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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
João Batista Carvalho de Brito Cruz
A música experimental de Gilberto Mendes:
contexto e análises
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
João Batista Carvalho de Brito Cruz
A música experimental de Gilberto Mendes:
contexto e análises
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de mestre em Comunicação e Semiótica
pela PUC/SP, sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Lúcia Santaella Braga.
São Paulo
2017
III
Banca examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
IV
Em memória de Gilberto Mendes
V
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à CAPES e a FUNDASP pelo
financiamento desta pesquisa, sem o qual não teria sido possível seu desenvolvimento
pleno.
Gostaria de agradecer, in memorian, a Gilberto Mendes e também a Eliane, que
me receberam com um cafezinho em sua casa para conversar sobre esta pesquisa. Grato
pela generosidade e pelos infindáveis ensinamentos.
Como começar a pesquisar é cair no mato sem bússola, não poderia deixar de
agradecer aos dois orientadores que tive durante esta pesquisa. Lucio Agra, que me
acompanhou no começo da pesquisa, e Lucia Santaella, que me guiou nos últimos dois
anos.
Como que por acaso, me deparei durante os últimos dois anos com diversas
pessoas próximas de Gilberto Mendes. Seus apontamentos e conselhos, vale dizer,
foram estruturais para esta pesquisa. Em primeiro lugar à Nara Mendes (e a Isabel
também!), pelo papo sobre seu avô e pelo apoio a esta pesquisa. Ao André Ribeiro e
Gabriel Xavier, amigos e compositores santistas, pelo apoio constante e a
disponibilidade permanente para questionamentos e discussões. Heloísa Valente e
Silvio Ferraz, por sua vez, também apontaram e contaram diversas histórias importantes
e interessantíssimas em minha qualificação. E Amálio Pinheiro, contando suas histórias
de Santos, do Brasil e do mundo, fica o “muito obrigado”.
Ao João Sampaio, santista fanático, pelos apontamentos futebolísticos valiosos
para esta pesquisa.
Pelos encontros e discussões sobre composição, cabe agradecer Rodrigo Lima,
cujas perspectivas musicais me inspiram diariamente.
Ao Gustavo Bonin, Paulo Sampaio e Pedro Taam, amigos que, estando no
mesmo barco que eu, são meus constantes interlocutores para questões semióticas e
semiológicas.
VI
Pelo apoio conceitual, espero que mútuo, nesta batalha hermenêutica que é
estudar Peirce. Caio Ramires, Aline Antunes, Hélida de Lima, Daniel Ribeiro.
Agradeço também à todos do Grupo de Leituras Avançadas em Peirce, sobre a tutela do
professor Winfried Nöth.
Por fim, gostaria de agradecer a todos meus amigos e em especial aos meus pais,
Lúcia e José, aos meus irmãos, Francisco e Luciana, e a minha namorada, Loreta. Seu
suporte, amor e apoio foi diário, muito obrigado.
VII
RESUMO
A presente pesquisa estuda a fase experimental do compositor Gilberto Mendes,
extraindo desse período componentes estruturantes da criação musical do compositor: a
maneira como ele se relaciona com seu ambiente, as peculiaridades semióticas de suas
obras e sua morfologia composicional. Investigando a complexidade sígnica das
semioses musicais em questão, esta pesquisa procura demonstrar como as obras desse
período podem ser ao mesmo tempo estruturalmente vanguardistas (em compromisso
com as vanguardas europeias, estadunidense e com a Poesia Concreta brasileira) e
comunicativas. Tendo esse objeto e objetivo em vista, a pesquisa se materializa na
análise de três obras experimentais do compositor: nascemorre (1963), Blirium C9
(1964) e Santos Football Music (1969). Estas análises são realizadas de acordo com
uma semiótica musical com bases na filosofia de Charles S. Peirce, já que a partir desse
arcabouço teórico-metodológico é possível apreender de forma ampla a complexidade
desse processo interpretativo, desde sua produção até sua performance-fruição.
Palavras-chave: Gilberto Mendes; Música Nova; Música experimental; Semiótica
musical; Semiótica peirciana.
VIII
ABSTRACT
The present research studies the experimental phase of Brazilian composer Gilberto
Mendes’s work, extracting from such period a few structuring elements of his musical
creation, such as the way he interacts with his environment, the semiotical particularities
of his works, and their compositional morphology. In order to demonstrate how the
work of Mendes during such period is at the same time aesthetically avant-garde (in
line with European and north-american vanguards and Brazilian concrete poetry) and
communicative, this dissertation investigates the complexity inherent to the musical
semiosis under discussion. With that in sight, the research materializes itself in the
analysis of three experimental works of the composer’s: nascemorre (1963), Blirium
C9 (1964) and Santos Football Music (1969). These analysis were made according to
musical semiotics based in Charles S. Peirce’s pragmaticism, since this theoretical-
methodological framework enables one to apprehend the complexity of the musical
interpretative process in a broad manner, from its production to its fruition.
Key-words: Gilberto Mendes, Música Nova, experimental music, musical semiotics;
Peircean semiotics.
IX
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................1
1. VIVA GILBERTO MENDES!................................................................................7
2. UMA SEMIÓTICA PEIRCEANA DA MÚSICA: panoramas, categorias e
contextos ...................................................................................................................13
2.0 Panorama selecionado da semiótica da música com bases peircianas..........16
2.1 Fundamentos sígnicos das semioses musicais...............................................20
2.1.1 Fundamento das semioses musicais................................................23
2.1.1.1 O fundamento sígnico do som ........................................23
2.1.1.2 A música para além do som............................................25
2.2 Objetos da música: a música como representação? .....................................27
2.2.1. Relação ente signo e objeto dinâmico...........................................29
2.2.2 Representação musical: Ícone ou índice?.......................................30
2.3 Escuta, interpretação e análise – música-pós-som.........................................34
2.3.1 A relação do signo com os interpretantes.........................35
2.3.2 Interpretantes musicais...................................................................36
2.3.3 Ouvir é compor.............................................................................37
3. CAMINHO PARA O EXPERIMENTAL: nacionalismo, vanguardas,
concretismo.....................................................................................................................43
3.1 Retrospecto – Do nacionalismo modernista à música nova..........................44
3.1.1 Antecedentes: projetos musicais nacionalistas................................44
3.1.2 Música Viva e a querela das Cartas Abertas.................................49
3.1.3 Metaprecursões: as fases de formação de Gilberto Mendes
(1945-1962) ............................................................................................53
3.2 A modernidade musical: a reinvenção da escuta e da composição..............60
3.2.1 As vanguardas europeias.................................................................62
X
3.2.2 As vanguardas norte-americanas...................................................72
3.3 Poesia Concreta e Música Nova....................................................................75
4. O PERÍODO EXPERIMENTAL DE GILBERTO MENDES: análises..............80
4.1 nascemorre: concreto do concreto ................................................................83
4.1.1 Entendendo nascemorre: análise descritiva...................................84
4.1.2 Indicialidades internas: desconstrução cíclica ...............................88
4.1.3 Concretizando a poesia concreta.....................................................92
4.2 Blirium C9: da composição à proposição......................................................94
4.2.1 Análise descritiva estrutural e harmônica......................................95
4.2.2 Secundidades concretas em Blirium C9..........................................97
4.3.3 O uso da citação em Blirium: onde está a composição?................98
4.3 Santos Football Music: Ambiente sonoros de futebol-música....................103
4.3.0 Santos da Era Pelé: o futebol como interação inevitável.............104
4.3.1 Gilberto Mendes e Santos Football Music: a gênese e descrição da
obra.............................................................................................106
4.3.2 Ambientes sonoros em transposição: o som da bola.....................108
4.3.3 O ambiente sonoro como o ambiente musical: complexidade e
inconstância..........................................................................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................118
XI
LISTA DE FIGURAS
Fig. 1: nascemorre de Haroldo de Campos (CAMPOS, 1975, p.57).............................84
Fig. 2: Parte A1 de nascemorre (MENDES, 1966, p.11)................................................86
Fig. 3: Parte A3 de nascemorre (MENDES, 1966, p.14)................................................87
Fig. 4: Parte D1 de nascemorre (MENDES, 1966, p. 20)..............................................88
Fig. 5: Gráfico de orientação de Blirium para a inserção de notas à parte rítmica
(MENDES, 1994, p.86)...................................................................................................95
1
INTRODUÇÃO
Desenvolvimento tecnológico, reviravoltas políticas, reinvenções estéticas: o
século XX é o século das mudanças organizacionais. Manifestações artísticas
controversas urgiam, não apenas pela realidade comunicacional da época, mas
sobretudo por uma diferente inserção dos fenômenos artísticos na sua engrenagem
econômico-social (cf. BENJAMIN, 1996). Começando a observar essa nova
estruturação pela relação entre os signos artísticos com seus objetos, encontramos uma
superação da representatividade nas artes visuais (KANDINSKY, 1996, p. 73-87)
fenômeno evidente no contexto das visualidades (passagem do figurativo ao abstrato).
A música em sua vez passou por um processo parecido, que pode ser chamado de
emancipação do som: de onde antes havia um foco na reprodução de formas e
arquétipos cristalizados na história da música ocidental, passou a haver uma escuta do
som (e não apenas a nota) enquanto material estético. Como visto em Solomos, houve
uma aproximação entre o que antes era chamado de música e o que era chamado de
som:
Tudo aconteceu como se em aproximadamente um século a música tivesse iniciado uma
mudança de paradigma: estamos no meio da passagem de uma cultura musical centrada
na nota musical (tom) para uma cultura do som1 (SOLOMOS, 2013, p. 14).
. A produção de música pode começar a operar, então, pela lógica da
transformação de objetos sonoros em objetos musicais (SCHAEFFER, 2002, p. 268),
dentre tantos outros paradigmas de (re)invenção sonora (cf. CAMPOS, 2007).
Além desta reformulação interna dos signos, objetos e representações, houve
também uma reinvenção em nível de temporalidade. Como consequência dessas novas
articulações de diversos campos e linguagens se deu uma reorganização da sintaxe
vigente no discurso artístico, de forma a confirmar a noção mcluhaniana do fim da
linearidade temporal-narrativa (PIGNATARI, 1993, p. 72; MCLUHAN, 2014, p. 51-
58), tanto por imposição da matéria estética quanto pela peculiaridade histórica de
produção/inserção da arte nesse momento histórico. Tendo em vista a proximidade entre
a sintaxe e a forma (PIGNATARI, 1993, p.28), é nas sintaxes artísticas do século XX, e
sobretudo nas sintaxes musicais – idealizadas por Brelet como pura temporalidade
1 Tout s’est passé comme si, durant un siècle environ, la musique avait amorcé un changement de
paradigme: nous sommes en train de passer d’une culture musicale centrée sur le ton à une culture du son
(todas as traduções são do autor).
2
(FUBINI, 2008, p.141) – que se encontra fenômenos de uma nova compreensão da
música em sua materialidade, manifesta de modo a reinventar as experiências
interpretativas da música. O compositor, o intérprete e o ouvinte deixavam de
desempenhar seus papéis clássico-românticos.
Partindo e sustentando essas novas organizações semântico-sintáticas, também
está a mais contemporânea das noções passíveis de descrever a produção artística do
século XX: a mistura de linguagens artísticas, montando projetos intersemióticos,
intermedia (HIGGINS, 2007, p. 18-31), que se dão a partir da (intra/inter)articulação de
diversas linguagens já desenvolvidas visando gerar algum tipo de resultado final
inovador (cf. PLAZA, 2003, p. 11-14; PIGNATARI, 1981).
Distantes mas próximos do contexto europeu e norte-americano, compositores
brasileiros se desenvolveram em paralelo a essa história. Na década de 1960,
compositores como Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira e Rogério Duprat
também passaram a reinventar os procedimentos canônicos de composição e produção
musical, dialogando diretamente com a neue Musik europeia e também com a ambiência
sonora em que se inseriam. Dessa maneira, nestes compositores há um embate esta dita
“música do passado” à brasileira, resultando na produção de novas proposições
harmônicas, formais e semióticas.
A presente dissertação objetiva desvendar a maneira como o embate às técnicas
canônicas se manifestaram semioticamente no contexto brasileiro da década se 1960
especificamente na obra de Gilberto Mendes. Nessa linha, esta pesquisa objetiva
aprofundar esse período experimental deste compositor, abstraindo-lhe propriedades
estético-semióticas. Como veremos, compreender Mendes no período delimitado é
compreender uma outra experiência semiótica da música. Subvertendo antigas noções
de interpretação, Mendes expõe um compositor que já não é compositor (como em
Blirium C9), intérpretes que agem a revelia da partitura (como em nascemorre) e
ouvintes que saem do seu estado passivo para participar sonoramente das peças (como
em Santos Football Music). Dessa maneira, a presente pesquisa procura entender como
Mendes reinventou a sua maneira uma significação musical, sempre estabelecendo elos
de suas peças com importantes correntes de composição da época (serialismo integral de
Boulez e Stockhausen, pesquisa com acaso e novas abordagens de escutas da música
americana, etc).
3
Nesse enleio, esta pesquisa tem como recorte temporal o período experimental
de Gilberto Mendes, que começa quase que concomitantemente ao lançamento do
Manifesto Música Nova2 e vai até meados da década de 1970. Porém, mais do que isso,
esta pesquisa não pretende ter um olhar forte para as peças do compositor na década de
70, visto que estas trabalham com um tipo de composição (valiosa para a carreira do
compositor) que mistura a música com o teatro, fazendo emergir da música suas
dinâmicas teatrais. Em suma, não focando na música-teatro de Mendes, estudamos as
peças do compositor nos anos 60, que montam justamente a genealogia para essa e
outras possibilidades de abertura criativa.
Para abordar este recorte temporal-analítico, esta pesquisa procurou utilizar e
aprofundar a semiótica da música com base no edifício filosófico pragmaticista de
Charles Sanders Peirce, baseada principalmente nos textos de José Luiz Martinez (1991,
1996). Esta semiótica permite, entre outras tantas perspectivas, a superação do
pensamento dicotômico colocado em questão no início desta introdução, tornando-se
uma abordagem precisa para o objeto de estudo em questão. As tricotomias peircianas
ao se aplicarem a música, montam uma amplitude de possibilidades de leituras sobre os
processos sígnicos musicais, além de um poder de mapeamento tanto de abordagens de
produção e fruição como de interpretação musical (onde estão as musicologias dentro
das tricotomias peircianas?). Além disso, a semiótica peirciana também tem enorme
poder intersemiótico, que permite tanto compreender a sempre presente relação de
Mendes com outras artes (cinema, poesia...), quanto a relação entre perspectivas
técnicas em diferentes campos (como relacionar a poesia concreta com a música nova).
Dito isso, cabe explicar como se estrutura esta dissertação, a fim de explicitar
com clareza os caminhos percorridos por esta pesquisa. Em primeiro lugar, a pesquisa
se inicia com um breve primeiro capítulo que apresenta o compositor estudado: Gilberto
Mendes. Neste momento inicial, a memória do compositor – falecido no meio da
confecção desta dissertação – se mistura com apontamentos para uma análise da obra de
Mendes em um sentido amplo. Neste caminho, procuramos tanto responder quais as
diversas fases composicionais de Mendes como evocar a atmosfera sonora, artística,
urbana e literária que o compositor santista carregou consigo.
2 O início desse período composicional é marcado pelo lançamento da peça nascemorre, na qual o
compositor de desvencilha de procedimentos composicionais nacionalistas para mergulhar em
experimentações estéticas concretistas/vanguardistas (MENDES, 1994, p. 77-78).
4
Em um segundo capítulo, a obra de Mendes é deixada brevemente de lado para
que fosse possível o aprofundamento em nossa metodologia de análise: a semiótica da
música com bases peircianas. Este capítulo segue o seguinte caminho: em primeiro
lugar, há a criação de um panorama crítico e selecionado sobre a semiótica da música
em relação a semiótica de Peirce. Em um segundo momento, há um aprofundamento
relacional entre as três tricotomias sígnicas de Peirce e características inerentes às
semioses musicais. Dessa forma, foi possível compreender como as categorias se
entrelaçam tanto com os fundamentos, objetos e formas interpretativo-simbólicas da
música, evitando-se leituras facilitadoras e taxativas dos fenômenos musicais. Assim,
pretende-se discutir a complexidade das cadeias tradutórias musicais, bem como a
dificuldade consequente de uma simplificação destes fenômenos, haja vista da
intersemiose e os diferentes níveis sígnicos que circundam esse tipo de signo e
significação.
Na sequência, no terceiro capítulo a pesquisa procura, para introduzir o período
experimental de Mendes, construir um contexto sólido para o que foi este período do
compositor. Para tanto, partimos de antecedentes históricos brasileiros (modernismos e
nacionalismos) até os períodos composicionais anteriores à música nova de Mendes.
Além disso, em um segundo momento do capítulo, é construída uma escuta da interação
entre Mendes e as vanguardas musicais do século XX que mais lhe influenciaram, tanto
conceitual/literariamente quanto na própria morfologia da composição sonora.
Interessante notar que este capítulo foi todo desenvolvido utilizando como metodologia
de análise a semiótica musical do capítulo anterior.
Por fim, a dissertação se encerra com análises do período experimental de
Mendes. O período experimental de Gilberto Mendes apresenta grande heterogeneidade,
o que demanda, para análises aprofundadas, um desmembramento em períodos e em
suas relações com suas devidas ambiências. Assim, analisar o período “de vanguarda”
(sic) de Mendes requisita uma divisão analítica. Por isso, nesta dissertação este período
é tido como objeto de três análises de peças do compositor: nascemorre (1963), Blirium
C-9 (1965) e Santos Football Music (1969).
A escolha dessas peças se justifica na medida em que elas podem ser
consideradas, como coloca o compositor diversas vezes (MENDES, 1994, p. 105; p. 81;
p. 77), suas peças mais experimentais. Mesmo que carregando o emblema do
5
experimentalismo, essas três peças foram também das mais executadas obras do
compositor santista, sendo tocadas com frequência e no mundo todo. Em cada uma
delas, Mendes trabalha diferentes perspectivas de abordagem da música de vanguarda, e
as confluências semióticas destas apropriações são também colocadas em diálogo.
O período experimental de Gilberto Mendes é pautado em diversos paradoxos
composicionais, estéticos e comunicacionais. O mais importante destes reside na
maneira com que o compositor constrói caminhos musicais que bebem de fontes (tidas
como) antagônicas. Em Mendes podemos enxergar em uma mesma obra uma mistura
estrutural entre um severo estruturalismo de matriz europeia com proposições (ditas)
anti-estruturalistas, como os experimentos com música aleatória e indeterminação. O
conjunto dessa postura não-reativa justifica em um primeiro momento porque Antonio
Eduardo Santos chama a obra de Mendes de antropofágica, no sentido do “seu
particular poder de assimilação das diferentes influências musicais por ele sofridas”
(SANTOS, 1997, p. 127). Cabe dizer, além disso, que esse “poder de assimilação” se
deu justamente em um período de grandes confrontos partidário-estéticos, tal qual os
que ocorriam na esfera político-econômica mundial.
A partir dessas saídas estéticas para dicotomias pressupostas, a obra de Mendes
vive também, em uma segunda instância, um paradoxo comunicacional. Este, apontado
por Haroldo de Campos, reside na tentativa de superação de uma vanguarda
experimental não comunicativa, não compreensiva para um público leigo3. Em suas
palavras, Mendes procura “conciliar o experimentalismo da ‘música nova’ com a ‘nova
compreensibilidade’” (CAMPOS apud MENDES, 1994, p. XV).
Dito isso, o presente trabalho reside então no processo de desvelar o lugar de
Mendes dentre esses paradoxos sígnicos, encontrando as saídas ocasionais do
compositor para cada uma das situações postas.
Na contramão do nacionalismo musical, corrente hegemônica na época, a obra
de Mendes ajuda a compreender o complexo processo histórico vigente em uma
abordagem marginal, mergulhando na ambiência em que ele se insere pelas suas bordas.
Desdobrando-se dessa postura, a obra de Mendes, devido a seu caráter de absorção
3 Como veremos na dissertação, Mendes não apresenta esse projeto com muita clareza, mas suas peças
expõe essa postura, o que até de certa forma o surpreende, como quando ele conta que Blirium C9, uma
de suas peças mais experimentais e sua peça mais compromissada com o aleatorismo, é sua obra mais
tocada (MENDES, 1994, p. 88).
6
múltipla de momentos e ambientes, “reclama análise e estudo” (TRAGTENBERG,
1991).
7
CAPÍTULO 1
VIVA GILBERTO MENDES!
No dia primeiro de janeiro de 2016, durante a presente pesquisa de mestrado,
faleceu Gilberto Mendes, compositor e objeto desta pesquisa. Em memória de sua obra
e personalidade surgiram e ainda tem surgido homenagens musicais, textuais,
performáticas e acadêmicas. Em alguma medida, a presente pesquisa tomou
inevitavelmente um rumo semelhante. Se enquanto Gilberto estava vivo esta pesquisa já
soava como uma análise em homenagem ao compositor, agora ela o é assumidamente.
Dito isso, é importante ressaltar que homenagear Mendes requer rigor acadêmico e
meticulosidade ao se reviver sua música, sendo ela uma das mais complexas da história
da música brasileira de concerto.
A complexidade, em Mendes, não é, porém, expressa em uma profundidade de
modelos composicionais, em técnicas ou proposições intrincadas e complicadas. É a
complexidade cultural, tal qual visto em Edgar Morin (1997, 1998), expressa não no
rebuscamento de linguagens e no aprofundamento de estilos, mas logrando sobretudo a
interação de sons, ambientes e ambiências. Em outras palavras, neste breve capítulo
pretendo mostrar que Gilberto Mendes é precisamente aquilo que não pode ser
simplificado, haja vista a profusão de signos envolvidos no seu processo de produção-
fruição musical. É precisamente esta a hipótese desta pesquisa: Gilberto Mendes em
seus experimentos faz uma vanguarda não reativa4, mesmo que se utilize de palavras
como “ruptura”, “abdicação” tratando de sua relação com a música do passado. Nesse
rumo, veremos que Mendes soma anacronicamente técnicas de diferentes locais,
universos e culturas, tornando sua obra um objeto cultural de fruto de grande interação
social, política e artística. Em outras palavras, o experimento de Mendes é da
complexidade no melhor sentido não formal. Para alguns, pós-moderno; para outros,
divertido; para ele mesmo, clássico-romântico.
Um primeiro ponto a ser explorado e visto na obra-vida de Mendes é sua
volatilidade e a constante mudança de estilo-técnica (para ele, sinônimos) de sua
4 Não-reatividade, nesse caso, nada tem que ver com apatia ou estagnação, mas com a maneira como o
compositor interage com as diversas correntes vigentes em sua contemporaneidade, além de, é claro, seu
contato com a “música do passado”.
8
composição. Como bem explora Carla Delgado Souza (2011), em Mendes encontramos
diversas fases composicionais que se conectam antropológica e biograficamente à
ambiência em que o circunscreve. Ou melhor, Mendes esteve atento às demandas
estético-políticas de seu(s) tempo(s), atualizando-se como signo em meio a uma rede
histórico-estética que agia sobre ele na medida em que ele agia sobre ela.
Podemos dizer então que a obra de Mendes habita no estranho namoro entre um
rico anacronismo estilístico e uma perpétua atualização e sensibilização do presente. Em
uma dinâmica de suspensão temporal, não deixa de ser tal qual um processo de semiosis
peirciana. Tal qual visto em Plaza (2003), um objeto (passado) se atualiza em um signo
(presente) projetado em um interpretante (futuro). Gilberto é, então, signo de sua
atualidade e de uma nostalgia contemporânea. Veremos inclusive que esse oximoro
prevalece à fusão entre estilos politemporais e leituras de um hoje semiótico. Trocando
em miúdos, podemos ver em Mendes a música tonal encontrar o serialismo e o
aleatorismo em uma peça sobre futebol.
Por isso, antes de entrar na pesquisa propriamente dita, cabe apresentar aqui
quem é o Gilberto Mendes compositor – um pequeno recorte de uma biografia de
inúmeras vivências e histórias relatas tanto em entrevistas quanto em seus livros –,
como sua obra se desenvolveu e, a partir disso, tecer um primeiro esboço de como
Mendes é, ademais contextos mil e ambiências composicionais, um sujeito que interage
com seu ambiente de maneira extremamente aberta e profunda. Em seguida,
aprofundaremos ainda mais estas questões nos capítulos que seguem, tendo como
recorte somente a fase experimental de Mendes (sua produção nos anos 60). Assim,
dadas as circunstâncias, faz-se imperativo um panorama composicional da obra de
Mendes.
A obra de Mendes se inicia com uma fase de formação – ainda que tardia, já que
o compositor completara duas décadas de idade – em meados dos anos 1940. Não eram,
porém, nem tão nacionalistas nem tão dodecafônicas (as duas linhas principais do
pensamento composicional no Brasil da época). Em outra via, a fase de formação de
Mendes tem como característica passar por cima dos modernismos vigentes – nacionais
e europeus, e reavivar uma tradição clássico-romântica, ainda que para fins de pesquisa
e aprendizado do compositor. A obra mais famosa desse período é a Sonatina a la
9
Mozart (1951), mas também são notórias as primeiras 13 das 16 peças para piano
(1949-1952), e o Pequeno Álbum (1945-1952).
Em um segundo momento, Mendes se orienta seguindo a estética modernista-
nacionalista, muito em consequência de seu contato com Cláudio Santoro e outros
compositores de sua época. Esse encaminhamento, como veremos no Capítulo 3 desta
dissertação, conta com características sui generis em relação ao movimento em questão,
sobretudo nas temáticas escolhidas para a poética do compositor. Mesmo sendo
nacionalista, a alcunha não é expressa no compositor santista como dogma, mas como
ponto de partida para a criação sobre seu próprio ambiente.
Ao ter contato com poéticas das vanguardas modernistas euro-americana e com
a poesia concreta brasileira, Mendes encontrou solo fértil para experimentação e o
desenvolvimento da linguagem musical em contato com elementos antes tidos como
não-musicais ou extra-sonoros. Cage, Stockhausen, Boulez, Pousseur, Haroldo, Décio e
Augusto. Em nascemorre (1963), feita sobre poema de Haroldo de Campos, trouxe uma
polifonia de ruídos aleatórios à sonoridade do coro. Na série Blirium (1965) construiu
peças-projeto que, em suas partituras, não contavam com instrumentos definidos e
dependiam estruturalmente dos intérpretes para suas execuções. Em Santos Football
Music (1969), transpôs para a sala de concerto elementos da sonoridade e da dinâmica
futebolística, conferindo enorme inteligibilidade comunicacional às técnicas da música
experimental. Em suma, nesta fase composicional, Mendes se descolou de seus mestres
e começou uma “ruptura com a música do passado” (MENDES, 1994, p.82). Este
movimento motivou inclusive a presente pesquisa, haja vista a interessante maneira que
o compositor atravessa inúmeros estilos, instrumentações, formas de pensar e lugares do
mundo.
Mendes atingiu já no início de sua carreira composicional o aprofundamento em
duas linhas tidas como profundamente antagônicas e excludentes: o nacionalismo da
vertente de Guarnieri, Santoro e Villa-Lobos e o experimentalismo “cosmopolita” dos
poetas concretos, de Boulez, Stockhausen e Cage. Porém, como veremos na análise de
Santos Football Music, mesmo orientando-se por uma poética, Mendes não exclui as
outras que o circundam.
Elementos teatrais pouco a pouco se inseriam na música experimental de
Mendes. No decorrer dos anos 60, o compositor passa a pedir em suas partituras
10
representações para além do som, dando gênese ao que ele chamou de “teatro-música”,
que seria diferente de uma “música teatral” ou de um “teatro musical”. É, ao mesmo
tempo, um teatro que sobrevive de sua musicalidade e uma música intrinsecamente
cênica. Este interessante salto intersemiótico fez de Mendes um precursor de grandes
linhas de pensamento composicional e artístico: a música cênica, a performance como
linguagem entre outros. O halterofilista e a soprano de Ópera aberta (1976); o ator no
vaso sanitário em Grafito (1985); a quali-performance cageana de Gota e Contagotas
(1973); um pianista manequim que mais posa do que toca em Son et Lumiére (1968); e
o assassinato com a batuta n’O Último Tango na Vila Parisi (1987). A música se
potencializando – abrindo portas para fruições, reações e interpretações – no e pelo
teatro e pelo cinema.
Nas décadas que seguiram, de 1970 até o século XXI, Gilberto Mendes – um
compositor já consagrado e considerado em seu meio – continuou compondo para
inúmeras formações, atuando principalmente na música instrumental de concerto e para
coro. Ora para piano (Fur annette, 1993), ora para coro (Sol de Maiakóvski, 1995), ora
para outras formações instrumentais (Urubuqueçaba, 2003; O sol que instiga, 2007).
Neste longo período com inconstância técnica própria, a interação entre diferentes
concepções harmônicas é latente: ora tonal, ora modal, ora atonal. A saudade que
movimenta.
Lúdico e não debochado. Mendes sobrepôs sua sobriedade (da tradição
composicional à la Rimsky-Korsakov) à ebriedade das antigas big bands de jazz e,
sobretudo, do cinema. Extraiu dos mares de Santos – os mares do sul – seu substrato
hollywoodiano, salgando o que há de Califórnia no boqueirão. Um eterno saudosista, ou
melhor, nostálgico, o compositor santista impulsiona no presente signos de um passado
imaginado, de uma nostalgia plástica – amena. Em gesto anacrônico-sincrônico de
quem olha para o passado como constelação (Cf. PLAZA, 2003) em Mendes a “música
é o cinema do som”5, mesmo as gêneses destas linguagens artísticas serem tão distantes
temporalmente. Da cidade de Santos, impressas ficaram as leituras-memórias de uma
paisagem mental – um palácio caiçara de criatividade e nostalgia.
O cinema. Como visto em suas inúmeras colunas de jornal (cf. MENDES,
2013), o interesse pela sétima arte é mais do que paixão, é devoção. O universo
5 Música, Cinema do Som é título de livro de Gilberto Mendes (MENDES, 2013).
11
cinematográfico torna-se indissociável do musical, havendo inúmeros pontos de
intersecção entre estas duas linguagens na obra do compositor. Antes de “música-teatro”
o elemento cênico de Mendes é pois proveniente da experiência da atuação do cinema e,
em especial, do cinema hollywoodiano. Até por isso, não faltam referências e
homenagens a atores, filmes e diretores em seus artigos, livros e peças. Fred Astaire,
Dorothy Lamour, Kubrick. Efeitos e percepções santistas se confundem com aquelas
das grandes telas, em elegias à ilha santista:
O footing no Gonzaga, sob um fio mínimo de luz, entre os dois trilhos de bondes, o
resto tudo no escuro. O Club dos Ingleses, suas festas em benefício dos em luta que
passavam por aqui e eram recepcionados. E Santos se tornava Casablanca, a orquestra
tocava As Time Goes By, nos bailes. Cada cargueiro levava um canhão na popa
(MENDES, 1994, p. 229).
Na ponta da praia, ficam as memórias dos livros jogados da época do Ramiro
(seu codinome no Partido Comunista), quando perseguidos pela ditadura Willy Correa e
ele jogaram no mar todos seus livros que denunciassem sua inclinação política. Dessa
lembrança vem outra: mesmo tendo alma trotskista, não teve de fugir dos soviéticos em
sua primeira viagem para a Europa, pegando o último trem da Checoslováquia antes de
uma invasão comunista em 1968 (MENDES, 2008, p. 83-89).
Seguindo pela orla, canal por canal a praia é o encontro improvável entre a
tradição musical concertística – clássica (Sonatina à la Mozart), romântica (do amor a
Schumann e Brahms), moderna (de Guarnieri, Santoro e o Ponteio) e contemporânea
(com Pousseur, Blirium e os poetas concretos). Ao invés de ouvir o passado da música
como diacrônico, progressivo ou evolucionista, o espírito composicional do santista
extrapola a história linear abrindo uma fenda temporal caiçara. A tentativa de coesão
interna de uma peça passa a não estar na relação de materiais (sobre ou super) postos
respeitando um estilo definido, mas a coesão urge da interação entre estilos (vale dizer,
técnica, sic) e épocas distintos. Mendes transforma assim os canais de sua cidade em
buracos de minhoca onde se viaja no tempo musical como espaço musical, atravessando
culturas de todo mundo transversalmente. Rússia, Alemanha, Brasil, EUA, Hawaii,
Checoslováquia, Inglaterra. Se é viagem, termina em casa – em Santos.
Em casa: “Você conhece a Conselheiro Nébias? É ali pertinho. Sabe a Rua da
Paz?” – Me dizia, e apontava para os lados, naquela rosa dos ventos imaginária que
atravessa as paredes de apartamento. Televisão ligada, a cachorra perambulando.
12
Saudades do Parque Balneário Hotel, que hoje virou Shopping, onde tocavam
até tarde para deleite do público santista, “sua boîte, seu grill de verão, as orquestras
argentinas...” (MENDES, 1994, p. 229). Ou do Clube XV, onde a orquestra de Tommy
Dorsen tocou para animar a noite.
Por fim, quando a maré está baixa, é possível ir para a Urubuqueçaba – onde
dormem os urubus – lugar paradisíaco da cidade de Santos que ganhou peça para piano
e flauta.
A obra do compositor santista corta transversalmente toda sua cidade, dos
clubes, do mar, da vida noturna, da praia, paisagens, costumes, esportes, entre tantos
outros elementos. Mendes é sua cidade em som. “Santos, muitas cidades em uma só
cidade... Na minha cabeça... Como minha música” (MENDES, 1994, p. 231).
13
CAPÍTULO 2
APONTAMENTOS PARA A SEMIÓTICA PEIRCIANA DA
MÚSICA:
panoramas, categorias e contextos
Mesmo sendo a presente dissertação sobre Gilberto Mendes e sua música
experimental, se faz imperativa uma discussão acerca das atuais perspectivas de análise
semiótica da música, visto que esta se mostra – para além de um instrumental analítico
– uma chave para a leitura de fenômenos experimentais sonoros.
O presente capítulo se organiza da seguinte maneira: em primeiro lugar, há uma
exposição breve do estado da arte das semióticas/semiologias da música. Em segundo, a
justificativa para uma abordagem peirciana, expondo a metodologia que será usada nas
análises desta dissertação. Em terceiro, discutem-se as diversas apropriações do edifício
filosófico peirciano à música. Por fim, propõe-se uma discussão mais aprofundada
acerca das categorias peircianas de signo (quali, sin, legi; ícone, índice, símbolo etc) à
música, procurando justificar o porquê da percepção dos signos musicais como
predominantemente quali-sígnicos icônicos e remáticos. O capítulo termina com uma
discussão peirciana acerca da composição musical em relação dialógica com o conceito
de contexto, preparando o capítulo seguinte.
São incontáveis as linhas, correntes e ribanceiras em que se aproxima o estudo
musical do estudo das linguagens, ou melhor, do estudo semiótico. Cada autor(a), a seu
modo, desmembra e cria para a música e o som classificações, novas polaridades e
teorias sígnicas.
