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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Admilson Eustáquio Prates
Imaginação material e mística Traços dos quatro elementos naturais presentes na obra
Castelo Interior de Santa Teresa d’Ávila
DOUTORADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
SÃO PAULO 2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Admilson Eustáquio Prates
Imaginação material e mística Traços dos quatro elementos naturais presentes na obra
Castelo Interior de Santa Teresa d’Ávila
DOUTORADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Religião, na área de concentração “Estudos empíricos da religião”, sob a orientação do Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito.
SÃO PAULO 2016
Banca Examinadora _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________
RESUMO
A pesquisa focaliza uma obra clássica do Cristianismo espanhol do
século XVI, cuja finalidade é estudar a Imaginação Material e Mística: traços
dos quatro elementos naturais presentes na obra Castelo Interior de Santa
Teresa d'Ávila.
O objeto da pesquisa é composto por dois aspectos, um material ou
geral e outro formal ou específico. O aspecto material é a obra Castelo Interior,
de Santa Teresa de Jesus. O aspecto formal do objeto é identificar traços dos
quatro elementos naturais simbólicos presentes na narrativa mística. Para
tanto, recorreremos ao teórico Gaston Bachelard a fim de identificar os quatro
elementos naturais na obra.
Os caminhos, procedimentos metodológicos, que se pretendem seguir
para a resolução do problema desta pesquisa são teóricos. No campo teórico,
desenvolver-se-á uma pesquisa bibliográfica (apresentados os autores /
pesquisadores na justificativa e na bibliografia) que aproxime a questão da
religiosidade, espiritualidade e mística com a questão da cultura. Primeiro,
faremos uma leitura aproximativa para familiarizar com o texto, a partir da lente
dos quatro elementos naturais, ou seja, imaginação material em Gaston
Bachelard. Em seguida, realizaremos a coleta dos trechos da obra Castelo
Interior que indiquem a presença dos quatro elementos naturais, ou seja, a
imaginação material. Dessa forma, será realizado o fichamento da obra e
explorados os trechos conforme a perspectiva da hermenêutica simbólica
baseada em Gaston Bachelard. O terceiro, último passo nesse processo, é
aplicar a metodologia de interpretação, isto é, a hermenêutico simbólica. Dessa
maneira, utilizaremos para essa pesquisa a hermenêutico simbólica na obra
Castelo Interior a partir dos estudos sobre a imaginação material em Gaston
Bachelard.
Palavras-chaves: Imaginação material, mística, Castelo Interior, elementos
naturais, linguagem
ABSTRACT
The research focuses on a classic work of Spanish Christianity of the
Sixteenth Century, whose purpose is to study the Material and Mystical
Imagination: traces of the four natural elements present in the work Interior
Castle of St. Teresa d'Ávila.
The object of research is composed of two aspects, one material or
general and other formal or specific. The material aspect is the work Interior
Castle of St. Teresa of Jesus. The formal aspect of the object is to identify
traces of the four symbolic natural elements present in the mystical narrative.
For that, we turn to the theoretical Gaston Bachelard in order to identify the four
natural elements in the work.
The ways, methodological procedures, which intended to follow to the
resolution of the problem of this research are theoretical. In the theoretical field,
will be developed a literature search (presented the authors / researchers in
justification and bibliography) that approximates the question of religiosity,
spirituality and mystic with the question of culture. First, we will do an
approximatively reading to familiarize with the text, from the lens of the four
natural elements, that is, imagination material in Gaston Bachelard. Then we
will perform the collection of the Castle Interior work passages that indicate the
presence of the four natural elements, that is, the material imagination. Thus,
will be held the book report of the work and explored the passages according to
the prospect of symbolic hermeneutics based on Gaston Bachelard. The third,
final step in this process, is to apply the interpretation methodology, that is, the
symbolic hermeneutic. That way, we will use for this research the symbolic
hermeneutics in the work Interior Castle, from studies about material
imagination in Gaston Bachelard.
Keywords: Material Imagination; Mystic; Interior Castle; Natural Elements;
Language
Dedicação
Meu filho amado Heitor Caires Prates
Homenagem
Aos 500 anos de Santa Teresa de Jesus.
In memoriam ao Professor Afonso Maria Ligório Soares de quem escutei uma
palestra no mestrado sobre a relação que existe entre Teologia e Literatura.
In memoriam ao escritor e educador Rubem Alves aquele me inspirou a ver
mundo às avessas em seus detalhes mais íntimos e profundo com
simplicidade. Além disso, a sonhar e devanear com as minucias das coisas da
existência que constituem a matéria para imaginação poética. Como diz Rubem
Alves: “A imaginação é o lugar onde as coisas que não existem, existem. Este
é o mistério da alma: somos ajudados pelo que não existe”.
Agradecimentos
Aprendi, durante as pesquisas, que “Os devaneios e os sonhos são,
para certas almas, a matéria da beleza” (BACHELARD, 1977: 18). E uma das
formas de materializar a beleza é demonstrando gratidão, reverenciando a
alma daqueles que contribuíram para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Agradecimento às instituições, Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior / CAPES pela taxa de auxílio ao estudo, Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico / CNPq, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Instituto Federal do Norte de
Minas Gerais - Campus Salinas, Instituto Federal de Goiás - Campus Formosa,
Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.
Ao meu orientador e amigo Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito, por ter
acreditado neste estudo e vibrado com minhas descobertas, pelo olhar, pelos
sorrisos estimuladores, pela imensa paciência, seriedade com que me
acompanhou e pela gratuidade irresistível, apontando-me direções a serem
seguidas e desafios a serem superados. E pelas nossas conversar para pensar
sobre qual objeto seria a minha pesquisa, e por fim, encontramos Santa Teresa
D’Ávila.
À banca de qualificação, composta pelo Prof. Dr. José J. Queiroz, que
me fez pensar sobre o símbolo, a simbolização e a linguagem. Professor que
me estimulou pensar os símbolos e a linguagem no grupo de pesquisa Pós-
Religare – Pós-modernidade e religião e que fez as primeiras leituras do
material construindo de forma significativa para o termino dessa pesquisa.
Agradecimento ao Prof. Dr. Claudio Santana Pimentel que contribuiu de forma
significativa com a leitura e apontamentos para o desenvolvimento dessa
pesquisa. E por fazer pensar a relação entre mística e natureza.
Agradecimentos Maria Luiza Guedes (Malu) e Ceci Maria Costa Baptista
Mariani por aceitar compor a banca de defesa.
Aos congressos promovidos pela Sociedade de Teologia e Ciências da
Religião / SOTER por possibilitar o contato com as pesquisadoras Lúcia
Pedrosa-Pádua, Ceci Maria Costa Baptista Mariani e Maria José Caldeira do
Amaral.
Agradeço minhas amigas Ilza Campos Olívia de Oliveira e Aurora Maria
de Morais pode sugerir estudar Santa Teresa d’Ávila.
Ao amigo Antônio Wagner Veloso Rocha por conversar sobre o
pensamento de Gaston Bachelard.
Daniela Imaculada Pereira Costa pelas aulas de espanhol.
Agradecimento aos parentes Estela Prates dos Reis Cordeiro, Amanda
katerine Pereira Prates, Manoel Salvador Prates dos Santos, Aldenice de
Fátima Silva Prates, Diego Silva Prates, Thiago Silva Prates.
Aos professores do Programa de Estudos de pós-graduação em
Ciências da Religião Prof. Dr. João Edênio Reis Valle, Prof. Dr. João Décio
Passos, Prof. Dr. Silas Guerriero.
À estimada secretária do Programa de Estudo Pós-Graduados em
Ciência da Religião Andreia Bisuli de Souza.
Às amigas Débora Santos Caires, Ângela Cristina Borges, Eliana Carla
Rodrigues, Débora Aparecida Betarello, Kamilla Duarte, Lúcia Beatriz Couto
Amorim, Valdeci Gonçalves Pereira Andrade (Doji), Girnei Amália Fróis de
Oliveira, Marcella Alves Machado, Adriana Alves Cruz, Bárbara Daniela
Gonçalves Santos.
Aos amigos Adriano Márcio Franca Lima, Eliezer Guimarães, Jeferson
Betarello, Mário Gomes Ferreira, Adailton Dias dos Santos, Geraldo Witeze
Júnior, Augusto José Querino, Milton Azevedo, Harlen Cardoso Divino,
Leonardo Augusto Couto Finelli, Jarbas Batista Camargos, Ricardo Fernandes
de Andrade, Toni Cezar Pinto Ferreira Barros, Hercílio Martelli Júnior, Antônio
Olímpio Alves Quintino, Eduardo Corrêa Neves, Ronilson Mello, Elton Durães,
Mauricio Pereira de Jesus,
São agradecimentos que brotam no interior de meu coração, por isso, muito obrigado.
