos diversos sistemas que compõem o cognitivo – sensório-motor, perceptivo, e outros –,

tomando a linguagem como um sistema dinâmico adaptativo que se constrói, isto é, organiza-

se no desenrolar das interações coletivas entre organismos no ambiente. A produção de

sentido, então, compreende um organismo dotado de funções motoras e perceptuais,

coordenadas pelo sistema nervoso. Esse organismo movimenta-se e age no seu ambiente

pleno de objetos, realizando o seu viver biocultural. Considerando-se como Johnson e Rohrer

(2005, p. 4, tradução nossa), o “encaixamento evolucionário do organismo em seu ambiente

mutável e o desenvolvimento de seu pensamento em decorrência dessas mudanças, liga

inextricavelmente a mente ao corpo e ao ambiente”2. Dessa forma, a pesquisa que se propõe

inscreve-se no campo da Linguística Cognitiva Moderna, considerando-se que o ser humano

é, antes de tudo, corpo biológico situado no ambiente e que esse fato é decisivo para

determinar o modo como se constrói seus sistemas de significação e de linguagem.

Em seu livro The Meaning of the Body, Johnson (2007) assume que o fato de o ser

humano ser corporificado significa que está inteiramente sujeito a eventos biológicos, físicos

e químicos que lhe movem, mudam seus estados corporais, restringem seus pensamentos,

2 This evolutionary embeddedness of the orgnism within its changin enviroments, and the development of

thought in response to such changes, tiés mind inextricably to body and environment.

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suas ações, desenvolvem padrões socioculturais e interferem em seus estados emocionais. Isso

define, muitas vezes, suas impressões e avaliações do mundo e, consequentemente, o modo

como reage às sucessivas situações por que passa em suas interações, determinando, assim, as

formas de linguagem.

1.4 Metodologia

Ver-se-á, nesta seção, que a interlocução tem propriedades específicas que a

distinguem como uma categoria vinculada ao gerenciamento da interação, visando situar os

participantes física e socialmente, organizar a conversa e o texto e estabelecer a relação entre

enunciador e enunciatário, origem do processo significativo. Ver-se-á também que a

interlocução possui marcas formais de pessoa e tempo, sendo uma categoria que se insere em

categorias mais amplas, de forma hierárquica tal como os sistemas complexos.

1.4.1 Objeto de estudo

O objeto desta tese pode ser descrito como a interação de EU↔TU no Ŧ, cada qual em

perspectivas distintas, portadores de seus tempos e espaços múltiplos (T/Es), construídos na e

pela linguagem.

É importante dizer que toda ação de linguagem tem um direcionamento principal e que

algumas operações são visivelmente direcionadas à solicitação do TU. No conjunto de ações

de interlocução, os interlocutores guiam a referência da conversa para a própria cena

enunciativa em que EU e TU assumem perspectivas dinâmicas na interação entre organismo e

ambiente. O EU dirige-se ao TU para convocar sua atenção por meio de algum movimento

específico – como mostram exemplos do corpus, “mas escuta, olha, mas xô te contá, mas aí e

vários outros. Gramaticalmente, são expressões de primeira e segunda pessoas – mas xô te

conta (eu contar a você) – ou segunda pessoa – olha (tu), cê imagina quando eu... –,

evidenciando que o objetivo da fala é direcionar a atenção do TU para a pessoa que fala

situada no Ŧ. Isso indica que, de certa forma, a interlocução é uma atividade de linguagem que

aponta para a enunciação dando uma ideia de metalinguagem, como se verá.

O objeto será, portanto, as operações de interlocução (OIs) manifestas por diferentes

tipos de ações que compreendem formas diversificadas de uso da linguagem.

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Quadro 1 – Distinção formal entre operações de interlocução e de narração

Operação de interlocução Operação de narração

Pessoa 1ª e 2ª 3ª

Tempo Presente Não-presente Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Seguindo a proposta de Koch et al. (1990), Marcuschi (1989), Ilari (1993), Jubran e

Koch (2006), distinguir-se-ão as operações de interlocução, que cuidam do monitoramento da

interação (da relação entre as pessoas e entre estas e o espaço e o tempo), e as operações de

manutenção do tópico. Entretanto, estas serão denominadas operação de narração, por ser um

termo mais adequado ao quadro teórico que se vem seguindo. A narração tratará de tempos e

espaços não-presentes, expressos em terceira pessoa, ou melhor, trata-se de espaços abstratos,

construídos no processo de interação por meio de sistemas simbólicos de linguagem. Pelas

OIs, os participantes posicionam-se física e socialmente, estabelecendo o EU biocultural, que

é o agente da interação de linguagem.

As operações de interlocução também se realizam por expressões adverbiais como

aqui::, agora, altamente dependentes do Ŧ, isto é, aqui e agora apontam para o EU que quer

se inserir como locutor; é também uma entrada para a tomada de turno quando o EU demarca

um espaço na interação.

Uma marcante característica da interlocução, notada nos dados, é sua constituição

multimodal. Subsistemas integram-se com intenção de reorganizar a interação. Assim, todas

as emissões apresentadas acima são acompanhadas de mudança na entonação, mudança de

intensidade, gestos, expressões faciais, olhares, enfim, constituem uma ação global de

linguagem, em que a língua e outros sistemas de interação realizam juntos a tarefa de manter

o organismo vivo, em interação com seu meio. Interagindo, o organismo constitui-se pela fala

que se modela e se constitui em formas visíveis.

Poder-se-ia dizer que o EU humano constitui-se na interação com o outro e só por ela

se realiza. No dizer de Benveniste (1989), seria a necessidade de o locutor referir-se pelo

discurso. E, conforme se defende nesta tese, seria a condição humana de seres biológicos,

sociais e culturais que possuem consciência de si mesmos como seres de crenças e vontades e

que consideram o outro como um igual a si.

A seguir apresento o percurso que levou à definição do objeto de estudo bem como a

sua acomodação dentro do leque de perspectivas que compreende o campo de estudos que se

dedica à conversa, identificando a interlocução dentro do evento de interação, para enfim, se

chegar às OIs.

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1.4.2 Percurso para a construção do objeto de estudo

A interação, como concebida neste trabalho, é um processo biológico e cultural

realizado pelas pessoas em sua forma mais natural de agir. Quando Benveniste (1989, p. 222)

diz que “bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver” ele está

apontando para a linguagem como propriedade natural do ser humano. O foco do autor não

apresenta uma conotação biológica do fenômeno, e sim, o funcionamento simbólico, isto é,

como e por meio de que formas os seres humanos constituem-se locutores.

Interagir é uma questão de sobrevivência para a espécie humana. A espécie só se mantém

viva devido à interação entre os congêneres e outras espécies espalhadas numa determinada

circunscrição ambiental e simbólica, portanto, a interação das pessoas no tempo e no espaço é

uma questão biológica, física, química e cultural; é uma condição sine qua non. Nesse quadro, o

humano é um ser biocultural, sendo esses dois aspectos distintos, porém indissociáveis. Ser

biocultural implica, além das estratégias de sobrevivência, reprodução e perpetuação da espécie,

construção de sistemas artefatuais, conceituais e simbólicos. São sistemas partilhados

coletivamente em permanente reconstrução, uma vez que as pessoas vivem em redes no nicho e

atualizam permanentemente esses sistemas nas sucessões de interações.

Será considerado, neste trabalho, que cada pessoa em interação partilha de uma

perspectiva única no tempo e no espaço enunciativo e possui, potencialmente acessíveis,

diversos tempos e espaços simbólicos, cada qual de um modo peculiar. As operações de

interlocução serão analisadas, portanto, como processos de um sistema complexo biocultural e

isso quer dizer um organismo que vive em interação de linguagem, partilhando o espaço

biológico físico e químico e espaços simbólicos, construídos a partir de interações físicas e

também pela construção de artefatos cuja materialidade encontra-se diluída no nicho, mas

comprimida pelo organismo.

1.4.2.1 Os componentes físico e simbólico do objeto

Os componentes físicos e simbólicos pertencem a um mesmo sistema e o

funcionamento de um está inteiramente ligado ao do outro. Acreditando que, como na teoria

dos sistemas, esses interagem permanentemente, provocando mudanças nos sistemas em

interação, pretende-se apontar subsistemas componentes da linguagem. Parte-se do princípio

de que a interação de linguagem realiza-se por algum tipo de movimento e de que a matéria

de que é feito o movimento é a sua estrutura. No caso da interlocução, os gestos e

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determinados tipos de movimento específicos que acompanham a língua constituem a

matéria. Numa interação nem todos os movimentos têm a propriedade interlocutiva.

Baseando-se na estrutura da operação de interlocução, poder-se-á identificar os subsistemas

componentes. A materialidade da expressão facial, por exemplo, não é a mesma do gesto ou

da fala, entretanto, elas são simultâneas, e isso será um parâmetro para distinguir subsistemas

humanos interagindo pelo movimento que, por sua vez, dará forma ao padrão. Um movimento

de toque no interlocutor associado a uma emissão do tipo “xô contá procês”, com intensidade

e tom específicos, somados ao olhar, ou seja, todos esses elementos em conjunto, formam o

padrão da interlocução que objetiva estabelecer a relação EU↔TU. A contínua reorganização

do tempo e do espaço de interlocução implica movimento que gera o padrão pelo qual o

sistema identifica-se.

As operações de interlocução (OIs) serão tomadas como operações que emergem na

ação de interação humana integrando elementos da língua com gestos, expressões,

movimentos corporais intencionais, direcionados entre os membros de uma comunidade,

partilhando um tempo e um espaço enunciativo, doravante representados pelo símbolo Ŧ3.

Esse símbolo será usado para referir o tempo e o espaço simultâneos em que estão os

participantes e ocorre a enunciação - o tempo/espaço enunciativo. O cruzamento dessas

coordenadas compõe a situação em que é materializada a linguagem, sendo esse um dado

importante para o aparecimento das formas textuais.

Seguindo Benveniste (1989), pode-se dizer que de constante na linguagem são apenas

os elementos da enunciação representados, neste trabalho, da seguinte forma: Ŧ =

[EU↔TU→ R (T/E)n], sendo Ŧ o presente enunciativo, que corresponde a uma coordenada

espaçotemporal em que acontece uma interação; o EU e TU pessoas que partilham o presente;

a seta unidirecional indica a criação da referência que se institui pela criação de (T/E)n,

representando a relação de tempos e espaços que se multiplicam ao infinito e que só podem

ser constituídos no Ŧ. A seta entre o EU e o TU representa o acordo interativo em que se

engajam; e R representa a referência que é, ao mesmo tempo, língua e linguagem, uma vez

que só se pode se referir, ao que quer que seja, exclusivamente, pela linguagem.

Como a interlocução constitui-se por um conjunto de operações, é necessário postular

que esse conjunto estabelece-se no processo de interação que, por sua vez, dá-se entre pessoas

3 Foi criado um símbolo que consiste na sobreposição das duas letras (T e E), porém, por questões de

inadequação de formatação dos meios de impressão, não será possível utilizá-lo. Assim sendo, selecionou-se,

do sistema operacional de computadores, um símbolo convencional o mais próximo possível da forma

decorrente da fusão das duas letras (Ŧ). Doravante esse símbolo será usado para referir o tempo e espaço

simultâneos de interação, que servem como base para a construção de espaços linguísticos, ou, melhor

dizendo, o presente enunciativo.

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com propriedades e capacidades específicas determinantes do processo como um todo. Assim

sendo, o objeto desta pesquisa arranja-se a partir de processos múltiplos, que devem ser

considerados como influentes no processo de criação do texto.

1.4.2.2 Interlocução: a ação no evento de interação

A atividade de interação compreende a cooperação dos indivíduos envolvidos numa

ação de linguagem, sendo a própria atividade determinante das formas de linguagem e

também determinadas por ela, tal como abordado por Franchi (2011) sobre a ideia de

linguagem como atividade constitutiva. A noção de atividade, tal como observa Bronckart

(1999), refere-se às organizações funcionais de comportamento dos organismos vivos, através

das quais eles têm acesso ao meio ambiente e podem construir elementos de representação

interna ou externa.

A ação de linguagem pode ser considerada uma propriedade da atividade social.

Segundo Costa (2002), a ação pode ser entendida como intervenção de linguagem em que as

pessoas são movidas por intenções. Essas intervenções, segundo a pesquisadora, são sempre

avaliadas pelos interlocutores com base em critérios coletivos, de forma. Dentro de um evento

de interação, as ações são unidades menores de linguagem que refletem as intenções

particulares dos organismos. Nesse caso, as percepções do ambiente e do próprio interior do

organismo somam-se para compor o espaço de enunciação, base para a formulação do discurso.

Em um estudo intitulado Dynamics in Action, Juarrero (2002) apresenta uma proposta

para a compreensão da ação incluindo o conteúdo significativo da intenção como propulsor do

fluxo da ação. Ela descarta os modelos tradicionais, em que a ação é explicada pela

causalidade de eventos mentais, pela explicação lógica, ou mesmo pela relação estímulo-

resposta proposta pelos behavioristas. A proposta da autora é incluir teorias dos sistemas

complexos que são capazes de explicar a ação como um processo dinâmico. Ela conceitua a

ação intencional como uma trajetória emergente, controlada por restrições impostas pelo

ambiente (contexto), pela organização dinâmica do cérebro, pelas restrições impostas pelos

processos motores e de fala incorporados do conteúdo das intenções. Para Juarrero (2002),

elimina-se, assim, a atomicidade das intenções e vontades como propulsores da ação. Uma

trajetória da ação cruza coordenadas dinâmicas da consciência, da semântica e de níveis

afetivos da organização neuronal com aquelas do controle motor. Na visão da autora, a ação

seria explicada como um sistema dinâmico complexo, porque interage com o ambiente sob

condições longe do equilíbrio. A ação de linguagem abrange um espaço semântico

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cognitivamente organizado, cujas propriedades e leis restringem e direcionam a ação.

Como se verá, a ação mantém o sistema em sua busca pela adaptação. Nesse caso,

tanto a dinâmica interna como a dinâmica da interação do organismo e ambiente são

propulsoras da ação, ligando a interação de linguagem ao movimento. A ação, então,

constitui-se por movimentos sensorialmente perceptíveis que podem ser registrados e

demonstrados pelas formas verbais e corporais, indicando que a formulação textual envolve

um processamento mais amplo. As ações assumem formas controladas por atratores que

podem ser desde as regras de comportamento mais sutis a impedimentos ou facilitações

físicos para a interação.

Essa é uma noção que será defendida nesta pesquisa ao se caracterizar a interlocução

como um sistema adaptativo complexo biocultural. Adiante, ver-se-á que se trata de uma

opção que pode, pelo menos, aproximar a compreensão da linguagem, abarcando seu

dinamismo e sua ubiquidade no que tange a espécie humana. A ação de linguagem será

concebida como uma unidade de movimento componente do evento de interação, com seus

limites estabelecidos por elementos da fala e do corpo. Assim, espera-se identificar ações que

buscam estabelecer o espaço de interlocução, base para a emergência do discurso. Entretanto,

não será uma unidade com seus limites precisamente definidos (TURNER, 2006;

HOUGAARD, 2008). Os traços característicos serão marcados em decorrência de a ação ser

estruturada como um processo e não como uma unidade estanque que se pode recortar e

analisar separadamente de seu contexto. Uma interação é constituída de uma sucessão de

ações e, muitas vezes, estas se encadeiam de tal forma que não se pode encontrar a fronteira

precisa entre uma ação e a subsequente.

1.4.2.3 Análise da conversação e interlocução

Tendências da análise da conversação consideram que os marcadores conversacionais

(MCs)4 cumprem a função de organizar a interação. Marcuschi (1989) assume que os MCs

possuem propriedades interacionais e intratextuais, respectivamente, voltadas para as relações

interpessoais e para a estruturação da cadeia linguística. De uma perspectiva funcionalista, o

autor aborda os MCs em seus contextos e condições de produção, já que se realizam nas

atividades interacionais, durante a conversação, podendo assim ser considerados como

4 Com o desenvolvimento das pesquisas na área de análise da conversação, a compreensão dos MCs foi sendo

reformulada e sua denominação passou a ser marcadores discursivos (MDs), cujas análises demonstraram

que desempenham funções mais amplas na constituição dos textos conversacionais.

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marcadores meta comunicativos.

Em seu estudo sobre os MCs, Marcuschi (1989) toma por base a noção de preservação

da face em que os interactantes, em uma conversação, buscam preservar sua imagem, sendo

que esses esforços manifestam-se em formas linguísticas como regras de polidez e estratégias

conversacionais, por exemplo. Assim, os MCs dão contorno às sequências tópicas,

introduzindo-as, encerrando-as, enfim, funcionam como operadores meta comunicativos,

porque definem efeitos que interferem na organização da conversa. Ver-se-á adiante que,

tomados pela lente do corpo teórico adotado nesta pesquisa, os MCs podem ser considerados

como operadores interlocutivos que estabelecem a relação EU↔TU (enunciador/

enunciatário), a qual serve de base para a construção da linguagem.

Também Koch et al. (1990) distinguem diferentes tipos de operações que compõem o

discurso oral dialogado com traços semelhantes aos da conversa espontânea. Para os autores,

o contínuo fluxo de informação reveste-se de seus contornos que visam, como dizem, “a

efetivação do contato para assegurar o sucesso da comunicação” (KOCH et al., 1990, p. 150).

Embora esses autores usem a expressão fluxo da informação, não transparece no texto citado

uma ligação com a teoria da informação, mas uma forma de distinguir o fluxo discursivo de

terceira pessoa e as emissões voltadas para organização da interação, coincidentes com o que

Marcuschi (1989) chamou de marcadores conversacionais.

Koch et al. (1990, p. 150) acreditam que a desarticulação do fluxo da informação por

uma expressão de articulação interativa “se explica por um processo de compensação

pragmática”. Interpretando-se esses autores e se baseando nas concepções teóricas desta

pesquisa, pensa-se que o discurso estrutura-se no plano sintático pelas formas da língua e, ao

mesmo tempo, no plano sintático-pragmático, que estabelece a articulação interativa da língua

e o tempo e o espaço que servirão de base para o discurso e para o monitoramento da

interação entre os participantes. Fica muito evidente que o plano pragmático não se

desvincula do plano linguístico e que a emergência do discurso dá-se pela associação desses

dois aspectos. Dessa forma, as ações de linguagem são ações humanas que se desenvolvem

em um cruzamento das coordenadas de tempo e espaço. Desse cruzamento, podem-se acessar

muitos outros tempos e espaços por meio do sistema de símbolos que se aprende a usar na

vida social.

O estudo das ações tende a mostrar que as operações de interlocução referem-se ao

presente imediato e promovem a articulação interativa donde emergirá o discurso (KOCH et

al., 1990). Por meio dessas operações, o organismo converte-se em um EU (self), situando-se

espacial, social e emocionalmente em suas interações. Faz-se importante mencionar que as

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operações de interlocução e o fluxo narrativo seguem juntos, intercalando as sequências

interlocutivas e sequências tópicas (informativas), segundo Koch et al. (1990), conforme o

desenrolar imprevisível das conversas cotidianas.

Aceitar a distinção entre o desenvolvimento do tópico e marcadores interacionais é

uma orientação que já vem sendo utilizada analiticamente por vários autores. Seja no dizer de

Koch et al. (1990) – o fluxo da informação – ou no de Marcuschi (1989) – as unidades

discursivas – ou ainda na concepção de Ilari (1993) – o tópico discursivo –, são unidades que

se distinguem dos marcadores conversacionais e que, segundo esses autores, funcionam como

organizadores da interação e também do discurso. Isso confere a tais unidades uma

propriedade textual e meta discursiva, por terem sua referência na própria interação e, pode-se

dizer que, além da organização, focam os estados físicos e interiores dos participantes.

O desenvolvimento dessas pesquisas apresenta-se, mais recentemente, na Gramática

do Português Culto Falado no Brasil (JUBRAN; KOCH, 2006), em que se amplia a

abordagem dos marcadores conversacionais, que passam a englobar sua natureza emergente

em situações concretas de interlocução. Esses marcadores – que, nesta pesquisa, está-se

assumindo como operadores interlocutivos – serão analisados, sob a perspectiva interacional

linguístico-cognitiva, como responsáveis pelo estabelecimento da relação entre o enunciador e

o enunciatário, instituindo o organismo como um EU que se posiciona e considera o outro

como a si mesmo, com suas respectivas particularidades.

Apesar de não ser possível conceber a existência separada desses dois tipos de

operação no processamento da linguagem, pretende-se focalizar as operações de organização

que, neste trabalho, serão denominadas por Operações de Interlocução. É necessário frisar que

o desenvolvimento tópico não é matéria específica deste estudo, mas é considerado como um

dado constitutivo da interação verbal. O objetivo é verificar, nas OIs, como os sistemas de

estruturas diferentes integram-se para formar um padrão que define a unidade da ação. O

locutor constrói-se pelas OIs, a partir delas ele se situa espacial e socialmente, impondo-se

pelo discurso. Portanto, é importante investigar o modo como os interlocutores organizam-se

para conduzir o tópico e criar os espaços de referência para o entendimento dos textos.

As expressões indiciais5 por que os falantes apontam-se e apontam seus interlocutores

chamam a atenção não apenas para a narrativa que irá se desenvolver, mas também para a

própria interlocução. Isto é, a interlocução mostra-se como um processo de gerenciamento da

5 As expressões indiciais de primeira e segunda pessoas possuem a função de explicitar a cena enunciativa,

mais especificamente os falantes. Para maiores esclarecimentos sobre expressões indiciais, consulte Levinson

(2007), Bar-Hillel citado por Lopes (1998), Mateu (1994).

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conversa, aponta para os participantes e para a própria conversa. A manutenção da

conversação, sustentada pela interlocução, parece ser um meio pelo qual os organismos

garantem o reconhecimento mútuo. É por meio da interlocução que as pessoas adéquam-se às

regras organizadoras das falas e de outras ações. De forma metafórica, poder-se-ia dizer que a

interlocução seria uma agulha com linha, cravadas no eterno presente dos organismos que

seguem alinhavando as narrativas.

A interlocução manifesta-se de forma verbal e não-verbal e busca sempre estabelecer o

elo entre os falantes como se estivessem a dizer Olha, eu estou falando com você, ao que seria

respondido sim, eu estou te ouvindo. Isso leva à suposição de que essa exigência de garantia

de ser ouvido e de mostrar que se ouve assemelha-se a uma espécie de compromisso. Supõe-

se, ainda, que isso parece ter suas raízes na busca do organismo de se estabelecer como um

EU e estabelecer o outro como TU (um eu igual a mim), tal como defende Tomasello (2003),

para quem os seres humanos desenvolveram, como uma vantagem adaptativa, a habilidade de

se identificar com seus coespecíficos e compreendê-los como seres intencionais.

1.4.2.4 A dinâmica interlocutiva

Faz-se necessário esclarecer que os excertos que se apresentarão como exemplos

foram recortados do corpus para demonstração de determinadas ações; devendo ser, portanto,

compreendidos como partes componentes do evento de interação, isoladas apenas para o

propósito de análise. O funcionamento da interlocução pode ser percebido pela manifestação

das estruturas nos diversos tipos de movimento com o fim interlocutivo. Espera-se encontrar,

nos segmentos manifestantes das ações de interlocução, um padrão caracterizado pelo

empenho para garantir o espaço, o contato, a comunicação e a expressão, mostrando-se que a

dinâmica interlocutiva realiza-se na solicitação de um EU para um TU:

Exemplo: 1

35:55 – C: ai:: é assim (retomando a fala e interrompendo outras falas)

36:49 – C: mas olha procê vê a/ a:: sede ...

39:37 – G: Agora o que vai

39:40 – C: Ah:: ↑ uma carreta desgovernada [C se lembra de uma informação e recupera o

turno interrompendo G que já iniciara o turno]

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Os itens linguísticos, mesmo os supragramaticais, apontam para o EU ou para o TU,

sendo esse o padrão que rege toda a dinâmica das ações interlocutivas, isto é, a demarcação

do EU enunciador pela sua expressão ou pela solicitação do TU. Essas manifestações indicam

que o padrão da ação interlocutiva pode ser definido como a demarcação da relação

EU↔TU. Assim, entende-se que o padrão poderia ser associado à função, ou seja, toda

operação de interlocução visa à construção do espaço base da interação de linguagem. Desse

modo, a relação EU↔TU, que se cria por meio da linguagem, exibe os interlocutores

atrelados ao sistema de orientação subjetivo EU-AQUI-AGORA “origo” (MATEU, 1994),

evidenciando a interlocução como uma atividade pela qual os interlocutores sinalizam um ao

outro, reciprocamente.

O padrão emerge em variadas formas – gestos, expressões, movimentos gerais do

corpo – e também pela língua, com seus contornos significativos, como ainda será visto no

capítulo dedicado à análise. Os recursos verbais e não-verbais integram-se e formam o padrão

pelo qual um EU apresenta-se, ao mesmo tempo em que elege um TU, estabelecendo-se uma

relação da qual será orientado o discurso.

1.5 Objetivos

O objetivo geral da pesquisa é mostrar que as OIs processam-se pela interseção de

sistemas distintos, realçando seu funcionamento multimodal para estabelecer o espaço

enunciativo – o espaço de interação e de expressão dos locutores, originário de todo o

processo de referência. Por desempenharem as funções de manter os interlocutores em

contato, de controlar e balancear o conhecimento necessário sobre si mesmos e sobre o tópico,

criando a base da significação, as OIs constituem o espaço base da enunciação e as pessoas

em enunciadores, segundo restrições impostas pelo ambiente físico e social. A partir dessa

dinâmica operatória identificada nas OIs, verificam-se propriedades dos sistemas adaptativos

complexos bioculturais auto-organizadores.

Descrever as operações de interlocução e investigar sua estrutura significa identificar

os recursos que materializam suas formas: tipos de movimentos corporais, suas direções, os

contornos entonacionais e como esses se integram à língua. Ao gerenciar esses recursos, os

organismos descrevem padrões que se repetem, como se pretende mostrar pela associação de

subsistemas para a composição das operações de interlocução. Como atividade adaptativa

complexa, a interlocução mantém-se em constante dinamismo, flutuando entre ordem e

dispersão, sofrendo influência de diversos processos ao produzir formas de identificação do

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EU em oposição ao TU.

A instauração dos enunciadores, tal como estabelece Benveniste (1989), instaura

também categorias cuja materialidade resulta do corpo no ambiente, extrapolando o que se

considera como categorias da língua: fonologia, sintaxe, semântica. Pode-se dizer que isso

alude à alegação de Benveniste (1989, p. 82) de que enunciação “é o ato mesmo de produzir o

enunciado”. Para ele, o locutor mobiliza a língua que, neste trabalho, considera-se como mais

um dos sistemas usados nas ações de interação de linguagem. É importante lembrar que o ato

de produzir o enunciado ocorre em um tempo e em um espaço em movimento. Portanto, na

composição da linguagem, dados da língua aglutinados a gestos, fisionomias, entonação,

mudança de intensidade, elementos à margem da sintaxe como as formas né, hum hum, ahn e

repetições organizam-se em estruturas que formam padrões restritos pela composição dos

enunciadores. Essa constatação leva a se considerar que o objetivo de identificar os diferentes

subsistemas integrados para a emergência das ações de linguagem será uma forma de

evidenciar a interlocução como um sistema complexo. Os objetivos específicos podem ser

resumidos da seguinte forma:

a) Identificar os recursos de linguagem que marcam a interlocução – língua, gestos,

fisionomia, entonação, elementos supragramaticais – e como eles se organizam na

ação;

b) Descrever a estrutura desses recursos (de que matéria é realizado o movimento) e

como se integram para formar o padrão de organização da interlocução,

identificando as características que os distinguem de outros padrões;

c) Explicar o funcionamento das OIs a partir de pontos análogos entre o

funcionamento característico dos sistemas complexos e o funcionamento da

linguagem.

Em artigo intitulado Grounded Cognition, Barsalou (2008) propõe que estados

corporais causam estados cognitivos por meio da ação situada em um tempo e em um espaço.

Ele defende que as interações sociais manifestam percepção e ação do corpo nos processos

cognitivos. Para ele, o processo cognitivo seria representado no cérebro de uma forma em que

os perceptos sensoriais acoplariam-se para formar uma percepção multimodal. Esse padrão

parece se revelar quando, ao se gerirem as operações de interlocução, processam-se

componentes dos subsistemas do componente cognitivo para a apreensão de um evento.

O modo de reorganização das ações humanas, no curso da interação, deverá mostrar a

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condição de organismos autoconscientes, de que trata Edelman (1989). A autoconsciência

capacita o ser humano a autorreferir-se por um sofisticado sistema de linguagem, governado

por princípios voltados para a preservação da identidade do sistema, e, ao mesmo tempo, para

o fluir constante de energia pelo qual se processam as ações. Essa é uma característica que,

segundo Capra (2007), é comum em todo sistema vivo, por serem sistemas abertos,

desenvolvem-se e evoluem. A vida, então, expande-se na direção da novidade. É justamente

essa dinamicidade que se pretende apreender quando se alcançarem os objetivos propostos. O

padrão multimodal de organização das operações de interlocução deixa à vista a natureza

complexa do sistema de linguagem humano.

O estudo das operações de interlocução e de seu funcionamento deverá mostrar que a

linguagem humana organiza-se como o próprio organismo vivo humano, isto é, possui

características que também podem ser atribuídas aos sistemas adaptativos complexos auto-

organizadores: são abertos, não-lineares e dissipativos.

Na próxima seção, serão descritas as escolhas metodológicas consideradas adequadas

para definir as operações de interlocução e verificar que o funcionamento destas como um

sistema complexo espelha o sistema maior que é a linguagem.

1.6 Opções metodológicas

Nesta pesquisa, fez-se opção pela análise qualitativa por se considerar que o padrão de

organização do indivíduo humano em operação de linguagem modela-se por forças exercidas

por atratores. Esses permitem ser reduzidos a princípios que definem o organismo como um

sistema complexo, submetido a campos de forças contra os quais não há muitas opções. Ao

longo desta seção, pretende-se apresentar as razões da escolha feita.

1.6.1 Busca qualitativa do padrão

A análise qualitativa deve suprir a busca pelo padrão e não necessariamente pela

estrutura em si mesma. No caso desta pesquisa, as estruturas são relevantes até o ponto em

que elas se diferenciam umas das outras, mas não como se diferenciam em cada realização.

Por exemplo, uma expressão facial é diferente de um gesto com a cabeça, mas cada expressão

e cada gesto serão únicos. Sobre essa questão Benveniste (1989, p. 81-82) propõe que as

formas podem ser descritas por “um grande número de modelos, tão variados quanto os tipos

linguísticos dos quais eles procedem”. A diversidade de tipos, na concepção de Benveniste

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(1989, p. 82), “não se deixa reduzir a um pequeno número de modelos”. Isso explica a

dinamicidade da interação que mantém um padrão, mas se reestrutura sempre em adaptação.

Por essa razão, não se quantificará as operações de interlocução durante um evento de

interação, mas se investigará a coordenação das ações que levam ao padrão das operações, ou

melhor, ao modo como os subsistemas componentes relacionam-se para formar um objeto

intencional, isto é, um objeto que é um todo significativo.

Os sistemas de atenção e de percepção serão identificados partindo do comportamento

dos sensores e das operações motoras, de modo que esses elementos possam encobrir uma

extensa área de observação do objeto de estudo e permitir a defesa da hipótese de que a

interlocução atualiza-se pela integração de sistemas distintos com uma finalidade específica.

Essa perspectiva implica mudanças de procedimentos de análise que será voltada para os

elementos que estruturam as operações de interlocução e para a maneira como se relacionam,

não sendo necessária a quantificação dessas operações para a opção metodológica escolhida.

Por se tratar de modos de ser da espécie humana, suas variantes são comportamentos

idiossincráticos ligados a particularidades advindas de espaços e processos históricos,

impossíveis de serem captados em sua integralidade, até mesmo por aquele que os vivencia.

1.6.2 Em busca de um corpus

Outra escolha metodológica diz respeito ao corpus da pesquisa. O desafio foi o de

encontrar um corpus capaz de fornecer operações de interlocução em seu estado mais natural,

para se chegar o mais próximo do autêntico comportamento humano. Nesse caso, o ideal

seriam gravações de situações cotidianas realmente espontâneas, de modo que os dados

aproximassem-se o melhor possível de uma situação empírica. Mas, obter esse tipo de dado

requer um aparato tecnológico e institucional que foge aos limites desta pesquisa.

Essa limitação levou a se optar por uma coleta que fosse intermediária entre uma

situação verdadeiramente espontânea e uma simulação em estúdio. Quanto ao primeiro caso,

para se obter uma conversa verdadeiramente espontânea, seria necessário superar muitos

obstáculos. As dificuldades vão desde as questões éticas às questões técnicas de qualidade de

dados (LABOV, 1970). Já a coleta de dados em estúdio ou mesmo interações simuladas em

ambientes costumeiros poderiam imprimir aos dados um caráter extremamente artificial,

comprometendo a composição do objeto que emerge na interação de linguagem. Essas razões

conduziram à produção de um evento de interação que pudesse ser registrado e, ao mesmo

tempo, apresentasse um alto grau de naturalidade e o mínimo de controle possível.

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Diante disso, procurou-se registrar um evento que se aproximasse mais de uma cena

verdadeiramente espontânea, por isso escolheram-se pessoas que já eram amigas e que

possuíam uma série de informações partilhadas por tempos de convivência. Procurou-se

também convidar pessoas não tímidas e com boa desenvoltura social, pois, assim, haveria

menos possibilidades de ficarem inibidas diante das câmaras. O registro do evento mostra que

a estratégia deu certo. Mesmo que as pessoas estivessem conscientes de que estavam sob os

“olhos” da câmara, elas, ainda assim, ficaram muito à vontade, o que é atribuído ao fato de já

possuírem bastante intimidade e terem vivenciado muitas experiências em comum.

Compor um corpus com qualidade técnica de imagem e som foi um preocupação

metodológica. Por esse motivo selecionaram-se pessoas que, além de desenvoltas, possuíam

boa dicção para gerar dados de boa qualidade, diminuindo, dessa forma, o risco de perdê-los

por falta de clareza de som ou imagem.

1.6.3 Definindo o corpus

Em princípio, a ideia era formar um grupo de três participantes (Cl, G e C) para tentar

prevenir interposição de falas. Entretanto, a participante C contou para uma amiga que

participaria de uma gravação com fins acadêmicos e esta se ofereceu para participar do grupo.

Ela foi logo aceita já que a intenção era a de que o encontro ficasse bastante espontâneo. Se se

bloqueasse a entrada de K, isso poderia denotar proibição e, assim, conduzir-se o evento à

artificialidade. Por essa razão, K foi aceita e o grupo passou a ser composto por quatro

participantes. Todos adultos, idade entre 35 e 45 anos, três deles com curso superior e um de

nível técnico. Os participantes conheciam-se de longa data, com exceção de K e CL, que se

conheceram no dia do evento. O número de quatro participantes não foi o pretendido, mas

também não comprometeu a coleta dos dados. Ao contrário, essa quantidade foi importante,

porque permitiu que a cena se dinamizasse mesmo com a ausência de um deles e supriu a

ausência inicial de G, que chegou mais tarde. Não houve recomendação para que

permanecessem sempre em cena, se quisessem poderiam sair e se movimentar, mas eles

preferiram participar a maior parte do tempo.

Outra opção metodológica relacionada à construção da coleta de dados foi o grau de

esclarecimento aos participantes sobre a pesquisa. Procurou-se informá-los sobre aspectos

gerais, sem entrar em detalhes para que eles, durante o evento, não manifestassem reações

motivadas pelos apelos da pesquisa. Assim sendo, informou-se apenas que se tratava de uma

pesquisa de doutorado, que a gravação seria utilizada com o fim acadêmico de obter dados e

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que o foco seria as operações de interlocução. Os participantes não mostraram interesse em

saber pormenores sobre o objeto da pesquisa e não pediram informações.

A observação dos registros mostra que a preocupação deles era o controle para não

falarem ao mesmo tempo. Quanto à espontaneidade da cena, ainda que não seja do interesse

desta pesquisa buscar uma medição mais precisa para essa categoria, observa-se naturalidade

dos participantes e um alto grau de espontaneidade.

Procurou-se não fazer muitas recomendações aos participantes para que eles ficassem

à vontade, por isso foi pedido apenas para que se comportassem como fazem normalmente.

Pediu-se também que não procurassem artificializar a organização espacial, evitando as costas

para a câmara, por exemplo. Apesar dessa recomendação, a gravação mostra que os

participantes tiveram algum tipo de preocupação em manter uma determinada organização

dos corpos no espaço, procurando, em alguns momentos, evitar as costas para a câmara. Na

fala, também, especificamente na organização dos turnos, pode ter havido, em determinados

momentos, alguma preocupação para não “atropelarem” as emissões uns dos outros. Porém,

os sutis cuidados tomados pelos participantes na formatação do evento não interferiram na

composição dos dados já que o controle de naturalidade do homem sobre si mesmo tem

alguns limites (TANNEN, 1982). O modo de ser das pessoas, a postura, o jeito de manusear

os objetos, a fala e muitos outros aspectos não podem ser disfarçados, não por muito tempo.

Por isso, pode-se dizer, o desempenho de todos os participantes demonstra naturalidade na

interação e, consequentemente, na manifestação da linguagem.

Seguindo os procedimentos de coleta de dados vernáculos, foram criadas as condições

para a naturalidade do evento bem como para a garantia dos direitos de uso de imagem e som.

Os participantes assinaram um termo de cessão de imagem e som, permitindo o uso para fins

acadêmicos, como se mostra no Apêndice A.

1.6.4 O espaço físico

O local da gravação foi escolhido considerando-se a familiaridade e a qualidade do

áudio. A decisão de não optar por um estúdio de gravação de áudio e vídeo também resultou

do objetivo de gerar dados que pudessem representar uma interação mais natural possível. Um

estúdio, por mais que se tente “naturalizá-lo”, sempre apresentará um componente muito forte

de artificialismo. Entretanto, um local onde os participantes pudessem sentir-se à vontade para

comportarem-se como fazem em seu dia a dia poderia compor um ambiente propício para

uma conversa, pelo menos, bem próxima do que seria uma interação espontânea. Por essa

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razão, o local escolhido para a gravação do evento foi o apartamento de um dos participantes,

que era um espaço com o qual todos os outros possuíam familiaridade, e, ao mesmo tempo,

permitia a captação de imagem e som.

Visando evitar interferências externas, como barulhos e pessoas que poderiam

dispersar ou fragmentar o registro, optou-se por um ambiente fechado, a sala do apartamento,

deixando o ambiente restrito aos participantes. Mas é preciso lembrar que nenhuma proibição

foi imposta em termos da locomoção desses participantes e da possibilidade de eventuais

aparecimentos de pessoas não envolvidas na coleta. Também não houve rigor ao definir o

início do evento. Os operadores instalaram o equipamento, C e K começaram e depois de três

minutos e quarenta segundos entrou CL. G (dono do apartamento) só chegou a casa, vindo do

trabalho, 25 minutos após o início da gravação; aos 32 minutos ele se ajuntou ao grupo,

permanecendo até o fim.

A escolha do espaço foi determinante para a naturalidade do evento. Chegar a casa

depois do trabalho e encontrar amigos com quem se tem liberdade para reunir eventualmente

é uma situação bastante normal. Essa foi a intenção para que o corpus pudesse fornecer dados

mais próximos das situações “reais”, como se vem enfatizando.

Foi servido vinho e petiscos para que o evento parecesse-se com os eventos habituais

dos participantes. Um evento como o que foi proporcionado é parte costumeira da vida das

pessoas escolhidas, o que resultou em um alto nível de espontaneidade. Reunidos em torno de

uma mesa, eles beberam, comeram e conversaram durante 86 minutos.

1.6.5 A gravação

A cena foi gravada por dois ângulos, como mostram as fotos. Foi usada uma câmara

Panasonic GS 500 e microfone Sennheiser Boom ligado direto na câmara, operados por

profissionais contratados pela pesquisadora. No estúdio, a imagem foi unida ao áudio e não

foi feita nenhuma espécie de tratamento tecnológico aos registros gravados em DVD, nem de

imagem e nem de som.

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Foto 01 – Ângulo principal de captação da imagem

Fonte: Dados da pesquisa

Foto 02 – Ângulo secundário de captação da imagem

Fonte: Dados da pesquisa

É importante relatar que K, por sua vez, levou uma amiga, na condição de não

participar da gravação. Com isso, paralelamente à gravação do evento, na cozinha do

apartamento, estavam outro morador da casa, a amiga de K e eu, pesquisadora. Ficamos na

cozinha preparando o jantar que seria servido depois da gravação, enquanto isso, fui fazendo

algumas anotações para dar suporte à leitura do registro.

1.7 Os dados

Como previsto, o corpus gerou os dados esperados, ou seja, a emergência de

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operações específicas de interlocução, com marca de segunda pessoa, diferenciando-as das

operações de narração, marcadas pela terceira pessoa. As operações demonstraram que o

organismo põe em prática a consciência que tem de si mesmo e do outro para a construção da

interação, mostrando, assim, as ações corporais com intenção de convocar um ouvinte,

estabelecendo-se a relação EU↔TU. Conforme Edelman e Tononi (2000), o ser humano não

apenas recorda a história de suas sensações e as categoriza, ele reflete sobre suas próprias

sensações e fala sobre elas com os outros. Segundo os autores, há marcas de expressões

linguísticas para manter-se em interação, para se expressar, para concluir, enfim, para

diversos fins relacionados com o objetivo de ser percebido. O sistema adotado para a

transcrição dos dados (Apêndice B) foi adaptado de Marcuschi (1989).

