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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
NÍVIA MÔNICA DA SILVA
OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
Belo Horizonte
2010
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NÍVIA MÔNICA DA SILVA
OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Álvaro Ricardo de
Souza Cruz
Belo Horizonte
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Silva, Nívia Mônica da S586ic Os impactos das relações intersistêmicas na concretização dos
direitos fundamentais no Brasil / Nívia Mônica da Silva. – Belo
Horizonte, 2010.
225 f.
Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz.
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito.
Bibliografia.
1. Direitos fundamentais. 2. Teoria dos sistemas. 3. Políticas públicas.
I. Cruz, Álvaro Ricardo de Souza. II. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 342.7(100)
Bibliotecária – Valéria Inês da Silva Mancini – CRB-1682
Nívia Mônica da Silva
OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Direito.
_______________________________________________
Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Orientador)
_______________________________________________
Giovani Clark
______________________________________________
Marcelo da Costa Pinto Neves
Belo Horizonte, 27 de maio de 2010.
Dedico este trabalho à Luiza,
que pouco conhece
e tudo sente,
pelas noites que adormeceu à minha espera.
AGRADECIMENTOS
A execução deste trabalho só se tornou possível pela contribuição direta ou indireta de
muitas pessoas, às quais agradeço, com meu especial reconhecimento:
À minha mãe, pelo amor incondicional e pelo carinho em todas as horas, mesmo
naquelas em que não consegui perceber a imensurável doçura de seus gestos;
Ao meu irmão, pela amizade, pelo exemplo de lealdade e honradez e pela presença na
minha história e no meu ideário;
Ao meu pai, pelo estímulo à leitura e à busca pelo conhecimento;
Às minhas amigas, que tornaram amenos os dias difíceis e descontraídos os momentos
de tensão, especialmente, a Liliann e Mariana pelo apoio abnegado;
Aos amigos da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, pela confiança e por
compartilharem o desejo de contribuir para o aprimoramento da atuação institucional de um
Ministério Público que, atento à realidade social brasileira, seja cada capaz de intervir
efetivamente em prol da concretização dos direitos fundamentais;
Aos Professores Doutores Juliana Neuenschwander Magalhães, Maria Tereza Sadek,
Marcelo Neves e Rafael Lazzarotto Simioni, pela abertura ao diálogo atento e pela
disponibilidade graciosa à partilha do conhecimento.
Por fim, registro minha gratidão ao Professor Doutor Álvaro Ricardo de Souza Cruz,
orientador arguto e dedicado, pela confiança, pela paciência e por me mostrar, pouco a pouco,
que o conhecimento está sempre a se construir, pois, como pensava Wittgenstein: “As
fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”.
Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios
e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas,
acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso
seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não
chega isto para sabermos que homem era
nem que água corria,
a água que correu no sonho é
água só do sonhador,
não saberemos o que ela significa ao correr
se não soubermos que sonhador é esse,
e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado
ao sonhador, perguntando,
Um dia terão lástima de
nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e
tão mal.
José Saramago
RESUMO
Esta dissertação se propõe a discutir os entraves à concretização dos direitos fundamentais,
sob a perspectiva da teoria dos sistemas, o que implica a consideração das relações que se
estabelecem entre direito, economia e política, como sistemas sociais que são. Após
contextualizar essa vertente teórico-jurídica entre as matrizes teóricas contemporâneas e
distinguir suas peculiaridades, analisa-se a temática dos direitos fundamentais sob a
perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e da teoria discursiva de Jürgen
Habermas, buscando na teoria da cidadania de Marshall um fio condutor para a proposta de
ambos os autores. A diferenciação entre o direito e a política é apresentada a partir da noção
de constituição em sentido moderno, que funciona como acoplamento estrutural entre os
referidos sistemas. Os direitos fundamentais representam o ponto de interseção entre esses
sistemas na sociedade moderna, entretanto o sistema econômico também interfere na
concretização desses direitos, uma vez que a implementação de todo e qualquer direito gera
custos. Em razão disso, a noção de política pública como ponto de interseção entre direito,
economia e política é apresentada e, em seguida, são analisados os momentos de deliberação
dessa política, assim como o papel da esfera pública para que a ordem de prioridade na
concretização dos direitos fundamentais atenda às demandas da população diretamente
interessada. Entretanto, a esfera pública que se propõe seja (re) construída deve ser apta a
representar os interesses de todos os públicos envolvidos e, especialmente, daqueles que mais
reclamam pela cidadania e, apesar disso, mantém-se distantes do debate. Em razão disso,
utilizou-se a noção de esfera pública pluralista, proposta por Marcelo
Neves a partir da releitura das teorias sistêmica e discursiva. Ao final, foi analisada a função
sistêmica dos orçamentos públicos como ponto de interseção entre a deliberação política, a
política pública, a concretização de direitos e a economia. Após breve análise histórica, são
apresentadas as fragilidades do sistema orçamentário brasileiro. Destaca-se, nesse ponto do
trabalho, a importância dos orçamentos como local de consolidação do debate político que
antecede sua formulação. Nesse sentido, a releitura da função do orçamento público poderia
contribuir para a generalização da cidadania no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: teoria dos sistemas, direitos fundamentais, políticas públicas e
orçamento público.
ABSTRACT
This work aims at analyzing the hindrances to the effectiveness of the fundamental rights,
within the pragmatic-system perspective based on Niklas Luhmann and Jürgen Habermas.
This legal theory is contextualized within contemporary theories and then the fundamental
rights theme and its effectiveness impediments are analyzed. The Marshall’s citizenship
theory was used as a connection between both authors. The structural couplage between law
and politics as social systems through the modern idea of Constitution is an important point in
this work and the fundamental rights are the intersection point between these systems in the
modern society. However, the economical system also intervenes in the effectiveness of the
fundamental rights because enforcing all kinds of rights means distributing resources.
According to this sense, the meaning of policy as an intersection between law, economy and
politics become important to analyse the stages of politics deliberation and its consequences
for the effectiveness of the rights that are choosen as a priority by the public sphere. The
performance of this public sphere must be able to represent the interests of all kinds of publics
that claim for enforcing the citizenship rights and to performing this work, the public sphere
must be pluralistic. Based on a social and political approach the concept of pluralistic public
sphere was developed by Marcelo Neves for the special conditions of Brazil through a new
interpretation of the systems legal theory and the deliberative theory. Finally the function of
budgetary allocations in the area of rights protection and enforcement is examined in this
work because the public policy decisions are fixed in the state budget. It´s in the budgetary
allocations that becomes possible to perceive the connection between public deliberation,
policy, fundamental rights and economy. Since the brazilian historical perspective, the
hindrances to the effectiveness of the political choices about public investments in policies are
examined. It is distinguished the significant importance of the state budget for the
enforcement of basic rights. This way it could be possible to contribute for the progressive
generalization of citizenship in Brazil.
KEY-WORDS: System theory, fundamental rights, policy and state budget.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................10
2 A PROPOSTA SISTÊMICA CONTEXTUALIZADA ENTRE AS MATRIZES
DA TEORIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA ..........................................................13
2.1 Teoria geral dos sistemas sociais: a complexidade do mundo moderno ............13
2.1.1 O desenvolvimento da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann ...........................20
2.2 A diferenciação funcional do sistema jurídico.......................................................31
2.2.1 O processo evolutivo de diferenciação sistêmica do direito.................................34
2.3 Matrizes da teoria jurídica contemporânea ............................................................41
2.3.1 O normativismo analítico ..........................................................................................43
2.3.2 A matriz hermenêutica ..............................................................................................47
2.3.3 A matriz pragmático-sistêmica ................................................................................50
2.4 Positividade do direito e positivismo jurídico: duas concepções distintas ..........51
3 DISSENSOS E CONVERGÊNCIAS ENTRE AS VERTENTES TEÓRICAS
DE HABERMAS E LUHMANN...................................................................................61
3.1 A leitura da teoria dos sistemas aplicada ao direito em Jürgen Habermas ........61
3.2 O direito como sistema autopoiético para Niklas Luhmann................................65
3.2.1 A função sistêmica do direito na sociedade contemporânea .................................63
3.2.2 Fechamento operacional e abertura cognitiva: a validade do sistema jurídico ..67
3.3 Reflexividade e direito: a contribuição de Gunther Teubner ..............................79
3.3.1 Autopoiese do direito e enlace hipercíclico ............................................................ 82
3.4 As relações intersistêmicas na perspectiva jurídica... ..........................................86
3.4.1 acoplamento estrutural entre sistemas.....................................................................86
3.4.2 As interferências intersistêmicas e o direito na colisão de discursos.................88
3.4.3 Racionalidade transversal .........................................................................................90
4 CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM
SOB A PERSPECTIVA SISTÊMICO-DISCURSIVA ..............................................93
4.1 A constituição como aquisição evolutiva ..................................................................93
4.1.1 A semântica das constituições modernas ................................................................94
4.1.2 Direito, política e evolução social .............................................................................96
4.2 A gênese dos direitos fundamentais: entre o Estado liberal e o Estado social 103
4.3 Direitos fundamentais sob as perspectivas discursiva e sistêmica.....................114
4.4 O custo da implementação dos direitos fundamentais e as repercussões disso
para os sistemas jurídico, político e econômico .......................................................... 127
4.5 Constituição e esfera pública no Estado Democrático de Direito ..................... 138
4.5.1 Lineamentos históricos e políticos da esfera pública para Jürgen Habermas . 141
4.5.2 Esfera pública pluralista ........................................................................................ 146
4.6 Limites e possibilidades de uma esfera pública pluralista capaz de contribuir
para generalização da cidadania no Brasil ................................................................ 160
5 POLÍTICAS PÚBLICAS E ORÇAMENTO PÚBLICO ....................................... 174
5.1 Política, política pública e deliberação .................................................................. 178
5.2 Orçamento público ................................................................................................... 188
5.2.1 Apontamentos históricos ........................................................................................ 188
5.2.2 Orçamento público e racionalidade transversal .................................................. 197
6 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 209
7 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 213
10
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho teve como ponto de partida as reflexões da teoria dos sistemas sobre a
função do direito na sociedade contemporânea, marcada pela crescente complexidade,
circunstância que demanda maior especialização das funções desempenhadas por cada
sistema social parcial, como o direito, a política e a economia e, ao mesmo tempo, faz com
que apareçam novos pontos de interseção entre esses sistemas da sociedade em virtude
mesmo do aumento do nível de especialização – ou de diferenciação – funcional.
A primeira parte do capítulo dois, nesse contexto, teve como objetivo apresentar
noções introdutórias da teoria dos sistemas tal qual proposta por Niklas Luhmann, para que se
tornasse possível compreender a ligação entre modernidade e complexidade, assim como as
suas repercussões na aplicação da teoria sistêmica ao direito.
Já na segunda parte desse capítulo, a noção de processo evolutivo da sociedade é
apresentada com as matrizes históricas que integram essa perspectiva, uma vez que a noção de
evolução desvinculada de coloração valorativa ou axiológica é acolhida neste trabalho.
Tornou-se relevante, ainda no capítulo dois, contextualizar a teoria dos sistemas dentre as
teorias jurídicas contemporâneas para, em momento posterior, compará-la com outras duas
matrizes: a normativista e a hermenêutica. Tal necessidade surgiu da opção teórica que
norteou este trabalho, pois se levou em consideração a teoria sistêmica de Luhmann, assim
como a teoria discursiva de Jürgen Habermas. Mais que isso, considerou-se a proposta de
releitura de ambas as teorias de modo a evidenciar o potencial de complementariedade que
delas emerge, como propõem os autores Gunther Teubner e Marcelo Neves. A organização
das matrizes teórico-jurídicas contemporâneas em três grandes grupos – normativista,
hermenêutica e pragmático-sistêmica – viabilizou a indicação dos pontos de confluência entre
as propostas teóricas de Luhmann e de Habermas. A distinção entre os grupos de teorias foi
orientada pela dimensão da linguagem jurídica assimilada em cada formulação teórica. A
vertente normativista limitou-se ao aspecto semântico; a matriz hermenêutica alcançou
também a dimensão sintática; e, por fim, a vertente pragmático-sistêmica levou em
consideração os três níveis ao assumir a dimensão pragmática da linguagem jurídica.
Ao final do capítulo dois, procurou-se destacar as diferenças entre a proposta
kelseniana de positividade e a noção de positividade formulada por Luhmann e Habermas, a
partir dos pressupostos da teoria sistêmica e da teoria discursiva do direito, que foram unidas
na mencionada matriz pragmático-sistêmica. Buscou-se desconstruir, nessa ocasião, as
11
interpretações da teoria sistêmica que a tratam como uma releitura da teoria normativista de
Kelsen, anotando os principais pontos de distinção entre uma e outra.
No terceiro capítulo, a diretriz foi aprofundar no exame do debate teórico entre
Luhmann e Habermas, localizando os pontos de dissenso e de convergência entre ambas as
teorias. Foram apresentadas as linhas gerais da teoria do direito reflexivo de Gunther Teubner,
que reúne, numa mesma construção teórica, pressupostos formulados por Habermas e
Luhmann. A noção de racionalidade transversal proposta por Marcelo Neves foi apresentada
em suas linhas gerais como alternativa à noção de acoplamento estrutural capaz de explicar as
relações entre vários sistemas sociais de modo estável e simultâneo. A partir dessa noção é
que se propôs uma concepção de orçamento público capaz de tornar visível sua importância
para a concretização progressiva dos direitos fundamentais e para a generalização da
cidadania no plano fático.
No capítulo quatro, passou-se à análise da constituição como aquisição evolutiva que
possibilitou ao direito diferenciar-se da política, o que se viabilizou pelo sucesso do processo
revolucionário, sobretudo na França e nos Estados Unidos. Com a modernidade, então, surgiu
a semântica constitucional garantidora de direitos e, por isso, capaz de contribuir
definitivamente para a diferenciação funcional entre direito e política.
A teoria dos direitos fundamentais foi apresentada em suas linhas gerais, atribuindo-se
maior destaque à teoria discursiva de Jürgen Habermas dada sua relevância para a introdução
da noção de esfera pública. Esta, por sua vez, revisitada a partir das condições de
complexidade da sociedade moderna. Analisou-se, ao final do capítulo quatro, a condição
periférica do Brasil e as consequências disso para o baixo índice de inclusão dos indivíduos
nos subsistemas sociais, adotando-se a perspectiva de indicar os limites e as possibilidades de
se incrementar o nível de diferenciação funcional entre os sistemas e, gradativamente,
generalizar os direitos da cidadania.
Por fim, o último capítulo foi dedicado à relação entre direito, política e economia,
ocasião em que se buscou indicar meios para que o processo orçamentário cumpra sua função
de viabilizar políticas públicas relevantes e previamente deliberadas no âmbito do sistema
político que contribuam para a implementação gradativa dos direitos fundamentais, já que o
orçamento, como locus de decisão política, que considera as variáveis da economia, tem
repercussão direta no sistema jurídico. Nesse ponto, tornou-se relevante distinguir as esferas
de exigibilidade dos direitos fundamentais para que se vislumbrasse a importância de avalizar
as escolhas políticas que se dão no nível orçamentário e, consequentemente, da
12
responsabilidade que deve ter o administrador no sentido de fazer com que tais escolhas sejam
respeitadas no âmbito da gestão de recursos públicos quando da execução orçamentária.
13
2 A PROPOSTA SISTÊMICA CONTEXTUALIZADA ENTRE AS MATRIZES DA
TEORIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA
2.1 Teoria geral dos sistemas sociais: a complexidade do mundo moderno
A teoria sistêmica de Niklas Luhmann propõe a descrição da sociedade a partir dos
sistemas parciais ou subsistemas, que adquirem sentido ao desempenharem funções
específicas que repercutem na organização geral do sistema social global. O direito, nessa
perspectiva, é um dos sistemas parciais ou subsistemas dessa sociedade. A construção teórica
do autor tem como problema central de sua análise a complexidade do mundo moderno; a
proposta sistêmico-funcional, portanto, pretende ser capaz de descrever o funcionamento da
sociedade contemporânea.
A preocupação de Luhmann com o crescente nível de indeterminação surge da ruptura
havida no século XX com o paradigma1 da ordem, da certeza, da regularidade e da simetria. O
intelecto humano, que antes era capaz de conhecer o mundo circundante, é destronado pela
provisoriedade do conhecimento e pela percepção de que sua capacidade de assimilação da
realidade é insuficiente diante da variabilidade de possibilidades de comportamento colocadas
à disposição pela complexidade do mundo. No campo científico, a teoria da relatividade de
Einstein e o “princípio da incerteza” de Heisenberg “implodiram a noção de que o cientista
não interferia no objeto de sua experiência, liquidando a possibilidade de uma ciência neutra,
objetiva” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 140). No âmbito filosófico, a própria reflexividade da
forma de pensar cartesiana volta-se para si e reconhece seus limites e fragilidades.
O advento da psicanálise coloca em xeque a noção de razão cognoscente: “Freud
percebe que o processo de cognição vai além da consciência”; a percepção do inconsciente
torna-se uma etapa do conhecimento (SOUZA CRUZ, 2004, p. 142). A crença na capacidade
da consciência humana é colocada à prova e a linguagem, agora reformulada com a dimensão
pragmática de seu uso nas variadas “formas de vida” e seus “jogos de linguagem” nas
Investigações filosóficas de Wittgenstein, deixa de ser mero instrumento de intermediação
comunicativo e passa a ser constitutiva da realidade passível de apreensão.
1 Conforme ensina Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2009a, p.5), a partir de Thomas Kuhn, “o conceito de
paradigma pressupõe uma forma específica de concepção do progresso científico, eis que pretende vê-lo não
mais por meio de uma linha contínua, mas, ao contrário, por saltos propiciados por períodos „revolucionários‟.
[...] Desse modo, mais que um modelo, o paradigma conforma os problemas e as formas de solução de uma
questão dada. Assim, um paradigma é o que os membros de uma comunidade acadêmica compartilham, tal como
suposições teóricas gerais, leis, proposições e técnicas, bem como os instrumentos de aplicação dessas leis e
proposições.”
14
Para Luhmann (2004), essa mudança paradigmática encontra na noção de
complexidade do mundo seu ponto de maior relevância para a descrição da sociedade
moderna. Isso porque a complexidade representa um limite extremo para a reduzida
compreensibilidade da consciência humana, que não consegue apreender todas as
possibilidades e circunstâncias relacionais oferecidas pelo mundo moderno. A consciência
humana, assim, é sobrecarregada e demanda que essa complexidade seja reduzida para que se
diminua o nível de exigência de compreensão. Os subsistemas sociais,2 nesse contexto, atuam
de modo a diminuir a lacuna existente entre a extrema complexidade do mundo e a limitada
capacidade humana de lidar com a infindável variabilidade de possibilidades.
Em decorrência da constatação do surgimento de um novo paradigma a partir do qual
devem ser repensados os limites para a própria construção teórica sobre a sociedade,
Luhmann (2004) busca um nível de abstração compatível com tamanha complexidade, para
descrever o funcionamento sistêmico da sociedade. A modernidade trouxe consigo a
contingência ínsita a essa complexidade, que pode ser descrita pela crescente e contínua
existência de mais possibilidades do que se pode realizar, processar e legitimar: “Por
complexo designa-se o conjunto de elementos que em razão de uma limitação imanente de
capacidade de conexão, torna impossível combinar cada elemento ao mesmo tempo com cada
elemento” (LUHMANN, 1996a, p.137) (Tradução livre).3
Além de se tratar de um fenômeno quantitativo, desencadeado por incontáveis
interações e interferências entre um número muito grande de unidades que desafiam as
possibilidades de cálculo ou prognósticos, a complexidade diz respeito a incertezas,
indeterminações, fenômenos aleatórios e, em razão disso, tem sempre relação com o acaso.
Assim observada, a noção de complexidade coincide com a incerteza que advém dos limites
de nosso entendimento ou das contingências dos fenômenos que nos cercam (MORIN, 2007,
p.35).
2 Já de antemão, é necessário esclarecer que o termo “subsistema social” será utilizado sempre que, no contexto,
houver referência expressa à sociedade como sistema social global. Para Luhmann, a sociedade é, por assim
dizer, um emaranhado de subsistemas que se multiplicam a partir da diferença entre eles e o meio circundante
em virtude da crescente complexificação do mundo. Esses subsistemas, quando se tornam o foco da observação,
são havidos, eles mesmos, como sistemas: sistema jurídico, sistema político, sistema econômico, sistema de
saúde etc. Assim, quando observados a partir da sociedade que integram, mantêm-se como subsistemas dessa
sociedade daí a motivação para a alternância semântica ao longo do texto em subsistemas sociais e sistemas sociais para se referir ao direito, à política, à economia, à saúde. 3 “Por complejo se designa, de esta manera, aquella suma de elementos que en razón de una limitación de
capacidad de enlace del sistema, ya no resulta possible que cada elemento quede vinculado em todo momento”.
Por elemento de um sistema, entende-se o que diz respeito aos símbolos da comunicação, às formas de distinção.
No caso do direito, os elementos são todas as formas de sentido que circulam na comunicação jurídica sob a
forma de operações do sistema.
15
Nesse “paradigma da complexidade”, a contingência e a margem de risco aí inseridas
são condições da modernidade que despertam o interesse do autor, sobretudo porque
constituem o grande desafio para a descrição do funcionamento de uma sociedade.
Conforme salienta De Giorgi (1998, p.185), a reflexão científica sobre a sociedade
produzida nas últimas décadas não foi suficientemente criativa a ponto de amenizar a
desorientação, a insegurança e o medo da diversidade que imperam nas sociedades tornadas
complexas com o advento da modernidade.4 Isso porque a “metafísica das grandes descrições
se esgotou”, ficando de resto a sensação de que os grandes acontecimentos históricos das
últimas décadas,5 que romperam com a estabilidade da relação entre racionalidade e tempo,
além de perturbarem a “ordem do mundo”, colocaram em xeque a “ordem dos conceitos” (DE
GIORGI, 1998, p. 186). As velhas distinções, como, por exemplo, leste/oeste, na geopolítica,
ou homem/mulher, na antropologia, foram aos poucos perdendo o sentido. Nas palavras de De
Giorgi (1998, p. 187):
A distinção amigo/inimigo na política era tão tranquilizadora quanto a diferença
entre racionalidade formal e racionalidade material, que podia ser assumida até como fator evolutivo da sociedade: o mesmo valia para a distinção entre norte e sul,
leste e oeste, igualdade e desigualdade.
Nada obstante, a dissolução dos valores que tais distinções traziam consigo levou à
constatação de que a provisoriedade em que se vive decorre do risco inerente à atividade
humana, numa sociedade cuja complexidade parece aumentar com o passar das horas. O risco
mantém-se presente porque não se pode mais esperar por uma normalidade; o que ontem era
inimaginável, hoje, é – ou pode se tornar – realidade. E uma realidade que se imagina também
4Embora vários autores optem pela semântica da pós-modernidade, por considerar que a contemporaneidade já
superou as questões postas pela modernidade, na esteira da compreensão compartilhada por Luhmann (2004),
Habermas (1997), Morin (2007) e De Giorgi (1998), optou-se neste estudo pela expressão “modernidade” para
designar o estado de complexidade que, tendo atingido seu ponto crítico no Século XVIII, com a Revolução
Francesa marco político do Iluminismo , tornou-se crescente desde então, a desafiar a reconstrução da razão (possível). O tema será abordado em outras oportunidades ao longo deste estudo; por enquanto, vale anotar o
entendimento de Raffaele De Giorgi, segundo o qual a “instabilidade autoproduzida” pela sociedade
contemporânea – marcada pela multiplicidade de possibilidades e pela observação da contingência de que no
presente tudo poderia ter sido diferente – é o que singulariza a “modernidade da sociedade moderna” (DE
GIORGI, 1998, p.153). 5 De Giorgi (1998, p. 185-189) faz menção genérica a vários acontecimentos que demonstram as mudanças
havidas no mundo desde a década de 1980, como o fim da Guerra Fria, a dissolução da URSS e a reunificação da
Alemanha; o avanço das políticas de igualação de natureza sexista ou étnica, que, por sua vez, são produtoras de
desigualdades; o crescimento das ações terroristas e o ataque às Torres Gêmeas; a crise econômica vivida pelos
países desenvolvidos e a crescente vinculação desses países às bases energéticas – ou consumidoras – de outros
países menos desenvolvidos, levando à construção de blocos econômicos e golpeando de morte a noção de
soberania nacional (e, apesar disso, o recrudescimento das políticas de repressão ao ingresso de imigrantes
vindos de países menos favorecidos economicamente), o que deu azo a uma economia cada vez mais
internacionalizada; e, por fim, as inovações tecnológicas que contribuem para a relativização da dimensão
temporal das comunicações que se sucedem ao longo do globo.
16
precária. Se, numa primeira análise, os acontecimentos parecem ocorrer com certa
regularidade e permitem previsões do agir ou mesmo espaços para cálculos racionais, numa
observação mais detida, a normalidade é uma sucessão de indeterminações.
Assim, viver em sociedade é estar sob a constante pressão gerada por essa
complexidade, que não pode ser solucionada, porquanto cabe aos teóricos apenas reduzi-la ou
compartimentá-la, limitando seus danos.
Desde tempos remotos, a sociedade engendra invenções para livrar-se da contingência
imposta pelas indeterminações que obscurecem o tão aspirado padrão de normalidade v. g.,
a adivinhação, o tabu, o pecado e, mais recentemente, o acaso e a probabilidade. Entretanto, é
de se concordar que as condições estruturais da modernidade “tornaram obsoletas as formas
pelas quais a sociedade moderna tinha construído suas autodescrições: estas esgotaram os
pressupostos sobre os quais se mantinham as plausibilidades das distinções que funcionavam
como orientação da observação” (DE GIORGI, 1998, p.195). Nessa observação, emerge o
paradoxo da sociedade contemporânea: a demanda por segurança aumenta conforme aumenta
a insegurança; determinação e indeterminação estão simultaneamente presentes, assim como a
estabilidade e a instabilidade.6
É nesse contexto que, para a sociologia sistêmica de Luhmann, complexidade,
contingência e risco são pressupostos para a observação da modernidade; são condições
ínsitas à autodescrição possível do funcionamento da sociedade e do comportamento de seus
atores.
De acordo com Luhmann (1983, p.45), a contingência descreve algo que não é
necessário nem impossível, algo, então, que é (era ou será) assim como é, mas poderia ser
diferente. Caso se estivesse diante de um estado de coisas ordenado, a contingência seria
simples, como ocorre quando um indivíduo observa a sucessão das fases da lua e espera
seguramente que a lua crescente seguirá à nova. Diversamente, no caso dos sistemas dotados
de sentido,7 como os sistemas sociais e psíquicos, a contingência torna-se dupla porque se
refere a expectativas8 de expectativas, porquanto a “desordem” do ambiente é inevitável. No
6 Essa observação encontra amparo na constatação de que, atualmente, há mais riqueza e mais pobreza; mais
igualdade e mais desigualdade; mais participação e menos participação (DE GIORGI, 1998, p.192). 7 Segundo Luhmann (2009, p. 96-97 e 259), os sistemas de sentido seriam dois: os sistemas sociais, dentre os
quais estão o direito e a política, por exemplo, e os sistemas psíquicos que resultam da conexão (acoplamento
estrutural) entre o sistema fisiológico e a consciência, de sorte que cada ser humano constitui em si um sistema
psíquico. A questão será oportunamente abordada com maior detalhamento. 8 A questão será retomada em momento posterior no que diz respeito especificamente às expectativas referentes
ao sistema jurídico. De toda sorte, é bom que se tenha presente que, em Luhmann (1983, p. 97), expectativa é a
intencionalidade que aponta para o futuro do fluxo da experimentação, que busca sempre conteúdos modificáveis
e que experimenta a realidade por meio de suas mudanças.
17
caso do sistema psíquico, por exemplo, as expectativas de “A” são geradas pelas expectativas
que ele imagina serem as de “B”, as quais, a rigor, são inacessíveis ao conhecimento de “A”.9
Isso porque não é dado a um ser humano participar de modo ativo da consciência de outros,
uma vez que cada um, na visão sistêmica luhmanniana, referencia um sistema psíquico
próprio e mantém-se no ambiente dos sistemas sociais.
O problema da dupla contingência transforma-se, portanto, em um dilema travado
entre Ego e Alter: aquele não sabe como este reagirá em resposta a uma dada atuação sua,
uma vez que Alter e Ego dispõem de várias alternativas de atuação (GUIBENTIF, 2005, p.
197). Embora a variedade de possibilidades possa ser vista com maior margem de liberdade
de escolha, no papel de observador de outro indivíduo ou sistema social, a dupla contingência
é fonte de incertezas e surpresas e, ao mesmo tempo, demanda que haja uma confiança no
outro, ainda que mínima, sob pena de se inviabilizar a comunicação entre os sistemas.
Nesse contexto, a dupla contingência impõe uma autolimitação em relação ao objeto
que se observa a partir dele mesmo, a fim de que se obtenham expectativas razoavelmente
seguras de um futuro em aberto. Vale dizer: a contingência abrange também o outro, uma vez
que a seleção das possibilidades não está a cargo de um único ser humano atuando
isoladamente como sistema psíquico, mas também de outros indivíduos que povoam o
ambiente e estimulam o funcionamento de todos os subsistemas sociais, o que gera uma gama
infinita de possibilidades relacionadas às mais variadas experiências.
Com o fito de observar a dupla contingência e enfatizar seu potencial gerador de
maiores possibilidades para sua própria compreensão, torna-se necessário criar meios que
permitam maior qualidade no desenvolvimento do processo seletivo na definição das
escolhas. Isso permitirá a redução dessa complexidade e, por consequência, tornará possível a
estabilização das expectativas, mesmo em face dos desapontamentos que, contingencial
mente, ocorrerão.
O risco, por sua vez, é o modo como se pode relacionar com o futuro, visto que atua
como uma forma de se compreender a indeterminação, orientando-se pela distinção entre
probabilidade/improbabilidade. Segundo De Giorgi (1998, p.198), “[...] o risco é uma
aquisição evolutiva do tratamento das contingências que, se exclui toda a segurança, exclui
9 Um exemplo que auxilia na compreensão da dupla contingência em termos genéricos seria o de duas pessoas –
ego e alter – que estão prestes a se conhecer: cada uma determina suas condutas mediante observações
recíprocas. “A” observa “B” e resolve comportar-se “X”. “B” observa “A” e resolve comportar-se “X”, embora
pudesse comportar-se “Y”, “W” etc; nesse caso, essa suposição é geradora de certeza – mas poderia gerar
incerteza – e, a partir dela, cada um estabelece limite a si mesmo. A sucessão de ações de “A” e de “B” poderá
resultar numa ação compartilhada, como por exemplo, o estabelecimento de uma relação contratual ou jurídica.
18
também todo destino. O risco baseia-se na suportabilidade, na aceitação e não na certeza das
próprias expectativas”.
A teoria sistêmica de Luhmann, portanto, pretende descrever como ocorrem as
interações entre os atores sociais numa sociedade complexa e contingente; os atores sociais
são, por assim dizer, sistemas de comunicação que constroem a própria sociedade.
Emerge aqui o dissenso entre a proposta luhmanniana e a teoria sociológica
tradicional, que enfatiza a ação social como construção de sujeitos, sendo esse o ponto
elementar de toda sua análise. Conforme Luhmann (apud MELLO, 2006, [s.p.]): “Pode-se
ainda dizer, naturalmente, que os seres humanos agem. Mas desde que isso sempre ocorre em
situações, a questão que permanece é se e em que extensão a ação deve ser atribuída ao ser
humano individual ou à situação”.
Em outras palavras: se é a comunicação que constrói uma sociedade e se, para que
haja comunicação, é necessária a interação entre dois indivíduos, pelo menos, as questões não
podem ser tratadas a partir de uma perspectiva solipsista. Mais importante que a ação
individual – a conduta humana propriamente dita – é a situação em que essa ação propicia a
comunicação e as condições em que ocorre a interação pressuposta pela comunicação.10
A comunicação, portanto, constitui a sociedade porque funciona como conexão para a
transmissão intersubjetiva de critérios de seleção e só se torna possível como evento que
transcende os limites da consciência humana, “como síntese de algo mais que é o conteúdo de
uma só consciência” (LUHMANN, apud AMADO, 2005, p. 112). Vale dizer: a comunicação,
como ato que envolve uma mensagem contendo uma informação, só se aperfeiçoa no mundo
caso haja a compreensão dessa mensagem e de seu conteúdo pelo outro. Segundo Luhmann,
enquanto a comunicação permanece na dimensão individual, não existe sociedade – quando
muito, existiria uma aglomeração de seres solipsistas.
Na esteira dessa compreensão e refutando a ideia tradicional de que os fenômenos são
constituídos de um todo e suas partes, Luhmann propõe um modelo desenvolvido a partir da
diferenciação entre sistema e ambiente e da relação que se estabelece entre eles. De acordo
com o autor, um sistema diferenciado não é aquele composto por um número extenso de
partes e pela relação entre elas, mas aquele em que são realizadas inúmeras operações que
reproduzem a distinção entre o sistema e o ambiente que o circunda, uma vez que a referência
elementar das investigações funcionais é a diferença entre sistema e ambiente (LUHMANN;
DE GIORGI, 1992, p.16-24).
10
Nesse ponto, Luhmann afasta-se completamente da perspectiva de Max Weber, embora mantenha, em outros
pontos de sua teoria, posições compatíveis com a sociologia weberiana, como será anotado posteriormente.
19
A redução de complexidade diz respeito à relação entre o sistema e seu entorno
(ambiente) e à relação do sistema consigo mesmo, em razão de sua potencial característica
para autorreferenciar suas operações internas. Para dar conta da tarefa de compartimentar a
complexidade, os sistemas sociais se valem de um modo de generalização que dispensa a
correspondência, ponto por ponto, entre sistema e ambiente. Isso ocorre porque a
complexidade do entorno tende a ser muito maior que aquela existente no interior do sistema:
O sistema não tem a capacidade de apresentar uma variedade suficiente para
responder pontualmente à imensa possibilidade de estímulos provenientes do
entorno. O sistema, desse modo, demanda que se desenvolva um empenho especial
na direção de ignorar, repelir e criar indiferenças, enclausurando-se em si mesmo
(LUHMANN, 1996a, p. 134).
A diferenciação entre os vários sistemas que constituem a sociedade e entre o sistema
e o ambiente é, portanto, uma estratégia utilizada pela teoria dos sistemas a fim de reduzir – e
enfrentar – a complexidade e a dupla contingência ínsita à arquitetura das sociedades
contemporâneas.
Nessa linha de observação, é relevante notar, desde já, que, para cada subsistema
social, os outros subsistemas não são visualizados como sistemas, mas como parte de seu
meio ambiente;11
um sistema não compreende o outro como tal, mas como algo que o
circunda e que se apresenta desordenado, pois, para os sistemas socieias, o ambiente é opaco.
Desse modo, nenhum sistema dispõe de perspectiva privilegiada sobre a realidade; esta só é
percebida na medida em que se apresenta relevante para o desempenho da função de
determinado sistema e torna-se passível de tradução pelo código próprio do sistema em
questão. Isso decorre da análise de que nenhum sistema pode conhecer o objeto observado (o
outro sistema, no caso) tal como ele é, mas somente como ele é percebido na leitura do
sistema observador. A essa limitação da observação entre os sistemas sociais e o ambiente
refere-se a noção de policontexturalidade. Dito de outro modo, como o sentido de cada objeto
é policontextural, pois imerso num ambiente desordenado, que não pode ser de imediato
reduzido aos códigos e programas do sistema observador, surge a perspectiva segundo a qual
a sociedade organiza-se de modo multicêntrico, pois, como sistema social global, não possui
ápice nem vértice (AMADO, 1999, p. 63-64).
11
Para Luhmann (2004, p. 76 e ss.), o ambiente, como algo que é exterior ao sistema e do qual este depende para
existir – basta lembrar que é a distinção entre sistema e ambiente que possibilita a individualização de um
subsistema social –, pode ser observado tanto como ambiente intrassocial, envolvendo a sociedade – sistema
social global – e os outros subsistemas sociais, quanto como ambiente extrassocial, povoado pelo homem, como
síntese de sistema psíquico e sistema vivo, e o mundo com seus fenômenos físicos e biológicos.
20
Assim, os subsistemas da sociedade comunicam-se entre si e, a partir daí, podem
realizar “trocas” necessárias para o desempenho da função para a qual se tornou
especializado. Nesse movimento de interação intersistêmica, o sistema jurídico, por exemplo,
observa o sistema econômico como ambiente, como complexidade desordenada. As
operações econômicas só podem ser observadas pelo direito como realidade ordenada quando
se tornam relevantes para o desenvolvimento das operações jurídicas e se submetem à
filtragem pelo código próprio do sistema jurídico. A análise contábil das receitas e despesas
do orçamento de um ente da Federação pode adquirir especial relevância para o direito
quando seu exame for necessário à produção de decisão jurídica – as decisões jurídicas são as
operações típicas do sistema do direito – sobre a existência ou não de recursos para a
implementação de determinada política pública reivindicada em ação própria, por exemplo.
2.1.1 O desenvolvimento da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann
Sob as condições da complexidade moderna, a construção teórica de Luhmann
apresenta um desenvolvimento relativamente linear, sendo possível identificar um traço de
continuidade nas suas etapas em busca de uma melhor compreensão da sociedade moderna. A
diferenciação funcional entre os sistemas é, para Luhmann, a principal característica da
sociedade moderna.
A despeito disso, é possível identificar pelo menos duas fases do desenvolvimento da
teoria luhmanniana e, conforme a perspectiva de observação, até o esboço de uma terceira
fase. A primeira decorreu da influência direta da teoria funcionalista de Talcott Parsons,12
muito embora tenha sido reconstruída em outras bases, em razão da visão crítica de Luhmann
quanto aos limites do realismo analítico13
que norteou a arquitetura conceitual de Parsons.
12
Talcott Parsons, como pós-weberiano, tem na ação social o elemento central de sua teoria; contudo, tenta
encontrar um denominador comum entre Weber, Durkheim, Marshall e Pareto, propondo que “ação é sistema” e
só pode ser compreendida, portanto, sob a forma sistêmica: não é o indivíduo que age, mas sim o sistema. O
empenho de Parsons se dá no sentido de abranger “realidades de grande escala (macro sociais)”, o que explica o
alto nível de abstração de sua teoria. O sistema da ação torna-se possível em razão de quatro funções essenciais:
adaptação (comportamento organicista), obtenção de fins (personalidade), manutenção de estruturas latentes
(cultura) e integração (sistema social). Um sistema só se constitui se puder desempenhar essas quatro funções. O
sujeito, para Parsons, é aquele a quem se destina a função de controlar as consequências da ação e não visa
apenas a alcançar sua satisfação particular; ele é o único que pode estabelecer uma relação com o exterior e que
pode fazer a mediação entre as referências internas da consciência e as externas do ambiente. É assim, então,
que, para este autor, o ser humano pode ser tratado sob a perspectiva da ação (LUHMANN, 1996a, p.31-41). 13
A crítica de Luhmann à teoria parsoniana dirige-se, principalmente, a seu hermetismo, que impede a discussão
de conceitos como o de cultura, se é coincidente com a tradição antropológica ou se é capaz de passar pela prova
hermenêutica, no sentido de Gadamer. Segundo Luhmann, todo o esforço de Parsons foi no sentido de agregar
fundamento e plausibilidade ao esquema das quatro funções. No entanto, não se pode dizer, conforme explica o
autor, que a teoria de Talcott Parson – conhecida pela expressão semântica “funcionalismo estrutural” – tenha
21
Essa fase do pensamento luhmanniano é conhecida como funcional-estruturalista, que
corresponde às obras publicadas ao longo da década de sessenta.14
A diferenciação funcional
era vista como fator que, uma vez explorado, poderia contribuir para um melhor
funcionamento dos sistemas sociais em meio à complexidade circundante. O foco das
atenções do autor, nessa fase, seria descrever como a sociedade mantém a sua ordem
(estrutura), tendo por critério de orientação a função que cada subsistema da sociedade
desempenha.
A segunda fase da construção teórica de Luhmann caracteriza-se pela introdução da
noção de autopoiese aplicada aos sistemas de sentido e pelos desdobramentos teóricos daí
advindos. O que, num primeiro momento da formulação teórica, era absorvido como
interdisciplinaridade foi, aos poucos, alçado ao status de conjuntos teóricos capazes de
sustentar uma nova forma de se ver a reprodução das operações no interior de cada sistema.
Por conseguinte, o ambiente assume a condição de fundamento do sistema, uma vez que “em
relação ao sistema atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são
inseridas no sistema quando esse, de acordo com seus próprios critérios e código-diferença,
atribui-lhes sua forma” (NEVES, 2006, p.81).
Atribuir característica autopoiética aos sistemas foi uma hipótese que motivou as
pesquisas de Luhmann desde a década de 1980, quando se tornou a tônica de suas
publicações, sobretudo em virtude da pronunciada influência exercida pelas formulações de
vários cientistas, de distintas áreas do saber, que, à época, apontavam tendências que
conduziam a um novo modo de pensar a ciência e o conhecimento.
fracassado; ao contrário, a ela deve ser tributado o mérito da construção de uma das arquiteturas conceituais mais
grandiosas da sociologia contemporânea. Consagra-se, em Parsons, um espaço lógico de possibilidades; todavia,
não há a preocupação de conhecer meios que possam garantir que essas possibilidades sejam reais. Ademais,
conforme o entendimento de Luhmann, a teoria parsoniana deixou em aberto as questões relacionadas à
autoimplicação cognitiva, uma vez que postula tão-somente um realismo analítico e assim se restringe a uma
formulação paradoxal dessa autoimplicação, porquanto perdeu de vista que a análise das ações é, em si mesma,
uma ação (LUHMANN, 1996a, p. 42-43). 14
Essa visão é claramente percebida na obra Direitos Fundamentais como Instituição (LUHMANN, 2002): “[...]
uma análise dos direitos fundamentais com os meios da teoria estrutural-funcionalista dos sistemas poderia
fertilizar a dogmática dos direitos fundamentais”. Ao concluir a obra, prossegue o autor: “[...] contraria a
intenção fundadora da nossa pesquisa aceitar aqui qualquer fusão. O aparelho conceptual da investigação
sociológica, orientado para a descoberta e a comparação sistêmica, tem outras tarefas do que o aparelho
conceptual da dogmática, que deve facilitar e tornar previsível a tomada de decisão.” (LUHMAN apud
GUIBENTIF, 2005, p.191-192). Também na conclusão da obra Sociologia do direito (1983), em que há um
capítulo – “Perguntas à teoria do direito” – dedicado à análise do relacionamento entre a dogmática e a teoria
social-funcionalista, pode-se perceber essa visão.
22
Nesse contexto, Luhmann (1996a, p. 57-58) destaca quatro cientistas: Heinz Von
Foerster15
com sua “cibernética dos sistemas que observam ou cibernética de segunda
ordem”; Gothard Günther que, especialista em Hegel e seguindo o projeto de pesquisa
iniciado por Foerster, propôs uma lógica polivalente,16
alternativa à bivalência clássica,
“como resultado do contato da dialética com a operação cibernética”; Humberto Maturana
com sua teoria autopoiética aplicada à Biologia, que expressa a autorreprodução da vida; e,
por último, George Spencer Brown matemático inglês que, com suas investigações,
postulou a reconstrução da maneira de se pensar o relacionamento intersistêmico, ou entre
sistema e ambiente, por meio da “forma de dois lados”,17
referência que será recorrente ao
longo deste estudo.
Um terceiro momento teórico poderia ser identificado18
a partir das produções dos
anos noventa, em que Luhmann passou a atribuir especial relevância à distinção meio-forma,
inspirado pelas teorias cibernéticas. A teoria da sociedade aqui é engendrada a partir de um
construtivismo operativo.19
Talvez mais cético com relação ao alcance de sua teoria,
15
Cientista austríaco-americano (1911-2002) que combinou Filosofia com Física na construção de uma teoria
biocibernética, como tentativa de compreender a comunicação; concebe o processo de vida como sistema
fechado para a informação e aberto para a energia, destacando o papel da interação e da auto-organização.
Seguindo a linha de pesquisa desse autor, surgiu a teoria de Maturana e Varela e o conceito de autopoeise. Os
conceitos de segunda ordem, para esse autor, são necessários em razão da inexistência de bases de sustentação
do conhecimento objetivo, uma vez que não se pode separar a realidade interna da realidade externa. Assim, o
importante é pensar sobre o pensar, aprender como aprendemos e, principalmente, conhecer como conhecemos.
Uma das propostas decorrentes da teoria biocibernética de Von Foerster é a de que não existe validação externa;
no lugar disso preponderam as coerências internas entre as operações realizadas capazes de oferecer
autovalidação à maneira de um sistema que se autocorrige. Referindo-se à inaplicação do método
falsificacionista, o autor objeta que: “Não seria, por acaso, mais recomendável renunciar ao critério de Popper e
buscar princípios fundamentais para uma teoria que se confirme na práxis?” (PELLANDA, 2003, p. 1387). 16
A lógica polivalente surge como alternativa à lógica clássica e, no campo da Filosofia, foi pensada a partir da
insatisfação com a imposição tradicional de uma dicotomia absoluta entre o verdadeiro e o falso (HAACK,1998,
p. 269-270). Segundo Luhmann (1996a, p. 58): “la pregunta que lo guia es qué tipo de lógica es necesaria para
representar el hecho de que varios actores cognitivos independientes, llegaram a alcanzar un efecto común”. Não há espaço para um maior aprofundamento dessa questão no âmbito deste estudo, em que se pretende apenas
indicar os apontamentos lógico-científicos presentes na formulação da teoria da sociedade de Luhmann. Com
esse intuito, é suficiente lembrar que a lógica polivalente surge como corolário de uma concepção construtivista,
segundo a qual a observação constrói o conhecimento e, portanto, não se pode pretender uma separação
dicotômica entre objeto e sujeito do conhecimento, como pretende a lógica clássica bivalente. 17
“Forma de dois lados” é um conceito cibernético utilizado por Spencer Brown, do qual Luhmann se vale em
vários pontos de sua teoria e, em especial, para explicar a diferença entre sistema e meio ambiente. Segundo ele,
a forma (de dois lados) corresponde a um processo de constante atualização de sentido e possibilidades
acessíveis. Na forma, ambos os lados estão dados: um na modalidade já atualizada e outro ainda potencializado.
O tempo exerce a função de permitir que se passe de um lado ao outro da forma, pois ele é imprescindível para
que o potencial se atualize. A redução de complexidade, sob esse ponto de vista, não funciona como um modo de
se aniquilar o sentido e os valores; diferentemente disso, atua como um processo recorrente de transformação de
pontencialidades em atualizações. 18
No Brasil, Rafael Simioni (2007) é um dos autores para quem se pode dividir a segunda fase do pensamento
de Luhmann em duas. Ele sugere que esta última fase seja chamada de hologramática. 19
Uma das linhas-mestras para a compreensão do alcance do construtivismo é que toda referência que remeta ao
sistema ou ao ambiente é uma construção da observação. Luhmann (2005, p. 69) explica que a teoria sistêmica
23
Luhmann atribui-lhe um viés mais reflexivo, ao pretender que a teoria dos sistemas sociais se
torne “uma das instâncias onde a sociedade contemporânea, radicalmente diferenciada, possa
reencontrar uma visão global de si própria. Mais uma visão entre outras, apenas uma visão, e
cujos efeitos são imprevisíveis” (GUIBENTIF, 2005, p.190).
Ainda na década de noventa, foram publicadas várias obras de Luhmann que versavam
sobre os diversos ramos da atividade humana, compreendidos como sistemas funcionais
específicos das sociedades modernas: a arte, a ciência, a economia, a educação, os meios de
comunicação de massa, entre outros. Em 1993, ele publicou “O direito da sociedade” – Das
Recht der Gedellschaft,20 sedimentando a compreensão do direito como sistema social. Isso
porque, inicialmente, o sistema jurídico era visto como parte da estrutura da sociedade. É essa
fase do pensamento de Luhmann que mais interessa ao objeto deste estudo.
Rocha (2005, p. 96-101) agrupa as linhas de pensamento que nortearam as pesquisas
do autor desde os anos oitenta em três grandes “conjuntos teóricos”. É de se registrar, no
entanto, que os grupos de teorias guardam imbricações entre si, de tal modo que a divisão
atende a fins didáticos tão-somente. O primeiro deles é o conjunto constituído pelas teorias
lógicas que “tentam superar o tipo de racionalidade científica dominante na lógica tradicional,
epistemológica e filosófica ocidental desde Aristóteles até o positivismo do círculo de Viena”
(ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, 2005, p.97). Aqui sobressai a lógica de Gotthard Günther e
de G. Spencer Brown, em que o paradoxo e a circularidade21
das formulações teóricas podem
ser explorados e fertilizados de modo criativo.
Essa construção teórica contrasta com a lógica tradicional, que tentou, em diferentes
formulações, ocultar os paradoxos que sempre estiveram presentes na sociedade. Assimila-se,
portanto, o pressuposto construtivista de que não há um único sujeito do conhecimento, mas
da sociedade optou pelo caminho de uma epistemologia construtivista, que inclui não somente os sistemas estritamente cognitivos, mas também os sistemas que “empregam as observações autoproduzidas para regular
sua relação com o entorno”, como o direito, a economia, a religião, a arte etc. A congregação de construções tão
diversas e policontexturais, típicas da modernidade complexa, teoricamente só pode se orientar pela observação
de segunda ordem. Isso implica que as operações de cada sistema podem ser observadas por eles próprios de um
ponto de vista externo ao sistema, mas que lhe faz referência, o que corresponde à tese do fechamento operativo
do sistema. Segundo Luhmann (2005, p.97), isso corresponde, na semântica da teoria do conhecimento, ao que
se poderia chamar de “construtivismo operativo”. 20
O direito da sociedade (Derecho de la socidad ou Law as social system), que funcionará como principal fonte
de pesquisa em torno da teoria luhmanniana no âmbito deste estudo. 21
A circularidade não implica, aqui, aceitação pura de argumentos circulares, uma vez que isso desembocaria
numa mera tautologia. O que se pretende é romper com a ideia de que a circularidade gerada pela reflexão é
problema intelectual decorrente de um erro de pensamento, para que seja interpretada como problema relativo à
própria praxis jurídica. Como pretendemos mostrar neste estudo, a autorreferência, os paradoxos e a
indeterminação fazem parte da realidade dos sistemas sociais, de sorte que a teoria autopoiética do direito tem
por pretensão tornar a circularidade inerente a essas características um “modelo fecundo e heuristicamente
válido: uma tal perspectiva não apenas abre caminhos para a teoria do direito, mas revoluciona de facto todos os
modos de pensar a vida social” (LUHMANN, apud TEUBNER, 1989, p. 19).
24
sim uma pluralidade de sujeitos que observam o mesmo mundo com olhares paralelos. Em
decorrência disso, o ser observado também pode se tornar o ser observador; o paradoxo pode
ser observado de vários modos e a circularidade das formulações pode ser produtiva. Logo, a
observação do observador ou observação de segunda ordem proposta por Von Foerster
seria um caminho para a superação da intersubjetividade como algo sui generis, já que a
observação construtora do conhecimento (e da realidade) deixa de ser monocultural e se torna
policontextural. Nessa perspectiva, a lógica deixa de ser linear, baseada na ideia estática de
causa e efeito, e desloca-se para a diferenciação e para o relacionamento entre os sistemas e o
ambiente, assumindo a multiplicidade de valores que o processo infindável de observação
pode produzir. Como explica o próprio Luhmann (2009, p. 150-151):
Na sociedade moderna – e há muitas razões para tal informação , a percepção mais avançada sobre a realidade do mundo passou da consciência da realidade à
observação da observação. Essa forma de percepção, que concentra naquilo que os
outros dizem ou percebem, constitui a forma mais avançada de apreensão do mundo,
em uma diversidade de campos funcionais: a ciência, a arte, a economia, a política...
Só podemos ter acesso às coisas objetivas do mundo pela informação, por meio do
que os outros dizem e, certamente do que nós dizemos. Contudo, na sociedade
moderna, sempre existe o recurso da observação, como uma forma crítica que se
sempre deve se aplicar a si mesma: por que essa política me parece inadequada, enquanto outros a aceitam e ainda consideram-na benéfica...?
Ainda nesse mesmo contexto teórico, surge a noção de sentido,22
que orienta as
comunicações ocorridas no interior da sociedade. O sentido relaciona-se à função do sistema e
serve para atribuir-lhe identidade conforme o tipo de comunicação intrassistêmica. É por isso
que, à medida que um sistema reitera as comunicações específicas relacionadas à função que
exerce na sociedade, ele aumenta o nível de diferenciação entre si e entre outros sistemas e
consegue se autorreferenciar. É na descrição do processo de produção do sentido para as
questões que se revestem de relevância para a operação que se desenvolve no interior do
sistema seja ele econômico, político ou jurídico, cada qual orientado pela racionalidade que
conforma suas comunicações internas – que Luhmann recorre ao conceito de forma, proposto
por Spencer Brown (LUHMANN, 2009, 84-94), conceito esse que surge da percepção de que
indicar é distinguir. Assim, forma é um modo de distinção decorrente da separação entre dois
22
Em Luhmann, sentido é uma estratégia de seleção das possibilidades de atuação em dada situação, em face de
um meio mais complexo. A função de sentido é a estruturação de um campo de possibilidades que pode ser
orientado binariamente: sim/não. Portanto, sistemas de sentido podem se auto-observar e reagir seletivamente
diante da variabilidade de situações que a complexidade apresenta; são capazes, a partir daí, de traçar estratégias
para reduzir a complexidade circundante e, ao mesmo tempo, permitir seu incremento. Como se verá no curso
deste estudo, essa dinâmica de aumento e diminuição da complexidade funciona como motor da evolução social.
Desse modo, os seres humanos, como sistemas psíquicos, assim como a política e o direito, como subsistemas
sociais, são sistemas dotados de sentido (AMADO, 1999, p. 63).
25
valores, lados ou faces que estabelece limites à compreensão sistêmica daquela questão que
surge do ambiente ou de outro sistema. Vale dizer: forma é uma linha fronteiriça que marca
uma diferença. Portanto, quando se efetua uma distinção, aponta-se uma parte da forma.
Conforme explica Neves (2008a, p.59), como tudo que ocorre diz respeito a um ou a vários
sistemas e ao ambiente de outros sistemas, é necessário que esse “desnível de complexidade”
submeta-se a uma estrutura capaz de orientar o processo de filtragem dessas informações
vindas de outros sistemas ou do ambiente, ocasião em que o sistema – jurídico – as
descodifica a partir da distinção lícito/ilícito.
Desse modo, a internalização desses fatores ou informações heterorreferentes – vindos
do ambiente que é externo ao sistema – é o que se denomina seleção, ou seja, é filtragem da
referência externa ao sistema e que, após a qual, torna-se parte da autorreferência do sistema
que permitiu seu reingresso. Pode-se exemplificar esse processo de reingresso pela
repercussão de questões submetidas à racionalidade do sistema econômico, orientado pelo
código ter/não ter, no sistema jurídico, notadamente no que diz respeito à contretização dos
direitos fundamentais pelo Poder Judiciário em que a disponibilidade orçamentária, como
condição para a implementação desses direitos, irrita (stresses) o sistema jurídico e deve ser,
então, submetida à filtragem. Conforme as características do caso concreto, as informações
poderão ou não ingressar no sistema jurídico por ocasião do exame da questão submetida à
decisão.
O segundo conjunto de teorias compõe-se das teorias cibernéticas generalizadas, com
predominância das propostas de Heinz von Foerster, sobretudo da ideia de “observação de
segunda ordem”23
e da ideia de reflexividade assimilada pela teoria luhmanniana, em que a
realidade é gerada num sistema fechado para informações externas e aberto para a troca de
energia uma realidade complexa que apresenta situações de autonomia e de conectividade
simultâneas.
23
A teoria cibernética, que exerceu larga influência no construtivismo sistêmico, compreende a comunicação e o
controle de máquinas, seres vivos e grupos sociais por meio de analogias com as máquinas cibernéticas. Tais
analogias tornam-se possíveis a partir do estudo da informação no interior de processos como a codificação e
descodificação, retroalimentação e aprendizagem, por exemplo. No contexto dessa teoria, “a observação de
segunda ordem – observar o observador e suas observações – incorpora a constatação de que o observador não
seria mais um agente passivo que pode se esconder sob uma cortina de sua reflexão interior: os mundos
exteriores e interiores invadem-se, remodelam-se e imprimem sentidos sobre regiões supostamente fora de seus
domínios” (KUJAWSKI, Guilherme. A arte cibernética de segunda ordem. Disponível em:
http://www.cibercultura.org.br/ Acesso em: 29.8.2009). Assim, como a observação é uma operação e não pode
observar a si mesma, é necessário que se observe o observador para que se possa perceber aquilo que o
observador de primeira ordem não é capaz de ver. Por isso é que, como se verá em momento posterior deste
estudo, o código binário que orienta as operações jurídicas só pode ser manejado no nível da observação dos
observadores. Somente assim o sistema jurídico (direito) poderia atuar de modo normativamente fechado e, a
partir daí, fundamentar-se a si mesmo (LUHMANN, 2004, 101-102).
26
A terceira matriz teórica, identificada na construção da autopoiese em Luhmann –
talvez a mais propalada delas –, é representada pelas teorias biológicas, mormente pela
proposta de Maturana e Varela, que não separam os fenômenos da cognição do próprio
processo de viver. Como consequência dessa “fusão”, os autores explicam a circularidade dos
seres vivos, ou seja, processo em que produtor e produto se constituem mutuamente.
Apoiados em rigorosas pesquisas neurofisiológicas, eles concluem que a aprendizagem é
corporificada, isto é, o corpo participa dos atos de linguagem.24
Isso porque, no processo
evolutivo humano, por meio de um contínuo “acoplamento estrutural” – recorrência ou
recursividade entre organismo e meio –, o cérebro, sofrendo mudanças, foi-se modificando
em decorrência da plasticidade estrutural do organismo humano (PELLANDA, 2003).
Segundo Maturana (1994, p.47), “tudo o que nós, os seres humanos, fazemos como
tal, o fazemos nas conversações. E aquilo que não fazemos nas conversações, de fato, não o
fazemos como seres humanos”. Para esse autor, “o humano surge, na história evolutiva dos
primatas bípedes a que pertencemos com a linguagem” (MATURANA, 1994, p.142).
O conceito de autopoiese é, assim, original e essencialmente cibernético na medida em
que concebe o funcionamento do vivo como um circuito fechado de autoprodução, no qual o
conhecedor e o objeto do conhecimento configuram-se circularmente: conhecer e ser são
entendidos como processos inseparáveis. Rompe-se, portanto, com a fragmentação típica do
modelo cartesiano, em que tudo se passa como se o sujeito cognitivo fosse independente de
sua própria ação de cognição.
A substancialização das coisas também é abandonada, porquanto a lógica cibernética
trabalha com todas as dimensões da vida e não-vida, dando ênfase aos processos, e não às
coisas em si mesmas: ser-fazer-conhecer-falar são atividades ou ações sistemicamente
inseparáveis. É por isso que o observador não é mais alguém que está fora do sistema a
analisar suas operações, como se fosse uma realidade da qual ele não faz parte. O sujeito
deixa de ser mecânico para tornar-se epistêmico, pois pensa a si mesmo no ato de viver e
observar; não existe uma realidade previamente estabelecida, senão aquela construída pelas
24
Há um dissenso nesse ponto entre as perspectivas teóricas de Habermas e Luhmann. Porque, para Habermas,
os sistemas não se reproduzem de forma autônoma, uma vez que estão sempre atrelados à moral pós-
convencional. Como o real é inacessível pela linguagem, do ponto de vista científico só se pode falar em
veracidade, que nada mais é que o entendimento recíproco a respeito de algo no mundo. Em Luhmann, a ciência
é compreendida como outro subsistema social, que compartilha o mesmo ambiente que o sistema jurídico.
Contudo, opera a partir do código verdadeiro-falso (LUHMANN, 1996). Sob o ponto de vista moral, verdade,
em Habermas, resolve-se pela pretensão de validade, pois se refere à moral pós-convencional, em constante
reconstrução. As pretensões de validade, em Habermas, afirmam-se ao passarem pelo teste da imputação
recíproca de direitos. O autor abandona, assim, qualquer fundamento último, uma vez que a reconstrução da
moralidade pela razão comunicativa possibilita uma espécie de abertura ao futuro, sem amarras apriorísticas
(eticidade, tradições, o sagrado etc.) (HABERMAS, 2004b*).
27
ações dos sujeitos em interação com o ser observado (PELLANDA, 2003). No caso do
sistema jurídico, a observação de segunda ordem pode ser exercida pelo Poder Judiciário.
Com efeito, há também uma ruptura com a tradicional concepção de que a
conservação e a evolução das espécies estariam sempre condicionadas por circunstâncias
externas – ambiente. Em sentido oposto, “a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica
vinculada à sua capacidade de reprodução autopoiética, que os diferencia em um espaço
determinado” (NEVES, 2006, p.80).
A autopoiese, como fruto desses lineamentos teóricos, foi recepcionada pela teoria
luhmanniana, que buscou aplicá-la e ajustá-la às ciências sociais. Segundo Luhmann (1996a,
59):
A partir dos estímulos produzidos por essas propostas teóricas, a teoria dos sistemas
foi se constituindo ela mesma como um sistema de auto-observação, recursivo,
circular e autopoiético; dotado de uma dinâmica intelectual própria e fascinante,
capaz de colocar à altura dos desafios que hoje se anunciam sob a noção de pós-
modernismo (Tradução livre).25
Para aplicar a autopoiese aos sistemas sociais, Luhmann introduziu a distinção entre
os sistemas constituintes de sentido que seriam os sistemas sociais e os sistemas psíquicos
(indivíduos) e os sistemas orgânicos e neurofisiológicos. Enquanto estes demandam uma
concepção radical de fechamento, exigindo uma observação externa, aqueles – o indivíduo,
como sistema psíquico, e o direito, como sistema social – são capazes de se auto-observar.
A auto-observação possibilita que eles mantenham seu caráter autopoiético, referindo-
se simultaneamente ao ambiente e a si mesmos, o que viabiliza uma abertura para o ambiente,
sem prejuízo do fechamento recursivo e autorreferente. Todavia, a autorreferência elementar
decorrente dessa combinação entre fechamento operativo e abertura cognitiva, que possibilita
a autonomia e a unidade do sistema, configura apenas um dos três momentos em que se dá a
autopoiese, pois, tal como modelada por Luhmann, há ainda outros dois momentos: a
reflexividade e a reflexão.
Luhmann (1989, p.143) assim conceitua a expressão semântica “autorreferência”:
[...] designa toda operação que se refere a algo fora de si mesmo e que, por esta via,
volta a si. A pura autorreferência, a qual não toma o desvio do que lhe é externo,
poderia corresponder a uma tautologia. Operações reais ou sistemas reais dependem de um “desdobramento” ou de uma destautologização desta tautologia porque
25
“Tomando pie en los estímulos de estos planteamientos, la teoría de sistemas se fue constituyendo ella misma
en un sistema de autoobservación, recursivo, circular, autopoiético; dotado de una dinámica intelectual propia y
fascinante capaz de estar a la altura de los planteamientos problemáticos que hoy se enuncian bajo la noción de
posmodernismo.”
28
apenas assim passa-se a compreender que eles (as operações e os sistemas) são
possíveis em um ambiente real somente de um modo limitado e não arbitrário
(Tradução livre).26
A autorreferência, assim, é o fator que possibilita a autorreprodução dos sistemas – e,
via de consequência, a manutenção da diferenciação sistêmica – justamente porque ela não é
“pura”, não é gerada pela mera repetição de operações. Isso ocorre porque há a interveniência
de fatores cognitivos externos ao sistema. Vale dizer, quando o ambiente ou outro sistema
provoca a produção de uma nova operação no interior de um dado sistema, não há mera
reprodução da operação anterior há um “reingresso” de fatores ou informações que eram
externos ao sistema e foram autorreferenciados pelas operações internas desse sistema.
Por outro lado, a nova comunicação gerada no interior do sistema por essa operação
deve se vincular às operações anteriores de modo a atribuir continuidade ao processo
autorreferencial.
No âmbito do direito, esse liame entre as comunicações jurídicas é o que atribui
consistência, como exigência de coerência, às decisões jurídicas – que são as operações
tipicamente produzidas pelo sistema jurídico; são comunicações jurídicas por excelência – e
as torna redundantes, portanto capazes de sequenciar o funcionamento do sistema jurídico e
garantir a manutenção de sua unidade.
A reflexividade é definida pelo próprio Luhmann (apud NEVES, 2007, p.132) como
“autorreferência processual”, uma vez que diz respeito à referência de um processo a si
mesmo – a decisão sobre a tomada de decisão, a normatização da normatização –, de modo
que “o processo referente e o processo referido são estruturados pelo mesmo código binário e
que, em conexão com isso, critérios e programas do primeiro reaparecem em parte no
segundo” (NEVES, 2007, p.131).
Na reflexão, por outro lado, é o próprio sistema – e não mais seus elementos ou
processos sistêmicos – que realiza a operação autorreferencial e possibilita seja questionada a
identidade do sistema.
É relevante, nesse ponto, anotar as ponderações do próprio Luhmann sobre a aplicação
do modelo autopoiético aos sistemas sociais:
O conceito de autopoiese é apenas um ponto de partida que deve ser seguido pelos
outros conceitos de relação que se aproximem mais da complexidade da realidade.
26
“Designates every operation that refers to something beyond itself and through this back to itself. Pure self-
reference that does not take this detour through what is external to itself would amount to a tautology. Real
operations r systems depend on an „unfoulding‟ or de-tautologization of this tautology becauseonly then can they
grasp that they are possible in a real environment only in a restricted, non-arbitrary way.”
29
Mesmo na biologia chegou-se à conclusão de que a diversidade de espécies e as
diferenças de gênero não podem ser explicadas pelo conceito de autopoiese. O
mesmo sucede no âmbito específico da comunicação: quando já está assegurado um
sistema de signos como a linguagem com todas as suas antecipações e
recursividades, o conceito de autopoiese não é capaz de explicar os diversos níveis
de desenvolvimento das sociedades [...]. (Tradução livre)27
O autor segue explicando que, nesse contexto, a teoria da autopoiese é “uma espécie
de metateoria que não deve ser colocada nas bases metodológicas da investigação empírica,
no sentido de exigir-lhe prognósticos estruturais”, despida de maiores pretensões que não a de
figurar como uma orientação geral, devido ao nível de abstração em que se apresenta:
A autopoiese é, então, o princípio de uma teoria que pretende responder, de uma
maneira muito peculiar, a pergunta sobre o que é a vida, a consciência e o social.
Trata-se de uma refundação da teoria em que o desenvolvimento dos conceitos
complementares demandam muita elaboração. O conceito de autopoeise não oferece informações detalhadas, mantendo-se no plano geral, abstrato. Depende de auxílios
decisivos, como aquele advindo do conceito de acoplamento estrutural (Tradução
livre).28
Deve-se ter presente, ainda, que a autopoiese ingressa na teoria de Luhmann como um
conceito apto a explicar o processo de autorreprodução dos sistemas, porém desprovido de
conteúdo normativo. Assim, ao tratar da autopoiese aplicada ao direito, Neves (2007, p. 153-
154) o faz de forma crítica, como se verá no capítulo quatro, e correlaciona os três momentos
da autorreferência indicados por Luhmann às noções de legalidade, constitucionalidade e
legitimidade no sistema jurídico brasileiro. Segundo ele, à legalidade corresponde a
autorreferência de base ou elementar, já que o relevante nesse ponto é a capacidade de
conexão consistente entre as unidades elementares do sistema jurídico, que são as
comunicações, operações ou, mais especificamente, os atos jurídicos. A autorreferência do
sistema jurídico implica a harmonização da relação entre texto legal e comunicações jurídicas,
funcionando como “expressão jurídico-linguística” da legalidade. A legitimidade, em sentido
27
“O conceito de autopoeiesis es solo un punto de partida al que tienen que seguir otros conceptos de relación
que se acerquen más a la complejidad de la realidad. En la misma biologia se há llegado a la conclusión de que la
diversidad de espécies, las diferencias de gêneros, no pueden ser explicadas com el concepto de autopoeiesis. Lo
mismo sucede en el âmbito específico de la comunicatión: cuando ya está asegurado un sistema de signos como
el linguaje com todas suas antecipaciones y recursividades (y no solo como reacciones primarias al signo que
también tiene los animales), el concepto de autopoeiesis no es capaz de explicar los diversos desarrollos de las
sociedades [...] (LUHMANN, 1996a, p.94). 28
“La autopoeiesis es, entoces, un principio de teoría que de una manera muy peculiar responde a la pergunta de
qué es la vida, qué la conciencia, qué lo soial. Se trata de una refundación de la teoría en la que el desarollo de
los conceptos complementários requierem mucha elaboración. El concepto de autopoeiesis no ofrece ganancia
de informaccion y se mantiene en um plano general, abstracto. Requiere de ayudas decisivas como la del
concepto de acoplamiento estructural” (LUHMANN, 1996a, p.94).
30
sistêmico, é a capacidade de o sistema orientar e reorientar as expectativas normativas a partir
de sua própria estrutura e de seus critérios.
No comentário de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, a autorreferência de base no direito
sustenta-se na binariedade do código e em sua combinação com o programa. Isso pode se dar
tanto na dimensão em que o sistema jurídico seleciona fatos e situações sociais, tornando-as
afetas ao direito, quanto na perspectiva de possibilitar o exame de conformidade dos atos
jurídicos singularmente considerados e das normas infralegais (portarias, resoluções) à lei. A
constituição, que abriga temas de notória relevância, como o controle de constitucionalidade e
a declaração dos direitos fundamentais, apresenta-se como o mais abrangente mecanismo de
reflexividade no interior do sistema jurídico, uma vez que açambarca a normatização de todos
os processos de normatização do direito positivo.
Por fim, ao momento da reflexão no processo autopoiético do sistema jurídico
corresponderiam a legimitidade do direito e a dogmática jurídica. Nesse caso, Marcelo Neves
(2007, p. 154) explica que a reflexão como referência do sistema à sua própria identidade
vincula-se à legitimação do direito em sentido sistêmico porque atribui ao sistema
“capacidade de orientar e reorientar as expectativas normativas com base em suas próprias
diferenças e critérios”. É por meio da reflexão que o sistema jurídico assume potencial para se
auto-observar e examinar se sua diferenciação em relação ao sistema político ou econômico,
por exemplo, não está sendo colocada em risco em virtude da sobreposição do código binário
desses sistemas (poder/não poder ou ter/não ter) sobre o código próprio do direito
(lícito/ilícito).
