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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Daniela dos Santos Costa
ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À
LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO
Belo Horizonte
2013
Daniela dos Santos Costa
ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À
LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Católica de Minas Gerais
como parte dos requisitos para obtenção do grau de
Doutor em Letras, área de Linguística e Língua
Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Milton do Nascimento
Co-orientador: Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira
Belo Horizonte
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Costa, Daniela dos Santos
C837a Aspectos percepto-cognitivos no processo de interlocução à luz da
linguagem como um sistema complexo / Costa, Daniela dos Santos. Belo
Horizonte, 2013.
180f.: il.
Orientador: Milton do Nascimento
Coorientador: Marco Antônio de Oliveira
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Linguagem 2. Cognição. I. Nascimento, Milton do. II. Oliveira, Marco
Antônio. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Letras. IV. Título.
CDU: 800.1
Daniela dos Santos Costa
ASPECTOS PERCEPTO-COGNITIVOS NO PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO À
LUZ DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA COMPLEXO
Tese defendida publicamente no Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Católica de
Minas Gerais, área de Linguística e Língua
Portuguesa, aprovada pela seguinte Comissão
Examinadora:
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Milton do Nascimento (orientador) - PUC Minas
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira (co-orientador) - PUC Minas
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Rodrigues Vieira - UNIMONTES
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes - UFOP
_____________________________________________________________
Prof. Dra. Josiane Andrade Militão - PUC Minas
_____________________________________________________________
Prof. Dra. Sandra Maria Silva Cavalcante - PUC Minas
Belo Horizonte, 04 de março de 2013.
Aos meus filhos, Beatriz e Lucas, para que se mirem no
trabalho construído com esforço e dedicação.
A Cleber, pelo amor dedicado.
A minha mãe, Terezinha, pelo exemplo de coragem.
AGRADECIMENTOS
A Universidade Federal de Viçosa por proporcionar este treinamento.
Aos professores Dr. Milton do Nascimento e Dr. Marco Antônio de Oliveira, pela
orientação.
A todos os professores do Programa Pós-Letras PUC-Minas, por contribuir para a
minha formação.
Às secretárias do Programa, Vera, Berenice e Rosária, pela dedicada atenção.
À FAPEMIG, através do programa PMCD, pela concessão da bolsa de estudos.
Aos informantes: Christiane, Cleber, Gerson e Valquíria pela importante contribuição
e pela generosa cessão de imagem e som.
A Humberto Jesus da Silva, pela inestimável contribuição na lida tecnológica e com os
programas de imagem e som.
A Heloísa Alves, pela revisão cuidadosa e pela leitura sagaz e caprichosa.
A Silvana Alves, pelo desprendimento por contribuir com a versão traduzida do
resumo.
A minha família, pelo conforto da companhia no dia a dia.
A Cleber, pelo estímulo, pela paciência de ouvir e pelos palpites sensatos nos
momentos complicados.
A Marilda, por proporcionar um ambiente ideal para o meu trabalho.
(A vida) é um processo material, que peneira a matéria e desliza sobre ela como uma
onda estranha e lenta. É um caos artístico controlado, um conjunto de reações
químicas desnorteantemente complexo, que produziu, há mais de 80 milhões de
anos, o cérebro de mamífero que hoje, sob a forma humana, redige cartas de amor e
usa computadores de silício para calcular a temperatura da matéria na origem do
universo. (MARGULIS; SAGAN, 2002, p. 44).
RESUMO
Neste trabalho, objetivou-se mostrar que propriedades características dos sistemas complexos,
como abertura, não-linearidade e dissipação podem ser encontradas nas operações de
interlocução e, por meio dessa confirmação, reforçar a tese de que a linguagem humana
obedece a princípios que a caracterizam como um sistema complexo biocultural auto-
organizador. Desse ponto de vista delimitou-se o objeto de estudo: as operações de
interlocução, responsáveis pela construção do locutor na relação enunciador-enunciatário
(EU↔TU). A fim de alcançar o objetivo proposto, analisaram-se os elementos linguísticos
apontados como organizadores da interação e do discurso, denominados marcadores
discursivos (MDs), considerando-se o modo de sua ocorrência no presente imediato da
enunciação. Efetuou-se essa análise através do registro, em áudio e vídeo, de um evento de
interlocução preparado cautelosamente para que se aproximasse de uma cena o mais
espontânea possível. Além disso, em pesquisa bibliográfica, procurou-se unir pontos
convergentes de diferentes áreas do conhecimento, propondo uma visão interdisciplinar para
abordar o fenômeno da interlocução que se manifesta pela interação do sistema da língua com
outros subsistemas que vão desde as condições intencionais mais subjetivas até os sistemas
mais objetivos como o tempo e espaço da interação. Constatou-se que as operações de
interlocução obedecem a padrões estruturais característicos dos sistemas complexos tanto em
sua base biológica, sensório-motora, quanto em sua base mental, conceitual-intencional.
Concluiu-se também que os textos simultâneos aos gestos, movimentos corporais e
modulação da entonação compõem um todo do qual vai emergir a significação.
Palavras-chave: Linguagem. Cognição. Interlocução. Sistemas vivos complexos.
ABSTRACT
This work aimed to show that the characteristic properties of complex systems, such as
opening, nonlinearity and dissipation can be found in the operations of interlocution and,
through this confirmation, strengthen the thesis that human language obeys the principles that
characterize as a complex system biocultural self-organizing. From this view point, was
delimited object of study: the interlocution operations, responsible for the construction of the
speaker in relation enunciator-enunciatee (I ↔ YOU). To achieve the objective, analyzed the
linguistic elements identified as organizers of interaction and discourse, called discourse
markers (DMs), considering the manner of its occurrence in the immediate present of
enunciation. This analysis was conducted by recording, audio and video, from an event for
interlocution, carefully prepared, for approaching a scene as spontaneous as possible.
Moreover, in literature, sought to join converging points of different areas of knowledge,
proposing an interdisciplinary vision to address the phenomenon of interlocution that is
manifested by the interaction of the system of language with other subsystems ranging from
the most subjective to intentional conditions until the systems more objective, as time and
space of interaction. It was found that the operations of interlocution obey structural patterns
characteristic of complex systems in both its biological basis, sensorimotor and mental, and in
its base conceptual-intentional. It was also concluded that the simultaneous texts to gestures,
body movements and modulation of intonation which make up a whole will emerge
signification.
Keywords: Language. Cognition. Interlocution. Complex living systems.
LISTA DE FOTOS
Foto 01 – Ângulo principal de captação da imagem .......................................................... 45
Foto 02 – Ângulo secundário de captação da imagem ....................................................... 45
Foto 03 – C recupera o turno coordenando fala e movimento corporal ............................. 49
Foto 04 – K toca braço de G ............................................................................................... 131
Foto 05 – C e CL olham K que domina o turno ................................................................. 139
Foto 06 – G levanta o braço para manter o turno ............................................................... 141
Foto 07 – C emite ah:: ........................................................................................................ 144
Foto 08 – C toca o braço de G ............................................................................................ 144
Foto 09 – C reintroduz o tópico uma carreta invadiu ........................................................ 145
Foto 10 – C ilustra o tópico ................................................................................................ 145
LISTA DE ABREVIATURAS
C – Christiane (informante)
CL – Cleber (informante)
G – Gerson (informante)
K – Valquíria (informante)
CEL – Conversa espontânea livre
EU↔TU – Relação enunciador-enunciatário
MD – Marcador discursivo
OI – Operação de interlocução
SAC – Sistema adaptativo complexo
TSGN – Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais
Ŧ – Tempo e espaço enunciativo, presente enunciativo
(T/E)n – Tempos e espaços simbólicos
SUMÁRIO
1 INTERLOCUÇÃO: BASE PARA A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO ............ 23 1.1 Introdução .................................................................................................................... 23
1.2 Organização da pesquisa ............................................................................................ 25 1.3 Justificativa .................................................................................................................. 26 1.4 Metodologia .................................................................................................................. 29 1.4.1 Objeto de estudo ......................................................................................................... 29 1.4.2 Percurso para a construção do objeto de estudo ...................................................... 31
1.4.2.1 Os componentes físico e simbólico do objeto ...................................................... 31 1.4.2.2 Interlocução: a ação no evento de interação ....................................................... 33 1.4.2.3 Análise da conversação e interlocução ................................................................ 34 1.4.2.4 A dinâmica interlocutiva ....................................................................................... 37
1.5 Objetivos ....................................................................................................................... 38 1.6 Opções metodológicas ................................................................................................. 40 1.6.1 Busca qualitativa do padrão ...................................................................................... 40
1.6.2 Em busca de um corpus ............................................................................................. 41
1.6.3 Definindo o corpus .................................................................................................... 42 1.6.4 O espaço físico ........................................................................................................... 43 1.6.5 A gravação ................................................................................................................. 44
1.7 Os dados ....................................................................................................................... 45 1.7.1 As amostras ................................................................................................................ 50
1.8 O que fica e por que fica fora da análise? ................................................................. 51 1.8.1 Critério para a seleção das ações .............................................................................. 52 1.8.2 As fronteiras das OIs ................................................................................................. 53
1.8.3 Natureza das OIs: matéria e movimento .................................................................. 53
2 O SER DE LINGUAGEM ............................................................................................. 55
2.1 Seres vivos .................................................................................................................... 55 2.1.1 Organização e estrutura ............................................................................................ 56
2.1.2 A vida em redes .......................................................................................................... 57 2.2 Sobre a condição de seres de linguagem .................................................................... 59 2.2.1 Arquitetura cerebral .................................................................................................. 61 2.2.2 Noções da Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais............................................... 63
2.2.3 Consciência ................................................................................................................ 65 2.2.4 Memória ..................................................................................................................... 68 2.2.5 Aparato sensorial ....................................................................................................... 71 2.2.6 Sistema motor ............................................................................................................ 72 2.2.7 Sensação e percepção ................................................................................................ 74
2.2.8 Emoção ....................................................................................................................... 76
2.2.9 Atenção ....................................................................................................................... 78
2.2.10 Crença e desejo ........................................................................................................ 79 2.2.11 Cognição: um processo global ................................................................................ 80 2.3 Construindo uma noção de linguagem ...................................................................... 82 2.3.1 Adotando perspectivas da linguística cognitiva ........................................................ 83 2.3.2 Linguagem atividade constitutiva ............................................................................. 85 2.3.3 Por que constitutiva? ................................................................................................. 86 2.3.4 Linguagem como objeto do mundo natural .............................................................. 89 2.3.5 Uma emergência no nicho biocultural ..................................................................... 92
2.3.6 O componente cultural .............................................................................................. 93
2.3.7 As convenções sociais ................................................................................................ 97 2.3.8 Discurso e texto .......................................................................................................... 99 2.3.9 Evento e gênero ......................................................................................................... 100 2.4 Conversação ................................................................................................................. 102 2.4.1 Conversação e a conversa espontânea livre (CEL) .................................................. 102
2.4.2 Verbal e não-verbal ................................................................................................... 104 2.4.3 Organização da conversação ..................................................................................... 105 2.4.4 Interlocução ............................................................................................................... 107 2.5 A interlocução como um sistema complexo adaptativo (SAC) ................................ 108 2.5.1 Noções teóricas sobre complexidade ......................................................................... 108
2.5.1.1 Espaço fase ............................................................................................................. 109 2.5.1.2 Atrator .................................................................................................................... 110 2.5.1.3 A condição emergencial dos atratores na relação organismo-ambiente .......... 112
2.5.1.4 Abertura, não-linearidade e dissipação ............................................................... 113 2.5.2 A construção do espaço enunciativo ......................................................................... 115
3 INTERLOCUÇÃO: UM SISTEMA COMPLEXO..................................................... 117
3.1 Retomando o objeto ..................................................................................................... 117 3.2 Descrição das amostras ............................................................................................... 118
3.3 Ações componentes das OIs ........................................................................................ 129 3.4 Descrição individualizada das ações .......................................................................... 130 3.4.1 Contato físico ............................................................................................................. 130
3.4.2 Entonação .................................................................................................................. 132 3.4.3 Emissão de itens gramaticais e supragramaticais .................................................... 136
3.4.4 Repetição .................................................................................................................... 139 3.4.5 Expressão corporal .................................................................................................... 141 3.4.6 Narrativa .................................................................................................................... 142
3.5 A dinâmica interlocutiva ............................................................................................. 144 3.5.1 O padrão na organização da OI ................................................................................ 147
3.6 Abertura, não-linearidade e dissipação no processo interlocutivo ......................... 148 3.6.1 Abertura ..................................................................................................................... 148
3.6.2 Não-lineridade ........................................................................................................... 151 3.6.3 Dissipação .................................................................................................................. 152 3.7 Degenerescência nas operações de interlocução ....................................................... 154
3.7.1 A dimensão multimodal e cognitiva no processo de Interlocução ........................... 156
4 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 159
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 165
APÊNDICES ...................................................................................................................... 171
APÊNDICE A – Termo de cessão de imagem ................................................................. 172 APÊNDICE B – Notação para a transcrição .................................................................. 173 APÊNDICE C – Amostra 1 e Amostra 2 ......................................................................... 174 APÊNDICE D – DVD ........................................................................................................ 180
23
1 INTERLOCUÇÃO: BASE PARA A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO
Neste capítulo pretende-se mostrar que a produção de sentido a partir dos textos
construídos na comunicação face a face tem recebido atenção dos pesquisadores da língua falada
no que se refere aos aspectos pragmáticos envolvidos na interação de linguagem. Estudos
indicam que a formulação dos textos vai além da organização das estruturas linguísticas ao
incorporar aspectos pragmáticos da interação (JUBRAN; KOCH, 2006). Nesta pesquisa, busca-
se investigar como aspectos entonacionais, gestuais e demais modelações expressivas cooperam
constituindo-se em elementos que devem ser computados para a construção da relação
enunciador-enunciatário, decisiva para a significação. Os textos falados devem, então, ser
compreendidos em sua emergência num tempo e espaço de onde são considerados diversos
fatores enunciativos que servirão para a construção da referência e do sentido.
1.1 Introdução
Considerada como o objeto primordial da Linguística, a língua falada pode ser
entendida, sob a perspectiva evolucionista, como uma materialidade artefactual, desenvolvida
pelos humanos com fins adaptativos. A língua será, neste trabalho, considerada como um
sistema que opera simultaneamente com outros tipos de sistemas na constituição da
linguagem, esta entendida como um sistema maior que engloba os sistemas da fala, do olhar,
do gesto, da inflexão, enfim, que se constitui por uma rede de interações não-lineares que vão
somar para as computações do significado. Quando a pessoa fala, ela imprime na língua
determinados acentos que são de origem emocional, pragmática, cognitiva e cultural. E esses
acentos contribuem para a construção do significado que acontece em uma interação.
Interessa-se pela linguagem como um sistema complexo que existe somente pela
possibilidade de interação entre sistemas distintos, porém interdependentes. Pretende-se
mostrar que a interação de linguagem organiza-se a partir de duas perspectivas: a perspectiva
do tópico e a perspectiva da organização da interação. Numa conversa desenvolve-se o tópico,
isto é, um tema para o qual as atenções voltam-se; sua característica formal é a terceira pessoa
do discurso, ele é introduzido e pode ser construído e reconstruído, interrompido, retomado e
reformulado ao longo da interação. Muitos estudos interessam-se pela organização e pelo
desenvolvimento do tópico, entretanto, apesar de reconhecer que não se pode separar a
organização tópica da organização da interação, a investigação será focada no modo como os
interlocutores organizam-se para orientar a construção e interpretação dos textos que são
24
produzidos. O posicionamento dos interlocutores no tempo e espaço forma a origem de todo o
texto e do discurso que vai emergir em uma interação de linguagem.
Estudos como a Gramática do Português Culto Falado no Brasil (JUBRAN; KOCH,
2006) apresentam uma proposta de análise do texto conversacional a partir da distinção entre
o desenvolvimento do tópico e a organização da conversa. Os elementos linguísticos que
esses estudos apontam como organizadores da conversa são denominados marcadores
discursivos (MDs). Os MDs serão, nesta tese, tomados de uma forma mais abrangente, pois
serão consideradas não só as emissões linguísticas verbais, mas também a forma como os
textos são emitidos, os gestos, os movimentos corporais, a modulação da entonação. Isso
porque se supõe que a maneira que uma forma linguística aparece quase sempre “emoldurada
em um modo” compete para as computações que vão gerar os significados. Assim, a função
dos MDs parece ir além da organização tópica, eles parecerem ser mais abrangentes e mais
significativos. Uma observação mais detalhada indica que esses marcadores funcionam como
constituintes do espaço de interação e de expressão dos locutores. Os marcadores
desempenham funções de manter os interlocutores em contato, de controlar e balancear o
conhecimento necessário dos enunciadores sobre o tópico e sobre si mesmos.
A proposta é aproximar conhecimentos linguísticos a perspectivas de áreas diferentes
como biologia, física, química, antropologia, neurociência, ciências cognitivas que parecem
apresentar pontos que convergem para explicar a linguagem como um sistema dinâmico.
Desse ponto de vista, será delimitado o objeto de estudo desta pesquisa, que são as operações
de interlocução, aquelas responsáveis pela construção do locutor na relação enunciador-
enunciatário (EU↔TU). Do estabelecimento dessa relação, partem todas as outras referências
de tempo e espaço que vão se manifestar no discurso. Portanto, o alvo da pesquisa são as
operações específicas de organização da interação, operações essas que figuram “simultâneas”
às operações tópicas.
É válido ressaltar que, nesta pesquisa, considera-se que a construção do sujeito
linguístico que se institui pela língua também se institui como um ser sensível, emocional e
que essas qualidades também se revelam nas formulações textuais e na construção dos
sentidos. Os interlocutores revelam quem são e, também, suas preferências e intenções.
Supõe-se que o processamento discursivo, na conversação, realiza-se por uma
atualização de subsistemas em interação, indiciando que a modulação da fala contribui como
um recurso que direciona a interpretação do texto. Nessa direção, o sentido constrói-se pela
formação de um todo significativo, isto é, compreendem-se as palavras impregnadas de
modos que, muitas vezes, podem definir o significado delas. Os sistemas percepto-cognitivos
25
contribuem para as computações e essa ativação simultânea assemelha-se ao funcionamento
dos sistemas vivos complexos que têm como uma das características primordiais manterem-se
em interação com outros sistemas. A construção do texto linguístico emerge a partir de uma
relação entre os sistemas cognitivos e linguísticos de forma que a construção do significado
vai se concretizando à medida que os elementos linguísticos vão sendo marcados por
contornos que, muitas vezes, são imperiosos para a construção do sentido. Vista dessa forma,
a interação de linguagem envolve uma cooperação que vai além do caráter puramente
linguístico ao ativar sistemas como a visão, a audição, o gesto, o olhar e, possivelmente,
combinações entre eles; tudo coordenado pelo sistema de atenção, contribuindo para a
organização e coerência do discurso.
Essa visão leva ao questionamento sobre os já amplamente estudados marcadores
discursivos: A categoria dos marcadores discursivos, na conversação, partilha um espaço com
outra categoria que vai além do material linguístico? Que outros recursos são utilizados para a
organização da interação de onde e quando emerge o discurso? A hipótese a ser levantada a
respeito dessa pergunta é de que a perspectivização do par enunciador-enunciatário – relação
que será representada doravante por EU↔TU – é atualizada conforme computações que
congregam elementos linguísticos com elementos espaçotemporais, que serão chamados
recursos cognitivos por resultarem de computações que emergem apenas em decorrência da
conformação interativa.
Os falantes partilham um espaço e um tempo de onde advêm computações que são
consideradas na construção do discurso, indicando que o sistema sensório-motor contribui
para a construção do texto. A continuidade tópica pode ser interrompida, fragmentada e
retomada com base no espaço físico que os falantes ocupam, no que eles veem e ouvem.
Assim sendo, observa-se a participação de aspectos cognitivos tomados como demarcadores
do espaço de interlocução conduzindo a interação e o discurso. A atividade enunciativa e sua
ancoragem pragmática indicam que a produção discursiva congrega sistemas de naturezas
diferentes, levando à hipótese de que a organização dos marcadores discursivos obedece a
padrões dinâmicos, tais como os sistemas complexos adaptativos. Um novo enquadre em
relação à concepção de linguagem requer novas maneiras de interpretar o objeto linguístico
para dar conta de sua complexidade e dinâmica.
1.2 Organização da pesquisa
A pesquisa está organizada em quatro capítulos, apresentados adiante.
26
O primeiro apresenta a questão que motiva a tese, isto é, a construção do sentido na
língua falada ampara-se apenas nos itens linguísticos ou também em outros aspectos
cognitivos? A hipótese apresentada é de que, além desses itens, outros aspectos contribuem na
busca pela significação, indicando que as operações de interlocução congregam vários
sistemas. Supõe-se que o fator primordial para a construção dos significados é o
estabelecimento da relação enunciador-enunciatário, que compreende não apenas a
identificação e espacialização desses elementos, mas também aspectos cognitivos que
envolvem, entre outros, estados interiores, emoções, intenções e relações socioculturais. Em
seguida é apresentado o objeto de estudo, os objetivos, os procedimentos realizados na
construção do corpus e na realização da análise.
O segundo capítulo constitui-se do quadro teórico adotado, compreendendo: a)
aspectos relacionados ao ser de linguagem, ou seja, circunstâncias que determinam a
existência da linguagem humana; b) noções para a construção de uma concepção de
linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural.
O terceiro capítulo consta da análise das operações de interlocução a partir de uma
abordagem de sistemas perceptivos multimodais, contemplando a cognição como um
processo de percepção global, atualizado na correlação de categorias que operam na interação
do homem com o ambiente.
No quarto capítulo, apresenta-se a conclusão de que a produção de sentido na conversa
espontânea livre tem como fundamento precípuo a constituição dos organismos em
enunciadores a partir de marcas temporais, espaciais, psicológicas, intencionais, sociais,
enfim, a constituição de um ser completo em cujas ações de linguagem manifestam-se
características dos sistemas adaptativos complexos.
1.3 Justificativa
A contribuição deste estudo orienta-se para uma nova forma de conceber o fenômeno
linguístico da interlocução: como um conjunto de operações que revelam um fenômeno
natural processado por ações materiais, observáveis. Tais operações mantêm padrões de auto-
organização com fins adaptativos, indo do equilíbrio ao estado de desequilíbrio, o que resulta
na permanente reorganização do sistema à medida que a conversa desenvolve-se. Capra
(2006) assume que a sensibilidade às pequenas mudanças no meio ambiente, a relevância da
história anterior em pontos críticos de escolha, a incerteza e a instabilidade do futuro são
características-chave das estruturas dissipativas. Essas características são básicas dos sistemas
27
vivos que, como tal, são sistemas complexos. Nesta pesquisa, pretende-se assumir a
interlocução como um sistema vivo, isto é, um sistema adaptativo complexo auto-organizador
devido às características de suas operações identificarem-se com os princípios de organização
dos sistemas complexos.
Dessa perspectiva espera-se mostrar como o processo interlocutivo adapta-se às
interações, transformando-se continuamente, ao mesmo tempo em que resguarda sua
identidade, sendo esta uma importante característica na definição de sistemas complexos.
Propõe-se, a partir de novos elementos teóricos, mostrar evidências de que o processo de
interlocução funciona como um sistema complexo adaptativo: é aberto e dinâmico, porque se
mantém em movimento e realiza trocas com o meio; é heterogêneo, porque se compõe de
subsistemas inseparavelmente associados; e, por último, é não-linear, porque as relações entre
seus componentes e com o meio não são totalmente fixas e permite ao sistema formar
determinados tipos de rede que podem sofrer alterações conforme emergem os atratores
internos e externos ao espaço fase1.
Dentre várias categorias os marcadores discursivos, os MDs, figuram como elementos
que possuem a função de conduzirem o discurso e também a organização da interação.
Estudar esses elementos através de diferentes lentes do conhecimento, ao invés de adotar uma
perspectiva exclusivamente linguística, permite que sejam tomados como operações que
compreendem sistemas diversos, como a percepção, a atenção, enfim, explorando todo o
sistema de conhecimento. Nesta pesquisa, propõe-se que os MDs sejam flagrados no
momento de sua emissão, mostrando que muitos aspectos relacionados à interação dos
interlocutores no ambiente concorrem para a formulação dos textos e construção do
significado. Assim, aspectos como repetições de itens, prolongamentos de sons, hesitações,
pausas e outros podem estar ligados a sistemas como o de atenção, por exemplo, e pode
provocar reflexos no texto. A altura de voz pode ser determinada por um ruído no espaço
enunciativo, ou como um recurso para tomar ou manter um turno ou mesmo por outro motivo.
Uma hesitação, por sua vez, pode ser reflexo de que o falante esteja percebendo algo que lhe
tira o foco da atenção, provocando a hesitação que aparece na superfície do texto.
Recentes contribuições para o estudo dos fenômenos linguísticos têm sido as noções
de sistemas complexos. Essas se apresentam como uma alternativa para dar conta da
dinamicidade dos fenômenos e de sua submissão ao tempo ao espaço e ao movimento. Nessa
perspectiva, emerge outra maneira de se conceber a linguagem, ou seja, um sistema
1 Os conceitos de atratores e espaço fase serão discutidos no segundo capítulo.
28
adaptativo complexo, formado por elementos bioculturais, que se integram coordenadamente
na construção dos processos de interação. Este estudo consiste na apresentação da linguagem
do ponto de vista da complexidade, a partir de um de seus aspectos operatórios: a
INTERLOCUÇÃO. Por aceitar que sistemas e subsistemas vivos operam em cadeia, ou
melhor, em redes, pretende-se mostrar que a interlocução constitui-se de subsistemas,
permitindo-se encontrar padrões pelos quais ela se organiza e buscar os princípios de
organização das operações de interlocução que a caracterizam como um sistema aberto,
dinâmico, heterogêneo e não-linear, portanto, um sistema complexo.
A dinâmica das atividades linguísticas leva a considerar que, tal como o metabolismo
dos organismos vivos, a linguagem também se submete às ações metabólicas socioculturais
que a mantém em constante movimento, sendo, nessa abordagem, um subsistema de um
sistema maior que é o ser humano que, por sua vez, inscreve-se em um sistema maior que é o
ambiente. Neste trabalho, conforme os pressupostos teóricos que serão apresentados, a
linguagem será considerada um fenômeno natural, figurando como uma das facetas do modo de
ser do organismo humano, imerso no ambiente-nicho-mundo, em atividade para manter a vida.
Seguir-se-á as tendências recentes da linguística cognitiva, direcionando o objeto da
investigação para a linguagem como uma propriedade humana decorrente do entrelaçamento
dos diversos sistemas que compõem o cognitivo – sensório-motor, perceptivo, e outros –,
tomando a linguagem como um sistema dinâmico adaptativo que se constrói, isto é, organiza-
se no desenrolar das interações coletivas entre organismos no ambiente. A produção de
sentido, então, compreende um organismo dotado de funções motoras e perceptuais,
coordenadas pelo sistema nervoso. Esse organismo movimenta-se e age no seu ambiente
pleno de objetos, realizando o seu viver biocultural. Considerando-se como Johnson e Rohrer
(2005, p. 4, tradução nossa), o “encaixamento evolucionário do organismo em seu ambiente
mutável e o desenvolvimento de seu pensamento em decorrência dessas mudanças, liga
inextricavelmente a mente ao corpo e ao ambiente”2. Dessa forma, a pesquisa que se propõe
inscreve-se no campo da Linguística Cognitiva Moderna, considerando-se que o ser humano
é, antes de tudo, corpo biológico situado no ambiente e que esse fato é decisivo para
determinar o modo como se constrói seus sistemas de significação e de linguagem.
Em seu livro The Meaning of the Body, Johnson (2007) assume que o fato de o ser
humano ser corporificado significa que está inteiramente sujeito a eventos biológicos, físicos
e químicos que lhe movem, mudam seus estados corporais, restringem seus pensamentos,
2 This evolutionary embeddedness of the orgnism within its changin enviroments, and the development of
thought in response to such changes, tiés mind inextricably to body and environment.
29
suas ações, desenvolvem padrões socioculturais e interferem em seus estados emocionais. Isso
define, muitas vezes, suas impressões e avaliações do mundo e, consequentemente, o modo
como reage às sucessivas situações por que passa em suas interações, determinando, assim, as
formas de linguagem.
1.4 Metodologia
Ver-se-á, nesta seção, que a interlocução tem propriedades específicas que a
distinguem como uma categoria vinculada ao gerenciamento da interação, visando situar os
participantes física e socialmente, organizar a conversa e o texto e estabelecer a relação entre
enunciador e enunciatário, origem do processo significativo. Ver-se-á também que a
interlocução possui marcas formais de pessoa e tempo, sendo uma categoria que se insere em
categorias mais amplas, de forma hierárquica tal como os sistemas complexos.
1.4.1 Objeto de estudo
O objeto desta tese pode ser descrito como a interação de EU↔TU no Ŧ, cada qual em
perspectivas distintas, portadores de seus tempos e espaços múltiplos (T/Es), construídos na e
pela linguagem.
É importante dizer que toda ação de linguagem tem um direcionamento principal e que
algumas operações são visivelmente direcionadas à solicitação do TU. No conjunto de ações
de interlocução, os interlocutores guiam a referência da conversa para a própria cena
enunciativa em que EU e TU assumem perspectivas dinâmicas na interação entre organismo e
ambiente. O EU dirige-se ao TU para convocar sua atenção por meio de algum movimento
específico – como mostram exemplos do corpus, “mas escuta, olha, mas xô te contá, mas aí e
vários outros. Gramaticalmente, são expressões de primeira e segunda pessoas – mas xô te
conta (eu contar a você) – ou segunda pessoa – olha (tu), cê imagina quando eu... –,
evidenciando que o objetivo da fala é direcionar a atenção do TU para a pessoa que fala
situada no Ŧ. Isso indica que, de certa forma, a interlocução é uma atividade de linguagem que
aponta para a enunciação dando uma ideia de metalinguagem, como se verá.
O objeto será, portanto, as operações de interlocução (OIs) manifestas por diferentes
tipos de ações que compreendem formas diversificadas de uso da linguagem.
30
Quadro 1 – Distinção formal entre operações de interlocução e de narração
Operação de interlocução Operação de narração
Pessoa 1ª e 2ª 3ª
Tempo Presente Não-presente Fonte: Elaborado pela pesquisadora
Seguindo a proposta de Koch et al. (1990), Marcuschi (1989), Ilari (1993), Jubran e
Koch (2006), distinguir-se-ão as operações de interlocução, que cuidam do monitoramento da
interação (da relação entre as pessoas e entre estas e o espaço e o tempo), e as operações de
manutenção do tópico. Entretanto, estas serão denominadas operação de narração, por ser um
termo mais adequado ao quadro teórico que se vem seguindo. A narração tratará de tempos e
espaços não-presentes, expressos em terceira pessoa, ou melhor, trata-se de espaços abstratos,
construídos no processo de interação por meio de sistemas simbólicos de linguagem. Pelas
OIs, os participantes posicionam-se física e socialmente, estabelecendo o EU biocultural, que
é o agente da interação de linguagem.
As operações de interlocução também se realizam por expressões adverbiais como
aqui::, agora, altamente dependentes do Ŧ, isto é, aqui e agora apontam para o EU que quer
se inserir como locutor; é também uma entrada para a tomada de turno quando o EU demarca
um espaço na interação.
Uma marcante característica da interlocução, notada nos dados, é sua constituição
multimodal. Subsistemas integram-se com intenção de reorganizar a interação. Assim, todas
as emissões apresentadas acima são acompanhadas de mudança na entonação, mudança de
intensidade, gestos, expressões faciais, olhares, enfim, constituem uma ação global de
linguagem, em que a língua e outros sistemas de interação realizam juntos a tarefa de manter
o organismo vivo, em interação com seu meio. Interagindo, o organismo constitui-se pela fala
que se modela e se constitui em formas visíveis.
Poder-se-ia dizer que o EU humano constitui-se na interação com o outro e só por ela
se realiza. No dizer de Benveniste (1989), seria a necessidade de o locutor referir-se pelo
discurso. E, conforme se defende nesta tese, seria a condição humana de seres biológicos,
sociais e culturais que possuem consciência de si mesmos como seres de crenças e vontades e
que consideram o outro como um igual a si.
A seguir apresento o percurso que levou à definição do objeto de estudo bem como a
sua acomodação dentro do leque de perspectivas que compreende o campo de estudos que se
dedica à conversa, identificando a interlocução dentro do evento de interação, para enfim, se
chegar às OIs.
31
1.4.2 Percurso para a construção do objeto de estudo
A interação, como concebida neste trabalho, é um processo biológico e cultural
realizado pelas pessoas em sua forma mais natural de agir. Quando Benveniste (1989, p. 222)
diz que “bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver” ele está
apontando para a linguagem como propriedade natural do ser humano. O foco do autor não
apresenta uma conotação biológica do fenômeno, e sim, o funcionamento simbólico, isto é,
como e por meio de que formas os seres humanos constituem-se locutores.
Interagir é uma questão de sobrevivência para a espécie humana. A espécie só se mantém
viva devido à interação entre os congêneres e outras espécies espalhadas numa determinada
circunscrição ambiental e simbólica, portanto, a interação das pessoas no tempo e no espaço é
uma questão biológica, física, química e cultural; é uma condição sine qua non. Nesse quadro, o
humano é um ser biocultural, sendo esses dois aspectos distintos, porém indissociáveis. Ser
biocultural implica, além das estratégias de sobrevivência, reprodução e perpetuação da espécie,
construção de sistemas artefatuais, conceituais e simbólicos. São sistemas partilhados
coletivamente em permanente reconstrução, uma vez que as pessoas vivem em redes no nicho e
atualizam permanentemente esses sistemas nas sucessões de interações.
Será considerado, neste trabalho, que cada pessoa em interação partilha de uma
perspectiva única no tempo e no espaço enunciativo e possui, potencialmente acessíveis,
diversos tempos e espaços simbólicos, cada qual de um modo peculiar. As operações de
interlocução serão analisadas, portanto, como processos de um sistema complexo biocultural e
isso quer dizer um organismo que vive em interação de linguagem, partilhando o espaço
biológico físico e químico e espaços simbólicos, construídos a partir de interações físicas e
também pela construção de artefatos cuja materialidade encontra-se diluída no nicho, mas
comprimida pelo organismo.
1.4.2.1 Os componentes físico e simbólico do objeto
Os componentes físicos e simbólicos pertencem a um mesmo sistema e o
funcionamento de um está inteiramente ligado ao do outro. Acreditando que, como na teoria
dos sistemas, esses interagem permanentemente, provocando mudanças nos sistemas em
interação, pretende-se apontar subsistemas componentes da linguagem. Parte-se do princípio
de que a interação de linguagem realiza-se por algum tipo de movimento e de que a matéria
de que é feito o movimento é a sua estrutura. No caso da interlocução, os gestos e
32
determinados tipos de movimento específicos que acompanham a língua constituem a
matéria. Numa interação nem todos os movimentos têm a propriedade interlocutiva.
Baseando-se na estrutura da operação de interlocução, poder-se-á identificar os subsistemas
componentes. A materialidade da expressão facial, por exemplo, não é a mesma do gesto ou
da fala, entretanto, elas são simultâneas, e isso será um parâmetro para distinguir subsistemas
humanos interagindo pelo movimento que, por sua vez, dará forma ao padrão. Um movimento
de toque no interlocutor associado a uma emissão do tipo “xô contá procês”, com intensidade
e tom específicos, somados ao olhar, ou seja, todos esses elementos em conjunto, formam o
padrão da interlocução que objetiva estabelecer a relação EU↔TU. A contínua reorganização
do tempo e do espaço de interlocução implica movimento que gera o padrão pelo qual o
sistema identifica-se.
As operações de interlocução (OIs) serão tomadas como operações que emergem na
ação de interação humana integrando elementos da língua com gestos, expressões,
movimentos corporais intencionais, direcionados entre os membros de uma comunidade,
partilhando um tempo e um espaço enunciativo, doravante representados pelo símbolo Ŧ3.
Esse símbolo será usado para referir o tempo e o espaço simultâneos em que estão os
participantes e ocorre a enunciação - o tempo/espaço enunciativo. O cruzamento dessas
coordenadas compõe a situação em que é materializada a linguagem, sendo esse um dado
importante para o aparecimento das formas textuais.
Seguindo Benveniste (1989), pode-se dizer que de constante na linguagem são apenas
os elementos da enunciação representados, neste trabalho, da seguinte forma: Ŧ =
[EU↔TU→ R (T/E)n], sendo Ŧ o presente enunciativo, que corresponde a uma coordenada
espaçotemporal em que acontece uma interação; o EU e TU pessoas que partilham o presente;
a seta unidirecional indica a criação da referência que se institui pela criação de (T/E)n,
representando a relação de tempos e espaços que se multiplicam ao infinito e que só podem
ser constituídos no Ŧ. A seta entre o EU e o TU representa o acordo interativo em que se
engajam; e R representa a referência que é, ao mesmo tempo, língua e linguagem, uma vez
que só se pode se referir, ao que quer que seja, exclusivamente, pela linguagem.
Como a interlocução constitui-se por um conjunto de operações, é necessário postular
que esse conjunto estabelece-se no processo de interação que, por sua vez, dá-se entre pessoas
3 Foi criado um símbolo que consiste na sobreposição das duas letras (T e E), porém, por questões de
inadequação de formatação dos meios de impressão, não será possível utilizá-lo. Assim sendo, selecionou-se,
do sistema operacional de computadores, um símbolo convencional o mais próximo possível da forma
decorrente da fusão das duas letras (Ŧ). Doravante esse símbolo será usado para referir o tempo e espaço
simultâneos de interação, que servem como base para a construção de espaços linguísticos, ou, melhor
dizendo, o presente enunciativo.
33
com propriedades e capacidades específicas determinantes do processo como um todo. Assim
sendo, o objeto desta pesquisa arranja-se a partir de processos múltiplos, que devem ser
considerados como influentes no processo de criação do texto.
1.4.2.2 Interlocução: a ação no evento de interação
A atividade de interação compreende a cooperação dos indivíduos envolvidos numa
ação de linguagem, sendo a própria atividade determinante das formas de linguagem e
também determinadas por ela, tal como abordado por Franchi (2011) sobre a ideia de
linguagem como atividade constitutiva. A noção de atividade, tal como observa Bronckart
(1999), refere-se às organizações funcionais de comportamento dos organismos vivos, através
das quais eles têm acesso ao meio ambiente e podem construir elementos de representação
interna ou externa.
A ação de linguagem pode ser considerada uma propriedade da atividade social.
Segundo Costa (2002), a ação pode ser entendida como intervenção de linguagem em que as
pessoas são movidas por intenções. Essas intervenções, segundo a pesquisadora, são sempre
avaliadas pelos interlocutores com base em critérios coletivos, de forma. Dentro de um evento
de interação, as ações são unidades menores de linguagem que refletem as intenções
particulares dos organismos. Nesse caso, as percepções do ambiente e do próprio interior do
organismo somam-se para compor o espaço de enunciação, base para a formulação do discurso.
Em um estudo intitulado Dynamics in Action, Juarrero (2002) apresenta uma proposta
para a compreensão da ação incluindo o conteúdo significativo da intenção como propulsor do
fluxo da ação. Ela descarta os modelos tradicionais, em que a ação é explicada pela
causalidade de eventos mentais, pela explicação lógica, ou mesmo pela relação estímulo-
resposta proposta pelos behavioristas. A proposta da autora é incluir teorias dos sistemas
complexos que são capazes de explicar a ação como um processo dinâmico. Ela conceitua a
ação intencional como uma trajetória emergente, controlada por restrições impostas pelo
ambiente (contexto), pela organização dinâmica do cérebro, pelas restrições impostas pelos
processos motores e de fala incorporados do conteúdo das intenções. Para Juarrero (2002),
elimina-se, assim, a atomicidade das intenções e vontades como propulsores da ação. Uma
trajetória da ação cruza coordenadas dinâmicas da consciência, da semântica e de níveis
afetivos da organização neuronal com aquelas do controle motor. Na visão da autora, a ação
seria explicada como um sistema dinâmico complexo, porque interage com o ambiente sob
condições longe do equilíbrio. A ação de linguagem abrange um espaço semântico
34
cognitivamente organizado, cujas propriedades e leis restringem e direcionam a ação.
Como se verá, a ação mantém o sistema em sua busca pela adaptação. Nesse caso,
tanto a dinâmica interna como a dinâmica da interação do organismo e ambiente são
propulsoras da ação, ligando a interação de linguagem ao movimento. A ação, então,
constitui-se por movimentos sensorialmente perceptíveis que podem ser registrados e
demonstrados pelas formas verbais e corporais, indicando que a formulação textual envolve
um processamento mais amplo. As ações assumem formas controladas por atratores que
podem ser desde as regras de comportamento mais sutis a impedimentos ou facilitações
físicos para a interação.
Essa é uma noção que será defendida nesta pesquisa ao se caracterizar a interlocução
como um sistema adaptativo complexo biocultural. Adiante, ver-se-á que se trata de uma
opção que pode, pelo menos, aproximar a compreensão da linguagem, abarcando seu
dinamismo e sua ubiquidade no que tange a espécie humana. A ação de linguagem será
concebida como uma unidade de movimento componente do evento de interação, com seus
limites estabelecidos por elementos da fala e do corpo. Assim, espera-se identificar ações que
buscam estabelecer o espaço de interlocução, base para a emergência do discurso. Entretanto,
não será uma unidade com seus limites precisamente definidos (TURNER, 2006;
HOUGAARD, 2008). Os traços característicos serão marcados em decorrência de a ação ser
estruturada como um processo e não como uma unidade estanque que se pode recortar e
analisar separadamente de seu contexto. Uma interação é constituída de uma sucessão de
ações e, muitas vezes, estas se encadeiam de tal forma que não se pode encontrar a fronteira
precisa entre uma ação e a subsequente.
1.4.2.3 Análise da conversação e interlocução
Tendências da análise da conversação consideram que os marcadores conversacionais
(MCs)4 cumprem a função de organizar a interação. Marcuschi (1989) assume que os MCs
possuem propriedades interacionais e intratextuais, respectivamente, voltadas para as relações
interpessoais e para a estruturação da cadeia linguística. De uma perspectiva funcionalista, o
autor aborda os MCs em seus contextos e condições de produção, já que se realizam nas
atividades interacionais, durante a conversação, podendo assim ser considerados como
4 Com o desenvolvimento das pesquisas na área de análise da conversação, a compreensão dos MCs foi sendo
reformulada e sua denominação passou a ser marcadores discursivos (MDs), cujas análises demonstraram
que desempenham funções mais amplas na constituição dos textos conversacionais.
35
marcadores meta comunicativos.
Em seu estudo sobre os MCs, Marcuschi (1989) toma por base a noção de preservação
da face em que os interactantes, em uma conversação, buscam preservar sua imagem, sendo
que esses esforços manifestam-se em formas linguísticas como regras de polidez e estratégias
conversacionais, por exemplo. Assim, os MCs dão contorno às sequências tópicas,
introduzindo-as, encerrando-as, enfim, funcionam como operadores meta comunicativos,
porque definem efeitos que interferem na organização da conversa. Ver-se-á adiante que,
tomados pela lente do corpo teórico adotado nesta pesquisa, os MCs podem ser considerados
como operadores interlocutivos que estabelecem a relação EU↔TU (enunciador/
enunciatário), a qual serve de base para a construção da linguagem.
Também Koch et al. (1990) distinguem diferentes tipos de operações que compõem o
discurso oral dialogado com traços semelhantes aos da conversa espontânea. Para os autores,
o contínuo fluxo de informação reveste-se de seus contornos que visam, como dizem, “a
efetivação do contato para assegurar o sucesso da comunicação” (KOCH et al., 1990, p. 150).
Embora esses autores usem a expressão fluxo da informação, não transparece no texto citado
uma ligação com a teoria da informação, mas uma forma de distinguir o fluxo discursivo de
terceira pessoa e as emissões voltadas para organização da interação, coincidentes com o que
Marcuschi (1989) chamou de marcadores conversacionais.
Koch et al. (1990, p. 150) acreditam que a desarticulação do fluxo da informação por
uma expressão de articulação interativa “se explica por um processo de compensação
pragmática”. Interpretando-se esses autores e se baseando nas concepções teóricas desta
pesquisa, pensa-se que o discurso estrutura-se no plano sintático pelas formas da língua e, ao
mesmo tempo, no plano sintático-pragmático, que estabelece a articulação interativa da língua
e o tempo e o espaço que servirão de base para o discurso e para o monitoramento da
interação entre os participantes. Fica muito evidente que o plano pragmático não se
desvincula do plano linguístico e que a emergência do discurso dá-se pela associação desses
dois aspectos. Dessa forma, as ações de linguagem são ações humanas que se desenvolvem
em um cruzamento das coordenadas de tempo e espaço. Desse cruzamento, podem-se acessar
muitos outros tempos e espaços por meio do sistema de símbolos que se aprende a usar na
vida social.