Dentre um emaranhado de leituras e controvérsias, há diversas versões dos
signos musicais. Desde estudos pioneiros como o do “significado musical” discutido
por Coker (1972); o esboço de uma semiótica da música de Correa de Oliveira (1979)
ou a aproximação de Bruno Nettl (em 1958) entre o estudo etnomusicológico a questões
linguísticas, até a primordial discussão da música em seu caráter de linguagem
(SANTAELLA, 2013, p. 98-103). Em diversos locais do mundo, surgem novas escutas
do que seria um signo musical, um signo sonoro ou um processo sígnico musical. Como
era de se esperar, as especificidades emersas da cultura compelem a diferentes músicas
14
relações semióticas diversas que, por suas vezes, clamam por diversidade conceitual em
suas análises. Isto quer dizer que, por mais que algumas teorias se apresentem como
leituras universalistas de fenômenos, cada objeto de análise musical, na medida em que
é um objeto de cultura e de som, necessita de uma heurística como parte da metodologia
de análise.
A semiótica da música com base na semiótica de Greimas, por exemplo, muito
se desenvolveu no estudo da canção no Brasil, como visto em Luiz Tatit (1998), já que
ela permite, dentre outras diversas ramificações, a discussão da música em sua relação
com um texto nela inserido, partindo de conceitos como discurso, narrativa e
tensividade até chegar a ideias próprias de uma nova semiótica, a da canção, que conta
com a entoação ou a figurativização (por exemplo, ver TATIT, 1998, p. 121-122).
Interessante notar, também, que mesmo seguindo uma fonte semiótica semelhante à
greimasiana, outros autores encontraram metodologias de análise provenientes de
objetos de estudo um tanto diversos. É o caso de Eero Tarasti em A Theory of Musical
Semiotics (1994), que analisa obras desde Beethoven até Debussy tendo como chave de
leitura conceitos como narratividade, discurso musical, actoriality, sujeito musical,
entre outros.
Teoria das tópicas (cf. HATTEN, 1994, 2005), análise de gesto (LIDOV 1987),
transposições da linguística (MONELLE, 1992; TARASTI, 1994; NATTIEZ, 2005)...
São inúmeras as maneiras de se encarar os signos musicais e aplicar uma determinada
semiótica para suas leituras. A resposta de como desvendar uma obra mora, pois, na
própria obra – como princípio heurístico fundamental. Por um lado, desdobram-se de
uma música suas representações ou quase-representações (indiciais-contextuais,
políticas, metassígnicas) e, por outro, arcabouços metodológicos próprios são levados à
lógica da descoberta do objeto artístico.
A pergunta subsequente da presente pesquisa seria qual a semiótica da música
apropriada para o período experimental de Gilberto Mendes. Na medida que a música
de Mendes lida com o contexto em que ela se insere em um processo de intersemiose
com o que a circunda (como veremos em Santos Football Music), a semiótica utilizada
para ler estes processos sígnicos precisa, por suposto, lidar com a possibilidade do
trânsito entre linguagens diversas e de uma música para além do som – “um clima
15
musical”6. Além disso, entender Mendes pressupõe lidar sempre com contradições
(discursivas, ideológicas do próprio autor) o que, como mostra Haroldo de Campos,
pode construir um interessante oximoro:
a paradoxal recusa à análise (‘a obra musical deve falar por si mesma’) e ao julgamento
axiológico (o que importa é o ‘selo da personalidade’) da parte de um compositor-
musicólogo, analista rigoroso por vocação, que pertence à linhagem de músicos
duplicados em críticos (CAMPOS apud MENDES, 1994, p. X).
Coadunando-se com esta perspectiva de pesquisa, método e análise de uma obra
de arte, há na semiótica proveniente de Charles S. Peirce um campo fértil para lidar
simultaneamente (e não excludentemente) tanto com uma fenomenologia da obra
artística quanto com a colocação dela em dialogia com fenômenos extradiegéticos/extra-
artísticos. Em outras palavras, mesmo lidando com modelos de processos de linguagem,
a semiótica peirciana permite a coexistência do heurístico, do contextual e do simbólico;
do metalinguístico, do social e do representacional. E do intersemiótico. A obra
artística, dessa forma, pode emergir por si própria em uma análise já em paralelo a
outras análises e obras ou tendências.
Assim, a presente pesquisa tem como recorte metodológico a semiótica da
música baseada nas noções de signo e semiose de Charles Sanders Peirce. Porém, a
maior parte dos estudos de semiótica da música advém de uma matriz
linguística/semiológica, o que, como aponta Ferraz, pode se dever em parte ao fato de
que para o objeto de estudo daquelas análises, que é “a música do romantismo e do
classicismo, onde já vem exacerbados os aspectos simbólicos da composição musical”
(FERRAZ, 1997, p. 62), possa ser apropriado ler “a música como uma espécie de
tradução do discurso verbal” (Idem). As limitações da transposição dos modelos
semióticos e as limitações da semiologia da música com matriz linguística são assunto
para autores como Stoianova (1978), que propõe que apropriar para a música a lógica
binária do universo verbal, assim como o funcionamento de unidades atômicas em um
discurso, é profundamente reducionista. Esta constatação se dá visto que – mesmo que o
texto e a música lidem com som (ainda que, no discurso verbal, este seja mais
hibridizado semioticamente) – os signos de ambos são de naturezas muito diversas
6 Fala de Mendes concedida em entrevista para esta pesquisa (também presente no documentário “A
Odisséia Musical de Gilberto Mendes”, dirigido por Carlos de Moura Ribeiro Mendes) sobre a peça
Objeto musical (Homenagem a Marcel Duchamp) – (1972), na qual Mendes tem em uma peça musical
não o trabalho sobre o sonoro, mas sobre o que ele chama de “clima musical”. A música não seria apenas
o trabalho sobre o som, mas um tipo de efeito sensorial quase-controlável em outras linguagens não-
sonoras. Em suas palavras, é “uma música sem música”.
16
(enquanto na música há a predominância de aspectos qualitativos, no texto há uma
tendência maior para o universo simbólico-lógico).
2.0 Panorama selecionado da semiótica da música com bases peircianas
Como alternativa aos limites da semiologia da música e dos signos que a
circundam, diversos autores passaram a utilizar a semiótica peirciana desde os anos
1970 até hoje. A fim de construir um breve panorama da articulação do pensamento
peirciano com a música, discutiremos a seguir alguns autores selecionados que fazem
uso do sistema semiótico e do edifício filosófico de Charles S. Peirce como leitor da
música. O panorama crítico que segue pretende, assim, expor e discutir algumas das
leituras mais canônicas de Peirce na música, procurando construir uma base sólida para
entrarmos na discussão (um tanto hermenêutica) sobre tipos de signos e semioses
musicais.
Um dos primeiros estudos que aproximava a semiótica peirciana do estudo
sonoro e da análise musical foi o de Willy Correa de Oliveira (companheiro de Mendes
do na “música nova”) em Beethoven Proprietário de um Cérebro (1979). Haja vista o
notável pioneirismo desta obra, cabe discutir que, como veremos em outras semióticas
peircianas da música, Oliveira constrói seu “esboço” de uma semiótica da música
partindo das noções comunicacionais de Charles Morris. Como lembra Martinez,
Oliveira “combina diversos conceitos semióticos, pegos de bibliografias diversas, com
ideias de Peirce”7 (MARTINEZ, 1997, p. 24) – como faz também Morris. A
proximidade de Oliveira com os poetas concretos, e em especial com Décio Pignatari,
explica essa semelhança. Em Oliveira, as aplicações semióticas são estritamente aquelas
vistas em Informação, Linguagem, Comunicação (PIGNATARI, 1993, p. 21-34), já que
se utiliza dos mesmos conceitos discutidos pelo poeta concreto até certas expressões
ipsis litteris deste autor. Além de tomar como única a tricotomia da relação do signo
com o objeto dinâmico (ícone, índice, símbolo), a semiótica de Peirce, sob as
explicações de Morris/Pignatari, simplifica-se em uma vaga e reduzida noção de signo:
“signo, ou ‘representame’(sic), é toda coisa que substitui outra, representando-a para
alguém, sob certos aspectos e em certa medida” (PIGNATARI, 1993, p. 24). Como
7 “(...) combines several diferente semiotic concepts, taken from various sources, with those of Peirce”
(todas as traduções serão do autor).
17
visto em Santaella (2013, p. 42-51), Peirce apresenta uma noção de signo muito mais
ampla e profunda do que essa. Já que o interpretante não necessariamente está
conectado a um intérprete humano, é limitador dizer que o signo representa algo para
alguém. Além disso, dizer que há significação em certas medidas ou sob certos aspectos
retira do signo justamente seu caráter omnipresente, “um signo é alguma coisa, qualquer
coisa” (SANTAELLA, 2013, p. 44). Assim Morris, e sobretudo Pignatari e Oliveira,
misturam conceitos peircianos com tricotomias de outra proveniência, como o estudo da
sintaxe, semântica e pragmática, que ganharam ampla visibilidade à época. A leitura de
Oliveira desse arcabouço teórico, talvez induzida pelas distorções semióticas de sua
bibliografia, gera uma interpretação da música que merece certa desconstrução: para
Willy, a música é índice, fenômeno de secundidade. Para ele, a esfera mais importante
deste tipo de signo é o contexto para o qual ele alude e suas implicações socio-
semióticas. A dimensão icônica da música é assim, diminuída, ainda que haja nessa
retração certa confusão conceitual. Em breve neste mesmo capítulo discutiremos, à luz
do fundamento dos signos musicais, mais sobre esta percepção da semiótica peirciana
na música, desenvolvendo os porquês para um apontamento da predominância quali-
sígnica da música.
Antes de Oliveira, e também baseando em obras de Charles Morris, Coker
(1972) apresenta pioneiramente conceitos e apropriações com origem peircianas.
Operando na expansão dos processos dos signos como visto em Morris, em Coker
surgem conceitos como o de congeneric e extrageneric meanings, que seriam as
representações intramusicais e as extramusicais. Desta maneira, Coker coloca em
oposição não excludente uma significação estrutural da música com a música como
representação cultural (a música que aponta para fora dela). Esta separação de processos
semânticos obtidos de uma (ou mais) obra(s) deixa perpetuar, portanto, que há entre
estes dois sentidos uma lacuna. Ou seja, que há uma delimitação entre o que está dentro
de uma música e o que está fora dela. Como veremos na articulação peirciana da música
com contextos (secundidade musical), esta distinção entre sentidos puramente sonoros
(que apontam para a própria música) e sentidos extragenéricos (que apontam para fora
dela) pode muito se assemelhar com uma separação entre natureza e cultura, colocando
em pensamento binário o complexo processo de múltiplas escutas musicais.
Lidando mais com ambições semiológicas do que semióticas, encontramos em
Nattiez e Molino (MOLINO, 1990; NATTIEZ, 2002, 2005) uma tricotomia na música
18
com bases assumidamente peircianas (NATTIEZ, 2002, p. 10). Molino e Nattiez
separam o processo de criação-fruição musical em três níveis, montando o que chamam
de modelo tripartite. São os níveis:
a) poiético: da criação, mas não da intencionalidade. Para Nattiez, “uma
forma simbólica resulta de um processo criador passível de ser descrito ou
reconstituído; na maioria das vezes, o processo poiético se faz acompanhar de
significações que pertencem ao universo do emissor” (Idem, p. 15).
b) nível estésico: da recepção-percepção. Aqui, Nattiez traz uma
perspectiva que, mais adiante, será corroborada sobre o processo fruitivo: a
percepção como “processo ativo” (Idem). Este seria o nível das escutas, da
interpretação, das leituras sonoras sob um objeto/obra/fenômeno musical pré-
determinado.
c) nível neutro: o nível da obra musical per se, da materialidade, da
imanência. Este é o nível mais controverso/frágil da tripartição, pois ele discute
justamente a materialidade/imanência da música, questão que também será
levantada mais adiante nesta pesquisa.
Em um escopo mais atual, existem – inclusive no Brasil – inúmeros
apontamentos do pensamento semiótico de Peirce para a música. Podemos citar artigos
como o de Thomas Turino, Peircean Phenomenology and Musical Experience (2012)
no qual o autor monta uma fenomenologia das categorias por meio de perspectivas
sobre uma experiência musical; ou o de Silvio Ferraz, Semiótica Peirceana e Música:
mais uma aproximação (1997), onde o autor discute uma aproximação dos conceitos de
textura, figura, e gesto, tais quais dispostos pelo compositor Brian Ferneyhough com a
primeiridade, secundidade e terceiridade de Peirce. Ou até a extensa pesquisa de Lúcia
Santaella sobre a matriz sonora como berço da primeiridade das linguagens
(SANTAELLA, 2013), na qual a autora discute desde processos cognitivos do universo
sonoro até diversas categorizações estéticas.
Cabe notar, também, que semioticistas da música provenientes de matrizes
linguísticas também fizeram suas incursões peircianas. Raymond Monelle, em
Linguistics and Semiotics in Music (1992), destina um de seus capítulos para a
aproximação de Peirce à música. O autor, entretanto, confunde tricotomias e
19
nomenclaturas, chamando, por exemplo, a tricotomia do interpretante (rema, dicente,
argumento) de tricotomia do objeto. Por este e outros equívocos primordiais – cabe
dizer, facilmente verificáveis em uma leitura do próprio Peirce – não há por que muito
se desdobrar sob este trabalho. Eero Tarasti também abre portas para uma análise com
bases peircianas em seu capítulo A Peircean Excursion into the Semiosis of Musorgsky.
Em seu texto, o autor demonstra o potencial intersemiótico desta base filosófica,
aproximando elementos do universo da visualidade ao universo sonoro. Cabe dizer,
contudo, em consonância com Martinez (1997, p. 26-32) que há pontos a serem
revistos, contudo, na abordagem de Tarasti. A especificidade deste conflito conceitual,
porém, faz com que ele não se faça imperativo para esta pesquisa.
Uma das pesquisas mais profundas na semiótica da música com bases peircianas
advém do pesquisador José Luiz Martinez. Em sua dissertação de mestrado (1991), o
autor minuciosamente transpõe os elementos peircianos de uma teoria da representação
para a música, tentando extrair da arte sonora algumas considerações sobre um de seus
aspectos mais palpitados e controversos: os objetos dos signos musicais. A opção do
autor é sempre encarar a música como processo, utilizando-se das categorias de Peirce
como diferentes ouvidos para a escuta de uma mesma cadeia de semioses, o que poderia
compreender os mais diversos processos musicais. Em Semiosis in Hindustani Music
(1997), Martinez ainda monta um vasto panorama crítico do estado da arte da semiótica
da música peirciana, além de discutir como colocar a música na classificação das
ciências de Peirce. A pesquisa de Martinez, visto que o autor de fato busca em Peirce e
em seu edifício filosófico um alicerce para uma semiótica da música, serve como ponto
de partida para a metodologia de análise dos contextos e obras que envolvem o período
experimental de Gilberto Mendes – o objeto desta pesquisa. Porém, em Martinez o
objeto de pesquisa quase sempre era outro: a música Hindustani, seus contextos e
semioses específicas. Por isso, em seguida se faz necessário um aprofundamento sobre
algumas questões que concernem à significação musical. Discutiremos desde questões
inerentes ao signo musical per se até adentrar em temas mais contextuais da música do
século XX, procurando, assim, montar um alicerce suficiente para sustentar uma
semiótica peirciana para a música experimental de Gilberto Mendes.
20
2.1 Fundamentos sígnicos das semioses musicais
Parece que os signos musicais, ou melhor, os processos sígnicos musicais são
mais afeitos a especulações do que a discussões sobre suas materialidades. Neste
momento da pesquisa, discutimos como as modalidades dos signos musicais permitem
tipos de semioses voltadas para certas predominâncias categóricas, o que gera
apontamentos fruitivos, criativos e estruturais. Por isso, aqui investigamos, em um
primeiro momento, aspectos que concernem ao fundamento do signo musical.
Ao se discutir as inúmeras ramificações categóricas que brotam da
complexidade dos signos, como visto na semiótica de Charles Sanders Peirce, o ponto
de partida, tem a ver, como reflexo da fenomenologia do autor, com o aspecto primeiro
que emana do signo: o seu fundamento. Na semiótica, esse aspecto primordial do signo
peirciano tem sua própria tricotomia, frequentemente chamada da tríade do “signo nele
mesmo”8. A fim de discutir esse aspecto de primeiridade nas semioses musicais, cabe
antes entender a complexidade do fundamento do signo.
O fundamento de um signo é a modalidade na qual ele, como agente semiótico,
se realiza. Eles são, assim, a mais primordial característica semiótica. Para Peirce, o
signo “nele mesmo” pode ser “uma mera qualidade, um existente atual ou uma lei
geral” (CP 2.243). Se um signo é uma qualidade, ele pode ser chamado de quali-signo;
se for um existente atual ou um evento, pode ser chamado de sin-signo; se for uma lei
geral, pode ser chamado de legi-signo (CP 2.244-246). Para essa tricotomia, três
ressalvas e discussões devem ser levantadas: a corporificação (materialização) do signo;
a relação entre as três categorias fundamentais do signo; e a relação dessas três
categorias com as outras tricotomias do signo.
Um quali-signo – ou “uma qualidade que é um signo”–, segundo Peirce, só atua
como semioticamente quando corporificado (CP 2.244), o que faz com que estas sejam
qualidades de um tipo especial, peculiar. Essa qualidade corporificada simultaneamente
é e não é um singular, um existente. Mesmo que corporificar seja trazer a qualidade para
o mundo das relações duais (sin-sígnicas), todo corpo não é senão um compósito hiper-
complexo de qualidades em movimento. Dessa maneira, a primeiridade e a secundidade
peircianas se encavalam, entrelaçando-se inter e independentemente. O corpo do signo
8 A primeira tricotomia é descrita com estas mesmas palavras por Peirce: “Signs are divisible by three
trichotomies;†1 first, according as the sign in itself (...)” (CP 2.243).
21
é o tempo e o espaço que ele perpassa e ocupa, como ele se movimenta, se desdobra e,
por fim, age.
Passando pela qualidade, a qualidade corporificada, o existente e o atual, as
ações dos signos se complementam na existência de leis e linguagens. O universo da
terceiridade (leis, gerais, regras), nasce a partir da experiência colateral emersa da
relação da primeiridade com a secundidade. Na medida em que uma lei age, ou melhor,
se atualiza no tempo e no espaço, ela produz uma réplica de si. Essa réplica, por sua
vez, é sin-signo, um evento no mundo pelo qual há uma conexão terceira com um geral,
regra ou lei. Primeiro, segundo e terceiro se misturam para constituir, então, uma
categorização que, em vez de ser uma disciplinarização de fundamentos sígnicos, serve
justamente para entender maneiras como eles podem se interrelacionar.
Uma qualidade não pode ser um existente, pois este é um compósito complexo
delas, de tal maneira que essa complexidade extrapola a modalidade de ação desse
signo: ele se torna existente e atual, para além do campo impalpável da primeiridade
(que não deixa de ser, também, parte da realidade). Em processo semelhante, uma lei
não pode ser confundida com uma qualidade, já que há uma diferença de identidade
entre esses dois fundamentos, como demonstra Peirce:
A diferença entre um legi-signo e um quali-signo – nenhum dos dois é uma coisa
individual – é que o legi-signo tem uma identidade definida, apesar de usualmente
admitir uma grande variedade de aparências. Thus, &, and, e the sound são todas uma
palavra. O quali-signo, por outro lado, não tem identidade. Ele é a mera qualidade de
uma aparência que não é exatamente a mesma no decorrer de um segundo (CP 8.334)9.
Para além da possível materialidade intrínseca aos signos e das relações dos
fundamentos com modalidades categóricas, é necessário discutir também a relação da
tríade do “signo em si” com outros aspectos centrais do signo peirciano correspondentes
a outras tricotomias e categorizações desta semiótica. Apesar de ter chegado a dez
tricotomias para descrever o signo, Peirce tem em três delas10
um resumo suficiente de
como opera a semiose: a do fundamento do signo (quali, sin, legi); a da relação do
objeto dinâmico com o signo (ícone, índice, símbolo); e a da relação do interpretante
final com o signo (rema, dicente, argumento).
9 “The difference between a legisign and a qualisign, neither of which is an individual thing, is that a
legisign has a definite identity, though usually admitting a great variety of appearances. Thus, &, and, e
the sound are all one word. The qualisign, on the other hand, has no identity. It is the mere quality of an
appearance and is not exactly the same throughout a second”. 10
Essas três tríades correspondem à primeira, à quarta e à nona tricotomias do signo peirciano.
22
Entender como as categorias agem no funcionamento do signo e de sua ação é,
pois, entender as modalidades de organização das categorias semióticas. Entender o
fundamento de um signo, por si só, não diz nada sob suas características semióticas.
Cabe colocar em perspectiva como esse fundamento do signo interage com seus objetos
e interpretantes e, posteriormente, entender como as partes externas ao signo
determinam e articulam o seu próprio fundamento.
Uma qualidade, já que pré-representativa, fluida, sem existência palpável, não
pode significar um objeto que não seja de sua mesma natureza. Por isso, todo quali-
signo é icônico. Da mesma forma, uma qualidade tem como interpretante apenas remas,
hipóteses. Os existentes, por sua vez, significam objetos diretamente, fazendo parte
deles. Assim, sin-signos podem ser icônicos ou indiciais. A sua natureza permite que
seus interpretantes sejam remas ou dicentes. As leis, por outro lado, têm poder
generalizante e abstrato, podendo significar objetos de todas as naturezas, assim como
ter qualquer tipo de interpretante.
O fundamento, assim, determina diretamente a ação do signo em todas as suas
etapas. Quanto mais próximo da primeiridade, menos tipologias de signo são possíveis.
Os signos de terceiridade, ou signos genuínos, são mais numerosos (em termos de
categorias) e podem ser diferenciados com outra minúcia. Já as qualidades, no seu
aspecto triádico, mesmo sendo uma das categorias mais gerais do pensamento peirciano,
só levam a um tipo de (quase) signo: o quali-signo icônico remático.
Por fim, antes de adentrar os meandros do fundamento do signo musical,
devemos fazer uma importante ressalva. A categorização semiótica não pode ser vista
como procedimento classificatório fixo, mas como apontador de predominâncias lógicas
de diferentes características. Em outras palavras, não é apropriado dizer que um signo é
um quali-signo, mas que, em um signo, há uma predominância quali-sígnica. Da
mesma forma, todos os signos são, ao mesmo tempo, quali, sin e legi, mesmo que
alguns desses fundamentos sejam preponderantes. Apontar essas preponderâncias e
tendências dos signos seria, portanto, fazer uma leitura semiótica profunda, ao contrário
de uma semiótica taxativa que supostamente se sustenta em classificações fixas. Por
isso, desvendamos que, tanto mais fixas aparentam as categorias – inclusive as
peircianas – mais frágeis elas se mostram.
23
2.1.1 Fundamento das semioses musicais
Após essa breve discussão acerca do fundamento do signo, podemos passar a
discutir o signo musical. Qual seria o seu fundamento – ou melhor – em qual
modalidade o signo musical tem predominância?
2.1.1.1 O fundamento sígnico do som
No campo dos fenômenos físicos, a música lida com sons. Uma primeira questão
que podemos levantar é se o fundamento do signo musical seria o mesmo de qualquer
signo sonoro. Na medida em que a música, para além de um fenômeno sonoro, é
também um fenômeno cultural, podemos dizer no sentido peirciano, que é também uma
linguagem. A música como linguagem, porém, como já foi visto, é alvo de inúmeras
discussões e investigações que não tangem diretamente essa pesquisa (cf.
SANTAELLA, 2013, p. 97-103; NATTIEZ, 2005; MARTINEZ, 1991, 1997; entre
tantos outros). Há aqui a concordância com Molino (1990, 1975), na medida em que
este autor defende que, para analisar música, é interessante distanciar-se da noção dela
como um fenômeno puro e dissociado da cultura. Por isso, para Molino, o “fato musical
é um fato social total” (MOLINO, 1990, p. 115). Ignorar um dos lados desta equação –
qualquer que seja ele – seria reduzir um fenômeno complexo a uma simplificação
equivocada.
A música, enquanto fenômeno cultural-sonoro, não pode ser compreendida
como fixa nos fundamentos do som. Na medida que é cultural, a música extrapola os
limites temporais da performance ou, como melhor coloca Martinez, o fenômeno
musical pode ser visto como cadeia de traduções (MARTINEZ, 1991, p. 9; TARASTI,
1994). Isso vai desde o cálculo e/ou a ideia musical de um compositor (no caso da
música escrita), ao impulso de um improvisador, às interpretações de instrumentistas e
ouvintes, e até os comentários após uma apresentação. Dizer que a música é apenas um
desses estágios seria redutor para uma leitura ampla sobre esse fenômeno.
Antes de analisar ainda que brevemente alguns desses processos tradutórios,
podemos, a fim de fundamentar o signo musical, debruçar nossa atenção sobre o som
enquanto fenômeno ao mesmo tempo físico e perceptivo. A descrição de Santaella é
suficientemente completa, na medida que discute (com simplicidade e poesia) desde as
características físicas do som quanto seus efeitos:
24
O som é airoso, ligeiro, fugaz. Emanando de uma fonte, o som se propaga no ar por
pressões e depressões, percorrendo trajetórias, sujeitas a deformações, cujos contornos e
formas nunca se fixam. Vem daí a qualidade primordial do som, sua evanescência, feita
de fluxos e refluxos em crescimento contínuo, pura evolução temporal que nunca se fixa
em um objeto espacial. O som é omnidirecional, sem bordas, transparente e capaz de
atingir grandes latitudes. Não tropeçamos no som. Ao contrário, ele nos atravessa
(SANTAELLA, 2013, p. 105).
Nessa definição, podemos extrair algumas características inerentes ao som. Em
primeiro lugar, som e movimento são indissociáveis, o que faz com que o som –
permeado pelo seu entorno – esteja em perpétua transformação. Colocando em outras
palavras essa associação, existe uma relação direta do som com o tempo. Diferente dos
objetos táteis e visuais, a estrutura do som não permite que se fixe um instante. Ao lidar
com som, temos sempre que dialogar com faixas de tempo, recortes temporais, e não
com fotografias e instantaneidades. Em contraponto a isso, não permitindo um
congelamento do presente, o som tem como característica uma constante presentidade,
“imediaticidade qualitativa” (Idem). Assim, o som demonstra-se, fruitiva e
empiricamente, muito próximo do conceito de qualidade como visto em Peirce.
Mesmo que estejamos falando de um mesmo signo – o som –, e mesmo que a
pauta deste capítulo não seja exatamente psicoacústica, distinguir o som enquanto
fenômeno físico do som que é fenômeno perceptivo permite destrinchar com mais
propriedade esse tipo de signo (cf. SETHARES, 2004, p. 11). Enquanto fenômeno
físico, o som é onda que se propaga em um meio, o ar. No campo da escuta, é
compósito qualitativo que atinge as portas da percepção tátil e auditiva. Colocando estas
áreas na teoria da percepção peirciana, na medida em que a física estuda o som
enquanto percepto (pré-interpretado), a musicologia, a psicologia e outras ciências
pesquisam o som em seu estágio de percipuum e de julgamento perceptivo. Assim, os
caráteres qualitativos do som se abstraem da modalidade do seu percepto, moldando as
interpretações subsequentes e progressivas de qualquer fenômeno acústico.
Em termos peircianos, podemos resumir que o som não poderia ser pura
qualidade, já que precisa imperativamente da perpétua atualização e da presentidade
característica da secundidade. Por outro lado, a rigidez e a dualidade do universo da
secundidade não combinam com o mundo sonoro. Dessa maneira, o som mora no
intermédio entre o primeiro e o segundo: da mesma forma que o quali-signo icônico
remático, como visto anteriormente. Se o som for um existente, ele é antes um
compósito de qualidades.
25
2.1.1.2. A música para além do som
A música pode ser descrita como um fenômeno artístico psicoacústico, o que
quer dizer que ela é em parte cultural e em parte físico-biológica. Mas analisar música
pode ser visto como um triplo esforço. Partindo de elementos estudados pela física, a
música é um fenômeno social que – além disso tudo – conta com um codificações
próprias. Por essa razão tripla, não seria justo entender o fundamento sígnico da música
como o mesmo do som. Tendo isso em vista, esta pesquisa pretende investigar também
os fundamentos extrasonoros do signo musical, julgando suas preponderâncias
categóricas. Considerando a música um processo de múltiplas traduções, investigar
outros elementos tradutórios do processo musical indicia os elementos extrasonoros que
a perpassam.
O exemplo mais claro – e o colocado mais em voga na bibliografia vigente
(TARASTI, 1994; NATTIEZ, 2005; SANTAELLA, 2013; OLIVEIRA, 1979; e tantos
outros) – é o da música escrita, em especial da composição musical ocidental do século
XIX e XX. Poderíamos reduzir a progressão de processos tradutórios desse tipo de
manifestação artística da seguinte maneira: primordialmente, um compositor grafa
indicações de execução de sua música a serem executadas por intérpretes, que executam
a partitura para um público (em tempo real ou mediado). Assim, enxergamos na
composição musical um primeiro processo tradutório – uma transcriação de imagens
mentais em imagens sonoras que, por sua vez, se desdobram em gestos musicais
grafados em uma partitura. Em segundo lugar, a interpretação dos elementos sonoros
ditados pelo compositor gera um segundo estágio tradutório: do papel (ou outra mídia)
para o som, processo esse mediado por um intérprete. Em terceiro lugar, uma possível
plateia escuta a música executada, traduzindo-a a partir de suas predileções e das
condições psicoacústicas vigentes. Poderíamos dizer que um outro processo tradutório
seria a reescrita dessa música em análises e/ou em futuras citações de seus
ouvintes/intérpretes. É claro que, como já deve ter ficado evidente, cada um desses
processos tem, dentro de si, outras traduções de diversas naturezas. É evidente também
que, já que cada objeto artístico musical é inserido de forma única em sua cultura, que
cada processo composicional específico traz outros elementos tradutórios à tona.
No caso acima explanado, o da música escrita, diversos tipos de signo coexistem
e compõem uma ferramenta tradutória complexa. Para entender esses mecanismos e
26
seus fundamentos sígnicos em um olhar semiótico, procuraremos seguir as categorias
peircianas. Dessa forma, ao final desse processo poderemos apontar tendências das
semioses e de suas tipologias.
Como já visto, o som opera na música com predominância quali-sígnica. Para
além dele, há diversas outras qualidades envolvidas na cadeia interpretativa da música
escrita. O ato primordial da composição musical pode ser considerado, por exemplo, a
tradução/transcriação de quali-signos em legi-signos, já que a composição sonora é
(dentre seus diversos outros componentes) um processo tradutório de organização de
elementos sonoros no continuum temporal. Capturando quali-signos, o compositor os
transforma em leis (legis). Nesse processo, o nível qualitativo ainda é muito presente: as
formas, texturas e densidades visuais da partitura grafadas no papel (ou outra mídia), a
maneira como a composição enquanto lei é apresentada para seus intérpretes etc. Na
fruição desse tipo de música, há também a predominância do caráter quali-sígnico.
Antes de reinterpretar a escuta, a música, enquanto presentidade, reinventa-se a cada
instante que passa, em diferença ou repetição11
.
Os sin-signos da música são o que sustenta a possibilidade de distanciamento
entre os ouvintes/compositores dos fenômenos sonoro-artísticos. Não seria possível
haver música escrita sem a singularidade das partituras ou, até, o existente de uma
execução específica de uma peça. Na música, a secundidade dos fundamentos sígnicos
apresenta-se como o alicerce de sustentação para a frágil modalidade do som – “airoso,
fugaz” – em suas manifestações de linguagem.
Ademais dos quali-signos e os sin-signos da música e dos processos musicais, os
legi-signos sustentam a música mediada. Para qualquer codificação na cadeia
interpretativa da música, há uma profusão de leis e regras que a sustentam. Assim, a
escrita musical, os movimentos da regência, as maneiras de ensinar instrumentos, as
relações de repetição e as regras interpretativas são todos legi-signos. Uma obra musical
seria, portanto, uma lei – abstrata (não confundir com símbolos abstratos, cf.
MARTINEZ, 1991, p. 141). Suas execuções, por outro lados, são singulares –
existentes. Uma tonalidade, um jingle e até uma sequência de notas podem ser uma lei,
desde que haja um contexto que a aplique e a atualize. Além disso, os campos e áreas de
11
Sobre os diferentes tipos de escuta, temporalidade em música e os limites da composição ocidental,
Silvio Ferraz propõe debate em Música e Repetição (1998).
27
estudos da música (crítica musical, musicologia etc), fazendo parte da arte sonora, são
também berços de diversos legi-signos.
Percebendo que a música, enquanto processo complexo de cadeias
interpretativo-tradutórias, tem em sua base todas as tipologias sígnicas em evidência,
resta discutir eventuais predominâncias categóricas deste fenômeno semiótico. É
notável que o caráter de primeiridade se sobressai dos demais aspectos da linguagem
musical. Operando pela similaridade de formas em sua tradução humana (tipos de
escuta), contando com inúmeras características qualitativas em seu caráter puramente
sonoro e, sobretudo, conjugando imagens iconicamente, nota-se na música
predominâncias de fundamentos qualitativos, como fazem Santaella (2013) e Martinez
(1991; 1997). Isso não quer dizer, porém, que as outras categorias, na música, tenham
relevância diminuta, já que elas representam justamente o que pode tornar a música uma
linguagem.
2.2. Objetos da música: a música como representação?
Uma vez que o fundamento das semioses musicais tenha predominância de
primeiridade – quali-signo – a tricotomia do “signo em si” toma importância
diferenciada. Uma vez que uma qualidade potencializa apenas o que é positivo em si, as
consequências de linguagens que derivam dela seriam apenas da ordem da similaridade.
O som, por exemplo, em sua predominância qualitativa, é tão somente o que lhe é
positivo, e por isso não aponta em si para fora de si. Isso não quer dizer que intérpretes
ouçam os sons do mundo em perpétua surpresa e suspensão. Na medida que
experiências colaterais dos ouvintes se desdobram, diferentes níveis de interpretantes
derivam do som. Simples: o que em uma primeira escuta pode trazer apenas qualidades
de sentimento pode, em escutas futuras, gerar interpretantes cada vez mais lógicos. Esse
processo é, pois, o de distanciamento lógico da qualidade em sua positividade da mente
interpretativa, colocando aquela em perspectiva com esta, via similaridade com suas
experiências colaterais. Poderíamos, a partir desse silogismo, seguir para a conclusão
que, sendo a música de predominância fundamentalmente quali-sígnica, a classe de
signo que mais se adaptaria às semioses musicais seria o quali-sígnico icônico remático,
já que, como visto em Peirce:
Quali-signo [por exemplo, o sentimento da ‘vermelhidão’] é qualquer qualidade na
medida em que ela é um signo. Já que uma qualidade é qualquer coisa que é positiva em
si mesma, uma qualidade só pode apontar para um objeto em virtude de elementos
28
comuns entre eles ou por similaridade; por isso um quali-signo é necessariamente ícone.
Em seguida, já que uma qualidade é uma mera possibilidade lógica, ela só pode ser
interpretada como um signo de essência, ou seja, um rema (CP 2.254)12
.
Conclusão semelhante é a de Santaella e de Martinez, quando associam o som
com o quali-signo icônico remático, discutindo desde as contradições de linguagem
inerentes a esta classe (é possível haver um signo de primeiridade?) até diferentes níveis
de iconicidade do som enquanto objeto sensível (SANTAELLA, 2013, p. 103-112,
2015, p. 98-103; MARTINEZ, 1991), questões que interessam também a esta pesquisa.