Exemplo 2

7:10 – C: a::i K [com a mão no rosto, lamentando a quebradeira feita em decorrência do

encanamento]

47:49 – K: – no::ssa! eu nem lembro C, quando eu tinha 21...

Como ainda será discutido adiante, as emissões emolduradas por gestos e contornos

entonacionais marcam a interlocução como uma ação que visa ao estabelecimento do elo entre

os interlocutores, e, ao mesmo tempo, expressam sensações e estados interiores, o que parece

uma espécie de posicionamento físico, emocional e social. Portanto, pela interlocução as

pessoas posicionam-se no espaço físico e, simultaneamente, no espaço simbólico. Considera-

se isso partindo do princípio de que toda emissão de linguagem é intencional e deixa

transparecer estados interiores do EU.

Verificou-se que, na conversa espontânea, as ações que constituem a interlocução

podem se realizar de diferentes modos, isolados ou combinados, como mostram a seguir as

ações selecionadas: a) contato físico em que o participante toca o ouvinte (que pode ser um

ouvinte possível, por estar mais próximo, ou mesmo ser pretendido); b) entonação realizada

por pergunta, pela modulação entonacional de velocidade, intensidade do som; c) gramaticais

e supragramaticais – elementos gramaticais (palavras, expressões ou orações de

convocação) e sons convencionados sem correspondentes lexicais, mas com significação

pragmática; d) repetição, quando o falante inicia uma frase ou expressão por várias vezes; e)

movimentos corporais parciais ou globais e f) narrativa – os interlocutores dirigem-se um

ao outro pela referência de terceira pessoa. Por exemplo, o filho chega a casa e diz: um

caminhão tombou ali na esquina, a presença física dos interlocutores já estabelece a relação

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EU↔TU e, nesse caso, não há elementos explícitos de interlocução, como chamamentos ou

evocações, pois eles já estão subentendidos nas unidades interativas e, assim, o discurso

processa-se sem demarcações formais do tipo – Ô gente! Um caminhão tombou ali na

esquina, em que o vocativo introduz a sequência narrativa.

A decisão de considerar a narrativa como uma operação de interlocução pode parecer

contraditória, a julgar pelo critério estabelecido pelo movimento de um EU com intenção de

convocar um TU para a instanciação do discurso. Mas essa não foi uma opção decorrente da

metodologia adotada, e sim, uma consequência da própria natureza do objeto analisado, que

se sobrepõe à investigação. As pessoas em interação partilham um mesmo ambiente e a

própria consciência de seus corpos no espaço é o suficiente para que elas se estabeleçam

como locutoras. O que gera essa ação é o conhecimento compartilhado.

A ideia de conhecimento compartilhado parece estar associada ao que Tomasello

(2003) definiu como atenção conjunta. O autor defende que a atenção conjunta é um

comportamento comunicativo exclusivamente humano. Para ele, o intuito de compartilhar a

atenção é o que vai dar o suporte necessário para a linguagem. No seu livro The Origens of

Human Comunication, Tomasello (2008) chega à conclusão de que as origens da linguagem

vêm do sistema de gestos de apontamento (declarativos); esses indicam que as pessoas estão

partilhando um objeto exterior e ali estabelecendo uma partilha para concretizar o ato de

linguagem. O ato de linguagem gera, pois, uma terceira pessoa, a referência, ELE, como

resultado da relação EU↔TU.

Por isso, os corpos no espaço, a memória e a história de cada um são componentes que

sustentam a interação e dispensam operações explícitas de interlocução. Essas operações,

nesses casos, estão pressupostas nas convenções sociais estabelecidas coletivamente por

conhecimentos comuns, coordenada e historicamente. Quando a interação verbal acontece

sem que o participante convoque o outro, as pessoas, provavelmente, partilham a atenção,

identificam as cenas e agem conforme categorizam o espaço físico para a construção do

simbólico.

Sendo assim, dois falantes, colegas de trabalho que dividem um escritório, nem

sempre precisam se convocar para estabelecer a interlocução; ela se estabelece na própria

enunciação, no sentido mais extenso do termo. Ambos partilham um espaço e dominam

códigos coletivos que podem ser atratores definitivos para modelar a interação. Do contrário,

transeuntes nas ruas não estão livres para estabelecer interações de linguagem sem anúncio

prévio. Se isso for uma necessidade para uma pessoa no meio da rua, ela deverá realizar uma

operação interlocutiva para se estabelecer como locutor e estabelecer o outro como

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interlocutor.

Essa razão leva a crer que o espaço de interlocução, por si, já é um elemento que

constitui a interação e a modela impondo restrições. Assim, os dois colegas do escritório e as

pessoas na rua são nichos distintos que geram modelos de interlocução distintos. Disso se

pode dizer que a narrativa não é, exclusivamente, uma operação de interlocução, mas encerra

em si a interlocução como um dado subtendido.

O conjunto teórico assumido, nesta pesquisa, permite expandir a noção de linguagem

levando em conta forças de diversas origens que impelem ou restringem as formulações de

interação. Trata-se de teorias que não adotam modelos categóricos e estáticos, ao contrário,

encerram o grau de flexibilidade necessário para acompanhar uma noção de linguagem

baseada no movimento dos corpos no espaço para a criação simbólica. Portanto, pode-se

assumir que a condição imposta pelo espaço é constitutiva da interação de linguagem e isso

permite considerar a narrativa como uma ação de linguagem que contém subtendido um

“acordo ou pacto” de interação. Talvez se possa considerar que seja um caso de interlocução

subtendida, já que há “um passe livre” para o discurso.

Os seis tipos de operações selecionados exibem uma divisão simplista das formas de

interlocução, visto que essas operações subdividem-se em uma grande multiplicidade. A

variedade de tipos de olhares e de suas significações é uma amostra de o quanto as operações

podem ser diversificadas. Entretanto, a seleção feita deverá fornecer o bastante para mostrar

estruturas que definem o padrão interlocutivo.

É importante ressaltar que, além de outras formas de interlocução, um estudo

aprofundado sobre as operações selecionadas poderia também mostrar detalhes e deles

surgirem ainda outras formas de interlocução. Essa é a natureza diversificada dos sistemas

complexos, não se pode reduzi-los a um pequeno número de modelos, como preconiza

Benveniste (1989) sobre a linguagem. As formas selecionadas, identificadas no

acontecimento que as gerou, serão úteis para mostrar que, a partir delas, padrões do sistema

estruturam-se, revelando a multimodalidade pela qual a linguagem emerge. A

heterogeneidade na composição das manifestações de interlocução mostrará o caráter

adaptativo do sistema humano, situado em um espaço de interação que funciona como um

atrator definidor do curso do sistema interativo em movimento.

Apresentam-se, a seguir, três exemplos registrados de operações auto-organizantes,

indicando que a ação de linguagem realiza-se por processos cognitivos dos interlocutores em

interação no Ŧ de uma maneira global.

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Exemplo 3

A tentativa de CL para intervir “mas quem tááá” em 5:51, “mas quem tá reclamano? Seu

vizinho? em 5:55 e “quem tá reclamano? Seu vizinho? em 5:58. As três tentativas

subsequentes de CL são um exemplo típico que marca a busca para se estabelecer como

enunciador. Ele procura estabelecer um espaço de interlocução, mas K mantém o turno. Ele

tenta novamente e K continua não respondendo e ele insiste mais uma vez até que ela

responde à pergunta; nesse caso, o recurso foi a repetição.

Exemplo 4

No momento 6:49, C está engajada com K em um determinado desenvolvimento tópico,

quando, de repente, lembra-se de acrescentar algo em relação ao tópico anterior. Como o

curso da conversa já estava em andamento, C movimenta-se adiantando o tronco, alternando o

olhar entre os dois interlocutores, gesticulando, tocando K no braço para obter a atenção com

a finalidade de se estabelecer como enunciadora e concluir o que pretendia.

Foto 03 – C recupera o turno coordenando fala e movimento corporal

Fonte: Dados da pesquisa

Exemplo 5

K introduz um tópico que é recortado por intervenções múltiplas dos participantes. Eles falam

de um lugar que todos já visitaram (Itacaré). K, então, busca recuperar o turno a partir da

emissão gramatical, em 15:15 “lá é lindo, mas dex’ô te contá...”; essa fala mostra a intenção

de K de ser ouvida e continuar a desenvolver seu tópico.

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Os exemplos demonstram que as pessoas buscam se estabelecer como enunciadores

por diferentes modos e remetem ao que propõem Edelman e Tononi (2000) ao assumirem que

um EU constitui-se pela consciência de si, construindo-se pelas interações sociais e afetivas,

sendo essas manifestações bem marcadas por recursos linguísticos que vão desde a ação

corporal até a emissão verbal. Implantam-se, assim, as condições iniciais para a construção da

referência no discurso.

1.7.1 As amostras

As amostras compreendem dois trechos de dois minutos e quinze segundos cada um,

selecionados do evento gravado (Apêndice C). Esses trechos exemplificam de uma maneira

geral o que ocorre durante toda a gravação. É importante deixar claro que a análise incidiu

sobre todo o evento de interação, entretanto, selecionou-se, de modo mais ou menos aleatório,

dois pequenos trechos (amostras) para demonstração de como se captou os flashes que

continham as ações caracterizadas como OIs, tendo em vista não ser possível apresentar toda

a transcrição do evento em decorrência de sua extensão.

Descrever um evento de interação de linguagem com três e quatro pessoas interagindo

em tempo real, com falas simultâneas e movimentos corporais significativos, é uma tentativa

desafiadora. Isso por se tratar de descrever relações que não são lineares, uma vez que à

linearidade do texto interpõem-se movimentos simultâneos que são computados na

interpretação. As amostras devem ser compreendidas como uma descrição suficiente, porém

incompleta do evento, já que é difícil apreender um evento real que reúne perspectivas

diferentes de cada participante. Dessa forma, assume-se que muitos aspectos sutis,

certamente, não poderão ser registrados na descrição, não por serem menos importantes, mas

pela dificuldade de se apreender determinados detalhes. Além disso, a movimentação

incessante entre as pessoas em interação pode funcionar como diversos tipos de sinais

significativos indicando intenções, a disposição e a espacialização física e social, enfim, pistas

gerais para a interpretação das ações que se pretende analisar.

As amostras evidenciam que as sequências interlocutivas alternam-se com as sequências

narrativas, indicando que as OIs voltam-se para a interação, desempenhando o papel de situar e

ordenar os enunciadores, criando o espaço base para a construção da referência. As pessoas

estabelecem-se como enunciadores, marcam posições e manifestam estados interiores para um

enunciatário. Além de marcar início e final, manutenção e tomada de turno, organização do texto

(como reparos e metalinguagem), como já foi amplamente estudado por Koch et al. (1990),

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Marcuschi (1989), Ilari (1993) e outros, a OI situa o falante no espaço de interação e permite que

ele manifeste seu estado cognitivo que compreende o conjunto de percepções, atenção, emoção e

consciência. A OI pode desempenhar a função de atenuar, de impor, de manifestar crenças e

desejos. A carga semântica das operações de interlocução encontra-se dispersa em um conjunto

de ações de linguagem, por isso as OIs cumprem uma função discursiva muito maior do que

introduzir sequências ou turnos, ou mesmo o texto, e este estudo deverá mostrar que elas também

são marcas simbólicas de expressão do EU (self).

É pela interlocução que o enunciador reconhece-se como um ser consciente de sua

consciência e reconhece o outro como um igual a si. Portanto, a interlocução parece ser uma

operação meta interativa que propicia a instanciação do discurso, criando um espaço de onde

emergirão as computações para o significado. As duas amostras deixam bem claro que a

interlocução apresenta-se como uma operação maior que desempenha o papel de estabelecer a

relação EU↔TU e esta, por sua vez, manifesta-se de diferentes maneiras, conforme os

recursos usados e os objetivos dos falantes. Essa constatação confirma mais uma vez o que

defende Marcuschi (1989) sobre os marcadores conversacionais MCs, que são condutores dos

atos interacionais e da cadeia linguística. A análise apresentada será no sentido de aprofundar

os desdobramentos dos MCs, dando a eles uma dimensão mais alargada devido à diversidade

de seus usos e formas e aceitando, assim, que a interlocução é uma operação de propriedades

multifuncionais e multiformes.

1.8 O que fica e por que fica fora da análise?

Movimento de cabeça, olhar e expressão facial foram formas identificadas de

manifestar a interlocução que não foram selecionadas para a análise por representarem

recursos complexos, que merecem um estudo mais específico. Sua realização é muito sutil e,

por isso, menos acessível à observação empírica, como é a proposta desta pesquisa. Cada um

desses tipos pode apresentar um alto grau de complexidade, variar (como existem muitos

tipos de olhar) e combinar entre si de modo a proporcionar ao organismo humano uma

infinidade de meios de se fazer percebido e mostrar que percebe o outro, além de expressar

seus sentimentos e intenções. Por essa razão, decidiram-se selecionar os seis tipos de ações

mais apreensíveis do ponto de vista de sua materialidade observável. Frisa-se, novamente, que

esse recorte tem o objetivo de descrever o comportamento complexo das operações de

interlocução pela amostragem de seu funcionamento, mas não o objetivo de descrever

completamente todas as ações.

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1.8.1 Critério para a seleção das ações

Selecionar elementos em meio a uma série de elementos candidatos a serem analisados

é uma tarefa muito árdua ao pesquisador adepto a teorias como as da complexidade. Isso

porque não podemos pensar em um sistema estático, deslocado do seu tempo e espaço e,

obviamente, dos sistemas com que interage. Fazer recortes é sempre um incômodo, porque

leva à fragmentação do ser em ação, da qual surge o objeto pesquisado. Em um determinado

evento de interação entre pessoas, focalizam-se e se selecionam algumas ações que compõem

as operações de interlocução. Mas, qual é o critério mais apropriado para selecionar as ações

que vão representar a interlocução e, consequentemente, a linguagem humana como um

sistema complexo?

A observação cuidadosa do evento leva a reconhecer que nenhuma ação está livre de

ser interpretada com erro no que diz respeito ao seu caráter de subjetividade. O caráter

subjetivo da ação não é o objetivo desta análise embora não seja desconsiderado como um

componente importante, muitas vezes decisivo para interpretação do significado da ação.

Entretanto, algumas ações são suficientemente nítidas e possuem limites definidos; essa

nitidez facilita seu reconhecimento. Em decorrência do fator perceptibilidade, usou-se o

critério de nitidez, isto é, a operação é demarcada em sua materialidade e se percebe nela que

há uma intenção de estabelecer um canal de comunicação entre interlocutores. A convocação

(chamamento, uma garantia de ser ouvido pelo TU) realiza-se por uma série de estruturas

identificáveis e esse será um aspecto considerado nesta análise.

Mas, ainda assim, a questão resiste. Por que selecionar um conjunto de ações e não

outro? Nesse caso, orientou-se pela perceptibilidade da operação. O gesto é uma ação que

pode ser percebida pela forma, direção, velocidade do movimento, mas o olhar, por exemplo,

ainda que opere em função da interlocução, não é fácil de ser captado devido a sua sutileza de

significação, não sendo, pois, essa uma tarefa simples. Diferenciar olhares interlocutivos de

outros que são apenas expressivos deve ser uma tarefa para uma minuciosa investigação

empírica, além de ser necessário um sofisticado aparato tecnológico. Portanto, não se optou

por esse tipo de operação, embora não se perceba indícios de que haja grau de importância

entre as ações selecionadas e as não selecionadas para mostrar a evidência do padrão.

O olhar é um subsistema que se manifesta com intensidade no processo interlocutivo.

Os movimentos de cabeça são produtivos e devem ser considerados implícitos no processo de

interlocução. Ainda que não sejam tomados como elementos de análise, o olhar e o

movimento de cabeça sempre serão mencionados como ações subtendidas, componentes de

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todas as interações de linguagem no gênero conversa.

Em uma visão norteada por teorias da complexidade, não se pode seccionar o objeto

sob pena de perder a globalidade do processo. É necessário considerar que o conjunto das

operações selecionadas para análise pode representar as operações que não foram

selecionadas, porque possuem o mesmo princípio de funcionamento. Como ainda se mostrará,

os atratores são definidores do comportamento dos sistemas complexos e essa condição impõe

ao sistema restrições que não permitem ser sua trajetória aleatória. Os atratores, em termos de

probabilidade, são numerosos, porém os que definem o curso do sistema são em pequena

quantidade, já que um corpo físico em movimento no espaço possui suas limitações naturais.

1.8.2 As fronteiras das OIs

Aceitando a ideia de que não se pode esgotar uma investigação ligada a objetos que

contenham algum grau de subjetividade, tomar-se-ão como parâmetro para identificar a

interlocução os movimentos de expressão do locutor com intenção de chamar a atenção do

interlocutor para si. O movimento que visa ao TU. O movimento pode ser com vistas a

introduzir uma sequência ou, simplesmente, manter o contato, como os supragramaticais ahn

ahn ou éh:: que indicam eu estou te ouvindo. Os limites das operações nem sempre são claros,

isto é, nem sempre se pode precisar onde começam e onde terminam; por essa razão,

pretende-se apontá-las como estruturas imersas no conjunto da interação.

1.8.3 Natureza das OIs: matéria e movimento

As OIs, de uma maneira geral, são formadas por ações que um EU executa visando

chamar a atenção do TU. Nessas operações fica evidente a apelação do EU para solicitar de

um TU algum movimento. As expressões de terceira pessoa, aquelas dedicadas à narração

(relatos de sobre um referente, R), diferem das expressões de interlocução. Estas têm a

peculiaridade de chamamento, as de terceira pessoa predicam sobre um R. É importante

distinguir que a predicação consiste no relato de um tempo não-presente e a interlocução foca

o presente enunciativo.

O objeto desta pesquisa são movimentos de linguagem voltados para o tempo espaço

enunciativo, em que a manifestação do EU visa solicitar a atenção do TU para a construção

desse espaço. Da relação das pessoas no espaço surgem as ações de linguagem e a partilha

simbólica que se constrói na interação. As pessoas movimentando-se no espaço criam as

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condições de linguagem, como postula Johnson (2007), associando corpo e ambiente como

condição para o surgimento das formas e significados. Por isso, os dados gravados em áudio e

vídeo podem revelar operações corporais e verbais possíveis de serem identificadas pela

estrutura do movimento.

A materialidade das OIs, considerando a língua verbal, está nas expressões de primeira

e segunda pessoa, entretanto, do ponto de vista das teorias da complexidade, não se pode

aceitar que a linguagem seja recortada e que o enfoque seja dado apenas à língua. Neste

trabalho, frisa-se mais uma vez, a interação de linguagem realiza-se pelo movimento do corpo

no espaço sob determinadas condições. Para a concretização da linguagem é preciso que

alguém aplique algum tipo de força, gerando um movimento a ser registrado; nesse

movimento a estrutura das operações de interlocução será exibida. Pode-se notar nas OIs o

comportamento motor – identificável por sua materialidade –, procedente de movimento e

esforço corporal, que pode ser do corpo como um todo ou de parte dele. Da mesma forma, os

itens sonoros no emprego da língua e seus contornos são adequados ao nicho físico e cultural

correspondente ao Ŧ.

Assim, pela materialidade das operações poder-se-á distingui-las e verificar seu

comportamento coordenado para a composição do espaço base para a interpretação do

discurso. As operações verbais são muito diversificadas, suas manifestações vão desde

elementos sonoros supragramaticais até as emissões oracionais. Mas a observação da cena

como um todo, mostrando o espaço e a completude da ação, permite distingui-las de outras

emissões sem finalidade interlocutiva. Assim também são os gestos. Eles só assumem algum

significado se forem apreendidos no momento de seu acontecimento. Por isso, a noção de

força e movimento no Ŧ é determinante para identificar não apenas as OIs, mas também

outros aspectos da ação de linguagem. Nesta pesquisa, para a apreensão da ação de

linguagem, não se pode prescindir de movimento e esforço estruturados num espaço e num

período de tempo. Deve-se, entretanto, afirmar-se que a força de que trata essa pesquisa não é

a força ilocucionária da Teoria dos atos de fala. Lá, sugere-se acerca da intenção de dizer e,

embora essa questão não seja dispensável em qualquer análise de significado, pretende-se

aqui, deslocar um pouco o eixo desse sentido de força para o movimento que os organismos

desprendem ao se manifestarem em uma interação de linguagem, permitindo assim que

possam ser identificados como uma materialidade linguística.

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2 O SER DE LINGUAGEM

Neste capítulo será mostrado que o objeto de estudo desta pesquisa – as operações de

interlocução – é mais do que apenas a convocação do TU por um EU: ele reflete, através de

sua estrutura e organização, a relação selfnonself, que é condição para o surgimento da

linguagem na espécie. Os pressupostos teóricos sustentarão uma noção em que a linguagem

emerge sob certas condições que a determinam, condições também determinadas no processo

interativo de seres humanos, portanto, um processo dinâmico, em que estão envolvidos vários

sistemas constituintes do humano – sensório-motor, perceptivo, atencional, emocional,

neuronal e outros.

O ser de linguagem que será considerado nesta pesquisa contém características

determinantes que o identificam como um organismo biocultural, um sistema adaptativo

complexo (SAC), resultante de muitos processos e eventos evolucionários que tornaram

possível o surgimento da linguagem. A concepção desse organismo, tal como será

apresentada, será condição fundamental para enquadrar a interlocução e, por inferência, a

linguagem como um sistema complexo biocultural.

2.1 Seres vivos

Como a proposta deste trabalho é assumir o humano como um SAC biocultural, é

necessário aludir à condição biológica de seres vivos em constante atividade. Maturana e

Varela (2010) propõem que a organização define os seres vivos, sendo a organização as

relações que têm que acontecer para que algo seja algo. “Quando estamos falando de seres

vivos, já estamos supondo que há algo em comum entre eles, do contrário não os

colocaríamos na mesma classe que designamos com o termo „vivo‟” (MATURANA;

VARELA, 2010, p. 52). Nessa afirmação, os autores estão apontando para o fato de que se

pode reconhecer alguma coisa como tal é porque se é capaz de reconhecer e classificar os

objetos que se conhece. Assim sendo, reconhecer os seres vivos implica conhecer qual é a

organização que os define como sendo uma classe. Consideram também que os seres vivos

caracterizam-se por produzirem, de modo contínuo, a si próprios e designam esse modo de

existência de organização autopoiética, proporcionada pela dinâmica celular (MATURANA;

VARELA, 2010).

Esses pesquisadores defendem que a vida é um processo de conhecimento e que os

seres vivos constroem o conhecimento interativamente, de modo que o conhecimento afeta o

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indivíduo e este interage com o conhecimento, dando a ele um aspecto particular conforme as

condições específicas a que é submetido.

Segundo Maturana e Varela (2010), o que caracteriza os seres vivos é sua organização

autopoiética e o que os diferencia entre si não é sua organização, mas suas estruturas. Assim,

o que caracteriza os organismos vivos como unidades autônomas é sua organização

autopoiética e o que os distingue é a estrutura.

Organização autopoiética consiste em uma rede metabólica gerada pelo movimento de

ácidos e proteínas. Esse processo catalítico não ocorre de modo isolado, mas, como coloca

Thompson (2007), requer uma grande família de moléculas. Essa propriedade dos sistemas

que são biológicos, físicos e químicos, de viverem organizados em um nicho, possivelmente

deve refletir no modo de organização social humana. A linguagem mesmo é um sistema que

só emerge da ação coletiva de pessoas em interação.

2.1.1 Organização e estrutura

A noção de organização e estrutura é, para esta pesquisa, de grande importância,

porque será com base na aceitação desse par indissociável que será delineada a análise.

Baseando-se em noções da biologia e dos sistemas complexos, pretende-se mostrar que a

organização e as estruturas dos sistemas envolvidos na interlocução possuem características e

padrões que os distinguem e os diferenciam, embora não sejam objetos completamente

isoláveis, mas interconexos, seguindo a propensão do sistema para interagir e seguir adiante

(PRIGOGINE; STENGERS, 1993).

A estabilidade e mutabilidade das ações de linguagem acontecem por causa do padrão

de organização desse sistema, ou seja, há uma configuração de relações características que

definem o sistema de um modo particular. Segundo Capra (2006), o entendimento da vida

começa com o entendimento do padrão e, ainda conforme o autor, a questão antiga de

substância e forma é hoje compreendida como o estudo da estrutura e do padrão. Capra

(2006) diz que no estudo da substância pesam-se e se medem as coisas e que os padrões não

podem ser medidos ou pesados, mas devem ser mapeadas suas configurações de relações.

Nos sistemas vivos, pode-se encontrar uma configuração de padrões ordenados e,

conforme Maturana (2001), a organização define a identidade de classe de um sistema; se a

organização muda, o sistema perde sua identidade e passa a ser outra coisa. Os componentes

permanecem, mas a configuração de relação entre eles se desfaz. Maturana (2001), a esse

respeito, assume a distinção entre organização e estrutura, usando o termo organização para

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as relações entre componentes que definem a identidade de classe de um sistema e o termo

estrutura para os componentes mais as relações entre eles. Percebe-se na distinção do autor

que a estrutura de um sistema contém o padrão, portanto padrão e estrutura não se separam.

Serem compostos por uma estrutura que mantém um padrão de organização é uma

característica dos seres vivos complexos. Maturana (2001) deduz disso que pode haver

mudanças estruturais sem perda de organização, atentando para o fato de que essa distinção

entre organização e estrutura permite indicar claramente o que é invariante num sistema e o

que pode mudar. Os termos organização e/ou padrão serão usados para se referir à relação

que determinadas estruturas estabelecem e a forma que assumem, exibindo os meios de

identificar o padrão de um sistema.

Os seres vivos humanos constroem seus sistemas de linguagem apoiados em sua

biologia e graças a sua evolução cerebral. São capazes de desenvolver padrões criativos a

partir de estruturas mais ou menos fixas. Tal como a gramática de línguas naturais que possui

um padrão definido, mas que assume significados diversos conforme a situação em que

emerge, lembrando que um sistema constitui-se mais pelo seu padrão do que pela própria

estrutura. Esse modelo de relação parece ocorrer tanto no nível do metabolismo celular, em

que as substâncias reagem provocando mudanças nas células, como no nível global do

organismo, que reage conforme percebe os estímulos do ambiente e os categoriza com base

no seu sistema de conhecimento. Assim, os estímulos podem provocar mudanças

imperceptíveis ou drásticas, dada as condições gerais da interação entre o organismo e o

ambiente, definindo, pois, as formas emergenciais de linguagem.

2.1.2 A vida em redes

A propriedade metabólica dos seres vivos coloca-os em uma condição de seres em

constante processo de mudança. Capra (2007) explica que esse metabolismo é realizado por

um incessante fluxo de energia e matéria, resultando em uma rede de reações químicas que

promovem no organismo a capacidade de se autogerar e se perpetuar transformando-se

continuamente. Essa condição biológica de permanecer em constante mudança é típica dos

organismos vivos. Segundo o autor, num organismo vivo encontram-se as seguintes

propriedades:

a) Manter-se em estado de não-equilíbrio, mantendo sua forma estável ao mesmo

tempo em que permanece em contínua transformação;

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b) Manter-se em redes metabólicas, operando com outros organismos situados em um

determinado espaço sensível, tridimensional (CAPRA, 2007).

Essas propriedades evidenciam que o permanente estado dinâmico do ser vivo requer

que se olhe para si como ser vivo complexo sempre em adaptação às situações novas. Com

respeito a isso, Capra diz:

Uma das percepções mais importantes da nova compreensão dos sistemas vivos é o

reconhecimento de que redes são o padrão básico da vida. Ecossistemas são

compreendidos em termos de redes de alimentação(redes de organismos);

organismos são redes de células, órgãos e sistemas de órgãos; e células são redes de

moléculas. A rede é um padrão que é comum a toda vida. Onde quer que vemos

vida, vemos redes. (CAPRA, 2007, p. 6, tradução nossa).6

Viver sempre em redes é condição natural para os seres vivos, sendo que para os

humanos essa condição não é apenas biológica; humanos desenvolveram um modo simbólico

de interagir que vai além da biologia.

Compreender a linguagem como sistema adaptativo complexo permite apreendê-la em

incessante interação com outros sistemas que, por sua vez, interagem com outros sistemas que

formam a teia de processos físicos e químicos.7 Desse ponto de vista, o universo simbólico

reflete os modos de interação e ação do qual emergem formas e estas interferem na interação

e, assim, sucessivamente, formando uma cadeia que se autorregula por princípios de

retroalimentação e organização adaptativa.

O meio em que o homem vive, também entendido como ambiente, compreende o

espaço físico, geográfico, histórico, os objetos que o cercam. Os seres (pássaros, cachorros,

gatos, pombos, árvores etc.) e um imenso conjunto humano composto por amigos,

companheiros, colegas, vizinhos, transeuntes, pessoas de relações comerciais e profissionais,

enfim, um universo repleto de variadas relações. Além desses elementos imediatos, há aqueles

que influenciam o ser humano e, de certa forma, fazem parte de sua vida. São os

compositores, escritores, músicos, artistas de um modo geral, com os quais se exerce uma

espécie de relação indireta, às vezes se deixando influenciar por suas obras ou mesmo por

suas atitudes pessoais.

As questões que envolvem o que pode ser característico dos seres vivos são muito

6 One of the most important insights of the new understanding of living systems is the recognition that

networks are the basic pattern of life. Ecosystems are understood in terms of food webs (networks of

organisms); organisms are networks of cells, organs, and organ systems; and cells are networks of molecules.

The network is a pattern that is common to all life. Wherever we see life, we see networks. 7 Para a ideia de teia como está sendo concebida nesta tese, confira Capra (2006).

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discutidas. Thompsom (2007) dedica um capítulo de seu livro Mind in life para apresentar

posições pertinentes à questão. Existem discussões importantes no que tange, por exemplo, à

amplitude da vida no planeta e à autonomia dos seres vivos. Dentre as discussões

apresentadas por diversos estudos da biologia e também de outras áreas da ciência – Lovelock

(1979, 1987, 1991), Lovelock e Margulis (2002), Morowitz (1992) citados por Thompsom

(2007) e Margulis e Sagan (2002) – está a de que a Terra seria um superorganismo vivo,

planetário. Uma questão que aparece, nesse caso, é se as matérias inorgânicas também

comporiam o grande sistema Gaia. Outra questão é o que caracteriza o ser vivo e qual é sua

autonomia em relação ao meio. Para os objetivos de Thompsom (2007), é suficiente manter

que qualquer sistema vivo é um sistema autopoiético, isto é, possui a capacidade de se

autogerar por meio de processos metabólicos. Entende-se que esses processos são importantes

para manter os organismos vivos em equilíbrio tanto biológica quanto simbolicamente. Isso

porque os modos humanos de interagir são governados por processos químicos, como é o

sistema de emoção. A esse tópico ainda será dedicada uma seção, em que se mostrará a

imbricação entre as reações químicas e seus reflexos no corpo, mediado por sistema

adaptativo de valores.

Não se pode pensar o humano sem considerar sua complexidade cotidiana biológica e

cultural, realizada, sobretudo, pela linguagem. Como seres de linguagem, conforme observa

Maturana (2001, p. 27), “o ser humano é um observador na experiência, ou no suceder do

viver na linguagem”. O autor afirma ainda que “nós, seres humanos, existimos na linguagem”

(MATURANA, 2001, p. 27). É, pois, condição inicial ser de linguagem; na relação com o

meio opera-se pela linguagem.

O agir humano promove um movimento mental e o movimento mental interfere no

agir, sendo esses movimentos os pilares da complexidade humana. São muitos os

componentes do humano que podem se entrecruzar para formar uma rede infinita de

possibilidades de agir. Os elementos advindos dos dados perceptivos, do pensamento, das

crenças, da vontade são numerosos e podem ser produzidos outros tantos a partir do

cruzamento desses dados. Essa possibilidade é o que caracteriza grande parte da

complexidade do ser humano.

2.2 Sobre a condição de seres de linguagem

Dentre os vários aspectos de transformação dos bípedes hominídeos, o crescimento do

cérebro e o desenvolvimento do aparelho fonador são marcantes. Segundo Maturana (2001),

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dos 450 cm3, há cerca de 3,5 milhões de anos, o cérebro passou à dimensão de 1450 cm

3 no

homem atual. Essas dimensões decorreram de um processo evolucionário à medida que

emergiram novas áreas cerebrais distintas especializadas, decorrentes de novas habilidades

que foram surgindo ao longo da história humana. Segundo Darwin (1992), a gradação através

da qual cada órgão isolado e cada animal com seus conjuntos de órgãos chegaram ao seu

estado atual, provavelmente, nunca será conhecida. Entretanto, a teoria da evolução das

espécies afirma que, quando os organismos de uma espécie são expostos a condições novas

durante um longo período, algumas mutações são definidas e estendidas às gerações

posteriores pelo processo reprodutivo.

Teria sido a qualidade de bípede, conforme Edelman (1989), a responsável pelo

alongamento da traqueia, o que tornou possível os desdobramentos vocais e suas articulações

para o desenvolvimento da linguagem, tal como se encontra nos seres humanos do presente.

Como nota o autor, são processos evolucionários graduais, desenvolvidos conforme as

vantagens seletivas dos hominídeos em suas trocas cotidianas para sobrevivência, tais como

caça, acasalamento e criação da prole. Todos esses processos contribuíram para ocorrer

mutações no cérebro, no trato vocal e nas expressões faciais de modo adaptativo

(EDELMAN, 1989).

Portanto, nesta pesquisa, está se considerando que o modo de interagir por meio da

linguagem é resultado de um longo processo de evolução, que emergiu a partir de interações

recorrentes, levando o homem a construir o sofisticado sistema de códigos que define seu

modo atual de interação.

A atuação social dá-se pela linguagem, muito da vida humana é dedicado à interação

pela linguagem. Quando se quer explicar a atuação do ser humano no estágio atual em que se

encontra, não se pode prescindir de compreender a linguagem como forma de interação entre

o organismo e o meio. De fato, pode-se perceber que o organismo é um sistema, o meio é um

sistema maior e a dinâmica das interações do organismo no meio permanecem em movimento

constante.

O processo de interlocução envolve o organismo em movimento, de modo que o

sistema sensório-motor realiza movimentos linguísticos com carga simbólica baseada em

valores, emoções, crenças, culturas e atividades coletivas. O sofisticado sistema simbólico

permite aos indivíduos desenvolverem um tipo de interação especial que ultrapassa as

necessidades de sobrevivência e reprodução.

Conforme Maturana (2001), os hominídeos que habitavam o planeta, há milhares de

anos, conviviam em grupos pequenos em constante interação, coletando e partilhando

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alimentos. Essa característica de partilhar é típica dos hominídeos. Segundo o autor, raras são

as espécies que apresentam essa peculiaridade. Ao compartilharem, segundo Maturana

(2001), os seres humanos comprometem-se uns com os outros e desenvolvem um tipo de

interação que envolve um encontro entre indivíduos. “O compartilhar é, em nós, um elemento

pertencente à nossa biologia, não pertence à cultura” (MATURANA, 2001, p. 93), assim, o

desenvolvimento humano decorre também da condição do partilhar e, em consequência, do

encontro sensual. Diz o autor: “Nós pertencemos a uma linhagem na qual se conserva o viver

em grupos pequenos em interações recorrentes, na sensualidade” (MATURANA, 2001, p.

94). Isso quer dizer que o homo sapiens não pode prescindir de viver em interação, sendo essa

uma condição natural de sobrevivência da espécie.

2.2.1 Arquitetura cerebral

A estrutura e a organização dos organismos humanos proporcionaram um desempenho

eficiente em termos de adaptação. Isso não quer dizer que nos tornamos uma espécie superior

às outras, mas o domínio de determinadas tecnologias propiciou um modo de vida em que as

relações não são apenas permeadas pela sobrevivência, mas por um modo cultural histórico

que não ocorre em nenhuma outra espécie. Essa peculiaridade tem profunda relação com o

desenvolvimento do cérebro humano, sua arquitetura e seu funcionamento, responsáveis pelo

surgimento da consciência e, enfim, da linguagem. Contudo, deve-se ressaltar que não se tem

a pretensão de apresentar uma descrição pormenorizada desse órgão, cuja riqueza de

funcionamento não foi alcançada nem pela própria neurociência, área especificamente

dedicada a ele. O que se propõe, nesta seção, é apresentar um esboço do que se assume como

organização e funcionamento cerebral, à medida que essas noções sejam importantes para

explicar como esse funcionamento manifesta-sena interlocução, objeto desta pesquisa.

Um longo processo evolutivo levou a sua morfologia atual, que compreende desde as

áreas mais antigas compartilhadas com criaturas ancestrais, como os répteis, por exemplo, até

as áreas mais recentes, exclusivas dos seres humanos, como são as áreas do córtex,

responsáveis pela ação e planejamento. Essas últimas, ligadas às funções de memória e

ordenação dos eventos no tempo. É um sistema altamente sofisticado devido à sua complexa

forma de organização.

O cérebro humano, conforme Edelman e Tononi (2000), contém cerca de cem bilhões

de células nervosas, chamadas neurônios. De acordo com Maturana e Varela (2010), essas

células possuem ramificações citoplasmáticas que permitem a elas estender-se por grandes

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distâncias, sendo essa uma característica presente em todos os organismos dotados de sistema

nervoso. Essa qualidade proporciona a integração desse tipo de célula com outras situadas em

diferentes partes do corpo. Segundo os autores, a presença física do neurônio permite o

transporte de substâncias entre duas regiões por um caminho específico que não afeta as

células circundantes. As células neuronais, ainda segundo Maturana e Varela (2010), ligam-se

a quase todos os tipos celulares, porém o mais comum é que suas expansões cheguem a outros

neurônios. A relação entre os neurônios dá-se por descargas elétricas e também pelo

transporte de substâncias químicas, por meio de prolongamentos chamados axônios e

dendritos. O contato sináptico entre os neurônios produz influências múltiplas entre eles. As

sinapses são consideradas por Maturana e Varela (2010) como estruturas que permitem o

relacionamento entre neurônios e destes com outros tipos de células. Do contato entre

neurônios e células sensoriais e motoras forma-se a rede neuronal, que constitui o sistema

nervoso. Os autores afirmam: “Forma-se assim uma rede tal que entre as superfícies

sensoriais e motoras há sempre uma teia de interconexões neuronais, o que constitui o

conjunto que chamamos de sistema nervoso” (MATURANA; VARELA 2010, p. 174).

O entendimento de que o cérebro é um órgão que rege todo o funcionamento do corpo

deve se expandir para as questões de linguagem abordadas nesta pesquisa, porque, nesta, a

linguagem é considerada como um sistema e, como tal, é sua condição estar sempre em

interação com o meio, portanto, com outros sistemas. Assim, numa interação, atua-se com os

corpos em movimento, carregados de intenções e de valores, cercados de objetos e outros

movimentos, e tudo isso pode interferir na emergência da linguagem.

Estudos relacionados às potencialidades do cérebro podem diferir em decorrência das

especificidades de cada área disciplinar, mas mantêm como base para o entendimento do

humano o nível atômico e molecular em que se encerra o princípio vital de busca pelo

equilíbrio. Os pesquisadores das áreas de neurociência e psicologia, Gallo e Furnman (2000),

partem do princípio de que a cognição realiza-se pela expressão molecular em um nível

subatômico, cujos princípios fundamentais são o padrão e a estrutura dos sistemas. Ao longo

de todo o primeiro capítulo do livro The Neurophisics of Human Behavior, os autores Gallo e

Furnman (2000) desenham uma concepção da arquitetura tal como Edelman e Tononi (2000).

Ainda que a tônica daqueles se volte para modelos de processamento da informação, para eles

os processos complexos partem de submodalidades para a atividade global. “Certas

organizações de linhas do tempo e submodalidades se tornaram possíveis ou impossíveis

conforme o resultado das alterações da morfologia celular” (GALLO; FURMAN, 2000, p. 27)

decorrente de processos químicos.

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Ainda segundo Gallo e Furnman (2000), a repetição de modelos e ausência de

modelos perceptivos – considerados pelos autores como dados informacionais – produzem

profunda reorganização das redes de informação no cérebro humano. As experiências novas

modificam as velhas e, assim, a arquitetura cerebral mantém-se em constante mudança e as

redes neurais adaptam-se associando estímulos novos a estruturas já existentes, produzindo

novas estruturas.

Se se considerar que em cada neurônio há milhares de terminações sinápticas de outras

centenas de neurônios e que estes conectados influenciam-se, reciprocamente, por meio de

transporte metabólico, chega-se a um arranjo infinito de combinações. As atividades motora e

sensorial geram mudanças nas células neuronais, e estas, alteradas, afetam o comportamento

motor e sensorial. Uma correlação entre as superfícies sensoriais e motoras indicam que o

comportamento externo de um organismo tem sua gênese no interior do sistema nervoso.

(MATURANA; VARELA, 2010). Essa organização parece refletida no modo como se realiza

as operações de linguagem, especificamente a interlocução, que se mostrará como um sistema

realizado por submodalidades sensoriais, motoras, cognitivas e simbólicas. Os seres humanos

em operações de linguagem ativam diferentes sistemas, de forma que as emissões verbais

emergem moduladas por gestos, expressões faciais e movimentos gerais.

A globalidade do funcionamento neuronal indica que a ação humana resulta de

processos originados na atividade distribuída entre partes do cérebro, do corpo e da

percepção, uma vez que sinais provenientes do ambiente e do interior do organismo são

captados, processados e categorizados, passando a fazer parte da ação como um todo.