O estudo das ações tende a mostrar que as operações de interlocução referem-se ao
presente imediato e promovem a articulação interativa donde emergirá o discurso (KOCH et
al., 1990). Por meio dessas operações, o organismo converte-se em um EU (self), situando-se
espacial, social e emocionalmente em suas interações. Faz-se importante mencionar que as
36
operações de interlocução e o fluxo narrativo seguem juntos, intercalando as sequências
interlocutivas e sequências tópicas (informativas), segundo Koch et al. (1990), conforme o
desenrolar imprevisível das conversas cotidianas.
Aceitar a distinção entre o desenvolvimento do tópico e marcadores interacionais é
uma orientação que já vem sendo utilizada analiticamente por vários autores. Seja no dizer de
Koch et al. (1990) – o fluxo da informação – ou no de Marcuschi (1989) – as unidades
discursivas – ou ainda na concepção de Ilari (1993) – o tópico discursivo –, são unidades que
se distinguem dos marcadores conversacionais e que, segundo esses autores, funcionam como
organizadores da interação e também do discurso. Isso confere a tais unidades uma
propriedade textual e meta discursiva, por terem sua referência na própria interação e, pode-se
dizer que, além da organização, focam os estados físicos e interiores dos participantes.
O desenvolvimento dessas pesquisas apresenta-se, mais recentemente, na Gramática
do Português Culto Falado no Brasil (JUBRAN; KOCH, 2006), em que se amplia a
abordagem dos marcadores conversacionais, que passam a englobar sua natureza emergente
em situações concretas de interlocução. Esses marcadores – que, nesta pesquisa, está-se
assumindo como operadores interlocutivos – serão analisados, sob a perspectiva interacional
linguístico-cognitiva, como responsáveis pelo estabelecimento da relação entre o enunciador e
o enunciatário, instituindo o organismo como um EU que se posiciona e considera o outro
como a si mesmo, com suas respectivas particularidades.
Apesar de não ser possível conceber a existência separada desses dois tipos de
operação no processamento da linguagem, pretende-se focalizar as operações de organização
que, neste trabalho, serão denominadas por Operações de Interlocução. É necessário frisar que
o desenvolvimento tópico não é matéria específica deste estudo, mas é considerado como um
dado constitutivo da interação verbal. O objetivo é verificar, nas OIs, como os sistemas de
estruturas diferentes integram-se para formar um padrão que define a unidade da ação. O
locutor constrói-se pelas OIs, a partir delas ele se situa espacial e socialmente, impondo-se
pelo discurso. Portanto, é importante investigar o modo como os interlocutores organizam-se
para conduzir o tópico e criar os espaços de referência para o entendimento dos textos.
As expressões indiciais5 por que os falantes apontam-se e apontam seus interlocutores
chamam a atenção não apenas para a narrativa que irá se desenvolver, mas também para a
própria interlocução. Isto é, a interlocução mostra-se como um processo de gerenciamento da
5 As expressões indiciais de primeira e segunda pessoas possuem a função de explicitar a cena enunciativa,
mais especificamente os falantes. Para maiores esclarecimentos sobre expressões indiciais, consulte Levinson
(2007), Bar-Hillel citado por Lopes (1998), Mateu (1994).
37
conversa, aponta para os participantes e para a própria conversa. A manutenção da
conversação, sustentada pela interlocução, parece ser um meio pelo qual os organismos
garantem o reconhecimento mútuo. É por meio da interlocução que as pessoas adéquam-se às
regras organizadoras das falas e de outras ações. De forma metafórica, poder-se-ia dizer que a
interlocução seria uma agulha com linha, cravadas no eterno presente dos organismos que
seguem alinhavando as narrativas.
A interlocução manifesta-se de forma verbal e não-verbal e busca sempre estabelecer o
elo entre os falantes como se estivessem a dizer Olha, eu estou falando com você, ao que seria
respondido sim, eu estou te ouvindo. Isso leva à suposição de que essa exigência de garantia
de ser ouvido e de mostrar que se ouve assemelha-se a uma espécie de compromisso. Supõe-
se, ainda, que isso parece ter suas raízes na busca do organismo de se estabelecer como um
EU e estabelecer o outro como TU (um eu igual a mim), tal como defende Tomasello (2003),
para quem os seres humanos desenvolveram, como uma vantagem adaptativa, a habilidade de
se identificar com seus coespecíficos e compreendê-los como seres intencionais.
1.4.2.4 A dinâmica interlocutiva
Faz-se necessário esclarecer que os excertos que se apresentarão como exemplos
foram recortados do corpus para demonstração de determinadas ações; devendo ser, portanto,
compreendidos como partes componentes do evento de interação, isoladas apenas para o
propósito de análise. O funcionamento da interlocução pode ser percebido pela manifestação
das estruturas nos diversos tipos de movimento com o fim interlocutivo. Espera-se encontrar,
nos segmentos manifestantes das ações de interlocução, um padrão caracterizado pelo
empenho para garantir o espaço, o contato, a comunicação e a expressão, mostrando-se que a
dinâmica interlocutiva realiza-se na solicitação de um EU para um TU:
Exemplo: 1
35:55 – C: ai:: é assim (retomando a fala e interrompendo outras falas)
36:49 – C: mas olha procê vê a/ a:: sede ...
39:37 – G: Agora o que vai
39:40 – C: Ah:: ↑ uma carreta desgovernada [C se lembra de uma informação e recupera o
turno interrompendo G que já iniciara o turno]
38
Os itens linguísticos, mesmo os supragramaticais, apontam para o EU ou para o TU,
sendo esse o padrão que rege toda a dinâmica das ações interlocutivas, isto é, a demarcação
do EU enunciador pela sua expressão ou pela solicitação do TU. Essas manifestações indicam
que o padrão da ação interlocutiva pode ser definido como a demarcação da relação
EU↔TU. Assim, entende-se que o padrão poderia ser associado à função, ou seja, toda
operação de interlocução visa à construção do espaço base da interação de linguagem. Desse
modo, a relação EU↔TU, que se cria por meio da linguagem, exibe os interlocutores
atrelados ao sistema de orientação subjetivo EU-AQUI-AGORA “origo” (MATEU, 1994),
evidenciando a interlocução como uma atividade pela qual os interlocutores sinalizam um ao
outro, reciprocamente.
O padrão emerge em variadas formas – gestos, expressões, movimentos gerais do
corpo – e também pela língua, com seus contornos significativos, como ainda será visto no
capítulo dedicado à análise. Os recursos verbais e não-verbais integram-se e formam o padrão
pelo qual um EU apresenta-se, ao mesmo tempo em que elege um TU, estabelecendo-se uma
relação da qual será orientado o discurso.
1.5 Objetivos
O objetivo geral da pesquisa é mostrar que as OIs processam-se pela interseção de
sistemas distintos, realçando seu funcionamento multimodal para estabelecer o espaço
enunciativo – o espaço de interação e de expressão dos locutores, originário de todo o
processo de referência. Por desempenharem as funções de manter os interlocutores em
contato, de controlar e balancear o conhecimento necessário sobre si mesmos e sobre o tópico,
criando a base da significação, as OIs constituem o espaço base da enunciação e as pessoas
em enunciadores, segundo restrições impostas pelo ambiente físico e social. A partir dessa
dinâmica operatória identificada nas OIs, verificam-se propriedades dos sistemas adaptativos
complexos bioculturais auto-organizadores.
Descrever as operações de interlocução e investigar sua estrutura significa identificar
os recursos que materializam suas formas: tipos de movimentos corporais, suas direções, os
contornos entonacionais e como esses se integram à língua. Ao gerenciar esses recursos, os
organismos descrevem padrões que se repetem, como se pretende mostrar pela associação de
subsistemas para a composição das operações de interlocução. Como atividade adaptativa
complexa, a interlocução mantém-se em constante dinamismo, flutuando entre ordem e
dispersão, sofrendo influência de diversos processos ao produzir formas de identificação do
39
EU em oposição ao TU.
A instauração dos enunciadores, tal como estabelece Benveniste (1989), instaura
também categorias cuja materialidade resulta do corpo no ambiente, extrapolando o que se
considera como categorias da língua: fonologia, sintaxe, semântica. Pode-se dizer que isso
alude à alegação de Benveniste (1989, p. 82) de que enunciação “é o ato mesmo de produzir o
enunciado”. Para ele, o locutor mobiliza a língua que, neste trabalho, considera-se como mais
um dos sistemas usados nas ações de interação de linguagem. É importante lembrar que o ato
de produzir o enunciado ocorre em um tempo e em um espaço em movimento. Portanto, na
composição da linguagem, dados da língua aglutinados a gestos, fisionomias, entonação,
mudança de intensidade, elementos à margem da sintaxe como as formas né, hum hum, ahn e
repetições organizam-se em estruturas que formam padrões restritos pela composição dos
enunciadores. Essa constatação leva a se considerar que o objetivo de identificar os diferentes
subsistemas integrados para a emergência das ações de linguagem será uma forma de
evidenciar a interlocução como um sistema complexo. Os objetivos específicos podem ser
resumidos da seguinte forma:
a) Identificar os recursos de linguagem que marcam a interlocução – língua, gestos,
fisionomia, entonação, elementos supragramaticais – e como eles se organizam na
ação;
b) Descrever a estrutura desses recursos (de que matéria é realizado o movimento) e
como se integram para formar o padrão de organização da interlocução,
identificando as características que os distinguem de outros padrões;
c) Explicar o funcionamento das OIs a partir de pontos análogos entre o
funcionamento característico dos sistemas complexos e o funcionamento da
linguagem.
Em artigo intitulado Grounded Cognition, Barsalou (2008) propõe que estados
corporais causam estados cognitivos por meio da ação situada em um tempo e em um espaço.
Ele defende que as interações sociais manifestam percepção e ação do corpo nos processos
cognitivos. Para ele, o processo cognitivo seria representado no cérebro de uma forma em que
os perceptos sensoriais acoplariam-se para formar uma percepção multimodal. Esse padrão
parece se revelar quando, ao se gerirem as operações de interlocução, processam-se
componentes dos subsistemas do componente cognitivo para a apreensão de um evento.
O modo de reorganização das ações humanas, no curso da interação, deverá mostrar a
40
condição de organismos autoconscientes, de que trata Edelman (1989). A autoconsciência
capacita o ser humano a autorreferir-se por um sofisticado sistema de linguagem, governado
por princípios voltados para a preservação da identidade do sistema, e, ao mesmo tempo, para
o fluir constante de energia pelo qual se processam as ações. Essa é uma característica que,
segundo Capra (2007), é comum em todo sistema vivo, por serem sistemas abertos,
desenvolvem-se e evoluem. A vida, então, expande-se na direção da novidade. É justamente
essa dinamicidade que se pretende apreender quando se alcançarem os objetivos propostos. O
padrão multimodal de organização das operações de interlocução deixa à vista a natureza
complexa do sistema de linguagem humano.
O estudo das operações de interlocução e de seu funcionamento deverá mostrar que a
linguagem humana organiza-se como o próprio organismo vivo humano, isto é, possui
características que também podem ser atribuídas aos sistemas adaptativos complexos auto-
organizadores: são abertos, não-lineares e dissipativos.
Na próxima seção, serão descritas as escolhas metodológicas consideradas adequadas
para definir as operações de interlocução e verificar que o funcionamento destas como um
sistema complexo espelha o sistema maior que é a linguagem.
1.6 Opções metodológicas
Nesta pesquisa, fez-se opção pela análise qualitativa por se considerar que o padrão de
organização do indivíduo humano em operação de linguagem modela-se por forças exercidas
por atratores. Esses permitem ser reduzidos a princípios que definem o organismo como um
sistema complexo, submetido a campos de forças contra os quais não há muitas opções. Ao
longo desta seção, pretende-se apresentar as razões da escolha feita.
1.6.1 Busca qualitativa do padrão
A análise qualitativa deve suprir a busca pelo padrão e não necessariamente pela
estrutura em si mesma. No caso desta pesquisa, as estruturas são relevantes até o ponto em
que elas se diferenciam umas das outras, mas não como se diferenciam em cada realização.
Por exemplo, uma expressão facial é diferente de um gesto com a cabeça, mas cada expressão
e cada gesto serão únicos. Sobre essa questão Benveniste (1989, p. 81-82) propõe que as
formas podem ser descritas por “um grande número de modelos, tão variados quanto os tipos
linguísticos dos quais eles procedem”. A diversidade de tipos, na concepção de Benveniste
41
(1989, p. 82), “não se deixa reduzir a um pequeno número de modelos”. Isso explica a
dinamicidade da interação que mantém um padrão, mas se reestrutura sempre em adaptação.
Por essa razão, não se quantificará as operações de interlocução durante um evento de
interação, mas se investigará a coordenação das ações que levam ao padrão das operações, ou
melhor, ao modo como os subsistemas componentes relacionam-se para formar um objeto
intencional, isto é, um objeto que é um todo significativo.
Os sistemas de atenção e de percepção serão identificados partindo do comportamento
dos sensores e das operações motoras, de modo que esses elementos possam encobrir uma
extensa área de observação do objeto de estudo e permitir a defesa da hipótese de que a
interlocução atualiza-se pela integração de sistemas distintos com uma finalidade específica.
Essa perspectiva implica mudanças de procedimentos de análise que será voltada para os
elementos que estruturam as operações de interlocução e para a maneira como se relacionam,
não sendo necessária a quantificação dessas operações para a opção metodológica escolhida.
Por se tratar de modos de ser da espécie humana, suas variantes são comportamentos
idiossincráticos ligados a particularidades advindas de espaços e processos históricos,
impossíveis de serem captados em sua integralidade, até mesmo por aquele que os vivencia.
1.6.2 Em busca de um corpus
Outra escolha metodológica diz respeito ao corpus da pesquisa. O desafio foi o de
encontrar um corpus capaz de fornecer operações de interlocução em seu estado mais natural,
para se chegar o mais próximo do autêntico comportamento humano. Nesse caso, o ideal
seriam gravações de situações cotidianas realmente espontâneas, de modo que os dados
aproximassem-se o melhor possível de uma situação empírica. Mas, obter esse tipo de dado
requer um aparato tecnológico e institucional que foge aos limites desta pesquisa.
Essa limitação levou a se optar por uma coleta que fosse intermediária entre uma
situação verdadeiramente espontânea e uma simulação em estúdio. Quanto ao primeiro caso,
para se obter uma conversa verdadeiramente espontânea, seria necessário superar muitos
obstáculos. As dificuldades vão desde as questões éticas às questões técnicas de qualidade de
dados (LABOV, 1970). Já a coleta de dados em estúdio ou mesmo interações simuladas em
ambientes costumeiros poderiam imprimir aos dados um caráter extremamente artificial,
comprometendo a composição do objeto que emerge na interação de linguagem. Essas razões
conduziram à produção de um evento de interação que pudesse ser registrado e, ao mesmo
tempo, apresentasse um alto grau de naturalidade e o mínimo de controle possível.
42
Diante disso, procurou-se registrar um evento que se aproximasse mais de uma cena
verdadeiramente espontânea, por isso escolheram-se pessoas que já eram amigas e que
possuíam uma série de informações partilhadas por tempos de convivência. Procurou-se
também convidar pessoas não tímidas e com boa desenvoltura social, pois, assim, haveria
menos possibilidades de ficarem inibidas diante das câmaras. O registro do evento mostra que
a estratégia deu certo. Mesmo que as pessoas estivessem conscientes de que estavam sob os
“olhos” da câmara, elas, ainda assim, ficaram muito à vontade, o que é atribuído ao fato de já
possuírem bastante intimidade e terem vivenciado muitas experiências em comum.
Compor um corpus com qualidade técnica de imagem e som foi um preocupação
metodológica. Por esse motivo selecionaram-se pessoas que, além de desenvoltas, possuíam
boa dicção para gerar dados de boa qualidade, diminuindo, dessa forma, o risco de perdê-los
por falta de clareza de som ou imagem.
1.6.3 Definindo o corpus
Em princípio, a ideia era formar um grupo de três participantes (Cl, G e C) para tentar
prevenir interposição de falas. Entretanto, a participante C contou para uma amiga que
participaria de uma gravação com fins acadêmicos e esta se ofereceu para participar do grupo.
Ela foi logo aceita já que a intenção era a de que o encontro ficasse bastante espontâneo. Se se
bloqueasse a entrada de K, isso poderia denotar proibição e, assim, conduzir-se o evento à
artificialidade. Por essa razão, K foi aceita e o grupo passou a ser composto por quatro
participantes. Todos adultos, idade entre 35 e 45 anos, três deles com curso superior e um de
nível técnico. Os participantes conheciam-se de longa data, com exceção de K e CL, que se
conheceram no dia do evento. O número de quatro participantes não foi o pretendido, mas
também não comprometeu a coleta dos dados. Ao contrário, essa quantidade foi importante,
porque permitiu que a cena se dinamizasse mesmo com a ausência de um deles e supriu a
ausência inicial de G, que chegou mais tarde. Não houve recomendação para que
permanecessem sempre em cena, se quisessem poderiam sair e se movimentar, mas eles
preferiram participar a maior parte do tempo.
Outra opção metodológica relacionada à construção da coleta de dados foi o grau de
esclarecimento aos participantes sobre a pesquisa. Procurou-se informá-los sobre aspectos
gerais, sem entrar em detalhes para que eles, durante o evento, não manifestassem reações
motivadas pelos apelos da pesquisa. Assim sendo, informou-se apenas que se tratava de uma
pesquisa de doutorado, que a gravação seria utilizada com o fim acadêmico de obter dados e
43
que o foco seria as operações de interlocução. Os participantes não mostraram interesse em
saber pormenores sobre o objeto da pesquisa e não pediram informações.
A observação dos registros mostra que a preocupação deles era o controle para não
falarem ao mesmo tempo. Quanto à espontaneidade da cena, ainda que não seja do interesse
desta pesquisa buscar uma medição mais precisa para essa categoria, observa-se naturalidade
dos participantes e um alto grau de espontaneidade.
Procurou-se não fazer muitas recomendações aos participantes para que eles ficassem
à vontade, por isso foi pedido apenas para que se comportassem como fazem normalmente.
Pediu-se também que não procurassem artificializar a organização espacial, evitando as costas
para a câmara, por exemplo. Apesar dessa recomendação, a gravação mostra que os
participantes tiveram algum tipo de preocupação em manter uma determinada organização
dos corpos no espaço, procurando, em alguns momentos, evitar as costas para a câmara. Na
fala, também, especificamente na organização dos turnos, pode ter havido, em determinados
momentos, alguma preocupação para não “atropelarem” as emissões uns dos outros. Porém,
os sutis cuidados tomados pelos participantes na formatação do evento não interferiram na
composição dos dados já que o controle de naturalidade do homem sobre si mesmo tem
alguns limites (TANNEN, 1982). O modo de ser das pessoas, a postura, o jeito de manusear
os objetos, a fala e muitos outros aspectos não podem ser disfarçados, não por muito tempo.
Por isso, pode-se dizer, o desempenho de todos os participantes demonstra naturalidade na
interação e, consequentemente, na manifestação da linguagem.
Seguindo os procedimentos de coleta de dados vernáculos, foram criadas as condições
para a naturalidade do evento bem como para a garantia dos direitos de uso de imagem e som.
Os participantes assinaram um termo de cessão de imagem e som, permitindo o uso para fins
acadêmicos, como se mostra no Apêndice A.
1.6.4 O espaço físico
O local da gravação foi escolhido considerando-se a familiaridade e a qualidade do
áudio. A decisão de não optar por um estúdio de gravação de áudio e vídeo também resultou
do objetivo de gerar dados que pudessem representar uma interação mais natural possível. Um
estúdio, por mais que se tente “naturalizá-lo”, sempre apresentará um componente muito forte
de artificialismo. Entretanto, um local onde os participantes pudessem sentir-se à vontade para
comportarem-se como fazem em seu dia a dia poderia compor um ambiente propício para
uma conversa, pelo menos, bem próxima do que seria uma interação espontânea. Por essa
44
razão, o local escolhido para a gravação do evento foi o apartamento de um dos participantes,
que era um espaço com o qual todos os outros possuíam familiaridade, e, ao mesmo tempo,
permitia a captação de imagem e som.
Visando evitar interferências externas, como barulhos e pessoas que poderiam
dispersar ou fragmentar o registro, optou-se por um ambiente fechado, a sala do apartamento,
deixando o ambiente restrito aos participantes. Mas é preciso lembrar que nenhuma proibição
foi imposta em termos da locomoção desses participantes e da possibilidade de eventuais
aparecimentos de pessoas não envolvidas na coleta. Também não houve rigor ao definir o
início do evento. Os operadores instalaram o equipamento, C e K começaram e depois de três
minutos e quarenta segundos entrou CL. G (dono do apartamento) só chegou a casa, vindo do
trabalho, 25 minutos após o início da gravação; aos 32 minutos ele se ajuntou ao grupo,
permanecendo até o fim.
A escolha do espaço foi determinante para a naturalidade do evento. Chegar a casa
depois do trabalho e encontrar amigos com quem se tem liberdade para reunir eventualmente
é uma situação bastante normal. Essa foi a intenção para que o corpus pudesse fornecer dados
mais próximos das situações “reais”, como se vem enfatizando.
Foi servido vinho e petiscos para que o evento parecesse-se com os eventos habituais
dos participantes. Um evento como o que foi proporcionado é parte costumeira da vida das
pessoas escolhidas, o que resultou em um alto nível de espontaneidade. Reunidos em torno de
uma mesa, eles beberam, comeram e conversaram durante 86 minutos.
1.6.5 A gravação
A cena foi gravada por dois ângulos, como mostram as fotos. Foi usada uma câmara
Panasonic GS 500 e microfone Sennheiser Boom ligado direto na câmara, operados por
profissionais contratados pela pesquisadora. No estúdio, a imagem foi unida ao áudio e não
foi feita nenhuma espécie de tratamento tecnológico aos registros gravados em DVD, nem de
imagem e nem de som.
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Foto 01 – Ângulo principal de captação da imagem
Fonte: Dados da pesquisa
Foto 02 – Ângulo secundário de captação da imagem
Fonte: Dados da pesquisa
É importante relatar que K, por sua vez, levou uma amiga, na condição de não
participar da gravação. Com isso, paralelamente à gravação do evento, na cozinha do
apartamento, estavam outro morador da casa, a amiga de K e eu, pesquisadora. Ficamos na
cozinha preparando o jantar que seria servido depois da gravação, enquanto isso, fui fazendo
algumas anotações para dar suporte à leitura do registro.
1.7 Os dados
Como previsto, o corpus gerou os dados esperados, ou seja, a emergência de
46
operações específicas de interlocução, com marca de segunda pessoa, diferenciando-as das
operações de narração, marcadas pela terceira pessoa. As operações demonstraram que o
organismo põe em prática a consciência que tem de si mesmo e do outro para a construção da
interação, mostrando, assim, as ações corporais com intenção de convocar um ouvinte,
estabelecendo-se a relação EU↔TU. Conforme Edelman e Tononi (2000), o ser humano não
apenas recorda a história de suas sensações e as categoriza, ele reflete sobre suas próprias
sensações e fala sobre elas com os outros. Segundo os autores, há marcas de expressões
linguísticas para manter-se em interação, para se expressar, para concluir, enfim, para
diversos fins relacionados com o objetivo de ser percebido. O sistema adotado para a
transcrição dos dados (Apêndice B) foi adaptado de Marcuschi (1989).
Exemplo 2
7:10 – C: a::i K [com a mão no rosto, lamentando a quebradeira feita em decorrência do
encanamento]
47:49 – K: – no::ssa! eu nem lembro C, quando eu tinha 21...
Como ainda será discutido adiante, as emissões emolduradas por gestos e contornos
entonacionais marcam a interlocução como uma ação que visa ao estabelecimento do elo entre
os interlocutores, e, ao mesmo tempo, expressam sensações e estados interiores, o que parece
uma espécie de posicionamento físico, emocional e social. Portanto, pela interlocução as
pessoas posicionam-se no espaço físico e, simultaneamente, no espaço simbólico. Considera-
se isso partindo do princípio de que toda emissão de linguagem é intencional e deixa
transparecer estados interiores do EU.
Verificou-se que, na conversa espontânea, as ações que constituem a interlocução
podem se realizar de diferentes modos, isolados ou combinados, como mostram a seguir as
ações selecionadas: a) contato físico em que o participante toca o ouvinte (que pode ser um
ouvinte possível, por estar mais próximo, ou mesmo ser pretendido); b) entonação realizada
por pergunta, pela modulação entonacional de velocidade, intensidade do som; c) gramaticais
e supragramaticais – elementos gramaticais (palavras, expressões ou orações de
convocação) e sons convencionados sem correspondentes lexicais, mas com significação
pragmática; d) repetição, quando o falante inicia uma frase ou expressão por várias vezes; e)
movimentos corporais parciais ou globais e f) narrativa – os interlocutores dirigem-se um
ao outro pela referência de terceira pessoa. Por exemplo, o filho chega a casa e diz: um
caminhão tombou ali na esquina, a presença física dos interlocutores já estabelece a relação
47
EU↔TU e, nesse caso, não há elementos explícitos de interlocução, como chamamentos ou
evocações, pois eles já estão subentendidos nas unidades interativas e, assim, o discurso
processa-se sem demarcações formais do tipo – Ô gente! Um caminhão tombou ali na
esquina, em que o vocativo introduz a sequência narrativa.
A decisão de considerar a narrativa como uma operação de interlocução pode parecer
contraditória, a julgar pelo critério estabelecido pelo movimento de um EU com intenção de
convocar um TU para a instanciação do discurso. Mas essa não foi uma opção decorrente da
metodologia adotada, e sim, uma consequência da própria natureza do objeto analisado, que
se sobrepõe à investigação. As pessoas em interação partilham um mesmo ambiente e a
própria consciência de seus corpos no espaço é o suficiente para que elas se estabeleçam
como locutoras. O que gera essa ação é o conhecimento compartilhado.
A ideia de conhecimento compartilhado parece estar associada ao que Tomasello
(2003) definiu como atenção conjunta. O autor defende que a atenção conjunta é um
comportamento comunicativo exclusivamente humano. Para ele, o intuito de compartilhar a
atenção é o que vai dar o suporte necessário para a linguagem. No seu livro The Origens of
Human Comunication, Tomasello (2008) chega à conclusão de que as origens da linguagem
vêm do sistema de gestos de apontamento (declarativos); esses indicam que as pessoas estão
partilhando um objeto exterior e ali estabelecendo uma partilha para concretizar o ato de
linguagem. O ato de linguagem gera, pois, uma terceira pessoa, a referência, ELE, como
resultado da relação EU↔TU.
Por isso, os corpos no espaço, a memória e a história de cada um são componentes que
sustentam a interação e dispensam operações explícitas de interlocução. Essas operações,
nesses casos, estão pressupostas nas convenções sociais estabelecidas coletivamente por
conhecimentos comuns, coordenada e historicamente. Quando a interação verbal acontece
sem que o participante convoque o outro, as pessoas, provavelmente, partilham a atenção,
identificam as cenas e agem conforme categorizam o espaço físico para a construção do
simbólico.
Sendo assim, dois falantes, colegas de trabalho que dividem um escritório, nem
sempre precisam se convocar para estabelecer a interlocução; ela se estabelece na própria
enunciação, no sentido mais extenso do termo. Ambos partilham um espaço e dominam
códigos coletivos que podem ser atratores definitivos para modelar a interação. Do contrário,
transeuntes nas ruas não estão livres para estabelecer interações de linguagem sem anúncio
prévio. Se isso for uma necessidade para uma pessoa no meio da rua, ela deverá realizar uma
operação interlocutiva para se estabelecer como locutor e estabelecer o outro como
48
interlocutor.
Essa razão leva a crer que o espaço de interlocução, por si, já é um elemento que
constitui a interação e a modela impondo restrições. Assim, os dois colegas do escritório e as
pessoas na rua são nichos distintos que geram modelos de interlocução distintos. Disso se
pode dizer que a narrativa não é, exclusivamente, uma operação de interlocução, mas encerra
em si a interlocução como um dado subtendido.
O conjunto teórico assumido, nesta pesquisa, permite expandir a noção de linguagem
levando em conta forças de diversas origens que impelem ou restringem as formulações de
interação. Trata-se de teorias que não adotam modelos categóricos e estáticos, ao contrário,
encerram o grau de flexibilidade necessário para acompanhar uma noção de linguagem
baseada no movimento dos corpos no espaço para a criação simbólica. Portanto, pode-se
assumir que a condição imposta pelo espaço é constitutiva da interação de linguagem e isso
permite considerar a narrativa como uma ação de linguagem que contém subtendido um
“acordo ou pacto” de interação. Talvez se possa considerar que seja um caso de interlocução
subtendida, já que há “um passe livre” para o discurso.
Os seis tipos de operações selecionados exibem uma divisão simplista das formas de
interlocução, visto que essas operações subdividem-se em uma grande multiplicidade. A
variedade de tipos de olhares e de suas significações é uma amostra de o quanto as operações
podem ser diversificadas. Entretanto, a seleção feita deverá fornecer o bastante para mostrar
estruturas que definem o padrão interlocutivo.
É importante ressaltar que, além de outras formas de interlocução, um estudo
aprofundado sobre as operações selecionadas poderia também mostrar detalhes e deles
surgirem ainda outras formas de interlocução. Essa é a natureza diversificada dos sistemas
complexos, não se pode reduzi-los a um pequeno número de modelos, como preconiza
Benveniste (1989) sobre a linguagem. As formas selecionadas, identificadas no
acontecimento que as gerou, serão úteis para mostrar que, a partir delas, padrões do sistema
estruturam-se, revelando a multimodalidade pela qual a linguagem emerge. A
heterogeneidade na composição das manifestações de interlocução mostrará o caráter
adaptativo do sistema humano, situado em um espaço de interação que funciona como um
atrator definidor do curso do sistema interativo em movimento.
Apresentam-se, a seguir, três exemplos registrados de operações auto-organizantes,
indicando que a ação de linguagem realiza-se por processos cognitivos dos interlocutores em
interação no Ŧ de uma maneira global.
49
Exemplo 3
A tentativa de CL para intervir “mas quem tááá” em 5:51, “mas quem tá reclamano? Seu
vizinho? em 5:55 e “quem tá reclamano? Seu vizinho? em 5:58. As três tentativas
subsequentes de CL são um exemplo típico que marca a busca para se estabelecer como
enunciador. Ele procura estabelecer um espaço de interlocução, mas K mantém o turno. Ele
tenta novamente e K continua não respondendo e ele insiste mais uma vez até que ela
responde à pergunta; nesse caso, o recurso foi a repetição.
Exemplo 4
No momento 6:49, C está engajada com K em um determinado desenvolvimento tópico,
quando, de repente, lembra-se de acrescentar algo em relação ao tópico anterior. Como o
curso da conversa já estava em andamento, C movimenta-se adiantando o tronco, alternando o
olhar entre os dois interlocutores, gesticulando, tocando K no braço para obter a atenção com
a finalidade de se estabelecer como enunciadora e concluir o que pretendia.
Foto 03 – C recupera o turno coordenando fala e movimento corporal
Fonte: Dados da pesquisa
Exemplo 5
K introduz um tópico que é recortado por intervenções múltiplas dos participantes. Eles falam
de um lugar que todos já visitaram (Itacaré). K, então, busca recuperar o turno a partir da
emissão gramatical, em 15:15 “lá é lindo, mas dex’ô te contá...”; essa fala mostra a intenção
de K de ser ouvida e continuar a desenvolver seu tópico.
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Os exemplos demonstram que as pessoas buscam se estabelecer como enunciadores
por diferentes modos e remetem ao que propõem Edelman e Tononi (2000) ao assumirem que
um EU constitui-se pela consciência de si, construindo-se pelas interações sociais e afetivas,
sendo essas manifestações bem marcadas por recursos linguísticos que vão desde a ação
corporal até a emissão verbal. Implantam-se, assim, as condições iniciais para a construção da
referência no discurso.
1.7.1 As amostras
As amostras compreendem dois trechos de dois minutos e quinze segundos cada um,
selecionados do evento gravado (Apêndice C). Esses trechos exemplificam de uma maneira
geral o que ocorre durante toda a gravação. É importante deixar claro que a análise incidiu
sobre todo o evento de interação, entretanto, selecionou-se, de modo mais ou menos aleatório,
dois pequenos trechos (amostras) para demonstração de como se captou os flashes que
continham as ações caracterizadas como OIs, tendo em vista não ser possível apresentar toda
a transcrição do evento em decorrência de sua extensão.
Descrever um evento de interação de linguagem com três e quatro pessoas interagindo
em tempo real, com falas simultâneas e movimentos corporais significativos, é uma tentativa
desafiadora. Isso por se tratar de descrever relações que não são lineares, uma vez que à
linearidade do texto interpõem-se movimentos simultâneos que são computados na
interpretação. As amostras devem ser compreendidas como uma descrição suficiente, porém
incompleta do evento, já que é difícil apreender um evento real que reúne perspectivas
diferentes de cada participante. Dessa forma, assume-se que muitos aspectos sutis,
certamente, não poderão ser registrados na descrição, não por serem menos importantes, mas
pela dificuldade de se apreender determinados detalhes. Além disso, a movimentação
incessante entre as pessoas em interação pode funcionar como diversos tipos de sinais
significativos indicando intenções, a disposição e a espacialização física e social, enfim, pistas
gerais para a interpretação das ações que se pretende analisar.
As amostras evidenciam que as sequências interlocutivas alternam-se com as sequências
narrativas, indicando que as OIs voltam-se para a interação, desempenhando o papel de situar e
ordenar os enunciadores, criando o espaço base para a construção da referência. As pessoas
estabelecem-se como enunciadores, marcam posições e manifestam estados interiores para um
enunciatário. Além de marcar início e final, manutenção e tomada de turno, organização do texto
(como reparos e metalinguagem), como já foi amplamente estudado por Koch et al. (1990),
51
Marcuschi (1989), Ilari (1993) e outros, a OI situa o falante no espaço de interação e permite que
ele manifeste seu estado cognitivo que compreende o conjunto de percepções, atenção, emoção e
consciência. A OI pode desempenhar a função de atenuar, de impor, de manifestar crenças e
desejos. A carga semântica das operações de interlocução encontra-se dispersa em um conjunto
de ações de linguagem, por isso as OIs cumprem uma função discursiva muito maior do que
introduzir sequências ou turnos, ou mesmo o texto, e este estudo deverá mostrar que elas também
são marcas simbólicas de expressão do EU (self).
É pela interlocução que o enunciador reconhece-se como um ser consciente de sua
consciência e reconhece o outro como um igual a si. Portanto, a interlocução parece ser uma
operação meta interativa que propicia a instanciação do discurso, criando um espaço de onde
emergirão as computações para o significado. As duas amostras deixam bem claro que a
interlocução apresenta-se como uma operação maior que desempenha o papel de estabelecer a
relação EU↔TU e esta, por sua vez, manifesta-se de diferentes maneiras, conforme os
recursos usados e os objetivos dos falantes. Essa constatação confirma mais uma vez o que
defende Marcuschi (1989) sobre os marcadores conversacionais MCs, que são condutores dos
atos interacionais e da cadeia linguística. A análise apresentada será no sentido de aprofundar
os desdobramentos dos MCs, dando a eles uma dimensão mais alargada devido à diversidade
de seus usos e formas e aceitando, assim, que a interlocução é uma operação de propriedades
multifuncionais e multiformes.
1.8 O que fica e por que fica fora da análise?
Movimento de cabeça, olhar e expressão facial foram formas identificadas de
manifestar a interlocução que não foram selecionadas para a análise por representarem
recursos complexos, que merecem um estudo mais específico. Sua realização é muito sutil e,
por isso, menos acessível à observação empírica, como é a proposta desta pesquisa. Cada um
desses tipos pode apresentar um alto grau de complexidade, variar (como existem muitos
tipos de olhar) e combinar entre si de modo a proporcionar ao organismo humano uma
infinidade de meios de se fazer percebido e mostrar que percebe o outro, além de expressar
seus sentimentos e intenções. Por essa razão, decidiram-se selecionar os seis tipos de ações
mais apreensíveis do ponto de vista de sua materialidade observável. Frisa-se, novamente, que
esse recorte tem o objetivo de descrever o comportamento complexo das operações de
interlocução pela amostragem de seu funcionamento, mas não o objetivo de descrever
completamente todas as ações.
52
1.8.1 Critério para a seleção das ações
Selecionar elementos em meio a uma série de elementos candidatos a serem analisados
é uma tarefa muito árdua ao pesquisador adepto a teorias como as da complexidade. Isso
porque não podemos pensar em um sistema estático, deslocado do seu tempo e espaço e,
obviamente, dos sistemas com que interage. Fazer recortes é sempre um incômodo, porque
leva à fragmentação do ser em ação, da qual surge o objeto pesquisado. Em um determinado
evento de interação entre pessoas, focalizam-se e se selecionam algumas ações que compõem
as operações de interlocução. Mas, qual é o critério mais apropriado para selecionar as ações
que vão representar a interlocução e, consequentemente, a linguagem humana como um
sistema complexo?
A observação cuidadosa do evento leva a reconhecer que nenhuma ação está livre de
ser interpretada com erro no que diz respeito ao seu caráter de subjetividade. O caráter
subjetivo da ação não é o objetivo desta análise embora não seja desconsiderado como um
componente importante, muitas vezes decisivo para interpretação do significado da ação.
Entretanto, algumas ações são suficientemente nítidas e possuem limites definidos; essa
nitidez facilita seu reconhecimento. Em decorrência do fator perceptibilidade, usou-se o
critério de nitidez, isto é, a operação é demarcada em sua materialidade e se percebe nela que
há uma intenção de estabelecer um canal de comunicação entre interlocutores. A convocação
(chamamento, uma garantia de ser ouvido pelo TU) realiza-se por uma série de estruturas
identificáveis e esse será um aspecto considerado nesta análise.
Mas, ainda assim, a questão resiste. Por que selecionar um conjunto de ações e não
outro? Nesse caso, orientou-se pela perceptibilidade da operação. O gesto é uma ação que
pode ser percebida pela forma, direção, velocidade do movimento, mas o olhar, por exemplo,
ainda que opere em função da interlocução, não é fácil de ser captado devido a sua sutileza de
significação, não sendo, pois, essa uma tarefa simples. Diferenciar olhares interlocutivos de
outros que são apenas expressivos deve ser uma tarefa para uma minuciosa investigação
empírica, além de ser necessário um sofisticado aparato tecnológico. Portanto, não se optou
por esse tipo de operação, embora não se perceba indícios de que haja grau de importância
entre as ações selecionadas e as não selecionadas para mostrar a evidência do padrão.
O olhar é um subsistema que se manifesta com intensidade no processo interlocutivo.
Os movimentos de cabeça são produtivos e devem ser considerados implícitos no processo de
interlocução. Ainda que não sejam tomados como elementos de análise, o olhar e o
movimento de cabeça sempre serão mencionados como ações subtendidas, componentes de
53
todas as interações de linguagem no gênero conversa.
Em uma visão norteada por teorias da complexidade, não se pode seccionar o objeto
sob pena de perder a globalidade do processo. É necessário considerar que o conjunto das
operações selecionadas para análise pode representar as operações que não foram
selecionadas, porque possuem o mesmo princípio de funcionamento. Como ainda se mostrará,
os atratores são definidores do comportamento dos sistemas complexos e essa condição impõe
ao sistema restrições que não permitem ser sua trajetória aleatória. Os atratores, em termos de
probabilidade, são numerosos, porém os que definem o curso do sistema são em pequena
quantidade, já que um corpo físico em movimento no espaço possui suas limitações naturais.
1.8.2 As fronteiras das OIs
Aceitando a ideia de que não se pode esgotar uma investigação ligada a objetos que
contenham algum grau de subjetividade, tomar-se-ão como parâmetro para identificar a
interlocução os movimentos de expressão do locutor com intenção de chamar a atenção do
interlocutor para si. O movimento que visa ao TU. O movimento pode ser com vistas a
introduzir uma sequência ou, simplesmente, manter o contato, como os supragramaticais ahn
ahn ou éh:: que indicam eu estou te ouvindo. Os limites das operações nem sempre são claros,
isto é, nem sempre se pode precisar onde começam e onde terminam; por essa razão,
pretende-se apontá-las como estruturas imersas no conjunto da interação.
1.8.3 Natureza das OIs: matéria e movimento
As OIs, de uma maneira geral, são formadas por ações que um EU executa visando
chamar a atenção do TU. Nessas operações fica evidente a apelação do EU para solicitar de
um TU algum movimento. As expressões de terceira pessoa, aquelas dedicadas à narração
(relatos de sobre um referente, R), diferem das expressões de interlocução. Estas têm a
peculiaridade de chamamento, as de terceira pessoa predicam sobre um R. É importante
distinguir que a predicação consiste no relato de um tempo não-presente e a interlocução foca
o presente enunciativo.
O objeto desta pesquisa são movimentos de linguagem voltados para o tempo espaço
enunciativo, em que a manifestação do EU visa solicitar a atenção do TU para a construção
desse espaço. Da relação das pessoas no espaço surgem as ações de linguagem e a partilha
simbólica que se constrói na interação. As pessoas movimentando-se no espaço criam as
54
condições de linguagem, como postula Johnson (2007), associando corpo e ambiente como
condição para o surgimento das formas e significados. Por isso, os dados gravados em áudio e
vídeo podem revelar operações corporais e verbais possíveis de serem identificadas pela
estrutura do movimento.
A materialidade das OIs, considerando a língua verbal, está nas expressões de primeira
e segunda pessoa, entretanto, do ponto de vista das teorias da complexidade, não se pode
aceitar que a linguagem seja recortada e que o enfoque seja dado apenas à língua. Neste
trabalho, frisa-se mais uma vez, a interação de linguagem realiza-se pelo movimento do corpo
no espaço sob determinadas condições. Para a concretização da linguagem é preciso que
alguém aplique algum tipo de força, gerando um movimento a ser registrado; nesse
movimento a estrutura das operações de interlocução será exibida. Pode-se notar nas OIs o
comportamento motor – identificável por sua materialidade –, procedente de movimento e
esforço corporal, que pode ser do corpo como um todo ou de parte dele. Da mesma forma, os
itens sonoros no emprego da língua e seus contornos são adequados ao nicho físico e cultural
correspondente ao Ŧ.
Assim, pela materialidade das operações poder-se-á distingui-las e verificar seu
comportamento coordenado para a composição do espaço base para a interpretação do
discurso. As operações verbais são muito diversificadas, suas manifestações vão desde
elementos sonoros supragramaticais até as emissões oracionais. Mas a observação da cena
como um todo, mostrando o espaço e a completude da ação, permite distingui-las de outras
emissões sem finalidade interlocutiva. Assim também são os gestos. Eles só assumem algum
significado se forem apreendidos no momento de seu acontecimento. Por isso, a noção de
força e movimento no Ŧ é determinante para identificar não apenas as OIs, mas também
outros aspectos da ação de linguagem. Nesta pesquisa, para a apreensão da ação de
linguagem, não se pode prescindir de movimento e esforço estruturados num espaço e num
período de tempo. Deve-se, entretanto, afirmar-se que a força de que trata essa pesquisa não é
a força ilocucionária da Teoria dos atos de fala. Lá, sugere-se acerca da intenção de dizer e,
embora essa questão não seja dispensável em qualquer análise de significado, pretende-se
aqui, deslocar um pouco o eixo desse sentido de força para o movimento que os organismos
desprendem ao se manifestarem em uma interação de linguagem, permitindo assim que
possam ser identificados como uma materialidade linguística.
55
2 O SER DE LINGUAGEM
Neste capítulo será mostrado que o objeto de estudo desta pesquisa – as operações de
interlocução – é mais do que apenas a convocação do TU por um EU: ele reflete, através de
sua estrutura e organização, a relação selfnonself, que é condição para o surgimento da
linguagem na espécie. Os pressupostos teóricos sustentarão uma noção em que a linguagem
emerge sob certas condições que a determinam, condições também determinadas no processo
interativo de seres humanos, portanto, um processo dinâmico, em que estão envolvidos vários
sistemas constituintes do humano – sensório-motor, perceptivo, atencional, emocional,
neuronal e outros.
O ser de linguagem que será considerado nesta pesquisa contém características
determinantes que o identificam como um organismo biocultural, um sistema adaptativo
complexo (SAC), resultante de muitos processos e eventos evolucionários que tornaram
possível o surgimento da linguagem. A concepção desse organismo, tal como será
apresentada, será condição fundamental para enquadrar a interlocução e, por inferência, a
linguagem como um sistema complexo biocultural.