Mas ora, se sabemos que, na medida que as semioses musicais têm
predominância de primeiridade, podemos induzir duas questões para este momento da
pesquisa. Em primeiro lugar, o fundamento do signo se torna a parte mais importante
dele, já que é a partir dos elementos positivos do fundamento que qualquer análise
musical será possível. Em segundo lugar, por que investigar outras tricotomias do signo
se sabemos já de antemão as predominâncias delas?
Como já vimos na sessão anterior, a música é uma mistura de signos. Essa
mistura tem, por sua vez, predominâncias. Discutir como outros elementos do sonoro ou
do musical extra-sonoro se comportam são, portanto, enriquecer e trazer complexidade
para esta discussão semiótica, algo muito precioso para uma discussão contextual sobre
música ou para uma análise de música experimental, já que, no século XX, diversos
compositores – Gilberto Mendes incluso – estavam justamente testando os limites da
música escrita.
Por isso, neste momento, discutiremos as relações do som e dos elementos extra-
sonoros da música com seus objetos, desenvolvendo apontamentos sobre a
representação musical. Procuramos nos inserir também na querela entre ícone e índice
na música, além de trazer à tona definições e confusões acerca do conceito de
iconicidade na música. Antes disso, porém, iremos fundamentar o que seria um
processo de representação no sentido peirciano. Qual a relação do signo com seus
objetos? Em seguida, em 2.3, iremos adentrar elementos da terceiridade musical,
entendendo elementos da música no quesito interpretativo, ou melhor, lógico.
12
Qualisign [e.g., a feeling of "red"] is any quality in so far as it is asign. Since a quality is whatever it is
positively in itself, a quality can only denote an object by virtue of some common ingredient or similarity;
so that a Qualisign is necessarily an Icon. Further, since a quality is a mere logical possibility, it can only
be interpreted as a sign of essence, that is, as a Rheme.
29
2.2.1 Relação entre signo e objeto dinâmico
Como já visto en passant, Peirce criou três principais tricotomias para descrever
em geral as classes de signos. São elas a 1) tricotomia do fundamento (“signo em si
mesmo”: quali, sin, legi) que discute quais são as modalidades e potencialidades
semióticas do signo; 2) tricotomia da relação do signo com o objeto dinâmico
(comumente conhecida como “tríade do objeto”: ícone, índice, símbolo), que atenta para
como o signo representa ou pode representar seu objeto dinâmico, que está fora dele; e
3) tricotomia da relação do interpretante final com o signo (conhecida como “tríade do
interpretante”: rema, dicente, argumento), que se preocupa, por sua vez, com a
interpretação e a leitura dos signos.
A relação do objeto dinâmico com o signo é, antes de mais nada, uma relação de
determinação. Como visto na definição de signo de Peirce (CP 6.347), o signo “é
determinado pelo objeto, isto é, o objeto causa o signo, mas o signo representa o objeto,
por isso mesmo é signo” (SANTAELLA, 2013, p. 43). Além disso, cabe lembrar que o
objeto só é representado “parcialmente”, ou “num certo sentido”, e que o objeto, via
mediação do signo, também causa o interpretante.
Antes de discutir a tricotomia em questão (seus limites e potências), cabe se
debruçar brevemente sobre o que seria o objeto de um signo. O objeto do signo é – em
suma – aquilo que o signo substitui. Ele é, portanto, um outro signo – e pode ser até um
interpretante, já que, na medida que ele está inserido em uma cadeia de traduções, ele
está sempre no meio desta cadeia semiótica, tanto temporal como conceitualmente. A
diferença entre um objeto e um signo pode ser, portanto, meramente temporal.
A tricotomia ícone, índice, símbolo examina de qual forma o objeto é
representado pelo signo. 1) Se o objeto do signo por reapresentado no signo por virtude
de uma semelhança entre qualidades dos dois, chama-se esse signo de ícone13
. Este
nome se dá pelo fato do ícone não ser necessariamente afetado pelo objeto que ele
representa, o que faz com que, para essa semiose, sejam preponderantes apenas os
aspectos qualitativos em si do signo e do objeto. Em outras palavras, a semelhança é se
dá por haver aspectos comuns (similares) nos fundamentos do objeto e do signo. 2) Na
13
Como é lembrado por Santaella (2015, p. 96) este é apenas uma das facetas do ícone chamada de
hipoicônica. Peirce desenvolveu, para este tipo de signo, diversos níveis de iconicidade. O próprio
hipoícone, por exemplo, pode ser dividido em três tipos: imagem, diagrama e metáfora. Os diagramas
podem ser divididos em três tipos... e assim segue.
30
medida em que o signo foi afetado pelo objeto, este é chamado de índice. Partindo do
pressuposto de que todo movimento deixa rastros, o índice persegue o objeto,
mostrando parcialmente sua ação. 3) Quando o signo depende de uma lei externa para
sua interpretação e para relacionar-se com seu objeto, esse signo é chamado de símbolo.
As linguagens codificadas são a base do pensamento linguístico, já que o signo – sem o
código que lhe pauta – teria uma relação arbitrária com o objeto.
Esta tríade é a mais famosa e mais usada dentre todas as dez tricotomias do
signo de Peirce. Seu uso perpassou todas as áreas da semiótica aplicada e, até hoje,
muitos pensam que esta seria a única ou a principal tríade do signo peirciano. A seguir,
discutiremos o uso dessa tríade em música, e como a frágil ideia de representação no
mundo sonoro-artístico pode se desdobrar em musicalmente.
2.2.2 Representação musical: Ícone ou índice?
Para discutir a aproximação entre o universo representacional e o musical, é
necessário relembrar a relação entre o universo do quali-signo icônico remático e do
sin-signo indicial dicente. Mesmo que nós analisemos os signos musicais apontando sua
predominância no campo do quali-signo icônico remático, devemos lembrar que este
campo é pré-representativo, ou seja, lida somente com possibilidades não atualizadas:
pré-existentes. Este salto epistemológico é bem descrito por Santaella:
Não obstante, em seu aspecto obsistencial, ou seja, como uma ocorrência no tempo e no
espaço, as qualidades saltam do nível da mera possibilidade para o nível da existência, e
se tornam sin-signos. Claro que qualidades continuam presentes naquilo que existe, mas
elas não são mais meras possibilidades. Por isso, a possibilidade de um som ainda não
atualizado é diferente de uma possibilidade quando ela já está manifesta em um som.
Além disso, em qualquer som há elementos de lei (terceiridade), pois o som segue as
leis físicas. Além do mais, não apenas leis físicas, mas também leis da organização do
próprio som (SANTAELLA, 2015, p. 96) 14
.
A relação icônica emanada do som, deve, porém, ser ouvida com cautela. Como
já visto na secção anterior, o ícone diferencia-se do hipo-ícone, de tal forma que
enquanto este representa seu objeto por similaridade ou congruências de ingredientes
14
Nevertheless, in their obsistential aspect, that is, as na occurrence in time and space, than qualities jump
from the level of mere possibility to the level of existence, and thet turn into sinsigns. Of course, qualities
are still presente in what exists, but no longer as purê chance of possibility. That is why a sill non-
actualized sound possibility is diferente from a possibility whan it is already manifested in a current
sound. Moreover, in any current sound there are elementes of law (thirdness), because sound is subjected
to physical laws. Moreover, not only physical laws but also to the laws of sound organization (tradução
do autor).
31
qualitativos, aquele – em seu nível mais puro de iconicidade – pode prescindir de outros
termos na lógica da semiose (QUEIROZ, 2007, p. 185). Em outras palavras, um ícone é
um primeiro, e por isso prescinde de objetos e interpretantes, montando uma semiose
duplamente degenerada (CP 3.362). Este cuidado mostra-se essencial para a análise de
música: podemos dizer que, posto que a música emana primeiridade, ela prescinde de
objetos e interpretantes. Ela é mônada (CP 1.303). Nas palavras de Peirce, a
proximidade entre a imediaticidade da música e as consequências em seus objetos:
Uma mesma nota musical pode ser prolongada por uma hora, ou um dia, e ela existe tão
perfeitamente em cada segundo desse tempo quanto no tempo inteiro; assim, contanto
que ela esteja soando, ela pode estar presente no sentido que tudo no passado esteja tão
ausente quanto o próprio futuro. Mas é diferente quanto às ondulações do ar, já que a
performance da nota ocupa um determinado tempo. Ela consiste na sucessão de sons
que alcançam o ouvido em tempos diferentes; e para percebê-lo deve haver alguma
continuidade de consciência que presentifica os eventos de um lapso de tempo. Nós
ouvimos o que está presente no instante, e uma ordem de som não pode estar presente
em um instante. Estes dois tipos de objetos, o de que nós temos consciência imediata e o
de que nós temos consciência mediada, todos são achados na consciência. Elementos
como as sensações são presentes em todos os instantes enquanto eles duram, enquanto
outros (como o pensamento) são ações com começo meio e fim, e consistem numa
congruência na sucessão de sensações que passam pela mente 15
(CP 5.395)
Desta forma, é possível contemplar a imediaticidade da música nos conceitos de
iconicidade, na medida em que há objetos instantâneos, que, via mediação, adentram
cadeias de semiose. Em outros escritos sobre a iconicidade, Peirce usa também a música
como exemplo de ícone. Cabe lembrar, porém, que as noções musicais de Peirce deixam
escapar questões já superadas em bibliografias subsequentes, como a ideia de que uma
composição é a réplica dos sentimentos e ideais de seu compositor, além de conseguir
ser passada em canal direto para seus ouvintes:
Eu defino um ícone como um signo que é determinado por seu objeto direto em virtude
se sua própria natureza interna. Assim é qualquer qualisigno, como uma visão – ou o
15
“A single tone may be prolonged for an hour or a day, and it exists as perfectly in each second of that
time as in the whole taken together; so that, as long as it is sounding, it might be present to a sense from
which everything in the past was as completely absent as the future itself. But it is different with the air,
the performance of which occupies a certain time(...). It consists in an orderliness in the succession of
sounds which strike the ear at different times; and to perceive it there must be some continuity of
consciousness which makes the events of a lapse of time present to us. (...) we hear only what is present at
the instant, and an orderliness of succession cannot exist in an instant. These two sorts of objects, what we
are immediately conscious of and what we are mediately conscious of, are found in all consciousness.
Some elements (the sensations) are completely present at every instant so long as they last, while others
(like thought) are actions having beginning, middle, and end, and consist in a congruence in the
succession of sensations which flow through the mind”.
32
sentimento trazido por uma peça musical considerada como representando o que seu
compositor queria16
(CP 8.335).
Martinez também sustenta a iconicidade da música baseada na indistinção entre
objeto imediato (que seria a materialidade da música) e signo em música (MARTINEZ,
1991, p. 63). Interessante notar, porém, que isto não é uma barreira para a música como
berço de outros tipos de semiose (não necessariamente sonoras), tal qual pretendemos
discutir neste capítulo:
Sempre o primeiro plano da semiose na música remeterá às qualidades que se
apresentam e, dessa forma, signo e objeto tornam-se indistinguíveis. O signo, neste
caso, é um ícone. Isso não impede, contudo, que outros planos se manifestem; os sons
como Representamens para outros modos de significação (Idem).
O caráter primordial da escuta humana é, contudo, sin-sígnico indicial. Em um
estágio inicial, escutar servia, antes da criação abstrata e da contemplação, para a
identificação de existentes. Em outras palavras, o som “em sua origem servia como
alerta” (BUTOR, 1982, p. 449), ou melhor, como sin-signo indicial - remático ou
dicente. A música, por outro lado, afastou-se dessa funcionalidade, enquadrando-se
antes nas relações de similaridade e contiguidade do que nas de identificação direta. Ou,
melhor dizendo, “a música pouco a pouco se tornou uma linguagem independente; até o
ponto de se destacar das funções sociais e tornar-se puro fluxo de qualidades ou
conjuntos semióticos” (MARTINEZ, 1991, p. 135). Por isso, ouvir música não é tão
somente identificar instrumentos em suas localidades, alturas e ritmos. Mas, se há um
índice musical, para o que ele aponta? Qual seu Objeto Dinâmico? A compreensão de
uma indistinção entre signo e objeto imediato em música auxilia a compreender as
direções do índice musical, além de suas limitações:
Seu objeto imediato [da música] é puramente qualitativo, pois este é o modo de operar
da linguagem musical. Contudo, a música, enquanto individual existente, interage com
um amplo espectro de fatores culturais sociais, históricos etc. São tais fatores, de difícil
avaliação devido a sua complexidade, que constituem o Objeto Dinâmico do índice
musical (MARTINEZ, 1991, p. 123).
A partir dessa proposição, é possível desconstruir a noção de Willy Correa de
Oliveira (1979) de que a música, enquanto signo, é indicial. O índice musical é, então,
um fenômeno secundário da semiose musical, se tivermos o signo musical “entendido
enquanto realidade acústica” (Idem). Para Oliveira, a música seria predominantemente
16 “I define an Icon as a sign which is determined by its dynamic object by virtue of its own internal
nature. Such is any qualisign, like a vision, -- or the sentiment excited by a piece of music considered as
representing what the composer intended”.
33
sintoma de seu contexto, não podendo se desvencilhar dele – o que faz perfeito sentido.
Porém, não podemos esquecer que, como visto, o som serve para uma escuta de função
biológica, mas a música vai além disso. Não seria possível, porém, cristalizar uma
escuta ideal/central para a música, sobre a qual todas as outras deveriam derivar. A meta
aqui é outra. Uma vez apontadas tendências dos signos musicais, é possível discutir
como são criados interpretantes e escutas tanto cognitiva como artisticamente. Cabe
atentar para duas questões distintas. Por um lado, podemos – como fazemos aqui –
observar como a música funciona enquanto linguagem, e quais as características
intrínsecas a esse sistema sígnico. Em outro lado, é possível também entender o que de
extra-musical pode ser extraído da música, considerando as implicações que ela faz e
recebe de outras áreas.
A partir do momento em que não é possível distinguir o signo de seu objeto
imediato, a relação entre o que está dentro e o que está fora do signo torna-se peculiar.
A partir desse impasse, Coker (1972) passa a estabelecer tipos de objetos para a música,
chamando-os de musical meanings. A escolha por uma perspectiva semântica na música
traz, porém, a mesma problemática apontada por Stoianova: a importação da lógica
binária da significação verbal em transposição à música. Separando, como faz Coker,
sentidos que apontam para dentro da música de sentidos que apontam para fora dela,
estaríamos precisamente trazendo para a iconicidade uma distinção existencial/indicial.
Por isso, não seria preciso minguar a simultaneidade de sentidos inerente à semiose
icônico-qualitativa da música, haja vista as características desta semiose duplamente
degenerada. A produção de sentido em música, porém, tem muito mais a ver com a
indistinção entre objeto imediato, interpretante imediato e signo, do que com as
diferenças entre apontamentos para dentro e fora deste.
Finalizando a tricotomia do objeto musical, os símbolos sustentam a
possibilidade de uma lógica sonora. Tanto na música escrita como na não escrita,
códigos simbólicos são criados intrínseca e extrinsecamente para o andar dos
fenômenos musicais. É possível pensarmos tanto em jogos simbólicos com uma música
dita do passado (como a citação, presente na peça Blirium de Gilberto Mendes,
analisada no capítulo final desta dissertação) como na própria grafia musical. Na música
não escrita, por exemplo, é interessante perceber que, não havendo uma enorme gama
de codificação específica para a lógica sonora, símbolos de outras linguagens são
adaptados, o que gera uma maleabilidade entre o dito e o compreendido. Ao pegar
34
emprestado outra linguagem (quase sempre a oral, a visual e a tátil) para uma
transmissão de modalidades de escuta e execução, a precisão e as possibilidades de
criação se mostram bastante diferenciadas daquelas vistas em uma primeira instância.
2.3 Escuta, interpretação e análise – música-pós-som
Uma vez vistos os fundamentos e as relações entre signos e objetos nas semioses
musicais, cabe repensar os limites dos signos musicais. Qual o início e o fim da música?
Visto que a música, como em Martinez (1997), pode ser encarada como uma sequência
de semioses – uma cadeia tradutória, não necessariamente a música acaba quando um
som cessa. Uma vez que foi traduzida pelos ouvintes, intérpretes e compositores, a
música toma, para além de uma dimensão existente e qualitativa, uma proporção mental
e, como não dizer, lógica. A interpretação musical, como fenômeno de terceiridade, faz,
assim, parte da música, como já citado na secção anterior, na medida em que Peirce
discute os tipos de relações possíveis com um objeto sonoro: uma imediata e uma
mediada. Esta mediação seria, então, o ponto de partida do pensamento sobre música.
Esta música após o som mora, pois, no domínio da terceira principal tricotomia
de Peirce: rema, dicente e argumento. Como demonstrado anteriormente, é sabido que a
música tem predominância remática, já que é preponderantemente quali-sígnica
íconica. O paralelo com a pesquisa de Julio Plaza é possível. Na medida em que a
interpretação musical é uma tradução – necessariamente intersemiótica – de um estado
sonoro para um mental17
, a intraduzibilidade dos signos estéticos vem à tona. Para
solucionar o impasse da tradução do universo conotativo (como discutira Otavio Paz),
no qual a música se insere, para outra linguagem, Julio Plaza e outros teóricos
(Jakobson, Haroldo de Campos, Otavio Paz) apontam que só seria possível traduzir o
estético-conotativo em uma “transcodificação criativa” (PLAZA, 2003, p. 26). Assim,
estudar os interpretantes e cadeias interpretativas da música é, antes de mais nada, um
exercício criativo. As hipóteses, asserções e argumentos da música são, para além do
nível imanente-físico, matéria especutiva – composição de escutas, o que discutiremos
mais aprofundadamente em 2.3.3.
17
Mesmo que se pense na música em uma linguagem sonora, há uma mudança de estado e de
temporalidade das linguagens. Em outras palavras, o pensamento do som é distinto do som em si, tanto
por questões de fundamento quanto de estágio perceptivo.
35
2.3.1 A relação do signo com os interpretantes
Na criação de suas noções do signo, Peirce criou três tipos de interpretante: um
imediato (da interpretabilidade inerente ao signo); um dinâmico (do efeito de fato
alcançado pelo signo); e um final (da razão de ser do signo). No estudo de suas
tricotomias Peirce criou cinco tricotomias para os interpretantes: 1) uma para descrever
tipos de interpretantes imediatos, 2) uma para tipos de interpretante dinâmico; 3) uma
para a relação do interpretante dinâmico com o signo; 4) uma para descrever o
interpretante final; e 5) uma para a relação do interpretante final com o signo. Por fins
lógicos e razões históricas, apenas esta última ficou consagrada como a tricotomia do
interpretantes (rema, dicente, argumento).
Na medida em que um signo se relaciona com seus objetos com predominância
de primeiridade, há, no campo dos interpretantes, a criação apenas de remas, hipóteses.
A mediação de um quali-signo icônico, por exemplo, é necessariamente remática, já que
qualidades direcionam a seus objetos via similitudes – das quais a priori se extraem
apenas hipóteses. Em termos práticos, é possível extrair semelhanças e congruências
icônicas entre todo e qualquer objeto, signo e nível de semiose. Por isso, todos os tipos
de fundamento (quali, sin, legi) e relação com o objeto dinâmico (ícone, índice,
símbolo) difundem interpretantes remáticos. O interpretante remático, deve-se notar,
funciona na esfera do possível, o que faz com que este nível se relacione antes com as
qualidades emanadas do signo do que com a semiose propriamente dita, tanto que este
tipo de semiose é chamada de “duplamente degenerada”, como já visto anteriormente.
Se um signo tem uma relação existencial com o objeto, ele pode, em relação ao
seu interpretante final, ser chamado de dicente. A constatação da existência de algo, ou
a percepção de um sintoma no presente de algo ocorrido no passado depende, para seu
funcionamento, de remas por fins descritivos. O rema não faz parte, contudo, do dicente
(CP 2.251). O dicente aponta, o rema descreve. Assim, percebemos onipresença da
primeiridade e do remático na semiose peirciana, ao passo que o universo relativo,
hipotético e descritivo sustenta a ação do signo.
A terceira parte da tricotomia da relação do signo com o interpretante final é o
argumento. Onde há um signo de terceiridade, em uma semiose genuína, é possível
encontrar argumentos. Apenas leis que são signos (legi-signos) podem suscitar
36
argumentos como efeitos. Estes efeitos são, pois, respostas lógicas, que, cabe dizer, são
baseadas e sustentadas nos apontamentos dicentes e nas descrições remáticas.
2.3.2 Interpretantes musicais
Interpretar músicas tem, hoje, inúmeros sentidos: decifrar uma partitura, criar
uma performance, analisar uma determinada peça etc. Todas estas vertentes têm,
contudo, uma confluência comum: o processo de tradução em nível simbólico da
música. Transformar uma peça (legi-signo) em uma performance tem de passar,
necessariamente, por uma imagem mental de decodificação dos signos ali postos (um
interpretante). Assim, as traduções simbólicas e os interpretantes da música são
imprescindíveis para a interpretação e a continuidade do pensamento sobre música.
Neste momento, discutiremos como, de modo geral, tipos diferentes de interpretante
podem surgir a partir de peças e fenômenos musicais.
Ouvir música é, fundamentalmente, uma semiose remática. É possível dizer isso
na medida em que, uma vez que há uma predominância quali-sígnica nas ações dos
signos musicais, a dimensão lógica destes signos não poderia ser senão remática: a
qualidade não aponta, ela emana, evoca, apresenta. A própria ação artística/estética tem
precisamente esta dimensão. A ambiguidade do signo estético cria para este uma
impossibilidade estrutural de conexão estrutural com objetos (cf. PLAZA, 2003;
PIGNATARI, 1993), dai a complexidade da tradução desse tipo de mensagem,
informação ou signo (haja vista a dimensão das pesquisas sobre tradução de poesia
pelos poetas concretos brasileiros). Em Jakobson, o apontamento para tradução-criação
intersemiótica é tido como uma solução para o impasse da tradução das ambiguidades
do signo estético, uma saída para o tradutor/traidor do original (JAKOBSON, 2015, p.
95). Plaza resume as possibilidades do signo estético em meio ao contexto da tradução
(à luz da função poética de Jakobson):
No caso da função poética, contudo, um signo traduz o outro não para completá-lo, mas
para reverberá-lo, para criar com ele uma ressonância, o que (...) constitui-se num
princípio fundamental para as operações de tradução estética (PLAZA, 2003, p. 27)
A tradução de uma partitura em música, de uma peça tocada em escuta, de
objeto sonoro para objeto musical, de som da natureza para som organizado. Estes
processos tradutórios são, assim, remáticos e abdutivos (sobre isso, ver 2.3.3 à frente).
37
Dicentes e argumentos são, também, a base de análises musicais. O apontamento
para o estudo de contextos musicais, bem como a pesquisa sobre a gênese de gêneros
musicais de Robert Hatten depende diretamente da existência de dicentes para a criação
de argumentos semióticos-culturais (cf. HATTEN apud MARTINEZ, 1997, p. 35-38).
A clássica análise harmônica ou formal parte também de pressupostos parecidos: a
partir da identificação de fenômenos (criação de dici-signos) em uma peça, é possível
criar argumentos lógicos acerca de determinada passagem harmônica. Dessa forma, na
semiose peirciana se justifica uma teleologia da análise musical que pretendemos seguir
nessa dissertação: em primeiro lugar, há a exposição do nível fundamental de uma peça
que dialoga com o nível imanente visto em Nattiez na medida em que “tem uma
existência material independente das estratégias de produção que o originaram e das
estratégias de percepção dele oriundas” (NATTIEZ, 2002, p. 16). Deste nível – de
análise dos quali-signos e sin-signos remáticos, urgem apenas hipóteses sobre uma
apresentação descritiva.
Em segundo lugar, é possível fazer apontamentos – principalmente aqueles de
ordem contextual, social e histórica – sobre a peça analisada, em seus sin-signos
indiciais dicentes, tanto poiética como estesicamente, colocando também nos termos de
Jean-Jacques Nattiez. Por fim, em terceiro lugar, há a criação de argumentos, a indução
de asserções e formulações lógicas advindas das etapas anteriores, podendo articular as
singularidades da peça em questão em novos legi-signos, recompondo a peça em termos
dialógicos. Assim, é possível colocar uma peça musical tanto em perspectiva histórica
com o ambiente em que foi criada e as obras que a antecederam como apontando jogos
e limitações intrínsecas a própria obra.
2.3.3 Ouvir é compor
Estudar música é perceber que, na mesma medida em que o tempo produz uma
confluência de múltiplas semioses sonoras em constelações heterogêneas únicas, cada
semiose tem dentro de si um poder enorme de dissipação, proliferação e continuidade.
Na música escrita, um compositor não é causa e nem consequência, e sim um (meta)
fenômeno da complexa teia de signos em que se inseriu: desde as qualidades que viveu
e produziu até as leis que lhe regiam e que por ele são atualizadas e descontruídas. Urge
38
então uma problemática fundamental: como compreender uma composição a partir de
um ponto de vista sígnico? Ou melhor, qual é a semiose da composição musical?
Compor é uma ação deliberada. Em relação íntima com a percepção, o
pensamento sobre os sons se materializa (pretensamente) controlado por aquele que
chamamos compositor, já que, como visto em Peirce, o pensamento lógico e as imagens
mentais moram no interstício entre a percepção e a ação deliberada (SANTAELLA,
2012). Cabe se perguntar, porém, como pode ser lido o processo da percepção humana,
visando aprofundar como se dá a interação entre ambiente e sujeito na criação musical,
entremeando os processos e inferências lógicas dessa relação.
Diferente de teorias da percepção que lidam com uma relação simplista entre
sujeito e objeto, para Peirce o processo perceptivo humano pode ser visto na disposição
dinâmica de três conceitos vivos: o percepto, o percipuum e o julgamento perceptivo
(SANTAELLA, 2012, p.89-99). Enquanto o percepto é a manifestação pura da
realidade que deverá penetrar a gama sensível de um sujeito dado, o percipuum é
precisamente o que adentra semi-organizadamente, sendo filtrado pelos sistemas
sensórios em uma tradução perceptiva. Ele não pede para aparecer e não tem um porquê
para estar lá, e independe da escolha do perceptor (CP 7.643). Na medida em que esse
percipuum é organizado e posto em perspectiva com o repertório daquele que o sentiu,
ele é interpretado e, portando, transformado em julgamento perceptivo, o terceiro elo da
teoria da percepção peirciana (SANTAELLA, 2013, p.107; 2012).
Percebendo o julgamento perceptivo já é um nível de cognição, pois lida com
lógicas interpretativas e raciocínio em nível de primeiridade; e sendo que o percipuum
pode ser visto como uma quase-cognição, pois mesmo que esse estágio não coloque o
percepto em embate com as experiências colaterais que montam o repertório e a
consciência do sujeito, ele já é uma filtragem do fenômeno que se apresenta ao corpo; a
escuta musical é, portanto, um processo cognitivo criativo. Em algum sentido, escutar é
um processo lógico que deriva de outros signos que lhe anteveem ou que lhe são
simultâneos, signos estes que montam todo o processo de percepção do percepto ao
julgamento perceptivo. Outrossim, compor tem concomitantemente um caráter diádico e
um caráter triádico. Compor é reagir e representar, é responder e discutir. É dinâmico e
lógico.
39
Na medida em que o compositor cria imagens sonoras mentais, signos próximos
da fugacidade de uma simples qualidade, mesmo antes de agir sobre elas, esse já pode
ser chamado de um processo composicional diádico. Dessa forma, compreendemos que,
por mais que algumas pessoas se foquem mais nisso do que a maior parte das outras,
todos somos compositores musicais no nosso dia-a-dia pelo simples ato da escuta. Na
medida em que isolamos internamente um som da natureza e o escutamos antes de
qualquer julgamento, a própria reação (nesse caso, a seleção como reação) já é uma
organização do continuum sonoro. Seguindo a terminologia da teoria da percepção
peirciana (SANTAELLA, 2011), o percipuum do som pode ser tido como uma quase-
composição do percepto manifesto no sujeito em questão, já que aquele deriva de uma
seleção reativa e natural deste. Na relação (vale dizer, indicial) dos sujeitos com o
ambiente sonoro onde agem há sempre a imanência da composição musical em
potencial na medida em que, portanto, escutar é compor. Em outras palavras, se uma
reação tem que ver com um signo degenerado18
(QUEIROZ, 2007, p. 185-186), a pura
filtragem abdutiva do ambiente sonoro já é também uma composição em nível
degenerado.
Como discutiremos no capítulo seguinte, a noção de escuta como composição
pode ser uma chave de leitura possível para proposições musicais como a de John Cage
na medida em que este compositor se relacionava com todos os sons de uma forma não
hierárquica (CAGE, 1961). Ordem, desordem e organização passam assim a agir não só
dentro do paradigma da música tradicional, mas para toda a realidade sonora. Como dito
por Cage a Murray Schafer: “música é sons, sons a nossa volta, dentro ou fora da sala
de concerto” (SCHAFER, 1992, p.120). Ou, ainda: “já que não posso ser apenas um
ouvinte do silêncio, sou um compositor. Como eu posso escrever um som que está em
silêncio? Quando eu escrevo música, estou em uma posição de não saber o que estou
fazendo. Eu sei como fazer isso” (CAGE, 2015, p. 56). Se é possível ouvir o continuum
sonoro como música e/ou compor é a ação deliberada do não entendimento do mundo, é
necessário que se compreenda que há entre o ser e o mundo uma interlocução perpétua e
trocas de consciência eventuais.
18
A reação e, nesse caso analisado, o filtro primeiro da percepção é, pois, um signo indicial da natureza
externa para qual ele aponta. Visto isso, essa reação-seleção abdutiva prescinde de um interpretante, como
visto em Peirce: “an index is a sign which would, at once, lose the character which makes it a sign if its
object were removed, but would not lose that character if there were no interpretant” (CP 2.304), dando a
ela um caráter degenerado, não-genuíno.
40
A partir dessa noção de percepção, é possível compreender que qualquer que
seja a maneira com que um ente perceptivo se relacione com algo já é uma ação
ordenadora e, por conseguinte, organizacional. Reorganizando a ordem/desordem dos
perceptos, a secundidade da percepção, o percipuum, é organização de sons para
preceitos estéticos. Ora, não é precisamente essa a definição canônica que vemos de
música nos dicionários19
?
Em uma segunda instância, é interessante parar para pensar que aquilo que
chamamos comumente de composição musical (aquela do compositor que escreve notas
em um papel) é, seguindo essa linha de pensamento, uma recomposição musical. A
partir do momento em que consideramos a secundidade do processo perceptivo, o
percipuum, como uma criação não deliberada, o juízo perceptivo se cristaliza como
recriação dos signos anteriores, como uma representação deliberada e criativa do
recebido. Seguindo da vivência de inumeráveis imagens sonoras (ou não-sonoras), a
composição musical parte então de um processo de inferência lógica abdutiva, que,
passando invariavelmente pela dedução de hipóteses e pela indução, materializa-se
como signo de inúmeras maneiras possíveis. Organizar sons está na fala, no ato de tocar
instrumentos, na escrita de partituras, na escrita de palavras, no grito, em quem não quer
fazer barulho e também em quem não se importa em ser barulhento.
A importância da percepção para a criação expõe a relevância de se compreender
o contexto de uma composição, até porque, levando em conta que na esfera de
secundidade “o significado é o uso” (PIGNATARI, 1993, p. 25), a composição é a
priori o seu contexto e a posteriori o contexto de sua difusão. A percepção é, como já
discutido, a fonte da composição. Tendo a composição como uma ação deliberada, é
inviável conceber que pode haver algo nessa deliberação que não tenha passado pela
porta da percepção: criar é o contexto de criação. Na medida em que uma música se
materializa, toda percepção sobre ela deriva também de como a semiose musical se
constrói relacionalmente. A teia de signos do ambiente de uma
execução/performance/difusão musical é, portando, não apenas parte da composição,
19
Esse fenômeno descrito se adequaria até às concepções mais tradicionais de música, como a do The
Concise English Oxford Dictionary de 1956, citado por Schaefer (1992) em 1986: “MÚSICA: a arte de
combinar sons visando a beleza da forma e a expressão das emoções”. Talvez possa parecer forçado
chamar de expressão das emoções a própria seleção de um corpo troca com o que lhe cerca, mas
compreender isso e conceber essa possibilidade é também mergulhar na premissa da continuidade dos
signos. Quanto à “beleza da forma”, é evidente como essa noção de música é datada, mas, nessa
dissertação, na secção 3.2 há uma discussão sobre a desconstrução da ideia de música que “visa o
agradável”.
41
mas é a própria composição já que esta é sua materialização. Não por menos, no século
XX, a música (re)toma sua relação com o espaço de sua realização, hibridizando-se com
a arquitetura e desenvolvendo o nível da espacialização como componente da fruição
musical (SANTAELLA, 2013, p. 159-161).
Em concordância com Pignatari, cabe perceber que tanto texto como contexto
são processos de signos com referentes (PIGNATARI, 1993, p. 28), mas que cabe
montar breve diferenciação entre estes dois conceitos. Ainda na definição de Pignatari,
um texto seria um processo de signos que tem um objeto mas que torna-se objeto de se
mesmo, “criando um campo referencial próprio” (idem). O contexto, em paralelo, é um
processo de signos que opera em um nível mais amplo e – para nossa aplicação – mais
intersemiótico, tendo qualidade semiótica proporcional à do texto, embarcando apenas
em maior generalidade: contexto é o texto dos textos. Assim, é importante ressaltar que
“a demarcação entre os níveis só é nítida para efeitos de metalinguagem crítica e
analítica; na realidade concreta, os níveis se inter-relacionam isomorficamente”
(PIGNATARI, 1993, p.29). Dessa forma, a difusa relação entre texto/contexto se
materializa na medida em que codificamos e representamos o mundo em diversos graus
e amplitudes. Na medida em que delimitamos um objeto, essa articulação se torna mais
simples. Voltando a Peirce, a relação entre texto e contexto tem muito a ver com a
relação entre um objeto imediato e um objeto dinâmico. Enquanto o objeto imediato é
objeto como representado no signo (CP 8.343), o objeto dinâmico é “a Realidade que de
alguma forma realiza a atribuição do Signo à sua representação” (CP 4.536). Tendo
como texto o objeto de um signo que o representa na medida que alude a ele e está
dentro do próprio signo, como o objeto imediato (SANTAELLA, 2000, p. 39-40);
teremos como contexto precisamente a realidade ampla que envolve esse processo de
signos – o Real “que, pela própria natureza das coisas, o signo não consegue expressar,
podendo apenas indicar, cabendo ao intérprete descobri-lo por experiência colateral”
(CP 8.314).
Trazendo essa discussão para nosso objeto de estudo, já fica evidente como é
necessário articular, para a construção de uma ambiência produtiva, não apenas
perspectivas político-históricas, mas também manifestações qualitativas reflexas no
ambiente de Gilberto Mendes, o que buscamos fazer em nossas análises. Em outras
palavras, na mesma medida em que é importante compreender o diálogo do compositor
com os movimentos artístico-políticos vigentes (nacionalismo musical, Música Viva
42
etc), é também necessário um olhar para uma esfera mais qualitativa do ambiente em
questão (a empatia do compositor com o mar santista, com o futebol, com a sua cidade,
como procuramos fazer no Capítulo 1). Trocando em miúdos peircianos, uma
ambiência/um contexto não é suficientemente descrita por seus legi-signos simbólicos,
mas pela soma de signos de todas as ordens para uma teia complexa e dinâmica.