A reflexão, portanto, atribui ao sistema capacidade para evitar que se torne alopoiético
e, via de consequência, perca sua legitimidade sistêmica. Enquanto a autorreferência de base
estabelece o que é lícito/ilícito pelo fechamento normativo, a reflexão distingue o que
pertence ou não ao sistema jurídico, distinguindo o jurídico do não jurídico. Há, ainda, outra
perspectiva de observação da reflexão – que talvez anteceda à noção de reflexão vinculada à
legitimidade do direito – que se dá em duas dimensões ou em dois níveis de abstração. Ao
nível mais limitado de reflexão corresponde à dogmática jurídica, na qual assume destaque o
“princípio da inegabilidade dos pontos de partida das cadeias de argumentação”, o que
equivale à “proibição da negação”, com vistas à manutenção da identidade do sistema
(LUHMANN, apud NEVES, 2007, p.154).
Já a teoria do direito, a partir dessa compreensão, encontra correspondência numa
perspectiva mais abrangente da reflexão como “abstração da abstração”, porquanto admite,
31
inclusive, que se questione a identidade do sistema (LUHMANN, apud NEVES, 2007,
p.154).
2.2 A diferenciação funcional do sistema jurídico
Das diversas correntes de teorias jurídicas, políticas e sociológicas que se dedicam ao
exame das relações entre direito, política e economia29
, a teoria dos sistemas é uma das que se
destaca por oferecer ferramentas que permitem uma observação mais apurada da tênue divisa
entre eles e da necessidade de preservar as diferenças que nos permitem identificar as funções
de cada um desses sistemas. Isso ocorre porque a teoria dos sistemas enfatiza os desafios – ou
os riscos – intrínsecos ao relacionamento intersistêmico, fomentando relevantes reflexões
sobre os limites de atuação do sistema jurídico na sociedade moderna.
Em Luhmann, o processo evolutivo das sociedades conduziu a reiterados processos de
diferenciação. Conforme crescia a complexidade da sociedade moderna, aumentava o nível de
diferenciação social, circunstância que permitiu o surgimento – diferenciação – de vários
sistemas sociais, tais como a ciência, a arte, a economia, a política e o direito.
É por isso que as comunicações são unidades elementares da sociedade, de tal sorte
que cada um de seus subsistemas é constituído por operações especificadas ou, melhor
dizendo, funcionalmente diferenciadas. Tais comunicações são realizadas sob a orientação de
código sistêmico próprio e, assim, torna-se possível o tratamento setorial e simplificado de
parte da complexidade de que o sistema jurídico se ocupa. Esse código é estruturado
binariamente entre um valor negativo e um positivo específico e, por intermédio dele, “as
unidades elementares do sistema são reproduzidas internamente e distinguidas claramente das
comunicações exteriores” (NEVES, 2006, p.82). Os códigos sistêmicos são binários porque
somente assim é possível a diferenciação, pois ao que se atribui valor positivo não pode se
valorar, ao mesmo tempo e pelo mesmo sistema, como negativo, e vice-versa. O sistema
precisa dessa distinção para se autorreproduzir a partir dela; é por isso que os códigos binários
variam de acordo com o tipo de comunicação que ocorre no interior de cada sistema. Assim,
no caso do sistema da Ciência, o código atribui valor de verdadeiro ou falso a uma
29
Como se verá adiante, a intersecção ou – de modo mais apropriado – o acoplamento estrutural entre o sistemas
jurídico e econômico é representado pelos contratos e pela propriedade, assim como a constituição, na teoria
sistêmica, seja fruto do acolpamento esturural entre o direito e a política (LUHMANN, 2004). Entretanto,
proposta aqui formulada observa a relação simultânea entre direito, política e economia que se estabelece no
orçamento público a partir da noção de racionalidade transversal (NEVES, 2009).
32
determinada teoria; no da arte, belo/feio; no da religião, sacro/secular; no da economia,
ter/não ter – valioso/não valioso; no da política, poder/não poder; e no direito, lícito/ilícito.
O processo comunicativo que é reproduzido no âmbito interno do sistema jurídico pelo
código lícito/ilícito – pertinente ao direito/impertinente ao direito –, é que possibilita a
autonomia sistêmica ao permitir que o sistema se reproduza de modo recursivo. Portanto, o
sistema jurídico não é nem a totalidade dos atos jurídicos estabelecidos, nem um conjunto de
regras – ou princípios –, nem uma hierarquia formal: é a maneira como o direito busca criar-
se e recriar-se orientado pelo próprio direito (LUHMANN, 2004).
O surgimento do direito como sistema social resulta do processo de separação ou, para
se empregar a terminologia sistêmica, de sua diferenciação em relação à política na sociedade
moderna. Em outras palavras, o direito tornou-se um subsistema social em virtude da
especialização de sua função, que se afirmou como diversa daquela desempenhada pelo
sistema político, já que sua atuação volta-se, especificamente, ao controle do código
lícito/ilícito e demanda um sistema funcional para isso especializado (NEVES, 2006, p. 82).
Diferentemente do que apregoam as teorias da justiça em geral, para Luhmann isso
não significa que o lícito é bom e o ilícito é ruim; ou que o lícito é justo e o ilícito é injusto.30
O sistema jurídico opera a partir de um código binário que implica apenas uma distinção: algo
que é codificado como lícito, não pode ser codificado como ilícito, e vice-versa. O
emaranhado de comunicações que precedem – e possibilitam – a existência e a
autorreprodução do sistema jurídico é também a razão de ser da binariedade do código que
direciona tais operações. Isso porque, se em todo código estiver envolvido um terceiro valor e
as comunicações havidas no interior do sistema pudessem existir em graus (meio-lícito), a
tarefa de estabelecer conexões entre elas a fim de gerar novas e variadas comunicações faria
com que o sistema entrasse em colapso (LUHMANN, 2004, p. 92).
30
A pretensão de desvincular o direito dos postulados morais ou éticos rendeu muitas críticas à teoria sistêmica
luhmanniana, ora aproximando-a da matriz normativista – como se verá em tópico específico deste estudo –, ora
questionando, como fez Goyard-Fabre (2007, p.225), sua vulnerabilidade: “De fato, não caberia indagar se o
direito, desprovido de fundamento, que se auto-organiza em sistema, não correria o risco de apresentar-se como
um jogo puramente formal, cujo único critério é o da coerência interna, mas que, em última análise, é puramente
formal, arbitrário e gratuito?” Muitos argumentos poderiam ser alinhados em favor da proposta de Luhmann. Já
de saída, há que se considerar a advertência feita pelo próprio autor no sentido de que nenhuma teoria é capaz de
resolver todos os problemas enfrentados pela sociedade moderna, de sorte que a pretensão da teoria sistêmica é
aprimorar a descrição do funcionamento dessa sociedade. A partir da descrição, a teoria pretende propiciar a
observação construtiva dos fenônemons indesejáveis nela registrados e a visulaização das estratégias possíveis
para solucioná-los ou mitigá-los. Além disso, Luhmann não pretende o total insulamento do direito de modo a
admitir seja ele passível de dominação pela ideologia prevalente. A ética, a moral e até a religião atuam como
instâncias que ao agregarem valores arraigados da sociedade, inevitavelmente, produzem “irritações” no sistema
jurídico. Assim, seus critérios e valores valores podem ingressar no sistema sempre que codificados como lícitos.
33
Assim, o código binário mostra-se capaz de oferecer dupla estabilidade às operações
que se realizam no âmbito interno do sistema jurídico:
Códigos binários, como o código lícito e ilícito, também surgem na forma de dupla
estabilidade e garantem que o sistema possa guiar suas próprias operações na
direção de encontrar o que é jurídico ou antijurídico apesar da diferença entre positivo e negativo, a qual estabelece que uma posição no sistema somente pode ser
tomada juridicamente e não antijuridicamente. Logicamente, a dupla estabilidade
pressupõe a exclusão de terceiros valores (ou definições) que não podem ser
atribuídas a nenhum dos dois valores. Sob essas circunstâncias ambos os valores são
conversíveis pela mera negação sem a necessidade de uma interpenetração de
valores. (Tradução livre)31
Decerto, um mesmo acontecimento poderá receber codificação positiva, na leitura de
um sistema, e negativa, em outro: um quadro, pintado por um artista desconhecido, pode ser
considerado belo pelo sistema da arte e não valioso pelo sistema da economia, ou vice-versa.
Por outro lado, no modelo sistêmico, quando se trata de atribuir um segundo código,
demonstra-se uma interdependência entre dois sistemas.
Neves (2008a, p.89) explica que “o Estado de Direito pode ser definido, em princípio,
como relevância da distinção lícito/ilícito para o sistema político”. Isso porque “ao lado da
distinção primária „poder-não poder‟, o esquema binário „lícito/ilícito‟ passa a desempenhar,
na perspectiva do observador do sistema político, o papel do segundo código de poder”.
Nessa mesma direção, Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 301) pontua que,
no âmbito do Estado de Direito, há uma recíproca vinculação entre direito e política fundada
pelo acoplamento estrutural entre os dois sistemas, ou seja, pela constituição. Dada a
importância desse tema para os objetivos deste estudo, a questão será retomada em tópico
específico; por ora, é importante ter claro, porém, que o acoplamento entre as estruturas32
de
ambos os sistemas (direito e política) não implica desdiferenciação; ao contrário, pressupõe a
diferenciação entre os sistemas.
31
“Binary codes, such as the code legal and illegal, also come in the form of bi-stability and guarantee that the
system can direct its further operations either towards a finding of what is legal or towards one of what is illegal
– regardless of the difference between positive/ negative which states that a position in the system can only be
taken legally and not illegally. Logically, bi-stability assumes the exclusion of third values (or definitions) that
cannot be attributed to either of two values. Under these circumstances both values are convertible by mere
negation without the need for an „interpenetration‟ of the values” (LUHMANN, 2004, p. 183). 32
Estrutura é a condensação das diversas formas de comunicação por meio dos “meios de comunicação
simbolicamente generalizados”; corresponde ao programa normativo que se conjuga com o código que, no caso
do direito, é o código lícito/ilícito; e da qual resulta a normatividade do sistema. A estrutura é o que mantém a
identidade do sistema no tempo, formando-se pela distinção entre código e programa (LUHMANN, 2009, p.
323-329).
34
2.2.1 O processo evolutivo de diferenciação sistêmica do direito
A compreensão do processo sistêmico de diferenciação é essencial para que se
entendam as funções e os limites da atuação do sistema jurídico na contemporaneidade, razão
por que, neste estudo, serão dedicadas algumas linhas à evolução social e sua repercussão na
diferenciação funcional-sistêmica do direito.
Desde já, deve-se esclarecer que a teoria sistêmica compreende a evolução social
como o resultado de um processo constante de variação, seleção e reestabilização de
estruturas.
De acordo com Luhmann (2004, p.232), “variação refere-se aos elementos do sistema,
seleção envolve as estruturas desse sistema e a reestabilização diz respeito à unidade do
sistema que é capaz de reproduzir a si mesmo autopoieticamente”.33
Portanto, não há
dimensão valorativa na referência que Luhmann faz ao processo evolutivo da sociedade, uma
vez que a evolução não se dirige a um fim determinado ou à realização de um ideal ou valor;
e, tampouco, pode ser planejada.34
Isso porque a teoria sistêmica rejeita a noção ontológica do
processo histórico como uma unidade na qual se desenvolve o “espírito” até alcançar sua
forma final “absoluta”, tal qual propôs a teoria hegeliana. Afasta-se, também, da perspectiva
marxista, que vê no processo histórico uma unidade em que se sucedem vários níveis de
desenvolvimento social no sentido da superação de formas materialmente determinadas de
dominação (NEVES, 2008b, p.5).
Muito embora o aspecto histórico seja amplamente considerado em sua formulação
teórica, Luhmann preconiza uma visão não historicista, que não desconsidera a aleatoriedade
com que se desenvolvem as comunicações, afastando qualquer perspectiva determinista. Nas
palavras de De Giorgi (1998, p.153):
A percepção da historicidade do tempo enquanto tempo presente significa percepção
da inevitabilidade do que é indisponível. Indisponível são as premissas, isto é, o
passado que não mais existe enquanto é passado, e o futuro, que ainda não existe na
medida em que é futuro. Estas indisponibilidades, porém, são inevitáveis, porque o
passado e o futuro são modalidades do tempo que existem, isto é, só podem ser
construídas no presente. E se, quanto ao passado, não se pode fazer nada, quanto ao
futuro pode-se fazer algo, ou melhor, tudo o que se faz é sempre construção de um
futuro.
33
“This means, in a further abstraction: variation involves the elements, selection involves the structures,
stabilization involves the unity of the system, which reproduces itself autopoietically.” 34
Repudia-se a ideia iluminista de que o aumento constante dos saberes tornaria o mundo proporcionalmente
mais transparente e, em consequência, as decisões tomadas pelos homens, mais acertadas e evidentes. Isso ocorre
porque, segundo Luhmann, tal perspectiva ignorou os efeitos entrópicos, desorientadores, do excesso de
informação a que estão submetidos os sujeitos relativamente isolados e “livres” das sociedades modernas.
35
A evolução da sociedade – e por consequência dos seus sistemas – nada mais é que a
transformação do improvável em provável, despida de qualquer axiologismo, porquanto o
futuro não é passível de previsão. Segundo Luhmann (1996b, p. 5), o êxito dessa evolução
não pode ser deduzido das condições que a favoreçam e não é previsível precisamente em
razão destas. A situação histórica passa, mas a aquisição, se se convalida, fica. O que, no
entanto, depende de problemas históricos bem mais profundos da sociedade.
Como bem esclarece Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 289), na
modernidade, a diferenciação social ocorreu pari passu com a estruturação de subsistemas da
sociedade que se orientavam para a realização de funções específicas e imprescindíveis ao
funcionamento da sociedade. Em linhas gerais, pode-se dizer que a cada subsistema social
incumbe solucionar um “problema” surgido na sociedade. As funções de subsistema social,
portanto, são tão diferenciadas quanto sejam específicas. Por isso se diz que na modernidade o
direito firmou-se como subsistema social funcionalmente diferenciado.
Na sociedade pré-moderna, organizada em estratos, as funções necessárias ao seu
funcionamento eram diluídas no sistema social globalmente considerado e, além de se
confundirem entre si, deixavam-se ser conduzidas pelo primado da religião. É por isso que,
somente com o advento da modernidade, foram oferecidas condições para que os subsistemas
sociais se liberassem da religião e buscassem estímulos ao processo de especificação dos
“modos de comunicar”, a fim de desempenhar suas próprias funções, diferenciando-se a partir
da necessidade de solucionar problemas sociais diversos.
O conjunto de teorias que fomentou a formulação sistêmica da segunda fase do
pensamento de Luhmann (vide 2.1 supra) possibilitou que a dimensão social do direito fosse
compreendida, a um só tempo, como atividade de reflexão empreendida pelo próprio sistema
jurídico – pela via da dogmática ou da teoria – e como produto da autorreferência do sistema.
A partir dessa concepção, o sistema jurídico tornou-se funcional, capaz de realizar sua
autorreprodução com base em suas próprias operações, ao que Luhmann chamou, como já
visto, de autopoiese do sistema jurídico.
Se ao direito não é dado garantir que algumas expectativas sejam protegidas contra a
frustração, cabe a ele selecionar aquelas que se revestem de normatividade e, portanto, serão
dotadas de capacidade para resistir aos conflitos entre as demais que se prendem ao âmbito
cognitivo porquanto não serão por ele garantidadas.
36
Por meio dessa atividade de distinção, seleção e proteção de determinadas
expectativas, o direito diferencia-se de seu ambiente e desempenha a função para a qual se
especializou: garantir que as expectativas sociais dotadas de normatividade sejam, no mínimo,
mantidas como tais e tornadas estáveis.
A propósito disso, é necessário distinguir os dois tipos de expectativas sociais. As
expectativas cognitivas são aquelas que se modificam quando postas em xeque, sem que isso
gere qualquer reação no âmbito do sistema jurídico. Assim, por exemplo, se se constatasse
que nem todos os corpos caem com uma aceleração previsível e calculável de acordo com a
lei da gravidade, essa lei deveria ser substituída por outra que levasse em conta essas exceções
como ocorrências previsíveis e que criaria, desse modo, expectativas mais adequadas
(AMADO, 1999, p. 64). A provisoriedade do conhecimento ditada pela modernidade
complexa induz à observação de que as expectativas cognitivas existem para que sejam postas
à prova e substituídas por outras que sejam capazes de melhor descrever a realidade acessível.
Portanto, as expectativas cognitivas, como hipótese de heterorreferência, ingressam no
direito em virtude da abertura cognitiva que o sistema mantém em relação ao ambiente, uma
vez que elas são indispensáveis, como já visto, à autorreferencialidade, à autorreflexão e à
reflexividade do sistema jurídico. Vale dizer: sem a abertura para as informações que
circulam no ambiente – onde estão os outros sistemas sociais – e se apresentam como
expectativas cognitivas, o sistema jurídico não poderá se autorreproduzir, porquanto sua
autonomia só é possível se mantida a relação de dependência com o ambiente. Nada obstante,
é igualmente imprescindível que, no sistema jurídico, as expectativas cognitivas sejam
traduzidas pelo código lícito/ilícito e se submetam à necessária tradução que lhes permitirá o
“reingresso” no interior do sistema, dando azo ao surgimento de expectativas normativas
jurídicas capazes de referenciar o funcionamento do sistema jurídico mediante o fechamento
operacional ou normativo do sistema jurídico. 35
Já as expectativas normativas devem resistir às frustrações; em face delas o sistema
não se adapta às circunstâncias, mas as protege para que sejam mantidas. Vale-se aqui, mais
uma vez, do exemplo de Amado (1999, p.64): ao se observar que alguns motoristas conduzem
35
Como se verá em momento oportuno, o sistema jurídico é cognitivamente aberto e operacionalmente fechado.
Isso significa, grosso modo, que sua diferenciação sistêmica e a funcionalidade de suas operações dependem de
que, no âmbito interno, “a cegueira no plano das operações” atua “como condição de visão” (DE GIORGI, 1998,
p. 155). Vale dizer, o fechamento operacional, ao limitar as operações do sistema jurídico ao código lícito/ilícito,
torna possível a autorreferência, que, a seu turno, é condição para a permeabilidade do sistema jurídico aos
influxos externos que, por meio da abertura cognitiva, fazem nascer novas expectativas normativas que,
doravante, poderão ser objetos de reestabilização. Importante esclarecer, por outro lado, que há dados cognitivos
relevantes para o direito e que não se restringem à abertura cognitiva propriamente dita.
37
seus veículos pela contramão direcional não se pretende modificar a obrigação de que todos
acatem apenas o sentido permitido ao dirigir seus automóveis; ao contrário, a expectativa é
mantida e reforçada por meio da imposição de uma sanção. Como expectativas que se
estabilizam contrafaticamente, as expectativas normativas são normas que adquirem feição
jurídica quando se desvinculam da interação concreta (intersubjetiva) e alcançam a
estabilização contrafactual. A expectativa normativa se torna norma jurídica quando é
generalizada.
De acordo com Luhmann, a variação evolutiva do sistema jurídico diz respeito à
“comunicação inesperada de expectativas normativas” (NEVES, 2008a, p. 18), ou seja, à
circunstância em que, se um comportamento não é previsto nas estruturas normativas
preexistentes, há um desapontamento das expectativas contrafácticas predominantes numa
dada sociedade. Nesse sentido, as leis podem ser consideradas uma constelação “de
expectativas institucionalizadas que diz como a sociedade pode esperar que os outros se
comportem” (LUHMANN, 1996a, p.66).
Retomando a noção de variação evolutiva que ocorre em torno do modo inesperado
como as expectativas normativas se comunicam, Luhmann explica que tal pode ser observado
pelo sistema como um desvio e, logo, tomado com indiferença. No entanto, esse “desvio”, se
reiterado, pode ser tratado a partir da seleção dessa expectativa como apta a integrar as
estruturas do sistema jurídico, o que ocorre por meio da produção de novas estruturas
normativas capazes de assimilar – codificando em lícito ou ilícito – referido comportamento.
Como a reestabilização refere-se à unidade do sistema jurídico, ela só ocorrerá quando
a nova expectativa tiver sido inserida como norma vigente no ordenamento jurídico. Com
efeito, os três mecanismos de evolução do direito – elemento, estrutura e unidade sistêmica –,
embora sejam conexos, foram diferenciados ao longo do processo evolutivo – de modo
endógeno36
– por eles protagonizado.
Entretanto, não se pode desconsiderar que, além das interferências recíprocas entre
sistemas, é inegável que o sistema jurídico é “funcional-estruturalmente sensível ao ambiente
36
Luhmann faz distinção entre processos de evolução sistêmica endógenos e exógenos, ao passo que Gunther
Teubner objeta que essa distinção só tem sentido na visão sistêmica pré-autopoiética, encontrada no “primeiro”
Luhmann, uma vez que pressupõe sistemas abertos que permitiriam a influência imediata do ambiente sobre o
sistema jurídico (NEVES, 2008a, p.19). Todavia, seguindo-se posicionamento encampado por Neves (2008a),
tem-se que a distinção entre evolução exógena e endógena parece apontar para a noção de coevolução,
consubstanciada na conexão problemática entre mecanismos evolutivos, que são internos ao sistema, à sociedade
e os demais sistemas sociais. Ressalta o autor que não se pode desconsiderar a importância das influências
recíprocas entre os sistemas que se dão pela forma da interpenetração, acoplamento estrutural e interferência,
bem assim o fato de que cada um dos sistemas é sensível ao ambiente social que o circunda.
38
social” (NEVES, 2008a, p.18) e que essa circunstância exemplifica uma hipótese de evolução
exógena.
Luhmann (2004, p.240) conclui, assim, que “todas as formas de comunicação estão
significativamente relacionadas às formas de diferenciação nas respectivas sociedades”. Para
ilustrar sua conclusão, o autor refere-se à importância do direito Civil Romano na evolução do
direito e põe em relevo o fato de que esse modelo avançado de jurisdição só apareceu em
Roma em virtude de aspectos peculiares do nível de desenvolvimento alcançado pela
sociedade romana; não foi sem razão que lá surgiram o contrato e a propriedade.
A evolução dos subsistemas, nesse cenário, corresponde ao aumento da complexidade
do sistema social, que, por sua vez, organiza-se para fazer face à complexidade quase
imensurável do ambiente. Para tanto, a complexidade de um sistema é regulada por suas
estruturas, às quais incumbe a pré-seleção das possíveis situações que o sistema pode
enfrentar em face de seu ambiente. Quanto maior a complexidade, maior a exigência de
seletividade e, por conseguinte, maior a demanda por diferenciação sistêmica.
A partir dessa visão é que se torna possível correlacionar a evolução do direito ou,
para utilizar a terminologia sistêmica, os níveis de diferenciação pelo qual o sistema jurídico
passou ao longo da história aos diferentes tipos de sociedade que se sucederam
historicamente.
Luhmann distingue três sistemas societários: segmentário,37
estratificado ou
hierárquico38
e funcionalmente diferenciado.39
40
De modo sintético, a distinção desses
37
Na sociedade segmentária, tipicamente arcaica, o nível de diferenciação é praticamente nulo, pois os
subsistemas são iguais entre si, diferenciando-se apenas em razão das desigualdades fortuitas advindas das
condições do ambiente (ALCOVER, 1993). As sociedades tribais seriam exemplos típicos de uma sociedade
segmentária. 38
Nas sociedades estratificadas ou hierárquicas, há um nível pouco maior de complexidade. Vale dizer: há
diversas camadas sociais desiguais entre si e internamente divididas; os subsistemas sociais são organizados hierarquicamente, de sorte que o poder e, por conseguinte, as possibilidades de comunicação estão distribuídos
desigualmente: os membros dos estratos inferiores praticamente não dispõem de meios para se comunicar com
os membros dos estratos superiores; por isso, as lutas sociais acabaram por constituir um meio para que tal
comunicação se viabilizasse. O exemplo que Luhmann utiliza quanto a esse tipo de sociedade são as “culturas
avançadas da pré-modernidade” (ALCOVER, 1993). 39
As sociedades funcionalmente diferenciadas são caracterizadas pela formação de distintos subsistemas a partir
das distintas funções e temáticas tratadas por cada um deles. Isso porque, no modelo de sociedade complexa que
sucedeu à modernidade, cada um dos subsistemas da sociedade se origina em razão das atividades (operações)
que o referenciam e do tipo de comunicação que o constitui: a economia orienta-se pelas questões relativas à
produção de bens e circulação de riquezas; a política pretende viabilizar a tomada de decisões vinculantes para
toda a sociedade, e o direito orienta-se pela função de estabilizar as expectativas normativas congruentes. A
“aquisição evolutiva” explica-se pela inexistência de hierarquia entre os subsistemas sociais, pois nenhum deles
pode se sobrepor ao outro. O grau de importância de cada um dependerá da situação concreta sobre a qual as
operações de um dado subsistema incidirão (ALCOVER, 1993). 40
Como se verá em momento posterior deste estudo, Jürgen Habermas, associa as fases da evolução social aos
níveis de consciência moral. Isso porque o autor explica as mudanças evolutivas dos sistemas sociais levando em
conta a lógica do desenvolvimento relativo às estruturas de consciência prático-morais e à dinâmica do
39
modelos de sociedade é sustentada no modo como as comunicações eram organizadas em
cada um desses momentos, o que equivale a dizer que os critérios fundamentais na
organização da sociedade, ao longo da história da humanidade, norteiam a distinção. Assim,
as sociedades segmentárias ou primitivas organizavam-se a partir de critérios naturais, como
gênero e idade, por exemplo; as sociedades estratificadas valiam-se de critérios hierárquicos
para se organizarem entre nobres e plebeus, cidadãos ou escravos; e, finalmente, na
modernidade, os critérios que fundamentam a auto-organização das sociedades são
funcionais, em virtude da estabilização de sistemas especializados, que se prestam a
desempenhar funções específicas e exclusivas, como o direito, a política e a economia.
Nesse mesmo passo, à diferenciação segmentária das sociedades antigas corresponde o
direito arcaico; à diferenciação hierárquica da sociedade corresponde o “direito das culturas
avançadas pré-modernas”41
e, à sociedade contemporânea, diferenciada funcionalmente,
corresponde o direito positivo.
Em retrospectiva histórica, Luhmann constatou que, nas sociedades arcaicas, o direito
logrou afirmar-se ao se defrontar com a frustração decorrente do desapontamento das
expectativas, mediante o uso da força voltada à autodefesa da vítima ou de seu clã,
possibilidade incompatível com qualquer procedimento que pretendesse estabelecer uma
regulamentação normativo-jurídica. A aplicação do direito era, por assim dizer, irrefletida,
porquanto assegurada pelo respectivo indivíduo ou grupo ofendido. Como não há
possibilidade de generalizar congruentemente as expectativas normativas desses indivíduos ou
dos grupos a que se vinculam mediante procedimentos, não há distinção entre
desapontamento de expectativa e ofensa a direitos, circunstância que Luhmann (1983) associa
à ausência de uma cultura jurídica escrita. Vale dizer: não há, nessa fase, distinção entre
moral, direito, religião, costumes e convencionalismo social, tampouco é possível estabelecer
qualquer diferença entre expectativas cognitivas e normativas. Em termos de evolução,
portanto, o direito arcaico não assimila o mecanismo da variação, uma vez que se mostra
incapaz de absorver comportamentos que demandem inovação em sua (diminuta) estrutura.
desenvolvimento das sociedades que diz respeito aos processos históricos. Ao conjugar esses dois critérios,
inspirado no estruturalismo genético de Kohlberg, propõe que “a transformação das instituições sociais deve ser
buscada na evolução daquelas estruturas de racionalidade, cada vez mais complexas, que partem de níveis de
consciência moral pré-convencional, avançam para o convencional e, posteriormente, deste para o pós-
convencional” (ARAGÃO, 2002, p.141). Nas sociedades primitivas, em que o nível de consciência moral é pré-
convencional, as ações e seus motivos são avaliados apenas por suas consequências; nas sociedades antigas (ou
feudais), as ações são julgadas pela sua conformidade com um sistema de normas; nas sociedades modernas ou
capitalistas, os sistemas de normas devem ser avaliados a partir de pontos de vistas universalistas. 41
Emprega-se aqui, em razão de sua precisão, a expressão “culturas avançadas pré-modernas”, utilizada pelo
Professor Neves (2006, 2007 e 2008a), muito embora na obra Sociologia do direito, de Niklas Luhmann (1983),
públicada no Brasil pela Editora Tempo, a terminologia escolhida pelo tradutor tenha sido “culturas antigas”.
40
O “direito das culturas avançadas pré-modernas” já possibilita a formalização de
procedimentos que permitam sua aplicação, uma vez que a sociedade é hierarquicamente
escalonada, submetida à dominação política. A generalização congruente de expectativas
emerge como função do direito e passa a ser viabilizada por procedimentos cujos resultados
são incertos. A limitação do direito, nessa época, consistia na imutabilidade das normas que
norteavam sua aplicação.
Todavia, necessário esclarecer que, nos primórdios dessa fase evolutiva, a
diferenciação do procedimento em relação a outras instâncias da sociedade era precária, uma
vez que, não raro, questões jurídicas eram orientadas por rituais divinatórios. Nesse contexto,
pode-se afirmar que a diferenciação do procedimento de aplicação jurídica foi implementada
pela primeira vez na história evolutiva do direito, com o advento do direito Civil Romano,
que, na Idade Média, recebeu nova sistematização.
Bem antes disso, porém, o advento da escrita contribuiu sobremaneira para a
intensificação da variação, porquanto tornou possível a assimilação de comportamentos não
previstos até então nas estruturas normativas existentes. Contudo, os procedimentos
decisórios ainda eram inaptos para lidar com a crescente variação de expectativas normativas
geradas por operações comunicativas que se proliferavam em progressão geométrica.
Na Sociologia Jurídica, Luhmann (1983) elenca alguns processos históricos relevantes
para a transição das “culturas avançadas pré-modernas‟‟ para a sociedade moderna.
Entre tais processos, merece destaque a ideia de “jurisdição voltada à manutenção da
ordem”, introduzida com a compilação das leis sob a iniciativa dos monarcas que queriam
unificar a prática dos tribunais em seu reinado e preservar os tribunais de influências locais.
Igualmente relevante é a recepção do direito, que possibilitou a discussão de
conteúdos normativos sem referência direta a um contexto social e contribuiu para o
surgimento de uma noção de validade distinta dos costumes. Também os esforços para se
estabelecer hierarquia entre “direito divino, direito natural e direito positivo”, observados
desde a Idade Média até o Iluminismo, conduziram a uma noção abstrata acerca do conceito
de direito válido.
A transição das “culturas avançadas pré-modernas” para a sociedade moderna,
segundo Luhmann (1983), é resultado ainda da oposição, na Idade Média, entre o direito
antigo e o direito novo oposição essa que, conquanto tenha sido introduzida para justificar a
pretensão de perenidade do direito antigo, criou as categorias necessárias para que se
engendrasse o raciocínio inverso, privilegiando o direito novo.
41
Também impulsionou essa transição o surgimento de processos de decisão política
complexa, quando, além de se fazer cumprir a vontade do soberano, tornou-se necessária a
formulação de objetivos políticos, mudança que foi decisiva para o processo de diferenciação
funcional da política.
Todos esses fatores são de suma importância para a compreensão dessa transição, uma
vez que, por intermédio deles, delimitava-se um universo identificável de leis (compilações,
recepção de codificações romanas), criavam-se condições para que se problematizasse a
noção de validade, por meio do debate sobre as fontes divinas e humanas do direito e, o mais
importante, relativizava-se a noção de imutabilidade do direito. A modernidade, portanto,
abriu caminhos para a positividade do sistema jurídico, que, àquela época, já havia alcançado
um significativo nível de diferenciação funcional.
Em face de tantas contribuições, é inegável a importância da concepção jusnaturalista
para a evolução da positivação do direito. Nada obstante, a positivação aqui referida ainda
tem sua validade atrelada à conformidade com o direito natural inalterável. A positividade do
direito, como conquista da sociedade moderna e nos moldes propostos pela teoria sistêmica,
só surgiu “com a introdução do procedimento legiferante como critério de validação das
normas jurídicas” (NEVES, 2008a, p.23).
A questão da positividade do direito é sobremaneira relevante para a compreensão da
proposta sistêmica para o direito. No entanto, antes de adentrar esse ponto, convém passar em
revista algumas das matrizes da teoria jurídica, formuladas ao longo do século XX, para que a
proposta sistêmica seja contextualizada de forma mais ampla. Em razão da vastidão do tema,
o exame dessas teorias levará em conta questões relacionadas à semiótica. Assim, a reunião
das teorias jurídicas em grupos levará em conta os aspectos da linguagem jurídica que foram
considerados em cada constructo. Para tanto, vale-se aqui da proposta classificatória
engendrada por Leonel Severo da Rocha (2005), a que ele denominou de “três matrizes
teórico-políticas do direito”.
2.3 Matrizes da teoria jurídica contemporânea
O agrupamento das diversas teorias jurídicas conforme a matriz disciplinar que as
orienta, embora possa incorrer em reducionismo – como ocorre com as classificações em
geral –, parece ser de considerável relevância didática para a identificação das referências
teóricas utilizadas neste estudo. Isso porque, em dado momento, a teoria sistêmica proposta
42
por Luhmann, isolada dos demais modelos teóricos que também conservam traços sistêmicos,
não será suficiente para a análise de algumas questões que se propõe examinar.
A partir de um corte epistemológico que leva em conta critérios de cientificidade
exigidos para a construção do conhecimento jurídico e visa a identificar o campo de
racionalidade em que estão inseridos cada um dos grupos de teorias, Rocha (2005) propõe a
distinção entre três grandes matrizes da teoria jurídica contemporânea: a normativista-
analítica, a hermenêutica e a pragmático-sistêmica.
As dimensões semióticas42
da linguagem – sintaxe, semântica e pragmática –
constituem o critério que orientou a reunião das teorias em cada um dos três grupos que serão
apresentados a seguir, uma vez que à semiótica jurídica incumbe a tormentosa tarefa de
compreender a diversidade dos discursos pertencentes aos complexos gêneros da linguagem
jurídica que emergem no cotidiano da aplicação do direito.
Antes de apresentar cada uma das matrizes teóricas, é relevante esclarecer o que
motiva a distinção das dimensões básicas da semiótica jurídica.
Quando se fala em sintaxe, são especialmente consideradas as interconexões entre os
signos normativos, ou seja, o enunciado da norma. O contexto no qual se inserem os
emissários e destinatários da mensagem contida na norma é desconsiderado, assim como os
significados específicos desse signo normativo e as situações objetivas a que se referem
(NEVES, 1998, p. 21). Privilegia-se a regularidade lógico-formal das proposições em
detrimento do exame conteudístico e relacional dos enunciados da norma.
A dimensão semântica avança no sentido de considerar a relação entre o enunciado da
norma e a significação que traz em si, além de levar em conta a relação entre o signo
normativo e as situações objetivas que o conforma. Autores como Warat (1985, p. 55-56)
propõem a distinção entre duas dimensões semânticas de sentido: o significado, propriamente
dito, que se refere ao aspecto conotativo, e as questões referenciais, que são os objetos ou
situações objetivas a que o enunciado se refere, ao que se denomina de dimensão semântica
denotativa (NEVES, 1998, p. 21).
42
Conforme explica Warat (1995), a partir das proposições de Rudolf Carnap, a semiótica foi desdobrada em
três níveis: a sintaxe tem por objetivo o estudo da estrutura formal da linguagem, por intermédio da análise
lógico-linguística; a semântica, que se destina a averiguar o sentido das proposições, partindo das relações entre
os enunciados e a realidade; e a pragmática, que tem em vista o estudo do uso das preferências discursivas.
Conquanto as concepções acerca do alcance de cada uma dessas dimensões da linguagem tenham sido
transformadas por estudos posteriores, como os de Peirce, Wittgenstein, Searle e John Austin, a já tradicional
divisão proposta pelo filósofo do Círculo de Viena permanece como marco na inclusão da dimensão pragmática
da semiótica na análise da linguagem. Nada obstante, a utilização de todas as dimensões da semiótica só aos
poucos foi sendo explorada pelas teorias jurídicas, ou seja, só na segunda metade do século XX é que a dimensão
pragmática passou a ser considerada na linguagem jurídica, como se pretende esclarecer neste trabalho.
43
Por último, a pragmática coloca em evidência a relação entre os enunciados da norma
e aqueles que irão dela se valer ou a ela se submeter, como emitentes ou destinatários da
mensagem normativa. É a dimensão pragmática da linguagem jurídica que privilegia a noção
discursiva e dialógica do direito. Sem desconsiderar o aspecto sintático e semântico da
linguagem jurídica, a atenção volta-se para o aspecto comunicacional, porquanto a norma
passa a ser compreendida como “fato linguístico” (FERRAZ JUNIOR, 1997, p.12-14). No
nível pragmático, o discurso é direcionado à aplicação da norma jurídica e à serventia dessa
linguagem normativa no mundo social. Não se trata aqui de uma dimensão que escapa à
lógica e migra para a sociologia, até porque a dimensão pragmática pressupõe a dimensão
semântica e esta, por sua vez, depende da dimensão sintática para existir. Nesse passo, a
dimensão pragmática da linguagem jurídica contempla o enlace entre as três dimensões da
semiótica jurídica: a investigação do texto jurídico parte do exame da regularidade lógico-
formal das proposições jurídicas; isso possibilita que sejam incluídas as considerações
relativas à lógica material quando, no nível semântico, aprecia-se a relação entre o conteúdo e
o alcance desses enunciados e os significados respectivos; e, por último, no âmbito
pragmático da linguagem jurídica, o aspecto dialético da lógica é sopesado, assim como os
elementos ideológicos-finalísticos que integram tal linguagem (NEVES, 1998, p.22).
A seguir, passa-se ao exame de cada um desses grupos teóricos.
2.3.1 O normativismo analítico
Empenhados em construir uma linguagem mais rigorosa para a “ciência jurídica”,
Hans Kelsen e Norberto Bobbio, cada um a seu modo,43
partiram do pressuposto de que as
proposições normativas descreviam sistematicamente o objeto do direito, razão por que tais
autores eram considerados neopositivistas (ROCHA, 2005).
O normativismo analítico inovou ao tentar purificar o discurso jurídico, livrando-o dos
influxos metajurídicos advindos da religião, da ideologia, da moral e mesmo da política. Na
esteira desse raciocínio, ao dissociar a ciência jurídica do direito em si, Kelsen propõe que ao
cientista cabe apenas a construção de um objeto de análise próprio, afastado das influências
que atuam sobre o direito (moral, religião, política etc). A propósito disso, a ciência do direito
– como as ciências em geral – seria meramente descritiva, uma vez que descreveria de forma
43
As obras desses autores que melhor explicam a visão neopositivista, em que se abandona a perspectiva da
tradição do positivismo legalista são: Teoria pura do direito, de Kelsen, e Ciência do direito e Análise da
linguagem, de Bobbio.
44
neutra a estrutura das normas jurídicas, ao passo que a norma, como esquema de interpretação
do mundo, ostentaria caráter prescritivo, ao emitir imperativos de conduta (SOUZA CRUZ,
2004, p.116).
Hans Kelsen incrementou a visão positivista tradicional (positivismo jurídico-
legalista) ao propor que todo ato jurídico é, concomitantemente, a aplicação de uma norma
superior por meio de mera cognição e a produção de uma norma inferior, que constitui um ato
de volição em que se manifesta a discricionariedade atribuída ao aplicador do direito nos
parâmetros normativistas.
O grande desafio posto para os normativistas era introduzir uma racionalidade
independente de critérios metafísicos ou transcendentais. Para tanto, Kelsen sugere a
pressuposição de uma norma hipotética fundamental – grundnorm – como fruto da
racionalidade humana (SOUZA CRUZ, 2004).44
Ao escrever sobre o normativismo, Bobbio destacou que as regras das quais o jurista
se ocupa em sua análise se expressam em proposições normativas, de maneira que interpretar
uma lei é uma abordagem linguística dessas proposições. Essa conclusão levou o autor a
conceber três fases para o processo interpretativo: a purificação, a integração e a ordenação da
linguagem jurídica das proposições normativas.
Todavia, percebendo a impossibilidade de tamanha objetivação, Bobbio passou a
admitir a existência de antinomias e lacunas no direito (ROCHA, 2005, p.20), o que impôs
outros rumos à sua pesquisa jurídica.
Herbert Hart e Alf Ross também apresentaram propostas para a construção de um
estatuto de cientificidade do direito em bases neopositivistas, contudo de premissas diversas.
Em O conceito de direito, Hart pretendeu extrapolar os limites do normativismo analítico ao
se preocupar com a dimensão pragmática da linguagem em suas investigações hermenêuticas;
Ross, em Direito e justiça, definiu o direito vigente, no sentido de ordenamento jurídico,
como um conjunto de diretrizes que provavelmente os juízes levariam em conta na
fundamentação de suas decisões.
Seguindo uma linha normativista que privilegia a hermenêutica e propõe uma
jurisprudência menos voltada à elucidação da “designação pura do signo direito, como tentara
fazer Bobbio, Hart firmou-se como um dos precursores da hermenêutica jurídica
44
Como bem anota Álvaro Ricardo Souza Cruz (2004, p.116), a idealização de uma norma fundamental
hipotética rendeu inúmeras críticas à teoria kelseniana porque traria em si uma contradição: “se a ciência
kelseniana exercia uma função meramente descritiva, a pressuposição de uma norma hipotética fundamental não
seria um ato de criação do cientista jurídico?” A resposta do teórico foi no sentido de que, embora a norma
fundamental não seja positiva, ela poderia ser inferida a partir de um comportamento descritivo.
45
contemporânea” (ROCHA, 2005, p.23), apesar de não ter conseguido superar os entraves
próprios da matriza normativa. Sabe-se que Hart iniciou seu trabalho com os olhos voltados
para a crítica ao positivismo de Austin, mas sua obra superou em muitos pontos o
reducionismo da visão normativista analítica ao colocar em relevo a função do intérprete, o
que se traduziu em ganhos para o processo do conhecimento jurídico.
Na prática, o pretendido (e inalcançado) rigor linguístico dos normativistas que
tinham por objetivo estabelecer processos capazes de elucidar o sentido dos textos
terminaria por construir as bases de uma jurisprudência fundada na denotação pura (ROCHA,
2005), que desconsidera os questionamentos postos pelo potencial hermenêutico do intérprete.
Isso porque a crença na possibilidade desse rigor linguístico enquadra-se na moldura
posta desde a Antiguidade Clássica a partir do Crátilo platônico e acatada pela “filosofia
da consciência”, já na Idade Moderna, que via na razão solipsista o âmbito exauriente do
conhecimento moral e científico:
Nesse contexto, a linguagem seria mero mecanismo de padronização/indeterminação
do sujeito com o objeto de sua análise. Assim, os signos/símbolos de uma linguagem
falada ou escrita prestavam-se, exclusivamente, para operacionalizar esse processo
mental (SOUZA CRUZ, 2004, p. 143).
A despeito de sua originalidade e da expressiva contribuição para a dogmática
jurídica, o normativismo “não superou os limites ideológicos de sua época” (SOUZA CRUZ,
2004, p. 113). Isso porque se manteve atrelado ao paradigma liberal no âmbito político e a
vários postulados da filosofia da consciência, no âmbito filosófico. Muito embora Kelsen
tenha formulado sua proposta teórica levando em consideração a dimensão sintática da
linguagem jurídica, ele desconsiderou os avanços decorrentes da reviravolta linguístico-
pragmática iniciada pelas pesquisas de Gottlob Frege,45
seguidas de perto pelas ponderações
45
Habermas (2003, p.27-28), referindo-se às origens da reviravolta linguístico-pragmática a partir das críticas ao
psicologismo que surgiu no fim do século XIX, sustenta que “Frege resume a objeção central na seguinte tese:
„há uma diferença entre nossos pensamentos e nossas representações‟. Representações são sempre minhas ou
tuas representações; elas têm que ser atribuíveis a um sujeito identificável no espaço e no tempo, ao passo que os
pensamentos ultrapassam os limites de uma consciência individual. (...) A análise de proposições predicativas
simples revela, além disso, que os pensamentos possuem uma estrutura mais complexa que os objetos do
pensamento representador. Com o auxílio de nomes, caracterizações e expressões dêicticas, nós nos referimos a
objetos singulares, ao passo que asserções, nas quais tais termos singulares assumem o lugar da expressão do
sujeito, exprimem na sua totalidade uma proposição ou reproduzem um estado de coisas. Quando tal pensamento
é verdadeiro, o enunciado que o reproduz representa um fato. A crítica à opinião segundo a qual o pensamento
não é mais que a consciência representadora repousa nessa consideração simples. Na representação são dados
somente objetos; enquanto que estados de coisas ou fatos são apreendidos em pensamentos. Com essa crítica,
Frege dá o primeiro passo rumo à guinada linguística. A partir de agora, não podemos mais apreender
simplesmente e sem mediação pensamentos e fatos no mundo dos objetos representáveis; eles só são acessíveis
enquanto representados, portanto em estados de coisas expressos através de proposições‟”.
46
críticas de Charles Peirce.46
Assim, não foi possível aos normativistas reconhecer a dimensão
pragmática da linguagem relacionada ao seu “uso” nos variados “jogos de linguagem” e nas
diversas “formas de vida” – ou mesmo aprofundar no exame dessa dimensão – tal qual propôs
o segundo Wittgenstein,47
limitando suas proposições à dimensão sintática, à coerência
lógico-formal das proposições que constituem a linguagem jurídica.
Ao tratar do giro pragmático linguístico, Manfredo Araújo de Oliveira (2001, p. 139)
esclarece que:
O conceito de jogo de linguagem pretende acentuar que, nos diferentes contextos,
seguem-se diferentes regras, podendo-se a partir daí, determinar o sentido das
expressões linguísticas. Ora, se assim é, então a Semântica só atinge sua finalidade chegando à Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só
pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Uma consideração
linguística que não atinge o contexto pragmático é, nesse sentido, essencialmente
abstrata, como é o caso da teoria da significação do pensamento tradicional, para
quem a linguagem é, em última análise, puro meio de descrição do mundo, sem a
percepção de que a significação de uma palavra resulta das regras de seu uso
seguidas nos diferentes contextos da vida. Saber usar corretamente as palavras
significa comportar-se corretamente.
Do mesmo modo, as propostas de Martin Heidegger e de Hans Georg Gadamer foram
definitivas para a reviravolta hermenêutica. Naquele, “a linguagem não „constitui‟ apenas o
fenômeno objeto/fenômeno, mas „define‟ também o „ser ciente‟, isso se dá por meio da
educação formal ou informal (língua, tradições, cultura) que „constroem‟ a inteireza do
indivíduo em todas as suas possibilidades” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 143).
Assim como Heidegger, na obra Ser e tempo, Gadamer, em Verdade e Método –
ambos citados por Souza Cruz (2004) –, também assume que a compreensão do intérprete
46
Como salienta Habermas (2003, p.31), Peirce dá mais um passo rumo à guinada linguística a partir da
introdução do elemento pragmático, que, a essa época, era exposto pelo uso formal da linguagem: “o status ideal
que empresta aos pensamentos uma estrutura proposicional a salvo da corrente das vivências, garantindo aos
conceitos e aos juízos conteúdos gerais, reconhecíveis intersubjetivamente e, deste modo, idênticos, sugere a ideia de verdade. Porém, a idealidade da validade veritativa não pode ser explicada nos termos que a idealidade
da generalidade do significado lançando mão apenas de invariâncias gramaticais, ou seja, da estrutura da
linguagem em geral, que se configura através de regras. Ora, a semântica formal de Frege opera com um único
conceito semântico de linguagem, que não focaliza os demais aspectos da utilização da linguagem, deixando-os
entregues à análise empírica; por isso, ela não consegue explicar o sentido da verdade no horizonte da
comunicação linguística. Ao invés disso, ela recorre à relação ontológica entre linguagem e mundo, entre
proposição e fato ou entre pensamento e força de pensamento (como capacidade subjetiva de produzir
pensamentos e de avaliá-los). Contrapondo-se a essa linha, Peirce completou a guinada linguística, incluindo na
análise formal o uso da linguagem”. 47
Abandonando a visão de isomorfia entre linguagem e mundo e a consequente dicotomia entre signo e objeto,
Wittgenstein reconstrói os postulados teórico-filosóficos do “Tractatus”, para, na obra “Investigações
filosóficas”, levar em consideração os diversos usos possíveis da linguagem. “A linguagem, nessa nova visão,
não representa apenas fatos, mas diversas ações que dependem de formas de vida estabelecidas para terem seus
significados”. Em razão dessa ruptura com o projeto de buscar critérios de pureza para a linguagem,
transformando-a num ideal repleto de precisão, a ideia de jogo de linguagem passa a ser o conceito-chave da
pragmática, funcionando como elo impreciso entre a linguagem e o mundo, cuja compreensão deve ser suficiente
para se entender o funcionamento da linguagem nos diversos contextos (SIMON, 2006, p. 47, 55-57).
47
sempre parte de uma pré-compreensão, determinada pela ambiência histórica que o precede e
circunda. Todavia, para o autor, essa pré-compreensão inicial poderia aprimorar-se pela
absorção de novas perspectivas advindas do diálogo entre os intérpretes ou com outros textos.
Portanto, a compreensão terá como pressuposto a fusão entre o horizonte experienciado pelo
intérprete e aquele em que o texto foi escrito, de tal modo que intérprete e texto “modificam-
se no processo, evoluindo numa espiral hermenêutica” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 145).
Levando em conta essa renovação paradigmática impulsionada pelo giro linguístico-
pragmático,48
pode-se dizer que, conquanto as tentativas analíticas de encontrar uma
linguagem pura do direito tenham fracassado, é inegável o surgimento, a partir daí, de um
profícuo espaço de reflexão que fomentou a crítica jurídica dos anos 70, trazendo à tona a
necessidade de se revisitar a teoria da argumentação.49
Em razão disso, surgem teorias que
privilegiam uma leitura hermenêutica do direito, como se verá a seguir.
2.3.2 A matriz hermenêutica
A partir da reviravolta linguístico-pragmática agora com os acréscimos de J. L.
Austin e J. Searle,50
que se empenharam em sistematizar uma teoria da linguagem a partir das
proposições de Wittgenstein ,51
autores como Joseph Raz e Ronald Dworkin atribuíram
primazia à interpretação dos textos jurídicos no centro de suas formulações teóricas sobre o
direito, sustentando sua criação pela via hermenêutica.
Embora francamente inspirada pela dimensão pragmática da linguagem, a
hermenêutica jurídica não concentra suas atenções nos procedimentos e nas práticas sociais,
48
A propósito, Franca D´Agostini (2002, p.53) pontua que a virada pragmática da filosofia já estava realizada na
década de sessenta, quando Thomas Kuhn aplica à ciência o “retorno ao solo áspero” que Wittgenstein anunciara, de tal sorte que nem mesmo a ciência poderia deixar de reconhecer sua dependência em relação aos
contextos de relação social, escolhas estéticas e oportunidades pragmáticas. 49
Rocha (2005, p.20) explica que “alguns juristas críticos começaram a propor leituras ideológicas do discurso
jurídico a partir da análise positiva das ambiguidades, vaguezas e indeterminações que Bobbio pretendia afastar.
[...] Isso também facilitou a entrada na cena jurídica da tópica argumentativa de Viehweg e Perelman.” 50
Ambos representantes da Escola de Oxford, tiveram seu mérito ao formularem proposições teóricas que
visavam superar a semântica tradicional, inspirados nas teses expostas de Wittgenstein, na obra Investigações
Filosóficas. Segundo a teoria da linguagem performativa inicialmente formulada por Austin, ”existem três tipos
principais de atos de fala: os atos ilocucionários, que contém o conteúdo das orações; os atos ilocucionários,
onde o emissor realiza uma ação dizendo algo; e os atos perlocucionários, típicos de verbos performativos, como
por exemplo, te prometo, te ordeno” (ROCHA, 2005, p. 22). 51
Manfredo Araujo de Oliveira (2001, p. 127) salienta que, desde a segunda filosofia de Wittgenstein, “nunca
temos o mundo em si, imediatamente, sempre por meio da linguagem”. O autor (OLIVEIRA, 2001, p.149)
aponta Wittgenstein como precursor da reviravolta pragmático-analítica, seguido por Austin e Searle que,
contrapondo-se à semântica tradicional, sistematizaram as proposições de Wittgenstein ao desenvolverem a
teoria dos atos de fala.
48
optando por atribuir maior relevância à busca da determinação do sentido das proposições
jurídicas.
Na esteira das discussões insufladas pela reviravolta pragmático-analítica, Hart
consegue avançar no sentido de analisar as distinções e usos existentes na linguagem jurídica.
Em decorrência dessa análise e da constatação de que há uma infinidade de aspectos que
jamais poderão ser considerados a priori pelo legislador, Hart aponta para a incompletude do
sistema jurídico, para a textura aberta dos enunciados jurídicos e para o consequente
reconhecimento de uma inevitável margem de discricionariedade judicial, que deve ser
exercida em razão das lacunas do ordenamento, nos chamados hard cases.
No entanto, apesar das divergências com o normativismo kelseniano, Hart (1961)
ainda concebe o ordenamento jurídico como um sistema unitário que identifica a validade das
demais normas por meio de uma “regra de reconhecimento”. Essa norma de pedigree,
portanto, funciona como fundamento último do ordenamento jurídico: conquanto lhe seja
atribuída natureza fática, ela não se subordina a nenhum critério posto de validade. Além
disso, Hart permaneceu atrelado à matriz normativista no que diz respeito ao modo descritivo
como analisa o ordenamento. Nesse particular, sua proposta teórica afasta-se de qualquer
intenção de avaliar ou justificar as normas jurídicas positivadas num determinado tempo e
espaço. Interessa-lhe sobremaneira que a legitimação do sistema jurídico ocorra em razão da
análise da procedência – pedigree – da norma jurídica, ou seja, importa se o procedimento que
levou à positivação da norma deu-se de modo correto (KOZICK, 2006, p. 411).
Não é demais lembrar também que, embora assimilasse as propostas linguísticas que
lhe eram contemporâneas, o autor não aderiu à ruptura necessária para situar sua teoria no
âmbito da filosofia da linguagem. Isso porque do ponto de vista pragmático, é necessário que
se considere a validade da norma e sua imperatividade como conceitos distintos, que não se
limitam um ao outro. O conceito de ordenamento jurídico como sistema, numa perspectiva
pragmática, não deve admitir uma única hierarquia linear que corresponda à unidade do
ordenamento e à validade de todas as normas que daí emanem. Há que se considerar os
destinatários das normas, pois somente a partir daí pode se dizer acerca do alcance coercitivo
das normas.
Tal postura e, em especial, a atribuição de poder discricionário ao juiz nos hard cases
são objeto da implacável crítica que lhe é endereçada por Dworkin, na obra O império do
direito.
49
Para Dworkin, sucessor de Hart na Chair of jurisprudence da Universidade de Oxford,
sempre existe uma resposta certa, a melhor possível para cada conflito que é submetido à
apreciação jurisdicional, uma vez que o juiz, ao julgar, escreve a continuidade de uma
história, donde surge a metáfora do direito como romance em cadeia. A “boa resposta” seria,
então, a que melhor atendesse “à dupla exigência que se impõe ao juiz, ou seja, fazer com que
a decisão se harmonize o melhor possível com a jurisprudência anterior e ao mesmo tempo a
atualize – justifique – conforme a moral política da comunidade” (ROCHA, 2005, p. 24).
A tese da resposta certa leva a uma leitura principiológica do direito, uma vez que a
resposta a cada pretensão jurídica, assentada na ideia de direitos, deve ser construída com
base em argumentos, já que o juiz não dispõe de discricionariedade, tampouco cria norma ao
julgar um caso. Ao juiz é dado tão-somente interpretar os argumentos que lhe são
apresentados, partindo de suas convicções morais e políticas e considerando as decisões sobre
situações análogas já proferidas no passado, como também os padrões morais da comunidade
envolvida, percurso que o levará ao princípio que solucionará a questão posta para decisão. A
coerência exigida nesse caminhar hermenêutico – ou nessa “cadeia do direito” – determina o
critério de validade do direito e o sustenta “como integridade”. Tal princípio é central na
teoria de Dworkin não só porque orienta a construção do conceito de direito, mas também
porque impõe a exigência de coerência moral no âmbito do legislativo (CHUEIRI, 2006,
p.262).
Conquanto sedutora, a teoria de Dworkin é alvo de muitas críticas. Uma das mais
relevantes talvez seja a que questiona sua matriz ontológica:
Embora seja verdade que, como J. Habermas e O. Appel, Dworkin lance um olhar
muito crítico sobre o objetivismo ingênuo das teorias positivistas e se mostre sempre preocupado em compreender a normatividade do direito, é difícil defender que o fato
de recorrer aos princípios morais naturais nos quais o direito se enraíza a título de
“padrões” ou “modelos” “por trás do direito” seja um procedimento da ordem da
ontologia (GOYARD-FABRE, 2007).
Na visão de Raffaele De Giorgi (apud MAGALHÃES, 2002, p.143), a hermenêutica é
uma teoria jurídica ambígua porque reproduz a ambivalência de um direito que oscila entre
teses jusnaturalistas e positivistas. O autor observa que a hermenêutica fracassa como
epistemologia jurídica porque coloca o intérprete – com todas as suas pré-compreensões –
como alguém capaz de extrair a “resposta correta” do texto:
A compreensão, como processo conclusivo do fazer hermenêutico [...] é o lugar
onde a impotência epistemológica da hermenêutica torna-se evidente. A impotência de um pensamento que não pode se constituir como teoria, porque não possui
hipóteses o objeto, porque produz anulação e sublimação do próprio objeto; de um
50
pensamento que exprime o grau mais profundo da involução da razão iluminista,
resolvida como assunto privado da consciência.
Em contraposição ao que pensava Kelsen e em consonância com as proposições de
Hart, nesse particular, na visão de Dworkin, o direito tem necessariamente pontos de contato
com a moral e a justiça. Também diversamente da teoria normativista de Kelsen, a concepção
de Estado da Hermenêutica de Dworkin, inspirada no não contratualismo de Rawls, é mais
democrática, atribuindo espaço às instituições sociais no âmbito de um estado interventor, em
que o direito não contempla tão-somente as normas jurídicas no sentido kelseniano, mas
inclui as regras, os princípios e as diretrizes políticas e viabiliza maior participação da
sociedade.
Entretanto, “a hermenêutica abre importante ponto de preferência para a análise da
sociedade, para a compreensão do direito, mas ela não explica suficientemente o que seja
sociedade” (ROCHA, 2005, p.26).
2.3.3 A matriz pragmático-sistêmica
O que marca a distinção dessa matriz teórica é indubitavelmente o ponto de partida de
suas indagações sistêmicas desencadeadas pelos trabalhos de Talcott Parsons,52
nos anos 60,
bem como pelos questionamentos lançados por Max Weber,53
em razão do advento da
modernidade, que, no âmbito dessa matriz teórica, são revisitados sob a ótica construtivista.
A análise sistêmica aplicada à teoria jurídica foi desenvolvida em duas perspectivas
neoparsonianas. Na primeira delas, a teoria da diferenciação funcional é central. Já na outra
vertente, é a teoria da ação comunicativa que assume maior relevância. Em ambas vertentes, é
evidente o tom neossistêmico em razão da centralidade exercida pelas questões sistêmico-
institucionais. O ponto nodal das discussões desloca-se da interpretação dos textos jurídicos
52
Uma das versões mais importantes da teoria funcionalista foi a formulada por Talcott Parsons. Trata-se de um
estruturalismo-funcionalista, em que a sociedade é entendida como um sistema social caracterizado por um nível
“mais avançado de autossuficiência em relação ao seu ambiente, no qual os indivíduos interagem” (LUHMANN,
apud PARSONS, 1974, p.19-20). A socialização é o fenômeno que possibilita ao sistema encontrar seu ponto de
equilíbrio, pois é por meio dela que são transmitidas aos indivíduos as regras de conduta. O direito, em Parsons
(1974, p.23), é visto como meta social, ao qual incumbe “articular um sistema de normas com uma organização
coletiva que tenha unidade e coesão”. Nesse contexto, as estruturas do sistema jurídico (legislação e tribunal)
têm considerável destaque e devem orientar-se conforme o objetivo a ser alcançado – manter o equilíbrio do
sistema. Nos vários dissensos entre Parsons e Luhmann, encontra-se a concepção antropocêntrica daquele ao
colocar o indivíduo no centro do sistema social, ao passo que, neste, essa posição é ocupada pelas comunicações.
Além disso, é notória a diferença entre ambos em virtude de Luhmann enfatizar a função como elemento
essencial e fator fundamental da estruturação do sistema (AMADO, 1993, p.109). 53
Habermas e Luhmann foram influenciados pela sociologia weberiana, como se verá a seguir, contudo em
sentidos diferentes (ALBERICO, 2008).
51
moldada pelo rigor linguístico da semiótica, apregoado pelo normativismo analítico, e do
modelo interpretativo contextualizado – e em certa medida psicologizado –, pretendido pela
matriz hermenêutica.
Nas teorias jurídicas sistêmicas, o que predomina são as discussões acerca das formas
de interpretação propostas pelos meios de comunicação simbolicamente generalizados, das
instituições que desempenham a função de produzir decisões jurídicas e dos modelos de
solução de conflitos.
Jürgen Habermas, Niklas Luhmann e Gunther Teubner são expoentes de teorias
sistêmicas aplicadas ao direito porque enfatizam aspectos filosóficos e sociológicos típicos
dessa matriz o primeiro, na vertente da teoria da ação comunicativa; o segundo, na teoria do
direito como sistema social, a partir da teoria da diferenciação; e o terceiro, com seu modelo
alternativo, em que o direito deixa de ser repressivo e torna-se “responsivo”, a partir de uma
racionalidade reflexiva (1996, p.13-19).
A seguir, serão indicados os traços distintivos entre a noção de positividade para a
matriz pragmático-sistêmica e para a matriz normativista.
2.4 Positividade do direito e positivismo jurídico: duas concepções distintas
Como anotado em tópico anterior, a positividade do direito é consequência da
evolução da sociedade, que passou a demandar procedimentos capazes de funcionar como
fonte de validez das normas jurídicas.
Se se retomar a questão a partir dos mecanismos de evolução do direito identificados
por Luhmann (2004, p.259), será possível afirmar que o processo de positivação tornou-se
viável porque, em face da crescente produção de variedade na sociedade complexa e da
constante abertura ao novo – inerente ao caráter modificável do direito moderno – pôde contar
com a seletividade prévia de possibilidades jurídicas pelo processo legislativo. A produção
legiferante, assim, como filtro seletivo de expectativas sociais que antecede à decisão jurídica,
intensificou-se com o avanço da modernidade e permitiu que a seletividade alcançasse um
nível de diferenciação satisfatório em relação à reestabilização das expectativas, a qual,
segundo Luhmann, concentra-se na reflexão dogmática. Todavia, a par da incapacidade da
“dogmática jurídica em oferecer conceitos socialmente adequados, Luhmann considerou
residir na reestabilização o impasse da evolução do direito positivo (moderno)” (NEVES,
2008, p.24).
52
A noção de positividade começou a ser engendrada, ainda na primeira fase da teoria
sistêmica de Luhmann, como decidibilidade e alterabilidade do direito, mormente nas obras
Sociologia do direito (1983) e Legitimação pelo Procedimento (1960). Num segundo
momento, contudo, o autor reformulou esse conceito, de maneira que, a partir do texto “O
direito da sociedade” (2004), a concepção de positividade passou a ser norteada pela
“autodeterminidade”, pela autorreferência e pelo fechamento operacional do sistema jurídico.
Vista sob essa perspectiva, a positividade é o fruto da combinação do fechamento da
autorreprodução recursiva, em termos normativos, com a abertura à heterorreferência
cognitiva em relação ao ambiente. Conforme explica Luhmann (apud NEVES, 1992, p.281):
“A qualidade normativa serve à autopoiese do sistema, à sua autocontinuação diferenciada do
meio ambiente. A qualidade cognitiva serve à concordância desse processo com o meio
ambiente do sistema”. É nesse ponto que o controle do código binário lícito/ilícito pelo
próprio sistema jurídico é tão essencial para que se possa falar em positividade em termos
sistêmicos.
O processo de positivação do direito, como consequência do significativo e crescente
incremento no nível de diferenciação sistêmica imposto pela modernidade, demanda um
controle cada vez mais efetivo do código binário lícito/ilícito pelo próprio sistema jurídico,
como forma de possibilitar sua autodeterminação operacional. Dito de outro modo, a nova
abordagem conceitual da questão da positividade nada mais fez que submeter a decidibilidade
à autonomia operacional do sistema. Portanto, o âmbito semântico do vocábulo “positividade”
traz em si a ilação de que “a decisão, mesmo se vier a alterar radicalmente o direito, receberá
o seu significado normativo do próprio sistema jurídico” (NEVES, 2008, p.80).
Não se pretende, com a noção sistêmica de Luhmann acerca da positividade, a total
independência do direito em relação ao ambiente ou aos outros sistemas, como se se
pretendesse afastar o sistema jurídico dos demais sistemas e transformá-lo numa autarquia. A
propósito, parece ter sido essa a pretensão da vertente da teoria jurídica normativista. Quer-se
tão-somente observar que a autonomia do sistema jurídico deve ser suficiente à
autorreprodução dos valores que ele produz por meio de suas operações ou comunicações –
internas, o que impede que expectativas normativas tenham sua incidência condicionada a
interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas ou mesmo proposições
53
científicas54
sem que antes sejam depuradas pelo programa e pelos critérios intrínsecos ao
sistema jurídico.55
Os influxos do ambiente e dos outros sistemas devem ser recepcionados pelo sistema
jurídico e, do ponto de vista cognitivo, afiguram-se necessários à oxigenação do direito,
garantindo sua renovação por meio da autoprodução de comunicações jurídicas entrelaçadas
em si. Isso porque a capacidade de o sistema se reciclar corresponde à possibilidade de o
direito se alterar para se adaptar ao meio ambiente, mais complexo e mais veloz que ele
próprio. Por outro lado, para que os influxos do meio não ingressem indistinta e
irrefletidamente no sistema jurídico, sem que o seu programa ou os seus critérios exerçam o
papel seletivo que lhes é peculiar e preservem a primazia do código lícito/ilícito, é necessário
que a referida abertura seja amenizada pelo fechamento operativo do direito que, em última
análise, impede que ele se confunda com o meio ambiente que o circunda.
Embora haja alguns pontos de similitude entre a noção sistêmica de positividade e as
proposições típicas do positivismo jurídico sob a perspectiva do normativismo kelseniano,
deve-se ter presente que são concepções distintas, sustentadas por diferentes compreensões do
direito.56
54
Como exemplo pode-se citar as causas submetidas à decisão judicial que são antecedidas por questões típicas
do sistema da ciência, como o exame de DNA em ações de investigação de paternidade e a viabilidade jurídica
das pesquisas com células-tronco. Na perspectiva luhmanniana da filtragem das informações oriundas do meio
ambiente pelo código binário próprio do direito, as conclusões postas pela ciência – que distingue entre o que é
verdadeiro ou falso em termos estritamente científicos – nem sempre serão assimiladas pelo sistema jurídico.
