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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Eduardo Augusto Arteiro de Faria
A licença urbanística como instrumento de política urbana
Mestrado em Direito
São Paulo
2019
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Eduardo Augusto Arteiro de Faria
A licença urbanística como instrumento de política urbana
Mestrado em Direito
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito, área de concentração Efetividade do Direito, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Daniela Campos Libório.
São Paulo
2019
Banca Examinadora
_________________________
_________________________
_________________________
Agradeço aos meus pais.
Agradeço em especial à minha mãe, pelo apoio sempre presente e exemplo de vida.
Agradeço à Professora Daniela Libório, pelos ensinamentos e imensa generosidade
demonstrada desde meu primeiro ano de graduação.
Estendo também minha gratidão aos Professores Mariana Mencio e Nelson Saule,
por suas críticas e franca avaliação na fase final deste trabalho.
Agradeço, enfim, a todos os colegas, da prefeitura, da graduação e do mestrado,
que compartilharam comigo alguns dos importantes passos dados nesta trajetória.
Resumo
A presente dissertação aborda a licença urbanística sob a ótica da política urbana,
tendo por objetivo verificar quais aspectos e caracteres se manifestam em seu
regime jurídico a partir dessa perspectiva. Através de consulta à principal doutrina e
legislação de referência, o estudo parte da identificação do surgimento do controle
urbanístico nas cidades, traçando um breve panorama quanto às atividades
urbanísticas de controle no Direito Brasileiro, destacando as competências definidas
em nível constitucional e as diretrizes trazidas pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal
nº 10.257/01). Diante da ausência de definição legal, desenvolve-se proposta de
delimitação conceitual das licenças urbanísticas, evidenciando seu traço distintivo e
verificando quais os princípios e valores incidentes, seus fundamentos, espécies, e
as peculiaridades da disciplina. Será destacada a importância da figura como
principal instrumento de controle das intervenções materiais na cidade, através do
qual se efetivarão as limitações urbanísticas definidas nos planos locais para a
transformação e qualificação dos cenários urbanos, sempre em adstrição aos
objetivos da política urbana traçados em nível constitucional.
Palavras-chave: Licença urbanística. Política urbana. Controle urbanístico.
Abstract
The present work approaches the “urbanistic permits” (building permit), from the point
of view of urban politics, aiming at verifying which aspects and characteristics are
manifested in its legal regime. Researching the main doctrine and legislation, the
study starts from the identification of the development of urban control in the cities,
giving a brief overview of “urban control” activities in Brazilian Law, highlighting the
competences defined at constitutional level and the guidelines brought by the
Federal Law n. 10.257 / 01. Considering the absence of legal definition, it will be
developed a proposal for conceptual delimitation of urbanistic permits, showing its
distinctive trait and verifying the principles and values involved, its legal foundations,
species, and the peculiarities of the discipline. It will be highlighted the importance of
the figure as the main instrument of control of material interventions in the city,
through which urban limitations defined in the local plans are concretized, for the
transformation and qualification of urban settings, always in line with urban policy
objectives drawn at constitutional level.
Key-words: Urbanistic permit. Urban policy. Urban control.
Sumário
Introdução ................................................................................................................ 8
1 Noções iniciais sobre a evolução do controle urbanístico .............................. 11
1.1 As cidades antigas e o controle construtivo .................................................... 11
1.2 As cidades pós-industriais e a evolução do controle construtivo ..................... 13
1.3 O controle urbanístico ..................................................................................... 18
1.3.1 O controle do solo urbano e o zoneamento .............................................. 18
1.3.2 A superação do Estado Liberal e a consolidação do controle urbanístico . 20
2. Política urbana e atividade urbanística de controle do solo no Brasil ........... 25
2.1 A política urbana ............................................................................................. 26
2.1.1 Conceito ................................................................................................... 26
2.1.2 Objetivos e princípios da política urbana .................................................. 30
2.1.2.1 O planejamento e a política urbana .................................................... 34
2.2 A atividade urbanística de controle do parcelamento, uso e ocupação do
solo ....................................................................................................................... 36
2.2.1 Competência para a atividade urbanística de controle .............................. 39
2.3 As diretrizes do Estatuto da Cidade para as licenças urbanísticas .................. 42
3 Regime jurídico das licenças ............................................................................. 47
4 A licença urbanística .......................................................................................... 53
4.1 Conceito ......................................................................................................... 53
4.1.1 Traço distintivo ......................................................................................... 60
4.2 O fundamento das licenças urbanísticas - as limitações urbanísticas à
propriedade .......................................................................................................... 63
4.2.1 Função social da propriedade ou Poder de Polícia? ................................. 65
4.3 Caracteres e elementos da licença urbanística ............................................... 72
4.4 Princípios ........................................................................................................ 78
4.4.1 Planejamento ............................................................................................ 80
4.4.2 Sustentabilidade urbana ........................................................................... 82
4.4.3 Acessibilidade ........................................................................................... 84
4.4.4 Gestão democrática das cidades .............................................................. 85
4.5 Espécies ......................................................................................................... 87
4.5.1 Licenças edilícias ...................................................................................... 89
4.5.2 Licenças de localização, funcionamento e habitação ................................ 92
4.5.3 Licença de parcelamento, remembramento ou desdobro ......................... 95
5 A licença urbanística como instrumento de política urbana ........................... 98
5.1 Os princípios e valores da política urbana como orientação à regulamentação
e expedição da licença urbanística ...................................................................... 98
5.2 Possibilidade de se estabelecer contrapartidas ou outros deveres voltados ao
interesse urbanístico .......................................................................................... 103
5.3 Amplo controle social e possibilidade de participação dos interessados nos
processos de licenciamento ............................................................................... 106
5.4 Atributos e características diferenciadas das licenças urbanísticas em relação
às licenças administrativas em geral .................................................................. 107
5.5 Vinculação da licença urbanística a outros instrumentos de política
urbana ............................................................................................................... 108
5.6 Controle externo da licença urbanística diante dos valores da política
urbana ............................................................................................................... 109
5.7 Comentários finais quanto à importância dos aspectos da licença urbanística
como instrumento de política urbana ................................................................. 115
Conclusão ............................................................................................................ 117
8
Introdução
Partindo do reconhecimento da relevância da licença urbanística como o
principal instrumento de controle das intervenções materiais nas cidades, o que se
pretende ao longo das páginas seguintes é desenvolver uma análise jurídica dessa
figura que ultrapasse a abordagem restrita ao Direito Administrativo, para analisá-la
também sob a perspectiva da política urbana e do Direito Urbanístico Brasileiro e
toda a carga axiológica decorrente.
O objetivo é qualificar a análise das licenças urbanísticas, reforçando
suas peculiaridades em relação às licenças administrativas em geral (que vão além
da simples especificidades de seu objeto), verificando como a vinculação à política
urbana reflete em seu próprio regime jurídico, incluindo os requisitos para a sua
emissão, princípios incidentes e caracteres.
Para isso, em um primeiro momento, será traçado um breve quadro do
histórico do controle das intervenções urbanas, desde seus primeiros registros
(ainda sem um controle prévio sistematizado), até a identificação de atos estatais
próprios ligados à ordenação da cidade. Em seguida, a atenção será voltada ao
ordenamento nacional, para trazer ao trabalho a uma breve noção da política urbana
no Brasil, e verificar como o controle edilício é tratado pelas diretrizes gerais do
Estatuto da Cidade. Após, passando brevemente sobre a visão tradicional do regime
jurídico geral das licenças no Direito Brasileiro, serão esmiuçados os princípios,
valores e caracteres próprios da licença urbanística, para ao fim traçar
considerações sobre sua identificação como instituto próprio, e sua expressão como
instrumento de política urbana.
Ao final, espera-se que as contribuições e reflexões traçadas ressaltem a
importância do controle urbanístico na gestão das cidades, provocando reflexões e
maturando a análise jurídica da licença urbanística sob a ótica proposta, sempre na
busca pelo incremento do quadro teórico e jurídico que permita a busca por cidades
mais justas, acessíveis e sustentáveis.
9
Breves notas quanto ao corte temático adotado
Para aclarar devidamente o objeto do trabalho que se inicia, cabe ainda
tecer algumas observações quanto à abordagem adotada para seu
desenvolvimento, por opção temática e metodológica.
Por primeiro, há que se ressaltar que não se ignora que as cidades
brasileiras apresentam elevado quadro de informalidade, construída a despeito de
qualquer licenciamento ou através de licenças emitidas por meio de procedimentos
irregulares. No entanto, sem prejuízo dessa realidade e de toda a problemática
decorrente, o presente trabalho se restringirá à análise jurídica da licença
urbanística, instrumento de controle formal das intervenções na urbe. Um estudo
que pretendesse avançar sobre a produção informal das cidades (construções ou
loteamentos irregulares ou clandestinos), além de exigir metodologia diversa,
demandaria também por uma análise que ultrapassasse o estudo jurídico (ainda que
no presente não nos furtemos a certas observações de caráter metajurídico).