Conforme pretendo demonstrar nas análises feitas no Capítulo 4 desta
dissertação, a unidade da estética de Gilberto Mendes é antes uma postura em relação ao
mundo do que uma constante atualização de técnicas composicionais. Mendes salta
entre procedimentos composicionais sem parar: ora está compondo música tonal, ora
música aleatória. Por vezes utiliza ritmos brasileiros e harmonias da bossa nova, em
outras ocasiões se liga em uma tradição mais europeia e compõe uma música mais
distante de uma matriz popular. O desafio de Mendes é, pois, de se montar um estilo-
técnica inconstante.
43
CAPÍTULO 3
CAMINHOS PARA O EXPERIMENTAL:
NACIONALISMOS, VANGUARDAS, CONCRETISMO
A relação de Mendes com seu contexto é a chave para compreender o complexo
processo de interação entre as inúmeras culturas e sonoridades que montam as vivências
deste compositor. O estudo dessa relação não deve, porém, soar causal, mas processual,
já que, na medida em que Mendes era parte do ambiente composicional que lhe
influenciava, ele mesmo o retroalimentava. Suas obras não são consequências dos
contextos em que foram compostas, mas são peças de processos contínuos de signos
que engendram em outros signos. Por isso, o capítulo que segue não tem como intenção
justificar o período experimental de Mendes a partir de seu contexto, mas entender
como as obras do compositor se articularam com a ambiência histórico-artística na qual
se inseriram.
Esse capítulo abarca três focos. Em um primeiro lugar, 3.1, há um olhar para um
retrospecto da música erudita brasileira desde o modernismo da década de 1920 até o
período experimental de Mendes. Nessa primeira abordagem, buscamos sempre
dialogar levemente com a trajetória biográfica do compositor levantada a partir de seus
livros, de conversas com ele e das teses de Carla Delgado Souza (2011), Heloísa
Valente (1999, 2006) e Teresinha Prada (2006), entre outras. Em um segundo momento,
3.2, a pesquisa remonta uma breve genealogia da música moderna da primeira metade
do século XX, procurando apenas discutir a reinvenção da escuta/composição musical
das vanguardas europeias modernas em algumas de suas vertentes. Finalizando o
capítulo, há um terceiro e último olhar contextual, 3.3, este voltado para o nascimento
do Música Nova, grupo de que Gilberto Mendes fazia parte, e discutindo analogias
programáticas e estéticas existentes entre este grupo com a Poesia Concreta. Dessa
forma, constrói-se um diálogo amplo do período experimental de Gilberto Mendes com
diversos ramos que integram a inconstância da sua estética composicional nesse
período, que vai desde imitações estudantis do repertório clássico-romântico até a mais
atualizada linguagem dos modernismos e das vanguardas.
44
3.1 Retrospectos – Do nacionalismo modernista à música nova
Mesmo que haja muita produção de música erudita no período colonial, no
império e na república velha, foi apenas no final do século XIX que a música erudita
brasileira adquiriu certa autonomia da música funcional. E, ainda, foi apenas no projeto
modernista da Semana de 1922 que houve a apresentação, justamente por ser um
projeto, da primeira leitura crítica e a primeira estética musical fundamentada no Brasil.
Para compreender as vanguardas musicais brasileiras da década de 1960 e os períodos
de formação de Mendes, é essencial um olhar para o nacionalismo musical, corrente
estético-política semeada nesse modernismo, e seu desenvolvimento, até porque, como
veremos mais adiante, o surgimento do “Música Nova” vai de encontro à corrente
nacionalista mais radical da época, o jdanovismo.
3.1.1 Antecedentes: projetos musicais nacionalistas
Mesmo que apenas no modernismo brasileiro haja um pensamento e uma crítica
produtiva sobre a música de maneira generalizada, o compromisso de compositores
brasileiros com uma música pretensamente nacional é anterior a esse projeto. O cenário
musical brasileiro do final do século XIX é totalmente embebido da tentativa da
expressão de uma dita alma brasileira, que, cabe dizer, é muito diferente da do
modernismo que viria. Como afirma Souza,
No Romantismo, não se procurava uma sonoridade nacional, mas temas nacionais que
fossem representados por meio de sonoridades e linguagens europeias, como, aliás,
também ocorria com as outras artes, sobretudo com a literatura (SOUZA, 2013, p. 25)
Essa configuração estética, por seu lado, procurava, antes de discutir questões
culturais inerente à nação, legitimar perspectivas estrangeiras sobre o Brasil. Enxerga-se
nesse momento histórico um nacionalismo que servia como um afastamento do contexto
brasileiro de suas particularidades.
Apresentando-se como superação desse paradigma europeizado de composição e
produção artística e também musical, o modernismo propõe uma aproximação do
pensamento artístico com uma proposição política. Esse pensar música diferente dos
projetos quase-nacionais que antevieram (como o de Carlos Gomes, cf. RODRIGUES,
2011) aos modernistas não deve ser deixado de lado: pela primeira vez houve a
possibilidade de uma mediação crítico-estética fundamentada no país buscando
independência das amarras coloniais. Negava-se a cultura europeia na medida em que
45
ela impunha novas orientações estéticas para o projeto de nação, compreendendo-se a
nação como berço de uma multiplicidade por traz da qual morava a tal “cultura
autêntica” (KATER, 2001, p.20) a ser desvelada. Assim, o movimento tinha como
característica a colocação de um programa pretensamente representativo para a
constituição, emancipação e desenvolvimento do pensamento estético e da subjetividade
brasileira.
Ao se deparar com a cultura brasileira, a percepção da multiplicidade imensa de
manifestações diversas coexistindo e interagindo foi imediata20
. A problemática
estrutural do programa do movimento se instaurou nesse ponto: como pensar em
unidade de uma alma brasileira em um contexto tão múltiplo e marcado por
mestiçagem? Solucionando esse impasse lógico, o ideário modernista – em especial o
oswaldiano – teve como base a noção de que a multiplicidade brasileira poderia ser
unificada por uma nova proposição epistemológica de relação com o ambiente: a
antropofagia. Uma diferente maneira de conhecer o diferente é o caracterizaria esse ser
nacional. Sem negar o estrangeiro, absorve-o a sua maneira, em um processo de
afecção, deglutição e transformação. Nessa via, o estrangeiro não é mais estrangeiro no
Brasil, pois é transformado e reutilizado por outra maneira de conhecer/agir sobre o
mundo. Como discutido no final do capítulo anterior, é precisamente a relação entre um
ser com seu contexto que determina todo seu espectro de (cri)ação, já que a própria
percepção já é guiada por processos de composição inerentes as suas tecnologias.
Para construir essa noção de antropofagia, os modernistas ilustravam e
reconstruíam a figura indígena, resignificando-a. De onde antes havia o selvagem
europeizado visto no Guarani, irracional e previsível; havia agora um selvagem
nacional, inconstante, aberto. Como de costume das vanguardas e como relembra Kater
(2001, p. 27) há também aqui um processo de busca, pesquisa e fundação do novo em
num passado remoto. Esse processo de ressignificação (enquanto reinvenção de
referências e fontes de estímulo) que tem que ver com o nacionalismo modernista
instaurava, assim, uma perspectiva político-histórica baseada em uma maneira de
20
Por mais que o percurso desse capítulo esteja sendo de alguma forma cronológico, parece mais
importante discutir o movimento modernista em uma perspectiva cultural e semiótica do que em seus
nuances cronológicos e historiográficos. Recuperando a história de forma sincrônica (cf. PLAZA, 2003),
os fatos históricos serão vistos como balizas cronológicas para a discussão em foco: o nacionalismo
musical como contexto da emergência da música de vanguarda dos anos 1960 no Brasil.
46
interação e organização do tempo-espaço, e não numa conjunção fixa de atributos,
artefatos, mitologias e maneiras de agir.
A emancipação proposta por esse projeto não é, porém, um simples desvelamento
para novas perspectivas de leitura do mundo brasileiro. Em outra via, a proposição
modernista encara a problemática da identidade brasileira como questão chave para uma
revolução cultural de onde se transformariam quem somos a partir de como escrevemos
passando pelo como falamos (KATER, 2001, p. 27). Assim, o modernismo se apresenta
como um movimento reativo e negativo a todo um ideário que lhe é contemporâneo,
tanto em vista da produção nacional de arte à época quanto ao arcabouço artístico
exógeno. Dessa forma, o projeto modernista da semana de 22 e do manifesto
antropófago concilia a absorção do estrangeiro com a negação do estrangeirismo, em
dialética constante com o que é externo ao país. Mas os procedimentos para a produção
artística sobre essa base teórica enveredaram de algumas maneiras possíveis: enquanto
Oswald se relacionava intensamente com o fazer artístico europeu e como desembolar
aquelas técnicas em sua brasilidade latente, Mario de Andrade postulava o
modernismo como um trabalho de construção da brasilidade a partir da pesquisa
sistemática da cultura popular e seu uso como material bruto a ser trabalhado pela
técnica do artista (EGG, 2014, p. 264)
Em música, pode-se dizer que a primeira fase do modernismo tem em Heitor
Villa-Lobos (1987-1959) sua figura central, representante único da cena musical do
novo nacionalismo. A maneira como esse programa se relaciona com Villa-Lobos e a
vertente musical do modernismo é, porém, um tanto quanto paralela a esse processo
histórico. A centralidade do modernismo musical na figura de Villa se deu pois, à
época, “não havia grupo de artistas nem conflito geracional [na música do contexto de
Villa-Lobos]. A carência de nomes nacionais era uma coisa patente, um vácuo brutal.
(...) Cada ‘geração era feita de um homem só, e entre elas existiam várias lacunas de
tempo significativas” (EGG, 2014, p. 354).
Neste modernismo musical personificado, as predileções pessoais do compositor
tornavam-se então uma primeira orientação para toda uma investigação sobre a
identidade musical brasileira. A relação de Villa com a música francesa – em especial a
de Debussy – que transparecia em sua música sobrepunha-se aos temas aprendidos em
seu contato com músicos populares (cf. SALLES, 2012, p. 105). Assim, não é de se
47
surpreender que, como Carlos Gomes quis ir a Milão, Villa-Lobos quis ir a Paris21
.
Ademais de conflitos estético-políticos entre Villa-Lobos e Mário de Andrade, cabe
frisar como neste momento do modernismo seu braço musical já se distanciava de um
“primitivismo pau-brasil”22
mas, por outro lado, há pesquisas apontando para que foi
precisamente o contato in loco com a cultura francesa que permitiu a Villa o uso de
materiais de música popular (GUÉRIOS, 2003, p. 90-99). A identificação da referências
composicionais no período pré-semana de 22 se torna, assim, nebulosa, como
demonstra Tarso Salles: “àquela época (...), é difícil afirmar se o registro de Villa-Lobos
era expressão mais ou menos fiel dos bailes cariocas, mera referência a obras de
Debussy ou manifestação nascente do espírito ‘antropofágico’ de nossa cultura musical”
(SALLES, 2012, p. 112). Este uso, porém, veio por meio de procedimentos europeus de
relação com o não-ocidental:
Mediante o acompanhamento da trajetória de Villa-Lobos, podemos perceber como ele
e uma série de produtos de uma “cultura brasileira” acataram as definições, opiniões e
estéticas de artistas europeus, constituindo-se como brasileiros no espelho por eles
fornecido (SALLES, 2012, p. 101).
Como que no meio de campo entre o brasileiro exótico e o brasileiro (dito)
autêntico, a música de Villa-Lobos morava nessa balança da modernidade. Somando-se
elementos folclóricos (vale dizer, transfigurados e não postos ipsis literis) oriundos de
pesquisas musicológicas, técnicas como as dos blocos sonoros de Varése e outros
fazeres musicais das vanguardas europeia da época (KATER, 2001, p. 31-38;
GUÉRIOS, 2003), o som de Villa-Lobos demonstra um nacionalismo que desliza
constantemente para o exotismo, provavelmente por essa busca de legitimidade
composicional no ambiente estrangeiro.
Aqui, um salto temporal pode ser interessante. A reverência de Gilberto Mendes
a Villa-Lobos é notável: não apenas este é citado inúmeras vezes em seus textos
(MENDES, 1994, p.115, p. 118, p.125, p.127, e outras tantas), como Mendes inclusive
21
Com 35 anos de idade em 1922, Villa-Lobos ainda não tinha despontado e nem tido nenhum
reconhecimento significativo. Em suma, Villa buscava se afirmar no contexto brasileiro compondo
música francesa nos moldes da música francesa da virada do século, em especial de Debussy (EGG, 2014,
p. 351) até porque, neste contexto a relação entre as músicas de concerto e as populares escritas (maxixes,
etc) era complicada (GUÉRIOS, 2003, p. 96-97). 22
Esse primitivismo era justamente o que interessava a Mario de Andrade a música de Villa-Lobos: o
fazer não-acadêmico, que não ligava para a academia e tampouco para a tradição, mas para a como a
música ia soar. Nas palavras do Mario “as obras dele eram irregularíssimas. Quando grandes,
apresentavam quase sempre formas desengonçadas, sobretudo compridezas irritantes, e canhestrices
pueris. Mas o Vila inventava. Não sabendo orquestração, criava instrumentações admiráveis”
(ANDRADE, 1933; In: TONI, 1978).
48
compôs, em 1987, a peça para piano Viva Villa. A maneira como o compositor santista
se apropriou de Villa é, porém, um tanto quanto nebulosa para uma descrição clara e
sucinta – “sei que ele me influenciou, mas não sei bem explicar como” (idem, p.55). E a
reverência se desdobra para quando Mendes resume parte de sua música: “talvez em
meu inconsciente eu tenha tentado algumas vezes ‘webernizar’ Villa-Lobos, em minha
música” (Idem, p. 56). Esta proposição provavelmente se refere às peças feitas a partir
da década de 1970, já que, como veremos, há no compositor, em 1960, uma negação
dos procedimentos nacionalistas de forma ampla.
Voltando aos nacionalismos, agora em um segundo momento, o projeto que
antes era maldito passa a ser parte do status quo. O antes indigesto modernismo pau-
brasil passou a integrar a conjuntura do sistema produtivo da música. Nesse sentido, é
importante ressaltar como as gerações subsequentes do nacionalismo musical operam
numa lógica de continuidade com os compositores prévios, o que faz com que, em
algum molde, aqueles sejam signos destes. É evidente que os procedimentos
composicionais das novas gerações nacionalistas (de músicos como Lorenzo Fernandez,
Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, etc) são repletos de particularidades e
diferenças, mas não é exagero dizer que a maneira como estes compositores se
relacionam com o (dito) folclore nacional é um tanto quanto similar. Como Villa-Lobos,
os compositores das novas gerações nacionalistas colocam-se no interstício entre a
pesquisa musicológica e os jogos da musica moderna europeia. É necessário apontar,
porém, que por mais que haja uma semelhança entre esses nacionalismos
contemporâneos, há uma grande divergência no que se refere à intensidade dos fatores
levantados na estética de cada compositor, de tal forma que não faça tanto sentido
montar uma polarização tão forte em Villa-Lobos, deixando os outros para escanteio. A
saber, nesse momento o projeto de Villa-Lobos era educativo, e não composicional23
;
suas peças continham cada vez mais uma cristalinidade substituindo uma modernidade
“desengonçada” (ANDRADE, 1933 apud TONI, 1978). Camargo Guarnieri (1907-
1993), por sua vez, se colocava na linha de frente de um projeto sim composicional,
nacionalista e engajado politicamente (após galgar certo reconhecimento no meio
artístico), talvez consequência da relação de sua íntima relação com Mário de Andrade,
seu padrinho intelectual. Em outro lado, Francisco Mignone (1897-1987), também
23
Cabe citar, aqui, que nesse momento a música de Villa-Lobos e seu projeto do canto orfeônico
passaram a servir como política cultural estruturante do Estado Novo (1937-1945) varguista,
demonstrando como o nacionalismo musical tornou-se hegemônico enquanto corrente estética no país.
49
próximo de Mário de Andrade, se desvencilhou menos da música europeia, talvez por
sua origens urbanas da imigração italiana em São Paulo, aproximando-se como Villa a
política do Estado Novo, dirigindo o INM (Instituto Nacional de Música – ligado ao
governo varguista).
Em Camargo Guarnieri, o projeto marioandradiano pode encontrar enfim uma
continuidade perdida nos devaneios parisienses de Villa. Mais focado no material (dito)
folclórico brasileiro extraído da música popular, Guarnieri extingue de sua música os
(ditos) estrangeirismos, que à época eram os expoentes das vanguardas europeias.
Diferente de Villa e Mignone, em Guarnieri encontramos um compositor preocupado
com as consequências políticas de sua obra, próximo à construção de um programa
engajado e, nesse sentido, mais distante de uma produção romântica.
3.1.2 Música Viva e a querela das Cartas Abertas
Retomando nossas balizas históricas para o estudo de Gilberto Mendes, é nesse
momento histórico, da década de 30/40, que encontramos dois pontos muito importantes
para a construção do contexto composicional do compositor santista. Um primeiro
ponto é que Mendes, nascido em 1922, começava seus estudos na década de 1940, e
compunha “ingenuamente” suas primeiras peças final dessa década24
, como a bem
humorada Sonatina (1951). Em segundo lugar, é necessário ressaltar que foi nesse
período histórico que começou a desenrolar, no Brasil, as primeiras incursões de
composição dodecafônica.
O movimento Música Viva, encabeçado por Hans-Joachim Koellreutter (1915-
2005), tomou forma em 1939, e desenvolveu-se progressivamente até o final da década
de 1940. O grupo trazia para o Brasil uma técnica composicional contemporânea já
utilizada na Europa fazia muitos anos, o dodecafonismo25
, oriundo da composição
schoenberguiana dos anos 20. A técnica dos 12 tons foi enormemente difundida por
Koellreutter durante toda a década de 1940, agregando discípulos do compositor alemão
24
Nessa época, Mendes ainda não havia tido um contato profundo (MENDES, 1994, p.55) com a
problemática nacionalista levantada anos antes por Mario de Andrade em seu Ensaio sobre a Música
Brasileira (1928) reavivado pela onda de compositores encabeçada por Guarnieri na década de 1950. 25
Na próxima secção deste capítulo, 3.2, há de forma mais esmiuçada como se deu o desenvolvimento
das vanguardas europeias em contraponto com o contexto brasileiro, já que aquela matriz é essencial para
a compreensão do período da Música Nova de Mendes.
50
naturalizado brasileiro. Dentre os alunos mais proeminentes dessa corrente, Cláudio
Santoro26
(1919-1989), Edino Krieger (1928-), Guerra-Peixe (1914-1994) e Eunice
Katunda (1915-1990), todos premiados e tendo peças tocadas para além dos concertos
do grupo. Porém, esse movimento de resgate do dodecafonismo, por mais que fosse
pioneiro no Brasil, representava um descompasso em relação ao desenvolvimento da
música como linguagem na Europa, que já estava prestes a levar o serialismo às últimas
consequências, estendendo o dodecafonismo para a serialização dos outros parâmetros
da música (além da altura, também o ritmo, o timbre, a dinâmica, etc). A incursão de
Koellreutter reside, portanto, no paradoxo entre ser uma corrente conservadora em
relação à composição europeia e ser um signo novo e altamente informativo no contexto
brasileiro. Seria equivocado compreender o Brasil como retardatário das linguagens
musicais europeias da época, já que, como borda do processo político-musical, a própria
música popular brasileira e as perspectivas do modernismo musical retroalimentavam a
modernidade musical europeia enquanto organismo em desenvolvimento progressivo27
.
Dessa forma, na década de 1940, há na composição brasileira simultaneamente
uma corrente nacionalista, agora hegemônica, desenvolvendo-se ao lado dos setores
mais conservadores da sociedade; uma corrente nacionalista fortemente engajada
politicamente e progressivamente mais combativa, encabeçada por Guarnieri; e um
setor mais cosmopolita28
, ainda diminuto mas em contínuo crescimento, que se utiliza
das técnicas dodecafônicas difundidas por Koellreutter.
Entre nacionalismos e vetores dodecafônicos, o conflito entre diferentes linhas
composicionais foi se acirrando, desembocando na querela das Cartas Abertas29
de
26
Em entrevista para Teresinha Soares em 2005, Mendes revelou que, segundo Edino Krieger, Santoro já
havia composto peças dodecafônicas antes da chegada de Koellreutter no Brasil. Ele diz, inclusive, que “a
partir do interesse de Santoro no dodecafonismo que Koellreutter organizou as aulas sobre o tema” (cf.
SOARES, 2006, p. 24). 27
A história das vanguardas musicais europeias até a década de 1960 é passível de ser sumarizada como a
sucessão de paradigmas produtivos que se antagonizaram ou aprofundaram as gerações anteriores, em um
movimento explosivo-expansivo. Ou, nas palavras de Butler, “avant-gardists who aimed at a radical
change of paradigm in the modernist period were more and more dependent upon being written into a
progressive history of art, which sees changes in technical procedures as crucial” (BUTLER, 2004, p. 75). 28
Como nos conta Haroldo de Campos, “no pós-guerra, no início da ‘guerra-fria’, nos anos entre 1945-
1952, os artistas interessados em problemas formais eram acusados de ‘cosmopolitismo’” (CAMPOS
apud MENDES, 1994, p. XIII). O cosmopolitismo tem que ver, portanto, com uma orientação estética
que tende mais a noção moderna de desenvolvimento evolutivo das linguagens artísticas em nível
universalista e mais abstrato e simbólico do que indicial e social. 29
Como lembra Kater (2001, p. 116) houve muitas cartas abertas na história da música brasileira,
algumas elogiosas, outras críticas ou problematizantes, de tal forma que esse evento não foi inédito em
todos os graus, mas nos conformes dos hábitos da época. As cartas desse período em específico tornaram-
51
Guarnieri e Koellreutter. Reativo ao progressivo desenvolvimento do serialismo
koellreutteriano no Brasil, Camargo Guarnieri escreve em 1950 uma carta aberta sobre a
presença do dodecafonismo no Brasil. O texto tinha como pilares duas perspectivas
diacrônicas. A primeira era a acepção de Mario de Andrade acerca de técnicas
estrangeiras, tal qual visto quase 30 anos antes em seu Ensaio sobre a música brasileira
(1928), onde ele constatava que a música que não é brasileira deveria ser tida como anti-
nacional, e portanto deveria ser objeto de repúdio político. A segunda fonte, esta mais
recente, seriam as ideias do manifesto Jdanov30
, de cunho stalinista e também reacional,
erigido sob a égide do internacionalismo do programa comunista vigente. Guarnieri
associava o dodecafonismo a uma “degenerescência do caráter nacional” derivada do
“cosmopolitismo”, já que este se afastava da música seu caráter social (GUARNIERI
apud KATER, 2001, p. 119). O dodecafonismo seria, para o compositor, um artifício
cerebralista que tinha como intuito político oculto desmontar o nacionalismo. Ademais,
Guarnieri ainda deixa subentendido, nessa carta, a estética da música como matéria do
deleite e da reafirmação social, mas não de um deleite cerebral. A escuta abstrata da
música é assim menosprezada perante uma escuta mais nacional, que seria capaz sim de
“sentir, de amar e de revelar tudo que há de novo, dinâmico e saudável no espirito (sic)
do povo” (Idem, p. 121).
Koellreutter fez, por sua vez, uma Carta Resposta em 1951 – em tom menos
ostensivo – em defesa de sua estética musical. No outro lado da trincheira, o compositor
reclama que o dodecafonismo, enquanto uma técnica, por si só nada tinha com disputas
sociais e políticas. O alemão rebate as críticas de Guarnieri de que a técnica
dodecafônica seria feita para iludir ao invés de construir, dizendo que o nacionalismo,
em sua faceta vigente, fazia imperar mais a sensação humana na música, remetendo a
um ideário romântico. Em abertura para novas estruturações da estética musical,
Koellreutter declara que
é verdade que essa música, apezar (sic) de toda sua perfeição estrutural, demonstra algo
de instável e fragmentário, característicos de uma crise que resultado conflito entre
forma e conteúdo, a fonte mais importante do desenvolvimento e do progresso nas artes
(KOELLREUTTER apud KATER, 2001, p.130)
se notórias devido a acidez de seu conteúdo e sua representatividade diante da divisão de compositores à
época. 30
Escrito por Andrei Jdanov, membro do governo stalinista, o manifesto defendia como corrente estética
o “realismo socialista”. Na prática, o manifesto servia como política do estado stalinista para a orientação
estética dos países da URSS e de filiados desse alinhamento político soviético pelo mundo.
52
Lendo esse processo semioticamente, é visto nesse momento um embate entre
duas leituras sobre a música como signo, que aprofundamos no segundo capítulo desta
dissertação. A primeira, de cunho nacionalista, jdanovista e marioandradiana, posto que
a música, enquanto signo, deve ser valorizada e legitimada pelo que ela tem de sin-signo
indicial dicente, por seu efeito na sociedade. Cabe dizer, em concordância com José
Luis Martinez (1997) e Willy Correa de Oliveira (1978), que a relação entre a noção
semiótica de música como índice e da representação da música como relativa a seus
fatores sociais se evidencia na medida em que o universo da secundidade musical é o
campo das relações sociais que a música indica/perpetua/questiona.
Do outro lado, a linha dita cosmopolita trazia como importância no signo
musical seu caráter qualitativo, em jogos sintáticos intraduzíveis para o campo social,
compreendendo então a música a partir de suas facetas quali-sígnicas icônicas
remáticas (cf. SANTAELLA, 2013; MARTINEZ, 1997). Essa acepção, por ser muito
mais vaga e maleável, não afasta da música o seu caráter social, mas possibilita o
levantamento de questões inerentes a sua própria morfologia. Há aqui, portanto, o
nascimento de um pensamento semiótico em música que permite análises não
exclusivas de um mesmo objeto, o que tem que ver também com o movimento da
Poesia Concreta paulista e com o fundamento dos signos que compõe a semiose
musical.
Percebendo então que uma orientação estético-composicional é também uma
leitura semiótica sobre a música, a querela entre o cosmopolitismo e o jdanovismo não
deve ser vista como um embate político, mas, mais amplo do que isso, como uma
discussão sobre o próprio processo de significação da música. De um lado, a música
como objeto político social e do outro a música como jogos morfológicos quase-sociais,
quase-signos, de primeiridade.
A querela se torna mais complexa, porém, na medida em que Koellreutter
associa a música nacionalista ao “estado premental de ‘sensação’, próprio do homem
primitivo e da criança” (KOELLREUTTER apud KATER, 2001, p. 129). Tal afirmação
pode confundir a ideia da forte indicialidade presente no nacionalismo. O desate dessa
teia se dá na medida que, já a música nacionalista necessita de indicialidade na sintaxe
musical para incitar/promover reações políticas, os efeitos perceptivos e as sensações
suscitadas pelas peças musicais tem que ser de alguma forma previsíveis. Visando
53
alcançar essa previsibilidade, esta música tem uma conexão com o repertório do seu
público, o que pressupõe a noção de comunicabilidade. Ora, é precisamente sob essa
percepção da música como signo que suscita uma sensação determinada (alguns dirão,
codificadamente) que desemboca a ideia de música como signo predominantemente
social, perpetuada implicitamente por Guarnieri.
A composição serialista, por sua vez, também lida com uma escuta que aviva
sensações, mas sua compreensão exigia algum esforço intelectual a sua época, já que,
para o ambiente musical brasileiro, o resultado sonoro do dodecafonismo estava muito
distante do repertório comum. Esta escuta, mesmo que tendo a ver com uma concepção
da música com predominância na primeiridade, exigia um desate intelectual (de
desconstrução das leis interpretativas) para uma atualização do conceito artístico de
música. Para extrair da música dodecafônica um interpretante lógico para além do
estranhamento daquela escuta, o intérprete brasileiro deveria antes desconstruir a
própria maneira de se ouvir, antes associada com uma lógica da harmonia tonal em suas
inúmeras veredas e expansões. Pensando ainda a escuta como criação abdutiva, como
visto no capítulo anterior, a relação signo-repertório demonstra-se pressuposto para
composição de interpretantes possíveis. Essa relação, por sua vez, é intrinsecamente
relacionada com as regras interpretativas derivadas das experiências colaterais do
sujeito. Tanto mais vezes se reiterou a música nacionalista no repertório brasileiro, mais
ela se tornou fácil de escutar, mas menos informativa ela se tornou. Nessa via, o
contexto nacionalista conservador clamava, de alguma forma, por um novo signo,
fresco, para reavivar a ambiência estética vigente. Assim é fácil compreender, portanto,
porque o dodecafonismo koellreutteriano, como novo signo, tenha ao mesmo tempo
causado tanto alvoroço, agregado adeptos e influenciado gerações subsequentes.
3.1.3 – Metaprecursões: as fases de formação de Gilberto Mendes
(1945-1962)
É em meio à ambiência desse conflito político-estético que Gilberto Mendes
começa a compor. As primeiríssimas obras do compositor (1945-1953), como já
comentado, tinham como característica maior um certo “autodidatismo especulativo”
(SANTOS, 1997, p. 23) com leves inclinações nacionais (BEZERRA, 1999, p. 166).
Essas peças do começo do período de formação de Mendes (1945-1953) tem ao mesmo
tempo uma “intenção de brasilidade”, toques jazzísticos, momentos impressionistas e
54
uma relação íntima com a música tradicional e sua harmonia tonal (SANTOS, 1997, p.
22-23).
Em meio a escolas bem definidas e estilos delimitados da ambiência do início
dos anos 1950, Mendes aparece como raridade sígnica, propondo uma música que, antes
de ser projeto político-estético, era manifestação espontânea. Esta postura
aparentemente inovadora deve, porém, levar consigo algumas ressalvas. Em primeiro
lugar, devemos lembrar que Mendes estava no começo de sua carreira composicional, e
que, em alguma medida, as peças desse período foram criadas de maneira muito
despretensiosa, sem a ambição de serem muito apresentadas e reconhecidas31
. Em
segundo lugar, é importante identificar que, nessa fase de formação, o compositor vivia
precisamente a sua formação, de tal modo que cada obra era um degrau na heurística
composicional. Por fim, não devemos deixar de lado que nesse período (1945-1953) há
uma leve aproximação estética de Mendes com a corrente nacionalista mais
guarnieriana, também por conta de sua hegemonia à época: o Música Viva se
desarticulava e grande parte dos compositores discípulos de Koellreutter (Santoro,
Guerra-Peixe, Katunda) tinham “trocado de lado”, passando a compor música
nacionalista. Santoro, por exemplo, largara o dodecafonismo justamente em busca de
maior comunicabilidade (no sentido amplo desse termo) em sua música, em um
processo de “humanização da nova linguagem” (cf. NOGUEIRA MENDES, 2009, p.
69). Cabe reiterar, a proximidade de Mendes com a linha nacionalista é um elo fraco,
como conta Souza, o compositor “não se adequava nem aos ditames da escola
nacionalista de composição e nem às propostas do movimento Música Viva. Era, como
gosta de dizer, um autodidata” (SOUZA, 2013, p. 67).
A descoberta pela tentativa, o fazer sem medo do erro e uma espontaneidade
auspiciosa são as características que melhor definem essa fase de formação que, não
devemos esquecer, também faz parte do contexto composicional de seu período
subsequente, de experimentação. Por essas características e pelo interessante uso
metalinguístico que Mendes faz do repertório tradicional – como que parodiando
Mozart na Sonatina (1951) –, críticos apontam peças dessa fase composicional como
precursores da pós-modernidade musical (SOUZA, 2013, p. 65; MENDES, 2008, p.
31
Nessa época, inclusive, Mendes procura e consegue um emprego como bancário na Caixa Econômica
Federal, que lhe renderia a estabilidade econômica por toda sua vida. As peças desse período só vieram a
ser tocadas várias décadas depois, quando resgatadas pelo compositor nas décadas de 80-90.
55
116; BUCKINX, 1998). Essa aproximação anacrônica se deve a leitura da pós-
modernidade musical como território amorfo – sem delimitações e sem a evolutibilidade
dos momentos de vanguarda. Mas não devemos esquecer que o período de formação do
compositor é justamente o momento de uma busca de efeitos e sonoridades que lhe
agradem. Assim, essa denominação de precursor num período de formação de um
compositor, durante uma época de constante inserção de múltiplas emancipações
estéticas, é signo de um outro Mendes que estava por vir, depois até da sua fase de
experimentação e da delimitação temática da presente pesquisa. Em uma reviravolta
sincrônica, é no período de formação do compositor que reside o objeto imediato de sua
obra póstuma, e, ouso dizer, o objeto dinâmico de tendências da composição avant la
lettre: universalismo, metalinguagem, leitura sincrônicas do passado.
Como jovem compositor com um reconhecimento nacional nulo, Mendes passa
a procurar novas opiniões sobre suas peças, deixando-se criticar por aqueles que ele
considera. Nesse período (a partir dos anos 1950), Gilberto já fazia parte do Partido
Comunista, juntamente com muitos compositores e instrumentistas de várias gerações:
Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, entre outros tantos. Em depoimento para Carla
Souza (2013), Mendes conta que, encorajado por seu amigo Gastão, envia sua Sonatina
para uma pianista renomada do Partido Comunista, Ana Estela Schic. A resposta, além
de tardia, foi muito negativa. Nas palavras do compositor,
Mas ela primeiro demorou muito para chamar a gente de volta, e quando nós voltamos
lá ela meteu o pau em tudo. Achava que era tudo muito cosmopolita, que não tinha nada
do Brasil. Ela era comunista e o partido estava nessa. E às vezes eu penso: ‘Poxa, a
minha Sonatina passou pelas mãos da Ana Stela e ela não percebeu a música que era’
(...). Ela fez uma crítica muito negativa, que foi muito ideológica (...). Eu resolvi fazer
música brasileira depois da porrada que eu levei da Ana Stela Schic, o que eu não diria
que foi horrível, porque eu tenho jeito para música popular também (MENDES, 2009
apud SOUZA, 2013, p. 68)
Curioso perceber como até a Sonatina de Mendes, tão sincopada e quase
caricaturalmente brasileira (cf. SANTOS, 1997, p. 22), foi taxada de cosmopolita! Essa
leitura reativa e redutora tem relação direta com a corrente de produção cultural da
época, o jdanovismo, que já discutimos anteriormente. Mesmo que importada de outras
regiões comunistas do mundo, o jdanovismo funcionava há uma década como cartilha
de legitimação artística nacionalista, como que em um nacionalismo internacionalista.
Misturando a tradição clássico-romântico-europeia com as particularidades de cada
cultura popular regional, esse movimento político buscava a produção de uma arte que
tivesse como interpretante dinâmico efeitos de conexão direta com povo. Cláudio
56
Santoro foi talvez o compositor que mais tenha entrado em contato e filiação com as
ideias dessa corrente comunista (NOGUEIRA MENDES, 2009, p. 72), o que gerou um
debate com Koellreutter (idem, p. 75-78).