http://www.pucsp.br/pos/cre/index.php?p=4#9#9
Sumário
Introdução ........................................................................................................................ 11
Capítulo I: A jornada mística de Santa Teresa d’Ávila no cenário espanhol do século XVI ..... 21
1.1 Península Ibérica e o século XVI ........................................................................................ 21
1.1.1 A formação da monarquia espanhola: Expansão Marítima e Revolução Comercial . 22
1.1.2 O Humanismo e o Renascimento cultural .................................................................. 25
1.1.3 A Reforma religiosa: protestantismo ......................................................................... 27
1.1.4 A Contrarreforma religiosa: reação da Igreja Católica ............................................... 30
1.2 A Igreja Católica na Espanha do século XVI: política e religião ......................................... 34
1.2.1 A Espanha mística do século XVI ................................................................................ 36
1.3 Percurso espiritual de Santa Teresa d’Ávila ...................................................................... 45
1.4 O perfil da escrita e as características das obras .............................................................. 54
Capítulo II: Teor simbólico dos quatro elementos naturais .................................................. 58
2.1 Os símbolos e a simbolização ............................................................................................ 59
2.1.1 Variações da linguagem: símbolo, metáfora, alegoria e signo .................................. 66
2.1.2 Linguagem e transcendência: perspectiva mistagógica....... ...... ...........................70
2.2 Os quatro elementos naturais: perspectiva abordagem histórico-cultural-simbólica ..... 77
2.2.1 A presença dos quatro elementos naturais na mitologia e na Bíblia ........................ 77
2.2.2 Os primeiros filósofos ................................................................................................ 83
2.2.3 Imaginário dos quatro elementos na Idade Média .................................................... 88
2.2.4 Imaginário dos quatro elementos no século XVI ....................................................... 94
2.2.5 Os quatro elementos naturais na literatura .............................................................. 95
Capítulo III: Vislumbrando traços interpretativos no Castelo Interior .................................. 98
3.1 Castelo Interior: história do texto e aspecto literário ....................................................... 98
3.2 Castelo Interior: mistagogia da oração ........................................................................... 115
3.3 Jornada da alma: traços interpretativos do Castelo Interior a partir da psicologia analítica ...... 123
Capítulo IV: Castelo Interior: simbolização dos quatro elementos naturais ........................ 131
4.1 A simbolização dos quatro elementos naturais no Castelo Interior ............................... 132
4.2 Imaginação material: a terra e os devaneios do repouso ............................................... 139
4.3 Imaginação material: o fogo e a imaginação ardente ..................................................... 148
4.4 Imaginação material: o ar e os sonhos – imaginação do movimento ............................. 155
4.5 Imaginação material: a água e os sonhos – imaginação da matéria ............................... 158
Considerações finais ........................................................................................................ 171
Referências bibliográficas ................................................................................................ 176
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa focaliza uma obra clássica do Cristianismo espanhol do
século XVI, cuja finalidade é estudar a Imaginação Material e Mística: traços
dos quatro elementos naturais presentes na obra Castelo Interior de Santa
Teresa d'Ávila, religiosa e escritora espanhola que nasceu em Gotarrendura, 28
de março de 1515, e faleceu em Alba de Tormes, 4 de outubro de 1582. Ela é
reconhecida pela reforma que realizou na Ordem das Carmelitas e por suas
obras místicas, sendo uma grande expoente da mística do século XVI
espanhol. Foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Paulo VI. Além disso,
percorreu grande parte da Espanha fundando conventos.
Durante o curso de mestrado em Ciências da Religião/PUC, a mística foi
brotando durante os estudos, e o desejo de estudá-la tornou-se uma realidade
para mim.
As leituras, o trabalho de campo1, as orientações no mestrado com o
professor Ênio José da Costa Brito e a participação no grupo de pesquisa Pós-
religare – Pós-modernidade e religião, coordenado pelo professor José J.
Queiroz, produziram imagens em minha mente sobre mística, imagens que
permanecem como algo intrigante e fascinante. Intrigante, por não ser algo
definido, estático entre os pesquisadores. Fascinante, por mexer nos desejos e
no lado oculto do ser humano, nos porões do inconsciente. Além disso, nas
considerações finais da minha dissertação, apresento a mística Afro-Sertaneja
como um recorte possível de estudo. Mas, por nova motivação pessoal decidi
pesquisar a mística cristã. Portanto, continuo na trilha da mística, contudo, da
mística cristã do século XVI, mais precisamente Santa Teresa d'Ávila, tendo
como lentes teóricas interpretativas Gaston Bachelard. Enfim, a tese pauta-se
em uma hermenêutica simbólica dos quatro elementos naturais presentes na
obra Castelo Interior de Santa Teresa d'Ávila a partir do filósofo Gaston
Bachelard.
Esta pesquisa sobre Imaginação Material e Mística: traços dos quatro
elementos naturais presentes na obra Castelo Interior de Santa Teresa d'Ávila
é relevante porque trabalha a mística como momento culminante da
1 Durante o mestrado.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Freirahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Literaturahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Gotarrendurahttp://pt.wikipedia.org/wiki/28_de_mar%C3%A7ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/28_de_mar%C3%A7ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1515http://pt.wikipedia.org/wiki/Alba_de_Tormeshttp://pt.wikipedia.org/wiki/4_de_outubrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1582http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_do_Carmohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Doutor_da_Igrejahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VI
12
experiência religiosa, ou seja, da espiritualidade2. Santa Teresa d'Ávila
apresenta uma experiência mística comunicada por meio de uma narrativa que
pode incentivar o leitor3 a seguir os passos apresentados pela autora. Escrita
simbólica, recheada de imagens poéticas, recorre ao símbolo como ferramenta
que possibilita representar a experiência mística. Representa uma escrita
permeada de símbolos, de imaginação criadora, que cria uma mística
recorrendo aos quatro elementos naturais simbólicos: terra, água, ar e fogo.
Teresa d'Ávila, vale destacar, abriga em seu colo, em seus braços,
enfim, em seu corpo, movimentos entre a escuridão e a luz, a dor e a alegria, a
morte e a vida, uma experiência mística que direciona o ser humano ao
encontro consigo, sem negar o lado sombra, oculto, ou seja, da escuridão à luz
e da luz à escuridão. Esta experiência mística teresiana possibilita uma vida
cotidiana impregnada pela vida sagrada. Na verdade, o paradoxo barroco que
marca a vida humana dividida entre o sagrado e o profano, o carnal e o
espiritual, os desejos e o sentimento de culpa, o sofrimento e a força da fé
aparecem na escrita da freira carmelita como reflexo do realismo e da
compreensão de que a vida cristã é um único caminho de salvação.
Dessa forma, investigar as características da escrita mística teresiana
contida na obra Castelo Interior a partir da imaginação material significa
procurar, compreender os traços da mística espanhola do século XVI,
sobretudo, a relação entre mistagogia4, linguagem, símbolos e literatura. Esta
2 Conforme o professor José J. Queiroz: “O místico no meu entender vai além do espiritual. Tem muita espiritualidade que não chega à mística. A mística é o ápice mais alto da espiritualidade é onde chega os grandes santos, os grandes profetas. ” (Exame de qualificação de doutorado - PUC/SP, 23 setembro de 2015). 3 “o leitor se aproxima de experiências que, tais como Teresa as realizou, o leitor jamais as terá. No entanto, pela experiência da autora, ele entra no mundo incrível das altas experiências místicas, do encontro com o amor de Deus em níveis insuspeitados, de purificações arrasadoras, de conhecimento interno da realidade do Deus trino, da percepção de Deus em todas as coisas, no cosmos, de transformações éticas que atingem o ápice das possibilidades e levam a criatura a vencer o medo da morte. Assim, do mais simples ao mais elevado, que sabiamente faz retornar ao mais simples — Deus está entre as panelas! — o leitor também faz o seu itinerário. Ela mesma convida cada um a descobrir a sua forma particular de oração. Assim, os livros de Teresa são também um espelho para nos ver melhor e amar com mais qualidade. Há estímulos para o amor. ” In: Lúcia Pedrosa-Pádua. A liberdade da experiência no encontro com Deus. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5807&secao=460. Acesso em 16 de abril de 2015. 4 “O termo é grego, composto do substantivo mystes (mistério), que talvez derive do verbo myo (‘fechar os lábios, estar fechado’) e do verbo ago (‘conduzir’). Etimologicamente significa a ação de introduzir uma pessoa no conhecimento de uma verdade oculta e no rito que a
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5807&secao=460http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5807&secao=460
13
pesquisa se justifica também por existir uma carência de estudos sobre a
mística teresiana, sobretudo a partir da leitura dos quatro elementos naturais
de Gaston Bachelard. É uma forma de contribuir na produção de conhecimento
que auxiliará outras disciplinas tais como: Mística, Hermenêutica, Religião e
Campo Simbólico, Ensino Religioso (Educação Básica), Ciência da Religião,
Literatura Espanhola, Teologia, Filosofia da Religião, História das Religiões,
Ética, Psicologia, Estudos Empíricos da Religião, Comportamento e
Representações Religiosas. Ademais, a pesquisa se faz relevante por
apresentar, através da narrativa, elementos capazes de ajudar a compreender,
mais a fundo, a escrita mística de Santa Teresa d’Ávila inspirada no imaginário
material, ou seja, nos quatros elementos naturais.
O objeto da pesquisa é composto por dois aspectos, um material ou
geral e outro formal ou específico. O aspecto material é a obra Castelo Interior,
de Santa Teresa de Jesus, escrita no século XVI com o objetivo de apresentar
as etapas que a alma trilha em direção a Deus. É um livro que apresenta o
símbolo do castelo divido em sete moradas5, e cada uma delas retrata um
estágio percorrido pela alma para chegar até Deus. Além disso, a obra mescla
planos autobiográficos e doutrinais. A obra em questão também transmite a
doutrina espiritual da reformuladora do Carmelo e, ao mesmo tempo, reflete
sua experiência pessoal. As sete moradas da vida interior em que se divide a
obra representam as etapas da santidade que o ser humano tem de alcançar
até chegar à perfeição.
O aspecto formal do objeto é identificar traços dos quatro elementos
naturais simbólicos presentes na narrativa mística. Para tanto, recorreremos ao
teórico Gaston Bachelard a fim de identificar os quatro elementos naturais na
obra. Ele trabalhou com a ideia simbólica dos quatro elementos naturais para
estudar as obras de Edgar Alan Poe, Balzac, Rimbaud, Mallarmé e Paul
Eluard, além de pintores, por exemplo, Claude Monet e Marc Chagall, e
significa. Aquele que introduzida, geralmente sacerdote, era chamado mistagogo; a pessoa introduzida e iniciada era chamado mystes”. (BORRIELLO; CARUANA; DEL GENIO; SUFFI, 2003:702) 5 A obra Castelo Interior é composta por setes moradas. As Primeiras Moradas são compostas por dois capítulos; as Segundas Moradas são compostas por um único capítulo; as Terceiras Moradas são compostas por dois capítulos; as Quartas Moradas são compostas por três capítulos; as Quintas Moradas são compostas por quatro capítulos; as Sextas Moradas são compostas por onze capítulos e a as Sétimas Moradas são compostas por quatro capítulos.