Ademais, entende-se que restringir o presente estudo ao instrumento de licença já
será relevante para aprimorar as bases teóricas a respeito do controle da construção
das cidades, eventualmente servindo de provocação a outras reflexões, na produção
de uma cidade mais justa e sustentável.
Por outro lado, também importante ressaltar que a dissertação deixará de
despender demasiada atenção a questões ligadas ao direito subjetivo dos
particulares, aí incluído o direito de construir, questões reiteradamente debatidas
como o direito adquirido, direito de protocolo e responsabilidades dos particulares na
atividade construtiva, valendo apenas a remissão a trabalhos que já se detiveram
sobre tais temas, referenciados em nosso rol bibliográfico. A abordagem aqui
desenvolvida tem por enfoque o caráter da licença urbanística como instrumento de
controle, de política urbana, portanto, sob o prisma do Poder Público.
Fechadas as observações quanto ao corte temático deste trabalho, vale
uma última advertência. Ante a inexistência de uma delimitação doutrinária ou legal
clara das licenças urbanísticas, utilizar-se-á como ponto de partida a acepção geral
apresentada em seu emprego comum - ato prévio de controle ligado à ordenação da
cidade (já empregada acima) -, até uma final abordagem de seu conceito.
10
Deixa-se a sua conceituação reservada a capítulo próprio deste trabalho,
eis que sua adequada definição, especialmente sob a ótica proposta, dependerá de
uma breve análise de sua evolução, o escopo de seu surgimento, e delimitação de
seu objeto. Aproxima-se, então, mais dos resultados deste trabalho que de suas
premissas.
11
1 Noções iniciais sobre a evolução do controle urbanístico
Após os esclarecimentos introdutórios sobre a abordagem deste trabalho,
mister trazer algumas noções iniciais à temática, apresentando brevemente o
histórico do controle construtivo nas cidades, desde sua remota evolução até a
instituição de atos de controle prévio ligados à ordenação do solo urbano1. O
objetivo aqui será apresentar o escopo do surgimento - e a própria noção - daquilo
que se entende por controle urbanístico.
1.1 As cidades antigas e o controle construtivo
A atividade construtiva (aqui tomada em seu mais amplo sentido) é
intrínseca ao desenvolvimento humano e essencial à formação das cidades. A
alteração de uma dada realidade, do status natural para as conveniências do
homem, faz parte do desenvolvimento da sociedade. Seja como elemento religioso,
cultural, para a habitação, ou proteção do ser humano e de seus bens das
intempéries naturais, a história ensina que a atividade constritiva se manifesta em
diferentes civilizações, ainda que com significativas variações em sua organização e
estrutura2.
Um dos primeiros compilados normativos escritos de que se tem notícia, o
Código de Hamurabi (COSTA, 2004, p. 729-736), já previa sanções para aquele o
construtor de casas que, por vício de construção, viessem a desabar, ferindo
pessoas ou destruindo bens. Trata-se de preocupação com a solidez das
edificações, registrado ainda de forma primária na antiga Babilônia, Mesopotâmia,
por volta do ano 1.800 ac., seguindo aquilo que se designou por princípio de tailão3.
1 Com maior dedicação ao histórico do controle edilício nas cidades europeias, em especial diante da
influência do direito europeu-ocidental no sistema jurídico brasileiro, desde o próprio regime colonial. 2 Historicamente se entende que o surgimento das primeiras cidades se deu com o abandono do
nomadismo e o sedentarismo do homem, mas sem precisão exata de tempo e local. Há registros de cidades já por volta de 6.000 a.c., com a realização de obras comunitárias, utilização de galerias de esgotos, sistema de água e drenagem e tubulações, reservatórios, aquedutos (DIAS, 2007, p. 74). Já aí a atividade construtiva, com distintas técnicas, se manifesta como pressuposto para o desenvolvimento dessas cidades. José Afonso da Silva (2008, p. 20) menciona também as cidades antigas do oriente médio, da Grécia e das Américas como registros históricos de organizações urbanas. Todavia, tais fenômenos não se confundem com a concepção pós-industrial de cidade, cuja referência inicial é a Europa do século XIX (v. SILVA, p. 20). 3 Citando Sonia Hirt, Marcelo Alexandre Juliano (2016, p. 19) anota que regulamentos edilícios
estiveram presentes em diversas culturas desde as civilizações do Indo (Harappa, Mohenjo-Daro) e antigo Egito, passando pela China, Grécia (Porto de Pireu, cujo plano de autoria de Hippodamus, foi
12
Indo além da solidez das edificações, porém, cidades pré-históricas ou da
antiguidade já apresentavam algum nível de planejamento e ordenação, com
normas que de alguma maneira procuravam regular as edificações e seus usos -
especialmente em relação a atividades consideradas de potencial nocivo (JULIANO,
2016, p. 18). A regulação e promoção dos empreendimentos nas cidades antigas
variam conforme as características de cada uma daquelas sociedades.
José Afonso da Silva ensina, por exemplo, que o alinhamento de edifícios
como exigência urbanística já era registrado na Antiguidade Clássica. Na Roma
antiga, chegaram-se a prever regras de cunho urbanístico, limitando a altura de
edifícios e impondo recuos entre as edificações (SILVA, p. 27). Algumas das
premissas foram mantidas na Idade Média (apesar de sua tendência “antiurbana”) e,
no período da Renascença, havia forte preocupação com o embelezamento das
construções (SILVA, p. 28).
José Roberto Castilho afirma que em Roma, na verdade, havia aquilo que
se entende por “direito de vizinhança”, que também tratava da ocupação do solo,
mas sob outra perspectiva (n.p., Cap. 3.2). É o que também ensina Sílvio Venosa
(2018, p. 176):
Arraiga-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua. A Lei das XII Tábuas projeta, na verdade, a noção jurídica do ius utendi, fruendi et abutendi. Considerava-se o domínio sobre a terra de forma absoluta. (...). Apenas na época clássica o Direito Romano admite a existência de uso abusivo do direito de propriedade e sua reprimenda. O Digesto já reconhece direitos de vizinhança, mas o elemento individual
ainda é preponderante4.
Por direito de vizinhança, entende-se as limitações ao exercício de direito
de propriedade voltadas ao interesse privado, entre os proprietários de lotes
confrontantes. O fundamento é a contraprestação e o respeito mútuo entre os
direitos de propriedade dos vizinhos, ou seja, a própria propriedade. Protege-se o
imóvel contíguo não como decorrência de uma percepção de bem-estar coletivo,
citado tanto por Platão como por Aristóteles, que considerava o autor como “inventor da arte de planejar cidades”. 4 “A noção de propriedade imobiliária individual, segundo algumas fontes, data da Lei das XII Tábuas.
Nesse primeiro período do Direito Romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixa-se o costume de conceder sempre a mesma porção de terra às mesmas pessoas ano após ano. Ali, o pater famílias instala-se, constrói sua moradia e vive com sua família e escravos” (VENOSA, 2018, p. 176).
13
mas em reconhecimento à necessidade de se preservar a propriedade em si
mesma. Não há uma dimensão voltada ao social ou coletivo, portanto.
Em todo caso, para além da vizinhança, esse percurso acelerado pela
história mais remota revela que aquelas normas esparsas refletiam preocupações
ainda limitadas ao arruamento ou alinhamento das construções, ou ainda voltadas a
sua estética ou segurança5. Não se confundem, portanto, com a regulamentação
das intervenções urbanas que seria desenvolvida a partir do fenômeno da
urbanização visto no final do séc. XIX em diante, que atrai nova problemática pela
própria realidade que se impõe, com um inédito crescimento populacional,
surgimento do proletariado urbano, desigualdade socioespacial, poluição, gestão de
resíduos, mobilidade, habitação, enfim, que se sucederiam ao processo de
industrialização e adensamento nas cidades.
Por tudo isso, José Afonso da Silva (2008, p. 28) ensina que até a
ocorrência desse processo de urbanização, aquelas limitações construtivas refletiam
ainda um urbanismo primitivo e empírico, desatreladas de uma técnica complexa e
interdisciplinar, o que só veio a ocorrer no enfrentamento das questões trazidas pelo
fenômeno urbano pós-industrial.
1.2 As cidades pós-industriais e a evolução do controle construtivo
Chama-se atenção para dois processos marcantes nessa fase: primeiro, o
desenvolvimento do mercantilismo desde o séc. XV, com a concepção burguesa-
liberal, que evocava os princípios romanos da propriedade privada, tendo a
revolução francesa como marco histórico (1789); segundo, a revolução industrial e
tecnológica, que permite a produção em massa, com o crescimento industrial e a
consequente concentração de mão de obra nas linhas produtivas, além dos avanços
das técnicas construtivas.