O discurso do partido comunista foi de fato muito transformador para a obra de
Mendes, que passou de autodidata-diletante para nacionalista-engajado em pouco
tempo. Em 1954, Mendes passa a ter aulas com Cláudio Santoro, que lhe apresentam
um contato forte com perspectivas um pouco mais recentes do passado musical: antes
ele havia tido apenas uma formação clássico-romântica (Schubert, Mozart, Schumann,
etc), como visto em sua tese de doutoramento (1994).
Os encontros com Santoro duraram apenas seis meses e fizeram com que
Mendes se fixasse no nacionalismo como corrente para seu estilo. Em detrimento de
suas primeiras peças musicais, o cosmopolitismo bem-humorado é deixado de lado para
dar lugar a um lirismo sóbrio, mesmo que em constante diálogo com a música popular,
como visto na canção Peixes de Prata (1955) e na peça Ponteio (1955), esta feita em
alguma medida em homenagem a Santoro, que tinha uma peça homônima (MENDES,
1994, p. 56). Cabe citar, porém, que, mesmo que os procedimentos nacionalistas tenham
adentrado a técnica do compositor santista, ele propõe um nacionalismo voltado para as
qualidades sonoras e políticas que lhe são próximas. Isso faz com que o nacionalismo de
Mendes seja muito particular, e provavelmente tenha a ver com o fato de que Santoro é
o único dos dissidentes de Koellreutter que não se enveredou em na musicologia como
pesquisa composicional, mas, em outra via, focou-se mais em questões político-
partidárias do que folclóricas. Esse engajamento político entra em Mendes, mas não
monopoliza sua estética. Em uma interessante virada, Mendes traz para seu discurso
musical – político – agora nacionalista, o universo qualitativo que lhe cativa na sua
esfera perceptiva próxima. Diferente de Eunice Katunda e Guerra-Peixe, que
prosseguiram em uma linha marioandradiana de composição a partir de pesquisa
musicológica-folclórica, Gilberto Mendes busca como material nacional as imagens
com que convive em seu dia-a-dia. Antes de viajar o Brasil, o compositor abria sua
janela em Santos: era suficiente.
Como em toda sua obra, o mar aparece como imagem inspiradora e essencial
para sua construção poética. O mar está em Peixes de Prata (1955), mas também em
obras de outros períodos, como Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce
57
com Dorothy Lamour (1984); ou Um estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do
sul... (1989); entre tantas outras. Estes mares do sul (como Mendes gostava de chamar o
mar santista) são precisamente o arcabouço de todas as memórias da infância e
mocidade do compositor, que nunca deixou de manter uma relação íntima com a praia.
Como ele mesmo relata:
Claudio Santoro uma vez me preveniu que não era bom morar em um lugar bonito, à
beira-mar. Desviava do trabalho. De fato, além de ter começado a estudar tarde, meu
progresso musical iria ser muito lento, pois eu precisava ir à praia. Mas não me
arrependo nada, podia ter aproveitado mais ainda... (MENDES, 1994, p.37)
Voltando ao nacionalismo do compositor, vale dizer que esta maré foi, na
verdade, uma marola um pouco prolongada. Mais para o fim dos anos 50, Mendes passa
a ter aulas com Olivier Toni, em encontros muito transformadores para ambos. O
ambiente da “aula” era muito criativo e aberto (cf. TONI apud SOUZA, 2013, p. 88-
89), o que provavelmente impulsionou o compositor santista para seu próximo período
composicional. Os encontros com Santoro, por outro lado, tinham ocorrido em menor
número, e justamente quando Mendes estava buscando certo amadurecimento técnico
composicional que lhe foi útil.
Toni havia tido aulas com Koellreutter e com Camargo Guarnieri e passava para
Mendes sua insatisfação perante a dicotomia estagnante que imperava no contexto
musical em que se inseriam. Seus encontros foram, assim, uma maneira coletiva de
desconstrução das amarras que essa conjuntura histórica lhes atava. Essa desconstrução,
por sua vez, se deu a partir da análise de novas partituras que chegavam pouco a pouco
no Brasil, novas músicas que causavam muito estranhamento até para os músicos da
Orquestra de Câmera do Estado de São Paulo, como nos conta Toni (Idem). Segundo
Mendes, em 1955-1956, teve seu primeiro contato com a música concreta de Pierre
Schaeffer via a Symphonie pour un Homme Seul: a música era trilha para dança de
Maurice Bejárt em um documentário no cinema (MENDES, 1994, p. 57). Nesse mesmo
período, ingressaram no Brasil as primeiras partituras dos compositores Pierre Boulez e
Karlheinz Stockhausen, que à época estavam conduzindo a maior tendência
vanguardista, o serialismo integral. Somando o concreto ao serialismo, Mendes pouco a
pouco foi desconstruindo seu nacionalismo, até chegar a o que ele chama de seu
“partido natural” (Idem), a música de vanguarda.
A desconstrução do nacionalismo não foi um processo individual de Mendes,
mas um desate coletivo que culminou, anos depois, no grupo Música Nova. Na época
58
em que Gilberto estudava com Toni, a recente amizade com Willy Correa de Oliveira
foi importante para a emancipação que estava pouco a pouco sendo tecida. Em 1959,
Willy e Mendes tiveram contato juntos com novas partituras de Webern, Nono,
Stockhausen e Boulez.
Ainda em 1959, Mendes foi para a Europa no Festival da Juventude comunista,
em Viena. Lá, ele teve a oportunidade de adquirir inúmeras partituras que não estavam
disponíveis no Brasil, ainda de Webern, Stockhausen, Boulez e Nono. O contato com
gravações das peças só aconteceu nesse momento.
Devido à falta de lógica que regia a entrada de partituras europeias no Brasil,
Mendes, antes de ir viajar, teve um contato muito inusitado com as vanguardas
europeias. Por exemplo, conheceu Webern depois de Stockhausen (MENDES, 1994,
p.69). Essa apropriação livre do passado, reflexo do autodidatismo do compositor,
permanece de alguma forma em toda sua obra e, cabe dizer sem exagero, constitui um
possível elemento unificador de diversas peças do compositor. Nesse sentido, cabe
novamente construir um paralelo entre essa característica em Mendes e a noção de
poética sincrônica de tradução vista em Julio Plaza (2003).
Compor, analisar e discutir música são ações tradutórias, mesmo que em
medidas diferentes32
, e como tal todas são maneiras de recuperar a história. Plaza
discute a polarização entre uma recuperação diacrônica do passado, paralela a
historicismos, causalidades e sucessões; e uma recuperação sincrônica do passado, que
por sua vez dialoga com a noção de história como mônada (PLAZA, 2003, p. 4-6), ou,
em termos peircianos, de passado como ícone (idem, p. 8), que tem a ver com as noções
de historicidade e do que passa como constelação não-causal sob a qual o presente tenta
se debruçar. A tradução é um fenômeno, enquanto poética, de uma leitura sincrônica do
passado, por sua ambição de presentificação do artefato traduzido. Esse fenômeno
engendra na atualização do quali-signo icônico, em (re)materialização do signo no
potencial do real.
32
Enquanto compor é uma tradução de imagens sonoras mentais ou outras proposições de organização
sonora mais abertas, analisar e discutir tem como objetivo a tradução de uma organização sonora dada em
uma outra disposição organizativa, extraindo-se daquela novas leituras criativas. Nesse sentido, todo o
contato com música deve ser lido como um processo de transcriação, de criação sobre a criação, como
visto em Haroldo de Campos (1967) e em Plaza (2003, p. 34-44).
59
A maneira como Mendes recupera a história não é diacrônica-linear, mas a
sincrônica-constelacional-relacional. O compositor coloca, como na já discutida
Sonatina, Mozart em diálogo com a síncopa brasileira; ou, como também já citado,
James Joyce com Dorothy Lamour em um surf em Copacabana. Essa recuperação livre
é, pois, um tratamento tradutório do passado como mônada, e, portanto, de composição
como poética sincrônica. Entre misturas de tempos, Mendes também mixa espaços
poéticos trazendo, como veremos mais adiante, citações livres de qualquer lugar do
mundo em Blirium C9 (1963), esta analisada no Capítulo 4, secção 4.2. Assim, é nesse
autodidatismo da década de 1950 que se vê a semente de uma poética tão maleável
quanto consolidada em Mendes, aberta mas unificada poeticamente. A partir dessa
discussão é necessário indiciar, inclusive, o elo poético de Mendes com os poetas
concretos, que remonta a 1956 e discutiremos em pormenores na secção 3.3 deste
mesmo capítulo.
Voltando ao período de rompimento de Mendes com o nacionalismo, no final
da década de 1950 Mendes já está compondo música atonal, orientado por Olivier Toni.
Esse contato próspero vai até 1959, onde Mendes volta a ser autodidata e decide trilhar
os caminhos que ele encontrou na neue Musik33. Em suas palavras, “tinha que ser por
conta própria, rachando em cima das partituras” (MENDES, 1994, p. 67). Desse
período, a peça Música para 12 instrumentos (1961) marcou a primeira incursão do
compositor com essa nova estética, e de seu total desligamento do seu curto período
nacionalista. Essa peça fez com que, inclusive, Mendes conhecesse Koellreutter, de
quem se tornaria amigo.
Em 1962, Gilberto Mendes vai a Darmstadt no curso de verão de composição.
Lá, o compositor e alguns colegas brasileiros assistem aulas de Stockhausen, Boulez e
Henri Pousseur. Ao contrário do esperado, lá os compositores brasileiros acabaram por
se encantar muito mais com um outro tipo de composição – diametralmente oposta ao
estruturalismo germânico do serialismo integral –, a música a partir de operações do
acaso, que tinha como figura central o compositor norte-americano John Cage. Armados
de estruturalismo, técnicas de aleatoriedade, emancipados da “música das notas” e com
uma mentalidade jovem e combativa, os compositores brasileiros retornam a sua terra
natal. Aqui, passam a compor uma interessante nova música, uma neue Musik à
33
Do alemão: Música Nova. Na presente pesquisa, usaremos essa designação quando estivermos nos
referindo a correntes germânicas da vanguarda musical das décadas de 1940-1960.
60
brasileira, que culmina na formação, um ano depois, no grupo Música Nova, em
confluência com a estética do movimento da Poesia Concreta, que, como já dito,
discutiremos detalhadamente na secção 3.3 desse mesmo capítulo.
A partir daqui, finalmente, Mendes inicia o período composicional que a
presente pesquisa tem como foco analisar e esmiuçar. Por isso, nesse momento o
presente retrospecto composicional brasileiro se faz suficiente, e faz-se necessária a
construção do contexto propriamente dito da produção experimental de Mendes.
A orientação estética de Mendes nesse período pode ser dividida em três linhas
gerais contextuais que analisaremos a seguir, mesmo que de forma perspectiva e
transversal: 1) as vanguardas europeias, do dodecafonismo ao serialismo integral, da
politonalidade, da emancipação do som, da música concreta, dos procedimentos
matemáticos, etc; 2) a vanguarda estadunidense, personificada em John Cage, onde
encontramos o uso do acaso como organizador das peças musicais, e um precedente
para o happening musical que estará nas obras de Mendes; e 3) o profundo contato com
a Poesia Concreta dos irmãos Campos e de Décio Pignatari, que apadrinharam o
compositor santista na maneira de unificar poeticamente todas as influências vigentes,
dando inclusive textos riquíssimos para uma tradução intersemiótica para a música,
como veremos na análise de nascemorre (Capítulo 4, secção 4.1).
Assim, já que o contato dessa pesquisa até agora foi, em relação às vanguardas
europeias e norte-americanas, um tanto quanto en passant, procuraremos discuti-las
colocando-as em perspectiva dialógica com o contexto brasileiro e a biografia e o
contato de Mendes com as obras em questão.
3.2 Revisitando o som: a reinvenção da escuta e da composição
Na virada do século e na primeira metade do século XX, a música europeia
passou por um momento de enorme conturbação e transformação. Reformulações
múltiplas sobre as maneiras de ouvir, compor e interpretar eram constantes. Em
velocidade recorde, as regras do jogo musical mudavam em cada local de forma muito
diversa. Desde a maneira como as notas podem ser lidas na partitura, até a própria
existência da partitura, as progressivas reformas configuraram um dos momentos mais
complexos e com mais vetores estéticos de força antagônicos e/ou complementares.
61
Haja vista a magnitude desse período, seria impossível tentar compreendê-lo
como um todo nesta pesquisa, cujo fôlego pretende ir até onde o contexto produtivo da
música de vanguarda de Gilberto Mendes leva. Dessa maneira, não pretendemos aqui
recontar toda a história das vanguardas europeias mas, trazendo especificidade a
pesquisa, relacionar panoramicamente e sincronicamente as perspectivas das matrizes
europeias e as brasileiras. Somente dessa forma será possível construir um arcabouço
técnico contextual para compreender as múltiplas sobreposições técnicas de peças de
Mendes como Santos Football Music (Capítulo 3.3).
Levando em conta, quase como unanimidade apresentada pelos vários leitores de
Mendes (já citados amplamente nas secções anteriores), que sua obra lida e absorve
diversas forças composicionais – até as antagônicas – engendrando uma mistura de
espírito nos signos-obra gerados, faz sentido entender Mendes, em seu período
experimental, como um signo cujo objeto é repartido por toda a história da música de
forma evidente. A interpretabilidade das peças desse período tem que ver, como já
comentamos rapidamente, com a soma de técnicas dos mais distintos períodos estéticos,
em uma colagem não de materiais, mas de técnicas composicionais. Em consonância
com esse alinhamento, há a leitura de arte contemporânea vista em Plaza, na medida em
que, para ele,
a arte contemporânea não é, assim, mais do que uma imensa e formidável bricolagem da
história em interação sincrônica, onde o novo aparece raramente, mas tem a
possibilidade de se presentificar justo a partir dessa interação (PLAZA, 2003, p. 12)
Assim, em um movimento aparentemente paradoxal, para esmiuçar Mendes e a
arte contemporânea, é necessário trocar, na pesquisa, o convexo pelo côncavo, a lente
convergente pela divergente, a fim de enxergar mais longe para entender o que está cá
mais perto.
A relação panorâmica de Mendes com as vanguardas do século XX será,
portanto, bastante seletiva, direcionando-se apenas para as perspectivas mais evidentes
de analogia, influência e antagonismo. Dessa forma, pretendemos construir um filtro
não excessivamente redutor dos processos europeus e norte-americanos nas artes. Em
suma, a busca dessa secção não é compreender esses processos de vanguarda como
signos de seus conterrâneos, em um metadesenvolvimento crônico. Por outro lado, esta
investigação quer compreender esses processos como índices que apontam para os
processos brasileiros extrínsecos a eles, como objeto dinâmico.
62
Para montar de forma clara a genealogia da vanguarda que compõe o repertório
mendesiano, dividiremos as secções subsequentes em duas partes. Na primeira parte,
3.2.1, há o olhar para como, em linhas gerais, processos composicionais afetaram a
produção da música de concerto ocidental, discutindo as alternativas composicionais
pós-tonais. Por fim, na secção 3.2.2, observaremos a inserção de uma nova força no
paradigma composicional ocidental: a música norte-americana. Nesse último olhar,
pretendemos observar como a figura de John Cage (1912-1992) propõe uma articulação
musical em uma outra epistemologia composicional, que lida com o acaso, o silêncio, o
ruído e o tempo de forma inusitada e transformadora inclusive para Mendes.
3.2.1 As vanguardas europeias
O início da modernidade musical europeia aponta para a virada do século XIX
para o século XX. Como nas diversas outras linguagens artísticas34
, a música passou por
enormes reestruturações. Esse processo não se deu de maneira estanque, mas ocorreu
como superposição de diversas semioses inusitadas, que atualizaram as leis de fruição
artística. Essas novas semioses estão em íntima conexão com duas matrizes regionais
principais que atingiram reconhecimento em suas proposições, uma de matriz francesa e
outra germânica.
Após essas emancipações mais localizadas, a modernidade musical europeia
tomou proporções continentais, espalhando-se e congregando compositores desde a
Rússia até a França. Aqui, discutiremos como a matriz franco-germânica permaneceu
hegemônica no período delimitado dessa pesquisa, mesmo que contando com ricas
manifestações em sua marginalidade.
A Europa passava, na virada do século, por um período de muita efervescência
cultural. As rupturas paradigmáticas de diversas áreas do conhecimento humano
desenroladas durante o século XIX traziam ao mesmo tempo uma angústia generalizada
e um contexto de muito questionamento e crítica. O século XIX foi o palco de inúmeras
mudanças na maneira de se relacionar com o mundo. Desde a descoberta do
inconsciente da psicanálise por Freud, a postulação de Marx sobre uma subordinação da
esfera social cultural a condição econômica – e sua consequente proposição de
34
Nesse momento, há no universo da pintura a superação do paradigma representativo-naturalista via
proposições abstracionistas (KANDINSKY, 1996). Cabe citar, também, os processos emancipatórios na
poesia, com o início do uso do verso livre, e na prosa literária, na qual a linearidade discursiva ia sendo
deixada de lado, colocando em crise o modelo romântico.
63
superação do capitalismo, até as relativizações e disjunções do categórico via Nietzsche.
Assim, o sujeito ocidental se encontrava em um lugar bem delicado: ao mesmo tempo
em que desenvolvia tecnologias (em um sentido expandido do termo) em tempo
recorde, progressivamente se descobria subserviente de leis que fugiam de seu controle.
No universo artístico, não foi diferente, como coloca Salzman,
o século XIX nos ensinou a compreender a obra de arte como um produto condicionado
pelo seu contexto histórico e cultural e (...) como expressão individual de uma artística
singularidade (SALZMAN, 1970, p. 13).
As rupturas e buscas no fin de siécle são fruto desse ímpeto de ruptura
dissociado da superpotência e das noções românticas de agente. Em outras palavras, o
grande desenvolvimento e as rupturas pandisciplinares desse período andam de mãos
dadas com um aumento da sensação de impotência do indivíduo.
Em consonância com esse processo, a música também passava por sua
convulsão. As fórmulas composicionais baseadas na harmonia tonal já não conseguiam
compreender a insurgência criativa dos compositores vigentes. Alternativas às regras
tonais passaram então a surgir e foram se desenvolvendo no decorrer das décadas. É
possível dizer que, dentre a multiplicidade de soluções pessoais/regionais dos
compositores para esse “impasse” cultural, há duas correntes distintas – mas não
necessariamente antagônicas, como veremos. De um lado, compositores como Debussy
e depois Messiaen passam a compor retrocedendo a uma estética mais modal, menos
teleológica e “coerente” do que o (ou no) tonalismo. Em outro lado, os adeptos das
Escolas de Viena passavam a controlar minuciosamente todos os parâmetros do som,
criando novas leis da harmonia e novas regras – bem mais estritas do que as que as
precedem – para a composição35
. Deste lado, o dodecafonismo e o serialismo integral;
daquele, a montagem de Debussy e Messiaen. Gilberto Mendes, como veremos, não se
situa em nenhum desses polos, mas dialoga com ambos em suas peças experimentais,
misturando técnicas tidas como antagônicas. Em complemento a essas duas linhas,
veremos como novas tecnologias adentraram o fazer musical, profundamente
movimentado pela musique concréte de Pierre Schaeffer. De um lado, observaremos a
obra de Debussy, extraindo dela as noções de montagem, da escuta não teleológica, do
exotismo e do retorno ao modal. Do outro, observaremos brevemente um panorama de
Schoenberg, Webern e Stockhausen, compreendendo a trajetória dos serialismos, seu
35
Essa separação não tem uma abordagem política, regional ou temporal, mas parte de um critério
semiótico. De um lado, proposições composicionais mais intuitivas, modais e não-lineares. Do outro, uma
não-linearidade construída com outros signos, totalmente programada.
64
controle sobre todos os parâmetros do som, sua nova organização e sua consequente
nova escuta.
Um marco para o início da modernidade musical é a obra de Claude Debussy
(1862-1918), apontado como “pai fundador” da música do século XX por diversos
autores (BROWN, 1993, p. 127; MYERS, 2017, p. 900; SALZMAN, 1970, p. 27;
GRIFFITHS, 2011, p. 7). Em Debussy encontramos reformas significativas no contexto
da forma musical, do discurso harmônico, da construção de melodias, do tratamento
rítmico e do contato com culturas fora da Europa. Por todas essas mudanças, este
compositor ocupa um espaço referencial para toda a escola de composição francesa,
europeia e mundial posterior, como discutiremos em breve, colocando o compositor em
paralelo com o período inicial de Villa-Lobos.
Como que em um caleidoscópio de reformas, é difícil achar um ponto de entrada
para descrever a (re)invenção de Debussy. Começaremos discutindo os efeitos que essa
música evoca a partir de sua morfologia, tendo o compositor como objeto das peças-
signos como Prelúde à l’après-mide d’un Faune (1894) ou La Mer (1905). Como
interpretante dinâmico, o compositor francês desperta, em um universo de aproximação
da quase plena primeiridade, uma supressão gravitacional. No lugar da antiga
narratividade romântica e da teleologia discursiva, Debussy, na contramão do que
faziam seus contemporâneos, apresenta uma música sem direcionalidade. Baseando-se
nas formulações da música tonal, Debussy é assim o ponto de partida para a dissociação
gradual (sobre essa graduação, cf. BROWN, 1993) entre o século XIX e XX. O começo,
o meio e o fim da música tem, aqui, uma nova articulação lógica. Uma música pós-
discursiva que, por assim ser, emana de um novo discurso que pressupõe uma nova
forma. E, reiterando, pressupõe uma outra escuta criativa.
Para tal projeto de fruição temporal, era necessário que o compositor superasse
ou reinventasse formas enclausurantes, como a sonata, já que estas carregam consigo a
estrutura de uma organização temporal teleológica. Não por menos, Debussy se
contrapôs, desde o Prelúde a “L’Aprés-midi d’um faune”, ao que chamava de
"obcessão tola por ‘formas’ e ‘tonalidades’ superprecisas”36
(DEBUSSY apud
BROWN, 1993, p. 127). A investigação pela nova forma musical se consagra, no
compositor francês, em uma forma musical não é
Nem um mosaico de fragmentos estáticos, nem uma melodia sem fim ou sem
articulação. A forma sintática de Debussy desvela-se lembrando a dicção poética: há
36
“silly obsession with overprecise 'forms' and ‘tonality” (tradução minha).
65
uma sucessão dinâmica de frases complementares ou contrastantes e de imagens
expressivas, avivadas por referênciações motívicas sutis e breves erupções de
desenvolvimento reguladas por cortes e cadências37
(SOMER, 2005, p. 93).
Passando por outros pretextos lógicos-formais que, por sua vez, mais tem a ver
com uma mudança livre de colorido38 pelo tempo do que com um desenvolvimento de
começo-meio-fim (ainda que a relação do compositor com o passado e a tradição seja
evidente tanto em seu discurso como em sua obra, cf. SOMER, 2005, p.68), Debussy
consagra assim o início de uma emancipação plena da forma musical.
Essa inovação formal tem a ver com a ideia de montagem (MCCALLA, 2003),
na medida em que, ao invés de haver uma consecutividade de secções conectadas por
um desenvolvimento tensivo, o compositor propõe uma transição de polaridades, que
tem a ver com seu tratamento com alturas e seu uso de modos.
Ainda em Debussy há a criação de um precedente importantíssimo para o
desenvolvimento das vanguardas na medida em que abandona a lógica de composição
tonal para se utilizar um discurso de alturas baseado em modos e escalas exógenas ao
ambiente europeu. Ao invés de se voltar para a tradição da harmonia tonal como
material, o compositor francês busca em outras culturas um “novo” arcabouço escalar,
rítmico e harmônico. O contato de Debussy com o gamelão javanês ou com os modos
gregos é evidente e documentado, por exemplo. O uso de escalas de tons inteiros ou
pentatônicas (como em Voiles, de 1909) e outros recursos modais são recorrentes.
Devemos, porém, fazer uma ressalva importante. Aqui, inaugura-se um paradigma de
relação centro-periferia, onde a periferia do mundo – exótica – alimenta a música
europeia, doando materiais composicionais para procedimentos europeus. A discussão
do modernismo brasileiro, feita em 3.1 vai de encontro justamente com essa temática, já
que Mario de Andrade propõe que deva ser feita uma música que fuja dos
estrangeirismos e exotismos.
37
“Neither a mosaic of static fragments nor a seamless “unending melody,” Debussy’s syntactical forms
unfold in a manner that recalls poetic diction: a dynamics succession of complementary or contrasting
phrases and expressive images, enlivened by subtle motivic crossreferences and brief bursts of
development, regulated by caesuras and cadences” (tradução minha). 38
Como veremos também na matriz germânica da música moderna, nesse período há uma aproximação
grande entre som e cor, como visto na Klangfarbenmelodie de Schoenberg-Webern. O discurso musical é
frequentemente tido como discurso de cores e as artes plásticas enxergam frequentemente suas obras
como musicais (KANDINSKY, 1993). Por outro lado, cabe citar que, segundo Salzman (1970, p. 28-29),
“as inovações de Debussy (...) eram baseadas em certo sentido em inflexões sutis e especiais da
linguagem e da poesia da França”. Assim, há de se perceber que, esse momento histórico tem em seu
fundamento um processo sinestésico e intersemiótico, onde há troca entre diferentes linguagens, uma se
colocando como signo da outra.
66
Um último comentário importante sobre a estética desse compositor é como,
para reinventar a composição modal, entendendo-se essa como uma alternativa para a
música tonal, Debussy propõe um tratamento diferente sobre essa abordagem
harmônica. Ao invés de usar os modos como regiões plenas e autossignificantes, há a
sobreposição de modos, escalas e harmonias na composição debussyana.
Simultaneamente, cada registro pode estar apresentando um diferente material escalar,
seja ele maior, menor, de tons inteiros, pentatônico... Assim, a composição em Debussy
é, mantendo a temporalidade suspensa de seu discurso, uma simultaneidade de diversos
materiais harmônico-melódicos apresentados de forma sincrônica. Deriva disso a noção
de ambiguidade no compositor (MCCALLA, 2003), que, trabalhando no limite e na
elisão dos modos, em seus interstícios, compõe um modalismo expandido.
Como já deve parecer evidente, Debussy é extremamente influente para todas as
vanguardas ocidentais do século XX em diversos aspectos. Em suma, podemos
concordar com Salzman que o compositor francês propõe
a dissociação do evento individual do som, a elevação do timbre e da articulação a um
ponto de paridade com a harmonia e a melodia, o uso de construções livres de padrões
tonais baseados na simetria (SALZMAN, 1970, p. 36).
Alguns, porém, se mostravam satisfeitos na simples reprodução de técnicas
estabelecidas do contexto da época. Saindo da França e voltando ao caso do Brasil, a
música de Debussy influenciou enormemente Villa-Lobos, que teve muito contato com
partituras daquele compositor em seus estudos primeiros. Assim, em Villa-Lobos e no
modernismo musical antropofágico, há grande influência da música francesa, mesmo
que haja no projeto antropofágico uma tentativa de negação do exotismo emanado desse
centro cultural. Em subversão paradoxal, música de Villa é o emblema sonoro da nação
em 1922, e sustenta uma relação progressivamente mais exótica com o território
brasileiro.
Gilberto Mendes também mantém uma grande reverência a Debussy, como
início da modernidade, encontrando nele chão para descobertas tímbricas e harmônicas.
Em Santos Football Music (1969), não há o compromisso com uma coerência formal,
como em Debussy, mesmo que o compositor santista não deixe de lidar com a tradição
tonal. Em Blirium C9 (1963), a montagem aleatória de módulos é anti-linear. Em outras
palavras, não seria possível pensar nem na abordagem de Mendes da música modal
brasileira e em sua harmonia, nem na maneira como o modernismo se desenvolveu no
Brasil e nem nas próprias rupturas póstumas da vanguarda europeia sem o contato desse
67
compositor com Debussy. Os depoimentos de Mendes sobre Debussy, não a toa, são
sempre reverenciais. Ao compositor santista, Debussy pretendia uma música “sem
melodias, só de harmonias” (MENDES, 1994, p. 164). E ainda, há em Mendes esta
identificação do timbre como cor e som “como uma pintura” (Idem).
Como já comentado, além das alternativas modais/tonais expandidas de
Debussy e de semelhantes, houve no começo do século XX outra produção que visava
uma ruptura com a harmonia tonal: o dodecafonismo de Arnold Schoenberg (1874-
1951). Essa técnica composicional, enquanto propulsor de material sonoro, consistia na
construção de uma série de notas a partir de leis diferentes às da harmonia tonal. Não
deveria haver repetição de uma nota a não ser se todas as outras do total cromático já
tivessem sido tocadas na série, visando um campo harmônico baseado na instabilidade e
na dissonância. Na medida em que as expansões de sentido na música a partir destas
perspectivas são enormes e semelhantes com algumas questões levantadas por Gilberto
Mendes em sua obra musical e literária, é possível se voltar para esta série de
proposições musicais a fim de mergulhar mais adiante em qual seria o experimento
musical do compositor santista.
Profundo conhecedor de harmonia tonal, Schoenberg constrói um novo sistema
harmônico, priorizando a dissonância. Há, assim, designadamente um projeto estético
derivado da inversão de padrões culturais-naturais de dicotomias da tradição musical.
As notas, emancipadas e autônomas de linguagens outras, são remontadas de acordo
com uma nova lei sistêmica.
Cabe dizer, porém, que Schoenberg preserva de alguma forma um forte elo
com a tradição romântica em sua obra, utilizando-se se formas e formações musicais
canônicas. Mesmo que se utilizando das séries dodecafônicas, suas retrogradações e
inversões, e seguindo princípios da dissonância, a sombra do tonalismo mostrava como
contorno precisamente a forma temporal tonal – necessária talvez para o mínimo de
comunicabilidade das obras em questão. Essa (falta de) comunicabilidade, por sua vez,
deriva de uma dos pontos mais importantes do dodecafonismo para a música moderna –
a abertura da escuta – como descrito por Moraes: “ao propor um novo tipo de
organização musical, o dodecafonismo pressupôs também um novo tipo de escuta”
(MORAES, 1983, p. 51).
Assim, o dodecafonismo é uma anti-replicação das leis tonais, uma atualização
da harmonia em seu nível de legi-signo simbólico argumental, pressupondo um novo
ponto referencial para a música como linguagem. Desse ponto, a música passa também
68
a seguir uma cadeia evolutiva que tem que ver com sucessões abstratas do fazer e do
ouvir música. Lei em constante atualização. Legi-signo em constante replicação.
Como já comentamos, o dodecafonismo foi matéria de muita discussão no
Brasil durante o período de formação de Mendes, na Querela das Cartas Abertas de
Koellreutter e Guarnieri. Interessante pontuar como o embate entre estes dois
compositores demonstra-se análogo a separação aqui descrita entre uma música francesa
e uma música alemã (no começo do século). O Música Viva, agente chave para o
nascimento do Música Nova, decorre diretamente de continuidade do dodecafonismo na
década de 40.
De Schoenberg, deriva a Segunda Escola de Viena, na qual integram seus
discípulos Alban Berg (1885-1935) e Anton Webern (1883-1945), que muito
contribuíram para essa cadeia evolutiva dodecafônica. Berg compunha no limite de
fazer uma música dodecafônica que tivesse um resultado sonoro que remetesse o tonal,
inserindo leis tonais dentro das atonais. Webern, por sua vez, propõe em algumas de
suas composições um dodecafonismo bastante estrito que, contudo, tentava se
desvencilhar das formas românticas. Assim, Webern tem um papel referencial para a
música moderna. E para Mendes também, já que o compositor identificou no
compositor austríaco uma simplicidade poética, economia e expressão que lhe cativou
(MENDES, 1994, p. 38-40).
Usando as técnicas dodecafônicas, Webern se relaciona profundamente com a
lógica contrapontística da escola neerlandesa do século XVI (WEBERN, 1984, p.53), e
promove diversas reformas na escuta e na forma musical. Onde antes havia grandes
sinfonias ou peças de alguns minutos, Webern reduz ao extremo o tamanho de suas
obras, de tal forma que, como conta Augusto de Campos, “a obra inteira de Webern
cabe em quatro LPs: cerca de três horas” (CAMPOS, 2005, p. 317). Suas peças mais
longas tinham, no máximo, dez minutos; algumas das mais curtas têm pouco mais de
meio minuto.
Como um mestre da compressão, o compositor introduz em suas peças um
complexo elemento temporal fruitivo: o silêncio como elemento estrutural da peça
musical. A escuta do silêncio traz ainda mais um salto para a música como linguagem.
O silêncio weberniano emoldura os poucos eventos sonoros que dele derivam, trazendo-
lhes independência (BOULEZ, 2008, p. 330) entre si. Em uma interessante sintaxe, na
música de Webern é possível escutar o momento dissociado de uma trama, mesmo que
haja uma grande coesão interna entre as peças. Assim, esta música soa como “bolhas de
69
música cercadas algumas vezes de amplas zonas de silêncio” (BARRAUD, 2005,
p.105).
A relação íntima de Webern com o timbre musical fez com que sua obra seja
um divisor de águas para o uso desse parâmetro na música contemporânea.
Desenvolvendo a ideia de Schoenberg de Klangfarbenmelodie (melodia-de-timbres ou
cor-som-melodia), apresentada nas últimas páginas de seu tratado de harmonia
(SCHOENBERG, 2001, p. 578-579), Webern propõe uma escuta do timbre,
fragmentando melodias em diversos registros pela orquestração. Uma melodia, ao invés
de ser tocada por um só instrumento, é dividida entre vários, como se ouve em seu
Quarteto para Violino, Clarinete, Saxofone Tenor e Piano Opus 22 (1930).
Em Webern, há, em suma, o precedente para a escuta do silêncio como algo
estrutural à composição musical; a liberdade sobre as formas musicais, que podem durar
até poucos instantes; um ímpeto por coesão interna e compressão, tanto que seu lema
era non multa sed multum – não muito (quantidade), mas muito (qualidade)”
(CAMPOS, 2007, p.107); o uso reincidente de simetrias internas na peça musical; e a
disposição de uma melodia-de-timbres, valorizando, como Debussy, o timbre como
importante parâmetro sonoro da música moderna.
A poesia concreta foi o primeiro movimento a reinventar a música weberniana
no Brasil. Nos poemas policromáticos da série poetamenos, Augusto de Campos propõe
justamente uma aproximação das técnicas composicionais de Webern com a poesia.
Este elo é porta de entrada para inúmeras especulações, e expõe a intimidade dos
concretistas brasileiros – e de Mendes – com relação à música weberniana (cf. BRITO
CRUZ, 2014).
A partir das novas escutas emanadas pelos diversos ramos do dodecafonismo,
havia um campo fértil para novas experiências organizacionais na música.
Radicalizando o procedimento dodecafônico, que serializava alturas buscando não-
periodicidade, os compositores da nova geração musical, Boulez e Stockhausen,
passaram a serializar os outros parâmetros da música, como o timbre, a intensidade ou a
duração39
. Nascia dai o serialismo integral, procedimento de composição que separa
esta em diversos parâmetros, colocando-os cada qual em um desenvolvimento não-
39
Interessante e importante citar que mesmo que esse desenvolvimento seja de uma matriz
predominantemente germânica, os precedentes para a organização total de todos os parâmetros sonoros
estão no Mode de valeurs et d’intensités (1949), de Olivier Messiaen. Essa peça não é, contudo, serial de
um modo schoenberguiano, mas de uma forma muito mais livre e intuitiva (cf. BRINDLE, 1987, p. 23).