2.2.2 Noções da Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais

A Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais (TNGS), do neurocientista Edelman

(1987, 1989), parte da seguinte premissa: o mundo não é compartimentado em objetos e

eventos que as criaturas viventes reconhecem e assimilam. Em princípio, conforme Edelman

(1987), o mundo é um lugar não rotulado, cujos valores negativos e positivos atribuídos a

objetos e eventos não são absolutos. Um sistema nervoso ricamente estruturado como o

humano possui, conforme Edelman (1987), estrutura e função que permitem a ocorrência de

categorização perceptual como base para o comportamento adaptativo, envolvendo

aprendizagem e significação.

De acordo com a teoria de Edelman (1987), o cérebro é dinamicamente organizado em

populações celulares, contendo redes variantes selecionadas por diferentes meios. Durante o

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desenvolvimento e comportamento dos indivíduos, formam-se as unidades de seleção, que

“são coleções de centenas de milhares de neurônios fortemente interconectados, chamados

grupos neuronais, que agem como unidades funcionais” (EDELMAN, 1987, p. 5). A

atividade celular dos grupos neuronais faz com que eles se organizem especializando ou

deixando de existir conforme o indivíduo realiza sua experiência no mundo. Por isso, explica

Edelman (1987), não há dois indivíduos com conectividade idêntica em regiões

correspondentes do cérebro, e isso os identifica como seres únicos, possuidores de um e

apenas um ponto de vista do qual avaliam o mundo ao seu redor.

Para Edelman (1989), a existência da espécie humana compreende sistemas inter-

relacionados que, por sua vez, compreendem o metabolismo de funções básicas, como

batimentos cardíacos, respiração, reflexos básicos motores, sistema imunológico,

comportamento de prazer e dor em função do bem-estar, ligados ao córtex primário; e as

funções de memória, de consciência do EU e do tempo não-presente, ligados à consciência de

ordem superior. Assim, os sinais que o cérebro identifica e que interferem em sua estrutura

provêm de categorizações internas vindas dos próprios órgãos e de categorizações de sinais

externos vindos do mundo, posteriormente internalizados e processados na atividade cerebral.

Portanto, para o cérebro, mesmo os sinais que são originados por estímulos do mundo

“exterior” são processados por meio de circuitos e provocam mudanças na estrutura neuronal.

A TSGN, de Edelman (1989), propõe: os mecanismos estruturais do cérebro agem

sobre coleções de centenas de milhares de neurônios interconectados cujas características são

afetadas pela história desenvolvimental e funcional e pela natureza dos sinais que recebem em

qualquer tempo. Dessa atividade emergem estruturas dinâmicas que podem ser consideradas

pressupostos fundamentais para teoria: a) seleção desenvolvimental – os grupos neuronais

possuem uma dinâmica proveniente da morfologia do organismo, desenvolvida ao longo de

sua história evolucionária, e ligada à dinâmica molecular das células neuronais. Esse

movimento resulta na variação neuroanatômica em dadas regiões, responsável pela formação

dos repertórios primários8 mais ou menos fixos; b) seleção experiencial – os grupos neuronais

são formados por meio de sinais advindos da experiência do organismo com o ambiente e

formam uma grande variedade de conexões dentro e entre os grupos neuronais. Essa etapa

leva à formação de circuitos variantes constituintes do repertório secundário; c) mapeamento

8 Entende-se por repertórios primários as especializações dos grupos neuronais relativas a funções genéticas

ligadas a manutenção da vida do organismo.

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reentrante – consiste na conectividade de grupos, da qual emergem mapas ligando lâminas9

receptoras sensoriais a particulares regiões do sistema nervoso. Nessa etapa, modelos de sinal

do mundo governados por leis espaçotemporais são distribuídos dentro de áreas mapeadas,

possibilitando a interconexão dessas pelo processo de reentrância (EDELMAN, 1989).

Explicando novamente, reentrância é um processo de sinalização paralela que ocorre

temporariamente entre mapas de conexões anatômicas diferentes. Essas correlações, dirigidas

inicialmente por estímulos do tempo e espaço vindos do córtex primário, são ligadas a grupos

neuronais em diferentes áreas cerebrais. Recebendo estímulos disjuntos, estruturas reentrantes

fortalecem conexões entre mapas e levam ao aparecimento de mapas de ordem superior,

ligados a funções de categorização e generalização, atividades necessárias ao aprendizado e à

linguagem.

Essa morfologia cerebral é o que permite que se categorize o mundo do modo como se

faz. Para Edelman (1989), a categorização perceptual é a discriminação adaptativa de um

objeto do fundo ou de outros objetos, e a generalização refere-se ao tratamento, em um

contexto dado, de uma coleção de objetos em relação a outros. Assim, o processo de

categorização compreende o reconhecimento dos objetos e sua organização em forma de

conhecimento.

Essas noções, apesar de abordadas de modo bem simplificado, são importantes porque

apresentam os processos internos cerebrais a partir dos quais são realizadas as ações dos

organismos em sua interação com o ambiente e, consequentemente, os processos de

linguagem que emergem dessa interação.

Faz-se ainda necessário apresentar noções relativas aos processos envolvidos na

consciência e formular uma base para o entendimento da linguagem como um sistema

complexo. Sistema esse que é consequente ao modo como se desenvolvem as ações de

interação, levando em conta um corpo físico e mental que age de acordo com seus estados de

consciência. Assim, as próximas seções serão dedicadas a apresentar as noções de consciência

e memória necessárias à pesquisa.

2.2.3 Consciência

Por razões óbvias não se tem a pretensão de discutir com profundidade questões tão

9 De acordo com Edelman (1989, p. 49), lâminas perceptivas podem ser consideradas flashes sensoriais que o

organismo conta como estímulos do ambiente, processados que refletem na atividade neuronal. Pode também

se tratar de qualia, tal como em Edelman e Tononi (2000, p. 157-175).

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antigas, extensas e complexas como a consciência. Entretanto, é necessário apresentar a noção

do que, nesta pesquisa, está sendo entendido por consciência e memória.

Resultante de processos profundamente entrelaçados ao funcionamento do sistema

nervoso e aos estados conscientes, as unidades simbólicas requerem atenção conjunta para um

ponto. Sobre os processos conscientes, neste trabalho, serão assumidas as proposições de

Edelman e Tononi (2000), segundo as quais a consciência deriva de atividade neural

distribuída. No livro A Universe of Consciousness: How Mater Becomes Imagination, os

autores defendem a posição de que a consciência resulta de uma atividade integrada por várias

regiões do cérebro e, devido à sua plasticidade, em qualquer tempo, experimenta-se um estado

particular de consciência, selecionado entre bilhões de estados possíveis que podem levar às

mais diversas reações comportamentais.

Em relação aos mecanismos neurais conscientes, Edelman e Tononi (2000) assumem

três premissas básicas, que norteiam os processos neurais subjacentes à experiência

consciente. A primeira é de que a experiência consciente está associada com a atividade

neural, distribuída, simultaneamente, através de grupos neuronais em muitas regiões do

cérebro, não sendo, portanto, uma prerrogativa de uma única área cerebral. A segunda

premissa diz que a experiência consciente sustenta-se por meio de um grande número de

grupos neuronais, interagindo rápida e reciprocamente através de processos reentrantes. Esses

processos referem-se a acessos que permitem a conexão entre áreas diferentes. Sem esses

acessos, a consciência poderia ficar limitada ou mesmo ser bloqueada. A terceira é de que os

padrões de atividade dos grupos neuronais que sustentam a experiência consciente devem

mudar constante e suficientemente, diferenciando-se uns dos outros. Se um grande número de

neurônios no cérebro acenderem do mesmo jeito, a diversidade de repertórios fica reduzida e

se configuram estados como os de sono profundo ou ausência de consciência.

Consciência, para James citado por Edelman (1989), não é uma coisa, mas um

processo. É pessoal, variável, contínua e lida com objetos selecionados independentes de si

mesma. Ou seja, se há um processo em que o self interage com algo que não é si mesmo,

então, há consciência.

Edelman (1989) diz ainda que a consciência está em algum ponto entre a vontade e a

decisão. Além disso, afirma que a consciência como processo organiza-se numa sequência

temporal como pulsos que se sucedem. Um exemplo empírico que dá indícios de que essa

teoria esteja certa é que se pode mudar o foco do pensamento de uma maneira ilimitada, e isso

interfere no modo como se constroem os sistemas simbólicos com que o ser humano interage.

Para Damasio (1999), não há consciência sem cérebro; para ele, consciência é um

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processo biologicamente determinado. Segundo o autor, os seres humanos não apenas são

conscientes da passagem de eventos, mas são conscientes de sua própria consciência de seres

participantes da vida. Os acontecimentos são processados e considerados e os seres humanos

têm plenos sentimentos conscientes sobre eles. Damasio (1999) considera também que o

sistema de consciência dos humanos inclui emoções e sentimentos, porque esses são aspectos

decisivos para sua sobrevivência e fornecem vantagem adaptativa à espécie.

Damasio (1999) considera, tal como Edelman (1989), a existência de duas camadas de

consciência nos humanos: a consciência do self no presente, que ele chama de núcleo da

consciência – também pertencente a muitas outras espécies animais, como os mamíferos, por

exemplo –, e a consciência superior estendida – consciência do self que se refere a si mesmo

em tempos e lugares não-presentes –, que possui níveis relativos a habilidades de linguagem,

ao sentido de passado e presente e ao sentido da criatividade artística e científica.

Essa noção de consciência sugere uma decisão, isto é, o organismo seleciona um

objeto em conformidade com sua vontade e o distingue entre uma coleção efêmera. A

distinção entre os objetos só se realiza mediante um sistema de classificação e generalização,

pelo qual os objetos são destacados de seu entorno e, em seguida, relacionados a outros

objetos. Edelman (1989) denomina esse processo de categorização.

A atividade de categorização está envolvida com a identificação e discriminação de

objetos percebidos e é fundamental para o agir humano e interagir no mundo. É preciso que se

saiba diferenciar o fogo da água. É a capacidade cognitiva que permite se conhecerem as

características dos objetos e, a partir disso, orientar as ações no espaço. Não se coloca a mão

sobre a chama do fogão, mas se permite colocar a mão sob o fluxo de água que sai da torneira. O

que se faz tomar essa decisão é o reconhecimento que se tem das propriedades de cada objeto e o

modo como se pode relacionar com ele. Isso mostra como o processo de experiência consciente

depende de processos que são anteriores a ele, como a percepção e atenção, pois se categorizam

os objetos que são percebidos.

Importante a ser apresentada sobre a consciência é a noção de consciência primária e

de ordem superior, estabelecida por diversas pesquisas neurocientíficas (EDELMAN, 1987,

1989; EDELMAN; TONONI, 2000; MARCHETTI, 2010). A primeira é ligada a

comportamentos biológicos de categorização de objetos e eventos, e a segunda à memória,

relação selfnonself e linguagem.

Edelman (1989) aponta as condições de surgimento da consciência primária. Segundo

o autor, uma delas seria a emergência de conexões entre várias áreas cerebrais, responsáveis

pela formação de conceitos – atribuição de valores a objetos e eventos – e áreas ligadas aos

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sistemas de valores – ligados à condição de bem-estar, governados pelas reações hedônicas do

organismo. Outra seria a emergência de uma forma de memória conceitual definida por

categorização e valor, resultante das conexões entre diferentes áreas. Essa memória relaciona

categorias e valores formando sistemas interoceptivos – que são sinais internos, advindos do

interior do organismo na luta pela homeostase – e de sinais exteroceptivos – gerados na

relação do organismo com o ambiente. A terceira condição para o referido surgimento seria a

evolução de circuitos especiais para realizar uma sinalização reentrante, ligando o

componente de memória categoria-valor (conceitual) com o componente da categorização dos

estímulos percebidos no tempo real.

A consciência de ordem superior, por sua vez requer, além dos componentes relativos

à consciência primária, uma memória de longo termo e estruturas neuronais que permitam a

distinção selfnonself, de forma que o organismo possa distinguir-se do ambiente e ter sobre si

uma autoconsciência. Edelman (1989) explica que a categoria self permite ao organismo fazer

discriminação entre ele e outros indivíduos, criando, assim, um sistema de valores

simbolizados por formas construídas na própria interação. Pode-se notar na concepção do

autor que a consciência de ordem superior constitui-se por um processo que inclui a

consciência de estar consciente, a construção de um sistema de valores simbolizado de

diversas formas e a existência de uma estrutura de memória de longo termo, pela qual os itens

simbólicos são organizados em estruturas neuronais – obviamente não de modo estático – e

recuperados para fins interativos ou, para usar o termo de Edelman (1989), para fins

comunicativos.

2.2.4 Memória

A noção de memória10 é considerada, neste trabalho, como uma capacidade adaptativa

adquirida ao longo do processo evolucionário e relacionada com a consciência primária e a

consciência de ordem superior. Pode-se observar no quadro teórico de Edelman que a

consciência primária é um processo dependente de conexões entre áreas cerebrais, formando

mapas relacionados à categoria e ao valor. Identificados, os objetos e eventos passam a

compor o sistema conceitual por que o organismo baliza-se para planejar e realizar suas ações.

Assim, a consciência primária responde pela manutenção do organismo vivo, em condições

10

A memória para Edelman (1989) não é um depósito de informações ao qual o indivíduo recorre quando quer

recuperar dados, mas é um processo ativo de recategorização de estímulos já estabelecidos em mapas

interconectados.

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de bem-estar, o qual precisa da memória para mantê-lo prevenido com o que vai encontrar no

seu caminho. O universo de conceitos organizados serve como um guia para a manutenção do

bem-estar, ou seja, para a busca da homeostase. Isso indica que a memória é responsável por

manter o sistema conceitual através do qual o organismo orienta-se para realizar suas ações.

Todos esses processos ocorrem em termos de circuitos neuronais formados por grupos

de neurônios que interagem de uma maneira muito plástica. Edelman (1989) afirma que a

consciência primária resulta da interação em tempo real entre memórias de categoria-valor e

estímulos do mundo presente, categorizados por mapeamento global. Esses estímulos são

componentes da consciência primária antes que esses mapeamentos sejam alterados por

estados internos e passem a ser categorizados na memória como uma categoria-valor. “É a

comparação discriminativa entre uma memória determinada pelo valor envolvendo o sistema

conceitual e o fluxo de atuais categorizações perceptuais que gera a consciência primária de

objetos e eventos” (EDELMAN, 1989, p. 155, tradução nossa).11 Portanto, a memória é

condição para a consciência e o é, certamente, para a linguagem, pois ela pode ser entendida

como estruturas neurais que mantêm certas regularidades, as quais, por sua vez, poderiam

corresponder ao sistema conceitual pelo qual o organismo orienta-se para se manter vivo e

bem.

Pode-se notar que a consciência primária está ligada aos sinais do presente e à

memória e, por isso, ao passado. Entretanto, a consciência de ordem superior, como já foi

visto, está relacionada com a capacidade de fazer planos e de se referir ao passado por meio

da linguagem, portanto, uma atividade prospectiva, que se desenvolve em sucessão linear no

tempo. Edelman (1989) sustenta que a consciência de ordem superior não pode emergir sem a

atividade de um sistema especial de memória para realizar a distinção selfnonself no sentido

social. Quando Edelman (1989) reforça que se trata de uma distinção no sentido social e não

biológico, ele quer dizer no sentido das interações simbólicas, em que conceitos são

categorizados e trocados entre os coespecíficos. Para o autor, a linguagem é a maior evidência

da consciência de ordem superior, é uma habilidade para modelar estados internos, livres do

tempo real e referentes ao passado, presente e futuro (EDELMAN, 1989). Na perspectiva da

linguagem, é possível verificar o quanto a memória é fundamental, pois ela permite referir

conceitos que não estão no tempo real, mas que estão em um espaço cognitivo constituído a

partir de estruturas neuronais relativamente constantes, porém sujeitas a desgastes e até as

transformações advindas do uso.

11

It is the discriminative comparison between a value-dominated memory involving the conceptual system and

current ongoing perceptual categorization that generates primary consciousness of objects and events.

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Por último, é importante mencionar que a área da história, disciplina que tem como um

dos principais objetos de estudo a memória, vem acatando a ideia de que memória é um

objeto construído a partir de um ponto de vista que a ela é crucial para determinar as próprias

características. O historiador Le Goff (2003) assume que a memória, como capacidade de

conservar certas informações, remete o ser humano a um conjunto de funções psíquicas pelas

quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa

como passadas. O autor defende que, desse ponto de vista, o estudo da memória envolve

psicofisiologia, neurofisiologia e biologia, evocando traços e problemas da memória histórica

e social. Ele também observa que as teorias que aceitam ideias de memória como uma

atualização de vestígios mnemônicos foram abandonadas em favor de ideias mais complexas

da atividade mnemônica do cérebro e do sistema nervoso.

Na visão de Le Goff (2003), existe uma tendência recente de aproximar a memória de

fenômenos diretamente ligados à esfera das ciências humanas e sociais. Assim, considera-se

que o comportamento narrativo é um ato mnemônico fundamental, com a finalidade de

transmitir informações na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui seu motivo.

Dessa forma, a linguagem é aceita como uma extensão das possibilidades de armazenamento

da memória que pode transpor os limites físicos do corpo.

Além de admitir que memória seja um conceito amplo que se estende por várias áreas

das ciências, como a noção de memória biológica para a transmissão genética, Le Goff (2003)

assume que a evolução do mundo contemporâneo caminha na direção de um mundo acrescido

de memórias coletivas, de forma que o nível individual enraíza-se no social e no coletivo.

Uma questão fundamental em relação à memória vista pela perspectiva histórica é: primeiro,

seu caráter auto-organizador que, conforme Le Goff (2003), consiste no fato de que os

vestígios registrados em centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico

organizam-se como estruturas que se integram a atividades perceptivo-cognitivas; segundo,

sua força social e coletiva que penetra na ação individual fazendo com que a reconstrução de

eventos e objetos seja sempre um apelo a uma dada cultura, que molda seus indivíduos e é

moldada por eles, de forma que a memória seja sempre acrescida de atualização que se

processa no momento da interação de linguagem.

Vista dessa forma, a memória é um processo e não uma coisa e, por isso, está sempre

sujeita àquele que a cria e às condições em que é criada. Essa é uma questão importante,

porque, embora o objeto deste trabalho não seja o processo de categorização e memória, esses

são elementos determinantes na interação de linguagem, visto que podem influenciar as formas

durante a interação ou mesmo alterar seu curso ao ponto de transformá-la completamente.

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2.2.5 Aparato sensorial

Nos seres humanos, a interconexão entre os sistemas componentes é facilmente

observável, a começar pela constituição das células animais e dos processos por que passam

os diversos sistemas (respiratório, digestivo, etc.), formando um organismo cujos órgãos são

integrados e permanecem em constante interação. A dinâmica dos seres vivos, segundo

Larsen-Freeman e Cameron (2008), é prospectiva. As autoras chamam a atenção para o fato

de que sistemas dinâmicos mudam com o tempo e de que os estados futuros dependem do

estado presente. O modo de funcionamento do organismo, baseado em forma de redes

dinâmicas percepto-sensoriais e simbólicas, sempre em renovação, indica uma tendência

dinâmica das organizações humanas. Desde a organização espacial sensório-motora até as

operações abstratas de raciocínio, tudo constitui uma rede multidimensional que resulta da

atividade do organismo ao interagir no ambiente. Ao agir, o organismo constrói numerosas

imagens que computa em maior ou menor escala e, dependendo do foco de sua atenção12, ele

pode descartar ou assimilar informações.

Percebe-se o mundo a partir de sensores, que podem ser imagens visuais, sons,

sensações térmicas, odores, sabores, emoções, enfim, sensações e percepções que emergem

do processamento cerebral. As sínteses das percepções tornam-se imagens e somam para o

processamento da ação. Arnheim (2008, p. 5) diz que “os mesmos princípios atuam em todas

as capacidades mentais porque a mente sempre funciona como um todo. Toda percepção é

também pensamento, todo raciocínio é também intuição, toda observação é também

invenção.” Não há outra forma de se viver sem ser interagindo no ambiente, e a dinâmica da

interação coloca o ser humano em um processamento contínuo de informações advindas de

naturezas diversas. Arnheim (2008, p. 9) afirma que “o ato de olhar o mundo provou exigir

uma interação entre propriedades supridas pelo objeto e a natureza do sujeito que observa”,

assim, realizam-se inferências ao se organizar sínteses de modo particular, conforme o

percurso de cada pessoa no ambiente. Schaefer-Simmern citado por Arnheim (2008, p. 9)

assegura que “a mente na luta por uma concepção mais ordenada da realidade procede de um

modo legítimo e lógico desde padrões perceptivamente mais simples aos mais complexos”.

Isso indica que é uma condição natural sempre se estar buscando organizar e dar significado

para o mundo circundante.

12

Também o sistema de atenção obedece a princípios peculiares dos quais dependem a ação do indivíduo no

espaço. Dependendo do foco, o resultado de uma interação pode alterar-se de diversas maneiras. Para saber

mais sobre essa questão, conferir Oakley (2009).

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As interações físicas no meio em que se vive permitem o surgimento dos significados.

Essa é a proposta de Lakoff e Johnson (1980) no que diz respeito à relação entre a orientação

motora e sensorial e a construção dos significados. A projeção corporal no espaço e no tempo

e o inventário experiencial constituem a corporalização como origem do processo de

linguagem. Também a dinâmica que as pessoas realizam durante a interação influencia o

surgimento de categorias para discriminar objetos e eventos.

Para Lakoff e Johnson (1980, p. 3) “nosso sistema conceitual é amplamente

metafórico”, isto é, constroem-se sistemas de conceitos baseados em experiências e essas vão

sendo redimensionadas a cada situação. Assim, o modo como se está inserido no mundo

determina o modo como se constrói a linguagem, e isso reflete a maneira como se organiza a

experiência e como se percebem e se categorizam os objetos e eventos circundantes.

2.2.6 Sistema motor

Johnson (2007), Lakoff (2008), Lakoff e Johnson (1980, 1999), Gibbs (2005) e muitos

outros autores defendem que a linguagem simbólica origina-se da ação do corpo no ambiente.

De fato, existem muitas comprovações de que a criação de conceitos abstratos origina-se na

orientação do corpo no espaço. Assim, conceitos como o de subir, por exemplo, estendem-se

em sentido metafórico para outros domínios, como na ideia expressa em a carne subiu,

relativa ao preço da carne, e se remetem a um código numérico criado como artefato para

referir-se a direções no mundo material. A ideia de categorias como contêineres, domínio

fonte, domínio alvo, o amor é uma jornada, dentre muitos outros tipos de relações, segundo

os autores, estabelecem-se entre o mundo espacial, geométrico, tridimensional, experienciado

e o mundo mental dos organismos em interação. Dessa interface emerge o mundo conceitual,

criado a partir da realização linguística. A habilidade para agir em reação a um objeto ou

evento depende da seleção que o organismo faz dos elementos que categoriza. Segundo

Edelman (1989), a categorização ocorre por causa de múltiplas interações entre mapas locais

resultantes de atividade sensório-motora. A coordenação dos movimentos, por sua vez, resulta

do processo de atenção e este resulta de uma variação de grandezas no campo perceptivo e no

campo volitivo e emocional. Isso sugere que planos motores estão ligados à atenção e esta à

consciência do corpo no espaço.

A importância de considerar o corpo em movimento como base para a criação da

linguagem tem sido uma tendência forte nas linguísticas cognitivas. Lakoff e Nunez (2000)

aceitam que programas neurais de controle motor possuem a mesma estrutura para a

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inferência racional de aspectos dos eventos percebidos. Os autores apresentam um modelo da

ação humana baseado na conexão entre processos neurais, desenvolvido por Narayanan

(1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000).

Segundo Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000), os programas neurais

do controle motor possuem a mesma superestrutura: condições e disposição para realizar a

ação corporal; começo do processo, início da ação; realização do processo principal;

interrupção e recomeço; repetição e continuidade; checagem do cumprimento do objetivo;

realização de algo necessário para completar a ação; resultados e consequências que a ação

realizada provoca. Essa estrutura da ação é, segundo o autor, a mesma estrutura usada para

raciocínios ligados a eventos.

O uso do conceito evento, para Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000),

está ligado às condições globais de interação. Neste conceito, estão o mundo perceptivo dos

falantes – que compreende o corpo no espaço, partilhando perspectivas que se remodelam a

cada tempo -, e o mundo mental - que possui estruturas abstratas infinitamente plásticas. A

ideia de evento do autor está ligada ao aspecto global que reúne as categorias de pessoa,

tempo, espaço e modo, de forma que a percepção simultânea dessas categorias acrescenta a

elas a dinâmica do processo e sua permanente reorganização. Os eventos construídos podem

permanecer no foco da percepção ou desaparecer para que surjam outros e mais outros.

Os resultados de Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000) evidenciaram

que o modo como se organiza e se constrói o mundo físico e biológico estrutura-se da mesma

forma que o raciocínio inferencial. Isso leva à evidência de que a linguagem emerge na ação e

esta se modela conforme uma série de restrições dos subsistemas humanos como arquitetura

cerebral, atenção, percepção, emoção. Portanto, a linguagem reflete o evento e manifesta suas

qualidades a partir de formas diversas que se revelam nos aspectos gramaticais e modais

somados aos aspectos advindos da relação dos organismos no espaço de interação.

A aceitação de que a língua molda-se na linguagem do corpo em movimento liga o

processo de construção de linguagem à atividade atencional, pela qual o ser humano

movimenta-se e que, segundo Marchetti (2010), provém de uma energia nervosa. Segundo o

autor, essa energia nervosa é responsável pela qualidade fenomênica e pelo aspecto seletivo

da consciência. O órgão da atenção é a fonte da energia nervosa do organismo que permite a

ele operar atencionalmente, mas se deve deixar claro que não se trata de um órgão com limites

definidos, e sim de estruturas nervosas baseadas em esquemas inatos de ação e memória de

longo termo, que fornecem as instruções para a percepção, movimento, ação e interação.

Para Marchetti (2010), a atividade atencional é o núcleo do sistema perceptual e

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interfere na variação do estado da energia nervosa, que constitui a consciência pela qual a

pessoa emerge e forma o esquema do self de acordo com princípios de sobrevivência, “opera

a fim de continuar operando” (MARCHETTI, 2010, p. 17). O esquema do self, nesse caso,

equipa o organismo com a capacidade de se autorregular e encontrar o melhor meio de se

adaptar, criando estratégias e metas. Isso constitui a passagem do consciente para a

autoconsciência - que é a consciência dos limites operatórios do organismo -, que monitora a

atividade do organismo e, conscientemente, percebe seus próprios movimentos, operações,

gestos etc. A percepção consciente de sua atividade informa o organismo sobre suas

dimensões, limites, fronteiras e possibilidades de seu corpo; são essas, segundo o autor, as

orientações para o esquema do self.

Na visão de Marchetti (2010), a noção de atenção, percepção e consciência mostra-se

indissociável. O autor afirma que os limites da pessoa tornam-se possíveis devido às

sensações e aos sentimentos que o organismo tem. Se a ação flui, o organismo sente-se livre e

positivamente estimulado; se algo dificulta ou impede sua atividade, ele tem que fazer esforço

para superar a dificuldade e, assim, gasta sua energia nervosa para superar a dor e frustração.

É exatamente o limite do esforço e da dor que estabelece os limites da pessoa e a diferencia de

outras e do ambiente. “As fronteiras de seu corpo são determinadas pelos sentimentos de dor e

frustração que ela tem quando age. [...] A pessoa é sua ação” (MARCHETTI, 2010, p. 17).

Essas convicções realçam o vínculo existente entre os processos motores e os processos de

criação de linguagem e reforçam o que já foi exposto a respeito das convicções dos autores

citados no início desta seção: a linguagem emerge da ação do organismo no ambiente.

Presume-se, assim, que os processos de criação verbal emergem de ações, intenções, atenção,

consciência, enfim, do organismo humano com todas as suas propriedades engajado nas

interações.

Para finalizar esta seção, ressalta-se Johnson (2007), para quem o significar emerge da

mais baixa consciência da consciência. Segundo ele, o significado vem do encontro corporal

com o mundo antes mesmo que se aperceba deste. Portanto, para o autor, abaixo das palavras

e das sentenças, existem experiências que dão a elas aspectos só apreensíveis no Ŧ.

2.2.7 Sensação e percepção

Para a construção do conhecimento dispõe-se de um aparato orgânico sensorial que

compreende os sistemas visual, auditivo, olfatório, tátil e gustativo, organizados no corpo

físico, que se constitui como um ponto de vista para as sensações, percepções e emoções.

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A discussão acerca das propriedades do sentir e do perceber não é recente. Condillac

(1984), em sua obra de 1754, assume que a origem do conhecimento está nas sensações. Para

Condillac (1984), os sentidos são a causa ocasional das sensações das quais nasce todo o

sistema do homem, no qual as partes são ligadas e se sustentam mutuamente. Decerto que o

autor não se baseava na mesma epistemologia que guia hoje os estudos da cognição humana,

entretanto, suas conclusões coadunam-se com as da atualidade, uma vez que, segundo

concepções atuais – a ciência cognitiva moderna, as teorias da complexidade, as noções de

corporalização são alguns exemplos – o organismo humano é um sistema formado por

subsistemas interdependentes que se auto-organizam a partir das sensações advindas da

interação entre organismo e meio.

Condillac (1984) afirma também que o ser humano conduz sua atenção de um objeto a

outro e percorre todas as sensações que esses produzem sobre ele. Desse modo, o ser humano

descobre, por uma série de comparações e julgamentos, as relações entre tais objetos; o

resultado desses julgamentos, por sua vez, é a ideia que forma sobre cada um deles.

No entender de Condillac (1984), a sensação, após ter sido atenção, comparação,

julgamento, torna-se reflexão. As concepções do autor assemelham-se às ideias recentes de

que é por meio da atenção que se dispensa aos objetos, na interação com o meio, que se

constroem os modos de conhecer o mundo. Quando se percebe uma dada situação, essa é

apreendidade forma global, ainda que determinados detalhes sejam mais nítidos que outros, a

depender da atenção que se imprime a eles.

Os sensores são requisitos básicos para a percepção. O olho, por exemplo, possui uma

conformação específica para perceber estímulos diversos. A visão é um complexo sistema que

compreende a percepção de movimentos, formas, distâncias, contornos, cores, com grupos de

neurônios especializados para perceber tais estímulos. Segundo Meyer (1997), a percepção

das cores seria primordial para reconhecimento de distâncias, contornos, profundidades, pois

oferecem um contraste para a definição dos objetos. Dentre as células retinianas, os

bastonetes, em número de cem milhões em cada olho, veem a luz branca de baixa intensidade,

e os cones, em número de sete milhões, reconhecem as cores devido aos seus pigmentos

vermelhos, verdes ou azuis. A retina possui elementos sensíveis à luz natural e outros

sensíveis a diferentes comprimentos de onda coloridos. Essa qualidade do olho humano é

apenas um detalhe de como o organismo é dotado de uma infinidade de particularidades que o

torna sensível aos diversos tipos de estímulos (MEYER, 1997).

A audição e suas especificidades também constituem um modelo sensorial particular e

detalhado, cuja funcionalidade associa-se a grupos neuronais específicos. Segundo Crowder

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(1994), são vários os padrões de memorização auditiva e esses envolvem áreas cerebrais

distintas. Assim, pode-se ter uma ideia de quão complexos são os processamentos do aparato

sensório-motor humano que se mescla com os sistemas de valores e reflexão, analisados e

sintetizados por meio de um conjunto de operações globais que modelam todo o

processamento cognitivo.

O ambiente, a presença de luz, de sons, odores, os objetos que se alcançam e que se

selecionam através do sistema de atenção fazem parte do processo perceptivo, ou seja, o que

se apreende nem é definitivo nem exato, uma vez que tanto a situação quanto os significados

mantêm-se em dinâmica constante. Não obstante é preciso considerar que além de se

perceberem os estímulos do ambiente também se percebem estímulos oriundos do corpo e da

mente. O pensamento, o raciocínio, a dor podem ser exemplos de como a percepção volta-se

para o interior, indicando que perceber é uma atividade dinâmica.

Sensação e percepção são integrantes do processo de categorização, ou seja, são

componentes para a cognição Do contato com o ambiente surge o conhecer, e o mundo

apresenta-se à medida que se pode distingui-lo e o organizar em padrões mais ou menos

estáveis, pelos quais o ser humano orienta-se no decorrer das enações13.

2.2.8 Emoção

Apesar de ser um princípio de governabilidade do humano, esse tema, segundo

Johnson (2007), não mereceu a devida atenção dos estudiosos. O autor afirma que se podem

examinar centenas de explicações para o significado, especialmente em filosofia analítica da

mente e da linguagem, sem encontrar um tratamento sério para a temática da emoção e do

sentimento.

De acordo com Johnson (2007), a neurociência cognitiva compreende que as emoções

e os sentimentos são os meios pelos quais o ser humano entra em contato com o mundo e se

torna capaz de fazer sentido e viver nele. O autor sustenta que as emoções são o fundamento

da preservação da vida.

Segundo Damasio citado por Johnson (2007), a existência da espécie inclui sistemas

inter-relacionados que compreendem o metabolismo das funções básicas, como os batimentos

cardíacos, respiração, etc.; os reflexos básicos motores; o sistema imunológico;

comportamento de prazer e dor em função do bem-estar; os desejos e motivação; as emoções;

13

O termo enação, sugerido por Varela, Thompsom e Rosch (1991) citado por Johnson (2007, p. 118), refere-

se à dinamicidade dos processos de experiência.

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e os sentimentos. Juntos, esses sistemas compõem um sistema interconectado de

monitoramento e processos de reação, desenvolvido ao longo da evolução para manter o ser

humano adaptado ao ambiente.

Para Johnson (2007), esses processos são, na maioria das vezes, inconscientes e se

constituem em experiências determinantes para moldar os valores humanos. “O que é

significativo para nós, e como é significativo, decorre fundamentalmente do monitoramento

de nossos estados corporais conforme experienciamos e agimos no mundo.” (JOHNSON,

2007, p. 56). Na vida diária, está-se sempre avaliando e dando sentido para o ambiente

circundante. É importante considerar que o ambiente está sempre mudando, que também o ser

humano está, frequentemente, em contato com situações que, apesar de apresentarem uma

porção estável, apresentam sempre algo de novo e que isso o mantém em permanente estado

de avaliação e de produção de sentido.

Damasio citado por Johnson (2007, p. 59) define parâmetros para caracterizar a emoção:

a) reações químicas neurais que ocorrem no ser humano b) diante de determinados

estímulos observáveis ou mentais, c) aos quais o cérebro reage, d) provocam uma

mudança corporal em termos físicos e de estrutura cerebral, e) orientada para

promover as circunstâncias de sobrevivência e de bem-estar.

Pode-se observar, na definição do autor, que no processamento da emoção, as pessoas

avaliam a situação e reagem em função de seu bem-estar. Assim são os sistemas vivos

humanos: estão em permanente movimento, atribuindo significados às situações sempre

novas que emergem durante a vida. Johnson (2007) lembra que o desenrolar do

processamento da ação de significação não é consciente, no entanto, é significativo.

A emoção, segundo Johnson (2007), emerge da relação do organismo com outros

organismos no ambiente e compreende os estágios: a) percepção e avaliação de um estímulo

com componente emocional; b) reação neural que resulta em comportamentos observáveis,

como expressão facial, mudança de temperatura, postura e outros; c) avaliação que se faz do

contínuo processo de transformação das situações para projetarem-se, ainda que

inconscientemente, as próprias reações. A avaliação é a responsável pela especificidade das

emoções e integra a habilidade humana em compreender a significação dessas situações e agir

apropriadamente em reação a elas. Portanto, a emoção, neste trabalho, será vista como um

estado corporal que se manifesta pela alteração da homeostase em decorrência das interações

do ser humano no espaço, incluindo, nesse espaço, tanto a ideia do sensível, observável pelos

sensores perceptuais, quanto pelo espaço simbólico-cultural que se organiza em função dos

valores que se atribuem aos objetos no mundo.

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Não constitui proposta, deste trabalho, apontar as manifestações de emoção e as

influências desta no processo de categorização dos dados, mas indicar que é por meio do

sentimento e da emoção que se entra em contato com o mundo, que se atribui significado a ele

e que, ao categorizar, o organismo já passou por processos cerebrais primários pelos quais se

torna consciente das mudanças corporais em reação às mudanças nas situações.

2.2.9 Atenção

Para a perspectiva funcional, ou seja, a de que a estrutura neuronal humana molda-se

em decorrência das diferentes funções da atividade neuronal, a atenção é ligada à formação de

planos e programas e ao tipo de mapeamento de estímulos sensoriais e perceptuais.

(EDELMAN, 1989). A atenção depende de uma variedade de fatores, alguns dos quais não

emergem da consciência, como a vontade e estímulos externos. É um fenômeno seletivo,

ligado a planos motores e interrupções de planos, indicando que as reações atencionais são

relacionadas à construção de mapas globais (EDELMAN, 1989).

A atenção pode ser focal ou difusa e pode modular a reação do organismo ao ser

alterada pelas variáveis a que ele está submetido. Koch e Tsuchiya (2006) apontam evidências

psicológicas de que a atenção e consciência são fenômenos distintos que podem não ocorrer

juntos – objetos e eventos podem ser atentados sem serem conscientemente percebidos e

objetos e eventos podem ser percebidos na quase ausência de atenção. Para os autores, a

atenção é seletiva em decorrência do que é relevante para o organismo.

Segundo Oakley (2009), atenção, memória e categorização são processos coevoluídos.

Categorização é uma forma rearranjada da memória (recognition), que cria a disposição para

agir e cruzar procedimentos de alerta, orientação e detecção. As categorias não são

consideradas a prioi, fixas ou livre de contexto, antes, são resultado, rotinas cognitivas

dinâmicas, mutáveis e dependentes do contexto. Por isso, a atenção desempenha um papel

importante nas operações de linguagem e, especificamente, nas operações de interlocução,

porque direcionam as ações.

A atenção é direcionada para certos objetivos ignorando outros. Essas escolhas,

momento a momento, são atos de valoração. O que é importante para a pessoa? O que ela

valoriza individual e coletivamente varia dependendo de restrições culturais e subculturais

(OAKLEY, 2009). O autor afirma que a avaliação é o componente fundamental da existência

humana. A biologia e a cultura do ser humano forçam-no a permanecer vivo e se sentindo

bem. Isso indica que ele avalia o mundo conforme uma escala de valores em que o mais

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valioso é seu bem-estar. Obviamente, suas ações de linguagem são carregadas de valores e

isso pode ser notado em suas expressões e nos contornos dessas, como será mostrado na

análise.

Assim, um olhar, um tom, uma palavra podem obter valores diferentes em uma

interação, dependendo do conjunto biocultural que governa as crenças e os desejos das

pessoas em uma interação. Indícios desses valores podem aparecer em formas como não

gostei do jeito que ele me olhou, ou por que cê tá falano desse jeito comigo?14, em que o EU

demonstra que, em conformidade com o que considera ser valoroso, a interação não foi

satisfatória para promover o bem-estar individual.

Para Tomasello (2008, p. 343), “atos linguísticos são atos sociais que uma pessoa,

intencionalmente, dirige a outra pessoa a fim de que esta dirija sua atenção e imaginação de

forma particular para aquilo que ela (a pessoa que dirigiu o ato) quer”15. A atividade

colaborativa, isto é, a intenção partilhada, é a chave para a conceitualização, e isso mostra que

a construção dos sentidos compreende a colaboração coletiva, o que é feito pela linguagem.

Deriva-se disso que o processamento da linguagem implica a concentração da atenção para

um ponto comum, ainda que este seja percebido por perspectivas diversas, conforme as

particularidades dos interlocutores.

Para esta pesquisa, convém ressaltar que a atenção é um componente ligado às

intenções dos organismos humanos que, por sua vez, são delineadas conforme as crenças

construídas na experiência e nos desejos que precisam ser realizados. Assim, na linguagem,

podem-se ver formas indicando atividades colaborativas dos enunciadores com o objetivo de

direcionar a atenção para a construção de tópicos de conceitos e dos significados Tais formas

realizam-se de várias maneiras, de acordo com o contexto interacional.

2.2.10 Crença e desejo

Tratar do tema crença e desejo é uma tarefa intensa que deve ser desenvolvida por

pesquisadores especialistas, entretanto, quando se fala de linguagem não se pode suprimir

esse tópico sob a pena de se estar extirpando um componente que é fundamentalmente

importante no que refere à emergência da linguagem: a intencionalidade.

Toda interação mediada por linguagem apresenta uma intenção. Como já se disse, os

14

Emissões recolhidas no diário de campo, em maio de 2011. 15

Linguistics acts are social acts that one person intentionally directs to another (and highlights that he is doing

this) in order to direct her attention and imagination in particular ways so that she will do, know, or feel what

he wants her to.

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organismos têm como intenção primeira seu próprio bem-estar, sendo, pois, este o maior valor

para regular as formas que vão emergir na interação. Em seguida, outros interesses, mais

pontuais, permeiam as ações do ponto de vista de sua operacionalidade, mas sempre guiados

pelas condições de satisfação do EU dentro do seu nicho biocultural.

Searle (1997) entende que a intencionalidade manifesta-se no discurso, pois ele revela

crenças e desejos dos falantes pelos quais o organismo orienta-se para agir. Searle (1997)

propõe um modelo em que a intencionalidade é condicionada pela mente, pelas convenções e

regras, pelo discurso, no qual há marcas da intencionalidade e, por fim, o background relativo

às crenças e pressupostos que servem como pano de fundo para as representações linguísticas,

e que, neste trabalho, pode ser expandido para a ação de interação de linguagem como um

todo. Para Searle (1997), o background é um conjunto de capacidades humanas contra o qual

uma sentença é interpretada.

