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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Guilherme Di Lorenzo Pires A INSERÇÃO DA IRMANDADE MUÇULMANA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL DO ORIENTE MÉDIO: Um estudo dos aspectos nacionais e transnacionais Belo Horizonte 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Guilherme Di Lorenzo Pires

A INSERÇÃO DA IRMANDADE MUÇULMANA NA SOCIEDADE

INTERNACIONAL DO ORIENTE MÉDIO:

Um estudo dos aspectos nacionais e transnacionais

Belo Horizonte

2013

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Guilherme Di Lorenzo Pires

A INSERÇÃO DA IRMANDADE MUÇULMANA NA SOCIEDADE

INTERNACIONAL DO ORIENTE MÉDIO:

Um estudo dos aspectos nacionais e transnacionais

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Relações

Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em

Relações Internacionais.

Orientador: Danny Zahreddine.

Belo Horizonte

2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Pires, Guilherme Di Lorenzo P667i A inserção da irmandade muçulmana na sociedade internacional do Oriente

Médio: um estudo dos aspectos nacionais e transnacionais / Guilherme Di Lorenzo Pires. Belo Horizonte, 2013. 139f.: il.

Orientadora: Danny Zahreddine Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais.

1. Nacionalismo. 2. Islamismo - Egito. 3. Organizações internacionais – Oriente Médio. 4. Mulçumanos – Relações internacionais. I. Zahreddine, Danny. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais. III. Título.

CDU: 329.17

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Guilherme Di Lorenzo Pires

A INSERÇÃO DA IRMANDADE MUÇULMANA NA SOCIEDADE

INTERNACIONAL DO ORIENTE MÉDIO:

Um estudo dos aspectos nacionais e transnacionais

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para a obtenção do título de Mestre

em Relações Internacionais.

-----------------------------------------

Danny Zahreddine (Orientador) – PUC Minas

------------------------------------------

Jorge Mascarenhas Lasmar – PUC Minas

-------------------------------------------

Youssef Alvarenga Cherem – UNIFESP

Belo Horizonte, 28 de Fevereiro de 2013.

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Aos meus pais,

Pelo incentivo e carinho.

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AGRADECIMENTOS

A dissertação que agora se apresenta foi produto de um extenso trajeto ao longo do

qual recebi apoio e estímulo de muitos. A todos que contribuíram para a realização deste

trabalho, fica expressa aqui minha gratidão, especialmente ao meu orientador, o professor

Danny Zahreddine, não só pelas inestimáveis orientações e partilha do saber, mas pela

amizade construída neste tempo de convivência.

Gostaria de agradecer à professora Matilde pela dedicação e pelos comentários

valiosos, sem os quais a realização desta dissertação seria uma tarefa muito mais árdua; ao

professor Otávio Dulci, pelos conselhos e pela disposição de compartilhar a sabedoria, a qual

inspirou a presente dissertação; e a todos os professores do curso, que foram essenciais na

minha formação acadêmica.

Agradeço também aos meus colegas de classe, pela importante troca de conhecimento

e pela amizade; e à Paula e à Bianca pela ajuda incondicional em todos os momentos.

Sou muito grato a todos os meus amigos de longa data pela companhia, pelos

conselhos, pelo o apoio e pelos preciosos momentos de descontração.

Por fim, dedico esta conquista aos meus pais, Rosângela e Antônio Sério, e gostaria de

agradecê-los por tudo aquilo que me ensinaram e pelo carinho por todos estes anos juntos.

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RESUMO

Esta dissertação realizou um estudo compreensivo da Irmandade Muçulmana egípcia com o

objetivo de identificar a postura da Irmandade Muçulmana em relação ao princípio do

nacionalismo e seus desdobramentos para sociedade internacional. Trata-se de um estudo com

perspectiva histórica a qual foi aplicada duas abordagens do nacionalismo, a de Anthony D.

Smith e a de John Breuilly, para apreender as mudanças e das permanências no campo

ideológico e político da organização em relação ao princípio do nacionalismo. Os resultados

apontam para uma mudança na postura da Irmandade Muçulmana no decorrer do século XX

em relação ao nacionalismo. A princípio, era evidente a mobilização pela união dos árabes e

muçulmanos de nações diversas em uma frente comum contra a dominação militar, política e

cultural das potências europeias no Oriente Médio. Posteriormente, a Irmandade Muçulmana

adotou uma agenda política e ideológica mais claramente circunscrita ao Estado nacional,

ainda que não abandonasse o discurso de aproximação entre as nações árabes e islâmicas. Este

processo pode ser entendido como a aceitação do princípio nacional e a adaptação das

tradições políticas e culturais locais à nova ordem internacional. Neste processo de mudança,

o ambiente nacional foi fator decisivo para a conformação da Irmandade Muçulmana aos

princípios nacionais. Por outro lado, fatores identitários e culturais permaneceram importantes

para a concepção que a Irmandade Muçulmana possui da interação entre os estados no âmbito

regional.

Palavras-Chave: Nacionalismo, Islamismo, Egito, Sociedade Internacional, Escola Inglesa

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ABSTRACT

This current essay has conducted a comprehensive study of the Egyptian Muslim Brotherhood

with the purpose to identify the position of the Muslim Brotherhood about the nationalist

principle and its unfolding to the International Society. It is a study with historical perspective

to which it was applied two approaches of nationalism, those of Anthony Smith and John

Breuilly, to apprehend the changes and permanencies in the organization’s ideological and

political fields towards the tenet of nationalism. The results point to an alteration in the

Muslim Brotherhood’s stance toward nationalism in the course of XX century. In the outset, it

was clear that the Muslim Brotherhood has sought to mobilize the Arabs and Muslims from

different nations to form a common front against the military, political and cultural European

dominion over Middle East. Later, the organization has adopted a political and ideological

agenda that was clearly circumscribed to the Nation-State, even though the organization

didn’t drop the discourse claiming approximation of the Arab and Islamic nations. This

process can be viewed as the acceptance of the nationalist principle and the adaptation of local

political and cultural traditions to the new international order. In this aspect, the national

realm was a decisive factor for the conformation of Muslim Brotherhood to the nationalist

principle. On the other hand, identitary and cultural factors have remained important in the

Muslim Brotherhood’s conception of the interaction between states on regional realm.