Vale dizer, o que é verdadeiro para o sistema da ciência pode não corresponder ao que o sistema jurídico
reconhece como lícito, pela aplicação do código binário. 55
Para Habermas (1997), a preponderância dos argumentos políticos ou econômicos no discurso jurídico, sem a
necessária filtragem, implicaria a colonização do direito pelo poder ou pelo dinheiro, conforme o caso. Em
Luhmann (2004), tratar-se-ia de corrupção sistêmica do direito, uma vez que códigos binários de outros sistemas
seriam introjetados no sistema jurídico sem a necessária depuração. A questão é de suma relevância para os fins
deste trabalho e será retomada em momento oportuno. Embora partam de leituras sistêmicas diversas, ambos percebem os riscos que podem advir para a democracia de um processo de desdiferenciação entre os sistemas
político, econômico e jurídico. 56
Chamon Junior (2005, p.150) associa Luhmann a Kelsen ao afirmar que ambos compreendem a norma a partir
de sua vinculação com a regra, circunstância que teria levado Kelsen a “abrir a porta do decisionismo na medida
em que o juiz poderia decidir fora do quadro das interpretações possíveis e, assim, fora do direito”. Afirma ainda
que Luhmann assumiu tom “derrotista” ao admitir a “impossibilidade de operacionalização racional do sistema
jurídico”, satisfazendo-se com uma “racionalidade limitada”. Ora, a teoria kelseniana, embora sejam conhecidos
seus méritos, fundamenta-se exclusivamente em relações hierárquicas, tendo na norma hipotética fundamental
seu ponto culminante, porquanto reproduz cartesianamente uma visão hierárquica da relação entre poder e
norma. Luhmann empenha-se na construção de uma teoria da sociedade policêntrica, em que o direito é um dos
muitos subsistemas que se coloca ao lado dos outros, com os quais se relaciona em distintos níveis, entre trocas e
interferências recíprocas. Indo além, Luhmann observa os vários pontos de interseção entre os subsistemas
sociais, assim como as variadas possibilidades de que interferências e irritações provenientes do ambiente
ingressem no sistema jurídico, como potenciais fatores de renovação do direito, ao contrário de Kelsen, que
repugnava a ideia de que o direito fosse permeável a influxos externos porque isso retiraria a autonomia da
ciência do direito. Decerto, Luhmann reconhece os limites da racionalidade na modernidade e, bem por isso,
propõe uma racionalidade em termos pós-cartesianos, focada nas comunicações intrassistêmicas e nas relações
54
Referindo-se ao tema, Luhmann (2005, p.596) explica que:
É necessário, portanto, fazer a distinção entre o caráter positivo do direito e o
positivismo teórico-jurídico como autodescrição ativa do sistema. Um positivismo
dessa natureza oferece uma resposta ao problema da validez valendo-se do conceito de fonte do direito. Certamente a metáfora da fonte tem sua origem, aplicada
também ao direito, na Antiguidade, quando foi utilizada nas referências a conteúdos
jusnaturalistas (Tradução livre). 57
Ao final do tópico, Luhmann esclarece que as duas perspectivas sobre o direito
positivo se afastam porque a visão normativista se mantém no nível semântico (vide 2.3.1
supra), ao passo que a perspectiva sistêmica de positividade considera também os níveis
sintático e pragmático na compreensão do direito. É a partir dessa visão – ou, para se ser mais
específico, da observação de segunda ordem – que o sistema jurídico torna-se capaz de se
autodescrever e de fundamentar a si próprio. Nas palavras do autor:
Nem o Estado, nem a razão, nem a história legitimam o direito, muito embora
sempre tenha havido teorias desse tipo. Todavia, se alguma delas pretender adotar a
descrição como autodescrição, se exige delas uma incursão no modus do observador
de segunda ordem. Tais teorias devem aprender a pensar elas mesmas como
autodescrições, sob pena de se tornarem anacrônicas – um dos maiores méritos da
teoria de Jürgen Habermas é a capacidade de identificar esse anacronismo das
teorias que recorrem à história natural, aos princípios morais ou à razão prática para
encontrar o fundamento do direito. O que fica, então, é o reconhecimento da
inevitável diversidade das perspectivas de observação, inclusive dentro do próprio
sistema. O que nos resta é a generalização constante das contingências como valores
distintos, renovados pela recursividade do sistema jurídico. Sob essas condições gerais se faz necessário encontrar autodescrições capazes de se sustentar nos dias
atuais (Tradução livre).58
A aplicação de conceitos da teoria cibernética ao estudo da sociedade – na qual o
sistema jurídico se insere – marca a diferença entre o ponto de observação de um e de outro
intersistêmicas, até porque o direito precisa contar com as racionalidades dos outros subsistemas, que realizam suas operações a partir de sua lógica própria. 57
Es necesario, por lo tanto, distinguir entre el carácter positivo del derecho y el positivismo teórico-jurídico em
tanto que autodescripción actuante e el sistema. U positivismo de esta índole ofrece uma respuesta al problema
de la validez sirviéndose del concepto de fuente del derecho. Ciertamente, la metáfora de la fuente tiene su
origen, aplicada también al derecho, em la Antigüidad, donde se la utilizó em general em referencia a contenidos
iusnaturalistas. 58
Ni el Estado, ni la razón, ni la história legitiman el derecho. Por supuesto que puede haber teorías de este tipo,
y, de hecho, las ha habido en el pasado y las hay en el presente. Pero si se les describe como autodescripciones,
se exige de ellas uma inserción en el modus del observador de segundo orden. Deben aprender a pensar en ellas
mismas como autodescripciones de um sistema que se describe a si mismo; de otro modo se convierten em algo
ana-crónico – uno de los logros más importantes de la teoria del derecho de Jürgen Habermas es precisamente
haber reconocido este carácter de anacronismo de todo recurso a la história natural, a los principios morales o a
la razón práctica. Lo único que nos queda es, entonces, um reconocimiento de la inevitable diversidad de las
perspectivas observacionales, inclusive dentro del mismo sistema. Lo que nos resta es la generación constante de
constingencias como valores distintivos, renovados por la recursividad del sistema jurídico. Bajo estas
condiciones generales se hace necesario encontrar autodescripciones capaces de sostenerse em nuestros días
(LUHMANN, 2005, p. 612).
55
autor. Daí se anuncia a abissal diferença entre as duas concepções, o que torna inadequado
tratar Luhmann como se ele estivesse atrelado às mesmas bases teóricas que nortearam as
variadas vertentes positivistas; como se estivesse preso à noção de que o logos ainda
permanece na consciência. Ao contrário, a ampla gama de possibilidades que circundam os
sistemas e denotam a complexidade do mundo moderno é problematizada pelo autor
justamente porque ele reconhece os limites da consciência humana diante do mundo
contemporâneo, daí que os sistemas são constituídos por comunicações. Dito de outro modo:
a consciência humana não consegue apreender a complexidade circundante, pois não pode
mais considerar todos os possíveis acontecimentos e todas as circunstâncias no mundo.
Assim, a consciência humana é sobrecarregada com tal exigência de compreensão, que dá
margem ao surgimento de um hiato entre ela e a complexidade do ambiente. Isso porque a
principal preocupação da teoria dos sistemas de Luhmann é descrever uma sociedade em que
os sistemas possam exercer a função de reduzir a complexidade do ambiente e torná-la
assimilável.
Tampouco Barbara Freitag (2004, p. 54), na sua perspectiva crítica, sustenta a
vinculação de Luhmann a bases positivistas, veja-se:
Luhmann não pode ser considerado um neopositivista, funcionalista ou teórico
sistêmico ingênuo. Ele está perfeitamente ciente das divergências profundas
existentes entre um sistema biológico (fechado) e um sistema sociocultural (aberto).
Defende a tese de que à medida que abandonamos a dimensão biológica e
avançamos em direção a sistemas socioculturais as alternativas de comportamento
do sistema aumentam impondo-lhe a necessidade de opções.
Nada obstante, o marco diferencial mais pronunciado entre o positivismo jurídico e a
positividade é mesmo o ponto de observação da teoria sistêmica, que, ao substituir as
categorias tradicionais de objeto, sujeito e causalidade por uma racionalidade sistêmica,
calcada em concepções relacionais e operacionais, contribuiu para o surgimento de uma nova
epistéme, que se pode dizer pós-cartesiana.
No âmbito do direito, a repercussão disso é que ele se libera da transcendência moral
ou religiosa, assim como da causalidade natural ou sociopolítica a que esteve atrelado, para
encontrar fundamentação na autorreferencialidade de suas operações (GOYARD-FABRE,
2007, p. 222).
Diversamente, o positivismo jurídico encontra-se preso ao esquema sujeito-objeto, que
pressupõe a existência de um observador objetivamente isolado do objeto observado. Ignora-
se, portanto, a possibilidade de auto-observação e de observação de segundo grau anunciada
pelos padrões da lógica cibernética que orientam a descrição da sociedade em Luhmann.
56
É por isso que subjaz à concepção do direito luhmanniana a substituição da velha
racionalidade do sujeito (ou da ação desse sujeito), típica do padrão iluminista, por uma
racionalidade do sistema, afastando-se as “certezas subjetivas”, presentes no positivismo
jurídico. Em vez dessa racionalidade “super poderosa”, a noção de positividade na perspectiva
sistêmica oferece uma racionalidade que dota os sistemas sociais da capacidade de
descreverem59
a si próprios e, com isso, diferenciarem-se do meio, o que reduz a
complexidade que os circunda, aumenta a estabilidade interna aos sistemas e os torna capazes
de assimilar essa complexidade crescente de um mundo em constante mudança.
Com base nessa “nova epistéme” é que se percebem as diferenças na observação da
norma no âmbito do sistema jurídico. O direito, assim, tanto é objeto da observação, como se
auto-observa gerando uma recursividade interna, ao observar que suas normas são derivadas
de outras e suas decisões sustentam-se em decisões que o antecederam –
jurisprudência/redundância – ou em suas próprias normas. Nesse sentido, o sistema jurídico é
um sistema ativo de observação, porquanto ele pode ser observado por um observador e,
concomitantemente, é um sistema que observa a realidade de modo autorreferente porque suas
normas são derivadas de outras normas e suas decisões se socorrem de outras decisões ou
mesmo das normas (LUHMANN, 2004, p.290).
Essa recursividade, como traço distintivo da positividade do direito na matriz
sistêmica, contribui, segundo Teubner (1996), para a unidade do sistema na medida em que a
autorreprodução do direito só se realiza quando as normas jurídicas fundamentam decisões
jurídicas e vice-versa, ou ainda quando as normas procedimentais e teoria do direito se
apresentam de modo imbricado. É por essa razão que o direito funda-se em sua circularidade,
pois é na sua recursividade operativa que reside sua legitimidade. Essa “autodeterminação
implica a exclusão de qualquer supradeterminação direta” advinda do ambiente sem a
mediatização pelos critérios intrassistêmicos. Mais ainda: é afastada a hierarquização proposta
59
Segundo Luhmann, a falta de metodologia adequada para descrever uma sociedade altamente complexa como
a contemporânea decorre de um obstáculo epistemológico que tem como base quatro hipóteses: a sociedade é
composta de seres humanos concretos e da relação entre eles e, por isso, somente pode ser constituída ou
integrada como resultado de um consenso entre os seres humanos, obtido por meio da concordância de suas
opiniões e objetivos; sociedades existem como unidades regionais ou territoriais; sociedades podem, como
grupos, serem observadas de fora. Em virtude dessas considerações, Luhmann apresenta a descrição da
sociedade como sistema social que envolve a totalidade das comunicações os limites das sociedades são os da comunicação. Logo, os seres humanos – entendidos como sistemas psíquicos – não fazem parte da sociedade,
mas, sim, do seu meio. Na sociedade eles estão presentes apenas como pessoas, pontos de endereçamentos para
as operações comunicativas. Para Luhmann, entre a sociedade, como sistema social, e os indivíduos, como
sistemas psíquicos, há necessário acoplamento estrutural, de sorte que um não pode existir sem o outro. A opção
luhmannniana de colocar o indivíduo fora da sociedade é o que possibilita a análise desta sem a necessidade de
interpretá-la por meio de comportamentos desviantes dos indivíduos e de suas influências sobre eles.
(LUHMANN, 2005, p.181-183)
57
pelo positivismo jurídico, pois a positividade sistêmica pressupõe uma relação “horizontal-
funcional” entre o direito e os demais subsistemas sociais, inclusive com a política e a moral
(NEVES, 2007, p. 69). Não há que se falar, portanto, em hierarquização como pretende o
positivismo jurídico.
Embora vários autores formulem críticas a essa noção de positividade, em virtude de
sua pretensão de neutralidade moral, aproximando Luhmann de Kelsen, o que se observa é
que o fechamento operacional pretendido pelo primeiro, além de ser entremeado pela abertura
cognitiva, não pressupõe nenhum alheamento ou isolamento do direito em relação aos demais
subsistemas. Conforme Jésus Ignacio Martínez García se expressa na introdução à versão
espanhola de O direito da sociedade (LUHMANN, 2005, p. 19):
[...] apesar da arraigada “imagem kelseniana da pirâmide, o direito não se move, em
última instância por esquemas hierárquicos, nem teleológicos, senão por diferenças e
tensões, que o levam a multiplicar suas próprias distinções. O direito traz consigo
um mundo próprio feito de circuitos ativos, dado seu potencial para a aprendizagem.
O sistema não tem paredes e sim membranas (Tradução livre).60
A par disso, a positivação do direito em Luhmann significa que os destinatários estão
dispostos a aceitar alterações dos conteúdos jurídicos e, assim, aprender novos conteúdos.
Essa a dimensão social da funcionalidade do sistema jurídico é capaz de torná-lo positivo em
termos sistêmicos: posto por decisões e permanentemente alterável (NEVES, 2007, p. 69).
Por tudo o que se expôs, é de se observar que a questão da justiça em Luhmann não se
sustenta na ação de um sujeito moral que decide. Justiça, para Luhmann, expressa-se numa
fórmula de contigência capaz de inspirar as operações do sistema jurídico mas insuficiente
para fundamentá-las. Esse é um ponto relevante de distinção, uma vez que Kelsen, em última
análise, recai num subjetivismo incontrolável, ao admitir que o julgador poderia decidir fora
da “moldura dos possíveis significados semânticos da norma”. Em decorrência dessa postura,
a teoria da interpretação jurídica tornou-se algo inacessível. Dito de outro modo, a metáfora
do direito aplicado como moldura dentro da qual existem várias possibilidades de decisão
parte da ideia de que há vários significados possíveis das normas e, em razão disso, a ciência
do direito só pode traçar esses significados possíveis, mas não pode dizer qual deles seria o
correto. A escolha, portanto, ficaria a cargo do juiz, a quem o ordenamento atribui autoridade
60
“Puede resultar chocante, dado el principio de jerarquía normativa y el arraigo de la imagen kelseniana de la
pirâmide, pero el derecho no se mueve en última instancia por esquemas jerárquicos ni teleológicos, sino por
diferenciales y por tensiones que le llevan a multiplicar sus proprias distinciones. El derecho arrastra consigo un
mundo proprio hecho de circuitos ativos, a la vez que desarrolla uma gran facilidad de aprendizaje. El sistema no
tiene paredes sino membranas.”
58
para tanto (KELSEN, 1998, p.230-231). Surge, daí, o caráter decisionista do normativismo
kelseniano. Nas palavras do autor (KELSEN, 1998, p.387 e 395):
A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de
aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão
superior. [...] A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido
das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos,
ela não é criação jurídica.
Por detrás dessa postura decisionista, que atribui ao julgador um potencial criativo
quase insindicável, sobressaem os postulados do positivismo lógico que tanto influenciaram a
teoria kelseniana. A desconsideração do contexto que envolve a interpretação jurídica e de
qualquer base empírica para a formulação de suas proposições expressa esses limites que
mantiveram Kelsen adstrito ao aspecto semântico da linguagem. Como explica Juliana
Neuenschwander Magalhães (1999, p. 430):
Para Kelsen, a ciência do direito pode ocupar-se da interpretação jurídica apenas na
medida em que esta se presta a traçar a “moldura” das interpretações possíveis de
uma norma jurídica. [...] Evidente que Kelsen, aqui, não considera o contexto como
algo que deva ser levado em consideração na atribuição de sentido à norma e, muito menos, como doador de sentido a esta. [...] Kelsen fala da e na perspectiva da
Filosofia Analítica, de uma dada concepção de ciência e de linguagem que
desconhece os usos, ou os diferentes contextos em que desta se faz uso. Conhecer,
na perspectiva da Filosofia Analítica, é traduzir numa linguagem rigorosa os dados
do mundo.
É nesse ponto que se faz pertinente a observação de Neves (1988, p.26-27), no sentido
de que, pela perspectiva da semiótica, a unidade do ordenamento jurídico em Kelsen limita-se
ao nível sintático, porquanto decorre da vinculação, direta ou indireta, ao núcleo de produção
normativa, pouco importando qual o conteúdo das mensagens normativas e os objetivos
pretendidos por seus emitentes-destinatários. Isso porque Kelsen percebia a improbabilidade
da unidade semântica em decorrência da plurivocidade que emana da heterogeneidade de
conteúdos normativos. Essa a razão para que a unidade do sistema jurídico se desse apenas no
âmbito sintático – em que predomina a lógica e a compreensão eminentemente formal dos
enunciados – assim como para que o ordenamento jurídico fosse escalonado e hierarquizado,
em que o fundamento imediato de uma norma são as normas superiores até que a Norma
Fundamental, como ultima ratio, pudesse evitar o regresso ao infinito.
A linearidade idealizada por Kelsen na estrutura hierárquica do ordenamento e a
perspectiva da unidade formal do direito a partir da perspectiva do positivismo jurídico, como
se viu, são substituídas em Luhmann pela noção de direito como sistema social que se
59
caracteriza pela positividade. A positividade, assim, ao implicar abertura cognitiva do direito
aos influxos do meio o torna incompatível, nesse particular, com a perspectiva normativista.
Pela observação sistêmica, o sistema jurídico não é constituído de modo estático,
como que por uma norma fundamental, por exemplo, mas de modo dinâmico, “pois a sua
construção, desenvolvimento e transformação realizam-se através dos processos de produção
e aplicação normativo-jurídicas. [...] Daí porque não se pode falar em completude (conceito
estático) e sim em completabilidade (conceito dinâmico)” (NEVES, 1988, p.31).
Essa noção de completabilidade é assimilada na teoria da positividade do sistema
jurídico por meio da combinação entre a abertura cognitiva do direito às informações
relevantes do ambiente e o fechamento em nível operacional que submete tudo o que pretende
ingressar no sistema jurídico ao código que lhe é próprio e que assegura sua unidade ou, na
semântica sistêmica, que assegura a manutenção de sua diferenciação em relação ao ambiente.
Tanto a vertente sistêmica de Luhmann quanto a teoria discursiva do direito de
Habermas consideram que os níveis semântico e pragmático da linguagem são inafastáveis
das comunicações que constituem os sistemas sociais. A consequência disso é que fica
inviabilizada qualquer pretensão de fechamento ou isolamento do direito. Ao contrário, a
abordagem que considere, além da sintaxe, as perspectivas dos referentes fáticos, de que trata
a semântica, e dos componentes teleológicos, ideológicos ou contextuais, a que se refere a
pragmática da linguagem jurídica, exige que o sistema mantenha-se aberto. Vale frisar,
entretanto, que a abertura ocorre no âmbito cognitivo e pressupõe um processo de filtragem
pela codificação e pelo programa de cada sistema.
Segundo Neves (1988, p. 32), a abertura do sistema jurídico, ou a sua
completabilidade, é exigida pela perspectiva da semiótica, por vários motivos, a saber:
1) há relações interpessoais que não estão previstas no ordenamento jurídico,
mas que se submetem, muitas vezes, a uma decisão dos órgãos jurisdicionais (aspecto semântico da completabilidade); 2) os emitentes e destinatários das
normas jurídicas têm expectativas que encontram correspondência no interior
do ordenamento jurídico (aspecto pragmático da completabilidade); 3) o
ordenamento jurídico funciona em intercâmbio com os demais subsistemas
sociais (aspecto semântico da abertura); 4) o ordenamento condiciona e é
condicionado pelos fins e ideologias dos emitentes e destinatários, nos atos de
produção, interpretação e aplicação jurídicas (aspecto pragmático da abertura).
Essa visão que encampa os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica
pode ser indicada como um ponto diferencial destacado entre as propostas do positivismo
jurídico e a teoria da positividade do direito de matriz sistêmica.
60
No capítulo seguinte serão abordados os traços de convergência e de dissensos entre as
vertentes da teoria jurídica pragmático-sistêmica e, ao final, serão expostos os instrumentais
teóricos oferecidos por essa matriz capazes de auxiliar na compreensão sobre o modo como se
dão as relações entre os sistemas sociais. Isso permitirá que, nos capítulos seguintes sejam
avaliadas as repercussões daí decorrentes para a concretização dos direitos fundamentais no
Brasil.
61
3 DISSENSOS E CONVERGÊNCIAS ENTRE AS VERTENTES TEÓRICAS DE
HABERMAS E LUHMANN
São vários os pontos de dissenso entre as perspectivas teóricas de Luhmann e de
Habermas. Os pressupostos de que partem são, de fato, divergentes. Entretanto, interessa
neste momento identificar os pontos de convergência entre o pensamento dos dois autores.
Ambos os autores expõem preocupações semelhantes, voltadas à descrição e compreensão das
dinâmicas de organização, constituição e evolução da sociedade contemporânea. Tanto
Habermas quanto Luhmann desenvolveram as respectivas teorias sob a tradição da filosofia
alemã, com significativa influência da sociologia americana.
3.1 A leitura da teoria dos sistemas aplicada ao direito em Jürgen Habermas
A teoria sistêmica é encampada pelo autor, mas, em sua releitura, o ambiente que
contorna os sistemas dispõe de certa autonomia e é redimensionado pela carga filosófica que
dá sustentação à noção de “mundo da vida”, cuja constituição, em seu entendimento, engloba
três componentes estruturais cultura, sociedade e personalidade , trazendo como pano de
fundo o horizonte de consciência individual e da coletividade na qual esse indivíduo se insere.
Vale dizer: no contexto do mundo da vida, a humanidade insere-se de forma
intersubjetivamente compartilhada (SOUZA CRUZ, 2006, p. 94). Na obra Verdade e
justificação, Habermas (2004, p. 320) explicita em que consistem os componentes estruturais
do mundo da vida,61
assim afirmando:
O mundo da vida constitui o horizonte de uma práxis de entendimento mútuo, em
que os sujeitos que agem comunicativamente procuram, em conjunto, chegar a bom
termo com seus problemas cotidianos. Os mundos da vida modernos diferenciam-se
nos domínios da cultura, da sociedade e da pessoa. A cultura articula-se – segundo
os aspectos de validade das questões sobre verdade, justiça e gosto – nas esferas da
ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte e da crítica da arte. As instituições básicas da sociedade (como a família, a igreja e a ordem jurídica) geraram sistemas
funcionais que (como a economia moderna e a administração do Estado)
desenvolvem uma vida própria por meios de comunicação próprios (dinheiro e
poder administrativo). As estruturas de personalidade, por fim, nascem de processos
de socialização que equipam as jovens gerações com a faculdade de orientar-se de
maneira autônoma num mundo tão complexo.
61
Deve-se ressalvar que a construção teórica de Habermas em torno do mundo da vida teve início em
Conhecimento e interesse e foi aprofundado na Teoria da ação comunicativa.
62
Ao atenuar a visão sistêmica tradicional – mas sem abrir mão de todos os seus
postulados para não recair numa visão holística da sociedade –, Habermas rompe com o
“modelo de uma totalidade que se compõe de partes” (2003, p. 111), por meio da concepção
de mundo da vida que se constrói sobre uma base de convicções intersubjetivamente
compartilhadas, que serve de ponto de partida para a integração entre todos os sistemas.
Em oposição à noção weberiana de desencantamento do mundo com o advento da
modernidade, Habermas consegue perceber consequências construtivas da modernidade, a
partir da qual lhe atribui outra conotação positiva.
Isso porque Habermas reconstruiu a noção de desencantamento do mundo partindo de
uma releitura da evolução social em Weber. O autor (HABERMAS, 2003) conjuga cada uma
das fases evolutivas do direito com a teoria do aprendizado moral de Lawrence Kohlberg, em
que o conhecimento se dá em estágios. Assim, o direito revelado, fundamentado
imediatamente na onipresença do sagrado, no qual não se cogitava da norma objetiva,
corresponde à fase pré-convencional. Nesta, a ética é guiada pela magia, que determinava
todos os aspectos das condutas individuais, o que ensejava uma integração plena entre direito
e cultura. No estágio seguinte – direito tradicional –, o sagrado e as tradições mediavam a
produção e aplicação das normas, as quais já se diferenciam da ação, pois abstratas e gerais.
Trata-se do estágio convencional, em que as práticas continuadas e tradicionais tornam-se
normativas por força da afirmação de uma autoridade heterônoma incumbida de dizer e
aplicar as normas jurídicas que, todavia, ainda derivavam sua legitimidade do sagrado, não
havendo distinção entre direito, moral e ética. O direito moderno, marcado pelo advento do
capitalismo, insere-se no nível pós-convencional de consciência moral, em que as ações
sociais seriam julgadas à luz de princípios dotados de potencial universalizante. Assim, a
dissolução do sagrado e da tradição, em vez de trazer as trágicas consequências imaginadas
por Weber, faz nascer, em Habermas, espaço para que se frutifique a razão comunicativa
(MATTOS, 2002, p. 136-137).
Ao tratar da positividade, Habermas (2003) sustenta a sua vinculação ao caráter pós-
tradicional do direito. O autor, apesar de criticar essencialmente a concepção weberiana do
direito moderno, aproveita-lhe o ponto de vista relativo à afirmação do direito positivo.
Como a tendência ao dissenso trouxe uma crescente dificuldade de estabelecer padrões
normativos, os imperativos de integração social, antes amalgamados pela tradição, não mais
encontravam, na modernidade, uma base que os conferisse validade. Os questionamentos daí
decorrentes levam Habermas a desenvolver a teoria da ação comunicativa e propor que uma
63
linguagem reconhecida e praticada intersubjetivamente, sob critérios públicos de
racionalidade, torna-se-ia apta a promover a integração social (HABERMAS, 1992).
A dificuldade fundamental dessa integração no contexto das sociedades tipicamente
modernas e, portanto, plurais, é a insuficiência dos processos de entendimento para regular as
múltiplas ações estratégicas emergentes com a dissolução da moral única de base religiosa,
mormente aquelas fomentadas pelos sistemas do dinheiro e do poder. Esses dois sistemas,
assim, sem as amarras da tradição e do sagrado, tornam-se autônomos em relação ao mundo
da vida e desenvolvem potencial que os permite, em tese, dominá-lo, ao que o autor chama de
colonização do mundo da vida (HABERMAS, 2003). O direito, embora possa também ser
objeto de colonização ou mesmo se prestar à colonização pretendida pelos outros dois
sistemas, surge para exercer o papel estabilizador antes exercido pelo compartilhamento de
convicções irrefletidas que favorecia o ordenamento das condutas.
Para Habermas a validade do direito não se sustenta em uma liberdade abstrata, tida
como qualidade apriorística de cada indivíduo, como pensava Kant. A validade do direito
surge de procedimentos juridicamente válidos, uma vez que precedidos de um consenso
racionalmente estabelecido. Nesse nível de arranjo institucional, os indivíduos, reconhecem-
se iguais, como seres de linguagem, e atribuem-se reciprocamente direitos de participação, de
modo que os enunciados e decisões resultantes do procedimento tornam-se aceitáveis por
cada participante.
A racionalidade da atribuição recíproca de direitos de participação no espaço público-
político resulta na sujeição de cada um dos participantes aos melhores argumentos aferidos no
debate. Isso garante que os integrantes da sociedade possam se reconhecer como autores e
destinatários do direito. Despido de dimensão axiologizada, os conteúdos, sempre
modificáveis, são traduzidos em enunciados normativos. Uma vez tornados compatíveis com
procedimentos racionais, o direito encontra uma de suas dimensões de validade, pertinente à
legitimidade.
A legitimidade, por sua vez, municia a dimensão da validade social, relativa à eficácia
do direito. Esta é aferida por meio da recepção fática das normas jurídicas pelos destinatários.
Nesse plano, o direito vale-se da possibilidade de sanção, a ser aplicada, sobretudo, pelo
aparato judicial, por meio do monopólio da força. Essa “faticidade artificial” consiste no
sucedâneo de formas de sociabilidade assentadas no sagrado e na tradição. Com a dissolução
das bases pré-modernas não problemáticas de integração social, a legitimidade dos
64
procedimentos destinados à produção de normas jurídicas, conjugada com a eficácia garantida
pela atuação do aparato coercitivo, passa a promover a coesão social.
A validade do direito, portanto, não mais se resolve em compreensões comuns
tradicionais. Fundamenta-se, antes, na suposição de legitimidade do ordenamento jurídico, na
medida em que ao destinatário não é dado recusá-la. A estrutura discursiva do procedimento,
em que se pressupõem partícipes voltados para o entendimento, faz dele também autor da
norma (HABERMAS, 2003).
O autor privilegia os aspectos normativos da sociedade e, embora a linguagem
desempenhe papel destacado nas formulações habermasianas, não se pode dizer que a isso
corresponda um enfoque propriamente hermenêutico, uma vez que ele não prioriza a
linguagem como texto, tão marcante na matriz hermenêutica. O que sobressai na teoria
discursiva é a linguagem como comunicação, nota que atribui considerável relevância para a
dimensão pragmática da linguagem jurídica. Ao destacar a constante tensão entre a faticidade
e a validade do direito, Habermas propõe a superação das premissas da filosofia da
consciência e da herança metafísica da moral ou do direito natural que prevalecia sobre o
direito positivo , a partir da compreensão de que “o direito positivo e a moral pós-
convencional desenvolveram-se cooriginariamente a partir das reservas da eticidade
substancial em decomposição” na modernidade. Da mesma forma, a conjugação entre
autonomia pública e privada dos cidadãos – membros sociais típicos de uma comunidade
constituída juridicamente – deve nortear o sistema de direitos que, assim, deve contemplar “os
direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram
regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo” (HABERMAS, 2003, p.
154).
É nesse ponto que o autor introduz o princípio da democracia que, como forma
institucionalizada do princípio do discurso, aparece como núcleo do sistema de direitos. Sua
incidência inicia-se pelas liberdades subjetivas de ação enfeixadas pela autonomia privada e,
em seguida, alcança a institucionalização jurídica das condições necessárias ao exercício
discursivo da autonomia pública que, por sua vez, retroalimenta a autonomia privada,
revestindo-a de forma jurídica. Esse ponto da teoria discursiva, juntamente com a formulação
dialógica da esfera pública como espaço de formação da opinião e da vontade política dos
cidadãos, será retomado no próximo capítulo.
65
3.2 O direito como sistema autopoiético para Niklas Luhmann
Como se viu, a teoria jurídica de Luhmann encontra pronunciada inspiração na teoria
dos sistemas de Talcott Parsons. A noção de “meios de comunicação simbolicamente
generalizados”62
tornou-se ainda mais fecunda pela perspectiva da vertente sistêmica
luhmanniana. Por outro lado, numa segunda fase de suas pesquisas, Luhmann abriu-se para as
propostas de um construtivismo abrangente (vide 2.1.1 supra). Nessa proposta, a que
Luhmann chamou de “construtivismo operativo”,63
o sistema é capaz de se auto-observar. Tal
observação é produtora de conhecimento e se dá em segunda ordem porque, ao passo que a
observação de primeira ordem analisa o mundo por meio de distinções, um observador de
segunda ordem percebe as distinções observadas na observação de primeira ordem.
Se é correto afirmar que a observação de primeira ordem agrega “segurança” ao
direito porque “elimina” incertezas e garante sua aplicação “eficaz”, não é menos adequada a
advertência de que o custo a ser pago por essa aparente tranquilidade elementar é a
impossibilidade de ver que tudo pode ser diferente. Isso implica que, em vez de assimilar a
realidade como invariável e determinada, a observação de segunda ordem percebe o real
como construção que se dá a partir de distinções. A realidade é, assim, contingente, dado que
o número de possibilidades de operações é infinitamente superior ao indicado pelo cotidiano
de um sistema.
Como explica Juan Antônio García Amado (1997, p. 188):
Essa maior radicalidade de Luhmann em explicar a realidade social como mera
articulação contingente de possibilidades é acrescida na última fase de sua obra.
Mudança fundamental decorrente da recepção das teorias de Varela e Maturana é a
ideia de que a autorreferência do sistema não se esgota na produção de suas
estruturas ou na circularidade de seus próprios elementos. Estes não são recebidos
pelo meio e “polidos” por estruturas constantes, mas são erigidos pela base
constitutiva dessas mesmas estruturas (Tradução livre).64
62
Essa expressão foi cunhada por Parsons para designar fenômenos como o que decorreu do advento da escrita,
quando a difusão da linguagem permitiu ultrapassar os limites estreitos da comunicação entre presentes. 63
Luhmann (2004, p. 78-79) discorda das teorias que buscam fundamentações para o direito que lhe sejam
exteriores porque “a identidade do direito não é dada por nenhum ideal estável, mas exclusivamente pelas
operações que produzem e reproduzem a especificidade peculiar do direito”, explicando que, para tanto, é
necessário que as operações sempre sejam específicas do próprio sistema jurídico, as quais possam ser
observadas de fora do sistema. Segundo o autor, isso, além de ser, por si só, uma implicação da tese do
fechamento operacional, na terminologia da teoria do conhecimento, é chamado de “construtivismo operativo”. 64
Esa mayor radicalidad de Luhmann a la hora de plantear la realidad social como mera articlación contingente
de possibilidades, se acrescienta en la última fase de su obra. El cambio fundamental que implica su asunción de
las teorias de Varela y Maturana es la idea de que la autorreferencia del sistema no se agora en la prodoucción de
sus estructuras o en la circularidad de sus operaciones, sino que se extiende a la constitución de sus próprios
elementos. Estos ya no son recibidos del médio y “pulidos” por unas estructuras constantes, sino que se erign em
base costitutiva de las mismas estructuras.
66
Até chegar a essa conclusão, o autor (AMADO, 1997, p.187-188) elenca os principais
pontos de dissenso entre Parsons e Luhmann. Segundo ele, Luhmann propõe nova dimensão
para a função de um sistema, reorientando sua compreensão para um “esquema regulativo de
sentido”, que permitiria inferir os “equivalentes funcionais” para a solução de cada problema
sistêmico. Dada sua pretensão desontologizadora, para Luhmann “os sistemas não existem
como substâncias, mas como seleção contingente e variável de possibilidades” (AMADO,
1997, p.186) incontáveis – de experiências e ações trazidas pela modernidade que superam
em muito a capacidade de assimilação dos sistemas.65
Talvez o dissenso mais relevante entre
Luhmann que também o afasta, nesse particular, da vertente sistêmica proposta por
Habermas e Parsons diga respeito à concepção de indivíduo. Em Parsons, indivíduo é o
agente social por excelência, sendo sua consciência o centro da autorreferência dos sistemas
sociais (AMADO, 1997, p.187). Para a matriz sistêmica luhmanniana, cada indivíduo
constitui um sistema, ao qual ele denomina de psíquico.
Não é certo afirmar que, em Luhmann, os sujeitos desaparecem para dar lugar à
autorreprodução dos sistemas. Na realidade cada sistema será o sujeito de si mesmo e para
si mesmo. O que desaparece é a ideia do sujeito individual, como centro de todo sistema.
Cada indivíduo é sujeito para si mesmo, para o sistema autorreferencial particular e próprio,
em que consiste sua consciência [...]. Mas não há nenhum sistema de sujeitos. Não há,
tampouco, sujeito (como consciência individual ou coletiva) de sistemas sociais (Tradução
livre).66
Com efeito, em Luhmann, a sociedade e seus subsistemas não se compõem de
indivíduos, mas de comunicações. Os indivíduos não fazem parte de um dos sistemas sociais,
mas sim de seu ambiente. Na visão construtivista, a integração total de um indivíduo a um
sistema implicaria prejuízos a sua identidade.
Diferentemente disso, o autor propõe que cada subsistema da sociedade inclua em sua
perspectiva todos os indivíduos, no que diz respeito à dimensão existencial que se
correlaciona à especificidade da função de cada subsistema social.67
Numa sociedade que se
65
Como o número de possibilidades de experiências e ações é infinitamente superior ao que pode ser realizado, a
escolha ou seleção de uma alternativa implica desprezar ou não escolher alternativa diversa. No caso do sistema
jurídico, ao se observar uma norma, deve-se analisar não somente o permitido, mas o proibido, e vice-versa.
Ocorre que a complexidade da modernidade induz à ideia de que campo ilimitado do mundo possível não é um
mundo real (SCHWARTZ, 2005, p. 68-69). 66
Ce n´est pas que chez Luhmann les sujets disparaissent pour laisser leur place à l´auto-déploiement des
systèmes. En réalité chaque système sera le sujet de lui-même et pour soi-même. Ce qui s‟estompe, c´est l idée
du sujet individuel, comme centre de tout système. Chaque individu est sujet pour lui-même, pour le système
auto-référentiel particulier et propre, en quoi consiste sa conscience [...]. Mais il n´y a aucun système de sujets. Il
n´y a pás non plus de sujet (em tant que conscience individuelle ou collective) des systèmes sociaux (AMADO,
1993, p. 126). 67
Por exemplo, o sistema de saúde estrutura suas comunicações a partir das demandas de todos os indivíduos em
relação às funções por ele desenvolvidas; o sistema jurídico deve ter em vista a necessidade de que todos os
67
estrutura sobre a base das relações entre sistemas, e não na relação entre indivíduos, cada
pessoa deve ter acesso a todos os subsistemas, pois um mesmo indivíduo é sujeito de direitos,
consumidor, eleitor, aluno, paciente etc. (AMADO, 1993, p.127).
Conforme explica Nafarrate (1998), na teoria sistêmica de Luhmann, a comunicação
ocorre entre sistemas sociais, ao passo que os homens atuam em seu sistema psíquico próprio
e individual. Como se afirmou em momento anterior deste estudo, a comunicação é precedida
de uma interação entre dois sujeitos pelo menos (dois sistemas psíquicos que interagem e
comunicam-se pela linguagem), daí por que a comunicação é intersistêmica.
Vale frisar: o homem não é uma realidade indiferente para o sistema jurídico, visto
que, estando em seu ambiente, é parte da já mencionada forma de dois lados que tem o direito
em seu lado interno. Cada pessoa é um constructo social. Em Luhmann (2004), o direito está
estruturalmente acoplado ao homem, como sistema psíquico, por meio da linguagem, o que
torna incabível a crítica no sentido de que o homem é excluído da sociedade. Ao contrário, se
o outro lado da forma não existir, nem sequer existirá sociedade. Assim, afirma Luhmann
(2004, p. 105):
Nós não cometeríamos o absurdo de propor que o direito exista sem a sociedade,
sem as pessoas, sem as condições físicas e químicas do nosso planeta. De toda
forma, as relações com o ambiente somente se processam na base da atividade interna do sistema, por intermédio da produção de suas próprias operações que se
tornam disponíveis apenas pela via dos elos recursivos os quais temos chamado de
fechamento (Tradução livre).68
Por outro lado, mesmo que se contraponha à ideia de que o ser humano ocupa o centro
da sociedade, conforme pensava Weber, Luhmann mantém o conceito de ação social como
decisão, de forma que os sistemas se movimentam a partir de suas decisões. A questão que se
coloca é que, na opção metodológica de Luhmann para descrever a sociedade, os sistemas é
que agem; os indivíduos, considerados em suas particularidades subjetivas, não os agentes por
excelência da ação social.
indivíduos tenham acesso à jurisdição e, assim, a todos os subsistemas sociais, conforme a função desempenhada
por cada um deles. 68
We are by no means making the absurd claim that Law exists without the society, without people, without the
special physical and chemical conditions on our planet. However, relations with such an environment can only
be established on the basis of the internal activity of the system, through executing its own operations, which
became available only through all those recursive links which we have called closure.
68
3.2.1 A função sistêmica do direito na sociedade contemporânea
Na evolução semântica dos conceitos encampada pela teoria sistêmica de Luhmann,
função não corresponde a determinada tarefa que uma parte deve cumprir em relação ao todo,
mas ao que atribui sentido a um sistema social. Assim, a função do sistema jurídico é que
orienta esse subsistema para a resolução de um problema específico da sociedade, a partir da
aplicação programática dos valores de seu código próprio (LUHMANN, 2004, p.193).
A noção de função do sistema jurídico,69
portanto, pode ser descrita sob duas
perspectivas diferentes: como função do subsistema como um todo, considerada em relação a
seu ambiente; como função do subsistema com outros subsistemas, como ocorre, por
exemplo, quando o sistema político elabora as leis que serão manejadas pelo sistema jurídico
no desempenho de sua função de promover a congruente generalização de expectativas
normativas. Assim, ao executar uma prestação que subsidia a atuação do sistema jurídico, o
sistema político funciona como um equivalente funcional do direito (LUHMANN, 1997,
p.93-94).
A partir da visão sistêmica de Luhmann (2004, p.148), o direito moderno deve,
primordialmente, ser capaz de promover a generalização congruente das expectativas
normativas e de assegurar a reestabilização intrassistêmica, ou seja: “Concretamente, ao
direito incumbe a função de estabilização das expectativas normativas pela regulação de como
elas são generalizadas nas suas dimensões temporal, factual e social” (Tradução livre).70
Essa função estabilizadora impõe que as expectativas que estruturam o sistema não
sejam individuais, daí a necessidade de generalização. A fixação normativa, todavia, opera a
generalização apenas na dimensão temporal, motivo por que é necessário que o mecanismo da
institucionalização de expectativas comportamentais seja ativado pelo sistema jurídico, a fim
de que a generalização se dê na dimensão social. Para tanto, o sistema jurídico vale-se do
contrato e do procedimento como formas de institucionalização de expectativas a partir de um
suposto consenso e, o que é mais importante, tendo em conta a necessidade de distribuir os
riscos ou o peso gerados pelas condutas contrárias às expectativas (LUHMANN, 2004,
p.159). Na dimensão factual ou material, o que se leva em conta é o conteúdo das
69
Na verdade, Luhmann (2004, p. 167-172) distingue função (function) de prestação (perfomance) do sistema
jurídico: quando o espectro de suas ações tem por referência os demais subsistemas que compõem o ambiente
intrassocial, o sistema jurídico oferece uma prestação que dele se pode esperar; somente quando atua tendo como
referência a sociedade (sistema social globalmente considerado) é que o sistema jurídico desempenha a função
para a qual se especializou. 70
Concretely, law deals with the function of the stabilization of normative expectations by regulation how they
are generalized in relation their temporal, factual and social dimensions.
69
expectativas, porquanto, para que haja generalização, é necessário que se alcance um nível de
abstração mínimo que permita a manutenção da constância – estabilidade – pretendida pelo
sistema jurídico. Em outras palavras, a generalização congruente das expectativas normativas
pelo sistema jurídico ocorre na dimensão temporal, por meio de imposição da sanção; na
dimensão social, pelo estabelecimento de procedimentos que possibilitem a tomada de
decisão; na dimensão material, pela utilização de programas condicionais71
de decisão ou
programas normativos. As frustrações, portanto, são absorvidas pelo direito por meio das
sanções; o consenso fictício sobre quais as expectativas serão jurídicas é o mecanismo
utilizado pelo direito para generalizar as expectativas na dimensão social, protegendo-as
contra aqueles que, eventualmente, não concordem. Por fim, as decisões a que os
procedimentos institucionalizados pretendem são obtidas pela aplicação de programas
condicionais que atuam a partir do esquema se/então.
Vale sublinhar que a generalização no âmbito material ou fático relaciona-se à função
imunizatória do sistema jurídico. Nesse caso, Luhmann traça um paralelo entre a função do
sistema imunológico do ser humano e o potencial imunizatório do sistema jurídico, de tal
sorte que ao direito compete impedir a dispersão e a propagação da anomia que lhe é
intrínseca e, assim, possibilitar o funcionamento dos sistemas sociais. A identificação do
sentido material da congruente generalização das expectativas normativas é essencial para que
o direito exerça sua função imunizatória. Para que isso ocorra, é necessária a atuação de um
terceiro observador que identificará o sentido material da expectativa normativa, como ocorre
quando a questão é levada para decisão pelo Poder Judiciário.
Desse modo, as expectativas normativas são fixadas quando dotadas dessa tripla
generalização capaz de delimitar o campo das expectativas normativas que se tornarão
jurídicas. Em outras palavras, as expectativas normativas tornam-se jurídicas quando
selecionadas pela estrutura jurídica, o que ocorre com a institucionalização e submissão
dessas expectativas a programas decisionais.
Para Luhmann, a única função que pode ser vista como típica do sistema jurídico é a
manutenção das expectativas apesar das frustrações. Segundo ele, nenhum outro sistema
pode disputar com o jurídico a primazia no exercício dessa função estabilizadora das
71
Os programas decisionais condicionais ou normativos compõem a estrutura do sistema jurídico e possibilitam
a aplicação do código binário próprio do direito (lícito/ilícito) às situações que lhe são postas. Tais programas
apresentam-se sob a forma de leis, regulamentos, contratos etc.; por isso, podem ser entendidos como
“programas de condicionalidades” que regem a introdução dos estímulos ou informações provenientes do
ambiente no sistema jurídico por meio do esquema se/então (LUHMANN, 2004, p. 111). Assim, eles
possibilitam a combinação entre fechamento operativo (ou normativo) e abertura cognitiva; entre autorreferência
e heterorreferência. A questão será retomada no próximo tópico.
70
expectativas sociais de comportamento. Tal não ocorre porque as normas jurídicas
posicionam-se mais proximamente à natureza humana que as outras normas; ao contrário, é o
fechamento operacional do direito que permite que as normas se tornem mais consistentes e,
além disso, mais estáveis que num sistema de normas baseado no que possa ser tido como
“normal”, “natural” ou “ético” (LUHMANN, 2004, p.152). Esse aperfeiçoamento sistêmico
conduziu, pela via da evolução da sociedade, à produção de normas complexas e estáveis que
contemplam as operações dos outros sistemas.72
Todavia, para que o direito seja capaz de manter estáveis as expectativas, necessário
haver condições, tanto externas quanto internas, que lhe permitam dar conta de sua função.
Internamente, a habilidade do direito de desenvolver normas complexas e consistentes
demanda que o sistema desenvolva um subsistema “produtor de decisões”, manejado por
juristas, aos quais incumbe a peculiar tarefa de atribuir consistência às expectativas
normativas por meio da prolação de decisões jurídicas. Já os fatores externos incluem a
necessidade de administrar o dissenso, ao que Luhmann associa a dimensão social do sistema
jurídico, que contrasta com sua dimensão temporal. Esta, por sua vez, frise-se, diz respeito à
manutenção do significado comunicacional das expectativas normativas ao longo do tempo. A
dimensão social pode ser compreendida pela generalização das expectativas a serem
protegidas pelo direito, visto que o gerenciamento do dissenso então produzido é função típica
da política ou da ética (LUHMANN, 2004, p.158-159).
Conquanto Luhmann veja significativa relevância na coercibilidade do sistema
jurídico para o exercício de sua habilidade para estabilizar expectativas em face dos
desapontamentos, é na densidade das comunicações jurídicas e na extensa rede que essas
operações abrangem que reside o potencial estabilizador do sistema jurídico em face dos
consideráveis níveis de desapontamento. Como exemplo disso, cita-se a existência de
expectativas no sentido de que ladrões sejam capturados, processados e punidos, o que já
estabiliza expectativas representadas pelo direito, mesmo que nem todos os criminosos sejam
punidos. A exigência mínima é de que as pessoas não se sintam tolas por terem expectativas
baseadas no direito, razão por que este deve ostentar alto nível de imposição. Vale dizer: caso
o direito não demonstre grande capacidade de se impor, as frustrações podem fazer com que
72
Nesse ponto, Luhmann (2004, p.153) enfatiza que é tamanha a superioridade do direito no que diz respeito à
sua habilidade para manter as normas estáveis e consistentes, que, quando se deseja estabilizar normas éticas,
opta-se por inseri-las dentro do sistema jurídico. Teubner (1996, p.51), partindo das ponderações de Luhmann,
direciona severas críticas a esse processo de juridicização do mundo, que deteriora o ambiente pela
burocratização. Segundo ele, o que na Antiguidade era considerado uma busca heroica pela justiça, sintetizada
no brocardo fiat justitia, pereat mundus, transformou-se em “poluição jurídica”, uma espécie de poluição do
mundo pelo direito em decorrência do desenfreado processo de juridicização.
71
as expectativas normativas tornem-se cognitivas, e a expectativa generalizada de “crença” na
sua funcionalidade poderá se tornar letra morta. Tal entendimento é uma parte da
compreensão geral de que o direito pode orientar o comportamento humano: motivando as
pessoas a obedecerem à lei e fazendo com que aprendam a partir das punições (LUHMANN,
2004, p.137).
Todavia, se o direito contribui para regular condutas e equacionar conflitos, ou ainda,
como entende Habermas (1997, p. 51), se ele exerce o papel de integração social, em
Luhmann (2004, p.100 e p. 143) essa não é a descrição adequada de sua contribuição
funcional específica, mesmo porque orientar condutas é uma prestação que pode ser oferecida
pelos sistemas da religião ou da moral.
Para Luhmann (2004, p. 151), as motivações que levam o indivíduo a agir conforme
as expectativas normativas não são objeto de maiores reflexões teóricas, pois elas pouco
repercutem na função a ser desempenhada pelo direito. Vale frisar: não são essas motivações
que possibilitarão ao direito desempenhar sua função, que é estabilizar as expectativas
mediante mecanismos que possibilitem sua congruente generalização nas três dimensões de
sentido: a sanção (dimensão temporal); os procedimentos (dimensão social) e os programas
normativos de decisão (dimensão factual ou material).
Por outro lado, a negação ou a mitigação da função regulatória do direito como
sistema autopoiético é algo problematizado por outros autores como Jürgen Habermas e
Gunther Teubner. A questão que se coloca é a seguinte: se o sistema jurídico é
autorreferencial, ele não pode regular ou controlar outros subsistemas sociais, da mesma
forma que os outros subsistemas também não podem controlá-lo. A crítica sustenta-se,
portanto, no fato de que a função regulatória do direito, em Luhmann, é exercida de modo
metafórico (HABERMAS, 1997, p.71) ou indireto (TEUBNER, 1996, p.76) porque as
intervenções do sistema jurídico nos outros subsistemas sociais são entendidas por Luhmann
como meras observações. Essas afirmações equivalem a dizer: se o direito pretendesse intervir
na economia, ele construiria internamente uma perspectiva específica para tanto e demandaria
uma programação normativa compatível, uma vez que lhe falta acesso direto ao que seja
economia.
Todavia, a conjugação entre fechamento operacional ou normativo do sistema e
abertura do direito aos aspectos cognitivos do ambiente, na visão de Luhmann, permitiria, na
hipótese dada, que os fatores provenientes do sistema econômico, quando pertinentes,
ingressassem no sistema jurídico depois de traduzidos pela codificação jurídica específica.
72
Além disso, como os sistemas são ambientes uns para os outros, a questão seria solucionada
pela relação sistema/ambiente, em razão do que Luhmann (1996a, p. 97) utiliza o conceito de
acoplamento estrutural, originalmente formulado por Humberto Maturana, por meio do qual
seria possível compreender como o direito é capaz de se relacionar com os outros sistemas
funcionais.
3.2.2 Fechamento operacional e abertura cognitiva: a validade do sistema jurídico
Para que se compreenda a proposta sistêmica de Luhmann relativamente ao direito, é
imprescindível que se aprofunde no exame do fechamento operacional do sistema jurídico e
de sua consequente abertura cognitiva, para, em seguida, correlacionar essas premissas com a
incidência do código binário e do programa decisional, por meio dos quais são realizadas as
operações no interior do sistema jurídico.
Nas palavras de Luhmann (2004, p. 10):
Todos os sistemas estabelecem códigos para o ambiente e todos os sistemas
estabilizam este código desenvolvendo programas ou estruturas para sua aplicação.
Mas enquanto o código é essencial à existência continuada do sistema [...], o
conteúdo destes programas é contingente (Tradução livre).73
Na concepção sistêmica luhmanniana, o grande equívoco de várias teorias jurídicas da
modernidade é que elas tratam a contingência da programação do direito como algo que lhe é
vinculado substancialmente. Explica o autor que a rejeição da coerção moral na qual pode se
constituir um direito válido é o modo como as teorias jurídicas de matiz positivista pretendem
fundar o direito em contraposição às teorias que encontram sua fundamentação no direito
natural. As teorias inspiradas no positivismo jurídico tentam identificar em estruturas externas
ao sistema premissas que estabilizam aquilo que pode tornar o direito válido: “como o
soberano em Austin, a regra do reconhecimento de Hart e, em Kelsen, a primeira constituição
validada por uma norma fundamental básica” (LUHMANN, 2004, p.10). Segundo o autor,
essas teorias74
nada mais são do que tentativas de dissolver o paradoxo gerado pela
73
All systems code their environment, and all systems stabilize this coding by developing programmes
(structures) for the application of the code. But while the code is essential to the continued existence of the
system […], the content of these programmes is contingent. 74
Juliana Magalhães Neuenschwander (2002, p. 149-150) inclui a teoria hermenêutica, de Dworkin, e a teoria da
argumentação, de Alexy, entre aquelas que tentam, mais uma vez, ocultar o paradoxo fundante do direito, qual
seja: “o direito que o direito tem de dizer o que é e o que não é direito”, a partir da ideia de projetá-lo para o
futuro, de modo que o direito seria orientado por suas consequências. No caso da teoria de Dworkin, sobressai,
ainda, o fato de que o direito encontra sua fundamentação numa principiologia que lhe é extrínseca: algo que não
é direito diz o que é o direito. Guardadas as proporções, esse novo paradoxo equivale a uma reinvenção da
73
contingência de programas normativos do direito e, ao mesmo tempo, de evitar a circularidade
contingente. A influência do positivismo jurídico nas construções teóricas, desde Austin, fez
com que seus teóricos buscassem em estruturas externas ao direito as premissas para
estabelecer seu conteúdo.75
Os tipos particulares de comunicação são identificados como jurídicos porque têm
algum tipo de relacionamento significativo (lógico, semântico, racional etc.) com
uma estrutura preexistente. Austin confia na aplicação não arbitrária ou consistente
da força política (pelo soberano). A regra do reconhecimento de Hart é uma
estrutura externa para o direito válido: regra que estabelece o que pode ser uma regra
de direito não é, em si, uma regra de direito. A regra do reconhecimento de Hart é
uma não regra do sistema como um todo [...]. A fonte próxima de validez em
Kelsen, a norma fundamental, está fora do sistema jurídico, mas ao mesmo tempo
igualmente ligada a cada norma do sistema como uma ficção pressuposta. A
estabilidade oferecida por estas estruturas mereceu críticas em razão de sua forma
circular76
(Tradução livre).
Juliana Neuenschwander Magalhães (2002, p.141), referindo-se à hermenêutica
jurídica de Dworkin, acrescenta que, ao tentar superar a zona de imprecisão linguística
visualizada por Kelsen e Hart e, via de consequência, propugnar pela resposta correta a ser
encontrada na prática interpretativa, ele desenvolve sua teoria assentada sobre princípios que
são entendidos, a um só tempo, como filosofia do direito e filosofia política. A questão
colocada pela autora (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2002, p.141) remete à nova
tentativa de ocultação do paradoxo constituinte do direito, que, na observação sistêmica,
inevitavelmente vem à tona:
Os princípios não existem no sistema, porque são criados pelo juiz, mas uma vez
que são criados pelo juiz, existem no sistema. O juiz é o sistema? O sistema é
resultado da interpretação do juiz? Os juízes não criam o direito, porque interpretam
o direito aplicando seus princípios gerais (assim diria Dworkin); mas criam o direito,
quando o aplicam tendo em vista determinadas consequências porque nem todas elas
e, portanto, nem todos os princípios podem ser previstos pelo direito.
norma fundamental de Kelsen ou da regra de reconhecimento em Hart, pois, embora estranhas ao direito, são
capazes de atribuir-lhe fundamentação. 75
O autor explica que essa solução gera dificuldades para a resposta a algumas perguntas elementares para a
contextualização do sistema jurídico nas sociedades modernas: se se aceita que o direito pode ter qualquer
conteúdo substantivo, o que estabelece o que pode ser direito? Ter-se-ia que concluir que o direito decide o que
pode ser direito? Se se admitir essa conclusão, envolve-se no paradoxo? Como pode algo decidir o direito, sendo
ao mesmo tempo o direito? Como pode tal coisa ser interna e exterior ao mesmo tempo? 76
Particular kinds of communications are identified as legal because they have some kind of meaningful (logical,
rational, semantic, etc.) relationship with a pre-existing structure. Austin relies on the consistent (non-arbitrary)
application of political force (by sovereign). Hart´s rule of recognition is a structure that is subtly external to
valid law: the rule that establishes what can be a rule of law cannot itself be a rule of law. Hart´s rule of
recognition is not a rule of the system at all […]. Kelsen´s source of validity, the basic norm, is outside the legal
system in terms of fact, but at the same also linked to each norm of the system as a presupposed fiction. The
stability offered by these structures has been subject to sustained criticism pointing to their circularity (Luhmann,
2004, p. 10).
74
Mais uma vez, a teoria jurídica furta-se ao enfrentamento do paradoxo do fundamento
de validade do sistema jurídico buscando bases que lhe são externas. É a partir dessa
observação e pelo esforço de evitar a ocultação de paradoxos que o fechamento operacional
do sistema jurídico proposto por Luhmann – e a característica de autopoiese que ele
proporciona – torna-se capaz de oferecer uma base mais científica para a positividade do
direito em virtude da “identidade sob condições de contingência”. A partir das condições de
seu fechamento operacional, o direito adquire condições de per si para identificar o que é
direito e serve de base ao exercício de seu potencial autopoiético que garante sua
autocontinuação diferenciada. Por outro lado, ao se manter cognitivamente aberto aos fatores
do meio, o direito consegue coordenar esse processo com sua relação com o ambiente.
Segundo Luhmann (apud NEVES, 2007, p.136), resulta daí a relação entre conceito e
interesse na reprodução do direito positivo: a autorreferência é assimilada pelo direito a partir
de conceitos, ao passo que a heterorreferência é equacionada pela consideração dos interesses.
Assim:
A vigência das expectativas normativas não é determinada imediatamente por
interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por
proposições científicas, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual
no interior do sistema jurídico. A capacidade de aprendizagem (dimensão
cognitivamente aberta) do direito positivo possibilita que ele se altere para se
adaptar ao ambiente complexo e “veloz”. O fechamento normativo impede a
confusão entre sistema jurídico e seu ambiente, exige a “digitalização” interna de
informações provenientes do ambiente (NEVES, 2007, p.136-137).
Nesse contexto, os programas normativos organizados condicionalmente (se/então)
compõem a estrutura do sistema jurídico e atribuem significação ao código binário. Isto é, se
o código lícito/ilícito é essencial à individualização do sistema jurídico, cabe à programação
decisional possibilitar ao sistema que seu fechamento operacional ou normativo não impeça a
abertura cognitiva aos fatores ou às “irritações” do ambiente. Dito de outro modo: é o
programa normativo que, a partir da codificação negativa ou positiva, faz com que o sistema
jurídico assimile as informações tomadas do ambiente. Nesse contexto, o programa normativo
funciona como uma forma particular de operação jurídica: uma observação baseada numa
distinção.
Como visto anteriormente, o sistema jurídico se organiza e orienta suas operações
internas a partir do código binário lícito/ilícito, ou seja, o direito se auto-observa somente pelo
seu próprio código. Essa auto-observação, em Luhmann, é estruturada pela necessidade de se
identificar o que está conectado – sobre o que pode se dizer seja igual ou diferente – com o
código anterior. A conjugação entre o código e os programas normativos é o que orienta as
75
operações ocorridas no interior do sistema jurídico. Porém, conquanto os programas
promovam estabilização, sua própria existência é contingente no que diz respeito à sua
habilidade para conectar operações (decisões jurídicas) sob um mesmo código (LUHMANN,
2004, p.80-81).
Portanto, diferentemente do que apregoam as teorias normativistas ou hermenêuticas,
não há nada fora do sistema jurídico que possa lhe atribuir validade. Os programas decisionais
do direito são produzidos por ele próprio, pela auto-observação de seu código precedente, em
razão do que se repudia tanto a perspectiva hierárquica – incorporada na norma fundamental
de Kelsen ou na regra do reconhecimento de Hart, que opera no plano gnosiológico como
critério de pedigree para o direito – quanto a perspectiva de uma principiologia que antecede
o próprio direito, como propõe Dworkin. As estruturas não são preexistentes e determinantes
do que possa ser a comunicação jurídica; diversamente, são fatores que possibilitam a
estabilização do sistema, passíveis de modificação e sobre os quais incide a binariedade do
código. Em outras palavras: as estruturas podem ser constituídas pelo que elas estabilizam.
Disso decorre a unidade do sistema, bem como o modo pelo qual o código próprio do direito
contribui para trazer o paradoxo à tona e, ao mesmo tempo, afastar seu efeito paralisante.
Conforme expressa Luhmann (1994, p.17):
A unidade, que há de ser determinada somente mediante uma distinção, não pode
distinguir-se da própria distinção. Isto equivaleria a pedir ao direito (ou não direito) a distinguir entre o que é direito e o que não é. Não obstante, é precisamente neste
paradoxo que se baseiam todos os sistemas autorreferentes, não o convertendo,
porém, em objeto de suas próprias operações. 'Summum ius, summa iniuria',
poder-se-ia exclamar como grito desesperado porém, precisamente no sentido de que este princípio não pode ser introduzido no sistema como diretiva, muito embora
sistema se baseie exatamente nele. O paradoxo não é nenhuma contradição e, por
isso, tampouco a promessa de uma síntese da 'dialética' conduz mais longe. O
paradoxo não afirma: jurídico igual a antijurídico, mas sim, jurídico por causa de
antijurídico Este problema escapa a todo nivelamento lógico. Pode, entretanto, ser
desparadoxalizado por meio da codificação sistêmica.
A premissa do fechamento operacional não é a de que cada comunicação que pode ser
reconhecida como jurídica seja conhecida com absoluta certeza de um momento para outro. A
teoria é proposta sob o enfoque da redução de complexidade: a escala de comunicações que
pode ser conectada a outras comunicações jurídicas a cada momento é limitada pela
necessidade de se estabelecer essa conexão. O direito apenas existe no presente se as
conexões entre seus processos comunicativos internos puderem ser consideradas no momento
de sua aplicação. Com efeito, para que um sistema altamente complexo como o direito
possa existir, milhões de processos comunicativos devem ser reconhecidos como jurídicos
76
num determinado momento, num processo de atualização de sua potencialidade. Para
Luhmann (2004), o direito existente é um sistema composto por estruturas de estabilização
capazes de estabelecer conexões entre si (conectar suas próprias comunicações umas às
outras). Dessa perspectiva, a auto-observação do direito, por meio de seus programas
normativos, é, ao mesmo tempo, estável e contingente.
A cadeia de comunicações que as decisões jurídicas constroem no interior do sistema
jurídico é imprescindível para o surgimento daquilo que Luhmann (1994, p. 26) denomina de
mecanismo de consistência. Tal mecanismo permite “calibrar” as operações e manter o
sistema atualizado, unificado e diferenciado de seu entorno. Assim, embora as decisões sejam
diversas e ocorram em momentos diferentes, o sistema repete-se por meio de seu círculo
autorreferencial (LUHMANN, 2004, p.90). É preciso que se reconheçam tais operações como
reiteradas; para tanto, necessário saber identificá-las. Representativo dessa ideia é o
julgamento – observação – de casos jurídicos baseado em outros, já julgados por outros
observadores – que são agora observados.
Além disso, para se autoestabilizar, o direito não apenas gera auto-observação, mas
também autodescrição, uma vez que pode construir referências sobre si mesmo como uma
unidade. Assim, na teoria do delito, é comum encontrarem-se referências à constituição. A
teoria do direito constitucional é uma auto-observação ou, mais especificamente, representa o
momento da reflexão no modelo autopoiético luhmanniano sobre uma estrutura em que se
estabiliza o processo de modificação do direito. Observar essas várias auto-observações leva à
generalização de descrições do sistema jurídico como tal: seus valores, funções, papéis e
limites. Porém, essas autodescrições não fornecem um modo de identificação do que pode ser
jurídico. As possibilidades de conexão dentro do sistema jurídico apenas existem pela via da
evolução daquele sistema e, enquanto ele é estabilizado pela auto-observação e autodescrição,
sua evolução é determinada pelas inúmeras comunicações realizadas a cada momento
(LUHMANN, 2004, p. 195-196).77
Se o direito não se mantém estável em virtude de se ater a alguma ideia ou regra
fundamental, qual é o status dos valores que são encontrados dentro de sua autodescrição?
Justiça, igualdade, estado de direito? Na teoria sistêmica, valores vindos de fora não adentram
o sistema jurídico para estabilizar suas operações. Eles existem internamente, gerados pelas
operações do próprio direito. O primeiro desses valores é a validade, que não se encerra num
77
Essas comunicações não se limitam à instância judicial ou aos atores do sistema jurídico geralmente
considerados. Elas ocorrem onde quer que se dê a operação – ato comunicativo – que se conecte às
comunicações tipicamente jurídicas. Nada obstante, as decisões jurídicas são, a rigor, o cerne da autorreferência
do sistema.
77
direito que ostenta legitimidade política ou moral, como na teoria do direito natural e na
prática das sociedades menos diferenciadas, onde os sistemas não alcançavam o fechamento
operacional. A validade do sistema jurídico está na conexão entre uma e outra comunicação
jurídica, o que lhe garante a unidade. Assim é que somente as comunicações reconhecidas
como jurídicas pelo sistema jurídico são válidas; caso contrário, não. Não há valor ou teste de
validez fora do próprio sistema. E a validade do sistema como um todo não é nada mais que
sua capacidade de interconectar, no âmbito interno, todos os novos processos comunicativos
do próprio sistema (LUHMANN, 2004, p. 129). É a partir dessas considerações que o autor
chega à concepção de consistência e redundância, que estão no cerne dos processos
decisórios do sistema jurídico.
Com efeito, a norma aplicável ao caso posto para decisão é selecionada a partir de sua
congruência com outras soluções no interior do sistema, ao que Luhmann designa de
consistência. É em razão da observação da consistência das decisões que a continuidade
operativa do sistema torna-se possível e é assegurada por meio da redundância que controla o
nível de variabilidade das decisões, pois é construída com base em argumentos (LUHMANN,
1994, p. 21).
Por ora, entretanto, é suficiente que se tenha claro que, se o código binário é condição
para o fechamento operacional do direito, a abertura cognitiva desse sistema é, igualmente,
imprescindível para que ele dê continuidade aos processos de auto-observação e autodescrição
e, por conseguinte, continue se autorreproduzindo de modo operativamente hermético. É por
meio da abertura cognitiva que o direito “aprende” e se renova. Como o sistema jurídico
opera simultaneamente sob premissas cognitivas e normativas, ora ele está disposto a
aprender, ora se mantém alheio a qualquer aprendizado, mantendo sua diferenciação em
relação ao ambiente.
Assim, conforme Luhmann (1994, p. 18):
O estrito hermetismo recursivo do sistema, que corresponde sociologicamente à
diferenciação social de um sistema funcional para o direito, significa que não pode haver nem input normativo, nem output normativo. O direito não pode importar as
normas jurídicas de um ambiente social (não existe nenhum "direito natural"),
tampouco pode dar normas a este ambiente (as normas jurídicas não podem valer
como direito fora do direito). A normatividade é o modo interno de trabalhar do
direito, e sua função social consiste, precisamente, em que cumpra a missão de
disponibilidade e modificação do direito para a sociedade. Todo contato do sistema
jurídico com o ambiente deve, portanto, utilizar uma forma diversa de expectativa.
Toda orientação do direito com relação ao seu ambiente utiliza a cognição. Quer
dizer, baseia-se em expectativas que se modificam em caso de desilusão. Em total
contraposição com a atividade normativa, a atitude cognoscitiva está disposta a
aprender. [...] Na medida em que semelhantes esquemas de aprendizagem possam
ser desenvolvidos, também o direito poderá aprender e adaptar-se ao seu ambiente.
78
[...] É um sistema fechado e aberto: é fechado por que é aberto e aberto por que é
fechado.78
Luhmann explica que essa combinação entrelaçada entre “reprodução fechada e
orientação ambiental aberta”, ou seja, entre expectativas normativas e cognitivas, torna -se
possível porque o sistema jurídico dispõe de duas formas de comunicação: decisões e
argumentos.
É nesse ponto da teoria sistêmica de Luhmann que o autor explicita a função dos
programas normativos para o sistema jurídico: o programa decisional, que rege a aplicação do
código lícito/ilícito, é necessário para que a capacidade de aprendizagem do sistema seja
integrada em suas operações. Os programas são estruturas sistêmicas que, no caso do direito,
dão consistência ao valor positivo (lícito) ou negativo (ilícito) do código: como o sistema está
cognitivamente aberto para aprender sobre o ambiente ou sobre operações de outros sistemas;
apenas atribuir valor negativo ou positivo ao que se aprende não é suficiente; é preciso que
esse “valor” extrínseco ao direito seja traduzido para a “linguagem” jurídica. No âmbito do
direito penal, o papel desempenhado pelos programas é facilmente observado: “A” matou “B”
a aplicação do programa condicional que, em regra, será utilizado pelo sistema jurídico
acarretará a seguinte leitura: se “A” matou “B”, então A deve sofrer a pena “C”, que será
aplicada a partir de critérios específicos. Indo um pouco além, nesse mesmo exemplo, o
evento morte pode ter sido produzido mediante pagamento de “D” a “A”; logo, o programa
irá direcionar a aplicação do código para essas circunstâncias, as quais, do ponto de vista
normativo, tornam-se penalmente relevantes, ampliando o âmbito de incidência da norma
penal para alcançar “D” como coautor do crime, assim como para aumentar a pena a ser
aplicada a ambos, uma vez que o evento “pagar ou receber vantagem econômica para matar
alguém” é lido pelo programa como uma qualificadora. Portanto, o programa decisional típico
do sistema jurídico é condicional, pois as consequências de sua aplicação vão decorrer das
circunstâncias para tanto relevantes. Todavia, como adverte Neves (2008, p.94), em razão do
acoplamento estrutural entre direito e política, o sistema jurídico eventualmente vale-se de
programas finalísticos na atividade de controle do poder.
78
Segundo Luhmann (1994), abertura e não abertura não supõem uma contradição, pois não estão definidas
como relação que se exclui mutuamente; diversamente, o paradoxo constituinte do direito é reformulado, em vez
de dissimulado por outras construções teóricas. A questão por ele apontada coloca-se dessa forma: qual o modo
como o sistema pode combinar aprendizagem e não-aprendizagem, no sentido de uma relação de mútuo
incremento e, por meio disto, adaptar-se à evolução social? A resposta, segundo o autor, seria: mediante a
combinação de fechamento operacional e abertura cognitiva.
79
3.3 Reflexividade e direito: a contribuição de Gunther Teubner
Nesta apresentação das linhas gerais da teoria autopoiética de Gunther Teubner
aplicada ao direito, serão analisados os pontos de convergência entre essa linha de
pensamento e as propostas por Habermas e Luhmann, a fim de se reunirem subsídios teóricos
suficientes à análise das interrelações sistêmicas entre direito, política e economia, que se dará
ao longo deste estudo.
O modelo proposto por Teubner parte de duas perspectivas diversas, uma vez que
conjuga uma proposta de aprofundamento na noção de autopoiese do direito com a
incorporação de elementos sociais e políticos como variáveis historicistas consideradas na
análise do fenômeno jurídico na sociedade, em especial, o crescente processo de
“juridificação” das relações sociais, ao qual o autor dispensa significativa preocupação.
Pode-se dizer que o direito reflexivo proposto por Teubner recorre a fontes teóricas
distintas: a teoria do direito responsivo, formulada por Phillipe Nonet e Philip Selznick,79
segundo a qual as tendências antiformais do direito contemporâneo são explicadas a partir da
crise interna do formalismo jurídico, e as teorias de Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, que
fornecem variáveis sociais externas ao sistema jurídico, contribuindo para a compreensão da
crise da racionalidade do direito – entre a formalização e a materialização – conhecida desde
Max Weber (TEUBNER, 1996, p. 4).
O autor segue explicando que, embora sejam modelos teóricos distintos entre si, têm
em comum o fato de buscar respostas às perguntas lançadas por Weber: Como o direito
reagirá à crise de sua racionalidade específica, a racionalidade formal? Quais as repercussões
dessa crise e quais as eventuais possibilidades de mitigá-la ou gerenciá-la?