14
esculturas de Waroquier e Chillida. Esses estudos, encontramos nas seguintes
obras de Gaston Bachelard: A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação
da matéria; A Terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da
intimidade; O Ar e os sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento;
Psicanálise do Fogo e Direito de Sonhar.
De fato, os quatro elementos naturais acompanham o imaginário
humano desde os primórdios, como ocorreu com os gregos e os medievais. Os
gregos, na mitologia, exploravam, em suas narrativas, a presença dos quatro
elementos naturais. Os primeiros filósofos – os pré-socráticos ou filósofos das
physis – encontraram nos quatros elementos o princípio do cosmos. Na Idade
Média, é forte a presença dos quatro elementos, por exemplo, no poema de
São Francisco de Assis, Cânticos das Criaturas. Neste texto, ele dirige às
naturezas da seguinte maneira: irmão vento, irmã água, irmão fogo.
Na Bíblia Cristã, existem vários momentos com a presença dos quatro
elementos naturais. Em Gênesis, sobre a criação do mundo e tudo que nele
existe, aparecem os quatro elementos naturais. Em Êxodo, há o elemento fogo
como símbolo da presença e atuação do Senhor. No evangelho de Mateus e
na carta aos Coríntios, existe a presença do fogo como símbolo do juízo final e,
no livro de Atos, como meio de purificação. O elemento terra está ligado à
relação íntima entre as pessoas e a terra, conforme pode ser encontrado nos
livros Gênesis e Isaías. E a água está relacionada aos símbolos dos bens
divinos no evangelho de João.
A narrativa mística da obra Castelo Interior de Santa Teresa de Jesus
representa uma mística nupcial, uma mística experimental que trabalha em seu
escrito símbolos que possibilitam vislumbrar a presença dos quatro elementos
naturais.
A pesquisa pretende, especificamente, identificar, na narrativa da obra
Castelo Interior, os elementos naturais simbólicos presentes na escrita de
Santa Teresa de Jesus. A narrativa do Castelo Interior expressa um trabalho
árduo de racionalização da experiência mística em símbolos, ou seja, em obra
literária. Acreditamos que o texto pode ser a síntese de vários diálogos
anteriores com textos e vivências pessoais. O exercício hermenêutico simbólico
15
do texto supracitado poderá revelar quais elementos naturais constituem a
escrita mística de Teresa em Castelo Interior.
Com o intuito de atingir os objetos específicos, faz-se necessário traçar
preliminares, a saber: apresentar a jornada mística de Santa Teresa d'Ávila no
cenário espanhol do século XVI, o perfil da sua escrita e as características das
obras de Teresa de Jesus; mostrar de forma panorâmica o contexto espanhol
do século XVI; discutir a formação da monarquia espanhola e suas
consequências. Além disso, de forma breve, pontuar o Humanismo, o
Renascimento Cultural, a Reforma Religiosa e a Contrarreforma Religiosa;
expor a Igreja Católica na Espanha do século XVI; apresentar a Espanha
mística do século XVI.
Além desses objetos específicos, elencamos os seguintes: apresentar a
linguagem e suas variações na forma de símbolo, metáfora, alegoria e signo;
investigar a relação entre linguagem e mistagogia; mostrar a simbolização dos
quatro elementos naturais; apresentar a história da obra Castelo interior e
algumas interpretações a que foi submetida ao longo do tempo por diversas
áreas do saber; mostrar algumas reflexões e análise acerca da obra Castelo
Interior; e, por fim, promover uma interpretação dessa obra a partir da
imaginação material de Gaston Bachelard.
A pesquisa, no âmbito da Ciência da Religião, terá um enfoque
filosófico-hermenêutico e simbólico, mas terá interfaces com a perspectiva
teológico-literária6 e cultural. Ela, a pesquisa, localiza-se na área de
concentração: Estudos Empíricos da Religião e na linha de pesquisa
Comportamento e Representações Religiosas.
Apresentam-se como problema para esta pesquisa as seguintes
questões: qual é o cenário espanhol do século XVI e como nesse cenário
acontece o percurso espiritual de Teresa D’Ávila? Como surgem e se
desenvolvem no aspecto histórico-cultural-simbólico a imaginação material dos
quatro elementos naturais e qual o potencial simbólico que eles contêm? Qual
é o aspecto histórico da obra Castelo Interior, sua característica literária e as
6 Interesse despertado pelo Prof. Dr. Afonso Maria Ligório Soares em uma palestra ministrada durante o curso de mestrado na aula do Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz, no primeiro semestre de 2007.
http://www.pucsp.br/pos/cre/index.php?p=4#4#4
16
influências que Santa Teresa d'Ávila recebeu que contribuíram para a
construção de sua narrativa mística em Castelo Interior? Quais interpretações a
obra sofreu ao longo do tempo e, além disso, qual é o aspecto mistagógico e
que tipo de mística está presente no Castelo Interior? Quais seriam os
elementos naturais principais e secundários presentes na narrativa mística do
Castelo Interior e caso existam os quatro elementos naturais eles foram
conscientes e deliberados, e, além disso, como se dá o processo de
simbolização dos quatro elementos naturais que transcendem para a narrativa
mística na obra Castelo Interior? Na mesma linha de raciocínio caso existam os
quatro elementos naturais na obra como os elementos naturais ou a
imaginação material assumem uma simbolização que os elevam para o plano
do divino, do mistério, do místico?
Por tais aspectos mencionados, elaboramos duas hipóteses sobre
Imaginação Material e Mística: traços dos quatro elementos naturais presentes
na obra Castelo Interior de Santa Teresa d'Ávila. A primeira hipótese refere-se
à presença de elementos naturais no imaginário místico de Santa Teresa
d'Ávila na obra Castelo Interior. É possível encontrar traços dos quatro
elementos naturais na obra Castelo Interior, conforme pode ser lido no trecho
extraído: “a nossa alma como um castelo todo de diamante ou cristal muito
claro onde há muitos aposentos, tal como no céu há muitas moradas”
(TERESA DE JESUS, 2009: 441). Os termos castelo, diamante, cristal,
podemos associá-los ao imaginário da terra, e o termo claro, ao imaginário da
água e do fogo. Pois o termo claro consegue trazer em seu bojo a ambiguidade
dos quatro elementos naturais e, quando associado ao elemento água, provoca
a memória dos riachos e das águas claras. Vale lembrar que o fogo está ligado
ao fenômeno do olhar, e só é possível ver quando há luz, e a luz é quente, é
fogo.
E a segunda hipótese faz referência à presença da natureza e do
cotidiano de Santa Teresa de Jesus como condicionantes materiais para a
formação de uma narrativa mística. Para tanto, podemos pensar que é possível
encontrar na obra Castelo Interior, a natureza e o cotidiano simbolizados,
expressos pela imaginação material como linguagem poética.
17
No campo teórico, desenvolver-se-á uma pesquisa bibliográfica que
aproxime a questão mística da questão imaginação material. Para o
desenvolvimento deste estudo, faz-se necessária uma pesquisa bibliográfica
que articule a religiosidade, espiritualidade, mística com a cultura, literatura, e,
sobretudo, com a imaginação material baseada em autores que discutem tal
temática, como Gaston Bachelard que busca na estética literária, determinar a
substância das imagens poéticas, a adequação das formas às matérias
fundamentais, prepara uma doutrina da imaginação literária, insiste no caráter
sexual das imagens brutas, dos símbolos brutos, como nascidos do impulso da
vida inconsciente. Assim, a imagem que temos de um objeto não é o próprio
objeto, mas uma faceta do que nós sabemos sobre esse objeto externo. Carl
Gustav Jung também proporciona estudos sobre símbolos e vivências sobre a
mística. Além disso, procuraremos relacionar o trabalho de Henrique C. de
Lima Vaz, em sua obra Experiência mística e filosofia na tradição ocidental,
com os textos de Lúcia Pedrosa-Pádua e Faustino Teixeira na temática mística,
linguagem e transcendência. Encontramos em Joseph Campbell e Mircea
Eliade, fundamentos teóricos que abordam os mitos e a experiência mística
como categorias constituintes da realidade. E, no campo da hermenêutica
simbólica, transitaremos por Gaston Bachelard como instrumento-teórico capaz
de possibilitar compreensão da linguagem simbólica.
Os caminhos, procedimentos metodológicos, que se pretende seguir
para a resolução do problema desta pesquisa são teóricos. No campo teórico,
desenvolver-se-á uma pesquisa bibliográfica (apresentados os
autores/pesquisadores na justificativa e na bibliografia) que aproxime a questão
da religiosidade, espiritualidade e mística com a questão da cultura. Primeiro,
faremos uma leitura aproximativa para familiarizar com o texto, a partir da lente
dos quatro elementos naturais, ou seja, imaginação material em Gaston
Bachelard. Em seguida, realizaremos a coleta dos trechos da obra Castelo
Interior que indiquem a presença dos quatro elementos naturais, ou seja, a
imaginação material. Dessa forma, será realizado o fichamento da obra e
explorados os trechos conforme a perspectiva da hermenêutica simbólica
baseada em Gaston Bachelard. O terceiro, último passo nesse processo, é
aplicar a metodologia de interpretação, isto é, a hermenêutica simbólica. Dessa
maneira, utilizaremos para essa pesquisa a hermenêutico simbólica na obra
18
Castelo Interior a partir dos estudos sobre a imaginação material em Gaston
Bachelard.