Key-words: Nationalism, Islamism, Egypt, International Society, English School

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – Instituições primárias no Oriente Médio ............................................. 25

TABELA 2 – Atributos das ethnies e nações ................................................................ 38

TABELA 3 – Classes de nacionalismos ........................................................................ 42

TABELA 4 – Esquematização teórica .......................................................................... 44

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LISTA DE MAPAS

MAPA 1 – A expansão do Islã (750-1700) ................................................................... 50

MAPA 2 – Divisão do Oriente Médio entre França e Grã-Bretanha (1925) ............. 56

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 13

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS ........................................................................... 19

2.1 A Escola Inglesa e a abordagem de Barry Buzan .............................................. 19

2.2 Os três domínios e a Sociedade Internacional do Oriente Médio ..................... 22

2.3 Relação entre nível global e regional e a expansão da sociedade

internacional .......................................................................................................... 26

2.4 Nação e nacionalismo ............................................................................................ 29

2.4.1 Abordagens do nacionalismo ................................................................................. 31

2.4.2 Nacionalismo como ideologia ................................................................................ 32

2.4.3 Anthony Smith e a adaptação cultural .................................................................. 33

2.4.4 Quadro analítico de Anthony Smith ...................................................................... 37

2.4.5 John Breuilly e o papel do Estado Moderno ......................................................... 40

2.4.6 Quadro analítico proposto por John Breuilly ....................................................... 42

2.5 Esquema analítico proposto para o exame do conteúdo nacionalista da

Irmandade Muçulmana ........................................................................................ 44

3 PERSPECTIVA DE LONGA DURAÇÃO ......................................................... 46

3.1 Discussão acerca do termo “movimento islamista” ........................................... 47

3.2 Memória Coletiva e Legitimidade ....................................................................... 48

3.3 O Islã Transnacional e o Islã local ....................................................................... 49

3.4 A expansão europeia ............................................................................................ 56

3.5 As ambiguidades da construção da nacionalidade egípcia ................................ 59

3.6 Reformismo e Revivalismo ................................................................................... 62

3.7 A influência de Jamal al-Din al-Afghani ............................................................. 64

3.8 O mito da Idade de Ouro para os movimentos islamistas contemporâneos .... 67

3.9 Aplicação do modelo de Anthony Smith ............................................................. 68

4 O PENSAMENTO DA IRMANDADE MUÇULMANA ACERCA DO

NACIONALISMO ............................................................................................... 71

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4.1 O surgimento da Irmandade Muçulmana .......................................................... 71

4.2 O pensamento de Hassan al-Banna ..................................................................... 73

4.2.1 Apresentação das diversas perspectivas críticas sobre o pensamento de Hassan

al-Banna ................................................................................................................. 76

4.2.2 Watan e Qawm ....................................................................................................... 78

4.2.4 A imagem do nacionalismo na Europa e no Oriente Médio em Hassan al-

Banna ...................................................................................................................... 80

4.2.5 Dupla caracterização do pensamento de al-Banna: transnacional e pan-

nacional .................................................................................................................. 81

4.4 Sayyid Qutb: ideólogo do radicalismo ................................................................ 83

4.3.1 Discussão acerca da obra de Qutb ......................................................................... 85

4.3.2 A nação enquanto uma condição da jahiliyya ...................................................... 86

4.4 Hassan al-Hudaybi: sucessor de Hassan al-Banna ............................................ 89

4.4.1 O pensamento de al-Hudaybi acerca da política e religião ................................. 91

4.5 Comparação das perspectivas de Hassan al-Banna, Sayyid Qutb e Hasan al-

Hudaybi sobre o nacionalismo ............................................................................. 93

5 COMPARAÇÃO ENTRE FATORES POLÍTICOS DOMÉSTICOS E

INTERNACIONAIS ............................................................................................ 97

5.1 A expansão da Irmandade Muçulmana na região do Levante (1936-1948) .... 98

5.2 O período de Nasser (1952-1970): momento de decadência da Irmandade

Muçulmana ............................................................................................................ 100

5.2.1 A primeira e a segunda perseguição no período de Nasser (1954 e 1965) .......... 101

5.2.3 O Pan-arabismo e a guerra de 1967 ...................................................................... 104

5.3 Anwar Sadat (1970-1981): momento de reconstrução da Irmandade

Muçulmana ............................................................................................................ 108

5.3.1 Política Externa com Israel e conflito com os islamistas ..................................... 110

5.4 Era Hosni Mubarak: um panorama político até as eleições de 1995 ............... 113

5.4.1 A inserção da Irmandade no espaço político ........................................................ 114

5.4.2 A primeira Guerra do Golfo .................................................................................. 117

5.5 Aplicação da abordagem de John Breuilly ......................................................... 121

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 126

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 132

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1 INTRODUÇÃO

A emergência dos Estados nacionais na idade contemporânea colocou um desafio para

as autoridades religiosas e políticas nas sociedades de maioria muçulmana. O estabelecimento

de estados soberanos com suas fronteiras definidas pelas potências europeias colocou em

xeque a noção da Umma – entendida como a comunidade de todos muçulmanos e que não

reconhece distinções étnicas ou raciais – como uma categoria política relevante (AYOOB,

2008). A ideia de um sistema formado por nações, isto é, por comunidades políticas

imaginadas como limitadas e soberanas (ANDERSON, 2008), representou um desafio tanto

no sentido prático quanto ideológico às pessoas do Oriente Médio1: qual deveria ser a base

presumivelmente natural desses Estados nacionais? As respostas apresentadas pelo mundo

Islâmico foram diversas e contraditórias (AYOOB, 2008).

A presente dissertação estuda a maneira como a Irmandade Muçulmana egípcia se

posicionou diante do princípio do nacionalismo, e como ela articulou esta ideia com o

sentimento de pertencimento a uma comunidade árabe e uma comunidade islâmica. A

Irmandade Muçulmana foi fundada no Egito em 1928 por Hassan al-Banna (1906-1949). A

princípio, a Irmandade Muçulmana era uma organização social e religiosa. Mas,

posteriormente, converteu-se em um movimento político que atuou tanto no cenário

doméstico egípcio quanto na região da Palestina.

A Irmandade Muçulmana foi pioneira entre os movimentos islâmicos contemporâneos

na defesa do Islã como parte integrante da vida e como referência aos aspectos políticos,

culturais, econômicos e sociais da experiência humana moderna. (EL-AWAISI, 1998).

Essa concepção, que confere ao Islã um papel fundamental em diversos setores da vida

social, reflete a própria descrição feita por al-Banna da Irmandade Muçulmana como uma

“mensagem Salafista, um método Sunita, uma verdade Sufista, uma organização política, um

grupo atlético, uma união cultural-educacional, uma companhia econômica, e um ideal

social”2 (MITCHELL, 1969, p.14, tradução nossa). Mas, por este caráter dilatado e expansivo,

o grupo comportava visões de mundo díspares, o que contribuiu para que a relação da

Irmandade com o governo e a sociedade egípcia oscilasse desde a sua origem.

1 Entre as diversas acepções do termo, na presente dissertação a noção de Oriente Médio remete à região que se

estende da costa oriental do Mediterrâneo até o Irã e da Anatólia central até a Península Arábica

(ZAHREDDINE; LASMAR; TEIXEIRA, 2012). 2A Salafiyya message, a Sunni way, a Sufi truth, a political organization, na athletic group, a cultural-educational

union, an economic company, and a social Idea.