Tais processos, não necessariamente independentes, correspondem aos
prismas essenciais do desenvolvimento das cidades pós-industriais. De um lado, a
propriedade privada (móvel ou imóvel) consagrada e sendo explorada, permitindo a
produção desenfreada de indústrias no ambiente urbano, surgimento da sociedade
5 Menciona-se, por exemplo, que, após o incêndio de Londres de 1666, passou-se a estabelecer
regras mais rígidas quanto aos materiais utilizados nas edificações, bem como a proibição de vielas estreitas com edificações próximas (JULIANO, 2016, p. 19).
14
urbana (o proletariado urbano), acentuação das desigualdades sociais, construção
de habitações, etc. De outro (resultado da revolução industrial e tecnológica), as
cidades, que superam o perfil de simples centro comercial, com o rápido crescimento
e adensamento..
A explosão populacional nas cidades teve por consequência o surgimento
de questões ligadas à ausência de saneamento básico, atendimento à saúde,
abastecimento alimentar e habitação salubre aos trabalhadores urbanos (DIAS,
2007, p. 76). Citando Jorge Wilheim, José Afonso da Silva ensina que a urbanização
(concentração urbana) transformou os centros urbanos em “grandes aglomerados
de fábricas e escritórios permeados de habitações espremidas e precárias” (2008, p.
26). Dentre as consequências, menciona, por sua vez, a deterioração do ambiente
urbano, a desorganização social, com carência de habitação, desemprego,
problemas de higiene, modificação da utilização do solo e transformação da
paisagem urbana (SILVA, 2008, p. 27).
Em um primeiro momento, a resposta a tais questões não vão muito além
do controle edilício já existente na antiguidade. Tratam-se de limitações pontuais à
propriedade, de caráter excepcional e normalmente de cunho negativo (estabelecia-
se um “não fazer” aos particulares). São características marcantes daquilo que
posteriormente se designou por Poder de Polícia (que abordaremos mais
vagarosamente em capítulo sequente)6. Tais limitações, todavia, tinham caráter
excepcional, e se davam em um contexto jurídico em que valores máximos eram a
propriedade e a segurança individual (v. Artigo 2º da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão, 1789). Com efeito, as conquistas das liberdades individuais
frente ao Estado - o Estado de Direito - não poderiam ser ameaçadas.
O Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. Em consequência, tudo o que significasse uma interferência nessa liberdade deveria ter um caráter excepcional.
A regra era o livre exercício dos direitos individuais amplamente assegurados nas Declarações Universais de Direitos, depois transpostos para as Constituições; a atuação estatal constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem
6 A doutrina anota que o termo “policy power” foi primeiro utilizado em 1827, no caso “Brow versus
Maryland”, por Marsall, em julgamento na Suprema Corte dos Estados Unidos, relativo à possibilidade do Estado impor limites às atividades dos cidadãos (CRETELLA JUNIOR, p. 263 e 284, 2000) .
15
pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia de segurança (PIRES, 2006, p. 202).
A França é um exemplo disso e da evolução pela qual o controle das
edificações foi experimentando naquele período. O Código de Napoleão (1804), ao
tratar da propriedade como direito absoluto (Art. 544), resgatava sua acepção
romana (jus utendi, fruendi, abutendi e rei vindicatio), prevendo restrições voltadas à
disciplina de eventuais interesses divergentes entre vizinhos. Em última instancia,
tais limitações refletem a consagração da propriedade como valor máximo no Estado
Liberal, eis que mesmo as suas excepcionais restrições estavam voltadas ao seu
reconhecimento e proteção (ainda que em vista da propriedade alheia).
Contudo, com o desenvolvimento da industrialização e a intensificação da
urbanização, as restrições vão paulatinamente incorporando valores decorrentes de
reflexões voltadas ao bem-estar na urbe, ainda que incipientes7.
Já em 1810, a instalação de indústrias poluidoras em certos distritos
daquele país passa a ser submetida a controle prévio do Estado Napoleônico
(conforme determinado por Decreto Imperial), o que já se aproxima da ideia central
de licença - controle prévio -, esboçada em nossas notas introdutórias. Na mesma
época, o governo prussiano emitiu legislação semelhante (JULIANO, 2016, p. 21).
A disciplina da intervenção no solo urbano, todavia, ainda estava
desatrelada de um processo de ordenação e planejamento do desenvolvimento das
cidades (não havia um urbanismo propriamente, ainda que a conjectura para seu
surgimento já estivesse colocada).
À medida em que o próprio cenário urbano ganha nova complexidades,
as reflexões quanto aos problemas decorrentes da urbanização vão se
desenvolvendo, assim como a necessidade de se aprimorar o controle do uso e
ocupação do solo das cidades. A “explosão urbana” (SILVA, 2008, p. 28) agrava os
desequilíbrios urbanos, demandando sua correção.
O controle construtivo recebe então nova problematização trazida pelo
desenvolvimento da ciência do urbanismo (aventada, em um primeiro momento,
7 “Apenas, enquanto naquela época essas leis e regulamentos se limitavam, quase exclusivamente,
aos direitos de vizinhança, aos poucos o seu campo foi se ampliando, com a tendência para condicionar, cada vez mais, o exercício do direito de propriedade ao bem-estar social” (DI PIETRO, 2018, p. 156).
16
pelos utopistas socialistas), como explica José Afonso da Silva (2008, p. 28). O
autor destaca a contribuição de Charels Fourier, ligado aos utopistas, já trazendo
ideias como a previsão de áreas verdes, taxas de ocupação, recuos, afastamentos e
coeficientes de aproveitamento, tudo tomando a planificação como elemento central
(conceitos que serão abordados adiante), que posteriormente seriam evocadas no
urbanismo contemporâneo. Especialmente, adianta o plano de uma cidade
organizada em diferentes “recintos”, em cada qual as construções adotariam
dimensões diferentes - trazendo já a noção de zoneamento no controle construtivo -
e só poderiam levantar-se mediante aprovação de uma comissão de edis - indicando
o controle prévio, ainda que significativamente distinto da atual licença urbanística
(cf. SILVA, 2008, p. 29).
Em que pese certas experiências pontuais8, as reflexões sobre a cidade
ainda seriam maturadas por diferentes pensadores (como bem sintetiza José Afonso
da Silva na obra em comento, 2008, p. 27-31) até serem incorporadas à disciplina
jurídica do solo urbano de forma consolidada.
Citando as impressões de William Morris sobre as cidades britânicas em
meados do século XIX, Deák exemplifica ainda a insuficiência de uma regulação
espacial naquele contexto, bem como seus prejuízos no cenário urbano:
Through a combination of rapid accumulation that brought with it demographic growth and the development of machinofacture that required spatial concentration, urban agglomerations were reaching unprecedented scales — accumulation, at this stage, was the growth of the proletariat—, while laissez faire and 'free trade' left regulation (spatial or other)
unplanned. By the late 1860s, on the one hand, the 'spontaneous1 growth of urban agglomerations had resulted in unmanageable and inefficient spatial structures. Some twenty years later, William Morris would sum up "London and the other great commercial cities of Britain as 'mere masses of sordidness, filth and squalor, embroidered with patches of pompous and vulgar hideousness'". (20) On the other hand, the period of rapid accumulation itself was over, and gave place to the great depression. This marked the demise of free trade and laissez faire and gave rise instead to trusts, monopolies, finance capital, corporations, and ultimately, to increased and increasing state intervention -- 'planlessness' of capitalism disappeared with predominantly extensive accumulation (DEÁK, 1985, p. 217-218, grifo do autor)
9.
8 Ainda que seja possível identificar certas fases com tendências específicas, é evidente que a
evolução do controle construtivo não segue um ritmo rigidamente uniforme. A exemplo, Rogério Gesta Leal menciona como exceção o adiantado urbanismo visto em Amsterdã já em 1565, com a ampliação planejada da cidade e a “Ordenação de Construções”, que já exigia a aprovação de construção por funcionários municipais (LEAL, p. 14). 9 “Através de uma combinação de rápida acumulação que trouxe consigo o crescimento demográfico
e o desenvolvimento de indústrias que exigiam concentração espacial, os aglomerados urbanos
17
Naquele quadro, procurando enfrentar as questões ligadas à cólera e aos
constantes incêndios que se alastravam pela cidade, a evolução do controle das
construções se acelera. Em 1844, a cidade de Londres emite o “Metropolitan
Building Act”, focando a solidez e segurança das edificações, ou a segregação de
atividades altamente poluidoras (JULIANO, 2016, p. 21). Aquela regulação foi
seguida pelo Public Health Act de 1848 e o Local Government Act de 1858, que
ampliavam o objeto de regulação para os materiais utilizados e áreas construídas,
por exemplo10.
É difícil identificar um marco histórico ou legal em que a construção passa
a exigir qualquer outorga específica por parte do Estado (através da licença,
autorização ou outra figura - sem esmiuçar seus caracteres), o que se verifica é que
a necessidade de um controle prévio vai sendo percebida paulatinamente em cada
cidade, em aspectos distintos (necessidade de anuência do Estado para instalação
de fábricas poluidoras, para a construção fossas privada), ampliando seu objeto e
seu alcance de forma significativa na segunda metade do século XIX.