Apesar de Searle ser um filósofo da linguagem e suas concepções serem relativas a

esse campo, parece não haver impedimentos para que seja possível associar tais concepções a

um campo mais amplo, em que a linguagem esteja sendo considerada de um ponto de vista

multidisciplinar. Essa consideração, além de estar sendo bastante difundida nos estudos

contemporâneos, tem sido uma opção para as pesquisas no campo da linguagem, porque

engloba saberes importantes para, por exemplo, a compreensão dos aspectos biológicos,

químicos, físicos, sociais e simbólicos em que está imersa a gênese da linguagem.

Para Tomasello (2003), pesquisador da linha antropológica, as construções linguísticas

estão relacionadas a habilidades cognitivas do humano e de suas interações. Para ele, o

reconhecimento do outro como igual a si mesmo possibilita, durante a própria interação, a

criação de símbolos linguísticos e outros, que se tornam convencionais e sociais.

2.2.11 Cognição: um processo global

O ser humano é um ser de linguagem. Sua condição natural é de viver em interação

com seu meio e o ponto de vista do humano contém tanto o ambiente que o cerca como

também seu mundo mental. Na interação de linguagem aparecem humanos inteiros, com seus

corpos, suas crenças, suas histórias, seus desejos, seus estilos linguísticos, enfim, pessoas

interagindo por meio de símbolos construídos coletivamente em um cruzamento de tempo e

espaço sempre único.

Pensar na totalidade do organismo humano é pensar em cognição. Para a antropologia,

o que caracteriza o ser humano é a cultura, melhor dizendo, a capacidade de acumular

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conhecimento e transmiti-lo. De acordo com Tomasello (2003, p. 5), uma “hipótese razoável

seria a de que o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos

homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural

únicos da espécie”. Ele defende que a habilidade para o aprendizado cultural e, assim, a

aquisição de símbolos linguísticos são características humanas. Nesses símbolos estão

incorporados os meios que as gerações anteriores consideraram proveitosos para categorizar e

interpretar o mundo. Segundo o autor,

À medida que a criança vai dominando os símbolos linguísticos de sua cultura, ela

adquire a capacidade de adotar simultaneamente múltiplos pontos de vista sobre

uma mesma situação perceptual. Enquanto representações cognitivas perspectivadas,

os símbolos linguísticos baseiam-se não no registro de experiências sensoriais ou

motoras diretas, como é o caso das representações cognitivas de outras espécies

animais e dos bebês humanos, mas nas várias maneiras como os indivíduos

escolhem interpretar as coisas e a partir de uma quantidade de outras maneiras como

as poderiam ter interpretado e que estão incorporadas nos outros símbolos

linguísticos disponíveis que poderiam ter escolhido, mas não escolheram. Portanto,

os símbolos linguísticos libertam a cognição humana da situação perceptual imediata

não só por que permitem referir-se a coisas exteriores a essa situação, mas sobretudo

por permitirem várias representações simultâneas de cada uma e na verdade, de

todas as situações perceptuais possíveis. (TOMASELLO, 2003, p. 11-12).

Observa-se que, segundo essa constatação, uma multiplicidade de percepções emerge

na cena comunicativa dotando-a de uma plasticidade vastíssima, visto que os símbolos

permitem representações de diversas situações perceptuais, que podem ser ampliadas em

numerosas possibilidades. Para Tomasello (2003), a atenção conjunta permite a partilha de

símbolos, e esta, a construção e transmissão do conhecimento. Seria essa condição cognitiva a

responsável pela forma moderna de relacionar e de viver.

Também Maturana (2001), Maturana e Varela (2010) coadunam-se com essa posição

uma vez que acreditam que o ser humano é um ser de conduta cultural. Dessa habilidade

originada pela dinâmica comunicativa, ou seja, do conhecer e das interações emerge a

linguagem que, por sua vez, “alimenta” a cultura. A linguagem, como uma propriedade

humana, resulta de uma longa história evolutiva em que muitos eventos ocorreram para que se

consumasse o atual estado humano. Tanto as bases orgânicas como as interacionais

determinam o modo como, hoje, produz-se linguagem.

São, talvez, princípios como os acima expostos, os responsáveis pela tendência das

ciências cognitivas de compreender a cognição e a linguagem como um resultado da interação

entre os organismos e o ambiente. O processo de conhecer o mundo, identificar os objetos e

eventos, categorizá-los, colocá-los em conexão com outros e partilhar tais objetos com o

interlocutor é o processo de geração da linguagem, portanto, atrelado à experiência. Esse

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entendimento será considerado em virtude de os esquemas de linguagem serem dinâmicos;

eles emergem nas interações, que, por sua vez, são também dinâmicas. As interações são

realizadas por seres que percebem, sentem, refletem e agem, sendo que as formas de

linguagem refletem a interação como um todo e não apenas parte ou partes dela. Os processos

cognitivos representam, pois, níveis de consciência, memória, sensação, percepção, emoção e

atenção abarcados de maneira multimodal pelo sistema sensório-motor, de forma que

reconhecer um objeto é reconhecer sua forma, cor, tamanho, domínio, etc.

Esta seção poderia ser abreviada da seguinte forma: apresentou-se aspectos que

tornam os humanos seres de linguagem. O estudo da interlocução exige ampliar esse objeto

para o ser biológico, que funciona por meio de reações químicas ocorrida sem virtude das

interações no ambiente físico, a partir do qual é construído o mundo simbólico. O sistema

nervoso, possibilitador de uma capacidade distintiva entre o EU e o NÃO-EU permite ao ser

humano distinguir-se do mundo, classificá-lo e valorizá-lo segundo sua experiência para

orientar suas ações conforme o que acredita e o que deseja. Outro aspecto fundamental

realçado diz respeito à evolução de áreas cerebrais com especializações como a formação de

conceitos e de memória, que permitiram aos humanos referir objetos e eventos não

disponíveis ao alcance da percepção sensorial no Ŧ. Trata-se de um espaço simbólico cujos

objetos abstratos contêm um componente imaterial, construído por um conjunto de valores e

convenções que, num segundo momento, não mais dependem do espaço tridimensional onde

ocorre a cena enunciativa. A essa condição Edelman (1989, p. 189) chamou de liberdade em

relação à “escravidão” do presente imediato da interação. Trata-se da parte simbólica que

emerge por meio de diferentes estruturas entrelaçadas, reveladoras de um padrão que pode

identificá-las como um símbolo, sendo essas condições essenciais para a existência da

linguagem.

2.3 Construindo uma noção de linguagem

Nesta seção, apresentar-se-ão as concepções de linguagem em que esta pesquisa

baseia-se. Ao fim do trabalho, pretende-se fortalecer a tese de que a linguagem humana pode

ser entendida como um sistema complexo devido ao seu caráter dinâmico, através do qual as

estruturas organizam-se de modo criativo para formar padrões. Esses padrões são expressos

de formas diversas e se repetem para manter a identidade do item simbólico, mas a cada vez

com nuanças acrescentadas pelas próprias interações - experiências. Assim se parece dar a

dinâmica “metabólica” na interação de linguagem: os matizes emergentes nas interações vão

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alimentando a construção simbólica, de forma que ela sempre se renova pela reconstrução

permanente. Esse parece ser o “metabolismo” pelo qual os símbolos constituem-se e se

mantêm na prospecção das interações. Na primeira parte da seção, apresentar-se-á a noção de

linguagem adotada e a linguística cognitiva como ponto de partida para a construção de uma

noção de linguagem como um sistema complexo, em seguida, apresentar-se-á

Por supor que a linguagem pode ser entendida como um sistema complexo, reconhece-

se a perspectiva da linguística cognitiva como uma proposta mais aberta ao se considerar a

linguagem como um aspecto central da interação social humana. De acordo com a perspectiva

de Edelman (1989), são também as interações sociais e não apenas as biológicas que emergem

como nicho para o surgimento da linguagem. Supõe o autor que dentre as estruturas sintáticas

mais anteriores estariam o EU e o TU indicando o autoconhecimento e o reconhecimento do

coespecífico, por meio de sinais afetivos indicadores de satisfação e insatisfação. A hipótese

do autor aponta para as formas de linguagem como uma emergência que decorre de relações

afetivas de um organismo em movimento, isso imputa à linguagem um caráter múltiplo,

porque ela contém em si o espaço em que ocorre, o tempo em que ocorre, os “personagens”

que a realizam e as relações que esses personagens podem estabelecer por meio de símbolos

identificadores de objetos e eventos, construídos por eles no decurso das interações.

O ser biológico, como caracterizado no capítulo anterior, circulando em um espaço e

em um tempo que lhe servem de origem discursiva, deve ser tomado por um máximo de

integralidade, pois as formas da língua emergem de percepções, ações motoras e neuronais,

estados afetivos, enfim, de um ser humano em movimento no seu nicho.

2.3.1 Adotando perspectivas da linguística cognitiva

Determinadas áreas da linguística cognitiva consideram que linguagem e mente são

habilidades cognitivas do organismo para a interação.

Croft citado por Evans e Pourcel (2009) defende que para tratar as questões de

linguagem é necessário manter juntas as dimensões cognitivas e sociais dessa. O autor

defende que além dos processos de percepção, categorização e memória, necessários para

compreender a natureza da linguagem, é necessário reconhecer que “estruturas gramaticais e

processos da mente são exemplos de habilidades cognitivas sociais” (CROFT apud EVANS;

POURCEL, 2009, p. 398).16 Ele considera que a habilidade cognitiva social mais importante é

16

Grammatical structures and processes in the mind are instances of general social cognitive abilities.

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a atenção conjunta e propõe a investigação da interação face a face, conversação e ação em

busca de uma compreensão do objeto de linguagem. Essa perspectiva da linguística cognitiva

tende a ampliar o objeto para o homem em interação com o ambiente e essa flexibilidade

parece ser bem adequada à proposta deste trabalho de conceber a linguagem como um sistema

em movimento aberto, dissipativo e não-linear.

A linguística cognitiva tem sido alimentada por vários trabalhos – (GIBBS, 2005;

LANGACKER, 2002; JAKENDOFF, 2007; EVANS; POURCEL, 2009; GEERAERTS;

CUYCKENS, 2007; SINHA, 2009) – em que se defende, de modo geral, que os humanos

possuem habilidade cognitiva, genética, orgânica e social e que os processos de linguagem e,

sobretudo, a língua revelam marcas da forma de pensar.

Dentro da perspectiva da linguística cognitiva há diversas linhas que mantêm um

núcleo comum, mas que divergem quanto à especificação do objeto. Há as tendências

funcionalistas, centradas no uso; tendências estruturalistas, centradas na organização formal;

tendências antropológicas, baseadas em modelos culturais; e tendências neurobiológicas,

baseadas nas condições neurofisiológicas de interação do organismo com o ambiente - onde e

quando se criam os objetos simbólicos (NUYTS apud GEERAERTS; CUYCKENS, 2007).

Pesquisadores da área da linguística cognitiva investigam, sob diferentes perspectivas,

como as formas linguísticas podem refletir a mente e em que medida essa mente é construída

pelas formas de linguagem e, ainda, como a linguagem constrói a relação entre organismo e

ambiente. No presente estudo, a linguística cognitiva será levada em conta na medida em que

toma como objeto de linguagem não um código de comunicação, mas um processo dinâmico

entre o organismo e o ambiente, que gera os símbolos de uma cultura (língua e outros tipos de

códigos).

As metáforas conceituais defendidas por Lakoff e Johnson (1980, 1999) emergem de

modelos gerados no curso das interações em que são definidos os contornos do mundo ao

derredor. Esses autores denominaram esquema de imagem as estruturas básicas de

experiências sensório-motoras que permitem que o mundo faça sentido para o ser humano.

Poder-se-ia dizer que a estrutura linguística emerge em decorrência da estrutura

espaçotemporal em que as pessoas estão interagindo com outras pessoas. A essa cena

enunciativa acrescentar-se-ia que os lugares de interação são lugares repletos de objetos

constituintes dos eventos construídos pelas pessoas em interação e também das múltiplas

perspectivas que assumem os interactantes ao se movimentarem nessa cena.

A orientação da linguística cognitiva para o aspecto cultural tem sido reforçada em

trabalhos recentes. A tendência de se considerar a cognição incorporada e sua relação com a

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emergência da linguagem tem gerado trabalhos que mostram a interferência da cultura na

construção simbólica. Os autores Dirven, Wolf, Polzenhagen citados por Geeraerts e

Cuyckens (2007) realizaram um trabalho em que as condições geofísicas e culturais

manifestam-se na formação dos framings culturais, gerando metáforas baseadas nesses

frames. Isso indica que elementos da cultura, como o espaço geográfico e o comportamento,

podem influenciar o modo como as pessoas constroem um mundo conceitual e, nele, os

símbolos pelos quais interagem. Isso é uma forte evidência da estreita relação entre língua,

linguagem e cultura.

Essas considerações sugerem que a linguística cognitiva possui um pressuposto que

pode ser assumido para a noção de linguagem como um sistema complexo biocultural. A

linguagem constrói-se na interação entre organismo e ambiente e sua forma tem relação com

o tempo e espaço em que é gerada e com os tempos e espaços gerados por meio dos

itens simbólicos. Essa evidência pode ser confirmada pelos objetos elementares para a

interação de linguagem: o estabelecimento do EU↔TU e uma referência R, em um tempo T e

um espaço E. Para Benveniste (1989), são esses os elementos formais essenciais da

linguagem. Considera-se que são mesmo essenciais, porque representam aqueles que a

realizam situados no espaço e no tempo, sendo o ponto de origem de todo o processo de

criação da linguagem.

2.3.2 Linguagem atividade constitutiva

Tratar do tema linguagem de maneira ampla, sem filiá-la a um tempo histórico ou a

uma corrente teórico-epistemológica, seria uma tarefa impossível devido à vastidão do

assunto. Entretanto, hoje, ainda que não exista um consenso sobre a matéria, algumas

tendências, com as quais se concorda, tomam a linguagem como uma propriedade biológica,

não como uma entidade ou um sistema de regras, mas como uma atividade social cujos

processos constituintes apresentam estabilidade e dinamismo e, ao mesmo tempo, como uma

qualidade provisória de todos os sistemas que a estruturam, tal como concluiu Franchi (2011).

Franchi (2011), em seu célebre artigo Linguagem atividade constitutiva, dedica-se a

comentar a concepção de Humboldt para quem a função primordial da linguagem não é

transmitir experiências, mas constituí-las. Para Humboldt citado por Franchi (2011), a

linguagem é o meio pelo qual o homem dá forma a si mesmo e ao mundo, é o meio pelo qual

se torna consciente de si mesmo, projetando um mundo no exterior. Os comentários do autor

acerca das posições de Humboldt deixam transparecer uma concepção de linguagem bastante

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dinâmica, em que os objetos construídos são suscetíveis de retomadas, renovações e

formulações que retornam ao processo de maturação.

Franchi (2011) ressalta ainda a posição Humboldtiana em que a linguagem é qualquer

coisa de persistente, mas, a todo o momento, transitória. Isso pode ser interpretado, pela

perspectiva assumida nesta tese, como a compreensão da linguagem como um sistema

adaptativo complexo biocultural, que possui uma constituição biológica, individual e uma

constituição coletiva, formulada pela construção de experiências partilhadas. Estas resultam

em um conjunto de meios simbólicos que se presta à interação entre as pessoas.

Assim, pode-se notar semelhança entre o que diz Humboldt citado por Franchi (2011)

e o que diz Edelman (1989) no que se refere à correspondência da linguagem a uma

necessidade básica do homem de reconhecimento de si e do outro. Pode-se também associar

essas noções às concepções de linguagem de Chomsky (2005), que busca apresentar uma

conexão entre propriedades da linguagem e seu uso.

O uso põe a linguagem em movimento a partir de um ponto marcado pelo cruzamento

de duas dimensões: o tempo e o espaço - dimensões computadas na elaboração dos

significados. Desse modo, uma estrutura e uma forma materializam-se pelas operações de

linguagem, que emergem na atividade de interação e a linguagem mantém uma unidade e uma

diferença que podem ser tomadas, respectivamente, pelo padrão e pela estrutura, indicando

constância e mudança no processo discursivo.

Segundo Franchi,

não há nada de imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva [...]

não há nada de universal, salvo o processo – a forma, a estrutura dessa atividade. A

linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que „dá forma‟ ao

conteúdo variável de nossas experiências. (FRANCHI, 2011, p. 64).

A força criadora e constitutiva da linguagem revela-se, pois, na interação, em que,

além das marcas sintáticas, estão em jogo regras implícitas dos sistemas de referências e

pressupostos comuns entre os falantes de uma língua.

2.3.3 Por que constitutiva?

Fiorin citado por Franchi (2011) aborda a concepção dialética da relação entre

linguagem e realidade, lembrando que “a língua organiza o pensamento, produz ideias e

compõe o quadro de referências para o agir do homem no mundo” (FIORIN apud FRANCHI,

2011, p. 12), e também tem a capacidade de reconstruir “constantemente” a realidade, pois é

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histórica. Fiorin lembra também que, para Franchi, “a historicidade da linguagem, ao mesmo

tempo, cria uma racionalidade cultural e, portanto, móvel, e lhe dá um dinamismo, que a faz

„aberta aos trabalhos do entendimento‟ e „às provocações da imaginação‟” (FIORIN apud

FRANCHI, 2011, 28-29).

Para Fiorin citado por Franchi (2011), o que Franchi quer dizer com atividade

constitutiva é que “a linguagem tem um papel ativo na aquisição do conhecimento e que ela

não resulta de uma convenção tácita entre os homens, mas das experiências históricas de uma

dada comunidade” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 12). Pode-se ver, nessa concepção,

que as noções de língua e linguagem estão intimamente ligadas à ação do homem no tempo e

no espaço e à construção dinâmica que se mantém em processo. Os autores assumem que se

trata de uma prática social histórica e coletiva.

Fiorin citado por Franchi (2011, p. 20) mostra como a constutividade da linguagem

manifesta-se no uso das categorias. Ele mostra, dentre outros exemplos, que a categoria de

tempo verbal foge às rígidas convenções do sistema da língua. Diz que os tempos mesclam-

se, “superpõem-se, perseguem uns aos outros, servem de contraponto uns aos outros, afastam-

se, aproximam-se, combinam-se, sucedem-se num intricado jogo de articulações e de efeitos

de sentido” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 20). Afirma ainda que “as pessoas, os tempos

e os espaços linguísticos não refletem as pessoas reais, nem o tempo físico, nem o espaço

geométrico, mas são criados na e pela enunciação” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 20-

21). Isso mostra que a língua remete a significados, não por sua forma apenas, mas pela forma

que emerge em um dado momento que contribui com muitos fatores considerados para a

construção do significado.

Ilari citado por Franchi (2011), ao discutir o artigo já mencionado, de Franchi,

confirma a noção de linguagem como uma atividade constitutiva, assumindo, com diversos

autores, que a linguagem tem papel importante em processos cognitivos. Ilari sugere que,

apesar de a língua ser uma forma de manifestação de crenças de uma cultura, ela não seria

suficiente para representar um sistema de crenças que é referência para uma cultura.

Para sobreviver como tal, qualquer cultura precisa incluir uma representação do

mundo adaptada às condições externas; e dada à complexidade que se exige para que

essa visão de mundo garanta permanência de uma cultura, seria pouco provável que

todas as articulações de um sistema de crenças desse tipo, ou mesmo as principais,

fossem explicitamente representadas pelas características estruturais da língua. Os

falantes da língua, é claro, sempre podem enunciar as crenças presentes no sistema

de referência de uma cultura, por exemplo, contando seus mitos ou celebrando seus

rituais; mais costumeiramente ainda, construirão enunciados em que as crenças

compartilhadas aparecem na forma de implícitos ou pressupostos. (ILARI apud

FRANCHI, 2011, 172).

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O autor sugere que o sistema de referência de uma cultura não pode ser expresso por

uma língua, porque envolve muitas competências não linguísticas, não sendo, pois, esse um

motivo para justificar a constitutividade da língua. Ilari defende que a linguagem tem papel

criativo e transformador e que seu uso resulta num ganho cognitivo. O autor justifica sua

posição apresentando três exemplos de como a língua supera sua tarefa de categorização e

expondo três processos: monitoramento, criação de objetos não convencionais e subversão

(ILARI apud FRANCHI, 2011).

Entende-se que esses processos poderiam ser resumidos da seguinte forma: o

monitoramento seria um processo em que a linguagem “se associa a um determinado conjunto

de experiências” (ILARI apud FRANCHI, 2011, p. 173). Nesse caso, a linguagem exerce seu

papel na criação de fatos e o conjunto de experiências exerce seu papel ao modelar a

linguagem de um modo sempre social e coletivo. Os conceitos assimilariam novas nuances e

limites significativos de forma gradual, indicando que conceitos novos seriam

contemporâneos dos velhos até que se estabelecesse uma superação. A construção de objetos

não convencionais aponta para a plasticidade da linguagem à medida que cria objetos que não

são distintos dentro do esquema de referência, mas objetos construídos por mecanismos que

estão relacionados ao conhecimento de uma dada cultura, como, por exemplo, as descrições

definidas e os pronomes que estão intimamente ligados com a situação de interação verbal.

Finalmente, a subversão é considerada pelo autor como o recurso metafórico pelo qual se

aplica uma palavra inesperada para uma realidade conhecida, criando, assim, novas

organizações para o conhecimento. A conclusão a que chega o autor é de que “os mesmos

meios linguísticos que permitem construir um sistema de referência ou confirmá-lo permitem

também modificá-lo de maneiras mais ou menos dramáticas” (ILARI apud FRANCHI, 2011,

p. 180-181). Essa conclusão evidencia a versatilidade da linguagem, que tem seus meios de

reconsiderar o dado aplicando a ele uma revisão de categorias e de criação de novas

estruturas. Ilari encerra sua discussão citando Franchi, que, por sua vez, cita Humboldt:

A linguagem é um processo cuja forma é persistente, mas cujo escopo e

modalidades do produto são completamente indeterminados, [...] a linguagem não é

somente um processo de representação, de que se podem servir os discursos

demonstrativos e conceituais, mas ainda uma prática imaginativa que não se dá em

um universo fechado e estrito, mas permite passaram no pensamento e no tempo, a

diferentes universos mais amplos, atuais, possíveis, imaginários. (ILARI apud

FRANCHI, 2011, p. 181).

Dizer que a linguagem é um espaço de subversão das significações é reconhecer seu

caráter criativo e dinâmico, qualificando-a como uma propriedade dos seres dinâmicos que a

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constroem e a exercem segundo tempos e espaços que partilham ou que supõem partilhados.

Essa é a forma como se está entendendo a linguagem nesta pesquisa: uma propriedade

humana natural, que reflete o homem histórico, que percebe seu tempo e outros tempos, os

quais, por sua vez, podem ser criados indefinidamente pela língua17.

E é a fundamentação desse ponto de vista que se continuará elaborando na próxima

seção, ao se abordar a linguagem como objeto do mundo natural.

2.3.4 Linguagem como objeto do mundo natural

Nesta pesquisa, adota-se a noção de linguagem como objeto natural, uma propriedade

da mente humana resultante de um cérebro competente no que se refere a sua capacidade

cognitiva.

Chomsky (1994) defende uma mudança de perspectiva quanto ao objeto de pesquisa

que migra do produto para os princípios operatórios internos da mente. A teoria Gerativa

considera que existe uma propriedade da mente, P, que permite a uma pessoa adquirir uma

língua através da experiência e a colocar em uso sob as condições reais de aquisição de uma

língua. A questão para essa teoria é de que modo funciona P “nas condições mais complexas

de verdadeira diversidade linguística real” (CHOMSKY, 1994, p. 37).

A mudança do foco leva o estudo de Chomsky (1994) para o falante individual, que é

um objeto real capaz de fornecer dados de alguma forma inscritos em seu cérebro. Desloca-se,

então, a faculdade de linguagem do cérebro, da língua exteriorizada, artificial, para um objeto

real. A faculdade de linguagem, para Chomsky (2005, p. 31), pode ser considerada um “órgão

da linguagem”, tal como o sistema visual, imunológico, respiratório; seria um subsistema de

uma estrutura mais complexa. Caberia, então, à linguística investigar as partes que têm

características distintivas e a interação entre elas.

Hauser, Chomsky e Fitch (2002, p. 1569), de uma perspectiva evolucionista, defendem

que os humanos possuem uma faculdade de linguagem adquirida no processo evolucionário.

Quanto à natureza dessa faculdade, os autores distinguem-na entre questões relativas ao

sistema comunicativo e as computações a ele subjacentes. Esses pesquisadores fazem uma

distinção entre a faculdade de linguagem em sentido amplo (faculty of language in the broad

sense, FLB) e a faculdade de linguagem em sentido restrito (faculty of language in the narrow

sense, FLN).

17

Um aspecto dessa criação é explorado pelas teorias de espaços mentais e mais pontualmente pela construção

de espaços referenciais tal como em (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2004).

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A linguagem em sentido amplo inclui o sensório-motor, o conceptual-intencional, e

outros possíveis sistemas (que deixamos em aberto); a linguagem em sentido restrito

inclui as computações gramaticais que nós sugerimos que se limitam à recursão.

(HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002, p. 1569).

A recursão refere-se à arquitetura cerebral capaz de estruturar um código hierárquico

que gera a si mesmo de forma praticamente ilimitada, por meio de recursos limitados, de

modo hierárquico. (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002). Esse conceito amplia-se quando

se entende por recursão um princípio ligado ao modo de operar do cérebro humano, como

pensa Corballis (2011). Para ele, princípios universais da linguagem podem ser considerados

princípios do pensamento e não específicos da linguagem.

Para Corballis (2011), recursão é uma propriedade da mente humana empregada

quando necessária. A proposta do autor em seu livro The Recursive Mind é de uma teoria da

mente que considera estados intencionais das pessoas, não apenas no plano da ação, mas de

crenças, desejos, esperanças, medos e demais sentimentos humanos. Entende-se que, para o

autor, a linguagem é recursiva porque ela reflete o funcionamento da mente, tem sua maneira

de apreender um evento com todas as suas particularidades e não apenas um objeto, um

tempo, ou um item isolado. Os processos recursivos, segundo ele, evoluíram a partir das

experiências sociais dos humanos; assim, o desenvolvimento do trato vocal teria livrado as

mãos para a realização de tarefas, criação de ferramentas e desenvolvimentos globais.

Portanto, falar de recursão significa falar de princípios operatórios da mente que permitem a

construção de redes de operações que vão desde a formulação de códigos de comportamento

motor até o mais abstrato dos códigos simbólicos.

É, pois, partindo desses pressupostos que se pretende considerar a linguagem como um

modo através do qual a espécie mantém suas interações sociais e se organiza em relação a

tantas outras espécies vivas, formando redes em constante adaptação e inter-relação dinâmica

no ambiente.

Tanto Humboldt, Franchi e Ilari quanto Chomsky, citados anteriormente, parecem

contribuir para uma teoria global que poderia oferecer caminhos para a compreensão da

linguagem em sua plenitude, como um sistema vivo sujeito às pressões do Ŧ. Parece haver

uma contribuição do aspecto biológico e da atividade social para a emergência da linguagem

devido a: a) aos meios cerebrais e percepto-sensoriais de distinção de objetos/eventos e de

tempos, permitida única e exclusivamente pelo desenvolvimento de áreas cerebrais ligadas à

memória; b) às interações sociais pelas quais os conceitos são construídos na e pela prática

coletiva, simbolizados, veiculados e submetidos a novas experiências, podendo ser

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transformados de uma maneira gradual com a possibilidade de vir a ser drástica um dia.

A proximidade das noções expostas reforçam a ideia de que concepções da linguística

cognitiva podem ser o fundamento para uma noção de linguagem como um sistema

complexo, porque assumem a relação do organismo com o ambiente como a base para a

existência da língua. Uma proposta teórica que evidencia essa relação seriam os esquemas de

imagens que refletem uma construção de objetos linguísticos em função dos corpos

posicionados em movimento no espaço (LAKOFF, 2008).

Diversos são os autores – Prigogine (2009), Tomasello (2003) e Johnson (2007), por

exemplo – que incentivam a associação de várias áreas do conhecimento para compreender

melhor o funcionamento da linguagem e seus desdobramentos. Hauser, Chomsky e Fitch

(2002) argumentam que a compreensão da faculdade de linguagem requer cooperação

interdisciplinar. Os autores sugerem a interação da linguística com estudos da biologia

evolucionária, antropologia, psicologia e neurociência. Esse consenso deixa transparecer a

necessidade de diversificar o foco da investigação, ampliando as perspectivas para a

interpretação do fenômeno da linguagem. E é justamente baseando-se nessas tendências que

se procura articular pontos de vista de áreas distintas para tentar abranger o fenômeno da

linguagem de uma forma mais completa, tentando compreender como as propriedades

biológicas e as propriedades simbólicas associam-se no movimento da interação de

linguagem.

Reconhecendo o valor dessa perspectiva múltipla, adotam-se noções ligadas às teorias

da complexidade para analisar o fenômeno da interlocução. Tais teorias têm como

pressuposto básico que o movimento é condição natural dos sistemas vivos e que, como um

sistema vivo, a linguagem é um sistema complexo que se mantém pelo movimento gerado na

busca pela adaptação.

Observada pela lente da complexidade, a linguagem, como um sistema vivo, pode ser

analisada como um padrão expresso por uma estrutura. O padrão exibe a unidade dos objetos

mentais, isto é, o que os caracteriza e o que os unifica; o padrão só se revela por estruturas;

assim, uma ação de linguagem, dentro de uma interação maior, compreende algum tipo de

movimento que põe os interlocutores em contato, do contrário, não há troca, não há partilha,

portanto, não há linguagem. A faculdade de linguagem está ligada ao padrão e à atividade, no

sentido de que o padrão é aquilo que recorre e que permanece e a estrutura é aquilo que

realiza o padrão. Melhor dizendo, a estrutura dá materialidade ao padrão e este revela, pela

forma, como as estruturas organizam-se, entendendo-se por estruturas um conjunto de

referências de tipos diversos (gramaticais, sociais, culturais, materiais), obviamente,

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consideradas as dimensões de tempo e espaço. Assim, temos uma faculdade que se realiza

mediante a atividade. As formas materiais da linguagem constituem a estrutura, e o modo

como essas formas organizam-se constitui o padrão.

No caso da linguagem como um SAC, a forma realiza-se na gramática, pelas unidades

convencionais (léxico, sintaxe) e pelas modulações, sendo que sua realização só se completa

com as computações que os organismos fazem por meio de seus sistemas sensório-motor e

conceitual-intencional. Por isso, as formas interpretadas no nível da gramática ou do discurso

não consumam os significados em uma interação. Segundo Hougaard (2008, p. 249), “a

compreensão resulta de um trabalho constante, é algo que os participantes em interação

realizam socialmente no aqui e agora das ações que praticam”18. Tudo dependerá do Ŧ, onde e

quando estão os participantes com seus pontos de vista, seus perceptos, seus conhecimentos,

suas reflexões, enfim, onde estão os elementos para validar o padrão de organização, definido

não apenas pela estrutura material, mas por um conjunto de referências conceituais que só são

apreensíveis na atividade de interação.

2.3.5 Uma emergência no nicho biocultural

No processo evolucionário humano, como explica Sinha (2009), o ambiente da seleção

não é mais o organismo, mas o organismo em seu nicho autoconstruído, em que está

incorporado o nicho artefatual. Para o autor, o nicho artefatual é reproduzido através de

gerações e serve como pré-condição para a replicação genética. O nicho é consequência e é

também agente da seleção natural. O nicho artefatual da linguagem é encaixado no complexo

biocultural semiótico inteiro. Na semiosfera humana, diz o autor, o ambiente significativo

construído é reproduzido através de gerações humanas do mesmo modo como acontece com o

próprio organismo, sendo a linguagem o mais distintivo constituinte da semiosfera, devido à

sua preeminência na interface entre reprodução cultural e processos cognitivos (SINHA,

2009).

Ainda conforme o mesmo autor, não existe diferença entre os processos biológicos e

cognitivos. Sua hipótese é de que a capacidade semiótica desencadeou efeitos transformativos

em todos ou em numerosos domínios cognitivos, o que potencializou culturas simbólicas

constitutivas de nichos bioculturais complexos, nos quais ocorrem a inovação cultural humana

e sua transmissão.

18

[…] understanding is worded at constantly. It is something that participants in interaction achieve socially in

the here-and-now of actions that they carry out.

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Gibson (1986) assume a noção de nicho para explicar o comportamento adaptativo

humano. Segundo ele, nicho é diferente de habitat das espécies, porque diz respeito mais ao

modo como um animal vive do que ao lugar onde vive. O autor sugere que um nicho é um

conjunto de affordances. “O ambiente natural oferece várias maneiras de vida, e diferentes

animais têm diferentes maneiras de viver. O nicho implica um tipo de animal, e o animal

implica um tipo de nicho” (GIBSON, 1986, p. 128). Essas considerações sugerem que os

processos biológicos e simbólicos não se dissociam na emergência da linguagem, ao

contrário, eles são interdependentes e um requer o outro para a construção dos sentidos. A

seguir, apresentam-se convicções acerca da importância do aspecto cultural para a noção de

linguagem assumida nesta pesquisa.

2.3.6 O componente cultural

A noção de linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural compreende

a experiência humana, uma vez que é o modo de o indivíduo agir no mundo que o torna a

espécie que é. Assim, o caráter da experiência humana seria a base para suas criações

linguísticas.

De acordo com Johnson e Rohrer (2005), a natureza do corpo humano, os tipos de

ambientes que habita e seus valores e objetivos determinam suas experiências que, pode-se

dizer, constituem as bases para os modelos de mapas neurais que subjazem à criação e à

organização dos conceitos humanos.

A ligação da experiência humana com suas práticas e com seus conhecimentos

culturais têm sido demonstrada por pesquisadores como Gibbs (2005). Ele nota que o modo

como o corpo manifesta-se reflete processos culturais. Na visão do autor, a cognição

incorporada, isto é, a relação existente entre os processos cognitivos, a experiência humana e

as práticas culturais, reflete os processos de pensamento, linguagem e ação. (GIBBS, 2005).

Como se verá adiante, a articulação entre os processos biológicos e culturais no

desenvolvimento das habilidades cognitivas e, então, das habilidades de linguagem tem sido

aceita pela linguística cognitiva.

A integração de noções de cultura difundidas nos estudos de linguagem é muitas vezes

originada na área da antropologia. Para o antropólogo Geertz (2011, p. 9), a “cultura é pública

porque o significado o é”. Na busca para encontrar um conceito satisfatório de cultura, Geertz

(2011) dispensa as tentativas de definir o que é universal e o que é variável nas culturas. O

autor procura alcançar uma imagem mais exata do homem a partir de duas ideias: a primeira

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concebe a cultura como um “conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras,

instruções - [...] para governar o comportamento”; na segunda, “o homem é precisamente o

animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos,

fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento” (GEERTZ, 2011,

p. 32-33).

Para Geertz, a perspectiva da cultura como mecanismo de controle inicia-se com o

pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social quanto público, sendo

seu ambiente natural o pátio familiar, o mercado, a cidade. Ele afirma:

Pensar consiste não nos „acontecimentos na cabeça‟ (embora sejam necessários

acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego

entre aquilo que foi chamado por G. H. Mead e outros de símbolos significantes – as

palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios

mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias – na verdade, qualquer

coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um

significado à experiência. Do ponto de vista particular, tais símbolos são dados, na

sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente na comunidade quando nasce e eles

permanecem em circulação após a sua morte, com alguns acréscimos, subtrações e

alterações parciais dos quais pode ou não participar. Enquanto vive, ele se utiliza

deles, ou de alguns deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das

vezes espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito: para

fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais vive, para auto-orientar-

se no „curso corrente das coisas experimentadas‟, tomando de empréstimo uma

brilhante expressão de John Dewey. (GEERTZ, 2011, p. 33).

Fica evidente na concepção do autor a importância dos símbolos como padrões que

governam o homem organizado em sociedade. Para ele, se não fosse dirigido por padrões

culturais, o comportamento do homem seria ingovernável, os atos não teriam sentido, não

haveria controle para as emoções, nem forma para as experiências.

Na opinião do autor, a complexidade da organização nervosa e o crescimento do

neocórtex foram possíveis mediante a interação com a cultura. O sistema nervoso central “é

incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação

fornecida por sistemas simbólicos significantes” (GEERTZ, 2011, p. 35). Nota-se, nessa

posição, que as práticas sociais teriam determinados desenvolvimentos biológicos, de modo

que a cultura estimulou evoluções biológicas e essas contribuíram para mudanças culturais.

As fontes culturais passaram a ter importância crucial no desenvolvimento humano, o que

levou o homem ao estágio a que hoje chega como ser de cultura e, porque não dizer, ser de

linguagem.

A ligação entre linguagem e cultura é bastante aceita no seio da linguística cognitiva.

Jakendoff (2007) observa o papel central que o fenômeno social e cultural representa para a

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linguagem. A abordagem do autor parte da importância da cognição social como uma

habilidade para se compreender e se engajar em interações sociais no contexto da cultura de

instituições sociais. O autor discute sobre a relação entre cognição social, cultura e linguagem

e questiona o papel da cognição social como um instrumento de análise que revela princípios

linguísticos. Assim como os princípios combinatoriais (as regras da gramática) são

organizados de modo a possibilitar a formação de infinitas emissões, também para a cognição

social a habilidade para interagir socialmente envolve um sistema combinatorial de princípios

em cada mente/cérebro.

Os princípios da interação social são como regras (f-rules) inacessíveis à consciência.

Assim, para o autor, os princípios inconscientes que regem as regras combinatórias e

permitem a produção e a compreensão de sentenças também se aplicariam às interações

sociais, estabelecendo a associação entre linguagem e cultura. Ele afirma que linguagem e

cultura dependem da existência da comunidade para seu funcionamento e transmissão. Para

que linguagem e sociedade permaneçam estáveis, os indivíduos devem participar da

linguagem e da cultura e devem, essencialmente, ter a mesma cognição social (JAKENDOFF,

2007).

No quinto capítulo de seu livro Linguagem, Consciência e Cultura, Jakendoff (2007)

apresenta vários exemplos de como entidades cognitivas (códigos, regras) moldam a

compreensão social nas culturas. A proposta de Jakendoff (2007) é mostrar que existem fortes

paralelos entre linguagem e cultura, sendo esses paralelos expostos nas interações sociais por

meio de relações de linguagem.

Como se vem assumindo nesta pesquisa, as estruturas cerebrais ligadas aos processos

conscientes e, portanto, de linguagem, são construídas conforme os organismos vão

interagindo no ambiente, com todas as possibilidades fisiológicas permitidas pelos sistemas

sensório-motor e conceitual-intencional. Isto é, um organismo que age com seu corpo e com

suas emoções, portanto, um organismo situado em um emaranhado de espaços e tempos dos

quais computa estímulos com base em seu sistema conceitual, que se reorganiza na

experiência.

O pesquisador Tomasello (2003) estabelece relações entre a linha individual e cultural

do desenvolvimento cognitivo. A linha individual concerne às coisas que o organismo

conhece e aprende por conta própria, sem a influência de outras pessoas ou dos artefatos. A

linha cultural do desenvolvimento cognitivo, por sua vez, pertence às coisas que o organismo

conhece e aprende por meio de atos através dos quais tenta ver o mundo pela perspectiva dos

outros. Ou seja, o desenvolvimento cognitivo cultural concentra-se nos fenômenos

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intencionais em que o organismo adota a perspectiva de outra pessoa. O pesquisador ressalta

que essas duas linhas de desenvolvimento são inextricavelmente entrelaçadas e que cada ser

humano herdou, por processos biológicos, uma capacidade de viver culturalmente, sendo o

desenvolvimento cognitivo de uma criança semelhante a toda a história cultural de seu grupo

social (TOMASELLO, 2003). Para o autor, essa habilidade cultural tem sua origem no

comportamento exclusivamente humano de compartilhar atenção e na hipótese de que as

crianças têm habilidade para compreender que os outros são “como eu” (TOMASELLO,

2003, p. 105).

Essas evidências reforçam o indissociável entrelaçamento entre cultura e linguagem e

sugerem uma conformidade com o modo como Edelman (1989) concebe o surgimento da

linguagem. Para ele, a linguagem é um epifenômeno que tem sua origem na atividade de um

especial sistema de memória a fim de transmitir a distinção selfnonself para além do sentido

biológico, ou seja, no sentido social. Para Edelman (1989), uma série de repertórios19,

baseados em classificação de gestos, evoluiu a partir da comunicação entre os membros da

espécie. Teria sido a conexão entre os sinais interiores acompanhados de estados afetivos,

necessidades hedônicas e de gratificação, nas interações dos pais ou interassexuais, a origem

das primeiras estruturas sintáticas, sobretudo, do reconhecimento da relação EUNÃOEU.

Também Tomasello (2008) defende que a comunicação humana, nos moldes em que se

encontra hoje, reflete processos evolucionários que teriam sua origem na troca de gestos.

Todas essas concepções arroladas nesta seção fluem para um denominador comum: o

de que cultura e linguagem são características evolucionárias especificamente humanas e

constituem o que pode ser chamado de natureza humana. Para finalizar a seção, apresenta-se

uma citação em que Tomasello (2003) resume a relação do humano coma propriedade

intrínseca que o caracteriza como um ser social de linguagem:

O fato de a cultura ser um produto da evolução não significa que cada um de seus

aspectos específicos tenha um suporte genético especializado; não houve tempo

suficiente para isso. Um cenário mais plausível é que todas as instituições culturais

humanas estão assentadas sobre a capacidade sociocognitiva biologicamente

herdada por todos os homens de criar e utilizar convenções e símbolos sociais.