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Hoje, a Irmandade Muçulmana possui ramificações em mais de 70 países (MEIJER;

BAKKER, 2012), o que faz da Irmandade uma organização bastante popular no Oriente

Médio, além de ser inspiração para outros movimentos sociais e religiosos. Maye Kassem

(2004) considera a criação da Irmandade Muçulmana a origem do Islã Político em sua forma

contemporânea e popular. Além disso, as ramificações da Irmandade formam oposições

políticas importantes nos países da região. Essa situação particular fez com que Abd al-Fattah

El-Awaisi (1998) constatasse que

A sociedade da Irmandade Muçulmana foi, e ainda é, transnacional, ao mesmo

tempo em que é nacional. Por um lado, ela inevitavelmente se expandiu para além

de seu centro de origem no Egito, e, por outro lado, a invocação da questão Palestina

na política Egípcia ajudou a definir a diferença da Irmandade Muçulmana com

outros grupos, principalmente os nacionalistas. Deste modo a Ikhwan [a Irmandade

Muçulmana] concretizou e definiu sua base de apoio e apelo dentro da política

egípcia. A interação entre a política doméstica e a transnacional se reforçaram

mutuamente (EL-AWAISI, 1998, p.205, tradução nossa)3.

El-Awaisi assinala dois fatores importantes na compreensão das atividades da

Irmandade Muçulmana. Primeiro, há a ideia de que a Umma é a principal referência para a

solidariedade coletiva. Nessa perspectiva, os motivos religiosos são constantes e invariáveis,

pois derivam dos princípios básicos do Islã. O segundo aspecto são as realidades particulares

nacionais as quais a Irmandade aceita como variáveis em função das condições históricas e

sociais (EL-AWAISI, 1998). Com isso, Hassan al-Banna decompunha a lealdade política da

Irmandade Muçulmana em três dimensões: a lealdade para com o país, para com o Arabismo

e para com o Islã. Contudo, a lealdade entre as três unidades não era percebida como

conflitante nem contraditória, pois a interação entre os domínios teria como consequência a

aproximação entre as unidades. Mas, dentro destes círculos concêntricos de identidades

coletivas, o que se observa no pensamento de al-Banna, é a primazia da comunidade dos fiéis

sobre os demais.

Esta condição ambígua da Irmandade apresenta um problema ao pesquisador em

relação à identificação desse ator. Com isso, a presente dissertação coloca a seguinte

pergunta: Tendo em vista a discussão a respeito do Nacionalismo e da Comunidade dos Fiéis

(Umma), como a Irmandade Muçulmana se situa no âmbito nacional e no transnacional?

3 The Muslim Brotherhood society was, and remains, transnational as well as national. On the one hand, it

inevitably expanded beyond its originating centre in Egypt, and, on the other hand, the invocation of the

Palestine question in Egyptian politics helped to define the Muslim Brothers’s [sic] differences with other

groups, mainly nationalists. In this way the Ikhwan solidified and defined its base of support and appeal within

Egyptian politics. The interaction between domestic and transnational politics was mutually reinforcing.

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As respostas imaginadas para a pergunta foram categorizadas em três possibilidades:

A) Prevalência do aspecto nacional: O Islã seria elemento unificador importante somente na

dimensão nacional egípcia. B) Prevalência do aspecto “Internacional”: há um engajamento

para o estabelecimento da comunidade dos fiéis, mas os estados e suas fronteiras seriam

mantidos. Neste sentido, o Islã seria conectaria as diversas “nações muçulmanas”. C)

Transnacional: Prioriza a criação de uma entidade política mais ampla na qual as fronteiras

nacionais teriam importância reduzida.

Para compreender este objeto recorreu-se, em primeira instância, à Escola Inglesa da

abordagem de Barry Buzan (2004), pois ela abre espaço para o estudo de movimentos sociais

e políticos que não necessariamente estão delimitados pelas fronteiras nacionais. Buzan

(2009) divide dois compostos dos quais é feita uma sociedade internacional. O primeiro é a

divisão entre estados, que corresponde à parte “contratual” da sociedade internacional. O

segundo composto diz respeito às identidades regionais e locais, assim como às tradições

culturais coletivas. No primeiro caso, o domínio da sociedade internacional priorizado é a

divisão entre estados. O segundo caso abrange os domínios inter-humanos (entre indivíduos)

e transnacionais (entre organizações não-estatais para além das fronteiras dos estados).

Contudo, Buzan (2009) observa que em uma sociedade internacional onde o âmbito

contratual não coincide com o comunitário é criada uma tensão entre os domínios. No caso do

Oriente Médio, Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009) afirmam que estas duas dimensões não

coincidem, ou seja, estados e identidade não são congruentes, o que enfraquece os estados e

cria uma ordem frágil.

Com isso, o objetivo da presente dissertação é identificar como a Irmandade

Muçulmana se situa entre estas dimensões, e verificar como se articulam os princípios do

nacionalismo e da comunidade dos fiéis para a caracterização da Irmandade Muçulmana. Por

um lado, é evidente a vocação transnacional, mas por outro, a realidade interestatal delimita o

escopo e o conteúdo das ações políticas.

Para realizar esta pesquisa, foram utilizas duas abordagens do nacionalismo como

ferramentas analíticas que permitem compreender as dimensões transnacionais e inter-

humanas da sociedade internacional: a abordagem de John Breuilly (1993), que privilegia a o

domínio do Estado-Moderno, e a abordagem de Anthony D. Smith (2010), que enfatiza o

papel da tradição cultural regional.

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Com isso, é possível classificar as ações e as ideologias da Irmandade Muçulmana em

relação ao nacionalismo, e observar como se alteraram no decorrer do século XX. Argumenta-

se que os cenários internacional e regional tiveram grande importância na agenda política do

grupo. Entretanto, fatores externos foram filtrados pelas condições nacionais egípcias. Com

isso, o formato e a ideologia da Irmandade Muçulmana se alteraram em virtude da realidade

política na ela estava inserido. A estrutura política egípcia determinou, em grande parte, os

contornos que o grupo adotou e sua agenda política. A necessidade de se adaptar a uma

determinada distribuição de poder e a um arranjo institucional levou o grupo a se consolidar

como um grupo nacionalista, em contraste com a sua vocação transnacional presente nos

primeiros anos. Neste aspecto, o conteúdo religioso do grupo não corresponderia ao fator que

determina as características do grupo, mas antes um acervo de ideias do qual são retirados o

referencial e o léxico político.

O primeiro capítulo desta dissertação é de conteúdo teórico e visa relacionar os

fundamentos da Escola Inglesa e a instituição do nacionalismo. O quadro analítico proposto

por Barry Buzan (2004) permite a articulação analítica entre estados e grupos transnacionais

segundo a dinâmica específica de cada região do globo. A diferenciação de níveis de análise

apresenta vantagens no estudo de grupos sub-estatais (BUZAN, 2004). A obra de Buzan abre

espaço para o estudo das coerências e incoerências entre a Irmandade Muçulmana e a

ideologia do nacionalismo. Posteriormente, o capítulo aborda a literatura teórica sobre o

nacionalismo e é proposta a contraposição de dois modelos analíticos que abordam

perspectivas distintas sobre o fenômeno dos nacionalismos. São discutidas as obras de

Anthony D. Smith (2009; 2010), que privilegiam uma lógica da readaptação cultural, e a obra

de John Breuilly (2000), que privilegia a lógica de reivindicação política.

O segundo capítulo adota uma perspectiva de longa duração e tenciona identificar na

história do Islã elementos que apontem para um caráter “nacional” ou “transnacional”, e

observar como esta tradição foi alterada e como a tradição está presente na memória coletiva.