Essa pesquisa está estrutura em quatro capítulos. Sendo que o primeiro
capítulo, intitulado A jornada mística de Santa Teresa d'Ávila no cenário
espanhol do século XVI, tem como proposta apresentar de forma panorâmica o
contexto espanhol do século XVI, discutindo a formação da monarquia
espanhola e suas consequências: a Expansão Marítima e a Revolução
Comercial. Além disso, de forma breve, serão pontuados o Humanismo e o
Renascimento Cultural. A Reforma Religiosa – surgimento do Protestantismo -
e a Contrarreforma Religiosa demarcarão a tensão no cenário religioso. Vale
lembrar que será exposta também a Igreja Católica na Espanha do século XVI,
mostrando a tensão entre política e religião. E, em seguida, apresentaremos a
Espanha mística do século XVI, palco onde se iniciará o percurso espiritual de
Santa Teresa d'Ávila7. Por fim, inicia-se a discussão acerca do perfil da escrita
e as características das obras de Teresa de Jesus.
O segundo capítulo, O teor simbólico dos quatro elementos naturais, tem
como objetivo apresentar a linguagem e suas variações na forma de símbolo,
metáfora, alegoria e signo. Além disso, mostrar a simbolização dos quatro
elementos naturais. O texto concentra sua atenção também na abordagem
histórico-social-simbólica dos quatro elementos naturais, discorrendo sobre
eles a partir da mitologia grega, da Bíblia, da arché para os filósofos da physis.
A presença dos quatro elementos naturais é discutida levando em
consideração o período da Idade Média, por meio do recorte do poema Cântico
ao irmão Sol ou Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, e no período
do século XVI, trabalharemos brevemente com Santa Teresa D’Ávila. No
concernente à literatura, faz-se uma breve explanação da presença dos
símbolos naturais – terra, água, fogo e ar - em Edgar Alan Poe, Shakespeare e
Nietzsche. E, por conseguinte, ele é a plataforma teórica inicial que sustentará
a discussão que será desenvolvida no terceiro capítulo, e apresenta traços
sobre a imaginação material que será desenvolvida no quarto capítulo tendo
como objeto de análise a obra Castelo Interior a partir da lente interpretativa de
Gaston Bachelard. Isto é, o presente capítulo, serve como lente teórica que 7 Santa Teresa de Jesus foi declarada Doutora da Igreja Universal - Igreja Católica – pelo Papa Paulo VI, em 27 de setembro de 1970.
19
iluminará o caminho por onde vamos trilhar nessa pesquisa, e, além disso,
pretende traçar algumas respostas a partir dos fundamentos teóricos sobre a
pergunta: como surgem e desenvolvem no aspecto histórico-cultural-simbólico
– mito, filosofia, espiritualidade e mística - os quatro elementos naturais e qual
o potencial simbólico que eles contem?
O terceiro capítulo, Vislumbrando traços interpretativos do Castelo
Interior, mostra a história da obra Castelo interior e algumas interpretações a
que esta foi submetida ao longo do tempo por diversas áreas do saber.
Elegemos algumas reflexões e análises acerca da obra com a intenção de
mostrar o quão esta é rica e profundo o texto. Para tanto, recorremos à
concepção de linguagem e de símbolo desenvolvida no segundo capítulo para
descrever as explanações, os estudos sobre o Castelo interior de Teresa de
Jesus nesse capítulo.
E, por fim, o quarto capítulo, Castelo Interior: simbolização dos elementos
naturais, tem como proposta inicial promover uma hermenêutica simbólica,
uma interpretação da obra Castelo Interior a partir da imaginação material, isto
é, tendo como lentes interpretativas os quatro elementos naturais investigados
por Gaston Bachelard, como condição para a construção de uma estética em
que o devaneio, o sonho são categorias reais.
Nosso exercício hermenêutico simbólico centra atenção na obra Castelo
Interior, objeto de estudo da pesquisa, e terá como sustentação teórica as
seguintes obras de Gaston Bachelard: A Água e os Sonhos: ensaio sobre a
imaginação da matéria (1999); A Terra e os devaneios do repouso: ensaio
sobre as imagens da intimidade (2003); O Ar e os sonhos: ensaios sobre a
imaginação do movimento (2001); Psicanálise do Fogo (1999). Dessa maneira,
o Castelo Interior será explorado como simbolização dos quatros elementos
naturais que transcendem para o imaginário místico na escrita da obra.
Assim sendo, para tentar atingir nosso objetivo, procuraremos discutir as
seguintes perguntas: quais seriam os elementos naturais principais e
secundários presentes na narrativa mística do Castelo Interior de Santa Teresa
de Jesus? Caso existam os quatro elementos naturais na obra Castelo Interior
de Santa Teresa de Jesus, eles foram conscientes e deliberados? Caso
existam os quatro elementos naturais na obra Castelo Interior de Santa Teresa
20
de Jesus, como se dá o processo de simbolização dos quatro elementos
naturais que transcendem para a narrativa mística na obra Castelo Interior?
Caso existam os quatro elementos naturais na obra Castelo Interior de Santa
Teresa de Jesus, como, no Castelo Interior, os elementos naturais ou
imaginação material assumem uma simbolização que os elevam para o plano
do divino, do mistério, do místico?
21
Capítulo I: A jornada mística de Santa Teresa d'Ávila no cenário espanhol
do século XVI
O presente capítulo tem como proposta apresentar de forma panorâmica
o contexto espanhol do século XVI, discutindo a formação da monarquia
espanhola e suas consequências: a Expansão Marítima e a Revolução
Comercial. Além disso, de forma breve, serão pontuados o Humanismo e o
Renascimento Cultural. A Reforma Religiosa – surgimento do Protestantismo -
e a Contrarreforma Religiosa demarcarão a tensão no cenário religioso. Vale
lembrar que será exposta também a Igreja Católica na Espanha do século XVI,
mostrando a tensão entre política e religião. E, em seguida, apresentaremos a
Espanha mística do século XVI, palco onde se iniciará o percurso espiritual de
Santa Teresa d'Ávila. Por fim, inicia-se a discussão acerca do perfil da escrita e
as características das obras de Teresa de Jesus. No campo teórico,
recorreremos aos seguintes pesquisadores: Pedro Paulo di Berardino, Bernard
Sesé, Lúcia Pedrosa-Pádua, Tessa Bielecki, Leonardo Boff, Frei Betto, Edward
McNall Burns, Elisabeth Reynaud, Ceci Maria Costa Baptista Mariani, Luciana
Ignachiti Barbosa, Luce López-Baralt e Dulce Pansera Espíndola.
Dessa maneira, percebe-se que o fenômeno místico ou a mística pode
ser vinculada à esfera política, econômica e social, por isso a importância deste
primeiro capítulo apresentar, o contexto histórico da formação da Espanha. Por
conseguinte, conhecendo os elementos culturais que formaram a Espanha, é
possível traçar um contorno místico espanhol e, assim, expor o itinerário
místico de Santa Teresa d'Ávila. Com isso, não queremos dizer que a mística
seja mero reflexo desse contexto, no entanto, precisamos ter um ponto de
partida desde os contornos temporal e espacial, para a reflexão.
Ademais, sempre que possível, recorreremos aos textos de Teresa de
Jesus para ilustrar e fundamentar a reflexão.
1.1. Península Ibérica e século XVI
A Europa no século XVI caracteriza-se por grandes mudanças causadas
pela nova configuração na política, na economia, na arte, na ciência, na
22
tecnologia e, sobretudo, na religião. Essas alterações impactaram de maneira
significativa o modo de pensar e sentir o mundo, isto é, na forma e na maneira
de perceber o mundo e a si mesmo no cenário europeu.
Os portugueses introduziram o uso sistemático do conhecimento científico como um activo indispensável para alcançar objectivos políticos geoestratégicos. Tal facto gerou os alicerces do Renascimento científico europeu, e transformou radicalmente a visão do mundo como um planeta composto por massas continentais banhadas por um conjunto de oceanos interligados. Foi graças à expansão marítima portuguesa que surgiu a concepção de um globo terrestre e uma nova cartografia. Apesar das fortes raízes empíricas da expansão portuguesa, do carácter pragmático e do forte improviso, os líderes de Quatrocentos e de Quinhentos desenvolveram a gestão de conhecimento de forma eficiente. Este foi o capital “intelectual” que afirmou um espólio singular que destacou Portugal, elevando-o à escala mundial. São exemplos deste período os primeiros centros de acção de expansão marítima, uma vaga de publicações científicas originais, a revolução na cartografia e na ciência da construção naval e uma evolução da arte militar. (ZAMITH, 2011: 11)
Essas modificações no cenário europeu têm como consequências a
Expansão Marítima, a Revolução Comercial, o Renascimento Cultural, a
Reforma e a Contrarreforma. Junto a essas mudanças, há a crise iniciada no
século XIV na Europa, decorrente da Guerra dos Cem Anos, da propagação da
peste negra e da insegurança nas tradicionais rotas de comércio. Isto é, falta
de mão-de-obra, menor produção, inflação, fome e pirataria. A insegurança
nessas rotas comercias provocara colapso, possibilitando a substituição por
outras rotas comerciais: as rotas marítimas.
1.1.1 A formação da monarquia espanhola: Expansão Marítima e
Revolução Comercial
No ano 711, os muçulmanos invadiram a Península Ibérica, assolando o
reino visigótico cristão. Quase toda a península estava sob o domínio dos
muçulmanos. Acuados, os cristãos fugiram para o norte, formando o reino de
Astúrias. Sete anos mais tarde, os cristãos refugiados nas montanhas de
Astúrias iniciam ações de resistência ao domínio muçulmano, dando origem à
Reconquista.
23
É nesse contexto de mudança e de crise que Portugal se destaca devido
à centralização administrativa, aos interesses econômicos, à ausência de
guerra (os espanhóis lutavam para expulsar os mouros) e ao posicionamento
geográfico estratégico da Península Ibérica, ou seja, ela está situada entre o
oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo e na passagem para o Mar do Norte,
possibilitando que Lisboa e Sevilha se estruturassem como centros comerciais
importantes. O país fica na metade do caminho entre a Itália e o mar do Norte.
Logo, tornou-se um excelente ponto de escala e de abastecimento para os
mercados italianos e flamengos8. Dessa forma, Portugal desenvolveu-se,
levando ao surgimento e à ascensão de um grupo mercantil lusitano, que mais
tarde projetaria a expansão marítima.