2.1 Seres vivos
Como a proposta deste trabalho é assumir o humano como um SAC biocultural, é
necessário aludir à condição biológica de seres vivos em constante atividade. Maturana e
Varela (2010) propõem que a organização define os seres vivos, sendo a organização as
relações que têm que acontecer para que algo seja algo. “Quando estamos falando de seres
vivos, já estamos supondo que há algo em comum entre eles, do contrário não os
colocaríamos na mesma classe que designamos com o termo „vivo‟” (MATURANA;
VARELA, 2010, p. 52). Nessa afirmação, os autores estão apontando para o fato de que se
pode reconhecer alguma coisa como tal é porque se é capaz de reconhecer e classificar os
objetos que se conhece. Assim sendo, reconhecer os seres vivos implica conhecer qual é a
organização que os define como sendo uma classe. Consideram também que os seres vivos
caracterizam-se por produzirem, de modo contínuo, a si próprios e designam esse modo de
existência de organização autopoiética, proporcionada pela dinâmica celular (MATURANA;
VARELA, 2010).
Esses pesquisadores defendem que a vida é um processo de conhecimento e que os
seres vivos constroem o conhecimento interativamente, de modo que o conhecimento afeta o
56
indivíduo e este interage com o conhecimento, dando a ele um aspecto particular conforme as
condições específicas a que é submetido.
Segundo Maturana e Varela (2010), o que caracteriza os seres vivos é sua organização
autopoiética e o que os diferencia entre si não é sua organização, mas suas estruturas. Assim,
o que caracteriza os organismos vivos como unidades autônomas é sua organização
autopoiética e o que os distingue é a estrutura.
Organização autopoiética consiste em uma rede metabólica gerada pelo movimento de
ácidos e proteínas. Esse processo catalítico não ocorre de modo isolado, mas, como coloca
Thompson (2007), requer uma grande família de moléculas. Essa propriedade dos sistemas
que são biológicos, físicos e químicos, de viverem organizados em um nicho, possivelmente
deve refletir no modo de organização social humana. A linguagem mesmo é um sistema que
só emerge da ação coletiva de pessoas em interação.
2.1.1 Organização e estrutura
A noção de organização e estrutura é, para esta pesquisa, de grande importância,
porque será com base na aceitação desse par indissociável que será delineada a análise.
Baseando-se em noções da biologia e dos sistemas complexos, pretende-se mostrar que a
organização e as estruturas dos sistemas envolvidos na interlocução possuem características e
padrões que os distinguem e os diferenciam, embora não sejam objetos completamente
isoláveis, mas interconexos, seguindo a propensão do sistema para interagir e seguir adiante
(PRIGOGINE; STENGERS, 1993).
A estabilidade e mutabilidade das ações de linguagem acontecem por causa do padrão
de organização desse sistema, ou seja, há uma configuração de relações características que
definem o sistema de um modo particular. Segundo Capra (2006), o entendimento da vida
começa com o entendimento do padrão e, ainda conforme o autor, a questão antiga de
substância e forma é hoje compreendida como o estudo da estrutura e do padrão. Capra
(2006) diz que no estudo da substância pesam-se e se medem as coisas e que os padrões não
podem ser medidos ou pesados, mas devem ser mapeadas suas configurações de relações.
Nos sistemas vivos, pode-se encontrar uma configuração de padrões ordenados e,
conforme Maturana (2001), a organização define a identidade de classe de um sistema; se a
organização muda, o sistema perde sua identidade e passa a ser outra coisa. Os componentes
permanecem, mas a configuração de relação entre eles se desfaz. Maturana (2001), a esse
respeito, assume a distinção entre organização e estrutura, usando o termo organização para
57
as relações entre componentes que definem a identidade de classe de um sistema e o termo
estrutura para os componentes mais as relações entre eles. Percebe-se na distinção do autor
que a estrutura de um sistema contém o padrão, portanto padrão e estrutura não se separam.
Serem compostos por uma estrutura que mantém um padrão de organização é uma
característica dos seres vivos complexos. Maturana (2001) deduz disso que pode haver
mudanças estruturais sem perda de organização, atentando para o fato de que essa distinção
entre organização e estrutura permite indicar claramente o que é invariante num sistema e o
que pode mudar. Os termos organização e/ou padrão serão usados para se referir à relação
que determinadas estruturas estabelecem e a forma que assumem, exibindo os meios de
identificar o padrão de um sistema.
Os seres vivos humanos constroem seus sistemas de linguagem apoiados em sua
biologia e graças a sua evolução cerebral. São capazes de desenvolver padrões criativos a
partir de estruturas mais ou menos fixas. Tal como a gramática de línguas naturais que possui
um padrão definido, mas que assume significados diversos conforme a situação em que
emerge, lembrando que um sistema constitui-se mais pelo seu padrão do que pela própria
estrutura. Esse modelo de relação parece ocorrer tanto no nível do metabolismo celular, em
que as substâncias reagem provocando mudanças nas células, como no nível global do
organismo, que reage conforme percebe os estímulos do ambiente e os categoriza com base
no seu sistema de conhecimento. Assim, os estímulos podem provocar mudanças
imperceptíveis ou drásticas, dada as condições gerais da interação entre o organismo e o
ambiente, definindo, pois, as formas emergenciais de linguagem.
2.1.2 A vida em redes
A propriedade metabólica dos seres vivos coloca-os em uma condição de seres em
constante processo de mudança. Capra (2007) explica que esse metabolismo é realizado por
um incessante fluxo de energia e matéria, resultando em uma rede de reações químicas que
promovem no organismo a capacidade de se autogerar e se perpetuar transformando-se
continuamente. Essa condição biológica de permanecer em constante mudança é típica dos
organismos vivos. Segundo o autor, num organismo vivo encontram-se as seguintes
propriedades:
a) Manter-se em estado de não-equilíbrio, mantendo sua forma estável ao mesmo
tempo em que permanece em contínua transformação;
58
b) Manter-se em redes metabólicas, operando com outros organismos situados em um
determinado espaço sensível, tridimensional (CAPRA, 2007).
Essas propriedades evidenciam que o permanente estado dinâmico do ser vivo requer
que se olhe para si como ser vivo complexo sempre em adaptação às situações novas. Com
respeito a isso, Capra diz:
Uma das percepções mais importantes da nova compreensão dos sistemas vivos é o
reconhecimento de que redes são o padrão básico da vida. Ecossistemas são
compreendidos em termos de redes de alimentação(redes de organismos);
organismos são redes de células, órgãos e sistemas de órgãos; e células são redes de
moléculas. A rede é um padrão que é comum a toda vida. Onde quer que vemos
vida, vemos redes. (CAPRA, 2007, p. 6, tradução nossa).6
Viver sempre em redes é condição natural para os seres vivos, sendo que para os
humanos essa condição não é apenas biológica; humanos desenvolveram um modo simbólico
de interagir que vai além da biologia.
Compreender a linguagem como sistema adaptativo complexo permite apreendê-la em
incessante interação com outros sistemas que, por sua vez, interagem com outros sistemas que
formam a teia de processos físicos e químicos.7 Desse ponto de vista, o universo simbólico
reflete os modos de interação e ação do qual emergem formas e estas interferem na interação
e, assim, sucessivamente, formando uma cadeia que se autorregula por princípios de
retroalimentação e organização adaptativa.
O meio em que o homem vive, também entendido como ambiente, compreende o
espaço físico, geográfico, histórico, os objetos que o cercam. Os seres (pássaros, cachorros,
gatos, pombos, árvores etc.) e um imenso conjunto humano composto por amigos,
companheiros, colegas, vizinhos, transeuntes, pessoas de relações comerciais e profissionais,
enfim, um universo repleto de variadas relações. Além desses elementos imediatos, há aqueles
que influenciam o ser humano e, de certa forma, fazem parte de sua vida. São os
compositores, escritores, músicos, artistas de um modo geral, com os quais se exerce uma
espécie de relação indireta, às vezes se deixando influenciar por suas obras ou mesmo por
suas atitudes pessoais.
As questões que envolvem o que pode ser característico dos seres vivos são muito
6 One of the most important insights of the new understanding of living systems is the recognition that
networks are the basic pattern of life. Ecosystems are understood in terms of food webs (networks of
organisms); organisms are networks of cells, organs, and organ systems; and cells are networks of molecules.
The network is a pattern that is common to all life. Wherever we see life, we see networks. 7 Para a ideia de teia como está sendo concebida nesta tese, confira Capra (2006).
59
discutidas. Thompsom (2007) dedica um capítulo de seu livro Mind in life para apresentar
posições pertinentes à questão. Existem discussões importantes no que tange, por exemplo, à
amplitude da vida no planeta e à autonomia dos seres vivos. Dentre as discussões
apresentadas por diversos estudos da biologia e também de outras áreas da ciência – Lovelock
(1979, 1987, 1991), Lovelock e Margulis (2002), Morowitz (1992) citados por Thompsom
(2007) e Margulis e Sagan (2002) – está a de que a Terra seria um superorganismo vivo,
planetário. Uma questão que aparece, nesse caso, é se as matérias inorgânicas também
comporiam o grande sistema Gaia. Outra questão é o que caracteriza o ser vivo e qual é sua
autonomia em relação ao meio. Para os objetivos de Thompsom (2007), é suficiente manter
que qualquer sistema vivo é um sistema autopoiético, isto é, possui a capacidade de se
autogerar por meio de processos metabólicos. Entende-se que esses processos são importantes
para manter os organismos vivos em equilíbrio tanto biológica quanto simbolicamente. Isso
porque os modos humanos de interagir são governados por processos químicos, como é o
sistema de emoção. A esse tópico ainda será dedicada uma seção, em que se mostrará a
imbricação entre as reações químicas e seus reflexos no corpo, mediado por sistema
adaptativo de valores.
Não se pode pensar o humano sem considerar sua complexidade cotidiana biológica e
cultural, realizada, sobretudo, pela linguagem. Como seres de linguagem, conforme observa
Maturana (2001, p. 27), “o ser humano é um observador na experiência, ou no suceder do
viver na linguagem”. O autor afirma ainda que “nós, seres humanos, existimos na linguagem”
(MATURANA, 2001, p. 27). É, pois, condição inicial ser de linguagem; na relação com o
meio opera-se pela linguagem.
O agir humano promove um movimento mental e o movimento mental interfere no
agir, sendo esses movimentos os pilares da complexidade humana. São muitos os
componentes do humano que podem se entrecruzar para formar uma rede infinita de
possibilidades de agir. Os elementos advindos dos dados perceptivos, do pensamento, das
crenças, da vontade são numerosos e podem ser produzidos outros tantos a partir do
cruzamento desses dados. Essa possibilidade é o que caracteriza grande parte da
complexidade do ser humano.
2.2 Sobre a condição de seres de linguagem
Dentre os vários aspectos de transformação dos bípedes hominídeos, o crescimento do
cérebro e o desenvolvimento do aparelho fonador são marcantes. Segundo Maturana (2001),
60
dos 450 cm3, há cerca de 3,5 milhões de anos, o cérebro passou à dimensão de 1450 cm
3 no
homem atual. Essas dimensões decorreram de um processo evolucionário à medida que
emergiram novas áreas cerebrais distintas especializadas, decorrentes de novas habilidades
que foram surgindo ao longo da história humana. Segundo Darwin (1992), a gradação através
da qual cada órgão isolado e cada animal com seus conjuntos de órgãos chegaram ao seu
estado atual, provavelmente, nunca será conhecida. Entretanto, a teoria da evolução das
espécies afirma que, quando os organismos de uma espécie são expostos a condições novas
durante um longo período, algumas mutações são definidas e estendidas às gerações
posteriores pelo processo reprodutivo.
Teria sido a qualidade de bípede, conforme Edelman (1989), a responsável pelo
alongamento da traqueia, o que tornou possível os desdobramentos vocais e suas articulações
para o desenvolvimento da linguagem, tal como se encontra nos seres humanos do presente.
Como nota o autor, são processos evolucionários graduais, desenvolvidos conforme as
vantagens seletivas dos hominídeos em suas trocas cotidianas para sobrevivência, tais como
caça, acasalamento e criação da prole. Todos esses processos contribuíram para ocorrer
mutações no cérebro, no trato vocal e nas expressões faciais de modo adaptativo
(EDELMAN, 1989).
Portanto, nesta pesquisa, está se considerando que o modo de interagir por meio da
linguagem é resultado de um longo processo de evolução, que emergiu a partir de interações
recorrentes, levando o homem a construir o sofisticado sistema de códigos que define seu
modo atual de interação.
A atuação social dá-se pela linguagem, muito da vida humana é dedicado à interação
pela linguagem. Quando se quer explicar a atuação do ser humano no estágio atual em que se
encontra, não se pode prescindir de compreender a linguagem como forma de interação entre
o organismo e o meio. De fato, pode-se perceber que o organismo é um sistema, o meio é um
sistema maior e a dinâmica das interações do organismo no meio permanecem em movimento
constante.
O processo de interlocução envolve o organismo em movimento, de modo que o
sistema sensório-motor realiza movimentos linguísticos com carga simbólica baseada em
valores, emoções, crenças, culturas e atividades coletivas. O sofisticado sistema simbólico
permite aos indivíduos desenvolverem um tipo de interação especial que ultrapassa as
necessidades de sobrevivência e reprodução.
Conforme Maturana (2001), os hominídeos que habitavam o planeta, há milhares de
anos, conviviam em grupos pequenos em constante interação, coletando e partilhando
61
alimentos. Essa característica de partilhar é típica dos hominídeos. Segundo o autor, raras são
as espécies que apresentam essa peculiaridade. Ao compartilharem, segundo Maturana
(2001), os seres humanos comprometem-se uns com os outros e desenvolvem um tipo de
interação que envolve um encontro entre indivíduos. “O compartilhar é, em nós, um elemento
pertencente à nossa biologia, não pertence à cultura” (MATURANA, 2001, p. 93), assim, o
desenvolvimento humano decorre também da condição do partilhar e, em consequência, do
encontro sensual. Diz o autor: “Nós pertencemos a uma linhagem na qual se conserva o viver
em grupos pequenos em interações recorrentes, na sensualidade” (MATURANA, 2001, p.
94). Isso quer dizer que o homo sapiens não pode prescindir de viver em interação, sendo essa
uma condição natural de sobrevivência da espécie.
2.2.1 Arquitetura cerebral
A estrutura e a organização dos organismos humanos proporcionaram um desempenho
eficiente em termos de adaptação. Isso não quer dizer que nos tornamos uma espécie superior
às outras, mas o domínio de determinadas tecnologias propiciou um modo de vida em que as
relações não são apenas permeadas pela sobrevivência, mas por um modo cultural histórico
que não ocorre em nenhuma outra espécie. Essa peculiaridade tem profunda relação com o
desenvolvimento do cérebro humano, sua arquitetura e seu funcionamento, responsáveis pelo
surgimento da consciência e, enfim, da linguagem. Contudo, deve-se ressaltar que não se tem
a pretensão de apresentar uma descrição pormenorizada desse órgão, cuja riqueza de
funcionamento não foi alcançada nem pela própria neurociência, área especificamente
dedicada a ele. O que se propõe, nesta seção, é apresentar um esboço do que se assume como
organização e funcionamento cerebral, à medida que essas noções sejam importantes para
explicar como esse funcionamento manifesta-sena interlocução, objeto desta pesquisa.
Um longo processo evolutivo levou a sua morfologia atual, que compreende desde as
áreas mais antigas compartilhadas com criaturas ancestrais, como os répteis, por exemplo, até
as áreas mais recentes, exclusivas dos seres humanos, como são as áreas do córtex,
responsáveis pela ação e planejamento. Essas últimas, ligadas às funções de memória e
ordenação dos eventos no tempo. É um sistema altamente sofisticado devido à sua complexa
forma de organização.
O cérebro humano, conforme Edelman e Tononi (2000), contém cerca de cem bilhões
de células nervosas, chamadas neurônios. De acordo com Maturana e Varela (2010), essas
células possuem ramificações citoplasmáticas que permitem a elas estender-se por grandes
62
distâncias, sendo essa uma característica presente em todos os organismos dotados de sistema
nervoso. Essa qualidade proporciona a integração desse tipo de célula com outras situadas em
diferentes partes do corpo. Segundo os autores, a presença física do neurônio permite o
transporte de substâncias entre duas regiões por um caminho específico que não afeta as
células circundantes. As células neuronais, ainda segundo Maturana e Varela (2010), ligam-se
a quase todos os tipos celulares, porém o mais comum é que suas expansões cheguem a outros
neurônios. A relação entre os neurônios dá-se por descargas elétricas e também pelo
transporte de substâncias químicas, por meio de prolongamentos chamados axônios e
dendritos. O contato sináptico entre os neurônios produz influências múltiplas entre eles. As
sinapses são consideradas por Maturana e Varela (2010) como estruturas que permitem o
relacionamento entre neurônios e destes com outros tipos de células. Do contato entre
neurônios e células sensoriais e motoras forma-se a rede neuronal, que constitui o sistema
nervoso. Os autores afirmam: “Forma-se assim uma rede tal que entre as superfícies
sensoriais e motoras há sempre uma teia de interconexões neuronais, o que constitui o
conjunto que chamamos de sistema nervoso” (MATURANA; VARELA 2010, p. 174).
O entendimento de que o cérebro é um órgão que rege todo o funcionamento do corpo
deve se expandir para as questões de linguagem abordadas nesta pesquisa, porque, nesta, a
linguagem é considerada como um sistema e, como tal, é sua condição estar sempre em
interação com o meio, portanto, com outros sistemas. Assim, numa interação, atua-se com os
corpos em movimento, carregados de intenções e de valores, cercados de objetos e outros
movimentos, e tudo isso pode interferir na emergência da linguagem.
Estudos relacionados às potencialidades do cérebro podem diferir em decorrência das
especificidades de cada área disciplinar, mas mantêm como base para o entendimento do
humano o nível atômico e molecular em que se encerra o princípio vital de busca pelo
equilíbrio. Os pesquisadores das áreas de neurociência e psicologia, Gallo e Furnman (2000),
partem do princípio de que a cognição realiza-se pela expressão molecular em um nível
subatômico, cujos princípios fundamentais são o padrão e a estrutura dos sistemas. Ao longo
de todo o primeiro capítulo do livro The Neurophisics of Human Behavior, os autores Gallo e
Furnman (2000) desenham uma concepção da arquitetura tal como Edelman e Tononi (2000).
Ainda que a tônica daqueles se volte para modelos de processamento da informação, para eles
os processos complexos partem de submodalidades para a atividade global. “Certas
organizações de linhas do tempo e submodalidades se tornaram possíveis ou impossíveis
conforme o resultado das alterações da morfologia celular” (GALLO; FURMAN, 2000, p. 27)
decorrente de processos químicos.
63
Ainda segundo Gallo e Furnman (2000), a repetição de modelos e ausência de
modelos perceptivos – considerados pelos autores como dados informacionais – produzem
profunda reorganização das redes de informação no cérebro humano. As experiências novas
modificam as velhas e, assim, a arquitetura cerebral mantém-se em constante mudança e as
redes neurais adaptam-se associando estímulos novos a estruturas já existentes, produzindo
novas estruturas.
Se se considerar que em cada neurônio há milhares de terminações sinápticas de outras
centenas de neurônios e que estes conectados influenciam-se, reciprocamente, por meio de
transporte metabólico, chega-se a um arranjo infinito de combinações. As atividades motora e
sensorial geram mudanças nas células neuronais, e estas, alteradas, afetam o comportamento
motor e sensorial. Uma correlação entre as superfícies sensoriais e motoras indicam que o
comportamento externo de um organismo tem sua gênese no interior do sistema nervoso.
(MATURANA; VARELA, 2010). Essa organização parece refletida no modo como se realiza
as operações de linguagem, especificamente a interlocução, que se mostrará como um sistema
realizado por submodalidades sensoriais, motoras, cognitivas e simbólicas. Os seres humanos
em operações de linguagem ativam diferentes sistemas, de forma que as emissões verbais
emergem moduladas por gestos, expressões faciais e movimentos gerais.
A globalidade do funcionamento neuronal indica que a ação humana resulta de
processos originados na atividade distribuída entre partes do cérebro, do corpo e da
percepção, uma vez que sinais provenientes do ambiente e do interior do organismo são
captados, processados e categorizados, passando a fazer parte da ação como um todo.
2.2.2 Noções da Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais
A Teoria da Seleção dos Grupos Neuronais (TNGS), do neurocientista Edelman
(1987, 1989), parte da seguinte premissa: o mundo não é compartimentado em objetos e
eventos que as criaturas viventes reconhecem e assimilam. Em princípio, conforme Edelman
(1987), o mundo é um lugar não rotulado, cujos valores negativos e positivos atribuídos a
objetos e eventos não são absolutos. Um sistema nervoso ricamente estruturado como o
humano possui, conforme Edelman (1987), estrutura e função que permitem a ocorrência de
categorização perceptual como base para o comportamento adaptativo, envolvendo
aprendizagem e significação.
De acordo com a teoria de Edelman (1987), o cérebro é dinamicamente organizado em
populações celulares, contendo redes variantes selecionadas por diferentes meios. Durante o
64
desenvolvimento e comportamento dos indivíduos, formam-se as unidades de seleção, que
“são coleções de centenas de milhares de neurônios fortemente interconectados, chamados
grupos neuronais, que agem como unidades funcionais” (EDELMAN, 1987, p. 5). A
atividade celular dos grupos neuronais faz com que eles se organizem especializando ou
deixando de existir conforme o indivíduo realiza sua experiência no mundo. Por isso, explica
Edelman (1987), não há dois indivíduos com conectividade idêntica em regiões
correspondentes do cérebro, e isso os identifica como seres únicos, possuidores de um e
apenas um ponto de vista do qual avaliam o mundo ao seu redor.
Para Edelman (1989), a existência da espécie humana compreende sistemas inter-
relacionados que, por sua vez, compreendem o metabolismo de funções básicas, como
batimentos cardíacos, respiração, reflexos básicos motores, sistema imunológico,
comportamento de prazer e dor em função do bem-estar, ligados ao córtex primário; e as
funções de memória, de consciência do EU e do tempo não-presente, ligados à consciência de
ordem superior. Assim, os sinais que o cérebro identifica e que interferem em sua estrutura
provêm de categorizações internas vindas dos próprios órgãos e de categorizações de sinais
externos vindos do mundo, posteriormente internalizados e processados na atividade cerebral.
Portanto, para o cérebro, mesmo os sinais que são originados por estímulos do mundo
“exterior” são processados por meio de circuitos e provocam mudanças na estrutura neuronal.
A TSGN, de Edelman (1989), propõe: os mecanismos estruturais do cérebro agem
sobre coleções de centenas de milhares de neurônios interconectados cujas características são
afetadas pela história desenvolvimental e funcional e pela natureza dos sinais que recebem em
qualquer tempo. Dessa atividade emergem estruturas dinâmicas que podem ser consideradas
pressupostos fundamentais para teoria: a) seleção desenvolvimental – os grupos neuronais
possuem uma dinâmica proveniente da morfologia do organismo, desenvolvida ao longo de
sua história evolucionária, e ligada à dinâmica molecular das células neuronais. Esse
movimento resulta na variação neuroanatômica em dadas regiões, responsável pela formação
dos repertórios primários8 mais ou menos fixos; b) seleção experiencial – os grupos neuronais
são formados por meio de sinais advindos da experiência do organismo com o ambiente e
formam uma grande variedade de conexões dentro e entre os grupos neuronais. Essa etapa
leva à formação de circuitos variantes constituintes do repertório secundário; c) mapeamento
8 Entende-se por repertórios primários as especializações dos grupos neuronais relativas a funções genéticas
ligadas a manutenção da vida do organismo.
65
reentrante – consiste na conectividade de grupos, da qual emergem mapas ligando lâminas9
receptoras sensoriais a particulares regiões do sistema nervoso. Nessa etapa, modelos de sinal
do mundo governados por leis espaçotemporais são distribuídos dentro de áreas mapeadas,
possibilitando a interconexão dessas pelo processo de reentrância (EDELMAN, 1989).
Explicando novamente, reentrância é um processo de sinalização paralela que ocorre
temporariamente entre mapas de conexões anatômicas diferentes. Essas correlações, dirigidas
inicialmente por estímulos do tempo e espaço vindos do córtex primário, são ligadas a grupos
neuronais em diferentes áreas cerebrais. Recebendo estímulos disjuntos, estruturas reentrantes
fortalecem conexões entre mapas e levam ao aparecimento de mapas de ordem superior,
ligados a funções de categorização e generalização, atividades necessárias ao aprendizado e à
linguagem.
Essa morfologia cerebral é o que permite que se categorize o mundo do modo como se
faz. Para Edelman (1989), a categorização perceptual é a discriminação adaptativa de um
objeto do fundo ou de outros objetos, e a generalização refere-se ao tratamento, em um
contexto dado, de uma coleção de objetos em relação a outros. Assim, o processo de
categorização compreende o reconhecimento dos objetos e sua organização em forma de
conhecimento.
Essas noções, apesar de abordadas de modo bem simplificado, são importantes porque
apresentam os processos internos cerebrais a partir dos quais são realizadas as ações dos
organismos em sua interação com o ambiente e, consequentemente, os processos de
linguagem que emergem dessa interação.
Faz-se ainda necessário apresentar noções relativas aos processos envolvidos na
consciência e formular uma base para o entendimento da linguagem como um sistema
complexo. Sistema esse que é consequente ao modo como se desenvolvem as ações de
interação, levando em conta um corpo físico e mental que age de acordo com seus estados de
consciência. Assim, as próximas seções serão dedicadas a apresentar as noções de consciência
e memória necessárias à pesquisa.
2.2.3 Consciência
Por razões óbvias não se tem a pretensão de discutir com profundidade questões tão
9 De acordo com Edelman (1989, p. 49), lâminas perceptivas podem ser consideradas flashes sensoriais que o
organismo conta como estímulos do ambiente, processados que refletem na atividade neuronal. Pode também
se tratar de qualia, tal como em Edelman e Tononi (2000, p. 157-175).
66
antigas, extensas e complexas como a consciência. Entretanto, é necessário apresentar a noção
do que, nesta pesquisa, está sendo entendido por consciência e memória.
Resultante de processos profundamente entrelaçados ao funcionamento do sistema
nervoso e aos estados conscientes, as unidades simbólicas requerem atenção conjunta para um
ponto. Sobre os processos conscientes, neste trabalho, serão assumidas as proposições de
Edelman e Tononi (2000), segundo as quais a consciência deriva de atividade neural
distribuída. No livro A Universe of Consciousness: How Mater Becomes Imagination, os
autores defendem a posição de que a consciência resulta de uma atividade integrada por várias
regiões do cérebro e, devido à sua plasticidade, em qualquer tempo, experimenta-se um estado
particular de consciência, selecionado entre bilhões de estados possíveis que podem levar às
mais diversas reações comportamentais.
Em relação aos mecanismos neurais conscientes, Edelman e Tononi (2000) assumem
três premissas básicas, que norteiam os processos neurais subjacentes à experiência
consciente. A primeira é de que a experiência consciente está associada com a atividade
neural, distribuída, simultaneamente, através de grupos neuronais em muitas regiões do
cérebro, não sendo, portanto, uma prerrogativa de uma única área cerebral. A segunda
premissa diz que a experiência consciente sustenta-se por meio de um grande número de
grupos neuronais, interagindo rápida e reciprocamente através de processos reentrantes. Esses
processos referem-se a acessos que permitem a conexão entre áreas diferentes. Sem esses
acessos, a consciência poderia ficar limitada ou mesmo ser bloqueada. A terceira é de que os
padrões de atividade dos grupos neuronais que sustentam a experiência consciente devem
mudar constante e suficientemente, diferenciando-se uns dos outros. Se um grande número de
neurônios no cérebro acenderem do mesmo jeito, a diversidade de repertórios fica reduzida e
se configuram estados como os de sono profundo ou ausência de consciência.
Consciência, para James citado por Edelman (1989), não é uma coisa, mas um
processo. É pessoal, variável, contínua e lida com objetos selecionados independentes de si
mesma. Ou seja, se há um processo em que o self interage com algo que não é si mesmo,
então, há consciência.
Edelman (1989) diz ainda que a consciência está em algum ponto entre a vontade e a
decisão. Além disso, afirma que a consciência como processo organiza-se numa sequência
temporal como pulsos que se sucedem. Um exemplo empírico que dá indícios de que essa
teoria esteja certa é que se pode mudar o foco do pensamento de uma maneira ilimitada, e isso
interfere no modo como se constroem os sistemas simbólicos com que o ser humano interage.
Para Damasio (1999), não há consciência sem cérebro; para ele, consciência é um
67
processo biologicamente determinado. Segundo o autor, os seres humanos não apenas são
conscientes da passagem de eventos, mas são conscientes de sua própria consciência de seres
participantes da vida. Os acontecimentos são processados e considerados e os seres humanos
têm plenos sentimentos conscientes sobre eles. Damasio (1999) considera também que o
sistema de consciência dos humanos inclui emoções e sentimentos, porque esses são aspectos
decisivos para sua sobrevivência e fornecem vantagem adaptativa à espécie.
Damasio (1999) considera, tal como Edelman (1989), a existência de duas camadas de
consciência nos humanos: a consciência do self no presente, que ele chama de núcleo da
consciência – também pertencente a muitas outras espécies animais, como os mamíferos, por
exemplo –, e a consciência superior estendida – consciência do self que se refere a si mesmo
em tempos e lugares não-presentes –, que possui níveis relativos a habilidades de linguagem,
ao sentido de passado e presente e ao sentido da criatividade artística e científica.
Essa noção de consciência sugere uma decisão, isto é, o organismo seleciona um
objeto em conformidade com sua vontade e o distingue entre uma coleção efêmera. A
distinção entre os objetos só se realiza mediante um sistema de classificação e generalização,
pelo qual os objetos são destacados de seu entorno e, em seguida, relacionados a outros
objetos. Edelman (1989) denomina esse processo de categorização.
A atividade de categorização está envolvida com a identificação e discriminação de
objetos percebidos e é fundamental para o agir humano e interagir no mundo. É preciso que se
saiba diferenciar o fogo da água. É a capacidade cognitiva que permite se conhecerem as
características dos objetos e, a partir disso, orientar as ações no espaço. Não se coloca a mão
sobre a chama do fogão, mas se permite colocar a mão sob o fluxo de água que sai da torneira. O
que se faz tomar essa decisão é o reconhecimento que se tem das propriedades de cada objeto e o
modo como se pode relacionar com ele. Isso mostra como o processo de experiência consciente
depende de processos que são anteriores a ele, como a percepção e atenção, pois se categorizam
os objetos que são percebidos.
Importante a ser apresentada sobre a consciência é a noção de consciência primária e
de ordem superior, estabelecida por diversas pesquisas neurocientíficas (EDELMAN, 1987,
1989; EDELMAN; TONONI, 2000; MARCHETTI, 2010). A primeira é ligada a
comportamentos biológicos de categorização de objetos e eventos, e a segunda à memória,
relação selfnonself e linguagem.
Edelman (1989) aponta as condições de surgimento da consciência primária. Segundo
o autor, uma delas seria a emergência de conexões entre várias áreas cerebrais, responsáveis
pela formação de conceitos – atribuição de valores a objetos e eventos – e áreas ligadas aos
68
sistemas de valores – ligados à condição de bem-estar, governados pelas reações hedônicas do
organismo. Outra seria a emergência de uma forma de memória conceitual definida por
categorização e valor, resultante das conexões entre diferentes áreas. Essa memória relaciona
categorias e valores formando sistemas interoceptivos – que são sinais internos, advindos do
interior do organismo na luta pela homeostase – e de sinais exteroceptivos – gerados na
relação do organismo com o ambiente. A terceira condição para o referido surgimento seria a
evolução de circuitos especiais para realizar uma sinalização reentrante, ligando o
componente de memória categoria-valor (conceitual) com o componente da categorização dos
estímulos percebidos no tempo real.
A consciência de ordem superior, por sua vez requer, além dos componentes relativos
à consciência primária, uma memória de longo termo e estruturas neuronais que permitam a
distinção selfnonself, de forma que o organismo possa distinguir-se do ambiente e ter sobre si
uma autoconsciência. Edelman (1989) explica que a categoria self permite ao organismo fazer
discriminação entre ele e outros indivíduos, criando, assim, um sistema de valores
simbolizados por formas construídas na própria interação. Pode-se notar na concepção do
autor que a consciência de ordem superior constitui-se por um processo que inclui a
consciência de estar consciente, a construção de um sistema de valores simbolizado de
diversas formas e a existência de uma estrutura de memória de longo termo, pela qual os itens
simbólicos são organizados em estruturas neuronais – obviamente não de modo estático – e
recuperados para fins interativos ou, para usar o termo de Edelman (1989), para fins
comunicativos.
2.2.4 Memória
A noção de memória10 é considerada, neste trabalho, como uma capacidade adaptativa
adquirida ao longo do processo evolucionário e relacionada com a consciência primária e a
consciência de ordem superior. Pode-se observar no quadro teórico de Edelman que a
consciência primária é um processo dependente de conexões entre áreas cerebrais, formando
mapas relacionados à categoria e ao valor. Identificados, os objetos e eventos passam a
compor o sistema conceitual por que o organismo baliza-se para planejar e realizar suas ações.
Assim, a consciência primária responde pela manutenção do organismo vivo, em condições
10
A memória para Edelman (1989) não é um depósito de informações ao qual o indivíduo recorre quando quer
recuperar dados, mas é um processo ativo de recategorização de estímulos já estabelecidos em mapas
interconectados.
69
de bem-estar, o qual precisa da memória para mantê-lo prevenido com o que vai encontrar no
seu caminho. O universo de conceitos organizados serve como um guia para a manutenção do
bem-estar, ou seja, para a busca da homeostase. Isso indica que a memória é responsável por
manter o sistema conceitual através do qual o organismo orienta-se para realizar suas ações.
Todos esses processos ocorrem em termos de circuitos neuronais formados por grupos
de neurônios que interagem de uma maneira muito plástica. Edelman (1989) afirma que a
consciência primária resulta da interação em tempo real entre memórias de categoria-valor e
estímulos do mundo presente, categorizados por mapeamento global. Esses estímulos são
componentes da consciência primária antes que esses mapeamentos sejam alterados por
estados internos e passem a ser categorizados na memória como uma categoria-valor. “É a
comparação discriminativa entre uma memória determinada pelo valor envolvendo o sistema
conceitual e o fluxo de atuais categorizações perceptuais que gera a consciência primária de
objetos e eventos” (EDELMAN, 1989, p. 155, tradução nossa).11 Portanto, a memória é
condição para a consciência e o é, certamente, para a linguagem, pois ela pode ser entendida
como estruturas neurais que mantêm certas regularidades, as quais, por sua vez, poderiam
corresponder ao sistema conceitual pelo qual o organismo orienta-se para se manter vivo e
bem.
Pode-se notar que a consciência primária está ligada aos sinais do presente e à
memória e, por isso, ao passado. Entretanto, a consciência de ordem superior, como já foi
visto, está relacionada com a capacidade de fazer planos e de se referir ao passado por meio
da linguagem, portanto, uma atividade prospectiva, que se desenvolve em sucessão linear no
tempo. Edelman (1989) sustenta que a consciência de ordem superior não pode emergir sem a
atividade de um sistema especial de memória para realizar a distinção selfnonself no sentido
social. Quando Edelman (1989) reforça que se trata de uma distinção no sentido social e não
biológico, ele quer dizer no sentido das interações simbólicas, em que conceitos são
categorizados e trocados entre os coespecíficos. Para o autor, a linguagem é a maior evidência
da consciência de ordem superior, é uma habilidade para modelar estados internos, livres do
tempo real e referentes ao passado, presente e futuro (EDELMAN, 1989). Na perspectiva da
linguagem, é possível verificar o quanto a memória é fundamental, pois ela permite referir
conceitos que não estão no tempo real, mas que estão em um espaço cognitivo constituído a
partir de estruturas neuronais relativamente constantes, porém sujeitas a desgastes e até as
transformações advindas do uso.
11
It is the discriminative comparison between a value-dominated memory involving the conceptual system and
current ongoing perceptual categorization that generates primary consciousness of objects and events.
70
Por último, é importante mencionar que a área da história, disciplina que tem como um
dos principais objetos de estudo a memória, vem acatando a ideia de que memória é um
objeto construído a partir de um ponto de vista que a ela é crucial para determinar as próprias
características. O historiador Le Goff (2003) assume que a memória, como capacidade de
conservar certas informações, remete o ser humano a um conjunto de funções psíquicas pelas
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa
como passadas. O autor defende que, desse ponto de vista, o estudo da memória envolve
psicofisiologia, neurofisiologia e biologia, evocando traços e problemas da memória histórica
e social. Ele também observa que as teorias que aceitam ideias de memória como uma
atualização de vestígios mnemônicos foram abandonadas em favor de ideias mais complexas
da atividade mnemônica do cérebro e do sistema nervoso.
Na visão de Le Goff (2003), existe uma tendência recente de aproximar a memória de
fenômenos diretamente ligados à esfera das ciências humanas e sociais. Assim, considera-se
que o comportamento narrativo é um ato mnemônico fundamental, com a finalidade de
transmitir informações na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui seu motivo.
Dessa forma, a linguagem é aceita como uma extensão das possibilidades de armazenamento
da memória que pode transpor os limites físicos do corpo.
Além de admitir que memória seja um conceito amplo que se estende por várias áreas
das ciências, como a noção de memória biológica para a transmissão genética, Le Goff (2003)
assume que a evolução do mundo contemporâneo caminha na direção de um mundo acrescido
de memórias coletivas, de forma que o nível individual enraíza-se no social e no coletivo.
Uma questão fundamental em relação à memória vista pela perspectiva histórica é: primeiro,
seu caráter auto-organizador que, conforme Le Goff (2003), consiste no fato de que os
vestígios registrados em centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico
organizam-se como estruturas que se integram a atividades perceptivo-cognitivas; segundo,
sua força social e coletiva que penetra na ação individual fazendo com que a reconstrução de
eventos e objetos seja sempre um apelo a uma dada cultura, que molda seus indivíduos e é
moldada por eles, de forma que a memória seja sempre acrescida de atualização que se
processa no momento da interação de linguagem.
Vista dessa forma, a memória é um processo e não uma coisa e, por isso, está sempre
sujeita àquele que a cria e às condições em que é criada. Essa é uma questão importante,
porque, embora o objeto deste trabalho não seja o processo de categorização e memória, esses
são elementos determinantes na interação de linguagem, visto que podem influenciar as formas
durante a interação ou mesmo alterar seu curso ao ponto de transformá-la completamente.
71
2.2.5 Aparato sensorial
Nos seres humanos, a interconexão entre os sistemas componentes é facilmente
observável, a começar pela constituição das células animais e dos processos por que passam
os diversos sistemas (respiratório, digestivo, etc.), formando um organismo cujos órgãos são
integrados e permanecem em constante interação. A dinâmica dos seres vivos, segundo
Larsen-Freeman e Cameron (2008), é prospectiva. As autoras chamam a atenção para o fato
de que sistemas dinâmicos mudam com o tempo e de que os estados futuros dependem do
estado presente. O modo de funcionamento do organismo, baseado em forma de redes
dinâmicas percepto-sensoriais e simbólicas, sempre em renovação, indica uma tendência
dinâmica das organizações humanas. Desde a organização espacial sensório-motora até as
operações abstratas de raciocínio, tudo constitui uma rede multidimensional que resulta da
atividade do organismo ao interagir no ambiente. Ao agir, o organismo constrói numerosas
imagens que computa em maior ou menor escala e, dependendo do foco de sua atenção12, ele
pode descartar ou assimilar informações.
Percebe-se o mundo a partir de sensores, que podem ser imagens visuais, sons,
sensações térmicas, odores, sabores, emoções, enfim, sensações e percepções que emergem
do processamento cerebral. As sínteses das percepções tornam-se imagens e somam para o
processamento da ação. Arnheim (2008, p. 5) diz que “os mesmos princípios atuam em todas
as capacidades mentais porque a mente sempre funciona como um todo. Toda percepção é
também pensamento, todo raciocínio é também intuição, toda observação é também
invenção.” Não há outra forma de se viver sem ser interagindo no ambiente, e a dinâmica da
interação coloca o ser humano em um processamento contínuo de informações advindas de
naturezas diversas. Arnheim (2008, p. 9) afirma que “o ato de olhar o mundo provou exigir
uma interação entre propriedades supridas pelo objeto e a natureza do sujeito que observa”,
assim, realizam-se inferências ao se organizar sínteses de modo particular, conforme o
percurso de cada pessoa no ambiente. Schaefer-Simmern citado por Arnheim (2008, p. 9)
assegura que “a mente na luta por uma concepção mais ordenada da realidade procede de um
modo legítimo e lógico desde padrões perceptivamente mais simples aos mais complexos”.
Isso indica que é uma condição natural sempre se estar buscando organizar e dar significado
para o mundo circundante.
12
Também o sistema de atenção obedece a princípios peculiares dos quais dependem a ação do indivíduo no
espaço. Dependendo do foco, o resultado de uma interação pode alterar-se de diversas maneiras. Para saber
mais sobre essa questão, conferir Oakley (2009).
72
As interações físicas no meio em que se vive permitem o surgimento dos significados.
Essa é a proposta de Lakoff e Johnson (1980) no que diz respeito à relação entre a orientação
motora e sensorial e a construção dos significados. A projeção corporal no espaço e no tempo
e o inventário experiencial constituem a corporalização como origem do processo de
linguagem. Também a dinâmica que as pessoas realizam durante a interação influencia o
surgimento de categorias para discriminar objetos e eventos.
Para Lakoff e Johnson (1980, p. 3) “nosso sistema conceitual é amplamente
metafórico”, isto é, constroem-se sistemas de conceitos baseados em experiências e essas vão
sendo redimensionadas a cada situação. Assim, o modo como se está inserido no mundo
determina o modo como se constrói a linguagem, e isso reflete a maneira como se organiza a
experiência e como se percebem e se categorizam os objetos e eventos circundantes.
2.2.6 Sistema motor
Johnson (2007), Lakoff (2008), Lakoff e Johnson (1980, 1999), Gibbs (2005) e muitos
outros autores defendem que a linguagem simbólica origina-se da ação do corpo no ambiente.
De fato, existem muitas comprovações de que a criação de conceitos abstratos origina-se na
orientação do corpo no espaço. Assim, conceitos como o de subir, por exemplo, estendem-se
em sentido metafórico para outros domínios, como na ideia expressa em a carne subiu,
relativa ao preço da carne, e se remetem a um código numérico criado como artefato para
referir-se a direções no mundo material. A ideia de categorias como contêineres, domínio
fonte, domínio alvo, o amor é uma jornada, dentre muitos outros tipos de relações, segundo
os autores, estabelecem-se entre o mundo espacial, geométrico, tridimensional, experienciado
e o mundo mental dos organismos em interação. Dessa interface emerge o mundo conceitual,
criado a partir da realização linguística. A habilidade para agir em reação a um objeto ou
evento depende da seleção que o organismo faz dos elementos que categoriza. Segundo
Edelman (1989), a categorização ocorre por causa de múltiplas interações entre mapas locais
resultantes de atividade sensório-motora. A coordenação dos movimentos, por sua vez, resulta
do processo de atenção e este resulta de uma variação de grandezas no campo perceptivo e no
campo volitivo e emocional. Isso sugere que planos motores estão ligados à atenção e esta à
consciência do corpo no espaço.
A importância de considerar o corpo em movimento como base para a criação da
linguagem tem sido uma tendência forte nas linguísticas cognitivas. Lakoff e Nunez (2000)
aceitam que programas neurais de controle motor possuem a mesma estrutura para a
73
inferência racional de aspectos dos eventos percebidos. Os autores apresentam um modelo da
ação humana baseado na conexão entre processos neurais, desenvolvido por Narayanan
(1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000).
Segundo Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000), os programas neurais
do controle motor possuem a mesma superestrutura: condições e disposição para realizar a
ação corporal; começo do processo, início da ação; realização do processo principal;
interrupção e recomeço; repetição e continuidade; checagem do cumprimento do objetivo;
realização de algo necessário para completar a ação; resultados e consequências que a ação
realizada provoca. Essa estrutura da ação é, segundo o autor, a mesma estrutura usada para
raciocínios ligados a eventos.
O uso do conceito evento, para Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000),
está ligado às condições globais de interação. Neste conceito, estão o mundo perceptivo dos
falantes – que compreende o corpo no espaço, partilhando perspectivas que se remodelam a
cada tempo -, e o mundo mental - que possui estruturas abstratas infinitamente plásticas. A
ideia de evento do autor está ligada ao aspecto global que reúne as categorias de pessoa,
tempo, espaço e modo, de forma que a percepção simultânea dessas categorias acrescenta a
elas a dinâmica do processo e sua permanente reorganização. Os eventos construídos podem
permanecer no foco da percepção ou desaparecer para que surjam outros e mais outros.
Os resultados de Narayanan (1997) citado por Lakoff e Nuñes (2000) evidenciaram
que o modo como se organiza e se constrói o mundo físico e biológico estrutura-se da mesma
forma que o raciocínio inferencial. Isso leva à evidência de que a linguagem emerge na ação e
esta se modela conforme uma série de restrições dos subsistemas humanos como arquitetura
cerebral, atenção, percepção, emoção. Portanto, a linguagem reflete o evento e manifesta suas
qualidades a partir de formas diversas que se revelam nos aspectos gramaticais e modais
somados aos aspectos advindos da relação dos organismos no espaço de interação.