70
repetitivo próprio, de tal forma a gerar uma música que não tenha dentro de si nenhum
tipo de repetição ou polarização: uma escuta anti-linear.
O serialismo foi uma corrente fortíssima no contexto europeu, fazendo suas
ondas ecoarem no mundo todo. Seus defensores, e em especial Boulez, muito reativo,
dizia inútil todo compositor que se situa fora da pesquisa serial (BOULEZ, 2008, p.
244). A Europa alemã, e em especial os cursos de verão de Darmstadt, tornaram-se uma
meca para onde os compositores do mundo deveriam peregrinar para atualizarem suas
técnicas, visando estar na crista da onda da vanguarda musical, como relata Mendes
(MENDES, 1994, p. 69), que fez sua “peregrinação” em 1962. Essa centralidade de
Darmstadt como centro da pesquisa musical permaneceu no final dos anos 1950 até o
meio dos anos 1960.
O serialismo integral de Boulez, Stockhausen e a obra de Luigi Nono – como
demonstramos, corrente composicional de matriz lógica, profundamente estruturalista,
cosmopolita e negativa a um paradigma intuitivo-emocional – foi precisamente a linha
da vanguarda que mais influenciou Gilberto Mendes durante a década de 1960. Essa
aproximação deve se dar pelo evidente antagonismo dessa corrente com o nacionalismo
musical brasileiro. Cabe ressaltar, porém, que a maneira como o compositor se apropria
dessa técnica é sui generis, já que soma a ela outras semioses musicais, como veremos
na análise de Blirium C9 (1963).
Em paralelo com o desenvolvimento mais germânico dessa pesquisa
estruturalista sobre a morfologia do som, a matriz francesa foi transmutando suas
características, mas mantendo certo estilo comum entre suas escolas. Em um
determinado momento no final dos anos 40, porém, houve um signo composicional
altamente informativo que saltou aos ouvidos da Europa: a música concreta de Pierre
Schaeffer.
Aliando as novas tecnologias de gravação e difusão com a composição
musical, Schaeffer transformava de forma mecânica fitas magnéticas, invertendo-as,
cortando-as, etc. Deixando de chamar de música apenas a sucessão organizada de notas,
Schaeffer abriga em seu conceito de música tudo que é som. Devido a essas novas
tecnologias, o compositor passa a poder organizar sonoramente os sons da sociedade e
da natureza, os trens passado, a fala humana cotidiana, etc. O que antes era considerado
ruído – som descartável para a música – passa a ser visto como matéria prima da
composição artística.
71
Essa controversa concepção de música expande assim os territórios do compor
e emancipa a música de ser “a arte de combinar notas”, tornando-a a organização de
sons, quaisquer que sejam40. Além disso, é na música concreta que começa a se ter um
estudo fixado na escuta musical, diferenciando-se tipos de ouvir, ambientes de escuta e
maneiras de processamento da música (SANTAELLA, 2013, p. 85-86). A escuta passa
a ser vista como entendimento dos processos inerentes às morfologias do som, e
compreender o som teria a ver com um emparelhamento do som com as leis
interpretativas derivadas das experiências colaterais (idem).
Essa noção de música também se soma a outras correntes estéticas na obra de
Gilberto Mendes, que frequentemente nos anos 60 traz peças com o uso de fitas pré-
gravadas (como Santos Football Music). Como visto no tópico anterior, Mendes entrou
em contato com a música concreta em 1956, e muito foi influenciado por essa linha de
pensamento sobre a música. Mendes foi, cabe dizer, pioneiro nesse sentido, sendo um
dos primeiros compositores brasileiros a trazer sons “não-musicais” gravados para suas
peças.
Para pensar sobre a multireferencial abordagem de Mendes relativa à música de
vanguarda, foi necessário compreender diversos processos que ocorreram na Europa.
Mendes se relaciona com a maioria das várias correntes da vanguarda vigentes no
século XX. A harmonia pós-modal-tonal, a montagem, o trabalho de fusão do
procedimento europeu com o material de fora da Europa, que Debussy faz, integra o
modernismo musical brasileiro: desde Villa-Lobos até Gilberto Mendes. O
dodecafonismo, com sua nova maneira de organizar as notas e de escutá-las, está no
Música Viva e nos traços estruturalistas do Música Nova. O serialismo integral, da ânsia
pela não-periodicidade, encontramos quase como “mito fundador” da estética de
Mendes. A música concreta, introduzida no contexto brasileiro por Mendes, soma sua
parcela de referência na obra do compositor santista.
Pensando agora exclusivamente na década de 1960, nesse período houve um
grande rebuliço na música europeia. A passagem de John Cage por Darmstadt no final
da década de 1950 transformou profundamente o fazer musical europeu, que migrou do
serialismo integral estruturalista para uma composição baseada no acaso.
40
Essa concepção e os procedimentos desse concretismo musical foram peça-chave para o
desenvolvimento da música eletrônica e eletroacústica.
72
3.2.2 A vanguarda norte-americana
A fim de completar o diálogo entre Gilberto Mendes e as vanguardas da
primeira metade do século XX e da década de 1960, cabe olhar também para uma outra
matriz musical: a norte-americana. Durante a segunda guerra mundial, compositores
como Stravinsky e Schoenberg foram aos Estados Unidos para se refugiar, e passaram a
dar aulas. O território da vanguarda, assim, se expandiu. Um pouco mais novo que
Mendes, um compositor estadunidense chamado John Cage (1912-1992) começa a
despontar e seu pensamento sobre música acaba influenciando o mundo inteiro.
A própria biografia composicional de Cage apresenta, com certo didatismo, a
trajetória da emancipação das sonoridades e poéticas sonoras. Não importa aqui apontar
o que é inovador ou não, se esse tipo de técnica tem ou não precedentes, mas indiciar
em Cage proposições expansoras e gerais sobre o que é a música.
De início, Cage já começou a compor para piano preparado, um instrumento
por ele inventado que lida musicalmente com objetos ditos não-musicais em contato
com o tradicionalmente-musical: o prego na corda do piano.
Em um segundo passo, Cage larga o musical-tradicional, apegando-se
simultaneamente ao ruído e à composição pelo acaso (chance works). Desse momento
encontramos emblemáticas peças como Imaginary Landscape Nº. 4, para 12 rádios, 24
performers e regente (1952) ou Water Music, para pianista e objetos variados (1952).
A expansão do conceito de música se dá, aqui, em dois níveis. Em primeiro lugar, pode-
se chamar de música algo que não foi calculado para tanto, visto que derivou de um
acaso induzido. Em segundo lugar, a música explode para fora da fôrma tradicional,
esmagada a distinção entre alta e baixa cultura dos dispositivos sonoros. A partir daqui,
uma panela percutida pode ser tão musical quanto um pizzicato de violino. Um lance de
dados ou de moedas pode revelar harmonias e ritmos tão musicais quanto mirabolantes
processos racionais – o que vai de encontro com o supercontrole do serialismo integral.
Em um salto para fora da continuidade da tradição, o ruído e o acaso antecipam a
próxima expansão territorial da música: o salto para a esfera conceitual.
Ainda em 1952, Cage compõe a polêmica peça 4’33’’, na qual um pianista
deve ficar essa duração sem executar nenhuma nota. O que Cage queria com isso? Uns
dirão que ele está propondo um recorte temporal para se chamar de arte os ruídos
73
naturais do momento da apresentação. Outros que, visto o tamanho desse salto, não é
mais possível chamar isso de música. Há os que, mais reacionários, dirão que nem de
arte deveríamos chamar esse peça. Na busca por uma luz às categorias artísticas dessa
nova arte, Dick Higgins propõe que essas peças de John Cage sejam obras intermedia
entre a música ocidental e a filosofia zen-budista (HIGGINS, 2007, p.27), ou seja, uma
fusão de linguagens entre música e filosofia oriental na espinha dorsal dessas duas áreas
de conhecimento/criação. Assim, os territórios da música começam a chegar em seus
limites: a música passa poder ser qualquer matéria sonora ocorrendo no tempo, com ou
sem qualquer tipo organização proposta.
Dez anos depois (1962), Cage dá mais um salto qualitativo, compondo 0’00’’,
obra dedicada à Yoko Ono. Essa peça, também apelidada de 4’33’’ No. 2, conta apenas
com duas indicações, ambas escrita: 1) “para ser tocada de qualquer forma por qualquer
um”41
; 2) “em uma situação de máxima amplificação (sem feedback), realize uma ação
disciplinada”42
. Em revisões póstumas, mais instruções foram acrescentadas à
“partitura”. O performer deve executar qualquer ação e a peça terá, portanto, a duração
dessa ação. A relatividade dessa proposição somada ao título da obra nos faz pensar, de
saída, nos extremos dessa proposição: e se o performer decidir fazer uma ação
relativamente instantânea e silenciosa, como pensar? Ou até: e se o performer optar por
executar uma ação que dure muito mais do que um concerto de música, como viver –
ou, ainda, se ele optar por executar uma ação disciplinada que vá além de sua própria
vida? Ou ainda, já exagerando: e se o performer não for um ser humano?
Alguns questionam se 0’00’’ é mesmo uma peça musical. Em momento algum
Cage tirou de suas mãos a matéria sonora, de tal forma que a primeira coisa dita na
instrução da peça é “em uma situação com máxima amplificação”. A amplificação,
efeito exclusiva da realidade acústica, entrega o ouro. Não cabe pensar em amplificação
visual nos termos ditos, e muito menos em amplificação verbal ou religiosa/filosófica.
0’00’’ é uma peça de música, ainda.
Assim, articulam-se três conceitos chave para compreender a obra cagiana:
acaso, ruído e silêncio (cf. TERRA, 2000). E as derivações radicais desses termos. Esse
pensamento sobre a música gera assim o que pode ser tido como a leitura mais ampla da
41
“To be performed in any way by anyone” (tradução minha). 42
“In a situation with maximum amplification (no feedback) perform a disciplined action”(tradução
minha).
74
música enquanto campo, já que esta ultrapassa, enquanto lei, a esfera conceitual e as
próprias características do som.
A aproximação entre Gilberto Mendes e a escola norte-americana, por mais
que possa parecer frágil, tem raízes profundas e interessantes. Em primeiro lugar, o
contato direto de Mendes com a cultura norte-americana se dá pelo contato deste
compositor com o cinema estadunidense e o jazz dos anos 40. Nos textos de Mendes,
não faltam referências a atores de Hollywood, filmes icônicos para épocas, intersecções
de trilhas, grandes nomes da música instrumental do país e do contexto nova-iorquino,
por exemplo.
Voltando a sua obra experimental, por mais que Mendes alegue, em tom
confessional, sobre Cage que “não conheço muito bem sua obra musical mais
representativa” (MENDES, 1994, p.110), o contato do compositor santista com os
escritos de Cage foi amplo, o que engendrou em uma paridade conceitual em diversos
pontos da obra experimental de Mendes. Sobre acaso e indeterminação, Mendes se
insere entre a Indeterminancy de Cage e a Alea de Boulez (sobre isso, cf. TERRA,
2000), criando operações de acaso ao mesmo tempo estruturalistas (tal qual Boulez) e
abertas, distanciando o compositor de seu propósito egoístico (tal qual Cage),
sustentando peças como Blirium C9 (1963).
No que se refere ao uso do ruído, a obra de Mendes também deve muito a esta
matriz cageana. Seja em nascemorre (de Mendes) sons não-tradicionalmente-musicais
são inseridos em um contexto coral, batidas de pé, máquinas de escrever; seja em Beba
Coca-cola, o Moteto em Ré Menor, onde a mistura dos ruídos que circundam os signos
do refrigerante (o gás vazando da lata, o arroto, o borbulhar do refrigerante) atingem a
poética do poema por todos os lados; ou até em Santos Football Music, onde ruídos da
plateia são usados como base para uma poética interativa, entre outras tantas peças.
Ainda nessa relação, é interessante perceber a maneira como Mendes interage
com o arcabouço conceitual visto em Cage e nas poéticas que o circundam. Na década
de 1960, Cage e outros compositores e artistas enveredam para a performance enquanto
linguagem artística, como Dick Higgins e Yoko Ono. Partindo desse direcionamento
estético, tornou-se possível, para Mendes, um contexto amplo para a inserção de
elementos de performance e teatro em suas obras, o que regeu boa parte de suas peças
na década de 1970. Ainda sobre isso, e mesmo que este período não seja o foco da
75
presente pesquisa, é interessante perceber a relação de Mendes com a obra de Duchamp
(que muito influenciou Cage em seus saltos conceituais) em Objeto Musical (1972), na
qual o compositor santista produz uma peça musical que não tem seu foco no som
emitido, mas no “clima musical” emanado de uma cena.
O uso de partituras-texto pelo compositor santista e os outros compositores do
Música Nova também é presente. Assim como Cage (e os ecos darmstadtianos deste
tipo de proposição composicional), em peças de Mendes há uma codificação textual em
substituição do protagonismo da escrita musical, nas chamadas bulas. Sobre isso, ver
nascemorre, Blirium C9, Blirium A9, Cidade City Cité, Son et Lumiére, Kreutzer 70 e
diversas peças do compositor santista em seu período de música-teatro.
3.3 Poesia Concreta e Música Nova
Para além dos precedentes históricos, das questões estético políticas internas ao
Brasil, do diálogo com o discurso da vanguarda europeia, do flerte com a música
aleatória/indeterminada e da biografia de Gilberto Mendes antes do Música Nova, há
mais um importante elemento referencial para a construção do objeto dinâmico da
composição experimental de Mendes: a poesia concreta. Nesse momento, pretendemos
discutir como o diálogo com os poetas concretos foi uma chave para o contato com o
mundo europeu. Para enlaçar esse contexto, as semelhanças e diferenças do discurso da
Poesia Concreta e do Música Nova a serem construídas aqui colocarão em perspectiva a
relação dos anos 1960 com o período anterior.
A Poesia Concreta surgiu como movimento nos anos 50, fruto da reunião de
três poetas paulistas: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Desde
sua gênese, os poetas procuravam ampliar a poesia relacionando-a a campos de outras
artes, além de experiências recentes (ou quase recentes) no campo da literatura e da
poesia. Assim, o grupo teve muito contato com as artes visuais e a música, como
veremos a seguir.
A grande proposição do grupo concretista era a superação do verso, como
ruptura sobre o modernismo poético, que propunha o uso do verso livre. Para construir
esse paradigma poético sem-verso, os poetas concretos passaram a distribuir as palavras
de maneira livre pelo papel, representando tanto sonoramente quanto visualmente essa
nova configuração poética. Essa ruptura, por sua vez, remetia ao paideuma do grupo, a
76
reunião de autores que montam o repertório do projeto poético. Nesse repertório, quatro
nomes são ressaltados na área das letras (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975),
dentre outras várias razões: Ezra Pound, por seus Cantos; Stéphanne Mallarmé, por sua
inovação gráfica anti-linear de Un coup de dés; e. e. cummings, por suas inusitadas
tipologias e desmembramento da palavra; e James Joyce, por sua sobreposição de
narrativas e temporalidades na prosa, suas palavras-valise (que apontam,
significativamente, para diversos ambientes semânticos) e seu projeto verbivocovisual
(verbal, vocal e visual, ainda que imageticamente).
Além dessa matriz poética, sempre houve um contato muito grande dos poetas
concretos com a vanguarda musical. Esse contato foi, inclusive, muito adiantado em
relação a todo o contexto musical brasileiro. Enquanto Mendes foi conhecer a música de
Webern no final dos anos 1950, quando as partituras começaram a chegar no Brasil,
Augusto de Campos já havia produzido toda uma série poética inspirada na
Klangfarbenmelodie weberniana em 1953, o poetamenos.
A relação dos poetas concretos com música remonta à gênese deste grupo. Para
reestabelecer esse elo, observemos alguns exemplos. Iniciando a construção dessa
relação, cabe lembrar que uma das primeiras obras que desmontam o verso e resultam
de uma pesquisa concreta foi justamente poetamenos (1953) de Augusto de Campos,
série composta a partir da tradução intersemiótica da técnica composicional de Anton
Webern (Klangfarbenmelodie) para poesia (PLAZA, 2003, p. 12). Nesta série, o verso
livre é deixado de lado para um uso livre da palavra no espaço visual poético. Palavras
são espalhada pela folha e coloridas, conotando sentidos múltiplos e abrindo portas de
leitura diversas sobre os diferentes níveis da leitura poética, desde a iconicidade dos
fonemas até a teia lógica das sentenças: tudo em simultaneidade, e movimento. Esta
construção contrapontística do poema deriva diretamente da tentativa da construção de
um poema polifônico no qual, em Augusto de Campos, diversos meios de ler uma frase
se sobrepõe montando um material altamente ambíguo e complexo.
Para além dessa transposição poética do poetamenos, o uso da análise musical
para fundamentar uma compreensão múltipla de poesia também foi recorrente, tal qual
se pode ver por exemplo nas análises de Augusto de Un coup de dés (1897) de Stéphane
Mallarmé. Nelas, essa nova manifestação gráfico-poética é chamada de poema-partitura,
e analisada tal qual uma partitura musical: a partir de seus motivos preponderantes ou
77
secundários (temas), de seu desenvolvimento e contraponto (CAMPOS, 1975, p. 19).
Dessa forma, a compreensão dos desdobramentos celulares da “subdivisão prismática
da idéia” encontra uma chave de leitura na música, fenômeno que se desdobra para toda
nova organização gráfico-poética, indissociável de seus aspectos acústico-orais. Estes e
diversos outros exemplos montam a relação íntima entre a poesia concreta e o universo
da “música de invenção”: um elo dinâmico que possibilitou a extensão do projeto
concretista para a composição musical.
Em meados dos anos 50, há o contato dos poetas concretos com os
compositores do (que veria a ser o) Música Nova, um encontro decisivo a virada
estética por vir. Incentivados pelo ímpeto concreto da produção de um projeto-
movimento poético pautado na ruptura de paradigmas fruitivo-produtivos aqui já
discutidos, os compositores escrevem, em 1963, o Manifesto Música Nova43
. Esse
manifesto foi lançado inclusive dentro do terceiro número da Invenção, revista criada
pelos poetas concretos, que contava com artigos e poemas dos mesmos. Para além da
gênese do Música Nova como movimento artístico, os compositores e músicos que ali
assinaram estavam também debutando suas carreiras composicionais, confluindo o
início de orientações estéticas pessoais com uma orientação grupal44
.
A proximidade entre o Manifesto Música Nova e o plano-piloto da poesia
concreta (1958) é evidente: o manifesto emula a sintaxe e o projeto da poesia concreta
em transposição para o universo musical, trazendo novas particularidades, polêmicas e
temáticas. Em um paideuma expandido, encontramos não apenas alusões a Mallarmé,
cummings, Pound e Joyce, mas também a “debussy, ravel, stravinsky, schoenberg,
webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhausen” (INVENÇÃO, 1963),
visando um “compromisso total com o contemporâneo”. Esse compromisso, para os
compositores, se dava pela via do concretismo, resumido no manifesto como:
atual etapa das artes: concretismo: 1) como posição generalizada frente ao idealismo; 2)
como processo criativo partindo de dados concretos; 3) como superação da antiga
oposição matéria-forma; 4) como resultado de, pelo menos, 60 anos de trabalhos
legados ao construtivismo (klee, kandinsky, mondrian, van doesburg, suprematismo e
43
O manifesto foi assinado por Damiano Cozzella, Rogério Duprat, Régis Duprat, Sandino Hohagen,
Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal. Todos eram ligados a
música, mesmo que alguns não fossem propriamente compositores. Segundo entrevista pessoal com
Gilberto Mendes, mesmo que todos tivessem assinado o manifesto e concordassem com seu conteúdo, o
texto foi redigido principalmente por Rogério Duprat. 44
Fenômeno semelhante foi o que fizeram os poetas concretos anos antes com a publicação (por vezes
independente) de diversos artigos e poemas, estes coletados no livro Teoria da Poesia Concreta
(CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975).
78
construtivismo, max bill, mallarmé, eisenstein, joyce, pound, cummings) -
colateralmente, ubicação de elementos extra-morfológicos, sensíveis: concreção no
informal (INVENÇÃO, 1963).
A manifestação desse projeto poético se cristalizou de maneira muito diversa
em cada um dos compositores do grupo. Para entender a relação de Mendes com esse
concretismo, devemos entender que essa relação foi ampla e teórica. Como diz o próprio
Mendes, a aproximação entre a poesia concreta e a música nova dos compositores em
questão não se deu apenas pelo uso dos textos daqueles artistas, mas pela fusão e
complementação de um programa estético dinâmico e aberto. Dessa maneira, os
compositores em questão poderiam nem ter usado os textos dos poetas em suas peças
para utilizarem-se da poética concreta, como em Blirium C9 (1965) ou em Santos
Football Music (1969). Por estarmos separando estes dois grupos a fim de entendê-los,
pode parecer que a Poesia Concreta e a Música Nova são dois campos de pesquisas em
áreas distintas, o que pretendemos também desconstruir.
Gilberto Mendes, ao entrar em contato com esse universo poético e as
movimentações e indagações da poesia concreta, transformou bastante seu modo de
composição. Em primeiro lugar, o compositor – que tem apreço especial pela música
vocal/coral – passou a utilizar para suas composições cantadas os textos dos poetas
concretos. A primeira peça na qual isto ocorreu foi nascemorre (1963) sobre poema
homônimo de Haroldo de Campos. Nela houve uma revisão ampla dos processos de
composição engendrando, como veremos em análise em 3.1, em uma partitura gráfica
altamente experimental que em alguns pontos até concretiza ainda mais a vanguarda
concreta. Outras peças foram compostas sobre poemas dos concretistas, tanto de
Augusto de Campos: Cidade City Cité (1964), Tvgrama (Tombeau de Mallarmé)
(1995), Com Som Sem Som (1978), Uma vez uma vala (1993), Sol de Maiakóvski
(1995); de Haroldo de Campos: O anjo esquerdo da história (1997), Finismundo: A
Última Viagem (1993); e de Décio Pignatari Poeminha poemeto poemeu poesseu
poessua da flor (1984), o Moteto em Ré menor (1967).
Cabe dizer que o que os poetas concretos proporcionaram para Gilberto
Mendes, Willy Correa e os outros compositores do Música Nova foi a possibilidade de
um contato original – negando pastiches e epígonos – com as vanguardas europeias. A
desconstrução do nacionalismo foi, ainda que um embate reativo ideologicamente, a
colocação da composição latino-americana na cadeia evolutiva das vanguardas, local
que inclusive ela permaneceu, figurando com inúmeros compositores nas gerações
79
subsequentes a partir do precedente aberto por esses compositores e poetas. Assim
como Mendes dissociava-se de uma música do passado, como os poetas concretos se
distanciavam uma “poesia de expressão, subjetiva e hedonística”, “renunciando à
disputa do ‘absoluto”, a música de Mendes também “permanece no campo magnético
do relativo perene” (plano-piloto da poesia concreta, CAMPOS, CAMPOS,
PIGNATARI, 1975). Justamente neste cosmopolitismo do campo do relativo que urge
da música de Mendes a possibilidade da apropriação livre de tantas escolas
composicionais, períodos e autores discutidos até aqui: Villa-Lobos, Mario de Andrade,
Guarnieri, Santoro, Olivier Toni, Koellreutter, Mozart, Debussy, Stravinsky,
Schoenberg, Webern, Berg, Schaeffer, Cage, Nono, Stockhausen, Boulez, os Poetas
Concretos... E outras tantas relações que o recorte de nossa pesquisa nos impede de
falar. Entre qualidades de sentimento, fatos sociais e discussões simbólicas antigas, o
objeto dinâmico – contexto – do período experimental de Mendes pode ser visto, em
suma, como a confluência dos três caminhos construídos até agora.
Gilberto Mendes, porém, é ainda mais multifacetado, de tal forma que a
construção de um contexto amplo o suficiente para a discussão de sua obra torna-se
quase impossível. Deixamos de lado sua relação importantíssima com o cinema e suas
trilhas, seu amor pela canção alemã, pelo cancioneiro clássico-estadunidense, a música
havaiana... Entre tantas outras forças descritas em suas biografias (MENDES, 1994;
2013; SOUZA, 2011). Contudo, tais influências são atributos muito pessoais da poética
do compositor. Aqui, pelo contrário, procuramos inserir sua produção experimental em
linhas históricas gerais. As vanguardas, o concretismo e a genealogia do nacionalismo,
assim, criam uma base sólida para a discussão analítica feita no capítulo que seguem.
80
CAPÍTULO 4
O PÉRIODO EXPERIMENTAL DE GILBERTO MENDES:
ANÁLISES
Uma vez desenvolvidas perspectivas sobre uma metodologia de leitura semiótica
da música e sobre o contexto artístico/ambiental de Gilberto Mendes, a presente
pesquisa se encaminha para sua última etapa: a análise do período experimental do
compositor santista. Este período, conforme pretendíamos demonstrar no capítulo
anterior, compreende as peças desde 1963 até o final desta década – marcando o início
da aproximação de Mendes com o concretismo e seu afastamento da composição
nacionalista (e, concomitantemente, o lançamento do Manifesto Musica Nova) até, cerca
de sete anos depois, o momento em que Mendes se volta para a “música-teatro”,
prenunciada por Santos Football Music, em 1969.
A escuta desse período se deu nesta pesquisa pela análise de três peças do
compositor – nascemorre (1963); Blirium C9 (1965); e Santos Football Music (1969).
Estas três peças marcam, de alguma forma, o desenvolvimento deste curto período
“vanguardista”, antes dos experimentos mais intersemióticos do compositor, que passou
a interagir com as artes cênicas e com elementos da visualidade com mais veemência a
partir da década de 1970. O curto período analisado é restrito, portanto, à curta época
em que o Música Nova, enquanto movimento artístico e não festival, era ativo no meio
composicional. Willy Correia de Oliveira, Régis Duprat, Gilberto Mendes, Damiano
Cozzella e outros atuavam em um círculo composicional que, no decorrer desta década,
foi se desmantelando. Porém, apontar um final para estas movimentações é incerto.
Enquanto alguns laços se preservavam, as relações de alguns compositores
progressivamente se rompiam, desmontando a possibilidade da unidade de um
movimento artístico.
Dentro do Música Nova, a música de Mendes teve grande importância. Tendo
suas peças tocadas em diversas ocasiões, mesmo com o fim do grupo de compositores,
Mendes manteve o Música Nova enquanto festival, existente até hoje, onde a música do
século XX e (agora) XXI é protagonista. Neste caminho, entender a atuação de Mendes
enquanto compositor neste período demonstra-se relevante para compreender a música
81
do século XX no Brasil, haja vista da raridade estatística inerente a obra do compositor
santista na época deste seu período composicional.
Em nascemorre, há um marco na obra do compositor (no sentido amplo), já que
esta é a primeira peça que Mendes utiliza um poema concreto (no caso, poema
homônimo de Haroldo de Campos), além de ser a primeira peça que Mendes considera
como um experimento propriamente dito (MENDES, 1994, p. 82). Este experimento,
como veremos (4.1), lida com novos tipos de notação, microtonalidade, instrumentação
não tradicional, ritmos lisos, entre outras técnicas vanguardistas, compondo um
mecanismo de composição/proposição barroco no que diz respeito a sua acumulação de
processos técnicos-composicionais.
Em Blirium C9 Mendes, já imerso na música de vanguarda, não se apoia mais no
texto concreto para sua composição. Por outro lado, no cume da sua vanguarda, ele cria
um proposição de composição, e não uma peça propriamente dita. Dialogando com as
peças abertas conhecidas em sua visita a Darmstadt, em Blirium C9 o compositor abre
mão de um direcionamento poético-estético definido no nível criativo-poiético,
dividindo-o com os intérpretes. Para tanto, Gilberto Mendes ainda insere, dentro desta
composição, uma citação de livre escolha que, como discutiremos à luz da teoria da
informação, junta a redundância repertorial com a organização sonora.
Em Santos Football Music, Gilberto Mendes já começa a anunciar uma
aproximação com o teatro, criando uma situação cênica ao final da peça musical. Esta
obra marca, sem muita precisão, a transição de Mendes para um caminho mais
individual no mundo da composição: de suas pesquisas com a música-teatro. Além
disso, em Santos Football Music encontramos, como em nascemorre, uma acumulação
de diversas técnicas – estilos – composicionais, na medida em que o compositor, além
de sobrepor diversas técnicas composicionais de “vanguarda” (microtons, escrita aberta,
atonalidade, compassos não-regulares), também utiliza elementos da música tradicional
durante a peça. Coroando esta sincronia de tempos históricos, esta peça passa de ultra-
hermética para bem comunicativa na medida em que Mendes insere em seu discurso
composicional a regência da audiência presente, que interage de acordo com
proposições do compositor.
As três peças descritas acima serão, portanto, analisadas com mais profundidade
a seguir, ao som da discutida semiótica peirciana da música. Em cada análise, tríades
82
diferentes do pensamento peirciano serão utilizadas, mas o modelo de análise
primeiridade-secundidade-terceiridade é sempre preservado, inclusive na sequência em
que as análises se encontram. Na medida que Mendes foi se apropriando do discurso das
vanguardas, sua relação com este tipo de música se tornava progressivamente mais
lógica, haja vista do aumento das experiências colaterais do compositor com este tipo de
música. Em nascemorre, há uma relação de representação mais icônica das vanguardas,
que, no decorrer dos anos, tornou-se cada vez mais simbólica e discursiva/narrativa,
como visto em Santos Football Music e sintomatizado pela relação de Mendes com a
música-teatro. Blirium C9 pode ser considerada um meio termo entre estes dois
momentos, onde a construção de experimentos em Mendes tornava-se cada vez menos
insipiente.
83
4.1 NASCEMORRE:
concreto do concreto
O estreito laço de Gilberto Mendes com a poesia concreta foi influenciador para
a liberação do compositor das escolas nacionalistas. Para Mendes, sua afinidade com
este tipo de poesia se dava justamente pela aproximação de um “altíssimo grau de
invenção” com “um grande poder de comunicação” (MENDES, 1994, p. 75). Este
fenômeno, como a presente pesquisa conclui em seu final, é também característica de
Mendes em sua fase experimental, já que o compositor também concilia grande
comunicabilidade com técnicas da “vanguarda” musical da época neste período.
Nesta época, ao final de 1962, compositores atuantes na capital paulista já se
reuniam e pouco a pouco estreitavam laços para lançar o manifesto Música Nova. A
aproximação de Mendes com a poesia concreta foi fortalecida então por uma
confluência de fatores que culminaram na gênese de peças como nascemorre e também
do Manifesto Música Nova. Em meio a um “marasmo em que se encontrava [a música
de invenção], depois da recaída nacionalista, em princípios dos anos 50” (Idem, p. 81),
nascemorre, o manifesto e outras peças apresentadas no II Festival Música Nova, em
setembro de 1963, são um marco cinético para a música de invenção brasileira.
No ímpeto transmitido pelos concretistas de se haver uma fusão de influências
inventivas e um chamamento pela fundação de novas correntes estéticas de gênese
brasileira, o Música Nova congregou, assim, uma atualização do contexto
composicional enquanto legi-signo. Replicando outro contexto que não o comumente
apresentado no ambiente de concerto paulista, as obras do Música Nova são um marco
para o contato do Brasil com toda a história da música europeia do século XX. Na obra
de Mendes, a primeira peça na qual isto ocorreu foi nascemorre (1963). Nela houve
uma revisão ampla dos processos de composição engendrando, como veremos, em uma
partitura gráfica altamente experimental que em alguns pontos até concretiza ainda mais
a vanguarda concreta, como um procedimento necessário para uma tradução artística de
uma poesia tão aberta como a de Haroldo de Campos.
Investigando esta peça, podemos desvendar como a aplicação de procedimentos
concretos sobre um poema concreto engendra em uma produção altamente informativa,
e por isso seguir uma metodologia de análise aqui se torna imperativo. Em primeiro
84
lugar (4.1.1), iremos descrever, em linhas gerais, como se organiza a peça, apontando às
inovações estético-sonoras desvendadas. Em segundo lugar (4.1.2), em um exercício de
indicialidade, demonstraremos os precedentes das técnicas composicionais utilizadas
por Mendes neste momento para, por fim (4.1.3), discutir quais as particularidades desta
tradução da poesia para música.
4.1.1 Entendendo nascemorre: análise qualitativa
Fig. 1: nascemorre de Haroldo de Campos (CAMPOS, 1975, p.57).
nascemorre é uma peça para coro (SATB45
), difusão de fita magnética
(optativa), percussão e duas máquinas de escrever. Toda a partitura é escrita
graficamente, de maneira não-convencional46
. A peça não conta com alturas definidas
(notas), apenas com bandas de alturas relativas (qualquer nota dentro de uma faixa),
montando vários clusters microtonais, aglomerados harmônicos com intervalos menores
do que um semitom.
45
Abreviação para “soprano, contralto, tenor e baixo”, nesse caso, seriam ao menos duas sopranos, duas
contraltos, etc. 46
Não é utilizado o tradicional pentagrama e as temporalidades são mais abertas para variação do que o
permitido pela notação tradicional.
85
O poema de Haroldo (Fig. 1) opera semanticamente por meio da reiteração de
duas palavras: nasce e morre. No meio do poema, os prefixos re e des são associados às
palavras nasce e morre, combinando-se poeticamente. Ao final da folha, essas palavras
não são mais apresentadas com espaços entre elas, mas coladas tal qual fossem uma só.
O desenho do poema também chama atenção: são construídos dois grandes blocos que,
como se surgissem do nada, crescem até certo ponto e depois esmorecem
simetricamente. Assim, Haroldo gera um aspecto visual cíclico, bem como uma
sonoridade cíclica e reiterativa, associando, assim, tanto o sonoro, o visual e o verbal da
poesia com o nascimento e a morte enquanto partes de um processo cíclico.
Na tradução de Mendes deste poema para música, o compositor divide sua peça
em duas partes e uma coda, sendo que estas partes contam com cinco subdivisões, em
analogia à forma do poema, que conta com dois grandes blocos textuais. As duas partes
da música são, também como no poema, uma quase repetição uma da outra, nas quais é
dado lugar a leves variações. A saber, a peça segue a seguinte sub-forma geral: A) uma
leitura a quatro vozes; B) uma transição em percussões para C) difusão de fita
magnética pré-gravada; D) trecho para vozes em espacialização diferente da inicial; e E)
parte aleatória de vozes e percussões. Esta sequência de cinco parte se repete, então, e a
peça se encerra com uma leitura final do poema como que uma coda cuja função
podemos especular mais adiante.
As leituras para coro (chamadas por Mendes de A1, A2 e A3), contam com
diversas peculiaridades. No lugar do uso de alturas temperadas, neste trecho Mendes
indica que a leitura deve ser feita com a voz falada de cada um dos cantores. Para tanto,
o compositor cria uma grafia própria para a peça, discriminando temporalidades,
dinâmica, regência e ritmo de forma sui generis. Em um tempo metronômico de 92
BPM, na primeira parte da leitura (Figura 2, A1) o compositor divide entre os cantores
todas as sílabas do poema, de tal forma que apenas em um momento um cantor
pronuncie uma palavra inteira (Fig. 2). Dessa maneira, Mendes começa a peça
apresentando toda a gama quali-sígnica de seu coro, passando da voz mais aguda até a
mais grave em progressivas entradas, e depois repetindo o mesmo procedimento de
maneira espelhada, montando uma simetria nas alturas do trecho, enquanto as dinâmicas
ainda variam e os ritmos também. Em A2, o mesmo procedimento é utilizado
(espelhamento de alturas indefinidas), mas com variações de andamento, ritmo e
dinâmica.