Dessa maneira, seduzida pelo crescimento e desenvolvimento do
comércio, a monarquia portuguesa, sob a dinastia de Avis, entende o valor do
comércio para o fortalecimento e progresso do Estado.
Uma das grandes características que marca da Revolução de Avis é o seu confronto com a alta nobreza do reino português, principalmente no que se refere à substituição dos membros de uma aristocracia tradicional, que possuía estreitos laços com a monarquia castelhana, por outros homens cuja linhagem não era tão ilustre e tradicional. Junto a eles, a “arraia miúda”, por outro lado, se mostrou fundamental para o sucesso do movimento de revolução, ganhando reconhecimento como nova força política dentro do reino, sendo incorporada nos mecanismos de poder e administração – como os Concelhos – e passando a ter suas demandas assimiladas pela própria realeza. É preciso ressaltar que a participação destes “miúdos” não se fazia no sentido de uma busca por igualdade, mas sim em função da defesa de seus próprios interesses dentro da sociedade portuguesa, buscando, quando possível, galgar a uma estripe social mais elevada (SOUZA JÚNIOR, 2006: 1-2).
Com esse interesse, o Estado estimula o comércio, tomando medidas,
como a criação da Escola de Sagres9. Essa escola sistematiza o ensino dos
conhecimentos e técnicas de navegação, comandada pelo infante D. Herinque,
filho do rei D. João I.
8 Relativo à região de Flandres, região dos Países Baixos (atuais Bélgica e Holanda), hoje parte norte da Bélgica. 9 O que aconteceu de fato em Sagres não foi uma escola estruturada materialmente. Sagres desenvolveu-se sob forte influência árabe acerca do modo de navegar. Esse local funcionava como centro de estudos vinculados às questões da navegação.
24
Por sua vez, nesse período, a Espanha enfrentava dificuldades internas
e externas: falta de um governo unificado10 e a presença de árabes no sul da
Península Ibérica.
O espírito das Cruzadas11 intensificou as lutas a partir do século XI. Da
Guerra de Reconquista contra os mouros, surgiram os reinos de Leão, Castela,
Navarra e Aragão. Essa guerra implicou um conjunto de lutas empreendidas
pelos cristãos com o objetivo de recuperar o território perdido para os
muçulmanos e expulsá-los da Península Ibérica. A Guerra da Reconquista
durou quase quatro séculos e, nesse período, caíram os centros culturais
árabes: Toledo (1085), Córdoba (1236), Sevilha (1248), Cádiz (1262). Por
último, ocorreu a reconquista de Granada12 (1492).
Com a união de Aragão e Castela (1469), isto é, Fernando de Aragão,
rei de Aragão, casou-se com Isabel de Castela, filha do rei de Castela. Isabel,
com a morte de seu pai, torna-se rainha de Castela e, com isso, o casal decidiu
unir as coroas, originando o reino de Aragão e Castela. Esse fato marca o
primeiro passo para a formação da Espanha Moderna. Em seguida, os reinos
de Leão e Navarra são anexados por Castela e Aragão, além dos novos
territórios cristãos.
Com a união dinástica, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, delinearam um Estado politicamente forte que foi consolidado posteriormente, cujos êxitos foram invejados por alguns intelectuais contemporâneos, como por exemplo o italiano Nicolau Maquiavel. Porém, esse Estado politicamente forte esteve ideologicamente dominado pela inquisição eclesiástica. Os judeus que não se cristianizaram foram expulsos em 1492 e dispersaram-se, fundando colónias hispânicas pela Europa, Ásia e Norte de África. Aí cultivaram a sua língua e escreveram livros em castelhano, emergindo figuras notáveis como o economista e escritor José Penso de La Vega, Miguel de Barrios, Juan de Prado, Isaac Cardoso, Abraham Zacuto, Isaac Orobio e Manuel de Pina. Em Janeiro de 1492 Castela conquista o bastião mouro de Granada, finalizando a etapa política muçulmana peninsular, ainda que uma minoria mourisca aí continuasse a habitar,
10 Até as últimas décadas do século XV, o país estava divido em diversos reinos como Castela, Aragão e Leão. 11 As Cruzadas foram expedições militares organizadas principalmente pela Igreja Católica para reconquistar a região da Palestina, que estava sob o domínio dos muçulmanos desde o século VII. Ao organizar as Cruzadas, a Igreja romana tinha também como objetivo estender seu domínio ao território bizantino, comandado pela Igreja Ortodoxa, a Igreja bizantina criada com o Cisma do Oriente, em 1054, e independente do papa de Roma. 12 A reconquista de Granada (1492) marca a expulsão dos últimos árabes da península,
consolidando a monarquia espanhola.
25
mais ou menos tolerada, até ao reinado de Felipe III. (ZAMITH, 2011,13)
Castela e Aragão ficaram conhecidos como reinos católicos por firmarem
aliança com a Igreja, tendo como objetivo a expulsão dos muçulmanos e
judeus do território espanhol.
No ano de 1492 – reconquista de Granada–, Fernando de Aragão
expulsa os árabes presentes no sul da Península Ibérica e supera a divisão
interna, encerrando o processo de formação da monarquia nacional espanhola.
Dessa maneira, consegue forças para participar das disputas comerciais e da
expansão do mundo colonial. Com isso, no mesmo ano, foi possível patrocinar
a viagem do navegador genovês Cristóvão Colombo.
1.1.2 O Humanismo e o Renascimento cultural
Devido às transformações advindas da Europa Medieval13, faziam-se
necessárias a atualização e dinamização do conhecimento com base nos
estudos que defendiam a lógica dedutiva livremente desenvolvida com base no
exame de textos e na observação dos fenômenos naturais e humanos. Isso,
contrapondo ao pensamento escolástico, que, para os humanistas, discutia
assuntos inúteis, tinha como base o formalismo e a autoridade imposta pelos
“doutores da Igreja”. Conforme Bertrand Russel, “O homem se converte agora
em crítico das suas próprias faculdades”. (RUSSEL, 2001: 242)
O Humanismo tem a concepção de que o ser humano é criatura e
criador do mundo em que vive. Ele constrói a si mesmo. Essa percepção pode
ser encontrada no texto escrito em 1486, Discurso sobre a dignidade do
homem, do pensador italiano Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494), o
qual apresenta a liberdade do ser humano e a capacidade de dominar a
13 A partir do século XI, séculos finais da Idade Média, a Europa Ocidental passou a viver um período de mudança e uma relativa tranquilidade social. Isto é, houve desenvolvimento da agricultura, crescimento populacional e econômico. Além disso, o comércio ganhou impulso devido ao aumento da produção agrícola, ao crescimento do artesanato urbano e ao contato com povos orientais, contribuindo para o desenvolvimento do comércio. Entre os séculos XIV e XV, a Europa Ocidental entra em depressão, em crise, devido à expansão econômica e populacional do século XI. No século XIV, a Europa Ocidental sofre crise no setor de produção agrícola e ocasiona um grave problema de fome e de desnutrição devido à escassez de alimentos; o surgimento da peste negra (1347-1350); guerras e crise social, a exemplo da Guerra dos Cem Anos; crise religiosa e divisão da Igreja, ou seja, o Grande Cisma do Ocidente.
26
realidade. No entanto, não significa que o humanismo negava a existência de
Deus, mas estimulava a reflexão intelectual e livre do indivíduo.
A perspectiva humanista é uma característica intrínseca ao
Renascimento Cultural, ocorrido entre os séculos XV e XVI na Europa, cujas
consequências são as mudanças socioeconômicas ensejadas na Baixa Idade
Média e o processo de urbanização e ascensão de um novo grupo econômico
e social: a burguesia. O foco central do Renascimento foi o humanismo, isto é,
o ser humano como centro do universo, valorização da vida terrena e da
natureza. Em síntese, o ser humano passa a ocupar o espaço central, que, até
então, era dominado pela figura divina.
O Renascimento Cultural ou Renascimento pode ser compreendido
como o primeiro movimento burguês que enfatiza a cultura laica, racional e
científica. Enfim, o Renascimento foi a manifestação artística, filosófica e
científica que tentou enterrar os valores da Igreja Católica.
Observa-se nas artes e nas ciências um renascer do interesse pela cultura secular dos antigos, que marca a ruptura com as tradições clericais da Idade Média. Enquanto a cena medieval esteve dominada por preocupações relativas a Deus, os pensadores do Renascimento se interessaram mais pelo homem. Dessa circunstância extrai o seu nome o novo movimento cultural, o humanismo, a segunda destas grandes e novas influências. Enquanto o Renascimento como um todo afetava diretamente a perspectiva geral da vida, o movimento humanista permanecia no domínio de pensadores e sábios. (RUSSEL,2001: 239-240)
O renascimento artístico inspirou-se nos modelos clássicos greco-
romanos, buscando equilíbrio nas formas e realçando a sensação de leveza,
luz, cor e movimento. Rompe com a perspectiva cultural da Igreja, tendo como
temas a mitologia grega e a romana, explora também, nas artes, cenas do
cotidiano e paisagens naturais, além de valorizar o indivíduo.
Além do renascimento artístico ou cultural, temos também o
renascimento científico, pois, ao longo do século XV e XVI, a ciência europeia
radicaliza com o modo de produzir conhecimento, rompendo com a ótica dos
estudiosos medievais. Esse novo modelo se norteia por meio da valorização da
razão e da experimentação.
O Renascimento Cultural e o Renascimento Científico representaram o
enfraquecimento do monopólio de explicação do mundo pela Igreja Católica.