Enquanto Nonet e Selznick trabalham sob a perspectiva interna do direito, Habermas e
Luhmann buscam perspectivas sociais para enfrentar a questão. Habermas considera que a
racionalidade formal do direito está ligada a uma crise geral de legitimidade do capitalismo
organizado e, para superá-la, deve-se institucionalizar a razão comunicativa da normatividade
79
Segundo Teubner, esses autores propõem um modelo em que a dinâmica interna do direito como instituição
social, antes de chegar ao direito responsivo, passou pelas etapas evolucionárias do direito repressivo e do direito
autônomo. Como etapa de um desenvolvimento mais elementar, o direito repressivo orienta-se pela legitimação
da dominação política e pela manutenção da ordem; o direito autônomo, que ostenta maior diferenciação em
relação à política e, em razão disso, mobiliza-se em torno do controle do poder e pela manutenção de sua própria
integridade. Ocorre que, na visão de Nonet e Selznick, as contradições internas e a crise desse tipo de direito
eminentemente moderno criaram espaço para o surgimento do direito responsivo, mais flexível, dotado de
capacidade de aprendizagem e sensibilidade para responder às necessidades sociais e às aspirações humanas.
80
e, assim, transformar as estruturas da sociedade em geral. Luhmann, de sua parte, atribui as
tendências de crise do direito formal ao baixo nível de diferenciação funcional da sociedade e
indica que a maior autonomia do direito pode contribuir para gerenciá-la.
Segundo Teubner (1996, p. 40), de um lado, a reflexão dos subsistemas sociais supõe
os processos de democratização e produção das estruturas discursivas e, de outro, a função
primária da democratização não é o crescimento da participação dos indivíduos nos processos
de tomada de decisão, tampouco a neutralização do poder. O que se pretende é a introdução
de mecanismos que incrementem a capacidade de reflexão intrassistêmica sobre a identidade
social. Assim, Teubner encontra um ponto convergente entre os autores referenciados na
distinção entre função, prestação e reflexão, possibilitando que o direito estabeleça limites à
própria projeção de sua juridicidade. A função do direito, então, consiste em colocar à
disposição da sociedade estruturas normativas, assumindo a forma de expectativas
congruentes e generalizáveis. A prestação que se pode esperar dele é que regule os conflitos
surgidos nos outros subsistemas sociais e que não encontrem possibilidade de resolução no
âmbito intrassistêmico.
Todavia, há tensão entre a função do sistema jurídico e a prestação que ele oferece à
sociedade. Isso porque, algumas vezes, a generalização congruente de expectativas
normativas não é suficiente para fornecer as regras que permitem a solução concreta de
conflitos. Ao contrário, ao solucionar os conflitos, o sistema jurídico acaba por desenvolver
regras que escapam à generalização congruente. É justamente nesse ponto – em que há
aparente contradição – que a reflexão desempenha seu papel: na medida em que impõe limites
às capacidades internas do sistema jurídico, a tensão entre a prestação e a função do direito é
atenuada. Em termos mais concretos, Teubner (1996, p.43) propõe que a reflexão leve ao
redimensionamento do papel do direito – tanto em termos de função quanto de prestação a ser
oferecida para a sociedade –, cujos limites foram influenciados pela postura intervencionista
do Estado Social, que lhe atribuiu carga regulatória incompatível com a complexidade do
sistema social global contemporâneo e com a perspectiva da diferenciação funcional trazida
por Luhmann.
Para Teubner, ao direito autolimitado pela reflexividade cabe tão-somente estabelecer,
corrigir e redefinir os mecanismos democráticos da autorregulação. Portanto, o direito deve
afastar de si a assunção de responsabilidades genéricas quanto aos resultados sociais de sua
atuação: “A reflexividade caracterizará de sua parte os meios técnicos de que ela se servirá
81
para alcançar esse fim. No sistema jurídico, apenas se definirão as premissas da decisão, sem
se apegar à decisão efetivamente” (Tradução livre). 80
Nascido da conjugação dessas vertentes teóricas, o direito reflexivo pretende ser
capaz de contrabalançar e confrontar os limites internos de sua racionalidade formal com as
exigências estruturais e funcionais da sociedade pós-moderna, por meio de uma racionalidade
reflexiva (TEUBNER, 1996, p. 16).
Tal ocorre porque, se a racionalidade formal esteve atrelada à postura do direito
tipicamente liberal e se a racionalidade material surgiu em decorrência das demandas de
materialização do direito típicas do Estado Social, ao “Estado pós-Social” deve corresponder
uma racionalidade reflexiva. Por meio dessa semântica, Teubner propõe uma racionalidade
capaz de apreender os três tipos de racionalidade jurídica da contemporaneidade, que se
apresentam na dimensão interna do direito, na dimensão normativa e na dimensão sistêmica.
No âmbito da racionalidade interna, exige-se que a racionalidade reflexiva seja orientada
procedimentalmente, ou seja, que priorize as regras de organização e de competência. Já na
dimensão normativa, a racionalidade dita reflexiva deve funcionar como facilitadora da
resolução dos conflitos, privilegiando a regulação indireta e abstrata da autorregulação social.
Por fim, na esfera sistêmica, espera-se que a racionalidade reflexiva cumpra uma função que
contribua para a integração entre as premissas jurídicas de procedimentos e as
organizacionais, assim como no que diz respeito aos processos de reflexão desencadeados no
seio de seus sistemas sociais.
Portanto, o direito reflexivo, na formulação de Teubner (1996), propõe o
fortalecimento da institucionalização dos procedimentos, contribuindo para uma integração
descentralizada entre os sistemas jurídico e político e a sociedade, em sentido estrito, de sorte
que as normas jurídicas não emanariam propriamente do Estado, mas de vozes múltiplas, que
representam as mais diversas esferas sociais.
Conforme a perspectiva de Teubner, o sistema jurídico considera a si próprio um
subsistema dentro de um ambiente e admite os limites de sua capacidade de regulação dos
outros subsistemas sociais. Assim (TEUBNER, 1996, p.vii):
O procedimento reflexivo será então o lugar em que ocorrerá a intermediação entre
os diferentes sistemas envolvidos na função normativa: o sistema político, que
define os objetivos, o sistema jurídico, que enuncia as normas, e os sistemas sociais
nos quais se dá a busca pela democratização. Entre esses três tipos de sistemas, que
80
La reflexivité caracterserait por leur part lês moyens techniques dont il se servirait à cette fin. Dans Le systéme
juridique, on ne définirait que lês premisses de la décision, et on ne la préndrait pás effectivement” (TEUBNER,
1996, p.43).
82
são ambiente uns para os outros, o direito reflexivo cria “acoplamentos estruturais”
capazes de lhes permitir uma integração “descentralizada” (Tradução livre).81
O modelo explicativo de Teubner torna-se mais robusto com o desenvolvimento do
conceito de reflexividade do direito (TEUBNER, 1996), uma vez que seu propósito é aplicar a
teoria sistêmica e a noção de autopoiese às situações concretas relativas ao sistema jurídico
ou, em outras palavras, é atribuir-lhes poder para elucidar as configurações institucionais do
direito, consideradas a partir de um ponto de vista empírico.
Um dos pontos a que dedica atenção é o fenômeno da “materialização” do direito e
suas consequências no processo de “juridificação”, que ganhou expressão desde a adoção do
modelo intervencionista do Estado Social.
3.3.1 Autopoiese do direito e enlace hipercíclico
A contribuição de Teubner à teoria sistêmica de Luhmann guarda estreita pertinência
ao tema aqui tratado, justamente porque o autor enfatiza as condições em que ocorrem as
comunicações entre sistema jurídico e ambiente, com especial atenção aos subsistemas da
economia e da política como parte do ambiente do sistema jurídico. Ao tratar essa questão,
Teubner (1989, p. 169-170) ressalta que a proposta luhmanniana de combinar fechamento
normativo e abertura cognitiva não contribui para a solução da questão relativa ao direito
como fator de regulação, visto que, nesse contexto, a autopoiese pressupõe que o direito só
interage com o ambiente a partir da realidade criada por ele de modo intrassistêmico, por
meio da autorreferência de seus elementos.
Neves (2006, p. 81) objeta, nesse ponto, que Luhmann não reduziu a reprodução
autopoiética à autorreferência de base (ou elementar), tendo apenas afirmado que essa é a
forma mínima de autopoiese, seguindo-se a ela a reflexão e a reflexidade, que dizem respeito
às estruturas do sistema jurídico.
81
Dans le cadre de la théorie systémique, cette procéduralisation signifie que les normes de la droit ne relèvent
plus exclusivement de L‟Etat, mais de voix multiples, representatives des sphères sociales en prèsence. La
procèdure rèflexive sera donc le lieu d‟un arbitrage entre les différents systèmes concernès par la fonction
normative : le système politique, qui définit des objectifs, le système juridique, qui énonce des normes et les
systèmes sociaux dont on recherche la démocratisation. Entre ces trois types de systèmes, qui représentent les
uns pour les autres des environnements, le droit réflexif crée des "couplages structurels" devant aboutir à leur
intégration décentralisée.
83
Sob esse enfoque, a concepção mais abrangente de autopoiese pensada por Teubner
(1989, p. 36-60), definida como enlace hipercíclico entre os elementos, a estrutura, o
processo e a identidade do sistema jurídico, seria compatível com a proposta luhmanniana.
A reformulação da noção de autopoiese por meio do enlace hipercíclico em Teubner
pretende tornar mais flexível a ideia de autopoiese formulada por Luhmann, mitigando seu
alcance. Teubner (1989, p, 57) insurge-se contra o modo “radical” de autopoiese na
compreensão luhmanniana, regida pelo “tudo ou nada”: ou o direito reproduz a si próprio por
meio de seus elementos e mantém-se como subsistema social funcionalmente diferenciado, ou
não, hipótese em que ele seria incapaz de se autorreproduzir e, consequentemente, de se tornar
autônomo em relação ao meio. A partir dessa compreensão, o autor propõe que a
autorreferência e a autopoiese do direito são conceitos gradativos que se sucedem como
etapas pelas quais passa o sistema jurídico rumo à autonomia (TEUBNER, 1989, p. 57).
Assim, a autonomia do direito seria proveniente de sua crescente capacidade de constituir
seus elementos – ações, normas, processos e identidade – em ciclos autorreferenciais que
também digam respeito às suas estruturas sistêmicas.
Com efeito, Teubner (1996, p. 237) sustenta que os subsistemas sociais adquirem
autonomia na mesma medida em que conseguem constituir seus próprios componentes nos
ciclos autorreferenciais. Entretanto, somente atingem a autonomia autopoiética quando seus
componentes constituídos ciclicamente são entrelaçados entre si num ciclo conglobante, o
qual denomina de hiperciclo.
Essas relações circulares originam nova concepção de autonomia do sistema jurídico,
que, segundo Teubner (1989, p.56), é mais abrangente que a noção de autorreferência e
autopoiese. Ao assumir a existência de interdependências causais entre o sistema jurídico e o
social global, Teubner (1996, p.103)82
propõe uma espécie de redução no alcance da
autopoiese, projetada a partir da distinção entre três momentos intrínsecos ao processo de
aumento cumulativo das relações circulares que compõem o hiperciclo e que a tornam um
processo gradativo: autoprodução, auto-observação e a autoconservação.
Com efeito, para Teubner (1996, p.104), essas três características – que ocorrem
sucessivamente, conforme o grau de autonomia que o sistema jurídico observado tenha
82
Dans le contexte actuel, la différenciation entre divers typers de la « reférénce » est particulièrement
intéressante, car elle permet d´aborder le probléme de « l´autopoiése dans l´autopoiese » aussi bien que la
question de la « gradation de l´autopoiese » dans les systémes autopoiétiques. Le deux problématiques se laissent
éclaircir si l´on les traite à l interiérier d´un cadre conceptuel distinguant clairement trois mécanismes auto-
référentiels : l´auto-production, l´auto-observation, l´auto-conservation. Seule cette distincion conceptuelle claire
permet d´analyser le phénomène de l´autopoiese comme une combinaison spécifique de mécanismes auto-
référentiels de natures différentes
84
alcançado – definem um sistema autopoiético. A autoprodução, como condição mínima para
a autopoiese, deve se referir a todos os componentes sistêmicos; a auto-observação, que pode
se referir ao ambiente e aos próprios componentes dos sistemas (elementos, estruturas,
processos e limites), tem por função específica estabelecer a conexão entre as operações
internas, controlando sua autoprodução; e, por fim, a autoconservação, que atua no âmbito da
manutenção do processo de produção das operações intrassistêmicas a partir do enlace entre
os diversos ciclos de produção dessas operações, ou seja, a partir do enlace hipercíclico de
todos os componentes sistêmicos que se constituem cíclica e recursivamente.
Desse modo, é na etapa da autoconservação (ou autorreprodução) da autopoiese que o
enlace hipercíclico se constitui: “pelo cruzamento do primeiro ciclo autoprodutor com um
segundo ciclo global, servindo para tornar possível a produção cíclica garantindo as suas
condições de produção (hiperciclo)"83
(TEUBNER, 1996, p.104). E, assim, continuamente, é
permitida a conservação e a reprodução do sistema.
Teubner (1996, p. 106) distingue em três as etapas em que o direito se torna autônomo
no curso de seu processo de emancipação dos subsistemas sociais. A primeira delas
caracteriza-se pelo surgimento e intensificação de anéis autorreferenciais relativos aos
componentes sistêmicos específicos (elementos, estruturas, processos, limites etc.); num
segundo momento, o processo de se tornar autônomo passa pela variabilidade dos casos, ao
que o autor chama de “plasticidade funcional e estrutural”;84
por último, o autor aponta a
capacidade de reconstituição da autopoiese, que ocorre pelo enlace hipercíclico dos
componentes do sistema. Ou seja: o hiperciclo ou o entrelaçamento cíclico reiterado das
unidades constituídas ciclicamente é, assim, característica essencial da autopoiese
(TEUBNER, 1996, p. 247).
Aplicada ao direito, a construção teórica do hiperciclo sugere que o processo de
autonomização do sistema jurídico em relação aos demais subsistemas dar-se-á em três
etapas. Na fase do “direito socialmente difuso”, os elementos, as estruturas, os processos e a
identidade do discurso jurídico são idênticos aos da comunicação social em geral ou, quando
muito, são definidos de modo heterônomo pela comunicação social, porquanto consistem,
respectivamente, na ação, nas normas sociais, nos conflitos e têm sua identidade baseada na
83
Cette fonction est remplie par le croisement du premier cycle auto-reproducteur avec un second cycle global,
servant à rendre possible la production cyclique en garantissant ses conditions de production (hypercycle)
(TEUBNER, 1996, p. 104). 84
Plasticité fonctionelle et estructurelle (TEUBNER, 1996, p.106).
85
concepção de mundo predominante. Tratar-se-ia de uma sociedade em que não há
diferenciação sistêmica.
Na segunda etapa, haveria um “direito parcialmente autônomo”, que se abriria
quando o discurso jurídico começasse a definir a si próprio, ou seja, quando o discurso
jurídico fosse guiado pelos componentes do próprio sistema jurídico utilizados
operacionalmente. Nesta fase, os elementos são os atos jurídicos; as estruturas são as normas
jurídicas; o procedimento é jurídico; a identidade sistêmica baseia-se na teoria jurídica. Nesse
momento, já há diferenciação sistêmica, o que possibilita a autorreprodução do direito no
nível operativo.
Por fim, quando se chega ao nível mais elevado de autonomia do direito, pode-se falar
em “direito autopoiético”, em que os componentes do sistema jurídico, já autoconstituídos
circularmente, entrelaçam-se formando um hiperciclo (TEUBNER, 1996, p. 252).
Desse modo, a produção recíproca do ato e da norma, como dupla junção hipercíclica
dos elementos e das estruturas do sistema jurídico, é o que caracteriza o direito moderno, na
visão de Teubner. A positividade do direito assenta-se sobre uma relação circular entre a regra
e a decisão: o direito positivado pelo legislador só se torna válido pelo ato jurisdicional que o
concretiza; por outro lado, a decisão jurídica não pode ter outra base senão a lei. É necessário,
contudo, que o enlace abranja também outros componentes sistêmicos, como a teoria jurídica
e o procedimento jurídico. Apesar disso, a primazia permanece centrada na relação entre a
decisão (operação jurídica) e a norma jurídica, pois o procedimento e a teoria jurídica é que
irão controlar o modo como ocorre a autorreprodução do direito:
Raras vezes as autodescrições e autoconstituições dos componentes sistêmicos
conseguiram realizar os pressupostos necessários ao enlace hipercíclico, que pode dar início à produção efetiva de comunicações jurídicas pelas comunicações
jurídicas, por meio da rede de expectativas jurídicas e sob o controle da doutrina e
do procedimento (Tradução livre).85
É necessário destacar que Teubner não confunde autonomia com autarquia do direito,
haja vista que, para ele, o direito é dependente dos sistemas político e econômico do ponto de
vista causal. A autonomia do sistema jurídico passa pela circularidade na produção e
85
Ce n´est qu´une fois que les auto-descriptions et auto-constitutions des composantes systémiques ont realisé de
la sorte les présupposés nécessaires de l´enchainement hypercyclique, que peut commencer la production
effective de communications juridiques par des communications juridiques, à travers le réseau des attentes
juridiques et sous le controle de la doctrine et de la procédure. (TEUBNER, 1996, p.258)
86
reprodução do próprio direito e por sua organização interna, as quais, nada obstante,
redimensionam as relações externas do direito.
Seguindo a perspectiva sistêmica de Luhmann, no lugar de uma lógica de causa-efeito,
Teubner (1989, p. 74) propõe o que chama de “lógica da perturbação”, que ocorre entre os
sistemas ou entre o sistema jurídico e os sistemas que lhe servem de ambiente, equivalendo-
se, assim, a dizer que os fatores do ambiente que envolve o direito devem ser descritos como
problema de influência externa sobre processos circulares internos.
No tópico seguinte, será analisado o instrumental teórico engendrado por Luhmann e,
secundariamente, por Teubner e Neves, capaz de auxiliar na compreensão do modo como se
desenvolvem as relações intersistêmicas na sociedade contemporânea.
3.4 As relações intersistêmicas na perspectiva jurídica
3.4.1 O acoplamento estrutural entre sistemas
A ideia de acoplamento estrutural aplicável às ciências sociais foi desenvolvida por
Luhmann a partir do conceito construído para a biologia por Maturana e Varela.
Como conceito, o acoplamento estrutural é um mecanismo que possibilita as
interpenetrações concentradas e duradouras entre sistemas sociais no nível de suas estruturas.
São exemplos disso a assessoria de especialistas no acoplamento entre política e ciência, a
propriedade e o contrato como acoplamento entre direito e economia e o acoplamento
estrutural entre o direito e a política que se dá por meio da constituição (vide 4.1 infra).
Nos próximos capítulos, o tema será novamente abordado por ocasião da análise da
constituição como aquisição evolutiva da sociedade e do orçamento público sob a perspectiva
sistêmica. Neste momento, é importante ter claro que o acoplamento estrutural corresponde ao
compartilhamento de uma mesma estrutura por dois sistemas sociais, que possibilita a
realização de trocas entre os sistemas, por meio de uma interpenetração permanente entre eles.
O acoplamento estrutural, portanto, diz respeito à relação entre o sistema e o ambiente que
está em seu entorno, onde estão os outros sistemas que, eventualmente, se relacionarão entre
si. Isso porque um sistema é opaco aos “olhos” do outro. O ambiente é um estado de coisas
desordenado, incompreensível a partir do código do sistema que o observa; por isso, o
acoplamento é um ponto fundamental na teoria sistêmica luhmanniana. Além disso, o
acoplamento entre as estruturas de dois sistemas é um fator redutor de complexidade, pois
87
delimita o âmbito de interpenetração entre os sistemas e propicia o incremento da
complexidade interna ao sistema, uma vez que favorece o ingresso de fatores do ambiente no
sistema social (LUHMANN, 2004, p.382).
Esse ingresso de fatores extrassistêmicos é que viabiliza a abertura cognitiva do
sistema ao ambiente que integra seu entorno. Todavia, esses influxos e instigações recíprocas
são filtrados pelo código próprio do sistema que recebe as “informações” ou prestações vindas
do ambiente e as processa conforme sua lógica interna – ou racionalidade, como prefere
Teubner (2002, p.109).
Os acoplamentos estruturais, diferentemente dos acoplamentos operativos, são
permanentes, uma vez que a estrutura de um sistema é algo estável. Se o compartilhamento de
prestações se der no âmbito das operações do sistema, nesse caso, tratar-se-á de acoplamento
momentâneo, em nível meramente operativo (LUHMANN, 2004, p.381). É importante
salientar que, embora os sistemas realizem trocas de prestações, influências e/ou instigações,
não perdem sua autonomia em razão disso. O que ocorre é uma relação simultânea de
dependência e independência entre os sistemas que se acoplam estruturalmente. Isso se dá
porque a prestação fornecida por um sistema torna-se essencial à reprodução das operações do
outro sistema e vice-versa. Veja-se o exemplo do acoplamento estrutural entre o direito e a
economia que ocorre pela propriedade e pelo contrato: o sistema econômico percebe o
contrato e a propriedade como instrumentos para obtenção de lucros, orientando-se pelo
código ter/não ter; por outro lado, o sistema jurídico vale-se do contrato e da propriedade para
orientar critérios quanto à definição entre o lícito e o ilícito. A economia aufere do direito o
respaldo para realizar suas operações financeiras – pois em caso de inadimplência poderá
exigir a coercitividade do pagamento. O direito, por sua vez, pressupõe a velocidade das
trocas e da apropriação econômica de bens e valores para manter e inovar permanentemente
os institutos dos contratos e aqueles relativos à propriedade (NEVES, 2009, p.36).
Mas é a constituição exemplo mais significativo de acoplamento estrutural para os
objetivos deste trabalho, uma vez que ela é fruto do acoplamento estrutural entre o direito e a
política. Nas palavras de Luhmann (1996, [s.p].):
O sistema jurídico, graças a esse acoplamento, tolera um sistema político que tende
para o Estado regulador e que não deixa passar o que possa submeter as suas
próprias operações. Também o sistema político, graças a esse acoplamento, tolera
um sistema jurídico que dá curso continuamente a processos próprios, protegidos da
interferência política logo que a questão direito/não direito, lícito/ilícito, se
apresente.
88
3.4.2 As Interferências intersistêmicas e o direito na colisão de discursos
Os fatores do ambiente como fonte de aprendizagem do sistema jurídico que deve se
submeter a seu filtro interno são problematizados por Teubner em razão das dificuldades
que o sistema jurídico enfrenta para se tornar autônomo na modernidade complexa.
Segundo Teubner (2002, p. 93), boa parte dessas dificuldades advém da crença
difundida por alguns autores como Richard Posner no sentido de que o direito não
sobreviveria como disciplina autônoma, uma vez que a “racionalidade econômica parece
representar a nova universalidade do direito”. Todavia, como sustenta o autor (TEUBNER,
2002, p. 94), a racionalidade econômica não é a única a pretender a primazia na
institucionalização da sociedade como um todo:
Ao lado da economia estão, acima de tudo, a política, a ciência e tecnologia, o setor
da saúde, a mídia, o direito e, possivelmente, também a moralidade de um mundo da
vida que desenvolveram individualmente suas próprias racionalidades centradas em
si mesmas. [...] De um lado, todos possuem racionalidades claramente parciais. De
outro são todos institucionalizados de fato em toda a sociedade e exigem aceitação
universal.
Sendo assim, se o postulado da relação custo-benefício constitui a racionalidade
econômica, só institucionalizado no âmbito dessas relações – nas transações econômicas –,
não se pode negar que o clamor por eficiência, que decorre dessa racionalidade, também deve
ser observado na aplicação da lei, por exemplo. Na racionalidade política, outra não é a
situação, uma vez que, embora a legitimação democrática só seja institucionalizada no âmbito
das relações políticas, o ideal da democracia perpassa toda a sociedade e, por óbvio, deve
orientar a realização do direito.
Conquanto a busca pela descoberta descomprometida da verdade intersubjetiva só seja
institucionalizada no âmbito do ensino e da pesquisa, os avanços desse sistema impulsionam
toda a sociedade e repercutem diretamente no direito ao demonstrar-lhe a necessidade de uma
abordagem científica de suas pretensões reguladoras.
Quanto aos critérios morais que se desenvolvem por meio da intersubjetividade, tem-
se que, se, num primeiro momento, eles se limitam ao âmbito da estima mútua – ou, como
querem alguns, na base do igual respeito e consideração –, a tendência que os move,
sobretudo na forma acadêmica de sistemas éticos, é no sentido de que reivindiquem para si
poder para regular todas as questões sociais, impondo-se, inclusive, na instância das questões
jurídicas.
89
Portanto, Teubner entende que o direito deve exercer seu papel de filtragem dessas
racionalidades extrassistêmicas a fim de torná-las assimiláveis pelo discurso jurídico.
Somente essa postura do direito, que tem por fundamento sua capacidade autorreferencial, é
que pode possibilitar o confronto dessas racionalidades que lhe são extrínsecas, atendo-as, por
outro lado, aos limites do discurso jurídico.
É por meio da estratégia do reenvio ou reingresso que o direito é capaz de absorver
conceitos estrangeiros, orientados por outro código que não o lícito/ilícito regente da
racionalidade jurídica , sem, contudo, corromper-se ou, em outras palavras, sem perder sua
diferenciação funcional em relação a esses outros sistemas que insistem em “perturbar-lhe” no
ambiente envolvente. O exemplo fornecido por Teubner (2002, p. 112) ilustra bem o objetivo
de sua proposta:
No momento exato em que o direito reconstrói internamente os argumentos morais,
eles perdem sua relação com os critérios de universalidade e com o código moral.
Eles, agora, estão sujeitos aos mecanismos do tratamento igual/desigual impresso ao
programa do direito (normas, princípios, doutrinas) e, finalmente, ligados ao código
jurídico binário do lícito/ilícito. O mesmo sucede com a avaliação de custos e de
poder, argumentos políticos e estruturas científicas. Todos tornam-se estranhas
formas híbridas que, no entanto, agora estão sob a responsabilidade construtiva do
discurso jurídico.
Várias são as estratégias da teoria sistêmica para enfrentar a questão. Nada obstante,
Teubner (1989) prefere tratar as relações entre os sistemas como interferências que ocorrem
no nível de suas operações, valendo-se da noção de acoplamento operativo de Luhmann –
expressão que, aliás, era utilizada por este para designar as conexões temporárias entre
sistemas. Também se pode tratar a questão, ainda no plano operativo, no âmbito da colisão
entre discursos típicos de outros sistemas que se dão no âmbito do sistema jurídico. O âmbito
da colisão de discursos é interessante para as decisões do sistema jurídico, por exemplo, que
demandam a análise circunstancial de informações que não são processadas em seu interior.
Entretanto, como a interconexão não se dá no âmbito dos discursos e de modo momentâneo, a
noção de colisão de discursos não atende à compreensão das situações em que a interconexão
entre os sistemas se dá de modo estável. No caso do orçamento público, por exemplo, em que
a troca de experiências entre as diversas racionalidades ali envolvidas ocorre de modo estável,
a colisão de discursos não oferece o instrumental teórico adequado.
Por outro lado, o acoplamento estrutural, embora seja suficiente para a análise do
compartilhamento recíproco de prestações entre a política e o direito, não é suficiente para o
90
exame do que ocorre no caso dos orçamentos públicos, uma vez que há mais de dois sistemas
entrelaçados e compartilhando, reciprocamente, suas experiências.
Daí que será pertinente avaliar o aparato teórico relativo à racionalidade transversal
porque se trata de um mecanismo que comporta o entrelaçamento entre mais de duas
racionalidades parciais distintas e, ao mesmo tempo, possibilita que a questão seja tratada no
nível das estruturas de cada sistema envolvido.
Pode-se dizer que as propostas de Teubner e de Neves convergem no sentido de
afastar a autopoiese como pressuposto para a aplicabilidade de parâmetros que norteiam as
comunicações entre os sistemas. Como se verá no próximo capítulo, não se adota neste
trabalho o direito como um sistema estritamente autopoiético, tendo em vista as condições
conjunturais e estruturais da realidade brasileira. Isso porque a autopoiese é uma variável
contingente na teoria de Luhmann, que não desconsidera sua base empírica.
Entretanto, pressupõe-se que a diferenciação funcional entre os sistemas, ainda que em
nível insuficiente para a autorreprodução do direito, pode ser progressivamente ampliada no
Brasil. Daí que a adequada análise do modo como poderão ocorrer as relações entre os
sistemas adquire especial relevância para que a tendência à desdiferenciação sistêmica seja
observada e contida pela preservação da relação de horizontalidade entre os diversos sistemas
sociais.
3.4.3 Racionalidade transversal
A noção de racionalidade transversal, proposta por Neves (2009), tem por objetivo
contribuir para a construção de alternativas teóricas que possibilitem uma melhor
compreensão do compartilhamento de experiências, racionalidades e prestações entre os
sistemas sociais.
Neves (2009, p. 38) formula a noção de “racionalidade transversal entre esferas
autônomas de comunicação” da sociedade, inspirando-se, em grande medida, nas pesquisas de
Wolfgang Welsch.86
A proposta é estruturada sobre bases tais que um sistema poderá oferecer ao outro sua
própria racionalidade parcial, como realidade ordenada, o que facilita a assimilação das
86
Filósofo alemão que, partindo de conceitos da geometria, dá o nome de lógica da transversalidade ou razão
transversal ao tipo de razão que não se organiza linearmente, tampouco segundo esquemas hierárquicos, mas de
modo transversal, como a lógica que viabiliza os hipertextos, a internet e os multimeios.
91
informações vindas de outros sistemas pelo sistema receptor sem que se cogite do risco de
desdiferenciação sistêmica. Isso porque a racionalidade parcial oferecida por um sistema não
afetará o desenvolvimento da racionalidade própria do sistema receptor, uma vez que o
entrelaçamento entre as racionalidades parciais só ocorre quando o intercâmbio e o
aprendizado são recíprocos, ou seja, quando há interesse por parte de todos os sistemas
envolvidos.
Nesse caso, a racionalidade transversal importa “a partilha mútua de complexidade
preordenada pelos sistemas envolvidos e, portanto, compreensível para o sistema receptor
(interferência estável e concentrada ao nível das estruturas)” (NEVES, 2009, p.49 -50).
Os acoplamentos estruturais funcionam como “mecanismos de interpenetrações
concentradas e duradouras entre sistemas sociais” (NEVES, 2009, p. 37) por meio dos quais
os sistemas compartilham, de modo bilateral, suas prestações.
No caso da racionalidade transversal, o compartilhamento supera o nível das
prestações. As “pontes de transição” entre as operações realizadas num sistema e fatores de
seu ambiente – em que está o sistema interrelacionado – possibilitam a convivência de
diversas racionalidades parciais no ambiente intrassistêmico sem que isso prejudique a
unidade e a diferenciação funcional do sistema que “acolhe” a racionalidade parcial de outro
para com ela agregar complexidade às suas próprias operações e fazer face à
hipercomplexidade circundante.
Isso ocorre no nível dos entrelaçamentos que servem às racionalidades transversais,
que atuam como pontes entre diferentes aspectos, ou seja, entre racionalidades parciais
heterogêneas pertencentes a sistemas sociais parciais funcionalmente diferenciados (NEVES,
2009, p. 45), atuando no nível das estruturas.
A racionalidade transversal, assim, pressupõe o acomplamento estrutural e amplia seu
alcance com a possibilidade de que a própria “racionalidade processada” no interior de um
dos sistemas seja disponibilizada para o outro. Tal formulação teórica, embora não afaste o
risco de corrupção sistêmica e de desdiferenciação funcional do direito, pode auxiliar em
muito porque dotará de maior agilidade a assimilação de conceitos e experiências vindos de
racionalidades diversas que já se apresentam ordenadas para o sistema receptor.
A alternativa apresentada por Neves (2009) é relevante, inclusive, para que se permita
aos sistemas integrarem entre si, sem se descaracterizarem funcionalmente e, o que importa,
sem que o direito se projete para dentro de si mesmo, desconsiderando a realidade
multifacetada que o cerca.
92
Nada obstante, o que mais interessa ao presente trabalho é o exame do orçamento
público como locus de entrelaçamento entre as racionalidades parciais da política, do direito e
da economia. A propósito disso, Neves (2009, p.50) menciona a possibilidade de se aplicar a
noção de racionalidade transversal ao orçamento público, como instituto envolvido
diretamente no direito, na economia e na política:
A respeito da racionalidade transversal, pode-se sugerir que ela implica, em certos
casos, o entrelaçamento de mais de dois sistemas. Se observarmos o regime fiscal,
por exemplo, poderemos verificar que, nele, há um entrelaçamento trilateral entre política, economia e direito. O tributo é um fato econômico, jurídico e político,
assim como o orçamento é um instituto envolvido diretamente na economia, no
direito e na política. A racionalidade transversal importa, então, um grau de
aprendizado e intercâmbio construtivo entre esses três sistemas.
Com efeito, no último capítulo a questão será retomada de modo mais enfático,
quando da análise dos orçamentos públicos propriamente ditos.
93
4 CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM SOB A
PERSPECTIVA SISTÊMICO-DISCURSIVA
4.1 A constituição como aquisição evolutiva
A ideia de Constituição como aquisição evolutiva da sociedade ( LUHMANN, 1996b)
surge como uma forma de dois lados capaz de trazer à tona e explicar o paradoxo que envolve
a fundação do direito e da política. Numa retrospectiva histórica, a constituição, em sentido
moderno, aparece como mecanismo que ofereceu sustentação ao surgimento dos Estados
modernos desde o século XVIII.
A constitucionalização moderna manifestou-se como “uma reação à diferenciação
entre direito e política, ou dito com uma ênfase ainda maior, à total separação de ambos os
sistemas de funções e à consequente necessidade de uma religação entre eles” (LUHMANN,
1996b, p.3). Vale dizer, a evolução social conduziu à especificação dos modos de
comunicação utilizados para a solução dos diferentes problemas de uma sociedade. Em
decorrência disso, formaram-se grandes conjuntos que se utilizavam de tipos comunicacionais
assemelhados que, por outro lado, foram se distinguindo de outros grupos comunicacionais
que se valiam de outro modo de comunicação. Esses grandes conjuntos comunicacionais
transformaram-se, com o passar do tempo e da multiplicação das operações comunicativas
que ocorriam em seu interior, em subsistemas da sociedade, que se distinguiam entre si do
mesmo modo, ou seja, pelo tipo de comunicação reproduzida em seu interior, para que
pudessem solucionar problemas específicos da sociedade. Conquanto os subsistemas sociais
se distinguissem entre si pelas funções que lhe eram peculiares e, assim, tivessem
desenvolvido critérios próprios de seletividade, tornando-se cada vez mais autônomos em
relação aos demais sistemas que estavam no entorno, eles se apoiavam reciprocamente,
mantendo pontos de interconexão. Foi, então, que, pelo caminho sistêmico da diferenciação
funcional, direito e política tiveram suas estruturas acopladas na semântica moderna da
constituição.
Muito embora as origens da noção de constituição remontem a Aristóteles que a
concebia como a ordem da pólis (politéia) 87
, na transição para a sociedade moderna ela
87
“Constituição é a ordem (táxis) dos Estados em relação aos cargos governamentais (arkhé), como eles são de
distribuir-se, e à determinação do poder governamental supremo no Estado, como também do fim (télos) da
respectiva comunidade (koinonía)” (ARISTÓTELES, apud NEVES, 2007, p. 56). Neves explica, no entanto,
que, somente a partir do fim do século XVIII, o termo politéia passou a ser traduzido como “constituição”; até
então, utilizava-se a expressão inglesa “governement” (2007, p.57).
94
passou a ser entendida como “carta de liberdade” ou “pacto de poder” e, no curso da evolução
da sociedade, abandonando-se esse caráter “modificador do poder” e “casuístico”, surge a
semântica da constituição universal, tanto no sentido da normatividade quanto no da função
“constituinte do poder” (NEVES, 2007, p.57). É a partir dessa concepção moderna de
constituição que o tema proposto será desenvolvido.
4.1.1 A semântica das constituições modernas
Segundo Luhmann (1996b, p.2), a nova constelação semântica88
da constituição surge
das transformações revolucionárias experimentadas no fim do século XVIII, mormente a
partir da Declaração de Independência das Treze Colônias da América, em 1776, que
culminou com a Constituição Americana de 1787. É a partir da necessidade de se constituir a
unidade – no caso dos Estados Unidos da América do Norte – como diferença – da Inglaterra
– que a constituição torna-se uma aquisição tipicamente moderna, capaz de gerar uma
“inovação de origem política no interior do próprio sistema jurídico”. A questão que o autor
pontua como inovadora nessa constituição é o fato de ela ter sido instrumento concebido para
fundar nova ordem jurídica interna nos Estados Unidos, que estavam em franco processo de
independência e necessitavam de autolegitimação para o fortalecimento de seu sistema
político, capaz de libertá-los da sanha regulamentadora do Parlamento inglês. Em certa
medida, a Revolução Americana foi paradoxal: tanto pretendia transformar o sentido da antiga
constitution inglesa quanto partia dessa mesma tradição para inovar o significado do conceito
de “constituição”, passando a tomá-la como “um texto organizado e escrito, conforme a
vontade do constituinte e que, como tal, pode se opor aos governantes que tenham agido
ilegitimamente, ou seja, de modo contrário à constituição” (Tradução livre).89
Surge, assim,
nova dimensão para a concepção de constituição, porquanto o uso semântico inovador – e, por
que não dizer, revolucionário – levado a efeito pelos americanos pressupõe a noção de poder
88
Conforme explica De Giorgi (1998, p. 83), os subsistemas sociais “produzem continuamente artefatos
semânticos, contextos descritivos, mediante os quais a unidade dos sistemas é representada” para impulsionar o
processo evolutivo da sociedade. É nesse sentido que a constituição aqui é apresentada sob o recorte de uma
invenção semântica da modernidade: embora a expressão “constituição” seja conhecida desde a antiguidade, foi
somente na modernidade que adquiriu o status, a descrição e a identidade semântica com qual se apresenta
atualmente. 89
“Un texto orgánico escrito, que el cuerpo constituyente soberano há querido, y que como tal puede ser de
hecho opuesto a los gobernantes que hayan actuado de manera ilegítima, es decir, contraria a la constitución”
(FIORAVANTI, 2003, p. 84-85).
95
constituinte,90
cuja compreensão é inequivocamente incompatível com a tradição firmada na
Inglaterra, onde constitution relacionava-se com o equilíbrio do Governo.
Talvez por isso, o processo revolucionário americano tenha contribuído tão
expressivamente para a evolução da concepção de constituição como reação ao processo de
diferenciação entre direito e política e, simultaneamente, viabilizado a manutenção dessa
diferença, assegurando unidade a cada um desses sistemas. O sistema jurídico e o político se
autoconstituem como sistemas diferenciados funcionalmente, mantendo-se interdependentes e
interconectados – ou, conforme a terminologia luhmanniana, estruturalmente acoplados –
pelas disposições constitucionais.
Nada obstante, a Constituição da França de 1791, que sucedeu a Revolução Francesa,
também é referenciada como inovadora ao propor uma releitura da relação entre direito e
política como sistemas diferenciados, embora interdependentes. Se, antes da Modernidade, já
havia leis importantes, até mesmo dotadas de fundamentalidade para o funcionamento de uma
sociedade, somente com a constituição é que uma lei fundamental passou a servir de
referência para se aquilatar a conformidade ou desconformidade de todas as outras leis e atos
jurídicos em relação ao direito.91
Nas palavras de Juliana Neuenschwander Magalhães (2009,
p.288):
No século XVIII, a invenção das modernas constituições consistiu na convergência
de uma ideia com uma palavra que não era, tanto na tradição jurídica quanto na tradição do pensamento político, nova. E isso embora os significados numa e outra
tradição fossem não apenas diversos, mas também divergentes. O que refletia,
precisamente, a “indiferença” entre direito e política ao longo da evolução.
Até o advento da concepção moderna de constituição, a falta de diferenciação
funcional entre direito e política resultava que tanto esta quanto aquele não podiam ser
90
Relevante anotar, nesse ponto, que o então nascente significado de “poder constituinte” assume contornos diferentes dependendo do contexto histórico revolucionário em que se inserir. Segundo Maruizio Fioravanti
(2003, p. 90), na tradição fundada pela Constituição Americana, a noção de poder constituinte associa-se ao
fenômeno da rigidez constitucional. Na França, a Revolução vinculou o significado de “poder constituinte” à
noção de soberania. 91
Luhmann (1996b) atribui tal relevância à Declaração de Independência das Colônias porque, segundo ele, “Em
1789, a França recepciona o conceito inglês de constitution conjuntamente com todas as suas imprecisões e,
sobre essa matriz, limita-se simplesmente a discutir as dimensões da redistribuição sempre necessária dos pesos.
Na América, ao contrário, em contraposição à situação jurídica inglesa, acentuava-se a unidade do texto
constitucional redigido de forma escrita, o que requeria uma determinação conceitual que introduzisse uma
distinção entre a constitution e o outro direito, em clara discrepância com uso lingüístico inglês. [...] É de se
acrescentar, ainda, que a ocasião da revolução política conduz à pretensão de se limitar juridicamente as
possibilidades de ação de qualquer órgão do Estado, ou seja, à ruptura da onipotência do próprio Parlamento. O
que, por sua vez, produz efeitos posteriores e leva à conclusão de que a constituição deve ser supraordenada em
relação a todos os demais direitos.” Essa ideia de supremacia constuticional assume relevância central na
“invenção” da semântica constitucional americana e abre espaço para que a constituição se torne um canal para a
noção de autologia sistêmica, ou seja, para a criação de uma “estrutura que se autoinclui no próprio âmbito de
regulamentação”.
96
observados como subsistemas sociais distintos, especializados em desempenhar diferentes
funções na sociedade. Isto é: as decisões jurídicas não eram dotadas de implicações políticas.
Sendo assim, o direito como instrumento – ou limite – dos atos do governo só pode ser
entendido como uma aquisição típica da sociedade moderna. A política, por sua vez, que se
valia de bases de sustentação alheias ao direito, tais como enunciados religiosos ou morais,
deixou-se democratizar por ele. Com efeito, no estágio da evolução social em que os
subsistemas jurídico e político se diferenciaram funcionalmente, a positividade do direito e a
democratização da política passaram a se sustentar mutuamente e oferecem a base do Estado
de Direito.92
Associando o processo de diferenciação entre direito e política às fases da evolução
social, como propõe Luhmann, pode-se dizer que, na sociedade estratificada (vide nota 39),
ambos se confundiam. Somente na sociedade complexa, surgida na Modernidade, é que houve
a diferenciação funcional entre esses subsistemas sociais. O sentido moderno de constituição
possibilitou a afirmação do direito e da política como subsistemas sociais distintos, embora
interconectados. Trata-se da característica fundamental que, a par de possibilitar o
reconhecimento da autofundação do direito e da política, abrange parte da estrutura de cada
sistema, mas não lhes obsta a autorreferência e a manutenção dos distintos códigos.
4.1.2 Direito, política e evolução social
De acordo com a proposta de Luhmann (vide 2.3 supra), a evolução de um sistema da
sociedade implica a diferenciação entre três funções que lhe são inerentes: variação, seleção e
estabilização. No caso do sistema jurídico, tais mecanismos podem ser assim identificados: a
variação corresponde à multiplicidade de expectativas admitidas como conflitantes; a seleção
surge como processo de decisão das expectativas admitidas – ou protegidas – pelo sistema; e a
estabilização ocorre pela regulamentação e programação condicional das expectativas
normativas válidas.
Não é demais relembrar que evolução aqui é tão-somente acréscimo de complexidade
decorrente da proliferação do número de alternativas de escolha e possibilidades de ação, que
pode ser interno ou externo ao subsistema social. A adaptação do sistema jurídico às novas
condições de complexidade implica limitações de expectativas sociais que se dão pela
92
Nas palavras de Luhmann (2004, p.364): “Overall, the positivization of law and the democratization of politics
support each other reciprocally and they have left a significant mark on both the political system and the legal
system of today”.
97
codificação jurídica entre lícito e ilícito. Isso só se tornou possível por meio da passagem do
direito das culturas avançadas pré-modernas para a Modernidade, o que, para o sistema
jurídico, significou dotar-lhe de positividade.
Na etapa anterior de evolução da sociedade, já se vislumbrava a necessidade de um
direito que não fosse imutável. Porém, apenas com o advento da Modernidade, seguido das
constituições acima referenciadas, tornou-se possível introduzir o procedimento de produção
normativa como critério de validade das normas jurídicas. O direito, então, passou a
institucionalizar seu próprio processo de mudança. É exatamente nesse ponto que reside a
primeira das interconexões entre direito e política, em razão da qual se tornou possível
identificar um processo de autofundação de ambos e a consequente manutenção da
diferenciação entre eles, muito embora sejam interdependentes porque ambos se valem, para
se autorreproduzir, da legislação e da força coercitiva.
Ao retomar a questão da codificação no sistema jurídico, deve-se ter em mente que o
código binário próprio do direito é manejado de dois modos: separação e recombinação. O
direito é influenciado pelas transformações que ocorrem no sistema social global, haja vista
sua capacidade de aprendizagem, por meio da abertura cognitiva. Então, as operações
ocorridas no interior do sistema jurídico, notadamente as decisórias, separam conteúdos,
segundo sua conformidade, ou não, ao direito. De acordo com as eventuais mudanças
relevantes para o direito, tais operações recombinam a codificação atribuída em uma ou outra
situação. É por isso que é possível a modificação do direito por ele mesmo, haja vista que a
variação das estruturas jurídicas e da codificação atribuída a uma conduta, por exemplo, é
inevitável em face das variações pelas quais passa a sociedade.
Do mesmo modo, a evolução social também acarretou muitas mudanças no interior do
sistema político. Embora lance um olhar crítico sobre o Estado de Bem-Estar, assim como faz
Habermas, Luhmann atribui à inclusão de temas e interesses no interior do sistema político,
ocorrida sob o paradigma do Estado Social, o mérito de ter propiciado o desenvolvimento da
dinâmica que resultou na tridimensionalidade do sistema público, que, por sua vez, passou a
orientar as comunicações ocorridas em seu interior por uma lógica circular e não mais
assimétrica (LUHMANN, 2007, p.64-65). Esse ponto da “teoria política” de Luhmann
mostra-se relevante para o tema aqui discutido e, portanto, demanda maiores explicações.
Como se sabe, na evolução da sociedade, ao se passar de uma sociedade estratificada
para a sociedade moderna, o direito diferenciou-se da política e, durante o processo de
especialização das operações típicas do sistema político, também houve modificações quanto
98
à dinâmica interna desse sistema. Se no início do processo de diferenciação funcional interno
ao sistema político pressupunha-se um sistema bidimensional, organizado pelo código
superior/inferior, típico das sociedades estratificadas ou hierarquizadas, na sociedade
moderna, com o incremento da diferenciação funcional, tornou-se possível distinguirem-se
três esferas distintas no interior do sistema político: a política propriamente dita, a
administração e o público (LUHMANN, 2007, p. 62-63). Interessante notar, nessa leitura, que
a política desvincula-se do Estado e das instituições legislativas ou executivas que,
sustentadas em mandatos ou pontos de vista políticos, criam decisões vinculantes, às quais o
autor designa de administração.
Essa tridimensionalidade do sistema político – política, administração e público – faz
com que as operações internas desse sistema abandonem a forma hierarquizada, que distingue
comando e obediência, e passem a ocorrer de modo circular e autorreferencial. Assim é que a
opinião pública influencia a política por meio de eleições, por exemplo, e a política impõe
limites e prioridades às escolhas da administração. Esta, por sua vez, vincula-se por suas
próprias decisões,93
perante si mesma e perante o público: a reação dos cidadãos às decisões,
por meio das eleições, ou outras formas de manifestação, não raro, podem desencadear o
reinício de todo o ciclo de decisões políticas (LUHMANN, 2007, p.64).
Na complexidade moderna, o sistema político trabalha com número muito maior de
destinatários – basta pensar na generalização dos direitos políticos –, o que demanda sejam
dilatados os critérios de seletividade, tornados muito mais abrangentes que aqueles utilizados
pelo sistema jurídico. É na observação dessa diferença que os dois sistemas se interconectam:
de um lado, a seletividade política das premissas que sustentarão as decisões jurídicas – que
se dá predominantemente pela produção legiferante – e, de outro, a exigência de que o sistema
político atenda ao primado da licitude jurídica, condição para que as decisões políticas sejam
dotadas de coercibilidade – prestação específica do sistema jurídico.
Neves (2008a, p.89) explica que “o Estado de Direito pode ser definido, em princípio,
como relevância da distinção lícito/ilícito para o sistema político”. Isso porque, “ao lado da
distinção primária „poder/não poder‟, o esquema binário „lícito/ilícito‟ passa a desempenhar,
na perspectiva do observador do sistema político, o papel do segundo código de poder”. Nessa
mesma direção, Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 301) pontua que, no âmbito do
93
Esse ponto é de fundamental interesse para um dos objetivos deste trabalho: o de agregar subsídios à
compreensão de que, no Estado Democrático de Direito, os orçamentos são escolhas políticas dotadas de
circularidade e autorreferencialidade, capazes de vincular as decisões futuras dos administradores quanto às
políticas públicas necessárias à sua fiel execução, ainda que tal execução seja submetida a fatores advindos de
outros subsistemas sociais, como a economia, por exemplo.
99
Estado de Direito, há uma recíproca vinculação entre direito e política fundada pelo
acoplamento estrutural entre os dois sistemas, ou seja, pela constituição.
A fórmula moderna da constituição, portanto, surgiu da crescente diferenciação entre a
função exercida pela política e a desempenhada pelo direito, na mesma medida em que houve
o fortalecimento de códigos binários específicos, que passaram a nortear as operações que se
realizavam no interior de cada um desses sistemas sociais. À política coube produzir decisões
coletivamente vinculantes, obtidas por meio da incidência de seu código próprio: poder/não
poder – no âmbito específico da administração, o código seria governo/oposição ou
maioria/minoria, conforme o caso.
A partir dessa concepção funcional do sistema político, tanto seu código binário
quanto o aparato formal demandado pela exigência democrática – garantia de preservação das
minorias, alternância entre governo e oposição, autolimitação do poder, periodicidade das
eleições, entre outras – atuam de modo a aumentar as possibilidades de escolha, o que, em
última análise, possibilita a manutenção da complexidade.94
É por isso que se diz que o
sistema político trabalha em prol da inclusão, em razão da admissão de variados pontos de
vista políticos distintos sobre uma mesma questão, até que se decida, selecionando as
propostas acolhidas; contudo, sabe-se que toda seleção implica, de algum modo, exclusão.95
Assim, para desempenhar sua função de produzir decisões coletivamente vinculantes,
a política vale-se de programas orientados para finalidades específicas e que partem da
tridimensionalidade de sua conformação. Trata-se, portanto, de programas finalísticos ou
teleológicos que levam em consideração o aspecto programante das decisões que serão
proferidas, via de regra, voltadas para o futuro. A implementação dessas decisões, no entanto,
cabe ao aparato estatal ou, na terminologia de Luhmann (2007, p. 63), à administração.
94
De Giorgi (1998, p. 41-45) associa a característica central da democracia à manutenção de um nível elevado de
complexidade. Para ele, o sistema político democrático é submetido à constante tensão entre a manutenção da
alta complexidade do ambiente e a produção contínua de novas possibilidades de decisões, porquanto cabe ao
sistema político oferecer condições para que os pressupostos de incremento da complexidade sejam efetivados e,
ao mesmo tempo, para que ele mantenha sob seu controle seletivo a tematização política das pretensões do
ambiente. A partir dessa compreensão, nas condições estruturais da sociedade contemporânea, a democracia
permanece possível não mais como decorrência dos princípios idealizados pelo Iluminismo, mas pela busca dos
pressupostos democráticos concretos que, segundo De Giorgi, são, basicamente, dois: o maior nível de
positivação do sistema jurídico possível e “a universalização dos meios de comunicação de massa, que
possibilita o reflexo da sociedade através da opinião pública” (1998, p.42). 95
Vale registrar a posição de De Giorgi sobre a inclusão universal de todos na política. Ele alerta para o risco de
que o tratamento exclusivo das diferenças por meio da política implique uma prática de inclusão que produz
exclusão e amplia diferenças. Em suas palavras: “O risco da democracia moderna decorre da possibilidade de
produzir a ampliação das diferenças – e, consequentemente, de produzir novas desigualdades – por meio da
compensação do tratamento de outras desigualdades. Em outros termos: a inclusão universalizante produz,
assim, as formas especificamente modernas de exclusão” (1998, p. 46).
100
A concepção moderna de constituição, todavia, avoca para si a tarefa de tornar ambos
os paradoxos produtivos ou, melhor dizendo, visa afastar a força paralisante da observação
dos paradoxos fundantes do direito e da política.96
Isso se torna possível porque a moderna
semântica da constituição rompe com o regresso ao infinito da fundação, viabilizando a
prorrogação do paradoxo do direito e da política ao transferir o peso de um sistema para o
outro. Vale dizer: enquanto a atribuição da soberania ao povo repousa sua legitimidade no
vínculo jurídico-constitucional, a legitimação da constituição como texto jurídico é sustentada
pelo ato político do poder constituinte e pela legislação (LUHMANN, 1996b).
Também para Habermas (2003, p.170 e ss) a solução do paradoxo está na relação
interna entre direito e política: o direito se faz impor pela força do aparelho estatal – que
atribui força vinculante às suas decisões; a política, de outro lado, obtém forma jurídica por
intermédio do direito. Daí a explicação para a faticidade do direito. A validade, entretanto,
advém de outra faceta de sua relação com a política que é o processo de produção das normas
e pode ser expressa na tensão entre positividade e legitimidade do direito.
De modo sintético, Habermas (2003, p.171) afirma que o Estado é necessário como
“poder de organização, de sanção e de execução”, uma vez que os direitos devem ser
implementados, a sociedade demanda a atuação da jurisdição organizada e de “uma força
capaz de estabelecer a identidade e porque a formação da vontade política cria programas que
tem que ser implementados”.
Assim, a constituição é, a um só tempo, fruto da diferenciação funcional entre direito
e política e reação a essa tendência de se separarem esses subsistemas da sociedade. Luhmann
(2005, p.548) sustenta que a constituição moderna é uma forma de acoplamento estrutural
entre direito e política, pois permite o aperfeiçoamento da diferenciação funcional, sem
prejuízo da interpenetração constante e permanente entre os dois sistemas, que oscila entre a
independência e a dependência recíprocas e é concretizada por meio de prestações que um
sistema oferece ao outro. O acoplamento estrutural, por meio da constituição, entre direito e
política, aquisição típica da modernidade, resulta em trocas entre os respectivos sistemas.
Cada um desses subsistemas sociais destina-se a uma função específica; porém, um oferece ao
outro prestações que permitem a manutenção da diferenciação entre ambos. O
compartilhamento da mesma estrutura, contudo, impõe a interdependência.
96
Como esclarece Teubner (1989, p. 10-26), a observação das contradições e paradoxos não deve conduzir a
uma desconstrução do direito, mas, em vez disso, deve fomentar a reconstrução dos seus fundamentos. Isto é, se
não se pode eliminar o paradoxo imanente ao direito, deve ser possível, ao menos, que se reconstrua a relação
entre autorreferência, paradoxo, indeterminação e evolução do direito de modo a impedir o bloqueio ou
interrupção das comunicações jurídicas.
101
A partir dessa noção de constituição como compartilhamento de uma mesma estrutura
pelo direito e pela política, a questão pode ser vista sob dois ângulos distintos. Se observada
pelo ponto de vista interno do sistema jurídico, o ganho é creditado ao inédito nível de
positividade de uma “lei” a que todo direito, legislação e administração farão remissão. É por
isso que, ao agregar sentido político ao jurídico, a constituição passou a ocupar lugar de
reação do direito à sua própria autonomia, de modo a afastar qualquer tipo de fundamentação
que lhe seja externa. Pela observação que parte do sistema político, a constituição exerceu
papel decisivo para sua diferenciação funcional, uma vez que lançou as bases para a
semântica moderna de soberania. Desde então, a noção de soberania se assenta na pretensão
de o Estado exercer, com exclusividade, o poder político num determinado território.
A perspectiva inovadora, sob esse aspecto, consiste na legitimação jurídica oferecida
ao exercício do poder político – que, ao mesmo tempo, limitava o exercício desse poder
conforme as exigências do Estado de Direito. De outro lado, ao viabilizar a comunicação
entre direito e política, a constituição passou a disponibilizar, para o direito, a coercibilidade
da esfera política.97
A invenção98
da constituição e sua leitura como acoplamento estrutural entre direito e
política possibilitaram que a fundamentação desses subsistemas sociais se tornasse intrínseca,
e não mais extrassistêmica. Em outros termos, a manutenção da diferenciação funcional entre
direito e política possibilitada pela constituição viabilizou o abandono de fundamentações
extrassistêmicas para a própria existência legítima desses sistemas, como a moral, o divino, o
natural ou mesmo a razão humana. A partir dessa construção sistêmica é que o Estado de
Direito funda-se, simultaneamente, como organização jurídica e política, resultante do
acoplamento estrutural viabilizado pela constituição.
Embora tenha contribuído para a solução do impasse que acompanha o vínculo entre o
direito e a política, não se pode negar que a constituição, ao positivar direitos e atribuir-lhes
condição de fundamentalidade jurídica, abriu um novo flanco ao projetar os direitos
fundamentais para o futuro.
Ao tratar da questão, Luhmann (1996b) explica que o paradoxo da fundação dos
sistemas político e jurídico, estabelecido em termos de diferenciação funcional, é deslocado
97
A constituição é, mais que um vínculo, um fator de liberdade: o valor político das operações jurídicas e o valor
jurídico das operações políticas concentram-se, apenas, na referência à constituição, que estabelece os critérios
de organização política do poder e os critérios de geração do direito (CORSI, 1997).
98 A expressão “invenção”, na perspectiva sistêmica luhmanniana, não exclui a noção da inovação como
construção social, pelo contrário: a invenção é a descoberta de um mecanismo que se ajusta às necessidades de
uma sociedade em determinado momento de sua evolução.
102
temporalmente por meio da semântica constitucional moderna. Isso porque, se era necessário
projetar as aquisições revolucionárias99
para o futuro, era imprescindível, ao mesmo tempo,
evitar o retorno a um passado que deveria servir apenas como aprendizado histórico. A
constituição, sob esse ponto de vista, contribuiu para a solução desse dilema: ela manteve-se
aberta ao passado e ao futuro na construção do presente. Conforme expressa Luhmann
(1996b, p.23):
A abertura ao passado significa que é levado em conta qualquer argumento histórico
mediante o qual seja possível afirmar direitos ou provar que determinada regra
jurídica vale desde tempos imemoriais. A abertura para o futuro significa, ao
contrário, que o direito prevê a sua própria modificabilidade, limitando-a
juridicamente, sobretudo mediante disposições procedimentais, mas também
mediante a abertura da legislação à influência política.
É por isso que a ideia de direitos humanos, assim como a noção de igualdade,
democracia e liberdade, tornou-se essencial para esse deslocamento temporal e para a
posterior positivação da noção de direitos humanos pela semântica constitucional moderna.100
Assim é que a constituição, ao positivar os direitos humanos e introduzi-los no sistema
jurídico, atua como substituto funcional da fundamentação que antes era oferecida pelo direito
natural; para o sistema político, a constituição substitui o poder absoluto do monarca pelo
reconhecimento do direito dos cidadãos como fator que limita o exercício do poder. Essa
dupla perspectiva entre criação de liberdade e limitação do poder político – ou limitação da
liberdade do soberano – é que orientou a distinção entre direitos humanos e direitos
fundamentais (LUHMANN, 1996b). Nesse contexto, a existência das duas expressões estaria
a sugerir que os “direitos humanos” encontram sua origem na própria natureza da existência
humana – daí porque as declarações de direitos do século XVIII apenas se referiam a direitos
que lhes eram pré-existentes, tidos quase como características dos seres humanos, expressas
pelo verbo ser: os homens são livres, são iguais, são proprietários. Já os “direitos
fundamentais”, diferentemente, expressam-se pela semântica utilizada para aqueles direitos de
liberdade (limitadores ou criadores de espaços de liberdade) positivados numa determinada
ordem jurídico-política concreta (NEUNSCHWANDER MAGALHÃES, texto ainda não
publicado).
99
Explica Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 296) que: “O problema das revoluções, entre
constitucionalismo e soberania popular, entre direitos fundamentais e a originalidade dos direitos humanos é,
portanto, um problema ligado ao tempo: como pode a sociedade fixar a revolução, isto é, criar vínculos com o
futuro sem, com isso, negar o pressuposto da própria revolução, qual seja, a abertura em relação ao futuro?” 100
“Os direitos humanos, antes pano de fundo do contrato social, transformaram-se num texto de direito positivo
que, por sua vez, encontrou seu fundamento na supralegalidade constitucional” (NEUENSCHWANDER
MAGALHÃES, 2009, p. 297-298).
103
4.2 A gênese dos direitos fundamentais: entre o Estado Liberal e o Estado Social
São inúmeras as teorias formuladas para classificar e atribuir conteúdo aos direitos
humanos; a despeito disso, o recorte metodológico aqui escolhido terá em vista as propostas
que se relacionem diretamente com a perspectiva das teorias sistêmico-pragmáticas, na
vertente de Luhmann, Habermas e, eventualmente, no que for pertinente, de Teubner.
Em que pesem as controvérsias em torno das diferentes terminologias, acolhe-se a
sugestão apresentada por Neves (2009, p.252), entre outros autores, segundo a qual tanto os
direitos humanos quanto os direitos fundamentais dizem respeito à inclusão da pessoa e à
diferenciação da sociedade, de tal sorte que a diferença se estabelece quando se observa o
espectro da pretensão de validade: “Os direitos fundamentais valem dentro de uma ordem
constitucional estatalmente determinada. Os direitos humanos pretendem valer para o sistema
jurídico mundial de níveis múltiplos, ou seja, para qualquer ordem jurídica existente na
sociedade mundial”.101
Com efeito, a exposição que se segue pretende partir da noção de
direitos humanos até chegar à especificidade dos direitos fundamentais sociais, na perspectiva
do Estado Democrático de Direito.
De início, convém anotar que a noção embrionária de garantias fundamentais do
indivíduo humano, cujo significado foi assimilado pela semântica dos direitos humanos na
Idade Moderna, já se fazia presente na Antiguidade Clássica. Data dessa época a ideia de
humanidade – humanitas. Entretanto, ela serve à diferenciação entre o cidadão (grego e
romano) dos estrangeiros, atribuindo sentido à diferença entre gregos/bárbaros e, em
momento posterior, entre gregos e romanos/bárbaros.102
A evolução dessa concepção, apesar
de lenta, fez com que se ampliasse o alcance da noção de humanidade: ora para permitir
também às mulheres um tratamento “humano”, ora “para radicalizar na concepção de que
101
Entendimento assemelhado, porém, partindo da perspectiva histórica, Celso Lafer, no texto “A reconstrução
dos direitos humanos” também assinala a dissensão terminológica entre direitos fundamentais e direitos
humanos. Os direitos fundamentais estão diretamente relacionados à concepção de Estado-Nação, porquanto
dizem respeito a uma jurisdição nacional que, por sua vez, está vinculada a uma determinada constituição. Os
direitos humanos, diversamente, têm pretensão de validade em nível internacional e funcionam como
mecanismos de defesa de certas garantias do indivíduo independentemente dos limites territoriais de uma dada
ordem jurídica. 102
Conforme explica Juliana Neuenschwander Magalhães (2000, p.30), a unidade da diferença entre gregos e
bárbaros foi expressa pelo termo humanitas, foi uma criação romana, pois traduzia um aspecto qualitativo: o que
se via de positivo, de valioso, em alguns homens da polis e que os atribuía dignidade e condição de membro
daquela comunidade (civitas). “Por outro lado, Cícero teve o mérito de ter chamado atenção, através de sua
noção de „humanidade‟, para a força criadora dos homens, projetando a humanidade destes como produto de sua
formação ética e intelectual. (...) A qualidade da humanidade é atributo dos homens de alta cultura, ou seja, da
nobreza. Resta evidente que, na República romana, o termo humanitas foi utilizado com uma função
estratificatória. Essa idéia de humanidade, antes vista como patrimônio exclusivo de apenas um grupo reduzido
de homens de alta cultura, passou progressivamente a estender-se a outros âmbitos.”
104
alguns homens mereciam serem expulsos da ordem e, portanto, ser tratados como não
humanos”. A leitura jurídica dessa compreensão fez com que a identificação ou a negação da
humanidade em um ou outro indivíduo facultasse a clementia ou justificasse a crudelitas
(NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2000, p. 33). Poder-se-ia, aqui, exemplificar a
clementia como embrião do direito humano à cidadania, com a história bíblica narrada nos
Atos dos Apóstolos, em que Paulo de Tarso, ao ser apresentado para julgamento perante o
Governador da Síria, invocou sua condição de cidadão romano para apelar ao Tribunal de
César, no que foi prontamente atendido pela autoridade romana local.
Entretanto, somente sob a influência do estoicismo e, mais tarde, do neoplatonismo,
que a concepção de direitos vinculados à condição humana, numa perspectiva mais
abrangente, começou a ganhar corpo. O pensamento cristão, já no período do Império, ao
atribuir caráter ético ao senso de humanidade, lançou as bases para a construção do que
atualmente se entende por dignidade humana, cuja repercussão no campo jurídico pode ser
expressa na semântica dos direitos humanos.
Assim, pode-se dizer que a tradição dos direitos humanos, ainda na Antiguidade
Clássica, deita raízes na visão estoicista, que pretendeu universalizar a condição humana e os
direitos daí decorrentes, influenciando em grande medida o direito romano imperial.103
Posteriormente, novas contribuições foram agregadas a essa tradição, notadamente, pela
Escola de Salamanca,104
com Vitória, Las Casas e Suarez, quando se buscou construir uma
referência humanística ao “direito das gentes” o que fez emergir a noção, ainda tímida, do que
viria a se tornar um plano de garantia dos direitos humanos no nível internacional. Em igual
medida, encontra-se a Escola do direito Natural,105
protagonizada por Hugo Grotius e
103
Segundo Moreira Alves (2007, p.111-112): “Desde os fins da República, a tendência de Roma é no sentido de
estender paulatinamente a cidadania romana a todos os súditos do Império. Assim, em 90 a.C, a lex Iulia a concedeu ao habitantes do Latium; um ano depois, a lex Plautia Papiria a atribui aos aliados de Roma; e, em 49
a.C, a lex Rocia faz o mesmo com relação aos habitantes da Gália transpadana. Em 212 d.C, Caracalla, na
célebre Constitutio Antoniniana concedeu a cidadania a quase todos os habitantes do Império. As exceções que
subsistiram desaparecem com Justiniano.” Essa trajetória já reflete uma visão de cidadania em processo de
desvinculação da concepção restrita própria do direito romano arcaico, que atrelava a condição de cidadão ao
indivíduo livre da polis e da civilitas. 104
Também conhecida como neo-escolástica ou escolástica espanhola, a Escola de Salamanca teve como
principal expoente – e provável fundador – o teólogo dominicano Francisco de Vitória (1480-1546) e, sob sua
influência, outros filósofos e teólogos aderiram a essa linha de pensamento, dentre os quais se destacavam o
dominicano Bartolomé Las Casas e os jesuítas Luís de Molina (1535-1600) e Francisco Suarez (1548-1617). Os
integrantes dessa vertente política e jurídica, de fundo teológico, sustentavam uma postura humanitária em
relação aos povos indígenas. Esses autores ganharam notoriedade nos séculos seguintes, principalmente Vitória e
Suarez, como pensadores precursores do direito Internacional. Pode-se dizer que a escola de Salamanca passou a
compor um dos pólos de um debate filosófico, teológico, jurídico e político com significativa relevância no
pensamento europeu à época e, de um modo geral, é considerada a precursora do jusnaturalismo moderno. 105
Considera-se que a escola do direito natural teria sido inaugurada com a obra De iure belli ac pacis, de Hugo
Grócio (1588-1625), publicada no ano de sua morte. Entre os pensadores que mais se destacaram sob a insígnia
105
Pufendorf, que adotaram a razão como fundamento para a defesa das “prerrogativas”
inerentes à natureza humana.
Antes de o ideário iluminista – Hobbes, Locke e, depois, Rousseau, Montesquieu e
Kant – manifestar-se nas primeiras constituições modernas, antecedentes da declaração de
direitos podem ser constatados, sobretudo na trajetória do povo inglês em reação ao
absolutismo. O sentido que a modernidade atribui aos direitos humanos contém aquisições
dessas experiências embrionárias de positivação: a Magna Carta de 1215; a Petição dos
direitos de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689.
Não se pode desprezar, por outro lado, que os conteúdos dos direitos são construídos
em dados contextos históricos, em que predominam premissas filosóficas, científicas e sociais
típicas. Na linguagem luhmanniana, os fatores do ambiente, no movimento próprio da
abertura cognitiva do sistema jurídico, tornam jurídica esta ou aquela expectativa normativa: a
seletividade dessas expectativas refere-se ao momento histórico de sua produção na
sociedade.
É também por isso que a ideia de evolução social em Luhmann não é incompatível
com a compreensão de que há paradigmas a demarcar o campo do conhecimento a partir do
compartilhamento de premissas vicejantes e, no que se refere ao direito e à sociedade, em
muito auxiliam a compreensão do processo evolucionário dos direitos humanos. Na
compreensão de Habermas (2003, p.131), o paradigma de estudo serve como pano de fundo
que indica os pontos de partida científicos e influencia a tomada de posição.
Ressalve-se, contudo, que o processo histórico – que propiciou a sucessão de modelos
distintos de organização do Estado, ao que se vinculam tais paradigmas, ou, na linguagem
luhmanniana, que possibilitou que a evolução social se desse como se deu – não corresponde
à realização da vontade clarividente dos seus “sujeitos”, como ainda insiste boa parte dos
teóricos que adota uma postura teleológica diante das transformações a que a sociedade se
submeteu ao longo da história.
de jusnaturalistas, ainda que orientados por linhas de pensamento diversas e, por vezes, opostas, destacam-se
Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau, Leibniz, Kant, Thomasius e Wolff. Sem se olvidar das inúmeras
divergências existentes entre esses teóricos, mas visando a sintetizar as ideias que compõem essa vertente de
pensamento, segundo Bobbio (1979, p. 17), a pretensão jusnaturalista refere-se “à construção de uma ética
racional, separada da teologia e capaz por si mesma, precisamente porque fundada finalmente numa análise e
numa crítica racional dos fundamentos, de garantir – bem mais do que a teologia, envolvida em contrastes de
opiniões insolúveis – a universalidade dos princípios da conduta humana.” Desse modo, os jusnaturalistas ou os
adeptos da Escola do direito Natural unem-se em torno da proposta de construção de uma verdadeira ciência da
moral, apartada da racionalidade teológica o que, para o modelo até então vigente, representou significativo
avanço para a semântica dos direitos fundamentais.