Chega-se à conclusão de que o passado islâmico ocupa um lugar importante na memória

coletiva mesmo após a expansão europeia. Contudo, o passado oferece um conjunto muito

amplo de memórias que podem ser utilizadas para legitimar tanto movimentos transnacionais

como os movimentos nacionais. Ou seja, não há uma sequencia homogênea e linear, mas um

passado que fornece múltiplas oportunidades e identidades.

O terceiro capítulo examina os preceitos ideológicos de nomes importantes da

Irmandade Muçulmana e observa como eles se aproximam ou se distanciam dos tópicos

elencados por Smith (1986) que sumarizam uma ideologia nacionalista que são: 1) O mundo é

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dividido em nações, cada uma com suas próprias características, história e destino. 2) a nação

é a única fonte de poder político. 3) A lealdade para com a nação sobrepuja as outras

lealdades. 4) Para ser livre, cada indivíduo precisa pertencer a uma nação. 5) cada nação

requer autonomia. 6) A paz e a justiça global requerem um mundo de nações autônomas. Ao

final do exame é possível constatar que a Irmandade apresenta uma ideologia ampla,

contraditória e mutável ao longo do século XX. Pode-se dizer que Hassan al-Banna se

aproxima, de alguma forma, destes elementos. Todavia, ele reivindica uma nação

“alternativa”, ou seja, a nação do Islã. Sayyid Qutb, por sua vez, se afasta radicalmente destes

preceitos e de um pensamento nacionalista. Por fim, Hasan al-Hudaybi tem uma aproximação

maior da ideologia nacionalista em alguns aspectos, ainda que em outros a ambiguidade

permanece.

O quarto capítulo consiste em verificar a dimensão política da Irmandade Muçulmana

para, então, identificar o escopo das ações da organização. Nesta etapa, busca-se apreender os

objetivos políticos da Irmandade Muçulmana, comparando a resposta que o grupo dá a

eventos importantes do cenário internacional e do ambiente doméstico. Após este estudo, é

observado que, apesar de ter uma ideologia que prega maior aproximação entre os

muçulmanos, o cenário político e social do Egito impôs uma realidade à Irmandade

Muçulmana egípcia em que as relações de poder no Estado Moderno induziram a

“nacionalização” da organização.

Por fim, as considerações finais sintetizarão a dimensão empírica com os modelos

teóricos sobre o nacionalismo. E a resposta ao questionamento apresentado é que, a despeito

de uma ideologia com escopo transnacional, a Irmandade Muçulmana hoje não apresenta uma

forma de identificação coletiva alternativa à nação. Por um lado, a abordagem de Anthony

Smith contribui para a compreensão de que os processos da modernidade não obliteraram

completamente as identidades e culturas formadas em períodos pré-modernos. Algumas

culturas se transformaram, outras foram destruídas, outras se amalgamaram e reviveram. O

conteúdo destas identidades e culturas podem ser adaptar às novas circunstâncias ao serem

articuladas com novos significados e funções. Mas, por outro lado, a abordagem de John

Breuilly chama a atenção para os imperativos colocados pelo Estado Moderno ao conceito de

nação, e como estes imperativos ajudam a entender a aproximação da Irmandade Muçulmana

ao argumento nacionalista em detrimento de um caráter mais transnacional.

Em suma, existem diversas ramificações da Irmandade em outros países, mas isto não

que dizer que elas formem parte de uma grande organização transnacional. Certamente, há

mais do que afinidade dogmática e ideológica entre elas: há uma mobilização entre seus

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membros e o incentivo ao diálogo. Além disso, é possível perceber articulações e interações

em diversos campos que apontam para um intercâmbio de experiências entre seus integrantes.

Entretanto, isso não quer dizer que se trata de uma organização que transcende as fronteiras

dos estados, unindo pessoas de diversas nacionalidades em uma mesma comunidade.

A Irmandade Muçulmana é uma organização que opera dentro dos limites da nação

conforme as regras e as práticas do nacionalismo. Por um lado, o estudo do caso egípcio

mostra a importância da política nacional para a Irmandade Muçulmana, mas, por outro, a

política regional não é perdida de vista. Além do interesse em controlar o poder do estado

egípcio, há o interesse do grupo em se posicionar de maneira critica em relação às questões

externas.

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2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Este capítulo de conteúdo teórico visa, num primeiro momento, relacionar os

fundamentos da Escola Inglesa e a instituição do nacionalismo. O estudo do nacionalismo

feito pela Escola Inglesa4 tem como objetivo compreender as consequências que o

nacionalismo coloca para a sociedade internacional, e por outro lado, compreender como o

processo de expansão da sociedade internacional global a partir da Europa engendrou o

nacionalismo em outras regiões. Em seguida, o capítulo apresenta perspectivas teóricas e

debates sobre o nacionalismo e, com isso, propõe-se um modelo analítico para o estudo das

ambiguidades da Irmandade Muçulmana em relação ao nacionalismo. O procedimento

metodológico consiste na verificação da adequação da abordagem de Anthony Smith para a

compreensão do problema, e da comparação deste modelo com a abordagem de John Breuilly.

2.1 A Escola Inglesa e a abordagem de Barry Buzan

A Escola Inglesa entende a sociedade internacional como uma forma de ordenamento

internacional em que há a institucionalização de interesses e de valores compartilhados entre

os Estados. Neste aspecto, o conceito de sociedade internacional se distingue do sistema

internacional, definido como uma ordem internacional caracterizada exclusivamente pelas

interações macro entre unidades políticas, mais especificamente, entre os estados. Num

sistema internacional, portanto, não há uma sociedade propriamente dita (BUZAN, 2009).

Portanto, pode-se dizer que a sociedade internacional constitui uma forma de interação mais

complexa que o sistema internacional na medida em que existem regras e instituições que

mediam a interação entre as unidades.

Além da ideia de sociedade internacional, há uma terceira dimensão abordada pelos

autores tradicionais da Escola Inglesa que é a reflexão sobre a existência de uma sociedade

Mundial (World Society), isto é, uma sociedade que engloba indivíduos e unidades não-

4 A Escola Inglesa não é um grupo bem demarcado, e muitos autores discutem quais seriam as características

comuns aos que se vinculam a esta escola. Para alguns autores, o argumento central da Escola Inglesa está na

perspectiva de uma sociedade internacional. Nessa vertente, Manning é a figura principal. Outros autores

enfatizam o British Committee on the Theory of International Politics como percussor da Escola Inglesa. E

destacam figuras tais como Martin Wight, Adam Watson e Hedley Bull. (LINKLATER & SUGANAMI, 2006)

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estatais (BUZAN, 2009). Esta tríade – sistema internacional, sociedade internacional e

sociedade Mundial – constitui a base de teorias normativas e políticas da Escola Inglesa.

Barry Buzan (2004) sugere uma reelaboração do significado dos conceitos basilares da

Escola Inglesa, tendo em vista os novos desafios que emergiram no mundo pós Guerra Fria.