27
1.1.3 A Reforma Religiosa: protestantismo
A Igreja Católica foi uma poderosa instituição medieval que instruiu o ser
humano sobre como se comportar na vida terrena, tendo como modelo a
cosmovisão cristã e, além disso, orientando as práticas religiosas de matriz
cristã para atingir o paraíso celeste após a morte. A Igreja não só possuía um
enorme poder espiritual, mas também era um mecanismo simbólico de controle
social que almejava controlar a mediação entre os cristãos e Deus. Enfim, o
poder religioso fundamenta a intervenção da Igreja nas relações sociais,
políticas e econômicas. Além de deter esse poder, a Igreja era detentora de um
grande poder temporal. Esse poder temporal, político e econômico fez com que
ela se distanciasse de temas espirituais para centrar sua atenção em riquezas
e prazeres mundanos, tornando aqueles valores mais importantes que a fé.
Por tais motivos, a Igreja passa a sofrer críticas de pensadores como
John Wyclif (1324-1384), sacerdote e professor da Universidade de Oxford. Ele
criticava a corrupção da Igreja, a arrogância da hierarquia eclesiástica,
defendia a livre interpretação da Bíblia e o fim dos impostos clericais.
Nos séculos 14 e 15, surgiram alguns movimentos esporádicos de protesto contra certos ensinos e práticas da Igreja Medieval. Um deles foi encabeçado por João Wycliff (1325?-1384), um sacerdote e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Wycliff atacou as irregularidades do clero, as superstições (relíquias, peregrinações, veneração dos santos), bem como a transubstanciação, o purgatório, as indulgências, o celibato clerical e as pretensões papais. Seus seguidores, conhecidos como os lolardos, tinham a Bíblia como norma de fé que todos devem ler e interpretar.14
John Huss (1371-1415), sacerdote e reitor da Universidade de Praga,
criticou a corrupção do clero e a venda de indulgência.
João Huss (c.1372-1415), um sacerdote e professor da Universidade de Praga, na Boêmia, foi influenciado pelos escritos de Wycliff. Definia a igreja por uma vida semelhante à de Cristo, e não pelos sacramentos. Dizia que todos os eleitos são membros da igreja e que o seu cabeça é Cristo, não o papa. Insistia na autoridade suprema das Escrituras. Hus foi condenado à fogueira pelo Concílio de Constança. Seus seguidores ficaram conhecidos como Irmãos Boêmios (1457) e foram muito
14 Alderi Souza de Matos. A Reforma Protestante do Século XVI. http://www.mackenzie.br/6962.html. Acesso em 17 de agosto de 2015.
http://www.mackenzie.br/6962.html
28
perseguidos. Foram os precursores dos Irmãos Morávios, que veremos posteriormente, outro grupo protestante cujas raízes são anteriores à Reforma do século 16. Outro indivíduo incluído entre os pré-reformadores é Jerônimo Savonarola (1452-1498), um frade dominicano de Florença, na Itália, que pregou contra a imoralidade na sociedade e na Igreja, inclusive no papado. Governou a cidade por algum tempo, mas finalmente foi excomungado e enforcado como herege.15
Durante os séculos XV e XVI, a situação moral da Igreja Católica com as
vendas de indulgências, vendas de relíquias sagradas, vendas de cargos
eclesiásticos, falta de preparo, concubinato, abusos, vida desregrada,
opulência e luxo, provocou insatisfação em toda a Europa Ocidental. Ou seja,
problemas ligados à esfera moral transformaram a Igreja em alvo de
contestações e críticas.
A perspectiva tomista entrava em choque com o capitalismo comercial.
Este tem como modelo e mola motriz o lucro, que contrariava a doutrina
tomista, a qual defendia o “justo preço”: “é difícil não pecar quando se exerce a
profissão de comprar e vender” (LE GOFF, 1991: 71), que significa: a
mercadoria deveria ser comercializada pelo valor da matéria-prima utilizada e
acrescida de outros gastos. Assim sendo, condenando a usura, prejudicava os
ideais da burguesia mercantilista, o progresso do capitalismo. Desse modo,
entrava em choque também com as atividades bancárias.
Dessa maneira, especificamente no século XVI, a Igreja Católica sofre
uma ruptura, uma cisão entre cristãos. Essa ruptura ficou conhecida como
Reforma Protestante. Desse movimento surgiram várias igrejas cristãs,
autônomas e independentes da Igreja Católica, denominadas protestantes. A
Reforma Protestante compreende, de forma ampla, dois movimentos históricos
principais: a Reforma Luterana na Alemanha e a Reforma Calvinista na Suíça,
mas pode abranger também a Reforma Anglicana na Inglaterra.
A Reforma pode ser entendida como clímax de algumas mudanças, por
exemplo, formação e desenvolvimento dos Estados Nacionais, que
enfraqueceu o poder da Igreja Católica. Os interesses econômicos da
burguesia e a influência do humanismo e do movimento renascentista, da
mesma forma, comprometeram o poder da Igreja.
15 Idem.
29
Com a imoralidade da Igreja Católica e por ela possuir mais de um terço
do território da Alemanha, os nobres alemães aspiravam autonomia em relação
a Roma, isso que dizer tomar posse das terras eclesiásticas em território
alemão. Dessa maneira, inicialmente, a Reforma acontece na Alemanha com o
frade agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) que pregava contra os jejuns
apregoados pela Igreja e não comungava das vendas de indulgência e outras
práticas religiosas comumente usuais na época.
A partir de então, a reforma luterana difundiu-se rapidamente no Sacro Império, sendo abraçada por vários principados alemães. Isso levou a dificuldades crescentes com os principados católicos, com o novo imperador Carlos V (1519-1556) e com o parlamento (Dieta). Na Dieta de 1526, houve uma atitude de tolerância para com os luteranos, mas em 1529 a Dieta de Spira reverteu essa política conciliadora. Diante disso, os líderes luteranos fizeram um protesto formal que deu origem ao nome histórico “protestantes”. No ano seguinte, o auxiliar e eventual sucessor de Lutero, Filipe Melanchton (1497-1560), apresentou ao imperador Carlos V a Confissão de Augsburgo, um importante documento que definia em 21 artigos a doutrina luterana e indicava sete erros que Lutero via na Igreja Católica Romana.16
As ideias luteranas propagaram rapidamente pela Europa, por exemplo:
países escandinavos: Suécia, Dinamarca e Noruega. Com isso, os reis desses
países se converteram ao protestantismo.
Os problemas político-religiosos levaram a um período de guerras entre católicos e protestantes (1546-1555), que terminaram com um tratado, a Paz de Augsburgo. Esse tratado assegurou a legalidade do luteranismo mediante o princípio “cujus regio, eius religio”, ou seja, a religião de um príncipe seria automaticamente a religião oficial do seu território. O luteranismo também se difundiu em outras partes da Europa, principalmente nos países nórdicos, surgindo igrejas nacionais luteranas na Suécia (1527), Dinamarca (1537), Noruega (1539) e Islândia (1554). Lutero e os demais reformadores defenderam alguns princípios básicos que viriam a caracterizar as convicções e práticas protestantes: sola Scriptura, solo Christo, sola gratia, sola fides, soli Deo gloria. Outro princípio aceito por todos foi o do sacerdócio universal dos fiéis.17
Na Suíça, a Reforma iniciou com Ulrich Zwinglio (1489-1531), seguidor
de Martinho Lutero e Erasmo de Rotterdam. Destaca-se também na Suíça o
francês João Calvino (1509-1564). Este publicou Instituição da Religião Cristã
no ano de 1536; ele valorizava o trabalho e dizia que somente o trabalho traria
o sucesso material, afirmava que o enriquecimento era uma benção ao 16 Idem. 17 Idem.
30
contrário da pobreza. O calvinismo tinha apoio da burguesia, pois não
condenava o empréstimo de dinheiro a juro como fazia a Igreja Católica e
defendia o acumulo de capital. Dessa maneira, teve aceitação em várias
regiões da Europa, como por exemplo, na Escócia, no norte dos Países Baixos.
A reforma na Inglaterra é liderada pelo próprio rei Henrique VIII (1509-
1547), que assumia postura eminentemente política e econômica. O Cisma
com a Igreja Católica se deu devido ao rei Henrique VIII (1509-1547) desejar
dissolver seu casamento com Catarina de Aragão, que não podia ter filhos, e o
papa se recusar a apoiá-lo no seu divórcio. Mesmo com a recusa do papa, o rei
casa-se com Ana Bolena e, por isso, é excomungado pelo sacerdote. Em
contrapartida, o parlamento inglês aprovou o Ato de Supremacia18 no ano de
1534, marcando o rompimento oficial com a Igreja Católica.
Uma das consequências da Reforma foi a religião ter se tornado mais abertamente uma questão política, muitas vezes apoiada numa base nacional, como na Inglaterra. Evidentemente, isso nunca poderia acontecer enquanto prevalecesse uma religião universal. (RUSSEL, 2001: 239-256)
Enfim, o sucesso da Reforma não se deve a sua superioridade teológica
ou moral, mas às conveniências político-econômicas que aliou os interesses
dos governantes locais com novas pratica morais e teológicas da Reforma.
1.1.4 A Contrarreforma Religiosa: reação da Igreja Católica
O protestantismo avança pela Europa. Ele difundiu-se pelo continente
europeu conquistando um número enorme de seguidores. O movimento,
representado pelos luteranos, calvinistas e anglicanos, estendeu-se pelo norte
da Europa – Inglaterra, Escócia, Alemanha, Dinamarca e Suécia. Os católicos
continuaram com o domínio no sul da Europa: Itália, Portugal e Espanha. Entre
esses dois territórios, existia uma área intermediária assinalada por conflitos,
lutas religiosas que abrangiam o que atualmente é a Polônia, Hungria, Áustria,
18 A Igreja na Inglaterra está sob a autoridade do rei. Os dogmas da Igreja foram mantidos, exceto a autoridade do papa, essa fica com o rei. Os nobres e o rei tornaram-se donos das propriedades da Igreja.
31
Suíça, Holanda e França19. Essas celeumas transformavam-se comumente em
guerras, pois o Estado e a Igreja estavam vinculados.