Continuando o percurso histórico, o controle prévio das atividades
construtivas se generaliza em Paris em 1852, com o Decreto de Napoleão III, sob
proposta do Barão Haussmann, prefeito do Sena, forçando os construtores a
apresentar seus planos à prefeitura - se, no prazo de vinte dias, o prefeito não se
opusesse à segurança do projeto, o trabalho poderia começar (ver GÉRARD, 2007,
p. 97).
alcançavam escalas sem precedentes - o acúmulo, nesse estágio, era o crescimento do proletariado -, enquanto o laissez faire e o livre comércio deixou a regulação (espacial ou outra) sem planejamento. No final da década de 1860, por um lado, o crescimento espontâneo das aglomerações urbanas resultou em estruturas espaciais incontroláveis e ineficientes. Cerca de vinte anos depois, William Morris resumiria "Londres e as outras grandes cidades comerciais da Grã-Bretanha como 'meras massas de sordidez, imundície e miséria, bordadas com manchas de horror pomposo e vulgar'". (20) Por outro lado, o período de acumulação rápida acabou e deu lugar à grande depressão. Isso marcou o fim do livre comércio e do laissez-faire e deu lugar a trusts, monopólios, capital financeiro, corporações e, por fim, ao aumento e aumento da intervenção estatal - o “sem-plano” do capitalismo desapareceu com uma acumulação predominantemente extensiva” (tradução nossa). 10
“Compared with the more limited provisions of the Public Health Act, with respect to building matters, that is to cellar levels, privies, cesspools, streets and courts, one can now see, just ten years later, a considerable broadening of building regulations, to include walls, fire, stability and space about building” (HARPER, 1978, p. 152). Anote-se que Royal Sanitary Commission Report em 1871 já levantara a pertinência do controle dos novos edifícios antes de sua ocupação, recomendando a aprovação de projetos em até um mês.
18
Veja-se, todavia, que apesar das contribuições teóricas e ainda que
houvesse certa preocupação com o contexto urbano, o controle aqui ainda está mais
voltado à edificação em si considerada que à ordenação e planejamento da cidade
como um todo. Não é possível identificar ainda a licença urbanística propriamente
(nos termos daquilo que será delimitado nos capítulos subsequentes).
1.3 O controle urbanístico
A fase final na evolução do controle construtivo nas cidades – resultando
naquilo que se toma pelo controle urbanístico contemporâneo – pode ser descrita a
partir de dois aspectos. Por um lado, do ponto de vista histórico, o contexto pós-
industrial é agravado pelas crises econômicas e pela Primeira Grande Guerra no
início do século XX, com fortes impactos sociais e urbanos. Aquela conjuntura
escancara a insuficiência no enfrentamento das complexidades decorrentes da
urbanização, através das pontuais limitações à propriedade, fomentando o criticismo
a uma sociedade excessivamente liberal e provocando mudanças nas expectativas
do papel do Estado, com maior intervenção na atividade econômica e na
propriedade privada. Por outro lado, no âmbito da evolução do urbanismo e das
técnicas de ordenação urbana, o estabelecimento do zoning (cuja origem se dá na
Alemanha) se constitui também como marco importante, trazendo uma nova
dinâmica de planejamento territorial e controle do solo.
Tais elementos, quais sejam, (i) o incremento no controle do uso e
ocupação do solo, com a ordenação racional dos espaços da cidade, e (ii) uma
maior inflexão sobre propriedade liberal e o papel do Estado, somados ainda às
limitações clássicas, dão a cara da disciplina urbanística que então passa a se
desenvolver.
1.3.1 O controle do solo urbano e o zoneamento11
11
Duas ressalvas devem ser feitas à tese que ora se expõe. Por primeiro, não se ignora o cabimento de uma análise critica à técnica do zoneamento e à maneira pela qual foi implementada. Para tanto, recomenda-se a leitura de ROLNIK (2003), para uma abordagem voltada à sua aplicação no Brasil (em especial na Cidade de São Paulo). Para uma crítica ao zoning estabelecido ainda em Frankfurt: cf. SALGADO, 2017. Por segundo, ao chamar a atenção para o zoning e sua influência sobre a disciplina urbana, não se está afirmando que a gestão e planificação urbanas (arruamentos, obras públicas, diretrizes e projetos desenhos de cidade, abertura de vias, instalação de infraestrutura) tenha se iniciado essa técnica. Apenas, toma-se sua consolidação como marco no urbanismo e, especialmente, no controle jurídico do solo, ao atrelar a disciplina construtiva ao planeamento territorial da cidade com um todo.
19
Abordando primeiramente o zoning, trata-se de inovação na técnica
urbanística com reflexo direto em sua disciplina jurídica. Os urbanistas apontam sua
origem no município de Frankfurt, em 1891, quando se estabelece regulamentação
que alcança todo o território da cidade, dividindo-o em zonas com diferentes
densidades de edificação e usos permitidos (JULIANO, 2016, p. 26)12. Ainda que já
tenha havido instrumentos semelhantes predecessores (como já anotado acima), é
aqui que se verifica a radicalização do controle do solo urbano13, cuja técnica passa
a servir de inspiração ao urbanismo que se desenvolvia e à correspondente
disciplina do solo urbano em diferentes cidades do mundo14.
A urbanização decorrente da industrialização e seus fenômenos mais visíveis, a especulação imobiliária e a deterioração o ambiente urbano, ensejaram a adoção de regulamentos de controle dos volumes e da distribuição dos usos produtivos como a proibição de determinadas atividades em áreas específicas das cidades (JULIANO, 2016, p. 20).
Como bem anota Salgado (2017), o zoning de Frankfurt corresponde ao
primeiro plano de zoneamento completo e detalhado, organizando regulamentos
construtivos diferenciados em relação ao local do imóvel na cidade, e com planos de
alinhamento modificáveis no tempo (SALGADO, 2017, p. 234).
Acrescente-se, então, que esse marco revela a guinada pela qual passa a
regulamentação construtiva a partir do século XIX, quando a outorga da licença para
edificar (ou realizar quaisquer outras intervenções no ambiente urbano), passa a ser
12
“O município de Frankfurt adota em 1891 um plano de zoneamento que abrange todo seu território, dividindo a cidade em zonas concêntricas e designando a cada uma delas, normas que definem densidade de edificação (mediante parâmetros de altura e taxa de ocupação) e a sua destinação de uso, dividindo o território em áreas residenciais, industriais e para usos mistos. Segundo Mancuso (1980) o primeiro documento onde aparece a aplicação do zoning é: ‘Polizeiverordnung vom 13 Oktober 1891, das Bauen in der Aussenstadt Frankfurt Am Main’ – Norma da polícia de 13 de outubro de 1891 sobre as construções na cidade exterior em Frankfurt. Este documento usa o termo Zone System, e seus instrumentos de aplicação são o ‘bauzonenplan’ (mapa que define as zonas) e a normativa de construção correspondente ou ‘zonenbauordnung” (JULIANO, 2016, p. 26). 13
Trata-se do primeiro plano de zoneamento completo e detalhado, envolvendo todo o território municipal e abrangendo todos os setores da construção. Por este motivo entrou para a história. Ao organizar as duas principais linhas de instrumentalização da reforma urbana da época – regulamentos construtivos diferenciados em relação ao local e planos de alinhamentos modificáveis no tempo – o zoneamento de Adickes mitigou os impactos do processo de expulsão sistemática das fábricas do território urbano. Ao criar os bairros fabris, o novo modelo possibilitou uma maior adequação entre os interesses do capital imobiliário e do capital industrial, que ganhava força rapidamente no período (SALGADO, 2017). 14
Além das cidades europeias, a influência do zoning desenvolvido em Frankfurt fica clara nas cidades americanas, ou mesmo no Brasil, como explica Raquel Rolnik (1997, p. 44 e 173). Note-se, aliás, que a primeira obra norte-americana dedicada exclusivamente ao Planejamento Urbano, “An Introduction to City Planning” (de Benjamin Marsh, 1909) já tratava da experiência Frankfurt (JULIANO, 2016, p. 39). Em 1916, Nova Iorque também adota o zoning.
20
atrelada não somente à edificação em si considerada, mas também levando em
conta à zona da cidade em que o lote se encontra, incluindo os usos e as
densidades construtivas permitidas15, a proximidade com outras atividades, entre
outros índices que vão se desenvolvendo de acordo com a evolução da técnica de
ordenação do solo baseada no “zone system”.
A existência de um zoneamento pressupõe que a regulação e o controle
do uso e ocupação do solo agora terão por critério não somente a edificação a ser
erigida ou seus lotes vizinhos, mas também a classificação do solo determinada na
planificação, pensando a cidade em sua integralidade.
Procurando retomar aquilo que já se disse, é aqui que fica claro a
evolução do controle do uso e ocupação do solo urbano partindo da disciplina
meramente estrutural da construção (voltada às técnicas construtivas, sua solidez e
prevenção de incêndios, e.g.), seguida de uma preocupação com a vizinhança
(vedação a usos nocivos, garantia de insolação, etc), até o controle da edificação em
sua dimensão urbanística propriamente (atentando-se aos seus impactos urbanos e
racionalizando a intervenção permitida no território, em conformidade com
planejamento da cidade).