(TOMASELLO, 2003, p. 302).

Para esta pesquisa, meios culturais de interação, crenças, leis, costumes,

comportamentos são constitutivos da linguagem, pois essa é condição indispensável para a

transmissão dos padrões aceitos nos grupos sociais. Pensando a linguagem como uma

19

Entende-se por repertórios primários as especializações dos grupos neuronais relativas a funções genéticas

ligadas à manutenção da vida do organismo.

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propriedade humana que resulta de processos biológicos, neurais, físicos, sociais e culturais, é

necessário reconhecer que esses processos só se realizam em decorrência de algum tipo de

movimento, o que leva à aceitação de que entre duas ou mais pessoas as operações de

linguagem emergentes estão associadas a algum tipo de movimento.

2.3.7 As convenções sociais

No gênero conversação, os elementos básicos considerados são a presença de duas ou

mais pessoas em um espaço levemente circunscrito, com um propósito interativo. Goffman

(2010) estabelece duas características distintivas da interação face a face: a primeira é a

presença física das pessoas, com suas expressões e gestos – que ele chama de sentidos nus -,

pelos quais as pessoas colocam-se por inteiro na troca de mensagens; a segunda é a

retroalimentação, pela qual as pessoas invertem as funções de falante e ouvinte, assumindo-se

e assumindo os outros como participantes.

Em seu livro Comportamento em Lugares Públicos, Goffman (2010) faz um extenso

apanhado dos ajuntamentos possíveis na sociedade norte americana, descrevendo não apenas

as interações engajadas em que há intenção de interação verbal - a que ele chama

engajamento de face -, mas também as possibilidades de ajuntamento em que há percepção

mútua entre as pessoas e o fato de que elas agem com seus corpos num ambiente em que tudo

é potencialmente simbólico, desde que seja alvo de alguma atenção daqueles que participam

do ajuntamento.

Goffman (2010) define por ajuntamento um conjunto de dois ou mais indivíduos cujos

membros incluem todos e apenas aqueles que estão na presença imediata uns dos outros, num

dado momento. Entretanto, o ajuntamento por si não implica interação verbal, e sim, qualquer

situação em que pessoas estão circunscritas em um espaço determinado e se notam umas às

outras em maior ou menor grau. Mas, nesta pesquisa, o foco não é o ajuntamento, ou melhor,

é o ajuntamento com envolvimento mútuo de atenção focada, denominado de engajamento.

De acordo com Goffman (2010), quando pessoas entram na presença uma da outra,

elas tendem a fazê-lo como participantes de uma ocasião social que pode ser entendida como

um evento limitado no espaço e no tempo, com todos os elementos físicos e sociais

estruturantes que determinam o padrão de comportamento para aquela ocasião. São

estabelecidos regulamentos conforme fatores que vão desde as características pessoais até as

regras sociais implícitas nas ações e comportamentos.

Goffman (2010) distingue também as interações desfocadas das interações focadas,

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sendo aquelas independentes da vontade das pessoas eestas dependentes do envolvimento das

pessoas na atividade de comunicação.

[...] quando indivíduos entram na presença imediata uns dos outros onde não é

preciso nenhuma comunicação falada, eles ainda assim inevitavelmente iniciam uma

espécie de comunicação, pois em todas as situações atribui-se importância a certos

assuntos que não estão necessariamente ligados a comunicações verbais particulares.

Eles incluem aparência corporal e atos pessoais: vestuário, postura, movimento e

posição, volume de som, gestos físicos como acenar ou saudar, decorações faciais e

expressão emocional ampla. (GOFFMAN, 2010, p. 43).

A posição do autor sugere que a presença física das pessoas no espaço, exercendo seus

papéis sociais e intencionais nas ações cotidianas, é o “ninho” para a emergência das formas

de linguagem verbal. O autor afirma que toda sociedade é institucionalizada pela

regularização de eventos que “recebem significado comum”; ao ser percebido, o indivíduo

tende a modificar sua atividade (GOFFMAN, 2010, p. 43). O colocar-se presente e se mostrar

percebedor do outro obrigam esse indivíduo ao uso de muitos sinais, convenções, regras que

tornam possível a socialização. Há nas interações “um simbolismo do corpo, um idioma das

aparências e gestos individuais que tendem a evocar no ator aquilo que evoca nos outros, e „os

outros‟ aqui significa aqueles, e apenas aqueles, que estão imediatamente presentes”

(GOFFMAN, 2010, p. 43-44). O autor deixa evidente a ação corporal como base da interação

social e, pensa-se que se pode também acrescentar, como base para o surgimento das formas

de linguagem.

As ideias de Goffman (2010) são condizentes com o que se adota nesta pesquisa, ou

seja, o ser em interação, em movimento, constituído na e pela sua biologia e nas interações

sociais, um ser adaptativo complexo biocultural. Ainda que a orientação de Goffman (2010)

seja para a área da sociologia, suas concepções são importantes para esta pesquisa, porque sua

observação parte do homem em movimento, engajado em ações que o mantêm vivo na luta

pela adaptação. Nos espaços sociais, os humanos reconhecem-se e estabelecem códigos pelos

quais se organizam e interagem, reproduzem e criam meios simbólicos de se manterem

adaptados ao meio.

A conversa é organizada não apenas no plano prático de quem fala para quem fala,

mas inclui toda a situação e se submete às regras que regulam os encontros. Gumperz citado

por Ribeiro e Garcez (1998) diz que se usam pistas de contextualização para sinalizar aos

interlocutores, para inferir ou comunicar as intenções conversacionais. São fenômenos

sociolinguísticos, no entender do autor, pois eles se baseiam em conhecimentos sobre a

cooperação social em que os participantes negociam interpretações.

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Assim, em se tratando das variáveis somadas na computação do evento para

interpretação dos elementos e construção dos significados, junto com esses autores, deve-se

dar tanta importância às opções fonológicas, lexicais e sintáticas quanto às opções gestuais e

prosódicas.

2.3.8 Discurso e texto

A noção de discurso que se julga adequada à opção epistemológica condizente com as

noções da linguística cognitiva, assumidas nesta pesquisa, é proposta por Beaugrande (1997).

Ele considera a linguagem em movimento, o que permite apreender as propriedades simples,

estruturais da linguagem e o que ela tem de indeterminação e complexidade. A linguagem

apresenta-se, pois, como um “design” estável e flutuante, simples e complexo, refletindo seu

funcionamento na sociedade. Para o autor, “um modelo de linguagem simplista como um

conjunto de rótulos determinados, cada um referindo-se a um único objeto, pode dificilmente

conectar-se ao real discurso” (BEAUGRANDE, 1997, p. 93). O autor defende que se adote a

perspectiva da complexidade para compreender o dinamismo da relação de linguagem e

sociedade como pano de fundo do discurso.

Beaugrande (1997) propõe noções como a de auto-organização, sistemas de redes,

atratores e evolução para explicar os processos de linguagem por uma perspectiva da

complexidade. Sistemas vivos como o humano encontram-se num estado evolucionário, em

que as restrições que forçam ou restringem a auto-organização são da ordem do físico, do

químico, do biológico e do comunicativo. A ideia do autor, pensa-se, reflete o modelo de

complexidade em que diversos sistemas atuam de modo cooperativo, impondo aos

componentes simbólicos muitas cargas além daquelas como as de replicação genética que

reproduzem um aspecto, mas não o criam.

No primeiro capítulo de seu livro, Beaugrande (1997) demonstra como, na prática, as

forças linguísticas assumem seu poder para dominar espaços. Ele exemplifica com a oposição

das tendências consumistas e ecologistas em que há forças linguísticas chamando para se

aderir a um ou outro lado. Mostra que os apelos favoráveis às escolhas possíveis são feitos

por intermédio dos recursos da língua e centra sua preocupação na prática social e na medida

em que a linguagem pode ser usada para convencer e dominar. Portanto, para Beaugrande

(1997), o discurso é uma prática social através da qual são colocadas, simultaneamente, as

ações corporais e simbólicas com teor ideológico, isso por meio de um aspecto material que é

o texto.

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Ainda conforme Beaugrande (1997), o texto deve ser visto como um evento

comunicativo em que e quando estão ocorrendo ações linguísticas, cognitivas e sociais. O

texto constitui-se como um sistema de conexões entre vários elementos - sons, palavras,

significados, participantes do discurso, ações, etc -, incorpora todos esses componentes e pode

ser considerado um multissistema. Para o autor, as unidades do texto devem ser

multifuncionais, por exemplo: uma palavra pode ser um padrão de sequência sonora, uma

parte de frase ou uma instrução para o significado. Enfim, a sequência de sons, para o

pesquisador, é apenas a ponta de um iceberg, uma pequena porção de matéria e da energia

pela qual uma grande quantidade de informação foi condensada por um falante em direção a

um ouvinte. A ideia de identidade e conectividade permeia as posições do autor que propõe o

humano como sistema “enriquecido” (enriching) pelas restrições físicas, químicas e biológica

que possibilitaram a emergência de um ser com condições de cognição e comunicação.

Essas noções aplicam-se à noção de língua como um sistema virtual, que oferece

recursos para que os falantes escolham e interconectem itens para formar o texto. Muito da

organização de um “sistema-texto” já foi feito até que ele seja posto em uso, o que mostra que a

língua não é estática nem autônoma, mas um sistema evolutivo adaptativo, sujeito a alterações

conforme vai se configurando em textos adaptados ao uso real. Essa noção é cara a esta pesquisa,

porque concebe a língua em movimento, como são os sistemas adaptativos complexos. O

discurso pode, então, ser concebido como um universo conceitual, linguístico, regulado por

sistema de valores que pode ser resumido pela noção de universo simbólico, constituído através

da interface entre materiais sensorialmente perceptíveis, o texto, por exemplo, e itens abstratos,

como os conceitos e mesmo a posição social assumida no interagir linguístico. O discurso então

conterá o tempo, o lugar e o modo de expressão do locutor, suas intenções, uma vez que, nessa

concepção, o modo pragmático imprime forças significativas a ele e completa seu sentido.

2.3.9 Evento e gênero

A ideia de evento de interação está relacionada à organização de interlocutores dentro

de um tempo e de um espaço cujas dimensões podem se alterar conforme se alteram a

movimentação e as construções simbólicas dos participantes. Um evento de interação de

linguagem, segundo Costa (2002), constitui uma faceta da interação social. Nele são

colocados em jogo, além da materialidade física – volume e massa –, o espaço, os interesses,

as emoções, os objetivos e conhecimentos de natureza diversa (socioculturais, linguísticas e

espaçotemporais). Do evento de interação, emerge o gênero.

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Para Bakhtin (1999), a concepção de gênero está ligada tanto à cristalização de usos da

linguagem quanto à sua constante tendência à mudança. Para o autor, a dinâmica de

configuração e reconfiguração dos elementos verbais e não-verbais define o sentido.

Marcuschi (2000) afirma que dar nome aos gêneros não é uma medida suficiente para

conhecê-los. Ele conclui que os gêneros textuais, apesar de não se definirem com critérios

rigorosos e serem denominados com designações bastante fluidas e até vagas, não deixam de

apresentar elevado grau de organização interna. Essa constatação leva de volta às

considerações de Goffman (2010), indicando que os gêneros - no caso desta pesquisa,

conversacional - e as ocasiões sociais são reciprocamente interligados, uma vez que uma

ocasião solicita um tipo de gênero e este se adéqua às ocasiões.

Ao conceituar evento, Talmy postula:

Conceitualização de um evento – Pela operação de processos cognitivos muito

gerais que podem ser designados partilha conceitual e atribuição de entidade, a

mente humana em percepção ou concepção pode estender-se por uma fronteira em

torno de uma porção do que seria o contrário de um continum, se do espaço, do

tempo ou outro domínio qualitativo, e designar para conteúdos extraídos de dentro

da fronteira a propriedade de ser uma única entidade. Entre várias alternativas uma

categoria de uma dada entidade é percebida ou conceitualizada como um evento.

(TALMY, 2003, p. 215, tradução nossa).20

Assim, cada ocasião requer um conjunto de percepções decorrentes do tipo de

envolvimento dos participantes, de lugares sociais e físicos, enfim, uma situação específica

percebida pelo conjunto de participantes, cada qual com suas perspectivas e particularidades.

Portanto, o evento compreende mais elementos além do espaço como condição inicial; há

emoções limitadas pelas crenças e desejos daqueles que participam. O evento é, então, uma

unidade percebida, sentida e partilhada por meio dos códigos linguísticos: língua, gestos,

olhares, etc; é, pois, uma unidade construída.

O gênero, por sua vez, como assumido por Larsen-Freeman e Cameron (2008), é um

modelo de usos de linguagem que emerge conforme as experiências sociais e culturais das

pessoas vivendo em sociedade. Dessa convicção também partilha Beaugrande (1997) ao

assumir que a linguagem é um fenômeno integrado com a sociedade e com seus

conhecimentos e que ela constitui um sistema comunicativo dinâmico que é submetido à

20

Conceptualization of an Event – By the operation of very general cognitive processes that can be termed

conceptual partitioning and the ascription of entityhood, the human mind in perception or conception can

extend a boundary around a portion of what would otherwise be a continuum, whether of space, time, or

other qualitative domain, and ascribe to the excerpted contents within the boundary the property of being a

single unit entity. Among various alternative, one category of such an entity is perceived or conceptualized as

an event.

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evolução contínua. Pensamento este que é também congruente com a noção de sistemas

adaptativos complexos bioculturais sempre em prospecção, cuja unidade constrói-se à medida

que se adapta às situações, emergindo, dessa forma, princípios de organização que podem

enquadrá-los em categorias distintas.

Portanto, o que define um gênero são regularidades como princípios de organização.

Por exemplo, numa reunião de trabalho há papéis pré-estabelecidos, sequências rotineiras,

tópicos previsíveis, com a participação das pessoas controlada por uma série de restrições.

Numa conversa considerada espontânea21 também há controles e convenções coletivas, físicas

e abstratas, mas há também um grau de liberdade entre os participantes, porque o evento de

interação acontece entre pessoas que estão interessadas em interagir. Na seção subsequente,

serão apresentados os pressupostos para a construção do gênero em estudo, a conversação,

proveniente da interação face a face.

2.4 Conversação

A conversação é uma atividade estruturalmente organizada (MARCUSCHI, 1997) que

cumpre regras e condições linguísticas que, por sua vez, estão submetidas a outras tantas

regras e convenções de natureza social, pragmática e cognitiva. Segundo Costa (2002) a

conversação envolve uma relação colaborativa entre os participantes, a atenção se volta para

um ponto ao qual todos convergem, seja o tópico discursivo ou mesmo a interação

compreendendo os participantes os objetos, enfim o Ŧ.

2.4.1 Conversação e a conversa espontânea livre (CEL)

As interações sociais mediadas pela fala possuem uma gama de tipos e seria

impossível enumerá-los. Como se viu acerca das ponderações de Goffman (2010), vários

fatores determinam o modelo das interações e os gêneros que elas produzem. São as ocasiões

sociais que definem os contornos das conversas. Há regras específicas para qualquer aspecto

da interação de linguagem. Por exemplo, há regras para se iniciar e para deixar uma interação,

há regras para se comportar durante a interação quando se pode ficar completamente

21

Usar o termo espontâneo não significa que ele esteja sendo entendido como no sentido de dicionário

(voluntário, sem artificialismos, natural, verdadeiro), conferir Houaiss (2009, versão eletrônica), mas com

algumas restrições, uma vez que em uma conversa entre seres humanos a espontaneidade total deve ser difícil

de ser atingida, a julgar pelo que se está considerando nesta pesquisa, que a linguagem está inserida nas

interações sociais, as quais, por sua vez, compreendem regras e valores que se ajustam às situações repletas

de estímulos.

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envolvido ou alheio em maior ou menor grau, há hierarquias que determinam quem pode se

dirigir a quem; essas são apenas algumas variações dos tipos que regulam os comportamentos

nas interações de linguagem. Entretanto, essas regulamentações estão ligadas à organização

das sociedades, elas se manifestam no comportamento geral e são expressas na ação global de

interação. Delas fazem parte desde a movimentação até as escolhas lexicais. Mas, quanto ao

uso exclusivo da língua, embora não ocorra de modo isolado no gênero conversa, existem

alguns padrões conversacionais estruturantes. Sem esses não haveria possibilidade de

interação, são princípios organizadores responsáveis por manter o padrão e, então, o

entendimento entre as pessoas.

A conversação segue seu curso conforme as situações emergem na sucessão de

coordenadas espaçotemporais. Só o presente da interação pode gerar as formas que surgem,

sendo difícil de prever o desenvolvimento (os rumos) de uma conversa espontânea. Segundo

Koch et al. (1990), uma conversa espontânea é por definição não-planejável. Os autores

admitem que possa haver alguma previsibilidade – e se pensa que isso possa acontecer devido

às convenções sociais impostas pelo modo de vida cultural, como foi abordado anteriormente

–, portanto, sempre poderá haver sequências padronizadas, que se adéquem às situações

específicas, e ações imprevisíveis de fala, definidas na emergência da interação de linguagem,

que está sempre em movimento.

A conversa espontânea focada neste estudo é a conversa que ocorre de modo

intencional, em que um participante convoca o outro espontaneamente com o objetivo de

interagir verbalmente. Esse tipo de evento é diferente de uma conversa que também tem um

alto grau de espontaneidade, mas é ocasional e fortuita, como no caso de uma conversa que

ocorre quando se encontra com um conhecido no supermercado. Há espontaneidade até certo

ponto, pois há regras sociais que determinam quesitos como tópicos, duração, hierarquização

dos participantes, etc.

Portanto, há diferentes gêneros de conversas e diferentes gêneros de conversas

espontâneas, dentre as quais se distingue uma que se está concebendo como conversa

espontânea livre (CEL). É necessário esclarecer que a palavra espontânea, nesse contexto, não

implica total ausência de formalidade,ou mesmo que as pessoas estejam inteiramente livres

para agirem e falarem o que pensam sem qualquer grau de censura. Na verdade, a

espontaneidade está relacionada ao tipo de evento que livra os participantes de determinadas

contenções sociais pelo fato de já possuírem um grau de intimidade. Na CEL há um alto grau

de naturalidade, porque a interação é espontânea e não visa cumprir convenções sociais como

nas conversas funcionais. Nesse gênero de conversa, há intenção de interação e, em outros

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tipos de conversa, como no supermercado ou em reunião de trabalho, a interação não é

provocada por um EU, ela tende a ser funcional, a serviço da interação social. A CEL, por sua

vez, emerge da intenção de um EU de estabelecer interação de linguagem.

Deve-se ressaltar que a definição de um gênero de discurso é uma ferramenta

metodológica para caracterizar o objeto de estudo. Entretanto, considera-se que, embora a

CEL tenha suas características - liberdade tópica, intimidade entre os interlocutores, duração e

tomada de turnos não demarcados, naturalidade de expressão -, trata-se de um gênero

interpretado à luz de teorias da complexidade, que consideram que os sistemas vivos seguem

sua trajetória evolutiva, buscando suas condições de adaptabilidade conforme emergem as

qualidades das interações. Por isso, a ideia de gênero servirá para focalizar, no evento de

interação cotidiana, um modo de interagir com características definidas, como as supracitadas.

2.4.2 Verbal e não-verbal

Segundo Marcuschi (1997, p. 5), a conversação é a prática social mais comum no dia a

dia do ser humano, é o meio de construção de identidades sociais e uma das formas “mais

eficientes” de controle social imediato. A fim de exercer esse poder coletivo, a conversação

tem que ser organizada para que seja uma convenção. Por isso suas ações são coordenadas e,

no dizer de Marcuschi (1997, p. 5), “exorbitam em muito a simples habilidade linguística dos

falantes”. Isso se evidencia pelas diversas formas de simbolização que são somadas à língua

com o fim de significar e dar sentido às interações.

Gumperz citado por Ribeiro e Garcez (1998) chama a atenção para diversos aspectos

do contexto que devem ser considerados a fim de que sejam construídos os significados. Ele

chama pista de contextualização os diversos recursos comunicativos presentes na estrutura

das mensagens, sinalizando sobre o tipo de atividade que está ocorrendo, sendo que os

aspectos entonacionais, prosódicos e outros somam para a construção de uma unidade que

fará sentido para os participantes. Diversos tipos de manifestações linguísticas (tom,

intensidade, respiração, expressões, gestos) associam-se como pontos de uma rede que

fornece aos organismos os elementos que vão ser considerados nas computações para a

construção dos significados.

Philips citado por Ribeiro e Garcez (1998) chama a atenção para a participação do

ouvinte na interação face a face. O ouvinte é também um locutor em potencial, mas como

ouvinte ele deve marcar sua posição através de sinais, nem sempre verbais, tanto para ratificar

a fala, isto é, mostrar ao falante que ele o ouve, quanto para administrar a seleção de

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interlocutores. O estudo da autora mostra como, em uma interação, um único foco de atenção

é sustentado, sobretudo pela fala; ela também demonstra como os modos verbal e não-verbal

de ordenação da fala integram-se em um único sistema de organização da interação.

Philips citado por Ribeiro e Garcez (1998) postula, ainda, que na conversa há sempre um

locutor prioritário, em maior ou em menor grau, indicando que a atenção, como considerado no

início deste capítulo, oscila entre uma gradiente que vai da atenção focada e consciente à atenção

difusa; ela pode ser distribuída em intensidades variadas. Essas gradações significativas são

evidentes quando os dados são gravados em vídeos e as ações deixam transparecer os padrões de

regularidade materializados nos diversos tipos de movimentos.

A conversação envolve regras e convenções de natureza social, pragmática e cognitiva

que não podem ser dissociadas, contudo, pode-se fazer um recorte metodológico apenas para

enfocar o objeto de análise, sem com isso o deslocar do ambiente de onde emerge.

A conversação acontece segundo regras do tipo abstrato e do tipo pragmático. O

primeiro tipo está ligado a conceitos e convenções comportamentais, que podem ser

considerados itens simbólicos dispersos no conjunto de valores diluídos nas ações, muitas

vezes subliminares. O segundo tipo é responsável pela organização física do evento, como se

posicionam no espaço, como controlam o foco da atenção, ordenam as falas e incorporam o

espaço pelos objetos nele contidos.

2.4.3 Organização da conversação

Segundo Marcuschi (1997), a conversação é uma atividade estruturalmente organizada

com base na troca de turnos entre pelo menos duas pessoas. A conversação requer uma relação

colaborativa entre os participantes, de modo que um turno sempre se relaciona ao anterior de

alguma forma. Chama-se turno cada uma das intervenções de um enunciador na conversação.

Há sempre um tópico que coloca os participantes em uma espécie de zona de convergência para

a qual as ações orientam-se, sendo esse o foco que estabelece o elo entre os participantes na

interação de linguagem. Jurbran (apud ILARI, 1993) considera o tópico como um tema que

mantém a unidade entre as partes do texto a partir da criação de referentes comuns.

Baseando-se nos pesquisadores Sacks, Schegloff e Jefferson, Marcuschi (1997),

considerando a universalidade da regra “fala um de cada vez”22, apresenta características da

conversação. O autor reúne regularidades válidas para “interações espontâneas, informais,

22

Para maiores esclarecimentos, confira também o sexto capítulo de Levinson (2007, p. 361-475) – A estrutura

conversacional.

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casuais, sem hierarquia de falantes” (MARCUSCHI, 1997, p. 18). Obviamente, outro gênero

de conversa apresentaria algumas propriedades diferentes – uma reunião de trabalho, por

exemplo, segue tópicos regulados pelas necessidades técnicas da situação.

A organização da conversação, baseada na proposta de Marcuschi (1997), possui

propriedades gerais relativamente fixas, que se resumem abaixo da seguinte forma:

há troca de falantes;

fala um por vez, as sobreposições de falas são breves;

a ordem e o tamanho do turno são variáveis;

a extensão da conversa não é fixa, nem previamente especificada;

o número mínimo de participantes é dois, mas o número máximo é variável;

o tópico pode variar indefinidamente;

a distribuição de turnos, muitas vezes disputada, acontece por meio de regras.

Como já foi apresentado, todo o comportamento social, dentre eles a conversa, é

determinado por regras. A disputa por turnos mostra, dentre outras coisas, o interesse do

participante em se impor e fazer valer sua expressividade.

As propriedades constituintes da conversação podem ser consideradas regularidades

que perpassam por numerosos tipos de ocasiões sociais a despeito de sua natureza

sociocultural.

A delimitação da conversa não será uma categoria primordial para este estudo em

virtude de que os limites de uma interação circunscrevem um espaço físico acessível pela

percepção sensorial, mas também limites inatingíveis, proporcionados pela criação de espaços

referenciais simbólicos. Portanto, a delimitação do evento de interação, que é o “palco” da

conversa, não será negligenciada, mas também não serão demarcadas suas fronteiras, porque

uma conversação é um sistema dinâmico construído na interação e pode oscilar entre o

equilíbrio e o desequilíbrio e até apresentar novas formas de organização. Assim, pode haver

inserção e saída de participantes, retornos, mudança de espaço físico, alterações no aspecto

afetivo, ruídos circundantes, bem como outras interferências externas que comprometem a

organização em curso, uma vez que são apreendidas conforme a percepção e a atenção dos

participantes. Diante disso, os limites que demarcam uma conversa são sutis ou mesmo

fugazes, demonstrando, por essa versatilidade, que se pode tratar de um sistema vivo

complexo que tende a manter o equilíbrio, mas está sujeito a mudanças de ordens diversas.

Pretendeu-se delinear, na primeira parte deste capítulo, a linguagem como uma

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propriedade humana mais sofisticada em termos de operações neuronais. Mostrou-se que a

situação em que se encontra o homem contemporâneo, em termos fisiológicos, compreende

um aparato cognitivo conceitual que só emergiu pela linguagem verbal e que só se mantém

em evolução pelo seu fluir permanente. O ser humano é um corpo físico, químico, biológico,

social, psíquico. Um ser que percebe, categoriza, generaliza (distingue, compara), avalia,

conforme seu sistema de valores, baseado em suas condições de bem-estar. Por meio desse

sistema, os falantes constroem conceitos que podem ser tomados como unidades. Essas

unidades emergem como símbolos linguísticos pelos quais se consuma o contato, a interação.

Portanto, a qualidade da interação de linguagem é definida dentro de uma rede de

probabilidade composta por componentes bioculturais; assim, ela é restrita por uma série de

condições biológicas, físicas, químicas e simbólicas, e essas condições determinam o rumo e

o modo como uma interação desenvolver-se-á.

2.4.4 Interlocução

Um item dêitico como aqui pode ser interpretado como o elemento que evoca o espaço

que não é estático, mas um espaço em movimento, em que as situações mudam. Por isso,

partículas como aqui referem não apenas um espaço físico, mas elementos componentes de

um evento de interação. As pessoas movimentam-se e espelham suas emoções nos gestos, nas

falas, e toda essa movimentação interfere no modo como as formas da língua aparecem. Isso

indica que partículas como aqui, agora, olha instauram o discurso, abrem caminho para o

simbólico, tal como na visão de Levinson (2007), para quem as formas de interlocução são

pré-sequências, introdutórias de sequências discursivas. De fato, as operações interlocutivas

sempre introduzem o discurso, mas elas representam mais do que apenas ser um marcador do

que vem adiante, são o ponto de orientação pelo qual os interlocutores constroem-se e

constroem os tempos e espaços referidos no discurso. A interlocução figura, pois, como o

eixo das coordenadas de orientação do discurso.

Como já foi posto – Bühler citado por Lopes (1998), Levinson (2007), Mateu (1994)

–, o princípio dêitico de estabelecer o origo, apontando para a situação, completa-se com as

operações simbólico-discursivas. Enquanto a interlocução aponta o espaço físico, definindo

um eixo de coordenadas e a organização do evento, o discurso aponta referentes que não estão

necessariamente no espaço; são referentes em um espaço simbólico graças à memória que

pode “armazenar” os conceitos.

Essas considerações não parecem indicar uma dicotomia entre concreto, situacional e

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abstrato conceitual, porque há entre esses aspectos uma relação. A interlocução estabelece o

espaço enunciativo e o discurso realiza a construção simbólica. Observando a interlocução

com mais cuidado, parece ser possível assumir que a realização linguística só pode prescindir

do Ŧ se este for considerado como pressuposto ou implícito para a criação dos T/Es

simbólicos que emergirão no discurso. Daí, supõe-se, expressões como aqui simbolizam,

entre as pessoas que participam de uma conversa, mais do que o lugar onde os corpos físicos

situam-se, mas uma perspectiva pela qual o discurso desenvolve-se. Vista pela linha teórica

desta pesquisa, a amplidão do sentido de determinadas expressões vai até aonde vão a

atenção, a percepção, a reflexão, enfim, a cognição humana.

2.5 A interlocução como um sistema complexo adaptativo (SAC)

Para assumir a interlocução como um sistema adaptativo complexo que se insere em

sistemas maiores de forma hierárquica, deve-se apropriar de pressupostos teóricos condizentes

com as propriedades dinâmicas da linguagem, realizada por um corpo que se movimenta no

espaço e que cria outros espaços linguísticos. Para esse fim, serão tomados como pressupostos

elementos das teorias da Complexidade (CAPRA, 2006, 2007; LARSEN-FREEMAN;

CAMERON, 2008; PRIGOGINE, 2002, 2009; PRIGOGINE; STENGERS, 1993); da Seleção

dos Grupos Neuronais – TSGN – (EDELMAN, 1987, 1989); e da Enunciação (BENVENISTE,

1989). Supõe-se que a articulação desse conjunto teórico poderá servir como fundamento que

permitirá uma análise capaz de possibilitar o entendimento do fenômeno da linguagem como

uma emergência dinâmica, resultante de ações humanas cognitivas com fins de interação.

Por considerar a linguagem como um sistema complexo, dar-se-á ênfase a elementos

da teoria da complexidade, pelos quais se poderá explicar o dinamismo das operações de

interlocução, que caracterizam a linguagem como um sistema complexo. Apresentar de forma

sucinta as noções de complexidade será importante para a compreensão e análise do objeto

desta pesquisa, porque essas noções podem ser associadas ao funcionamento da interlocução,

que consiste na construção do espaço enunciativo, o qual, por sua vez, constitui-se na

referência para todo o discurso.

2.5.1 Noções teóricas sobre complexidade

As noções de espaço fase e atrator são fundamentais para compreender o modo de

organização dos sistemas complexos, porque dizem respeito aos princípios que regem seus

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movimentos. A noção de sistema permitirá entender a linguagem com toda sua carga

biocultural, compreendendo sistemas menores inseridos em sistemas maiores, realizando um

processo incessante de trocas simbólicas.

2.5.1.1 Espaço fase

Para Larsen-Freeman e Cameron (2008), o espaço fase é o espaço que delimita o

conjunto de estados possíveis de um sistema; a gama de possíveis reorganizações que um

sistema pode sofrer em função de seus agentes e elementos constituintes ou atratores. As

autoras defendem que o espaço fase representa um cenário de possibilidades de um sistema;

mudando o cenário, muda o sistema delimitado por um conjunto de dimensões coordenadas.

Como se nota na concepção das autoras, o espaço fase é dinâmico, porque está sujeito a

mudanças. Se é um cenário de possibilidades, certamente, ele se alterará quando o sistema

fluir em sua trajetória.

Segundo a física moderna, espaço fase é um conceito designado para descrever os

padrões ordenados das variáveis de um sistema complexo (CAPRA, 2006). Um sistema

comporta-se conforme o número de variáveis que o compõem, assim, os sistemas complexos

estão sempre em interação, realizando processos criativos conforme se adaptam às situações.

Essas noções, aplicadas às relações humanas, poderiam referir-se aos processos de construção

permanente realizados pelo par organismo e ambiente.

Nessa perspectiva, o processamento da linguagem compreende um corpo físico, em

constante interação com o ambiente físico e sociocultural, de forma que as operações de

linguagem emergem dessa relação. Assim, a organização do espaço enunciativo, os

enunciadores em suas perspectivas únicas, constituídos pelo princípio de recursão, constituem

o espaço fase da linguagem. Se duas pessoas seguem pela rua conversando e, de repente,

muda-se o foco da atenção, novas variáveis surgirão e elas terão que se reorganizar em função

das novas variáveis, então, as possibilidades serão alteradas em função da mudança dos

sistemas em interação.

Os fenômenos naturais, devido ao grande número de variáveis que os compõem, são

sistemas extremamente complexos. Esses sistemas são considerados caóticos, porque

descrevem movimentos aparentemente aleatórios, mas, a despeito dessa aparente

aleatoriedade, subjaz um padrão altamente organizado em decorrência dos atratores que

definem a dinâmica do sistema. Como se verá, as variáveis disponíveis em um espaçofase

enunciativo podem ser consideradas os atratores, pois elas podem determinar o estado para o

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qual o sistema tende a se adaptar. Isto é, elas podem definir o modo de organização de uma

interação bem como o discurso que nela emerge.

2.5.1.2 Atrator

A atividade de um sistema vivo complexo é estruturada em um processo de auto-

organização no espaço e no tempo, fazendo com que ao sistema seja imposta uma série de

reações químicas, cujas velocidades e relações mútuas, conforme Prigogine e Stengers (1993),

são determinadas pela atividade das enzimas e pelos fluxos de energia que atravessam essas

reações.

O organismo humano, dentro de seu espaço fase, está sempre suscetível aos fluxos de

matéria e energia que o atravessam, levando-o a novos tipos de comportamento conforme os

atratores que surgem no seu espaço coletivo e privado. Por atrator, Capra (2006) entende a

trajetória de um sistema que nunca se repete, mas forma um padrão organizado. “O sistema

nunca se repete, de modo que cada ciclo cobre uma nova região do espaço fase” (CAPRA,

2006, p. 114). O autor explica que atrator é um padrão definido pelas variáveis do sistema e

que essas variáveis delimitam o espaço fase, isto é, o espaço que cabe ao sistema conforme

suas condições iniciais (CAPRA, 2007).

Adotando o princípio da corporização, pelo qual o mundo simbólico constrói-se, a partir

da relação entre o organismo e o ambiente, a mente, o cérebro, o corpo e o ambiente interagem,

todos para proporcionar comportamentos (GIBBS, 2005). O organismo adapta-se de forma

global ao ambiente, sendo esse um princípio organizador das interações de linguagem. Dessa

forma, impõem-se os atratores que vão definir as operações de linguagem. Para Juarrero:

Atratores auto-organizados abrangem as restrições construídas pela interação entre a

própria dinâmica interna do sistema e seu ambiente. Atratores, portanto, representam

uma dinâmica organização do sistema incluindo sua estrutura externa ou condições

de fronteira. (JUARRERO, 2002, p. 153, tradução nossa).23

Como se observa, trata-se de um processo de auto-organização pelo qual o sistema vai

se adaptando. Nesse âmbito, a linguagem, entendida como um SAC, compreende o processo

de auto-organização de espaços enunciativos, nos quais serão construídas as referências de

todo o discurso. Portanto, os SACs organizam-se pela emergência de formas criativas que

23

[…] attractors embody the constraints constructed by the interplay between the system´s own internal

dynamics and its environment. Attractors therefore represent a dynamical system´s organization including its

external structure or boundary conditions.

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decorrem de sua adaptação, sendo os atratores os contornos que definem as formas que

emergem. Entre uma rede de possibilidades, um sistema tende a seguir seu curso privilegiado

devido a uma série de condições impostas pela dimensão dos atratores.

Na vida humana, pode-se pensar nas limitações físicas e culturais como atratores. O

formato e a condição de bípedes mamíferos - volume, massa, aparelho locomotor, todos esses

elementos - podem ser considerados atratores, porque delimitam o raio de ação - espaço fase -

e determinam o comportamento humano.

Na linguagem, os atratores são manifestos por forças físicas e simbólicas que se

encontram no momento em que as pessoas estão conectadas e definem o modo da interação.

Essas forças são de natureza física. O corpo, em virtude da matéria de que é formado,

apresenta qualidades particulares que condicionam as pessoas a se constituírem de um modo

particular e de natureza simbólica, cuja materialidade é construída na relação intersubjetiva

mediada pela linguagem.

Os atratores físicos podem ser permanentes, como os anteriormente citados, ou

também podem ser efêmeros, como um estrondo durante uma interação. O barulho poderia

provocar mudanças pequenas ou enormes na estrutura da interação, por isso, atratores físicos

não podem ser negligenciados na análise que ora se propõe.

Forças simbólicas são pressões culturais constituídas por elementos dispersos em

tempos e espaços distintos. Sua unidade é apenas uma dimensão recortada e apreendida pelas

pessoas, baseando-se em um Ŧ. Os sistemas simbólicos são organizados conforme as pessoas

interagem e criam códigos que passam a respeitar e aceitar como definidores do

comportamento. Esses códigos manifestam-se no comportamento cotidiano estabelecendo,

por exemplo, o modo como as pessoas cumprimentam-se, como se dirigem umas às outras,

como se apresentam no ambiente, como se vestem, como falam, enfim, como agem

socialmente. Quando se interage, observam-se os corpos, os movimentos expressivos,

avaliam-se as intenções, atribuem-se significados aos objetos. Essas ações parecem dispersas,

mas somam uma série de informações que, ao serem computadas, pressionam a organização

do sistema simbólico.

Capra distingue três tipos de atratores, resumido-os da seguinte forma:

Há três tipos básicos de atrator: atratores punctiformes, correspondentes a sistemas

que atingem um equilíbrio estável; atratores periódicos, correspondentes a

oscilações periódicas; e os atratores estranhos, correspondentes a sistemas caóticos.

(CAPRA, 2006, p. 114).

Numa interação, os atratores ponto seriam a composição da cena com pessoas no

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espaço e no tempo e os objetos que as cercam, determinando as condições básicas iniciais

como tendências naturais do sistema. Os atratores de limite de círculo poderiam ser normas

conversacionais e sociais - troca de turnos, etiquetas, gramática -, ou seja, a interação cumpre

determinadas formalidades previsíveis, podendo se repetir de tempos em tempos, oscilando

em mais de um estado estável. O atrator estranho, por sua vez, seria as interferências que

levariam o sistema a se desequilibrar. Uma pessoa que chegasse gritando, por exemplo, ou um

ataque cardíaco num dos participantes seriam atratores com grau de previsibilidade pequeno,

mas seu peso no desenvolvimento do curso de uma interação seria muito grande, obrigando o

sistema a se reorganizar.

2.5.1.3 A condição emergencial dos atratores na relação organismo-ambiente

Da mesma maneira que o espaço físico e os objetos impõem restrições ao deslocamento

do corpo, as restrições sociais impulsionam ou restringem as pessoas a agirem de determinado

jeito. Isso pode ser explicado quando se compreende o humano como um sistema adaptativo

complexo. Nessa perspectiva, os atratores modelam e definem as interações.

O sistema de linguagem que se desenvolve possibilita criar um mundo conceitual que

pode prescindir do mundo físico, mas que se liga profundamente a ele, porque é dele sua

origem. Nesta pesquisa, tal como Johnson (2007), considera-se que os modelos dos processos

de interação definem os contornos das experiências humanas no mundo e como o mundo faz

sentido para o homem. Isso mostra que os processos de significação são construídos na ação

do organismo no ambiente em interação com os coespecíficos, através de suas experiências

perceptuais e mentais. Essas compreendem o espaço físico e os movimentos, bem como o

espaço mental decorrente do estado evolutivo atual do cérebro humano, envolvendo memória

e modelos conceituais que são a base para a criação do simbólico.

Os atratores, no caso da linguagem como um sistema complexo, constituem-se, pois,

em: atratores internos – relativos ao enunciador, às suas configurações mentais, aos seus

conhecimentos e mecanismos recursivos24 – e atratores externos – externos à própria ação do

enunciador de se situar num espaço físico e enunciativo, estabelecendo-se como locutor social

imerso em um nicho que apresenta suas restrições específicas. Portanto, os fatores externos

não são de fato externos ao organismo, mas resultam de suas computações decorrentes de sua

24

Ratificando o conceito: recursão é um mecanismo biológico que, segundo Catermol (2010, p. 83), possibilita

ao organismo a interação entre exterior e interior, “especifica sua configuração auto-organizativa em termos

hierárquicos de padrão de rede” e “delimita seu grau de estabilidade e variabilidade em redes de espaços fase

em função de seus atratores”.

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atividade adaptativa, auto-organizadora no meio em que vive, ou melhor, no seu nicho. Essa

atividade é computada e realizada em termos de estruturas neuronais, evidenciando que os

fatores externos tornam-se, para o organismo, internos.

Essas considerações levam ao que assume Johnson (2007) a respeito do modo como se

constrói o sistema de significação. O autor diz que este é construído pelo fluir dos corpos no

espaço, isto é, emerge da interação entre o organismo e o ambiente. A atenção aos

movimentos corporais é a chave da compreensão sobre como as coisas e experiências tornam-

se significativas para o organismo humano. Pensa-se poder acrescentar que tanto os

movimentos humanos como o espaço demarcam-se conforme o decorrer das interações.

Estar consciente de si mesmo, em um ambiente dinâmico, envolvido em interações

constantes, leva à indagação sobre os limites do corpo e do ambiente. Sobre isso, Gibbs

(2005) relata que as fronteiras entre o interior humano e o exterior são porosas e que o mundo

torna-se vivo para o ser humano, porque este o incorpora em seu corpo, sendo essa fusão entre

os dois sistemas um entrelaçamento complexo, o que torna difícil distinguir uma fronteira

entre os dois. Por isso, autores como Gibbs (2005) e Johnson (2007) asseguram que se deve

tomar como objeto da investigação científica o par organismo e ambiente. Isso implica a

consideração de uma dinâmica no Ŧ de onde e quando emerge o foco desta pesquisa, que são

as operações de interlocução, componentes do sistema maior que é a interação de linguagem.