106
Antes, então, de retornar às questões relativas aos direitos fundamentais e, partindo-se
das premissas gizadas nos parágrafos supra, melhor que se compreendam, em linhas gerais,
os marcos paradigmáticos dos modelos de Estado que se sucederam desde a instauração da
modernidade, uma vez que em cada paradigma os sistemas político, jurídico e econômico
apresentaram uma conformação distinta. Essa circunstância assume, assim, considerável
relevância para o tratamento dos direitos fundamentais, cuja compreensão levará em conta
alguns aspectos do direito internacional e, em seguida, as dimensões ditas geracionais,
propostas inicialmente por Vlasak. A partir daí, será apresentada uma perspectiva que permita
compreender de modo complementar as propostas sistêmica e discursiva no que diz respeito à
noção de direitos fundamentais na contemporaneidade.
Conforme se pode depreender do que já foi dito sobre a semântica moderna da
constituição, ao paradigma do Estado Liberal corresponderam os direitos burgueses clássicos,
advindos do processo revolucionário que deu ensejo ao surgimento das constituições
americana e francesa. Em sintonia com o ideário iluminista, concebia-se a sociedade civil
emergente – a sociedade estruturada no contrato de direito privado –, como o estado de
natureza reprimido pelas instituições do Antigo Regime, no caso da França, ou pela
dominação inglesa, em se tratando da Revolução Americana.
Entretanto, retomando a crítica ao modo teleológico de se perceber o processo
histórico, há que se rejeitar a ideia de que o curso da história seja passível de ordenação
político-social, pautada intencionalidade estrita de seus “criadores”. Na esteira dessa
compreensão, constata-se que, embora os ideais revolucionários franceses tenham sido
vitoriosos, o estado da natureza “integrado por homens livres, fraternos e iguais” nunca se
estabeleceu. A perspectiva de inspiração iluminista, que via no Estado um mal necessário,
tornou-se apenas parte de uma realidade maior que se consolidou, a despeito das intenções
revolucionárias. Aliás, se assim não fosse, estar-se-ia a usufruir do paraíso criado pelos
burgueses vitoriosos, detentores da „”verdade”, e não discorrendo sobre a temática dos
direitos fundamentais.
Seguindo no elenco dos paradigmas, o Estado Social, a que Luhmann denomina
Estado de bem-estar, surgiu das transformações que ocorreram na relação entre o Estado
(liberal) e a sociedade durante a primeira metade do século XX. Essa transformação deveu-se
à necessidade de se transferir progressivamente para o Estado, sob a pressão de uma demanda
social cada vez mais contundente, o dever de resolver o conjunto de problemas que o ideário
político liberal-burguês não conseguiu solucionar.
107
O Estado intervencionista ou Estado providência, como também é chamado, voltou-se
num primeiro momento às questões de origem econômica, chamando para si a tarefa de
reorganizar as regras do jogo mercantil a fim de tornar possível a manutenção do próprio
modo de produção capitalista. Explica-se: as oscilações inerentes à economia liberal,
assentada essencialmente no mercado, fizeram crescer a demanda pela estabilização
heterônoma da economia. Pretendia-se, com isso, assegurar o crescimento econômico
orientado ao desenvolvimento, por meio da promoção das transformações indispensáveis à
adaptação do sistema às vicissitudes de sua própria evolução. No sentido luhmanniano, ora
adotado, “evolução” significa que o Estado Social, por meio do intervencionismo, buscou
reduzir a complexidade causada pelo avanço desmesurado da economia de mercado.
No âmbito social, o Estado deveria se incumbir de amenizar os impactos causados
pelas múltiplas tensões e desequilíbrios gerados pelo capitalismo, adotando medidas
corretivas e compensatórias capazes de preservar a coesão social. Desse modo, assegurar o
desenvolvimento econômico e limitar as consequências que daí inexoravelmente surgiriam,
por meio da implementação de políticas públicas estabilizadoras, eram premissas
indissociáveis do Estado Social. Assim agindo, o Estado pretende-se tutor da sociedade, cada
vez mais “legitimado” a intervir na organização própria de segmentos sociais estritamente
privados e a regular a abrangência e as diretrizes da atividade econômica, por meio da
inflação legislativa.106
Com base nesse modelo surgiram as primeiras constituições que atribuíam caráter
fundamental aos direitos sociais, tais como Weimar e a Constituição do México. Todavia, foi
somente a partir dos anos vinte, com os efeitos catastróficos da grande depressão e,
posteriormente, com o traumático desfecho da Segunda Guerra Mundial, que o Estado
intervencionista consolidou-se no cenário mundial.
Quando a questão refere-se à aplicação do direito, o Poder Judiciário não mais se
limita a ser a boca que repete o texto legal como era esperado no modelo liberal. Essa tarefa
mecânica de aplicar a dicção legal ao fato mediante mera subsunção foi substituída pela ideia
de um juiz que funciona como boca do direito. A hermenêutica jurídica oferece, a essa época,
106
A crescente juridificação das relações sociais, expressão que teve origem na Alemanha, durante a República
de Weimar, pela perspicácia de autores como Otto Kirchheimer e Franz Neumann, foi por estes utilizada para
criticar o efeito desagregador e desmobilizador da formalização jurídica das relações trabalhistas sobre os
conflitos de classe. Isso porque, à medida que se concediam direitos, estabeleciam-se deveres e impunham-se
obrigações, de tal modo que o legislador “juridificava” o confronto entre o capital e o trabalho, neutralizando o
caráter essencialmente classista desses conflitos. A questão foi criticada pelos autores citados porque tinha o
condão de substituir as discussões político-ideológicas pelas discussões técnico-jurídicas, o que despolitizou e
cristalizou a atuação dos movimentos operários, prestando um desserviço ao aperfeiçoamento das instituições
democráticas (FARIA, 2004, p.134).
108
mecanismos e metodologias que possibilitam o ingresso das perspectivas teleológica,
sistêmica e histórica, “capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do
legislador na direção da vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes
de materialização do direito que ela mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das
necessidades dos programas e tarefas sociais” (CARVALHO NETO, 1999, p. 481). É por isso
que se afirma que no modelo posto pelo paradigma do Estado Social atribui-se ao juiz a tarefa
de concretizar o direito, materializando o princípio da igualdade.
Nada obstante, já nos anos setenta, o modelo tradicional do Estado Social, que veio ao
socorro da insuficiência dos postulados estritamente liberais, estava em franca decadência.
Teve lugar, então, a contrarrevolução neoliberal conservadora que não se contenta com a
interrupção dos avanços do rol de direitos sociais, mas busca ir mais além, pretendendo tirar a
sede constitucional desses direitos. Segundo explicações de matiz econômico-financeira, a
crise seria consequência do déficit orçamentário que o aumento das despesas sociais gerou
nos países centrais do Ocidente, em que o modelo intervencionista e provedor de Estado foi
efetivamente implementado. Esse desequilíbrio entre receitas e gastos deu ensejo ao que se
convencionou chamar de crise fiscal e, por conseguinte, atraiu problemas de governabilidade.
Em síntese, a crise fiscal tornou evidente a necessidade de se impor limites ao endividamento
do Estado, ainda que o aumento desse déficit tenha se dado em razão do aumento das
despesas sociais. Em razão disso, o Estado interventor passa a se assemelhar a uma empresa, e
as sociedades já bastante complexas surgidas da era pós-industrial, que sofria também os
impactos da crescente velocidade com que as informações eram transmitidas, tornavam-se
cada vez mais intrincadas (LEFORT, 1981, p.37-69) e fluidas (BAUMANN, 2001).
Foi em meio a esse processo de complexificação da tessitura social que, nas décadas
de sessenta e setenta, eclodiram movimentos sociais os mais diversos, tais como os
movimentos estudantil, feminista, hippie, pacificista e ecologista. O Estado Constitucional
Democrático ou o Estado Democrático de Direito, como expressa o texto constitucional
brasileiro, surge, nessa esteira de acontecimentos históricos, sociais e econômicos, como uma
alternativa ao modelo eminentemente intervencionista e social. De modo sintético, pode-se
dizer que o Estado Democrático de Direito surge no cenário mundial – ocidental, em regra –
como tentativa de superar a aparente oposição entre o Estado Social e o paradigma anterior,
que consagrava o direito formal burguês (CARVALHO NETO, 1999, p.481). Em vista disso,
postulou-se, por meio do novo modelo, uma nova compreensão constitucional do Estado, em
109
que ao ideal participativo e democrático amplo é acrescido o estrito formalismo do
liberalismo clássico, o que se dá, mais uma vez, por meio do direito.
Tratando-se do paradigma que norteia o desenvolvimento deste trabalho, os aspectos
relevantes do tema serão retomados posteriormente. Por ora, a colocação de duas questões
torna-se relevante: a primeira delas diz respeito à aparente contradição entre o Estado Liberal
e o Estado Social. Nesse ponto, assinala-se que, na perspectiva aqui adotada, as diferenças
entre o Estado Liberal e o Estado Social não são suficientes para que se constate uma relação
de antagonismo entre os dois modelos, como sugerem muitos autores. Ao revés, o que se vê é
uma relação de complementaridade entre eles. Sob o enfoque do modo de produção
capitalista, o reconhecimento dos direitos sociais mais contribuiu para que as novas condições
da sociedade tornassem-se adaptáveis às novas exigências do capitalismo tardio.
A esse propósito, interessante relembrar que um novo paradigma não se presta a
desconstruir os avanços ou as “invenções” típicas do paradigma anterior, sobretudo quando se
trata dos reflexos dessas mudanças paradigmáticas no âmbito do direito. Há sempre um liame
de continuidade – resquícios daquilo que se incorporou à sociedade e passaram a integrar sua
condição evolucionária – que não pode ser desprezado pelo paradigma que surge em seguida.
Isso, por outro lado, não impede que a ruptura se faça presente em muitos momentos na base
teórica que sustenta um e outro paradigma. Em outro momento, a questão será retomada sob o
enfoque crítico de Jürgen Habermas.
A segunda questão a ser colocada diz respeito às dimensões geracionais dos direitos
que, de algum modo, vinculam-se aos mencionados paradigmas e auxiliam na compreensão
da problemática que envolve os direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito,
sobretudo pela potencialidade didática que essa classificação por gerações traz em si. A
advertência referida no parágrafo anterior aplica-se novamente às dimensões de direitos, uma
vez que houve uma agregação de novos direitos e, por ocasião do Estado Democrático de
Direito, uma releitura do âmbito de abrangência dos direitos surgidos em paradigmas
anteriores.
No plano internacional, em 1951 a Assembleia Geral das Nações Unidas propôs dois
pactos distintos, em que pretendia tratar, separadamente, de duas diferentes categorias de
direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Cançado Trindade (2003, p.446-447) explica
que, àquela época, pressupunha-se que, ao passo que os direitos civis e políticos poderiam ser
aplicados independentemente de qualquer regulamentação específica no plano interno de cada
110
país, os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis de aplicação progressiva,
porquanto dependiam de uma atuação direta do Estado para se concretizaram. Todavia, o
mesmo autor alerta que essa dicotomia surgiu antes “como um reflexo da profunda divisão
ideológica do mundo no início dos anos cinquenta” que estava polarizado entre o capitalismo
e o socialismo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
O autor segue esclarecendo que já se antevia a fragilidade dessa construção
dicotômica, dado o seu potencial fragmentador dos direitos fundamentais. Segundo ele, uma
leitura atenta das diretrizes consubstanciadas no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos é suficiente à conclusão de que alguns desses direitos também serão implementados
progressivamente pelos Estados-Parte. Do mesmo modo, o Pacto de direitos econômicos,
sociais e culturais107
reconhece o caráter fundamental desses direitos – direito ao trabalho em
condições condignas, à cultura, à seguridade social, à saúde física e mental, à educação de
qualidade, que contemple disciplinas relacionadas aos direitos humanos e à importância na
vida social e política do país etc. – e estabelece que os Estados-Parte devam investir o
máximo de recursos de que disponham para, progressivamente, atribuir plena efetividade aos
direitos reconhecidos pelo Pacto.108
Poderia acrescentar-se que a ênfase ao caráter progressivo
da implementação dos direitos sociais e econômicos em parte se justifica pelo fato de eles
terem sido reconhecidos em momento mais recente da história mundial, relativamente aos
direitos civis e políticos.
Essa ideia de que alguns direitos – civis e políticos – têm caráter negativo porque
impõem um não fazer estatal, ao passo que os direitos sociais e econômicos são positivos,
pois demandam uma ação estatal para se efetivarem e a tradição júridica que se consolidou
nesse sentido parecem ter sido estimuladas pela nomenclatura cunhada originalmente por
Isaiah Berlin, no texto “Dois conceitos de liberdade” apresentado em Oxford, em 1958. O
autor distinguiu as liberdades negativas das liberdades positivas, levando em consideração os
107
Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais, de 1966 foi ratificado pelo Brasil em 24 de
janeiro de 1992, quando, na qualidade de Estado-Parte, obrigou-se a desenvolver programas voltados para a
consolidação progressiva de todos os direitos fundamentais ali reconhecidos. O compromisso destina-se tanto à
adoção de políticas públicas especificas, quanto à promoção de ações compatíveis com sua efetivação para todos
os seus cidadãos. O primeiro relatório só foi apresentado em 2001 e a sociedade – esfera pública – teve a
iniciativa de levar ao conhecimento do comitê o nível de engajamento estatal no cumprimento da pactuação.
Recentemente, o comitê emitiu um parecer sobre a situação brasileira no que diz respeito ao “PIDESC”, em que
foram expedidas varias recomendações à administração brasileira. O documento está disponível no site
www.presidencia.gov.br. 108
“Cada uno de los Estados Partes en el presente Pacto se compromete a adoptar medidas, tanto por separado
como mediante la asistencia y la cooperación internacionales, especialmente económicas y técnicas, hasta el
máximo de los recursos de que disponga, para lograr progresivamente, por todos los medios apropiados,
inclusive en particular la adopción de medidas legislativas, la plena efectividad de los derechos aquí
reconocidos.”
111
sentidos políticos que o significado do que seja liberdade pode assumir em cada contexto. A
terminologia cunhada por Berlin deu azo a inúmeras releituras que acabaram por aplicá-la, no
plano eminentemente jurídico, como distinção intrínseca aos direitos fundamentais entre os
que representavam liberdades positivas e aqueles que correspondiam às liberdades negativas,
tendo como traço distintivo a interferência ou não do Estado para o processo de concretização.
Contudo, a tipologia elaborada por Berlin, à época, atribuía uma conotação eminentemente
política, em que procurava ressaltar a preponderância da liberdade negativa em desfavor da
positiva, num contexto emoldurado pela Guerra Fria.109
A liberdade positiva seria, portanto,
uma possibilidade de autogoverno e participação, não se restringindo ao caráter prestacional
dos respectivos direitos. Essa questão será retomada (infra 4.4) pela ótica da teoria do custo
dos direitos.
Voltando-se à cronologia histórica proposta, pode-se dizer que a crescente
conscientização a respeito das consequências de uma visão bipartida dos direitos
fundamentais tornou-se mais evidente por ocasião da I Conferência Mundial de direitos
Humanos realizada em Teerã, em 1968. Nessa conferência declarou-se a indivisibilidade dos
direitos humanos fundamentais, firmando-se que a fruição de direitos civis e políticos
demanda, inelutavelmente, a plenitude dos direitos sociais e econômicos e vice-versa
(CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 452).
Algum tempo depois, em 1979, Karel Vasak apresentou uma nova proposta para se
classificar as diversas categorias de direitos fundamentais. Conforme expôs em palestra
ministrada no Instituto Internacional de direitos do Homem em Estraburgo, o processo de
evolução dos direitos fundamentais vinculava-se a momentos históricos que atribuíam
contornos ao que deveria ser tido como fundamental, no âmbito jurídico. A cada período
histórico, o autor sugere que tenha existido uma geração de direitos. Para Vasak, cada um dos
três modelos paradigmáticos de Estado está associado a uma geração distinta de direitos
fundamentais.
São três as ondas geracionais de direitos, propostas por Vasak. A primeira geração foi
uma aquisição própria das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, em que
109
O primeiro desses sentidos políticos de liberdade individual ou liberdade institucional (far-se-á uso de ambas
as expressões para dizer a mesma coisa), o qual (com base em muitos precedentes) será chamado de sentido
“negativo”, vem incorporado na resposta à pergunta: “Qual é a área em que o sujeito – uma pessoa ou um grupo
de pessoas – deve ter ou receber para fazer, ou ser o que pode ser, sem que outras pessoas interfiram?” O
segundo, que será chamado de sentido positivo, vem incorporado na resposta à pergunta: “O que ou quem é a
fonte de controle ou de interferência que pode determinar que alguém faça ou seja tal coisa e não outra?” As
duas perguntas são nitidamente distintas, mesmo que se possam sobrepor as respostas a ambas (BERLIN, 1981,
p.136).
112
predomina a ideia de direito como liberdade – de ter, de se expressar, de eleger os
governantes etc que corresponde ao paradigma do Estado Liberal. A segunda geração de
direitos estabeleceu-se no paradigma do Estado Social, em virtude dos movimentos social-
democratas e da Revolução Russa, razão por que predominava a ênfase à igualdade.
Finalmente, a terceira geração de direitos, construída sobre os escombros da trágica
experiência que a Segunda Guerra Mundial representou para a humanidade, trouxe destaque
ao valor fraternidade.
A classificação proposta por Vasak é importante para facilitar a compreensão da
evolução aquisitiva dos direitos. Além disso, é acolhida em diversas concepções atuais de
direitos fundamentais, tendo sido amplamente desenvolvida por importantes teóricos do
direito, como Norberto Bobbio, por exemplo. Entretanto, não merece aceitação irrestrita, pois,
a despeito da aparente ruptura entre uma e outra geração de direitos, há importantes liames de
continuidade. A conquista de direitos econômicos e sociais só se fez possível graças ao
reconhecimento anterior de direitos de liberdade. Se a aquisição de direitos tem relação direta
com o processo histórico experimentado pela sociedade, é inegável que esse processo é
dinâmico. Assim, a agregação de novos direitos apenas possibilita uma reinterpretação
daqueles advindos da geração anterior. A visão de Vasak, por tratar linearmente a história,
desconhece essa dinâmica, por meio da qual uma geração absorve, sob outro enfoque,
arcabouços jurídicos precedentes.
A noção de direitos como gerações ou dimensões historicamente referenciadas é
relevante, como se afirmou, sobretudo do ponto de vista didático, quando se percebe que as
ondas geracionais são fruto do modelo paradigmático de Estado que as conformaram.
Assim é que no paradigma do Estado Democrático de Direito são consagrados os
direitos de terceira geração, decorrentes de interesses coletivos e difusos. Os direitos
consagrados nos modelos anteriores, por outro lado, têm sua dimensão revisitada para se
adequarem à moldura do novo paradigma.
Nessa perspectiva, tem lugar uma releitura segundo a qual os direitos de primeira
geração são havidos como direitos de participação no debate público, com carga
procedimental capaz de informar a soberania constitucional do Estado Democrático de
Direito. O princípio da Separação de Poderes adquire novos contornos, em que o Poder
Judiciário amplia sua atuação no processo de concretização dos consectários do novo
paradigma, uma vez que a ele compete viabilizar a legitimação do Estado democrático pelo
procedimento da cidadania.
113
A cidadania aqui passa a ser compreendida como participação efetiva no processo
decisório; o indivíduo tornado cidadão abandona a passividade e interage no processo
político. É nesse sentido que a concepção de cidadania vincula-se à noção de procedimento:
ela demanda a institucionalização de mecanismos próprios à otimização da participação
discursiva no processo de formação da opinião e da vontade públicas. A mudança é bem
explicada por Cruz (2001, p. 223):
A luta por dignidade leva a sociedade, de uma postura passiva para uma atitude
francamente ativa. O cliente do Estado-Providência desiste de esperar. Levanta-se e
se organiza. Os limites da vontade institucional/estatal e da vontade informal/privada
desaparecem. Já não há mais uma clara separação entre Estado e Sociedade, uma vez
que seus canais de comunicação mesclam-se de modo atordoante.
Ao adentrar a questão relativa à função de inclusão dos direitos fundamentais e sem
perder de vista a noção de indivisibilidade que os une e os torna igualmente exigíveis,
destaca-se que, nas últimas décadas, a cidadania tem se desenvolvido no sentido de assegurar
e ampliar direitos referentes a interesses coletivos e difusos, entendidos como direitos de
quarta geração.
A importância desses novos direitos está na possibilidade de que eles viabilizem
ações concretas eficazes contra as práticas ilícitas e socialmente danosas das “grandes
organizações impessoais, que se fortificam cada vez mais no mundo de hoje, o que não seria
possível no período individualista dos direitos” (NEVES, 2008, p.177).
A dimensão da estrita relevância social que marca essa nova categoria de direitos pode
ser atribuída à massificação dos conflitos sociais e o desafio de fazer das cidades um habitat
tolerável para o homem, que se pretende seja cidadão. Isso é bem observado por Capelletti
(apud PÉRISSÉ, 2006, p.124-125):
Cada vez mais frequentemente, por causa dos fenômenos da massificação, as ações e
relações humanas assumem caráter coletivo, mais do que individual: elas se referem
preferentemente a grupos, categorias e interesses de pessoas, do que apenas a um ou
poucos indivíduos […]. E, na verdade, cada vez mais frequentemente, a
complexidade das sociedades modernas gera situações nas quais um único ato do
homem pode beneficiar ou prejudicar um grande número de pessoas, com a
consequência, entre outras, de que o esquema tradicional do processo judiciário
como „lide entre duas partes‟ (zweipartelenprozess) e „coisa das partes‟ (sache der
parteien) resulta completamente inadequado.
Equivale a dizer que o reconhecimento da possibilidade da defesa coletiva de direitos,
ou mesmo de novos direitos de natureza difusa ou coletiva, ganha força na medida em que se
verifica que os indivíduos isoladamente não conseguem fazer face às inúmeras violações de
114
direito de que são vítimas, tendo como o algoz as grandes organizações (financeiras, políticas
ou até mesmo criminosas), ou até mesmo o Estado como o ente violador.
As mudanças havidas no sistema jurídico em decorrência do advento do Estado
Democrático de Direito são de suma relevância para os objetivos deste trabalho, sobretudo
porque não se pode falar em efetivação de direitos fundamentais sem que se pense na
concepção de cidadania delineada nesse novo paradigma. No entanto, antes que se adentrem
as questões específicas do Estado Democrático de Direito Brasileiro, é importante que sejam
lançadas as bases para a compreensão dos direitos fundamentais sobre o ponto de vista
discursivo e sistêmico que, pelo entendimento aqui encampado, corresponde às demandas
desse paradigma que conforma o sistema jurídico contemporâneo.
4.3 Direitos fundamentais sob as perspectivas discursiva e sistêmica
À guisa de introdução pode-se dizer que a conquista de novos direitos passa por três
momentos jurídico-políticos (NEVES, 1994, p. 260). O primeiro deles já foi apresentado,
sobre outro enfoque, nos itens antecedentes e refere-se à semântica dos direitos humanos. O
segundo momento identifica-se com a perspectiva dos direitos humanos que já foram
incorporados ao texto constitucional sob a forma de direitos fundamentais e será tratado neste
tópico. O último momento jurídico-político dos direitos da cidadania será tratado na parte
final deste capítulo e diz respeito à força normativa das disposições constitucionais relativas
aos direitos fundamentais.
Dito isso, torna-se necessário fazer referência à perspectiva teórica híbrida que se
pretende, quando se estabelece a conexão entre a teoria discursiva – em que predomina o
caráter pragmático – e a teoria dos sistemas – na qual a perspectiva sistêmica é mais
radicalizada – na análise dos direitos fundamentais. Como já se pôde observar na exposição
precedente, há vários traços distintivos e até contraditórios entre ambos os modelos cuja
intensidade varia conforme o ponto de vista da observação. A utilização de uma leitura
aproximativa e complementar dos dois autores, com base na proposta de Neves (1994; 2008),
é motivada pela intenção de destacar a importância de se levar a sério a teoria da cidadania e
os direitos fundamentais que lhe atribuem sentido. Vale dizer: o esforço se dá no sentido de
contribuir para o debate em torno da cidadania de modo a afastá-lo do mero uso estratégico e
da tendência demagógica, típica da retórica política, de empregar a semântica dos direitos do
115
cidadão sem considerar as “condições estruturais e conjunturais de sua realização” (NEVES,
1994, p. 254).
Como conquistas evolutivas da modernidade, os direitos fundamentais podem ser
pensados como resultantes da “abertura dos procedimentos jurídicos à evolução da
consciência moral para o nível pós-convencional” ou como resposta à diferenciação funcional
da sociedade e à “exigência de inclusão nos diversos sistemas sociais” (NEVES, 1994, p.260).
A primeira perspectiva coincide com a proposta discursiva de Habermas e a segunda diz
respeito à concepção de direitos fundamentais e teoria da cidadania de Luhmann, como se
verá a seguir.
Ainda em 1965, Luhmann dedicou-se a escrever sobre os direitos fundamentais, época
em que publicou Direitos fundamentais como instituição. Pela primeira vez, o autor vinculou
as modificações pelas quais passou a sociedade ao longo da história ao processo de
diferenciação do direito. A essa época, influenciado pelos indesejáveis desdobramentos da
ascensão do regime nacional-socialista na Alemanha, Luhmann pensava a
institucionalização110
dos direitos fundamentais como um modo de evitar que o direito se
submetesse à política, perdendo sua condição de sistema funcionalmente diferenciado. Na
leitura luhmanniana, o nacional-socialismo foi um processo de desdiferenciação sistêmica em
que o código da política fez-se impor a todos os demais subsistemas, aniquilando qualquer
possibilidade de diferenciação entre os sistemas, inclusive entre os indivíduos.
Nesse contexto, os direitos fundamentais teriam a função precípua de impedir a
desdiferenciação entre os subsistemas sociais, protegendo-os da tendência expansiva e
colonizadora dos outros subsistemas, notadamente, da política. Somente num plano
secundário é que Luhmann considerava os efeitos da institucionalização dos direitos
fundamentais diretamente para os indivíduos. De toda sorte, os direitos fundamentais como
instituição são uma conquista evolutiva tanto do indivíduo quanto do Estado (LUHMANN,
2002, p.17).
Liberdade, igualdade, dignidade como direito à individualização e à
autorrepresentação, direito ao voto, direito a ter acesso mínimo à propriedade que garanta o
suprimento das necessidades básicas do indivíduo, por exemplo, não são meros valores
negociáveis ou renunciáveis no âmbito da decisão jurídica (legislativa ou judicial). Eles são
110
Instituições em Luhmann (2002) são expectativas de comportamento generalizadas no aspecto temporal – em
que se dá a normatização – e material – em que há a generalização de sentido e social, dimensão na qual ocorre o
consenso suposto. As instituições fazem parte da estrutura dos sistemas sociais. Em momento posterior de sua
pesquisa, contudo, Luhmann restringe as instituições ao âmbito da dimensão social, ou seja, do consenso
suposto.
116
direitos fundamentais porque constituem premissas para a diferenciação funcional entre os
subsistemas de uma sociedade; atendem à exigência mínima para que o exercício da função
de editar decisões vinculantes mantenha-se legítimo, a despeito da complexidade da sociedade
contemporânea. A liberdade e a igualdade são pressupostos de uma ordem social diferenciada
que estabelecem critérios para a conformação das decisões políticas – vinculantes por
definição – ou, nas palavras do próprio autor (LUHMANN, 2002, p.245):
No momento em que uma ordem social se constitui em um subsistema relativamente
autônomo de decisões vinculantes, daí podem derivar dois tipos de perigo: o
primeiro é que as decisões vinculantes obriguem o cidadão a comportamentos que
não correspondam à "estrutura social diferenciada" – ao que se opõem os direitos de
liberdade; o outro é que as decisões desse mesmo Estado não correspondam às
exigências estruturais de uma "ordem social diferenciada" – ao que se opõem os
direitos de igualdade.111
Como a concepção de ação – até então unidade analítica básica da sociologia
tradicional – é substituída pela noção de comunicação, que se tornou a unidade elementar para
a análise da sociedade em Luhmann, os direitos fundamentais são examinados a partir da
prestação que deles pode se esperar: a potencialização da capacidade comunicativa dos
indivíduos. Explica-se: como a sociedade é constituída por comunicações, os direitos
fundamentais se prestam a viabilizar a fruição dessas comunicações pelas vias sistêmicas.
Tendo em vista que o indivíduo é um sistema de sentido, as comunicações devem,
necessariamente, passar por eles. Daí porque, para que sejam veículos eficientes dessa
comunicação e não bloqueiem o respectivo fluxo comunicativo, os indivíduos devem ter
acesso a todos os subsistemas sociais, como educação, saúde, direito, política, economia e
assim se constituírem como pessoas titulares de direitos inalienáveis. Sabendo-se do nível de
complexidade da sociedade moderna, os direitos fundamentais devem considerar a pluralidade
e a contingência das expectativas e permitir que cada indivíduo se identifique – ao se
diferenciar dos demais – dando vazão à conformação de sua personalidade como algo
singular.
Deve-se observar que a concretização de direitos fundamentais, como é sempre
onerosa e, via de regra, exigida do ente estatal, envolve uma rede de comunicações entre os
sistemas que se pode dizer multissistêmica. É nesse ponto, que adquire relevância o
111
Allorché in un ordine sociale si costituisce un sottosistema relativamente autonomo di decisioni vincolanti, ne
possono derivare due tipi di pericolo: il prime è che le decisioni vincolanti obblighino il cittadino a
comportamenti che non corrispondono alla struttura sociale differenziatta - a ciò si oppongono i diritti di libertà;
l´altro è che le decisioni dello stesso stato non corrispondano alle esigenze strutturali di un ordine sociale
differenziato - a ciò si oppongo i diritti di uguaglianza." (2002, p.245)
117
tratamento que será dado às comunicações entre os sistemas envolvidos na efetivação de um
direito fundamental.
Quando se observa o direito à educação, por exemplo, sob a perspectiva sistêmica,
percebe-se que são utilizadas informações e prestações provenientes de vários sistemas. O
sistema da educação oferecerá as bases técnicas para que se considere qual a política
educacional mais adequada; no caso brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9394/96), formulada sob a orientação constitucional prevista no art. 205,
decodifica para o direito as informações técnicas que somente o sistema da educação pode
fornecer a partir de sua codificação binária própria. A prestação do sistema da educação,
portanto, é oferecer o ensino e propiciar o aprendizado científico e a formação social e
política dos indivíduos. O sistema político, no caso, seleciona a política pública que será
executada pelo sistema da educação – como fez no plano constitucional e infraconstitucional
– oferecendo como prestação ao sistema da educação o aparelhamento necessário para que
este propicie condições de aprendizado aos alunos. O sistema econômico aqui é representado,
no plano estatal, pelas finanças públicas, uma vez que a educação pública é custeada por
recursos do erário. Nesse caso, o sistema econômico oferece como prestação a fonte de
financiamento da política pública correspondente, por meio de seu código próprio: ter/não ter.
O sistema jurídico, por sua vez, tem como prestação a resolução dos conflitos envolvendo o
direito à educação. Portanto, se a questão for levada ao sistema jurídico para apreciação,
caberá a ele observar as informações e as prestações fornecidas por todos os sistemas
envolvidos e assimilá-las por meio de sua abertura cognitiva mediante a filtragem dessas
comunicações pelo código próprio do direito e, assim, definir o que é lícito e o que é ilícito. A
capacidade do sistema jurídico de filtrar e decodificar essas informações, como se viu, é que
garante o fechamento operativo do sistema jurídico.
Com isso se quer dizer que todos os sistemas envolvidos devem ter o código do
sistema jurídico como código secundário que orienta todas as operações dos sistemas. O
caráter coercitivo ínsito à função do direito de generalizar congruentemente as expectativas
normativas atua como motivação aos demais sistemas a observarem o código lícito/ilícito nas
suas comunicações internas e na relação com os outros sistemas. Como se pretende abordar
no capítulo seguinte, na ambiência do Estado Democrático de Direito, os orçamentos públicos
– aqui considerados sob a perspectiva do enlace transversal entre direito, economia e política
– não pode, por exemplo, deixar de contemplar o investimento mínimo previsto
constitucionalmente para as políticas públicas de saúde, sob pena de o sistema político se
118
submeter à revisão e à eventual sanção imposta pelo sistema jurídico. Ademais, até a
disparidade entre os níveis de investimentos nas políticas públicas relativas a direitos
fundamentais e em outros programas deve ser submetido à lógica do lícito e ilícito.
Por outro lado, a necessidade de que os sistemas permaneçam autônomos pela
ininterrupção da cadeia de comunicação que os diferencia e, apesar disso, possam se interligar
a partir do acesso de um mesmo indivíduo a vários subsistemas sociais relaciona-se
diretamente com o conteúdo interdisciplinar que a indivisibilidade dos direitos fundamentais
assegura aos respectivos titulares. Vale dizer, quando um mesmo indivíduo usufrui das
prestações de vários sistemas, estas devem se interrelacionar para que sejam eficientes no
sentido de proporcionar ao indivíduo a efetiva inclusão que o direito fundamental
correspondente lhe assegura. Dessa forma, se um aluno do sistema de educação apresenta uma
moléstia que impede seu aprendizado, é necessário que essa informação proveniente do
sistema de saúde seja processada no interior do sistema da educação para que haja a
integração sistêmica necessária à fruição do direito a aprender. É nesse sentido que as
legislações relativas à saúde, educação e assistência social preveem a necessidade dessa
integração.
Na teoria da cidadania de Thomas Marshall (apud DOMINGUES, 2001, p. 218), para
quem incluir politicamente o indivíduo significa dotá-lo do status de cidadão,112
a definição
de cidadania se assenta em três dimensões: civil, política e social. A dimensão civil é
composta pelos direitos relacionados à liberdade individual, como, por exemplo, o direito de
acesso ao sistema jurídico e ao regular processamento da demanda em condição de igualdade.
A segunda dimensão que integra tal definição de cidadania diz respeito aos direitos de
participação política que possibilitam ao cidadão participar ativamente no processo
democrático da formação da opinião e da vontade. Por fim, o autor alinha o elemento social
da sua teoria da cidadania, que se relaciona diretamente ao tema deste trabalho:
O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, da herança social e
levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na
sociedade. As instituições mais intimamente ligadas a este elemento da cidadania
são o sistema educacional e os serviços de assistência social.113
112
Status é definido pelo autor (MARSHALL, apud DOMINGUES, 2001, p. 219) como algo que abrange todo o
comportamento que a sociedade espera de uma pessoa na sua capacidade de ocupante da posição e, também,
todo o comportamento recíproco adequado dos outros para com ela. 113
“No original, a passagem final é a seguinte: „[…] the right to a modicum of economic welfare and security to
the right to share in the full in the social heritage and to live the life of civilized being according to the Standards
prevailing in the society‟” (Marshall, apud Domingues, 2001, p.219).
119
Marshall sustenta que essa sequência de direitos, a partir de uma lógica em que uns se
desdobram em outros, tornou possível assegurar e ampliar gradativamente o status de
cidadãos nas sociedades ocidentais nos últimos dois ou três séculos.
Embora mantenha as restrições inerentes ao modo peculiar da sua concepção de
evolução social,114
Luhmann (2007, p. 48-49) formula sua concepção de Estado de bem-estar
como a realização do princípio da inclusão, de modo a compatibilizá-la com a contribuição de
Marshall. Veja-se:
O homem, como indivíduo, vive fora dos sistemas funcionais, mas cada um deve ter
acesso a cada sistema funcional sempre e na medida em que seu modo de vida lhe
exija recorrer às funções sociais. Na perspectiva do sistema social, esta pretensão se formula como princípio de inclusão. Todo sistema funcional serve a toda a
população, porém somente naqueles aspectos que são funcionalmente relevantes
para seu modo de vida. Todos gozam de capacidade jurídica e proteção legal, todos
podem ter ou gastar dinheiro etc. Por detrás dessas normas de inclusão, a
desigualdade efetiva de possibilidades se torna um problema; precisamente porque
já não se apoia no esquema de diferenciação da sociedade, mas se reproduz de modo
antifuncional. A realização do princípio de inclusão no âmbito funcional da política
tem como consequência o trânsito para o Estado de bem-estar. (Tradução livre).115
Assim, como prestação social oferecida pelas constituições modernas, os direitos
fundamentais servem à inclusão pretendida pelo Estado de bem-estar, que se refere à inserção
de toda a população nas prestações de cada um dos subsistemas da sociedade. A ampliação do
acesso às prestações dos subsistemas sociais, assim, faz com que haja maior participação do
indivíduo na vida social. Por outro lado, a negativa ao acesso gera mais exclusão e tende a
manter os indivíduos na marginalidade. Nesse sentido, os direitos fundamentais sociais
adquirem especial relevância, pois são imprescindíveis à institucionalização efetiva dos
demais direitos fundamentais, sejam de natureza civil ou política. Isso porque a inclusão da
população nos diversos subsistemas sociais é pressuposto para a manutenção da diferenciação
114
Essa ressalva é pertinente porque as perspectivas de sequência histórica de afirmação de direitos, que aparece
de modo mais marcante na teoria das gerações de direitos humanos de Norberto Bobbio, por exemplo, apontam
para uma noção de civilização como progresso; como se a marcha aquisitiva de direitos sempre se dirigisse à
realização teleológica da natureza (indefectível) do homem. Tal construção contraria, como já se viu, a noção de
evolução social que embasa a teoria sistêmica de Luhmann, que vê o futuro como produto aleatório das escolhas
contingentes do presente. 115
El hombre, en tanto que indivíduo, vive fuera de los sistemas funcionales, pero cada uno debe tener acceso a
cada sistema funcional siempre y en tanto que su modo de vida le exija el recurso a las funciones sociales. Desde
la perspectiva del sistema social, esta presensión se formula com el principio de la inclusión. Todo sistema
funcional incorpora a toda la población pero sólo em aquellos aspectos de su modo de vida que posean la
respectiva relevância funcional. Todos gozan de capacidad jurídica y protección legal, todos reciben educación
escolar, todos pueden adquirir o gastar dinero, etc. Sobre el trasfondo de estas normas de inclusión, la
desigualdad efectiva de possibilidades deviene em problema; precisamente porque ya no se apoya sobre el
esquema de diferenciación de la sociedad, sino que se reproduce de modo afuncional. La realización del
principio de inclusión em el âmbito funcional de la política tiene como consecuencia el tránsito al Estado de
Bienestar.
120
funcional entre os sistemas, uma vez que se o número de excluídos for crescente, mais difícil
será que os sistemas operem de modo autorreferencial.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, na sociedade supercomplexa de hoje,
fundada em expectativas e interesses os mais diversos entre si e contraditórios, o
direito só poderá exercer satisfatoriamente sua função de congruente generalização
de expectativas normativas de comportamento enquanto forem institucionalizados os
princípios da inclusão e da diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos
fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberdade civil e à
participação política (NEVES, 2007, p.78).
Em momento posterior de suas reflexões, Luhmann (2000) passa a atribuir maior
importância ao caráter paradoxal da construção social dos direitos fundamentais e apresenta
três formas de desdobramento dos paradoxos que envolvem o conceito de direitos humanos.
O primeiro deles refere-se à noção de contrato social originário e o surgimento dos direitos
humanos. O paradoxo aqui diz respeito ao questionamento sobre quem viria primeiro, o
contrato social ou os indivíduos. O segundo paradoxo apontado pelo autor relaciona-se ao
fenômeno de positivação dos direitos humanos. A pergunta, nesse caso, é se os direitos
humanos são pré-positivos ou se a validade jurídica deles dependeria da respectiva
positivação.
Isso porque, no âmbito do Estado Democrático de Direito, as expectativas normativas
relacionadas à inclusão generalizada só se revestem de validade jurídica quando se submetem
ao procedimento democrático – constituinte ou constitucional – para tanto. Sempre haverá
expectativas normativas com pretensões de ingresso no sistema jurídico, enquanto outras já se
tornaram direitos fundamentais porque passaram pelo procedimento de ingresso no sistema.
Se ainda assim o paradoxo persiste – e pode ser representado pelo paradoxo mesmo do
sistema jurídico que é operativamente fechado e cognitivamente aberto –, há a vantagem de
que pode ser observado por todos, pois não se submete a nenhuma estratégia de ocultação.
Assim, segundo Neves (2008, p.431):
A forma de administrar esse paradoxo, no Estado Democrático de Direito, foi a de tornar a positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais dependente de
procedimentos constitucionais, ao mesmo tempo seletivos em face da pluralidade de
expectativas normativas referentes à inclusão jurídica generalizada, quanto abertos e
promotores dessa mesma pluralidade.
Por último, Luhmann destaca o paradoxo da universalização dos direitos humanos,
que é obstada tanto pela negação direta de muitos Estados à garantia dos direitos humanos no
âmbito de seus textos jurídicos de hierarquia constitucional quanto pela mera textualização
constitucional dos direitos humanos sem que disso decorra a força normativa necessária para a
121
concretização de tais direitos. A observação paradoxal, nesse caso, é a de que a força dos
direitos humanos não é percebida no seu processo de afirmação; ao contrário, é a violação dos
direitos humanos que repercute estrondosa e negativamente na comunicação social, por meio
de organizações ou movimentos de protesto, e afirma sua validade. Daí, a seguinte afirmação
do autor (2000, p.158):
A forma mais atual de afirmação dos direitos humanos poderia ser assim,
simultaneamente, a mais original (mais natural). Normas são reconhecidas por meio
de suas violações; e os direitos humanos na medida em que são descumpridos.
Vale dizer, é necessário que haja o descumprimento da positividade dos direitos
humanos para que se processe novamente sua readequação semântica e estrutural na
sociedade moderna.
Partindo da compreensão de que os direitos humanos são um paradoxo que decorre do
modo ambíguo como foram estruturados na sociedade moderna, ou seja, pela forma paradoxal
da diferenciação funcional, Juliana Neuenschwander Magalhães propõe um novo
desdobramento para os três paradoxos apresentados por Luhmann (2000).
Inicialmente, propõe que os direitos humanos são mecanismos de reação ao processo
de diferenciação funcional, viabilizados por meio do acoplamento estrutural entre o direito e
os outros sistemas funcionalmente diferenciados. A função dos direitos humanos – assim
como a ideia de soberania popular – seria, portanto, oferecer uma mesma base fundante para
direito e política modernos. No que diz respeito aos subsistemas sociais diferenciados, os
direitos humanos oferecem prestações, pois estabelecem um modo de comunicação entre os
sistemas em geral e o sistema jurídico.
O paradoxo da positivação dos direitos humanos é revisitado e explicado como outra
prestação que a semântica moderna dos direitos humanos ofereceu ao sistema político. Assim,
a noção de revolução agregou-se à semântica dos direitos humanos e, em consequência disso,
seguiu-se o processo de constitucionalização firmando-os como direitos fundamentais e, a um
só tempo, impedindo que se retrocedesse às compreensões e condições pré-revolucionárias.
Já Neves (2008b, p. 430) propõe outra leitura do paradoxo relativo à positivação dos
direitos humanos que aparece “na forma da necessidade da positivação de direitos pré-
positivos”. Segundo ele, um desdobramento desse paradoxo, para além da proposta de
Luhmann, seria estabelecer uma distinção entre a semântica política e social dos direitos
humanos e a semântica jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Isso porque, no âmbito do
Estado Constitucional Democrático, as expectativas normativas referentes à inclusão jurídica
122
generalizada só adquirem validade jurídica se passam pelo crivo dos procedimentos
democráticos, sejam eles constituintes ou constitucionais.
A questão é que os direitos humanos se situam na zona-limite entre o sistema jurídico
e seu ambiente, ora na parte externa, como expectativas normativas que pretendem ingressar
no sistema e se tornar norma jurídica válida; ora na parte interna da fronteira jurídica, como
direito fundamental assegurado constitucionalmente, constatação que, por si só, é ambígua.
Todavia, a superação dessa ambiguidade é inviabilizada pela constatação da pluralidade e da
diversidade de compreensões acerca do próprio conteúdo dos direitos humanos na sociedade
complexa.
A estabilização ou a gestão desse paradoxo deu origem, então, à exigência de que a
seleção das expectativas normativas emergentes na sociedade pluralística moderna se desse
por meio de procedimentos constitucionais. Os procedimentos constitucionais tanto
selecionam as expectativas que serão tornadas normas jurídicas, quanto possibilitam o
ingresso de novas expectativas por meio de novos processos de seleção, o que contribui para a
preservação da pluralidade.
Os direitos humanos, nesse contexto, são “expectativas normativas orientadas para a
inclusão jurídica em condições de dissenso estrutural” que demandam a institucionalização de
procedimentos democráticos que se destinem a garantir a convivência social e política como
forma de assimilar o dissenso e, ao mesmo tempo, possibilitar o surgimento de novos
dissensos. Assim, a institucionalização dos direitos humanos pressupõe que haja consenso no
que diz respeito ao procedimento democrático em si, de sorte a possibilitar o dissenso sobre o
conteúdo dos direitos humanos (NEVES, 2008, p.427).
A teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas, ao se referir ao sistema de direitos
como ponto central no Estado Democrático de Direito, propõe uma perspectiva histórica para
a análise dos direitos fundamentais. Fazendo menção à matriz sistêmica de Talcott Parsons,
Habermas (2003, p. 107) também põe em relevo a referência empírica à expansão dos direitos
dos cidadãos que Thomas Humphrey Marshall havia construído a partir de suas pesquisas no
âmbito do processo de modernização capitalista, com a ressalva de que a ampliação dos
direitos de cidadão não deixa de ser resultado das lutas e movimentos sociais. Segundo
Habermas, é inegável que migrações e guerras, como tipos de movimentos sociais
extraordinários que são, também contribuíram para a ampliação do status de cidadão em
variadas dimensões. Pontua o autor (HABERMAS, 2003, p.108), contudo, que os “fatores que
estimulam a juridificação de novas relações de inclusão têm efeitos distintos também sobre a
123
mobilização política da população e, assim, sobre a ativação dos direitos dos cidadãos já
existentes”.
O status de cidadão, entretanto, não pode ser considerado no plano eminentemente
empírico, tampouco reduzido ao aspecto normativo. Os direitos, por outro lado, também
podem ser considerados tanto do ponto de vista moral quanto jurídico. A retroalimentação
entre a autonomia privada e autonomia pública ou a relação de complementaridade entre
ambas é expressa, segundo o autor, pelo sistema de direitos, uma vez que os cidadãos devem
atribuir-se reciprocamente direitos fundamentais “caso queiram regular sua convivência com
os meios legítimos do direito positivo” (HABERMAS, 2003, p.154). É partindo desse
pressuposto que o autor organiza o sistema de direitos em categorias capazes de explicitar a
nota de fundamentalidade que os caracterizam, “uma vez que determinam o status das pessoas
de direito” (HABERMAS, 2003, p. 159).
A primeira delas reconhece a fundamentalidade dos direitos pertinentes ao
reconhecimento recíproco, entre os indivíduos, de iguais liberdades subjetivas de ação. Trata-
se de plano estruturante da comunidade artificial de sujeitos de direito, cuja manifestação é
precedida da especificação de quais direitos podem ser reclamados judicialmente. Já a
segunda categoria refere-se aos direitos fundamentais que se referem à circunscrição artificial
e voluntária promovida pelos sujeitos de direito. Estabelece-se a comunidade jurídica –
associação voluntária de parceiros do direito –, o que permite a distinção entre membros e não
membros. O terceiro grupo é constituído pelos direitos fundamentais relacionados à
possibilidade de o indivíduo, supostamente lesado em suas pretensões, provocar a função
jurisdicional – provida de independência e neutralidade –, para, em última análise, ver-se
garantido pelo aparato coercitivo do Estado. A quarta categoria concerne aos direitos
fundamentais de participação, em iguais proporções, consistentes no exercício da autonomia
pública, por meio da qual os sujeitos, trazendo pretensões de validade aos espaços público-
políticos, criam legitimamente o direito. E a última categoria diz respeito aos direitos
fundamentais de igual acesso a condições mínimas de vida, a fim de viabilizar o exercício dos
direitos precedentes.
As três primeiras categorias desdobram aspectos da autonomia privada, sediando a
discursividade do sistema jurídico, na medida em que garantem o plano horizontal da
sociedade civil – filtro formal à institucionalização do direito. A quarta refere-se a direitos de
participação – autonomia pública (HABERMAS, 2003, p.159).
124
A quinta categoria indicada pelo autor é a de maior interesse, levando em conta o tema
e os limites deste trabalho. Isso porque os direitos fundamentais à saúde, à educação e à
assistência social, por exemplo, são essenciais à fruição de todos os direitos que os cidadãos
decidam atribuir-se reciprocamente. Por conseguinte, não há que se falar em autonomia
pública ou em autonomia privada se é obstado ao indivíduo o acesso aos direitos
fundamentais a condições de vida garantidas socialmente.
Assim é que, ao postular a equiprimordialidade entre a autonomia pública e a
autonomia privada dos cidadãos, num contexto em que, entre a declaração de direitos e a
soberania popular, predomina uma relação de cooriginalidade, Habermas atribui
fundamentalidade tanto aos direitos ditos típicos do Estado Liberal quanto àqueles instituídos
com a ascensão do Estado Social, afirmando que “tanto as liberdades subjetivas quanto as
garantias sociais podem ser tidas como uma base jurídica para a autonomia social que torna
possível uma defesa efetiva de direitos políticos” (2003, p.109).
É com base nessas premissas que “não há como se pretender apartar os direi tos
individuais dos direitos sociais” (SOUZA CRUZ, 2007, p.337), uma vez que a visão
sociológica da ampliação gradativa do status de cidadão, trazida por Marshall, assim como a
noção de gerações de direitos concebida originalmente por Vasak, deve funcionar apenas
como instrumentos para reconstrução histórica dos direitos fundamentais.
Da mesma forma, embora se valha da distinção entre os paradigmas do Estado Liberal
e do Estado Social para construir sua teoria crítico-deliberativa acerca do Estado Democrático
de Direito, Habermas nega-lhes a condição essencial de antagonismo. Diversamente disso, em
sua compreensão, ao Estado Liberal seguiu-se o Estado Social, sem que houvesse uma ruptura
no que diz respeito aos direitos atribuídos aos cidadãos em um ou em outro momento
histórico.
Se o Estado Liberal pressupunha uma liberdade já afirmada filosoficamente, nos
termos de uma sociedade fundada por um contrato de iguais, o Estado Social, em que pese a
pretensão crítica de negar as liberdades ditas burguesas, tinha por objetivo torná-las concretas,
agora sob a tônica da igualdade assegurada pela intervenção estatal no âmbito da autonomia
privada. Em suma, a contraposição entre a igualdade formal dos liberais e a igualdade
material pretendida pelos adeptos do Estado Social constitui uma falsa dicotomia, uma vez
que a promoção da igualdade material retoma a ideia, renovada pelas pretensões de
concretude, da igual medida de liberdade para cada um dos indivíduos.
125
Relevante, nesse ponto, é a conclusão de que, em Habermas, um direito assume
fundamentalidade conforme seja essencial à afirmação da autonomia privada e pública dos
cidadãos. Somente a partir de sua observância torna-se possível a pressuposição recíproca
entre as esferas de autonomia, unidas pelo mesmo nexo interno que liga os direitos
fundamentais à soberania popular. Assim é que:
O nexo interno da democracia com o Estado de Direito consiste no fato de que, por
um lado, os cidadãos só poderão utilizar condizentemente a sua autonomia pública
se forem suficientemente independentes graças a uma autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem uso adequado da sua autonomia política (HABERMAS.
2001, p.148).
Portanto, a precedência que se atribui aos direitos da matriz liberal deve ser restrita ao
âmbito histórico e, na esteira dessa compreensão, tanto os direitos ditos sociais quanto os
direitos tipicamente liberais serão tidos como fundamentais, uma vez que essenciais ao Estado
Democrático de Direito, na medida em que condicionam e tornam operacionalizável o próprio
regime político.
A propósito dessa distinção, segundo entendimento aqui encampado, a observação que
parte das ciências políticas pode auxiliar na compreensão da problemática que versa sobre os
direitos fundamentais sem, contudo, colocar em xeque a fidelidade à contextualização
eminentemente jurídica desses direitos. Classificar o direito à propriedade como direito de
defesa, o direito ao voto como direito político e o direito à saúde, v.g., como direito social
muitas vezes abre espaço para compreensões equivocadas sobre o que torna um direito
fundamental e quais os limites que, em tese, incidem sobre a respectiva efetivação.
O cientista político Claudio Gonçalves Couto (2005) propõe uma classificação para os
direitos dotados de essencialidade numa sociedade política que, nada obstante, parece útil à
perspectiva jurídica aqui apresentada. Para esse autor, deve-se distinguir entre direitos
fundamentais operacionais e direitos fundamentais condicionantes do regime político. Todas
as espécies de direitos fundamentais hão de ser agrupadas numa ou noutra tipologia, que
considera operacionais os direitos em regra tidos como direitos de liberdade e como direitos
políticos, porque são essenciais à operação do regime; e condicionantes os direitos à
propriedade e à saúde, por exemplo, dado que atuam como condições externas
imprescindíveis à preservação da democracia.
Se, de um lado, subtrair os direitos políticos ou os direitos de expressão dos cidadãos
equivale a anular requisitos básicos para o funcionamento do regime democrático, ou, para
usar uma expressão de Habermas, faria com que os cidadãos perdessem de vista o “sentido
126
democrático da auto-organização de uma comunidade política” (1997, p.146) – de outro,
subtrair o acesso dos cidadãos às garantias sociais elementares ameaça a própria existência da
democracia. Isso porque inexistentes as condições materiais e de bem-estar consideradas
indispensáveis à obtenção da adesão dos indivíduos ao ordenamento estatal vigente. Vale
dizer, se o Estado não assegura tais direitos fundamentais aos cidadãos, eles podem optar por
abandonar o jogo democrático, “apostando no conflito aberto como forma de atingir seus
objetivos e preservar seus interesses ou valores fundamentais” (COUTO, 2005, p.106).
A indivisibilidade dos direitos fundamentais, posição adotada pela Organização das
Nações Unidas e o reconhecimento de que há uma cooriginalidade entre todas as categorias
de direitos dotados de fundamentalidade, na expressão de Habermas, ou a observação de que
a impossibilidade de fragmentação desses direitos decorre diretamente da compreensão de que
eles são requisitos indispensáveis ao fluxo das comunicações que, por sua vez, possibilitam a
existência da própria sociedade, como sublinha Luhmann, são posições que reforçam a ideia
de que, numa visão sistêmica, tendo como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático
de Direito, todos os direitos dotados de essencialidade, sejam liberais-individuais, políticos ou
sociais, são imprescindíveis à manutenção e ao aperfeiçoamento das instituições
democráticas, sobretudo nas jovens democracias.
Com efeito, na perspectiva teórica acolhida neste trabalho, seja de matriz
eminentemente sistêmica, seja de viés estritamente discursivo, os direitos fundamentais não
podem ser cindidos. A essa conclusão de pode chegar se se analisar o momento histórico em
que surgiram ou mesmo o modo como adquiriram pretensão de efetividade no cotidiano dos
cidadãos. Além do que já se afirmou ao longo deste trabalho, é indiscutível que a fruição de
um direito implica a garantia de outros, porquanto é insustentável que se insista numa visão
meramente analítica e cartesiana dos direitos fundamentais, dissociada de qualquer base
empírica e mesmo pragmática.
No mesmo sentido, Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2007, p.237) explica que não
merece respaldo a pretensão de se apartar os direitos individuais dos direitos sociais, como
acontece na discussão sobre a extensão ou não do disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, da
Constituição Brasileira aos últimos. Se ambos os tipos de direitos revestem-se de
fundamentalidade para o regime democrático, por que seria de se pensar tratamento
diferenciado no status constitucional de cada uma das tipologias? Seria como considerar que o
sistema circulatório humano pode existir separadamente do sistema respiratório, para usar a
metáfora sugerida pelo referido autor.
127
Apresentadas algumas das classificações mais usuais dos direitos fundamentais, em
seguida será abordada criticamente a classificação “bipolarizada” dos direitos fundamentais,
que os distingue entre negativos e positivos. Antes, contudo, torna-se necessário esclarecer
que, acolhendo a teoria da indivisibilidade dos direitos humanos, optar-se-á, para fins de
uniformização terminológica e para melhor compreensão do tema, pela categorização dos
direitos fundamentais da pessoa humana em quatro grupos: os direitos individuais, os direitos
políticos, os direitos sociais e os direitos econômicos (NEUENSCHWANDER
MAGALHÃES, 2002b, p.22).
4.4 O custo da implementação dos direitos fundamentais e as repercussões disso para os
sistemas jurídico, político e econômico
Na esteira do que se expôs neste trabalho sobre os direitos fundamentais e as
difundidas classificações fragmentadoras de sua própria fundamentalidade, a crítica ora
dirigida às tradicionais subdivisões dos direitos fundamentais centra-se no fato de que, ao
levar em conta a espécie de bem tutelado por tais direitos ou a matriz histórica que os
conceberam, não raro elas geram outras classificações que tendem a limitar a importância e a
efetividade de alguns tipos de direitos fundamentais, como acontece com alguns dos direitos
condicionantes, v.g., direito à saúde, à educação e à assistência social. Ocorre que à clássica
diferenciação entre direitos de liberdade ou de defesa e direitos sociais correlacionou-se a
distinção entre direitos negativos e positivos.
Como se viu, tanto Marshall, ao classificar o desenvolvimento da cidadania nos níveis
civil, político e social, correlacionando-os com os respectivos períodos históricos em que tais
direitos foram reconhecidos, como Vasak, ao apresentar a idéia de direitos subdivididos em
ondas geracionais, que, posteriormente, foi desenvolvida por Norberto Bobbio (1992),
inovaram. Seriam direitos de primeira geração aqueles de natureza eminentemente liberal,
como a liberdade de expressão e de participação política; de segunda geração seriam os
direitos sociais, econômicos e culturais, típicos do estado social; já na terceira onda de direitos
estariam os direitos de solidariedade e fraternidade. Alguns autores, como Paulo Bonavides,
incluem a quarta e a quinta onda geracional de direitos.
Pela tradição que se consolidou no tratamento da questão pelos juristas brasileiros, os
direitos positivados – ou declarados – sob a égide do paradigma liberal, havidos como direitos
de defesa ou de liberdade, são compreendidos como negativos, pois dependeriam apenas de
128
uma abstenção do Estado, que deveria tão-somente permitir ao cidadão usufruir de tais
direitos. Os direitos nascidos no paradigma do Estado Social, ao contrário, os chamados
direitos sociais de segunda geração, são assimilados como direitos positivos, uma vez que, no
âmbito dessa classificação, apenas eles demandam um agir estatal para que o cidadão usufrua
o bem conforme lhe assegure o direito correspondente.
A classificação, então, fez incutir na cultura jurídica brasileira que apenas os direitos
fundamentais positivos seriam onerosos, pois o gozo correspondente dependia de uma ação do
Estado. Ao passo que os direitos de liberdade seriam negativos e, por isso, não gerariam ônus
ao Estado, os direitos sociais, de feição positiva, só se efetivariam mediante dispêndio –
inclusive financeiro – do ente estatal que se obrigaria a entregar a prestação devida ao
indivíduo ou à coletividade.
Entretanto, tal conclusão parte de premissas equivocadas e sua aplicabilidade é aqui
questionada, sobretudo pelas consequências nocivas ao desenvolvimento da cidadania no
cenário político-jurídico nacional pós Constituição de 1988. Com efeito, partilha-se o
entendimento de que “o primeiro passo a ser dado pela doutrina é a difusão de que todos os
direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e uma prestacional e que todos, sem
exceção, „custam dinheiro ao erário‟” (SOUZA CRUZ, 2007, p. 335).
Ao comentar a Constituição Brasileira de 1946, Pontes de Miranda abordava a
diferenciação entre direitos fundamentais positivos e negativos. Entretanto, já nessa época o
ilustre jurista advertia que essa classificação só atende à distinção acerca do modo pelo qual a
fruição do bem assegurado pelo direito é viabilizada pelo Estado, uma vez que os direitos em
geral, como os direitos de liberdade, possuem conteúdo positivo que se reflete na
possibilidade da tutela jurídica comum de todas as categorias de direitos. Nas palavras do
autor (PONTES DE MIRANDA, 1963b, p. 277):
A defesa pela negação, a afirmação do dever estatal, ou de todos, quanto às
abstenções, não exaure a tutela jurídica dos direitos fundamentais. Quando se
distinguem direitos fundamentais positivos e direitos fundamentais negativos apenas se alude ao papel do Estado na prestação, sem se fundar qualquer teoria científica do
conteúdo só negativo dos direitos fundamentais.
Conforme rememora Torres (2000, p.170), Georg Jellinek no século XIX já observava
que também os direitos de liberdade ostentam status positivo: a garantia da existência da
jurisdição, por si só, já é suficiente para caracterizar a faceta positiva desses direitos. Não
bastasse a prestação jurisdicional, o Estado deve garantir também positivamente a fruição das
liberdades por meio da polícia, das forças armadas, da diplomacia ou de outro serviço público.
129
Em outras palavras, a partir desse exemplo já se observa que disponibilizar a fruição de
direitos implica a existência de ações públicas – políticas públicas – que a viabilizem.
Isso porque como o ente que se obriga a prestar os direitos sociais, via de regra, é o
Estado,116
o dispêndio financeiro para viabilizar o acesso do cidadão às respectivas políticas
públicas para a consecução dos direitos sociais tornou-se o mais corrente óbice à
correspondente efetivação de tais direitos.117
Em razão de serem as demandas ilimitadas e os
recursos escassos, devem ser estabelecidas prioridades na concretização progressiva dos
direitos fundamentais, sejam direitos liberais, sejam direitos sociais, uma vez que a nota de
fundamentalidade os coloca no mesmo nível de essencialidade. Vale ressaltar, nesse
particular, a análise Cruz (2006, p.145) a propósito desse assunto:
A democracia radical exige o direito de todos participarem deliberações que
certamente influenciam seu cotidiano e sua visão de vida digna. Assim, não há como
tolerar que discursos de fundamentação (legislação) e de aplicação (jurisdição) não
sejam necessariamente filtrados pelos direitos fundamentais, nos quais certamente se
insere a perspectiva do conceito de mínimo existencial do indivíduo, os direitos
fundamentais sociais são requisitos procedimentais da democracia.
Entretanto, de tão arraigada e difundida a ideia de que alguns direitos são negativos e
não oneram os cofres públicos, não resta evidente, aos olhos do cidadão, que a concretização
de um direito em detrimento de outro é uma questão de escolha. Tal escolha, como se
pretende expor neste trabalho, se dá no âmbito político, administrativo e orçamentário e pode
ser revista ou exigida judicialmente conforme o caso. Essa é a questão que se problematiza e
que exigiu a exposição da teoria do custo dos direitos (vide 4.3.2 supra). Isso porque a
obscura inferência de que existiriam direitos assegurados independentemente de qualquer
dispêndio financeiro enfraquece a mobilização social em torno da concretização daqueles
direitos ditos positivos por ocasião das escolhas políticas da administração pública.
Cumpre consignar que essa tradicional classificação interessa ao poder público na
medida em que teria o condão de distinguir entre os direitos fundamentais, que seriam de
116
Há propostas teóricas formuladas no sentido de que as ações tendentes a garantir direitos sociais não devem
ser uma primazia do Estado para as parcelas menos favorecidas da população. Teubner (2006) é um dos autores
que trabalha essa visão menos estatista, por assim dizer, sustentando que nas sociedades hipercomplexas da
contemporaneidade o direito – e a garantia dos direitos – devem ser assegurados tanto pelo Estado, quanto pelas
organizações não estatais. A temática não será abordada neste trabalho, em razão dos limites já conhecidos.
Entretanto, é pertinente salientar que, no caso brasileiro, como no de outros países em desenvolvimento, em que
os pressupostos e as prestações do Welfare State não se realizaram, como na Alemanha ou nos Estados Unidos,
por exemplo, não se pode negar que a atuação do Estado Democrático e Social de direito brasileiro, no sentido
de assegurar direitos, é essencial à própria sobrevivência do regime democrático como se pretende sustentar ao
longo deste trabalho. 117
Aqui se contextualiza a ampla utilização, pelos juristas brasileiros, da teoria que se convencionou chamar de
doutrina da reserva do possível.
130
pronto exigíveis pelo credor, e os que não admitem essa sindicabilidade imediata, uma vez
que só a omissão do Estado poderia ser sanada de plano, mediante decisão judicial, inclusive,
sem análise prévia das possibilidades reais ou materiais para tanto.
Como se afirmou anteriormente, o reconhecimento de direitos econômicos e sociais
dá-se em complementação aos direitos tipicamente liberais, até porque o reconhecimento
dessa nova categoria de direitos representou uma reação à crise enfrentada pelo modelo
capitalista liberal iniciada no fim do século XIX e intensificada na primeira quinta parte do
século XX. Nesse período, as grandes empresas, os monopólios, o protecionismo e os
sindicatos iniciaram a destruição inapelável do mercado como mecanismo regulador do
sistema econômico; não bastassem tais fatores, as consequências da Primeira Guerra Mundial
tornaram inexorável a instabilidade econômica que deu azo à grave depressão nos anos trinta.
A adaptação do capitalismo aos novos desafios deu-se sob a forma do Estado
intervencionista, nos termos da proposta político-econômico-social elaborada por John
Maynard Keynes que tinha por objetivo reestabilizar o modelo capitalista. Como já se expôs
neste trabalho (4.2 supra), em virtude do contexto social, político e econômico da época, o
liberal-capitalismo via-se ameaçado por sua própria desestabilização – ou estagnação –, assim
como pelo avanço da ideologia marxista, que ganhava terreno com os desdobramentos da
Revolução Russa. O que sobressai em importância na visão keynesiana,118
em termos bastante
objetivos, é a preferência por perder parte da liberdade econômica em prol da manutenção da
liberdade individual ameaçada por um regime coletivista (GIACOMONI, 2007, p.22).
Nessa perspectiva, a assunção de funções econômicas pelo Estado ocorrida na
passagem para o paradigma intervencionista implicava o exercício da função distributiva pelo
próprio Estado e isso, via de consequência, demandou o reconhecimento de direitos
econômicos e sociais, a serem concretizados pelo exercício de outra função econômica do
Estado intervencionista, decorrente de seu potencial de alocar os recursos captados no âmbito
fiscal.
Na semântica habermasiana (1992, p. 453), que tem como ponto de partida a
perspectiva de mundo da vida, as relações de troca entre o indivíduo e a administração pública
que se realizam por meio da transformação dos impostos em prestações – poderia acrescentar-
118
Segundo Faria (2004, p.115-116) as políticas inspiradas em Keynes propiciaram o advento de um círculo
virtuoso entre o aumento de salários reais, elevação da produtividade e redução das distâncias sociais, pois
contrapunham taxas expressivas de crescimento econômico e programas de bem-estar social às incertezas
geradas pelo sucesso temporário das diferentes formas de fascismo e suas deletérias consequências. Além disso,
o caráter redistributivo dessas políticas proporcionou um ambiente fértil à difusão da confiabilidade nessa forma
de estado regulador que perdurou até os anos setenta.
131
se: em serviços públicos organizados em políticas públicas voltadas à concretização dos
direitos – consolidam os papéis sociais de “cliente” das burocracias públicas – ao usufruírem
dos serviços prestados pelo Estado – e de cidadão quando lhe são direcionadas decisões
políticas em troca do apoio político-eleitoral, ao que o autor chama de “lealdade do povo”.
Conquanto o comentário do autor se direcione ao Estado Social de direito, o raciocínio ainda
se aplica ao Estado Democrático de Direito, sobretudo nos países em desenvolvimento ou
periféricos, nos quais há um déficit na concretização das promessas do Estado Social.
A propósito disso, é bom que seja ressaltado desde já que o orçamento público, como
meio pelo qual o Estado exerce sua função econômica de alocar os recursos públicos e assim
realizar ações públicas dos mais variados tipos, é um valioso instrumento para a viabilização
das políticas públicas capazes de tornar efetiva a fruição dos bens assegurados pelos direitos
fundamentais. Isso porque na perspectiva aqui apresentada assume-se a assertiva de que a
concretização de direitos fundamentais, sejam eles quais forem, gera custos – sociais e
financeiros – à administração. Pertinentes, neste contexto, alguns esclarecimentos sobre a
teoria dos custos dos direitos e as formulações político-orçamentárias.
Ao propor uma teorização acerca dos “custos dos direitos”, Cass Sunstein e Stephen
Holmes (1999) abstraem os aspectos axiológicos dos direitos e buscam um enfoque
meramente descritivo, preocupando-se com a inquirição acerca de quais interesses uma
sociedade politicamente organizada protege (rights in legal sense).
Os autores, portanto, limitados à perspectiva descritiva dos direitos em geral – até
porque as obrigações morais só terão custos se estes forem reconhecidos em lei –, defendem o
entendimento de que a efetivação de todos os direitos gera dispêndio de recursos materiais,
não havendo como se falar em direitos meramente negativos ou exclusivamente positivos.
Vale dizer, todos os direitos são institucionalizados, justamente por dependerem da atuação
estatal para que sejam verificados no plano fático, até porque, em última análise, a
exigibilidade judicial desses direitos também depende dessa atuação.
Na visão desses autores, os cidadãos só têm seus direitos satisfeitos, ainda que
conferidos pelo ordenamento jurídico num dado contexto sociopolítico, se o governo é capaz
de taxar suficientemente e entregar ao destinatário a prestação correspondente. Os “direitos
positivados” (legal rights) só existem na realidade se e quando o Estado pode custeá-los.