A Noite de São Bartolomeu, em 1572, entrou para a história como uma das guerras ético-religiosas europeias mais marcantes do século XVI. Fruto da explosiva relação entre Igreja e Estado, o massacre foi planejado sigilosamente pelos líderes católicos franceses (Guises) contra os protestantes huguenotes e calvinistas de Paris, e contou com o apoio da rainha francesa Catarina de Médici, que temia um golpe de Estado. O saldo final desta batalha foi trágico: aproximadamente três mil protestantes foram assassinados (DRUMMOND et al, 2003: 10).
Nas guerras religiosas, os protestantes tinham o apoio de tropas da
Inglaterra, da Dinamarca e da Alemanha. No entanto, os católicos eram
amparados pelo imperador espanhol Filipe II, que perseguiu duramente os
protestantes.
Devido à expansão do movimento protestante e com o intuito de conter o
crescimento da Reforma, a Igreja Católica cria um movimento reacionário: a
Contrarreforma. Não obstante um número significativo do clero e de fiéis
católicos sabia que era necessário promover uma reforma na instituição, pois
era imprescindível abolir os abusos praticados por membros da Igreja Católica.
Além disso, a Igreja precisava reafirmar os princípios, os dogmas da doutrina
católica com vistas a ampliar a fé católica: conquistar novos fiéis e mantê-los
vinculados à fé católica.
A primeira reação da Igreja foi punir Lutero, Calvino e outros líderes do
movimento protestante, no entanto essa postura não obteve resultado
esperado, pois o:
comportamento de Lutero com o quadro socioeconômico alemão, atraindo o apoio da nobreza (príncipes), refletiu poderosamente em suas pregações. São suas as seguintes afirmações: “A maior infelicidade da nação alemã é, sem dúvida, o tráfico de dinheiro (...) O demônio o inventou, e o papa, dando-lhe sua sanção, fez ao mundo um mal incalculável. O comércio com o estrangeiro, que traz mercadorias de Calcutá, da Índia e outros lugares (...) e lava o dinheiro do país, não
19 Para exemplificar as disputas religiosas, podemos apresentar a Noite de São Bartolomeu (assim chamado porque o fato aconteceu, segundo o calendário religioso católico, no dia de São Bartolomeu, um dos apóstolos de Cristo), que ocorreu em 24 de agosto de 1572, quando huguenotes (protestantes franceses) foram mortos em Paris por forças católicas. As guerras religiosas afetavam a vida dos franceses e perduraram por três décadas (1562 até 1598). Os católicos na França eram maioria da população francesa, mas os protestantes eram estrategistas, ou seja, quando perdiam em um local, reorganizavam-se em outro.
32
deveria ser permitido. Teria muito a dizer acerca dos sindicatos comerciais (...) e lá só se encontram cupidez e injustiça” (MOUSINIER, 1973: 89).
Por não atingir resultado satisfatório, a contrarreforma teve que rever
seu método. Fez-se necessário traçar e adotar novas medidas para combater o
protestantismo. O movimento para contê-lo e até mesmo para extingui-lo foi
organizado pelos papas Paulo III (pontífice de 1534 a 1549), Paulo IV (pontífice
de 1555 a 1559), Pio V (pontífice de 1566 a 1572) e Sisto V (pontífice de 1585
a 1590).
Sobre as medidas adotadas, podemos apresentar as seguintes: criação
da Ordem dos Jesuítas, realização do Concílio de Trento e retorno da
Inquisição.
No ano de 1534, o espanhol Ignácio de Loyola, religioso católico e ex-
militar, funda a Companhia de Jesus (conhecida também como Sociedade de
Jesus ou Ordem dos Jesuítas). O papa Paulo III, no ano de 1540, aprova a
criação da Ordem dos Jesuítas e de seus estatutos gerais.
A Companhia de Jesus20 estava organizada na forma militar, os jesuítas
eram vistos como “soldados da Igreja” e tinham a missão primordial de
combater o crescimento do protestantismo. Essa Ordem religiosa teve como
medida a criação de escolas religiosas e catequisar os não cristãos. Os
jesuítas centraram sua atenção no preparo intelectual, no rigor disciplinar e na
educação religiosa conforme a doutrina católica. 20 “A Companhia de Jesus, ou Societatis Iesu, teve início a partir de um pequeno grupo de homens (Afonso Salmeron, Diogo Laines, Francisco Xavier, Nicolau Babdilha, Pedro Fabro e Simão Rodrigues) que se reuniam com Inácio de Loyola, o qual, a exemplo dos demais, estudava na Universidade de Paris, para refletirem sobre os Exercícios Espirituais, obra que Loyola escrevera na década de 1520. Serafim Leite conta que, no dia 15 de agosto de 1534, o grupo reunido na capela de Nossa Senhora, em Montmartre, Paris, resolveu fazer os seguintes votos: castidade, pobreza, peregrinação a Jerusalém, ocupar a vida e forças na salvação do próximo, administração dos sacramentos da confissão e da comunhão, pregação e celebração da missa, “tudo sem estipêndio” (LEITE, 1938, p. 5). Desses votos, não puderam pôr em prática a ida à Terra Santa, considerada por eles como uma verdadeira vocação. Assim, depois das peregrinações pela Espanha e Veneza, foram para Roma onde resolveram fundar a Companhia de Jesus, em 1539. (...). Na realidade, a Ordem é conhecida, seja por Companhia, seja por Sociedade. A primeira nomenclatura indica que os jesuítas estão a serviço do exército de Javé, constantemente prontos para o combate em favor do Evangelho e, é claro, contra o protestantismo e a ignorância; a segunda propõe uma associação de companheiros irmanados pela vocação da qual se dizem comissionados, a de contribuir para a expansão do catolicismo pelo Saber, ad majorem Deum gloriam! [para a maior glória de Deus!]. No ano seguinte, no dia 27 de setembro de 1540, o Papa Paulo III oficializou a Sociedade como ordem eclesiástica por meio da bula Regimini Militantis Ecclesiae. Dez anos mais tarde, em 21 de julho de 1550, a bula Exposcit Debitum, do Papa Júlio III, aprovou a Formula Instituti da Societatis Iesu, confirmando a Companhia de Jesus” (MESQUIDA, 2013: 237-238).
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Em 1545, o papa Paulo II convocou um Concílio Geral da Igreja Católica,
cujas primeiras reuniões aconteceram em Trento, cidade localizada na
Península Itálica. As reuniões não foram contínuas, havendo algumas
interrupções que duraram por um período de 1545 a 1663. Neste Concílio,
ficou condenado o abuso do clero, sendo ele vigiado pelos seus superiores.
Ademais, a doutrina católica foi reafirmada em detrimento das Igrejas
Reformadas, ficando confirmados e defendidos os princípios tradicionais do
catolicismo: os setes sacramentos - batismo, eucaristia, confirmação,
matrimônio, ordenação do sacerdote, penitência, unção dos enfermos. São
celebrados somente pela Igreja Católica -; a manutenção do celibato clerical; o
reforço do culto aos santos também por meio de suas imagens; a reafirmação à
posição do papa como sucessor de São Pedro, a quem Jesus teria confiado a
missão de construir a sua Igreja; a elaboração de um catecismo com os pontos
principais da doutrina católica; a criação de seminários para formação de novos
sacerdotes; o “monopólio” do clero católico na interpretação da Bíblia; a correta
e legítima concessão de indulgências – recomenda-se evitar abuso.
O Concílio defendeu também que a salvação humana dependia de Deus
e das boas ações humanas, contrariando, assim, a doutrina da predestinação;
defendia ainda que a fonte da fé seria o dogma religioso e sua fonte era a
Bíblia; defendeu também que, na missa, Cristo estaria presente no ato da
eucaristia, sendo que essa presença real de Cristo era rejeitada pelos
protestantes.
Com o retorno, os Tribunais da Inquisição21, fundados pela Igreja em
1231 para investigar e punir crimes contra a fé católica sofrem mudanças no
21 “A perseguição à heresia na Europa começa desde que a Igreja Católica se afirma como
mediadora legítima entre os poderes espirituais e os poderes terrenos, isso logo nos primeiros
séculos da Era Cristã. No entanto, ela passa a ocorrer de maneira sistemática, e com apoio em
autoridades constituídas - quer ligadas à própria Igreja, quer aos poderes laicos – apenas no
século XII. Para tal, é mister fazer menção à centralização da Igreja enquanto instituição, que
começa a tomar forma por essa mesma época – logo se percebe que os dois movimentos
estão interligados. Podemos rastrear o zelo pela ortodoxia a partir dos principais Concílios
Gerais da Igreja, cada um deles procurando responder a demandas específicas para a
manutenção do poder e da liberdade sacerdotais. No que se refere à Inquisição, cito apenas
algumas medidas de alguns deles que já nos dão uma clara ideia da progressão desse
problema. O primeiro Concílio de Latrão (1139) já prevê a ordem de perseguição de hereges
(mais precisamente os cátaros do Languedoc) pelo poder secular, o que já permite uma pausa
para considerações importantes, pois por trás disso estão questões de doutrina religiosa, como
a proibição de derramar sangue que cai sobre todo clérigo secular e regular. De fato, a Igreja romana teve nos imperadores e reis sempre fortes apoiadores, muitas vezes chamados de
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ano de 1542. Essas alterações foram provocadas pelo papa Paulo III, que
iniciou a alteração na Inquisição, a qual, além de perseguir os hereges, judeus
e bruxas, passou a se voltar contra os protestantes. Os tribunais, com o passar
dos tempos, diminuíram suas ações em vários países. No entanto, fazia-se
urgente reativar a Inquisição com o propósito de conter os avanços do
protestantismo, conforme foi decidido em meados do século XVI, pela alta
hierarquia da Igreja e por alguns governantes católicos.
Uma das medidas dos inquisidores foi a criação do Index Librorum
Prohibitorum, isto é, eles organizaram uma lista de livros que, se fossem
inseridos nessa listagem, estariam proibidos de serem lidos pelos católicos.