2.5.1.4 Abertura, não-linearidade e dissipação

Os sistemas vivos complexos, segundo teorias das ciências naturais, caracterizam-se

pelos conceitos de abertura, que consiste na troca de energia com o meio; de não-linearidade,

que consiste na probabilidade de relações entre os componentes dos sistemas; de dissipação,

que consiste no estado de flutuação entre a ordem e a desordem, levando o sistema a se

manter em permanente estado de reorganização.

Os sistemas vivos complexos permanecem em processo metabólico constante. Capra

(2007) descreve esse processo como um incessante fluxo de reações químicas entre energia e

matéria, por meio do qual o organismo vivo cria-se, renova-se e se perpetua. Na condição de

seres complexos, os humanos, como os demais seres vivos, são sistemas abertos, isto é,

trocam matéria e energia com o meio, consomem alimento e excretam resíduos. Essas

propriedades mostram que o permanente estado dinâmico do ser vivo requer que se olhe para

os humanos como seres vivos complexos sempre em adaptação às situações novas.

A condição natural para os seres vivos é viver sempre em redes, sendo também

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caracterizados por serem envolvidos por uma membrana que os distingue entre os outros e o

meio. A permeabilidade desta membrana, assume Capra (2007), permite a regulagem da

composição celular dos organismos e a preservação de sua identidade. Nos seres humanos, a

membrana que separa um indivíduo do meio é a epiderme. Esse extenso órgão, além de

determinar as fronteiras materiais, é também um componente sensível por meio do qual

muitas sensações são processadas no curso das interações entre o organismo e o ambiente.

Em um sistema de dinâmica não-linear, segundo Capra (2007), revelam-se padrões

subjacentes a um comportamento aparentemente caótico. Difere, pois, da dinâmica linear, que

pode prever o comportamento de sistemas simples. Para o autor, a dinâmica não-linear

representa uma substituição da quantidade pela qualidade, “a matemática convencional lida

com quantidades e fórmulas, a teoria da complexidade lida com qualidade e padrão”

(CAPRA, 2007, p. 13). Essa premissa, considerada no início deste capítulo, induz a pesquisa

para uma análise dos aspectos qualitativos da interlocução, abordando-se os padrões que se

repetem, representados por várias estruturas.

O comportamento de um sistema linear é previsível e limitado, nos sistemas

complexos. Conforme Larsen-Freeman e Cameron (2008, p. 31), as relações não-lineares

acontecem em continum, por causa disso as mudanças não são proporcionais aos estímulos, as

interações entre os elementos não são fixas e, por isso, podem ser imprevisíveis. Na verdade,

as interações, como toda a atividade humana, tem algo de determinado e de indeterminado.

Como se mostrou, os atratores modelam as trajetórias e definem o rumo do sistema; mas, por

outro lado, há o componente da mudança, representado pelo presente perpétuo: cada tempo é

um novo presente que pode quase se repetir ou mudar radicalmente. No caso da linguagem,

ver-se-á que o Ŧ determina grande parte do que pode ocorrer em uma interação, entretanto,

um atrator estranho pode mudar seu curso. As pessoas em interação possuem uma enormidade

de elementos para comporem a cena enunciativa. O gênero, o evento, as ações são elementos

convencionados na atividade social que influenciam as formas de linguagem como uma

emergência possível dentre uma rede de probabilidades, já que os componentes podem manter

entre si relações não-lineares. Qualquer dado de memória pode ser combinado com o presente

enunciativo e, assim, proporcionar uma vastidão de possibilidades, já que quase não há

impedimento para o acesso à memória. Nesta pesquisa, sugere-se que a não-linearidade é uma

característica do modo de operar da linguagem humana; a relação entre seus elementos

componentes apresenta tendências à imprevisibilidade.

As estruturas dissipativas mantêm-se em estado afastado do equilíbrio e podem

evoluir. “Quando o fluxo de energia e de matéria que passa através delas aumenta, elas podem

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experimentar novas instabilidades e se transformar em novas estruturas de complexidade

crescente” (CAPRA, 2006, p. 82).

A dinâmica das estruturas dissipativas inclui a emergência espontânea de novas formas

de ordem. Quando o fluxo de energia aumenta, o sistema encontra um ponto de instabilidade ou

de bifurcação, a partir do qual ele pode se modificar e podem surgir novas estruturas e novas

formas de ordem. Essa emergência espontânea, segundo Capra (2006), é uma das maiores

características dos sistemas vivos e tem sido reconhecida como a origem dinâmica do

desenvolvimento, da aprendizagem e da evolução. Trata-se da criatividade através da geração

de novas formas. Essa característica dos sistemas vivos abertos – trocar energia e matéria como

meio – significa, conforme Capra (2007), a busca constante da vida pela novidade. Percebe-se,

assim, que os sistemas complexos oscilam entre a estabilidade e a instabilidade, tal qual afirma

Prigogine (2002), apontando que a historicidade, ou seja, a mudança através do tempo ocorre já

nos processos químicos, podendo se repetir em nível macro.

A evolução acontece assim por meio de uma sucessão de estádios descritos pelas

leis determinísticas e probabilísticas. Mesmo em nível macroscópico,

probabilidade e determinismo não se contrapõem, mas se completam. A

existência de bifurcações confere um caráter histórico à evolução de um sistema: a

história introduz-se, portanto, já nos sistemas mais simples da química e da

hidrodinâmica. (PRIGOGINE, 2002, p. 24, grifo nosso).

Os processos são, pois, naturais da condição de seres vivos. Seu “eterno fluir” mantém

oscilando entre períodos estáveis até que a influência de algum atrator, dentre uma gama de

possibilidades, influencie-o transformando-o em alguma medida.

Como sistemas caóticos - longe do equilíbrio -, os sistemas vivos auto-organizantes,

adaptativos passam por etapas estáveis às quais se seguem pontos de instabilidade geradores

de mudança. É possível supor que a interação de linguagem assemelha-se aos sistemas

caóticos devido a sua emergência dinâmica, sob condições que a limitam, impulsionam-na e

modelam suas manifestações. Carregadas de significados, as ações de linguagem regulam e

são reguladas na própria interação, quando são definidas pelas restrições impostas pelos

atratores em um espaço fase construído pelos organismos no presente enunciativo.

2.5.2 A construção do espaço enunciativo

A enunciação é, segundo Benveniste (1989), a necessidade do locutor de referir-se

pelo discurso e, para o outro, a possibilidade de correferir e também se instanciar como

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locutor. Essa necessidade de que fala Benveniste (1989) pode estar associada à hipótese de

Edelman (1989) de que a classificação de gestos entre os coespecíficos emergiu de estados

afetivos que geraram estruturas de distinção de categoria selfnonself ( EU-NÃO-EU). As duas

hipóteses concebem a linguagem como uma propriedade humana ligada à distinção EU-NÃO-

EU e a distinção PRESENTE-NÃO-PRESENTE, embora o foco de Edelman (1989) seja para

as condições de surgimento dessa propriedade e o de Benveniste (1989) seja para a descrição

dos seus princípios de materialização.

Benveniste (1989, p. 222) postula a imbricação orgânica da linguagem quando afirma

“a linguagem serve para viver”. A noção do autor descreve com justeza o verdadeiro status em

relação à linguagem: o ser humano é ser linguagem, é criador de linguagem; essa propriedade

emergiu das condições biológicas evolutivas de seres sociais em adaptação no nicho.

É importante notar que Benveniste (1989) acentua a existência de formas referenciais

de pessoa, tempo e lugar, evidenciando a prioridade para a linguagem verbal como forma

analisável. Entretanto, a teoria do autor permite estender a noção de formas para o conjunto

linguístico humano biocultural, isto é, as formas do corpo físico e um espaço simbólico como

estruturantes na construção do significado. Por essa razão, a teoria permite acrescentar como

objetos observáveis não só as formas verbais, mas as formas corporais, como os gestos, as

expressões faciais e os movimentos globais do corpo, levando em conta que, no dizer do

autor, o ato individual de pronunciar o enunciado deve ser objeto do linguista

(BENVENISTE, 1989). Ressalva-se neste ponto, entretanto, que não se trata de um ato

exclusivamente individual, já que ele é direcionado a um TU que é também constitutivo.

Assim, o discurso constrói-se em bases físicas das quais partem as referências para a

construção do simbólico, que se orienta pela localização das pessoas no tempo e no espaço.

Essa constatação leva a concluir que o ato de linguagem envolve corpos plenos de

possibilidades em movimento no espaço e que todos os seus movimentos podem,

potencialmente, ser elementos considerados na análise linguística.

O objetivo deste capítulo foi apresentar os fundamentos da complexidade que se julga

adequados para serem aplicados ao campo linguístico. Tratou-se de conceitos cruciais para a

compreensão de um sistema complexo que opera em um espaço fase governado por atratores

que limitam e/ou induzem a ação do sistema. Abordou-se a significação como uma função

organismo-ambiente, função significativa, permitindo, assim, que a linguagem possa ser

compreendida como um sistema adaptativo complexo. Apresentaram-se elementos da teoria da

enunciação como fundamento dos princípios formais da língua que permitem sua orientação

espaçotemporal e sua realização em conexão com outros tipos de sistemas de linguagem.

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3 INTERLOCUÇÃO: UM SISTEMA COMPLEXO

Neste capítulo apresentar-se-á a análise da interlocução no processo instantâneo em

que ela emerge, orientando a investigação para detectar determinados padrões pelos quais a

língua interage com outros sistemas de linguagem, resultando em um processo cognitivo que

envolve o ser em interação e não apenas um sistema de códigos independente do evento de

onde emerge. Pretende-se mostrar como a interlocução apresenta características dos sistemas

vivos complexos ao se realizar pela associação de vários subsistemas em movimento, fluindo

entre zonas de equilíbrio e desequilíbrio, com o fim adaptativo.

3.1 Retomando o objeto

As OIs podem ser consideradas uma categoria que engloba as funções dos MDs

condutores do tópico e marcadores organizacionais - e acrescenta o modo como as emissões

são expressas. A forma como as emissões são lançadas e o modo como o corpo movimenta-

se, além de modularem o texto revelando intenções e “espírito” dos enunciadores, são

responsáveis pela construção do sentido.

Conforme análise feita, os aspectos multimodais contribuem de diversas maneiras para

as computações que vão gerar os significados, sugerindo que a língua constrói-se a partir de

uma percepção global das pessoas no convívio social, em movimento, integrando uma

multiplicidade de sistemas dos quais se organiza o todo, portanto, mais movimentos estão

envolvidos no processo de linguagem.

Uma sucessão de ações ocorre para constituição do espaço enunciativo (Ŧ). Os MDs

contribuem para garantir a coerência discursiva no texto e na organização da interação, ao

definir o espaço físico e social dos enunciadores. O material analisado mostra que, além das

funções “meta-discursiva” e “meta-interativa” dos MDs, há marcadores que advêm do

conhecimento que os falantes partilham no Ŧ; esse conhecimento é alcançado por meio de

atenção partilhada e partilhas anteriores que funcionam como pistas de orientação para a

interpretação dos textos produzidos in loco.

A marca formal para identificar as ações de interlocução, como já mostrado na seção

da metodologia, são as distinções entre pessoa e tempo. Primeira e segunda (1ª / 2ª) pessoas

opõem-se à terceira (3ª) pessoa, presente opõe-se ao não-presente, sendo que a forma de

aparecimento dessas distinções pode ser isolada ou concomitante, isto é, as duas marcas

podem aparecer ao mesmo tempo em uma emissão.

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Na superfície textual aparecem atualizados os elementos percepto-cognitivos, como os

dêiticos – pronomes, advérbios –, e também uma série de movimentos associados à emissão do

texto, como são os contornos entonacionais, as expressões, o olhar, tudo compondo a base que

levará ao aspecto simbólico, abstrato de significados conceituais mais amplos. A construção do

tópico (objeto discursivo ou referência) pode se realizar por ações conjuntas que levarão à

identificação do objeto. Nesse caso, os significados são alcançados a partir de diversos

conhecimentos, relacionados pelos falantes de alguma forma, e da consciência recíproca que os

interlocutores têm do que sabem. O Ŧ já é um dado partilhado e representa um pano de fundo para

a construção textual.

O funcionamento das OIs revela o caráter meta-discursivo da linguagem ao versar

sobre si mesma e sobre os enunciadores que expõem seus pontos de vista, suas emoções,

autorreferem-se, situam-se e imprimem sua energia nervosa por meio de um sistema múltiplo

que integra a construção do significado na cena enunciativa.

3.2 Descrição das amostras

Os exemplos da amostra 1 evidenciam que, em uma CEL, a formulação dos textos

apoia-se no Ŧ de diversas maneiras. Essa questão não é tão simples, pelo fato de que, em

algumas situações, não se pode distinguir ou precisar se uma emissão refere-se à continuidade

do tópico ou à auto-organização dos enunciadores. No quadro teórico estabelecido, a

interação de linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural compreende

pessoas em sua integralidade de modo que o conteúdo e o contorno das emissões fornecem

significantes pistas sobre o espaço enunciativo que servirá de ground para o surgimento do

texto e do significado.

Amostra 1

Exemplo 06

1 - 05:00 – K: na hora de fazer essa ligação do joelho é: [olhando C e fazendo gestos]

O primeiro elemento marcado25 na linha 1 é a expressão essa. Esse item refere-se à

narração que vinha sendo desenvolvida, no tempo 4:50. Ao dizer eu sei que a hora que [?]

tirou o joelho que fazia a ligação assim, K introduz o objeto discursivo ligação, por isso, ao

25

Ao se lançar mão de dados do corpus, (registrados nas amostras) será utilizado sempre o número da linha

para identificar os exemplos.

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retomá-lo, usa, na linha 1, o pronome para indicar que a ligação de que fala já fora

introduzida. Por outro lado, não se pode desconsiderar que o pronome também pode se referir

à cena enunciativa, porque ela descreve com as mãos a ligação do encanamento, descrevendo

um movimento perpendicular, movimento para o qual os interlocutores e a locutora estão

atentos. Como se nota, o elemento essa apresenta, como preconizou Marcuschi (1989), a

propriedade multifuncional de apontar o curso da língua, ou seja, a condução tópica ao

mesmo tempo em que aponta para os estímulos percepto-cognitivos. Pode-se dizer que aponta

para o discurso e para o ato mesmo de produzir o discurso em um tempo e lugar, ou melhor,

no presente enunciativo, Ŧ.

À luz da linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural, essa

ocorrência explica-se pela linearidade através da qual o texto desenvolve-se - mantendo uma

coerência que o unifica - e também pela não-linearidade, promovida pela condição de abertura

através da qual o organismo (os enunciadores) interage com seu meio, de onde sofre pressões

que o obrigam a se reorganizar para se adaptar. A adaptação implica algum tipo de mudança.

A inserção de C demonstra a sequenciação na linearidade tópica, e reorganização desse

tópico, ligada à construção da cena. Tomando a linguagem como um sistema complexo, pode-

se aceitar que no plano linear a ordem estabelece-se por sequências que mantêm entre si um

alto grau de coerência, garantida pelo léxico e pela gramática. Paralelamente, as inserções

quebram a linearidade ao irromperem motivadas por fatores que estão ligados ao aspecto

perceptual e cognitivo.

Do segmento 2 ao 9 as ações estão explicitamente voltadas para as pessoas,

reorganizando-se no tempo e espaço.

Exemplo 07

2- 05:05 – C: [olhando para a janela e para K] tá sentindo frio? aqui? [apontando para a

janela]

3- 05:07 – K: não, tá ótimo

4- 05:06 – CL: → tem blusa ali se quiser ah/ ↓ cê trouxe blusa

5- 05:08 – C: n: → não na hora a gente fecha [para CL]

6- 05:09 – K: na hora que ele ↑ puxou o joelho

7- 05:10 – K: o joelho tava: [~] tava solto

8- 05:10 – CL: [para C] eh:: ( ) ↓ ê:: [colocando a língua para fora, como se dizendo bobo]

9- 05:12 – K: como se tivesse só encaixando [~] olha que doidera

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O foco são os falantes, como em 2, C pergunta se K está sentindo frio. Visivelmente se

tem, nessa fala, oculta a marca de pessoa (Tu) e a marca explícita do tempo presente pela

forma reduzida do verbo estar (tá). O advérbio aqui está completamente ligado ao Ŧ, pois

deixa subentendido uma série de informações, como “eu estou perguntando se está com frio,

porque a janela está aberta e está entrando uma brisa”. Isso pode ser percebido pelos

movimentos corporais de C que, inclusive, mais tarde fecha parte da janela. No segmento 3,

ao dizer não, tá ótimo, K deixa implícita uma série de informações que tendem para um

significado como “para mim está ótimo” ou “eu não estou com frio”, apresentando marcas de

pessoa e formas de tempo que garantem se tratar de operações de interlocução. Na linha 8, CL

emite um som supragramatical e faz uma expressão facial que, em conjunto, significam que

ele reconhece que fez uma bobagem ao oferecer uma blusa para K. Ele reconhece isso, porque

C dá a entender que não precisa emprestar uma blusa, pois, quando K sentir frio, fecha-se a

janela. Na linha 9, ao finalizar o relato, K emite olha que doidera!, mostrando sua estranheza

em relação à situação do encanamento que não foi bem feito. Essa emissão refere-se ao

próprio enunciador e seu conteúdo revela algo sobre ele.

Esse trecho deixa evidências de que o fluxo tópico segue seu curso linear enquanto a

interação organiza-se de forma não-linear, uma vez que as ações podem ocorrer ao mesmo

tempo e conjugar diferentes aspectos, como os estímulos visuais, os pré-concebidos

(estados físicos – temperatura –, normas de convívio social, por exemplo), as falas, o espaço

físico. Enquanto C e CL engajam-se em uma troca de ações de organização do espaço, K

continua sua narração evidenciando a simultaneidade de ações sem, no entanto, haver

incompreensão.

Essa dinâmica interlocutiva pode ser considerada uma característica dos sistemas

complexos, que apresentam um elevado grau de organização subjacente a uma aparência

caótica. Falas simultâneas não indicam caos, mas indicam que existem operações pelas quais

as pessoas coordenam estímulos percebidos de maneira multimodal; assim, a visão e audição

são grandes aliadas da língua, que conta com esses perceptos para sua organização. A

quantidade de elementos computados pode explicar a sobreposição de falas no trecho, a

atenção está dirigida para um ponto, mas outros são também considerados. Isso ocorre

também do segmento 62 ao 64, quando CL leva a mão em direção à janela e K emite tá bom,

isto é, não precisa fechar a janela, a temperatura está boa, etc. Os falantes computam os gestos

e os consideram como antecedentes discursivos.

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Exemplo 08

61- 06:59 – C: aí fi/ ficamos me::ses

62- 07:00 – CL: [leva a mão em direção à janela]

63- 07:01 – K: tá bom [para CL que ia fechar a janela]

64- 07:02 – CL: tá bom assim?

No segmento 10, abaixo, C usa uma sequência típica da conversação que indica início

de turno e, ao mesmo tempo, uma marca de continuidade (continuidade ao que K vinha

narrando sobre o problema no encanamento).

Exemplo 09

10- 5:14 – C: e assim, Neilton falou q/ Neilton: Neilton ↓deu o parecer sobre isso?

11- 5:18 – K: ele vai lá hoje::

12- 5:19 – K: tá previsto pr‟ele ir lá hoje mas eu acho

13- 5:22 – C: ↑ não/ mas assim ( )

14- 5:23 – C: ele foi responsável por isso? ( ) ou acontec/ acontece::u: [movimento semântico

de mão explicitando o modo como aconteceu, parece indicar “por acaso”]

A expressão e assim confirma, mais uma vez, a propriedade multimodal de

determinadas ações organizadoras da interação e a narração introduzindo o falante e a

retomada do tópico ao mesmo tempo. No segmento 13, C interrompe K - não/ mas assim. O

não sugere um reparo, indicando seu interesse por uma informação específica que ela introduz

por mas assim, fazendo o encadeamento textual. Isso demonstra que a construção do sentido

deve-se às informações sobre o que os falantes conhecem, sentem e acham. Em 12 e 13

percebe-se uma intenção de K expor seu ponto de vista sobre o fato, mas C a interrompe para

buscar conhecimento sobre o tópico em curso. Esse fato evidencia o cuidado dos

enunciadores para com a construção do conhecimento. Eles vão se informando, mostrando o

que sabem e complementando o conhecimento do interlocutor para garantir a coerência do

texto conversacional. Isso mostra que a construção do discurso compreende o tempo presente,

situando e espacializando os interlocutores, e o tempo linguístico, que funde os tempos,

amarrando-os ao presente enunciativo apreendido e computado para a produção do

significado.

Nos segmentos 9, 12, 16, 22, 45, dispersos na amostra 1, respectivamente, as falas de

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K – olha que doidera; eu acho; gente, não tem muito sentido...; eu num to querendo mais; a: é

um saco – apresentam marcas de estados interiores, sentimentos e reflexões de um EU

indicando que um self manifesta-se expondo o que pensa e o que sente. Essas emissões

referem-se a estados internos, mudando o foco para o locutor, portanto, para a interação e

não para o fluxo narrativo. Também outras falas como as de C - no::ssa ... i::hh e olha que

coisa –, nas linhas 33 e 56, respectivamente, mostram manifestações interiores, sendo essa

última emissão uma invocação do TU, oculto na forma verbal. Note-se que o falante

convoca o TU para manifestar um estado interior. As emissões de CL – cê tem que e eu acho

difícil –, nas linhas 17 e 44, revelam opiniões, posições, crenças e estados internos

denotando o papel social da linguagem de instituir o espaço coletivo em que o falante refere-

se a si e ao outro como condição básica de existência. Essa questão também se exemplifica

pelo trecho que compreende as linhas 37 a 42, em seguida, em que os participantes

manifestam opinião.

Exemplo 10

37- 6:10 - C: [pegando a garrafa e servindo as taças] ↑ eu tô achando bom sem

gelar, cês tão?

38- 6:12 – CL: [volta-se para C] eu também tô gostano ( ) ↓ tá ótimo

39- 6:13 – K: eu também tô

40- 6:15 – C: num tá? [para K]

41- 6:16 – K: tá ótimo [para C]

42- 6:16 – C: inve::ja:: [balançando a garrafa, mostrando-a aos técnicos]

Eles falam o que estão achando do vinho, chamando a atenção para o fato de que a

sobrepujança do objeto tridimensional no Ŧ dispensa a referência verbal, e isso revela o

quanto as formas da língua emergem em função da composição da cena comunicativa. O

tópico não aparece na superfície textual, ele é um objeto percebido pelo grupo em atenção

conjunta.

A seleção de tópicos discursivos pode ser realizada por meio da atenção partilhada.

Também as intenções dos falantes são reveladas pela modulação dos enunciados, que também

funcionam como marcas interpretáveis. Na linha 37 (C diz eu tô achando bom sem gelar, cês

tão?), a construção do tópico dá-se quando os participantes percebem a garrafa e a

consideram em suas computações para dar sentido à emissão de C. Nesse exemplo, a

construção do tópico atualiza-se pela atenção compartilhada; provavelmente, foi o movimento

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de C, ao pegar na taça, que direcionou a atenção dos participantes para um ponto. A

identificação de aspectos percepto-cognitivos demonstra que a atenção partilhada pode ser

apontada como um dado que fornece base para a construção do texto. Nesse caso, o objeto da

predicação é acessível aos participantes pelo seu conjunto perceptual e por sua posição

espacial no ambiente da conversa.

Na linha 43, K apossa-se do turno mudando o tópico ao solicitar uma informação de

C, mas ela é interrompida por CL.

Exemplo 11

43- 6:18 – K: aqui me conta/ [olhando para C e depois volta-se para CL que intervém]

44- 6:19 – CL: esse é o problema qu‟eu qu‟eu acho difícil em apartamento é isso

A inserção aqui, me conta deixa claro que se trata de uma operação de interlocução,

pois aponta duplamente para o EU, por meio do advérbio - que, nesse caso, indica a

circunstância global da pessoa, do lugar e do momento - e do conteúdo oracional - que

também indica o EU e o TU estabelecidos pelo pronome me explícito e pelo tu subentendido

na forma verbal. Assim se estabelece o elo básico da interlocução EU↔TU.

Na linha 17, na fala de CL, o demonstrativo esse indica um retorno no texto, referindo-

se ao problema vivido por K (o vazamento hidráulico); e a oração imperativa cê tem que

mostra que existe uma intenção de convencimento por parte de CL.

Exemplo 12

17- 5:30 – CL: [?] [?] não/ mas esse é um problema da construtora cê tem que acionar é quem

contruiu uá

Percebe-se a intenção do EU de convencer o TU a mudar seu comportamento. CL

indica a K o que fazer diante da situação. Isso parece um indício de uma necessidade de

construir um elo EU↔TU por meio do engajamento linguístico para estabelecer a

interlocução. Assim também parecem ser os pares adjacentes, nomeados nesta pesquisa de

“par de confirmação”, que materializam o engajamento indicando que se trata de mais um

recurso para estabelecer o elo, ou, no dizer de Marcuschi (1989, p. 299), para sustentar a

interação, como segue abaixo:

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Exemplo 13

22- 5:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu? [olhando

C]

23- 5:40 – CL: é claro

Exemplo 14

45- 6:23 – K: a: é um saco a/ ↑além do mais porque não ha↑via vazamentos visíveis no meu

apartamento entendeu?

46- 6:29 – CL: sei

Exemplo 15

48- 6:33 – CL: e o cara, vai lá embaixo, né? [gesto descendente com a cabeça]

49- 6:34 – K: é::

Na linha 22 há um marcador que faz um elo entre o texto e o EU. A sequência então

assim ( ) eu num tô querendo mais..., emitida por K, liga o fato do vazamento, que vinha

sendo narrado, ao que ela pensa sobre o fato. Isso indica que nas OIs os marcadores de

interlocução exercem a função de relacionar o texto - o relato do vazamento - e a interação - o

posicionamento do EU perante o fato; o conector faz um deslocamento do eixo linguístico

para o eixo pragmático.

Da linha 26 até 32, o participante CL faz três tentativas de intervenção até que K

responda sua pergunta. A observação do evento mostra que a repetição de CL ocorre porque

K estava engajada com C e ele, CL, deseja se inserir como participante. Isso parece ser mais

uma evidência de como a organização da interação interfere nas formas textuais, isto é, o

discurso vai se tecendo entre as articulações linguísticas e interacionais, portanto, uma

demonstração de que os aspectos percepto-cognitivos são importantes para a construção da

relação enunciador-enunciatário e, consequentemente, para a construção do sentido.

O gesto e o toque visando à tomada de turno ou mesmo à manutenção do elo também

ocorrem na amostra 1. Na linha 15, CL tenta interceder levantando o braço, na linha 57, K,

rindo, adianta o tronco e toca as mãos de C, que repousavam sobre as pernas cruzadas (essa

ação parece representar o estabelecimento do elo) e, por fim, na linha 71, C adianta o tronco e

toca K, retomando o turno para continuar a narração interrompida; tudo indica que C quer

explicar a causa de um entupimento que narrara em turnos anteriores.

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A seguir, na amostra 2, outros aspectos serão enfatizados, já que os acima expostos

também se repetem, como é característico de toda CEL.

Amostra 2

Sobre essa amostra, pode-se destacar o trecho que vai do segmento 11 ao segmento 25

e que reflete a ordem subjacente ao aparente caos.

Exemplo 16

11- 35:10 – [todos riem e falam ao mesmo tempo]

12- 35:15 – CL: eu fiquei sabendo [?]

13- 35:18 – K – C tá louca pra ir lá no Shopping pra ela ir buscar [?]

14- 35:19 – CL: não/ já inaugurô:: já inaugurou

15- 35:20 – C: inaugurou menina diz que ↑é li::ndo

16- 35:22 – CL: [?] diz que/ mas tem cena:

17- 35:23 – C: eu num vi ainda não [olhando para CL]

18- 35:24 – CL: mas ocê sabe da cena ( ) ↓das pessoas

19- 35:25 – K - C tá enlouqueci:da pra ir ao shopping

20- 35:26 – C: ó teve/ ↑ tombou até caminhão de leite [?]

21- Paropeba

21- 35:26 – CL: [↑ risada]

22- 35:28 – K: batê cabe:lo [balança cabeça] no

shopping

23- 35:29 – G: de:u/

24- 35:32 – K: [olhando C] o que é que ocê falou?

25- 35:33 – G: deu ↑fi:la

Quando os quatro falantes elegem o tópico “shopping de Sete Lagoas” - a partir da

sugestão de K, que pede a C para consultar a pauta -, ocorre, como se vê na linha 11, uma

confluência de falas e risos, provavelmente motivados pela confusão que houve na

inauguração do shopping. Apenas K não sabia do evento e faz um comentário pretendendo

dizer que C está louca para ir ao shopping “batê cabelo”. Alguma coisa que K diz faz com que

CL replique, não/ já inaugurou, explicando-lhe que o shopping já fora inaugurado. O trecho

mostra que o encadeamento de sequências, muitas delas sobrepostas, vai sendo organizado à

medida que o turno vai sendo disputado. CL tenta introduzir um turno nas linhas 12 (eu fiquei

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sabendo), 16 (diz que/ mas tem cena:), 18 (mas ocê sabe da cena [...] das pessoas),

disputando com K, que intervém nos segmentos 15, 19 e 22, antecipando as pretensões de C

em relação ao shopping com as falas tá louca pra ir ... pra ela ir buscar, C tá enlouqueci:da

pra ir e batê cabelo no shopping. As falas de K indicam que ela presume algo sobre o

comportamento de C e isso indica que nas relações íntimas os falantes expressam o que

sentem e também o que pensam que os outros pensam ou sentem. Assim, até que a obtenção

do turno acomode-se em definitivo, tem-se: C introduzindo o tema para narrar sobre a

inauguração, CL tentando narrar o que também sabe sobre o assunto, K supondo os desejos de

C em relação ao shopping e duas tentativas tímidas de G, que tenta intervir para falar sobre

uma fila que teria ocorrido para o acesso ao shopping. Assim, depois da profusão de

tentativas, K pergunta a C o que é que ocê falou? e esta começa a narração do episódio

assumindo, definitivamente, o turno. Depois que C narra os fatos (o povo invadindo o

shopping) no segmento 59, CL insiste, novamente, no turno que tentara introduzir nos

segmentos 12, 16 e 18.

Essa aparente confusão evidencia que o processo de organização parte de ações não-

lineares, pois as falas não são ordenadas em sequências de turnos; esses são recortados,

sobrepostos, interrompidos, e os falantes seguem se manifestando, até que a ordem

estabeleça-se rumo a linearidade, quando os turnos organizam-se, seguindo a tendência “fala

um de cada vez”. Isso demonstra que, como um sistema complexo, o funcionamento da

interlocução mostra um movimento que vai da ordem ao caos e o reverso, uma vez que, como

uma estrutura dissipativa, sofre pressões de atratores até que um mais forte exerça influência

sobre outros, fazendo com que o sistema acomode-se em um estado de equilíbrio que não será

permanente. Muitos elementos de naturezas diversas são conjugados harmonicamente para

que os significados possam emergir.

A não-linearidade também pode ser exemplificada quando uma ação superpõe-se a

uma fala, como ocorre nas linhas 34 e 35, quando K oferece vinho a G durante a fala de CL.

Exemplo 17

34- 35:49 – CL: e::h foi um evento:: inter-regional [risos]

35- 35:49 – [passando a taça para G] toma G

Nesses dois trechos observam-se fortes evidências de que na interação de linguagem

predomina uma complementaridade entre a não-linearidade na organização da interação e a

linearidade na organização das sequências narrativas. É necessário frisar que uma conversa é

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sempre linear, pois sua realização dá-se por sequências de ações que se sucedem umas após as

outras. No entanto, a despeito dessa condição inexorável da linearidade, há aspectos que são

não-lineares tanto na organização da interação quanto no fluxo narrativo, uma vez que o

alcance de tempos e espaços quaisquer podem quebrar o curso linear do discurso.

Na organização da interação isso pode ser representado pelo modo como os falantes

organizaram-se para dar prosseguimento ao tópico: a ordenação dos falantes é aleatória, ou

seja, qualquer um pode falar. Quanto ao que se fala depende do tipo de conversa e do grau de

intimidade em uma CEL. A liberdade tópica é bem acentuada em conversas espontâneas. As

decisões em relação ao tópico dependem do corpo de regras sociais que regulam a

comunidade de fala e de uma série de fatores que definem o que pode ou não ser um tópico

em um determinado tipo de conversa. O desenvolvimento do tópico demonstra como a

organização da interação apresenta propriedades não-lineares, ou seja, há uma ampla

possibilidade de escolha. Além disso, a modulação da entonação, muitas vezes decisiva para o

significado, também possui propriedades não-lineares.

Da construção do texto participam também os contornos ligados à entonação e ao sistema

corporal, que muitas vezes definem os significados das emissões de linguagem. Recursos

diferentes como velocidade, intensidade, acento e gesto são incorporados na formulação textual

e dão a ela significados específicos conforme sua modulação. A cada vez que um falante emite

um som, ele dá a ele uma entonação e um gestual específicos, que caracterizam e identificam o

enunciador e sua narração. Pode-se, assim, ver que uma relação entre a emissão linguística e o

aumento na velocidade ocorre simultaneamente e não em sequência.

Quanto ao fluxo narrativo, a não-linearidade manifesta-se na construção dos

significados, uma vez que, para a interpretação das sequências da língua, é preciso computar o

ponto marcado pelo cruzamento da coordenada tempo e espaço. Depois disso, os tempos e

espaços podem ser criados indefinidamente pela linguagem, e isso será definitivo para que as

emissões possam fazer sentido. As ações que visam à organização da interação tendem a ser não-

lineares devido à sua imprevisibilidade e a ser lineares, porque aparecem em sequência. Também

as ações que compõem o fluxo narrativo possuem seu componente linear, porque aparecem em

sequência, e tendências não-lineares, pois conjugam elementos do Ŧ e do (T/E)n de forma que sua

coerência depende do fluxo tópico e dos conhecimentos compartilhados. Na interação in loco, as

pessoas estão submetidas a pressões ambientais diversas, às condições físicas, aos olhares, aos

objetos, aos estímulos advindos de diversos sensores, ao fluxo da atenção, enfim, o organismo

em interação computa muitos dados e os considera na elaboração verbal.

Os segmentos 14 e 67, respectivamente, não/ já inauguro:: já inaugurou e nã:o, foi

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visto como um sucesso exemplificam a não-linearidade na organização da interação, pois CL

está voltado para C e tenta engajar-se com ela para desenvolver o tópico da inauguração do

shopping, mas ele ouve uma emissão de K e se volta para ela com o intuito de informá-la

sobre o tópico e depois se volta para C. Um aspecto importante nessa emissão é que ela

aparenta a velocidade alterada.

É possível que isso ocorra porque CL está interessado em desenvolver o tópico com C,

mas ele percebe que falta alguma informação para K; então, fornece-a em velocidade mais

acelerada e retorna para seu ponto de interesse em C. Quando CL muda o foco de C para K,

acelera a fala e, em seguida, volta a atenção para C. Isso deixa transparecer que os

interlocutores processam muitos estímulos de uma vez e, conforme o fluxo da atenção, eles

podem se deixar influenciar por determinado estímulo, o que é revelado em suas ações.

Outro aspecto importante na amostra 2 diz respeito à preocupação em definir o modo

como as falas vão ser interpretadas. Na linha 27, CL pergunta a C cê tá de sacanagem, né? e

C reponde não/ caminhão de leite é mentira, CL responde eu sei e C segue mas teve excursão.

O trecho mostra que os falantes buscam orientações que vão servir para organizar a

interpretação distinguindo o que é fato do que é brincadeira ou exagero para “florear a

narração” ou por outro motivo qualquer. Essa é uma forte evidência de que o enunciador

marca suas crenças e posições e também busca o mesmo sobre o TU.

Por último, vale ressaltar que, na linha 61, quando CL diz Betânia que falou com a

gente, o item negritado refere-se ao locutor e a sua mulher, a qual não está na cena, mas é tida

como um subentendido por ele que, por sua vez, pressupõe que os interlocutores detêm a

referida informação. Isso mostra que diversos conhecimentos percepto-cognitivos, de natureza

nem sempre exclusivamente linguística, são computados e interferem no que virá na estrutura

textual, confirmando o que foi aceito nesta pesquisa em termos de uma interface entre o modo

linguístico e o modo pragmático.

Ao descrever fragmentos de uma CEL e ressaltar os aspectos que se destacam para os

objetivos desta pesquisa, a intenção, de uma maneira global, é enfocar as ações que

constituem a interlocução no tempo em que acontecem, mostrando sua relação com as ações

antecedentes e sua influência sobre as ações subsequentes. Essas observações evidenciam

como o processo interlocutivo tem suas bases materiais no cruzamento das coordenadas de

tempo e espaço – que pode ser considerado um atrator que modela o processo. Ao mesmo

tempo, tais observações mostram como as ações extrapolam esse cruzamento através de

diversos elementos simbólicos que entram no cômputo das ações, portanto, assinalando as

relações não-lineares na composição do processo interlocutivo.

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3.3 Ações componentes das OIs

Buscando encontrar o padrão de organização que caracteriza as OIs e identificar as

possíveis correlações entre elas, a partir deste ponto, serão destacadas algumas ações

específicas que as compõem. Importante ressaltar que as OIs estruturam-se na construção do

texto em consonância com ações físicas corporais, portanto, traduzem-se em formas materiais

que se relacionam e moldam o padrão, adequando-se às condições do Ŧ.

Nos dados observados, ações de constituição e organização dos interlocutores e ações

de constituição do tópico integram-se e recebem cargas de natureza percepto-cognitiva que

são computadas na construção dos significados.

O Quadro 2 mostra seis tipos de ações selecionadas que se estruturam, revelando o

princípio organizador de estabelecer o padrão interlocutivo, ou seja, evidenciando que existe

uma dinâmica especial para a construção da relação entre enunciador e enunciatário,

EU↔TU, de uma forma ampla e profunda. Isso significa que, a partir dos textos, as pessoas

constroem-se como enunciadores e, como a própria referência, eles referem-se a si mesmos

expressando sentimentos, emoções e narrando suas histórias.

Quadro 2 – Ações estruturantes das OIs

Ŧ

A

I

N

T

E

R

L

O

C

U

Ç

Ã

O

AÇÃO TIPO DE AÇÃO ESTRUTURA PADRÃO INTENÇÃO

Contato físico EU toca TU

Língua, exp. Facial,

corpo (membros

sup.)

O EU se

movimenta

para obter

atenção do

TU

EU↔TU

Manter ou obter o

turno.

Dar retorno ao TU

Manifestar-se

Situar-se fisicamente

Situar-se

socialmente

Expressar crenças e

desejos

Receber atenção

Ser amado

Convencer

Conhecer

Informar

Informar-se

Aprender...

Entonação

EU modula

aumentando ou

diminuindo a

intensidade; altera a

velocidade da emissão

vocal

Língua, exp. facial e

modulação.

Emissão de itens

gramaticais e

supra

gramaticais

EU emite orações e

sons convencionados,

não lexicais

Língua, exp. facial e

modulação.

Repetição

EU repete emissão

vocal

Língua, recorrência

Expressão

corporal

parcial/global

EU faz movimentos

corporais Corpo

Narrativa

EU emite um conteúdo

com marca de 3ª pessoa

dirigido a TU

Língua

Exp. Facial, corpo

Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados da pesquisa

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O quadro mostra como as ações estruturam-se para constituírem a interlocução: por

meio da associação de diferentes estruturas materiais emerge o padrão que é o

estabelecimento da relação EU↔TU. As expressões carregam o traço de apontarem para os

elementos do Ŧ organizando a interação e o texto e evidenciando sua função pragmática e

gramatical, como aponta Roulet et al. citado por Marcuschi (1989, p. 301).

3.4 Descrição individualizada das ações

Para exemplificar individualmente as ações, recolheram-se exemplos ao longo de toda

a gravação, por isso, a entrada desses exemplos será a partir da marcação dos minutos em

qualquer tempo do evento e não apenas durante o período correspondente às amostras. Para a

confirmação da modulação de aspectos entonacionais como intensidade e velocidade,

influenciando o significado, foi usado o programa Praat que é uma ferramenta para análise de

voz, desenvolvida no Institute of Phonetic Sciences, da Universidade de Amsterdã.

3.4.1 Contato físico

Consiste no toque feito pelo locutor em um interlocutor, geralmente, no braço, mas

pode também tocar a perna, dependendo da proximidade, da posição corporal dos

participantes e do grau de intimidade existente entre eles.

Exemplo 18

1:31 – K: foi o seguinte... [K toca com a mão esquerda a perna de C na altura da canela, a

pena estava cruzada. O toque é simultâneo à fala] [foto]

6:55 – K: na sua cabeça [K toca a mão de C que repousava sobre a própria perna cruzada. K

eleva a voz e ri solidarizando-se com a narrativa de C]

21:01 – K: mas aí ele tava fazendo uma... [toca o joelho de C, retomando o turno que tinha

sido tomado por C e CL] [foto]

32:47 – C: num é? Em novela... [C toca o braço de G] [foto]

33:31 – K: quem tava no amasso? [posicionada ao lado de G, vira-se para ele e o toca no

braço]

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Foto 04 – K toca braço de G

Fonte: Dados da pesquisa

Esse tipo de operação de interlocução, obviamente, deriva da proximidade física entre

os falantes; só ocorre quando os participantes estão a uma distância suficiente para serem

tocados. Ela ocorreu com o toque na mão, no braço ou na perna quando cruzada. Pode parecer

óbvio, mas é importante ressaltar como o Ŧ pode determinar os recursos para a realização da

interlocução. Quando a distância foi superior ao cumprimento do braço, a operação não

ocorreu, e isso indica que a organização dos falantes no espaço de interação é crucial para

determinar esse tipo de operação.