Os direitos havidos pela teoria tradicional como “negativos” também têm custos
sociais, como, por exemplo, aqueles decorrentes da garantia dos direitos do acusado no curso
132
do processo penal, que configura um custo indireto e pressupõe dispêndio de recursos
públicos.
Nessa perspectiva, os direitos de liberdade em geral têm custos indiretos, mas de toda
sorte há o dispêndio financeiro para sua implementação. Um exemplo emblemático
apresentado pelos autores é a exigência do uso de capacete aos motociclistas. Conquanto a
regra tenha por fim preservar a segurança dos condutores em geral, sua implementação foi
motivada pelas altas cifras desembolsadas pelo Estado para custear as despesas hospitalares,
assistenciais e previdenciárias daqueles que se acidentavam nas vias de tráfego. Com efeito, a
restrição da liberdade do cidadão em transitar pelas ruas de motocicleta, sem o capacete,
passou a ser bastante razoável em face da economia que a medida gerou aos cofres
públicos.119
A fruição do direito à propriedade, v.g., só é possível em razão da atuação preventiva
ou repressiva do Estado em prover segurança ou mesmo em dispor de aparatos contra
intempéries naturais. Na perspectiva da teoria do custo dos direitos, se os impostos são pagos
por todos – inclusive por aqueles que não dispõem de propriedades cujo gozo será assegurado
pela ação governamental –, o cidadão-contribuinte deve participar da escolha acerca de quais
direitos serão objeto da tutela prioritária do Estado. Para muitos, será preferível um
investimento maior em saúde e educação, por exemplo, a gastos astronômicos com os custos
indiretos de outros direitos de liberdade. Nessa visão liberal crítica do próprio liberalismo, o
fato de todos serem onerados com os custos da proteção ao direito de propriedade quando esse
direito não é usufruído por todos assume quase que o status de um “tabu cultural”, uma vez
que não é objeto de maiores questionamentos pela sociedade. Vale dizer, se isso é tão óbvio,
por que o mito de que existem direitos negativos se mantém? Quais motivos levam as
pessoas, em geral – e a grande maioria dos operadores do sistema jurídico – a acreditar que
existem direitos “que nascem em árvores” e são implementados independentemente de
qualquer atuação estatal?
Algumas razões são apontadas pelos autores. Numa visão conservadora, ignorar o fato
de que as liberdades privadas geram custos ao Estado deixam encobertas as discussões sobre
as opções políticas – e econômicas – levadas a efeito pelo poder público, o que acaba por
garantir a conservação máxima desses direitos que, via de regra, referem-se à liberdade
119
Raciocínio semelhante chegou a ser encampado pela imprensa nacional por ocasião da entrada em vigor da
Lei nº 11.705/2008, que ficou conhecida como “Lei Seca”. Questionamentos quanto à constitucionalidade da
medida à parte, fato é que, na fase inicial de sua vigência, o número de acidentes sofreu considerável redução e
algumas manchetes de periódicos de ampla circulação noticiaram a cifra que o Sistema Único de Saúde havia
deixado de despender em virtude da diminuição do número de acidentes automobilísticos.
133
individual e à propriedade privada, em detrimento do avanço na efetivação dos direitos sociais
que beneficiaria, potencialmente, toda uma coletividade. Na análise liberal-progressista, por
outro lado, é interessante que se continue a ignorar o custo indireto das liberdades individuais,
porque há sempre o risco de que, desvelado o mito, as garantias subjacentes aos direitos
humanos em geral sejam vulneradas, uma vez que a própria sociedade poderia se movimentar
em favor da redução do compromisso com a respectiva proteção desses direitos, o que
configuraria um retrocesso.
A conclusão a que conduz o raciocínio proposto pela teoria do custo dos direitos e,
nesse particular, guarda afinidade com os objetivos deste trabalho é a de que não se deve falar
em redução ou minimização da intervenção estatal em prol da efetividade dos direitos
assegurados aos cidadãos desde o Estado Social. A proposta discursiva seria, então, de
redimensionar a extensão da proteção devotada aos direitos eminentemente liberais, tendo
como parâmetro as condições econômicas de cada sociedade e a participação dos cidadãos nas
deliberações correlatas como atores organizados ou não que integram a esfera pública.
É relevante notar, nesse ponto, que aferir custos permite agregar mais qualidade às
escolhas político-orçamentárias sobre quais direitos proteger, a fim de evitar o que a doutrina
italiana nominou de “escolhas trágicas”. Nada obstante, os autores estadunidenses deixam
evidente o repúdio a uma leitura economicista dos direitos fundamentais – assim como a
perspectiva sistêmica aqui adotada como referência – ao afirmar que: “dessas considerações
não se pode concluir que os direitos devem ser misturados com todas as outras coisas dentro
de uma gigantesca máquina capaz de avaliar a relação custo-benefício criada e operada por
economistas” (tradução livre).120
As escolhas sobre onde e como gastar – ou investir – o dinheiro público devem ser
permeadas por um senso ético-valorativo, até porque, no fundo, implicam uma movimentação
das riquezas sociais, que pode caracterizar redistribuição ou reconcentração. A partir dessa
consideração, a dicotomia entre direitos positivos e negativos muitas vezes contribui para
ocultar os fundamentos de justiça fiscal distributiva o país adota no plano concreto. Como o
Estado é indispensável ao reconhecimento e à efetivação dos direitos, e considerando que seu
funcionamento é premido por contingências de recursos econômico-financeiros captados
junto aos indivíduos singularmente considerados, infere-se que os direitos só existem onde há
fluxo orçamentário que viabilize sua concretização. Assim, a asseguração tanto dos direitos
enfeixados pela autonomia privada quanto daqueles relativos à autonomia pública é
120
“Of course, it does not follow that rights must be tossed along with everything else into a gigantic cost-benefit
calculating machine created and operated by economists” ( SUNSTEIN, 1999, p.102).
134
sustentada pela ação pública e deve submeter-se à deliberação da coletividade. Nesse ponto,
torna-se relevante a proposta habermasiana relativa aos espaços públicos de deliberação
abertos pela via da esfera pública, tema que será tratado a seguir.
Importante frisar que, como todos os direitos são sempre frutos de uma opção político-
social consolidada nos orçamentos, a efetivação correspondente é antecedida,
necessariamente, por escolhas que, por sua vez, são frutos de negociações havidas no âmbito
do sistema político, sob clima de conflituosidade entre esferas plurais, com interesses
antagônicos, nas quais, lamentavelmente, nem todas as partes encontram-se em situação de
igualdade, o que, não raro, gera distorções significativas.121
Outra conclusão relevante a que nos conduz a “teoria dos custos dos direitos” é de que
não há direitos ou liberdades privadas, sob o ponto de vista de sua efetivação, uma vez que o
exercício de todo e qualquer direito depende fundamentalmente das instituições públicas. Isso,
via de consequência, torna o direito igualmente público e, por isso, nenhum deles pode ser
absoluto, pois as escolhas são inescusáveis e as liberdades ditas privadas geram custos e têm
caráter público.
A par disso, evidencia-se que a opção pela alocação de recursos para uma ou outra
ação pública é o essencial para que o direito correspondente se torne exigível em toda sua
dimensão. Pelo que expuseram os autores – e, por que não dizer, desde Georg Jellinek – é
inegável que assegurar direitos depende da ação pública e gera ônus para o Estado.
A despeito disso, como assinala Cruz (2006):
No debate sobre a efetividade dos direitos sociais, esta tem sempre esbarrado no
argumento da reserva do possível e no princípio da reserva parlamentar em matéria
orçamentária. Em outras palavras, apenas as prestações positivas exigíveis ao Estado
no tocante a direitos sociais e econômicos se submeteriam aos seguintes
condicionamentos: a) gradualidade na sua concretização; b) disponibilidade
121
A propósito disso, relevante registrar a proposta de Neil Komesar, na obra Imperfect alternatives: chosing
institucions in Law, economics anda public policy, que lança um novo olhar para a reconstrução da teoria
processual no âmbito dos interesses coletivos ou coletivizáveis, considerando para tanto aspectos da teoria
política. O ponto nodal da defesa dos bens que constituem os direitos coletivos ou coletivizáveis, segundo o
autor, relaciona-se à questão da respectiva representação, vale dizer: o modo como tais interesses são representados nos vários processos sociais – que compreende três instâncias decisórias de políticas públicas:
econômica, política e judicial. O que move essa preocupação, na obra do autor, é a constatação – empírica,
inclusive – sobre a dificuldade de representação no que diz com os interesses coletivos – e os direitos
fundamentais que daí emanam – porque são dispersos na sociedade, o que diminui a capacidade de mobilização
e representação em cada uma das instâncias decisórias de políticas públicas. Os interesses relacionados ao
mercado, ao contrário, reúnem características que lhes asseguram um nível de concentração muito maior, o que
explica o êxito de tais interesses nas referidas instâncias. A proposta de Neil Komesar guarda significativa
afinidade com o tema aqui discutido, entretanto não será abordada neste trabalho em razão do recorte teórico
escolhido.
135
financeira orçamentária prévia; c) liberdade de conformação pelo legislador; d)
insuscetibilidade de controle jurisdicional de programas políticos legislativos.
Cabem aqui duas observações. A primeira é a anotada por Souza Cruz (2006) e diz
respeito à crítica ao raciocínio simplista, quase sempre apresentado de modo genérico, de que
um direito fundamental pode ter sua implementação inviabilizada por questões orçamentárias.
Isso não significa que o espectro do sistema jurídico não seja condicionado por fatores
econômicos; o alcance da observação limita-se ao entendimento de que “a cidadania é
incompatível com ingerências bloqueadoras e destrutivas de particularismos políticos e
econômicos na reprodução do direito. As influências políticas e econômicas no sistema
jurídico subordinam-se aos critérios estabelecidos pelo próprio sistema jurídico” (NEVES,
1994, p.254). Em razão disso é que as relações intersistêmicas que envolvem direito, política
e economia assumem tamanha relevância para a otimização da utilização dos procedimentos e
instrumentos capazes de influenciar na ampliação do nível de concretização dos direitos
fundamentais no Brasil.
A segunda observação decorre parcialmente da primeira. Como já exposto neste
trabalho, o processo de positivação de direitos fundamentais ocorreu de forma gradativa,
conforme o modelo estatal de cada onda de juridificação. É sabido que, num autêntico Estado
Democrático de Direito, quando um direito ingressa no sistema jurídico como expectativa
normativa congruente e generalizável, cabe ao direito desempenhar sua função de estabilizá-
la. Vale dizer: pressupõe-se que já tenha havido o planejamento necessário para prover os
meios necessários para tornar tal direito efetivo e que estejam acessíveis em caso de
violação.122
No entanto, a cidadania, como mero reconhecimento de direitos sociais pelo
sistema político, por vezes funciona como um “termo-questão de política simbólica”
(NEVES, 1994, p.253), não havendo tanto compromisso com a efetiva universalização do
acesso aos direitos que a preenchem de significado. Como se verá oportunamente, nesse caso,
a declaração de direitos no plano constitucional muitas vezes é despida de força normativa no
sentido estrito, em razão das limitações factuais – históricas, políticas, sociais e culturais –
para tanto. Esse fenômeno, portanto, realça a função do sistema jurídico e, mais
especificamente, do Poder Judiciário em intervir na implementação das políticas públicas
direcionadas à concretização de direitos fundamentais. Não se nega que há uma sobrecarga no
sistema jurídico que deve ser aliviada pela maior participação do público nas deliberações e
no controle social das ações públicas correlatas. Nada obstante, não se afasta a necessidade –
122
Exemplo disso são os amplos debates e negociações que estão sendo travadas no cenário político
estadunidense em virtude da proposta do governo de criar um sistema de saúde custeado pelo poder público.
136
e licitude – de um controle contramajoritário na seleção e implementação dessas políticas
públicas quando as escolhas da administração desconsideram as deliberações políticas
antecedentes e, em última análise, o código próprio do direito.
Atendo a discussão, neste momento, à primeira questão, observa-se que as objeções
orçamentárias só são utilizadas pelo administrador para justificar sua inércia em promover a
concretização dos direitos sociais. Não bastasse a crítica anotada no parágrafo anterior, nessa
hipótese a opção é ainda mais inadequada. Seria viável acolher o argumento de que os direitos
sociais são onerosos porque são de “natureza” positiva?
É indubitável que garantir aos cidadãos o exercício do direito ao voto, por exemplo,
implica uma ação pública no sentido de viabilizar o curso regular das eleições por meio do
uso de equipamentos tecnológicos, disponibilização dos locais onde os votos serão
depositados, segurança para que os eleitores se locomovam até esses locais, aplicação de
recursos de toda ordem para assegurar a lisura da apuração e, em última análise, a manutenção
de um Tribunal Regional Eleitoral que funciona ininterruptamente para expedir orientações e
dirimir os eventuais conflitos surgidos no decorrer da disputa. Isso sem contar o
financiamento dos partidos políticos registrados no TSE.123
Poderia se objetar que a existência de eleições periódicas é essencial ao funcionamento
do regime democrático. Todavia, é inegável que assegurar ao cidadão – aqui eleitor – acesso
aos recursos necessários a sua subsistência condigna, à educação e à saúde é imprescindível
para que ele, inclusive, desempenhe a contento sua função no sistema político, igualmente,
essencial ao funcionamento do regime democrático. Não há como se sustentar que os
cidadãos estejam sendo estimulados a participar da vida política de um país se não há meios
para exigir que as políticas públicas concretizadoras de direitos sociais sejam implementadas
pelo ente estatal – ainda que progressivamente. O argumento de que a concretização desses
direitos – e apenas desses direitos – oneram os cofres públicos não pode ser aceito sem que,
no mínimo, reflita-se sobre a questão e se analise quais políticas um determinado Estado
optou por tornar concretas.
Sabe-se que a teoria do custo dos direitos, como proposta por Sunstein e Holmes
(1999) – já amplamente difundida em trabalhos publicados no Brasil – deve ser ajustada à
realidade da sociedade a que se pretende aplicá-la, até porque a realidade socioeconômica de
123
Os repasses do Fundo Partidário são gerenciados e distribuídos pelo TSE, a partir do disposto nos artigos 40 e
41 da Lei nº Lei 9.096/95. Conforme dados divulgados pela justiça Eleitoral, a contar do exercício de 2000, por
exemplo, mais de R$ 510 milhões foram distribuídos às tesourarias partidárias.
137
um país é determinante na eleição de quais ações públicas serão prioritárias e quais serão
implementadas gradativamente.124
Entretanto, ter claro que todos os direitos pressupõem dispêndio financeiro auxilia na
compreensão de que é necessária maior participação popular na escolhas das prioridades
político-orçamentárias, na transparência das formulações orçamentárias e na
responsabilização do administrador por ocasião da execução desse orçamento público –
questões que serão tratadas oportunamente. É por esse motivo que as proposições da teoria
dos custos dos direitos são potencialmente favoráveis ao fortalecimento do regime
democrático, num contexto em que argumentos de ordem institucional ou pragmático-
econômicos têm inviabilizado, quase que como regra, a efetivação dos direitos sociais. No
âmbito judicial, a maioria dos julgadores reluta, ou mesmo se nega a examinar questões
relacionadas à regularidade das escolhas político-orçamentárias e, diante da alegação genérica
de falta de recursos para concretizar um direito social cuja violação foi levada às barras do
Judiciário, não se sentem abalizados para aferir se há ou não recursos e qual o impacto desse
eventual dispêndio nas finanças do Estado.
Apesar disso, há alguns julgados recentes que levam em conta a teoria dos custos dos
direitos para estabelecer limites para a judicialização dos direitos sociais.125
Entretanto, como
124
Não se desconhece, todavia, que o balanço entre necessidades e preferências é algo tormentoso. Mesmo que a
deliberação pela escolha seja precedida de estudos diagnósticos, por exemplo, como recomendam estudiosos da
ciência política. Mesmo que se defina um conjunto claro de carências a serem sanadas, se estabeleçam
parâmetros de ajuste entre as imposições da acumulação e os reclamos da sociedade, há ampla margem de divergência sobre quanto dessas privações são obrigação do Estado prover e em que condições (ABRANCHES,
1987). Assim, volta-se à ideia de que tais escolhas devam se concretizar no âmbito do sistema político e,
conforme haja desvios constatáveis pelo controle externo, é que se deva viabilizar a sindicabilidade jurisdicional
dessas escolhas, independentemente de se tratar de um direito havido classicamente como negativo ou positivo.
Essa questão será mais bem explicada no próximo capítulo, no qual serão tratados os questões de política
orçamentária e a necesidade de se estabelecer critérios para que o administrador não veja na peça orçamentária
uma simples possibilidade de gastar ou não. Nesse ponto, o Poder Judiciário deve exercer seu papel
contramajoritário para, conforme as peculiaridades de cada caso, fazer valer a deliberação política que atende à
demanda de generalização dos direitos da cidadania. 125 Exemplo relativamente recente é a decisão proferida pelo STF em Pedido de Suspensão de Liminar (SL 228),
em ação proposta pelo Ministério público Federal em litisconsórcio com o Ministério público do Ceará. Nesse
caso, após frustradas as tentativas de composição extrajudicial, todas devidamente documentadas no inquérito
civil que precedeu a propositura da ação civil pública – iniciativas que, inclusive, refletiram na lei orçamentária
do Ceará com a previsão de recursos para a implementação das políticas públicas na macrorregião de Sobral.
Frustrada a exigibilidade do direito à saúde, que, na hipótese sob comento, dizia respeito à construção de unidade
hospitalar para atendimento de pacientes em regime de terapia intensiva na referida macrorregião do Sistema
Único de Saúde, o pedido formulado na ação civil pública foi liminarmente deferido em primeira e segunda
instâncias. O argumento encampado pela decisão do Supremo Tribunal Federal que manteve a concessão da
liminar levou em consideração o argumento de que havia previsão orçamentária para tanto e estava patenteada a
necessidade desse tipo de atendimento, até porque a política pública estava também prevista nos protocolos e
princípios que regem o SUS e não se tornaram ações públicas em razão da negligência do gestor em nível federal
que não se mobilizou para executar os valores destinados à ação. Nas palavras do relator: “Teses, muitas vezes
antagônicas, proliferaram-se em todas as instâncias do Poder Judiciário e na seara acadêmica. Tais teses buscam
definir se, como e em que medida o direito constitucional à saúde se traduz em um direito subjetivo público a
138
o enfoque deste trabalho dirige-se predominantemente às condições em que se realizam tais
escolhas político-orçamentárias ocorridas no âmbito do sistema político e à necessidade de se
“levar a sério” os orçamentos públicos, passa-se ao exame da concepção teórica em torno da
esfera pública pluralista e seu âmbito de atuação no cenário político-jurídico democrático.
4.5 Constituição e esfera pública no Estado Democrático de Direito
A constituição como aquisição evolutiva da sociedade moderna forneceu
fundamentação teórica e factual à diferenciação funcional entre os sistemas jurídico e político.
Nada obstante, os níveis de diferenciação alcançados pelos Estados Nacionais variam
conforme as condições sociais, políticas e históricas de cada ente estatal, circunstância que se
torna relevante no caso brasileiro.
prestações positivas do Estado, passível de garantia pela via judicial. As divergências doutrinárias quanto ao
efetivo âmbito de proteção da norma constitucional do direito à saúde decorrem, especialmente, da natureza
prestacional desse direito e da necessidade de compatibilização do que se convencionou denominar de 'mínimo
existencial' e da 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen). [...] Nessa dimensão objetiva, também assume
relevo a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren),
que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à
criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação. Ressalto, nessa perspectiva,
as contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reconhecimento de que todas as dimensões dos
direitos fundamentais têm custos públicos, dando significativo relevo ao tema da 'reserva do possível',
especialmente ao evidenciar a 'escassez dos recursos' e a necessidade de se fazer escolhas alocativas, concluindo,
a partir da perspectiva das finanças públicas, que 'levar a sério os direitos significa levar à sério a escassez' [...].
Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações
em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego
de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal
argumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos
de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição
de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis.
Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos poderes e o princípio da reserva do
financeiramente possível. Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação
devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, enquanto o Estado tem
que dispor de um valor determinado para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos
universalmente, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em
função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve,
portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos. Assim, em razão da inexistência de suportes
financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das
políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente,
escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem
atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem 'escolhas trágicas' pautadas por
critérios de macro-justiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva
em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia do
serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL 228 / CE Publicado em 21.10.2008 no . Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em 20.6.2009).
139
Antes de examinar as peculiaridades da situação brasileira, no entanto, há que se
ressaltar ainda outra nota que caracteriza as constituições modernas, cuja relevância é
significativa para o tema ora tratado. Trata-se da função de estabelecer procedimentos capazes
de tornar produtivo o dissenso que emana das formas plurais de vida existentes na
comunidade política contemporânea. Isso ocorre porque, no Estado Democrático de Direito,
cabe aos procedimentos constitucionalmente estabelecidos oferecer condições estruturais para
que os diversos discursos, valores, expectativas e interesses que emergem numa sociedade
caracterizada pela pluralidade possam se expressar nas diversas esferas sociais.
Segundo Neves (2008a, p.132), a expressão das tendências plurais e conflitantes que
existem na sociedade se dá em dois níveis: inicialmente, na linguagem cotidiana do mundo da
vida, tais tendências (valores, expectativas e interesses) adquirem um significado político e
jurídico generalizado; já num segundo nível, em que ocorre a “intermediação procedimental e
a pretensão de generalização desses valores, interesses e expectativas como normas vigentes
ou decisões vinculantes”, surge a noção de “esfera pública pluralista” como “arena do
dissenso”.
Não que o desacordo seja estrutural – mesmo porque se pressupõe um consenso
mínimo quanto aos procedimentos que viabilizarão a expressão do dissenso –, mas há
acentuada tensão em torno dos valores, discursos e interesses que se entrechocam nessa arena
em busca de generalização. Assegurar o dissenso, nesse sentido, é permitir que a pluralidade
dessa esfera seja preservada e que funcione como instrumento de generalização de
expectativas a serviço de um regime democrático. A democracia, numa perspectiva sistêmica
– que não distoa, nesse particular da visão discursiva habermasiana –, pode ser concebida
como valor político essencial que pretende assegurar uma ordem comunicativa e pluralista em
face das constantes ameaças de monopolização provenientes da economia e da política
(VALLESPÍN, 2007, p. 27-28).
A noção de esfera pública tem sido aprimorada desde sua concepção inicial na década
de cinquenta, como se verá a seguir. Neste momento, entretanto, faz-se relevante notar que a
concepção de esfera pública adotada como referência neste trabalho condiz com a proposta de
Habermas (1992, 1995, 2003, 2006). Todavia, adotando a proposta de Neves (2008a), a teoria
discursiva é aproximada da vertente sistêmica luhmanniana, o que permite seja ela tratada
como “arena do dissenso” e, portanto, capaz de conservar o dissenso conteudístico que
caracteriza a sociedade complexa da modernidade. Além disso, são considerados os aportes
da teoria política a fim de que a perspectiva de uma esfera pública pluralista possa assumir
140
feição que se amolde à prestação que dela se deveria esperar em países em desenvolvimento
como o Brasil: contribuir para a organização e mobilização de grande parte da população que
ainda tem como principal interesse ou demanda a concretização de seus direitos fundamentais.
Estratégias de fortalecimento da esfera pública, voltadas para a formação de grandes ou
pequenos públicos, são importantíssimas, portanto, para que os interesses relativos à
concretização de direitos sociais, por exemplo, possam ser generalizáveis no plano real.
Agregar o adjetivo pluralista à noção de esfera pública, nesse contexto, é fazer valer a
característica contramajoritária de determinadas opções políticas que poderão ser sustentadas
como pretensão de generalização no âmbito jurídico. Ocorre que os interesses relacionados à
concretização de direitos fundamentais, como educação, saúde e assistência social, são
dispersos, ou seja, ostentam pouca coesão no que diz respeito à organização de seus titulares
em prol da respectiva defesa. Isso se dá porque, em regra, a pretensão de generalização desses
direitos não coincide com os interesses do mercado, que funciona como grande aglutinador de
forças na sociedade moderna; tampouco coincide com os interesses do poder burocrático que,
muitas vezes, negligencia os níveis e a qualidade do investimento nessas áreas. A dispersão
desses interesses reflete-se, inclusive, na potencial limitação da capacidade de organização
dos interessados em torno da respectiva defesa. A realidade circundante evidencia que os
direitos sociais – e as tentativas de sua generalização no âmbito jurídico, por exemplo –
correm o risco de serem interpretados a partir do código ter/não ter, dissimulados pela noção
de custo e benefício ou “filtrados” por um código poder/não poder que não dá a devida
importância aos procedimentos constitucionalmente estabelecidos para viabilizar a
manifestação dos interesses predominantes na comunidade política. Daí que a constituição do
Estado Democrático de Direito, além de continuar dando sustentação para a diferenciação
funcional entre direito e política, deve estabelecer procedimentos nos níveis Judicial,
Executivo e Legislativo que instrumentalizem as comunicações provenientes de subsistemas
sociais, como educação, saúde e economia, direcionadas aos sistemas político e jurídico pela
via da esfera pública pluralista. Esse é um dos desafios do Estado Democrático de Direito
apontados por Neves (2008a) e o que mais interessa aos objetivos deste trabalho. Dito isso,
passa-se ao exame do desenvolvimento teórico da noção de esfera pública em Habermas até o
ponto em que surgiram as críticas ora mencionadas.
141
4.5.1 Lineamentos históricos e políticos da esfera pública para Jürgen Habermas
Sob o ponto de vista histórico, o autor (HABERMAS, 2006) identifica o surgimento
da esfera pública com o aparecimento da sociedade burguesa do século XVIII. O fenômeno
social que deu origem à esfera pública, assim, pode ser descrito por intermédio da
transformação havida na organização da sociedade com o advento da modernidade. Uma vez
que, nessa época, os integrantes de grupos sociais da burguesia emergente começaram a
ocupar os espaços de debate político, artístico e cultural, até que conquistarem assento junto à
elite político-intelectual de uma sociedade até então marcadamente aristocrática, muito
embora fossem desprovidos de títulos de nobreza.
Entretanto, o declínio dessa esfera pública politicamente engajada coincidiu com o
expressivo crescimento dos meios de comunicação de massa e com o aumento da demanda
pela propaganda publicitária. Para o autor (HABERMAS, 2006), a difusão dos meios de
comunicação massificados fez com que o cidadão se tornasse um potencial consumidor de
informações. A esfera pública, então, viu-se “colonizada” por um processo de massificação
capaz de formar uma opinião não pública, pois manipulada pelas preferências reproduzidas
pela imprensa.
Nesse contexto, a ideia de reestruturação da esfera pública como espaço de debate e de
formação da opinião e da vontade política dos cidadãos ganha especial relevo no processo de
reconstrução da teoria crítica, assim como para a formulação de propostas alternativas acerca
da teoria da democracia, calcadas na participação dos cidadãos no processo político-
deliberativo do ente estatal, como atores políticos.
Já no início do prefácio à edição alemã de 1990 de A mudança estrutural da esfera
pública, Habermas (2006, p.2) explica a necessidade de rever sua teoria a partir da
constatação de que o “horizonte histórico” em que ela foi produzida não lhe possibilitou um
exame adequado da questão. Naquela época, sob auspícios de uma dita “economia social de
mercado”, a Alemanha Ocidental experimentou altos índices de crescimento econômico. A
prosperidade, todavia, gerou mais desigualdade social e aumento do nível da exploração de
classes, razão por que afloraram os movimentos sociais das minorias (negros, mulheres,
homossexuais, entre outras). A reavaliação desse contexto histórico levou Habermas a refletir
sobre as transformações havidas no conceito de esfera pública, desde o seu surgimento como
espaço de discussão pública e sobre qual o seu papel nas democracias contemporâneas.
142
As consequências da ação dos movimentos sociais na Europa, que tiverem início nos
fins dos anos sessenta, acabaram por tornar a tese do autor sobre a esfera pública ainda mais
polêmica. Em razão disso, Habermas retomou sua pesquisa e propôs algumas adaptações à
ideia inicial de esfera pública, enriquecendo-a com a teoria do agir comunicativo e,
posteriormente, com a proposta de um terceiro modelo de democracia, como alternativa ao
modelo liberal e ao modelo republicano. Segundo Habermas (1995), a democracia
deliberativa seria capaz de associar ao processo democrático conotações normativas mais
acentuadas que o modelo liberal, sem recair na intensidade das propostas republicanas.
O que se percebe é que a teoria da ação comunicativa aplicada a um modelo
democrático próprio – e ao sistema jurídico – fez com que a política deliberativa não
concentrasse mais suas forças na ação coletivizada de sujeitos, como na formulação original
da esfera pública. O foco da questão fora, então, transferido para a institucionalização dos
procedimentos e dos pressupostos comunicativos capazes de propiciar ao cidadão expressar
suas preferências em face da administração, inclusive (HABERMAS, 1995).
Na obra A teoria da ação comunicativa, o autor (HABERMAS, 1992, p.451-463)
explica que, à dissolução da moral convencional – que supunha uma homogeneidade de
valores e se impunha de modo hierarquizado numa dada comunidade política – sucedeu, na
modernidade, uma moral pós-convencional, que funciona como uma reserva do saber e
caracteriza-se pela pluralidade de valores e conteúdos. O desafio da moral pós-convencional,
nesse contexto, é reestabelecer comunicativamente os liames solidários que antes eram
garantidos por bases valorativas compartilhadas pelas comunidades pré-modernas – o sagrado
e a tradição –, as quais perdem a sua compreensibilidade em meio à pluralidade das formas de
vida surgidas na modernidade. Isso resultou no “desacoplamento entre sistema e mundo da
vida” e, como efeito disso, uma relação de tensão entre tais esferas da sociedade.
As esferas sociais sistêmicas não estruturadas comunicativamente, que para Habermas
são o poder econômico e o poder burocrático, organizam-se sob a razão instrumental. Essa
razão, orientada a fins, se expressa, do ponto de vista dos indivíduos, como agir estratégico,
ou seja, o agir voltado para o sucesso. Nessa perspectiva da implosão da moral convencional,
o direito assume, no seu modo constitutivo ou de coordenação, uma feição sistêmica
contrafactual. Isso ocorre porque a atuação do direito se volta a impedir ou regular a
colonização do mundo da vida pelos sistemas do dinheiro e do poder burocrático.
Do outro lado do “desacoplamento” estão as esferas sociais que constituem o mundo
da vida. Elas não são estruturadas sistemicamente, mas a partir da linguagem cotidiana. Daí
143
que, para Habermas, o mundo da vida é estruturado comunicativamente, mantendo-se aberto a
todas as variáveis que não encontram lugar nos sistemas do dinheiro e do poder burocrático,
os quais apenas fomentam e reproduzem o agir estratégico, inspirado na racionalidade
instrumental.
Para Habermas, com o advento da modernidade – a que corresponde a consolidação
do modo de produção capitalista e a superação da noção de uma eticidade comum a grandes
grupos, capaz de orientar e impor comportamentos –, o mundo da vida permanece sob a
ameaça constante de “colonização” pelo poder econômico e pelo poder burocrático.126
De um
lado, o poder econômico, interessado na ampliação dos mercados e orientado sob a lógica do
lucro, tende a minar a espontaneidade do fluxo comunicacional nas esferas que integram o
mundo da vida. Uma preferência minoritária, não vantajosa economicamente, por exemplo,
não seria passível de expressão política e, via de consequência, seria facilmente preterida em
favor de outra preferência que melhor atenda aos interesses do mercado ou poder.
De outro lado, a hiper-burocratização das relações privadas – das esferas de
intersubjetividade propriamente ditas, por exemplo – concorre para ressaltar o potencial de
abertura do mundo da vida à cultura, uma vez que o poder burocrático se apodera dos espaços
de discussão e mina a eficácia dos processos espontâneos de formação da opinião e da
vontade coletiva, esvaziando-os de conteúdo politicamente aferível.
Interessam aos fins deste trabalho, especialmente, as questões relativas à colonização
do mundo da vida salientadas por Habermas que, na leitura descritiva luhmanniana, se
expressa na semântica da corrupção sistêmica de códigos, como se verá em tópico posterior.
Pretende-se trilhar uma linha reconstrutiva capaz de realçar os aspectos da esfera pública
pluralista, aptos em torná-la um vetor para a gradativa concretização das promessas, ainda não
cumpridas, do Estado Democrático de Direito brasileiro. Isso porque a potencialização da sua
capacidade formadora e transformadora da opinião pública pode funcionar como fator
limitador da “colonização” e/ou da “corrupção sistêmica” pelo “poder” ou pelo “dinheiro”.
No entanto, não se pretende desconsiderar os limites reais – políticos, econômicos e históricos
126
Os sistemas sociais também podem ser alvo da colonização sistêmica, ao que Habermas (1992, p.469 e ss.)
chamou de colonização interna, quando o direito, por exemplo, passa a funcionar pela lógica do sistema
econômico ou quando o poder burocrático – a administração – vale-se do sistema jurídico para regular campos
atribuíveis à autonomia privada. Exemplos vários são encontrados na história mundial recente e, com maior
facilidade, no caso brasileiro. A excessiva regulamentação de aspectos da autonomia levada a efeito no Estado
Social é um fenômeno que Habermas descreveria como resultante da colonização interna em que o direito deixa
de ser um mediador e se propõe atuar como regulador de condutas que, a rigor, extrapolam sua função no regime
democrático.
144
– do Estado Brasileiro ente estatal, tampouco as dificuldades para a construção da pluralidade
dentro da esfera pública brasileira.
Retomando o processo “evolucionário” da construção teórica habermasiana, observa-
se que, com a publicação de Direito e democracia em 1992, o autor (HABERMAS, 1997)
enlaça a questão que o levou à construção da teoria da ação comunicativa – como são
formados os agentes comunicativamente competentes e quais as condições de desempenho
desses agentes – com a noção de como se dá a formação e da operacionalização da esfera
pública. Para Habermas (2006), toda a carga de legitimação repousa sobre a democracia, pois
é o processo democrático que se volta, concomitantemente, para as garantias das liberdades
dos cidadãos e para as condições nas quais eles se associam nos processos discursivos
orientadores de ações do sistema político e legitimadores dos seus resultados sempre que eles
sejam racionais, ou seja, sempre que sustentáveis no debate público.
Ao expor sobre a institucionalização da sociedade civil, sob a ótica da tensão existente
entre a positividade e a normatividade do direito, o autor reafirma que a instância geradora de
poder legítimo é a esfera pública, a dimensão da sociedade civil em que se dá o intercâmbio
discursivo capaz de repercutir na formação da opinião e da vontade coletiva, contribuindo
para que o poder comunicativo alcance o poder administrativo e possa influenciar nas
decisões da administração. A propósito disso, o autor (HABERMAS, 2006, p.33) esclarece
que o núcleo institucional da sociedade civil é constituído:
[...] por associações voluntárias que estão fora dos âmbitos do Estado e da
economia, e que – para citar unicamente alguns dos exemplos – estende-se desde igrejas, associações culturais e acadêmicas, passando pelas agremiações
independentes, culturais, desportivas e de lazer, espaços de debate político, fóruns e
iniciativas de cidadãos até associações profissionais, partidos políticos, sindicados e
organizações alternativas. [...] À diferença dos partidos políticos que se fundiram ao
aparato estatal, as associações formadoras de opinião não pertencem ao sistema
administrativo e são capazes de delinear as fronteiras entre o Estado e a sociedade. A
despeito disso, elas conseguem resultados políticos por meio da imprensa, seja
porque fazem parte da mídia diretamente, como o caso dos projetos alternativos;
seja porque contribuem implicitamente para a discussão pública por meio do
exemplo, o objeto em torno do qual mobiliza suas atividades.
A racionalização discursiva da administração pública que, no Estado Democrático de
Direito, tem suas decisões dependentes do exame da licitude jurídica de sua atividade
(HABERMAS, 2006, p.14) dá-se pela via da “autoconcepção procedimental da democracia
constitucional”. Isso porque deve privilegiar os pressupostos comunicativos e as condições
procedimentais da formação democrática da opinião e da vontade como a única fonte de
legitimação. É nesse ponto que se insere a esfera pública discursiva de Habermas, pilar de sua
145
concepção critico-deliberativa de democracia, que vê no consenso construído
intersubjetivamente um ideal regulativo.
Esse modelo de esfera pública discursiva é criticado por vários autores, como Fraser
(1992), para quem as relações assimétricas de poder verificadas na sociedade são
reproduzidas pela esfera pública, razão por que não seria viável a constituição de uma esfera
pública nacional única e abrangente. A autora pondera que, na formação da esfera pública, já
se define quem vai ser ouvido e qual será a agenda adotada, o que diminui o âmbito da
deliberação. Com base nesse entendimento, Fraser propõe que os “contrapúblicos
subalternos”, segmentos compostos por minorias étnicas, mulheres e grupos discriminados,
tenham sua importância fortalecida por instrumentos institucionalizados para que não se
reproduza a exclusão.
Para Mouffe (1996), o intento racionalista de uma comunicação que não sofra
distorções e a proposta centrada numa unidade social baseada no consenso racional tem efeito
“antipolítico” na conformação da sociedade, pois ignora o espaço ocupado pelas paixões
humanas vazadas na política. A autora objeta que a política deve ser resgatada no cotidiano
social e não pode ser totalmente racionalizada, pois é ela que impõe os limites para a
racionalidade social possível. Na sua visão (MOUFFE, 1996), a teoria política contemporânea
deve buscar o equilíbrio entre a concepção de democracia como um conjunto de
procedimentos necessários que sirvam para sustentar a dimensão do pluralismo e, por outro
lado, uma perspectiva democrática que leve em conta a adesão a valores que permitam o
mínimo de coesão social entre os que aderem ao jogo democrático.
Já na visão de Honneth (1995), Habermas adota uma postura sistêmica extremista que
o impede de perceber a lógica instrumental que norteia os sistemas e da qual decorrem dos
conflitos sociais. Segundo ele, Habermas, abandonando a tradição da Escola de Frankfurt,
desconsidera a esfera de conflituosidade que marcou a história da humanidade desde sempre.
Em certa medida, tais críticas, assim como a de outros vários autores que dialogaram
com Habermas, coincidem com parte da critica luhmanniana à teoria da ação comunicativa e,
via reflexa, à construção da esfera pública discursiva, sobretudo no que toca ao consenso
como ideal que orienta a comunicação intersubjetiva.
Há ainda outras perspectivas críticas, como as que destacam o tom inespecífico da
teoria no que se refere às possibilidades de ampliação dos mecanismos institucionalizados de
formação da vontade política, ou seja, da omissão teórica quanto ao modo como a esfera
pública discursiva poderá ter sua atuação instrumentalizada e sobre quais os mecanismos
146
seriam mais eficientes nesse sentido. Na opinião de Avritzer (2004, [s.p.]), uma vez que não
há propostas claras tendentes a “horizontalizar os processos decisórios” com o objetivo de
“promover processos de alfabetização política, que permitam, no plano local, a vivência da
noção de poder”, é necessário que a ciência política ofereça sua contribuição no sentido da
construção de mecanismos mais adequados às demandas da comunidade política. Essa
questão será abordada adiante, quando se especificar quais os mecanismos e procedimentos
previstos na Constituição de 1988 seriam capazes de atender a esse propósito tendo em vista a
realidade cívica brasileira.
A crítica relativa “à pretensão consensualista” da teoria discursiva de Habermas, por
outro lado, será abordada no tópico seguinte.
4.5.2 Esfera pública pluralista
Neste trabalho optou-se pela leitura das teorias de Luhmann e Habermas a partir de
matriz teórica comum (vide item 2.3.1.3). Isso se deve aos pontos de contato entre a teoria dos
sistemas de Luhmann e a teoria discursiva de Habermas, conforme destacado no capítulo
anterior. Já de saída observou-se que ambas as teorias desenvolveram-se na tradição alemã,
porquanto mantiveram a crítica de Weber à modernidade desencantada como ponto de partida
para suas reflexões teóricas e, nada obstante, ambos foram significativamente influenciados
pela sociologia sistêmica americana de Parsons.
Apesar disso e dos vários pontos de convergência que podem ser observados a partir
daí, não se desconsidera aqui a existência de discrepâncias entre uma e outra teoria, inclusive
quanto aos pressupostos que conduzem a análise das questões relacionadas à esfera pública e
à cidadania. As convergências e dissensos, contudo, serão tratados, pontualmente, na medida
do necessário para a elucidação da opção teórica deste trabalho.
Partindo da concepção de modernidade formulada por cada um desses autores, pode-se
afirmar que, para Luhmann (2004), o desaparecimento de uma moral tradicional e de
conteúdo hierarquizado, com reflexo em todos os âmbitos vida social, propiciou o surgimento
de vários sistemas sociais que foram se diferenciando conforme a função que lhes incumbia e
se reproduzindo conforme códigos e critérios próprios. Luhmann considera que a
fragmentação da moral na sociedade não se deu conforme uma codificação binária específica,
razão por que o código que seria próprio da moral (consideração/desprezo) não se mostrou
capaz de contribuir para a generalização congruente de expectativas de comportamento.
147
Apoiado nessa leitura da crítica weberiana, Luhmann considera inviável o consenso na
sociedade no que diz respeito a programas e critérios morais. A moral, para Luhmann, não
constitui um sistema social, tampouco mantém relação de complementaridade com um ou
outro sistema especificamente. A moral mantém-se fragmentada e povoa o ambiente de todos
os sistemas sociais, com sua racionalidade peculiar e multiforme.
Habermas, diferentemente, vê a modernidade como resultado do desenvolvimento das
estruturas da consciência, atribuindo ênfase à ideia de que o indivíduo é capaz de aprender
com seus próprios erros e, nesse sentido, evoluir no nível de compreensão moral (vide 3.1
supra). A modernidade, portanto, traria consigo as condições para o surgimento de um nível
de representação moral pós-convencional que tende a se tornar universal. Na perspectiva da
Teoria da ação comunicativa, Habermas sustenta uma diferenciação entre sistema – como
espaço de intermediação do agir instrumental ou estratégico, uma vez que voltado a fins
específicos – e mundo da vida – onde os indivíduos pretendem o entendimento a partir da
intersubjetividade e atuam como agentes comunicativos. É nesse ponto que o autor introduz a
ideia de que a modernidade impõe a necessidade de se construir uma esfera pública capaz de
canalizar o consenso produzido discursivamente e de impedir que os influxos sistêmicos do
poder e do dinheiro inviabilizem a existência do agir comunicativo nas esferas sociais em
geral (HABERMAS, 1992, p.451-462).
A releitura complementar de ambas as teorias instrumentaliza a construção de um
modelo de Estado Democrático de Direito que, em respeito ao caráter plural da sociedade
contemporânea, torne-se capaz de respaldar a intermediação entre consenso procedimental e
dissenso quanto aos conteúdos das preferências que emergem no mundo da vida (NEVES,
2008a).
Assim, a noção de mundo da vida, como esfera social que se estrutura
comunicativamente e, bem por isso, diferencia-se das esferas sociais estruturadas
sistemicamente, é o ponto de partida habermasiano que servirá à introdução da ideia de esfera
pública na teoria dos sistemas de Luhmann.
Ambas as vertentes teóricas apresentam a preocupação de entender e descrever as
dinâmicas de organização, constituição e evolução da sociedade. Segundo expõe Habermas
(1992), essa dinâmica consiste na tensão entre sistemas funcionais e mundo da vida. Como
esse mundo da vida é compartilhado intersubjetivamente, ele pressupõe o consenso como
categoria fundamental para a coordenação das ações sociais. Para Luhmann, a dinâmica que
148
movimenta a sociedade é orientada pela relação complexa entre sistemas autopoiéticos, que
funcionam de modo operativamente fechado e cognitivamente aberto (vide 3.2.2 supra).
Nada obstante, essa peculiaridade da teoria dos sistemas em Luhmann, ou seja, a
característica autopoiética dos sistemas sociais – e particularmente do direito –, cujas linhas
gerais foram expostas no capítulo anterior, não é acolhida como referencial teórico para este
trabalho. Isso porque, como se verá adiante, o nível de diferenciação funcional entre os
sistemas sociais no Brasil é insuficiente para o fechamento operativo e para a
autorrecursividade que o conceito de autopoiese pressupõe. Trabalha-se, entretanto, na
perspectiva de que é possível aumentar o nível de diferenciação entre os sistemas jurídico,
político e econômico e, ao mesmo tempo, possibilitar que as relações entre eles continuem a
ocorrer sem prejuízo à autorreferencialidade que cada sistema possa desenvolver. Isso pode
ser viabilizado, por exemplo, por meio da utilização de procedimentos e mecanismos – muitos
deles já previstos constitucionalmente, mas ainda carentes de efetividade – capazes de
institucionalizar as relações entre esses sistemas, e, assim, permitir que as operações
realizadas no interior de cada um deles possam ser orientadas pelos códigos e programas que
lhe são próprios.
A despeito disso, como salienta Neves (2008a, p. 50), ao radicalizar a teoria dos
sistemas autopoiéticos, Luhmann contraria toda “pretensão teórica de uma esfera de
integração abrangente da sociedade moderna: toda integração da sociedade realiza-se
parcialmente do ponto de vista de cada subsistema social”. A esfera extrassistêmica em que,
segundo Habermas, a sociedade constrói e reflete sua unidade, para Luhmann é, quando
muito, ambiente para um sistema, no qual estão os outros sistemas.
Como a lógica de organização da sociedade luhmanniana pauta-se pela fragmentação
ou, numa terminologia mais precisa, pela policontexturalidade, seria de se questionar o
cabimento, em si, da ideia de esfera pública como potencialidade “integradora” entre os
sistemas e o mundo da vida ou como sistema e ambiente. Entretanto, opta-se aqui por afastar
a pretensão autopoiética em prol da opção de se trabalhar apenas no âmbito da diferenciação
funcional entre os sistemas. Acrescentam-se à perspectiva aqui adotada, a noção luhmanniana
de cidadania como integração dos indivíduos aos variados sistemas sociais e a ideia de
constituição como acoplamento estrutural entre direito e política. Nesse acoplamento, a
propósito, estabelecem-se procedimentos que viabilizarão a expressão do dissenso quanto aos
conteúdos morais. Com tais ajustes teóricos, é defensável a construção da noção de esfera
149
pública pluralista, sem desprezar em sua inteireza os postulados da teoria dos sistemas de
Luhmann.
A própria questão do dissenso é descrita de modo interessante por Luhmann quando
ele afasta a possibilidade de se pressupor o consenso intersubjetivo. Em vez disso, à lógica
sistêmica interessa a observação – e produção – da diferença.
Nesse contexto é possível observar que Luhmann atribui destaque ao dissenso que
produz a diferença – fundamental para a manutenção da complexidade sistêmica –, ao passo
que Habermas enfatiza a possibilidade de se construir o consenso. De algum modo, dissenso e
consenso são duas facetas produzidas pela comunicação, como dois lados da mesma forma.
Vale dizer: se não houver possibilidade de consenso, a comunicação perde qualquer sentido;
pelo mesmo motivo, se for inevitável o dissenso, não há motivação para que os indivíduos se
comuniquem, pois já saberão de antemão que nenhuma mensagem será compartilhada entre
eles.
Além disso, como já se afirmou anteriormente, em ambas as abordagens teóricas a
institucionalização de procedimentos aparece como alternativa para viabilizar que o dissenso
acerca dos conteúdos valorativos seja intermediado e se torne produtivo – na visão de
Luhmann – ou controlado – como prefere pensar Habermas – sob o ponto de vista
democrático.
Pode-se dizer, então, que Habermas admite o dissenso porque ele é inevitável,
cabendo ao Estado Democrático encontrar meios para mantê-lo sob controle. O dissenso
apresenta-se como um risco que deve ser coordenado pela própria ação comunicativa, uma
vez que ela se orienta, segundo o autor, para o consenso. Veja-se a seguinte passagem da
Teoria da ação comunicativa (1992, p.375):
[...] a necessidade de se encontrar o consenso e o risco do dissenso aumentam em
cada ação na medida em que os agentes comunicativos já não podem recorrer à
antecipação do consenso que o mundo da vida traz em si. Quanto mais dependem de
suas próprias contribuições interpretativas, tanto mais se desenvolve o potencial de
racionalidade do entendimento linguístico, potencial que se expressa no fato de que
o acordo alcançado comunicativamente (e o dissenso comunicativamente regulado)
dependem do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez suscetíveis de
crítica.
Assim, o consenso é um ideal regulativo na teoria habermasiana, o que se torna
evidente, inclusive, nas obras posteriores à Teoria da ação comunicativa, como Direito e
democracia. Ainda assim é pertinente, sob perspectiva acolhida neste trabalho, aferir quais as
condições de possibilidade de uma racionalidade comunicativa – de entendimento linguístico
150
– em que se pressuponha uma orientação ao consenso nas condições de hipercomplexidade
social do mundo contemporâneo.
As perspectivas da dupla contingência, cada vez mais variadas na modernidade
complexa, tornam cada vez mais problemática a compreensibilidade das mensagens emitidas
na comunicação. O entendimento intersubjetivo – entre alter e ego – que sucederá a
compreensão da informação que se pretendeu transmitir através da mensagem poderá ocorrer,
ou não. Mais que isso, a própria compreensão da mensagem pode não sobrevir à pretensão
comunicacional, em razão das inúmeras possibilidades que se insinuam nas variadas formas
do agir e vivenciar da modernidade hipercomplexa. Vale dizer: é incerto o sucesso da
comunicação num mundo em que inúmeras formas de vida buscam reconhecimento no
ambiente democrático e em que os valores, interesses e discursos, muitas vezes antagônicos
até dentro de grupos específicos, têm sua variabilidade incrementada a cada dia. O consenso,
portanto, como fruto de um processo comunicativo bem sucedido deve ser tido como algo
eventual, cuja ausência não frustra os objetivos da comunicação até porque, ao contrário
disso, a dissensão é necessária para assegurar a pluralidade de preferências na sociedade
contemporânea.
Como já se viu, parte daí a crítica de Neves (2008a, p.127), direcionada à pretensão
consensualista do modelo habermasiano porque, segundo ele, isso gera uma sobrecarga ao
mundo da vida – como horizonte dos agentes comunicativos. Tal sobrecarga torna o mundo
da vida incapaz de dar conta da divergência relacionada aos diversos conteúdos morais e
valorativos que são próprios da sociedade moderna.
É por isso que a perspectiva consensualista de Habermas (apud NEVES, 2008a, p.
128), explicitada na afirmação de que “o entendimento parece ser inerente, como telos, à
linguagem humana”, é incompatível com o que se espera do mundo da vida na complexidade
contemporânea, em que a diversidade das possibilidades de ser e agir impõe o crescimento
incontrolável e contraditório da variedade de valores, interesses e expectativas que emergem
na sociedade.
Na modernidade complexa, o caráter multifacetado e plural da sociedade impede que
se desconsidere a tendência ao dissenso quanto aos conteúdos valorativos e visões de mundo.
Partindo dessa observação, Neves (2008a) propõe a reconstrução da noção de mundo da vida
a partir de uma perspectiva estritamente sistêmica, em que ele passa a funcionar como a base
de construção de todos os sistemas. O mundo da vida, então, como esfera em que as
comunicações ocorrem de modo espontâneo no cotidiano social, não é estruturado
151
linguisticamente, pois não se submete à especialização da linguagem tipicamente sistêmica.
Tampouco se pode dizer que o mundo da vida estrutura-se estritamente na ação comunicativa.
Em outras palavras, as comunicações que ocorrem no mundo da vida não se submetem a uma
linguagem estruturada binariamente, como nos subsistemas da sociedade, porque, diante da
gama infindável de possibilidades de comunicação existente na esfera social hipercomplexa,
torna-se inviável à comunicação organizar-se em termos de um código sistêmico (lícito/ilícito,
verdadeiro/falso etc.).
É a partir dessa concepção de um mundo da vida aliviado da sobrecarga
comunicativa/consensualista que se pretende aproximar as propostas teóricas de Luhman e de
Habermas, dando azo à compreensão pluralista da esfera pública. Em meio a esse conjunto de
interações entre os indivíduos e organizações sociais – interações sistêmicas ou
intersubjetivas, conforme a vertente teórica que tenha em vista – é que os estratos sociais
ganham voz e podem se organizar pluralisticamente para defender a generalização de seus
interesses, valores ou discursos. Nesse ponto torna-se relevante a noção de público que
Luhmann (2007, p. 61-66) sustentou.
Conforme já tratado neste trabalho, ao descrever criticamente o funcionamento do
Estado Social, Luhmann destaca a transformação havida na dinâmica interna do sistema
político em razão dos inúmeros “temas e interesses” que passaram a ser compreendidos como
próprios desse sistema. O desenvolvimento decorrente da inclusão dessas questões na agenda
do sistema político, por sua vez, resultou no surgimento de esferas distintas no âmbito interno
desse sistema: a política propriamente dita, a administração e o público (LUHMANN, 2007,
p. 62-63).
A diferença entre a esfera da administração e da política em Luhmann é facilmente
identificada, até porque, na contemporaneidade, é perceptível que ambos constituem esferas
sistêmicas que operam sob condições e influxos distintos, embora ainda permaneçam jungidos
ao sistema político.127
No que diz respeito à distinção entre a política e o público a questão
adquire outros contornos.
Segundo Luhmann (2007, p.63), a democratização do sistema político permitiu que se
estabelecesse a “diferenciação de um público politicamente relevante” capaz de participar das
decisões em torno de ações políticas, não se limitando à participação nas eleições periódicas.
Em razão desse mesmo processo democrático e, notadamente, da consolidação da autonomia
127
Na opinião da autora deste trabalho, na medida em que as subfunções dos sistemas sociais adquirem corpo e
diferenciação suficiente em relação ao sistema ao qual pertenciam, torna-se possível admitir que a administração
constitua um sistema funcional autônomo, orientado pelo código não poder; e a política, propriamente dita,
constitua outro sistema, orientado pelo código maioria-minoria.
152
dos partidos políticos como instituições permanentes desde o século XIX, o autor identifica o
surgimento de um âmbito distinto de comunicação política que se estabelece entre o “público”
e o Estado, servindo de mediação entre ambos. Com isso o autor apresenta uma perspectiva
que conecta as esferas do público e do político, num nível que não se confunde com o
espectro estatal:
[...] com tal estrutura, a política não pode ser concebida como esfera de atos de
poder, nem como influência sobre o detentor do poder político; ela constitui um
sistema diferenciado para o âmbito da prática política – considerada de per si – dentro do sistema político; portanto, um sistema social complexo e autônomo que
opera sob limitações estruturais próprias. Essa diferenciação entre público e política
(genuína) necessariamente transforma a dimensão do que antes se entendia como
Estado e se identificava com o sistema político.128
A partir dessa perspectiva, seria, então, viável aproximar a noção de esfera pública ao
espaço em que se produzem as comunicações geradas pela conexão entre a opinião pública e a
vontade política propriamente dita, que se dirigem à generalização de interesses, valores e
discursos no âmbito da administração, por exemplo. Esse é um dos indicativos encontrados na
teoria de Luhmann sobre o sistema político (2007) que possibilita a compatibilização entre a
proposta sistêmica e a construção de uma concepção de esfera pública nos moldes do Estado
Democrático de Direito, desde a proposta habermasiana.
Torna-se oportuno, neste ponto do trabalho, reintroduzir as discussões sobre a teoria
da cidadania, pois, como se viu, ela pode funcionar como um fio condutor que orienta a
releitura complementar da proposta dos dois teóricos.
A compreensão da cidadania como fruto de uma análise jurídica que seja, a um só
tempo, sistêmica e discursiva pode ser sintetizada na explicação de Neves (2008, p.185):
A cidadania flui da esfera pública para os sistemas jurídico e político e reflui destes
para aquela. Assim sendo, de um lado, a pluralidade de direitos que constitui a
cidadania relaciona-se com a diferenciação sistêmico-funcional da sociedade; de
outro, com a heterogeneidade de expectativas, valores e interesses que circulam por
diversas formas discursivas na esfera pública e exigem tratamento equânime nos
procedimentos constitucionais.
A convergência, nesse caso, está em que é imprescindível oferecer aos cidadãos
procedimentos jurídico-políticos que viabilizarão o acesso aos serviços ou prestações de cada
128
“Con tal estructura, la política no puede concebirse ya como preparación de actos de dominio, ni como
influencia sobre eldetentador del poder político; constituye um sistema diferenciado para la política dentro del
sistema político; por tanto, un sistema social complejo, autônomo, que opera y sufre bajo limitaciones
estructurales propias. Esta diferenciación de público y política (genuina) necesariamente transforma aquello que
con anterioridad se entendia como „Estado‟ y se había identificado al sistema político” (LUHMANN, 2007,
p.63).
153
sistema social. Com isso não se quer dizer que o procedimento é um fim em si mesmo no
Estado Democrático de Direito, tampouco se pretende uma igualdade meramente formal. Ele
apenas expressa uma das consequências da fragmentação da moral, na visão de Luhmann, ou
da superação da moral convencional, como sustenta Habermas, qual seja, o dissenso quanto
aos conteúdos que, por sua vez, demanda equacionamento pela via dos procedimentos
constitucionais.
Sob a perspectiva estritamente sistêmica, a cidadania implica inclusão nas prestações
de todos os subsistemas sociais, sem excluir o sistema político, em que as decisões políticas
programantes e coletivamente vinculantes são adotadas. Como assinala Neves (1994, p.257):
É inegável que os direitos sociais, enquanto resultantes da interferência do sistema
jurídico na estrutura econômica e nas relações de classe, têm uma função social-
integrativa. Embora lugar comum, é ainda incontestável que sem os direitos sociais como droit creance, os droit-libertés não têm sentido. Portanto, a cidadania,
enquanto integração generalizada nos sistemas sociais, como base no direito,
amplia-se significativamente com a conquista dos direitos sociais.
Ao se transportar a definição luhmanniana de cidadania para o contexto de
complexidade social da modernidade, em que as possibilidades de realização são
infinitamente menores que as possibilidades de ação, o autor identifica significativos limites à
operacionalização da soberania popular.
Pode-se acrescentar ainda, nesse ponto, a questão do dissenso estrutural como a razão
pela qual Luhmann restringe a possibilidade de participação direta dos cidadãos nos processos
político-decisórios. É por isso que a tensão entre complexidade social e soberania popular
acaba por respaldar a representação política como solução (vide 4.2 supra).
Nessa linha de raciocínio, a solução seria ampliar a gama de eleitos a quem se delega a
autoridade para decidir em detrimento das possibilidades de participação direta dos cidadãos
nas decisões políticas. A eleição dos representantes, na visão estritamente sistêmica, serve
para aliviar o sistema político e viabilizar maior flexibilização no exercício do poder. Não se
cogita, assim, da visão democrática tradicional em que a pessoa eleita será um representante
dos interesses daquele que o elegeu, até porque isso é inviabilizado pelas condições postas
pela hipercomplexidade moderna. Luhmann preocupa-se em encontrar um meio que torne
possível filtrar as influências externas ao sistema político; vale dizer: ele se preocupa com o
processo de seleção e autonomia do sistema político cuja resultante será a atuação dos
membros do Legislativo e do Executivo eleitos pelos indivíduos no exercício da soberania
popular (NEVES, 2008, p.189).
154
O impasse da representação política, entretanto, pode ser atenuado pela ação da esfera
pública como espaço de intermediação do dissenso e confluência de interesses e valores,
assim como “campo de interferência entre mundo da vida e subsistemas sociais autônomos,
de um lado, e sistema constitucional de outro” a qual incumbe relevante prestação à
legitimação do Estado Democrático de Direito. Em vez de liberar o eleito de qualquer
vinculação aos interesses de seu eleitor pura e simplesmente, opta-se por encarregar à esfera
pública a prestação de atribuir sentido à atuação do eleito “na medida em que passou por um
procedimento ao qual tiveram acesso as diversas correntes de opinião construídas na esfera
pública pluralista” (NEVES, 2008, p.189).
Também se atribui à esfera pública a tarefa de contribuir para a generalização das
expectativas sociais, as quais, uma vez tornadas jurídicas, caberá ao direito generalizar ou, se
direcionadas ao sistema político, caberá ao Legislativo ou ao Executivo torná-las objeto de
decisão coletivamente vinculante. Em relação ao Judiciário, a esfera pública poderá atuar no
sentido de submeter suas demandas à decisão jurídica, o que pode ocorrer, por exemplo, por
meio de ação popular e a ação civil pública.
Por outro lado, é oportuna a análise da teoria discursiva sobre a questão, segundo a
qual a tensão entre soberania popular e direitos fundamentais é equacionada por meio da
noção de cooriginalidade entre esses dois pilares dos regimes democráticos. Por esse motivo,
no Estado Democrático de Direito, a soberania popular – interconectada aos direitos
fundamentais – entrelaça-se com o poder politicamente organizado, ou seja, com a
institucionalização das práticas de autodeterminação dos cidadãos que se dá por meio da
esfera pública.
Isso ocorre porque, na concepção discursiva de Estado Democrático de Direito, a
soberania do povo não se materializa na reunião de indivíduos autônomos e facilmente
identificáveis. Tampouco numa coletividade, caracterizada pela reunião dos indivíduos ou de
seus representantes. Diversamente disso, ela se faz valer da “circulação de consultas e de
decisões estruturadas racionalmente”, capazes de estabelecer uma ligação entre o poder
administrativo estatal e a vontade dos cidadãos. São os “procedimentos e pressupostos
comunicativos de uma formação institucionalmente diferenciada da opinião e da vontade” que
possibilitam o entrelaçamento entre a soberania popular – ligada internamente aos direitos
fundamentais – e o poder politicamente organizado (HABERMAS, 2003, p.173). O que mais
interessa aqui é justamente essa interconexão, esse elo, entre os dois espectros do Estado
Democrático de Direito, que se concretiza na institucionalização da cidadania.
155
A cidadania, nesse contexto, é construída a partir da mobilização da sociedade, sejam
os indivíduos isoladamente considerados, seja pela sua associação em grupos – organizações e
movimentos sociais, por exemplo –,129
em torno de questões de interesse comum ao grupo.
Mais uma vez se vê que a esfera pública encontra sua função no seu potencial de mobilização
em torno dos valores, interesses e discursos que circulam em busca de generalização.
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 oferece mecanismos que propiciam a
atuação da esfera pública no sentido de aprimorar o controle social sobre os mais diversos
âmbitos de atuação do Estado. É no que concerne às deliberações em torno de políticas
públicas que as iniciativas de estímulo à participação dos pequenos e grandes públicos
adquirem especial relevância porque elas se relacionam diretamente à concretização dos
direitos fundamentais.
No âmbito do Executivo, especialmente na formulação e fiscalização de políticas
públicas, há previsão de participação da comunidade nos setores da seguridade social (art.
194, VII), da saúde (art. 198, III), da assistência social (art. 204, II), da educação (art. 206,
VI), da cultura (art. 216) e da infância e juventude (art. 227, § 1º). No âmbito
infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, o Sistema Único de Saúde (Lei nº 8.080/90), o Estatuto das Cidades, entre outros
textos, consagram, igualmente, a participação popular na elaboração e gestão das políticas
129
Ao historiar os movimentos sociais no Brasil no período compreendido entre 1972 e 1997, a cientista política
Maria da Glória Gohn (2007, 379 e ss), opta por agrupá-los em cinco ciclos distintos. Interessa ao tema ora
tratado a institucionalização dos movimentos havida no segundo ciclo, que se inicia em 1985 e se finda em 1989.
Isso porque, como se sabe, vindos da abertura democrática, os movimentos sociais se fortaleceram desde o
término do período ditatorial e, por ocasião da composição da Assembleia Constituinte, exerceram forte
influência nas disposições relativas aos direitos fundamentais e à ordem social. Essa influência pode ser
exemplificada pela atuação decisiva do “Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua” para a
consolidação, em nível constitucional, de uma nova concepção filosófico-político-jurídica no trato com as questões afetas à infância e juventude. Dois anos mais tarde, o mesmo movimento teve a oportunidade de
rediscutir o tema com Parlamentares o que culminou na elaboração da Lei nº 8.069, de 1990. Nada obstante, a
autora (GOHN, 2007, p. 381-382) relaciona número significativo de movimentos que se formaram e/ou
fortaleceram pós-1985, classificando-os em três conjuntos. O primeiro, de âmbito nacional, constitui-se pelo
movimento para redução do número de anos do mandato do presidente e retorno das eleições diretas (1985) e
pelo movimento nacional pró-constituinte (1985-86); o segundo conjunto diz respeito a temas específicos, como
raça, etnia, mulheres, meninos e meninas de rua, reforma da educação, meio ambiente e gênero; por sua vez, o
terceiro grupo abarca os movimentos populares urbanos de âmbito nacional, referindo-se aqui ao Pró-central
movimentos populares, à Confederação Nacional das Associações de Moradores e ao Movimento pela moradia –
que abrange assuntos, como favelas, ocupação de áreas urbanas, renovação de moradias construídas pelo poder
público, inquilinos, autoconstrução e mutirões comunitários, sem-casa, moradores de rua e devedores do Sistema
Nacional de Habitação. Segundo Gohn (2007, p. 290), “Habermas, Claus Offe, Melucci, Adam Przeworski e
Arato passam a ser os autores que, no plano das teorias macros, mais influenciam as análises sobre os
movimentos sociais no Brasil nos anos 90. Habermas (1985) cria a categoria do “agir comunicativo” para o
entendimento das ações presentes nos movimentos; ele vê nessas ações possibilidades de geração de novas
formas de relações de produção, contribuindo para resolver problemas de produtividade ou de impasses em áreas
econômicas em crise”.
156
públicas que dizem respeito à concretização dos direitos previstos em cada conjunto
normativo.
Esses conselhos setoriais gestores de políticas públicas são um bom exemplo de
espaço político-deliberativo institucionalizado por disposição constitucional como locus de
deliberação acerca de políticas sociais tematizadas. Contextualizados no debate
contemporâneo em torno da democracia, os conselhos são exemplos de uma nova
institucionalidade pública no país, inaugurada com a Constituição de 1988, o que deu lugar ao
redimensionamento do próprio sentido de cidadania.
Ao que parece, a previsão constitucional de participação da população na elaboração e
gestão das políticas públicas sociais e a consequente criação dos conselhos setoriais gestores
da política pública pretenderam reordenar os processos decisórios pela via da ampliação dos
espaços públicos de deliberação e da reformulação da natureza da decisão política, agora
pautada no debate público e na universalização dos direitos sociais.
Muitas vezes, entretanto, os conselhos – que possuem poder deliberativo sobre o
empenho de valores creditados nos respectivos fundos – funcionam como meros abonadores
da vontade estatal, deixando de exercer as funções que lhe são atribuídas constitucionalmente
e regulamentadas em leis específicas. Isso pode ocorrer pela ação “colonizadora” do poder
burocrático que impõe estratégias para que suas opções políticas sejam reafirmadas pela ação
dos conselheiros. Também pelas estratégias do mercado que tentam sobrepor a lógica do
sistema econômico de otimizar o lucro à lógica de outros sistemas.130
É necessário observar,
todavia, que, nas situações em que houver dissenso, o membro do conselho que tenha sido
vencido pode apresentar a questão para a devida revisão no âmbito do Poder Judiciário, por
exemplo. A demanda pode ser apresentada por meio de ação popular ou ação civil pública.
130
A ação dos segmentos da esfera pública, em alguns casos representa os interesses do mercado, como, por
exemplo, a indústria farmacêutica no âmbito dos Conselhos de Saúde e dos demais órgãos deliberativos dessa
esfera, ligados ao Ministério da Saúde. Embora não possa ser excluída, essa atuação, muitas vezes, pode resultar
numa interferência indevida na formulação da política. No caso específico da composição da lista de
medicamentos de disponibilização obrigatória pelo Sistema Único de Saúde, a inclusão de um fármaco e a
exclusão de outro devem atender aos critérios do sistema de saúde e do sistema jurídico, já que o fornecimento
gratuito de medicamentos integra o direito social de acesso do indivíduo ao sistema de saúde. Como se trata de
uma esfera pública em que todos os interesses podem e devem ser representados, o que se espera é que no
processo deliberativo correspondente haja a devida filtragem dos argumentos de todos os segmentos da esfera
pública cujos interesses estejam em questão. Não se pode afastar de antemão a atuação dos segmentos ligados ao
poder econômico. O que se sustenta neste trabalho é que ao sistema jurídico – num primeiro momento. o
Ministério público, e, em ultima instância, o Judiciário – caberá sustentar, de modo contramajoritário, inclusive,
a observância do código do direito nas deliberações em torno da formatação e escolha das políticas públicas
tendentes à concretização de direitos sociais. Desse modo o sistema jurídico contribui para o “empoderamento”
da esfera da política e para motivar a participação na esfera pública de segmentos mais frágeis em termos de
organização e representação.
157
A propósito disso, ao Ministério público cabe acompanhar, no âmbito de sua esfera de
atuação, as resoluções dos conselhos para que elas possam ser submetidas ao crivo do sistema
jurídico caso haja necessidade. A irregularidade porventura identificada poderá ser mais bem
apurada por meio do inquérito civil público e, não havendo possibilidade de composição
extrajudicial, poderá ser proposta a ação competente. Há vários julgados que consideram a
deliberação prévia do conselho gestor como uma abertura à intervenção do Judiciário para
sanar ações ou omissões em questões relacionadas às respectivas políticas públicas.131
Relativamente às finanças públicas, ponto relevante para a abordagem que se pretende
fazer no capítulo seguinte sobre orçamento público e concretização de direitos fundamentais,
os espaços de atuação da esfera pública são garantidos com maior nível de detalhamento em
disposições infraconstitucionais, notadamente na Lei Complementar nº 101/00 (Lei de
Responsabilidade Fiscal), que determina o incentivo à participação popular e a realização de
audiências públicas durante os processos de elaboração e de discussão dos planos e leis
orçamentárias (art. 48, parágrafo único).
As audiências públicas, em tese, tornam factível a possibilidade de que o público
possa tomar parte nas decisões, sobretudo no âmbito do Legislativo e do Executivo, expondo
as demandas relevantes para um dado segmento da sociedade com vistas à generalização das
expectativas no nível político.
Entretanto, se o poder público não angariar credibilidade e não se demonstrar
responsivo em relação às demandas de maior relevância social, o espaço criado pelas
audiências públicas pode se desvirtuar de sua finalidade, esvaziando-se de qualquer atuação
política voltada para a generalização da cidadania.