86
Fig. 2: Parte A1 de nascemorre (MENDES, 1966, p.11).
Nestes trechos, a associação icônica entre a figura descendente e a ascendente
com a semântica trazida pelo poema é evidente. Ao traduzir as duas polaridades de
Campos, nasce e morre, encontramos na peça uma polaridade espacial (da esquerda
para direita no palco), transferindo às dinâmicas e andamentos o papel dos prefixos.
Essa transposição de espaço visual para espaço sonoro é uma tradução interessante. Na
medida em que o poema de Haroldo pretendia um uso espacial inusitado na folha de
papel, Mendes também subverte seu suporte sonoro-espacial, montando passagens de
instrumentação quase visuais.
Em A3 – a coda –, porém, o procedimento é um pouco diferente. Ao invés de
pontar uma polaridade espelhada entre agudo e grave por entradas progressivas, Mendes
associa, em sua tradução, o aumento do tamanho das palavras com o aumento da
quantidade de cantores (Figura 3). A polaridade aqui é então do campo da
instrumentação/orquestração, e não do parâmetro das alturas (ainda que indefinidas).
Produzindo então um espelhamento de densidades, Mendes transforma em qualidade
tímbrica uma qualidade duracional: tanto maior a palavra recitada, mais denso o timbre
que a recita, visto que todos os cantores estão em suas vozes faladas.
87
Fig. 3: Parte A3 de nascemorre (MENDES, 1966, p.14).
As partes de percussão (nomeadas de B1 e B2 e também utilizadas em E1e E2),
seguem, diferentemente de A, apenas uma bula escrita. Nas instruções do compositor, as
percussões e a máquina de escrever seguem uma lógica aleatória (de acaso parcialmente
controlado). Os instrumentistas devem criar suas próprias dinâmicas e a ordem e
espaçamento dos eventos sonoros em que controlam, delimitando-se uma lógica
temporal baseada no poema (sempre a contagem de tempos e ataques é de 1-3-6-9 ou de
1-2-4-6). Cada percussionista pode compor previamente, ou de improviso, a
organização de sua parte.
Após as percussões, a peça conta com uma parte gravada (C1 e C2), facultativa,
que, fazendo um procedimento semelhante a A1 e A2, separa as partes do poema não
em sílabas, mas em fonemas, gravando uma recitação e variando processos de dinâmica
e timbre tanto na própria gravação como na execução da peça. A figura
crescendo/decrescendo é também presente, reforçando a semelhança com o poema de
Haroldo de Campos, já que o poema conta com um crescendo e um decrescendo
fonético/semântico.
Findas as fitas magnéticas gravadas, Mendes adentra mais trechos vocais (D1 e
D2), desta vez dividindo o coro em dois grupos. Neste momento, os grupos seguem uma
partitura com escrita gráfica criada pelo compositor para executar crescendos e
decrescendos cantando complexos sonoros microtonais. Em sua própria escrita (Fig. 4),
Mendes cria signos para tipos de articulações e timbres vocais, controlando diversos
aspectos da emissão sonora da voz. Deixando de lado voz enquanto instrumento
88
temperado, Mendes produz nesse trecho um expoente dos elementos tímbricos
intrínsecos ao trato vocal, lidando com aspiração, ruídos fonéticos, dinâmica e outros.
Fig. 4: Parte D1 de nascemorre (MENDES, 1966, p. 20).
Chegando por fim a mais uma parte aleatória (E1 e E2), Mendes traz a parte de
percussões aleatórias (B1 e B2) e, sobre elas, insere processos semelhantes nos cantores
que estão se apresentando. De improviso ou programaticamente, nesse tutti todos os
elementos apresentados até então se misturam, sempre seguindo a lógica de ataque e
contagem de tempos cíclica baseada nas separações silábicas do poema originário.
Uma vez descrito o poema-peça, é pertinente retomar como que,
contextualmente, tantas técnicas composicionais puderam se misturar em uma só peça.
Assim, é possível levantar qual seria, nessa peça, a confluência do paideuma produtivo
concreto-musical, podendo enxergá-la como signo do próprio Manifesto Música Nova,
lançado no mesmo ano de sua composição.
4.1.2 Indicialidades internas: desconstrução cíclica
Descrita a peça de Mendes e suas relações mais evidentes, imanentes e icônicas
com o poema de Haroldo de Campos, cabe adentrar aos apontamentos contextuais que
podemos extrair dessa música, visando sempre ampliar as perspectivas sobre essa peça
enquanto objeto artístico, social e conceitual.
Para Mendes, a poesia concreta teve seus êxitos devido à clareza de sua
comunicação. Para ele, o texto dos poetas era “rarefeito, enxuto” (MENDES, 1994, p.
76). A tradução para música do poema de Haroldo de Campos, não seguiu, porém, esta
perspectiva de coesão técnica. Separando a música em diversas partes com suas
variações, (3 partes divididas em 11 sub-partes), Mendes utiliza diversas técnicas de
89
composição, escrita e pensamento tímbrico em justaposição. Além disso, o compositor
usa o nascemorre de Campos como matriz para multiplicar uma quantidade sem
tamanho de material musical-sonoro, como o próprio compositor descreve na primeira
página da bula da peça: nas partes aleatórias, 256 elementos fonéticos são distribuídos
pelos cantores, além da inserção de sonoridades de percussão (maracas, bongôs), de
percussão corporal (palmas, batidas de pé) e de elementos sonoros “extramusicais”.
Sobre essa soma de técnicas, o próprio compositor se surpreende quando sua peça é
bem recebida:
Minha obra nascemorre, composta sobre um texto de Haroldo de Campos, talvez seja o
mais inacessível e radical de todos os meus experimentos vanguardísticos. (...)
Absolutamente nada pode agradar, interessar o chamado público de concertos habitual.
(...) Com tudo isso aí, e para enorme espanto meu, nascemorre foi tremendamente
aplaudida, com aqueles gritos e assobios típicos dos grandes shows de música popular.
(MENDES, 2008, p. 167)
A surpresa do compositor é coerente. Sendo nascemorre uma peça de difícil
compreensão para seus executantes e ouvintes, ela figura como objeto altamente
informativo com poucos elementos de redundância discursiva (talvez apenas as
reiterações formais do compositor?). Ainda mais trazendo essa peça para o contexto em
que foi composta, é interessante perceber como ele foi um marco para a música
experimental brasileira.
nascemorre abriu as portas da música de concerto brasileira para diversas
possibilidades composicionais que até sua época ainda não tinham sido exploradas. Os
precedentes da microtonalidade, partituras gráficas, fitas magnéticas, partituras texto, e
traduções intersemióticas da poesia para a música instrumental são quase nulos no
início da década de 1960 no Brasil (MENDES, 1994, p. 80). Por mais que, desde a
década anterior houvesse pesquisas na Europa e nos Estados Unidos nesse sentido, o
“marasmo” da composição brasileira à época criava uma barreira para a escuta desse
tipo de sonoridade e interpretação. Em consequência desse contexto, a lembrança do
depoimento de Pignatari em 1965 se torna relevante:
o Teatro Municipal, por exemplo, não é apenas um edifício destinado a abrigar
espetáculos, mas um signo-lugar para um certo ritual significante através de certo teatro,
certa dança e certa música para uma certa classe restrita de iniciados-proprietários
(PIGNATARI, 1993, p. 108).
Assim, cabe agora entender de onde Gilberto Mendes extraiu no repertório de
seu paideuma os elementos experimentais dessa composição. Desde a aleatoriedade, o
acaso, a microtonalidade, a grafia e outros elementos, perceberemos que nascemorre é
90
signo de uma profusão cultural concentrada na alta informatividade de uma
simplificação.
Um primeiro fator que é aparente nesta peça é a preferência pela voz falada em
detrimento da voz cantada47
. Encarando a voz mais como percussão do que como
instrumento de alturas, Mendes possibilita uma aproximação do conteúdo semântico de
seu texto. Quanto menos cantada, menos a voz se distorce de sua matriz semântica, e
mais potencializada fica seu aspecto legi-sígnico simbólico argumental. Como
poderíamos discutir a partir da tricotomia Tone, Type, Token de Peirce (cf. CP 4.537),
tanto mais os elementos qualitativos saltam em um type (reprodução de uma lei, nesse
caso, uma palavra), tanto mais se afastaria semanticamente o type e o token. Nesse
sentido, este procedimento composicional possibilitou a Mendes uma aproximação com
o caráter mais objetivo-concreto de um texto musical – o texto a ser musicalizado (sobre
isso, BOULEZ, 2008, p. 69-71). A microtonalidade, nesse caminho, serviu
perfeitamente a este mesmo propósito. Uma vez que a fala humana é microtonal, o uso
dessa técnica não causaria estranheza se aplicado como na voz. Porém, Mendes opta por
utilizar complexos microtonais em simultaneidades harmônicas, colocando para os
cantores “com melhor ouvido” a função de encontrar 1/3 e ¼ de tom entre as vozes, o
que faz com que a comunicabilidade seja alterada.
Em segundo lugar, o uso de aleatoriedade pelo compositor merece certa atenção.
Ao mesmo tempo que como no uso de ferramentas aleatórias europeias, Mendes
delimita uma determinada gama de fonemas e timbres que podem ser utilizados, seu
contato aberto com as possibilidades do erro48
lembra muito o uso do acaso da escola de
Nova Iorque. Como que entre Cage e Boulez, o uso do acaso em nascemorre ao mesmo
tempo fortalece a noção de compositor como o criador de um universo limitado de
possibilidades como abre mão do ego do compositor, permitindo o erro e o improviso
em diversos momentos.
47
Os precedentes da experimentação sonora na poesia falada, relevantes para essa discussão, são diversos
e não concernem diretamente esta pesquisa, já que não dizem respeito a ambiência e o repertório dos
compositores do Música Nova. 48
Ao final da partitura, Mendes ressalva que o erro e a falha na tentativa de seguir as regras propostas
fazem parte do discurso poético construído, lembrando uma das máximas de Cage: “tudo que não é
informação, redundância, forma ou restrição – é ruído, a única fonte possível de novos padrões” (CAGE,
2015, p.56).
91
Além disso, o uso de novas grafias em nascemorre também permite a abertura
de novas portas sonoras. Em consonância com sua contemporaneidade em Darmstadt,
Mendes se utiliza tanto de partituras gráficas como de partituras texto, montando uma
série de níveis de interpretação semiótica: na partitura gráfica, há a criação de um novo
código visual para tradução para som. Na partitura texto, encontramos a utilização do
código verbal para descrever ações sonoras. As potencializações de ambos os códigos
são diferentes do nível simbólico de uma partitura comum. Por exemplo, no aspecto
rítmico, uma sílaba em relação a uma palavra pode ser muito mais continuada (sem
interrupção de fluxo) em uma partitura gráfica como a de Mendes do que na notação
comum.
O uso da fita magnética na peça aponta diretamente para uma mistura da
musique concréte de Schaeffer, com a qual Mendes tivera contato (conhecera a
Symphonie pour un Homme Seul anos antes) como visto no capítulo anterior, com a
escrita instrumental, abrindo precedentes para o uso de fitas magnéticas em
composições no Brasil, como também vinha fazendo John Cage nos Estados Unidos
nesta mesma época. A relação com a musique concréte se dá, pois, tanto em um nível
técnico (fita magnética) como em no nível da morfologia dos sons organizados (ruídos
da voz e percussões inusitadas como material composicional).
Coroando uma relação com o texto poético, Mendes traz para o seu nascemorre
a sonoridade de uma máquina de escrever, evocando iconicamente e reverentemente a
escrita da poesia, trazendo a sonoridade do processo criativo do poeta para dentro da
tradução de seu poema. Em outras palavras, o uso da Mixed Media para a peça fez com
que fossem traduzidos não apenas os conteúdos fixos do nascer e morrer poéticos, mas
o próprio ato criativo da escrita. Nesse sentido, é pertinente perceber como Mendes
descreve sua percepção sobre a poesia, tal como se esta fosse um letreiro passando
devagar em um letreiro:
[nascemorre] me impressionou pelas suas tiras de palavras – como que de um telex
antigo, que a gente via nos filmes, os jornalistas puxando para ler – em tamanhos
variados, crescendo e decrescendo, que também me sugeriram textos luminosos
correndo as notícias do dia numa populosa praça pública, numa Times Square. E me
ocorreu a idéia da máquina de escrever como percussão (MENDES, 1994, p. 76-77).
.Em meio a todas estas proposições icônicas de tradução, indiciais como somas
de contextos e simbólicas com alto grau de inteligibilidade, nascemorre de Mendes
pode ser considerada uma concretização musical de uma poesia concreta?
92
4.1.3 Concretizando a poesia concreta
As aproximações possíveis entre os procedimentos da poesia concreta enquanto
movimento do estilo composicional de nascemorre podem demonstrar como Mendes
absorve e administra uma tradução não de um poema em si, mas de uma estética
composicional poética na música. Neste momento, buscamos responder quais as
intersecções possíveis de Mendes com a poesia concreta via nascemorre, e como esta
composição pode ser signo de um concretismo brasileiro na música.
Para começar, em ruptura similar à dos concretos (superação do verso), Mendes
propõe em nascemorre uma música microtonal em detrimento de uma reduzida gama de
notas dos sistemas tradicionais de música, em reflexo do próprio manifesto dos
compositores: “superação definitiva da freqüência (altura das notas) como único
elemento importante do som” (INVENÇÃO, 1963)49
.
Para esta superação, a partitura gráfica de nascemorre possibilita também a
realização de outras possibilidades sonoras, como, além da microtonalidade, a fuga da
prisão rítmica da pulsação via formula de compasso e a colocação de fenômenos
acústicos com mais liberdade temporal. A figura do regente também se desconstrói
durante a peça, tornando-se progressivamente mais um intérprete cantor e saindo da sua
carapaça centralizadora, imergindo não mais num desenvolvimento acústico teleológico,
mas numa atmosfera acústica descentralizada.
Essa reorganização apresenta-se como solução à difícil pergunta que concerne à
questão da transposição entre as linguagens: como realizar uma execução única (como
uma apresentação musical) para um objeto tão múltiplo em leituras e interpretantes
dinâmicos possíveis? Em outras palavras, como respeitar a não-direcionalidade de uma
obra em uma execução única, não optando por uma só leitura possível?
nascemorre de Mendes é a constante desconstrução do poema por
procedimentos combinatórios aleatórios que deformam e trituram progressivamente sua
escuta, já que no início, no meio e no fim ele é apresentado de forma mais clara pelo
coro. Nas palavras de Mendes, o processo de fruição/produção de nascemorre é um
processo de deformação cibernética:
49
Essa exploração, cabe dizer, é presente em algumas outras peças de Mendes na década de 1960, como
Moteto em ré menor (Beba coca-cola) (1967) e Santos Football Music (1969).
93
Sua forma obedece ao modelo de um esquema-processo cibernético de direção, em
termos de música corrente. Há uma primeira elaboração, primeira leitura do poema, o
programa, isto é, sinais de direção por um circuito de direção que passa a absorver e
fragmentar todos os elementos fonéticos das palavras da poesia, como aconteceria no
circuito de computador; para, em circuitos de comunicação inversa, combinar
aleatoriamente todos os possíveis sinais de informação – pelo amontoamento,
deformação, trituração, etc (MENDES, 1994, p.77).
Para a gênese da música nova sobre a poesia concreta, mostra-se, portanto, a
necessidade de aplicar a vanguarda sobre ela mesma, cibernetizar novamente o objeto
cibernético. O verso não-verso concreto necessita, para transmutar-se em música nova,
de procedimentos de deformação e trituração musical: fragmentando reiteradamente o já
fragmentado. O poema-partitura de Mallarmé mergulha pois sobre si mesmo, pois há de
se lê-lo de uma nova forma para se reproduzir sua realidade acústica completa, e essa
reprodução exige uma desconstrução da forma fixa em que o poema mora, sua
materialidade perene.
Encarando a música como potencializadora dos efeitos da poesia, encontramos
em nascemorre ao mesmo tempo um respeito à atmosfera gráfica do poema e uma
tradução à altura do texto. Traduzir nascemorre em uma música tradicional seria tirar do
poema concreto o que ele emana de mais importante, seria formalizar a concreção do
informal. Assim, o poema concreto chama a concretude para sua tradução,
impulsionando sua fruição em processo progressivo da vanguarda, gerando o que
Pignatari chama de “violentação crítica de contexto” da instituição musical
(PIGNATARI, 1993, p.109). A concreção dispõe um mergulho culturmorfológico
alternativo (CAMPOS, 1975, p.30-33) seja à poesia ou à música: “é a revolta de
segunda-feira contra o domingo” (PIGNATARI, 1993, p.110).
94
4. 2. BLIRIUM C9:
da composição à proposição
Em 1965, Gilberto Mendes criou Blirium C9, uma de suas peças mais
experimentais. Essa obra monta, junto com nascemorre, Moteto em ré menor (1967) e
Santos Football Music (1969), o que Gilberto Mendes chama de “momento inicial de
ruptura com a música do passado” (MENDES, 1994, p.82). Nessa análise,
demostraremos como essa ruptura se deu dentro da antiga relação compositor-intérprete,
subvertendo as autonomias internas do processo interpretativo da música e as potências
criativas de cada um desses polos por meio do uso da citação.
De cara, cabe levantar a pergunta: o que seria, em termos de deslocamento
produtivo-criativo, essa tal “música do passado”?
Ao observarmos a relação compositor-intérprete na música escrita do ocidente
europeu dos últimos séculos (da renascença à música contemporânea), podemos
perceber um modo de funcionamento semelhante, ainda que perpassando incontáveis
técnicas, culturas e períodos (como já apontado no capítulo 2). Tomando os fenômenos
musicais como cadeias semióticas com diversos signos, há a possibilidade de
ampliarmos as perspectivas sobre o fazer/ouvir musical. Grosso modo, na música escrita
ocidental há o seguinte corredor interpretativo: um compositor grafa indicações de
execução de sua música a serem executadas pelo(s) intérprete(s)50
, que, por sua vez,
traduz(em) a partitura em som. Colocando dessa forma, pode parecer que a relação entre
quem compõe ou compunha a música e quem a executa ou executava é uma simples
relação de imposição. Isso não é verdadeiro. Não pretendo fazer aqui uma genealogia de
toda a relação compositor-intérprete, mas sim perceber que a composição dessa música
escrita lida com questões de exequibilidade (esse determinado instrumento tem essa
nota?), inteligibilidade (o que o compositor quis dizer com esse sinal?) e determinação-
indeterminação (em que medida o músico interpreta e em que medida ele executa?).
Essas questões relativizam e limitam o poder de ação do compositor dentro desse
processo interpretativo, colocando-o como um elemento como qualquer outro nessa
50
Reduzir a produção musical de séculos a esses dois pontos (compositor-intérprete) é uma simplificação
forte que utilizaremos frequentemente nesse artigo. O termo intérprete será utilizado aqui em um sentido
muito amplo e, como não dizer, genérico. O intérprete aqui não é (necessariamente) aquele que executou
de fato uma peça musical ou um músico para quem uma peça foi escrita ou dedicada, mas uma entidade
indefinida que existe na medida em que existe música escrita, mesmo que ela nunca seja tocada.
95
dinâmica discursiva. Por este olhar, compor música escrita se mostra parte de um
processo comunicativo de tripla tradução (do compositor até o ouvinte). A saber: 1) um
compositor traduz imagens imaginárias (ou pior, mentais) em signos codificados (ou
com codificações não-usuais, como por exemplo em algumas partituras que contam com
signos gráficos sui generis) para sua execução; 2) em segundo lugar, essas grafias serão
(ou não, caso a peça não seja executada) traduzidas de seu estado visual para um estado
sonoro por meio de um músico hábil (ou não, alguns dirão); 3) o som resultante dessa
dupla tradução será, por sua vez, traduzido na mente de eventuais ouvintes, estes
também intérpretes desse fenômeno acústico. Esses três pontos também não devem ser
encarados como estanques, vemos muitos compositores que são intérpretes, intérpretes
que mudam suas execuções de acordo com reações dos ouvintes, etc. Tendo sido
desenhada uma redução do corredor interpretativo da música, podemos passar, após
uma breve descrição de Blirium C9, a como Gilberto Mendes subverte essa lógica.
4.2.1. Análise descritiva estrutural e harmônica
Fig. 5: Gráfico de orientação de Blirium para a inserção de notas à parte rítmica
(MENDES, 1994, p.86).
96
A estrutura de Blirium C9 é bastante indeterminada. Nela, o intérprete tem de
produzir sua própria partitura, inserindo e criando notações rítmicas associadas a
parâmetros determinados pelo acaso (DEL POZZO, 2004). Tendo um relógio ao seu
lado, o executante deve olhar para o ponteiro de segundos e, dependendo de sua
posição, deverá executar certo âmbito de notas (ver figura 5). Esse conjunto de notas
deve ser tocado com a notação de tempo predefinida aleatoriamente por ele mesmo em
sua partitura. Em algum momento da peça, também livre, o intérprete executa um trecho
de uma música qualquer de seu repertório, citando-a fragmentadamente. Assim, a parte
gráfica da peça pré-determina o desdobramento temporal (rítmico e de forma) da peça
enquanto a materialidade harmônico-melódica é regida pelo acaso (ponteiros do
relógio). O título da peça (Blirium C9) é um anagrama do nome do remédio – librium,
um calmante que o compositor tomava antes de longas viagens – somado a C-9 que,
para Mendes, “parecia nome de vitamina” (MENDES, 1994, p.108).
Partindo dessa estruturação básica, percebem-se nessa peça três frentes que
podem ser abordadas em uma análise descritiva, perfeitamente adequáveis às três
categorias de fundamento do signo peirciano (signo em si mesmo): quali-signo, sin-
signo, e legi-signo (SANTAELLA, 2013, p. 50). Em uma primeira abordagem,
observaremos brevemente os aspectos quali-sígnicos dessa peça, ou seja, suas
qualidades sob um ponto de vista abstrato: elementos harmônico-melódicos notados,
timbrísticos, etc. Em um segundo olhar, observaremos os aspectos sin-sígnicos dessa
peça, na sua existência enquanto singular, mesmo que múltipla nas apresentações. Em
uma última abordagem, observaremos os aspectos de terceiridade dessa obra, os
desdobramentos das leis de execução da peça, relacionando o uso de citações dela com
o conceito de arte post-cognitive/exemplative de Dick Higgins. Mostra-se mais
pertinente um foco na discussão que concerne essa terceira abordagem sobre Blirium, já
que é a partir dela que desvendaremos como o uso das citações na peça subverte aquele
modo de funcionamento interpretativo.
Em uma peça tão indeterminada como Blirium C9, é muito difícil analisar o
aspecto qualitativo dissociado de um existente fixo, de uma execução factual.
Operaremos então sob um campo de possibilidades, do que essa peça está apta a
produzir antes de suas (in)finitas aplicações possíveis, o que Peirce chama de
97
interpretante imediato51
de um signo: a interpretabilidade inerente ao signo enquanto
“potencial ainda não atualizado”, antes de um intérprete (SANTAELLA, 2013, p.47).
Os aspectos harmônicos-melódicos da peça são os que melhor exemplificam esse
campo. São dispostos 12 possíveis agrupamentos de notas para a execução, esta
determinada pelo acaso da leitura do ponteiro de segundos de um relógio. Resta
perguntar como esses 12 grupos relacionam-se entre si e como suas estruturas se
assemelham ou diferem. Há uma simetria vertical entre os grupos da esquerda e da
direita no que diz respeito à quantidade de notas e qualidade intervalar (ver Fig. 5),
enquanto os extremos desse eixo vertical (correspondentes aos segundos 30 e 60/0) não
tem notas definidas, e sim a proposição da organização de todas as notas dos outros
âmbitos (em 60/0’) ou de metade delas (em 30’). Pensando harmonicamente nos
âmbitos em questão, percebemos que eles são algo próximo de clusters52
, estruturas
com predominância de intervalos de segunda. Tal técnica harmônica é típica da música
de concerto do século XX, mas comumente apresentada, nesta época, sem o uso de
indeterminação.
Ainda operando no campo de possibilidades qualitativas positivas, vale dizer que
timbristicamente a peça pode ter inúmeros tipos de instrumentação, todas com
instrumentos de teclas. Vale reiterar também que aqui a partitura é construída pelo
intérprete, na qual ele decide diversos módulos rítmicos, todos escritos com notação
espacial (ou notação proporcional) conforme indicado pelo compositor na bula da peça
em questão. Além disso tudo, temos também, como já dito, o uso livre de uma citação.
4.2.2. Secundidades concretas em Blirium C9
Em detrimento do uso tradicional de empilhamento de segundas (clusters),
Blirium faz esse processo colocando um novo elemento na lógica composicional: o
acaso. Dependendo de onde o ponteiro de segundo do relógio estiver, a peça será (ou
51
O conceito de interpretante peirciano é diferente do intérprete e da interpretação. Enquanto o
intérprete é aquele que age sobre o signo, estabelecendo dele e nele um significado, o interpretante é um
outro signo produzido em uma mente interpretadora, levando em conta ainda que mente sob um ponto de
vista peirciano “não é um conceito psicológico, mas lógico, algo capaz de traduzir um signo em outro”
(SANTAELLA, 2000). A diferença entre interpretante e interpretação também se mostra importante. O
interpretante é um processo interno da ação do signo, a produção de uma imagem mental substituindo de
alguma forma um objeto, enquanto a interpretação pode ser tanto um ponto factual dentre muitos
possíveis internos à semeiosis quanto um processo interpretativo como um todo. 52
Cluster é uma terminologia gasta que pode apontar para significados diversos. Aqui, usaremos cluster
como estruturas harmônicas com predominância de intervalos de segunda, montadas em uma gama
cromática fechada. Isso não quer dizer, aqui, que essas estruturas serão apresentadas sempre em uma
simultaneidade, elas podem se espalhar no tempo e no registro.
98
não) diferente em cada execução. Dessa maneira cada execução dessa obra terá um
existente totalmente diverso, ainda que similar, já que todos os intérpretes seguiram as
mesmas instruções para a execução em questão. Em termos peircianos, a peça-signo,
enquanto lei (legi-signo) replica-se em diferentes existentes (sin-signos) em cada uma
de suas apresentações. A forma e o desdobramento temporal da obra derivam, assim, da
noção de fluxo e da ciclicidade do tempo. Tempo este que, mesmo que mensurável pelo
relógio, ainda faz parte da falta de determinação, desordem e caos. Dessa maneira,
Blirium existirá cada vez com uma forma.
Interessante ressaltar o uso do relógio, emblema da referência temporal
mensurada, como um elemento essencial na criação de acaso na peça. Porém,
percebemos que, relacionando a harmonia dos âmbitos de cada ponto do relógio com o
uso do acaso, é notável que em qualquer execução (sin-signo) da obra, encontraremos
um resultado relativamente homogêneo. Vista a semelhança estrutural dos âmbitos
executáveis, não se torna vital para o discurso artístico uma forma fixa. Assim, os
âmbitos executáveis montam sempre um mesmo discurso, ainda que embaralhados.
Enfrentamos aqui o cerne da problemática: em uma peça com estes componentes de
abertura, em que medida o intérprete não se torna, também, um compositor? Ora,
observando apenas os elementos do acaso (relógio) da peça, encontramos a cargo do
intérprete apenas a construção do parâmetro rítmico, processo bastante delimitado pelas
instruções de Mendes. Se acabássemos esta descrição da peça por aqui, a figura do
intérprete já seria um compositor em atividade, mas sua ação criativa sobre a obra
musical ainda seria conjuntural, como vemos em muitas peças abertas do repertório de
música contemporânea, tal qual Plus-Minus (1965) de Stockhausen ou Solo for voice 2
(1960) de John Cage. Em outras palavras: ainda intérprete, não compositor.
4.2.3. O uso da citação em Blirium C9: onde está a composição?
Para além dessa colagem aleatória de conjuntos de notas com predominância de
intervalos de segundas, encontramos em Blirium C9 o acréscimo de mais um material
harmônico-melódico: a citação. O interprete deve, durante a execução, inserir um trecho
de qualquer música que quiser. Essa citação é livre, e a escolha dela está na mão do
intérprete. Um dia o intérprete pode querer colocar um trecho de um concerto romântico
e no outro, um trecho de um jingle.
99
Esse tipo de manifestação e manipulação de materiais artísticos tem muito a ver
com o conceito de obra de arte post-cognitive e exemplative art proposta por Dick
Higgins em Horizons (2007). Higgins propõe que há(via) um tipo de arte emergente
(nos anos 1960) que estava após a ideia de cognição, justamente por procurar em sua
essência a fusão dos horizontes do criador-obra com os dos seus intérpretes. Essa arte
não existia enquanto extensão do sentimento pessoal de seu criador (HIGGINS, 2007,
p.13), e sim o sentimento de seu fruidor existia enquanto fusão da proposição do criador
com o sentido, único, estabelecido na cabeça do receptor. A obra não carregava dentro
de si um significado pronto a ser decifrado (movimento típico da cognição artística), e
sim elementos vagos que engendram em leituras mil por seus intérpretes. Essa pós-
cognição só se dá(ria) quando há na peça um uso do material como um exemplo para
algo que está fora dele: como o signo para um interpretante em uma semiose completa.
Justamente por isso, Higgins associa diretamente a ideia de pós-cognição à ideia de
exemplative art: uma arte de exemplos, e não uma arte como extensão expressivo-
subjetiva do seu compositor.
Transpondo a discussão de Higgins ao universo sonoro, chegamos a um impasse.
Haja vista da predominância quali-sígnica das cadeias semióticas musicais, as semioses
“genuínas” da música são restritas a poucos momentos tradutórios, o que justamente
traz a esta arte uma autonomia interna e certa autossuficiência. No que diz respeito a
escuta de um som por si só, ao escutar uma sequência de notas ou um acorde, podemos
até associar esses componentes acústicos a objetos extrínsecos a eles, como sentimentos
e lugares, mas a maneira como estabelecemos esse elo é sempre profundamente pessoal,
de tal forma que nunca é possível dizer com total certeza “essa música é sobre o amor”
ou “essa música é sobre o pasto europeu do século XVIII”. A velha frase “o que o
compositor quis dizer?” vem à tona, e sobre ela devemos concluir que a música não é
apta a operar logicamente fora de uma cosmologia remática, do campo da sugestão.
Sendo uma linguagem profusamente sugestiva e hipotética, é muito difícil pensar na
ideia de substituição semântica de alta definição (metáfora, metonímia, exemplos)
dentro desta etapa da música, já que é (quase) impossível o encontro de equivalências
além da similaridade e da iconicidade definitivas entre estruturas sonoras e de outras
artes/linguagens. O nó está dado: como pensar a música enquanto exemplative art (arte
de exemplos) visto que ela trabalha quase que exclusivamente com o universo da
primeiridade, significando seus objetos iconicamente e não podendo gerar, sob o ponto
100
de vista lógico, mais do que hipóteses? Mais resumidamente: onde está o exemplo na
música? Gilberto Mendes, em atitude inovadora, nos propõe uma resposta para essa
pergunta.
Não basta o aleatório, não basta o atonal, há a necessidade da criação de um
símbolo (ou símbolo degenerado) musical: a citação musical. Com ela, a música, ainda
permanecendo em sua perpétua auto-significação, pode remeter a outras músicas
conhecidas ou não do repertório do ouvinte.
Mas não uma citação qualquer. É cabível diferenciar a maneira como Mendes
usa a citação em Blirium C9 do uso recorrente da citação em música escrita. Ao invés
de inserir parte de uma outra música no discurso da peça, como vemos em Pierre
Boulez, John Cage, Henry Pousseur, Willy Correa de Oliveira e até em outras peças de
Mendes53
, em Blirium há a abertura para o intérprete escolher sua própria citação, ainda
que a alterando conjunturalmente. A saber, Mendes diz na partitura que a citação,
embora seja de escolha livre do intérprete, deve ser apresentada de maneira fragmentada
e irregular, podendo haver retirada de notas e alteração de tempo. A citação deve ser
apresentada “embaralhada”, assim como é feito com os clusters do ponteiro do relógio,
o que gera uma coerência discursiva no interior da peça. É dito também que cada
citação e seus fragmentos internos devem seguir uma certa fórmula de variação
dinâmica. Isso não impede, porém, que o ouvinte (re)conheça consciente ou
inconscientemente a música citada, já que os arquétipos rítmicos internos e a harmonia
do trecho são preservados. Pelo contrário, essa integração composicional coloca em
gradiente o que é dentro (notas do acaso) e o que é fora da peça (citação): o que é
informação e o que é redundância.
Tendo essa citação livre como um exemplo que direciona a escuta livremente
para sugestões de outro repertório, esse uso da citação engendra, em termos higginianos,
uma fusão de horizontes e funções entre compositor, intérprete e receptor. Isso
evidencia uma estrutura pós-cognitiva54
de uma obra que não significa enquanto cristal
autossuficiente e remete para fora dela como possibilidade (talvez única) de
53
Cada um dos usos de citação é bastante diferente. Cada um desses compositores tem seus impulsos
poiéticos e proposições metalinguísticas. O uso da citação nesses compositores não se dá de forma
superficial ou óbvia. 54
Para Higgins, na medida em que uma obra rompe com o distanciamento entre compositor, interprete e
receptor, a lógica cognitiva (nos termos de sua linearidade) em questão também é colocada em xeque,
engendrando um novo horizonte de mistura entre produção e fruição artística, que, segundo o autor, tem
que ver com as emancipações artísticas ocorridas em especial na segunda metade do século XX.
101
interpretabilidade imediata. Dessa maneira, o ponto “final” da produção artística, a
recepção, tem sua estrutura transformada, caso contrário toda a recepção perderá o
significado e a lógica proposta pela obra, como descreve Higgins:
Se a receptora ou o receptor deixar o seu horizonte oprimir o do artista – ou, pior ainda,
se elaou ele se focar totalmente em tentar ler tal consciência na paradigmática obra-
amostra que tem à mão, ela ou ele não vai conseguir alcançar a fusão de horizontes e vai
perder também a oportunidade de aproveitar a obra. Esse tal receptor está envolvido
num processo auto-cognitivo que é incompatível com o processo de fusão encontrado na
arte exemplative55
(HIGGINS, 2007, p. 8).
Voltando para a relação compositor-intérprete, percebemos que a criação passa a
estar, então, não mais na mão do compositor, mesmo que seja ele que tenha proposto
esse jogo. O aspecto simbólico da peça fica a cargo do intérprete, sendo a escolha da
citação deste um norte para toda a fruição da peça. Ao acrescentar-se um elemento
comum a um repertório em uma mensagem, ele necessariamente se transforma em uma
referência para um estabelecimento de sentido dos elementos adjacentes. Em outras
palavras, é a redundância repertorial posta em meio à aleatoriedade que é o norte para a
ação do signo (semeiosis), desde a emoção até a cognição. Dessa maneira, a escolha da
citação é, ao mesmo tempo e em grande parte, a escolha de toda a mensagem musical, e
ela pode ser de tudo!