Essa evolução tem interferência direta na confecção do ato de controle
prévio ao uso ou ocupação da cidade, pois modifica o objeto de análise (deixa de ser
meramente a construção) sua fundamentação e valoração (que remeterá ao
zoneamento e planejamento, e não somente a uma disciplina edilícia), com reflexos
diretos nos requisitos que devem ser atendidos para sua emissão, bem como nos
princípios incidentes. São esses aspectos que serão desenvolvidos no decorrer
desse trabalho.
1.3.2 A superação do Estado Liberal e a consolidação do controle urbanístico
Historicamente, a Primeira Grande Guerra e o agravamento de questões
sociais e crises econômicas na Europa e nos Estados Unidos acabam servindo de
combustível para um inflexão geral sobre a atuação do Estado, não somente no
ambiente urbano, mas em toda a ordem social e econômica.
15
“O controle de densidades permite manejar adequadamente a distribuição de habitação, adequando-as à infraestrutura de transportes que se formava então e mesclando-se a áreas verdes e equipamentos públicos, resultando em condições melhores de salubridade, além do ganho no valor estético urbano (JULIANO, 2016, p. 29)”.
21
Desde o início do século XX, então, passa a ser perceptível a modificação
do papel do Estado, de mero árbitro das relações contratuais a interventor na
economia, objetivando evitar a expansão das desigualdades e o atendimento de
interesses básicos da população carente. Os segmentos desfavorecidos
(desassistidos, subempregados, sem teto), formam um significativo contingente
reivindicante (LEAL, p. 29) e os países europeus voltam sua atuação ao bem-estar-
social - o Welfare State.
Todo esse contexto se traduz também em significativas alterações
legislativas voltadas à maior intervenção estatal na busca pelo bem-estar, aí
incluindo a disciplina da organização urbana, eis que considerável parte das
desigualdades e conflitos sociais se acentuam justamente nas cidades.
Nesse sentido, aponta-se que é apenas nessa fase que um verdadeiro
Direito Urbanístico surge naqueles países (CASTILHO, 2013, n.p.). As reflexões
teóricas que se iniciam no séc. XIX passam então a ser refletidas em uma disciplina
jurídica sistematizada no século XX, na qual o controle do uso e ocupação do solo
surge como elemento central.
Para garantir a observância das normas de ordenação do solo e avaliar
cada empreendimento em sua dimensão urbanística – já considerando as técnicas
de zoneamento e organização espacial -, vão se consolidando os instrumentos de
controle prévio, que passam a ser estabelecidos de forma sistemática nessa época.
Na França, é no século XX que se tem notícia de uma primeira lei
estipulando de forma geral as “licenças de construção”, já próxima daquilo que hoje
entendemos (i.e., uma outorga prévia do Estado, tendo por objeto o exercício de
uma atividade construtiva), com a “Lei de institutos de higiene as licenças de
construção e desenvolvimento”, de 1902. E apenas em 1945 é que se estabelece
propriamente a licença de construção, emitida “em nome do Estado” (GÉRARD,
2007). Trata-se de clara evolução, portanto, daquele cenário urbano do período
napoleônico mencionado acima, quando apenas se controlava a instalação de
fábricas poluentes, evitando o prejuízo à vizinhança.
Em 1983, fica clara a vinculação da licença construtiva ao planejamento
urbano: a lei de descentralização, de 7 de janeiro de 1983, condiciona a
22
competência dos prefeitos de emitir as licenças de construção à existência de um
documento de planejamento aprovado (o “Plan Local d’Urbanisme”, “Plan
d’Occupation des Sols” ou o “Carte Comunale”) – cf. GÉRARD, 2007, p. 9716.
Na Itália, o Real Decreto Legislativo nº 640 de 1935, prevê a necessidade
de solicitação de autorização prévia ao Estado para a construção de novos edifícios,
ou modificação ou ampliação dos existentes, devendo o interessado cumprir as
regras especiais dos regulamentos municipais de construção e higiene17. Citando
Filippo Salvia e Francesco Teresi, Márcia Walquiria Batista dos Santos (2001, nota
de rodapé n. 23, p. 25) esclarece que as administrações municipais italianas
começaram a inserir nos próprios regulamentos edilícios algumas disposições que
subordinavam expressamente a atividade construtiva à expedição de uma
autorização prévia, mas que o primeiro reconhecimento legislativo generalizado
entretanto viria com apenas com o referido RDL 640. Afirma, ao fim, que é apenas
com a Lei 1.150 de 1942 (Lei Urbanística), que o instituto encontrou a sua
verdadeira sistematização, em seu Art. 31. Nessa lei, além de estipular prazos de
vigência e questões procedimentais para a outorga da licença, também passsa-se a
atrelar de forma expressa a sua concessão ao planejamento urbano e à realização
de obras de urbanização (v. Art. 4º e 31 da referida norma).
Tais alterações estavam em compasso com a percepção dos urbanistas
da época, como se denota da leitura da Carta de Atenas, elaborada no Congresso
internacional de Arquitetura Moderna de 1933, que, dentre os diversos de seus
postulados, destaca os prejuízos do crescimento e desenvolvimento incontrolado
das cidades (item 44), a debilidade do controle administrativo (73 e 74), bem como a
necessidade do crescimento planejado em programas técnicos e a promulgação de
leis que permitam a sua observância (85).
16
Em 1902, a Lei de institutos de higiene as licenças de construção e desenvolvimento, ligeiramente modificada em 1911, antes de uma lei de 15 de Junho de 1943, confirmado pela ordem de 27 de Outubro de 1945, estabelece a licença de construção, emitida "em nome do Estado". Com a lei de descentralização, de 7 de janeiro de 1983, os prefeitos recebem competência para emitir, em nome de sua cidade, quase todas as licenças de construção em público com um documento de planejamento (POS, PLU ou mapa comunal) aprovado. (ver GÉRARD, 2007, p. 97). Também citado por BATISTA, 2001, p. 30. 17
“Coloro che intendano fare nuove costruzioni, ovvero modificare od ampliare quelle esistenti debbono chiedere al Podestà apposita autorizzazione, obbligandosi ad osservare le norme particolari dei regolamenti di edilizia e d'igiene comunal” (Art. 4º).
23
Essencial ao incremento do controle urbanístico que se testemunha no
século passado é a superação da propriedade privada como valor absoluto,
conformando o seu exercício ao interesse público, e fomentando reflexões sobre sua
finalidade, diante das necessidades coletivas e sociais que se agravavam.
Com efeito, toda a inflexão em decorrência dos interesses sociais e a
atuação do Estado não deixam incólume a configuração jurídica da propriedade,
central ao liberalismo. Em 1911, refletindo sobre o papel do Direito como
assecuratório da propriedade e sua relação com a problemática social, e
influenciado pelo pensamento de Augusto Comte e Emile Durkhein, León Duguit
levanta a noção da propriedade como função, baseado na solidariedade social e na
importância da consciência social para a formação do Direito. Superando a ideia
desse valor como elemento natural, entende que a propriedade privada, fruto do
pacto social, somente se justifica se moldada às necessidades sociais, coletivas18.
A noção de função social da propriedade que se desenvolve sob essa
influência teórica irradia sobre diferentes ordenamentos (ainda que com certa
variação), aí incluindo o brasileiro. A superação da concepção absolutista da
propriedade, consagrada pela Revolução Francesa, é fundamental ao novo papel
exercido pelo Estado e ao desenvolvimento de um controle mais incisivo no
exercício daquele direito, sempre em atenção ao interesse social - in casu, vinculado
à ordenação urbana. O desenvolvimento do urbanismo e do controle do solo tem
uma correlação direta com o desenvolvimento desse instituto. Não por acaso, a
função social da propriedade é tomada por parte da doutrina como o princípio central
do Direito Urbanístico19.
Para Álvaro Pessoa, nenhuma das teorias e pensadores foi tão influente
para a renovação do clássico conceito de propriedade quanto as forças sociais
desencadeadas pelo processo de urbanização e a necessidade de atendimento das
demandas populares20.
18
Cf. Álvaro Pessoa (1981, p. 54). 19
Lúcia Valle Figueiredo, como bom exemplo, ao tratar ainda sobre o regime constitucional brasileiro de 1969, já assinalava: “O direito urbanístico refere-se às normas disciplinadoras da propriedade com as limitações atinentes à sua função social. (...) as normas de direito urbanístico estão vocacionadas a dirigir a realização dessa função” (FIGUEIREDO, 1981, p.21-22). 20
“Nenhum destes seguimentos é, porém, mais radicalmente renovador para o conceito de propriedade do que as forças sociais desencadeadas pelo processo de urbanização. Não é no
24
O controle prévio das construções, sob a disciplina geral da cidade,
reconhecendo seu impacto e dimensões urbanísticas, se consolida no momento em
o direito de propriedade passa por essa substancial transformação, submetendo-se
às finalidades de um Direito comprometido com o bem-estar e a justiça social.
conceituar a propriedade rural, mas ao forçar a redefinição da propriedade urbana, que o moderno Direito Urbano das sociedades avançadas tem promovido uma verdadeira revolução conceitual na ciência jurídica dos países desenvolvidos” (PESSOA, 1981, p. 55).