Insere-se aqui a noção de responsividade aplicada à administração que implica a
demonstração da gestão responsável dos recursos públicos. Nesse sentido, tramita no
Legislativo o projeto de lei nº 248/2009 que visa “estabelecer normas gerais de finanças
públicas voltadas para a qualidade na gestão”. Entre os vários dispositivos direcionados à
melhoria da qualidade da participação da população afetada pelas decisões alocativas de
recursos públicos no orçamento, insere-se a criação de conselhos formados por membros da
131
A decisão proferida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de justiça, no Recurso Especial nº 493811,
publicada no DJ de 15.3.2004, foi um precedente relevante no tratamento da questão pelo Judiciário, no sentido
de atribuir a devida importância à esfera político-deliberativa dos Conselhos Setoriais, a saber: “Administrativo e
processo civil – ação civil pública – ato administrativo discricionário: nova visão. 1. Na atualidade o império da
lei e o seu controle, a cargo do judiciário autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e
oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério público para exigir do Município a execução de
política específica, a qual se tornou obrigatória por meio da resolução do Conselho Municipal dos direitos da
Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de
atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido”.
158
sociedade que se destina, especificamente, ao incremento do controle social das políticas
públicas no orçamento municipal.132
Isso seria um estímulo à participação de parte relevante
da esfera pública que, muitas vezes, não se mobiliza para tanto em razão dos ônus do acesso à
informação e dos custos – sociais, pessoais e econômicos – dessa mobilização. Em
consonância com as preocupações correntes na sociedade civil, o referido projeto de lei
estabelece critérios objetivos para aumentar o nível de transparência da gestão dos recursos
públicos o que, em última análise, contribui para a educação política dos cidadãos e pode
aumentar a qualidade da participação do público interessado nas deliberações político-
orçamentárias.
Nesse ponto é importante frisar que, quanto mais transparência há no processo
orçamentário, melhores condições os cidadãos terão para se posicionar e para se mobilizar em
torno das deliberações a eles correlatas. É que o acesso às informações permite aos integrantes
da esfera pública exercer, de modo apropriado, suas funções na comunidade política, assim
como exercê-la em outras datas e ocasiões, que não aquelas das eleições periódicas. O que se
deve notar é que a transparência aqui referida não se limita à mera publicidade, como já
determina o texto constitucional e, no caso dos orçamentos públicos, a própria Lei de
Responsabilidade Fiscal; a expressão transparência abrange a clareza e inteligibilidade das
informações que são disponibilizadas para os cidadãos.133
Apesar dos vários instrumentos e procedimentos constitucionalmente estabelecidos em
prol da atuação de uma esfera pública pluralista, em que os vários pontos de vista sejam
apresentados e debatidos em nível de igualdade, há que se reconhecer que não é essa a
realidade que se constata no Brasil.
132
A criação dos Conselhos Municipais de políticas Públicas vem ao encontro do modelo de descentralização
dos Estados sustentada por estudiosos do tema (CLARK, 2001, p. 56/59; MAGALHÃES, 2000). O argumento é encampado no âmbito deste trabalho no sentido que certamente os interesses da sociedade, sobretudo as
peculiaridades das demandas locais, serão mais bem aferidos e atendidos com mais eficiência, quanto maior for a
proximidade do ente estatal com os cidadãos. Clark explica que isso se deve, no caso brasileiro, à pluralidade da
sociedade, afixada num território de dimensões continentais e à heterogeneidade de seus múltiplos interesses.
Nesse contexto, o autor aponta que soluções genéricas e centralizadas não serão capazes de atender às
peculiaridades das comunidades locais, em virtude do que surge a necessidade de se privilegiar as esferas de
poder dessas comunidades, como alternativa para a melhoria da qualidade de vida e fortalecimento da cidadania.
No entanto, na opinião da autora deste trabalho, o projeto de lei deveria prever também a criação de instrumentos
que facilitem o controle social no âmbito do Estado, como tais conselhos de políticas públicas, uma vez que
muitas políticas públicas têm a competência de sua execução desdobrada nas unidades federativas estatais e
municipais. 133
No caso brasileiro, embora incipientes, há diversos movimentos e organizações sociais, integrantes dessa
esfera pública pluralista de que se falou, que têm como objetivo aumentar o nível de acessibilidade às
informações relativas ao processo orçamentário. Pode-se nominar o Movimento Nossa BH, Rio como vamos,
Nossa São Paulo e o INESC, em Brasília, que trabalha, inclusive, no desenvolvimento de metodologias que
facilitem a compreensão das disposições orçamentárias, assim como na multiplicação de agentes capacitados
para “alfabetizar politicamente” outros agentes e ou grupos.
159
Embora se propugne por uma esfera pública pluralista, não é difícil observar que o
pluralismo dos meios de informação é limitado pelos constrangimentos profissionais, pela
pressão uniformizadora da concorrência mercantil ou, o que é ainda mais nocivo à formação
da opinião, pela influência exercida em razão dos interesses comuns dos proprietários das
empresas de comunicação em massa. A ação desses grupos, aliás, forma um mercado cada
vez mais concentrado e coeso na defesa de seus interesses, em detrimento dos interesses
socialmente mais relevantes, cuja dispersão não é evitada pelas “inovações democráticas”. O
baixo nível do interesse pela política é notório e o que mais preocupa é que sua distribuição
entre as esferas sociais que integram a esfera pública ocorre de modo desigual: não raro,
pessoas pertencentes aos grupos de menor poder político, como os trabalhadores, por
exemplo, são também os públicos que revelam menor interesse pela política. Isso indica que o
interesse decorre, ao menos em parte, das oportunidades de participação efetiva abertas pelo
sistema político. Na célebre e mal compreendida frase de Locke, aqueles que “vivem da mão
para a boca”134
não se dedicam à vivência política. Daí a necessidade de se estimular a
participação do público interessado na formulação da política pública, assim como de se
ampliar da pluralidade de vozes e perspectivas presentes nas esferas decisórias e da ampliação
da força política de grupos tradicionalmente marginalizados.
O que se vê com certa frequência é que as iniciativas no sentido de incluir os cidadãos
no sistema político acabam por acarretar, ao contrário, diminuição na autonomia do espaço
público. Isso pode ser atribuído ora à dificuldade de a população desvincular-se da noção de
administração patrimonialista e da prática clientelista, baseada na cultura do favor e das trocas
pessoais, o que esvazia o sentido da participação na vida política da comunidade; ora à
persistente assimetria advinda dos déficits socioeconômicos e organizacionais verificados no
Brasil, o que reflete a baixa normatividade da declaração constitucional de direitos
fundamentais que não se concretizaram na vivência cotidiana dos indivíduos, ou seja, não se
generalizaram.
A propósito disso, o Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais,
como se viu, pretende sejam ampliados os níveis de acesso a esses direitos em países em
desenvolvimento. O último relatório do Comitê incumbido de fiscalizar o desempenho do
134
Segundo pensava Locke, na ambiência do liberalismo clássico, mesmo afastando a tese da inferioridade
natural dos não proprietários, os quais viviam geralmente “da mão para a boca”, reconhecia-se, assim, que a eles
falta tempo e oportunidade para pensar além dos limites da vida cotidiana. Essa condição, fator de desunião,
torna grande parcela da população impotente para formar uma noção de interesse comum e para lutar por ele.
Raramente, levados pela extrema miséria, recorrem à rebelião, menos determinados por algum interesse
compartilhado e refletido do que pela simples avidez de apropriação das fortunas dos ricos (BOBBIO, 1997, p.
221 e ss.).
160
Estado brasileiro no cumprimento das metas estabelecidas, além de várias recomendações
específicas, em regra voltadas para o aumento dos investimentos públicos nas políticas
públicas sociais, acrescentou ao final que:
O Comitê solicita ao Estado que dissemine estas observações finais amplamente
entre todos os segmentos da sociedade, particularmente entre os servidores públicos,
o Poder Judiciário e organizações da sociedade civil. [...] Ele [o comitê] encoraja o Estado a continuar envolvendo organizações não governamentais e outros membros
da sociedade civil no processo de discussão, em âmbito nacional.
Com efeito, o que se quer concluir é que a esfera pública pluralista, provida de
expressiva relevância para a legitimação do Estado Democrático de Direito, é retroalimentada
pela promoção dos direitos fundamentais na medida em que exige, pelo menos, a garantia de
um nível mínimo de acesso às prestações de cada sistema, tais como saúde, educação e
assistência social para que se fale propriamente em pluralidade na esfera pública. Logo, para a
promoção dos direitos sociais é de fundamental importância o fortalecimento da esfera
pública pluralista que, assim estruturada, pode contribuir para o aumento dos níveis de
concretização dos direitos sociais. Quanto maior for o nível de inclusão do indivíduo nas
prestações de cada sistema ou, na semântica habermasiana, quanto mais se assegurar ao
indivíduo o exercício concomitante da autonomia pública e da autonomia privada, mais
factível será a pluralização da representação no interior dessa esfera pública. Haveria, assim,
uma relação de circularidade entre concretização de direitos sociais e o empoderamento da
esfera pública pluralista.
Por essa razão, é pertinente a análise das peculiaridades do caso brasileiro, carente de
suficiente diferenciação funcional entre os sistemas e de uma esfera pública pluralista.
4.6 Limites e possibilidades de uma esfera pública pluralista capaz de contribuir para
generalização da cidadania no Brasil
Como se viu nos capítulos anteriores, a sociedade moderna é funcionalmente
diferenciada, o que equivale a dizer que cada subsistema social é especializado para
desempenhar uma função que pretende solucionar um tipo de “problema” do sistema social
global.
Os subsistemas da sociedade global relacionam-se entre si por meio de prestações
recíprocas: a economia necessita das decisões vinculantes da política, assim como dos
programas normativos típicos do sistema jurídico. A economia, por outro lado, oferece o
161
suporte econômico para o funcionamento dos demais sistemas. Todavia, tais prestações
recíprocas devem ser limitadas pelas condições exigidas para a manutenção do fechamento
operacional de cada subsistema, sob pena de que ocorra o que Luhmann chama de corrupção
sistêmica. Em outras palavras, se cabe à economia prover suporte monetário para que se
desenvolva uma campanha eleitoral, no âmbito do sistema político, ou o financiamento de
uma investigação científica, no âmbito do sistema da ciência, não lhe pode ser acessível
“comprar” os resultados da disputa política ou da pesquisa científica.
Isso porque para que cada um desses sistemas continue desempenhando, com
exclusividade, a função para a qual se especializou é imprescindível que suas operações
internas observem apenas o seu código binário próprio. No caso de uma disputa eleitoral para
a Câmara dos Deputados, por exemplo, a eleição dos candidatos deve ser norteada pela
escolha do eleitor, orientada por suas preferências e convicções, sobre qual deles reúne
melhores condições para ocupar o cargo.
Como a disputa eleitoral depende de recursos financeiros, provenientes do sistema
econômico, também devem ser observadas as regras que regulam a recepção e utilização
desses recursos. A aplicação dessas regras, entretanto, cabe ao sistema jurídico e segue o
código conforme ou desconforme ao direito.
Logo, no exemplo apontado, os sistemas político, econômico e jurídico estabelecem
comunicações entre si, que lhes faculta a troca de prestações, isto é, as chamadas relações
intersistêmicas. Entretanto, para que estas sejam bem sucedidas, exige-se a observância dos
limites autorreferenciais de cada um dos sistemas.
A possibilidade de se conservar a autorreferencialidade de um sistema pressupõe a
existência de um nível satisfatório de diferenciação entre os sistemas. Assim, nas sociedades
em que essas condições são constatáveis, o resultado que se pode esperar desse processo é a
eleição do candidato que apresentou aos eleitores melhores condições de exercer as funções
legislativas. O financiamento da campanha, como prestação que o sistema econômico oferece
ao sistema político, servirá aos gastos com a divulgação da plataforma política e
especialmente aos projetos que o deputado pretende apoiar em sua legislatura, não se
cogitando da destinação direta de recursos ao eleitor como modo de angariar seu voto, por
exemplo. Vale dizer: a disputa observará ou transcorrerá conforme o regramento previamente
estabelecido pela estrutura normativa correspondente. A diplomação do deputado eleito,
conforme dispuser a respectiva legislação, será uma prestação que o sistema jurídico oferecerá
ao sistema político pela condução lícita do processo de escolha.
162
Pois bem. No exemplo descrito acima, a troca de prestações entre os sistemas
jurídico, político e econômico na eleição de um parlamentar corresponde à previsão normativa
aplicável ao tema no Brasil. É ilustrativo para o tema, pois possibilita que se perceba a
necessidade de que os sistemas estabeleçam relações entre si, tendo por orientação o código
binário do direito, como exigência pressuposta pelo Estado Democrático de Direito.
Nada obstante, na prática cotidiana das comunicações entre esses sistemas na
sociedade brasileira, a realidade que se constata muitas vezes não corresponde ao que
prescrevem as disposições legislativas, tampouco, em algumas situações, ao que dispõe a
constituição.
Conforme se expôs no tópico anterior, no Brasil não há uma esfera pública pluralista
consolidada, capaz de funcionar como facilitadora do relacionamento intersistêmico que
interessa à concretização dos direitos fundamentais e assim contribuir para a generalização da
cidadania.
Ao analisar a situação política brasileira nos dias atuais, Santos (2006) anota o
processo de corrupção das forças organizadas que tendiam fazer uso nocivo do direito à
participação das decisões políticas, escondendo-se sob as vestes de uma esfera pública
(ilegítima). Segundo ele, os grupos de interesse no Brasil ambicionaram barrar a tendência à
monopolização decisória do Estado não para torná-lo plural, democrático ou acessível à
diversidade dos grupos sociais. O que movia tal ambição era o interesse de substituir o
monopólio do poder estatal pela oligarquia de um sistema fechado de poderosos grupos de
interesse.
No mesmo sentido, Faoro (2001, p. 834), depois de historiar a construção do
“estamento burocrático” no Brasil desde o período colonial, explica que:
Na peculiaridade histórica brasileira a camada dirigente atua em nome próprio,
servida de instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.
Ao receber o impacto das novas forças sociais, a categoria estamental as amacia,
domestica, embotando-lhes a agressividade transformadora, para incorporá-las a
valores próprios, muitas vezes mediante a adoção de uma ideologia diversa, se
compatível com o esquema de domínio.
Na perspectiva do autor (FAORO, 2001, p. 827-837), o poder político no Brasil
sempre teve “donos” que “não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre”, o
“povo, palavra e não realidade dos contestatários” , submete-se à dominação de uma elite –
“sem brasões, vestimentas ornamentais” ou “casacas ostensivas” – que se vale da arraigada
tradição patrimonialista para impor seus interesses sobre quaisquer outros e impedir a
163
manifestação genuinamente política dos indivíduos. Daí porque, em sua crítica, “o súdito quer
a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores de
riqueza, na ambiguidade essencial ao tipo de domínio”.
Essa perspectiva política, social e histórica auxilia na compreensão das dificuldades
que o Brasil, como jovem democracia, enfrenta na construção de uma esfera pública
pluralista. Essas observações críticas estariam a apontar indícios de que no processo de
formação do Estado brasileiro não houve a criação de espaços público-políticos para a
construção da vivência democrática entre os governados, em razão do uso abusivo do poder
econômico e do poder burocrático. Isso coincide com a noção habermasiana de “colonização
do mundo da vida” em que as esferas sociais estruturadas comunicativamente são bloqueadas
pela ação estratégica de esferas que não se estruturam em bases comunicativas, mas agem
movidas por interesses não compartilhados.
Para Luhmann, tratar-se-ia de hipótese de corrupção sistêmica estrutural. A corrupção
sistêmica é um fenômeno constatado quando o código de um sistema social sobrepõe-se ao
código do outro e bloqueia o desenvolvimento de suas operações internas. Quando as
condições conjunturais do ambiente não oferecem respaldo à atuação do sistema social que
tem seu código tragado pelo código dominante, corrupção pode deixar de ser eventual e se
tornar estrutural. Isso ocorre porque o sistema corrompido não encontra meios para reagir à
pressão exercida pelo sistema corruptor. A corrupção, nesse caso, pode alcançar as estruturas
do sistema corrompido e atingir o plano da estabilização das expectativas. O grande risco é a
generalização da corrupção sistêmica estrutural, que faz desemcadear um processo de
desdiferenciação sistêmica e o sistema afetado passa a ter suas operações e estruturas
diretamente determinadas pela racionalidade do sistema corruptor (NEVES, 2009, p.44).
Os exemplos de corrupção sistêmica no Brasil ainda são frequentes. Não raro, a mídia
noticia episódios que se amoldam à espécie. Os casos de superfaturamento na aquisição de
bens e produtos pelos entes estatais são hipóteses de corrupção sistêmica que, conforme a
frequência e tendência à generalização, podem atingir as estruturas do sistema político
(administração). Nesse exemplo pode-se dizer que se estabelece uma relação negocial entre a
administração e o sistema econômico, este representado na empresa indicada para fornecer
mercadorias ou serviços que seriam adquiridos pela administração. Essa relação negocial vai
ser orientada pela racionalidade da economia porque a empresa tentará obter o maior lucro
possível na negociação. Nada obstante, pela ótica da administração, a execução das políticas
públicas exige a observância do princípio da eficiência, por exemplo, que lhe obriga a obter o
164
maior proveito qualitativo e quantitativo com menor dispêndio de recursos possível. A
licitude da opção do sistema político pode ser aferida, assim, conforme essa lógica da
eficiência seja respeitada. O processo licitatório, nesse caso, funciona como um filtro para a
tendência de sobreposição da racionalidade – e do código – própria da economia sobre a
racionalidade da administração pública. Todavia, quando o processo licitatório é burlado e a
racionalidade da economia, pautada pelo binômio ter/não ter, passa a interessar a ambos os
lados da relação negocial, ocorre uma hipótese de corrupção do código da política, pelo
código da economia. Se uma prática dessa natureza não é adequadamente coibida pela
imposição de sanção pelo sistema jurídico, em razão do desapontamento de uma expectativa
normativa, e ocorre repetidas vezes no âmbito de um mesmo ente estatal, por exemplo, surge
o risco de generalização da corrupção que alcançará, assim, as estruturas do referido sistema
político.
Por outro lado, a situação brasileira também demonstra fragilidade em virtude do
baixo nível de diferenciação funcional entre os sistemas sociais. De acordo com Luhmann, a
diferenciação funcional entre os sistemas é uma aquisição própria da modernidade.
Entretanto, no caso brasileiro, essa diferenciação em níveis baixos impede que os sistemas
consigam referenciar suas operações em si mesmos, ou seja, consigam se autodeterminar
operacionalmente a partir de seu próprio código, porque o fechamento normativo é vulnerado
pela confusão de códigos, programas e racionalidades que se entrecruzam, indistintamente, no
interior dos sistemas.
O próprio Luhmann, em algumas oportunidades, posicionou-se a respeito dos óbices à
autorreferencialidade dos sistemas em países como o Brasil. No texto A constituição como
aquisição evolutiva (1996b, [s.p.]), ao observar a tendência à autolimitação do processo de
juridicização e tutela dos direitos fundamentais nos países desenvolvidos, o autor ressalva que
no Brasil as tendências evolutivas se dão em sentido diverso, uma vez que
[...] favorecem um tipo de limitação que é concretamente diverso, ou seja, a exclusão dos estratos baixos do âmbito de relevância político-estatal mediante
corrupção, inflação ou uma atividade estatal de tal modo capilar que é também
inacessível a esses estratos.
Para compreensão desse fenômeno, recorre-se à explicação de Neves (2007, p. 170-
174), segundo a qual em determinadas regiões, mormente aquelas delimitadas como Estados
Nacionais, o processo de autonomia dos sistemas sociais não se efetivou adequadamente, seja
porque o princípio da diferenciação funcional não acompanhou a evolução social da
165
modernidade complexa, seja porque a esfera pública não alcançou um nível minimamente
satisfatório de generalização e institucionalização da cidadania.
A semântica da modernidade periférica mostra-se, portanto, adequada para designar
esses Estados Nacionais que suportaram as consequências da complexificação social sem que
daí resultassem sistemas sociais capazes de estruturar ou determinar adequadamente a
emergente complexidade (NEVES, 2007, p.172). Dito de outro modo, na modernidade
periférica, a complexificação social não se fez acompanhar do avanço no processo de
diferenciação funcional entre os subsistemas sociais, tampouco trouxe consigo impulso ao
fortalecimento de uma esfera pública capaz de tornar os indivíduos, cidadãos, generalizando
as expectativas sociais de acesso às prestações de todos os subsistemas.135
Como uma “forma
de dois lados”, só existe a modernidade central como lado positivo da forma se houver uma
modernidade periférica como lado negativo dessa mesma forma. Vale dizer: só há uma
periferia que se mantém sob as condições negativas de uma modernidade forjada por
fundamentos econômicos que a tornaram carente de desenvolvimento, porque os países
centrais despontaram no ranking mundial com suas economias bélicas e expansionistas bem
sucedidas.
As consequências do baixo nível de diferenciação funcional, combinado com
episódios frequentes de corrupção sistêmica, repercutem diretamente na compreensão do tema
tratado neste trabalho. Com isso se quer dizer que, na modernidade periférica, as conjunturas
estruturais da sociedade são desfavoráveis à realização da cidadania, em razão do que os
direitos fundamentais enfrentam dificuldades de generalização ainda que em níveis mínimos.
Via de consequência, a estruturação de uma esfera pública pluralista enfrenta sérios bloqueios
do ponto de vista sistêmico e, como se supõe haver uma relação direta entre concretização dos
direitos da cidadania e o fortalecimento da cultura de participação na vida política da
comunidade, a desejada circularidade produtiva não encontra lugar para se instalar.
Necessário ponderar que a dicotomia entre países centrais e países periféricos não é
utilizada pelo autor de modo ideologizado, como distinção entre sociedades tradicionais e
sociedades modernas, mas como distinção entre dois lados da mesma forma em que se
apresenta a moderna sociedade mundial. Uma sociedade cujo surgimento se deve, em grande
parte, à “profunda desigualdade econômica no desenvolvimento inter-regional, trazendo
135
É em razão dessa disparidade vivenciada pelos países periféricos que Marcelo Neves cunha a expressão
“modernidade negativa”. Os países da modernidade negativa encontram-se sob as condições da modernidade, no
que importa ao elevado nível de complexidade social por eles suportados, entretanto não auferiram os bônus
adquiridos pelos países centrais relativos aos altos níveis de diferenciação entre os sistemas e à estruturação de
uma esfera pública pluralista.
166
consequências significativas na reprodução de todos os sistemas sociais, principalmente no
político e no jurídico, estatalmente organizados” (NEVES, 2007, p.170-1).
Na esteira do que afirma Neves (2008, p.180-181), o desenvolvimento da cidadania
teve significativo impulso sob o paradigma do Estado Democrático de Direito com a
“positivação dos direitos sociais, a intervenção compensatória na estrutura de classes e na
economia, a política social do Estado e a regulamentação jurídica das relações familiares e
educacionais”. No entanto, ainda que seja passível de muitas críticas, a ideia da
constitucionalização desses direitos surge num contexto diverso daquele emoldurado no
Estado Social. Desta feita, assegurar tais direitos equivale a promover a cidadania como
instituto que pretende a “integração jurídico-político generalizada e igualitária na sociedade”,
o que é inquestionavelmente essencial.136
O que sobressai no caso da juridificação simbólica de direitos, ou seja, na utilização da
estratégia de constitucionalizar sem compromisso com a concretização desses direitos, é que a
conquista não alcança todo o percurso necessário para que eles existam, de fato, nos planos
jurídico e político, que se realizam em etapas. A terceira e última dessas etapas diz respeito ao
que Konrad Hesse (1991), chamou de força normativa da constituição perante a sociedade à
qual se dirige. Explica-se: num primeiro momento, o que importa à existência político-
jurídica de um direito é que, em relação a ele, haja uma exigência moral ou valorativa em
torno de seu reconhecimento. É dizer, para que esse momento seja superado, que é necessário
que as expectativas relacionadas à sua normatividade surjam como imprescindíveis às
exigências da integração social. É como se essas expectativas estivessem na fronteira externa
do sistema jurídico constitucional com pretensão de universalização e, consequentemente, de
ingressar no sistema. Na etapa seguinte, o que se considera é a “resposta dos sistemas jurídico
e político às exigências de integração social e sistêmica que culminará com a incorporação da
semântica na forma de direitos fundamentais” (NEVES, 2008, p.182).
Por fim, como última etapa necessária ao efetivo ingresso do direito – agora já
declarado constitucionalmente – no sistema jurídico e político, é imprescindível que ele
adquira a força normativa necessária à sua efetivação, que se dá pelo seu ingresso no
cotidiano dos indivíduos. Somente quando um direito reconhecido como essencial à
integração social e declarado pelo sistema constitucional ingressa no cotidiano de membros de
136
Marcelo Neves indica uma “onda de juridificação” típica do Estado Democrático de Direito que corresponde
aos direitos difusos e coletivos e aos direitos “à discriminação inversa”. Esses direitos visam a assegurar, no
plano jurídico, a integração das minorias aos subsistemas sociais, institucionalizando o direito de ser diferente
(NEVES, 2008, p.182). No contexto brasileiro, pode-se citar como exemplo, a reserva de vagas para pessoas
portadoras de necessidades especiais em concursos públicos.
167
uma sociedade política ou, na expressão de Neves (2008, p.182), “ingressa no vivenciar e agir
dos cidadãos e agentes públicos na forma de direitos e deveres recíprocos” é que ele adquire
força normativa na semântica proposta por Hesse (1991).
A cidadania exige a concretização dos direitos fundamentais para que, sendo a
constituição um reflexo da esfera pública pluralista, os mecanismos político-jurídicos sejam
aptos a gerar inclusão social, como acesso generalizado às prestações de todos os sistemas.
Sem inclusão social, menos cidadã e mais enfraquecida se torna a esfera pública, o que acaba
por gerar menos normatividade e agregar cada vez mais simbolismo ao sistema jurídico-
constitucional. O direito, nesse ciclo vicioso, corre o risco de não conseguir desempenhar sua
função de generalizar as expectativas normativas de comportamento e, despido de sua função,
o processo de diferenciação retrocede.
Dito de outro modo, se o processo de concretização da constituição torna-se passível
de bloqueio por fatores que lhe são externos, provenientes da policontexturalidade que
envolve os demais subsistemas e os torna ambiente na observação do sistema jurídico, o
direito deixa de ser capaz de se autorreproduzir. Isso se dá porque o fechamento operacional
do sistema jurídico mostra-se ineficaz e permite o ingresso de influxos da economia, da
política ou da cultura de modo indistinto. O sistema jurídico torna-se incapaz de oferecer a
prestação que dele se espera porque ao seu código próprio – lícito/ilícito – sobrepõe-se o
código de outro sistema sem que haja nenhuma filtragem.
A esse processo que corrói os mecanismos de autorreferência do sistema jurídico e do
próprio Estado, que mitiga o alcance autopoiético do sistema jurídico, corresponde a sua
desdiferenciação do direito em relação a outros sistemas. Não há como negar que, em tempos
de globalização e tendo em conta a posição periférica do Estado brasileiro, os sistemas
político e econômico parecem ostentar melhores condições de adaptabilidade à
hipercomplexidade contemporânea em virtude de suas peculiaridades funcionais, o que
ameaça a relação de coordenação entre esses sistemas sociais no ambiente. Inclusive o próprio
Luhmann, que vê na autopoiese a razão de ser da reprodução da diferenciação funcional do
direito, ao citar a teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves admite que, em
países como o Brasil:
O modelo de acoplamento estrutural moderno pode ser reconhecido, muito embora apenas como aparência de verdadeiro ou funcional. O uso meramente simbólico das
constituições se presta a que a política atue como se fosse limitada e irritada pelo
direito enquanto as verdadeiras relações de poder são submetidas às comunicações
internas. No entanto, o significado pleno de constituição como aquisição evolutiva
168
se desenvolve apenas sob as condições da diferenciação funcional e fechamento
operativo dos sistemas político e jurídico (Tradução livre).137
Nesse contexto, o processo de concretização e generalização dos direitos fundamentais
é embargado por critérios particularistas, de natureza política, econômica etc. Tais bloqueios
externos comprometem o desenvolvimento da capacidade autorreferencial do sistema
jurídico, que não encontra condições para se reproduzir de modo consistente (NEVES, 2007).
A grande dificuldade, portanto, está em fazer com que o discurso da cidadania deixe o
campo da retórica e adquira materialização no vivenciar e agir dos indivíduos. Isso porque,
como se viu, a constituição não funciona como instância reflexiva de um sistema jurídico que
é dotado de vigência plena e eficácia no plano da concretização da vivência cidadã. Vale
dizer: os bloqueios políticos e econômicos impedem que o processo de concretização
normativo-jurídica do texto constitucional resulte na congruente generalização das
expectativas normativas relacionadas às políticas fundamentais. Em decorrência disso, os
direitos fundamentais não encontram ressonância na práxis dos órgãos estatais, o que implica
a não inclusão generalizada dos indivíduos no sistema jurídico. O processo de concretização e
generalização é embargado por critérios particularistas, de natureza política, econômica etc.
(NEVES, 2007).
Reconhece-se, assim, que há graves e diversos entraves para que o Judiciário
desempenhe sua função de generalizar de modo congruente as expectativas normativas no
âmbito social, temporal e material. A incapacidade de o direito referenciar suas decisões,
única e exclusivamente, na sua própria estrutura – decisões anteriores e normas – impede a
identificação de sentido da função que ele deve exercer na sociedade. Nesse contexto, é no
aspecto material da congruente generalização de expectativas normativas que se encontra a
maior fragilidade. A “invasão”, ou a “colonização”, do direito por outras racionalidades
parciais obstrui o potencial imunizatório que o sistema jurídico deve exercer em relação aos
demais sistemas sociais. A normatividade restrita, no entanto, é denunciada pelo fato de a
concretização dos direitos fundamentais não encontrar ressonância na práxis dos órgãos
estatais de que resulta a não inclusão generalizada dos indivíduos no sistema jurídico.
É em razão dessa discrepância entre a dicção constitucional, que apenas reconhece e
declara os direitos fundamentais essenciais ao reconhecimento da condição de espaço
137
But even there the modern pattern of structural couplage can be seen, if only as true (that is, functioning)
make-believe. The mere symbolic use of constitutions enables politics to pretend to be limited and irritated by
law, while leaving the real power relations to insider communication. However, the full meaning of evolutionary
achievement of constitution is developed only under the conditions of functional differentiation and operative
closure of the political system and the legal system (LUHMANN, 2004, p. 410)
169
territorial – pretensamente – organizado sob a forma de Estado Democrático de Direito, e a
realidade cotidiana das dezenas de milhões de (sub)cidadãos138
brasileiros que se veem
privados do acesso a prestações essenciais que lhe deveriam ser oferecidas pelo sistema da
saúde, da educação, assistência social, entre outros, que se não adota neste trabalho a
concepção de autopoiese de Luhmann.
Nada obstante, sustenta-se que existe um nível de diferenciação funcional entre os
sistemas. Apesar de hoje apresentar um nível insatisfatório, a diferenciação funcional do
direito, por exemplo, pode ser progressivamente aumentada conforme se consiga generalizar
os direitos da cidadania. Com o objetivo de fundamentar essa opção teórica e correlacioná-la a
uma base empírica, por assim dizer, entende-se por necessário apresentar uma breve
retrospectiva histórica sobre a evolução político-social do Brasil.
Durante o século XX, na condição de país periférico do sistema capitalista, o Brasil
conseguiu superar o Estado Liberal apenas na década de 30. Mesmo assim, a vivência do
liberalismo sequer tangenciou o exemplo das democracias liberais que já se haviam instalado
no continente europeu, no século anterior. Naquelas, as formas de participação, conquanto
cingidas por um conceito restrito de povo e de representação popular, encontravam
reprodução consistente, na medida em que o conjunto de cidadãos designados pelas
respectivas cartas constitucionais efetivamente inseria-se nos, também restritos, espaços
público-políticos de construção do que se pensava como vontade geral. E, até a emergência da
questão social, no final do século XIX, tais ordens liberais, tomadas empiricamente, chegaram
aparentar o êxito do pleito de igualdade formal do direito burguês, mesmo porque os
respectivos países, havia muito, usufruíam da condição de centralidade próspera do sistema
capitalista.
O ideário liberal no Brasil, longe de se refletir na implementação do já acanhado
arcabouço de direitos de participação, e dos fundamentos pretensamente atemporais da
igualdade aritmética, prestou-se apenas, sob o fraseado republicano da Constituição de 1891,
a garantir a persistência do poder das oligarquias rurais, que, com algumas alterações
138
Neves (2008) utiliza-se da expressão sobreinclusão para identificar uma pequena camada da população dos
países periféricos que estão plenamente integrados aos subsistemas sociais e, portanto, usufruem de todas as
prestações que eles podem oferecer sem, contudo, submeterem-se ao sistema de responsabilização. Logo, estão
excluídos do sistema como um todo porque somente as prestações positivas, diga-se assim, de cada subsistema
os alcança. Por outro lado, grande percentual da população brasileira, que vive em condições de indignidade,
também não está incluído no sistema social porque não tem acesso às prestações dos subsistemas, como saúde,
educação e assistência social, muito embora esteja submetido ao sistema de deveres e aos rigores da legislação
penal, por exemplo. Há nesse caso uma subinclusão. Desse modo, o autor lança um novo olhar sobre a antiga
dicotomia entre exclusão e inclusão social, visto que tanto o abastado financeiramente quanto o miserável estão
excluídos do sistema social. O primeiro sobreintegrado e o segundo subintegrado ao sistema social.
170
regionais de hegemonia, já haviam herdado o Estado das cortes portuguesas. Em suma, na
velha República, a seletiva abrangência do conceito de povo do liberalismo clássico reduzia -
se à insignificância, quase caricata, dos currais eleitorais do “café com leite”; e,
consequentemente, o êxito da igualdade formal, sob a égide do direito privado, esbarrava na
associação dos interesses da oligarquia dominante com o atraso da economia rural
concentradora e agroexportadora.
Nos principais países europeus ocidentais (Inglaterra e França) e nos Estados Unidos,
a transição para o Estado Social se deu sob os influxos e pressões de amplos movimentos
populares, a refletir a insuficiência da igualdade formal do Estado Liberal. No Brasil, ao
contrário, em um tardio encerramento do século XIX (a Revolução de 30 e a
Constitucionalista de 32), os setores populares assistiram, em total alheamento, ou como
meros partícipes operacionais, um Estado intervencionista, de viés social, nascer dos
derradeiros embates militares das mesmas elites que dividiam o poder político, na ordem
anterior. Nos anos seguintes, mesmo depois da superação da autocracia do Estado Novo e
com a importante modernização e diversificação da sociedade, cada vez mais urbana e
industrializada, a criação e efetivação dos direitos sociais, além de não atingir seu pretendido
alcance, encontrou meros clientes do assistencialismo estatal. A “participação” política, por
sua vez, era fomentada pela condição de clientela. Significava apenas a ampliação
quantitativa das massas de manobra dos detentores do poder, que se via dividido ou disputado
entre partidos das antigas elites rurais e das elites urbanas, com a variante de partidos
vinculados ao sindicalismo cooptado.
Entretanto, a partir dos últimos momentos do hiato ditatorial de 1964 (1964-1985),
justamente responsabilizado pela interrupção do desenvolvimento de instituições
genuinamente democráticas, a atuação de importantes organizações político-partidárias e da
sociedade civil, ainda que de forma incipiente, vem transformando a apatia clientelista em
participação construtiva. A própria redemocratização se deu por meio da atuação de tais
organizações, relativa ou totalmente dissociadas dos tradicionais interesses hegemônicos e
constituídas sob propósitos autênticos de engendrar uma ordem constitucional (Constituição
de 1988) capaz de aliar o vigor da participação popular à garantia dos direitos fundamentais
dos indivíduos. 139
Consequentemente, apesar do difícil desafio da concretização de direitos
fundamentais, sustenta-se aqui a incorreção da assertiva segundo a qual o texto constitucional
139
Vide nota 129
171
é mera dissimulação de antigas formas de exclusão, sem nenhum valor que possa se refletir na
vivência social em geral. A despeito da “realidade constitucional” brasileira, que se apresenta
despida de normatividade generalizada, deve se destacar que as instituições jurídicas previstas
no texto constitucional não perderam a relevância como referências do discurso de poder que
se pretende democrático, conforme admite o próprio Marcelo Neves (2007).
Além disso, como adverte Luhmann, enquanto não há violação do direito de apontar
as violações dos direitos fundamentais, não se pode falar em supressão da possibilidade de
fortalecimento das bases democráticas do Estado de Direito. Daí que se vislumbra a
possibilidade de (re)construção de uma esfera pública que consiga representar os interesses
das categorias subincluídas no sistema jurídico.
Valendo-se de semântica específica, Marcelo Neves também admite que há
possibilidades fáticas para a reconstrução possível da esfera pública. Segundo ele, enquanto as
“regras-do-silêncio” ditatoriais não são impostas, o que implica negar a possibilidade de
crítica generalizada ao sistema de poder, a constitucionalização simbólica não pode ser vista
como um mero “instrumentalismo constitucional”:
[...] enquanto for possível protestar sem constrangimentos institucionalizados pelo
poder político, mesmo sob o contexto de constitucionalização simbólica, existirão condições, ainda que mínimas, para o surgimento de movimentos e organizações
sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente
no texto constitucional e, portanto, integrados na luta política pela ampliação da
cidadania. Assim sendo, é possível a construção de uma esfera pública pluralista
que, embora restrita, tenha capacidade de articular-se com êxito através dos
procedimentos previstos no texto constitucional (NEVES, 1995, p.165).
Decerto merecem ser afastados determinados tipos de abordagem jurídica que,
desavisados dos limites do discurso do direito, sobrecarregam o sistema jurídico com
demandas inalcançáveis de imediato ou, quando alcançáveis, demonstram-se mais geradoras
de exclusão que o contrário. Mas isso não prejudica a conclusão de que as instituições
democráticas não são mais dádivas de um poder heterônomo, como em outros tempos; e,
como construções autônomas, constituídas de baixo para cima, permitem atribuir aos seus
criadores a capacidade de reproduzi-las pelo tempo, aprimorando direitos e criando novas
demandas.
Por outro lado, não se discute que o nível de satisfação das demandas sociais é
relativizado em razão de diversos fatores. Isso porque na medida em que as necessidades
primárias da população são satisfeitas, novas necessidades surgirão como demandas
prioritárias para um dado segmento social. Do mesmo modo, o nível de insatisfação – que
172
pode se converter em capacidade de protesto – varia de acordo com o nível de educação
política dos cidadãos que, por sua vez, pressupõe fruição dos direitos fundamentais. Segundo
pesquisa realizada pela World Values Survey, entre 1994 e 1997, 28% da população brasileira
respondeu estar satisfeita com o desempenho do regime. Esse nível de adesão seria até
razoável, uma vez que o Brasil é um país periférico, com pretensão emergente. No entanto,
submetidos ao mesmo questionamento apenas 23% dos finlandeses e australianos se disseram
satisfeitos com o desempenho do regime em seus países, enquanto apenas 12% dos japoneses
responderam positivamente à mesma indagação (SANTOS, 2007, p.38). Portanto, o processo
de valorização ou, para usar um termo das ciências políticas, de empoderamento da esfera
pública, com vistas a torná-la capaz de atuar nos espaços de deliberação política já definidos
no plano normativo, deve levar em conta a concretização progressiva dos direitos
fundamentais por meio de políticas públicas eficientes e executadas no nível máximo
permitido pelo contexto político-econômico brasileiro. Não se vislumbra outra opção, senão a
via que pode ser explorada pela esfera pública. Não é outro o entendimento de Álvaro Ricardo
de Souza Cruz (2007, p 329):
Assim, o que se cobra sobre políticas assistencialistas é um grau de refinamento
sobre sua legitimidade, até então ausentes no paradigma do Estado Social de Direito. Um exemplo candente no nosso ambiente pode ser dado: será que a esfera pública
nacional pode ser mais exigente com relação aos programas sociais do que há
cinquenta anos atrás? Será que podemos ser mais críticos para com o uso
“eleitoreiro” de tais políticas? Se a resposta do leitor for positiva, decerto já
marcamos uma diferença essencial entre os paradigmas em questão.
Em seguida formula sua própria resposta à indagação anterior:
Quanto mais a educação avança, mais essa esfera pública torna exigente a
legitimidade das intervenções estatais. Avançamos porque podemos aprender com
nossos erros. Avançamos mesmo contra a vontade de uma elite que busca
incessantemente preservar seus privilégios. Mas de certo modo não avançamos na
velocidade que desejamos e não o fazemos sem retrocessos: essa é uma contingência
da própria humanidade (SOUZA CRUZ, 2007, p. 332).
Tendo isso em vista, a proposta teórica deste trabalho sugere seja mais bem delimitado
o âmbito de atuação de cada um dos sistemas que interagem na concretização dos direitos
fundamentais, como direitos da cidadania. A relação de horizontalidade entre os sistemas
sociais exige sejam consideradas as influências recíprocas entre eles, dadas as repercussões
disso para o tratamento das questões relacionadas às políticas públicas sociais. É nos
orçamentos públicos que o enlace entre as racionalidades parciais de cada sistema pode ser
identificado, sobretudo com o auxílio do instrumental teórico oferecido pela noção de
173
racionalidade transversal. Acredita-se, assim, que aprimorar a análise conceitual, funcional e
crítica dos orçamentos pode contribuir para interromper o círculo vicioso que se instala entre
a baixa generalização dos direitos da cidadania no Brasil e a ausência de uma esfera pública
pluralista, possibilitando que essa circularidade possa se tornar produtiva, por meio da
concretização progressiva daqueles direitos.
Nesse sentido, a proposta de racionalidade transversal formulada por Neves (2009) é
bastante adequada para se observar – e estabelecer limites – as relações intersistêmicas que
ocorrem no nível estrutural, até porque sua aplicação pressupõe apenas que os sistemas
mantenham-se diferenciados funcionalmente, desconsiderando a existência ou não de
condições para a autopoiese do sistema jurídico.
O assunto será tratado no capítulo seguinte, quando se abordará o orçamento e a
política orçamentária, bem como os limites a ela e por ela postos à concretização dos direitos
fundamentais como ponto de interseção entre política, direito e economia na sociedade
contemporânea.
174
5 POLÍTICAS PÚBLICAS E ORÇAMENTO PÚBLICO
A diferenciação funcional entre direito e política tornou-se possível por meio das
constituições modernas, conforme se expôs no capítulo anterior. A experiência da França e
dos Estados Unidos foi abordada com maior ênfase, sobretudo em razão do processo de
formação dos respectivos estados nacionais. Como ponto característico das constituições
modernas, a positivação dos direitos fundamentais contribuiu para a autonomia funcional do
direito porque tornou desnecessária a fundamentação que até então vinha do direito natural. O
sistema político, por sua vez, passou a ver no reconhecimento jurídico-constitucional dos
direitos fundamentais uma legítima limitação ao exercício de seu poder, que até então era
absoluto.
Há, assim, um acoplamento estrutural entre direito e política por meio da perspectiva
constitucional moderna que permite o compartilhamento das prestações de cada um desses
sistemas. Segundo Luhmann (2005, p.505), esse acoplamento “permitiu ao direito positivo
converter-se em meio de conformação para a política, de sorte que o direito constitucional
adquire status de instrumento jurídico para a implantação de uma disciplina política”.
A noção de constituição como acoplamento estrutural, portanto, mostrou-se suficiente
à compreensão da distinção funcional havida entre os dois sistemas, com o advento da Idade
Moderna. Assim, ao sistema político incumbe a função de codificar o poder pelo esquema
governo/oposição e, nada obstante, conformá-lo à binariedade do código do direito. Isso
porque, no Estado Democrático de Direito, a política deve editar suas decisões coletivamente
vinculantes observando o código lícito ou ilícito do sistema jurídico, de tal sorte que somente
o poder lícito pode ser estabilizado juridicamente.
Luhmann (2005, p.505) explica que “a democratização do sistema político e a
positivação do sistema jurídico puderam se desenvolver graças à possibilidade de estímulos
recíprocos”. A dimensão desses “estímulos recíprocos”, que implicam trocas recíprocas de
prestações, deu-se por meio da constituição. Daí que a supremacia da constituição e, por
consequência, o controle de constitucionalidade assumem especial relevância no contexto do
Estado Democrático de Direito. Os tribunais constitucionais, portanto, assumem a
responsabilidade de distribuir os códigos de licitude e ilicitude a partir das disposições
constitucionais.
Partindo do ponto de vista da teoria discursiva, outra não é a conclusão. Conforme
adverte Souza Cruz (2006, p.146):
175
É preciso compreender que a supremacia da constituição não é um princípio e que
tão pouco pode ser ponderado, visto ser elemento essencial à constituição do código
de funcionamento do direito, um código binário que separa o lícito/constitucional,
ilícito/inconstitucional. Se ele deixa de ser considerado, o que se afastará é o próprio
direito. A corte assume uma decisão de caráter estritamente político.
Na perspectiva da proposta discursiva de Habermas, há uma releitura da teoria da
separação dos poderes, em que a dialogicidade e a observância dos procedimentos
constitucionais passam a funcionar como pressupostos para o exercício de cada uma das
esferas do poder estatal. Para Habermas (2003), a distinção entre direito e política pode ser
observada no tipo de discurso que emana de cada um desses sistemas. Ao sistema jurídico
cabe estabelecer suas decisões por meio de discursos de aplicação, ao passo que no sistema
político trabalha-se com discursos de fundamentação.
A isso corresponderia a diferenciação funcional (embora seja ela mais pronunciada na
teoria sistêmica de Luhmann), uma vez que ao sistema jurídico cabe tornar congruente a
generalização das expectativas e ao sistema político cabe produzir decisões coletivamente
vinculantes.
A perspectiva de Luhmann, no entanto, adquire maior relevância para este ponto do
trabalho porque se empenha com maior vigor na descrição do funcionamento do sistema
político. Além disso, é inegável que as distinções entre os sistemas político e jurídico são
mais enfatizadas pela teoria sistêmica.
Com efeito, a intenção de descrever o funcionamento da sociedade a partir das funções
desempenhadas por cada subsistema no sistema social e das relações que eles estabelecem
entre si dota a teoria sistêmica de melhores condições para que se analise a relação – e a
diferenciação – entre direito e política, conforme se pretende neste trabalho.
É necessário frisar que, no interior do sistema político, emerge a distinção entre as
esferas específicas de sua atuação as quais, com a evolução social, tendem a se constituir
como sistemas específicos. São três as dimensões de atuação do sistema político: a
administração, a política propriamente dita, e o público. Quando foi abordada a construção
habermasiana de esfera pública, anotou-se a distinção que Luhmann (2007) estabelece entre a
política propriamente dita e o público. Neste momento, interessa enfocar a
tridimensionalidade do sistema político sob a perspectiva da distinção entre a política e a
administração.
Conforme propõe Neves (2008a, p.192), é relevante que se distinga entre “política” e
“administração”, sobretudo porque se deve distinguir entre “as metas determinadas pela
cúpula governamental legitimada eleitoralmente e a atividade da burocracia administrativa”.
176
Para os objetivos deste trabalho é suficiente que se distinga quando uma decisão está
amparada numa escolha política ou numa decisão administrativa, que se limite à execução dos
atos administrativos conforme a programação estabelecida no âmbito da política. Isso se
torna necessário, inclusive, para que o procedimento cabível seja observado.
A política corresponde, em Luhmann (2005), à esfera de conflituosidade ínsita ao
sistema político que surge em decorrência da disputa entre os variados interesses, valores e
discursos que circulam na sociedade com expectativa de generalização por meio de decisões
políticas vinculantes. Tais procedimentos relacionam-se à produção legislativa, à produção de
decisões coletivamente vinculantes da administração típicas do Poder Executivo, às eleições,
aos instrumentos da democracia direta, assim como aos procedimentos que antecedem às
decisões jurídicas relacionadas ao exercício da função jurisdicional (NEVES, 2008a, p.133).
Retomando a análise sistêmica, tem-se que é por meio do sistema político que ocorre a
seleção das expectativas sociais que serão tornadas jurídicas e dotadas de normatividade.
Utiliza-se, para tanto, um programa finalístico, pois, como na dicção luhmanniana, a atuação
do sistema político é direcionada à solução de problemas específicos. Observada a questão do
ponto de vista interno ao sistema político, vê-se que a política é a esfera intrassistêmica
dotada de atributos e mecanismos próprios à generalização das expectativas sociais que
passam pelo crivo de seletividade e adquirem feição normativa por meio de decisões
coletivamente vinculantes. O código maioria/minoria associado ao programa finalístico
orienta a distinção necessária à seleção das expectativas. Com efeito, a política mostra-se
capaz de definir qual interesse, discurso ou valor existentes no âmbito da esfera pública serão
generalizados como expectativa normativa por meio da aplicação da combinação entre seu
código e programa específicos.
Essa função seletiva e generalizadora de expectativas sociais diz respeito tanto aos
atos típicos da função legislativa do ente estatal quanto aos atos do Executivo editados com
base em escolhas políticas, em sentido estrito. A legislação, assim, funciona como “lugar de
transformação da política em direito e como lugar da delimitação jurídica da política”; no
âmbito da administração, o que, no sistema jurídico, corresponde à aplicação da norma
aparece como “atuação no sentido de resolver problemas” (LUHMANN, 2005, p. 495). O
âmbito da política, por meio dos procedimentos constitucionais estabelecidos para tanto,
apresenta-se capaz de transpor a pluralidade social para as decisões, também coletivamente
vinculantes, da administração. Assim, “a administração é imunizada contra interesses
177
concretos e particulares, impondo-se-lhe que atue conforme diretrizes e princípios com
pretensão de generalidade” (NEVES, 2008a, p.193).
Neste trabalho está a se sustentar que à política compete a edição de decisões
coletivamente vinculantes relacionadas à formulação das políticas públicas, assim como a
definição da alocação dos recursos necessários para tanto. À administração, diferentemente,
compete executar a política pública conforme a deliberação antecedente adotada no âmbito da
política, pela via procedimental estabelecida para tanto.
Além disso, sustenta-se que, em ambas as esferas de atuação do sistema político,
impõe-se a observância do código lícito/ilícito, como segunda referência binária a orientar as
decisões do sistema político. Vale frisar: “desde a perspectiva do direito estas decisões
adquirem efeito vinculante sempre e quando sejam conforme o direito e não contrário a
ele”.140
A questão orçamentária torna-se relevante porque, como se viu, a implementação de
todo e qualquer direito pressupõe o dispêndio de recursos financeiros para a execução da
política pública hábil a torná-los concretos. Portanto, a opção pela concretização de um direito
fundamental implica uma escolha que repercute na formulação e na execução do orçamento
público. Surge daí a necessidade de se examinar a relação entre direito, política e economia
externada nos orçamentos públicos.
A propósito disso, Luhmann (2005, p.491) explica que:
O direito é autônomo (faz aquilo que só ele pode fazer) e, juntamente com o
dinheiro do sistema econômico, é a condição de possibilidade mais importante em relação à realização da política. Com isso se quer dizer que decidir politicamente
sobre qual direito deve ser válido corresponde a decidir como se quer gastar o
dinheiro disponibilizado politicamente. Se se eliminar do pensamento esta condição
então a política ruiria como sistema. [...] A política deve a expressiva expansão do
campo de suas possibilidades ao direito e ao dinheiro.
No entanto, antes de examinar como se dão as relações entre esses sistemas na
concretização dos direitos fundamentais, serão estabelecidas algumas distinções que, em certa
medida, corroboram e agregam conteúdo à perspectiva de Luhmann sobre as variadas
conformações da expressão semântica “política”.
140
Desde la perspectiva del derecho estas decisiones tendrán ese efecto vinculante siempre y cuando sean
conforme a derecho y no vayan en contra de él (LUHMANN, 2005, p. 489).
178
5.1 Política, política pública e deliberação
A definição usual de política pública, sob o ponto de vista do sistema jurídico, v.g., é
de que se trata de “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à
disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente
relevantes e politicamente determinados” (BUCCI, 2006, p. 241). Muito embora essa
definição seja suficiente à compreensão do tema pela perspectiva do direito, opta-se por
apresentar um panorama mais amplo, a partir do sistema político. Isso porque quando se
pretende relacionar política pública, como ação governamental imprescindível à concretização
de direitos fundamentais, e deliberação, torna-se necessário conhecer e distinguir as várias
dimensões que a expressão “política” pode assumir.
A distinção interna ao sistema político entre política, administração e público,
encontra alguma correspondência nas teorias filosófico-políticas contemporâneas. Parte-se da
distinção entre o político e a política, já tratada por muitos autores. Na contribuição da
filosofia política de Chantal Mouffe (2005, p.8-9), o político constitui o espaço de disputa
pelo poder, em que ocorrem os conflitos e aparecem os antagonismos ínsitos à pluralidade do
coletivo.
A política pode ser representada, nessa linha de raciocínio, pelo conjunto de práticas e
instituições por meio das quais uma ordem é criada. É a vivência da política que possibilita a
organização da coexistência humana no contexto de conflituosidade decorrente do político.
É também possível trabalhar a diferenciação entre a política, o político e as políticas, a
partir do enfoque da ciência política, estritamente. A questão aparenta ser mais complexa em
razão da grafia similar dos vocábulos na língua portuguesa. O equivalente na língua inglesa,
entretanto, distingue a semântica das expressões porque há três expressões semântica e
ortograficamente distintas: policy, politics e polity (COUTO; ARANTES. 2006).
Por polity entende-se o nível mais elevado em generalidade, o que possibilita o
consenso em torno da adesão dos atores políticos às regras do jogo democrático. O Estado de
Direito sustenta-se nessa base, pois foi a partir dela que se deu a elaboração das constituições
modernas. Como se viu, o consenso pode se limitar ao estabelecimento de procedimentos que
possibilitem o dissenso conteudístico e, assim, a reprodução sustentável da pluralidade será
viabilizada.
A política, nesse sentido, é representada pela normatividade da semântica
constitucional. Na leitura luhmanniana, por exemplo, a política (polity) no sentido aqui
179
proposto, seria o resultado do acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema
político (politics). A expressão Carta Política ilustra adequadamente o tempo, pois representa
a união do jurídico e do político em prol da construção de consenso mínimos, essenciais ao
estabelecimento de procedimentos capazes de tornar viável a vida numa sociedade plural.
Politics é o nível da conflituosidade, em que ocorre o jogo político propriamente dito,
que envolve embates entre interesses antagônicos reproduzidos na arena decisória do poder
público. À politics corresponde o espaço da esfera “do político” em Luhmann (2007); tal
espaço caracteriza-se pelo relacionamento dinâmico entre os atores políticos que se revezam
entre posição governo e oposição; entre maioria e minoria, conflito e cooperação.
Policy é o resultado do jogo político, da deliberação alcançada na arena do político; é
conjuntural e representa a opção feita nos espaços de deliberação eminentemente políticos, no
sentido de politics. Esse é o nível mais específico e surge da vitória de um ou outro interesse
no jogo político.
A política pública a que este trabalho refere tem na policy seu equivalente em língua
inglesa. As políticas públicas são tematizadas e específicas porque visam a alcançar um
objetivo cuja definição se dá na esfera do jogo político. Pelo que se sustenta neste trabalho, a
decisão política que emerge na politics deve orientar as decisões do administrador no âmbito
da especificação e execução da política pública (policy).
Daí a importância de que se construa uma esfera pública pluralista no Brasil, apesar
das conhecidas dificuldades. É por meio da atuação de uma esfera social que, de modo
equânime, comporte a representação de todos os segmentos da sociedade, inclusive aqueles
mais vulneráveis, que o jogo político poderá assumir uma feição deliberativa que se aproxime
da proposta do Estado Democrático de Direito. À esfera pública caberá despender esforços
para a generalização das expectativas sociais que se relacionem com uma ou outra linha da
política pública que será adotada e definir quais os objetivos da ação governamental serão
atendidos com a implementação de uma ou outra política.
Pode-se, então, definir a política pública, para os fins deste trabalho, como um
conjunto de intervenções planejadas do poder público com a finalidade de resolver demandas
problemáticas que afloram no sistema político (politics), dada sua relevância social. Não se
pode perder de vista que a relevância social é relativizada conforme a esfera pública seja
pluralista ou não. Vale dizer: conforme sua ação política submeta-se ou não à “colonização”
por interesses estritamente econômicos, por exemplo.
180
Numa perspectiva que extrapola os contornos minimalistas, as políticas públicas
podem ser entendidas como resultantes da evolução da sociedade num processo histórico que
se relaciona com o desenvolvimento da cidadania, como teorizou Thomas Marshall.
Para Derani (2004, p. 22), políticas públicas correspondem a “um conjunto de ações
coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as
relações sociais existentes”. Logo, uma política pública tende à realização de objetivos
específicos que se destinam a solucionar problemas que foram apresentados ao ente estatal.
Corroborando o que se tem defendido neste trabalho, a autora (DERANI, 2004, p.22) explica
que a política pública “como pratica estatal, surge e se cristaliza por norma jurídica. A política
pública é composta de ações estatais e decisões administrativas competentes.”
A deliberação política que antecede a conformação da política pública
tradicionalmente é considerada uma modalidade particular de intervenção estatal, baseada em
conhecimentos técnicos da realidade social sob a ótica interna do Estado, ou seja, de sua
burocracia. No entanto, a interação com o público que será atingido diretamente pela ação
pública que se pretenda realizar adquire fundamental importância no contorno do Estado
Democrático de Direito.
No novo paradigma, o processo deliberativo deve ser impulsionado porque a
participação do público na elaboração, formulação e execução das políticas públicas, assim
como na eleição de quais as ações públicas serão realizadas prioritariamente, adquire especial
relevância num contexto de escassez de recursos.
Desde a introdução de um tema na agenda política – um interesse que se pretenda ver
generalizado no âmbito político ou tornado concreto – deve ter início um processo por meio
do qual se elabore a política pública capaz de solucionar o problema. É um procedimento que
se dá em etapas. Inicialmente, o problema é apresentado e, depois de identificado, ingressa na
agenda política do ente estatal, ou seja, é inserido entre as prioridades. Em seguida são
identificadas alternativas que são avaliadas e submetidas à decisão política, da qual o público
pode participar por meio dos mecanismos que lhe são oferecidos constitucionalmente.
Segundo Cristiane Derani (2004, p.22-23), podem ser identificadas três fases
importantes para a construção da política pública e seu desenvolvimento, rumo à realização da
ação correspondente. Na primeira fase há uma decisão político-estatal – adotada por agentes
públicos – com maior ou menor participação do público interessado. Num segundo momento,
promove-se a alteração institucional que correspondem às mudanças organizacionais
decorrentes da decisão sobre qual política seria desenvolvida. Nessa etapa, é definido o modo
181
como a política será executada e quais os arranjos institucionais serão mobilizados ou
modificados por tal decisão. Por último, são executadas as ações públicas propriamente ditas e
a deliberação inicial é transformada em realidade.
A força da atuação do público, organizado em movimentos, associações, organizações
ou, em última análise, dos cidadãos individualmente considerados, está em que tanto se pode
incluir a demanda na agenda política quanto se pode incidir na avaliação das alternativas de
solução do problema.
Não se pode esquecer, entretanto, que as ações estatais podem ser voltadas a questões
relacionadas à esfera econômica. Clark (2008, p.68) chama a atenção para isso e explica que,
como espécie do gênero política pública, a “política econômica estatal é um conjunto de
decisões políticas dirigidas a satisfazer as necessidades sociais e individuais, com um menor
esforço, diante de um quadro de carência de recursos”. Em seguida, indica alguns exemplos
de políticas econômicas estatais: ampliação do volume de moeda nacional na economia;
criação de agências reguladoras produtoras de marcos legais para o mercado e a abertura de
empresas estatais fabricantes de bens e prestadora de serviços voltadas ao desenvolvimento
sustentável.
A economia, vista pela teoria sistêmica, é um sistema social e, como tal, mantém sua
unidade a partir da reprodução de seus próprios elementos, ou seja, a diferenciação funcional
da economia como sistema é garantida pelo fato de que o sistema econômico da sociedade
moderna opera sob a lógica do pagamento/não pagamento. Segundo Juliana Neuenschwander
Magalhães, “esse processo de diferenciação da economia, como um sistema social que se
volta para a solução de específicos problemas sociais, mediante a utilização de um código
próprio, tem início já ao final da Idade Média”. Isso ocorreu em virtude do enfraquecimento
econômico do modelo estratificado, ou seja, a diferenciação da economia como sistema foi
uma decorrência da crescente dependência da estratificação social ao dinheiro.141
A autora explica que, diretamente relacionado à riqueza, o conceito de propriedade
ínsito à diferenciação da economia “aponta para uma desigualdade: no Estado de Natureza,
todos são iguais, mas no Estado Civil, em que foi introduzida a propriedade, introduziu-se,
também, a desigualdade.” Esta, segundo Luhmann (2005), explica-se por razões econômicas
141
Conforme esclarece Juliana Neuschwander Magalhães em seu texto A formação do conceito de direitos
humanos (ainda não publicado), na sociedade organizada pelo principio da estratificação social todas as
diferenças sociais eram baseadas na hierarquização, de tal sorte que no topo estavam os nobres, ricos e virtuosos.
Entretanto, na Idade Médica, um nobre que não detivesse tantas posses, ainda era considerado nobre: “a falta de
riqueza não diminuía a virtude que fazia de um nobre, nobre”. Quando surgiu a economia de mercado em
detrimento da economia fundiária, a diferenciação do sistema econômico tornou a distinção entre ricos e pobres
mais relevante que qualquer outra.
182
(divisão do trabalho) e políticas (necessidade de uma diferenciação entre governantes e
governados). Como a sociedade passou a se orientar pela diferenciação entre proprietários e
não proprietários, a propriedade extrapola os limites do poder econômico, adquirindo sentido
jurídico e político. Na compreensão de Neuenschwander Magalhães, em seu texto A formação
do conceito de direitos humanos (ainda não publicado):
No século XX, a noção de propriedade, que como “direito humano” traduziu um
mecanismo de acoplamento de direito e política, tornou-se capaz de, também, ligar a
economia à política. A instituição do Banco Central atesta esse fenômeno, tornando possível um condicionamento político (ou seja, não econômico, não lucrativo) para a
moeda circulante, tendo em vista consequências políticas.
De acordo com a autora, o paradoxo da economia como sistema social, embora tenha
por função produzir riquezas, não é capaz de fazê-lo senão produzindo escassez. É sob a
lógica de que a política e o direito podem impor limites à proeminência do código ter/não ter
que muitos Estados de Direito inserem em sua estrutura os procedimentos constitucionais e
dispositivos de direcionamento da política econômica, como é o caso da Constituição
brasileira. Nesse sentido, a constituição pode ser compreendida como acoplamento estrutural
entre direito e política, cujos efeitos estendem-se à economia. Logo, na perspectiva das
diretrizes econômico-politicas que o direito assume em sua estrutura e considerando-se que há
prestações recíprocas entre os três sistemas, pode-se dizer que a constituição dos Estados de
Direito Democráticos funciona como modo de acoplamento entre as estruturas dos sistemas
jurídico, político e econômico.
Uma questão relevante para a análise das opções político-econômicas do Estado
Democrático de Direito é que, considerada a função do sistema político de “condensar a
formação das opiniões de tal maneira que lhe faculte adotar decisões que vinculem
coletivamente” (LUHMANN, 2005, p. 490), o autor adverte quanto a pactos e tratados
internacionais que, segundo ele “tem lugar na prática da administração e com crescente
importância, a prática dos acordos internacionais que obrigam o direito interno dos estados”.
No caso brasileiro, como se viu, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) estabelece parâmetros que devem vincular as diretrizes políticas
do Estado no sentido da progressiva concretização desses direitos, sobretudo em decorrência
do contexto social de má distribuição de riquezas e baixa generalização dos direitos
fundamentais, o que exige mais atenção nas deliberações político-orçamentárias. Referindo-se
ao art. 2º, alínea “i”, do referido Pacto, Fábio Konder Comparato (2003, p. 250) explica que:
183
Se o Estado não dispõe, como é óbvio, de condições materiais para atender à
totalidade das demandas individuais de bens indispensáveis a uma vida digna, ele
tem, não obstante, inquestionavelmente, o dever constitucional de pôr em prática,
com todos os meios ao seu alcance, as políticas públicas dirigidas à consecução
desse objetivo.
Na concepção de Luhmann, para viabilizar o acesso dos indivíduos às suas prestações,
cada sistema social deve dotar a esfera de atuação intrassistêmica de instrumentos e recursos
específicos. Veja-se o exemplo aplicado ao sistema da educação: a inclusão do indivíduo
depende da disponibilização de espaço físico apropriado, de recursos humanos e,
principalmente, de uma programação técnica sobre qual a proposta pedagógica será acolhida,
quais os conteúdos integrarão a grade curricular, quais os critérios para verificação do nível de
aprendizado e assimilação desses conteúdos etc.
A realização de ações públicas, por meio de políticas próprias, portanto, depende da
conjugação de vários fatores ou, na linguagem sistêmica, de prestações que são oferecidas
simultaneamente por vários sistemas, a fim de que o direito se torne concreto. No exemplo
acima, é necessária a conjugação das prestações da política, da ciência, do direito e da
economia. Surge, por isso, a importância de se examinar como ocorrem as relações
multissistêmicas entre os sistemas na concretização dos direitos fundamentais por meio de
políticas públicas.
Sob o ponto de vista sistêmico, os sistemas sociais interrelacionam-se de modo
coordenado, porquanto não se admite, por exemplo, que a lógica do sistema econômico
sobreponha-se à lógica jurídica. A propósito disso, Luhmann repudia as propostas de leitura
econômica do direito e vê na diferenciação funcional uma teoria capaz de oferecer a
necessária resistência às propostas que privilegiem a posição de um dos sistemas em relação
aos demais (2005, p. 535).
Nesse contexto, o desenvolvimento da cidadania é essencial ao fortalecimento de uma
esfera pública pluralista capaz de intervir no processo de concretização de direitos que sempre
dependem das escolhas políticas, seja no nível político, político-orçamentário ou na execução
da política pública, quando a ação já foi inserida no orçamento, mas pode ser realizada de
várias formas distintas.
A expressão políticas públicas tem sido cada vez mais utilizada pelos meios de
comunicação e, de certo modo, isso tem contribuído para que a população comece a se
interessar pela agenda de prioridades do ente estatal e pela existência de entidades
associativas que agregam cidadãos em torno de demandas comuns. Cada vez mais a
semântica das políticas públicas aparece nos pronunciamentos de políticos e nas pautas de
184
movimentos sociais. Embora o Brasil ainda esteja longe do que se espera em termos de
inclusão dos cidadãos no sistema político – muito provavelmente em razão dos baixos índices
de investimento em áreas sociais prioritárias, como é o caso da educação – é inegável que a
esfera pública brasileira pode se tornar cada vez mais pluralística e caminhar no sentido de
alcançar espaço na mídia e junto aos atores político-estatais, o que potencialmente aumentará
o nível de coerência no que diz respeito à implementação das políticas.
Uma breve mirada retrospectiva é suficiente para que se perceba ter sido o Estado
Social o grande propulsor da ampliação do âmbito de abrangência e da valorização do
conteúdo das políticas públicas sociais. O Estado Democrático de Direito, por outro lado,
como Estado pós-social, não pode desconsiderar as aquisições evolutivas do período anterior.
Como se viu, o que se pretende modificar é o nível de democratização das escolhas políticas
em torno dessas políticas. Sob esse aspecto pode-se correlacionar o processo de
reconhecimento, positivação e normatização de direitos fundamentais com o desenvolvimento
das políticas públicas como instrumentos da ação pública para concretizar tais direitos. É
nesse ponto que reside a pertinência do assunto para a proposta temática deste trabalho.
O Estado Democrático de Direito e os novos desenhos institucionais que viabilizam a
participação do cidadão nas escolhas políticas que lhe disserem respeito tem, aos poucos,
contribuído para que os cidadãos comecem a acompanhar a agenda política do ente estatal e a
exigir respostas às demandas não solucionadas ou ainda não submetidas à deliberação. Nasce
aqui a noção de responsividade que, como se viu no capítulo três, tem sido transportada às
raias do direito, inclusive.
Todavia, ainda é no sistema político e na ação de atores políticos, sejam estatais ou
representantes de segmentos da sociedade, que o dever de agir de modo responsivo tem
adquirido maior importância como uma das características que pode assegurar o direito dos
cidadãos à boa administração dos bens e recursos públicos. Isso é mais um indicativo de que,
embora combalida e enfraquecida em face do poder econômico e do poder político, há uma
esfera pública minimamente plural que se apresenta capaz de atuar no sentido de evitar
retrocessos irrefletidos nos processos de aquisição evolutiva de direitos.142
142
O sociólogo Geraldo di Giovani compara dois acontecimentos ocorridos ao longo do século XX, um no
inicio, outro no fim, relatados por Maurizio Ferrera, no livro Modelli di Solidarietà: “Em 1908, o Governo Inglês
atribuiu uma pensão de cinco xelins para pessoas idosas. Era um programa que hoje chamaríamos de
transferência de renda. Semanalmente, os idosos dirigiam-se às agências de correios para retirar seu benefício.
Muitos deles não conseguiam entender aquilo como uma ação do estado. Pensavam ser resultado da
generosidade pessoal do agente postal, a quem retribuíam com cestos de maçã, ovos, patos ou gansos. Na Itália,
em 1993, o governo tentou retirar uma parte dos benefícios para medicamentos aos quais os idosos tinham
direito. Houve uma verdadeira comoção nacional, com a união das centrais sindicais, passeatas, protestos e, por
185
As políticas sociais são uma espécie do gênero políticas públicas, pois se referem a
formas de proteção social. É relevante esclarecer que inexiste entre ela e a política econômica
uma relação de oposição. O conteúdo da política social não deve ser delineado de modo
residual; em outras palavras, ele não se limita aos temas não contemplados pela política
econômica, considerando-se as necessidades dos cidadãos. Essa dualidade é facilmente
afastada quando se observam os objetivos pretendidos pelas políticas sociais. Nessa linha de
raciocínio, é fácil perceber que decisões tomadas no espaço econômico não só têm seus
efeitos refletidos nas políticas sociais como podem configurar a própria base de determinada
política social. De igual forma, decisões tradicionalmente pertencentes à área social podem
gerar efeitos econômicos significativos. Exemplo disso são os investimentos na área da
educação (decisão típica do campo social), cujos reflexos inelutavelmente atingem o campo
econômico, na medida em que o aumento da oferta de emprego será uma das medidas
imprescindíveis à consecução dessa política.