Como, no evento gravado, observa-se um grau de intimidade entre os participantes, é

natural que a operação de contato físico apareça. A proximidade física não é condição

suficiente para a ocorrência da operação; pode haver proximidade, mas, ao mesmo tempo,

outras regras restringirem a ocorrência do contato físico. Caso não houvesse intimidade, não

haveria essa possibilidade. Fica evidente que a força dos atratores decorre das circunstâncias

em que o sistema está envolvido, e mais, os atratores são dinâmicos e se sobressaem conforme

um conjunto de circunstâncias. O tipo de interação, o tipo de laços que os interactantes

possuem, os objetivos do evento, tudo isso exerce atração no curso de uma interação e

determina, de alguma forma, a estrutura que a interação assume, ou melhor, determina quais

as ações possíveis e qual deve ser o aspecto de sua estrutura e organização.

A conclusão que se pode tirar disso é que a interlocução é um sistema complexo

adaptativo, segue seu curso modelando-se por atratores dinâmicos. Se o braço está acessível,

toca-se no braço; se a perna cruzada está próxima, toca-se nela. É um movimento

interlocutivo que acompanha emissões interlocutivas como x’ô falá, ou mesmo narrativas,

entendidas, neste trabalho, como manutenção ou introdução de tópico R, ou seja, um tópico

de terceira pessoa. Subsistemas atuam sincronicamente demonstrando que a linguagem

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emerge da ação da pessoa no nicho onde tudo o que existe pode ou não interferir na interação.

Tudo dependerá de como cada Ŧ (presente enunciativo) desdobrar-se-á.

3.4.2 Entonação

Os registros mostraram a recorrência de diversos tipos de modulação. Foram

selecionados o aumento e diminuição da intensidade, aumento da velocidade, modulação

interrogativa.

Exemplo 19

18:00 – C: ↑são investimentos assim de japonês, sueco e blá blá blá [ o tom começa mais alto

para garantir o turno que começava a ser introduzido por outro participante,

depois vai decrescendo]

A entonação é uma ação que possui várias nuances significativas. Os quatro tipos mais

marcantes serão apresentados de maneira superficial, já que cada tipo possui suas próprias

variantes e essa é uma questão bastante delicada para ser tratada com brevidade. Os tipos

entonacionais selecionados consistem em diferentes recursos que modulam a língua e

contribuem para dar significação seja no plano discursivo ou no plano interativo. A

interrogativa parece ser a mais producente das operações de entonação. Apesar de não ser a

proposta, neste trabalho, fazer uma análise quantitativa, não há como não notar a importância

desse recurso interativo em termos de produtividade. A pergunta é uma evidência clara de

solicitação do outro. É uma operação de interlocução, porque significa que um EU institui-se

como locutor convocando um TU como interlocutor, instaurando-se, assim, a interação. O

aumento na intensidade pode estar ligado a várias intenções – surpresa, emoção, ênfase e

disputa de turno são algumas delas – assim como sua diminuição.

Interrogativa

Exemplo 20

21:10 – CL: Cê trabalha em que setor? [dirigindo-se para K]

K: Na Comunicação [respondendo à pergunta de CL]

CL: ahn, cê conhece Rodrigo? [confirma a audiência e faz outra pergunta]

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A interrogação parece ter obtido sucesso como meio de interlocução (lembrando que o

que estou chamando de interlocução é a convocação do TU pelo EU a fim de instaurar os

interlocutores e a organização de uma interação para a construção dos significados), devido à

sua função de ao mesmo tempo convocar o TU e solicitar dele uma resposta. A frase

interrogativa pode variar manifestando tipos interrogativos diferentes que, embora sejam

significativos, não constituem o objetivo deste trabalho.

Dependendo da sílaba que carrega a tonicidade e o prolongamento, a interrogativa

assume um aspecto diferente e uma nuance de significação. Os exemplos, a seguir, podem

deixar isso claro. No primeiro, o acento recai sobre a última sílaba, no segundo, recai sobre a

terceira sílaba, levando a particularidades na construção do sentido: 1 - Você já chego::u?, 2 -

Você já:: chegou? As entonações podem ser interpretadas pelo observador de muitas

maneiras diferentes a depender dos elementos que julga importante considerar. Uma dessas

maneiras poderia ser que, em 1, a ênfase fosse para a surpresa da chegada, e, em 2, a ênfase

fosse para o tempo da chegada. Esses matizes significativos não são de fácil apreensão devido

a dois fatores: as condições do Ŧ e as questões subjetivas que envolvem o conhecimento e os

interesses de cada um. A definição do significado caberia, em última instância, apenas ao EU

que vive a cena. Os tons correspondem a itens significativos e só podem ser identificados por

meio de uma investigação exclusiva e aprofundada. Não há como um observador precisar

definitivamente o significado de um movimento de interação por completo, por mais que se

esforce. Somente quem pode assumir um significado último para as ações são as pessoas que

as vivenciam partilhando o mesmo tempo/espaço. Entretanto, apesar de não ser possível

precisar as intenções particulares de cada ação interrogativa, percebe-se a evidência de sua

finalidade precípua de estabelecer os enunciadores e organizar a interação, sendo essa a

característica da operação de interlocução.

Aumento/diminuição da intensidade

Exemplo 21

6:49 – C: aí era do cano dele do/ ↑do ralo do chuveiro dele ↓olha que coisa!

39:40 – ↑ah:: uma carreta [com aumento da intensidade, para recuperar o turno e acrescentar

o complemento de uma narrativa anterior]

A materialidade da entonação compõe-se de elementos linguísticos, ondas sonoras e

de um conjunto de regras simbólicas, ligadas ao comportamento social. Esses componentes

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definem como a interação desenvolve-se e nos permitem até fazer suposições sobre a

tendência de seu curso.

O aumento da intensidade no início do turno é um recurso claro de intenção

interlocutiva, porque se contrasta com falas anteriores e posteriores, mostrando que a

alteração tem objetivo definido. Como observado no evento gravado, há indícios de que a

elevação do tom no início do turno ocorre como um ato intencional de manter ou competir

pelo turno, mas há também aumento da intensidade em manifestações de surpresa, nojo

(Gráfico 1), picos de emoção e competições pela audiência, quando todos falam juntos. As

linhas na parte inferior mostram a elevação da intensidade

Gráfico 01 – Emissão de C: aí:: era do cano...

Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa

No gráfico, a intensidade é marcada pela largura das linhas que aparecem no início

mais estreitas e depois expandem em função do aumento da intensidade. Isto também é

registrado pela linha azul na parte inferior do gráfico que marca a alternância da intensidade.

São diversos os meios pelos quais se manifestam as alterações na entonação, mas o

importante, neste caso, é levar em conta que a multiplicidade mostra ser a entonação, por si,

um sistema com suas regras e restrições específicas, isto é, tem suas próprias condições para

ocorrer.

Velocidade

Exemplo 19

36:45 – CL: [para K] →não/ foi visto como um sucesso [vota-se para C]

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A velocidade no ritmo de fala é um recurso que também possui suas variações em

função das intenções do enunciador. Ela pode estar relacionada com a carga emotiva, mas

também com a organização, como por exemplo, ao se interceder quando alguém está com o

turno para fazer observações rápidas, ou mesmo para se estabelecer no turno antes de um TU.

Gráfico 02 – a velocidade da fala de CL

Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa

O gráfico acima mostra apenas o trecho registrado para que fosse medida a velocidade,

nele consta o momento da emissão de CL do exemplo 19. Na figura 01, abaixo, há a medida

do trecho selecionado. A duração é de 1.429583. Emissões como o mesmo número de sílabas

do participante foram medidas e verificou-se maior duração, indicando que a velocidade tem

uma função significativa.

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Figura 01 – Duração da emissão de CL

Fonte: Gerado a partir dos dados da pesquisa

A duração da emissão, se comparada a emissões do mesmo participante, mostra-se mais

veloz, frases semelhantes foram analisadas apresentando uma duração maior, confirmando que a

velocidade é alterada em função das intenções dos falantes. A velocidade, bem como todos os

contornos entonacionais, não são prerrogativas da interlocução; eles se aplicam na narração

modificando conteúdos lexicais, exprimindo ênfases, sinalizando pistas de interpretação, enfim,

os contornos constituem a própria forma de apresentação da língua e, no caso da conversação,

eles são, muitas vezes, como já dito, decisivos para a construção do significado.

3.4.3 Emissão de itens gramaticais e supragramaticais

Algumas palavras, expressões, orações e itens supragramaticais, representados por

sons convencionados como elementos significativos, porém sem significação lexical - por

exemplo, nhan nhan, uhn::, e::h -, funcionam como MDs e, geralmente, como marcas de

retorno ao locutor.

Os MDs, amplamente estudados, possuem funções bem estabelecidas, como inserir e

sequenciar tópicos e organizar a participação dos enunciadores na interação e, paralelamente,

constituir a interlocução uma vez que funcionam como um gerenciador da atenção.

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Gramaticais

Exemplo 22

1:10 – C: mas aqui, o que que quebrou? [C para K]

15:15 – K: mas lá é lindo, dex’o te contá... [K para CL]

Exemplo 23

25:23 – K: cê imagina quando eu tinha/ [voltada para C, interrompe e se volta para CL] eu

tinha o cabelo aqui... [ocorrem várias digressões de que todos participam até que

K retoma]

26:38 – K: aí tá, então quando eu passei → promoção corte dez reais...

36:48 – C: mas olha p’rocê vê a/ a:: ↑se:de...

39:37 – G: agora, o que vai....

47:49 – K: no::ssa eu nem lembro C, quando eu tinha/

57:45 – G: ah gente! falá em sexo...

72:44 – CL: dex’ele contá caramba [para C e K que estão conversando enquanto G narra]

73:37 – G: dex’ô falá aqui [tocando o braço de K, para terminar sua narrativa]

As expressões gramaticais – palavras e frases – constituem-se em operações de

interlocução e já são amplamente estudadas como MDs. Essas operações funcionam como

recursos que dão garantias para que a pessoa declare-se um locutor e solicite um interlocutor.

Nos dados coletados, observa-se, claramente, a solicitação do EU para obter a atenção do TU.

Na emissão 36:48 – C: mas olha p’rocê vê a/ a:: sede... –, fica clara a condução de C para que

os interlocutores ouçam-na. Acontece o mesmo na emissão de K – mas lá é lindo, dex’o te

contá...; ela se instaura e instaura CL como co-locutor preferencial. Essa interpretação só é

cabível se considerado o olhar que K dirige a CL. Ela olha para ele e se apropria da fala para a

imposição do seu turno. Nesse caso, o recurso do código linguístico materializa-se de

determinada forma sintática, mas poderia ser de várias outras devido às numerosas

possibilidades que existem na língua e às condições de produção, que são físicas e simbólicas.

Nesse episódio, o que mais importa não é a estrutura gramatical, mas seu significado, só

apreensível se considerado o Ŧ em sua complexidade. Por isso, tais expressões poderiam ser

outras, como dex’ô falá ou cê imagina, ou ainda, ah gente! – todas com o mesmo fim

interlocutivo de estabelecer contato entre EU e TU.

Vale ressaltar que as expressões gramaticais são acompanhadas de entonação, gestos,

enfim, movimentos corporais que dão contorno ao que se emite pela língua, indicando, mais

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uma vez, a multimodalidade das operações de interlocução. Gestos, expressões faciais, falas,

todos esses sistemas expressos em movimentos de materialidade estrutural diferentes operam

para desempenhar, coordenadamente, a função interlocutiva. Pela interlocução os falantes

organizam as coordenadas de espaço, de tempo e de modo. Cada falante constrói sua

coordenada única, inclusive com valores subjetivos.

Os dados mostram como as pessoas expõem estados interiores, o que pode ser observado

nas emissões 5:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu?;

5:30 – CL: [?] [?] não/ mas esse é um problema da construtora cê tem que acionar é quem

construiu uá. Essas emissões mostram o posicionamento do EU em relação a uma determinada

questão, tratada no desenrolar do tópico. O tópico dos trechos remete às intenções e estados

interiores dos enunciadores, isso indica que a interlocução funciona como uma operação maior

do que apenas organizar a interação e o texto. Ela se apresenta como um organizador material,

indicando, por exemplo, quem fala, o que fala, como fala, mas também como um organizador das

intenções e posições espaciais e socioculturais. Os dados mostram que os falantes manifestam

estados interiores diversos, reflexões, pensamentos, posicionamentos diante das situações,

enfim, indicam que a interlocução é a própria manifestação do EU e que por ela os organismos

constituem-se em EUs e constroem o espaço narrativo-discursivo das interações de linguagem.

Supragramaticais

Exemplo 24

6:53 – C: [com as mãos no rosto] ↑u::ih

16:00 – CL: lá é praia de surf

K: eh:::

19:25 – K: tem um homem lá que vende salgadinho

CL: ahn

C: salgadinho [CL e C olham para K] [foto]

21:11 – CL: ahn... [em resposta a uma informação de K]

34:46 – CL: ahn [olhando para G enquanto este narra]

Também as expressões supragramaticais deixam claro o estabelecimento do vínculo

entre os falantes, isto é, confirmam para o locutor que ele está sendo ouvido. Poder-se-ia

pensar que na interação de linguagem todo aquele que fala ou emite um sinal significativo é

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considerado um EU, entretanto, as expressões de retorno, como han han, mostram que o EU

converte-se, discursivamente, em um TU para o outro. Esse dialogismo na linguagem, que

Jakobson (1975) chamou de função fática, define-se por ser um meio de estabelecer o canal

entre o EU e o TU, construindo o espaço base da enunciação

As expressões supragramaticais são formadas, em grande parte, por um

prolongamento das vogais a e e, que aparecem sempre simultâneas às falas do locutor ou

então entre breves pausas de suas falas. Outra característica de sua forma são sons aspirados,

que, neste trabalho, estão sendo representados pela letra h. Aspirar e expirar são ações

producentes na CEL e podem ter significados importantes. O funcionamento das expressões

supragramaticais está condicionado ao Ŧ, pois elas possuem significados pragmáticos para o

desenvolvimento da interação. Indicam que o colocutor confirma para o locutor sua audiência

por meio de uma ação, cuja materialidade é sonora e visual, uma vez que o olhar e os

movimentos de cabeça, geralmente, acompanham a expressão falada ou podem mesmo

aparecer sozinhos. Na foto abaixo C e CL olham atentamente para K enquanto esta narra, o

olhar funciona como um recurso pragmático confirmando a audiência.

Foto 05 - C e CL olham K que domina o turno

Fonte: Dados da pesquisa

3.4.4 Repetição

Com inserções em diferentes momentos no tempo linear da interação, apresenta-se

através de palavra, expressão ou oração.

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Exemplo 25

5:51 – CL: mas quem tááá

5:55 – CL: mas quem tá reclamano? Seu vizinho?

5:58 – CL: quem tá reclamano? Seu vizinho?

Exemplo 26

32:33 – C: tá igual em novela todo mundo conversando assim em linha reta [para CL que

solidariza com supragramaticais ahn, eh eh]

32:47 – C: num é? em novela? [C volta-se para G, que estava interagindo com K, e bate no

braço dele]

A repetição é uma operação que mostra a insistência do EU em se declarar locutor e

implantar o outro colocutor, criando uma situação singular, da qual emerge o centro de

referência do discurso (BENVENISTE, 1989, p. 84). Essa operação mostra que o self,

consciente de si, como entende Edelman (1989, p. 190), manifesta estados internos como a

necessidade de que o outro o sinta ou perceba de algum modo. A repetição mostra a

insistência do EU em ser ouvido e isso envolve um campo conceitual de valores na ação de

interação. Ser ouvido é ser levado em consideração e isso importa para a adaptação do

organismo às situações. As pessoas visam ao próprio bem estar, e esse objetivo faz com que a

adaptação ao ambiente seja organizada de forma que sejam satisfeitos os desejos do EU. Ser

ouvido é uma necessidade vital para a espécie humana que é uma espécie social e cultural. Por

que a pessoa insiste para que um TU a ouça? Ou por que algumas tentativas de participar do

tópico são desprezadas pelo locutor que não insiste em lutar pelo turno? Fica claro que a

repetição em início de turno visa estabelecer o contato. Na realidade, o que se está chamando

de repetição não é a forma dos itens de linguagem, estrutura sintática ou morfológica, mas sim

a operação realizada para garantir a participação na interação, independentemente do item

gramatical usado, se uma palavra, expressão ou oração.

A estrutura desse tipo de operação é a fala e a entonação conjugadas com o olhar, o

posicionamento do corpo no espaço e a posição corporal. A organização coordenada desses

subsistemas, distribuída na linha do tempo, reflete o padrão que governa a tendência ao

engajamento social. Vista como um aspecto percepto-cognitivo e social, a repetição pode ser

compreendida como uma ação que tem sua origem mais profunda no conjunto de valores e

crenças sobre os quais os organismos assentam-se. Essa ação insistente indica a “luta” do

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organismo para se adaptar, estabelecendo-se como um EU num nicho em que se estabelecer

pela linguagem é um valor e, por isso, é importante para causar o bem-estar necessário à

adaptação ao ambiente.

3.4.5 Expressão corporal

Consiste na manifestação do EU na busca do TU pela movimentação do corpo. Na

foto 06, G repete sua fala eu vi e, em seguida, levanta o braço para garantir o seu espaço de

interlocução.

Foto 06 - G levanta o braço para manter o turno

Fonte: Dados da pesquisa

Exemplo 27

20:11 – [CL balança a cabeça olhando para K e, em seguida, adianta a cabeça]

21:00 – K: Mas aí [avança o tronco e toca na perna de C, aumentando a intensidade]

60:44 – G: agora/ eu vi, eu vi [G inicia o turno, mas C interfere e ele eleva o braço para

garantir a permanência no turno]

Essas ações exemplificam alguns tipos de movimentos corporais para estabelecer a

relação EU↔TU. A expressão corporal numa CEL é muito produtiva em relação a sua

contribuição para a construção dos enunciadores, além disso, os participantes fazem diversos

tipos de gestos para complementar os textos fornecendo pistas para a significação dos

enunciados. Fazem gestos também para uma complementação semântica, como movimentos

representando direções, formas, modos indicando rapidez, lentidão, etc. Tais pistas são

direcionadas tanto para o significado dos itens textuais quanto para obtenção ou permanência

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no turno e expressão do enunciador (self). Interessa-se, nesta pesquisa, pelas duas últimas

funções, uma vez que se observa a intenção do participante em marcar seu espaço discursivo.

O movimento de cabeça talvez seja a mais produtiva das ações de interlocução. Sua

função é a de um EU colocar-se na condição de TU, indicando ao EU falante que ele possui

audiência. Muitas vezes o participante estende o braço para fazer uma intervenção, sendo esse

movimento interlocutivo também recorrente em CELs. Outro movimento que indica a

intenção de obtenção de turno é a projeção do tronco rumo ao centro da roda, muitas vezes

aliado ao aumento da intensidade. Há, porém, alguns movimentos que não são tão recorrentes,

mas manifestam, visivelmente, a intenção de obtenção ou manutenção do turno, como

registrado aos 60:44, quando G levanta o braço acima da altura da cabeça para garantir a vez.

Nesse caso, o participante G começara uma narração e C fez um comentário concomitante;

para garantir o turno, ele eleva o braço e repete eu vi, eu vi e o mantém erguido por alguns

segundos até obter a garantia do turno, quando ele de fato começa a narrar.

3.4.6 Narrativa

Ação em que uma pessoa instaura-se como locutor narrando em terceira pessoa e/ou

em tempo passado.

Exemplo 28

31:01 – C: hoje tinha um metrossexual lá fazendo a sobrancelha

33:13 – K: a gente passou o domingo junto...

47:40 – C: Bruno tá no RH agora da Liberty

Essa ação que compõe a interlocução é paradoxal, porque contraria o critério adotado

para identificar a interlocução, ou seja, o movimento específico do EU para convocar o TU.

Por outro lado, a narração constitui-se na convocação, não pela ação explícita de convocar,

mas pela pressuposição de que o TU já é um colocutor, dispensando, assim, a formalização do

chamamento por meios específicos. Temos, nesse caso, uma operação de interlocução que se

dá pela proximidade dos corpos e pelas relações estabelecidas no Ŧ. A percepção e o

conhecimento que o locutor tem da cena são computados como dados para a construção do

texto e do sentido. De um ponto de partida a interação desenvolve-se e os atratores levam-na

para “estados que a natureza parece privilegiar” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 51). No

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caso da narrativa, isso se dá pela autoconsciência do EU e pela percepção da presença de um

TU como condição suficiente para a enunciação.

Portanto, embora pareça paradoxal, segundo concepções dos sistemas complexos, a

flexibilidade deve ser um critério para a definição do objeto investigado, porque se trata da

descrição de organismos vivos em processos dinâmicos de interação. Critérios rígidos para

descrição do objeto tendem a naufragar, porque não podem acompanhar o movimento de

sistemas instáveis como é a linguagem humana. Sendo assim, não se pode desconsiderar a

narrativa como uma operação de interlocução, ainda que em sua estrutura não haja formas

explícitas de busca de um EU pela atenção de um TU, mas formas de terceira pessoa. A

narrativa manifesta a exuberância do Ŧ, em que a explicitação dos corpos em interação no

ambiente transborda e define a ação. EU e TU percebem-se mutuamente e essa percepção é o

suficiente para que possa emergir uma referência. Portanto, o Ŧ é a condição que implanta o

EU↔TU e dessa origem surge o discurso sem a convocação explícita, levando à confirmação

de que os aspectos percepto-cognitivos e sociais são constitutivos da linguagem.

Na narrativa, o EU supõe-se locutor e supõe o TU colocutor, então, descarta operações

interlocutivas, indicando que os domínios físico, cognitivo e social levam as pessoas a

adotarem uma determinada perspectiva da qual emerge o domínio simbólico. Esse é um

argumento em defesa da natureza biocultural humana, pois só tomando as interações de uma

maneira global é que se podem perceber os processos dos quais nascem os códigos

simbólicos, ou, melhor dizendo, a linguagem.

Muitos sistemas interagem de uma só vez e se pode dizer que são sistemas diferentes

por causa da estrutura que os diferencia e, ao mesmo tempo, que são indissociáveis, pois

funcionam em relação de interdependência para cumprirem uma determinada função. Devido

à dependência recíproca dos subsistemas, a narrativa opera a partir de uma série de

pressupostos que são construídos na coletividade. Por exemplo, como é de costume na

sociedade contemporânea, não é comum dirigir-se a pessoas estranhas, mas, se for para pedir

uma informação, essa restrição já deixa de funcionar. Numerosos exemplos poderiam ser

elencados, mas o que basta para esta tese é o entendimento de que os subsistemas que

compõem o humano funcionam de modo degenerescente. Melhor dizendo, a narrativa, que

compreende a linguagem situada num tempo e num espaço, compreende também sistemas de

valores do EU, sistemas comportamentais, espaciais, sociais. Para que um EU convoque um

TU é preciso haver regras que delimitem os limites e os conteúdos que cada um poderá emitir,

sendo essas regras os atratores que restringem ou impulsionam o curso da interação,

mantendo-a em equilíbrio até um ponto crítico em que haverá desequilíbrio, mudança.

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3.5 A dinâmica interlocutiva

No evento gravado, o grau de intimidade entre os participantes pode mesmo ser

considerado um atrator, uma vez que define o modo da interação, a liberdade entre eles, a

possibilidade de interromper o turno do outro, o toque físico, a ausência de hierarquia e

mesmo aspectos sutis como repreensões, como a de CL – dex’ele contá caramba [para C e K

que conversam enquanto G tenta narrar]. A conversa desenvolve-se e se reorganiza segundo

parâmetros como esses. Mas também podem ocorrer alterações bruscas, como quando o

telefone toca. Nesse caso, G, o dono da casa, que mantinha o turno, interrompe o curso da

conversa – ao se deslocar do espaço para atender ao telefone -, o curso da conversa muda

suavemente e os participantes reorganizam-se em função de um atrator estranho, que a

influencia levando à introdução de um novo tópico ou ao rearranjo da interação, como a posse

do turno ou outros aspectos.

A recuperação de turno ocorre em 39:40, quando C lembra-se de mais um episódio

curioso relacionado ao dia de inauguração do shopping, enquanto a conversa desenvolvia-se

com comentários de G sobre a área onde o prédio foi construído. C, então, interrompe

bruscamente G com a emissão ah: uma carreta desgovernada invadiu o estacionamento...,;

nesse caso, o item de memória, como um atrator estranho, provoca a reorganização da

conversa a partir da brusca interrupção do turno de G. As fotos abaixo mostram a sequência

de ações que C realiza para recuperar o turno e narrar:

Foto 07 - C emite ah::

Fonte: Dados da pesquisa

Foto 08 - C toca o braço de G

Fonte: Dados da pesquisa

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Foto 09 - C reintroduz o tópico uma

carreta invadiu

Fonte: Dados da pesquisa

Foto 10 - C ilustra o tópico

Fonte: Dados da pesquisa

As fotos 7 e 8 mostram a tomada do turno que ocorre mediante, emissão do

supragramatical ah:: em intensidade maior (gráfico 3, abaixo) do que a fala anterior de G e o

toque nele que detinha o turno; as fotos 9 e 10 mostram a introdução do tópico que é

construído pela emissão uma carreta invadiu... e pelo gesto simulando o movimento da

carreta. A sequência de ações evidencia o quanto os sistemas interagem na formulação

linguística. Os gestos com funções de instaurar o locutor e colaborar na construção do tópico,

a intenção de C de retomar, isto é, apossar-se do turno e narrar, parece confirmar a hipótese de

que sistemas heterogêneos são acionados para cumprirem uma função indicando que a

interlocução funciona como os sistemas complexos. No gráfico, visualiza-se a baixa

intensidade e sua elevação repentina com a inserção de C.

Gráfico 03 - O aumento da intensidade para reconquista do turno ah:: uma carreta invadiu

Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa

A marcação estreita da fala anterior do participante G, em baixa intensidade, se

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contrasta com a intervenção de C ao inserir sua emissão em intensidade mais elevada,

representada pelo aumento da largura que aumenta gradativamente num crescendo. Também a

linha azul da parte inferior mostra a elevação. Esse rearranjo mostra como os elementos do Ŧ e

os (T/E)n – tempos/espaços simbólicos – mesclam-se para determinar as condições da interação

e também a tendência do seu movimento. Por exemplo, as condições físicas (ambiente,

pessoas, objetos etc) e as condições simbólicas (língua, partilha de conceitos, papéis sociais,

valores, emoções) restringem as ações de interação, dando a elas a forma possível.

Por meio dos atratores, pode-se verificar, no sistema interativo, tanto sua tendência à

estabilidade quanto sua tendência à mutabilidade em circunstâncias de instabilidade. Um

ruído, um item de memória, a atenção dirigida a um objeto são exemplos de atratores que

concorrem para interferir no curso da interação e para modificá-la ao modificarem o tópico, o

foco da atenção, a posse do turno, os ânimos, enfim, a interação como um todo. Mas, apesar

de serem numerosos em termos de probabilidades, apenas um ou dois atratores definirão os

rumos da interação. Portanto, a interação possui condições estáveis e de instabilidades,

indicando, como afirma Prigogine (2002), que probabilidade e determinismo não se

contrapõem, mas se completam. A “existência de bifurcações confere um caráter histórico à

evolução de um sistema” (PRIGOGINE, 2002, p. 24).

Assumir esse ponto de vista leva a se considerar que a influência de atratores físicos e

simbólicos pode propiciar uma explicação adequada do fenômeno da interlocução, permitindo

identificarem-se aspectos de estabilidade e de mudança. É na bifurcação que o sistema

reestrutura-se e se adapta a uma nova situação. É preciso considerar também que atratores

podem ser sistemas dinâmicos e sofrer alterações. Eles não são dimensões estáticas, são

dimensões que se adaptam conforme o Ŧ e podem se combinar de muitas maneiras diferentes,

modelando a interação.

As ações dos participantes no registro analisado mostram que as pessoas alternam o

turno, servem-se uns aos outros, dão sinais de correspondência (solidarização), atendem às

solicitações dos ouvintes, como em 15:15 - dex’ô te conta -, assentam-se em círculos, enfim,

comportam-se de maneiras pré-determinadas, conforme acordos coletivos estabelecidos na

convivência. Assim, o sistema tende a seguir um curso natural definido na e pela experiência

de interação. Não se espera em uma situação como a registrada que um participante jogue

vinho no rosto do outro, nem que as pessoas em vez de se sentarem em cadeiras deitem-se

umas sobre as outras formando uma pilha.

Se, por um lado, as condições iniciais são importantes para determinar o

desenvolvimento do sistema de interação e oferecerem uma quantidade de situações

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previsíveis, por outro, há a possibilidade de que algo inesperado possa acontecer. Alguém, por

exemplo, pode se lembrar da morte de um parente e desencadear uma nova situação,

inclusive, mudando radicalmente o curso da conversa e até do evento. Embora pouco

provável, pode acontecer uma desavença entre dois participantes e um jogue vinho no outro.

Por esse motivo, fica claro que os atratores definem a tendência “que a natureza parece

privilegiar” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 51), mas também definem mudanças que

conduzem ao estado de não-equilíbrio quando o sistema muda o rumo de seu curso.

3.5.1 O padrão na organização da OI

Os atratores definem a forma da operação de interlocução e, por ela, o padrão. A

forma, apesar de apresentar particularidades devido à unicidade de cada ação, mantém um

padrão que impede sua dispersão na cena e, ao mesmo tempo, define sua identidade

diferenciando-a das formas que possuem outras finalidades na interação.

Os elementos supragramaticais são um exemplo de como se organiza um padrão na

interlocução. Geralmente, são estruturados pelas vogais mais baixas [a e e], sendo o a

predominante, como nas emissões han han e ahn e, em segundo lugar, o ehh, mas nunca um

ihh ou um uhh. Assim, temos um padrão que distingue a interlocução de formas não-

interlocutivas. O i, por exemplo, não é usado como função interlocutiva, mas aparece em

manifestações de estados interiores, como mostram as manifestações de K e L – ih::: –, no

momento 26:00, ao falarem da água suja que caía do chuveiro. Essa vogal pode expressar

nojo, mas não expressa convocação ou audiência. Conclui-se, desse modo, que para a

confirmação da audiência não se observa o uso de vogais altas, indicando-se que distintas

emissões ocorrem em situações definidas. Também as formas lexicais e oracionais de

interlocução possuem um padrão que se repete. Geralmente, são os advérbios que cumprem a

função de marcar a intervenção ou tomada de turno, formas oracionais marcadas pelo presente

e por pronomes de primeira e segunda pessoas. Assim se verifica um padrão, isto é, a

organização de uma estrutura em um determinado contexto, mas não em outros.

O processo interlocutivo exibe um padrão multimodal, isto é, sua realização sempre

integra duas ou mais estruturas, como a modulação do texto pela entonação, pelo gesto ou

olhar. No caso dos movimentos corporais, observa-se a simultaneidade com a produção do

texto, os supragramaticais são simultâneos a olhares e gestos, e assim por diante. Todas essas

formações culminam na operação maior, que tem por finalidade última estabelecer a relação

EU↔TU, que vai criar o espaço referencial para a construção do discurso.

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A harmonização de estruturas agrupadas simultaneamente para a manifestação de uma

intenção interlocutiva demonstra que existe um padrão que define o modus operandi do

sistema em interação. Por isso, a operação interlocutiva de toque mantém um padrão: o toque

pode ser no braço, no joelho, mas não na cabeça. Essa conclusão mostra de modo claro o

quanto o padrão nas operações de interlocução é um padrão de rede, em que várias estruturas

movimentam-se com uma finalidade, revelando o padrão degenerescente multiestrutural e

isofuncional.

3.6 Abertura, não-linearidade e dissipação no processo interlocutivo

Numa interação de linguagem, o fluxo interacional amalgamado ao fluxo narrativo vão

moldar o discurso e definir os significados. Isso pode ser explicado da seguinte forma:

pessoas conversando não seguem padrões aleatórios, elas organizam os turnos de fala, usam

mesmos códigos linguísticos e culturais e isso impõe convenções respeitadas, de modo que a

ordem apareça e a comunicação estabeleça-se. Mas há também a possibilidade de um atrator

estranho provocar desequilíbrio, bifurcação e mudança, já que se trata de um sistema em

constante relação com seu ambiente. A chegada de um novo participante, um item de

memória, uma emoção exacerbada, enfim, uma perturbação qualquer pode levar ao

aparecimento de uma nova forma de ordem.

3.6.1 Abertura

O campo de força dos atratores em uma interação humana constitui a tendência do

sistema. O evento gravado mostrou que a interação de linguagem organizou-se em função do

tempo e espaço da interação, dos componentes físicos, emocionais e simbólicos (sociais e

culturais) dos participantes, incluindo, obviamente, códigos linguísticos e de conduta,

baseados em práticas coletivas.

Na interação há uma troca de energia pela qual as pessoas interagem. As interações

são alimentadas por um esforço que gera energia e essa circula entre as pessoas por meio de

gestos e sons que outras pessoas interpretam e, por sua vez, emitem gestos e sons que

alimentam o primeiro emissor em uma interação recíproca de linguagem, até que os

enunciadores satisfaçam suas intenções interativas. Além do esforço material, a emissão de

um fluxo de ar exibe formas específicas que imprimem aos textos significados específicos

reveladores de intenções e estados interiores.

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A percepção forma-se a partir da atenção, que é um sistema muito dinâmico, isto é,

seu direcionamento pode ser alterado em função de muitas variáveis. A atenção, sendo um

sistema fortemente ligado ao sistema de valores, progride conforme os interesses do

organismo, por isso, em uma CEL a atenção pode sofrer muitas variações. A chegada de G ao

Ŧ demonstra isso. Os participantes estão conversando, ao ouvir o barulho na porta, C fixa o

olhar naquela direção, K, que parece não ter ouvido, percebe o direcionamento do olhar de C,

e, então, vira-se em direção à porta, quando entra G. Dessa forma, fica evidente como o

sistema fica aberto ao fluxo de energia e como mudanças são percebidas em decorrência dessa

abertura. A ação do organismo é moldada na computação que ele faz com perceptos que

emergem tanto no plano físico quanto no plano mental, ampliando, assim, as possibilidades de

variação. Ao receber o estímulo, uma área desperta e envia substâncias ou pulsos elétricos

para extensas áreas do cérebro, provocando uma reação global que mais tarde vai se

manifestar no corpo.

O sistema humano complexo biocultural busca meios de se adaptar visando ao próprio

bem-estar, como todo ser vivo. O organismo atribui valores aos objetos, às ações e aos

processos comunicativos de forma que a relação EU↔TU auto-organiza-se conforme

processam os significados. Segundo Marchetti (2010), o processo de auto-organização

constitui a passagem da consciência para a autoconsciência que são os limites operatórios do

organismo, pelo reconhecimento desses limites o organismo regula a sua ação de linguagem

avaliando e escolhendo o que melhor lhe convém. Nas interações, as pessoas imprimem suas

marcas pelo modo de dizer as coisas, os contornos diferenciam as falas, as pessoas avaliam e

acham ruim ou bom, reagem conforme seu universo valorativo. Os enunciadores escolhem

palavras e gestos brandos ou ríspidos, olhares doces ou coléricos, enfim, eles podem moldar

sua intervenção de linguagem imprimindo significados que só podem ser interpretados

tomando-se as ações de um ponto de vista percepto-cognitivo, em que os contornos dados aos

textos somam para sua significação.

A energia nervosa empregada em uma ação de linguagem está sendo assumida nesta tese

como a modulação que o organismo imprime ao texto, impregnando-o de modos que levam a

diferentes significações. A energia nervosa, por estar sempre se adaptando às condições de valor,

vai se transformando com o fluir do organismo no espaço. Ela pode ser considerada um sistema

aberto, porque, ao manifestar sua energia pela linguagem, um falante expõe-se, é avaliado e isso

retorna para ele pelas próprias reações dos interlocutores. Essa dinâmica dos sistemas vivos

sempre trocando com o meio leva à readequação dos valores e, consequentemente, dos símbolos

usados no dia a dia.

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Duas pessoas falando um mesmo texto escolhem aplicar acento, velocidade,

intensidades, cortes, suspensões em diferentes segmentos, utilizando uma verdadeira

gramática prosódica; assim modelam os itens da língua e colocam sua impressão. O modo

como isso é feito é valorizado ou não pelo outro, portanto, a energia nervosa, como assume

Marchetti (2010), é decisiva em uma conversa e é aberta porque à medida que é emitida

interfere no ambiente, causa algum efeito que realimenta os enunciadores.

Uma fala que julgamos desagradável pode provocar alteração nos ânimos, gerar uma

ação específica e esta, por sua vez, provocar no outro uma nova reação, e assim por diante. O

cômputo das percepções e sucessivas sínteses que o organismo elabora no seu fazer simbólico

imprimem nos processos linguísticos uma dinamicidade que começa na sua profunda ligação

ao Ŧ.

Outra característica de abertura das operações de interlocução é que elas podem ser

expressas de muitas formas diferentes em uma CEL. Cada gênero comporta suas

especificidades quanto à variação dos modos interlocutivos. O que mantém a unidade e faz

com que as ações sejam identificadas como interlocução em diferentes gêneros é sua função

de estabelecer o EU a partir do TU numa coordenada de tempo e espaço em que se constrói na

dinâmica da linguagem.

A interlocução é, portanto, um sistema aberto, porque, apesar de sua tendência em

flutuar em torno do equilíbrio, há um leque de infinitas possibilidades significando que o

sistema está à beira do caos, ou seja, algum atrator estranho pode emergir, já que os atratores

podem se fundir e se tornarem novos atratores. Numa CEL a variação tópica é bastante livre,

e, dessa forma, há um grau de imprevisibilidade muito grande. No evento registrado, C tinha

uma pauta para seguir durante o evento, mas se nota que o seguimento da pauta não foi uma

exigência, foi mais uma brincadeira da participante C, também por motivo de segurança, no

caso de os falantes ficarem sem assunto, situação que poderia acontecer devido ao fato de o

evento ter sido planejado com a finalidade acadêmica. Todavia, o tópico, nesta pesquisa, é

importante à medida que evidencia a existência de um fluxo tópico e de um fluxo interativo,

que é o foco principal da pesquisa. Observou-se que os elementos do Ŧ são importantes na

construção textual em que se atualizam (T/E)n.

A energia que se exprime ao falar define-se pela emoção que se tem diante dos fatos.

Se agradam, provocam bem-estar, se não agradam, provocam mal-estar e, assim, em uma

dinâmica recursiva, realiza-se a atividade de linguagem constitutiva, que constrói ao mesmo

tempo em que é reconstruída. Ela se repete ao mesmo tempo em que se renova. As operações

de interlocução renovam-se ao longo de uma conversa e assumem diversas formas e

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combinações, adaptando-se aos componentes novos que vão surgindo à medida que a

conversa desenvolve-se, tal como característica de um sistema aberto. Como um sistema

aberto, a interlocução modula-se conforme o fluxo da emoção que, por sua vez, autorregula-se

pela busca do equilíbrio homeostático. O sistema tem como propriedade primeira a

manutenção de sua existência (PRIGOGINE; STENGERS, 1993) e os seres humanos primam

pelo bem-estar; então, tudo que se julga bom ou ruim faz-se baseando no bem-estar e

manifestando nas falas. A linguagem revela isso e mostra que emoção rege o fluxo de energia

que vai determinar o que as emissões linguísticas querem realmente dizer.

3.6.2 Não-lineridade

A linearidade é uma propriedade fundamental na linguagem. Toda a produção de

linguagem emerge de uma forma linear. As emissões são feitas em sequência de sons, palavras,

orações, gestos, etc. A sucessão de falantes em uma conversa é também um aspecto linear

marcante. Embora haja sobreposição de vozes, na maior parte do tempo, falar um por vez é uma

regra forte que, em condições de equilíbrio, é obedecida. Apesar de a marca de linearidade na

linguagem ser um atributo forte, ao lado dessa propriedade, está outra que a ela não se opõe,

mas a completa: a não-linearidade. Essa propriedade é também característica da linguagem.

Muitos são os constituintes das interações de linguagem e as relações entre eles se

processam em forma de redes. Desde os elementos do espaço físico, as particularidades

pessoais – como o repertório linguístico –, a postura e as intenções, bem como os aspectos

sociais – como as normas que determinam o modo de organização, os limites dos

participantes, o que pode e o que não pode dizer e fazer cada um -, tudo é computado durante

a interação e serve como parâmetro para modelar as ações. São muitos componentes

envolvidos na ação de linguagem e, como visto, os sistemas formados por muitos

componentes são sistemas não-lineares.

Para o cálculo de previsibilidade das ações de linguagem devem ser computadas todas

as possibilidades a que estão submetidos cada um dos aspectos que envolvem a interação.

Portanto, a linguagem mostra evidências de ser um sistema não-linear, além disso, cada um

dos subsistemas que a compõem são, eles também, sistemas complexos, elevando, assim, o

grau de complexidade a extremos.