A aceitação de que a língua molda-se na linguagem do corpo em movimento liga o
processo de construção de linguagem à atividade atencional, pela qual o ser humano
movimenta-se e que, segundo Marchetti (2010), provém de uma energia nervosa. Segundo o
autor, essa energia nervosa é responsável pela qualidade fenomênica e pelo aspecto seletivo
da consciência. O órgão da atenção é a fonte da energia nervosa do organismo que permite a
ele operar atencionalmente, mas se deve deixar claro que não se trata de um órgão com limites
definidos, e sim de estruturas nervosas baseadas em esquemas inatos de ação e memória de
longo termo, que fornecem as instruções para a percepção, movimento, ação e interação.
Para Marchetti (2010), a atividade atencional é o núcleo do sistema perceptual e
74
interfere na variação do estado da energia nervosa, que constitui a consciência pela qual a
pessoa emerge e forma o esquema do self de acordo com princípios de sobrevivência, “opera
a fim de continuar operando” (MARCHETTI, 2010, p. 17). O esquema do self, nesse caso,
equipa o organismo com a capacidade de se autorregular e encontrar o melhor meio de se
adaptar, criando estratégias e metas. Isso constitui a passagem do consciente para a
autoconsciência - que é a consciência dos limites operatórios do organismo -, que monitora a
atividade do organismo e, conscientemente, percebe seus próprios movimentos, operações,
gestos etc. A percepção consciente de sua atividade informa o organismo sobre suas
dimensões, limites, fronteiras e possibilidades de seu corpo; são essas, segundo o autor, as
orientações para o esquema do self.
Na visão de Marchetti (2010), a noção de atenção, percepção e consciência mostra-se
indissociável. O autor afirma que os limites da pessoa tornam-se possíveis devido às
sensações e aos sentimentos que o organismo tem. Se a ação flui, o organismo sente-se livre e
positivamente estimulado; se algo dificulta ou impede sua atividade, ele tem que fazer esforço
para superar a dificuldade e, assim, gasta sua energia nervosa para superar a dor e frustração.
É exatamente o limite do esforço e da dor que estabelece os limites da pessoa e a diferencia de
outras e do ambiente. “As fronteiras de seu corpo são determinadas pelos sentimentos de dor e
frustração que ela tem quando age. [...] A pessoa é sua ação” (MARCHETTI, 2010, p. 17).
Essas convicções realçam o vínculo existente entre os processos motores e os processos de
criação de linguagem e reforçam o que já foi exposto a respeito das convicções dos autores
citados no início desta seção: a linguagem emerge da ação do organismo no ambiente.
Presume-se, assim, que os processos de criação verbal emergem de ações, intenções, atenção,
consciência, enfim, do organismo humano com todas as suas propriedades engajado nas
interações.
Para finalizar esta seção, ressalta-se Johnson (2007), para quem o significar emerge da
mais baixa consciência da consciência. Segundo ele, o significado vem do encontro corporal
com o mundo antes mesmo que se aperceba deste. Portanto, para o autor, abaixo das palavras
e das sentenças, existem experiências que dão a elas aspectos só apreensíveis no Ŧ.
2.2.7 Sensação e percepção
Para a construção do conhecimento dispõe-se de um aparato orgânico sensorial que
compreende os sistemas visual, auditivo, olfatório, tátil e gustativo, organizados no corpo
físico, que se constitui como um ponto de vista para as sensações, percepções e emoções.
75
A discussão acerca das propriedades do sentir e do perceber não é recente. Condillac
(1984), em sua obra de 1754, assume que a origem do conhecimento está nas sensações. Para
Condillac (1984), os sentidos são a causa ocasional das sensações das quais nasce todo o
sistema do homem, no qual as partes são ligadas e se sustentam mutuamente. Decerto que o
autor não se baseava na mesma epistemologia que guia hoje os estudos da cognição humana,
entretanto, suas conclusões coadunam-se com as da atualidade, uma vez que, segundo
concepções atuais – a ciência cognitiva moderna, as teorias da complexidade, as noções de
corporalização são alguns exemplos – o organismo humano é um sistema formado por
subsistemas interdependentes que se auto-organizam a partir das sensações advindas da
interação entre organismo e meio.
Condillac (1984) afirma também que o ser humano conduz sua atenção de um objeto a
outro e percorre todas as sensações que esses produzem sobre ele. Desse modo, o ser humano
descobre, por uma série de comparações e julgamentos, as relações entre tais objetos; o
resultado desses julgamentos, por sua vez, é a ideia que forma sobre cada um deles.
No entender de Condillac (1984), a sensação, após ter sido atenção, comparação,
julgamento, torna-se reflexão. As concepções do autor assemelham-se às ideias recentes de
que é por meio da atenção que se dispensa aos objetos, na interação com o meio, que se
constroem os modos de conhecer o mundo. Quando se percebe uma dada situação, essa é
apreendidade forma global, ainda que determinados detalhes sejam mais nítidos que outros, a
depender da atenção que se imprime a eles.
Os sensores são requisitos básicos para a percepção. O olho, por exemplo, possui uma
conformação específica para perceber estímulos diversos. A visão é um complexo sistema que
compreende a percepção de movimentos, formas, distâncias, contornos, cores, com grupos de
neurônios especializados para perceber tais estímulos. Segundo Meyer (1997), a percepção
das cores seria primordial para reconhecimento de distâncias, contornos, profundidades, pois
oferecem um contraste para a definição dos objetos. Dentre as células retinianas, os
bastonetes, em número de cem milhões em cada olho, veem a luz branca de baixa intensidade,
e os cones, em número de sete milhões, reconhecem as cores devido aos seus pigmentos
vermelhos, verdes ou azuis. A retina possui elementos sensíveis à luz natural e outros
sensíveis a diferentes comprimentos de onda coloridos. Essa qualidade do olho humano é
apenas um detalhe de como o organismo é dotado de uma infinidade de particularidades que o
torna sensível aos diversos tipos de estímulos (MEYER, 1997).
A audição e suas especificidades também constituem um modelo sensorial particular e
detalhado, cuja funcionalidade associa-se a grupos neuronais específicos. Segundo Crowder
76
(1994), são vários os padrões de memorização auditiva e esses envolvem áreas cerebrais
distintas. Assim, pode-se ter uma ideia de quão complexos são os processamentos do aparato
sensório-motor humano que se mescla com os sistemas de valores e reflexão, analisados e
sintetizados por meio de um conjunto de operações globais que modelam todo o
processamento cognitivo.
O ambiente, a presença de luz, de sons, odores, os objetos que se alcançam e que se
selecionam através do sistema de atenção fazem parte do processo perceptivo, ou seja, o que
se apreende nem é definitivo nem exato, uma vez que tanto a situação quanto os significados
mantêm-se em dinâmica constante. Não obstante é preciso considerar que além de se
perceberem os estímulos do ambiente também se percebem estímulos oriundos do corpo e da
mente. O pensamento, o raciocínio, a dor podem ser exemplos de como a percepção volta-se
para o interior, indicando que perceber é uma atividade dinâmica.
Sensação e percepção são integrantes do processo de categorização, ou seja, são
componentes para a cognição Do contato com o ambiente surge o conhecer, e o mundo
apresenta-se à medida que se pode distingui-lo e o organizar em padrões mais ou menos
estáveis, pelos quais o ser humano orienta-se no decorrer das enações13.
2.2.8 Emoção
Apesar de ser um princípio de governabilidade do humano, esse tema, segundo
Johnson (2007), não mereceu a devida atenção dos estudiosos. O autor afirma que se podem
examinar centenas de explicações para o significado, especialmente em filosofia analítica da
mente e da linguagem, sem encontrar um tratamento sério para a temática da emoção e do
sentimento.
De acordo com Johnson (2007), a neurociência cognitiva compreende que as emoções
e os sentimentos são os meios pelos quais o ser humano entra em contato com o mundo e se
torna capaz de fazer sentido e viver nele. O autor sustenta que as emoções são o fundamento
da preservação da vida.
Segundo Damasio citado por Johnson (2007), a existência da espécie inclui sistemas
inter-relacionados que compreendem o metabolismo das funções básicas, como os batimentos
cardíacos, respiração, etc.; os reflexos básicos motores; o sistema imunológico;
comportamento de prazer e dor em função do bem-estar; os desejos e motivação; as emoções;
13
O termo enação, sugerido por Varela, Thompsom e Rosch (1991) citado por Johnson (2007, p. 118), refere-
se à dinamicidade dos processos de experiência.
77
e os sentimentos. Juntos, esses sistemas compõem um sistema interconectado de
monitoramento e processos de reação, desenvolvido ao longo da evolução para manter o ser
humano adaptado ao ambiente.
Para Johnson (2007), esses processos são, na maioria das vezes, inconscientes e se
constituem em experiências determinantes para moldar os valores humanos. “O que é
significativo para nós, e como é significativo, decorre fundamentalmente do monitoramento
de nossos estados corporais conforme experienciamos e agimos no mundo.” (JOHNSON,
2007, p. 56). Na vida diária, está-se sempre avaliando e dando sentido para o ambiente
circundante. É importante considerar que o ambiente está sempre mudando, que também o ser
humano está, frequentemente, em contato com situações que, apesar de apresentarem uma
porção estável, apresentam sempre algo de novo e que isso o mantém em permanente estado
de avaliação e de produção de sentido.
Damasio citado por Johnson (2007, p. 59) define parâmetros para caracterizar a emoção:
a) reações químicas neurais que ocorrem no ser humano b) diante de determinados
estímulos observáveis ou mentais, c) aos quais o cérebro reage, d) provocam uma
mudança corporal em termos físicos e de estrutura cerebral, e) orientada para
promover as circunstâncias de sobrevivência e de bem-estar.
Pode-se observar, na definição do autor, que no processamento da emoção, as pessoas
avaliam a situação e reagem em função de seu bem-estar. Assim são os sistemas vivos
humanos: estão em permanente movimento, atribuindo significados às situações sempre
novas que emergem durante a vida. Johnson (2007) lembra que o desenrolar do
processamento da ação de significação não é consciente, no entanto, é significativo.
A emoção, segundo Johnson (2007), emerge da relação do organismo com outros
organismos no ambiente e compreende os estágios: a) percepção e avaliação de um estímulo
com componente emocional; b) reação neural que resulta em comportamentos observáveis,
como expressão facial, mudança de temperatura, postura e outros; c) avaliação que se faz do
contínuo processo de transformação das situações para projetarem-se, ainda que
inconscientemente, as próprias reações. A avaliação é a responsável pela especificidade das
emoções e integra a habilidade humana em compreender a significação dessas situações e agir
apropriadamente em reação a elas. Portanto, a emoção, neste trabalho, será vista como um
estado corporal que se manifesta pela alteração da homeostase em decorrência das interações
do ser humano no espaço, incluindo, nesse espaço, tanto a ideia do sensível, observável pelos
sensores perceptuais, quanto pelo espaço simbólico-cultural que se organiza em função dos
valores que se atribuem aos objetos no mundo.
78
Não constitui proposta, deste trabalho, apontar as manifestações de emoção e as
influências desta no processo de categorização dos dados, mas indicar que é por meio do
sentimento e da emoção que se entra em contato com o mundo, que se atribui significado a ele
e que, ao categorizar, o organismo já passou por processos cerebrais primários pelos quais se
torna consciente das mudanças corporais em reação às mudanças nas situações.
2.2.9 Atenção
Para a perspectiva funcional, ou seja, a de que a estrutura neuronal humana molda-se
em decorrência das diferentes funções da atividade neuronal, a atenção é ligada à formação de
planos e programas e ao tipo de mapeamento de estímulos sensoriais e perceptuais.
(EDELMAN, 1989). A atenção depende de uma variedade de fatores, alguns dos quais não
emergem da consciência, como a vontade e estímulos externos. É um fenômeno seletivo,
ligado a planos motores e interrupções de planos, indicando que as reações atencionais são
relacionadas à construção de mapas globais (EDELMAN, 1989).
A atenção pode ser focal ou difusa e pode modular a reação do organismo ao ser
alterada pelas variáveis a que ele está submetido. Koch e Tsuchiya (2006) apontam evidências
psicológicas de que a atenção e consciência são fenômenos distintos que podem não ocorrer
juntos – objetos e eventos podem ser atentados sem serem conscientemente percebidos e
objetos e eventos podem ser percebidos na quase ausência de atenção. Para os autores, a
atenção é seletiva em decorrência do que é relevante para o organismo.
Segundo Oakley (2009), atenção, memória e categorização são processos coevoluídos.
Categorização é uma forma rearranjada da memória (recognition), que cria a disposição para
agir e cruzar procedimentos de alerta, orientação e detecção. As categorias não são
consideradas a prioi, fixas ou livre de contexto, antes, são resultado, rotinas cognitivas
dinâmicas, mutáveis e dependentes do contexto. Por isso, a atenção desempenha um papel
importante nas operações de linguagem e, especificamente, nas operações de interlocução,
porque direcionam as ações.
A atenção é direcionada para certos objetivos ignorando outros. Essas escolhas,
momento a momento, são atos de valoração. O que é importante para a pessoa? O que ela
valoriza individual e coletivamente varia dependendo de restrições culturais e subculturais
(OAKLEY, 2009). O autor afirma que a avaliação é o componente fundamental da existência
humana. A biologia e a cultura do ser humano forçam-no a permanecer vivo e se sentindo
bem. Isso indica que ele avalia o mundo conforme uma escala de valores em que o mais
79
valioso é seu bem-estar. Obviamente, suas ações de linguagem são carregadas de valores e
isso pode ser notado em suas expressões e nos contornos dessas, como será mostrado na
análise.
Assim, um olhar, um tom, uma palavra podem obter valores diferentes em uma
interação, dependendo do conjunto biocultural que governa as crenças e os desejos das
pessoas em uma interação. Indícios desses valores podem aparecer em formas como não
gostei do jeito que ele me olhou, ou por que cê tá falano desse jeito comigo?14, em que o EU
demonstra que, em conformidade com o que considera ser valoroso, a interação não foi
satisfatória para promover o bem-estar individual.
Para Tomasello (2008, p. 343), “atos linguísticos são atos sociais que uma pessoa,
intencionalmente, dirige a outra pessoa a fim de que esta dirija sua atenção e imaginação de
forma particular para aquilo que ela (a pessoa que dirigiu o ato) quer”15. A atividade
colaborativa, isto é, a intenção partilhada, é a chave para a conceitualização, e isso mostra que
a construção dos sentidos compreende a colaboração coletiva, o que é feito pela linguagem.
Deriva-se disso que o processamento da linguagem implica a concentração da atenção para
um ponto comum, ainda que este seja percebido por perspectivas diversas, conforme as
particularidades dos interlocutores.
Para esta pesquisa, convém ressaltar que a atenção é um componente ligado às
intenções dos organismos humanos que, por sua vez, são delineadas conforme as crenças
construídas na experiência e nos desejos que precisam ser realizados. Assim, na linguagem,
podem-se ver formas indicando atividades colaborativas dos enunciadores com o objetivo de
direcionar a atenção para a construção de tópicos de conceitos e dos significados Tais formas
realizam-se de várias maneiras, de acordo com o contexto interacional.
2.2.10 Crença e desejo
Tratar do tema crença e desejo é uma tarefa intensa que deve ser desenvolvida por
pesquisadores especialistas, entretanto, quando se fala de linguagem não se pode suprimir
esse tópico sob a pena de se estar extirpando um componente que é fundamentalmente
importante no que refere à emergência da linguagem: a intencionalidade.
Toda interação mediada por linguagem apresenta uma intenção. Como já se disse, os
14
Emissões recolhidas no diário de campo, em maio de 2011. 15
Linguistics acts are social acts that one person intentionally directs to another (and highlights that he is doing
this) in order to direct her attention and imagination in particular ways so that she will do, know, or feel what
he wants her to.
80
organismos têm como intenção primeira seu próprio bem-estar, sendo, pois, este o maior valor
para regular as formas que vão emergir na interação. Em seguida, outros interesses, mais
pontuais, permeiam as ações do ponto de vista de sua operacionalidade, mas sempre guiados
pelas condições de satisfação do EU dentro do seu nicho biocultural.
Searle (1997) entende que a intencionalidade manifesta-se no discurso, pois ele revela
crenças e desejos dos falantes pelos quais o organismo orienta-se para agir. Searle (1997)
propõe um modelo em que a intencionalidade é condicionada pela mente, pelas convenções e
regras, pelo discurso, no qual há marcas da intencionalidade e, por fim, o background relativo
às crenças e pressupostos que servem como pano de fundo para as representações linguísticas,
e que, neste trabalho, pode ser expandido para a ação de interação de linguagem como um
todo. Para Searle (1997), o background é um conjunto de capacidades humanas contra o qual
uma sentença é interpretada.
Apesar de Searle ser um filósofo da linguagem e suas concepções serem relativas a
esse campo, parece não haver impedimentos para que seja possível associar tais concepções a
um campo mais amplo, em que a linguagem esteja sendo considerada de um ponto de vista
multidisciplinar. Essa consideração, além de estar sendo bastante difundida nos estudos
contemporâneos, tem sido uma opção para as pesquisas no campo da linguagem, porque
engloba saberes importantes para, por exemplo, a compreensão dos aspectos biológicos,
químicos, físicos, sociais e simbólicos em que está imersa a gênese da linguagem.
Para Tomasello (2003), pesquisador da linha antropológica, as construções linguísticas
estão relacionadas a habilidades cognitivas do humano e de suas interações. Para ele, o
reconhecimento do outro como igual a si mesmo possibilita, durante a própria interação, a
criação de símbolos linguísticos e outros, que se tornam convencionais e sociais.
2.2.11 Cognição: um processo global
O ser humano é um ser de linguagem. Sua condição natural é de viver em interação
com seu meio e o ponto de vista do humano contém tanto o ambiente que o cerca como
também seu mundo mental. Na interação de linguagem aparecem humanos inteiros, com seus
corpos, suas crenças, suas histórias, seus desejos, seus estilos linguísticos, enfim, pessoas
interagindo por meio de símbolos construídos coletivamente em um cruzamento de tempo e
espaço sempre único.
Pensar na totalidade do organismo humano é pensar em cognição. Para a antropologia,
o que caracteriza o ser humano é a cultura, melhor dizendo, a capacidade de acumular
81
conhecimento e transmiti-lo. De acordo com Tomasello (2003, p. 5), uma “hipótese razoável
seria a de que o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos
homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural
únicos da espécie”. Ele defende que a habilidade para o aprendizado cultural e, assim, a
aquisição de símbolos linguísticos são características humanas. Nesses símbolos estão
incorporados os meios que as gerações anteriores consideraram proveitosos para categorizar e
interpretar o mundo. Segundo o autor,
À medida que a criança vai dominando os símbolos linguísticos de sua cultura, ela
adquire a capacidade de adotar simultaneamente múltiplos pontos de vista sobre
uma mesma situação perceptual. Enquanto representações cognitivas perspectivadas,
os símbolos linguísticos baseiam-se não no registro de experiências sensoriais ou
motoras diretas, como é o caso das representações cognitivas de outras espécies
animais e dos bebês humanos, mas nas várias maneiras como os indivíduos
escolhem interpretar as coisas e a partir de uma quantidade de outras maneiras como
as poderiam ter interpretado e que estão incorporadas nos outros símbolos
linguísticos disponíveis que poderiam ter escolhido, mas não escolheram. Portanto,
os símbolos linguísticos libertam a cognição humana da situação perceptual imediata
não só por que permitem referir-se a coisas exteriores a essa situação, mas sobretudo
por permitirem várias representações simultâneas de cada uma e na verdade, de
todas as situações perceptuais possíveis. (TOMASELLO, 2003, p. 11-12).
Observa-se que, segundo essa constatação, uma multiplicidade de percepções emerge
na cena comunicativa dotando-a de uma plasticidade vastíssima, visto que os símbolos
permitem representações de diversas situações perceptuais, que podem ser ampliadas em
numerosas possibilidades. Para Tomasello (2003), a atenção conjunta permite a partilha de
símbolos, e esta, a construção e transmissão do conhecimento. Seria essa condição cognitiva a
responsável pela forma moderna de relacionar e de viver.
Também Maturana (2001), Maturana e Varela (2010) coadunam-se com essa posição
uma vez que acreditam que o ser humano é um ser de conduta cultural. Dessa habilidade
originada pela dinâmica comunicativa, ou seja, do conhecer e das interações emerge a
linguagem que, por sua vez, “alimenta” a cultura. A linguagem, como uma propriedade
humana, resulta de uma longa história evolutiva em que muitos eventos ocorreram para que se
consumasse o atual estado humano. Tanto as bases orgânicas como as interacionais
determinam o modo como, hoje, produz-se linguagem.
São, talvez, princípios como os acima expostos, os responsáveis pela tendência das
ciências cognitivas de compreender a cognição e a linguagem como um resultado da interação
entre os organismos e o ambiente. O processo de conhecer o mundo, identificar os objetos e
eventos, categorizá-los, colocá-los em conexão com outros e partilhar tais objetos com o
interlocutor é o processo de geração da linguagem, portanto, atrelado à experiência. Esse
82
entendimento será considerado em virtude de os esquemas de linguagem serem dinâmicos;
eles emergem nas interações, que, por sua vez, são também dinâmicas. As interações são
realizadas por seres que percebem, sentem, refletem e agem, sendo que as formas de
linguagem refletem a interação como um todo e não apenas parte ou partes dela. Os processos
cognitivos representam, pois, níveis de consciência, memória, sensação, percepção, emoção e
atenção abarcados de maneira multimodal pelo sistema sensório-motor, de forma que
reconhecer um objeto é reconhecer sua forma, cor, tamanho, domínio, etc.
Esta seção poderia ser abreviada da seguinte forma: apresentou-se aspectos que
tornam os humanos seres de linguagem. O estudo da interlocução exige ampliar esse objeto
para o ser biológico, que funciona por meio de reações químicas ocorrida sem virtude das
interações no ambiente físico, a partir do qual é construído o mundo simbólico. O sistema
nervoso, possibilitador de uma capacidade distintiva entre o EU e o NÃO-EU permite ao ser
humano distinguir-se do mundo, classificá-lo e valorizá-lo segundo sua experiência para
orientar suas ações conforme o que acredita e o que deseja. Outro aspecto fundamental
realçado diz respeito à evolução de áreas cerebrais com especializações como a formação de
conceitos e de memória, que permitiram aos humanos referir objetos e eventos não
disponíveis ao alcance da percepção sensorial no Ŧ. Trata-se de um espaço simbólico cujos
objetos abstratos contêm um componente imaterial, construído por um conjunto de valores e
convenções que, num segundo momento, não mais dependem do espaço tridimensional onde
ocorre a cena enunciativa. A essa condição Edelman (1989, p. 189) chamou de liberdade em
relação à “escravidão” do presente imediato da interação. Trata-se da parte simbólica que
emerge por meio de diferentes estruturas entrelaçadas, reveladoras de um padrão que pode
identificá-las como um símbolo, sendo essas condições essenciais para a existência da
linguagem.
2.3 Construindo uma noção de linguagem
Nesta seção, apresentar-se-ão as concepções de linguagem em que esta pesquisa
baseia-se. Ao fim do trabalho, pretende-se fortalecer a tese de que a linguagem humana pode
ser entendida como um sistema complexo devido ao seu caráter dinâmico, através do qual as
estruturas organizam-se de modo criativo para formar padrões. Esses padrões são expressos
de formas diversas e se repetem para manter a identidade do item simbólico, mas a cada vez
com nuanças acrescentadas pelas próprias interações - experiências. Assim se parece dar a
dinâmica “metabólica” na interação de linguagem: os matizes emergentes nas interações vão
83
alimentando a construção simbólica, de forma que ela sempre se renova pela reconstrução
permanente. Esse parece ser o “metabolismo” pelo qual os símbolos constituem-se e se
mantêm na prospecção das interações. Na primeira parte da seção, apresentar-se-á a noção de
linguagem adotada e a linguística cognitiva como ponto de partida para a construção de uma
noção de linguagem como um sistema complexo, em seguida, apresentar-se-á
Por supor que a linguagem pode ser entendida como um sistema complexo, reconhece-
se a perspectiva da linguística cognitiva como uma proposta mais aberta ao se considerar a
linguagem como um aspecto central da interação social humana. De acordo com a perspectiva
de Edelman (1989), são também as interações sociais e não apenas as biológicas que emergem
como nicho para o surgimento da linguagem. Supõe o autor que dentre as estruturas sintáticas
mais anteriores estariam o EU e o TU indicando o autoconhecimento e o reconhecimento do
coespecífico, por meio de sinais afetivos indicadores de satisfação e insatisfação. A hipótese
do autor aponta para as formas de linguagem como uma emergência que decorre de relações
afetivas de um organismo em movimento, isso imputa à linguagem um caráter múltiplo,
porque ela contém em si o espaço em que ocorre, o tempo em que ocorre, os “personagens”
que a realizam e as relações que esses personagens podem estabelecer por meio de símbolos
identificadores de objetos e eventos, construídos por eles no decurso das interações.
O ser biológico, como caracterizado no capítulo anterior, circulando em um espaço e
em um tempo que lhe servem de origem discursiva, deve ser tomado por um máximo de
integralidade, pois as formas da língua emergem de percepções, ações motoras e neuronais,
estados afetivos, enfim, de um ser humano em movimento no seu nicho.
2.3.1 Adotando perspectivas da linguística cognitiva
Determinadas áreas da linguística cognitiva consideram que linguagem e mente são
habilidades cognitivas do organismo para a interação.
Croft citado por Evans e Pourcel (2009) defende que para tratar as questões de
linguagem é necessário manter juntas as dimensões cognitivas e sociais dessa. O autor
defende que além dos processos de percepção, categorização e memória, necessários para
compreender a natureza da linguagem, é necessário reconhecer que “estruturas gramaticais e
processos da mente são exemplos de habilidades cognitivas sociais” (CROFT apud EVANS;
POURCEL, 2009, p. 398).16 Ele considera que a habilidade cognitiva social mais importante é
16
Grammatical structures and processes in the mind are instances of general social cognitive abilities.
84
a atenção conjunta e propõe a investigação da interação face a face, conversação e ação em
busca de uma compreensão do objeto de linguagem. Essa perspectiva da linguística cognitiva
tende a ampliar o objeto para o homem em interação com o ambiente e essa flexibilidade
parece ser bem adequada à proposta deste trabalho de conceber a linguagem como um sistema
em movimento aberto, dissipativo e não-linear.
A linguística cognitiva tem sido alimentada por vários trabalhos – (GIBBS, 2005;
LANGACKER, 2002; JAKENDOFF, 2007; EVANS; POURCEL, 2009; GEERAERTS;
CUYCKENS, 2007; SINHA, 2009) – em que se defende, de modo geral, que os humanos
possuem habilidade cognitiva, genética, orgânica e social e que os processos de linguagem e,
sobretudo, a língua revelam marcas da forma de pensar.
Dentro da perspectiva da linguística cognitiva há diversas linhas que mantêm um
núcleo comum, mas que divergem quanto à especificação do objeto. Há as tendências
funcionalistas, centradas no uso; tendências estruturalistas, centradas na organização formal;
tendências antropológicas, baseadas em modelos culturais; e tendências neurobiológicas,
baseadas nas condições neurofisiológicas de interação do organismo com o ambiente - onde e
quando se criam os objetos simbólicos (NUYTS apud GEERAERTS; CUYCKENS, 2007).
Pesquisadores da área da linguística cognitiva investigam, sob diferentes perspectivas,
como as formas linguísticas podem refletir a mente e em que medida essa mente é construída
pelas formas de linguagem e, ainda, como a linguagem constrói a relação entre organismo e
ambiente. No presente estudo, a linguística cognitiva será levada em conta na medida em que
toma como objeto de linguagem não um código de comunicação, mas um processo dinâmico
entre o organismo e o ambiente, que gera os símbolos de uma cultura (língua e outros tipos de
códigos).
As metáforas conceituais defendidas por Lakoff e Johnson (1980, 1999) emergem de
modelos gerados no curso das interações em que são definidos os contornos do mundo ao
derredor. Esses autores denominaram esquema de imagem as estruturas básicas de
experiências sensório-motoras que permitem que o mundo faça sentido para o ser humano.
Poder-se-ia dizer que a estrutura linguística emerge em decorrência da estrutura
espaçotemporal em que as pessoas estão interagindo com outras pessoas. A essa cena
enunciativa acrescentar-se-ia que os lugares de interação são lugares repletos de objetos
constituintes dos eventos construídos pelas pessoas em interação e também das múltiplas
perspectivas que assumem os interactantes ao se movimentarem nessa cena.
A orientação da linguística cognitiva para o aspecto cultural tem sido reforçada em
trabalhos recentes. A tendência de se considerar a cognição incorporada e sua relação com a
85
emergência da linguagem tem gerado trabalhos que mostram a interferência da cultura na
construção simbólica. Os autores Dirven, Wolf, Polzenhagen citados por Geeraerts e
Cuyckens (2007) realizaram um trabalho em que as condições geofísicas e culturais
manifestam-se na formação dos framings culturais, gerando metáforas baseadas nesses
frames. Isso indica que elementos da cultura, como o espaço geográfico e o comportamento,
podem influenciar o modo como as pessoas constroem um mundo conceitual e, nele, os
símbolos pelos quais interagem. Isso é uma forte evidência da estreita relação entre língua,
linguagem e cultura.
Essas considerações sugerem que a linguística cognitiva possui um pressuposto que
pode ser assumido para a noção de linguagem como um sistema complexo biocultural. A
linguagem constrói-se na interação entre organismo e ambiente e sua forma tem relação com
o tempo e espaço em que é gerada e com os tempos e espaços gerados por meio dos
itens simbólicos. Essa evidência pode ser confirmada pelos objetos elementares para a
interação de linguagem: o estabelecimento do EU↔TU e uma referência R, em um tempo T e
um espaço E. Para Benveniste (1989), são esses os elementos formais essenciais da
linguagem. Considera-se que são mesmo essenciais, porque representam aqueles que a
realizam situados no espaço e no tempo, sendo o ponto de origem de todo o processo de
criação da linguagem.
2.3.2 Linguagem atividade constitutiva
Tratar do tema linguagem de maneira ampla, sem filiá-la a um tempo histórico ou a
uma corrente teórico-epistemológica, seria uma tarefa impossível devido à vastidão do
assunto. Entretanto, hoje, ainda que não exista um consenso sobre a matéria, algumas
tendências, com as quais se concorda, tomam a linguagem como uma propriedade biológica,
não como uma entidade ou um sistema de regras, mas como uma atividade social cujos
processos constituintes apresentam estabilidade e dinamismo e, ao mesmo tempo, como uma
qualidade provisória de todos os sistemas que a estruturam, tal como concluiu Franchi (2011).
Franchi (2011), em seu célebre artigo Linguagem atividade constitutiva, dedica-se a
comentar a concepção de Humboldt para quem a função primordial da linguagem não é
transmitir experiências, mas constituí-las. Para Humboldt citado por Franchi (2011), a
linguagem é o meio pelo qual o homem dá forma a si mesmo e ao mundo, é o meio pelo qual
se torna consciente de si mesmo, projetando um mundo no exterior. Os comentários do autor
acerca das posições de Humboldt deixam transparecer uma concepção de linguagem bastante
86
dinâmica, em que os objetos construídos são suscetíveis de retomadas, renovações e
formulações que retornam ao processo de maturação.
Franchi (2011) ressalta ainda a posição Humboldtiana em que a linguagem é qualquer
coisa de persistente, mas, a todo o momento, transitória. Isso pode ser interpretado, pela
perspectiva assumida nesta tese, como a compreensão da linguagem como um sistema
adaptativo complexo biocultural, que possui uma constituição biológica, individual e uma
constituição coletiva, formulada pela construção de experiências partilhadas. Estas resultam
em um conjunto de meios simbólicos que se presta à interação entre as pessoas.
Assim, pode-se notar semelhança entre o que diz Humboldt citado por Franchi (2011)
e o que diz Edelman (1989) no que se refere à correspondência da linguagem a uma
necessidade básica do homem de reconhecimento de si e do outro. Pode-se também associar
essas noções às concepções de linguagem de Chomsky (2005), que busca apresentar uma
conexão entre propriedades da linguagem e seu uso.
O uso põe a linguagem em movimento a partir de um ponto marcado pelo cruzamento
de duas dimensões: o tempo e o espaço - dimensões computadas na elaboração dos
significados. Desse modo, uma estrutura e uma forma materializam-se pelas operações de
linguagem, que emergem na atividade de interação e a linguagem mantém uma unidade e uma
diferença que podem ser tomadas, respectivamente, pelo padrão e pela estrutura, indicando
constância e mudança no processo discursivo.
Segundo Franchi,
não há nada de imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva [...]
não há nada de universal, salvo o processo – a forma, a estrutura dessa atividade. A
linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que „dá forma‟ ao
conteúdo variável de nossas experiências. (FRANCHI, 2011, p. 64).
A força criadora e constitutiva da linguagem revela-se, pois, na interação, em que,
além das marcas sintáticas, estão em jogo regras implícitas dos sistemas de referências e
pressupostos comuns entre os falantes de uma língua.
2.3.3 Por que constitutiva?
Fiorin citado por Franchi (2011) aborda a concepção dialética da relação entre
linguagem e realidade, lembrando que “a língua organiza o pensamento, produz ideias e
compõe o quadro de referências para o agir do homem no mundo” (FIORIN apud FRANCHI,
2011, p. 12), e também tem a capacidade de reconstruir “constantemente” a realidade, pois é
87
histórica. Fiorin lembra também que, para Franchi, “a historicidade da linguagem, ao mesmo
tempo, cria uma racionalidade cultural e, portanto, móvel, e lhe dá um dinamismo, que a faz
„aberta aos trabalhos do entendimento‟ e „às provocações da imaginação‟” (FIORIN apud
FRANCHI, 2011, 28-29).
Para Fiorin citado por Franchi (2011), o que Franchi quer dizer com atividade
constitutiva é que “a linguagem tem um papel ativo na aquisição do conhecimento e que ela
não resulta de uma convenção tácita entre os homens, mas das experiências históricas de uma
dada comunidade” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 12). Pode-se ver, nessa concepção,
que as noções de língua e linguagem estão intimamente ligadas à ação do homem no tempo e
no espaço e à construção dinâmica que se mantém em processo. Os autores assumem que se
trata de uma prática social histórica e coletiva.
Fiorin citado por Franchi (2011, p. 20) mostra como a constutividade da linguagem
manifesta-se no uso das categorias. Ele mostra, dentre outros exemplos, que a categoria de
tempo verbal foge às rígidas convenções do sistema da língua. Diz que os tempos mesclam-
se, “superpõem-se, perseguem uns aos outros, servem de contraponto uns aos outros, afastam-
se, aproximam-se, combinam-se, sucedem-se num intricado jogo de articulações e de efeitos
de sentido” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 20). Afirma ainda que “as pessoas, os tempos
e os espaços linguísticos não refletem as pessoas reais, nem o tempo físico, nem o espaço
geométrico, mas são criados na e pela enunciação” (FIORIN apud FRANCHI, 2011, p. 20-
21). Isso mostra que a língua remete a significados, não por sua forma apenas, mas pela forma
que emerge em um dado momento que contribui com muitos fatores considerados para a
construção do significado.
Ilari citado por Franchi (2011), ao discutir o artigo já mencionado, de Franchi,
confirma a noção de linguagem como uma atividade constitutiva, assumindo, com diversos
autores, que a linguagem tem papel importante em processos cognitivos. Ilari sugere que,
apesar de a língua ser uma forma de manifestação de crenças de uma cultura, ela não seria
suficiente para representar um sistema de crenças que é referência para uma cultura.
Para sobreviver como tal, qualquer cultura precisa incluir uma representação do
mundo adaptada às condições externas; e dada à complexidade que se exige para que
essa visão de mundo garanta permanência de uma cultura, seria pouco provável que
todas as articulações de um sistema de crenças desse tipo, ou mesmo as principais,
fossem explicitamente representadas pelas características estruturais da língua. Os
falantes da língua, é claro, sempre podem enunciar as crenças presentes no sistema
de referência de uma cultura, por exemplo, contando seus mitos ou celebrando seus
rituais; mais costumeiramente ainda, construirão enunciados em que as crenças
compartilhadas aparecem na forma de implícitos ou pressupostos. (ILARI apud
FRANCHI, 2011, 172).
88
O autor sugere que o sistema de referência de uma cultura não pode ser expresso por
uma língua, porque envolve muitas competências não linguísticas, não sendo, pois, esse um
motivo para justificar a constitutividade da língua. Ilari defende que a linguagem tem papel
criativo e transformador e que seu uso resulta num ganho cognitivo. O autor justifica sua
posição apresentando três exemplos de como a língua supera sua tarefa de categorização e
expondo três processos: monitoramento, criação de objetos não convencionais e subversão
(ILARI apud FRANCHI, 2011).
Entende-se que esses processos poderiam ser resumidos da seguinte forma: o
monitoramento seria um processo em que a linguagem “se associa a um determinado conjunto
de experiências” (ILARI apud FRANCHI, 2011, p. 173). Nesse caso, a linguagem exerce seu
papel na criação de fatos e o conjunto de experiências exerce seu papel ao modelar a
linguagem de um modo sempre social e coletivo. Os conceitos assimilariam novas nuances e
limites significativos de forma gradual, indicando que conceitos novos seriam
contemporâneos dos velhos até que se estabelecesse uma superação. A construção de objetos
não convencionais aponta para a plasticidade da linguagem à medida que cria objetos que não
são distintos dentro do esquema de referência, mas objetos construídos por mecanismos que
estão relacionados ao conhecimento de uma dada cultura, como, por exemplo, as descrições
definidas e os pronomes que estão intimamente ligados com a situação de interação verbal.
Finalmente, a subversão é considerada pelo autor como o recurso metafórico pelo qual se
aplica uma palavra inesperada para uma realidade conhecida, criando, assim, novas
organizações para o conhecimento. A conclusão a que chega o autor é de que “os mesmos
meios linguísticos que permitem construir um sistema de referência ou confirmá-lo permitem
também modificá-lo de maneiras mais ou menos dramáticas” (ILARI apud FRANCHI, 2011,
p. 180-181). Essa conclusão evidencia a versatilidade da linguagem, que tem seus meios de
reconsiderar o dado aplicando a ele uma revisão de categorias e de criação de novas
estruturas. Ilari encerra sua discussão citando Franchi, que, por sua vez, cita Humboldt:
A linguagem é um processo cuja forma é persistente, mas cujo escopo e
modalidades do produto são completamente indeterminados, [...] a linguagem não é
somente um processo de representação, de que se podem servir os discursos
demonstrativos e conceituais, mas ainda uma prática imaginativa que não se dá em
um universo fechado e estrito, mas permite passaram no pensamento e no tempo, a
diferentes universos mais amplos, atuais, possíveis, imaginários. (ILARI apud
FRANCHI, 2011, p. 181).
Dizer que a linguagem é um espaço de subversão das significações é reconhecer seu
caráter criativo e dinâmico, qualificando-a como uma propriedade dos seres dinâmicos que a
89
constroem e a exercem segundo tempos e espaços que partilham ou que supõem partilhados.
Essa é a forma como se está entendendo a linguagem nesta pesquisa: uma propriedade
humana natural, que reflete o homem histórico, que percebe seu tempo e outros tempos, os
quais, por sua vez, podem ser criados indefinidamente pela língua17.
E é a fundamentação desse ponto de vista que se continuará elaborando na próxima
seção, ao se abordar a linguagem como objeto do mundo natural.
2.3.4 Linguagem como objeto do mundo natural
Nesta pesquisa, adota-se a noção de linguagem como objeto natural, uma propriedade
da mente humana resultante de um cérebro competente no que se refere a sua capacidade
cognitiva.
Chomsky (1994) defende uma mudança de perspectiva quanto ao objeto de pesquisa
que migra do produto para os princípios operatórios internos da mente. A teoria Gerativa
considera que existe uma propriedade da mente, P, que permite a uma pessoa adquirir uma
língua através da experiência e a colocar em uso sob as condições reais de aquisição de uma
língua. A questão para essa teoria é de que modo funciona P “nas condições mais complexas
de verdadeira diversidade linguística real” (CHOMSKY, 1994, p. 37).
A mudança do foco leva o estudo de Chomsky (1994) para o falante individual, que é
um objeto real capaz de fornecer dados de alguma forma inscritos em seu cérebro. Desloca-se,
então, a faculdade de linguagem do cérebro, da língua exteriorizada, artificial, para um objeto
real. A faculdade de linguagem, para Chomsky (2005, p. 31), pode ser considerada um “órgão
da linguagem”, tal como o sistema visual, imunológico, respiratório; seria um subsistema de
uma estrutura mais complexa. Caberia, então, à linguística investigar as partes que têm
características distintivas e a interação entre elas.
Hauser, Chomsky e Fitch (2002, p. 1569), de uma perspectiva evolucionista, defendem
que os humanos possuem uma faculdade de linguagem adquirida no processo evolucionário.
Quanto à natureza dessa faculdade, os autores distinguem-na entre questões relativas ao
sistema comunicativo e as computações a ele subjacentes. Esses pesquisadores fazem uma
distinção entre a faculdade de linguagem em sentido amplo (faculty of language in the broad
sense, FLB) e a faculdade de linguagem em sentido restrito (faculty of language in the narrow
sense, FLN).
17
Um aspecto dessa criação é explorado pelas teorias de espaços mentais e mais pontualmente pela construção
de espaços referenciais tal como em (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2004).
90
A linguagem em sentido amplo inclui o sensório-motor, o conceptual-intencional, e
outros possíveis sistemas (que deixamos em aberto); a linguagem em sentido restrito
inclui as computações gramaticais que nós sugerimos que se limitam à recursão.
(HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002, p. 1569).
A recursão refere-se à arquitetura cerebral capaz de estruturar um código hierárquico
que gera a si mesmo de forma praticamente ilimitada, por meio de recursos limitados, de
modo hierárquico. (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002). Esse conceito amplia-se quando
se entende por recursão um princípio ligado ao modo de operar do cérebro humano, como
pensa Corballis (2011). Para ele, princípios universais da linguagem podem ser considerados
princípios do pensamento e não específicos da linguagem.
Para Corballis (2011), recursão é uma propriedade da mente humana empregada
quando necessária. A proposta do autor em seu livro The Recursive Mind é de uma teoria da
mente que considera estados intencionais das pessoas, não apenas no plano da ação, mas de
crenças, desejos, esperanças, medos e demais sentimentos humanos. Entende-se que, para o
autor, a linguagem é recursiva porque ela reflete o funcionamento da mente, tem sua maneira
de apreender um evento com todas as suas particularidades e não apenas um objeto, um
tempo, ou um item isolado. Os processos recursivos, segundo ele, evoluíram a partir das
experiências sociais dos humanos; assim, o desenvolvimento do trato vocal teria livrado as
mãos para a realização de tarefas, criação de ferramentas e desenvolvimentos globais.
Portanto, falar de recursão significa falar de princípios operatórios da mente que permitem a
construção de redes de operações que vão desde a formulação de códigos de comportamento
motor até o mais abstrato dos códigos simbólicos.
É, pois, partindo desses pressupostos que se pretende considerar a linguagem como um
modo através do qual a espécie mantém suas interações sociais e se organiza em relação a
tantas outras espécies vivas, formando redes em constante adaptação e inter-relação dinâmica
no ambiente.
Tanto Humboldt, Franchi e Ilari quanto Chomsky, citados anteriormente, parecem
contribuir para uma teoria global que poderia oferecer caminhos para a compreensão da
linguagem em sua plenitude, como um sistema vivo sujeito às pressões do Ŧ. Parece haver
uma contribuição do aspecto biológico e da atividade social para a emergência da linguagem
devido a: a) aos meios cerebrais e percepto-sensoriais de distinção de objetos/eventos e de
tempos, permitida única e exclusivamente pelo desenvolvimento de áreas cerebrais ligadas à
memória; b) às interações sociais pelas quais os conceitos são construídos na e pela prática
coletiva, simbolizados, veiculados e submetidos a novas experiências, podendo ser
91
transformados de uma maneira gradual com a possibilidade de vir a ser drástica um dia.
A proximidade das noções expostas reforçam a ideia de que concepções da linguística
cognitiva podem ser o fundamento para uma noção de linguagem como um sistema
complexo, porque assumem a relação do organismo com o ambiente como a base para a
existência da língua. Uma proposta teórica que evidencia essa relação seriam os esquemas de
imagens que refletem uma construção de objetos linguísticos em função dos corpos
posicionados em movimento no espaço (LAKOFF, 2008).