A relevância das políticas sociais para a concretização dos direitos da cidadania e a
possibilidade de modulação dessa política pela participação do público interessado
demonstram a necessidade de que os atores políticos participem das deliberações que lhe
digam respeito. Essa incidência participativa e deliberativa pode ocorrer nas três fases de
desenvolvimento das políticas públicas, com maior ou menor ênfase. No primeiro momento,
os fóruns, conselhos gestores ou consultivos, conferências, audiências públicas, reuniões
associativas, reuniões de grupos ou movimentos de protesto, entre outros espaços de
discussão política, podem pautar a agenda do poder público mediante ações que agreguem
visibilidade às demandas havidas como prioritárias. Na segunda fase, em que se delibera, por
exemplo, sobre a definição da política e sobre a alocação dos recursos orçamentários
necessários para sua implementação, de igual maneira, o público interessado dispõe de
instrumentos para participar. A propósito disso:
Por fim, uma política que não leve a sério a participação do interessado não inclui ninguém. Ao contrário, perpetua a condição de exclusão. Normalmente a burocracia
julga saber melhor o que seria bom para os destinatários da política pública e, em
um discurso claro de exclusão, fixa de cima para baixo a forma de aplicação da
política pública. Assim, de uma forma geral, a oitiva à população interessada se faz
pro forma, ou seja, estrategicamente para se transformar em cabedal de marketing
político (SOUZA CRUZ, 2007, p.329)
fim, o apedrejamento, pelos idosos enfurecidos, de alguns líderes sindicais, que foram considerados „frouxos‟ na
negociação com o governo. O que se passou nos 85 anos que separam um episódio do outro? Se concordarmos
com Eric Hobsbawn, devemos aceitar que o século passado foi o século dos direitos sociais” (Disponível em:
<http://geradigiovanni.com/2008/08/polticas-pblicas-e-poltica-social.html>. Acesso em: 19.9.2009).
186
Dentre os espaços de discussão política mencionados anteriormente, poder-se-ia
destacar dois deles, para continuar indicando exemplos relacionados aos orçamentos. Seriam
os conselhos gestores da política pública, em que vários aspectos dessas políticas e do
respectivo custeio podem ser definidos em votação da qual participam os representantes da
sociedade civil, e as audiências públicas, nas quais emendas ao projeto orçamentário podem
ser apresentadas pelo público interessado.
Por último, a sociedade pode acompanhar a execução das ações públicas, conforme
deliberado nas etapas antecedentes, por meio, por exemplo, do monitoramento da execução
orçamentária.
Recomendável, portanto, apresentar a noção de deliberação proposta por Adam
Przeworski (2001, p.183): “deliberação política democrática é produzida quando o debate
conduz à decisão por meio do voto”. Há uma ideia marcante na noção de processo
deliberativo que corresponde à intersubjetividade e à discursividade no ambiente democrático.
Vale dizer: numa democracia sempre se quer persuadir aos outros porque se sabe que o que
for deliberado por uns afetará outros; há uma noção de reciprocidade que pode facilitar o
estabelecimento da dialogicidade entre os atores políticos e, quem sabe, viabilizar o consenso.
Bernard Manin (apud NOBRE, 2004, p.34) vê um duplo sentido na deliberação: num
primeiro momento estabelece o processo de discussão das possibilidades de deliberação
existentes para determinada situação que demanda a formulação ou execução de uma política
social específica; em seguida, após apresentados todos os argumentos e opiniões por cada um
dos atores, procede-se à votação. Dentro dessa concepção, pode-se dizer que a previsão
constitucional dos conselhos gestores de políticas públicas setoriais introduziu a perspectiva
da deliberação no sistema político brasileiro.
É aqui que se pode identificar a importância da deliberação para a eleição de políticas
públicas adequadas e, mais que isso, a importância da decisão política que delibera sobre a
política pública a ser realizada prioritariamente, assim como sobre os recursos que serão
alocados para o futuro custeio de outras políticas públicas concretizadoras de direitos. É por
isso que a administração, embora ordene suas operações pelo código maioria/minoria ou
governo/oposição, deve ficar adstrita às deliberações políticas sobre as políticas públicas a
serem executadas.
Para Luhmann (1997, p. 64), é evidente a obrigação de o administrador vincular-se às
decisões havidas no nível político, inclusive àquelas editadas por ele próprio como decisão
coletivamente vinculante. Isso se dá porque no Estado Democrático de Direito o sistema
187
político deixa de ser assimétrico e verticalizado. A diferenciação funcional entre os sistemas
jurídico e político exige que haja uma relação de circularidade, inclusive no âmbito interno do
sistema jurídico, como forma de se estabelecer condições para sua autorrecursividade e,
gradativamente, aumentar o nível dessa diferenciação funcional. Como já se afirmou no
capítulo anterior, cabe à política estabelecer prioridades para as decisões da administração
pública. Repita-se: ela se vincula a si mesma e ao público por meio de suas decisões.
Luhmann vai além, conjecturando hipótese em que a administração não se vincula às decisões
tomadas no âmbito político: “o público poderá reagir contra decisões que não levem em conta
a decisão por ele tomada, seja por meio das eleições, seja por outro mecanismo de expressão
de sua opinião” (2007, p. 64).
Nesse caso, caberia aos grupos cujos conflitos não são absorvidos pelos
procedimentos, ou seja, àqueles que não têm expectativas de que a reivindicação seja atendida
e de que haja a consequente generalização política ou jurídica da expectativa normativa, a
alternativa de se organizarem como movimentos de protesto. Em relação ao direito, sobretudo
quando há dificuldade de indicar os direitos imediatamente individualizáveis envolvidos nas
demandas, os movimentos sociais adotam uma semântica de valor e buscam mobilizar
recursos para apresentar desafios contrafactuais à legislação que se pretende influenciar ou
fazer respeitar.
Merece destaque a noção de movimentos de protesto para Luhmann (2004, p.161-
162):143
O direito põe-se à disposição dos indivíduos desse modo: abstrai-se do contexto
social de seus motivos, das pressões às quais eles estão expostos ou, de outra forma,
de suas respectivas motivações. Deste modo, a sociedade fica sujeita ao ônus de
deixar o sistema jurídico desprendido de suas amarras e por reafirmar a
individualidade dos seres humanos. Por outro lado, surgem, em compensação, fortes
expectativas normativas que, contudo, não podem adquirir a forma de leis. Elas
tomarão a forma de demandas políticas e alguns outros casos de movimentos
sociais. A semântica dos movimentos usa o conceito de valor e eventualmente, a
título de se distanciarem da lei, a expressão “ética”. Tudo que pode ser utilizado
como um desafio contrafactual encontra um canal aqui que leva diretamente às arenas de decisão em torno da realização de políticas (Tradução livre).
143
Law puts itself at the disposal of the individual users in this way, abstracting from the social context of their
motives, from the pressures to which they are exposed or, conversely, from their separate motivations. In this
manner society has to pay for cutting the legal system loose from its social moorings and for declaring individual
human beings to be individuals. A compensatory effect for this exists in the development of strong normative
expectations, cannot take the form of law. They take the form of political demands and, in some other cases, the
form of social movements. Their semantics use the concept of value and sometimes, as if to make a point of
distancing themselves from law, the title „ethics‟. Everything that can be mobilized as contra-factual defiance
finds a channel here that leads directly to the centres of political decision-making.
188
É por isso que se sustenta neste trabalho que a política orçamentária, consubstanciada
nas leis aprovadas pelos representantes eleitos pelo público e em outros mecanismos de
expressão da vontade do público144
e até da própria administração – quando expressa seus
planejamentos no projeto de lei remetido ao Legislativo –, é formada por decisões
coletivamente vinculantes e, como tal, alcança o gestor público, a quem incumbe colocar em
prática o planejamento de ações previamente deliberado.
É importante deixar claro que, com isso, não se quer engessar a atuação do
administrador, retirando-lhe toda margem de discricionariedade. O que se pretende é
demonstrar que, no Estado Democrático de Direito, o orçamento não é uma peça de ficção ou
uma mera autorização para gastar. Antes, é que a teoria e a prática político-jurídicas possam
conformar-se à noção de orçamento como ponto de intersecção entre, pelo menos, três
sistemas que atuam diretamente quando se trata de concretização dos direitos da cidadania: o
jurídico, o político e o econômico.
Há que se valorizar o emprego dos recursos públicos disponíveis, que se sabe
limitados, em prol da concretização das políticas públicas sociais que atendem as demandas
prioritárias de uma dada coletividade. Isso não pode ser uma decisão do administrador,
adotada de modo dissociado do contexto da politics. Por isso, o empenho no sentido de
revisitar a função dos orçamentos no Estado Moderno.
5.2 Orçamento público
5.2.1 Apontamentos históricos
O art. 12 da Magna Carta outorgada em 1215,145
na Inglaterra, pelo Rei João Sem
Terra é considerado pela doutrina em geral como a primeira referência ao tema do orçamento
público. Conquanto seja indiscutível que, àquela época, não se poderia falar em regulação
orçamentária propriamente dita, esse foi o primeiro dispositivo jurídico a impor parâmetros ao
poder ilimitado do soberano.
144
Como, por exemplo, as audiências públicas realizadas no âmbito do legislativo em momento anterior à
remessa do plano plurianual. Muitas vezes, a população, organizada como parte da esfera pública pluralista,
realiza reuniões prévias com os diversos segmentos, propõe emendas para contemplar as demandas apresentadas
por cada um deles e, mesmo nas hipóteses em que são acolhidas, o que se observa na prática é que quase nunca o
seu objeto é satisfeito; ou a emenda ingressa na Lei Orçamentária e a ação correspondente não é executado ou
ela sequer ultrapassa as discussões do Plano Plurianual. 145
“Nenhum tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo seu conselho comum, exceto com o fim de
resgatar a pessoa do Rei, fazer seu primogênito cavaleiro e casar sua filha mais velha uma vez, e os auxílios para
esse fim serão razoáveis em seu montante.”
189
Pode-se dizer que a noção de orçamento público com alguma pretensão de regulação
remonta a uma fase mais avançada do período absolutista, em que as reivindicações da classe
burguesa passaram a exigir mudanças no modo como os tributos eram instituídos. Nessa
época, a burguesia emergente recusou-se a admitir a arbitrariedade na cobrança de tributos
pela realeza (BALEEIRO, 1994, p. 388).
Constata-se, assim, numa ou noutra formulação, que o surgimento de previsões
orçamentárias sustentadas em dispositivos jurídico-legais vinculou-se à necessidade de limitar
o poder absoluto do soberano. O tempo revelou que, além do tratamento jurídico dispensado
ao poder de tributar, seria necessário regular o modo pelo qual o dinheiro arrecadado seria
aplicado, aferindo-se se seu dispêndio estaria ou não de acordo com as finalidades para as
quais fora autorizado, pelo Parlamento (GIACOMONI, 2007, p. 32).
A Declaração de Direitos da Inglaterra de 1689 constituiu um marco representativo
para essa mudança porque, desde então, passou-se a exigir que o Parlamento consentisse (ou
não) com a instituição de um novo tributo. Com a Bill of Rights, o poder da burguesia é
fortalecido, suas liberdades preservadas e novos direitos lhe são garantidos.
Por ocasião do nascimento do Estado Moderno, as disposições orçamentárias
passaram a servir como um meio de organizar as finanças públicas e oferecer instrumentos
para que se equilibrassem despesas e receitas. Em oposição ao modelo feudalista, o Estado
Nacional146
centraliza em si o exercício do poder político-estatal até então fragmentado entre
os feudos nos quais vigoravam relações verticalizadas de poder entre vassalos e suseranos.
Como se viu no capítulo anterior, o surgimento das constituições modernas acarretou
muitas mudanças no exercício do poder político e, consequentemente, no modo de administrar
os recursos públicos.
O ano de 1822 é considerado um divisor de águas no que diz respeito à forma de tratar
as questões orçamentárias, uma vez que se instituiu a efetiva implantação de um orçamento
formal na Inglaterra. Desde então, o “chanceler do erário” passou a apresentar ao Parlamento
uma exposição que fixava a receita e a despesa de cada exercício; ao Legislativo competia
aprovar, reduzir ou rejeitar as proposições, bem assim exercer o controle da execução do
orçamento. Na Inglaterra, esse ainda é o modelo vigente, tendo apenas as atribuições do
Executivo sido transferidas para o Gabinete.
146
Aqui o foco será o Estado nacional estadunidense e o francês, uma vez que o processo de constituição como
aquisição evolutiva que permitiu a separação entre o sistema jurídico e o sistema político tomou por base a
história da fundação desses dois Estados nacionais.
190
Tal como na história inglesa, o sistema orçamentário francês surgiu com as
Revoluções burguesas despontadas em fins do século XVIII. A partir de então, o
consentimento popular pela via parlamentar passou a ser necessário para que novos impostos
fossem instituídos.
A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão é emblemática para evidenciar a
finalidade do orçamento para o paradigma do Estado Liberal, veja-se o teor do art. 14: "Todos
os cidadãos têm o direito de constatar, por eles mesmos ou por seus representantes, a
necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, fiscalizar seu emprego e de
lhe determinar a cota, a base de cálculo, o recolhimento e sua duração".
Nos Estados Unidos, o apelo por imprimir legitimação popular à exigência tributária
representa um marco e, no caso estadunidense, funcionou como princípio móvel para a
revolução que culminou com a independência em relação à Inglaterra (GIACOMONI, 2007,
p. 34).
A trajetória histórica do sistema orçamentário norte-americano é marcada por
inúmeras reformas, sobretudo a partir da virada do século XIX para o XX, quando os
superávits fiscais passaram a ser alternados com os déficits.147
Em 1974, quando o Estado Social começou a dar sinais de declínio, o Congresso
norte-americano retomou para si parte do poder concentrado nas mãos do Executivo desde
1921. A mudança evocou no Legislativo crescente interesse e envolvimento com os temas
orçamentários e com o aperfeiçoamento da gestão dos recursos públicos nos Estados Unidos,
situação que perdurou nas décadas seguintes.
147
No cenário econômico mundial, os sucessivos déficits orçamentários, as exacerbadas subvenções ao capital
privado e o volume de receitas incompatíveis com as despesas a serem despendidas, dentre outros fatores,
conduziram à crise do Estado de bem-estar social a partir dos anos 70. Desde então, adotaram-se modelos que
procuravam superar a crise do Welfare State. Nesse período, o orçamento passou a servir de instrumento hábil a
combater as crises cíclicas do capitalismo e a falta de empregos. Analisando o rompimento da ideia de um
orçamento neutro, Baleeiro (2000, p. 398) afirma que, depois da Segunda Guerra Mundial, o orçamento tende a
se transformar em alavanca de comando da conjuntura econômica. Diante disso, "as ideias e práticas buscam
empregar o orçamento como o aparelho para combater fases de depressão e de desemprego, promover
investimentos, ou para conter os quadros inflacionários. Os velhos princípios de técnica orçamentária
consagrados pelas gerações anteriores vergam ao peso dessa tarefa enorme”. Como resposta a tal política, o
discurso conservador adotou a postura neoliberalista, caracterizada pela redução dos gastos sociais, bem como da
intervenção estatal na ordem econômica – Estado Mínimo. Para concretizar esse propósito, seria necessário
reduzir os excessos provenientes de uma época em que a doutrina Keyneseana dominava a política econômica e
fiscal dos Estados. Assim, uma nova concepção fiscal só seria possível a partir da retomada da preocupação com
a compatibilização entre receitas e despesas, inaugurando um modelo em que a saúde financeira do Estado seria
mantida por suas próprias fontes (BALEEIRO, 2000, p 399-407).
191
A partir dessa retrospectiva histórica, o que fica evidenciado é que o orçamento
deixou de ser mero instrumento para limitar o poder do soberano em instituir tributos e, aos
poucos, passou a servir de instrumento para o planejamento estatal.
Na modernidade, os orçamentos tornaram-se ferramentas para que a esfera pública
conhecesse os objetivos do governo, suas metas e programas. Isso equivale a dizer que o
orçamento, além de limitar o nível dos gastos do Executivo, serve ao controle social da
administração dos recursos públicos pelo público a que serão direcionadas as políticas sociais
constantes desse plano de ação pública. Além disso, o orçamento serve ao exame da
responsividade do gestor perante os governados e, de igual modo, pode funcionar como
indicador para a revisão de questões político-administrativas pelo sistema jurídico no âmbito
do controle jurisdicional.
Esse processo de constitucionalização do orçamento, como política orçamentária, é
assim tratado por Torres (2000, p.10):
Na época da derrocada do feudalismo e na fase do Estado Patrimonial e Absolutista
já aparece a necessidade da periódica autorização para lançar tributos. Mas com o advento do liberalismo e das grandes revoluções é que se constitui plenamente o
Estado Orçamentário, pelo aumento das receitas e das despesas públicas e pela
constitucionalização do orçamento na França, nos Estados Unidos e no Brasil, como
vimos.
Assim observado, o orçamento público também pode ser considerado uma aquisição
evolutiva da sociedade. Isso porque sua constitucionalização permitiu que o sistema político
estabelecesse pontos de contato com a economia e com o direito, pelo compartilhamento de
suas prestações. A política econômica do Estado de Direito que se pretenda democrático deve
levar em consideração o primado das escolhas feitas com base na política, considerar o que se
mostra mais vantajoso conforme a conjuntura econômica do momento e, como conditio sine
qua non para sua validade perante o sistema jurídico, deve ter em vista o maior nível de
implementação das políticas concretizadoras de direitos fundamentais.
A Constituição Imperial de 1824 inaugura a história orçamentária brasileira, que já
surge como mecanismo de controle recíproco entre os poderes Executivo e Legislativo. Com
a Constituição de 1891, esse modelo passou por substancial alteração, no que toca à
distribuição de competências. A elaboração do orçamento passou a ser função privativa do
Congresso Nacional, assim como a tomada de contas do Executivo. Também foi criado o
Tribunal de Contas, órgão destinado a auxiliar o Congresso no controle das contas públicas
que apareceu pela primeira vez na história constitucional brasileira.
192
Ao contrário da época reformadora e questionadora enfrentada pelos Estados Unidos,
o Brasil passou pelas duas primeiras décadas do século XX sem ocorrências marcantes. A
aprovação do Código de Contabilidade da União, no ano de 1922, por ato do Congresso
Nacional, representou uma conquista técnica, porque o orçamento passou, desde então, a ser
visto como instrumento tipicamente contábil. Por ordem dessa mesma norma, o Executivo
passou a ser o responsável por levar ao Legislativo todos os elementos para que esse
exercitasse sua atribuição de iniciar a elaboração da lei orçamentária (PONTES DE
MIRANDA, 1963a).
A revolução de 1930, com sua onda modernizadora, propiciou uma ruptura com o
passado. A autonomia dos Estados e o Federalismo foram substituídos por um processo de
centralização da maior parte das funções públicas na área federal, modelo institucional
finalmente incorporado pela Constituição de 1934 (GIACOMONI, 2007, p. 42). Assim, a
elaboração da proposta orçamentária tendo sido retornada ao âmbito de competência do
Presidente da República, ao Legislativo foi atribuída a competência de votar tal proposta, bem
como julgar as contas públicas, com o auxílio do Tribunal de Contas. A constituição não
impôs limites ao poder de emendas ao orçamento por parte dos legisladores, viabilizando,
assim, a coparticipação dos dois poderes em sua elaboração.
Com a instituição do regime autoritário, em 1937, o sistema orçamentário brasileiro
passou por nova reforma: o orçamento passou a ser elaborado por um departamento
administrativo integrante da Presidência da República e votado pela Câmara dos Deputados e
pelo Conselho Federal.148
Entretanto, “como jamais foram instaladas as casas legislativas no
período, o orçamento federal permaneceu sendo elaborado e executado pelo Executivo, que
passou a intervir diretamente nos orçamentos estaduais e municipais, a partir do início dos
anos 40” (SABBAG, 2007, p. 14).
Com a Constituição de 1946, o orçamento volta a ser resultado da coparticipação dos
poderes: o Executivo elaborava o projeto de lei e o encaminhava para discussão e votação nas
casas legislativas; foram consagrados princípios estruturantes do orçamento, tais como a
unidade, a universalidade, a exclusividade e a especialização. Além disso, houve o
detalhamento das atribuições do Tribunal de Contas.
148
Em 1939, o regime autoritário então vigente acabou, por completo, com a parcela de autonomia que ainda
restava aos Estados e Municípios. Os governadores estaduais (interventores) passaram a ser nomeados pelo
presidente, enquanto aqueles passaram a nomear os prefeitos. Criou-se, em cada Estado, um Departamento
Administrativo, integrado por membros nomeados pelo presidente da República, cujas atribuições, dentre outras,
era aprovar os projetos de orçamento do Estado e dos Municípios, bem como fiscalizar as respectivas execuções.
193
Os comentários de Pontes de Miranda são ilustrativos ou, mais que isso, servem à
compreensão do orçamento como ponto de confluência entre vários sistemas, que partilham,
reciprocamente, informações e prestações. Evidenciam, também, já naquela época, a
observância do espaço político de deliberação é uma imposição que limita a atuação do
administrador. Veja-se:
O orçamento é ato político, porque se liga à deliberação do Congresso Nacional e à
sanção do Presidente da República, no tocante à seleção dos meios financeiros e das
despesas; é ato jurídico, porque é lei, em sentido formal; é ato econômico-financeiro, por seu conteúdo; é ato administrativo, porque, por ele, se rege,
financeiramente, a administração. Lei no sentido só formal, ainda assim o orçamento
contém exercício de seleção por inclusão ou exclusão, o que obsta a que se considere
simples ato administrativo do Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República (PONTES DE MIRANDA, 1963a, p.6).
Interessante notar que o autor demonstra preocupação com a preservação do espaço
político de deliberação que se concentra no Legislativo, o que pode desencadear, inclusive, a
revisão da questão pelo Judiciário. A propósito disso, continua Pontes de Miranda (1963a, p.
6-7):
Daí resulta que a inserção das receitas e despesas no orçamento, se houve lei, que
devesse e precisasse ser inserta, é a líbito do Congresso Nacional, com a sanção do
Presidente da República. O que o orçamento regula são as relações entre os Podêres
Legislativo e Executivo, não entre a União e as pessoas de direito privado, ou
público, que à jurisdição federal estão sujeitas.(...)Se essas leis, do Congresso
Nacional, com a sanção do Presidente da República, foram excluídas do plano da
gestão, isso permite que os interessados exerçam, perante o Poder Judiciário, as suas
pretensões à tutela jurídica. O Poder Executivo não pode exigir ou despender o que
o Congresso Nacional, precisando inserir no orçamento, não inseriu.
A experiência autoritária que se seguiu ao Golpe de 1964 foi traumática sob o ponto
de vista do retrocesso na relação entre os poderes no processo orçamentário.
A década de 80 foi marcada por muitas pressões no campo político, desencadeadas
pela ação de uma esfera pública insatisfeita com o regime autoritário. Data dessa época o
surgimento de muitos movimentos de protesto, os quais despertaram o interesse de milhares
de pessoas que se reuniram em torno de objetivos políticos comuns.
Nesse contexto surgiram protestos pela abertura política, pelo reconhecimento de
direitos de minorias políticas, étnicas e de gênero, assim como pela constitucionalização de
políticas públicas que pudessem fazer face às demandas sociais. Sob a perspectiva
orçamentária, a Assembleia Nacional Constituinte foi influenciada por modernas teorias sobre
a administração pública, que atribuíam ao orçamento um papel de suma importância na
consecução das políticas públicas (SABBAG, 2007, p. 17).
194
A principal conquista, no campo orçamentário, consistiu no restabelecimento das
prerrogativas parlamentares que haviam sido subtraídas pelo regime autoritário. Destacam-se,
aqui, a possibilidade de propor emendas ao projeto de lei do orçamento e de explicitar o
sentido da universalidade orçamentária. Importa salientar a instituição da Comissão Mista de
Orçamento – órgão permanente ao qual compete examinar os projetos das leis orçamentárias e
as contas do Presidente da República, assim como a relevante tarefa de acompanhar e
fiscalizar a execução do orçamento da União.
Na Constituição Brasileira de 1988, o orçamento relaciona-se ao planejamento estatal
e à operacionalização das políticas públicas adotadas nas formulações orçamentárias
correspondentes à decisões coletivamente vinculantes, quais sejam: o Plano Plurianual (PPA),
a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).
Conforme já exposto, toda política pública, como programa de ação governamental
financiado com recursos públicos, deve ter seu lugar bem definido nas três modalidades de
orçamento previstas na Constituição Federal: o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e
os orçamentos anuais (COMPARATO, 2003).
Todavia, é bom que se esclareça que não se afasta a possibilidade de o administrador
ser compelido a realizar políticas públicas que não foram previstas no orçamento. É relevante
notar que tal questão deve ser tratada conforme as peculiaridades de cada caso. Sustenta-se,
de toda sorte, que o controle da licitude/ilicitude das decisões coletivamente vinculantes pelo
sistema jurídico não pode ser afastado. Vale dizer: o controle jurisdicional dos orçamentos, da
execução orçamentária ou mesmo da implementação das políticas públicas que asseguram
direitos fundamentais será, em tese, sempre possível porque a eventual correção
contramajoritária das decisões políticas é de crucial importância para o fortalecimento do
processo democrático. Sob a perspectiva sistêmica, tal controle representa tão-somente uma
consequência da diferenciação funcional entre os sistemas. Isso porque ao sistema jurídico é
dado manter-se vigilante quanto à observância do código lícito/ilícito pelas operações de
todos os demais sistemas sociais.
Voltando à previsão constitucional do processo orçamentário, vê-se que o plano
plurianual representa a síntese do conjunto de políticas públicas a cargo de cada unidade
político-administrativa do ente estatal (COMPARATO, 2003). Ao Plano Plurianual atribui-se
a função de impedir que as políticas públicas deixem de ser ações de Estado e se tornem ações
de governo, razão por que sua vigência abrange período entre o segundo ano do mandato do
Executivo e o final do primeiro ano do mandato seguinte.
195
A Lei de Diretrizes Orçamentárias deve priorizar as metas já estabelecidas no Plano
Plurianual e orientar a elaboração do orçamento do ente estatal correspondente. O
estabelecimento das diretrizes orçamentárias contribui para que o processo orçamento cresça
em transparência e, por outro lado, possibilita que o Legislativo possa participar de modo
mais ativo no disciplinamento das finanças públicas.
Por fim, a Lei Orçamentária Anual deve contemplar todas as metas e diretrizes
previamente estabelecidas. Como o planejamento das políticas públicas tendentes à
concretização dos direitos fundamentais é imposição constitucional, as eventuais
incompatibilidades entre a Lei Orçamentária e o processo político-orçamentário antecedente
devem ser corrigidas, se necessário, pela atuação do sistema jurídico. Isso quer dizer que os
parâmetros estabelecidos previamente à elaboração da Lei Orçamentária devem ser
observados pelo administrador na formulação do projeto de lei do orçamento anual. Pela
mesma razão, qual seja a de preservar os espaços do político – aquele em que a discussão em
torno das questões de política orçamentária pode ser ampla e coletivizada –, sustenta-se aqui
que as disposições orçamentárias previstas na lei anual devem ser respeitadas pelo
administrador na execução orçamentária correspondente. Como se verá oportunamente, não
se admite que o administrador opte por não empregar os recursos nas ações previstas, que
dispõem de dotação orçamentária específica, sem que haja um relevante e sindicável motivo
para tanto.
A “Constituição Orçamentária”, na expressão de Ricardo Lobo Torres (2000),
recuperou a harmonia e separação entre os poderes, ao balizar as atribuições orçamentárias
concentradas no Poder Executivo, a quem cabe arrecadar a quase totalidade dos recursos que
serão gastos sob a orientação do orçamento. O Executivo, assim, por meio do que se
denomina execução orçamentária, desempenha sua função de administrar os recursos
públicos. Com efeito, compete ao Poder Executivo receber as propostas orçamentárias dos
poderes Legislativo e Judiciário e dos órgãos que possuem autonomia orçamentária; checar o
respeito aos limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), para, ao fim,
consolidar os valores e preparar os projetos que serão enviados ao Legislativo. Cabe-lhe,
também, sancionar e publicar o orçamento, bem como transferir aos poderes e órgãos citados
as dotações previstas, mensalmente.
Por outro lado, deveres, como o repasse mensal obrigatório, a teor do que dispõe o art.
168 do texto constitucional; o respeito às propostas orçamentárias apresentadas pelos demais
poderes e órgãos autônomos (iniciativa de suas propostas orçamentárias), além da própria
196
autonomia para empregar as dotações que lhe são devidas, garantem a separação e harmonia
entre os poderes estatais.
A redação dada ao art. 62, alínea “d”, da Constituição da República pela Emenda nº
32/01 restringiu a edição de medidas provisórias em matéria orçamentária. Essa medida, em
última análise, visa a resguardar a observância do princípio democrático e da separação entre
os poderes e, portanto, reafirmar que a previsão do gasto de recursos públicos deve ser
submetida ao crivo do Legislativo.149
Essa inovação constitucional representa um avanço na estrutura normativa
orçamentária, na medida em que, a partir dela, vetou-se a possibilidade de empregar recursos
públicos sem a prévia deliberação política, em sentido estrito. A nova disposição
constitucional dá mostras de que é necessário resgatar a importância da participação da
sociedade no processo orçamentário.
Não se desconsidera aqui que, também na elaboração e execução dos orçamentos
públicos há a corrupção sistêmica, assim como não se nega a normatividade estrita das
disposições constitucionais correlatas. No entanto, conforme se sustenta neste trabalho, a
participação do público afetado pelas decisões alocativas de recursos nas discussões que
antecedem tais escolhas é um dos meios para que se garanta a progressiva generalização dos
direitos da cidadania. Por intermédio dos orçamentos, a esfera pública poderá participar das
deliberações e fazer uso dos mecanismos institucionais que lhe permitam incidir na
formulação da política. Em uma palavra: a proibição de se editar medida provisória para
149
O Supremo Tribunal Federal, desde que entrou em vigor a Constituição Federal de 1988, posicionava-se
contrariamente à possibilidade do controle abstrato de constitucionalidade de leis orçamentárias. Esse
entendimento era amparado na concepção de que não se admite controle da constitucionalidade sobre normas
que veiculam atos de efeito concreto, tal como ocorre com as disposições tendentes a viabilizar alterações
orçamentárias no exercício de sua vigência. Nessa linha de raciocínio, a jurisprudência do STF considerava
objeto idôneo do controle abstrato de constitucionalidade apenas atos normativos dotados de generalidade, abstração, normatividade e impessoalidade (ADIn 203-1/DF, por exemplo). Esse posicionamento, todavia, foi
revisto pelo Supremo Tribunal Federal, que no julgamento da MC-ADI n. 4.048/DF ocorrido em 2008,
considerou viável o controle de constitucionalidade dos orçamentos públicos pela via das ações diretas de
inconstitucionalidade. Essa mudança de entendimento representa um importante avanço no processo de
“desmistificação” da intangibilidade da discricionariedade administrativa no tocante ao orçamento público.
Concluiu-se, no caso das leis orçamentárias, que referidas espécies normativas seriam atos estatais de efeitos
concretos apenas aparentemente, tendo em vista que somente a efetiva execução é que dependeria da prática de
atos de efeitos concretos. O controle abstrato sobre atos normativos de natureza orçamentária pode abrir um
importante espaço para a ressignificação do orçamento público, que adquire feição simbólica em virtude da
baixa normatividade das disposições constitucionais. “CONTROLE ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DEVE EXERCER SUA FUNÇÃO PRECÍPUA DE FISCALIZAÇÃO DA
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E DOS ATOS NORMATIVOS QUANDO HOUVER UM TEMA OU
UMA CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SUSCITADA EM ABSTRATO, INDEPENDENTEMENTE
DO CARÁTER GERAL OU ESPECÍFICO, CONCRETO OU ABSTRATO DE SEU OBJETO.
POSSIBILIDADE DE SUBMISSÃO DAS NORMAS ORÇAMENTÁRIAS AO CONTROLE ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE” (Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 20.12.2009).
197
obtenção de créditos suplementares sinaliza para a revalorização do controle político e social
das despesas públicas. Conforme salientado por Weiss (2006, p. 242): “A tramitação prévia à
aprovação permite que todos tenham ciência dos projetos que justificam as despesas, o que
viabiliza a essencial crítica democrática.”
Outra sinalização relevante no sentido de incrementar os meios de controle social
nessa temática é evidenciada em diversas propostas de reforma política e projetos de lei que
valorizam o espaço de deliberação política que norteia as disposições orçamentárias de modo
geral. O projeto de lei nº 248, intitulado de “Lei de responsabilidade orçamentária”, por
exemplo, contempla instrumentos que oferecem mais transparência aos orçamentos, tanto no
detalhamento das informações – especificação das ações e subações – tanto quanto na clareza
e inteligibilidade destas disposições.150
O projeto de lei valoriza instrumentos de participação
popular já instituídos, como as audiências públicas que têm sua realização disciplinada, entre
outras.151
5.2.2 Orçamento público e racionalidade transversal
Propõe-se neste trabalho a compreensão do orçamento público como mecanismo
essencial ao relacionamento multissistêmico que se dá entre o direito, a política e a economia,
quando se trata da concretização de direitos fundamentais. Isso porque os orçamentos, se
levados a sério por governantes e governados, poderão oferecer prestações que permitam aos
três sistemas relacionarem-se entre si de modo produtivo e sem causar prejuízos à
diferenciação funcional entre eles.
150
A redação proposta é a seguinte: “Art. 99 A transparência constitui instrumento de cidadania e tem por objetivo dar visibilidade ao funcionamento das instituições públicas, visando ao fomento do exercício do
controle social e à racionalização da ação dos órgãos de controle. § 1º A transparência da gestão pública
pressupõe a visibilidade, a acessibilidade e a padronização, na Federação, das informações referentes às finanças
públicas e às matérias que lhes são correlatas direta ou indiretamente. § 2º Para os fins desta Lei Complementar,
são instrumentos de transparência, além dos previstos pelo art. 48 da Lei Complementar nº 101, de 2000, o
Relatório de Gestão Administrativa, as Demonstrações Contábeis e os sistemas de informação pública.” 151
Art. 10. As audiências públicas serão organizadas: I - pelos conselhos representativos das políticas setoriais
dos entes da Federação, para discutir as propostas dos planos nacionais depolíticas setoriais em período anterior
ao encaminhamento dos projetos ao Legislativo; ou II - pelos órgãos centrais e setoriais de planejamento do
Poder Executivo federal, em conjunto com representantes da sociedade civil, caso não tenham sido criados os
conselhos referidos no inciso anterior; e III - pelos órgãos centrais de planejamento e orçamento dos entes da
Federação, em conjunto com representantes da sociedade civil, em período anterior à validação qualitativa e
quantitativa dos projetos lei do ciclo orçamentário, para discutir, pelo menos: a) os programas, ações, resultados
e metas físicas do PPA; b) os critérios para definição de prioridades da LDO; c) os critérios para alocação de
recursos na LOA. IV - pela comissão referida no § 1° do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas
Legislativas estaduais e municipais, ouvindo autoridades de outros Poderes e representantes da sociedade civil,
para discutir os projetos de lei do ciclo orçamentário.
198
Importante frisar, nesse aspecto, que, apesar de se refutar a capacidade autopoiética
dos sistemas sociais no caso brasileiro, em virtude das dificuldades por ele encontradas para
se reproduzir de modo autorreferente, sustenta-se que é possível ao processo de evolução
social oferecer condições para que se aumente o nível de diferenciação funcional. Isso
equivale a dizer que, sob o ponto de vista desta autora, a modernidade periférica pode perder a
feição negativa desde que, com o passar do tempo, seja possível aumentar o nível de
autorreferência dos subsistemas.
Os orçamentos públicos, embora não sejam tratados com a devida seriedade – decerto
porque tragados pela “realidade constitucional” que torna os direitos fundamentais carentes de
normatividade – podem funcionar como um vetor para a concretização progressiva dos
direitos fundamentais. A isso corresponderia aumentar gradativamente a generalização da
inclusão dos indivíduos no sistema jurídico e, consequentemente, aumentar o nível de
diferenciação funcional do direito.
Sob o ponto de vista sistêmico, o orçamento público representa o ponto de confluência
entre vários sistemas sociais. Conforme se expôs linhas atrás, para a formulação e realização
das políticas públicas sociais devem se entrelaçar, pelo menos, os sistemas político, jurídico e
econômico. Com isso não se nega que o orçamento incorpora os programas finalísticos típicos
do sistema político, até porque significativa parte do planejamento estatal e a seleção das
políticas públicas afins deve estar retratado nas proposições orçamentárias encaminhadas para
aprovação do Legislativo. Apenas se enfatiza a função do orçamento na sociedade
contemporânea: possibilitar que o sistema político interconecte suas esferas internas (público,
administração e política), assim como estabeleça relações de intercâmbio simultâneo de
experiências com o sistema jurídico e com o sistema econômico.
É essa a nova perspectiva das interferências intersistêmicas que a noção de
racionalidade transversal aplicada aos orçamentos possibilita compreender: interferências
estáveis e relacionadas às estruturas de cada um dos sistemas envolvidos.
Nesse contexto, com o fito de observar esse fenômeno multissistêmico e dotar-lhe de
potencial eficácia para ampliar os níveis de investimentos nas políticas sociais, optou-se pelo
instrumental teórico oferecido pela noção de racionalidade transversal (NEVES, 2009).
Conforme se expôs no capítulo três, o mecanismo da racionalidade transversal permite
que um sistema disponibilize ao outro sua racionalidade parcial, que corresponde ao modo
como aquele sistema assimila os influxos do meio. Assim, a racionalidade parcial presente em
cada sistema orienta-se de acordo com o modo de compreender a realidade circundante por
199
meio de sua racionalidade própria. O entrelaçamento dessas racionalidades, por sua vez,
quando se dá sem sobrecarregar nenhum dos sistemas, propicia o surgimento da racionalidade
transversal.
Diferentemente do que ocorre com o mecanismo do acoplamento estrutural, um
sistema pode oferecer ao outro não somente suas prestações, mas sua própria racionalidade.
Quando se refere à racionalidade parcial, fala-se sobre a “a própria racionalidade processada
por um dos sistemas que é posta à disposição do outro, tornando-se acessível a este enquanto
sistema receptor” (NEVES, 2009, p. 37-38). Como se vê, há uma afinidade entre acoplamento
estrutural e racionalidade transversal, e o que distingue esses mecanismos é a noção de
racionalidades parciais que se entrelaçam transversalmente. Com isso, a racionalidade
transversal vai além dos limites assumidos pelo acoplamento estrutural e pode contribuir para
que as relações intersistêmicas se desenvolvam de modo mais rápido e eficiente.
No caso dos orçamentos, a transversalidade de seu conteúdo multifacetado, como se
viu, envolve saberes e prestações de diversos sistemas sociais. Pretende-se aqui estabelecer
uma correspondência entre o modo como os sistemas envolvidos se organizam para
compartilhar suas prestações e as racionalidades parciais que orientam o seu funcionamento
interno para, então, propor que essas racionalidades se entrelacem no âmbito orçamentário. A
propósito disso:
Os entrelaçamentos promotores da racionalidade transversal servem sobretudo ao
intercâmbio e aprendizado recíprocos entre experiências com racionalidades
diversas, importando a partilha mútua de complexidade preordenada pelos sistemas
envolvidos e, portanto, compreensível para o receptor (interferência estável e
concentrada no plano das estruturas) (NEVES, 2009, p. 49).
Tais entrelaçamentos são viabilizados pelas “pontes de transição” que interligam as
esferas heterogêneas num contexto de aprendizagem e intercâmbio recíproco entre
racionalidades parciais e interferências estruturais (NEVES, 2009, p. 45).
Dito de outro modo, pelo compartilhamento das racionalidades parciais de cada
sistema, surge a possibilidade de um sistema oferecer ao outro acesso a uma realidade
ordenada. Isso porque a linguagem de um sistema é colocada a serviço do outro, de modo
direto. Além disso, o ponto de intersecção entre as funções de cada sistema é estável e não
ocasional, pois a conexão refere-se às estruturas de cada sistema. Acolhe-se a ideia de que
várias “esferas autônomas de comunicação da sociedade” entrecruzam-se na elaboração dos
orçamentos e possibilitam o “intercâmbio construtivo de experiências entre racionalidades
parciais diversas” (NEVES, 2009, p.38). A perspectiva multissistêmica aqui não se torna
200
problemática, pois a transversalidade pode alcançar as racionalidades dos sistemas envolvidos
que se interrelacionam na concepção moderno-democrática de orçamento público.
Isso porque, pela via do orçamento, o sistema político realiza, em todas as suas esferas
de atuação, escolhas sobre quais direitos serão garantidos por meio das políticas e ações
públicas realizadas, disponibilizando as informações correlatas para eventuais
questionamentos, na esfera jurídica ou política. O espaço do político, propriamente dito,
poderá ser fortalecido desde que os orçamentos funcionem como mecanismos de transposição
das decisões coletivamente vinculantes para o campo da realização dessas decisões no
cotidiano dos indivíduos. Com isso, o orçamento oferece, como prestação, a
operacionalização viável das expectativas sociais generalizadas no âmbito político sob o
ponto de vista das finanças públicas e as torna passíveis de revisão, seja pelo sistema político,
seja pelo sistema jurídico.
Para o sistema econômico, os orçamentos fornecem subsídios sobre quais as áreas do
setor estatal poderão oferecer melhores opções de investimentos, por exemplo, uma vez que
as opções da política econômica adotada pelo Estado repercutem diretamente nas formulações
orçamentárias desse ente estatal.
Considerando as peculiaridades de cada sistema, a racionalidade transversal só se fará
presente se as influências e irritações recíprocas entre os sistemas sociais envolvidos
contribuírem positivamente para o desenvolvimento dos sistemas.
Todavia, a utilização da racionalidade transversal para construir “pontes de transição”
entre os sistemas também não afasta, por si só, o risco de haver a sobreposição de uma
racionalidade a outra. Nesse caso, ocorre algo assemelhado a uma espécie de “expansão
imperialista” de um dos sistemas sobre os demais (NEVES, 2009, p. 47). Quando se pretende
uma leitura econômica do direito, numa proposta de economização da vida, ou quando o
direito pretende regular áreas da autonomia privada em que não lhe compete intervir, o que
gera a juridicização das relações sociais, ocorre o fenômeno da expansão indevida de uma
racionalidade parcial sobre a outra. No exemplo de Neves (2009, p. 50):
[...] o regime fiscal de receitas e despesas, acoplamento estrutural entre política e economia, pode não levar à racionalidade transversal, desde que a política fiscal seja
prejudicial à economia ou, ao ser superadequada economicamente, atue
negativamente sobre a legitimidade democrática das decisões políticas. O mesmo se
pode dizer da Constituição como acoplamento estrutural entre política e direito:
pode contribuir ou não para a construção de uma racionalidade transversal entre
ambos os sistemas, destacando-se a segunda hipótese nos casos de tendências à
judicialização da política e à politização do direito.
201
Em outra perspectiva, a disponibilização de realidade ordenada ao sistema jurídico
sobre as implicações políticas e econômicas contidas no orçamento, por meio das respectivas
racionalidades parciais, pode se referir à possibilidade de correção da política pública ou
mesmo à implementação do direito fundamental violado. A atuação do sistema jurídico, nesse
caso, se dá no sentido de preservar o princípio democrático jurisdicional. Isso ocorre porque a
racionalidade parcial da economia, por exemplo, já processada no interior desse sistema,
disponibiliza informações valiosas para o sistema político, às quais a racionalidade parcial do
direito, por sua vez, poderá dizer se são de pronto assimiláveis ou não. Evita-se, assim, a
expansão da racionalidade econômica sobre a racionalidade política ou, quando muito,
estabelece-se um âmbito de justiciabilidade da questão respectiva, que, igualmente, poderá se
valer das informações oferecidas pelos outros sistemas. Na hipótese mencionada é possível
que se vislumbre a racionalidade transversal porque há prestações recíprocas e benefícios para
os sistemas envolvidos.
Por outro lado, a ingerência indevida do sistema jurídico sobre as funções que o outro
deve desempenhar com exclusividade corresponde ao que se tem chamado de “judicialização
da política” ou “ativismo judicial”,152
conforme explica Cittadino (2002). Outros fenômenos
relacionados à desconsideração das fronteiras entre os sistemas jurídico, político e econômico
também recebem denominações de mesma inspiração, como ocorre com a invasão da política
sobre o direito (politização do Judiciário) ou do direito pela economia (leitura econômica do
direito). Além do ponto de vista exposto no parágrafo anterior, essa problemática pode ser
observada de dois modos distintos. Na leitura habermasiana, isso corresponde ao risco de que
o direito seja “colonizado” pelo poder burocrático ou pelo poder econômico. A
“judicialização da política”, por sua vez, seria uma espécie de “colonização interna” do
mundo da vida pelo direito. Para Luhmann tratar-se-ia de hipótese de corrupção sistêmica
que, como se viu, pode se relacionar à sobreposição do código próprio do direito pelo código
da política ou da economia. Já o ativismo do Judiciário, em sentido contrário, corresponde à
preponderância do código próprio do sistema jurídico sobre o código da política. Em ambas as
perspectivas, a ilação comum é de que tais fenômenos sociais põem em risco a
horizontalização das relações intersistêmicas e obstruem o fluxo adequado das comunicações
152
A expressão foi originalmente utilizada pelo jornalista Arthur Schlesinger em artigo publicado na revista
Fortune em 1947, no qual ele traçava o perfil dos nove ministros da Suprema Corte estadunidense, classificando-
os entre os que optavam por uma interpretação restritiva da atividade jurisdicional e os “ativistas”. A tônica, à
época, referia-se às repercussões do New Deal para a sociedade americana (Disponível em:
<www.constitucional.org/Irev/Kmiec/judicial_activism.htm>. Acesso em: 7.11.2009).
202
que ocorrem no interior dos sistemas e, assim, torna-se inviável a autorreferência. Nessa
última hipótese, a diferenciação funcional é crescentemente fragilizada.
Nada obstante, num cenário de carência de recursos e demandas básicas irrespondidas
pelo ente estatal, facilmente constatável nos países da modernidade periférica, a noção de
“judicialização da política” ou de “ativismo judicial” deve ser adequadamente identificada,
sob pena de o Poder Judiciário e o Ministério Público tornarem-se parte de um aparelhamento
técnico-burocratizado. A questão determinante para que se identifiquem os limites do
controle, seja social, seja jurisdicional, relativo às políticas públicas, é a compreensão do
modo como se dão as relações intersistêmicas e, para tanto, deve-se avaliar qual o instrumento
teórico pode ajudar nessa análise.
Como se viu, no caso dos orçamentos observa-se que a política contribui com seu
programa finalisticamente orientado e o seu código, orientado pelo poder/não poder; a
economia, orientada para a obtenção do maior benefício mediante o menor dispêndio,
contribui para que se potencialize o alcance da ação política com o mínimo de recursos
públicos; o sistema jurídico, por último, contribui ao disponibilizar as informações sobre qual
escolha pode ser considerada lícita ou ilícita. Isso ocorre, no caso dos orçamentos públicos,
quando se avalia se a formulação e execução das políticas públicas tendentes à concretização
dos direitos fundamentais estão conforme a demanda de consolidação da cidadania.
Assim, se se pensar que a vantagem econômica não é o objetivo da ação estatal e que a
eficiência é um dever do administrador – e aí está embutida a ideia de menores custos e
maiores vantagens –, que, ao mesmo tempo, a ação pública pode gerar boas oportunidades de
ganho para a economia e que a interface entre essas orientações sistêmicas pode ocorrer
mediante a observância do código lícito e ilícito, é, de fato, possível se concluir que a
racionalidade transversal é aplicável ao processo orçamentário.
No entanto, no caso brasileiro, tão importante quanto o compartilhamento de realidade
preordenada entre os sistemas é que se observe o respeito ao código licito/ilícito. Isso porque
só a partir da observância do código lícito/ilícito como segundo código dos demais sistemas
envolvidos é que se poderá garantir que o orçamento público desempenhe sua função
concretizadora de direitos fundamentais por meio da ação pública orientada a tal fim.
Conforme explica Neves (2008, p.89):
Só a partir dessa inserção do código de preferência jurídico no interior do sistema
político este se constitui como circulação dinâmica generalizada de poder,
afirmando-se autonomamente perante as pressões particularistas e os fatores
imediatos de seu ambiente social.
203
É sob tais perspectivas que os orçamentos poderão ser tratados como vetores para a
promoção da cidadania. Em outras palavras: somente se a lógica dos sistemas envolvidos
puder se relacionar de modo coordenado, sem a preponderância de uma sobre a outra é que se
poderá falar, a rigor, em orçamento público com feição democrática, ou seja, orientado pelo
nível máximo de concretização progressiva dos direitos da cidadania.
Como consequência desse raciocínio, as escolhas deliberadas no âmbito do político,
que se espera tenham sido definidas com a participação expressiva da esfera pública, devem
vincular o administrador sob pena de sua ação ser considerada ilícita pelo sistema jurídico.
Assim, se não houver nenhuma justificativa plausível para a desconsideração da esfera de
deliberação política, não há motivação que possa justificar a ampliação “ilícita” da margem de
discricionariedade do administrador.
Certamente essa prática encontra respaldo na feição meramente autorizativa
assumida pelo orçamento público no Brasil, uma vez que não há previsão constitucional ou
infraconstitucional específica que vincule o administrador ao que dispõe a lei orçamentária.
Em razão disso, a execução dos orçamentos dos entes federativos, via de regra, não reflete as
disposições consubstanciadas na lei orçamentária submetidas à apreciação do legislativo e,
por vezes, a deliberação da esfera pública, pela via dos conselhos gestores, audiências
públicas, entre outros mecanismos de inclusão político-democrática. O argumento que
sustenta essa lógica seria a necessidade de oferecer maior flexibilidade ao administrador na
condução da política econômico-financeira do ente estatal.
A noção de discricionariedade, então, tem sido redimensionada e ampliada de modo a
facultar ao Executivo simplesmente ignorar dotações orçamentárias. Isso quer dizer que,
mesmo quando a receita estimada é alcançada, o administrador v.g não se vê compelido a
empregar os recursos correspondentes da política a que eles se direcionavam inicialmente.
Sequer se fiscaliza, com o necessário rigor, se nessas circunstâncias houve o remanejamento
dos recursos conforme prevê o devido processo orçamentário ou exige-se que seja esclarecida
a motivação para o desatendimento das disposições políticas antecedentes.
A parcela da receita pública não empregada na consecução da política pública
preterida fica paralisada e, não raro, deixa de ser aproveitada para aumentar o nível de
execução de outra política, por exemplo, em razão da necessidade de autorização legislativa
prévia. Quando o administrador deixa de gastar determinado recurso proveniente de uma
dotação financeira, o valor correspondente fica retido sob a forma de contingenciamento.
Logo, se o administrador empenhar mais recursos do que dispõe em uma área e, ao final, as
204
receitas não forem suficientes, ele pode não gastar recursos destinados a execução de outras
políticas e programas – muitas vezes de extrema relevância social – e, assim agindo,
reequilibrar suas finanças.
De outro lado, a abertura de créditos suplementares é comum e acaba criando outro
flanco de discricionariedade quase insindicável, já que há previsão legal e comprovar o desvio
é, muitas vezes, impossível.
Conforme anotado no início deste capítulo, sob a perspectiva sistêmica de Estado
Democrático de Direito, o administrador deve se vincular à deliberação que antecedeu a
formulação orçamentária, salvo se comprovado motivo que justifique a não execução de uma
dotação orçamentária realizável. Da mesma forma, a suplementação orçamentária não pode
ser uma prática assim tão corriqueira. Por certo, o ente federativo dispõe de aparato técnico
suficiente para projetar as despesas e receitas, assim como para compatibilizá-las com as
demandas de maior relevância social. Entretanto, não é raro que, ao se analisar a execução
orçamentária do ente estatal, se constate baixíssimo nível de execução para políticas sociais
prioritárias e, na mesma peça, execução até superavitária de programas voltados à divulgação
institucional, por exemplo.153
É neste ponto que o âmbito restrito de normatividade da lei orçamentária, acentuada
pelo caráter meramente autorizativo do orçamento público, demonstra incompatibilidade com
os preceitos do Estado Democrático de Direito. Apesar de não se sustentar a vinculação de
receitas a gastos públicos previamente definidos, até porque isso poderia colocar em risco a
eficiência da administração, é inegável que deve haver maior controle sobre a
153
Como ilustra esse breve quadro comparativo elaborado com base em informações disponibilizadas pelo
SIAFI, durante o ano de 2009, de janeiro a outubro, o Governo do Estado de Minas Gerais autorizou o empenho
de mais de 227% do valor do crédito inicial para gastos com divulgação institucional. O percentual de execução,
até outubro, ultrapassou a casa dos 58%. Por outro lado, a rubrica destinada à construção de unidades
socioeducativas para adolescentes, ação prioritária conforme a Constituição e o disposto na Lei nº 8069/90, só
tinha alcançado 8,18% de execução no mesmo período. A autorização para empenho não chegou a de 7% em
relação à autorização inicial:
Projeto –
Atividade – Descrição
Soma de
Crédito Inicial
Soma de
Crédito Autorizado
Soma de
Despesa Empenhada
Soma de
Despesa Realizada (%) de
execução
(%)
autoriz.
Inicial
Divulgação
Governamen
tal
40.753.933,00 92.853.933,00 70.793.109,47 54.608.209,44 58,81% 227,84%
Construção de
unidades
socioeduca
tivas
21.950.000,00 1.484.951,00 232.687,29 121.480,62 8,18% 6,77%
FONTE: SIAFI/ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 30/outubro/2009.
205
desconsideração imotivada, pelo administrador público, das deliberações adotadas do âmbito
político que ingressaram nas disposições orçamentárias.
Nesse sentido, o acompanhamento do processo orçamentário, desde a formulação das
diretrizes até a execução orçamentária, é fundamental para que se possa exercer, de modo
eficiente e respeitoso à diferenciação funcional, o necessário controle no âmbito social,
administrativo (pelos Tribunais de Contas, por exemplo) e jurisdicional.
Há ainda outros vários pontos em que as deliberações que antecederam a execução
orçamentária são colocadas a perder sem que haja motivo relevante e acessível ao público
para tanto. Atendo-se o exame à questão do contingenciamento de recursos, entretanto, pode-
se dizer que há várias possibilidades de destinação. Elencam-se aqui algumas das mais
corriqueiras possibilidades de realocação de recursos pelo administrador: a) ao final do
exercício os recursos se converterão em outras dotações, possivelmente para financiar o
aumento em despesas de custeio ou para amortizar a dívida pública; b) servirão para compor o
chamado superávit primário, o que configura “autêntica decisão de não gastar”
(MENDONÇA, 2008, p.236). Em ambas as situações o código binário não foi observado,
uma vez que tal prática não é conforme o direito e, por outro lado, não foi respeitado o espaço
do político no sentido de politics cuja preservação é essencial para o jogo democrático.
Tampouco se poderia falar em racionalidade transversal, uma vez que a racionalidade da
política, por meio da ação da administração, expande-se desmesurada e injustificadamente
sobre a racionalidade parcial do direito.
Nesses casos, pendente qualquer motivação que possa tornar lícita a conduta do
administrador, não se pode dizer que houve gestão democrática dos recursos públicos, o que,
em última análise, desafia a apreciação do sistema jurídico. A teoria sistêmica, nesse ponto,
auxilia bastante no exame da questão. Como já se afirmou, não é uma prática lícita, no âmbito
de um Estado Democrático de Direito, preterir escolhas políticas e, assim, desrespeitar o
princípio democrático.
Por outro lado, o dever de fundamentar as decisões político-administrativas merece
especial atenção quando houver modificação da alocação de recursos no curso da execução
orçamentária, por exemplo. Vale dizer: sempre que a execução orçamentária desconsiderar as
deliberações constantes das disposições do ciclo orçamentário antecedente (PPA, LDO e
LOA), torna-se imprescindível a apresentação dos motivos que determinaram tal decisão. No
entendimento desta autora, essa a racionalidade do sistema político que pode ser oferecida aos
demais sistemas – e notadamente ao sistema jurídico – de modo já processado.
206
Com efeito, nas situações em que houver a substituição das escolhas com participação
direta ou indireta do público no âmbito estrito da política por escolhas monocráticas do
administrador, a responsividade do Executivo está em tornar públicos os motivos que
justificaram as mudanças de rumo no que diz respeito à seleção das políticas públicas que
serão respaldadas por investimentos e ações públicas. Caso assim não proceda, não se pode
creditar ao orçamento qualquer valor político ou jurídico. Nessa hipótese, ele mantém-se no
plano interno da administração e pode, quando muito, ser validado como peça de registros
contábeis. Não se poderia, sequer, argumentar acerca da impossibilidade de concretizar
qualquer direito fundamental sob a alegação de que inexistem “reservas orçamentárias” para
tanto.
Deve-se ter claro, por outro lado, que não há justificativa, pela ótica da racionalidade
transversal, inclusive, para que o tratamento dado aos principais componentes da atividade
financeira do Estado seja díspar. Ora, receitas e despesas devem recebem o mesmo tratamento
nos orçamentos: se os tributos são instituídos em respeito às decisões coletivamente
vinculantes do sistema político, o dispêndio dos recursos públicos também deve, em linha de
princípio, ter nas disposições coletivamente vinculantes da política seu manancial de licitude.
A racionalidade parcial que rege ambos os comportamentos da administração – tanto gastar,
quanto arrecadar – deve ser processada sob a mesma orientação finalística e democrática.
É nesse sentido que a feição meramente autorizativa dos orçamentos públicos deve ser
reinterpretada de modo a evitar que as distorções entre as propostas político-orçamentárias e a
efetiva alocação e destinação dos recursos públicos gerem prejuízos ao nível de concretização
dos direitos da cidadania, bem assim ao principio democrático, em si mesmo considerado.
Embora a retrospectiva histórica mostre que o orçamento surgiu para impor limites ao
poder de instituir tributos, com o advento da modernidade, a semântica constitucional fez com
que essa concepção evoluísse no sentido de transformá-lo num mecanismo capaz de tornar
públicos o planejamento estatal e o compromisso político com sua concretização. Essa, que
poderia ser considerada uma aquisição evolucionária na dicção de Luhmann, não deve admitir
retrocessos irrefletidos.
Em vez disso, o desenvolvimento da cidadania exige patamares cada vez mais
elevados de responsividade dos órgãos estatais, sobretudo no que diz respeito à
progressividade da generalização congruente da própria cidadania por meio de políticas
públicas adequadas. Logo, a abstenção do empenho de recursos públicos orçados e realizados
na execução de políticas públicas voltadas à concretização de direitos da cidadania, sem
207
qualquer justificativa sindicável é prática dissociada dos propósitos democráticos do Estado
de Direito.
Para que essa prática seja coibida, no entanto, não há alternativa senão o controle
social, administrativo e jurisdicional, se for o caso, das omissões ou dos desvios lesivos
eventualmente identificados na execução orçamentária.
Embora a esfera pública brasileira ainda tenha uma longa caminhada pela frente, é
certo que alguns avanços já podem ser observados quanto às tentativas de mobilização em
torno das questões orçamentárias, sejam relacionadas à alocação de recursos, sejam relativas
ao incremento do nível de inteligibilidade e publicidade das peças orçamentárias. A sociedade
civil tem se organizado para ver seus direitos garantidos e, estabelecida a premissa de que
todos os direitos geram custos, qualquer recurso contingenciado injustificadamente pode
significar a violação de um direito fundamental, uma vez que a política pública que o
realizaria não se tornará uma ação.
O orçamento, como ponto de confluência entre o sistema político, jurídico e
econômico, deve ser capaz de externar a real pretensão do ente estatal no que diz respeito à
realização das políticas públicas que selecionou. Deve-se considerar, aí, a escassez dos
recursos públicos e o poder-dever da administração de tornar públicas as escolhas realizadas
na execução orçamentária e, assim, tornar viável a disponibilização direta entre os sistemas de
suas realidades já ordenadas.
Portanto, para que seja possível aos sistemas sociais envolvidos na realização de
políticas públicas intercambiar as experiências vivenciadas no âmbito de cada racionalidade
parcial e, assim, partilhar reciprocamente da realidade já ordenada no interior desses sistemas,
ou seja, partilhar mutuamente as informações que se apresentam relevantes à decisão política,
econômica ou jurídica, é necessário que os orçamentos sejam levados a sério.
Por fim, conquanto não tenha sido abordada a questão da política econômica
internacional, deve-se dizer algo sobre o assunto. Sabe-se que as condições estabelecidas pelo
mercado mundial muitas vezes incentivam – ou mesmo exigem como condição – a ideia de
que a regularidade das contas do ente estatal seja aferida por critérios meramente técnico-
contábeis. O orçamento, então, pode ser uma boa estratégica para realizar bons negócios no
âmbito internacional – captação de recursos e investimentos em geral –, uma vez que é um
atestado da boa saúde financeira do ente estatal, conforme esteja formalmente de acordo com
padrões postos, verticalmente e de “fora para dentro”. Ocorre, no entanto, que essa
padronização internacional, embora pressuponha seja o Brasil um país periférico, pouco
208
considera as condições sociais em que vive grande parte da população brasileira. Como se
isso fosse uma contingência irrelevante para o discurso econômico.
Assim, o esforço da análise sistêmica da sociedade pode contribuir para que as
peculiaridades de cada Estado Nacional sejam consideradas no exame dos orçamentos
públicos e de sua importância, no âmbito interno, para a elevação do nível de generalização da
cidadania e para o fortalecimento das instituições democráticas, a partir da construção de uma
esfera pública pluralista. Essa a única nuança da credibilidade que o Estado Brasileiro pode
pleitear no âmbito do mercado internacional capaz de se sustentar sob o ponto de vista da
sociedade brasileira.
209
6 CONCLUSÃO
Este trabalho iniciou-se a partir da investigação do alcance da teoria dos sistemas de
Niklas Luhmann para se analisar a tormentosa temática que envolve a concretização dos
direitos fundamentais no Brasil, considerando as peculiaridades conjunturais aí envolvidas.
Pretendia-se, assim, entender como se dão as relações entre os sistemas político, jurídico e
econômico, especificamente nas questões político-orçamentárias.
Todavia, prosseguindo na investigação teórica, pareceu interessante a conexão da
teoria sistêmica de Luhmman com a perspectiva também sistêmica, mas sobretudo discursiva ,
proposta por Jürgen Habermas. A questão passava pelo conceito de público, em Luhmann, e
esfera pública em Habermas. A noção de esfera pública combinada com a proposta de
enriquecer a democracia com instrumentos deliberativos mostrou-se adequada à temática
relacionada à concretização dos direitos fundamentais. Em razão disso, tornou-se necessário
contextualizar a teoria sistêmica entre as demais teorias jurídicas contemporâneas, pelo que
Habermas, Luhmann e Gunther Teubner uniram-se na mesma matriz, com as ressalvas das
peculiaridades quanto aos pressupostos teóricos adotados por cada autor.
A partir daí, examinou-se a proposta de Marcelo Neves de transplantar para a
realidade brasileira a gramática da teoria dos sistemas e conjugá-la com a semântica de
Habermas, especialmente, no que diz respeito à importância de se viabilizar caminhos para a
construção de uma esfera pública pluralista, capaz de intermediar dissenso conteudístico e
consenso em torno da necessidade de que haja procedimentos, constitucionalmente
estabelecidos, aptos a viabilizar a integração social apesar das diferenças valorativas que
existem entre os membros da sociedade política.
A temática dos direitos fundamentais foi abordada pelo viés pragmático-sistemático,
tendo como fio condutor a teoria da cidadania e seu desenvolvimento desde a formulação por
T. Marshall. Constatou-se, por essa via, a fundamentalidade dos direitos sociais para a
construção de uma esfera pública pluralista, bem assim para que os indivíduos tenham
perspectivas de integração em todos os sistemas e possam se beneficiar da prestação que eles
têm a oferecer. Em seguida buscou-se desmistificar a teoria segundo a qual os direitos liberais
clássicos concretizam-se sem dispêndio financeiro para o Estado, ao contrário dos direitos
sociais, que, portanto, não podem ser exigíveis judicialmente. Identificar que mesmo os
direitos liberais demandam garantia pelo Estado, como o direito de propriedade, por exemplo,
cujo gozo depende de uma série de ações estatais e, em última análise, a manutenção de um
210
sistema de justiça para dirimir qualquer conflito relacionado à violação desses direitos foi
circunstância decisiva para se concluir que todos os direitos dispõem de uma dimensão
positiva e outra negativa e, inegavelmente, assegurar direitos implica dispêndio financeiro.
Em razão das dificuldades na eleição das demandas prioritárias para uma dada
sociedade e, de igual modo, pela variada gama de políticas que, eventualmente, possam
atender tais demandas, torna-se necessário o efetivo engajamento dos cidadãos e o
fortalecimento da esfera pública por eles integrada. A concretização, ainda que gradativa, dos
direitos fundamentais sociais, portanto, é fundamental ao fortalecimento da esfera pública,
pois, assegura aos indivíduos a perspectiva de inclusão político-jurídica, o que por sua vez
retroalimenta essa mesma esfera pública. Como meio para o aperfeiçoamento da democracia
brasileira, deve-se buscar a reconstrução dessa esfera pública de modo a torná-la plural, ou
seja, capaz de oferecer lugar aos mais variados interesses, valores ou discursos que emanam
nas diversas formas de vida admitidas na sociedade complexa.
A pluralização da esfera pública é o que permitirá, via reflexa, o aumento dos níveis
de educação política da população brasileira. A partir daí, mais vozes se levantarão em prol da
generalização dos direitos da cidadania.
As condições sociais do Brasil não são favoráveis à autopoiese dos sistemas sociais,
razão por que se refutou a teoria sistêmica de Luhmann nesse particular. Entretanto,
sustentou-se que existe diferenciação funcional entre os sistemas político e jurídico e que esse
nível de diferenciação pode ser gradativamente elevado, caso o nível de concretização dos
direitos fundamentais, como direitos de cidadania, seja, também, progressivamente elevado.
Estabelecidas as premissas de que os direitos sociais são dotados de fundamentalidade
e que a implementação de todos os direitos geram custos, a via que se buscou construir neste
trabalho vinculou-se a uma proposta de releitura dos orçamentos públicos, como local de
entrelaçamento com a perspectiva econômica, jurídica e política. Essa conclusão conduziu à
questão orçamentária, uma vez que só será possível ampliar o nível de concretização de
direitos caso haja maior mobilização em torno da alocação dos recursos tendentes à
concretização das políticas públicas correspondentes. Vale dizer, cabe à ação da esfera
pública pluralista atuar no processo orçamentário, acompanhar sua execução e,
gradativamente, contribuir para que mais indivíduos possam usufruir das prestações
oferecidas por cada sistema.
Em seguida, partindo-se da distinção entre o político e a política, analisou-se a gestão
dos orçamentos no Brasil. Embora se observem avanços, ainda é muito tímida a ação no
211
sentido de se fazerem valer as deliberações políticas que antecedem à ação do administrador.
Nada obstante, o instrumental teórico oferecido pela teoria sistêmica de Luhmann, no que diz
respeito à diferenciação dos sistemas sociais a partir da função desempenhada por cada um
deles na modernidade, e a noção de racionalidade transversal que pressupõe essa
diferenciação e pretende tornar mais rápidas e eficientes as relações ou interferências entre
esses sistemas foram de grande auxílio para que a descrição do funcionamento da sociedade
contemporânea atendesse à demanda de compreensão acerca de qual a função capaz de ser
desempenhada pelo sistema jurídico.
Assim, resgatar e preservar as esferas de atuação política (politics) assumiu papel
central numa perspectiva de se diminuir a sobrecarga existente sobre o sistema jurídico na
contemporaneidade. Daí que as opções político-orçamentárias feitas no âmbito do Legislativo
ou mesmo por meio de procedimentos deliberativos devem nortear a gestão dos recursos
públicos e, eventualmente, gerar responsabilização por omissão ou comissão desviante. Para
tanto, o que se sustentou foi que, na modernidade, à política compete a edição de decisões
coletivamente vinculantes relacionadas à formulação das políticas públicas, assim como a
definição da respectiva alocação dos recursos necessários. À administração, diferentemente,
compete executar a política pública conforme a deliberação antecedente, adotada no âmbito
da política, pela via procedimental estabelecida para tanto.
Além disso, mostrou-se relevante considerar que a observância código lícito/ilícito
deve ser considerada como segunda referência binária a orientar a atuação do sistema da
política e da economia, no que diz respeito às questões orçamentárias.
Na modernidade, os orçamentos tornaram-se ferramentas democráticas para que a
esfera pública conheça os objetivos do governo, suas metas e programas e, a partir daí, seja
viabilizado o controle social, administrativo e, eventualmente, jurisdicional dos orçamentos.
Isso constituirá, inclusive, um modo de aferir a responsividade do gestor perante os
governados. Tal perspectiva, portanto, impede que os orçamentos sejam considerados como
peças de matriz meramente contábil e, por vezes, descumpridos; de outro lado, impõe que a
feição autorizativa dos orçamentos seja assimilada pelo administrador na medida mínima
necessária para que ele possa gerir, com eficiência, os recursos públicos no sentido da
máxima concretização progressiva dos direitos fundamentais e, consequentemente, da
generalização da cidadania no Brasil.
No que diz respeito à função dos orçamentos no Estado Democrático de Direito
brasileiro, como ambiente em que as racionalidades parciais dos sistemas jurídico, político e
212
econômico podem ser organizar de modo transversal, conclui-se que, respeitados os limites
postos pelas condições sociais e a abertura oferecida pela Constituição de 1988, é possível que
a evolução social possibilite a elevação dos níveis de acesso dos indivíduos aos direitos
fundamentais. Isso, por conseguinte, contribuirá para o paulatino fortalecimento e
pluralização da esfera pública, caminho que, conforme conclusão deste estudo, poderá levar à
interrupção do círculo vicioso que, ao longo da história, tem impedido o fluxo do processo de
aperfeiçoamento das instituições democráticas que dão sustentação à República Federativa do
Brasil.
213
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