25
2. Política urbana e atividade urbanística de controle do solo no Brasil
Essencial entender que toda aquela evolução no controle do uso e
ocupação do solo está atrelada ao desenvolvimento histórico pelo qual passou o
adensamento dos centos urbanos, à problemática daí decorrente, bem como ao
contexto de transformação do Estado e do Direito, o que acaba sendo reproduzido,
em considerável medida, também no contexto brasileiro.
Ainda que a urbanização no Brasil tenha sido mais tardia que a europeia,
ganhando força especialmente durante a Segunda Grande Guerra21, seu processo
não foi menos intenso ou gravoso. Muito pelo contrário, o que se verifica é que a
problemática intrínseca a um crescimento urbano desordenado (com o êxodo rural,
adensamento populacional e surgimento do proletariado urbano) se soma a uma
camada de problemas sociais ainda oriundos de desigualdades sociais extremas
herdadas de um regime escravocrata e de fluxos migratórios externos.
Apesar de o país apresentar importantes cidades durante os séculos XVIII e XIX, a sociedade brasileira se urbanizou praticamente no século XX. O Brasil começou o século com 10% da população nas cidades e terminou com 81%. E embora o processo de urbanização tenha ocorrido durante o regime republicano, o peso das heranças colonial e escravista é notável também na formação das cidades (MARICATO, 2006, p. 211).
Em que pese o trato da questão urbana em regimes anteriores, é
somente com a redemocratização em 1988 que se estabelece no país uma política
urbana com princípios e diretrizes consolidados voltado ao cenário das cidades.
A matriz estabelecida pela Constituição de 1988 tem como pano de fundo
o reconhecimento das desigualdades socioespaciais presentes no contexto das
cidades brasileiras (mormente aquelas de grande porte), e a necessidade de se
promover uma reforma voltada aos interesses sociais e à racionalização da
ordenação do solo através de seu adequado planejamento.
Partindo da premissa inicial deste trabalho, que toma a licença urbanística
como instrumento de política urbana (enquadramento que ficará mais claro no
presente capítulo), cabe então verificar brevemente quais os princípios e diretrizes
estabelecidos, aos quais a disciplina das licenças deverão se submeter.
21
A própria revolução industrial chega mais tarde. Cf. SOMEKH, 1997, passim, e ROLNIK, 2003, p. 152 e ss.
26
2.1 A política urbana
2.1.1 Conceito
Estabelecer um conceito de política urbana exige primeiro uma reflexão
sobre aquilo que se entende por política pública, tarefa que não incumbe somente
ao jurista. Veja-se que, conforme bem ensinam Reinaldo Dias e Fernanda Matos
(2012), em trabalho dedicado à questão, a noção de politicas públicas tem origem na
Ciência Política, e vai adquirindo autonomia e status científico a partir de meados do
século XX na Europa e Estados Unidos (p. 10), justamente quando o Estado assume
um papel mais ativo na ordem social e econômica, conforme acima abordado.
Os autores definem a política pública como o “conjunto de princípios,
critérios e linhas de ação” (p. 10) do Estado, afirmando que devem compreender
todas as ações dos governos, eis que estas se legitimam através de um discurso (e
alguma prática) que considera os fins do Estado (o bem comum sem discriminação
de qualquer tipo), em oposição aos interesses particulares dos administradores
(DIAS; MATOS, 2012, p. 12).
Para Liberati (2013, p. 89), as políticas públicas “representam a
coordenação dos meios colocados à disposição do Estado, de forma a harmonizar
as atividades estatais e privadas para a realização de objetivos socialmente
relevantes e politicamente determinados”.
Veja-se que os autores em referência, e também a doutrina estrangeira22,
vinculam a noção de política pública a determinado conjunto de metas, objetivos,
voltados ao bem-comum, atrelados também a determinadas “ações” ou “meios”
estatais para a sua consecução. Ademais, a Ciência Política aponta que ao definir
prioridades específicas e organizar os meios para a sua realização, o
estabelecimento de políticas públicas contribuirá para racionalizar os diversos
objetivos do Estado (em vista do objetivo geral, o bem-comum).
As funções estatais, para serem exercidas, necessitam de um mínimo de planejamento, com a adoção de critérios de racionalidade para que as metas e objetivos sejam alcançados de forma eficiente. Em outras
22
Dias e Matos fazem levantamento doutrinário a respeito de outras possíveis definições de políticas públicas: “’A combinação de decisões básicas, compromissos e ações feitas por aque- les que detêm ou influenciam cargos de autoridade do governo’ (Larry Gerston). (...) ‘É o que os governos decidem ou não fazer’ ([Thomas] Dye). “É a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou por meio de agentes, e que influenciam a vida dos cidadãos” ([B.G.] Peters)” (2012, p. 12 e 13).
27
palavras, observados os interesses e as demandas da sociedade, as ações devem ser planejadas e organizadas, avaliando as possibilidades existentes, estruturando sua implementação adequada, além de desenvolver mecanismos para reavaliar todo o processo. Isto é, fazendo escolhas sobre em que área atuar, onde atuar, por que atuar e quando atuar.
De forma sucinta, é disto que tratam as políticas públicas, a gestão dos problemas e das demandas coletivas através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas predefinidos. (DIAS; MATOS, 2012, p. 12).
Procurando decantar o conceito sob a ótica jurídica, Maria Paula Bucci
ensina que “as políticas públicas devem ser vistas também como processo ou
conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades,
para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito” (BUCCI, 2002, p.
264).
O adjetivo “pública”, justaposto ao substantivo “política”, deve indicar tanto os destinatários como os autores da política. Uma política é pública quando contempla os interesses públicos, isto é, da coletividade - não como fórmula justificadora do cuidado diferenciado com interesses particulares ou do descuido indiferenciado de interesses que merecem proteção - mas como realização desejada pela sociedade (BUCCI, 2002, p. 264).
Em relevante contribuição, Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez,
define política pública como um conjunto de atos unificados por um fio condutor que
os une ao objetivo comum de empreender ou prosseguir um dado projeto
governamental para o país (MELLO, 2010, p. 814).
Embora não haja uma conceituação jurídica fechada a respeito23, vê-se
que as leituras não se afastam muito da noção principal trazida pela ciência política,
consistente no estabelecimento de certos objetivos a serem perseguidos pelo
Estado (direta ou indiretamente) em dada matéria24.
É o que se faz na Constituição de 1988 na questão urbana. Partindo do
reconhecimento da realidade brasileira (com acentuadas desigualdades
socioespaciais e a necessidade de promover uma verdadeira reforma urbana), o
constituinte originário optou por avocar a nível constitucional a definição de objetivos
23
“Política pública é uma locução polissêmica cuja conceituação só pode ser estipulativa” (BUCCI, 2002, p. 251). 24
De acordo com Odete Medauar: a política pública é formada pela definição legítima de determinados fins e objetivos como a finalidade de determinada atividade administrativa (MEDAUAR, 2014, p. 265).
28
e princípios da política urbana, vinculando todas as normas voltadas à urbe (em
nível federal, estadual e municipal) a essa matriz25.
De todo modo, ainda que fundada na Constituição, a política urbana nela
não se esgota, sendo estruturada também por diretrizes gerais em nível
infraconstitucional (Lei nº 10.257/01), além de outras normas que venham a dispor
sobre a matéria em diferentes níveis - nacional, regional, estadual ou local (neste
último, tendo o plano diretor como seu instrumento básico).
Voltando às notas de DIAS e MATOS (2012):
Ao determinar as competências do Estado, [a Constituição] é a primeira referência legal para a elaboração, execução e avaliação das políticas públicas. A partir dessa referência macro, as políticas públicas têm, cada uma, seu próprio marco legal (p. 134)
As políticas públicas são também campos de conhecimento técnico específico. A gestão de cada uma das políticas demanda conhecimento de pressupostos teóricos, legislação específica, formas de organização, história e estágio de desenvolvimento em que se encontra o setor, enfim, demanda conhecimento, domínio sobre a área específica. (p. 135).