Diversos são os autores – Prigogine (2009), Tomasello (2003) e Johnson (2007), por
exemplo – que incentivam a associação de várias áreas do conhecimento para compreender
melhor o funcionamento da linguagem e seus desdobramentos. Hauser, Chomsky e Fitch
(2002) argumentam que a compreensão da faculdade de linguagem requer cooperação
interdisciplinar. Os autores sugerem a interação da linguística com estudos da biologia
evolucionária, antropologia, psicologia e neurociência. Esse consenso deixa transparecer a
necessidade de diversificar o foco da investigação, ampliando as perspectivas para a
interpretação do fenômeno da linguagem. E é justamente baseando-se nessas tendências que
se procura articular pontos de vista de áreas distintas para tentar abranger o fenômeno da
linguagem de uma forma mais completa, tentando compreender como as propriedades
biológicas e as propriedades simbólicas associam-se no movimento da interação de
linguagem.
Reconhecendo o valor dessa perspectiva múltipla, adotam-se noções ligadas às teorias
da complexidade para analisar o fenômeno da interlocução. Tais teorias têm como
pressuposto básico que o movimento é condição natural dos sistemas vivos e que, como um
sistema vivo, a linguagem é um sistema complexo que se mantém pelo movimento gerado na
busca pela adaptação.
Observada pela lente da complexidade, a linguagem, como um sistema vivo, pode ser
analisada como um padrão expresso por uma estrutura. O padrão exibe a unidade dos objetos
mentais, isto é, o que os caracteriza e o que os unifica; o padrão só se revela por estruturas;
assim, uma ação de linguagem, dentro de uma interação maior, compreende algum tipo de
movimento que põe os interlocutores em contato, do contrário, não há troca, não há partilha,
portanto, não há linguagem. A faculdade de linguagem está ligada ao padrão e à atividade, no
sentido de que o padrão é aquilo que recorre e que permanece e a estrutura é aquilo que
realiza o padrão. Melhor dizendo, a estrutura dá materialidade ao padrão e este revela, pela
forma, como as estruturas organizam-se, entendendo-se por estruturas um conjunto de
referências de tipos diversos (gramaticais, sociais, culturais, materiais), obviamente,
92
consideradas as dimensões de tempo e espaço. Assim, temos uma faculdade que se realiza
mediante a atividade. As formas materiais da linguagem constituem a estrutura, e o modo
como essas formas organizam-se constitui o padrão.
No caso da linguagem como um SAC, a forma realiza-se na gramática, pelas unidades
convencionais (léxico, sintaxe) e pelas modulações, sendo que sua realização só se completa
com as computações que os organismos fazem por meio de seus sistemas sensório-motor e
conceitual-intencional. Por isso, as formas interpretadas no nível da gramática ou do discurso
não consumam os significados em uma interação. Segundo Hougaard (2008, p. 249), “a
compreensão resulta de um trabalho constante, é algo que os participantes em interação
realizam socialmente no aqui e agora das ações que praticam”18. Tudo dependerá do Ŧ, onde e
quando estão os participantes com seus pontos de vista, seus perceptos, seus conhecimentos,
suas reflexões, enfim, onde estão os elementos para validar o padrão de organização, definido
não apenas pela estrutura material, mas por um conjunto de referências conceituais que só são
apreensíveis na atividade de interação.
2.3.5 Uma emergência no nicho biocultural
No processo evolucionário humano, como explica Sinha (2009), o ambiente da seleção
não é mais o organismo, mas o organismo em seu nicho autoconstruído, em que está
incorporado o nicho artefatual. Para o autor, o nicho artefatual é reproduzido através de
gerações e serve como pré-condição para a replicação genética. O nicho é consequência e é
também agente da seleção natural. O nicho artefatual da linguagem é encaixado no complexo
biocultural semiótico inteiro. Na semiosfera humana, diz o autor, o ambiente significativo
construído é reproduzido através de gerações humanas do mesmo modo como acontece com o
próprio organismo, sendo a linguagem o mais distintivo constituinte da semiosfera, devido à
sua preeminência na interface entre reprodução cultural e processos cognitivos (SINHA,
2009).
Ainda conforme o mesmo autor, não existe diferença entre os processos biológicos e
cognitivos. Sua hipótese é de que a capacidade semiótica desencadeou efeitos transformativos
em todos ou em numerosos domínios cognitivos, o que potencializou culturas simbólicas
constitutivas de nichos bioculturais complexos, nos quais ocorrem a inovação cultural humana
e sua transmissão.
18
[…] understanding is worded at constantly. It is something that participants in interaction achieve socially in
the here-and-now of actions that they carry out.
93
Gibson (1986) assume a noção de nicho para explicar o comportamento adaptativo
humano. Segundo ele, nicho é diferente de habitat das espécies, porque diz respeito mais ao
modo como um animal vive do que ao lugar onde vive. O autor sugere que um nicho é um
conjunto de affordances. “O ambiente natural oferece várias maneiras de vida, e diferentes
animais têm diferentes maneiras de viver. O nicho implica um tipo de animal, e o animal
implica um tipo de nicho” (GIBSON, 1986, p. 128). Essas considerações sugerem que os
processos biológicos e simbólicos não se dissociam na emergência da linguagem, ao
contrário, eles são interdependentes e um requer o outro para a construção dos sentidos. A
seguir, apresentam-se convicções acerca da importância do aspecto cultural para a noção de
linguagem assumida nesta pesquisa.
2.3.6 O componente cultural
A noção de linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural compreende
a experiência humana, uma vez que é o modo de o indivíduo agir no mundo que o torna a
espécie que é. Assim, o caráter da experiência humana seria a base para suas criações
linguísticas.
De acordo com Johnson e Rohrer (2005), a natureza do corpo humano, os tipos de
ambientes que habita e seus valores e objetivos determinam suas experiências que, pode-se
dizer, constituem as bases para os modelos de mapas neurais que subjazem à criação e à
organização dos conceitos humanos.
A ligação da experiência humana com suas práticas e com seus conhecimentos
culturais têm sido demonstrada por pesquisadores como Gibbs (2005). Ele nota que o modo
como o corpo manifesta-se reflete processos culturais. Na visão do autor, a cognição
incorporada, isto é, a relação existente entre os processos cognitivos, a experiência humana e
as práticas culturais, reflete os processos de pensamento, linguagem e ação. (GIBBS, 2005).
Como se verá adiante, a articulação entre os processos biológicos e culturais no
desenvolvimento das habilidades cognitivas e, então, das habilidades de linguagem tem sido
aceita pela linguística cognitiva.
A integração de noções de cultura difundidas nos estudos de linguagem é muitas vezes
originada na área da antropologia. Para o antropólogo Geertz (2011, p. 9), a “cultura é pública
porque o significado o é”. Na busca para encontrar um conceito satisfatório de cultura, Geertz
(2011) dispensa as tentativas de definir o que é universal e o que é variável nas culturas. O
autor procura alcançar uma imagem mais exata do homem a partir de duas ideias: a primeira
94
concebe a cultura como um “conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras,
instruções - [...] para governar o comportamento”; na segunda, “o homem é precisamente o
animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos,
fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento” (GEERTZ, 2011,
p. 32-33).
Para Geertz, a perspectiva da cultura como mecanismo de controle inicia-se com o
pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social quanto público, sendo
seu ambiente natural o pátio familiar, o mercado, a cidade. Ele afirma:
Pensar consiste não nos „acontecimentos na cabeça‟ (embora sejam necessários
acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego
entre aquilo que foi chamado por G. H. Mead e outros de símbolos significantes – as
palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios
mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias – na verdade, qualquer
coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um
significado à experiência. Do ponto de vista particular, tais símbolos são dados, na
sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente na comunidade quando nasce e eles
permanecem em circulação após a sua morte, com alguns acréscimos, subtrações e
alterações parciais dos quais pode ou não participar. Enquanto vive, ele se utiliza
deles, ou de alguns deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das
vezes espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito: para
fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais vive, para auto-orientar-
se no „curso corrente das coisas experimentadas‟, tomando de empréstimo uma
brilhante expressão de John Dewey. (GEERTZ, 2011, p. 33).
Fica evidente na concepção do autor a importância dos símbolos como padrões que
governam o homem organizado em sociedade. Para ele, se não fosse dirigido por padrões
culturais, o comportamento do homem seria ingovernável, os atos não teriam sentido, não
haveria controle para as emoções, nem forma para as experiências.
Na opinião do autor, a complexidade da organização nervosa e o crescimento do
neocórtex foram possíveis mediante a interação com a cultura. O sistema nervoso central “é
incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação
fornecida por sistemas simbólicos significantes” (GEERTZ, 2011, p. 35). Nota-se, nessa
posição, que as práticas sociais teriam determinados desenvolvimentos biológicos, de modo
que a cultura estimulou evoluções biológicas e essas contribuíram para mudanças culturais.
As fontes culturais passaram a ter importância crucial no desenvolvimento humano, o que
levou o homem ao estágio a que hoje chega como ser de cultura e, porque não dizer, ser de
linguagem.
A ligação entre linguagem e cultura é bastante aceita no seio da linguística cognitiva.
Jakendoff (2007) observa o papel central que o fenômeno social e cultural representa para a
95
linguagem. A abordagem do autor parte da importância da cognição social como uma
habilidade para se compreender e se engajar em interações sociais no contexto da cultura de
instituições sociais. O autor discute sobre a relação entre cognição social, cultura e linguagem
e questiona o papel da cognição social como um instrumento de análise que revela princípios
linguísticos. Assim como os princípios combinatoriais (as regras da gramática) são
organizados de modo a possibilitar a formação de infinitas emissões, também para a cognição
social a habilidade para interagir socialmente envolve um sistema combinatorial de princípios
em cada mente/cérebro.
Os princípios da interação social são como regras (f-rules) inacessíveis à consciência.
Assim, para o autor, os princípios inconscientes que regem as regras combinatórias e
permitem a produção e a compreensão de sentenças também se aplicariam às interações
sociais, estabelecendo a associação entre linguagem e cultura. Ele afirma que linguagem e
cultura dependem da existência da comunidade para seu funcionamento e transmissão. Para
que linguagem e sociedade permaneçam estáveis, os indivíduos devem participar da
linguagem e da cultura e devem, essencialmente, ter a mesma cognição social (JAKENDOFF,
2007).
No quinto capítulo de seu livro Linguagem, Consciência e Cultura, Jakendoff (2007)
apresenta vários exemplos de como entidades cognitivas (códigos, regras) moldam a
compreensão social nas culturas. A proposta de Jakendoff (2007) é mostrar que existem fortes
paralelos entre linguagem e cultura, sendo esses paralelos expostos nas interações sociais por
meio de relações de linguagem.
Como se vem assumindo nesta pesquisa, as estruturas cerebrais ligadas aos processos
conscientes e, portanto, de linguagem, são construídas conforme os organismos vão
interagindo no ambiente, com todas as possibilidades fisiológicas permitidas pelos sistemas
sensório-motor e conceitual-intencional. Isto é, um organismo que age com seu corpo e com
suas emoções, portanto, um organismo situado em um emaranhado de espaços e tempos dos
quais computa estímulos com base em seu sistema conceitual, que se reorganiza na
experiência.
O pesquisador Tomasello (2003) estabelece relações entre a linha individual e cultural
do desenvolvimento cognitivo. A linha individual concerne às coisas que o organismo
conhece e aprende por conta própria, sem a influência de outras pessoas ou dos artefatos. A
linha cultural do desenvolvimento cognitivo, por sua vez, pertence às coisas que o organismo
conhece e aprende por meio de atos através dos quais tenta ver o mundo pela perspectiva dos
outros. Ou seja, o desenvolvimento cognitivo cultural concentra-se nos fenômenos
96
intencionais em que o organismo adota a perspectiva de outra pessoa. O pesquisador ressalta
que essas duas linhas de desenvolvimento são inextricavelmente entrelaçadas e que cada ser
humano herdou, por processos biológicos, uma capacidade de viver culturalmente, sendo o
desenvolvimento cognitivo de uma criança semelhante a toda a história cultural de seu grupo
social (TOMASELLO, 2003). Para o autor, essa habilidade cultural tem sua origem no
comportamento exclusivamente humano de compartilhar atenção e na hipótese de que as
crianças têm habilidade para compreender que os outros são “como eu” (TOMASELLO,
2003, p. 105).
Essas evidências reforçam o indissociável entrelaçamento entre cultura e linguagem e
sugerem uma conformidade com o modo como Edelman (1989) concebe o surgimento da
linguagem. Para ele, a linguagem é um epifenômeno que tem sua origem na atividade de um
especial sistema de memória a fim de transmitir a distinção selfnonself para além do sentido
biológico, ou seja, no sentido social. Para Edelman (1989), uma série de repertórios19,
baseados em classificação de gestos, evoluiu a partir da comunicação entre os membros da
espécie. Teria sido a conexão entre os sinais interiores acompanhados de estados afetivos,
necessidades hedônicas e de gratificação, nas interações dos pais ou interassexuais, a origem
das primeiras estruturas sintáticas, sobretudo, do reconhecimento da relação EUNÃOEU.
Também Tomasello (2008) defende que a comunicação humana, nos moldes em que se
encontra hoje, reflete processos evolucionários que teriam sua origem na troca de gestos.
Todas essas concepções arroladas nesta seção fluem para um denominador comum: o
de que cultura e linguagem são características evolucionárias especificamente humanas e
constituem o que pode ser chamado de natureza humana. Para finalizar a seção, apresenta-se
uma citação em que Tomasello (2003) resume a relação do humano coma propriedade
intrínseca que o caracteriza como um ser social de linguagem:
O fato de a cultura ser um produto da evolução não significa que cada um de seus
aspectos específicos tenha um suporte genético especializado; não houve tempo
suficiente para isso. Um cenário mais plausível é que todas as instituições culturais
humanas estão assentadas sobre a capacidade sociocognitiva biologicamente
herdada por todos os homens de criar e utilizar convenções e símbolos sociais.
(TOMASELLO, 2003, p. 302).
Para esta pesquisa, meios culturais de interação, crenças, leis, costumes,
comportamentos são constitutivos da linguagem, pois essa é condição indispensável para a
transmissão dos padrões aceitos nos grupos sociais. Pensando a linguagem como uma
19
Entende-se por repertórios primários as especializações dos grupos neuronais relativas a funções genéticas
ligadas à manutenção da vida do organismo.
97
propriedade humana que resulta de processos biológicos, neurais, físicos, sociais e culturais, é
necessário reconhecer que esses processos só se realizam em decorrência de algum tipo de
movimento, o que leva à aceitação de que entre duas ou mais pessoas as operações de
linguagem emergentes estão associadas a algum tipo de movimento.
2.3.7 As convenções sociais
No gênero conversação, os elementos básicos considerados são a presença de duas ou
mais pessoas em um espaço levemente circunscrito, com um propósito interativo. Goffman
(2010) estabelece duas características distintivas da interação face a face: a primeira é a
presença física das pessoas, com suas expressões e gestos – que ele chama de sentidos nus -,
pelos quais as pessoas colocam-se por inteiro na troca de mensagens; a segunda é a
retroalimentação, pela qual as pessoas invertem as funções de falante e ouvinte, assumindo-se
e assumindo os outros como participantes.
Em seu livro Comportamento em Lugares Públicos, Goffman (2010) faz um extenso
apanhado dos ajuntamentos possíveis na sociedade norte americana, descrevendo não apenas
as interações engajadas em que há intenção de interação verbal - a que ele chama
engajamento de face -, mas também as possibilidades de ajuntamento em que há percepção
mútua entre as pessoas e o fato de que elas agem com seus corpos num ambiente em que tudo
é potencialmente simbólico, desde que seja alvo de alguma atenção daqueles que participam
do ajuntamento.
Goffman (2010) define por ajuntamento um conjunto de dois ou mais indivíduos cujos
membros incluem todos e apenas aqueles que estão na presença imediata uns dos outros, num
dado momento. Entretanto, o ajuntamento por si não implica interação verbal, e sim, qualquer
situação em que pessoas estão circunscritas em um espaço determinado e se notam umas às
outras em maior ou menor grau. Mas, nesta pesquisa, o foco não é o ajuntamento, ou melhor,
é o ajuntamento com envolvimento mútuo de atenção focada, denominado de engajamento.
De acordo com Goffman (2010), quando pessoas entram na presença uma da outra,
elas tendem a fazê-lo como participantes de uma ocasião social que pode ser entendida como
um evento limitado no espaço e no tempo, com todos os elementos físicos e sociais
estruturantes que determinam o padrão de comportamento para aquela ocasião. São
estabelecidos regulamentos conforme fatores que vão desde as características pessoais até as
regras sociais implícitas nas ações e comportamentos.
Goffman (2010) distingue também as interações desfocadas das interações focadas,
98
sendo aquelas independentes da vontade das pessoas eestas dependentes do envolvimento das
pessoas na atividade de comunicação.
[...] quando indivíduos entram na presença imediata uns dos outros onde não é
preciso nenhuma comunicação falada, eles ainda assim inevitavelmente iniciam uma
espécie de comunicação, pois em todas as situações atribui-se importância a certos
assuntos que não estão necessariamente ligados a comunicações verbais particulares.
Eles incluem aparência corporal e atos pessoais: vestuário, postura, movimento e
posição, volume de som, gestos físicos como acenar ou saudar, decorações faciais e
expressão emocional ampla. (GOFFMAN, 2010, p. 43).
A posição do autor sugere que a presença física das pessoas no espaço, exercendo seus
papéis sociais e intencionais nas ações cotidianas, é o “ninho” para a emergência das formas
de linguagem verbal. O autor afirma que toda sociedade é institucionalizada pela
regularização de eventos que “recebem significado comum”; ao ser percebido, o indivíduo
tende a modificar sua atividade (GOFFMAN, 2010, p. 43). O colocar-se presente e se mostrar
percebedor do outro obrigam esse indivíduo ao uso de muitos sinais, convenções, regras que
tornam possível a socialização. Há nas interações “um simbolismo do corpo, um idioma das
aparências e gestos individuais que tendem a evocar no ator aquilo que evoca nos outros, e „os
outros‟ aqui significa aqueles, e apenas aqueles, que estão imediatamente presentes”
(GOFFMAN, 2010, p. 43-44). O autor deixa evidente a ação corporal como base da interação
social e, pensa-se que se pode também acrescentar, como base para o surgimento das formas
de linguagem.
As ideias de Goffman (2010) são condizentes com o que se adota nesta pesquisa, ou
seja, o ser em interação, em movimento, constituído na e pela sua biologia e nas interações
sociais, um ser adaptativo complexo biocultural. Ainda que a orientação de Goffman (2010)
seja para a área da sociologia, suas concepções são importantes para esta pesquisa, porque sua
observação parte do homem em movimento, engajado em ações que o mantêm vivo na luta
pela adaptação. Nos espaços sociais, os humanos reconhecem-se e estabelecem códigos pelos
quais se organizam e interagem, reproduzem e criam meios simbólicos de se manterem
adaptados ao meio.
A conversa é organizada não apenas no plano prático de quem fala para quem fala,
mas inclui toda a situação e se submete às regras que regulam os encontros. Gumperz citado
por Ribeiro e Garcez (1998) diz que se usam pistas de contextualização para sinalizar aos
interlocutores, para inferir ou comunicar as intenções conversacionais. São fenômenos
sociolinguísticos, no entender do autor, pois eles se baseiam em conhecimentos sobre a
cooperação social em que os participantes negociam interpretações.
99
Assim, em se tratando das variáveis somadas na computação do evento para
interpretação dos elementos e construção dos significados, junto com esses autores, deve-se
dar tanta importância às opções fonológicas, lexicais e sintáticas quanto às opções gestuais e
prosódicas.
2.3.8 Discurso e texto
A noção de discurso que se julga adequada à opção epistemológica condizente com as
noções da linguística cognitiva, assumidas nesta pesquisa, é proposta por Beaugrande (1997).
Ele considera a linguagem em movimento, o que permite apreender as propriedades simples,
estruturais da linguagem e o que ela tem de indeterminação e complexidade. A linguagem
apresenta-se, pois, como um “design” estável e flutuante, simples e complexo, refletindo seu
funcionamento na sociedade. Para o autor, “um modelo de linguagem simplista como um
conjunto de rótulos determinados, cada um referindo-se a um único objeto, pode dificilmente
conectar-se ao real discurso” (BEAUGRANDE, 1997, p. 93). O autor defende que se adote a
perspectiva da complexidade para compreender o dinamismo da relação de linguagem e
sociedade como pano de fundo do discurso.
Beaugrande (1997) propõe noções como a de auto-organização, sistemas de redes,
atratores e evolução para explicar os processos de linguagem por uma perspectiva da
complexidade. Sistemas vivos como o humano encontram-se num estado evolucionário, em
que as restrições que forçam ou restringem a auto-organização são da ordem do físico, do
químico, do biológico e do comunicativo. A ideia do autor, pensa-se, reflete o modelo de
complexidade em que diversos sistemas atuam de modo cooperativo, impondo aos
componentes simbólicos muitas cargas além daquelas como as de replicação genética que
reproduzem um aspecto, mas não o criam.
No primeiro capítulo de seu livro, Beaugrande (1997) demonstra como, na prática, as
forças linguísticas assumem seu poder para dominar espaços. Ele exemplifica com a oposição
das tendências consumistas e ecologistas em que há forças linguísticas chamando para se
aderir a um ou outro lado. Mostra que os apelos favoráveis às escolhas possíveis são feitos
por intermédio dos recursos da língua e centra sua preocupação na prática social e na medida
em que a linguagem pode ser usada para convencer e dominar. Portanto, para Beaugrande
(1997), o discurso é uma prática social através da qual são colocadas, simultaneamente, as
ações corporais e simbólicas com teor ideológico, isso por meio de um aspecto material que é
o texto.
100
Ainda conforme Beaugrande (1997), o texto deve ser visto como um evento
comunicativo em que e quando estão ocorrendo ações linguísticas, cognitivas e sociais. O
texto constitui-se como um sistema de conexões entre vários elementos - sons, palavras,
significados, participantes do discurso, ações, etc -, incorpora todos esses componentes e pode
ser considerado um multissistema. Para o autor, as unidades do texto devem ser
multifuncionais, por exemplo: uma palavra pode ser um padrão de sequência sonora, uma
parte de frase ou uma instrução para o significado. Enfim, a sequência de sons, para o
pesquisador, é apenas a ponta de um iceberg, uma pequena porção de matéria e da energia
pela qual uma grande quantidade de informação foi condensada por um falante em direção a
um ouvinte. A ideia de identidade e conectividade permeia as posições do autor que propõe o
humano como sistema “enriquecido” (enriching) pelas restrições físicas, químicas e biológica
que possibilitaram a emergência de um ser com condições de cognição e comunicação.
Essas noções aplicam-se à noção de língua como um sistema virtual, que oferece
recursos para que os falantes escolham e interconectem itens para formar o texto. Muito da
organização de um “sistema-texto” já foi feito até que ele seja posto em uso, o que mostra que a
língua não é estática nem autônoma, mas um sistema evolutivo adaptativo, sujeito a alterações
conforme vai se configurando em textos adaptados ao uso real. Essa noção é cara a esta pesquisa,
porque concebe a língua em movimento, como são os sistemas adaptativos complexos. O
discurso pode, então, ser concebido como um universo conceitual, linguístico, regulado por
sistema de valores que pode ser resumido pela noção de universo simbólico, constituído através
da interface entre materiais sensorialmente perceptíveis, o texto, por exemplo, e itens abstratos,
como os conceitos e mesmo a posição social assumida no interagir linguístico. O discurso então
conterá o tempo, o lugar e o modo de expressão do locutor, suas intenções, uma vez que, nessa
concepção, o modo pragmático imprime forças significativas a ele e completa seu sentido.
2.3.9 Evento e gênero
A ideia de evento de interação está relacionada à organização de interlocutores dentro
de um tempo e de um espaço cujas dimensões podem se alterar conforme se alteram a
movimentação e as construções simbólicas dos participantes. Um evento de interação de
linguagem, segundo Costa (2002), constitui uma faceta da interação social. Nele são
colocados em jogo, além da materialidade física – volume e massa –, o espaço, os interesses,
as emoções, os objetivos e conhecimentos de natureza diversa (socioculturais, linguísticas e
espaçotemporais). Do evento de interação, emerge o gênero.
101
Para Bakhtin (1999), a concepção de gênero está ligada tanto à cristalização de usos da
linguagem quanto à sua constante tendência à mudança. Para o autor, a dinâmica de
configuração e reconfiguração dos elementos verbais e não-verbais define o sentido.
Marcuschi (2000) afirma que dar nome aos gêneros não é uma medida suficiente para
conhecê-los. Ele conclui que os gêneros textuais, apesar de não se definirem com critérios
rigorosos e serem denominados com designações bastante fluidas e até vagas, não deixam de
apresentar elevado grau de organização interna. Essa constatação leva de volta às
considerações de Goffman (2010), indicando que os gêneros - no caso desta pesquisa,
conversacional - e as ocasiões sociais são reciprocamente interligados, uma vez que uma
ocasião solicita um tipo de gênero e este se adéqua às ocasiões.
Ao conceituar evento, Talmy postula:
Conceitualização de um evento – Pela operação de processos cognitivos muito
gerais que podem ser designados partilha conceitual e atribuição de entidade, a
mente humana em percepção ou concepção pode estender-se por uma fronteira em
torno de uma porção do que seria o contrário de um continum, se do espaço, do
tempo ou outro domínio qualitativo, e designar para conteúdos extraídos de dentro
da fronteira a propriedade de ser uma única entidade. Entre várias alternativas uma
categoria de uma dada entidade é percebida ou conceitualizada como um evento.
(TALMY, 2003, p. 215, tradução nossa).20
Assim, cada ocasião requer um conjunto de percepções decorrentes do tipo de
envolvimento dos participantes, de lugares sociais e físicos, enfim, uma situação específica
percebida pelo conjunto de participantes, cada qual com suas perspectivas e particularidades.
Portanto, o evento compreende mais elementos além do espaço como condição inicial; há
emoções limitadas pelas crenças e desejos daqueles que participam. O evento é, então, uma
unidade percebida, sentida e partilhada por meio dos códigos linguísticos: língua, gestos,
olhares, etc; é, pois, uma unidade construída.
O gênero, por sua vez, como assumido por Larsen-Freeman e Cameron (2008), é um
modelo de usos de linguagem que emerge conforme as experiências sociais e culturais das
pessoas vivendo em sociedade. Dessa convicção também partilha Beaugrande (1997) ao
assumir que a linguagem é um fenômeno integrado com a sociedade e com seus
conhecimentos e que ela constitui um sistema comunicativo dinâmico que é submetido à
20
Conceptualization of an Event – By the operation of very general cognitive processes that can be termed
conceptual partitioning and the ascription of entityhood, the human mind in perception or conception can
extend a boundary around a portion of what would otherwise be a continuum, whether of space, time, or
other qualitative domain, and ascribe to the excerpted contents within the boundary the property of being a
single unit entity. Among various alternative, one category of such an entity is perceived or conceptualized as
an event.
102
evolução contínua. Pensamento este que é também congruente com a noção de sistemas
adaptativos complexos bioculturais sempre em prospecção, cuja unidade constrói-se à medida
que se adapta às situações, emergindo, dessa forma, princípios de organização que podem
enquadrá-los em categorias distintas.
Portanto, o que define um gênero são regularidades como princípios de organização.
Por exemplo, numa reunião de trabalho há papéis pré-estabelecidos, sequências rotineiras,
tópicos previsíveis, com a participação das pessoas controlada por uma série de restrições.
Numa conversa considerada espontânea21 também há controles e convenções coletivas, físicas
e abstratas, mas há também um grau de liberdade entre os participantes, porque o evento de
interação acontece entre pessoas que estão interessadas em interagir. Na seção subsequente,
serão apresentados os pressupostos para a construção do gênero em estudo, a conversação,
proveniente da interação face a face.
2.4 Conversação
A conversação é uma atividade estruturalmente organizada (MARCUSCHI, 1997) que
cumpre regras e condições linguísticas que, por sua vez, estão submetidas a outras tantas
regras e convenções de natureza social, pragmática e cognitiva. Segundo Costa (2002) a
conversação envolve uma relação colaborativa entre os participantes, a atenção se volta para
um ponto ao qual todos convergem, seja o tópico discursivo ou mesmo a interação
compreendendo os participantes os objetos, enfim o Ŧ.
2.4.1 Conversação e a conversa espontânea livre (CEL)
As interações sociais mediadas pela fala possuem uma gama de tipos e seria
impossível enumerá-los. Como se viu acerca das ponderações de Goffman (2010), vários
fatores determinam o modelo das interações e os gêneros que elas produzem. São as ocasiões
sociais que definem os contornos das conversas. Há regras específicas para qualquer aspecto
da interação de linguagem. Por exemplo, há regras para se iniciar e para deixar uma interação,
há regras para se comportar durante a interação quando se pode ficar completamente
21
Usar o termo espontâneo não significa que ele esteja sendo entendido como no sentido de dicionário
(voluntário, sem artificialismos, natural, verdadeiro), conferir Houaiss (2009, versão eletrônica), mas com
algumas restrições, uma vez que em uma conversa entre seres humanos a espontaneidade total deve ser difícil
de ser atingida, a julgar pelo que se está considerando nesta pesquisa, que a linguagem está inserida nas
interações sociais, as quais, por sua vez, compreendem regras e valores que se ajustam às situações repletas
de estímulos.
103
envolvido ou alheio em maior ou menor grau, há hierarquias que determinam quem pode se
dirigir a quem; essas são apenas algumas variações dos tipos que regulam os comportamentos
nas interações de linguagem. Entretanto, essas regulamentações estão ligadas à organização
das sociedades, elas se manifestam no comportamento geral e são expressas na ação global de
interação. Delas fazem parte desde a movimentação até as escolhas lexicais. Mas, quanto ao
uso exclusivo da língua, embora não ocorra de modo isolado no gênero conversa, existem
alguns padrões conversacionais estruturantes. Sem esses não haveria possibilidade de
interação, são princípios organizadores responsáveis por manter o padrão e, então, o
entendimento entre as pessoas.
A conversação segue seu curso conforme as situações emergem na sucessão de
coordenadas espaçotemporais. Só o presente da interação pode gerar as formas que surgem,
sendo difícil de prever o desenvolvimento (os rumos) de uma conversa espontânea. Segundo
Koch et al. (1990), uma conversa espontânea é por definição não-planejável. Os autores
admitem que possa haver alguma previsibilidade – e se pensa que isso possa acontecer devido
às convenções sociais impostas pelo modo de vida cultural, como foi abordado anteriormente
–, portanto, sempre poderá haver sequências padronizadas, que se adéquem às situações
específicas, e ações imprevisíveis de fala, definidas na emergência da interação de linguagem,
que está sempre em movimento.
A conversa espontânea focada neste estudo é a conversa que ocorre de modo
intencional, em que um participante convoca o outro espontaneamente com o objetivo de
interagir verbalmente. Esse tipo de evento é diferente de uma conversa que também tem um
alto grau de espontaneidade, mas é ocasional e fortuita, como no caso de uma conversa que
ocorre quando se encontra com um conhecido no supermercado. Há espontaneidade até certo
ponto, pois há regras sociais que determinam quesitos como tópicos, duração, hierarquização
dos participantes, etc.
Portanto, há diferentes gêneros de conversas e diferentes gêneros de conversas
espontâneas, dentre as quais se distingue uma que se está concebendo como conversa
espontânea livre (CEL). É necessário esclarecer que a palavra espontânea, nesse contexto, não
implica total ausência de formalidade,ou mesmo que as pessoas estejam inteiramente livres
para agirem e falarem o que pensam sem qualquer grau de censura. Na verdade, a
espontaneidade está relacionada ao tipo de evento que livra os participantes de determinadas
contenções sociais pelo fato de já possuírem um grau de intimidade. Na CEL há um alto grau
de naturalidade, porque a interação é espontânea e não visa cumprir convenções sociais como
nas conversas funcionais. Nesse gênero de conversa, há intenção de interação e, em outros
104
tipos de conversa, como no supermercado ou em reunião de trabalho, a interação não é
provocada por um EU, ela tende a ser funcional, a serviço da interação social. A CEL, por sua
vez, emerge da intenção de um EU de estabelecer interação de linguagem.
Deve-se ressaltar que a definição de um gênero de discurso é uma ferramenta
metodológica para caracterizar o objeto de estudo. Entretanto, considera-se que, embora a
CEL tenha suas características - liberdade tópica, intimidade entre os interlocutores, duração e
tomada de turnos não demarcados, naturalidade de expressão -, trata-se de um gênero
interpretado à luz de teorias da complexidade, que consideram que os sistemas vivos seguem
sua trajetória evolutiva, buscando suas condições de adaptabilidade conforme emergem as
qualidades das interações. Por isso, a ideia de gênero servirá para focalizar, no evento de
interação cotidiana, um modo de interagir com características definidas, como as supracitadas.
2.4.2 Verbal e não-verbal
Segundo Marcuschi (1997, p. 5), a conversação é a prática social mais comum no dia a
dia do ser humano, é o meio de construção de identidades sociais e uma das formas “mais
eficientes” de controle social imediato. A fim de exercer esse poder coletivo, a conversação
tem que ser organizada para que seja uma convenção. Por isso suas ações são coordenadas e,
no dizer de Marcuschi (1997, p. 5), “exorbitam em muito a simples habilidade linguística dos
falantes”. Isso se evidencia pelas diversas formas de simbolização que são somadas à língua
com o fim de significar e dar sentido às interações.
Gumperz citado por Ribeiro e Garcez (1998) chama a atenção para diversos aspectos
do contexto que devem ser considerados a fim de que sejam construídos os significados. Ele
chama pista de contextualização os diversos recursos comunicativos presentes na estrutura
das mensagens, sinalizando sobre o tipo de atividade que está ocorrendo, sendo que os
aspectos entonacionais, prosódicos e outros somam para a construção de uma unidade que
fará sentido para os participantes. Diversos tipos de manifestações linguísticas (tom,
intensidade, respiração, expressões, gestos) associam-se como pontos de uma rede que
fornece aos organismos os elementos que vão ser considerados nas computações para a
construção dos significados.
Philips citado por Ribeiro e Garcez (1998) chama a atenção para a participação do
ouvinte na interação face a face. O ouvinte é também um locutor em potencial, mas como
ouvinte ele deve marcar sua posição através de sinais, nem sempre verbais, tanto para ratificar
a fala, isto é, mostrar ao falante que ele o ouve, quanto para administrar a seleção de
105
interlocutores. O estudo da autora mostra como, em uma interação, um único foco de atenção
é sustentado, sobretudo pela fala; ela também demonstra como os modos verbal e não-verbal
de ordenação da fala integram-se em um único sistema de organização da interação.
Philips citado por Ribeiro e Garcez (1998) postula, ainda, que na conversa há sempre um
locutor prioritário, em maior ou em menor grau, indicando que a atenção, como considerado no
início deste capítulo, oscila entre uma gradiente que vai da atenção focada e consciente à atenção
difusa; ela pode ser distribuída em intensidades variadas. Essas gradações significativas são
evidentes quando os dados são gravados em vídeos e as ações deixam transparecer os padrões de
regularidade materializados nos diversos tipos de movimentos.
A conversação envolve regras e convenções de natureza social, pragmática e cognitiva
que não podem ser dissociadas, contudo, pode-se fazer um recorte metodológico apenas para
enfocar o objeto de análise, sem com isso o deslocar do ambiente de onde emerge.
A conversação acontece segundo regras do tipo abstrato e do tipo pragmático. O
primeiro tipo está ligado a conceitos e convenções comportamentais, que podem ser
considerados itens simbólicos dispersos no conjunto de valores diluídos nas ações, muitas
vezes subliminares. O segundo tipo é responsável pela organização física do evento, como se
posicionam no espaço, como controlam o foco da atenção, ordenam as falas e incorporam o
espaço pelos objetos nele contidos.
2.4.3 Organização da conversação
Segundo Marcuschi (1997), a conversação é uma atividade estruturalmente organizada
com base na troca de turnos entre pelo menos duas pessoas. A conversação requer uma relação
colaborativa entre os participantes, de modo que um turno sempre se relaciona ao anterior de
alguma forma. Chama-se turno cada uma das intervenções de um enunciador na conversação.
Há sempre um tópico que coloca os participantes em uma espécie de zona de convergência para
a qual as ações orientam-se, sendo esse o foco que estabelece o elo entre os participantes na
interação de linguagem. Jurbran (apud ILARI, 1993) considera o tópico como um tema que
mantém a unidade entre as partes do texto a partir da criação de referentes comuns.
Baseando-se nos pesquisadores Sacks, Schegloff e Jefferson, Marcuschi (1997),
considerando a universalidade da regra “fala um de cada vez”22, apresenta características da
conversação. O autor reúne regularidades válidas para “interações espontâneas, informais,
22
Para maiores esclarecimentos, confira também o sexto capítulo de Levinson (2007, p. 361-475) – A estrutura
conversacional.
106
casuais, sem hierarquia de falantes” (MARCUSCHI, 1997, p. 18). Obviamente, outro gênero
de conversa apresentaria algumas propriedades diferentes – uma reunião de trabalho, por
exemplo, segue tópicos regulados pelas necessidades técnicas da situação.
A organização da conversação, baseada na proposta de Marcuschi (1997), possui
propriedades gerais relativamente fixas, que se resumem abaixo da seguinte forma:
há troca de falantes;
fala um por vez, as sobreposições de falas são breves;
a ordem e o tamanho do turno são variáveis;
a extensão da conversa não é fixa, nem previamente especificada;
o número mínimo de participantes é dois, mas o número máximo é variável;
o tópico pode variar indefinidamente;
a distribuição de turnos, muitas vezes disputada, acontece por meio de regras.
Como já foi apresentado, todo o comportamento social, dentre eles a conversa, é
determinado por regras. A disputa por turnos mostra, dentre outras coisas, o interesse do
participante em se impor e fazer valer sua expressividade.
As propriedades constituintes da conversação podem ser consideradas regularidades
que perpassam por numerosos tipos de ocasiões sociais a despeito de sua natureza
sociocultural.
A delimitação da conversa não será uma categoria primordial para este estudo em
virtude de que os limites de uma interação circunscrevem um espaço físico acessível pela
percepção sensorial, mas também limites inatingíveis, proporcionados pela criação de espaços
referenciais simbólicos. Portanto, a delimitação do evento de interação, que é o “palco” da
conversa, não será negligenciada, mas também não serão demarcadas suas fronteiras, porque
uma conversação é um sistema dinâmico construído na interação e pode oscilar entre o
equilíbrio e o desequilíbrio e até apresentar novas formas de organização. Assim, pode haver
inserção e saída de participantes, retornos, mudança de espaço físico, alterações no aspecto
afetivo, ruídos circundantes, bem como outras interferências externas que comprometem a
organização em curso, uma vez que são apreendidas conforme a percepção e a atenção dos
participantes. Diante disso, os limites que demarcam uma conversa são sutis ou mesmo
fugazes, demonstrando, por essa versatilidade, que se pode tratar de um sistema vivo
complexo que tende a manter o equilíbrio, mas está sujeito a mudanças de ordens diversas.
Pretendeu-se delinear, na primeira parte deste capítulo, a linguagem como uma
107
propriedade humana mais sofisticada em termos de operações neuronais. Mostrou-se que a
situação em que se encontra o homem contemporâneo, em termos fisiológicos, compreende
um aparato cognitivo conceitual que só emergiu pela linguagem verbal e que só se mantém
em evolução pelo seu fluir permanente. O ser humano é um corpo físico, químico, biológico,
social, psíquico. Um ser que percebe, categoriza, generaliza (distingue, compara), avalia,
conforme seu sistema de valores, baseado em suas condições de bem-estar. Por meio desse
sistema, os falantes constroem conceitos que podem ser tomados como unidades. Essas
unidades emergem como símbolos linguísticos pelos quais se consuma o contato, a interação.
Portanto, a qualidade da interação de linguagem é definida dentro de uma rede de
probabilidade composta por componentes bioculturais; assim, ela é restrita por uma série de
condições biológicas, físicas, químicas e simbólicas, e essas condições determinam o rumo e
o modo como uma interação desenvolver-se-á.
2.4.4 Interlocução
Um item dêitico como aqui pode ser interpretado como o elemento que evoca o espaço
que não é estático, mas um espaço em movimento, em que as situações mudam. Por isso,
partículas como aqui referem não apenas um espaço físico, mas elementos componentes de
um evento de interação. As pessoas movimentam-se e espelham suas emoções nos gestos, nas
falas, e toda essa movimentação interfere no modo como as formas da língua aparecem. Isso
indica que partículas como aqui, agora, olha instauram o discurso, abrem caminho para o
simbólico, tal como na visão de Levinson (2007), para quem as formas de interlocução são
pré-sequências, introdutórias de sequências discursivas. De fato, as operações interlocutivas
sempre introduzem o discurso, mas elas representam mais do que apenas ser um marcador do
que vem adiante, são o ponto de orientação pelo qual os interlocutores constroem-se e
constroem os tempos e espaços referidos no discurso. A interlocução figura, pois, como o
eixo das coordenadas de orientação do discurso.
Como já foi posto – Bühler citado por Lopes (1998), Levinson (2007), Mateu (1994)
–, o princípio dêitico de estabelecer o origo, apontando para a situação, completa-se com as
operações simbólico-discursivas. Enquanto a interlocução aponta o espaço físico, definindo
um eixo de coordenadas e a organização do evento, o discurso aponta referentes que não estão
necessariamente no espaço; são referentes em um espaço simbólico graças à memória que
pode “armazenar” os conceitos.
Essas considerações não parecem indicar uma dicotomia entre concreto, situacional e
108
abstrato conceitual, porque há entre esses aspectos uma relação. A interlocução estabelece o
espaço enunciativo e o discurso realiza a construção simbólica. Observando a interlocução
com mais cuidado, parece ser possível assumir que a realização linguística só pode prescindir
do Ŧ se este for considerado como pressuposto ou implícito para a criação dos T/Es
simbólicos que emergirão no discurso. Daí, supõe-se, expressões como aqui simbolizam,
entre as pessoas que participam de uma conversa, mais do que o lugar onde os corpos físicos
situam-se, mas uma perspectiva pela qual o discurso desenvolve-se. Vista pela linha teórica
desta pesquisa, a amplidão do sentido de determinadas expressões vai até aonde vão a
atenção, a percepção, a reflexão, enfim, a cognição humana.
2.5 A interlocução como um sistema complexo adaptativo (SAC)
Para assumir a interlocução como um sistema adaptativo complexo que se insere em
sistemas maiores de forma hierárquica, deve-se apropriar de pressupostos teóricos condizentes
com as propriedades dinâmicas da linguagem, realizada por um corpo que se movimenta no
espaço e que cria outros espaços linguísticos. Para esse fim, serão tomados como pressupostos
elementos das teorias da Complexidade (CAPRA, 2006, 2007; LARSEN-FREEMAN;
CAMERON, 2008; PRIGOGINE, 2002, 2009; PRIGOGINE; STENGERS, 1993); da Seleção
dos Grupos Neuronais – TSGN – (EDELMAN, 1987, 1989); e da Enunciação (BENVENISTE,
1989). Supõe-se que a articulação desse conjunto teórico poderá servir como fundamento que
permitirá uma análise capaz de possibilitar o entendimento do fenômeno da linguagem como
uma emergência dinâmica, resultante de ações humanas cognitivas com fins de interação.
Por considerar a linguagem como um sistema complexo, dar-se-á ênfase a elementos
da teoria da complexidade, pelos quais se poderá explicar o dinamismo das operações de
interlocução, que caracterizam a linguagem como um sistema complexo. Apresentar de forma
sucinta as noções de complexidade será importante para a compreensão e análise do objeto
desta pesquisa, porque essas noções podem ser associadas ao funcionamento da interlocução,
que consiste na construção do espaço enunciativo, o qual, por sua vez, constitui-se na
referência para todo o discurso.
2.5.1 Noções teóricas sobre complexidade
As noções de espaço fase e atrator são fundamentais para compreender o modo de
organização dos sistemas complexos, porque dizem respeito aos princípios que regem seus
109
movimentos. A noção de sistema permitirá entender a linguagem com toda sua carga
biocultural, compreendendo sistemas menores inseridos em sistemas maiores, realizando um
processo incessante de trocas simbólicas.
2.5.1.1 Espaço fase
Para Larsen-Freeman e Cameron (2008), o espaço fase é o espaço que delimita o
conjunto de estados possíveis de um sistema; a gama de possíveis reorganizações que um
sistema pode sofrer em função de seus agentes e elementos constituintes ou atratores. As
autoras defendem que o espaço fase representa um cenário de possibilidades de um sistema;
mudando o cenário, muda o sistema delimitado por um conjunto de dimensões coordenadas.
Como se nota na concepção das autoras, o espaço fase é dinâmico, porque está sujeito a
mudanças. Se é um cenário de possibilidades, certamente, ele se alterará quando o sistema
fluir em sua trajetória.
Segundo a física moderna, espaço fase é um conceito designado para descrever os
padrões ordenados das variáveis de um sistema complexo (CAPRA, 2006). Um sistema
comporta-se conforme o número de variáveis que o compõem, assim, os sistemas complexos
estão sempre em interação, realizando processos criativos conforme se adaptam às situações.
Essas noções, aplicadas às relações humanas, poderiam referir-se aos processos de construção
permanente realizados pelo par organismo e ambiente.