Buzan defende o aprimoramento dos conceitos de forma que se estabeleça um aparato

analítico mais profundo para interpretar as Relações Internacionais. Buzan identifica, assim,

três categorias básicas que descrevem o cenário das diversas interações no cenário

internacional: sociedade interestatal, sociedade transnacional e a sociedade inter-humana.

A Sociedade interestatal tem o mesmo significado que a acepção clássica de sociedade

internacional, ou seja, remete àquilo que ocorre entre os Estados. Sociedade transnacional, por

sua vez, refere-se à estrutura social composta por atores coletivos não-estatais. E, por fim, a

sociedade inter-humana, é a estrutura social baseada nas interações entre indivíduos e nas

identidades compartilhadas. Estes três domínios juntos constituem, para Buzan (2009), a

sociedade internacional.

Além dos domínios, uma sociedade internacional é composta por valores e instituições

compartilhadas, que orientam e definem o ordenamento das unidades na sociedade

internacional. São estas instituições compartilhadas, como observa Hedley Bull (1984), que

permitem ordem num sistema que é anárquico, ou seja, num sistema onde não há um poder

soberano capaz de instituir e velar pela aplicação de determinadas regras. O estudo que

envolve a identificação das instituições e a compreensão de seus funcionamentos constitui um

campo importante dentro da tradição da Escola Inglesa.

Contudo, como Barry Buzan mostra, apesar de ser um consenso entre os autores da

Escola Inglesa a existência destas instituições, a identificação destas instituições varia de

autor para autor. Particularmente, Buzan (2004) divide as instituições internacionais em

instituições primárias e instituiçõs secundárias. Instituições primárias são instituições

constitutivas tanto da sociedade interestatal como, mais amplamente, da sociedade

internacional. Estas instituições, que definem o caráter básico da sociedade internacional, são

desenvolvidas num longo período histórico, e não são simplesmente criadas. As instituições

primárias são padrões duráveis de práticas compartilhadas enraizadas em valores sustentados

pelos membros de uma sociedade internacional (BUZAN, 2004). Entre estas instituições estão

a soberania, a não-intervenção, a territorialidade, a diplomacia, o direito internacional, a

guerra, a balança de poder, o gerenciamento das grandes potências, o nacionalismo e o

mercado. (BUZAN, 2009) Apesar de serem duráveis, as instituições primárias não são

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permanentes nem fixas. Elas seguem o padrão histórico de surgimento, desenvolvimento e

declínio.

Além das instituições primárias, existem outras instituições derivadas que são as

instituições secundárias. Estas se aproximam da definição de instituição proposta pela teoria

dos regimes pelos institucionalistas neoliberais. São produtos de certas sociedades

internacionais. São conscientemente designadas para servir a fins instrumentais daqueles que

as criaram. (BUZAN, 2009)

E, finalmente, um terceiro aspecto que Buzan desenvolve na teoria da Escola Inglesa é

a elaboração de uma abordagem regional em contraste com a percepção da dinâmica

internacional global. Os autores clássicos da Escola Inglesa estudavam o estudo da sociedade

internacional em sua manifestação global, conferindo pouco espaço para as variações

regionais. Contudo, a necessidade de se observar o âmbito regional veio à tona com o fim da

Guerra-Fria quando novos fenômenos (ou processos “adormecidos” pela Guerra Fria)

vinculados às dinâmicas regionais se manifestaram no cenário internacional.

O estudo dos três domínios propostos por Buzan abre espaço para uma análise que

leva em consideração tanto a escala global como a escala regional das interações entre as

unidades. Na escala global, o domínio interestatal é o predominante. Mas na escala regional

existem outros processos, atrelados a movimentos sociais e identitários que estão contidos

dentro dos Estados ou os transcendem, que são fatores cruciais na caracterização de cada

região.

A maioria das identidades nacionais é geograficamente agrupada, assim como, em

menor grau, são as identidades civilizacionais e religiosas. E desde que os indivíduos

possuem mais que uma identidade simultaneamente, a questão é como os padrões de

distribuição se sobrepõem, e qual é o principal princípio mobilizador da ação social ou

legitimadora da ação política (BUZAN, 2009). É justamente este aspecto que a presente

dissertação tenciona compreender.

Algumas identidades estão contidas em outras mais amplas. Em outros casos, as

identidades são mais difusas e com padrões assimétricos de sobreposição. Observando o

aspecto inter-humano, há uma proporção inversa entre a escala geográfica e a intensidade da

identidade entre os homens. Comunidades mais restritas possuem uma coesão maior que

agrupamentos mais difusos, no limite em que a própria existência de uma identidade global é

muito fraca. Porém, Buzan (2009) observa que há algumas exceções a este padrão: há

identidades nacionais que abarcam uma extensão territorial muito ampla e uma população

numerosa, e existem religiões com vocação universal que conseguiram criar um sentimento de

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identidade compartilhada entre os fiéis. É o caso do Islã. Mas em regra geral, o paroquialismo

ainda prevalece sobre as identidades de escala global.

2.2 Os três domínios e a Sociedade Internacional Regional do Oriente Médio

Buzan defende a existência de uma sociedade interestatal no nível global. Mas além

desta sociedade no nível global, existem diferentes sociedades regionais. Desta forma, coloca-

se a questão de como diferenciar as estruturas sociais no nível regional daquelas do nível

global.

As sociedades internacionais regionais perdem importância caso não existam

diferenças significativas entre uma e outra, ou entre ela e a sociedade internacional no âmbito

global. Mas, por outro lado, caso as diferenças engendrem uma heterogeneidade muito

grande, então a sociedade internacional global deixa de existir. Com isso, o pesquisador

precisa identificar as estruturas sociais no nível regional e como interagem umas com as

outras e com as estruturas sociais do nível global (BUZAN, 2009).

No caso da ordem internacional contemporânea, a existência das sociedades

internacionais regionais está em consonância com a sociedade internacional global (BUZAN,

2009, p.34). Na região do Oriente Médio, como observa Buzan (2009), com exceção de

alguns movimentos radicais, não há um enfrentamento entre um universalismo regional que

buscaria substituir os globais. O que existe são hostilidades direcionadas contra determinadas

práticas e valores globais que visam estabelecer uma distinção regional para com o global,

entretanto, esta hostilidade não tem como objetivo o reordenamento completo do sistema

internacional.

Para compreender melhor o Oriente Médio, é fundamental, portanto, mobilizar três

aspectos da Escola Inglesa: a relação no nível regional entre os domínios interestatais, inter-

humanos e transnacionais; as instituições, tanto primárias quanto secundárias, e a relação

entre a dimensão regional e global (BUZAN; GONZALEZ-PELAEZ, 2009, p.227).

O presente trabalho se restringirá principalmente ao primeiro aspecto tendo em vista as

características do objeto de estudo. É preciso observar que o domínio inter-humano e o

transnacional comportam atores que podem se estruturar dentro dos limites dos Estados. Mas

muito do domínio inter-humano é independente do Estado (no sentido que não depende do

Estado para sua existência, legitimação e reprodução)5. Esta categoria inclui as religiões

mundiais e as identidades “civilizacionais” (BUZAN, 2004, p.234). A relação entre o domínio

5 No caso da Irmandade Muçulmana, será visto que a legitimação legal pelo Estado é um objetivo prioritário.

Com isso, a Irmandade Muçulmana, mesmo sendo um ator sub-estatal, ela está sujeita à influência dos estados.