Por outro lado, há que se separar - ao menos conceitualmente - o Direito
Urbanístico objetivo da Política Urbana26. Com efeito, a vinculação da ordenação
25
Trata-se de opção ímpar do constituinte brasileiro, eis que nossa constituição “talvez seja a única a tratar da política urbana” (PINTO, 2005, p. 104). 26
Ainda que a consecução de políticas públicas seja praticamente a razão de ser do direito urbanístico (VICHI, 2005, p. 97). Apesar de não coincidir os conceitos propriamente, Bruno de Souza Vichi aparentemente coincide o seu objeto: “Todas as normas que disserem respeito a estes assuntos que estruturam a noção de política urbana apresentada pela Lei Maior (‘o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos seus habitantes’) deverão integrar o regime jurídico urbanístico, de direito urbanístico” (2005, p. 103). Vichi traz a ideia de que política urbana é tudo aquilo voltado à consecução do Art. 182, abrangendo os seus mais diferentes aspectos. Fernando Bruno Filho (2015, passim), diferentemente, por sua vez, entende que o Direito Urbanístico possui seu “núcleo duro” nas normas ligadas ao território (parcelamento, uso e ocupação do solo), mas a política urbana possuiria espectro mais abrangente. Para esta, o autor propõe a seguinte conceituação: “conjunto de ações governamentais, planos e normas de regulação ou repercussão imediata no espaço territorial urbano, articulados entre si e vinculados a um objetivo de interesse público relacionado à transformação do ambiente urbano na busca da melhora da qualidade de vida dos habitantes da cidade e da concretização dos direitos fundamentais” (2015, p. 38). Explica que a noção defendida vai além da ordenação territorial (de caráter essencialmente físico-territorial), abrangendo os demais elementos setoriais (habitação, saneamento, mobilidade, etc). Já Carvalho Pinto (2005) desenvolve noção mais restrita, entendendo que a política urbana é apenas uma das diversas políticas desenvolvidas em resposta aos problemas urbanos, reforçando que não é sua função “definir os elementos de cada uma das políticas setoriais que farão uso dos equipamentos públicos” (2005, p. 44). Nesse sentido estrito, a política urbana seria o “setor da atuação do Estado que trata da ordenação do território das cidades” (2005, p. 45), ideia que se aproxima da conceituação de Direito Urbanístico de José Afonso da Silva. Todavia, como será visto adiante, PINTO atribui à política urbana a ideia de “conjunto de ações”, o que, a nosso entender, não se confunde com a acepção que apresenta do Direito Urbanístico.
29
dos espaços habitáveis a uma política específica com diretrizes e objetivos pré-
definidos (para além daqueles advindos da própria técnica urbanística utilizada),
corresponde a opção político-constitucional. Não são conceitos indissociáveis,
todavia.
Em interessante passagem, Victor Carvalho Pinto (2005) assim define a
política urbana, na oportunidade também a distinguindo do urbanismo:
A política urbana é o setor da atuação do Estado que trata da ordenação do território das cidades, mediante alocação do recurso “espaço” entre os diversos usos que o disputam. O urbanismo é uma técnica destinada a ordenar a ocupação do território das cidades, a fim de que elas possam abrigar todas as atividades necessárias à sociedade, mas sem que umas interfiram negativamente sobre outras. A política urbana constitui um conjunto de ações que pode ser descrito e compreendido, enquanto o urbanismo apresenta-se como um conjunto de técnicas, que podem ou não ser empregadas na prática. Não há, portanto, uma coincidência entre os conceitos (2005, p. 45)
27.
De todo modo, na Constituição Federal de 1988 é inequívoca a instituição
de uma política pública, com objetivos e princípios que vincularão toda a disciplina
urbanística que se constrói.
Sob essa perspectiva, a política urbana corresponderá então ao
estabelecimento de objetivos específicos traçados para a ordenação dos espaços
habitáveis, vergando toda a noção de Direito Urbanístico aos princípios e valores
avocados a nível constitucional, abrangendo inclusive as ações voltadas a sua
consecução28.
Falar em política pública urbana na Constituição é dar sentido ao
conjunto de normas que visam à ordenação espacial, bem como sua execução, com
estabelecimento de objetivos e princípios que serão desdobrados pela legislação e
atos emitidos nesse ordenamento, aí incluindo as licenças urbanísticas e sua
disciplina.
27
O autor continua: “A política urbana justifica-se enquanto instrumento do urbanismo, mas pode contrariar, na prática, seus mais elementares princípios A expressão ‘política urbana’ supõe, portanto, um conceito descritivo, enquanto o termo ‘urbanismo’ define um conceito normativo” (2005, p. 45). Nessa última parte, todavia, o texto ignora que a política urbana, além de conjunto de ações, também pressupõe o estabelecimento de objetivos, diretrizes e princípios. 28
Em sentido semelhante, anota Carvalho Filho (2013, p. 17): “Podemos, assim, definir política urbana como o conjunto de estratégias e ações do Poder Público, isoladamente ou em cooperação com o setor privado, necessárias à constituição, preservação, melhoria e restauração da ordem urbanística em prol do bem-estar das comunidades”.
30
Justamente, ao atentar à licença urbanística como instrumento desta
política, o presente trabalho dá destaque a esse mesmo prisma, ressaltando os
caracteres da licença em vista dos objetivos traçados em nível constitucional, cuja
abordagem ora se inicia.
2.1.2 Objetivos e princípios da política urbana
Os objetivos da política urbana estão explicitados no Artigo 182 da
Constituição Federal, que acaba sendo retrato, no âmbito urbano, do perfil que se dá
ao Estado Brasileiro29.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes
30.
O estabelecimento do bem-estar social como objetivo último da política
urbana está em coerência com o próprio regime democrático e social que se
estabelece na Constituição de 1988 - Estado Social e Democrático de Direito31 -,
ainda sob influência daquele movimento de um Estado mais ativo na sociedade,
conforme abordado anteriormente32.
Veja que, em seu Artigo 3º, a Carta estabelece como objetivos
fundamentais do Estado a redução das desigualdades, erradicação da pobreza, o
desenvolvimento e a promoção do bem-estar social, sendo vedada qualquer forma
29
Com efeito, os princípios de qualquer política pública, aí incluída a urbana, estarão atrelados ao perfil econômico do Estado: “para se fixarem políticas públicas – e principalmente verificar sua prioridade –, deve-se perscrutar, primeiro, a definição do modelo econômico (e de crescimento, que pode estar baseado na desigualdade, em ações igualitárias ou em algum grau de solidariedade) pretendido pelo Estado e pela população, gravado no catálogo constitucional” (LIBERATI, 2013, p. 89). 30
Para Carlos Ari, o Art. 182 enuncia a função do próprio direito urbanístico (Estatuto, comentários, p. 48): “O direito urbanístico surge então como o direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos diretores, por exemplo), c) como conjunto de normas em que estão previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto de Cidade, entre outros)”(SUNDFELD, 2002, p. 49). 31
José Afonso da Silva (2009) prefere se referir a “Estado Democrático”. Carlos Ari Sundfeld (2007) usa a expressão “Estado Social e Democrático de Direito”. Não cabe aqui, porém, desenvolver esse debate terminológico, sendo relevante apenas a noção de superação daquele Estado meramente garantidor das liberdades negativas dos indivíduos. 32
Ainda que, no Brasil, tal movimento seja retardado em relação ao continente europeu. À época da constituinte, o Bem-Estar Social já enfrentava uma remodelação com o surgimento do neoliberalismo.
31
de discriminação (Art. 3º da Carta)33, ficando claro o papel mais atuante do Estado,
na consecução desse escopo.
A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana (SILVA, 2009, p. 120).
Além do respeito a certos limites negativos, o Estado se submete também
a essa finalidade social, à erradicação marginalização social, redução das
desigualdades e a promoção do desenvolvimento nacional, o que acaba também se
refletindo nos objetivos do desenvolvimento urbano insculpido no Art. 182.
Ressalte-se então que a política urbana deverá estar voltada à garantia
do bem-estar de todos os habitantes da cidade, sem qualquer forma de
discriminação (única interpretação possível à luz dos preceitos fundamentais do
Estado Democrático). No âmbito urbano, aliás, a redução das desigualdades (Art. 3º,
III) será enfrentada na dimensão socioespacial.
A noção que se tem das funções sociais da cidade (caput do Art. 182), em
última instância, também não deixa de traduzir tais valores. Invocando as funções da
cidade elencadas na Carta de Atenas (1933) - habitação, trabalho, transporte e lazer
- abarca também o caráter do Estado Brasileiro e da política urbana que se constitui.
As funções da cidade devem ser pensadas tendo em vista todos os habitantes da
cidade, sem qualquer discriminação, levando em conta o papel atuante do Poder
Público em sua consecução, e em especial as desigualdades sociais presentes em
nossas cidades.
As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da política urbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do artigo 182 de forma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes. Com esta vinculação dos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos
33
Veja interessante observação de CANELA (2011) a respeito, que anota que “políticas públicas, no Brasil, são todas aquelas atividades desenvolvidas pelas formas de expressão do poder estatal tendentes à realização dos objetivos insculpidos no art. 3° da Constituição Federal” (p. 57). Entretanto, “os objetivos do Estado brasileiro não podem ser atingidos de forma aleatória. A própria Constituição cria, então, os núcleos constitucionais de irradiação dos direitos fundamentais sociais, que comandam a prática de todos os atos estatais [a exemplo do Art. 182, relativo à política urbana]”. As políticas públicas, então constituem o veículo material de realização dos direitos fundamentais sociais vislumbrados por esses núcleos constitucionais. “Por consequência, as políticas públicas estão vinculadas aos núcleos constitucionais de irradiação, de forma que, existindo desvio da matriz constitucional normativa, há necessidade de realinhamento das condutas” (2011, p. 58).