Nessa perspectiva, o processamento da linguagem compreende um corpo físico, em
constante interação com o ambiente físico e sociocultural, de forma que as operações de
linguagem emergem dessa relação. Assim, a organização do espaço enunciativo, os
enunciadores em suas perspectivas únicas, constituídos pelo princípio de recursão, constituem
o espaço fase da linguagem. Se duas pessoas seguem pela rua conversando e, de repente,
muda-se o foco da atenção, novas variáveis surgirão e elas terão que se reorganizar em função
das novas variáveis, então, as possibilidades serão alteradas em função da mudança dos
sistemas em interação.
Os fenômenos naturais, devido ao grande número de variáveis que os compõem, são
sistemas extremamente complexos. Esses sistemas são considerados caóticos, porque
descrevem movimentos aparentemente aleatórios, mas, a despeito dessa aparente
aleatoriedade, subjaz um padrão altamente organizado em decorrência dos atratores que
definem a dinâmica do sistema. Como se verá, as variáveis disponíveis em um espaçofase
enunciativo podem ser consideradas os atratores, pois elas podem determinar o estado para o
110
qual o sistema tende a se adaptar. Isto é, elas podem definir o modo de organização de uma
interação bem como o discurso que nela emerge.
2.5.1.2 Atrator
A atividade de um sistema vivo complexo é estruturada em um processo de auto-
organização no espaço e no tempo, fazendo com que ao sistema seja imposta uma série de
reações químicas, cujas velocidades e relações mútuas, conforme Prigogine e Stengers (1993),
são determinadas pela atividade das enzimas e pelos fluxos de energia que atravessam essas
reações.
O organismo humano, dentro de seu espaço fase, está sempre suscetível aos fluxos de
matéria e energia que o atravessam, levando-o a novos tipos de comportamento conforme os
atratores que surgem no seu espaço coletivo e privado. Por atrator, Capra (2006) entende a
trajetória de um sistema que nunca se repete, mas forma um padrão organizado. “O sistema
nunca se repete, de modo que cada ciclo cobre uma nova região do espaço fase” (CAPRA,
2006, p. 114). O autor explica que atrator é um padrão definido pelas variáveis do sistema e
que essas variáveis delimitam o espaço fase, isto é, o espaço que cabe ao sistema conforme
suas condições iniciais (CAPRA, 2007).
Adotando o princípio da corporização, pelo qual o mundo simbólico constrói-se, a partir
da relação entre o organismo e o ambiente, a mente, o cérebro, o corpo e o ambiente interagem,
todos para proporcionar comportamentos (GIBBS, 2005). O organismo adapta-se de forma
global ao ambiente, sendo esse um princípio organizador das interações de linguagem. Dessa
forma, impõem-se os atratores que vão definir as operações de linguagem. Para Juarrero:
Atratores auto-organizados abrangem as restrições construídas pela interação entre a
própria dinâmica interna do sistema e seu ambiente. Atratores, portanto, representam
uma dinâmica organização do sistema incluindo sua estrutura externa ou condições
de fronteira. (JUARRERO, 2002, p. 153, tradução nossa).23
Como se observa, trata-se de um processo de auto-organização pelo qual o sistema vai
se adaptando. Nesse âmbito, a linguagem, entendida como um SAC, compreende o processo
de auto-organização de espaços enunciativos, nos quais serão construídas as referências de
todo o discurso. Portanto, os SACs organizam-se pela emergência de formas criativas que
23
[…] attractors embody the constraints constructed by the interplay between the system´s own internal
dynamics and its environment. Attractors therefore represent a dynamical system´s organization including its
external structure or boundary conditions.
111
decorrem de sua adaptação, sendo os atratores os contornos que definem as formas que
emergem. Entre uma rede de possibilidades, um sistema tende a seguir seu curso privilegiado
devido a uma série de condições impostas pela dimensão dos atratores.
Na vida humana, pode-se pensar nas limitações físicas e culturais como atratores. O
formato e a condição de bípedes mamíferos - volume, massa, aparelho locomotor, todos esses
elementos - podem ser considerados atratores, porque delimitam o raio de ação - espaço fase -
e determinam o comportamento humano.
Na linguagem, os atratores são manifestos por forças físicas e simbólicas que se
encontram no momento em que as pessoas estão conectadas e definem o modo da interação.
Essas forças são de natureza física. O corpo, em virtude da matéria de que é formado,
apresenta qualidades particulares que condicionam as pessoas a se constituírem de um modo
particular e de natureza simbólica, cuja materialidade é construída na relação intersubjetiva
mediada pela linguagem.
Os atratores físicos podem ser permanentes, como os anteriormente citados, ou
também podem ser efêmeros, como um estrondo durante uma interação. O barulho poderia
provocar mudanças pequenas ou enormes na estrutura da interação, por isso, atratores físicos
não podem ser negligenciados na análise que ora se propõe.
Forças simbólicas são pressões culturais constituídas por elementos dispersos em
tempos e espaços distintos. Sua unidade é apenas uma dimensão recortada e apreendida pelas
pessoas, baseando-se em um Ŧ. Os sistemas simbólicos são organizados conforme as pessoas
interagem e criam códigos que passam a respeitar e aceitar como definidores do
comportamento. Esses códigos manifestam-se no comportamento cotidiano estabelecendo,
por exemplo, o modo como as pessoas cumprimentam-se, como se dirigem umas às outras,
como se apresentam no ambiente, como se vestem, como falam, enfim, como agem
socialmente. Quando se interage, observam-se os corpos, os movimentos expressivos,
avaliam-se as intenções, atribuem-se significados aos objetos. Essas ações parecem dispersas,
mas somam uma série de informações que, ao serem computadas, pressionam a organização
do sistema simbólico.
Capra distingue três tipos de atratores, resumido-os da seguinte forma:
Há três tipos básicos de atrator: atratores punctiformes, correspondentes a sistemas
que atingem um equilíbrio estável; atratores periódicos, correspondentes a
oscilações periódicas; e os atratores estranhos, correspondentes a sistemas caóticos.
(CAPRA, 2006, p. 114).
Numa interação, os atratores ponto seriam a composição da cena com pessoas no
112
espaço e no tempo e os objetos que as cercam, determinando as condições básicas iniciais
como tendências naturais do sistema. Os atratores de limite de círculo poderiam ser normas
conversacionais e sociais - troca de turnos, etiquetas, gramática -, ou seja, a interação cumpre
determinadas formalidades previsíveis, podendo se repetir de tempos em tempos, oscilando
em mais de um estado estável. O atrator estranho, por sua vez, seria as interferências que
levariam o sistema a se desequilibrar. Uma pessoa que chegasse gritando, por exemplo, ou um
ataque cardíaco num dos participantes seriam atratores com grau de previsibilidade pequeno,
mas seu peso no desenvolvimento do curso de uma interação seria muito grande, obrigando o
sistema a se reorganizar.
2.5.1.3 A condição emergencial dos atratores na relação organismo-ambiente
Da mesma maneira que o espaço físico e os objetos impõem restrições ao deslocamento
do corpo, as restrições sociais impulsionam ou restringem as pessoas a agirem de determinado
jeito. Isso pode ser explicado quando se compreende o humano como um sistema adaptativo
complexo. Nessa perspectiva, os atratores modelam e definem as interações.
O sistema de linguagem que se desenvolve possibilita criar um mundo conceitual que
pode prescindir do mundo físico, mas que se liga profundamente a ele, porque é dele sua
origem. Nesta pesquisa, tal como Johnson (2007), considera-se que os modelos dos processos
de interação definem os contornos das experiências humanas no mundo e como o mundo faz
sentido para o homem. Isso mostra que os processos de significação são construídos na ação
do organismo no ambiente em interação com os coespecíficos, através de suas experiências
perceptuais e mentais. Essas compreendem o espaço físico e os movimentos, bem como o
espaço mental decorrente do estado evolutivo atual do cérebro humano, envolvendo memória
e modelos conceituais que são a base para a criação do simbólico.
Os atratores, no caso da linguagem como um sistema complexo, constituem-se, pois,
em: atratores internos – relativos ao enunciador, às suas configurações mentais, aos seus
conhecimentos e mecanismos recursivos24 – e atratores externos – externos à própria ação do
enunciador de se situar num espaço físico e enunciativo, estabelecendo-se como locutor social
imerso em um nicho que apresenta suas restrições específicas. Portanto, os fatores externos
não são de fato externos ao organismo, mas resultam de suas computações decorrentes de sua
24
Ratificando o conceito: recursão é um mecanismo biológico que, segundo Catermol (2010, p. 83), possibilita
ao organismo a interação entre exterior e interior, “especifica sua configuração auto-organizativa em termos
hierárquicos de padrão de rede” e “delimita seu grau de estabilidade e variabilidade em redes de espaços fase
em função de seus atratores”.
113
atividade adaptativa, auto-organizadora no meio em que vive, ou melhor, no seu nicho. Essa
atividade é computada e realizada em termos de estruturas neuronais, evidenciando que os
fatores externos tornam-se, para o organismo, internos.
Essas considerações levam ao que assume Johnson (2007) a respeito do modo como se
constrói o sistema de significação. O autor diz que este é construído pelo fluir dos corpos no
espaço, isto é, emerge da interação entre o organismo e o ambiente. A atenção aos
movimentos corporais é a chave da compreensão sobre como as coisas e experiências tornam-
se significativas para o organismo humano. Pensa-se poder acrescentar que tanto os
movimentos humanos como o espaço demarcam-se conforme o decorrer das interações.
Estar consciente de si mesmo, em um ambiente dinâmico, envolvido em interações
constantes, leva à indagação sobre os limites do corpo e do ambiente. Sobre isso, Gibbs
(2005) relata que as fronteiras entre o interior humano e o exterior são porosas e que o mundo
torna-se vivo para o ser humano, porque este o incorpora em seu corpo, sendo essa fusão entre
os dois sistemas um entrelaçamento complexo, o que torna difícil distinguir uma fronteira
entre os dois. Por isso, autores como Gibbs (2005) e Johnson (2007) asseguram que se deve
tomar como objeto da investigação científica o par organismo e ambiente. Isso implica a
consideração de uma dinâmica no Ŧ de onde e quando emerge o foco desta pesquisa, que são
as operações de interlocução, componentes do sistema maior que é a interação de linguagem.
2.5.1.4 Abertura, não-linearidade e dissipação
Os sistemas vivos complexos, segundo teorias das ciências naturais, caracterizam-se
pelos conceitos de abertura, que consiste na troca de energia com o meio; de não-linearidade,
que consiste na probabilidade de relações entre os componentes dos sistemas; de dissipação,
que consiste no estado de flutuação entre a ordem e a desordem, levando o sistema a se
manter em permanente estado de reorganização.
Os sistemas vivos complexos permanecem em processo metabólico constante. Capra
(2007) descreve esse processo como um incessante fluxo de reações químicas entre energia e
matéria, por meio do qual o organismo vivo cria-se, renova-se e se perpetua. Na condição de
seres complexos, os humanos, como os demais seres vivos, são sistemas abertos, isto é,
trocam matéria e energia com o meio, consomem alimento e excretam resíduos. Essas
propriedades mostram que o permanente estado dinâmico do ser vivo requer que se olhe para
os humanos como seres vivos complexos sempre em adaptação às situações novas.
A condição natural para os seres vivos é viver sempre em redes, sendo também
114
caracterizados por serem envolvidos por uma membrana que os distingue entre os outros e o
meio. A permeabilidade desta membrana, assume Capra (2007), permite a regulagem da
composição celular dos organismos e a preservação de sua identidade. Nos seres humanos, a
membrana que separa um indivíduo do meio é a epiderme. Esse extenso órgão, além de
determinar as fronteiras materiais, é também um componente sensível por meio do qual
muitas sensações são processadas no curso das interações entre o organismo e o ambiente.
Em um sistema de dinâmica não-linear, segundo Capra (2007), revelam-se padrões
subjacentes a um comportamento aparentemente caótico. Difere, pois, da dinâmica linear, que
pode prever o comportamento de sistemas simples. Para o autor, a dinâmica não-linear
representa uma substituição da quantidade pela qualidade, “a matemática convencional lida
com quantidades e fórmulas, a teoria da complexidade lida com qualidade e padrão”
(CAPRA, 2007, p. 13). Essa premissa, considerada no início deste capítulo, induz a pesquisa
para uma análise dos aspectos qualitativos da interlocução, abordando-se os padrões que se
repetem, representados por várias estruturas.
O comportamento de um sistema linear é previsível e limitado, nos sistemas
complexos. Conforme Larsen-Freeman e Cameron (2008, p. 31), as relações não-lineares
acontecem em continum, por causa disso as mudanças não são proporcionais aos estímulos, as
interações entre os elementos não são fixas e, por isso, podem ser imprevisíveis. Na verdade,
as interações, como toda a atividade humana, tem algo de determinado e de indeterminado.
Como se mostrou, os atratores modelam as trajetórias e definem o rumo do sistema; mas, por
outro lado, há o componente da mudança, representado pelo presente perpétuo: cada tempo é
um novo presente que pode quase se repetir ou mudar radicalmente. No caso da linguagem,
ver-se-á que o Ŧ determina grande parte do que pode ocorrer em uma interação, entretanto,
um atrator estranho pode mudar seu curso. As pessoas em interação possuem uma enormidade
de elementos para comporem a cena enunciativa. O gênero, o evento, as ações são elementos
convencionados na atividade social que influenciam as formas de linguagem como uma
emergência possível dentre uma rede de probabilidades, já que os componentes podem manter
entre si relações não-lineares. Qualquer dado de memória pode ser combinado com o presente
enunciativo e, assim, proporcionar uma vastidão de possibilidades, já que quase não há
impedimento para o acesso à memória. Nesta pesquisa, sugere-se que a não-linearidade é uma
característica do modo de operar da linguagem humana; a relação entre seus elementos
componentes apresenta tendências à imprevisibilidade.
As estruturas dissipativas mantêm-se em estado afastado do equilíbrio e podem
evoluir. “Quando o fluxo de energia e de matéria que passa através delas aumenta, elas podem
115
experimentar novas instabilidades e se transformar em novas estruturas de complexidade
crescente” (CAPRA, 2006, p. 82).
A dinâmica das estruturas dissipativas inclui a emergência espontânea de novas formas
de ordem. Quando o fluxo de energia aumenta, o sistema encontra um ponto de instabilidade ou
de bifurcação, a partir do qual ele pode se modificar e podem surgir novas estruturas e novas
formas de ordem. Essa emergência espontânea, segundo Capra (2006), é uma das maiores
características dos sistemas vivos e tem sido reconhecida como a origem dinâmica do
desenvolvimento, da aprendizagem e da evolução. Trata-se da criatividade através da geração
de novas formas. Essa característica dos sistemas vivos abertos – trocar energia e matéria como
meio – significa, conforme Capra (2007), a busca constante da vida pela novidade. Percebe-se,
assim, que os sistemas complexos oscilam entre a estabilidade e a instabilidade, tal qual afirma
Prigogine (2002), apontando que a historicidade, ou seja, a mudança através do tempo ocorre já
nos processos químicos, podendo se repetir em nível macro.
A evolução acontece assim por meio de uma sucessão de estádios descritos pelas
leis determinísticas e probabilísticas. Mesmo em nível macroscópico,
probabilidade e determinismo não se contrapõem, mas se completam. A
existência de bifurcações confere um caráter histórico à evolução de um sistema: a
história introduz-se, portanto, já nos sistemas mais simples da química e da
hidrodinâmica. (PRIGOGINE, 2002, p. 24, grifo nosso).
Os processos são, pois, naturais da condição de seres vivos. Seu “eterno fluir” mantém
oscilando entre períodos estáveis até que a influência de algum atrator, dentre uma gama de
possibilidades, influencie-o transformando-o em alguma medida.
Como sistemas caóticos - longe do equilíbrio -, os sistemas vivos auto-organizantes,
adaptativos passam por etapas estáveis às quais se seguem pontos de instabilidade geradores
de mudança. É possível supor que a interação de linguagem assemelha-se aos sistemas
caóticos devido a sua emergência dinâmica, sob condições que a limitam, impulsionam-na e
modelam suas manifestações. Carregadas de significados, as ações de linguagem regulam e
são reguladas na própria interação, quando são definidas pelas restrições impostas pelos
atratores em um espaço fase construído pelos organismos no presente enunciativo.
2.5.2 A construção do espaço enunciativo
A enunciação é, segundo Benveniste (1989), a necessidade do locutor de referir-se
pelo discurso e, para o outro, a possibilidade de correferir e também se instanciar como
116
locutor. Essa necessidade de que fala Benveniste (1989) pode estar associada à hipótese de
Edelman (1989) de que a classificação de gestos entre os coespecíficos emergiu de estados
afetivos que geraram estruturas de distinção de categoria selfnonself ( EU-NÃO-EU). As duas
hipóteses concebem a linguagem como uma propriedade humana ligada à distinção EU-NÃO-
EU e a distinção PRESENTE-NÃO-PRESENTE, embora o foco de Edelman (1989) seja para
as condições de surgimento dessa propriedade e o de Benveniste (1989) seja para a descrição
dos seus princípios de materialização.
Benveniste (1989, p. 222) postula a imbricação orgânica da linguagem quando afirma
“a linguagem serve para viver”. A noção do autor descreve com justeza o verdadeiro status em
relação à linguagem: o ser humano é ser linguagem, é criador de linguagem; essa propriedade
emergiu das condições biológicas evolutivas de seres sociais em adaptação no nicho.
É importante notar que Benveniste (1989) acentua a existência de formas referenciais
de pessoa, tempo e lugar, evidenciando a prioridade para a linguagem verbal como forma
analisável. Entretanto, a teoria do autor permite estender a noção de formas para o conjunto
linguístico humano biocultural, isto é, as formas do corpo físico e um espaço simbólico como
estruturantes na construção do significado. Por essa razão, a teoria permite acrescentar como
objetos observáveis não só as formas verbais, mas as formas corporais, como os gestos, as
expressões faciais e os movimentos globais do corpo, levando em conta que, no dizer do
autor, o ato individual de pronunciar o enunciado deve ser objeto do linguista
(BENVENISTE, 1989). Ressalva-se neste ponto, entretanto, que não se trata de um ato
exclusivamente individual, já que ele é direcionado a um TU que é também constitutivo.
Assim, o discurso constrói-se em bases físicas das quais partem as referências para a
construção do simbólico, que se orienta pela localização das pessoas no tempo e no espaço.
Essa constatação leva a concluir que o ato de linguagem envolve corpos plenos de
possibilidades em movimento no espaço e que todos os seus movimentos podem,
potencialmente, ser elementos considerados na análise linguística.
O objetivo deste capítulo foi apresentar os fundamentos da complexidade que se julga
adequados para serem aplicados ao campo linguístico. Tratou-se de conceitos cruciais para a
compreensão de um sistema complexo que opera em um espaço fase governado por atratores
que limitam e/ou induzem a ação do sistema. Abordou-se a significação como uma função
organismo-ambiente, função significativa, permitindo, assim, que a linguagem possa ser
compreendida como um sistema adaptativo complexo. Apresentaram-se elementos da teoria da
enunciação como fundamento dos princípios formais da língua que permitem sua orientação
espaçotemporal e sua realização em conexão com outros tipos de sistemas de linguagem.
117
3 INTERLOCUÇÃO: UM SISTEMA COMPLEXO
Neste capítulo apresentar-se-á a análise da interlocução no processo instantâneo em
que ela emerge, orientando a investigação para detectar determinados padrões pelos quais a
língua interage com outros sistemas de linguagem, resultando em um processo cognitivo que
envolve o ser em interação e não apenas um sistema de códigos independente do evento de
onde emerge. Pretende-se mostrar como a interlocução apresenta características dos sistemas
vivos complexos ao se realizar pela associação de vários subsistemas em movimento, fluindo
entre zonas de equilíbrio e desequilíbrio, com o fim adaptativo.
3.1 Retomando o objeto
As OIs podem ser consideradas uma categoria que engloba as funções dos MDs
condutores do tópico e marcadores organizacionais - e acrescenta o modo como as emissões
são expressas. A forma como as emissões são lançadas e o modo como o corpo movimenta-
se, além de modularem o texto revelando intenções e “espírito” dos enunciadores, são
responsáveis pela construção do sentido.
Conforme análise feita, os aspectos multimodais contribuem de diversas maneiras para
as computações que vão gerar os significados, sugerindo que a língua constrói-se a partir de
uma percepção global das pessoas no convívio social, em movimento, integrando uma
multiplicidade de sistemas dos quais se organiza o todo, portanto, mais movimentos estão
envolvidos no processo de linguagem.
Uma sucessão de ações ocorre para constituição do espaço enunciativo (Ŧ). Os MDs
contribuem para garantir a coerência discursiva no texto e na organização da interação, ao
definir o espaço físico e social dos enunciadores. O material analisado mostra que, além das
funções “meta-discursiva” e “meta-interativa” dos MDs, há marcadores que advêm do
conhecimento que os falantes partilham no Ŧ; esse conhecimento é alcançado por meio de
atenção partilhada e partilhas anteriores que funcionam como pistas de orientação para a
interpretação dos textos produzidos in loco.
A marca formal para identificar as ações de interlocução, como já mostrado na seção
da metodologia, são as distinções entre pessoa e tempo. Primeira e segunda (1ª / 2ª) pessoas
opõem-se à terceira (3ª) pessoa, presente opõe-se ao não-presente, sendo que a forma de
aparecimento dessas distinções pode ser isolada ou concomitante, isto é, as duas marcas
podem aparecer ao mesmo tempo em uma emissão.
118
Na superfície textual aparecem atualizados os elementos percepto-cognitivos, como os
dêiticos – pronomes, advérbios –, e também uma série de movimentos associados à emissão do
texto, como são os contornos entonacionais, as expressões, o olhar, tudo compondo a base que
levará ao aspecto simbólico, abstrato de significados conceituais mais amplos. A construção do
tópico (objeto discursivo ou referência) pode se realizar por ações conjuntas que levarão à
identificação do objeto. Nesse caso, os significados são alcançados a partir de diversos
conhecimentos, relacionados pelos falantes de alguma forma, e da consciência recíproca que os
interlocutores têm do que sabem. O Ŧ já é um dado partilhado e representa um pano de fundo para
a construção textual.
O funcionamento das OIs revela o caráter meta-discursivo da linguagem ao versar
sobre si mesma e sobre os enunciadores que expõem seus pontos de vista, suas emoções,
autorreferem-se, situam-se e imprimem sua energia nervosa por meio de um sistema múltiplo
que integra a construção do significado na cena enunciativa.
3.2 Descrição das amostras
Os exemplos da amostra 1 evidenciam que, em uma CEL, a formulação dos textos
apoia-se no Ŧ de diversas maneiras. Essa questão não é tão simples, pelo fato de que, em
algumas situações, não se pode distinguir ou precisar se uma emissão refere-se à continuidade
do tópico ou à auto-organização dos enunciadores. No quadro teórico estabelecido, a
interação de linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural compreende
pessoas em sua integralidade de modo que o conteúdo e o contorno das emissões fornecem
significantes pistas sobre o espaço enunciativo que servirá de ground para o surgimento do
texto e do significado.
Amostra 1
Exemplo 06
1 - 05:00 – K: na hora de fazer essa ligação do joelho é: [olhando C e fazendo gestos]
O primeiro elemento marcado25 na linha 1 é a expressão essa. Esse item refere-se à
narração que vinha sendo desenvolvida, no tempo 4:50. Ao dizer eu sei que a hora que [?]
tirou o joelho que fazia a ligação assim, K introduz o objeto discursivo ligação, por isso, ao
25
Ao se lançar mão de dados do corpus, (registrados nas amostras) será utilizado sempre o número da linha
para identificar os exemplos.
119
retomá-lo, usa, na linha 1, o pronome para indicar que a ligação de que fala já fora
introduzida. Por outro lado, não se pode desconsiderar que o pronome também pode se referir
à cena enunciativa, porque ela descreve com as mãos a ligação do encanamento, descrevendo
um movimento perpendicular, movimento para o qual os interlocutores e a locutora estão
atentos. Como se nota, o elemento essa apresenta, como preconizou Marcuschi (1989), a
propriedade multifuncional de apontar o curso da língua, ou seja, a condução tópica ao
mesmo tempo em que aponta para os estímulos percepto-cognitivos. Pode-se dizer que aponta
para o discurso e para o ato mesmo de produzir o discurso em um tempo e lugar, ou melhor,
no presente enunciativo, Ŧ.
À luz da linguagem como um sistema adaptativo complexo biocultural, essa
ocorrência explica-se pela linearidade através da qual o texto desenvolve-se - mantendo uma
coerência que o unifica - e também pela não-linearidade, promovida pela condição de abertura
através da qual o organismo (os enunciadores) interage com seu meio, de onde sofre pressões
que o obrigam a se reorganizar para se adaptar. A adaptação implica algum tipo de mudança.
A inserção de C demonstra a sequenciação na linearidade tópica, e reorganização desse
tópico, ligada à construção da cena. Tomando a linguagem como um sistema complexo, pode-
se aceitar que no plano linear a ordem estabelece-se por sequências que mantêm entre si um
alto grau de coerência, garantida pelo léxico e pela gramática. Paralelamente, as inserções
quebram a linearidade ao irromperem motivadas por fatores que estão ligados ao aspecto
perceptual e cognitivo.
Do segmento 2 ao 9 as ações estão explicitamente voltadas para as pessoas,
reorganizando-se no tempo e espaço.
Exemplo 07
2- 05:05 – C: [olhando para a janela e para K] tá sentindo frio? aqui? [apontando para a
janela]
3- 05:07 – K: não, tá ótimo
4- 05:06 – CL: → tem blusa ali se quiser ah/ ↓ cê trouxe blusa
5- 05:08 – C: n: → não na hora a gente fecha [para CL]
6- 05:09 – K: na hora que ele ↑ puxou o joelho
7- 05:10 – K: o joelho tava: [~] tava solto
8- 05:10 – CL: [para C] eh:: ( ) ↓ ê:: [colocando a língua para fora, como se dizendo bobo]
9- 05:12 – K: como se tivesse só encaixando [~] olha que doidera
120
O foco são os falantes, como em 2, C pergunta se K está sentindo frio. Visivelmente se
tem, nessa fala, oculta a marca de pessoa (Tu) e a marca explícita do tempo presente pela
forma reduzida do verbo estar (tá). O advérbio aqui está completamente ligado ao Ŧ, pois
deixa subentendido uma série de informações, como “eu estou perguntando se está com frio,
porque a janela está aberta e está entrando uma brisa”. Isso pode ser percebido pelos
movimentos corporais de C que, inclusive, mais tarde fecha parte da janela. No segmento 3,
ao dizer não, tá ótimo, K deixa implícita uma série de informações que tendem para um
significado como “para mim está ótimo” ou “eu não estou com frio”, apresentando marcas de
pessoa e formas de tempo que garantem se tratar de operações de interlocução. Na linha 8, CL
emite um som supragramatical e faz uma expressão facial que, em conjunto, significam que
ele reconhece que fez uma bobagem ao oferecer uma blusa para K. Ele reconhece isso, porque
C dá a entender que não precisa emprestar uma blusa, pois, quando K sentir frio, fecha-se a
janela. Na linha 9, ao finalizar o relato, K emite olha que doidera!, mostrando sua estranheza
em relação à situação do encanamento que não foi bem feito. Essa emissão refere-se ao
próprio enunciador e seu conteúdo revela algo sobre ele.
Esse trecho deixa evidências de que o fluxo tópico segue seu curso linear enquanto a
interação organiza-se de forma não-linear, uma vez que as ações podem ocorrer ao mesmo
tempo e conjugar diferentes aspectos, como os estímulos visuais, os pré-concebidos
(estados físicos – temperatura –, normas de convívio social, por exemplo), as falas, o espaço
físico. Enquanto C e CL engajam-se em uma troca de ações de organização do espaço, K
continua sua narração evidenciando a simultaneidade de ações sem, no entanto, haver
incompreensão.
Essa dinâmica interlocutiva pode ser considerada uma característica dos sistemas
complexos, que apresentam um elevado grau de organização subjacente a uma aparência
caótica. Falas simultâneas não indicam caos, mas indicam que existem operações pelas quais
as pessoas coordenam estímulos percebidos de maneira multimodal; assim, a visão e audição
são grandes aliadas da língua, que conta com esses perceptos para sua organização. A
quantidade de elementos computados pode explicar a sobreposição de falas no trecho, a
atenção está dirigida para um ponto, mas outros são também considerados. Isso ocorre
também do segmento 62 ao 64, quando CL leva a mão em direção à janela e K emite tá bom,
isto é, não precisa fechar a janela, a temperatura está boa, etc. Os falantes computam os gestos
e os consideram como antecedentes discursivos.
121
Exemplo 08
61- 06:59 – C: aí fi/ ficamos me::ses
62- 07:00 – CL: [leva a mão em direção à janela]
63- 07:01 – K: tá bom [para CL que ia fechar a janela]
64- 07:02 – CL: tá bom assim?
No segmento 10, abaixo, C usa uma sequência típica da conversação que indica início
de turno e, ao mesmo tempo, uma marca de continuidade (continuidade ao que K vinha
narrando sobre o problema no encanamento).
Exemplo 09
10- 5:14 – C: e assim, Neilton falou q/ Neilton: Neilton ↓deu o parecer sobre isso?
11- 5:18 – K: ele vai lá hoje::
12- 5:19 – K: tá previsto pr‟ele ir lá hoje mas eu acho
13- 5:22 – C: ↑ não/ mas assim ( )
14- 5:23 – C: ele foi responsável por isso? ( ) ou acontec/ acontece::u: [movimento semântico
de mão explicitando o modo como aconteceu, parece indicar “por acaso”]
A expressão e assim confirma, mais uma vez, a propriedade multimodal de
determinadas ações organizadoras da interação e a narração introduzindo o falante e a
retomada do tópico ao mesmo tempo. No segmento 13, C interrompe K - não/ mas assim. O
não sugere um reparo, indicando seu interesse por uma informação específica que ela introduz
por mas assim, fazendo o encadeamento textual. Isso demonstra que a construção do sentido
deve-se às informações sobre o que os falantes conhecem, sentem e acham. Em 12 e 13
percebe-se uma intenção de K expor seu ponto de vista sobre o fato, mas C a interrompe para
buscar conhecimento sobre o tópico em curso. Esse fato evidencia o cuidado dos
enunciadores para com a construção do conhecimento. Eles vão se informando, mostrando o
que sabem e complementando o conhecimento do interlocutor para garantir a coerência do
texto conversacional. Isso mostra que a construção do discurso compreende o tempo presente,
situando e espacializando os interlocutores, e o tempo linguístico, que funde os tempos,
amarrando-os ao presente enunciativo apreendido e computado para a produção do
significado.
Nos segmentos 9, 12, 16, 22, 45, dispersos na amostra 1, respectivamente, as falas de
122
K – olha que doidera; eu acho; gente, não tem muito sentido...; eu num to querendo mais; a: é
um saco – apresentam marcas de estados interiores, sentimentos e reflexões de um EU
indicando que um self manifesta-se expondo o que pensa e o que sente. Essas emissões
referem-se a estados internos, mudando o foco para o locutor, portanto, para a interação e
não para o fluxo narrativo. Também outras falas como as de C - no::ssa ... i::hh e olha que
coisa –, nas linhas 33 e 56, respectivamente, mostram manifestações interiores, sendo essa
última emissão uma invocação do TU, oculto na forma verbal. Note-se que o falante
convoca o TU para manifestar um estado interior. As emissões de CL – cê tem que e eu acho
difícil –, nas linhas 17 e 44, revelam opiniões, posições, crenças e estados internos
denotando o papel social da linguagem de instituir o espaço coletivo em que o falante refere-
se a si e ao outro como condição básica de existência. Essa questão também se exemplifica
pelo trecho que compreende as linhas 37 a 42, em seguida, em que os participantes
manifestam opinião.
Exemplo 10
37- 6:10 - C: [pegando a garrafa e servindo as taças] ↑ eu tô achando bom sem
gelar, cês tão?
38- 6:12 – CL: [volta-se para C] eu também tô gostano ( ) ↓ tá ótimo
39- 6:13 – K: eu também tô
40- 6:15 – C: num tá? [para K]
41- 6:16 – K: tá ótimo [para C]
42- 6:16 – C: inve::ja:: [balançando a garrafa, mostrando-a aos técnicos]
Eles falam o que estão achando do vinho, chamando a atenção para o fato de que a
sobrepujança do objeto tridimensional no Ŧ dispensa a referência verbal, e isso revela o
quanto as formas da língua emergem em função da composição da cena comunicativa. O
tópico não aparece na superfície textual, ele é um objeto percebido pelo grupo em atenção
conjunta.
A seleção de tópicos discursivos pode ser realizada por meio da atenção partilhada.
Também as intenções dos falantes são reveladas pela modulação dos enunciados, que também
funcionam como marcas interpretáveis. Na linha 37 (C diz eu tô achando bom sem gelar, cês
tão?), a construção do tópico dá-se quando os participantes percebem a garrafa e a
consideram em suas computações para dar sentido à emissão de C. Nesse exemplo, a
construção do tópico atualiza-se pela atenção compartilhada; provavelmente, foi o movimento
123
de C, ao pegar na taça, que direcionou a atenção dos participantes para um ponto. A
identificação de aspectos percepto-cognitivos demonstra que a atenção partilhada pode ser
apontada como um dado que fornece base para a construção do texto. Nesse caso, o objeto da
predicação é acessível aos participantes pelo seu conjunto perceptual e por sua posição
espacial no ambiente da conversa.
Na linha 43, K apossa-se do turno mudando o tópico ao solicitar uma informação de
C, mas ela é interrompida por CL.
Exemplo 11
43- 6:18 – K: aqui me conta/ [olhando para C e depois volta-se para CL que intervém]
44- 6:19 – CL: esse é o problema qu‟eu qu‟eu acho difícil em apartamento é isso
A inserção aqui, me conta deixa claro que se trata de uma operação de interlocução,
pois aponta duplamente para o EU, por meio do advérbio - que, nesse caso, indica a
circunstância global da pessoa, do lugar e do momento - e do conteúdo oracional - que
também indica o EU e o TU estabelecidos pelo pronome me explícito e pelo tu subentendido
na forma verbal. Assim se estabelece o elo básico da interlocução EU↔TU.
Na linha 17, na fala de CL, o demonstrativo esse indica um retorno no texto, referindo-
se ao problema vivido por K (o vazamento hidráulico); e a oração imperativa cê tem que
mostra que existe uma intenção de convencimento por parte de CL.
Exemplo 12
17- 5:30 – CL: [?] [?] não/ mas esse é um problema da construtora cê tem que acionar é quem
contruiu uá
Percebe-se a intenção do EU de convencer o TU a mudar seu comportamento. CL
indica a K o que fazer diante da situação. Isso parece um indício de uma necessidade de
construir um elo EU↔TU por meio do engajamento linguístico para estabelecer a
interlocução. Assim também parecem ser os pares adjacentes, nomeados nesta pesquisa de
“par de confirmação”, que materializam o engajamento indicando que se trata de mais um
recurso para estabelecer o elo, ou, no dizer de Marcuschi (1989, p. 299), para sustentar a
interação, como segue abaixo:
124
Exemplo 13
22- 5:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu? [olhando
C]
23- 5:40 – CL: é claro
Exemplo 14
45- 6:23 – K: a: é um saco a/ ↑além do mais porque não ha↑via vazamentos visíveis no meu
apartamento entendeu?
46- 6:29 – CL: sei
Exemplo 15
48- 6:33 – CL: e o cara, vai lá embaixo, né? [gesto descendente com a cabeça]
49- 6:34 – K: é::
Na linha 22 há um marcador que faz um elo entre o texto e o EU. A sequência então
assim ( ) eu num tô querendo mais..., emitida por K, liga o fato do vazamento, que vinha
sendo narrado, ao que ela pensa sobre o fato. Isso indica que nas OIs os marcadores de
interlocução exercem a função de relacionar o texto - o relato do vazamento - e a interação - o
posicionamento do EU perante o fato; o conector faz um deslocamento do eixo linguístico
para o eixo pragmático.
Da linha 26 até 32, o participante CL faz três tentativas de intervenção até que K
responda sua pergunta. A observação do evento mostra que a repetição de CL ocorre porque
K estava engajada com C e ele, CL, deseja se inserir como participante. Isso parece ser mais
uma evidência de como a organização da interação interfere nas formas textuais, isto é, o
discurso vai se tecendo entre as articulações linguísticas e interacionais, portanto, uma
demonstração de que os aspectos percepto-cognitivos são importantes para a construção da
relação enunciador-enunciatário e, consequentemente, para a construção do sentido.
O gesto e o toque visando à tomada de turno ou mesmo à manutenção do elo também
ocorrem na amostra 1. Na linha 15, CL tenta interceder levantando o braço, na linha 57, K,
rindo, adianta o tronco e toca as mãos de C, que repousavam sobre as pernas cruzadas (essa
ação parece representar o estabelecimento do elo) e, por fim, na linha 71, C adianta o tronco e
toca K, retomando o turno para continuar a narração interrompida; tudo indica que C quer
explicar a causa de um entupimento que narrara em turnos anteriores.
125
A seguir, na amostra 2, outros aspectos serão enfatizados, já que os acima expostos
também se repetem, como é característico de toda CEL.
Amostra 2
Sobre essa amostra, pode-se destacar o trecho que vai do segmento 11 ao segmento 25
e que reflete a ordem subjacente ao aparente caos.
Exemplo 16
11- 35:10 – [todos riem e falam ao mesmo tempo]
12- 35:15 – CL: eu fiquei sabendo [?]
13- 35:18 – K – C tá louca pra ir lá no Shopping pra ela ir buscar [?]
14- 35:19 – CL: não/ já inaugurô:: já inaugurou
15- 35:20 – C: inaugurou menina diz que ↑é li::ndo
16- 35:22 – CL: [?] diz que/ mas tem cena:
17- 35:23 – C: eu num vi ainda não [olhando para CL]
18- 35:24 – CL: mas ocê sabe da cena ( ) ↓das pessoas
19- 35:25 – K - C tá enlouqueci:da pra ir ao shopping
20- 35:26 – C: ó teve/ ↑ tombou até caminhão de leite [?]
21- Paropeba
21- 35:26 – CL: [↑ risada]
22- 35:28 – K: batê cabe:lo [balança cabeça] no
shopping
23- 35:29 – G: de:u/
24- 35:32 – K: [olhando C] o que é que ocê falou?
25- 35:33 – G: deu ↑fi:la
Quando os quatro falantes elegem o tópico “shopping de Sete Lagoas” - a partir da
sugestão de K, que pede a C para consultar a pauta -, ocorre, como se vê na linha 11, uma
confluência de falas e risos, provavelmente motivados pela confusão que houve na
inauguração do shopping. Apenas K não sabia do evento e faz um comentário pretendendo
dizer que C está louca para ir ao shopping “batê cabelo”. Alguma coisa que K diz faz com que
CL replique, não/ já inaugurou, explicando-lhe que o shopping já fora inaugurado. O trecho
mostra que o encadeamento de sequências, muitas delas sobrepostas, vai sendo organizado à
medida que o turno vai sendo disputado. CL tenta introduzir um turno nas linhas 12 (eu fiquei
126
sabendo), 16 (diz que/ mas tem cena:), 18 (mas ocê sabe da cena [...] das pessoas),
disputando com K, que intervém nos segmentos 15, 19 e 22, antecipando as pretensões de C
em relação ao shopping com as falas tá louca pra ir ... pra ela ir buscar, C tá enlouqueci:da
pra ir e batê cabelo no shopping. As falas de K indicam que ela presume algo sobre o
comportamento de C e isso indica que nas relações íntimas os falantes expressam o que
sentem e também o que pensam que os outros pensam ou sentem. Assim, até que a obtenção
do turno acomode-se em definitivo, tem-se: C introduzindo o tema para narrar sobre a
inauguração, CL tentando narrar o que também sabe sobre o assunto, K supondo os desejos de
C em relação ao shopping e duas tentativas tímidas de G, que tenta intervir para falar sobre
uma fila que teria ocorrido para o acesso ao shopping. Assim, depois da profusão de
tentativas, K pergunta a C o que é que ocê falou? e esta começa a narração do episódio
assumindo, definitivamente, o turno. Depois que C narra os fatos (o povo invadindo o
shopping) no segmento 59, CL insiste, novamente, no turno que tentara introduzir nos
segmentos 12, 16 e 18.
Essa aparente confusão evidencia que o processo de organização parte de ações não-
lineares, pois as falas não são ordenadas em sequências de turnos; esses são recortados,
sobrepostos, interrompidos, e os falantes seguem se manifestando, até que a ordem
estabeleça-se rumo a linearidade, quando os turnos organizam-se, seguindo a tendência “fala
um de cada vez”. Isso demonstra que, como um sistema complexo, o funcionamento da
interlocução mostra um movimento que vai da ordem ao caos e o reverso, uma vez que, como
uma estrutura dissipativa, sofre pressões de atratores até que um mais forte exerça influência
sobre outros, fazendo com que o sistema acomode-se em um estado de equilíbrio que não será
permanente. Muitos elementos de naturezas diversas são conjugados harmonicamente para
que os significados possam emergir.
A não-linearidade também pode ser exemplificada quando uma ação superpõe-se a
uma fala, como ocorre nas linhas 34 e 35, quando K oferece vinho a G durante a fala de CL.
Exemplo 17
34- 35:49 – CL: e::h foi um evento:: inter-regional [risos]
35- 35:49 – [passando a taça para G] toma G
Nesses dois trechos observam-se fortes evidências de que na interação de linguagem
predomina uma complementaridade entre a não-linearidade na organização da interação e a
linearidade na organização das sequências narrativas. É necessário frisar que uma conversa é
127
sempre linear, pois sua realização dá-se por sequências de ações que se sucedem umas após as
outras. No entanto, a despeito dessa condição inexorável da linearidade, há aspectos que são
não-lineares tanto na organização da interação quanto no fluxo narrativo, uma vez que o
alcance de tempos e espaços quaisquer podem quebrar o curso linear do discurso.
Na organização da interação isso pode ser representado pelo modo como os falantes
organizaram-se para dar prosseguimento ao tópico: a ordenação dos falantes é aleatória, ou
seja, qualquer um pode falar. Quanto ao que se fala depende do tipo de conversa e do grau de
intimidade em uma CEL. A liberdade tópica é bem acentuada em conversas espontâneas. As
decisões em relação ao tópico dependem do corpo de regras sociais que regulam a
comunidade de fala e de uma série de fatores que definem o que pode ou não ser um tópico
em um determinado tipo de conversa. O desenvolvimento do tópico demonstra como a
organização da interação apresenta propriedades não-lineares, ou seja, há uma ampla
possibilidade de escolha. Além disso, a modulação da entonação, muitas vezes decisiva para o
significado, também possui propriedades não-lineares.
Da construção do texto participam também os contornos ligados à entonação e ao sistema
corporal, que muitas vezes definem os significados das emissões de linguagem. Recursos
diferentes como velocidade, intensidade, acento e gesto são incorporados na formulação textual
e dão a ela significados específicos conforme sua modulação. A cada vez que um falante emite
um som, ele dá a ele uma entonação e um gestual específicos, que caracterizam e identificam o
enunciador e sua narração. Pode-se, assim, ver que uma relação entre a emissão linguística e o
aumento na velocidade ocorre simultaneamente e não em sequência.
Quanto ao fluxo narrativo, a não-linearidade manifesta-se na construção dos
significados, uma vez que, para a interpretação das sequências da língua, é preciso computar o
ponto marcado pelo cruzamento da coordenada tempo e espaço. Depois disso, os tempos e
espaços podem ser criados indefinidamente pela linguagem, e isso será definitivo para que as
emissões possam fazer sentido. As ações que visam à organização da interação tendem a ser não-
lineares devido à sua imprevisibilidade e a ser lineares, porque aparecem em sequência. Também
as ações que compõem o fluxo narrativo possuem seu componente linear, porque aparecem em
sequência, e tendências não-lineares, pois conjugam elementos do Ŧ e do (T/E)n de forma que sua
coerência depende do fluxo tópico e dos conhecimentos compartilhados. Na interação in loco, as
pessoas estão submetidas a pressões ambientais diversas, às condições físicas, aos olhares, aos
objetos, aos estímulos advindos de diversos sensores, ao fluxo da atenção, enfim, o organismo
em interação computa muitos dados e os considera na elaboração verbal.
Os segmentos 14 e 67, respectivamente, não/ já inauguro:: já inaugurou e nã:o, foi
128
visto como um sucesso exemplificam a não-linearidade na organização da interação, pois CL
está voltado para C e tenta engajar-se com ela para desenvolver o tópico da inauguração do
shopping, mas ele ouve uma emissão de K e se volta para ela com o intuito de informá-la
sobre o tópico e depois se volta para C. Um aspecto importante nessa emissão é que ela
aparenta a velocidade alterada.