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interestatal, o transnacional e o inter-humano ajuda situar a Irmandade Muçulmana dentro do

quadro regional sem perder de vista as suas ambiguidades.

A ambiguidade entre os três domínios gera diversas hipóteses sobre a maneira como as

fronteiras sociais e políticas se sobrepõem criando uma dinâmica regional própria. Buzan

elenca dois argumentos sobre a relação local entre os domínios interestatais e o não-estatais.

O primeiro, compartilhada pelos autores clássicos da Escola Inglesa, diz que a cultura comum

é um aspecto importante para a existência de uma sociedade interestatal (WIGHT, 1977).

Nessa perspectiva, a expansão de uma sociedade internacional a partir da Europa enfraqueceu

estes laços ao ampliar o multiculturalismo da sociedade internacional, tornando problemático

o compartilhamento de normas, valores e instituições. Assim, é mais provável encontrar uma

sociedade interestatal mais robusta na escala regional, onde uma cultura compartilhada ajuda

a dar consistência aos vínculos que ligam as pessoas.

O segundo argumento observa que a relação entre sociedade (em seu sentido mais

contratual e instrumental) e comunidade (no sentido orgânico de uma identidade

compartilhada) depende se os limites geográficos de ambos os aspectos são os mesmos ou são

diferentes. Nesta perspectiva, onde a comunidade e a sociedade ocupam o mesmo espaço,

como no modelo clássico de Estado nacional, o elemento da identidade exerce uma função

crucial em equilibrar os efeitos da política e da sociedade. Mas onde a identidade e sociedade

não ocupam o mesmo espaço, elas se transformam em forças antagonistas. Em uma escala

mais ampla, a existência de uma comunidade também pode facilitar a formação de sociedades

interestatais (BUZAN, 2009).

Desta forma, os domínios transnacionais e inter-humanos não são simplesmente um

repositório de questões normativas. Eles são decisivos no modo como as sociedades

internacionais regionais são definidas, e como a suas estruturas institucionais são entendidas..

A visão tradicional da Escola Inglesa sustenta que uma sociedade interestatal é facilitada pela

existência de uma cultura compartilhada a partir da qual são extraídos instituições e valores.

Mas esta visão toma como natural o processo da formação do Estado no qual a cultura

endógena e a formação do Estado estão livres para se relacionar um com o outro. No caso do

Oriente Médio, este processo é menos claro. Buzan endossa a hipótese de que o aparato

contratual racional é reforçado quando ocupa o mesmo espaço que o espaço cultural

(BUZAN, 2009), o que no Oriente Médio não ocorreu em grande parte dos casos.

O domínio interestatal no Oriente Médio foi, com poucas exceções, criado e

sustentado por potências externas (BUZAN, 2009). Sob tais circunstâncias, é esperado que

reminiscências da estrutura colonial na qual as instituições e o domínio interestatal são

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condicionados pelo nível global. Em contrapartida, os domínios inter-humanos e

transnacionais possuem raízes na sociedade regional. A consequência disso é uma disjunção

entre o domínio interestatal por um lado, e os domínios transnacionais e inter-humanos por

outro. Os Estados no Oriente Médio conseguiram, até certa medida, se adaptar às pressões

islâmicas e nacionalistas árabes vindas de baixo, e em estabelecer identidades nacionais e

legitimar suas fronteiras. Mas o autoritarismo e a dependência das potencias externas

permaneceu uma fonte de insatisfação e fraqueza da legitimidade.

Esta disjunção traz consequências importantes para a demarcação da sociedade

internacional regional. Esta disjunção entre os três domínios no Oriente Médio significa que

enquanto é possível delimitar a sociedade global regional, não é possível identificar uma

única unidade coerente. Segundo, Barry Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009), o que surge é uma

sociedade regional estruturada em círculos concêntricos que são definidos por domínios

distintos.

No primeiro círculo, que abrange o domínio interestatal, existe uma sociedade

westphaliana que é coincidente com o complexo de segurança do Oriente Médio (países

árabes, mais Irã, Israel, Turquia e Afeganistão BUZAN & WAEVER 2003).

Entre o domínio interestatal e o inter-humano, há uma sociedade árabe definida

principalmente pela identidade étnica. Esta disposição confere ao nacionalismo árabe um

caráter peculiar de tanto fortalecer como enfraquecer os estados pós-coloniais no Oriente

Médio.

Já no domínio interestatal, inter-humano e transnacional há, segundo Buzan e

Gonzalez-Pelaez (2009), uma sociedade Islâmica. Este aspecto é fraco no domínio

interestatal, onde é sobrepujado pela soberania e outras identidades. Mas permanece um

elemento importante, ainda que dividido, nos domínios transnacionais e inter-humanos.

Em suma, para Buzan, no Oriente Médio, a sociedade interestatal é principalmente

westphaliana, e está assentada entre a Política de Poder e coexistência. A sociedade inter-

humana e transnacional é solidarista em alguns aspectos, mas se aproxima da Política de

Poder e coexistência em outras. Em algumas interpretações, o elemento Islâmico, assim

como o árabe, pode trazer questões solidaristas à interpretação da soberania e da não-

intervenção6 (BUZAN; GONZALEZ-PELAEZ, 2009). Esta estrutura concêntrica é pouco

clara, e se estende para além do Oriente Médio. Ao contrario do caso europeu, para Buzan e

6 A crise do golfo é um caso interessante para observar como a Irmandade Muçulmana se comportou em relação

a um evento internacional. Ainda que condenasse a invasão do Kuwait pelo Iraque, a Irmandade Muçulmana foi

contra a intervenção militar contra o Iraque.

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Gonzalez-Pelaez (2009), os círculos concêntricos são definidos por forças distintas. Mas ainda

assim, este modelo desenha um Oriente Médio relativamente coerente baseado num núcleo

árabe.

Outro desdobramento da divisão em domínios da sociedade internacional regional e

global é a identificação das instituições primárias que são características de cada um dos

domínios e de cada escala de análise. Por um lado, se é aceito que uma estrutura social

coexiste tanto no nível global como no regional, então é provável que as instituições primárias

interestatais serão compartilhadas em ambos os níveis. Por outro lado, é preciso estar atento

tanto para as instituições da sociedade interestatal, como também para as instituições dos

domínios inter-humanos e transnacionais. Estas instituições podem estar em tensão umas com

as outras.

Olhando para os três domínios, Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009) observam que o fato

do Islã e o Arabismo não terem conseguido consolidar suas ideologias pan-islâmicas7 e pan-

arabista em oposição à estrutura estatal pós-colonial, não significa que deixaram de ser um

aspecto importante na região (DAWISHA, 2003). Na verdade, os próprios estados pós-

coloniais cooptaram a ideologia Arabista e islamista para os próprios fins. Contudo, isso não

garantiu o consenso político e social suficiente para torná-los estados fortes. Nessa

configuração social, surgiram líderes carismáticos e organizações que desempenharam

funções importantes no domínio inter-humano, como foi o caso de al-Banna, o criador da

Irmandade Muçulmana. Desta forma, o nacionalismo árabe e o pan-islamismo se mantêm

sustentados nestes domínios, a despeito de todo esforço dos Estados para desestruturar estas

ideologias.