Essa lista construída pela Igreja censurava obras de artistas, cientistas,
filósofos e teólogos; enfim, era proibido pensar contra a doutrina católica. Um
dos pensadores, por exemplo, cuja obra estava no Index foi Galileu Galilei.
O papa autorizava o uso de tortura como procedimento para conseguir a
confissão dos acusados. Nicolau Eymerich, em sua obra Manual dos
inquisidores, escrito em 1376 e atualizado em 1578, afirma:
A finalidade da tortura é obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala. Podem-se qualificar de sanguinários todos os juízes de hoje, que recorrem tão facilmente à tortura, sem tentar, através de outros meios, completar a investigação. Esses juízes sanguinários impõem tortura a tal ponto que matam os réus, ou os deixam com membros fraturados, doentes para sempre. O inquisidor deve ter em mente que: o acusado deve ser torturado de tal forma que saia saudável para ser libertado ou para ser executado. (EYMERICH, 1993: 210-211)
Por fim, podemos entender que Contrarreforma somente teve efeito
naqueles países que permanecem fiéis à Santa Madre Igreja.
1.2. A Igreja católica na Espanha do século XVI: política e religião
ministri Ecclesiae pela colaboração que prestavam aos papas na garantia de condições
materiais e espirituais para a salvação das almas de seus súditos. A eficácia dessa
colaboração está sujeita à resolução de uma série de pontos de conflito – muitos deles nunca
chegariam a ser esclarecidos. Mas devemos reter essa questão para o momento, que virá, de
refletir sobre o caráter duplo da Inquisição e a ingerência de reis sobre suas atribuições”
(SCHULZ, 2013).
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A Espanha do século XVI é reflexo do contexto europeu no qual está
inserida. Pensar a Espanha neste século é olhar para um país onde vários
vetores convergem para ele, como a presença da Igreja Católica e sua política
de reação ao protestantismo.
No ano de 1500, Fernando e Isabel, com a unificação dos territórios,
haviam transformado a Espanha em um reino poderosíssimo.
Em 1516, o reino foi herdado pelo neto dos Reis Católicos, Carlos I, cujo pai fora um Habsburgo. Três anos mais tarde, Carlos foi eleito imperador do Sacro Império Romano como Carlos V, com que uniu a Espanha à Europa central e ao sul da Itália. Carlos se interessava não só pelos destinos da Espanha, mas também pelo bem-estar da Igreja e pela política europeia como um todo. Sonhava poder ser o instrumento para a restauração da unidade religiosa da cristandade, rompida pela revolução protestante, e fazer do império por ele presidido um digno
sucessor da Roma imperial. (BURNS et al., 2001:439)
No ano de 1556, Carlos V, com 56 anos de idade, renuncia ao trono,
dividindo o território em duas partes, ficando as terras da Alemanha e da
Áustria com seu irmão Fernando e o território da Espanha com suas colônias,
os Países Baixos e regiões da Itália para o seu filho Filipe II (1556 – 1598).
Filipe II chegou ao trono da Espanha no apogeu da glória nacional. No entanto, também assistiu ao começo de seu declínio, e em parte foi responsável por ele. Suas políticas foram, sobretudo, uma intensificação das de seus sucessores. Era homem de espírito despótico e cruel. Resolvido a impor rigorosa uniformidade em matéria de religião a todos os súditos, consta ter afirmado que juntaria lenha para queimar na fogueira seu próprio filho se ele fosse culpado de heresia. Por conseguinte, estimulou a violência da Inquisição espanhola e lançou a guerra pela supressão da revolta religiosa nos Países Baixos. (BURNS et al., 2001:439)
Pelos fatos mencionados acima, podemos entender que pensar a
Espanha do século XVI é vislumbrar uma atmosfera composta pelos dogmas e
pelas doutrinas católicas e, sobretudo, pelo espírito da Cruzada e da
Inquisição, tendo como um só corpo representando a união: o vínculo entre o
Estado e a Igreja, ou seja, a espada e a cruz.
Em 1515, quando Teresa vem ao mundo, os Reis Católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão estão prestes a legar a seu neto Carlos V, no ano seguinte, uma Espanha coberta de saber, de riquezas e
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misérias, e dotada de um temível instrumento de poder a serviço da realeza católica: a Inquisição. No século de Ouro, a Espanha tem o rosto pálido e cruel do Grande Inquisidor. E verga ao peso de um mar de ouro e prata, fruto da conquista das “Índias”. Brande numa das mãos um crucifixo e na outra uma espada ensanguentada, com toda a ira de uma velha rainha enfurecida. (REYNAUD, 2001:19)
É nesse contexto histórico-social, econômico, político e religioso que
nasce Teresa de Cepeda y Ahumada, conhecida pela Igreja Católica como
Santa Teresa de Jesus, após fundar o mosteiro de São José de Ávila.
1.2.1. A Espanha mística do século XVI
A Espanha do século XVI vivencia uma atmosfera de reforma espiritual
que implica a tensão entre vários fluxos de pensamentos espirituais, como:
corrente dos espirituais; Escola de Salamanca; movimento anti-místico;
inquisição; experiência versus teologia; alumbrados; erasmistas; cosmologia e
religiosidade popular: espírito de sacralização, crença nos demônios; o estudo
da Bíblia; a patrística com São Jeronimo, São Gregório Magno, Santo
Agostinho; os franciscanos; os dominicanos e os jesuítas. Cada um desses
movimentos e seus personagens influenciaram e marcaram profundamente a
Espanha mística no século XVI, sobretudo, o olhar, a ausculta e as mãos de
Teresa de Jesus. Enfim, é nesse contexto histórico e nessa efervescência
político-religiosa-cultural que se constituiu o ar que Santa d’Ávila respirou, ora
direta, ora indiretamente.
A vida de Teresa de Jesus (...) transcorre fundamentalmente em dois períodos distintos da história sociopolítica e espiritual espanhola. O primeiro, um período de reforma que se estende pelo período imperial de Carlos V (1530-1556). O segundo, o período polêmico e tenso de Felipe II (a partir de 1557 até a morte de Teresa). O primeiro gestará a mulher que terá sua obra e atuação desenvolvidas no segundo período. Teresa de Ávila interage com os desenvolvimentos de sua geração – condição judeo-conversa de sua família e a condição feminina são fatos relevantes – e com os acontecimentos de sua sociedade e Igreja, refletidos de maneira significativa em seu espaço geográfico, a cidade castelhana de Ávila, então com cerca de 7.800 habitantes. Essa interação faz de Teresa uma filha de seu tempo. (PÁDUA-PEDROSA, 2015:31-32)
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As reformas espirituais são populares, universais, e têm como foco
principal a procura da interioridade e uma espiritualidade que tem como
propósito a união com Deus, e isso implica perdão, sabedoria e amor. Com
isso, as práticas de oração tornam-se uma busca, por conseguinte, surgem
mestres da oração com seus métodos, ensinamentos e obras, como: Santo
Inácio de Loyola, García de Cisnero, Alonso de Madrid, Francisco de Osuna,
Bernabé de Palma, Bernardino de Laredo, Ortiz. Dessa maneira, vivencia-se a
prática da oração mental e a valorização da vida mística. Os franciscanos, os
beneditinos e os dominicanos são as Ordens religiosas que promovem a
reforma espiritual a qual centra a sua atenção na interioridade, na pobreza e na
austeridade. As universidades também sofrem reformas buscando novos
recursos para o ensino teológico. Para tanto, recorrem aos estudos filológicos e
históricos para renovar o ensino teológico em Alcalá – onde se construirá a
primeira edição da Bíblia Poliglota –, em Valência e em Salamanca (CONGAR,
1981).
A obra Exercitatorio de la vida espiritual, escrita pelo Monge beneditino
García de Cisnero, em 1500, introduz a devotio moderna22 na Espanha
influenciando de maneira decisiva a espiritualidade emergente. É marcante o
desenvolvimento da imprensa nesse período e sua relação com a
espiritualidade emergente, assim escreve Pádua-Pedrosa:
Essa nova espiritualidade é, em seu primeiro momento, sistematizada e publicada entre 1521 e 1535, e tem por principais autores os
22 “No início do século XIV, manifesta-se nos Países Baixos novo movimento, animado por G. Groote e chamado, depois, por G. Bush, de Devotio moderna. Conhece seu período de ouro no séc. XV. Logo, porém, experimenta o declínio, absorvido por outras escolas ou formas de vida angélica (...) liturgia fosse celebrada regularmente, ela se desenvolvia sem solenidade. Os irmãos das comunidades deviam assistir a ela em silêncio, privilegiando as disposições pessoais de recolhimento e serenidade interior. Apesar de J. Ruysbroec ter exercido influência sobre alguns membros desse movimento, ele não se dedicou à mística, como foi exemplicado por Tauler e Eckhart; aliás, insistiu na aquisição de várias virtudes e num método de metidação muito concreto e minucioso. Entrou em conflito com várias Ordens religiosas, como os beneditinos e os dominicanos, mas os jesuítas herdaram vários de seus elementos. (...). Chama-se ‘moderna’ não porque traçou um novo caminho de espiritualidade ou quis introduzir novos métodos, mas porque exaltava a purificação da alma e o crescimento nas virtudes. Opunha-se às penitências extraordinárias e tradicionais. Sublimava, antes de tudo, um aspecto decididamente anti-intelectualista e antiescolástico; aplicava-se à parte afetiva da espiritualidade, centrada na pessoa de Jesus, mais do que na meditação dos atributos divinos. O tratado clássico A imitação de Cristo, o livro religioso mais difundido, depois da Bíblia (...)” (BORRIELLO; CARUANA; DEL GENIO; SUFFI, 2003: 323) e “Os autores da devotio moderna Tomás de Kempis, Dionísio Cartuxo, Landulfo da Saxônia, Mombaert e Groote foram amplamente lidos na Espanha, antes mesmo de 1500 (...)” (PÁDU