É possível que isso ocorra porque CL está interessado em desenvolver o tópico com C,
mas ele percebe que falta alguma informação para K; então, fornece-a em velocidade mais
acelerada e retorna para seu ponto de interesse em C. Quando CL muda o foco de C para K,
acelera a fala e, em seguida, volta a atenção para C. Isso deixa transparecer que os
interlocutores processam muitos estímulos de uma vez e, conforme o fluxo da atenção, eles
podem se deixar influenciar por determinado estímulo, o que é revelado em suas ações.
Outro aspecto importante na amostra 2 diz respeito à preocupação em definir o modo
como as falas vão ser interpretadas. Na linha 27, CL pergunta a C cê tá de sacanagem, né? e
C reponde não/ caminhão de leite é mentira, CL responde eu sei e C segue mas teve excursão.
O trecho mostra que os falantes buscam orientações que vão servir para organizar a
interpretação distinguindo o que é fato do que é brincadeira ou exagero para “florear a
narração” ou por outro motivo qualquer. Essa é uma forte evidência de que o enunciador
marca suas crenças e posições e também busca o mesmo sobre o TU.
Por último, vale ressaltar que, na linha 61, quando CL diz Betânia que falou com a
gente, o item negritado refere-se ao locutor e a sua mulher, a qual não está na cena, mas é tida
como um subentendido por ele que, por sua vez, pressupõe que os interlocutores detêm a
referida informação. Isso mostra que diversos conhecimentos percepto-cognitivos, de natureza
nem sempre exclusivamente linguística, são computados e interferem no que virá na estrutura
textual, confirmando o que foi aceito nesta pesquisa em termos de uma interface entre o modo
linguístico e o modo pragmático.
Ao descrever fragmentos de uma CEL e ressaltar os aspectos que se destacam para os
objetivos desta pesquisa, a intenção, de uma maneira global, é enfocar as ações que
constituem a interlocução no tempo em que acontecem, mostrando sua relação com as ações
antecedentes e sua influência sobre as ações subsequentes. Essas observações evidenciam
como o processo interlocutivo tem suas bases materiais no cruzamento das coordenadas de
tempo e espaço – que pode ser considerado um atrator que modela o processo. Ao mesmo
tempo, tais observações mostram como as ações extrapolam esse cruzamento através de
diversos elementos simbólicos que entram no cômputo das ações, portanto, assinalando as
relações não-lineares na composição do processo interlocutivo.
129
3.3 Ações componentes das OIs
Buscando encontrar o padrão de organização que caracteriza as OIs e identificar as
possíveis correlações entre elas, a partir deste ponto, serão destacadas algumas ações
específicas que as compõem. Importante ressaltar que as OIs estruturam-se na construção do
texto em consonância com ações físicas corporais, portanto, traduzem-se em formas materiais
que se relacionam e moldam o padrão, adequando-se às condições do Ŧ.
Nos dados observados, ações de constituição e organização dos interlocutores e ações
de constituição do tópico integram-se e recebem cargas de natureza percepto-cognitiva que
são computadas na construção dos significados.
O Quadro 2 mostra seis tipos de ações selecionadas que se estruturam, revelando o
princípio organizador de estabelecer o padrão interlocutivo, ou seja, evidenciando que existe
uma dinâmica especial para a construção da relação entre enunciador e enunciatário,
EU↔TU, de uma forma ampla e profunda. Isso significa que, a partir dos textos, as pessoas
constroem-se como enunciadores e, como a própria referência, eles referem-se a si mesmos
expressando sentimentos, emoções e narrando suas histórias.
Quadro 2 – Ações estruturantes das OIs
Ŧ
A
I
N
T
E
R
L
O
C
U
Ç
Ã
O
AÇÃO TIPO DE AÇÃO ESTRUTURA PADRÃO INTENÇÃO
Contato físico EU toca TU
Língua, exp. Facial,
corpo (membros
sup.)
O EU se
movimenta
para obter
atenção do
TU
EU↔TU
Manter ou obter o
turno.
Dar retorno ao TU
Manifestar-se
Situar-se fisicamente
Situar-se
socialmente
Expressar crenças e
desejos
Receber atenção
Ser amado
Convencer
Conhecer
Informar
Informar-se
Aprender...
Entonação
EU modula
aumentando ou
diminuindo a
intensidade; altera a
velocidade da emissão
vocal
Língua, exp. facial e
modulação.
Emissão de itens
gramaticais e
supra
gramaticais
EU emite orações e
sons convencionados,
não lexicais
Língua, exp. facial e
modulação.
Repetição
EU repete emissão
vocal
Língua, recorrência
Expressão
corporal
parcial/global
EU faz movimentos
corporais Corpo
Narrativa
EU emite um conteúdo
com marca de 3ª pessoa
dirigido a TU
Língua
Exp. Facial, corpo
Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados da pesquisa
130
O quadro mostra como as ações estruturam-se para constituírem a interlocução: por
meio da associação de diferentes estruturas materiais emerge o padrão que é o
estabelecimento da relação EU↔TU. As expressões carregam o traço de apontarem para os
elementos do Ŧ organizando a interação e o texto e evidenciando sua função pragmática e
gramatical, como aponta Roulet et al. citado por Marcuschi (1989, p. 301).
3.4 Descrição individualizada das ações
Para exemplificar individualmente as ações, recolheram-se exemplos ao longo de toda
a gravação, por isso, a entrada desses exemplos será a partir da marcação dos minutos em
qualquer tempo do evento e não apenas durante o período correspondente às amostras. Para a
confirmação da modulação de aspectos entonacionais como intensidade e velocidade,
influenciando o significado, foi usado o programa Praat que é uma ferramenta para análise de
voz, desenvolvida no Institute of Phonetic Sciences, da Universidade de Amsterdã.
3.4.1 Contato físico
Consiste no toque feito pelo locutor em um interlocutor, geralmente, no braço, mas
pode também tocar a perna, dependendo da proximidade, da posição corporal dos
participantes e do grau de intimidade existente entre eles.
Exemplo 18
1:31 – K: foi o seguinte... [K toca com a mão esquerda a perna de C na altura da canela, a
pena estava cruzada. O toque é simultâneo à fala] [foto]
6:55 – K: na sua cabeça [K toca a mão de C que repousava sobre a própria perna cruzada. K
eleva a voz e ri solidarizando-se com a narrativa de C]
21:01 – K: mas aí ele tava fazendo uma... [toca o joelho de C, retomando o turno que tinha
sido tomado por C e CL] [foto]
32:47 – C: num é? Em novela... [C toca o braço de G] [foto]
33:31 – K: quem tava no amasso? [posicionada ao lado de G, vira-se para ele e o toca no
braço]
131
Foto 04 – K toca braço de G
Fonte: Dados da pesquisa
Esse tipo de operação de interlocução, obviamente, deriva da proximidade física entre
os falantes; só ocorre quando os participantes estão a uma distância suficiente para serem
tocados. Ela ocorreu com o toque na mão, no braço ou na perna quando cruzada. Pode parecer
óbvio, mas é importante ressaltar como o Ŧ pode determinar os recursos para a realização da
interlocução. Quando a distância foi superior ao cumprimento do braço, a operação não
ocorreu, e isso indica que a organização dos falantes no espaço de interação é crucial para
determinar esse tipo de operação.
Como, no evento gravado, observa-se um grau de intimidade entre os participantes, é
natural que a operação de contato físico apareça. A proximidade física não é condição
suficiente para a ocorrência da operação; pode haver proximidade, mas, ao mesmo tempo,
outras regras restringirem a ocorrência do contato físico. Caso não houvesse intimidade, não
haveria essa possibilidade. Fica evidente que a força dos atratores decorre das circunstâncias
em que o sistema está envolvido, e mais, os atratores são dinâmicos e se sobressaem conforme
um conjunto de circunstâncias. O tipo de interação, o tipo de laços que os interactantes
possuem, os objetivos do evento, tudo isso exerce atração no curso de uma interação e
determina, de alguma forma, a estrutura que a interação assume, ou melhor, determina quais
as ações possíveis e qual deve ser o aspecto de sua estrutura e organização.
A conclusão que se pode tirar disso é que a interlocução é um sistema complexo
adaptativo, segue seu curso modelando-se por atratores dinâmicos. Se o braço está acessível,
toca-se no braço; se a perna cruzada está próxima, toca-se nela. É um movimento
interlocutivo que acompanha emissões interlocutivas como x’ô falá, ou mesmo narrativas,
entendidas, neste trabalho, como manutenção ou introdução de tópico R, ou seja, um tópico
de terceira pessoa. Subsistemas atuam sincronicamente demonstrando que a linguagem
132
emerge da ação da pessoa no nicho onde tudo o que existe pode ou não interferir na interação.
Tudo dependerá de como cada Ŧ (presente enunciativo) desdobrar-se-á.
3.4.2 Entonação
Os registros mostraram a recorrência de diversos tipos de modulação. Foram
selecionados o aumento e diminuição da intensidade, aumento da velocidade, modulação
interrogativa.
Exemplo 19
18:00 – C: ↑são investimentos assim de japonês, sueco e blá blá blá [ o tom começa mais alto
para garantir o turno que começava a ser introduzido por outro participante,
depois vai decrescendo]
A entonação é uma ação que possui várias nuances significativas. Os quatro tipos mais
marcantes serão apresentados de maneira superficial, já que cada tipo possui suas próprias
variantes e essa é uma questão bastante delicada para ser tratada com brevidade. Os tipos
entonacionais selecionados consistem em diferentes recursos que modulam a língua e
contribuem para dar significação seja no plano discursivo ou no plano interativo. A
interrogativa parece ser a mais producente das operações de entonação. Apesar de não ser a
proposta, neste trabalho, fazer uma análise quantitativa, não há como não notar a importância
desse recurso interativo em termos de produtividade. A pergunta é uma evidência clara de
solicitação do outro. É uma operação de interlocução, porque significa que um EU institui-se
como locutor convocando um TU como interlocutor, instaurando-se, assim, a interação. O
aumento na intensidade pode estar ligado a várias intenções – surpresa, emoção, ênfase e
disputa de turno são algumas delas – assim como sua diminuição.
Interrogativa
Exemplo 20
21:10 – CL: Cê trabalha em que setor? [dirigindo-se para K]
K: Na Comunicação [respondendo à pergunta de CL]
CL: ahn, cê conhece Rodrigo? [confirma a audiência e faz outra pergunta]
133
A interrogação parece ter obtido sucesso como meio de interlocução (lembrando que o
que estou chamando de interlocução é a convocação do TU pelo EU a fim de instaurar os
interlocutores e a organização de uma interação para a construção dos significados), devido à
sua função de ao mesmo tempo convocar o TU e solicitar dele uma resposta. A frase
interrogativa pode variar manifestando tipos interrogativos diferentes que, embora sejam
significativos, não constituem o objetivo deste trabalho.
Dependendo da sílaba que carrega a tonicidade e o prolongamento, a interrogativa
assume um aspecto diferente e uma nuance de significação. Os exemplos, a seguir, podem
deixar isso claro. No primeiro, o acento recai sobre a última sílaba, no segundo, recai sobre a
terceira sílaba, levando a particularidades na construção do sentido: 1 - Você já chego::u?, 2 -
Você já:: chegou? As entonações podem ser interpretadas pelo observador de muitas
maneiras diferentes a depender dos elementos que julga importante considerar. Uma dessas
maneiras poderia ser que, em 1, a ênfase fosse para a surpresa da chegada, e, em 2, a ênfase
fosse para o tempo da chegada. Esses matizes significativos não são de fácil apreensão devido
a dois fatores: as condições do Ŧ e as questões subjetivas que envolvem o conhecimento e os
interesses de cada um. A definição do significado caberia, em última instância, apenas ao EU
que vive a cena. Os tons correspondem a itens significativos e só podem ser identificados por
meio de uma investigação exclusiva e aprofundada. Não há como um observador precisar
definitivamente o significado de um movimento de interação por completo, por mais que se
esforce. Somente quem pode assumir um significado último para as ações são as pessoas que
as vivenciam partilhando o mesmo tempo/espaço. Entretanto, apesar de não ser possível
precisar as intenções particulares de cada ação interrogativa, percebe-se a evidência de sua
finalidade precípua de estabelecer os enunciadores e organizar a interação, sendo essa a
característica da operação de interlocução.
Aumento/diminuição da intensidade
Exemplo 21
6:49 – C: aí era do cano dele do/ ↑do ralo do chuveiro dele ↓olha que coisa!
39:40 – ↑ah:: uma carreta [com aumento da intensidade, para recuperar o turno e acrescentar
o complemento de uma narrativa anterior]
A materialidade da entonação compõe-se de elementos linguísticos, ondas sonoras e
de um conjunto de regras simbólicas, ligadas ao comportamento social. Esses componentes
134
definem como a interação desenvolve-se e nos permitem até fazer suposições sobre a
tendência de seu curso.
O aumento da intensidade no início do turno é um recurso claro de intenção
interlocutiva, porque se contrasta com falas anteriores e posteriores, mostrando que a
alteração tem objetivo definido. Como observado no evento gravado, há indícios de que a
elevação do tom no início do turno ocorre como um ato intencional de manter ou competir
pelo turno, mas há também aumento da intensidade em manifestações de surpresa, nojo
(Gráfico 1), picos de emoção e competições pela audiência, quando todos falam juntos. As
linhas na parte inferior mostram a elevação da intensidade
Gráfico 01 – Emissão de C: aí:: era do cano...
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa
No gráfico, a intensidade é marcada pela largura das linhas que aparecem no início
mais estreitas e depois expandem em função do aumento da intensidade. Isto também é
registrado pela linha azul na parte inferior do gráfico que marca a alternância da intensidade.
São diversos os meios pelos quais se manifestam as alterações na entonação, mas o
importante, neste caso, é levar em conta que a multiplicidade mostra ser a entonação, por si,
um sistema com suas regras e restrições específicas, isto é, tem suas próprias condições para
ocorrer.
Velocidade
Exemplo 19
36:45 – CL: [para K] →não/ foi visto como um sucesso [vota-se para C]
135
A velocidade no ritmo de fala é um recurso que também possui suas variações em
função das intenções do enunciador. Ela pode estar relacionada com a carga emotiva, mas
também com a organização, como por exemplo, ao se interceder quando alguém está com o
turno para fazer observações rápidas, ou mesmo para se estabelecer no turno antes de um TU.
Gráfico 02 – a velocidade da fala de CL
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa
O gráfico acima mostra apenas o trecho registrado para que fosse medida a velocidade,
nele consta o momento da emissão de CL do exemplo 19. Na figura 01, abaixo, há a medida
do trecho selecionado. A duração é de 1.429583. Emissões como o mesmo número de sílabas
do participante foram medidas e verificou-se maior duração, indicando que a velocidade tem
uma função significativa.
136
Figura 01 – Duração da emissão de CL
Fonte: Gerado a partir dos dados da pesquisa
A duração da emissão, se comparada a emissões do mesmo participante, mostra-se mais
veloz, frases semelhantes foram analisadas apresentando uma duração maior, confirmando que a
velocidade é alterada em função das intenções dos falantes. A velocidade, bem como todos os
contornos entonacionais, não são prerrogativas da interlocução; eles se aplicam na narração
modificando conteúdos lexicais, exprimindo ênfases, sinalizando pistas de interpretação, enfim,
os contornos constituem a própria forma de apresentação da língua e, no caso da conversação,
eles são, muitas vezes, como já dito, decisivos para a construção do significado.
3.4.3 Emissão de itens gramaticais e supragramaticais
Algumas palavras, expressões, orações e itens supragramaticais, representados por
sons convencionados como elementos significativos, porém sem significação lexical - por
exemplo, nhan nhan, uhn::, e::h -, funcionam como MDs e, geralmente, como marcas de
retorno ao locutor.
Os MDs, amplamente estudados, possuem funções bem estabelecidas, como inserir e
sequenciar tópicos e organizar a participação dos enunciadores na interação e, paralelamente,
constituir a interlocução uma vez que funcionam como um gerenciador da atenção.
137
Gramaticais
Exemplo 22
1:10 – C: mas aqui, o que que quebrou? [C para K]
15:15 – K: mas lá é lindo, dex’o te contá... [K para CL]
Exemplo 23
25:23 – K: cê imagina quando eu tinha/ [voltada para C, interrompe e se volta para CL] eu
tinha o cabelo aqui... [ocorrem várias digressões de que todos participam até que
K retoma]
26:38 – K: aí tá, então quando eu passei → promoção corte dez reais...
36:48 – C: mas olha p’rocê vê a/ a:: ↑se:de...
39:37 – G: agora, o que vai....
47:49 – K: no::ssa eu nem lembro C, quando eu tinha/
57:45 – G: ah gente! falá em sexo...
72:44 – CL: dex’ele contá caramba [para C e K que estão conversando enquanto G narra]
73:37 – G: dex’ô falá aqui [tocando o braço de K, para terminar sua narrativa]
As expressões gramaticais – palavras e frases – constituem-se em operações de
interlocução e já são amplamente estudadas como MDs. Essas operações funcionam como
recursos que dão garantias para que a pessoa declare-se um locutor e solicite um interlocutor.
Nos dados coletados, observa-se, claramente, a solicitação do EU para obter a atenção do TU.
Na emissão 36:48 – C: mas olha p’rocê vê a/ a:: sede... –, fica clara a condução de C para que
os interlocutores ouçam-na. Acontece o mesmo na emissão de K – mas lá é lindo, dex’o te
contá...; ela se instaura e instaura CL como co-locutor preferencial. Essa interpretação só é
cabível se considerado o olhar que K dirige a CL. Ela olha para ele e se apropria da fala para a
imposição do seu turno. Nesse caso, o recurso do código linguístico materializa-se de
determinada forma sintática, mas poderia ser de várias outras devido às numerosas
possibilidades que existem na língua e às condições de produção, que são físicas e simbólicas.
Nesse episódio, o que mais importa não é a estrutura gramatical, mas seu significado, só
apreensível se considerado o Ŧ em sua complexidade. Por isso, tais expressões poderiam ser
outras, como dex’ô falá ou cê imagina, ou ainda, ah gente! – todas com o mesmo fim
interlocutivo de estabelecer contato entre EU e TU.
Vale ressaltar que as expressões gramaticais são acompanhadas de entonação, gestos,
enfim, movimentos corporais que dão contorno ao que se emite pela língua, indicando, mais
138
uma vez, a multimodalidade das operações de interlocução. Gestos, expressões faciais, falas,
todos esses sistemas expressos em movimentos de materialidade estrutural diferentes operam
para desempenhar, coordenadamente, a função interlocutiva. Pela interlocução os falantes
organizam as coordenadas de espaço, de tempo e de modo. Cada falante constrói sua
coordenada única, inclusive com valores subjetivos.
Os dados mostram como as pessoas expõem estados interiores, o que pode ser observado
nas emissões 5:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu?;
5:30 – CL: [?] [?] não/ mas esse é um problema da construtora cê tem que acionar é quem
construiu uá. Essas emissões mostram o posicionamento do EU em relação a uma determinada
questão, tratada no desenrolar do tópico. O tópico dos trechos remete às intenções e estados
interiores dos enunciadores, isso indica que a interlocução funciona como uma operação maior
do que apenas organizar a interação e o texto. Ela se apresenta como um organizador material,
indicando, por exemplo, quem fala, o que fala, como fala, mas também como um organizador das
intenções e posições espaciais e socioculturais. Os dados mostram que os falantes manifestam
estados interiores diversos, reflexões, pensamentos, posicionamentos diante das situações,
enfim, indicam que a interlocução é a própria manifestação do EU e que por ela os organismos
constituem-se em EUs e constroem o espaço narrativo-discursivo das interações de linguagem.
Supragramaticais
Exemplo 24
6:53 – C: [com as mãos no rosto] ↑u::ih
16:00 – CL: lá é praia de surf
K: eh:::
19:25 – K: tem um homem lá que vende salgadinho
CL: ahn
C: salgadinho [CL e C olham para K] [foto]
21:11 – CL: ahn... [em resposta a uma informação de K]
34:46 – CL: ahn [olhando para G enquanto este narra]
Também as expressões supragramaticais deixam claro o estabelecimento do vínculo
entre os falantes, isto é, confirmam para o locutor que ele está sendo ouvido. Poder-se-ia
pensar que na interação de linguagem todo aquele que fala ou emite um sinal significativo é
139
considerado um EU, entretanto, as expressões de retorno, como han han, mostram que o EU
converte-se, discursivamente, em um TU para o outro. Esse dialogismo na linguagem, que
Jakobson (1975) chamou de função fática, define-se por ser um meio de estabelecer o canal
entre o EU e o TU, construindo o espaço base da enunciação
As expressões supragramaticais são formadas, em grande parte, por um
prolongamento das vogais a e e, que aparecem sempre simultâneas às falas do locutor ou
então entre breves pausas de suas falas. Outra característica de sua forma são sons aspirados,
que, neste trabalho, estão sendo representados pela letra h. Aspirar e expirar são ações
producentes na CEL e podem ter significados importantes. O funcionamento das expressões
supragramaticais está condicionado ao Ŧ, pois elas possuem significados pragmáticos para o
desenvolvimento da interação. Indicam que o colocutor confirma para o locutor sua audiência
por meio de uma ação, cuja materialidade é sonora e visual, uma vez que o olhar e os
movimentos de cabeça, geralmente, acompanham a expressão falada ou podem mesmo
aparecer sozinhos. Na foto abaixo C e CL olham atentamente para K enquanto esta narra, o
olhar funciona como um recurso pragmático confirmando a audiência.
Foto 05 - C e CL olham K que domina o turno
Fonte: Dados da pesquisa
3.4.4 Repetição
Com inserções em diferentes momentos no tempo linear da interação, apresenta-se
através de palavra, expressão ou oração.
140
Exemplo 25
5:51 – CL: mas quem tááá
5:55 – CL: mas quem tá reclamano? Seu vizinho?
5:58 – CL: quem tá reclamano? Seu vizinho?
Exemplo 26
32:33 – C: tá igual em novela todo mundo conversando assim em linha reta [para CL que
solidariza com supragramaticais ahn, eh eh]
32:47 – C: num é? em novela? [C volta-se para G, que estava interagindo com K, e bate no
braço dele]
A repetição é uma operação que mostra a insistência do EU em se declarar locutor e
implantar o outro colocutor, criando uma situação singular, da qual emerge o centro de
referência do discurso (BENVENISTE, 1989, p. 84). Essa operação mostra que o self,
consciente de si, como entende Edelman (1989, p. 190), manifesta estados internos como a
necessidade de que o outro o sinta ou perceba de algum modo. A repetição mostra a
insistência do EU em ser ouvido e isso envolve um campo conceitual de valores na ação de
interação. Ser ouvido é ser levado em consideração e isso importa para a adaptação do
organismo às situações. As pessoas visam ao próprio bem estar, e esse objetivo faz com que a
adaptação ao ambiente seja organizada de forma que sejam satisfeitos os desejos do EU. Ser
ouvido é uma necessidade vital para a espécie humana que é uma espécie social e cultural. Por
que a pessoa insiste para que um TU a ouça? Ou por que algumas tentativas de participar do
tópico são desprezadas pelo locutor que não insiste em lutar pelo turno? Fica claro que a
repetição em início de turno visa estabelecer o contato. Na realidade, o que se está chamando
de repetição não é a forma dos itens de linguagem, estrutura sintática ou morfológica, mas sim
a operação realizada para garantir a participação na interação, independentemente do item
gramatical usado, se uma palavra, expressão ou oração.
A estrutura desse tipo de operação é a fala e a entonação conjugadas com o olhar, o
posicionamento do corpo no espaço e a posição corporal. A organização coordenada desses
subsistemas, distribuída na linha do tempo, reflete o padrão que governa a tendência ao
engajamento social. Vista como um aspecto percepto-cognitivo e social, a repetição pode ser
compreendida como uma ação que tem sua origem mais profunda no conjunto de valores e
crenças sobre os quais os organismos assentam-se. Essa ação insistente indica a “luta” do
141
organismo para se adaptar, estabelecendo-se como um EU num nicho em que se estabelecer
pela linguagem é um valor e, por isso, é importante para causar o bem-estar necessário à
adaptação ao ambiente.
3.4.5 Expressão corporal
Consiste na manifestação do EU na busca do TU pela movimentação do corpo. Na
foto 06, G repete sua fala eu vi e, em seguida, levanta o braço para garantir o seu espaço de
interlocução.
Foto 06 - G levanta o braço para manter o turno
Fonte: Dados da pesquisa
Exemplo 27
20:11 – [CL balança a cabeça olhando para K e, em seguida, adianta a cabeça]
21:00 – K: Mas aí [avança o tronco e toca na perna de C, aumentando a intensidade]
60:44 – G: agora/ eu vi, eu vi [G inicia o turno, mas C interfere e ele eleva o braço para
garantir a permanência no turno]
Essas ações exemplificam alguns tipos de movimentos corporais para estabelecer a
relação EU↔TU. A expressão corporal numa CEL é muito produtiva em relação a sua
contribuição para a construção dos enunciadores, além disso, os participantes fazem diversos
tipos de gestos para complementar os textos fornecendo pistas para a significação dos
enunciados. Fazem gestos também para uma complementação semântica, como movimentos
representando direções, formas, modos indicando rapidez, lentidão, etc. Tais pistas são
direcionadas tanto para o significado dos itens textuais quanto para obtenção ou permanência
142
no turno e expressão do enunciador (self). Interessa-se, nesta pesquisa, pelas duas últimas
funções, uma vez que se observa a intenção do participante em marcar seu espaço discursivo.
O movimento de cabeça talvez seja a mais produtiva das ações de interlocução. Sua
função é a de um EU colocar-se na condição de TU, indicando ao EU falante que ele possui
audiência. Muitas vezes o participante estende o braço para fazer uma intervenção, sendo esse
movimento interlocutivo também recorrente em CELs. Outro movimento que indica a
intenção de obtenção de turno é a projeção do tronco rumo ao centro da roda, muitas vezes
aliado ao aumento da intensidade. Há, porém, alguns movimentos que não são tão recorrentes,
mas manifestam, visivelmente, a intenção de obtenção ou manutenção do turno, como
registrado aos 60:44, quando G levanta o braço acima da altura da cabeça para garantir a vez.
Nesse caso, o participante G começara uma narração e C fez um comentário concomitante;
para garantir o turno, ele eleva o braço e repete eu vi, eu vi e o mantém erguido por alguns
segundos até obter a garantia do turno, quando ele de fato começa a narrar.
3.4.6 Narrativa
Ação em que uma pessoa instaura-se como locutor narrando em terceira pessoa e/ou
em tempo passado.
Exemplo 28
31:01 – C: hoje tinha um metrossexual lá fazendo a sobrancelha
33:13 – K: a gente passou o domingo junto...
47:40 – C: Bruno tá no RH agora da Liberty
Essa ação que compõe a interlocução é paradoxal, porque contraria o critério adotado
para identificar a interlocução, ou seja, o movimento específico do EU para convocar o TU.
Por outro lado, a narração constitui-se na convocação, não pela ação explícita de convocar,
mas pela pressuposição de que o TU já é um colocutor, dispensando, assim, a formalização do
chamamento por meios específicos. Temos, nesse caso, uma operação de interlocução que se
dá pela proximidade dos corpos e pelas relações estabelecidas no Ŧ. A percepção e o
conhecimento que o locutor tem da cena são computados como dados para a construção do
texto e do sentido. De um ponto de partida a interação desenvolve-se e os atratores levam-na
para “estados que a natureza parece privilegiar” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 51). No
143
caso da narrativa, isso se dá pela autoconsciência do EU e pela percepção da presença de um
TU como condição suficiente para a enunciação.
Portanto, embora pareça paradoxal, segundo concepções dos sistemas complexos, a
flexibilidade deve ser um critério para a definição do objeto investigado, porque se trata da
descrição de organismos vivos em processos dinâmicos de interação. Critérios rígidos para
descrição do objeto tendem a naufragar, porque não podem acompanhar o movimento de
sistemas instáveis como é a linguagem humana. Sendo assim, não se pode desconsiderar a
narrativa como uma operação de interlocução, ainda que em sua estrutura não haja formas
explícitas de busca de um EU pela atenção de um TU, mas formas de terceira pessoa. A
narrativa manifesta a exuberância do Ŧ, em que a explicitação dos corpos em interação no
ambiente transborda e define a ação. EU e TU percebem-se mutuamente e essa percepção é o
suficiente para que possa emergir uma referência. Portanto, o Ŧ é a condição que implanta o
EU↔TU e dessa origem surge o discurso sem a convocação explícita, levando à confirmação
de que os aspectos percepto-cognitivos e sociais são constitutivos da linguagem.
Na narrativa, o EU supõe-se locutor e supõe o TU colocutor, então, descarta operações
interlocutivas, indicando que os domínios físico, cognitivo e social levam as pessoas a
adotarem uma determinada perspectiva da qual emerge o domínio simbólico. Esse é um
argumento em defesa da natureza biocultural humana, pois só tomando as interações de uma
maneira global é que se podem perceber os processos dos quais nascem os códigos
simbólicos, ou, melhor dizendo, a linguagem.
Muitos sistemas interagem de uma só vez e se pode dizer que são sistemas diferentes
por causa da estrutura que os diferencia e, ao mesmo tempo, que são indissociáveis, pois
funcionam em relação de interdependência para cumprirem uma determinada função. Devido
à dependência recíproca dos subsistemas, a narrativa opera a partir de uma série de
pressupostos que são construídos na coletividade. Por exemplo, como é de costume na
sociedade contemporânea, não é comum dirigir-se a pessoas estranhas, mas, se for para pedir
uma informação, essa restrição já deixa de funcionar. Numerosos exemplos poderiam ser
elencados, mas o que basta para esta tese é o entendimento de que os subsistemas que
compõem o humano funcionam de modo degenerescente. Melhor dizendo, a narrativa, que
compreende a linguagem situada num tempo e num espaço, compreende também sistemas de
valores do EU, sistemas comportamentais, espaciais, sociais. Para que um EU convoque um
TU é preciso haver regras que delimitem os limites e os conteúdos que cada um poderá emitir,
sendo essas regras os atratores que restringem ou impulsionam o curso da interação,
mantendo-a em equilíbrio até um ponto crítico em que haverá desequilíbrio, mudança.
144
3.5 A dinâmica interlocutiva
No evento gravado, o grau de intimidade entre os participantes pode mesmo ser
considerado um atrator, uma vez que define o modo da interação, a liberdade entre eles, a
possibilidade de interromper o turno do outro, o toque físico, a ausência de hierarquia e
mesmo aspectos sutis como repreensões, como a de CL – dex’ele contá caramba [para C e K
que conversam enquanto G tenta narrar]. A conversa desenvolve-se e se reorganiza segundo
parâmetros como esses. Mas também podem ocorrer alterações bruscas, como quando o
telefone toca. Nesse caso, G, o dono da casa, que mantinha o turno, interrompe o curso da
conversa – ao se deslocar do espaço para atender ao telefone -, o curso da conversa muda
suavemente e os participantes reorganizam-se em função de um atrator estranho, que a
influencia levando à introdução de um novo tópico ou ao rearranjo da interação, como a posse
do turno ou outros aspectos.
A recuperação de turno ocorre em 39:40, quando C lembra-se de mais um episódio
curioso relacionado ao dia de inauguração do shopping, enquanto a conversa desenvolvia-se
com comentários de G sobre a área onde o prédio foi construído. C, então, interrompe
bruscamente G com a emissão ah: uma carreta desgovernada invadiu o estacionamento...,;
nesse caso, o item de memória, como um atrator estranho, provoca a reorganização da
conversa a partir da brusca interrupção do turno de G. As fotos abaixo mostram a sequência
de ações que C realiza para recuperar o turno e narrar:
Foto 07 - C emite ah::
Fonte: Dados da pesquisa
Foto 08 - C toca o braço de G
Fonte: Dados da pesquisa
145
Foto 09 - C reintroduz o tópico uma
carreta invadiu
Fonte: Dados da pesquisa
Foto 10 - C ilustra o tópico
Fonte: Dados da pesquisa
As fotos 7 e 8 mostram a tomada do turno que ocorre mediante, emissão do
supragramatical ah:: em intensidade maior (gráfico 3, abaixo) do que a fala anterior de G e o
toque nele que detinha o turno; as fotos 9 e 10 mostram a introdução do tópico que é
construído pela emissão uma carreta invadiu... e pelo gesto simulando o movimento da
carreta. A sequência de ações evidencia o quanto os sistemas interagem na formulação
linguística. Os gestos com funções de instaurar o locutor e colaborar na construção do tópico,
a intenção de C de retomar, isto é, apossar-se do turno e narrar, parece confirmar a hipótese de
que sistemas heterogêneos são acionados para cumprirem uma função indicando que a
interlocução funciona como os sistemas complexos. No gráfico, visualiza-se a baixa
intensidade e sua elevação repentina com a inserção de C.
Gráfico 03 - O aumento da intensidade para reconquista do turno ah:: uma carreta invadiu
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados da pesquisa
A marcação estreita da fala anterior do participante G, em baixa intensidade, se
146
contrasta com a intervenção de C ao inserir sua emissão em intensidade mais elevada,
representada pelo aumento da largura que aumenta gradativamente num crescendo. Também a
linha azul da parte inferior mostra a elevação. Esse rearranjo mostra como os elementos do Ŧ e
os (T/E)n – tempos/espaços simbólicos – mesclam-se para determinar as condições da interação
e também a tendência do seu movimento. Por exemplo, as condições físicas (ambiente,
pessoas, objetos etc) e as condições simbólicas (língua, partilha de conceitos, papéis sociais,
valores, emoções) restringem as ações de interação, dando a elas a forma possível.
Por meio dos atratores, pode-se verificar, no sistema interativo, tanto sua tendência à
estabilidade quanto sua tendência à mutabilidade em circunstâncias de instabilidade. Um
ruído, um item de memória, a atenção dirigida a um objeto são exemplos de atratores que
concorrem para interferir no curso da interação e para modificá-la ao modificarem o tópico, o
foco da atenção, a posse do turno, os ânimos, enfim, a interação como um todo. Mas, apesar
de serem numerosos em termos de probabilidades, apenas um ou dois atratores definirão os
rumos da interação. Portanto, a interação possui condições estáveis e de instabilidades,
indicando, como afirma Prigogine (2002), que probabilidade e determinismo não se
contrapõem, mas se completam. A “existência de bifurcações confere um caráter histórico à
evolução de um sistema” (PRIGOGINE, 2002, p. 24).
Assumir esse ponto de vista leva a se considerar que a influência de atratores físicos e
simbólicos pode propiciar uma explicação adequada do fenômeno da interlocução, permitindo
identificarem-se aspectos de estabilidade e de mudança. É na bifurcação que o sistema
reestrutura-se e se adapta a uma nova situação. É preciso considerar também que atratores
podem ser sistemas dinâmicos e sofrer alterações. Eles não são dimensões estáticas, são
dimensões que se adaptam conforme o Ŧ e podem se combinar de muitas maneiras diferentes,
modelando a interação.
As ações dos participantes no registro analisado mostram que as pessoas alternam o
turno, servem-se uns aos outros, dão sinais de correspondência (solidarização), atendem às
solicitações dos ouvintes, como em 15:15 - dex’ô te conta -, assentam-se em círculos, enfim,
comportam-se de maneiras pré-determinadas, conforme acordos coletivos estabelecidos na
convivência. Assim, o sistema tende a seguir um curso natural definido na e pela experiência
de interação. Não se espera em uma situação como a registrada que um participante jogue
vinho no rosto do outro, nem que as pessoas em vez de se sentarem em cadeiras deitem-se
umas sobre as outras formando uma pilha.
Se, por um lado, as condições iniciais são importantes para determinar o
desenvolvimento do sistema de interação e oferecerem uma quantidade de situações
147
previsíveis, por outro, há a possibilidade de que algo inesperado possa acontecer. Alguém, por
exemplo, pode se lembrar da morte de um parente e desencadear uma nova situação,
inclusive, mudando radicalmente o curso da conversa e até do evento. Embora pouco
provável, pode acontecer uma desavença entre dois participantes e um jogue vinho no outro.
Por esse motivo, fica claro que os atratores definem a tendência “que a natureza parece
privilegiar” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 51), mas também definem mudanças que
conduzem ao estado de não-equilíbrio quando o sistema muda o rumo de seu curso.
3.5.1 O padrão na organização da OI
Os atratores definem a forma da operação de interlocução e, por ela, o padrão. A
forma, apesar de apresentar particularidades devido à unicidade de cada ação, mantém um
padrão que impede sua dispersão na cena e, ao mesmo tempo, define sua identidade
diferenciando-a das formas que possuem outras finalidades na interação.
Os elementos supragramaticais são um exemplo de como se organiza um padrão na
interlocução. Geralmente, são estruturados pelas vogais mais baixas [a e e], sendo o a
predominante, como nas emissões han han e ahn e, em segundo lugar, o ehh, mas nunca um
ihh ou um uhh. Assim, temos um padrão que distingue a interlocução de formas não-
interlocutivas. O i, por exemplo, não é usado como função interlocutiva, mas aparece em
manifestações de estados interiores, como mostram as manifestações de K e L – ih::: –, no
momento 26:00, ao falarem da água suja que caía do chuveiro. Essa vogal pode expressar
nojo, mas não expressa convocação ou audiência. Conclui-se, desse modo, que para a
confirmação da audiência não se observa o uso de vogais altas, indicando-se que distintas
emissões ocorrem em situações definidas. Também as formas lexicais e oracionais de
interlocução possuem um padrão que se repete. Geralmente, são os advérbios que cumprem a
função de marcar a intervenção ou tomada de turno, formas oracionais marcadas pelo presente
e por pronomes de primeira e segunda pessoas. Assim se verifica um padrão, isto é, a
organização de uma estrutura em um determinado contexto, mas não em outros.
O processo interlocutivo exibe um padrão multimodal, isto é, sua realização sempre
integra duas ou mais estruturas, como a modulação do texto pela entonação, pelo gesto ou
olhar. No caso dos movimentos corporais, observa-se a simultaneidade com a produção do
texto, os supragramaticais são simultâneos a olhares e gestos, e assim por diante. Todas essas
formações culminam na operação maior, que tem por finalidade última estabelecer a relação
EU↔TU, que vai criar o espaço referencial para a construção do discurso.
148
A harmonização de estruturas agrupadas simultaneamente para a manifestação de uma
intenção interlocutiva demonstra que existe um padrão que define o modus operandi do
sistema em interação. Por isso, a operação interlocutiva de toque mantém um padrão: o toque
pode ser no braço, no joelho, mas não na cabeça. Essa conclusão mostra de modo claro o
quanto o padrão nas operações de interlocução é um padrão de rede, em que várias estruturas
movimentam-se com uma finalidade, revelando o padrão degenerescente multiestrutural e
isofuncional.
3.6 Abertura, não-linearidade e dissipação no processo interlocutivo
Numa interação de linguagem, o fluxo interacional amalgamado ao fluxo narrativo vão
moldar o discurso e definir os significados. Isso pode ser explicado da seguinte forma:
pessoas conversando não seguem padrões aleatórios, elas organizam os turnos de fala, usam
mesmos códigos linguísticos e culturais e isso impõe convenções respeitadas, de modo que a
ordem apareça e a comunicação estabeleça-se. Mas há também a possibilidade de um atrator
estranho provocar desequilíbrio, bifurcação e mudança, já que se trata de um sistema em
constante relação com seu ambiente. A chegada de um novo participante, um item de
memória, uma emoção exacerbada, enfim, uma perturbação qualquer pode levar ao
aparecimento de uma nova forma de ordem.
3.6.1 Abertura
O campo de força dos atratores em uma interação humana constitui a tendência do
sistema. O evento gravado mostrou que a interação de linguagem organizou-se em função do
tempo e espaço da interação, dos componentes físicos, emocionais e simbólicos (sociais e
culturais) dos participantes, incluindo, obviamente, códigos linguísticos e de conduta,
baseados em práticas coletivas.
Na interação há uma troca de energia pela qual as pessoas interagem. As interações
são alimentadas por um esforço que gera energia e essa circula entre as pessoas por meio de
gestos e sons que outras pessoas interpretam e, por sua vez, emitem gestos e sons que
alimentam o primeiro emissor em uma interação recíproca de linguagem, até que os
enunciadores satisfaçam suas intenções interativas. Além do esforço material, a emissão de
um fluxo de ar exibe formas específicas que imprimem aos textos significados específicos
reveladores de intenções e estados interiores.
149
A percepção forma-se a partir da atenção, que é um sistema muito dinâmico, isto é,
seu direcionamento pode ser alterado em função de muitas variáveis. A atenção, sendo um
sistema fortemente ligado ao sistema de valores, progride conforme os interesses do
organismo, por isso, em uma CEL a atenção pode sofrer muitas variações. A chegada de G ao
Ŧ demonstra isso. Os participantes estão conversando, ao ouvir o barulho na porta, C fixa o
olhar naquela direção, K, que parece não ter ouvido, percebe o direcionamento do olhar de C,
e, então, vira-se em direção à porta, quando entra G. Dessa forma, fica evidente como o
sistema fica aberto ao fluxo de energia e como mudanças são percebidas em decorrência dessa
abertura. A ação do organismo é moldada na computação que ele faz com perceptos que
emergem tanto no plano físico quanto no plano mental, ampliando, assim, as possibilidades de
variação. Ao receber o estímulo, uma área desperta e envia substâncias ou pulsos elétricos
para extensas áreas do cérebro, provocando uma reação global que mais tarde vai se
manifestar no corpo.
O sistema humano complexo biocultural busca meios de se adaptar visando ao próprio
bem-estar, como todo ser vivo. O organismo atribui valores aos objetos, às ações e aos
processos comunicativos de forma que a relação EU↔TU auto-organiza-se conforme
processam os significados. Segundo Marchetti (2010), o processo de auto-organização
constitui a passagem da consciência para a autoconsciência que são os limites operatórios do
organismo, pelo reconhecimento desses limites o organismo regula a sua ação de linguagem
avaliando e escolhendo o que melhor lhe convém. Nas interações, as pessoas imprimem suas
marcas pelo modo de dizer as coisas, os contornos diferenciam as falas, as pessoas avaliam e
acham ruim ou bom, reagem conforme seu universo valorativo. Os enunciadores escolhem
palavras e gestos brandos ou ríspidos, olhares doces ou coléricos, enfim, eles podem moldar
sua intervenção de linguagem imprimindo significados que só podem ser interpretados
tomando-se as ações de um ponto de vista percepto-cognitivo, em que os contornos dados aos
textos somam para sua significação.
A energia nervosa empregada em uma ação de linguagem está sendo assumida nesta tese
como a modulação que o organismo imprime ao texto, impregnando-o de modos que levam a
diferentes significações. A energia nervosa, por estar sempre se adaptando às condições de valor,
vai se transformando com o fluir do organismo no espaço. Ela pode ser considerada um sistema
aberto, porque, ao manifestar sua energia pela linguagem, um falante expõe-se, é avaliado e isso
retorna para ele pelas próprias reações dos interlocutores. Essa dinâmica dos sistemas vivos
sempre trocando com o meio leva à readequação dos valores e, consequentemente, dos símbolos
usados no dia a dia.
150
Duas pessoas falando um mesmo texto escolhem aplicar acento, velocidade,
intensidades, cortes, suspensões em diferentes segmentos, utilizando uma verdadeira
gramática prosódica; assim modelam os itens da língua e colocam sua impressão. O modo
como isso é feito é valorizado ou não pelo outro, portanto, a energia nervosa, como assume
Marchetti (2010), é decisiva em uma conversa e é aberta porque à medida que é emitida
interfere no ambiente, causa algum efeito que realimenta os enunciadores.
Uma fala que julgamos desagradável pode provocar alteração nos ânimos, gerar uma
ação específica e esta, por sua vez, provocar no outro uma nova reação, e assim por diante. O
cômputo das percepções e sucessivas sínteses que o organismo elabora no seu fazer simbólico
imprimem nos processos linguísticos uma dinamicidade que começa na sua profunda ligação
ao Ŧ.
Outra característica de abertura das operações de interlocução é que elas podem ser
expressas de muitas formas diferentes em uma CEL. Cada gênero comporta suas
especificidades quanto à variação dos modos interlocutivos. O que mantém a unidade e faz
com que as ações sejam identificadas como interlocução em diferentes gêneros é sua função
de estabelecer o EU a partir do TU numa coordenada de tempo e espaço em que se constrói na
dinâmica da linguagem.
A interlocução é, portanto, um sistema aberto, porque, apesar de sua tendência em
flutuar em torno do equilíbrio, há um leque de infinitas possibilidades significando que o
sistema está à beira do caos, ou seja, algum atrator estranho pode emergir, já que os atratores
podem se fundir e se tornarem novos atratores. Numa CEL a variação tópica é bastante livre,
e, dessa forma, há um grau de imprevisibilidade muito grande. No evento registrado, C tinha
uma pauta para seguir durante o evento, mas se nota que o seguimento da pauta não foi uma
exigência, foi mais uma brincadeira da participante C, também por motivo de segurança, no
caso de os falantes ficarem sem assunto, situação que poderia acontecer devido ao fato de o
evento ter sido planejado com a finalidade acadêmica. Todavia, o tópico, nesta pesquisa, é
importante à medida que evidencia a existência de um fluxo tópico e de um fluxo interativo,
que é o foco principal da pesquisa. Observou-se que os elementos do Ŧ são importantes na
construção textual em que se atualizam (T/E)n.