Porém, Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009) afirmam que o Arabismo e o Islamismo

enfraquecem as instituições wetsphalianas de soberania, não-intervenção e territorialidade,

sem contestar o Estado em si mesmo. A respeito do Islã, os autores colocam que o Oriente

Médio faz parte de um conjunto mais amplo, uma sociedade pan-islâmica que opera tanto nos

domínios interestatais como na sociedade Mundial Mas por si só, o Islã não define o Oriente

Médio, apesar de orientar as estruturas sociais (BUZAN, PELAEZ, 2009).

Tendo isso em vista, Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009) sugerem um esboço do arranjo

das instituições primárias na sociedade internacional regional no Oriente Médio como pode

ser visto na figura 1:

7 pan-Islamismo entendido como “uma ideologia que reivindica a unidade dos povos muçulmanos no mundo a

partir da base de uma identidade islâmica compartilhada” (Pan-Islam is an ideology calling for the unity of

Muslim peoples world-wide on the basis of their shared Islamic identity) (HASHMI, p.17)

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Tabela 1 – Instituições primários no Oriente Médio.

Instituições que aparecem tanto no

domínio inter-estatal quanto operam

nos outros dois domínios

Nacionalismo árabe

Territorialidade

Diplomacia

Guerra

Instituições dos domínios não estatais

que são reações contra instituições do

domínio inter-estatal

Anti-imperialismo (como reação

contra o gerenciamente das Grandes

Potências e a intervenção Ocidental na

região).

Instituições puramente do domínio

não-estatal

Islã

BUZAN; GONZALEZ-PELAEZ, 2009, pp.235-236.

Com isso, as identidades pan-islâmicas e pan-arabistas, mais a história do

colonialismo e uma forte ingerência das grandes potências, criam um sentimento de “anti-

imperialismo” que corta toda a região. Por outro lado, o Ocidente penetra na região através

das elites políticas, que são dependentes da ajuda externa tanto financeira como militar. O

anti-imperialismo é um elemento forte para os domínios transnacionais e inter-humanos, junto

com o arabismo e o islamismo.

2.3 Relação entre nível global e regional e a expansão da sociedade internacional

Na narrativa da construção da ordem global contemporânea pela perspectiva da Escola

Inglesa, o principal ponto abordado é a criação de uma sociedade universal interestatal, com a

Europa como vanguarda do processo. Às outras regiões não restou alternativa senão a

adaptação. Este é o caso tanto de países que permaneceram independentes e que se adaptaram

à nova ordem mundial, como o caso das regiões que foram colonizadas e que foram

reconstruídas de acordo com as políticas domésticas e internacionais da Europa (BUZAN &

PELAEZ, 2009)8. Portanto, a ênfase desta perspectiva é a tensão entre expansão e

homogeneização no nível global, e coerção e consentimento no âmbito regional.

8 O estudo histórico da sociedade internacional se desenvolveu lentamente em resposta a certas questões que

Butterfield e Wight colocaram na agenda de pesquisa do British Committee on the Theory of International

Politics. Wight define o sistema de estados como um grupo de estados que são soberanos, no sentido de não

reconhecerem superioridade política, e que têm relações mais ou menos permanentes entre si. E é a evolução das

relações entre unidades políticas ao longo da história da humanidade, culminando, no século XX, na sociedade

internacional, que parte da Escola Inglesa estuda (LINKLATER; SUGANAMI, 2006).

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Diversos valores foram exportados através da força da superioridade militar da Europa

para o mundo9. Mas com o tempo, alguns destes valores foram internalizados pelos Estados e,

até certo ponto, pelas pessoas. Nacionalismo, soberania territorial, direito internacional,

diplomacia e ciência são os exemplos mais claros. Neste sentido, a existência de uma

sociedade interestatal pode promover o desenvolvimento de uma comunidade no domínio

inter-humano, mas isso não constitui uma regra. A imposição pode ser imediatamente

rejeitada.

O processo de descolonização introduziu a questão da soberania estatal, elemento

primordial para a caracterização de um sistema composto por unidades independentes e

autônomas. No caso do Oriente Médio, há uma sobreposição de fronteiras sociais e políticas,

além de uma constante presença e intervenção do “centro” na “periferia”, que tornam o

quadro regional bem complexo e peculiar (BUZAN, 2009). Além disso, Buzan e Gonzalez-

Pelaez (2009) vêem o Oriente Médio como uma região distinta das demais regiões de

“terceiro mundo” do globo, afirmando que no Oriente Médio há uma cultura política distinta.

De um modo geral, a região é caracterizada pela presença de potências globais e pela grande

tensão entre os valores característicos dos domínios inter-humano e transnacional e a estrutura

centro-periferia mantida por atores externos. Neste aspecto, o Oriente Médio fornece um caso

que desafia à interpretação que privilegia movimentos vindos de cima para baixo e em escala

global.

A expansão da sociedade internacional criou um arranjo de estados que não

correspondiam às divisões étnicas e sociais no Oriente Médio, e isso, mais as constantes

intervenções externas, fez com estes estados fossem estruturalmente fracos e instáveis,

governados por uma elite com pouca, ou sem nenhuma, representação social mais ampla

(BUZAN; PELAEZ, 2009).

Desta forma, o sistema de estados no Oriente Médio não somente foi amplamente

criado pelo Ocidente, como, desde então, foi sustentado por ele. Não somente as elites locais

foram sustentadas pelo apoio externo, mas também a norma global contra a alteração de

fronteira pela força engessou o arranjo de estados na região.

O caso do Oriente Médio aponta para algo entre a harmonia e o conflito nas relações

entre os níveis globais e regionais. No nível interestatal, a sociedade internacional no Oriente

9 A sociedade internacional global contemporânea é uma combinação das instituições westphalianas exportadas

pela Europa e que são amplamente aceitas no globo. Soberania, territorialidade (princípio de que a política é

organizada em uma base territorial.), diplomacia, direito internacional, balança de poder, guerra e gerenciamento

das grandes potências representam a lógica westphaliana da coexistência de uma sociedade interestatal. Ciência,

direitos humanos e mercado representam a lógica da cooperação impulsionada pelo núcleo liberal ocidental.

(BUZAN,2009)

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Médio é consideravelmente dividida, dependente e paroquial, incapaz de competir com o

Ocidente ou outros centros de poder na Ásia. Mas nos domínios inter-humanos e

transnacionais há um forte sentimento de resistência aos valores Ocidentais; resistência que

visa preservar a cultura local contra o imperialismo dos valores ocidentais. Mas é somente

nos casos extremos em que grupos defendem ideias e valores como fundamentos para uma

ordem alternativa à ordem global. Mas de maneira geral, o Islã não coloca tal ameaça tal qual

existiu no período da Guerra Fria (BUZAN; PELAEZ, 2009).