Assim, a citação em Blirium C9 tem, simultaneamente, 1) uma função formal
interna à peça, servindo como nova informação (harmônica, rítmica, etc) sob uma
perspectiva estritamente musical e neutra e 2) uma função poética estrutural de diálogo
direto com um repertório prévio do intérprete e dos eventuais ouvintes, agindo como
uma redundância para a compreensão dos outros materiais (clusters) dispostos por
Mendes. Esse duplo olhar sobre a citação faz com que, em Blirium C9, não haja no
compositor uma figura acabada, e nem no intérprete. O próprio Mendes declara, em
atitude humilde:
Quando Blirium é magnificamente realizada, não posso dizer: que bela obra
que eu compus! Na verdade, o autor é o intérprete. Meu mérito está em que ele
não poderia ter criado a obra sem a minha, poderíamos comparar, maquininha
de filmar. Ele fez o filme, com a máquina que eu construí (MENDES, 1994,
p.85).
55
If the receiver allows sher own horizon to overwhelm that of the artist—or, worse yet, if the receiver
totally concentrates on attempting to read such a consciousness into the paradigmatic sampled work at
hand, the reader will fail to achieve the fusion of horizons and will thus miss the opportunity to enjoy the
work. Such a receiver is involved in a self-cognitive process which does not belong in the fusion process
as one finds it in exemplative art (tradução minha).
102
Notemos, então, qual a responsabilidade do intérprete para essa peça, já que está
em suas mãos o exemplo que articulará todos os pontos soltos do repertório dos
ouvintes, fundindo os horizontes do compositor, do intérprete e do ouvinte. Ou melhor,
do propositor-compositor, do compositor-intérprete e do intérprete-ouvinte.
103
4.3. SANTOS FOOTBALL MUSIC:
ambientes sonoros de futebol-música
Gilberto Mendes nunca gostou muito de futebol. Em 1969, porém, ele compõe
Santos Football Music (para orquestra, teatro musical, difusão de tapes e interação com
a plateia), que relaciona o universo da música experimental de concerto com o do
futebol. Nesta análise pretendemos compreender como esses dois âmbitos produtivos se
entrelaçam e interagem entre si, vislumbrando forças transformadoras do futebol sobre
esta música de concerto e vice-versa. A investigação se pauta na visão do processo
complexo – tal qual visto em Edgar Morin – que deriva desta peça. Pretende-se mostrar
como Santos Football Music é ao mesmo tempo uma peça altamente experimental (no
que se refere à morfologia técnica inerente à escrita musical) sem deixar de ser
conectada com o ambiente sonoro em que se insere: negando assim um
experimentalismo instrumentalista e vazio.
Em um primeiro momento, 4.3.0, a presente análise observa o mundo do futebol
na cidade de Santos na década de 1960, o que traz um contexto direcionado para essa
análise específica. Essa incursão, embora possa parecer uma derivação exagerada no
mundo do futebol, pretende demonstrar a relação do compositor com o ambiente em que
vive e as semioses que o percorrem.
Desenhado esse pano de fundo, a presente análise, assim como as que a
precedem, seguirá um percurso triádico, de acordo com a noção de signo peirciano. Em
um primeiro momento, 4.3.1, examinaremos o que há de imanente (em consonância
com o nível neutro da tripartição de Molino-Nattiez) na peça, descrevendo sua gênese,
suas técnicas e seu teatro/happening. Essa descrição pretende apontar, assim, esse signo
a partir dele mesmo, antes de qualquer extração ou interpretação. Feita essa descrição,
partiremos para uma discussão de como Mendes coloca, tendo essa peça como signo, o
mundo do futebol como objeto, trazendo as sonoridades do jogo para dentro da peça.
Assim, esse segundo momento, 4.3.2. tem como foco depreender da peça-signo sua
relação com seus objetos, pensando como ela os significa: iconicamente?
Indicialmente? Simbolicamente? Esses objetos não são, como veremos, pensados aqui
dissociados do interpretante do signo, o que garante uma maior comunicabilidade do
processo fruitivo-estésico. Por fim, em 4.3.3. há a discussão de como essa peça
demonstra a complexidade e a inconstância de Mendes como compositor, mostrando
104
inclusive – em nível de terceiridade – como essa peça, utilizando-se se diversas técnicas
composicionais, desmonta ao seu modo algumas das semioses tradicionais da música,
descentralizando atenções e escutas, remontando e misturando o fazer musical. Dessa
maneira, essa análise completa os três pontos da trajetória peirciana. Nessa análise,
pretende-se responder, portanto, como é possível conciliar uma alta comunibabilidade
discursiva com técnicas de experimentalismo e vanguarda – o paradoxo que mora na
obra de Mendes.
4.3.0. Santos da Era Pelé: o futebol como interação inevitável
Se o Brasil é hoje o “país do futebol”, isso certamente tem que ver com
processos culturais futebolísticos ocorridos entre 1958 e 1970. Como coloca Odir
Cunha: “a matemática é simples e irrefutável: em 12 anos, de 1958 a 1970, foram
realizadas quatro copas do mundo de futebol e o Brasil ganhou três, de forma
inapelável” (CUNHA, 2011, p. 87). Em meio a progressivas vitórias mundiais e gênese
da carreira de grandes jogadores no sudeste brasileiro, o futebol passou a contaminar
outras esferas sociais, gerando mais e mais adeptos, expectadores (no estádio) e
ouvintes (no rádio). O Santos de Pelé, o Palmeiras de Ademir da Guia, o Cruzeiro de
Tostão. Em dias de jogo da Copa do Mundo, não se trabalhava mais. Jogos passaram a
comover parcelas muito maiores das cidades.
O Santos Futebol Clube foi peça-chave para o processo de nascimento de
inúmeros craques e de incontáveis vitórias mundiais, já que contava com um time que
até hoje é tido (quase) unanimemente como “o maior time da história” do futebol:
dentre outros, entravam em campo Pelé, Zito e Pepe. A cidade de Santos se tornou a
capital nacional (quiçá mundial) do futebol.
Além de lançar alguns dos maiores jogadores da época, o Santos também teve na
década de 60 a melhor campanha de sua história, sua época de ouro. Campeonato após
campeonato, o time do Santos e Pelé iam fazendo fama, sendo o orgulho dos habitantes
dessa cidade. Nos jornais, nos bares e em todos os cantos do porto, não se falava em
outra coisa. Para termos noção das dimensões da campanha de Pelé no Santos, vale o
resumo feito por Bruno Secco no jornal A Tribuna, de Santos:
105
Quem analisava seu extenso currículo futebolístico pensava que Pelé era já um veterano
de sucesso. Eram apenas 25 anos de vida, mas quase o mesmo número de conquistas [de
campeonatos] (22, ao todo): seis campeonatos paulistas, três Torneios Rio-SP, cinco
Campeonatos Brasileiro (então Taça Brasil), duas Taças Libertadores, dois Mundiais,
duas Copa Rocca e duas Copas do Mundo (os dois últimos títulos pela Seleção
Brasileira). (SECCO, 2015).
Cabe fazer uma importante ressalva, porém. O futebol, àquela época, não atraia
patrocinadores e não movimentava muito dinheiro. Os times não tinham centros de
treinamento e a medicina esportiva “engatinhava” (CUNHA, 2011, p.41). Os jogadores,
mais próximos de artesãos do que de estrelas, muitas vezes não tinham carros e muito
menos dinheiro para táxi, e saiam dos jogos de ônibus. Pepe, campeão mundial pelo
Santos, conta: “nos jogos noturnos no Pacaembu, em São Paulo, nós descíamos para
Santos de lotação e de lá eu pegava um ônibus para minha casa, em São Vicente, onde
chegava de madrugada” (CUNHA, 2011, p. 42).
A interação proposta por esse fenômeno esportivo não era perpassada, portanto,
por narrativas mercadológicas que viriam a lhe absorver aproximadamente uma década
depois. O futebol ainda não era um negócio, mas, até em negação a isso, era muitas
vezes o ambiente da interação de modos de vestir, movimentar, falar e performatizar de
diversas regiões do Brasil e do mundo. Em uma partida, a maneira de jogar santista
interagia com a palmeirense, ou a são paulina com a botafoguense, etc. Em um jogo
corpóreo de interação – troca geracional complexa – o futebol brasileiro estava longe
das lógicas homogeneizantes do esporte atual. Jogadores faziam histórias em suas
cidades natais, as seleções brasileiras não contavam com nenhum jogador de time
estrangeiro. Uma partida era, assim, um encontro assistido de ambientes heterogêneos,
seus meandros, cores, movimentos, ritmos, estratagemas e brincadeiras. O jogo não era
assim uma luta entre corporações multinacionais, mas times-signo de suas cidades em
interação com outras malhas de signos.
O Santos F.C., como signo de sua cidade, era por si só o movimento lúdico de
todas as forças do ambiente em que ele foi gerado. O porto estava no drible, a orla na
Vila Belmiro, a cidade inteira estava nos sons desse futebol. O esporte adentrava assim
todos os poros dos habitantes de Santos e região.
106
4.3.1. Gilberto Mendes e Santos Football Music: a gênese e descrição da
obra
Gilberto Mendes , compositor e morador de Santos, nunca gostou de futebol. Em
suas palavras, “não tinha o menor interesse” nesse esporte (MENDES, 1994, p. 126).
Em meados dos anos 60, um amigo lhe desafia a compor uma obra musical com essa
temática. Ele recusa. O amigo – o artista plástico Enio Squeff – insiste, já que àquela
época Santos tinha o time mais famoso, campeão, etc. Mendes continua a recusar.
Algum tempo depois, porém, o compositor vinha descendo de São Paulo a Santos
ouvindo a irradiação de uma partida pelo rádio quando (em suas palavras) “de repente,
eu senti uma grande música no rapidíssimo falar do locutor narrando a partida (...). Da
semente que Enio lançou nasceu a ideia naquele instante” (MENDES, 1994, p.127).
O desafio estava posto: trazer à música experimental de concerto a ambiência
sonora de uma partida de futebol santista. Assim nascia, em 1969 (ainda no auge da Era
Pelé), Santos Football Music56
. De cara o compositor inventou instrumentação curiosa:
orquestra completa, uma charanga que toca ritmos de samba, três irradiações de tape
(todas contendo uma locução de jogo gravada do rádio) e interação com o público.
Além dessa escolha peculiar de instrumentos, o compositor ainda traz para S.F.M. mais
um componente: o teatro musical (ou, como Mendes prefere, teatro-música). Nesse
momento, cabe descrever como ele articula todos essas elementos sonoros-visuais-
cênicos em um nível neutro, para enfim poder se discutir a interação entre o mundo
futebolístico e a obra em questão.
Para descrever essa peça, usaremos como base – além da partitura e das
gravações disponíveis – o artigo de Paulo Chagas, A invenção do Jogo (1992), no qual o
autor faz uma análise da partitura de S.F.M., tomando-lhe a maior parte do que lhe é
imanente, mesmo que a analisando como uma música tradicional. Para completar essa
descrição, cabe somar a essa análise da partitura elementos lúdicos e divertidos que por
ventura passam despercebidos da análise da música no papel, já que esta não leva em
conta componentes materiais descobertos na performance.
Na escritura de S.F.M., o compositor abre mão da escrita tradicional, trocando
compassos por desenhos, ritmos codificados por espaços em branco. Há nela a mistura
de várias técnicas de escrita, todas detalhadas minuciosamente na bula da peça.
56
Nessa análise, para facilitar a escrita/leitura, abreviaremos Santos Football Music para S.F.M.
107
Microtonalismo, escrita espacial, improvisos: inúmeras morfologias de escritura (cuja
maioria refere ao século XX) se amalgamam em uma partitura que mais parece um jogo
de tabuleiro do que uma série de indicações para a execução. Toda essa soma quase não
tira, porém, a regência subordinando a orquestra, que segue a batuta piamente.
A música começa com um ensaio. Depois da entrada da orquestra, um segundo
regente entra em palco57
e combina com a plateia diversas reações a plaquetas que serão
levantadas por ele. Quando for levantada a plaqueta “hmmm” a plateia deve produzir
qualquer som anasalado, quando for a vez da plaqueta “falem” os ouvintes devem falar
o que lhes der vontade (diz-se até que se alguém não souber o que dizer pode ler o
programa do concerto), e assim por diante, treinando gritos de “gol!”, vaias, coros de
torcida, etc. Terminado o ensaio, a orquestra se apronta e começa a tocar.
A segunda parte da música (que é a peça propriamente dita) inicia com uma
tríade de mi bemol maior tocada pelo piano, um acorde maior triádico, signo máximo do
fazer musical tonal. Esse acorde pouco a pouco é bombardeado por apoggiaturas, ainda
no piano, fazendo com que a música fique cada vez mais densa. Somando-se a essa
densificação cada vez mais atonal, outros instrumentos entram em cena, até que no
limite da potência-explosão, um silêncio instaura-se.
Dai por diante, a música desenvolve-se de maneira mais ou menos análoga a
essa contração e expansão. Irradiações de locutores de jogos são intercaladas com frases
microtonais de violino e flauta. O piano divide com o bongô um bate-bola dinâmico.
Em algum momento da peça, uma charanga de escola de samba entra e fica tocando no
fundo da plateia, emulando as torcidas típicas da Vila Belmiro. No meio das dinâmicas
orquestrais, ouve-se o pianista gritando o nome dos craques de Santos: “Pelé! Zito!
Pepe!”. O jogo continua entre suspenses e respiros, a plateia interagindo: falando,
torcendo, gritando (seguindo as plaquetas do segundo regente).
Mais para o final da peça, começa o teatro-música de Mendes. Em um momento
de suspense, a plateia grita “GOOOOL!” e muitas comemorações são feitas. De súbito,
uma bola é arremessada da coxia ao palco, e o regente deve (ao menos tentar) cabeceá-
la. Alguns instrumentistas levantam e começam a driblar a bola enquanto uma pequena
trave é descoberta na extremidade do palco. Um dos instrumentistas chuta a bola em
57
Na maioria das apresentações de Santos Football Music, esse segundo regente foi o próprio compositor
Gilberto Mendes.
108
direção a ela (a charanga e a orquestra seguem tocando e as locuções rolando). De
súbito, o regente vira-se para o público, saca um apito e, transformando-se no juiz da
partida, apita: “PÊNALTI!”. Todos ficam em silêncio e o juiz mostra um cartão
vermelho para um dos jogadores, que sai do palco xingando e esperneando. Todos se
preparam para a execução do pênalti. O jogador corre em direção da bola e chuta ela na
audiência. A orquestra volta a tocar.
Pouco tempo depois, o regente-juiz silencia a orquestra com um último apito.
Alguém, com boa voz, anuncia: “TERMINA A PARTIDA!”. O público ainda estará
barulhento e pouco a pouco os instrumentistas vão saindo, assim como a charanga.
Sobra apenas um(a) violinista tocando uma nota no palco.
4.3.2. Ambientes sonoros em transposição: o som da bola
Feita a descrição dessa peça, o próximo passo que se apresenta é entender e
explicitar como o universo futebolístico pode se articular com essa música, sendo objeto
dinâmico dela. A relação que pretendemos construir é uma relação tanto de ordem
estritamente sonora quanto social e até emotiva – mostrando diversas relações
simultâneas entre signo e objeto. Dessa maneira, pretendemos demonstrar como S.F.M.
propõe não uma escuta do futebol como temática acessória ao discurso musical, mas o
ambiente sonoro-emotivo do esporte mergulhando dentro do discurso musical,
engendrando em um resultado complexo a partir da interação entre a tradição musical
em sua linguagem pura com todo um universo futebolístico, levando em conta suas
sonoridades, clichês e suspenses. Em resumo: um processo tradutório e intersemiótico
(entre a música e o futebol como linguagens/expressões humanas) complexifica esta
obra.
Começando pelas associações mais óbvias entre essas duas áreas, podemos
estabelecer um primeiro elo pelos sons da peça que são importados ipsis literis do
futebol para a música. Esse tipo de relação podemos chamar de icônica, já que a peça
pretende emanar o futebol a partir de uma semelhança sonora entre signo e objeto: os
sons do jogo (e do ambiente do jogo, como o da irradiação) dentro da música. A
irradiação da locução apresenta-se como representação não apenas sonora dos jogos,
mas também visual, já que por entre as rápidas palavras do locutor, constrói-se um
109
mapa imaginário do campo e seus jogadores na cabeça de cada ouvinte. As múltiplas
irradiações que Mendes propõe, por outro lado, embaralham a escuta de tal modo que é
muito difícil compreender o que é dito pelo locutor. A locução se mostra um elemento
de representação sonora distante do jogo, do estádio e da audiência. Poderíamos dizer,
também, que por dentro da locução estão todos os gestos dos agentes dessa malha
semiótica, já que ela é ao mesmo tempo signo do jogo em tempo real em seus termos
técnicos (“x passa a bola para y”) e uma imersão do espectador-performer (locutor) em
criação-tradução simultânea do que sente/vê para som.
Assim como a velocidade da fala do locutor indicia o jogo e excita seu ouvinte
em um processo de contração/relaxamento, Mendes propõe uma movimentação musical
semelhante em sua peça. A opção do compositor por um discurso progressivo de
densidades sonoras se mostra bastante feliz: assim como o espectador de futebol sente-
se cada vez mais tenso e ansioso vendo seu time se aproximar da área adversária, a
orquestra tem também o poder de adensar sonoramente o ambiente de câmara, gerando
uma sensação análoga. O (segundo) começo da peça é um bom exemplo para isso. A
peça inicia com um repouso total, o lugar-comum da música ocidental: o acorde maior.
Como bem aponta Chagas, a música parte do solo de piano em dinâmica média para o
tutti orquestral em dinâmica fff (CHAGAS, 1992, p.70-71). Dessa maneira, há ainda
uma associação interna entre a forma musical (discurso de adensamento e cortes) e os
tapes radiofônicos da própria peça musical. Essa associação, também icônica, opera em
um nível bastante emocional e subjetivo, diferente da iconicidade emanada pelas
locuções discriminadamente. Em outras palavras, é possível dizer que há uma conexão
icônica entre os discursos de densidade do futebol e o da peça, da maneira como ela se
constrói.
Para além dos tapes é preciso explicitar como Mendes traz os sons do estádio
para sua música. Para representar a atmosfera criativa de uma partida de futebol, não
seria suficiente reproduzi-la no palco apenas: a interação com o público torna-se
essencial. Ao convidar a audiência a participar, Mendes convida-a também a torcer
(gritando “SANTOS, SANTOS”) desvairadamente, mergulhando de corpo e voz na
peça sonora. Ao lado do público, uma charanga que toca ritmos de escola de samba
anima a torcida, descontraindo também a escuta musical de concerto. Assim, da mesma
maneira que, na partida, o jogo musical aqui depende inteiramente da participação da
audiência: se ela estiver pouco empolgada, o jogo será mais “morno”, e se ela se
110
emocionar e envolver, a orquestra também cresce, em uma relação complementar e
dialógica. Essa interação entre a plateia e os intérpretes explicita para o perceptor qual o
objeto daquela música: o futebol. Essa proposição, altamente icônica, se dá forçando o
público a realizar as mesmas (re)ações feitas em um estádio na sala de concerto.
Não poderíamos deixar de dizer, também, do teatro-música proposto por
Mendes. O compositor, surpreendendo a audiência, ressignifica o palco, transformando-
o no signo de um campo de futebol, onde uma partida é simulada. Dessa maneira, a
fruição do futebol salta da imaginação sonora e concretiza-se na visualidade da
encenação, propondo assim uma recepção múltipla de camadas sígnicas – polifônica –
da partida de futebol, como escreve José Miguel Wisnik:
Na verdade, a peça parte da idéia profundamente enraizada na arte musical que é a da
polifonia, isto é, a simultaneidade de varias vozes diferente, (...). O que se torna
estranho para muitos é a natureza dos materiais empregados para se construir essa
polifonia, que são os sons do mundo futebolístico dos estádios como potencial ao
mesmo tempo sonoro e semântico: como elementos próprios para soar musicalmente,
mas carregados de um sentido social. (WISNIK, 1974)
Ainda sobre o teatro-música de S.F.M., é interessante evidenciar que todos os
elementos cênicos propostos pelo compositor são, na verdade, a reprodução dos clichês
dos pontos culminantes das partidas futebolísticas. O cartão vermelho, o grito de
pênalti, o grito de “gol”, o anúncio “termina a partida” e tantos outros são, na verdade, a
camada simbólica mais desgastada e repetida58
nesse esporte. O uso dessa camada é o
que, de alguma maneira, aproxima o público em direção à peça, chamando-o para a
interação e à escuta por meio de signos familiares a seu repertório.
Diversas outras aproximações poderiam ser feitas: o bongô e o piano num bate-
bola, o grito dos nomes dos craques da época, o regente que vira juiz, etc. Na construção
dessa relação inesgotável e, em alguma instância, indecifrável, é interessante que a
relação não se dá aqui em elementos isolados, mas numa multiplicidade de ambas as
áreas trazendo relações de primeiridade, secundidade e terceiridade em quantidade
razoável, gerando um todo misturado e heterogêneo, que emana o futebol em diversas
esferas.
58
No caso do “Gol” ou do “cartão vermelho”, eles não são repetidos com frequência, mas são
frequentemente requisitados, lembrados e esperados pelos expectadores.
111
4.3.3. O ambiente sonoro como o ambiente musical: complexidade e
inconstância
Requentando a pergunta inicial dessa investigação, cabe agora formulá-la de
outra maneira: como explicar a inconstância de Mendes frente ao mundo futebolístico?
Em um segundo momento, como desmembrar o processo complexo que deriva dessa
inconstância? Nesse momento, pretendemos discutir como a figura de Mendes como
compositor é fundida com uma relação integradora com o ambiente em que ela se
insere, modulando livremente entre o tradicional e as evocações da vida cotidiana.
Em uma primeira chave para essa leitura, cabe concordar com a perspectiva de
Edgar Morin quanto à relação conhecimento-cultura: “insisto em observar que todo
conhecimento filosófico, científico ou poético emerge da vida social comum”59
(MORIN, 1998, p. 14), o que também possibilita em um segundo momento uma ação
do sujeito-cognoscente sobre esse plano que ele se insere, construindo uma relação de
dependência entre o “universo macrofísico e o universo antropossocial” (MORIN, 1997,
p. 91). Essa leitura de cultura como geratriz de conhecimento evoca também a
percepção de um conhecimento cotidiano que poderia ser definido como
uma mistura singular de percepções sensoriais e de construções ideo-culturais, de
racionalidades e de racionalizações, de intuições verdadeiras e falsas de induções
justificadas e errôneas, de silogismos e paralogismos, de ideias recebidas e de ideias
inventadas, de saberes profundos, de sabedorias ancestrais de fontes misteriosas e de
superstições infundadas, de crenças inculcadas e de opiniões pessoais
(MORIN, 1998, p.14)
Nessa linha, a discussão deixa de ser como se articula o conhecimento e a
cultura a um nível epistemológico, e passa a ser como esses âmbitos entram em
interação em cada configuração antropológica. O conhecimento e a criação não podem
ser vistos, nessa perspectiva, distantes do ambiente em que esse conhecimento se insere
e distante das inúmeras ações ocorridas nesse ambiente. O pensamento e a criação
complexos são, portanto, os que não tentam reduzir os elementos múltiplos, e tentam
demonstrar sua heterogeneidade. Por essa razão, é possível compreender o fazer/viver
musical de Mendes como um fazer complexo, já que o compositor insiste em sobrepor
inúmeras camadas sonoro-semânticas, na medida em que “a complexidade impõe-se,
em primeiro lugar, como impossibilidade de simplificar” (MORIN, 1997, p. 344). A
59
Somado a essa vida social comum deve ser notado como o conhecimento também deriva do “mundo da
vida”(cf. MORIN: O método 3, pp.35-36; O método 1,1998, p.17), montando assim o trinômio homem-
sociedade-espécie, que recorda o primeiro anel epistemológico do autor: Física-Biologia-
Antropossociologia (cf. O método 1, 1997, p. 251-266).
112
mistura, se fosse desconectada do ambiente sonoro do compositor, seria instrumentalista
e homogeneizante, o que não faz sentido para Mendes. Antes de se propor um fazer
técnico e um diálogo com a tradição, nesse compositor vemos um diálogo direto com os
ambientes musicais em que ele se insere e, mesmo sem muito interesse (no caso do
futebol), se contamina sonoramente.
O discurso artístico complexo de Mendes é, portanto, um discurso de
transformação da reação-ao-mundo na representação-do-mundo em que se equipara
sem muito juízo de valor possibilidades técnicas europeias com instrumentações
brasileiras, tecnologia e tradição, o sacralizado com a profanação; gerando uma coesão
entre “quase todos os dados mais característicos da música de vanguarda da segunda
metade do século” em uma só peça (MENDES, 1994, p. 126).
Esse fazer musical distingue-se de uma relação distante de outros compositores
com ambientes sonoros, como vistos nos modernismos europeus e também no
brasileiro. Negando uma leitura exotizante e folclorista do seu objeto sonoro (estas
homogeneizantes e simplificadoras), a polifonia composicional de Mendes se insere e
narra o ambiente sonoro a partir dele próprio. Emula-se uma partida de futebol pela
perspectiva de um torcedor, para torcedores e executada por torcedores. Assim, uma
poética de distanciamento não faz mais sentido, e a pesquisa composicional distancia-se
aqui da pesquisa musicológica canônica. Essa aproximação do objeto da obra com o
repertório comum dos seus receptores garante, assim, a junção entre o experimentalismo
modernista e a uma alta comunicabilidade com a plateia – com quem compartilha seu
ambiente.
Em uma renovada leitura do tradicional, Gilberto Mendes nos apresenta em
S.F.M. sua inconstância, trazendo para seu repertório justamente o que ainda não havia
lhe acontecido: torna música, ou melhor, memória, o que não estava em seu
interpretante lógico, mas em seu ambiente. O paralelo com uma cultura em trânsito
descrito por Viveiros de Castro (2002) se mostra evidente na medida em que assim
como nas estátuas de murta, em Mendes também é “como se o inaudito fizesse parte da
tradição, o nunca visto já estivesse na memória” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
194). Assim, a aceitação integradora de técnicas (ditas) eruditas de composição é
modelada tal qual um jardim barroco (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 195) em
S.F.M.. Sem negar o que é de concerto, desconcertiza-se.
113
A descomposição do ambiente musical tradicional coroa assim a peça como
desconstruidora das narrativas da música de concerto. A começar pela descentralização
da atenção dos ouvintes, que agora tem dois ao invés de um regente, e passando pela
interação de quem ouvê, movimentando as posições interpretativas canônicas, S.F.M.
desconsagra a escuta da música de concerto e a própria noção de vanguarda como
ruptura de maneira bem-humorada. Como bem coloca Wisnik,
transpostos do estádio para o concerto, mundo restrito e sacralizado, conotado como de
elite, esses materiais musicais fazem música ao mesmo tempo que realizam uma grande
invasão profana, festiva e humorada. O profano esta aqui ligado à ideia de ruptura
escândalosa de uma regra, da do ritual concertístico. A festa está ligada à explosão do
jogo participado coletivamente (WISNIK, 1974).
Assim, a peça, já que propõe uma reintegração do discurso artístico com o
ambiente criativo-fruitivo, desconstrói dicotomias clássicas do fazer musical e traduções
lineares do processo de escuta. O compositor não é mais aquela autoridade a ser
obedecida, mas mais um agente em pé de igualdade com os demais; o intérprete
também não é mais o músico treinado, mas uma entidade que vai desde o instrumentista
até o público, passando pela difusão de tape; e, por fim, o ouvinte não é mais o público
pagante, mas todos que mergulham nessa atmosfera sonora coletiva. O limite da
música-não-música fica difuso e descentralizado. Saltando mais para um próximo
paradigma de escuta (que mais tem que ver com a performance como linguagem do que
com a música como instituição), Mendes nega uma obra a ser apenas escutada ou vista,
propondo, ainda em música, a criação colaborativa de um ambiente sonoro-artístico-
lúdico. Futebol-música!
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Viver sua música, Gilberto Mendes afirma, já com quase 90 anos de idade:
“sou no mínimo três compositores diferentes”, um vanguardista, um clássico-moderno e
um popular (MENDES, 2008, p.168). Findas as análises de seu período experimental-
vanguardista, cabe levantar a mesma máxima em outro sentido, já que, dentro de sua
música de vanguarda, Mendes também é, no mínimo, três compositores diferentes.
Em nascemorre, é visível a intimidade do compositor com os materiais poéticos
concretistas e com as possibilidades da escrita para coro. Naquele momento, de ruptura
inicial com a música nacionalista-moderna, desenha-se um compositor engajado na
aleatoriedade, na exploração morfológica do som, do espaço e da peça musical; e em
uma tradução acústica mais estruturalista do momento concretista.
Três anos depois, em Blirium C9¸ há na peça um compositor que abre mão de
uma vanguarda moderna/estruturalista para fundir seus horizontes com os daqueles que
o interpretam, tanto tocando como escutando. Há certa ruptura com o compositor do
nascemorre, já que a figura do compositor passa por um processo de emancipação no
que concerne a hierarquia dos processos inerentes à semiose musical tradicional. Onde
em nascemorre havia preocupações formais-temporais organizadas, em Blirium Mendes
abre mão de uma forma musical fixa e de um discurso teleológico, propondo uma
estrutura formal semi-indeterminada. O uso da citação livre deformada, também cabe
dizer, traz um caráter aberto para a peça, tirando um nível da produção de sentido das
mãos do compositor e transferindo ao intérprete.
Pouco tempo depois, em Santos Football Music¸ uma outra faceta de compositor
é aflorada. Emancipado das tradições euro-norteamericanas enquanto amarras, mas
mantendo a elas uma reverência, Mendes traz à peça um caráter interativo. Duplicando
a figura do regente, o compositor rege a plateia, trazendo-a para dentro da peça. Além
disso, elementos performáticos/cênicos passam a adentrar a música de Mendes: uma
charanga tocando na plateia, o regente cabeceando uma bola de futebol, um happening
final, gritos de nomes de jogadores... Em Santos Football Music, Mendes marca como a
confluência da pluralidade seria (senão a única) uma boa maneira para traduzir sua
identidade musical. Em mistura e constante apresentação de novas influências, há nesse
115
Gilberto Mendes de S.F.M., que prevaleceu durante a década de 1970, um compositor
experimentado na vanguarda, com noção semiótica o suficiente para trazer a uma peça
com uma grande comunicabilidade e um alto nível informativo.
Mas o ponto desta pesquisa não é a diferença entre as fases deste compositor em
meio a sua música experimental. É interessante perceber como, caminhando entre
escolas, Mendes é caracterizado por sua inconstância. Encantado e aberto, o compositor
tem a heurística, a lógica da descoberta, a abdução, como constante na vida. Seguindo a
máxima de que a única lei que não se atualiza é a lei da variação, Mendes é, pois um
compositor do mais alto nível abdutivo. Tudo varia, menos a variação: a porta de
entrada de sonoridades está sempre aberta. Conectando espaços, campos, áreas,
linguagens, épocas, Mendes é um atualizador impertinente de legi-signos, juntando
universos antagônicos fazendo com que não se biquem. Isso se manifesta de maneira
peculiar em todo o período experimental do compositor.
Em nascemorre, identificamos, a partir de uma tradução de uma poesia concreta,
elementos de uma aleatoriedade tanto cageana como europeia, da musique concréte, da
escritura não-tradicional, da escrita para voz não usual. Em Blirium, há uma mistura de
aberto, indeterminado e aleatório, um compositor de técnicas harmônicas estruturalistas
com abordagem formal mais indeterminada/cageana. Em S.F.M., até acordes tonais
entram na jogada, dividindo espaço com técnicas de escrita contemporâneas, cenas e
performances além, é claro, de interações com a audiência. Atravessando em segundos
o Atlântico, os mares do sul de Mendes tem em seu porto o encontro entre culturas.
Fruto de interações livres, a música experimental de Mendes é destruidora de
dicotomias. Em meio a um contexto profundamente dicotômico, que mais apontava para
superações lineares e sucessivas rupturas, Mendes já fazia parte de um paradigma
posterior (pós-modernos, alguns dirão). Um paralelo com a leitura da superação da
linearidade dicotômica macluhaniana é possível: todo meio teria seu “limite de ruptura”
derivado de seu superaquecimento (MACLUHAN, 2014, p. 51). Tendo a modernidade
musical como aquecimento da música enquanto meio – ou mídia –, encontramos na
composição da década de 1960, da qual Mendes é signo, um limite de ruptura que se
alinha com a passagem do mecânico para o elétrico vista em MacLuhan (contemporânea
a este processo). Na semiose musical, o foco no conteúdo das mensagens-composições
116
é deixado de lado para dar voz ao protagonismo de uma semiose dos efeitos que as
músicas suscitam. Como visto em MacLuhan de forma mais ampla:
O interesse antes pelo efeito do que pelo significado é uma mudança básica de nosso
tempo, pois o efeito envolve a situação total e não apenas um plano do movimento da
informação (MACLUHAN, 2014, p. 41-42)
Ainda em MacLuhan, o superaquecimento e o limite de ruptura de um meio
podem se dar, frequentemente, pela mistura entre meios (conceito que, para o autor, tem
uma conotação mais tecnológica-material do que a que estamos utilizando aqui, cf.
Idem, p. 56-57). Tomando uma composição musical como um meio pelo qual se realiza
uma música enquanto linguagem, a fusão da música com a poesia, o teatro e a
performance expõe um ponto de ruptura possível para o fazer musical da época. Mendes
seria, pois, um signo desse limiar de ruptura entre paradigmas: sendo vanguardista no
limite da existência da vanguarda.
Na música e em outras mídias, as dicotomias das lógicas de leitura lineares-
fragmetárias foram, pouco a pouco sendo deixadas de lado, abrindo espaço para uma
ambiência produtiva mais livre ou, na associação macluhaniana, elétrica. Enquanto
alguns de seus contemporâneos se preocupavam em jogar entre a razão e a intuição
(como visto na querela das cartas abertas) em Gilberto Mendes as dicotomias da
composição são tidas como superadas, tentando-se misturar ao máximo o que suscitam
as predileções pessoais desta personalidade aberta.
A chave para compreender – ou esboçar uma primeira impressão sobre – essa
inconstância está na conexão do compositor com seu ambiente. Ou melhor, seus
ambientes. São Paulo, os compositores do Música Nova, a chegada de partituras da neue
Musik, as trilhas sonoras de filmes e Santos. Sobretudo Santos, pois Gilberto Mendes é
um compositor santista. Um cidadão ilustre, conhecido pela orla.
Compreendendo o ambiente como berço do acaso e da inconstância – via
variação, em Mendes há uma conexão profunda, em nível de primeiridade, com tudo
que o cerca, possibilitando a criação a partir do que nos envolve. Ser Mendes é ser em
Santos, mesmo que viajando o mundo. Trazendo Joyce para o boqueirão. Eisler e
Webern para os mares do sul. Pois para quebrar dicotomias, é necessário mais do que
compor. É preciso viver sua música.
117
Por fim, no meio desta pesquisa, talvez na última entrevista de Gilberto Mendes,
dois meses antes de sua morte, perguntei sobre esta mudança de técnicas, escolas. A
resposta me foi surpreendente por sua doçura ríspida, e encantadora pelo resumo total
da complexidade que tentamos expor aqui, mesmo com tantos recortes: “eu sempre fiz o
que me deu na telha”.
118
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