A energia que se exprime ao falar define-se pela emoção que se tem diante dos fatos.
Se agradam, provocam bem-estar, se não agradam, provocam mal-estar e, assim, em uma
dinâmica recursiva, realiza-se a atividade de linguagem constitutiva, que constrói ao mesmo
tempo em que é reconstruída. Ela se repete ao mesmo tempo em que se renova. As operações
de interlocução renovam-se ao longo de uma conversa e assumem diversas formas e
151
combinações, adaptando-se aos componentes novos que vão surgindo à medida que a
conversa desenvolve-se, tal como característica de um sistema aberto. Como um sistema
aberto, a interlocução modula-se conforme o fluxo da emoção que, por sua vez, autorregula-se
pela busca do equilíbrio homeostático. O sistema tem como propriedade primeira a
manutenção de sua existência (PRIGOGINE; STENGERS, 1993) e os seres humanos primam
pelo bem-estar; então, tudo que se julga bom ou ruim faz-se baseando no bem-estar e
manifestando nas falas. A linguagem revela isso e mostra que emoção rege o fluxo de energia
que vai determinar o que as emissões linguísticas querem realmente dizer.
3.6.2 Não-lineridade
A linearidade é uma propriedade fundamental na linguagem. Toda a produção de
linguagem emerge de uma forma linear. As emissões são feitas em sequência de sons, palavras,
orações, gestos, etc. A sucessão de falantes em uma conversa é também um aspecto linear
marcante. Embora haja sobreposição de vozes, na maior parte do tempo, falar um por vez é uma
regra forte que, em condições de equilíbrio, é obedecida. Apesar de a marca de linearidade na
linguagem ser um atributo forte, ao lado dessa propriedade, está outra que a ela não se opõe,
mas a completa: a não-linearidade. Essa propriedade é também característica da linguagem.
Muitos são os constituintes das interações de linguagem e as relações entre eles se
processam em forma de redes. Desde os elementos do espaço físico, as particularidades
pessoais – como o repertório linguístico –, a postura e as intenções, bem como os aspectos
sociais – como as normas que determinam o modo de organização, os limites dos
participantes, o que pode e o que não pode dizer e fazer cada um -, tudo é computado durante
a interação e serve como parâmetro para modelar as ações. São muitos componentes
envolvidos na ação de linguagem e, como visto, os sistemas formados por muitos
componentes são sistemas não-lineares.
Para o cálculo de previsibilidade das ações de linguagem devem ser computadas todas
as possibilidades a que estão submetidos cada um dos aspectos que envolvem a interação.
Portanto, a linguagem mostra evidências de ser um sistema não-linear, além disso, cada um
dos subsistemas que a compõem são, eles também, sistemas complexos, elevando, assim, o
grau de complexidade a extremos.
Outra evidência da não-linearidade no processo interlocutivo em uma CEL é que
qualquer participante pode obter o turno. Não há uma determinação para regular quem vai
falar, isso dependerá das intenções de cada um e das estratégias que usarem para se manterem
152
no turno, se isso for uma intenção. As conversas paralelas enquanto um falante tenta narrar
mostram que há uma liberdade entre os interlocutores de não assumirem o papel do TU. Isso
pode ser uma evidência de que a organização é imprevisível, isto é, não pode ser totalmente
determinada, em função da força exercida por atratores estranhos que podem emergir.
Nos dados há um exemplo bem característico dessa propriedade não-linear, quando o
sistema foge de sua trajetória sobre a influência de um atrator estranho. No tempo 71:00, G
tenta narrar um episódio enquanto K e C estão engajadas em um tópico. Ele insiste, mas as
duas mantêm-se em foco até que G emite xô contá, aqui caramba, expressão pela qual ele
interrompe a relação linear entre C e K e conquista a garantia do turno, mostrando intenções
de se constituir como um locutor e participar da conversa gerando um foco único para o qual
todos se voltam, estabelecendo-se, assim, a linearidade.
Os padrões previsíveis de uma conversa determinam que enquanto um fala os outros
ouvem, mas um atrator de limite de círculo pode afastar o sistema de sua órbita de equilíbrio e
o levar a se auto-organizar. Foi exatamente o que aconteceu enquanto G tentava narrar e as
duas interlocutoras quebraram as regras não se constituindo como interlocutoras (em TU),
fato que levou G agir para tomada do turno e do estabelecimento da audiência. É bom
ressaltar que G, ao emitir a frase gramatical, gesticula, movimenta o corpo e segura o braço de
C; todas essas ações simultâneas são realizadas para que ele permaneça no turno e termine sua
narração. Esse é um exemplo de não-linearidade revelada na operação de interlocução. A ação
de G visa estabelecer a relação EU↔TU, levando o sistema interlocutivo ao equilíbrio a partir
da propriedade organizadora fala um de cada vez.
Em um âmbito maior, a linguagem comporta-se como um sistema não-linear ao seguir
sua tendência ao equilíbrio, apesar de estar sempre sujeita a perturbações. São numerosos os
fatores que podem determinar as formas linguísticas e os significados. A despeito da
identidade do sistema, seu conjunto de regras que o unifica e o distingue de outros, há
também a instantaneidade que obriga uma ação de linguagem a ser interpretada,
exclusivamente, a partir do cruzamento das coordenadas de tempo e espaço em que é
realizada, sendo que, nesse cruzamento, há sempre um novo componente que é o tempo. Isso,
inevitavelmente, leva a linguagem à adaptação e à reorganização perpétuas.
3.6.3 Dissipação
Numa interação os sistemas operam em regime de estabilidade e instabilidade devido
ao fluxo de energia que envolve a construção do Ŧ. As oscilações em um sistema de interação
153
levam-no a instabilidades, provocando mudanças nas estruturas. Assim, um pensamento pode
levar um participante de uma conversa a convocar a audiência para introduzir um tópico que
lhe ocorreu de repente. Da mesma forma, o desvio da atenção para um objeto ou para uma
cena circundante pode provocar uma mudança na interação e solicitar uma nova ação de
interlocução com a finalidade de reorganização, ou ainda, uma fala pode provocar
desestabilização no estado de emoção de um participante e ele poderá reagir com ações
linguísticas. As ações de linguagem são moduladas na instantaneidade da interação. As
avaliações que as pessoas fazem dos atos levam-nas a ter reações que caracterizam os laços de
realimentação dos sistemas complexos bioculturais.
Os sistemas vivos são sistemas abertos, mantêm-se longe do equilíbrio e preservam a
estabilidade, ou seja, a mesma estrutura global é mantida a despeito do permanente fluir e
mudar dos seus componentes por meio da passagem da energia pelo corpo. Ao realizar uma
ação de linguagem, o organismo gasta energia para a produção do movimento; sem a troca de
energia com o meio, a linguagem é apenas possibilidade. A realização dos itens linguísticos é
sempre situada no tempo e no espaço quando e onde o sistema adapta-se às condições atuais.
Esse princípio pode ser aplicado tanto às formas gramaticais quanto à construção dos
significados que só emergem na instantaneidade da ação de linguagem.
Na interlocução, a flutuação do sistema mantém-se à custa de uma dissipação
permanente de energia e de matéria fornecida pelo meio e devolvida ao meio através da
linguagem. Pela inspiração o organismo coleta o ar do ambiente e o devolve em forma de
sons. As sequências interlocutivas vão sendo organizadas à medida que o sistema flui.
Numa conversa, como exposto no quadro das ações que constituem a interlocução, as
intenções podem variar, mas as formas mantêm a identidade. O movimento de linguagem
marca posições físico-espaciais, mas também intenções e valores subjacentes. Talvez seja por
isso que se deva considerar a emoção como um componente linguístico. Tudo o que é
expresso é impregnado de um “tom” que pode ser ríspido, doce, angelical, indiferente,
nervoso etc. Podem-se imprimir tipos diferentes de emoções através da quantidade de energia
que se coloca nos segmentos assim como se pode também selecionar tópicos, implementar
contornos a tópicos já existentes ou mesmo direcionar a conversa para a interação e para os
interlocutores. A forma como se distribuem as pausas, os alongamentos, a velocidade e
intensidade, enfim, toda forma de modular a língua contribui para manifestar intenções e
dizeres. A emoção vai impressa através das marcas na linguagem; assim se distinguem modos
de ser educado, grosseiro, rude etc. Essa é uma evidência de que a linguagem sempre em
prospecção vai trocando com o meio e se moldando a ele. Os objetos discursivos vão sendo
154
vistos por perspectivas diferentes à medida que vão sendo construídos na coletividade e o
conhecimento vai sempre se reorganizando pela experiência. Ao emitir um som linguístico, o
organismo entra em contato com o ambiente, o som é ouvido e interpretado, ocorrendo, assim,
a dissipação de energia na linguagem. Ao emitir uma unidade linguística, a pessoa estabelece-
se como locutor e instaura o TU, portanto, o fluxo de energia que sai do diafragma e reverbera
no espaço em forma de onda é o movimento de linguagem que se faz pela troca de energia
com o meio. Também o conteúdo valorativo das emissões linguísticas promove gasto de
energia à medida que os inputs atuais vão sendo associados aos inputs registrados na
memória. As computações, então, poderiam ser entendidas como processos que consistem em
conjugar elementos do Ŧ e as emissões para uma nova formulação em decorrência desse
processo. Dessa forma, a troca de energia culminará na reorganização neuronal com
aparecimento de novas estruturas cerebrais, resultantes do processamento da energia
percebida.
Percebe-se que, no decurso das ações, as emissões vão sendo carregadas de emoções e
estas vão sendo processadas de forma recursiva como laços de realimentação. Cada emissão
do EU provoca algum movimento no TU, instalando um processo de não-equilíbrio que leva
o organismo a buscar uma nova coerência para os estímulos percebidos. A linguagem pode,
então, ser concebida como uma estrutura dissipativa, porque ela flutua em torno do equilíbrio
até que um fluxo maior de energia leve-a para zonas de não-equilíbrio, mudando o rumo de
sua trajetória e fazendo com que surjam novas coerências.
3.7 Degenerescência nas operações de interlocução
Considerada como uma atividade humana consciente, resultante de um longo processo
evolucionário, a linguagem humana, segundo as teorias pressupostas nesta pesquisa, procede
da arquitetura neuronal com seus processos dinâmicos reentrantes. O cérebro humano,
conforme Edelman (1989, p. 44), é formado por unidades de seleção que são coleções de
centenas de milhares de neurônios fortemente interconectados, chamados grupos neuronais,
que agem como unidades funcionais. A atividade celular dos grupos neuronais faz com que
eles se organizem especializando ou deixando de existir conforme o indivíduo realiza sua
experiência no mundo. Segundo Edelman (2003), os estados de consciência provêm de sinais
do self (sistemas de valores e elementos reguladores do cérebro e do corpo) e sinais do nonself
(sinais do mundo, transformados por meio de mapeamentos globais). Esses sinais são ligados
à memória e, a partir de uma complexa rede de reentrâncias, essas duas fontes são conectadas
155
entre si por caminhos diversos e resultam na habilidade para discriminações elevadas, o que
aumenta as chances de sobrevivência dos organismos. Ainda segundo Edelman (2003), uma
função adaptativa dos sistemas neurais subjacentes à consciência é sua habilidade para
integrar um grande número de estímulos sensoriais e reações motoras ocorrendo em paralelo.
Assim, os inputs atuais são processados e ligados à memória, que é capaz de categorização
conceitual e, por conseguinte, ultrapassam os limites do tempo presente, capacitando as
pessoas a se tornarem conscientes do passado histórico, da possibilidade de planos futuros e
da consciência de estarem conscientes. Resumidamente, seria essa a atividade neuronal
permissória da linguagem. Portanto, a linguagem como está sendo concebida nesta pesquisa
emerge da atividade cerebral e pode ser análoga a ela.
Não se pode pensar em linguagem sem pensar no corpo movendo-se no ambiente,
impelido e restringido por várias forças circulantes. Dessa maneira, os processos descritos na
interlocução são vistos como processos simultâneos, ainda que distintos em sua materialidade.
Como exposto anteriormente, as acomodações em uma interação, como a manutenção de um
tópico, pode ser interrompida e, assim, uma bifurcação levará o sistema a assumir uma nova
organização.
A diversidade de áreas neuronais e suas especificidades também têm um paralelo na
linguagem que é a conjugação de sistemas diversos, cada um com sua materialidade e com
seu tipo de movimento. Da mesma forma que as áreas neuronais possuem redes extensas de
conexões, também os elementos da linguagem relacionam entre si de forma bastante plástica,
de modo que uma emissão possa ser construída ou percebida aos moldes de um mapeamento
global. Ficou clara a forma degenerescente com que a língua completa-se com outros tipos de
códigos e como a relação entre eles é decisiva para a construção dos significados. O controle
material do fluxo de ar constitui a matéria da fala. O modo como é controlado esse fluxo de ar
sinaliza valores importantes na significação. A diferença de quando se é grosseiro ou quando
se é gentil estabelece-se conforme se molda o fluxo de ar: mais lento, mais rápido, alteração
de acento, velocidade e de intensidade; todos esses contornos dizem muito, eles fornecem o
modo de ser da pessoa. Muito do que as pessoas são se revela pela linguagem, isto é, o modo
pelo qual cada EU distingue-se, constituindo-se em um EU discursivo. Isso mostra que a
linguagem como um sistema abstrato está imerso na relação organismo-ambiente, numa
coordenada de tempo/espaço sem a qual nenhuma emissão faz sentido.
A análise revela indícios de que o sistema de valor permeia a organização e imposição
de turnos, o que pode ser associado à manifestação do self social, ou seja, o reconhecimento
do outro como um igual. Exemplos como em 83:38 – G: dex’ô falá aqui –¸ depois de várias
156
tentativas de concluir uma narração, deixam evidências da necessidade do EU de se expressar.
Obter a vez de falar e garantir a audiência parece ser um valor e, por isso, um atrator que
modela a interação.
Dentre as operações observadas, selecionaram-se seis tipos básicos para demonstrar
que a interlocução realiza-se por sistemas integrados e coordenados, de modo que a mudança
em um sistema provoca mudanças em outros. O permanente movimento no processo de
interlocução e, por extensão, na linguagem, exibe comportamentos como os dos sistemas
complexos adaptativos constituídos por subsistemas. São sistemas abertos, na interação – o
uso do sistema (troca de energia) submete-o a mudanças; são não-lineares – as relações entre
os elementos que compõem o sistema não são plenamente previsíveis e a possibilidade de
combinação entre eles é variável; são estruturas dissipativas – vivem entre o equilíbrio e o
desequilibro; quando em situação de desequilíbrio, a ação sofre mudanças em função do
atrator mais forte.
3.7.1 A dimensão multimodal e cognitiva no processo de Interlocução
A análise do processo de criação da relação EU↔TU, crucial para a construção dos
sentidos no texto falado, qualifica a cognição humana como um fenômeno neurofisiológico,
que se explica a partir de funções cerebrais, processos sensoriais, mentais, sociais, culturais e
linguísticos, manifestos na interação de linguagem. Os processos mostram a correlação de
categorias procedentes de áreas distintas do conhecimento científico. A explicação para um
fenômeno de tamanha complexidade requer noções diversificadas já que a interação de
linguagem não se resume a atribuir nomes a objetos, a sujeitos e processos, a linguagem é
constitutiva. Ela revela sensações, emoções, ela permite versar sobre si mesma, ela reflete as
organizações sociais, os modelos culturais, pertencentes a um período histórico, fazendo com
que as ações de linguagem só possam ser interpretadas a partir da computação de elementos
oriundos de percepções que se originam tanto no ambiente externo quanto no “ambiente”
mental do organismo. Assim, as operações de enunciação compreendem categorias múltiplas,
constituindo-se por diferentes elementos que apontam para a direção do sentido, que só será
construído quando, a partir de um cálculo mental, diversos conhecimentos forem
interrelacionados, avaliados e computados por uma pessoa que seleciona e processa itens
diversificados.
A construção da relação enunciador-enunciatário, ou seja, as OIs mostram-se como
um processo constituído por seres biológicos com suas especificidades fisiológicas e mentais,
157
que se relacionam num ambiente, governados por leis sociais, limitadas por uma dada cultura
em um período histórico, tudo isso condensado em um instante a partir do qual serão
definidas as ações responsáveis por manter a interação. Dessa forma, tem-se um sistema
adaptativo complexo biocultural. Esse sistema caracteriza-se por padrões realizados por
estruturas distintas que podem ser uma oração, uma palavra, um gesto, um olhar, um
movimento corporal, e diversas combinações que levarão aos significados. Portanto, assumir
uma perspectiva multidisciplinar, torna-se importante, porque permite a preensão do caráter
criativo da linguagem em relação à sua maneira de operar. Assim a cognição, por exemplo,
engloba conhecimentos desde os mais observáveis como a forma e cor dos objetos àqueles
apreensíveis a partir da experiência, como por exemplo, normas de comportamento social, e
tantos outros conceitos que emanam da relação histórica entre o organismo e o seu ambiente.
159
4 CONCLUSÃO
Nesta pesquisa verificou-se que, dentre as categorias elementares, a construção do
EU↔TU mostra-se ainda mais elementar, já que é necessária à construção da referência,
sendo, pois, anterior a ela. A construção da relação entre enunciador e enunciatário mostra-se
como um mecanismo de estruturação do texto falado, sendo esse mecanismo decorrente de
uma situação que o molda e o determina. Os enunciadores computam aspectos que vão desde
a percepção da cena, de seus objetos, de suas formas, cores, até conhecimentos conceituais
abstratos, como normas de comportamento social, mantidas como um substrato em que os
interlocutores apoiam-se para formularem e interpretarem os textos construídos nas
interações.
Para analisar a construção da relação EU↔TU, um ponto de vista baseado em noções
de complexidade mostrou-se eficaz como explicação para captar a dinâmica dos processos de
linguagem em sua gênese, permitindo verificar que vários aspectos da relação de interação
somam para a formulação dos textos e da construção dos significados. Encontrou-se que o
funcionamento das ações elencadas na pesquisa mostra-se ligado a categorias que não são
exclusivamente linguísticas, mas que são fundamentais para o aparecimento destas. A
repetição, por exemplo, pode estar relacionada ao desejo de um organismo constituir-se
socialmente como um locutor, demarcando seu espaço, constituindo-se como um ser
consciente de si mesmo. A análise mostrou que categorias distintas são responsáveis por
estabelecer a relação EU↔TU, mostrando que o padrão realiza-se por diversas estruturas
simultâneas ou mesmo por uma única estrutura verbal.
Considerar a linguagem como um sistema complexo implica a ideia de que as
interações de linguagem são realizadas por estruturas dinâmicas que mantêm um padrão pelo
qual constitui-se a unidade e a convenção de símbolos. Assim, essa noção de linguagem
apresenta uma gramática que permite a identificação dos objetos e eventos, configurando-se
como o padrão, ou seja, aquilo que se repete, por meio de estruturas que se configuram por
matérias mais diversas como, por exemplo, uma oração, um conceito abstrato, um item
lexical, o resgate de uma lembrança, uma sensação, uma percepção, um gesto, enfim, um
elemento material que faz sentido àquele que interage pela linguagem. Logo, a linguagem foi
entendida como um padrão que se realiza pelo modo como diversas estruturas organizam-se
para formá-lo. Por isso, o objeto deste estudo, as operações de interlocução, ampliou-se para
apreender o momento em que essas operações são realizadas. Só a cena enunciativa pode
fornecer o suporte para a gramática que emerge. Aquilo que se percebe, lembra ou atenta
160
serve como base para fazer emergir as diversas estruturas que se geram, mostrando que a
linguagem compreende o organismo em movimento, integrando diversos sistemas. A língua
sozinha, pois, não parece suficiente para gerar os significados; ela fornece elementos para a
construção dos sentidos, mas não todos os conhecimentos necessários.
A diversidade de uso dos sistemas de linguagem em função de sua adaptação ao Ŧ só
se explica pelo deslocamento do olhar da investigação científica da linguagem como um
objeto isolado para o homem que cria a linguagem: um homem biocultural, uma criatura
complexa, cuja condição de existência é o movimento. Por isso, o objeto desta pesquisa visou
ao homem em interação – ele altera sua estrutura permanentemente e, ao mesmo tempo,
mantém sua unidade no padrão comportamental que, dentre outras coisas, compreende seu
movimento no ambiente. Movimento esse guiado por características semelhantes às dos seres
complexos, tais como a abertura, a não-linearidade e a dissipação.
A abertura advém da rede metabólica de enzimas e proteínas em fluxo constante de
energia. Na linguagem essa característica provém de o fluxo dos significados permanecerem
em contínua manutenção e transformação. É por causa dessa característica que o ser humano
permanece em constante transformação, ao mesmo tempo em que mantém sua identidade. A
linguagem, da mesma forma, encontra-se em permanente processo de mudança ao mesmo
tempo em que se conserva estável. A não-linearidade capacita o humano a estabelecer
relações entre quaisquer elementos e sistemas em qualquer tempo e qualquer espaço acessível
a sua percepção e a sua imaginação. Na linguagem, as relações permitidas entre os elementos
formais da língua, possibilitam uma produtividade que é infinita. A adaptabilidade é uma
propriedade que torna os seres humanos capazes de relacionar com os mais diversos membros
da espécie e de outras em infinitas combinações das variáveis de tempo e espaço. Assim,
também, a linguagem adapta-se às situações, aos diversos meios e se organiza conforme os
elementos que constituem a cena enunciativa, além do que se mantém sempre em mudança,
devido ao fluxo do uso constante pelos usuários. A dissipação leva o sistema a se manter em
contato com o seu exterior. Ao realizar a troca, o organismo põe-se em movimento
consumando o estado de não equilíbrio. Nas ações de interação, os humanos estão sempre
operando com o novo. Ainda que a estabilidade dos padrões seja mantida, os componentes
são sempre realizados de uma maneira diferente ou mesmo alterados.
Os resultados da pesquisa mostraram que o sistema de significação humano emerge da
interação entre o organismo e o ambiente. A atenção aos movimentos corporais é a chave da
compreensão sobre como as coisas e experiências tornam-se significativas para os seres
humanos. De fato, a movimentação do ser humano é que o põe em contato com o mundo e
161
essa condição o obriga a desenvolver sistemas de interação, emergentes na experiência, que
serão submetidos ao uso e também modificados ao longo de seu percurso. As trocas
linguísticas compreendem os espaços em que elas acontecem e também os espaços e tempos
que os participantes julgam partilhar. Portanto, os significados emergem não das emissões
verbais isoladamente, mas das emissões inseridas em um evento com todas as suas
dimensões. Engajar-se em narrativa e discurso cria demandas funcionais de associação de
eventos, localização de participantes, tomadas de perspectiva. Ou seja, numa interação os
movimentos físicos refletem movimentos conceituais e, muitas vezes, estes se realizam por
movimentos físicos.
A construção do simbólico, vista dessa forma, abrange tanto a parte material quanto a
parte conceitual, construída por uma infinidade de dimensões temporais e espaciais. Essa
conclusão é alcançada no evento gravado, evidenciando que o sistema linguístico está ligado à
ação social e à atividade conjunta que inclui objetos, espaços e movimentos diversos como
base para a construção do simbólico. Assim, o simbólico e o físico, ainda que sejam coisas
distintas, são indissociáveis, de modo que as convenções de linguagem, ou melhor, os
símbolos sejam ancorados no movimento de interação em que há partilha e comunicação. No
momento em que C toma a taça em suas mãos e se dirige aos técnicos, fica evidente que a
construção do espaço de significação é ampla e depende de uma construção percepto-
cognitiva.
Essas constatações indiciam que o mundo simbólico, mediado por linguagem, obedece
a uma lei semelhante à do mundo biológico; ambos estão submetidos a um metabolismo seja
de cadeias de proteína, enzimas, etc., seja de reações socioculturais. À medida que interage no
meio, o organismo constrói símbolos que, tal como as estruturas biológicas, são
continuamente reproduzidos e restaurados. As estruturas simbólicas, no curso de sua
trajetória, vão se modificando, ao mesmo tempo em que mantêm uma forma estável. Essa
propriedade pode ser verificada no léxico em que os significados das palavras podem manter-
se estáveis, mas, também, variar conforme os contextos em que aparecem e conforme as
adaptações efetivadas pelo uso.
As condições biológicas de adaptação, sobretudo a busca pela homeostase, coloca o
organismo em movimento, sendo que parte desse movimento é dedicada à linguagem. As
relações simbólicas também se materializam pelos movimentos, pelas ações e, portanto,
possui suas raízes na biologia. O modelo de computação recursiva dos dados que o ser
humano produz e que o circunda deve emergir dos princípios de complexidade que o
governam. Assim, ver o mundo e estar nele só é possível mediante condições inerentes ao
162
funcionamento do organismo. É dessa perspectiva que o ser humano sente-se, percebe-se e
percebe (categoriza, classifica) e avalia o mundo à sua volta, e foi essa perspectiva que
norteou a análise das OIs, levando a se admitir que ela possa se acomodar dentro dos
princípios que governam um sistema adaptativo complexo biocultural.
Um item de memória, por exemplo, “dispara” a ação de C que realiza várias ações
para obtenção do turno. Essas se manifestam no gesto de levantar a mão, no aumento da
intensidade, no toque em G e numa gesticulação simulando um movimento direcional,
possivelmente para fortalecer o valor semântico do item lexical invadiu (em:ah:: uma carreta
invadiu o estacionamento...). Pode-se constatar disso que a linguagem manifesta-se por
estruturas variadas, engloba a língua, mas também incorpora outros tipos de código – gestual,
expressão facial, etc. – além de um cruzamento de tempo e espaço, origem de toda a
enunciação. Essas considerações levam a considerar que a linguagem incorpora o Ŧ, e os
símbolos linguísticos, por sua vez, podem prescindir do presente enunciativo, desde que este
esteja pressuposto pelos falantes, a partir do qual podem referir outros tempos e espaços.
As amostras refletiram todo o evento, evidenciando que os mesmos tipos de ações
estão dispersos ao longo dos 86 minutos registrados. Isso demonstra que os tipos de ação
coordenados modelam o princípio organizacional da OI exibindo a natureza do padrão que
subjaz a esta dinâmica: estabelecer a relação EU↔TU. OIs exibem um ponto em uma escala
hierárquica de um sistema maior que é a linguagem, de um sistema maior que é o humano e
de um sistema maior que é o ambiente. A pesquisa mostrou que os elementos fundamentais
que compõem as noções de complexidade podem ser adequados em diferentes graus ao
processo interlocutivo e à linguagem de uma maneira geral – o espaço fase, como as
condições iniciais da interação; os atratores, como os elementos que definem o curso de sua
trajetória; e o padrão, como a forma que dá identidade aos diversos aspectos da interação.
Com esta pesquisa, atesta-se que as OIs fazem muito mais do que introduzir tópicos,
conduzir o discurso e organizar a interação. Supõe-se que as OIs são a verdadeira
manifestação do self/EU. A maior evidência disso está nas estratégias de interlocução para
garantir o turno. Por meio dessas ações, as pessoas buscam-se reconhecidas e esse fato só se
realiza pelo outro. Assim, estabelece-se a distinção EU-NÃO-EU, pela qual as pessoas
buscam preservar a sua autoimagem regulando-se por um sistema de valores que é
categorizado conforme o equilíbrio homeostático.
As implicações desses resultados alcançam a compreensão do permanente movimento
adaptativo das práticas de linguagem e das formas que emergem, mostrando uma sintaxe que
incorpora tanto a corporalidade quanto o código verbal. O verbal está em sintonia com o
163
corporal. Deve existir uma sintaxe em que esses sistemas organizam-se em conjunto com
função comunicativa, lembrando que os significados podem ser conseguidos com o franzir do
senho, por exemplo. O que parece ser internalizado não é apenas um conjunto de formas
linguísticas, mas também um conjunto de elementos componentes de um evento. A unidade
linguística não pode ser apenas uma composição gramatical, mas uma composição gramatical
modulada por uma série de artefatos de linguagem construídos coletivamente para fins
interacionais.
Se, por um lado, atos tão simples – uma conversa, um desabafo, uma troca de
informação – são atividades humanas tão banais e tão cotidianas, por outro, constituem-se
como fenômenos extremamente complexos, e, por isso, muito difíceis de serem descritos e
explicados quando isso se impõe como uma tarefa. Algumas dessas dificuldades devem-se à
propriedade da linguagem de ser interna. Ela constitui o ser humano, caracteriza-o como uma
espécie e também lhe é externa. Ele a constrói e a exerce por intermédio de formas materiais
sensíveis e partilháveis coletivamente.
Os estudos feitos nesta pesquisa sobre interlocução deixam em aberto muitas questões
que podem ser incluídas em agendas futuras. Estabelecer em que medida as operações de
interlocução podem ser classificadas e até que ponto elas são referentes ao texto, à interação
ou mesmo até que ponto essas operações desempenham funções múltiplas como foi
observado em alguns casos. Quais seriam os pontos de interseção entre o corpo e a língua e
como esses sistemas relacionam-se na formulação das OIs.
Refletir sobre a condição de seres de linguagem leva o humano a constatar o imenso
paradoxo em que está envolvido. Se, por um lado, refere-se a um mundo físico, palpável, cuja
materialidade manipula e apreende por meio dos objetos sensíveis tridimensionais (um copo,
por exemplo), por outro, refere-se a um mundo ao qual jamais terá acesso a não ser por meio
de suas representações mentais coletivas (a liberdade, por exemplo). Pode-se manusear um
copo, um galho de árvore e referi-los com a mesma naturalidade com que se refere à
liberdade, ao amor, aos objetos imateriais e insensíveis ao sistema sensorial. No entanto, sob
o ponto de vista linguístico, parece que não há diferença nas operações que se faz ao se referir
entidades tão díspares. Um conceito complexo quanto liberdade, imaterial e inapreensível, é
tão “palpável” quanto o de um copo. Deve-se isso a sua capacidade linguística de operar em
recursão, isto é, pode-se dispor da matéria dos objetos. Para os seres humanos, os conceitos
que elabora em sua consciência torna-os tão materiais quanto à própria existência
tridimensional, tamanha sua criatividade linguística.
165
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SEARLE, John R. A redescoberta da mente. Tradução Eduardo Pereira e Ferreira. São
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TURNER, Mark (Ed.). The artful mind: cognitive science and the riddle of human
creativity. Oxford: Oxford University Press, 2006.
171
APÊNDICES
172
APÊNDICE A – Termo de cessão de imagem
Eu _____________________________________________________ RG _______________,
residente na Rua _________________________________, nº _______ complemento ______
Bairro _______________________________ no município de ____________________
_______________________ no estado de _______________________, concordo em ceder os
registros obtidos por meio de gravação de áudio e vídeo realizada com fins acadêmicos. Os
registros serão utilizados exclusivamente pela doutoranda Daniela dos Santos Costa para
realização da tese que vem desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Letras na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 19 de outubro de 2010.
_____________________________________________
173
APÊNDICE B – Notação para a transcrição
A transcrição deverá seguir um sistema de notação baseado em Marcuschi (1989, p.
318), adaptado para as necessidades desta pesquisa e compreende os seguintes sinais:
↑ maior intensidade do segmento que vem adiante.
↓ menor intensidade do segmento que vem adiante
→ maior velocidade da fala do segmento que vem adiante
~ modulação acentuada
: alongamento menor de sons vocálicos e consonantais
:: alongamento maior de sons vocálicos e consonantais
h indica que há expiração ou inspiração nos sons contíguos
/ corte súbito no segmento anterior
sobreposição de vozes
( ) pausa com duração indeterminada
[?] segmento incompreensível de até duas sílabas
[incompreensível] segmento incompreensível de mais de três sílabas (geralmente quando
ocorre sobreposição de falas).
[ ] descrição complementar da cena e comentários do analista
[MAC] movimento afirmativo de cabeça (sua forma é vertical e indica o conceito de positivo)
A ordem da entrada será: número da linha1, tempo da fala e participante. Em alguns
momentos o tempo será marcado apenas no início do turno, ficando subentendido que a fala
segue em prospecção linear no tempo, assim à medida que a fala progride, progride também o
tempo.
1 Manter-se-á o termo linha, ou segmento para indicar as emissões das amostras, cada linha ou segmento indica
um turno, por isso alguns deles ocuparão mais de uma linha no papel.
174
APÊNDICE C – Amostra 1 e Amostra 2
AMOSTRA 1: de 5:00 a 7:17 – Estão C, CL e K em torno da mesa, o trecho inicia com K
contando sobre o conserto de um vazamento em sua casa. Os falantes estão dispostos em
torno da mesa.
05:00 – K: na hora de fazer essa ligação do joelho é: [olhando C e fazendo gestos]
1- 05:05 – C: [olhando para a janela e para K] tá sentindo frio? aqui? [apontando para a
janela]
2- 05:07 – K: não, tá ótimo
3- 05:06 – CL: → tem blusa ali se quiser ah/ ↓ cê trouxe blusa
4- 05:08 – C: n: → não na hora a gente fecha [para CL]
5- 05:09 – K:na hora que ele↑puxou o joelho
6- 05:10 – K: o joelho tava: [~] tava solto
7- 05:10 – CL: [para C] eh:: ( ) ↓ê:: [colocando a língua para fora, como se dizendo bobo]
8- 05:12 – K: como se tivesse só encaixando [~] olha que doidera
9- 05:14 – C: e assim, Neilton falou q/ Neilton: Neilton↓deu o parecer sobre isso?
10- 05:18 – K: ele vai lá hoje::
11- 05:19 – K: tá previsto pr‟ele ir lá hoje mas eu acho
12- 05:22 – C: ↑ não/ mas assim ( )
13- 05:23 – C: ele foi responsável por isso? ( ) ou acontec/ acontece::u: [movimento
semântico de mão explicitando o modo como aconteceu, parece indicar “por acaso”]
14- 05:26 – CL: [estende o braço, tentando o turno
15- 05:26 – K: gente num tem muito sentido uma obra de dez meses
16- 05:30 – CL: [?] [?] não/ mas esseé um problema da construtora cê tem que acionar é quem
contruiuuá
17- 05:33 – C: nã:o mas foi na hora da/ foi na re forma
18- 05:35 – CL: ↑ ah: na refo:rma
19- 05:36 – K: ↓ reforma
20- 05:37 – CL: ↓ reforma [MAC]
21- 05:38 – K: então assim ( ) eu num tô querendo mais procurar culpados, entendeu?
[olhando C]
22- 05:40 – CL: é claro
23- 05:43 – K: [olhando CL] responsabilidades, eu vou/ conversar com ele/ falar [~] olha, a
bomba explodiu, né:?aqui em casa e aí?
175
24- 05:48 – K: em que que ocê pode me ajudar?
25- 05:51 – K: o que eu vou sugerir é que eu entro com o material e ele com a mão de obra
26- 05:52 – CL: ma/ quem tá::
27- 05:53 – CL: quem tá reclamano? seu vizinho?
28- 05:55 – C: ↓Neílton
29- 05:56 – K: Neílton entra com a mão de o:bra [?] [para C]
30- 05:59 – CL: quem tá reclamano? seu vizinho?
31- 06:00 – K: [voltando-se para CL] os vizinhos que assim/ a cozinha deles tá alagada
pingando água assim ó [gestos, movimentos verticais de cima para baixo]
32- 06:05 – C: no::ssa [expressão de nojo, mão no rosto] ↑i::hh
33- 06:05 – CL: quanto tem/ foi quanto tempo?
34- 06:08 – K: no::ssa de/ desde antes d‟eu viajar, tem três semanas que:
35- 06:10 –CL: [para K] tavafechad/
36- 06:10 - C: [pegando a garrafa e servindo as taças] ↑eu tô achando bom sem gelar, cês tão?
37- 06:12 – CL: [volta-se para C] eu também tôgostano ( ) ↓tá ótimo
38- 06:13 – K: eu também tô
39- 06:15 – C: num tá? [para K]
40- 06:16 – K: tá ótimo [para C]
41- 06:16 – C: inve::ja:: [balançando a garrafa, mostrando-a aos técnicos]
42- 06:18 – K: aqui me conta/ [olhando para C e depois volta-se para CL que intervém]
43- 06:19 – CL: esse é o problema qu‟euqu‟eu acho difícil em apartamento é isso
44- 06:23 – K: a: é um saco a/ ↑além do mais porque não ha↑via vazamentos visíveis no meu
apartamento entendeu?
45- 06:29 – CL: sei
46- 06:30 – K: e aí as pessoas iam lá e eu falava ↑gente num ↑tá vazando aqui na minha casa
47- 06:33 – CL: e o cara, vai lá embaixo, né? [gesto descendente com a cabeça]
48- 06:34 – K: é::
49- 06:35 – K: e eu ia lá e [?] nó::
50- 06:35 – CL: [?] [?] lá em casa [?]
51- 06:39 – C: aqui aconteceu/ aqui [apontando o dedo indicador] cê tomano banho e
pingando água do vizinho em cima docê junto com a água do chuveiro
52- 06:44 – CL: no::ssa!
53- 06:45 – C: [pingava aquela água nojenta, cê num sabia de onde vi:nha
54- 06:48 – K: deve ser até esgoto, né?
176
55- 06:49 – C: aí era do cano dele do/ ↑do ralo do chuveiro dele ↓olha que coisa!
56- 06:52 – K: [tocando a mão de C sobre as pernas cruzadas, adiantamento do tronco em
direção a C] na sua cabeça [risos]
57- 06:53 – C: [com as mãos no rosto] ↑u::i
58- 06:55 – CL: move o tronco e a cabeça, expressão de nojo] e::ah
59- 06:56 – C: pingava aquilo na ge:nte [fechando a janela de correr] ( ) ↑no:ssa
60- 06:59 – C: aí fi/ ficamos me::ses
61- 07:00 – CL: [leva a mão em direção à janela]
62- 07:01 – K: tá bom [para CL que ia fecha a janela]
63- 07:02 – CL: tá bom assim?
64- 07:02 – K: [MAC para CL e volta-se para C; CL também volta-se para C]
65- 07:02 – C: [gesto com a mão representativo de telefone, olha em sequência para CL e para
K] fulano vem cá vem cá ↓tá pingano num sei que, num sei que, num sei que ai ele/ até
que ele mandou consertar aí ficou o buraco aqui [apontando o interior do apartamento]
66- 07:05 – K: gente e/ é um saco porque na verdade quem é que
quer assumir isso, né? infelizmente ninguém [adiantando o corpo e pegando a taça e
segurando-a enquanto fala, olhando CL]
67- 07:10 – CL: é [MAC]
68- 07:11 – ( )
69- 07:12 – CL: [para K] nh e o que que eles queixam? é: só: vazamento:
70- 07:13 – C: [adiantando o tronco tocando K] e era uma mulher que: da/ dava
banho no cachorro no no:
71- 07:16 – CL: no chuveiro
72- 07:16 – K: banheiro?
73- 07:17 – K: no chuve:iro e ia entupino→de pelo de pelo de pelo
74- [os falantes voltam ao tópico dos estragos nos apartamento de K]
177
AMOSTRA 2: de 34:52 a 37:04 – Estão C, CL, G e K em torno da mesa, o trecho inicia com
CL perguntando sobre uma pessoa conhecida.
1- 34:52 – G: aí ele fazia/ que ele é artista plástico
2- 34:56– K: da rede mediterranê?
3- 34:58 – G: da rede mediterranê [olhando para K depois para o centro da mesa endireitando
o corpo]
4- 35:00 – G: e aí: vinte quatro [?]
5- 35:01 – CL: tem tempo que eu não vejo
6- 35:01 – K: ↓quede a pauta? [olhando para C, riso]
7- 35:02 – C: [olhando K] unh?
8- 35:03 – K: quede a pauta?
9- 35:04 – C [olhando um papel que segura,em cima da mesa] ↓uma cola [sequência de
olhares]
10- 35:09 – C: → o shopping de Sete Lagoas
11- 35:10 – [todos riem e falam ao mesmo tempo]
12- 35:15 – CL: eu fiquei sabendo [?]
13- 35:18 – K – C tá louca pra ir lá no Shopping pra ela ir buscar [?]
14- 35:19 – CL: não/ já inaugurô:: já inaugurou
15- 35:20 – C: inaugurou menina diz que↑é li::ndo
16- 35:22 – CL: [?] diz que/ mas tem cena:
17- 35:23 – C: eu num vi ainda não [olhando para CL]
18- 35:24 – CL: mas ocê sabe da cena ( ) ↓das pessoas
19- 35:25 – K - C tá enlouqueci:da pra ir ao shopping
20- 35:26 – C: ó teve/ ↑tombou até caminhão de leite [?]
Paropeba
21- 35:26 – CL: [↑risada]
22- 35:28 – K: batêcabe:lo [balança cabeça] no shopping
23- 35:29 – G: de:u/
24- 35:32 – K: [olhando C] o que é que ocê falou?
25- 35:33 – G: deu ↑fi:la
26- 35:34 – C: deu engarrafamento com a excursão vindo de Paropeba ( ) no dia da
inauguração
27- 35:35 – CL: [para C] cê tá de sacanagem, né?nã/ mas ês quebraram mesmo
28- 35:38 – C: não/ caminhão de leite é mentira
178
29- 35:39 – CL: ↓eu sei
30- 35:40 – C: m::as teve:: excursão::o vã:: ô::nibus
31- 35:40 – CL: →↓excursão [olhando para C com MAC]
32- 35:44 – K: excursão pra conhecer o shopping?
33- 35:45 – [~] pra ir pro ↑shopping, a inaugura↑ção, as cidades vi↑zinhas
34- 35:49 – CL: e::h foi um evento:: interregional [risos]
35- 35:49 – [passando a taça para G] toma G
36- 35:52 – CL: regional ( ) ↓ regional
37- 35:53 – C: aí: é assim
38- 35:54 – C: ficou lá/ abriu primeiro lá pros convida:dos coquetel assim pros convidados
39- 35:57 – C: aí devia ter, →sei lá, quinhentas pessoas
40- 36:00 – CL: os lojistas [?]
41- 36:01 – C: é/ os lojistas ficaram com seus convidados e →tal tal tal
42- 36:04 – CL: ahn
43- 36:05 – C: de repente abre povão aí veio aquela avalanche assim de gentalha
44- 36:05 – G: [?] [?] [pegando taça de vinho e cheirando]
45- 36:06 – K: ahn
46- 36:06 – CL e K: [risos]
47- 36:07 – C: ah:: [gesto com os braços abertos]
48- 36:10 – K: enxame, né?
49- 36:13 – C: e já/ →e já meteno a mão nos bifes os/ os lojistas tiveram/ [risos abaixa a
cabeça]
50- 36:15 – K: recolher o bifê
51- 36:17 – C: [rindo] ↑recolher os bifês e saquearam o hiper Santa Helena
52- 36:18 – K: meu deus do céu
53- 36:21 – C: o supermercado
54- 36:21 – CL: [rindo] [?] [?]
55- 36:25 – C: aí nas ↑fo:tos parece que é um show parece que é um Roch in Rio assim ( ) e é
o povo dentro do shopping/ [risos]
56- 36:27 – G: [rindo olha para K que também ri]
57- 36:30 – [risos gerais]
58- 36:31 – K: e a cobertura?
59- 36:32 – CL: eu fiquei sabendo que teve: e/ quebra de vitrine e tudo, né?
60- 36:35 – C: a:h isso eu não soube não
179
61- 36:37 – CL: é:: uai quebraram vi↑trine Betânia que falou com a gente
62- 36:40 – C: ahn:
63- 36:41 – CL: que as pessoas começaram a ficar loucas [fazendo gesto de empurrar]
64- 36:42 – G: e deu fila [?] [?]
65- 36:42 – K: que escândalo pra imprensa [risos]
66- 36:44 – CL: empurrando [gestos de empurrar, interrompe e aponta para K]
67- 36:45 – CL: [para K] →não/ foi vistocomoum sucesso[vota-se para C]
68- 36:46 – C: ô ge:nte
69- 36:48 – C: mas olha procê vê a/ a:: ↑sede desse povo por um espaço público assim
70- 36:53 – CL: é:
71- 36:53 – C: porque [?]
72- 36:54 – CL: Sete Lagoas é:
73- 36:55 – C: ↑shopping, né:: n/
74- 36:56 – CL: tá muito longe né [?]
75- 36:57 – C: não/ e o povo/ deve ficar super afim de ↑sho::pping, assim:
76- 36:58 – CL: [MAC]
77- 37:00 – C: pra eles é um la↑zerassim
78- 37:01 – G: é:
79- 37:01 – CL: é:
80- 37:02 – C: porque pegar ônibus, ir a BH
81- [ os falante continuam a conversa]
180
APÊNDICE D – DVD
DVD contendo o evento de interação gravado em 05 de outubro de 2010, 86 minutos.