Outra evidência da não-linearidade no processo interlocutivo em uma CEL é que

qualquer participante pode obter o turno. Não há uma determinação para regular quem vai

falar, isso dependerá das intenções de cada um e das estratégias que usarem para se manterem

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no turno, se isso for uma intenção. As conversas paralelas enquanto um falante tenta narrar

mostram que há uma liberdade entre os interlocutores de não assumirem o papel do TU. Isso

pode ser uma evidência de que a organização é imprevisível, isto é, não pode ser totalmente

determinada, em função da força exercida por atratores estranhos que podem emergir.

Nos dados há um exemplo bem característico dessa propriedade não-linear, quando o

sistema foge de sua trajetória sobre a influência de um atrator estranho. No tempo 71:00, G

tenta narrar um episódio enquanto K e C estão engajadas em um tópico. Ele insiste, mas as

duas mantêm-se em foco até que G emite xô contá, aqui caramba, expressão pela qual ele

interrompe a relação linear entre C e K e conquista a garantia do turno, mostrando intenções

de se constituir como um locutor e participar da conversa gerando um foco único para o qual

todos se voltam, estabelecendo-se, assim, a linearidade.

Os padrões previsíveis de uma conversa determinam que enquanto um fala os outros

ouvem, mas um atrator de limite de círculo pode afastar o sistema de sua órbita de equilíbrio e

o levar a se auto-organizar. Foi exatamente o que aconteceu enquanto G tentava narrar e as

duas interlocutoras quebraram as regras não se constituindo como interlocutoras (em TU),

fato que levou G agir para tomada do turno e do estabelecimento da audiência. É bom

ressaltar que G, ao emitir a frase gramatical, gesticula, movimenta o corpo e segura o braço de

C; todas essas ações simultâneas são realizadas para que ele permaneça no turno e termine sua

narração. Esse é um exemplo de não-linearidade revelada na operação de interlocução. A ação

de G visa estabelecer a relação EU↔TU, levando o sistema interlocutivo ao equilíbrio a partir

da propriedade organizadora fala um de cada vez.

Em um âmbito maior, a linguagem comporta-se como um sistema não-linear ao seguir

sua tendência ao equilíbrio, apesar de estar sempre sujeita a perturbações. São numerosos os

fatores que podem determinar as formas linguísticas e os significados. A despeito da

identidade do sistema, seu conjunto de regras que o unifica e o distingue de outros, há

também a instantaneidade que obriga uma ação de linguagem a ser interpretada,

exclusivamente, a partir do cruzamento das coordenadas de tempo e espaço em que é

realizada, sendo que, nesse cruzamento, há sempre um novo componente que é o tempo. Isso,

inevitavelmente, leva a linguagem à adaptação e à reorganização perpétuas.

3.6.3 Dissipação

Numa interação os sistemas operam em regime de estabilidade e instabilidade devido

ao fluxo de energia que envolve a construção do Ŧ. As oscilações em um sistema de interação

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levam-no a instabilidades, provocando mudanças nas estruturas. Assim, um pensamento pode

levar um participante de uma conversa a convocar a audiência para introduzir um tópico que

lhe ocorreu de repente. Da mesma forma, o desvio da atenção para um objeto ou para uma

cena circundante pode provocar uma mudança na interação e solicitar uma nova ação de

interlocução com a finalidade de reorganização, ou ainda, uma fala pode provocar

desestabilização no estado de emoção de um participante e ele poderá reagir com ações

linguísticas. As ações de linguagem são moduladas na instantaneidade da interação. As

avaliações que as pessoas fazem dos atos levam-nas a ter reações que caracterizam os laços de

realimentação dos sistemas complexos bioculturais.

Os sistemas vivos são sistemas abertos, mantêm-se longe do equilíbrio e preservam a

estabilidade, ou seja, a mesma estrutura global é mantida a despeito do permanente fluir e

mudar dos seus componentes por meio da passagem da energia pelo corpo. Ao realizar uma

ação de linguagem, o organismo gasta energia para a produção do movimento; sem a troca de

energia com o meio, a linguagem é apenas possibilidade. A realização dos itens linguísticos é

sempre situada no tempo e no espaço quando e onde o sistema adapta-se às condições atuais.

Esse princípio pode ser aplicado tanto às formas gramaticais quanto à construção dos

significados que só emergem na instantaneidade da ação de linguagem.

Na interlocução, a flutuação do sistema mantém-se à custa de uma dissipação

permanente de energia e de matéria fornecida pelo meio e devolvida ao meio através da

linguagem. Pela inspiração o organismo coleta o ar do ambiente e o devolve em forma de

sons. As sequências interlocutivas vão sendo organizadas à medida que o sistema flui.

Numa conversa, como exposto no quadro das ações que constituem a interlocução, as

intenções podem variar, mas as formas mantêm a identidade. O movimento de linguagem

marca posições físico-espaciais, mas também intenções e valores subjacentes. Talvez seja por

isso que se deva considerar a emoção como um componente linguístico. Tudo o que é

expresso é impregnado de um “tom” que pode ser ríspido, doce, angelical, indiferente,

nervoso etc. Podem-se imprimir tipos diferentes de emoções através da quantidade de energia

que se coloca nos segmentos assim como se pode também selecionar tópicos, implementar

contornos a tópicos já existentes ou mesmo direcionar a conversa para a interação e para os

interlocutores. A forma como se distribuem as pausas, os alongamentos, a velocidade e

intensidade, enfim, toda forma de modular a língua contribui para manifestar intenções e

dizeres. A emoção vai impressa através das marcas na linguagem; assim se distinguem modos

de ser educado, grosseiro, rude etc. Essa é uma evidência de que a linguagem sempre em

prospecção vai trocando com o meio e se moldando a ele. Os objetos discursivos vão sendo

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vistos por perspectivas diferentes à medida que vão sendo construídos na coletividade e o

conhecimento vai sempre se reorganizando pela experiência. Ao emitir um som linguístico, o

organismo entra em contato com o ambiente, o som é ouvido e interpretado, ocorrendo, assim,

a dissipação de energia na linguagem. Ao emitir uma unidade linguística, a pessoa estabelece-

se como locutor e instaura o TU, portanto, o fluxo de energia que sai do diafragma e reverbera

no espaço em forma de onda é o movimento de linguagem que se faz pela troca de energia

com o meio. Também o conteúdo valorativo das emissões linguísticas promove gasto de

energia à medida que os inputs atuais vão sendo associados aos inputs registrados na

memória. As computações, então, poderiam ser entendidas como processos que consistem em

conjugar elementos do Ŧ e as emissões para uma nova formulação em decorrência desse

processo. Dessa forma, a troca de energia culminará na reorganização neuronal com

aparecimento de novas estruturas cerebrais, resultantes do processamento da energia

percebida.

Percebe-se que, no decurso das ações, as emissões vão sendo carregadas de emoções e

estas vão sendo processadas de forma recursiva como laços de realimentação. Cada emissão

do EU provoca algum movimento no TU, instalando um processo de não-equilíbrio que leva

o organismo a buscar uma nova coerência para os estímulos percebidos. A linguagem pode,

então, ser concebida como uma estrutura dissipativa, porque ela flutua em torno do equilíbrio

até que um fluxo maior de energia leve-a para zonas de não-equilíbrio, mudando o rumo de

sua trajetória e fazendo com que surjam novas coerências.

3.7 Degenerescência nas operações de interlocução

Considerada como uma atividade humana consciente, resultante de um longo processo

evolucionário, a linguagem humana, segundo as teorias pressupostas nesta pesquisa, procede

da arquitetura neuronal com seus processos dinâmicos reentrantes. O cérebro humano,

conforme Edelman (1989, p. 44), é formado por unidades de seleção que são coleções de

centenas de milhares de neurônios fortemente interconectados, chamados grupos neuronais,

que agem como unidades funcionais. A atividade celular dos grupos neuronais faz com que

eles se organizem especializando ou deixando de existir conforme o indivíduo realiza sua

experiência no mundo. Segundo Edelman (2003), os estados de consciência provêm de sinais

do self (sistemas de valores e elementos reguladores do cérebro e do corpo) e sinais do nonself

(sinais do mundo, transformados por meio de mapeamentos globais). Esses sinais são ligados

à memória e, a partir de uma complexa rede de reentrâncias, essas duas fontes são conectadas

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entre si por caminhos diversos e resultam na habilidade para discriminações elevadas, o que

aumenta as chances de sobrevivência dos organismos. Ainda segundo Edelman (2003), uma

função adaptativa dos sistemas neurais subjacentes à consciência é sua habilidade para

integrar um grande número de estímulos sensoriais e reações motoras ocorrendo em paralelo.

Assim, os inputs atuais são processados e ligados à memória, que é capaz de categorização

conceitual e, por conseguinte, ultrapassam os limites do tempo presente, capacitando as

pessoas a se tornarem conscientes do passado histórico, da possibilidade de planos futuros e

da consciência de estarem conscientes. Resumidamente, seria essa a atividade neuronal

permissória da linguagem. Portanto, a linguagem como está sendo concebida nesta pesquisa

emerge da atividade cerebral e pode ser análoga a ela.

Não se pode pensar em linguagem sem pensar no corpo movendo-se no ambiente,

impelido e restringido por várias forças circulantes. Dessa maneira, os processos descritos na

interlocução são vistos como processos simultâneos, ainda que distintos em sua materialidade.

Como exposto anteriormente, as acomodações em uma interação, como a manutenção de um

tópico, pode ser interrompida e, assim, uma bifurcação levará o sistema a assumir uma nova

organização.

A diversidade de áreas neuronais e suas especificidades também têm um paralelo na

linguagem que é a conjugação de sistemas diversos, cada um com sua materialidade e com

seu tipo de movimento. Da mesma forma que as áreas neuronais possuem redes extensas de

conexões, também os elementos da linguagem relacionam entre si de forma bastante plástica,

de modo que uma emissão possa ser construída ou percebida aos moldes de um mapeamento

global. Ficou clara a forma degenerescente com que a língua completa-se com outros tipos de

códigos e como a relação entre eles é decisiva para a construção dos significados. O controle

material do fluxo de ar constitui a matéria da fala. O modo como é controlado esse fluxo de ar

sinaliza valores importantes na significação. A diferença de quando se é grosseiro ou quando

se é gentil estabelece-se conforme se molda o fluxo de ar: mais lento, mais rápido, alteração

de acento, velocidade e de intensidade; todos esses contornos dizem muito, eles fornecem o

modo de ser da pessoa. Muito do que as pessoas são se revela pela linguagem, isto é, o modo

pelo qual cada EU distingue-se, constituindo-se em um EU discursivo. Isso mostra que a

linguagem como um sistema abstrato está imerso na relação organismo-ambiente, numa

coordenada de tempo/espaço sem a qual nenhuma emissão faz sentido.

A análise revela indícios de que o sistema de valor permeia a organização e imposição

de turnos, o que pode ser associado à manifestação do self social, ou seja, o reconhecimento

do outro como um igual. Exemplos como em 83:38 – G: dex’ô falá aqui –¸ depois de várias

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tentativas de concluir uma narração, deixam evidências da necessidade do EU de se expressar.

Obter a vez de falar e garantir a audiência parece ser um valor e, por isso, um atrator que

modela a interação.

Dentre as operações observadas, selecionaram-se seis tipos básicos para demonstrar

que a interlocução realiza-se por sistemas integrados e coordenados, de modo que a mudança

em um sistema provoca mudanças em outros. O permanente movimento no processo de

interlocução e, por extensão, na linguagem, exibe comportamentos como os dos sistemas

complexos adaptativos constituídos por subsistemas. São sistemas abertos, na interação – o

uso do sistema (troca de energia) submete-o a mudanças; são não-lineares – as relações entre

os elementos que compõem o sistema não são plenamente previsíveis e a possibilidade de

combinação entre eles é variável; são estruturas dissipativas – vivem entre o equilíbrio e o

desequilibro; quando em situação de desequilíbrio, a ação sofre mudanças em função do

atrator mais forte.

3.7.1 A dimensão multimodal e cognitiva no processo de Interlocução

A análise do processo de criação da relação EU↔TU, crucial para a construção dos

sentidos no texto falado, qualifica a cognição humana como um fenômeno neurofisiológico,

que se explica a partir de funções cerebrais, processos sensoriais, mentais, sociais, culturais e

linguísticos, manifestos na interação de linguagem. Os processos mostram a correlação de

categorias procedentes de áreas distintas do conhecimento científico. A explicação para um

fenômeno de tamanha complexidade requer noções diversificadas já que a interação de

linguagem não se resume a atribuir nomes a objetos, a sujeitos e processos, a linguagem é

constitutiva. Ela revela sensações, emoções, ela permite versar sobre si mesma, ela reflete as

organizações sociais, os modelos culturais, pertencentes a um período histórico, fazendo com

que as ações de linguagem só possam ser interpretadas a partir da computação de elementos

oriundos de percepções que se originam tanto no ambiente externo quanto no “ambiente”

mental do organismo. Assim, as operações de enunciação compreendem categorias múltiplas,

constituindo-se por diferentes elementos que apontam para a direção do sentido, que só será

construído quando, a partir de um cálculo mental, diversos conhecimentos forem

interrelacionados, avaliados e computados por uma pessoa que seleciona e processa itens

diversificados.

A construção da relação enunciador-enunciatário, ou seja, as OIs mostram-se como

um processo constituído por seres biológicos com suas especificidades fisiológicas e mentais,

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que se relacionam num ambiente, governados por leis sociais, limitadas por uma dada cultura

em um período histórico, tudo isso condensado em um instante a partir do qual serão

definidas as ações responsáveis por manter a interação. Dessa forma, tem-se um sistema

adaptativo complexo biocultural. Esse sistema caracteriza-se por padrões realizados por

estruturas distintas que podem ser uma oração, uma palavra, um gesto, um olhar, um

movimento corporal, e diversas combinações que levarão aos significados. Portanto, assumir

uma perspectiva multidisciplinar, torna-se importante, porque permite a preensão do caráter

criativo da linguagem em relação à sua maneira de operar. Assim a cognição, por exemplo,

engloba conhecimentos desde os mais observáveis como a forma e cor dos objetos àqueles

apreensíveis a partir da experiência, como por exemplo, normas de comportamento social, e

tantos outros conceitos que emanam da relação histórica entre o organismo e o seu ambiente.

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4 CONCLUSÃO

Nesta pesquisa verificou-se que, dentre as categorias elementares, a construção do

EU↔TU mostra-se ainda mais elementar, já que é necessária à construção da referência,

sendo, pois, anterior a ela. A construção da relação entre enunciador e enunciatário mostra-se

como um mecanismo de estruturação do texto falado, sendo esse mecanismo decorrente de

uma situação que o molda e o determina. Os enunciadores computam aspectos que vão desde

a percepção da cena, de seus objetos, de suas formas, cores, até conhecimentos conceituais

abstratos, como normas de comportamento social, mantidas como um substrato em que os

interlocutores apoiam-se para formularem e interpretarem os textos construídos nas

interações.

Para analisar a construção da relação EU↔TU, um ponto de vista baseado em noções

de complexidade mostrou-se eficaz como explicação para captar a dinâmica dos processos de

linguagem em sua gênese, permitindo verificar que vários aspectos da relação de interação

somam para a formulação dos textos e da construção dos significados. Encontrou-se que o

funcionamento das ações elencadas na pesquisa mostra-se ligado a categorias que não são

exclusivamente linguísticas, mas que são fundamentais para o aparecimento destas. A

repetição, por exemplo, pode estar relacionada ao desejo de um organismo constituir-se

socialmente como um locutor, demarcando seu espaço, constituindo-se como um ser

consciente de si mesmo. A análise mostrou que categorias distintas são responsáveis por

estabelecer a relação EU↔TU, mostrando que o padrão realiza-se por diversas estruturas

simultâneas ou mesmo por uma única estrutura verbal.

Considerar a linguagem como um sistema complexo implica a ideia de que as

interações de linguagem são realizadas por estruturas dinâmicas que mantêm um padrão pelo

qual constitui-se a unidade e a convenção de símbolos. Assim, essa noção de linguagem

apresenta uma gramática que permite a identificação dos objetos e eventos, configurando-se

como o padrão, ou seja, aquilo que se repete, por meio de estruturas que se configuram por

matérias mais diversas como, por exemplo, uma oração, um conceito abstrato, um item

lexical, o resgate de uma lembrança, uma sensação, uma percepção, um gesto, enfim, um

elemento material que faz sentido àquele que interage pela linguagem. Logo, a linguagem foi

entendida como um padrão que se realiza pelo modo como diversas estruturas organizam-se

para formá-lo. Por isso, o objeto deste estudo, as operações de interlocução, ampliou-se para

apreender o momento em que essas operações são realizadas. Só a cena enunciativa pode

fornecer o suporte para a gramática que emerge. Aquilo que se percebe, lembra ou atenta

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serve como base para fazer emergir as diversas estruturas que se geram, mostrando que a

linguagem compreende o organismo em movimento, integrando diversos sistemas. A língua

sozinha, pois, não parece suficiente para gerar os significados; ela fornece elementos para a

construção dos sentidos, mas não todos os conhecimentos necessários.

A diversidade de uso dos sistemas de linguagem em função de sua adaptação ao Ŧ só

se explica pelo deslocamento do olhar da investigação científica da linguagem como um

objeto isolado para o homem que cria a linguagem: um homem biocultural, uma criatura

complexa, cuja condição de existência é o movimento. Por isso, o objeto desta pesquisa visou

ao homem em interação – ele altera sua estrutura permanentemente e, ao mesmo tempo,

mantém sua unidade no padrão comportamental que, dentre outras coisas, compreende seu

movimento no ambiente. Movimento esse guiado por características semelhantes às dos seres

complexos, tais como a abertura, a não-linearidade e a dissipação.

A abertura advém da rede metabólica de enzimas e proteínas em fluxo constante de

energia. Na linguagem essa característica provém de o fluxo dos significados permanecerem

em contínua manutenção e transformação. É por causa dessa característica que o ser humano

permanece em constante transformação, ao mesmo tempo em que mantém sua identidade. A

linguagem, da mesma forma, encontra-se em permanente processo de mudança ao mesmo

tempo em que se conserva estável. A não-linearidade capacita o humano a estabelecer

relações entre quaisquer elementos e sistemas em qualquer tempo e qualquer espaço acessível

a sua percepção e a sua imaginação. Na linguagem, as relações permitidas entre os elementos

formais da língua, possibilitam uma produtividade que é infinita. A adaptabilidade é uma

propriedade que torna os seres humanos capazes de relacionar com os mais diversos membros

da espécie e de outras em infinitas combinações das variáveis de tempo e espaço. Assim,

também, a linguagem adapta-se às situações, aos diversos meios e se organiza conforme os

elementos que constituem a cena enunciativa, além do que se mantém sempre em mudança,

devido ao fluxo do uso constante pelos usuários. A dissipação leva o sistema a se manter em

contato com o seu exterior. Ao realizar a troca, o organismo põe-se em movimento

consumando o estado de não equilíbrio. Nas ações de interação, os humanos estão sempre

operando com o novo. Ainda que a estabilidade dos padrões seja mantida, os componentes

são sempre realizados de uma maneira diferente ou mesmo alterados.

Os resultados da pesquisa mostraram que o sistema de significação humano emerge da

interação entre o organismo e o ambiente. A atenção aos movimentos corporais é a chave da

compreensão sobre como as coisas e experiências tornam-se significativas para os seres

humanos. De fato, a movimentação do ser humano é que o põe em contato com o mundo e

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essa condição o obriga a desenvolver sistemas de interação, emergentes na experiência, que

serão submetidos ao uso e também modificados ao longo de seu percurso. As trocas

linguísticas compreendem os espaços em que elas acontecem e também os espaços e tempos

que os participantes julgam partilhar. Portanto, os significados emergem não das emissões

verbais isoladamente, mas das emissões inseridas em um evento com todas as suas

dimensões. Engajar-se em narrativa e discurso cria demandas funcionais de associação de

eventos, localização de participantes, tomadas de perspectiva. Ou seja, numa interação os

movimentos físicos refletem movimentos conceituais e, muitas vezes, estes se realizam por

movimentos físicos.

A construção do simbólico, vista dessa forma, abrange tanto a parte material quanto a

parte conceitual, construída por uma infinidade de dimensões temporais e espaciais. Essa

conclusão é alcançada no evento gravado, evidenciando que o sistema linguístico está ligado à

ação social e à atividade conjunta que inclui objetos, espaços e movimentos diversos como

base para a construção do simbólico. Assim, o simbólico e o físico, ainda que sejam coisas

distintas, são indissociáveis, de modo que as convenções de linguagem, ou melhor, os

símbolos sejam ancorados no movimento de interação em que há partilha e comunicação. No

momento em que C toma a taça em suas mãos e se dirige aos técnicos, fica evidente que a

construção do espaço de significação é ampla e depende de uma construção percepto-

cognitiva.

Essas constatações indiciam que o mundo simbólico, mediado por linguagem, obedece

a uma lei semelhante à do mundo biológico; ambos estão submetidos a um metabolismo seja

de cadeias de proteína, enzimas, etc., seja de reações socioculturais. À medida que interage no

meio, o organismo constrói símbolos que, tal como as estruturas biológicas, são

continuamente reproduzidos e restaurados. As estruturas simbólicas, no curso de sua

trajetória, vão se modificando, ao mesmo tempo em que mantêm uma forma estável. Essa

propriedade pode ser verificada no léxico em que os significados das palavras podem manter-

se estáveis, mas, também, variar conforme os contextos em que aparecem e conforme as

adaptações efetivadas pelo uso.

As condições biológicas de adaptação, sobretudo a busca pela homeostase, coloca o

organismo em movimento, sendo que parte desse movimento é dedicada à linguagem. As

relações simbólicas também se materializam pelos movimentos, pelas ações e, portanto,

possui suas raízes na biologia. O modelo de computação recursiva dos dados que o ser

humano produz e que o circunda deve emergir dos princípios de complexidade que o

governam. Assim, ver o mundo e estar nele só é possível mediante condições inerentes ao

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funcionamento do organismo. É dessa perspectiva que o ser humano sente-se, percebe-se e

percebe (categoriza, classifica) e avalia o mundo à sua volta, e foi essa perspectiva que

norteou a análise das OIs, levando a se admitir que ela possa se acomodar dentro dos

princípios que governam um sistema adaptativo complexo biocultural.

Um item de memória, por exemplo, “dispara” a ação de C que realiza várias ações

para obtenção do turno. Essas se manifestam no gesto de levantar a mão, no aumento da

intensidade, no toque em G e numa gesticulação simulando um movimento direcional,

possivelmente para fortalecer o valor semântico do item lexical invadiu (em:ah:: uma carreta

invadiu o estacionamento...). Pode-se constatar disso que a linguagem manifesta-se por

estruturas variadas, engloba a língua, mas também incorpora outros tipos de código – gestual,

expressão facial, etc. – além de um cruzamento de tempo e espaço, origem de toda a

enunciação. Essas considerações levam a considerar que a linguagem incorpora o Ŧ, e os

símbolos linguísticos, por sua vez, podem prescindir do presente enunciativo, desde que este

esteja pressuposto pelos falantes, a partir do qual podem referir outros tempos e espaços.

As amostras refletiram todo o evento, evidenciando que os mesmos tipos de ações

estão dispersos ao longo dos 86 minutos registrados. Isso demonstra que os tipos de ação

coordenados modelam o princípio organizacional da OI exibindo a natureza do padrão que

subjaz a esta dinâmica: estabelecer a relação EU↔TU. OIs exibem um ponto em uma escala

hierárquica de um sistema maior que é a linguagem, de um sistema maior que é o humano e

de um sistema maior que é o ambiente. A pesquisa mostrou que os elementos fundamentais

que compõem as noções de complexidade podem ser adequados em diferentes graus ao

processo interlocutivo e à linguagem de uma maneira geral – o espaço fase, como as

condições iniciais da interação; os atratores, como os elementos que definem o curso de sua

trajetória; e o padrão, como a forma que dá identidade aos diversos aspectos da interação.

Com esta pesquisa, atesta-se que as OIs fazem muito mais do que introduzir tópicos,

conduzir o discurso e organizar a interação. Supõe-se que as OIs são a verdadeira

manifestação do self/EU. A maior evidência disso está nas estratégias de interlocução para

garantir o turno. Por meio dessas ações, as pessoas buscam-se reconhecidas e esse fato só se

realiza pelo outro. Assim, estabelece-se a distinção EU-NÃO-EU, pela qual as pessoas

buscam preservar a sua autoimagem regulando-se por um sistema de valores que é

categorizado conforme o equilíbrio homeostático.

As implicações desses resultados alcançam a compreensão do permanente movimento

adaptativo das práticas de linguagem e das formas que emergem, mostrando uma sintaxe que

incorpora tanto a corporalidade quanto o código verbal. O verbal está em sintonia com o

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corporal. Deve existir uma sintaxe em que esses sistemas organizam-se em conjunto com

função comunicativa, lembrando que os significados podem ser conseguidos com o franzir do

senho, por exemplo. O que parece ser internalizado não é apenas um conjunto de formas

linguísticas, mas também um conjunto de elementos componentes de um evento. A unidade

linguística não pode ser apenas uma composição gramatical, mas uma composição gramatical

modulada por uma série de artefatos de linguagem construídos coletivamente para fins

interacionais.

Se, por um lado, atos tão simples – uma conversa, um desabafo, uma troca de

informação – são atividades humanas tão banais e tão cotidianas, por outro, constituem-se

como fenômenos extremamente complexos, e, por isso, muito difíceis de serem descritos e

explicados quando isso se impõe como uma tarefa. Algumas dessas dificuldades devem-se à

propriedade da linguagem de ser interna. Ela constitui o ser humano, caracteriza-o como uma

espécie e também lhe é externa. Ele a constrói e a exerce por intermédio de formas materiais

sensíveis e partilháveis coletivamente.

Os estudos feitos nesta pesquisa sobre interlocução deixam em aberto muitas questões

que podem ser incluídas em agendas futuras. Estabelecer em que medida as operações de

interlocução podem ser classificadas e até que ponto elas são referentes ao texto, à interação

ou mesmo até que ponto essas operações desempenham funções múltiplas como foi

observado em alguns casos. Quais seriam os pontos de interseção entre o corpo e a língua e

como esses sistemas relacionam-se na formulação das OIs.

Refletir sobre a condição de seres de linguagem leva o humano a constatar o imenso

paradoxo em que está envolvido. Se, por um lado, refere-se a um mundo físico, palpável, cuja

materialidade manipula e apreende por meio dos objetos sensíveis tridimensionais (um copo,

por exemplo), por outro, refere-se a um mundo ao qual jamais terá acesso a não ser por meio

de suas representações mentais coletivas (a liberdade, por exemplo). Pode-se manusear um

copo, um galho de árvore e referi-los com a mesma naturalidade com que se refere à

liberdade, ao amor, aos objetos imateriais e insensíveis ao sistema sensorial. No entanto, sob

o ponto de vista linguístico, parece que não há diferença nas operações que se faz ao se referir

entidades tão díspares. Um conceito complexo quanto liberdade, imaterial e inapreensível, é

tão “palpável” quanto o de um copo. Deve-se isso a sua capacidade linguística de operar em

recursão, isto é, pode-se dispor da matéria dos objetos. Para os seres humanos, os conceitos

que elabora em sua consciência torna-os tão materiais quanto à própria existência

tridimensional, tamanha sua criatividade linguística.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – Termo de cessão de imagem

Eu _____________________________________________________ RG _______________,

residente na Rua _________________________________, nº _______ complemento ______

Bairro _______________________________ no município de ____________________

_______________________ no estado de _______________________, concordo em ceder os

registros obtidos por meio de gravação de áudio e vídeo realizada com fins acadêmicos. Os

registros serão utilizados exclusivamente pela doutoranda Daniela dos Santos Costa para

realização da tese que vem desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Letras na

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Belo Horizonte, 19 de outubro de 2010.

_____________________________________________

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APÊNDICE B – Notação para a transcrição

A transcrição deverá seguir um sistema de notação baseado em Marcuschi (1989, p.

318), adaptado para as necessidades desta pesquisa e compreende os seguintes sinais:

↑ maior intensidade do segmento que vem adiante.

↓ menor intensidade do segmento que vem adiante

→ maior velocidade da fala do segmento que vem adiante

~ modulação acentuada

: alongamento menor de sons vocálicos e consonantais

:: alongamento maior de sons vocálicos e consonantais

h indica que há expiração ou inspiração nos sons contíguos

/ corte súbito no segmento anterior

sobreposição de vozes

( ) pausa com duração indeterminada

[?] segmento incompreensível de até duas sílabas

[incompreensível] segmento incompreensível de mais de três sílabas (geralmente quando

ocorre sobreposição de falas).

[ ] descrição complementar da cena e comentários do analista

[MAC] movimento afirmativo de cabeça (sua forma é vertical e indica o conceito de positivo)

A ordem da entrada será: número da linha1, tempo da fala e participante. Em alguns

momentos o tempo será marcado apenas no início do turno, ficando subentendido que a fala

segue em prospecção linear no tempo, assim à medida que a fala progride, progride também o

tempo.

1 Manter-se-á o termo linha, ou segmento para indicar as emissões das amostras, cada linha ou segmento indica

um turno, por isso alguns deles ocuparão mais de uma linha no papel.

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APÊNDICE C – Amostra 1 e Amostra 2

AMOSTRA 1: de 5:00 a 7:17 – Estão C, CL e K em torno da mesa, o trecho inicia com K

contando sobre o conserto de um vazamento em sua casa. Os falantes estão dispostos em

torno da mesa.

05:00 – K: na hora de fazer essa ligação do joelho é: [olhando C e fazendo gestos]

1- 05:05 – C: [olhando para a janela e para K] tá sentindo frio? aqui? [apontando para a

janela]

2- 05:07 – K: não, tá ótimo

3- 05:06 – CL: → tem blusa ali se quiser ah/ ↓ cê trouxe blusa

4- 05:08 – C: n: → não na hora a gente fecha [para CL]

5- 05:09 – K:na hora que ele↑puxou o joelho

6- 05:10 – K: o joelho tava: [~] tava solto

7- 05:10 – CL: [para C] eh:: ( ) ↓ê:: [colocando a língua para fora, como se dizendo bobo]

8- 05:12 – K: como se tivesse só encaixando [~] olha que doidera

9- 05:14 – C: e assim, Neilton falou q/ Neilton: Neilton↓deu o parecer sobre isso?

10- 05:18 – K: ele vai lá hoje::

11- 05:19 – K: tá previsto pr‟ele ir lá hoje mas eu acho

12- 05:22 – C: ↑ não/ mas assim ( )

13- 05:23 – C: ele foi responsável por isso? ( ) ou acontec/ acontece::u: [movimento

semântico de mão explicitando o modo como aconteceu, parece indicar “por acaso”]

14- 05:26 – CL: [estende o braço, tentando o turno

15- 05:26 – K: gente num tem muito sentido uma obra de dez meses

16- 05:30 – CL: [?] [?] não/ mas esseé um problema da construtora cê tem que acionar é quem

contruiuuá

17- 05:33 – C: nã:o mas foi na hora da/ foi na re forma

18- 05:35 – CL: ↑ ah: na refo:rma

19- 05:36 – K: ↓ reforma

20- 05:37 – CL: ↓ reforma [MAC]

21- 05:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu?

[olhando C]

22- 05:40 – CL: é claro

23- 05:43 – K: [olhando CL] responsabilidades, eu vou/ conversar com ele/ falar [~] olha, a

bomba explodiu, né:?aqui em casa e aí?

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24- 05:48 – K: em que que ocê pode me ajudar?

25- 05:51 – K: o que eu vou sugerir é que eu entro com o material e ele com a mão de obra

26- 05:52 – CL: ma/ quem tá::

27- 05:53 – CL: quem tá reclamano? seu vizinho?

28- 05:55 – C: ↓Neílton

29- 05:56 – K: Neílton entra com a mão de o:bra [?] [para C]

30- 05:59 – CL: quem tá reclamano? seu vizinho?

31- 06:00 – K: [voltando-se para CL] os vizinhos que assim/ a cozinha deles tá alagada

pingando água assim ó [gestos, movimentos verticais de cima para baixo]

32- 06:05 – C: no::ssa [expressão de nojo, mão no rosto] ↑i::hh

33- 06:05 – CL: quanto tem/ foi quanto tempo?

34- 06:08 – K: no::ssa de/ desde antes d‟eu viajar, tem três semanas que:

35- 06:10 –CL: [para K] tavafechad/

36- 06:10 - C: [pegando a garrafa e servindo as taças] ↑eu tô achando bom sem gelar, cês tão?

37- 06:12 – CL: [volta-se para C] eu também tôgostano ( ) ↓tá ótimo

38- 06:13 – K: eu também tô

39- 06:15 – C: num tá? [para K]

40- 06:16 – K: tá ótimo [para C]

41- 06:16 – C: inve::ja:: [balançando a garrafa, mostrando-a aos técnicos]

42- 06:18 – K: aqui me conta/ [olhando para C e depois volta-se para CL que intervém]

43- 06:19 – CL: esse é o problema qu‟euqu‟eu acho difícil em apartamento é isso

44- 06:23 – K: a: é um saco a/ ↑além do mais porque não ha↑via vazamentos visíveis no meu

apartamento entendeu?

45- 06:29 – CL: sei

46- 06:30 – K: e aí as pessoas iam lá e eu falava ↑gente num ↑tá vazando aqui na minha casa

47- 06:33 – CL: e o cara, vai lá embaixo, né? [gesto descendente com a cabeça]

48- 06:34 – K: é::

49- 06:35 – K: e eu ia lá e [?] nó::

50- 06:35 – CL: [?] [?] lá em casa [?]

51- 06:39 – C: aqui aconteceu/ aqui [apontando o dedo indicador] cê tomano banho e

pingando água do vizinho em cima docê junto com a água do chuveiro

52- 06:44 – CL: no::ssa!

53- 06:45 – C: [pingava aquela água nojenta, cê num sabia de onde vi:nha

54- 06:48 – K: deve ser até esgoto, né?

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55- 06:49 – C: aí era do cano dele do/ ↑do ralo do chuveiro dele ↓olha que coisa!

56- 06:52 – K: [tocando a mão de C sobre as pernas cruzadas, adiantamento do tronco em

direção a C] na sua cabeça [risos]

57- 06:53 – C: [com as mãos no rosto] ↑u::i

58- 06:55 – CL: move o tronco e a cabeça, expressão de nojo] e::ah

59- 06:56 – C: pingava aquilo na ge:nte [fechando a janela de correr] ( ) ↑no:ssa

60- 06:59 – C: aí fi/ ficamos me::ses

61- 07:00 – CL: [leva a mão em direção à janela]

62- 07:01 – K: tá bom [para CL que ia fecha a janela]

63- 07:02 – CL: tá bom assim?

64- 07:02 – K: [MAC para CL e volta-se para C; CL também volta-se para C]

65- 07:02 – C: [gesto com a mão representativo de telefone, olha em sequência para CL e para

K] fulano vem cá vem cá ↓tá pingano num sei que, num sei que, num sei que ai ele/ até

que ele mandou consertar aí ficou o buraco aqui [apontando o interior do apartamento]

66- 07:05 – K: gente e/ é um saco porque na verdade quem é que

quer assumir isso, né? infelizmente ninguém [adiantando o corpo e pegando a taça e

segurando-a enquanto fala, olhando CL]

67- 07:10 – CL: é [MAC]

68- 07:11 – ( )

69- 07:12 – CL: [para K] nh e o que que eles queixam? é: só: vazamento:

70- 07:13 – C: [adiantando o tronco tocando K] e era uma mulher que: da/ dava

banho no cachorro no no:

71- 07:16 – CL: no chuveiro

72- 07:16 – K: banheiro?

73- 07:17 – K: no chuve:iro e ia entupino→de pelo de pelo de pelo

74- [os falantes voltam ao tópico dos estragos nos apartamento de K]

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AMOSTRA 2: de 34:52 a 37:04 – Estão C, CL, G e K em torno da mesa, o trecho inicia com

CL perguntando sobre uma pessoa conhecida.

1- 34:52 – G: aí ele fazia/ que ele é artista plástico

2- 34:56– K: da rede mediterranê?

3- 34:58 – G: da rede mediterranê [olhando para K depois para o centro da mesa endireitando

o corpo]

4- 35:00 – G: e aí: vinte quatro [?]

5- 35:01 – CL: tem tempo que eu não vejo

6- 35:01 – K: ↓quede a pauta? [olhando para C, riso]

7- 35:02 – C: [olhando K] unh?

8- 35:03 – K: quede a pauta?

9- 35:04 – C [olhando um papel que segura,em cima da mesa] ↓uma cola [sequência de

olhares]

10- 35:09 – C: → o shopping de Sete Lagoas

11- 35:10 – [todos riem e falam ao mesmo tempo]

12- 35:15 – CL: eu fiquei sabendo [?]

13- 35:18 – K – C tá louca pra ir lá no Shopping pra ela ir buscar [?]

14- 35:19 – CL: não/ já inaugurô:: já inaugurou

15- 35:20 – C: inaugurou menina diz que↑é li::ndo

16- 35:22 – CL: [?] diz que/ mas tem cena:

17- 35:23 – C: eu num vi ainda não [olhando para CL]

18- 35:24 – CL: mas ocê sabe da cena ( ) ↓das pessoas

19- 35:25 – K - C tá enlouqueci:da pra ir ao shopping

20- 35:26 – C: ó teve/ ↑tombou até caminhão de leite [?]

Paropeba

21- 35:26 – CL: [↑risada]

22- 35:28 – K: batêcabe:lo [balança cabeça] no shopping

23- 35:29 – G: de:u/

24- 35:32 – K: [olhando C] o que é que ocê falou?

25- 35:33 – G: deu ↑fi:la

26- 35:34 – C: deu engarrafamento com a excursão vindo de Paropeba ( ) no dia da

inauguração

27- 35:35 – CL: [para C] cê tá de sacanagem, né?nã/ mas ês quebraram mesmo

28- 35:38 – C: não/ caminhão de leite é mentira

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29- 35:39 – CL: ↓eu sei

30- 35:40 – C: m::as teve:: excursão::o vã:: ô::nibus

31- 35:40 – CL: →↓excursão [olhando para C com MAC]

32- 35:44 – K: excursão pra conhecer o shopping?

33- 35:45 – [~] pra ir pro ↑shopping, a inaugura↑ção, as cidades vi↑zinhas

34- 35:49 – CL: e::h foi um evento:: interregional [risos]

35- 35:49 – [passando a taça para G] toma G

36- 35:52 – CL: regional ( ) ↓ regional

37- 35:53 – C: aí: é assim

38- 35:54 – C: ficou lá/ abriu primeiro lá pros convida:dos coquetel assim pros convidados

39- 35:57 – C: aí devia ter, →sei lá, quinhentas pessoas

40- 36:00 – CL: os lojistas [?]

41- 36:01 – C: é/ os lojistas ficaram com seus convidados e →tal tal tal

42- 36:04 – CL: ahn

43- 36:05 – C: de repente abre povão aí veio aquela avalanche assim de gentalha

44- 36:05 – G: [?] [?] [pegando taça de vinho e cheirando]

45- 36:06 – K: ahn

46- 36:06 – CL e K: [risos]

47- 36:07 – C: ah:: [gesto com os braços abertos]

48- 36:10 – K: enxame, né?

49- 36:13 – C: e já/ →e já meteno a mão nos bifes os/ os lojistas tiveram/ [risos abaixa a

cabeça]

50- 36:15 – K: recolher o bifê

51- 36:17 – C: [rindo] ↑recolher os bifês e saquearam o hiper Santa Helena

52- 36:18 – K: meu deus do céu

53- 36:21 – C: o supermercado

54- 36:21 – CL: [rindo] [?] [?]

55- 36:25 – C: aí nas ↑fo:tos parece que é um show parece que é um Roch in Rio assim ( ) e é

o povo dentro do shopping/ [risos]

56- 36:27 – G: [rindo olha para K que também ri]

57- 36:30 – [risos gerais]

58- 36:31 – K: e a cobertura?

59- 36:32 – CL: eu fiquei sabendo que teve: e/ quebra de vitrine e tudo, né?

60- 36:35 – C: a:h isso eu não soube não

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61- 36:37 – CL: é:: uai quebraram vi↑trine Betânia que falou com a gente

62- 36:40 – C: ahn:

63- 36:41 – CL: que as pessoas começaram a ficar loucas [fazendo gesto de empurrar]

64- 36:42 – G: e deu fila [?] [?]

65- 36:42 – K: que escândalo pra imprensa [risos]

66- 36:44 – CL: empurrando [gestos de empurrar, interrompe e aponta para K]

67- 36:45 – CL: [para K] →não/ foi vistocomoum sucesso[vota-se para C]

68- 36:46 – C: ô ge:nte

69- 36:48 – C: mas olha procê vê a/ a:: ↑sede desse povo por um espaço público assim

70- 36:53 – CL: é:

71- 36:53 – C: porque [?]

72- 36:54 – CL: Sete Lagoas é:

73- 36:55 – C: ↑shopping, né:: n/

74- 36:56 – CL: tá muito longe né [?]

75- 36:57 – C: não/ e o povo/ deve ficar super afim de ↑sho::pping, assim:

76- 36:58 – CL: [MAC]

77- 37:00 – C: pra eles é um la↑zerassim

78- 37:01 – G: é:

79- 37:01 – CL: é:

80- 37:02 – C: porque pegar ônibus, ir a BH

81- [ os falante continuam a conversa]

Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS · 2017. 6. 23. · Desse ponto de vista delimitou-se o objeto de estudo: as operações de interlocução, responsáveis pela construção

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APÊNDICE D – DVD

DVD contendo o evento de interação gravado em 05 de outubro de 2010, 86 minutos.