32
habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade (SAULE, 2007, p. 53).
Para Daniela Campos Libório, a função social da cidade “traduz, em sua
essência, a vocação do coletivo sobre o particular, dá respaldo e sustenta o princípio
da função social da propriedade; por isso que, mais que a propriedade, a cidade
deve existir e servir a seus habitantes” (2004, p. 47).
É ao redor dessa valoração que gravita aquilo que se entende por “direito
à cidade”, constituído direito de todos os habitantes da cidade à persecução desses
objetivos (o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do
bem-estar), em suas diversas dimensões. A noção de direito à cidade, ante a licença
urbanística, será retomada no capítulo final deste trabalho.
O artigo 182, em seu parágrafo 4º, ao tratar da função social da
propriedade urbana, mais uma vez não deixa de traduzir a própria concepção social
do Estado, que consagra a função social como princípio caracterizador da ordem
econômica (v. Art. 170 da Constituição Federal)34.
No Direito Brasileiro, não se adota integralmente aquela acepção de
propriede-função trazida por Dugiut35. Todavia, ao elencar a função social da
propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais (Art. 5º), e como princípio
geral da ordem econômica (Art. 170), a Constituição atrela, de forma indissociável, a
propriedade ao cumprimento de uma finalidade social.
34
A propriedade, como finalidade do Estado Liberal (Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão)., que visava proporcionar a estabilidade, previsibilidade e liberdade necessárias ao desenvolvimento das relações burguesas, passa agora a ser vista como meio à perseguição de objetivos sociais, do bem-estar social, da justiça social, enfim. Esses valores adquirem preponderância. 35
“A funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social. Quem mostrou isso expressamente foi Karl Renner, segundo o qual a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorreu houve transformação na estrutura interna do conceito de “propriedade”, surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que “a propriedade atenderá a sua função social”, mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica (art. 170, II e III), a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, mas adotando um princípio de transformação da propriedade capitalista, sem socializá-la; um princípio que condiciona a propriedade como um todo, não apenas seu exercício” (SILVA, 2008, p. 76).
33
Diga-se, então, não é princípio típico ou peculiar do regime urbanístico.
Fala-se função social da propriedade móvel e imóvel, rural ou urbana, pública ou
privada. Todavia, em se tratando da propriedade imóvel urbana, a função social se
apresenta como elemento estruturante da ordenação das cidades, princípio central
da política urbana, inclusive com a previsão constitucional de sanções voltadas ao
seu descumprimento (Art. 182).
E em relação à propriedade urbana que a função social, como preceito jurídico-constitucional plenamente eficaz, tem seu alcance mais intenso de atingir o regime de atribuição do direito e o regime de seu exercício. Pelo primeiro cumpre um objetivo de legitimação, enquanto determina uma causa justificadora da qualidade de proprietário. Pelo segundo realiza um objetivo de harmonização dos interesses sociais e dos privativos de seu titular, através da ordenação do conteúdo do direito. (SILVA, 2008, p. 78).
Caberá ao plano diretor municipal indicar quando a propriedade urbana
cumpre sua função social, sempre atentando-se aos objetivos gerais da política
urbana (as funções sociais da cidade e o bem-estar dos habitantes, sem
discriminação).
Evocando os ensinamentos de Spantigatti (1969, p. 291-292, apud SILVA,
2008, p. 79), tem-se que a estrutura interna do direito de propriedade é aspecto
instrumental tocante ao complexo sistema da disciplina urbanística. Com efeito,
considerando o regime econômico fundado na livre iniciativa, e que a propriedade
privada imobiliária privada comporá o espaço das cidades, somente a noção de sua
função social é que será apta a conformar significativamente os interesses do
indivíduo ao interesse coletivo, para o estabelecimento da ordem urbana.
Vale anotar que o princípio da função social da propriedade, e também
das funções sociais da cidade (quando encaradas sob uma perspectiva
deontológica), tendo sempre por fim último o bem-estar, sintetizam bem todo o
espírito da política urbana que se estabelece em nível constitucional. Ainda que o
Artigo 182 não trate com exclusividade da questão urbana na Constituição Federal,
a verdade é que a valoração por ele trazida acaba se correspondendo com clareza
aos demais princípios que orientarão o Direito Urbanístico, sejam aqueles veiculados
pela própria Carta, sejam decorrentes de normas gerais.
Para não desviar do foco central do presente trabalho, não vale aqui
perscrutar cada um deles. De toda forma, aqueles que influenciam diretamente a
34
disciplina da licença urbanística serão abordados em tópico apartado. Mais um
último princípio, entretanto, ainda vale ser destacado no momento, de especial
relevo à presente abordagem. Trata-se do planejamento.
2.1.2.1 O planejamento e a política urbana
O planejamento é tomado como princípio-instrumental36 do Direito
Urbanístico, eis que diz mais respeito à atividade urbanística, e seus meios de
execução, que propriamente a uma matriz axiológica. Não é, todavia, menos
relevante para o tema, revelando-se como central ao urbanismo e à política urbana.
É certo que a figura do planejamento também não se limita ao Direito
Urbanístico. A Constituição Federal, em seu Art. 174, o toma como elemento crucial
na regulação na promoção do desenvolvimento socioeconômico, ou à organização
orçamentária, por exemplo. Todavia, no Direito Urbanístico o planejamento recebe
projeção diferenciada, eis que ínsito à lógica do urbanismo e da ordenação dos
espaços da cidade37.
Nas palavras de Carlos Miqueri da Costa (2009):
O Direito Urbanístico despontou em vários países como fundamentalmente inerente à regulação da cidade e do solo urbano, que em parte se confunde com o objeto do planejamento urbano, a ser concretizado pelos planos.
[...] Por meio do planejamento, as normas, mutatis mutandis, interferem no conteúdo do direito de propriedade do solo em função de sua classificação urbanística, ditam as técnicas de aproveitamento e estruturação física da urbe, preveem fórmulas para o desenvolvimento sustentável, reservam lugar à participação da comunidade na formulação e controle dos planos, estabelecem sistemas de justa distribuição de encargos e benefícios entre os atingidos pela execução da legislação urbanística.
(...) O Direito Urbanístico começou a ser regido pelos interesses concernentes ao uso, ocupação e transformação do solo, onde a propriedade privada deixou de ser um direito absoluto, notadamente no que tange as limitações e densidades construtivas impostas pelas leis e planos, priorizadores do interesse comum e do atendimento à função social (COSTA, 2009, p. 52-53)
38.
36
Nesses termos também entende Carlos Ari Sundfeld (2002, p. 56). 37
Em tese que se dedica com atenção a esse tema, Julia Plenamente Silva conclui “ser o princípio do planejamento formador da estrutura do Direito Urbanístico seu núcleo essencial, do qual se extraem todos os demais princípios, inclusive o da função social da propriedade, por consequência, permite a aplicação dos instrumentos jurídicos de urbanização. Isto porque a atividade de planejar é necessariamente antecessora à função de ordenar o território, função esta que confere identidade ao Direito Urbanístico” (2016, p. 56). 38
Em interessante passagem, o autor informa que o processo de planejamento urbano hoje já tem alcançado até mesmo níveis supranacionainais, como no caso da União Europeia (2009, p. 54).
35
Para Carlos Ari, “a Constituição Federal de 1988 faz do planejamento o
grande instrumento do direito urbanístico, articulando competências federais,
estaduais e municipais (SUNDFELD, 2002, p. 50)”. O dever de planejar se cumpre
pelo atendimento das exigências no planejamento geral do Estado (planos setoriais
e de desenvolvimento econômico e social, planejamento orçamentário, zoneamento
ambiental), bem como na edição de planos urbanísticos, que seriam pressupostos
da ação urbanística (p. 50).
Se é verdade que a própria existência do direito urbanístico é uma reação ao crescimento urbano sem ordem e ao caos gerado pelas atuações individuais, ele não pode traduzir-se na substituição do caos privado pelo caos estatal. O urbanismo não é um projeto de estatização pura e simples, mas de racionalização urbana via atuação estatal. Assim, a ação urbanística do Estado só se legitima se estiver racionalmente orientada. Aí entram os planos urbanísticos (p. 56).
Também na assertiva de Eros Roberto Grau, “o planejamento é princípio
de toda atividade urbanística” (1983, p. 15, nota de rodapé n. 12); “planejar o futuro
de uma região ou cidade significa controlar desenvolvimentos privados e programar
ações de diferentes organismos públicos” (1983, loc. cit.).
Há que se ressaltar a diferença entre planejamento e plano, bem
ensinada por José Afonso da Silva: o