Mas um dos problemas da Escola Inglesa, mesmo na vertente proposta por Buzan, é a

relativa ausência da dimensão doméstica na análise. Devido ao fato do presente estudo

constituir em um estudo de caso de um ator não estatal, é importante observar não somente a

escala global e a regional, mas também é fundamental considerar o que ocorre dentro do

Estado. A Irmandade Muçulmana é um movimento com características transnacionais, mas,

por outro lado, possui uma base nacional muito evidente. Desta forma, um estudo que só

contemplasse o aspecto transnacional deixaria de lado outros tantos elementos importantes no

entendimento desse grupo.

A presente dissertação não realiza um estudo que visa estabelecer aquilo que é

característico da sociedade internacional regional do Oriente Médio, pois isso seria um estudo

que vai além do objeto recortado. Além disso, não é proposto um estudo sobre o Islã como

instituição primária na região, pois para provar tal hipótese seriam necessários estudos mais

amplos e que abarcassem outros movimentos. Obviamente, a noção de movimentos islamistas

é fundamental para a própria compreensão do grupo, das suas origens e de seus objetivos.

Mas é preciso deixar claro que esta discussão não será o principal enfoque do trabalho. O que

norteia os estudos são as discussões sobre o nacionalismo.

O nacionalismo é um fenômeno moderno e que foi difundido pelo globo a partir da

expansão europeia. Ela representa um modelo de unidade política que teve origem em um

contexto histórico ocidental particular, mas que se tornou o modelo para todos os países na

contemporaneidade. A organização da sociedade internacional em Estados nacionais é um

elemento importante na ordem internacional. O estudo do nacionalismo, ainda que seja um

estudo particular, apresenta contribuições para o entendimento do processo de expansão da

sociedade internacional global. E a observação na maneira como o nacionalismo foi

apropriado e usado de acordo com as condições locais ajuda a entender a dinâmica de uma

determinada sociedade internacional regional. O presente estudo é somente um pequeno

tópico nesta grande discussão, mas que busca contribuir de alguma forma para este debate.

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2.4. Nação e nacionalismo

No Oriente Médio, assim como em qualquer lugar, o nacionalismo tem sido uma força

poderosa que moldou e vem moldando o destino e as características dos povos e dos países.

Apesar da maioria dos relatos tradicionais sobre o nacionalismo no Oriente Médio traçar a sua

gênese na metade do século XIX, foi em 1940 que o nacionalismo no Oriente Médio ganhou

destaque internacional e se tornou por décadas a força dominante na política da região

(KEMRAVA, 2005).

Muito se discute no meio acadêmico sobre a definição de nacionalismo e as causas de

seu surgimento. Uma primeira apresentação mais geral e ampla define o nacionalismo como a

correspondência na escala nacional a um determinado território, reforçado por traços

compartilhados de identidade, tais como símbolos compartilhados, experiências históricas,

idioma, folclore e religião (GUIBERNEAU, 1996). Esta primeira definição introduz dois

elementos importantes: primeiro, a necessidade de haver uma disposição territorial definida

para a qual os indivíduos dirigem a sua lealdade. O segundo elemento diz que este

pertencimento territorial é nacional em seu escopo.

O primeiro elemento, a identificação de um grupo a um determinado território é um

elemento presente nas sociedades desde muito tempo e é feita por diversas razões. O que

introduz a dimensão nacional na identificação territorial é o fato das pessoas não se pensaram

mais em termos locais isolados ou familiares, mas a partir de uma dimensão orgânica e

sentimental, articulada a partir de símbolos e experiências históricas a um determinado

território. Na obra clássica Nações e Nacionalismo, Ernest Gellner (1993), o nacionalismo

defende a congruência territorial e política do Estado Moderno com os limites de uma Nação.

Para o campo das Relações Internacionais, o nacionalismo constitui um tema ambíguo

e complexo. Por um lado ele permeia a ideia de um sistema internacional dividido entre

Estados nacionais, isto é, de Estados limitados e soberanos que corresponde a uma

determinada Nação. Mas, por outro lado, a gênese ou o entendimento da dinâmica nacional

muitas vezes fica em segundo plano. Isso é explicado por aquilo que Rob Walker (1993)

definiu como distinção entre políticas internas e relações externas às fronteiras territoriais dos

Estados soberanos; isto é, uma distinção entre “inside” e “outside” dos Estados.

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Endossando esta opinião, Griffiths e Sullivan (1997) observam que, com poucas

exceções10

, as Relações Internacionais é o estudo do que ocorre fora dos Estados a partir do

momento que estes são criados. Entretanto, ao equalizar Estado e Nação, a disciplina perde de

vista uma das forças mais explosivas tanto na ordem doméstica como na ordem global no

século XX .

O nacionalismo pode ser uma força relevante tanto para o domínio interno dos Estados

quanto para as relações entre os Estados. E, de fato, quando se estuda o ambiente interno dos

Estados, é revelado que não existe um único povo, mas muitos povos, muitas identidades

políticas, nenhuma das quais é fechada ou acabada. Nações são incompletas, plurais, repletas

de tensões e conflitos. Suas concepções não somente são imaginadas, mas como através do

processo de serem imaginadas que elas se materializam em maneiras contingentes e

contraditórias (PETTMAN, 1998).

A ideologia nacionalista considera a nação uma entidade antiga. Mitos fundadores

contam as origens comuns, muitas vezes em momentos de resistência à dominação de outros

povos. E frequentemente a nação traz junto também uma visão e um projeto de futuro, onde

todos os indivíduos compartilham o mesmo destino (PETTMAN, 1998). E este constitui um

dos paradoxos do nacionalismo: que a Nação remete a uma identidade coletiva autenticada

pelo passado distante, mas que é uma entidade essencialmente moderna apesar da referência

ao passado. Contudo, alguns autores, enquanto concordam que o nacionalismo seja uma

identidade política moderna, defendem a existência de uma continuidade ou conexões entre a

Nação e formas pré-nacionais.

Embates pela história, sobre aquilo que deve ser lembrado é evidente. Neste sentido,

os estados nunca conseguem silenciar completamente outros nacionalismos ou identidades

mais localizadas. Onde não conseguem sobrepujar outras visões, as elites dominantes

nacionalistas buscam contê-las (PETTMAN, 1998). Portanto, o nacionalismo marca o lugar

onde diferentes representações da Nação negociam umas com as outras.

Para Jan Jindy Pettman (1998) não existe nenhum critério fixo para o que constitui o

nacional e o que é o estrangeiro. Mas existem características do processo de se tornar

nacional. Nacionalismo, como todas as identidades políticas, é relacional. E o que torna a

política nacionalista tão poderosa é a maneira como a fronteira de pertencimento se torna o

10

Não significa que o estudo do nacionalismo esteja ausente das Relações Internacionais. Representantes da

Escola Inglesa, como James Mayall (1990), dão ênfase à sociedade civil e ao nacionalismo cívico.

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32

limite da comunidade moral, para além da qual o uso da violência organizada é plausível e

aceitável.

2.4.1 Abordagens do nacionalismo

Inicialmente, é fundamental fazer uma distinção analítica entre nação e nacionalismo.

Mesmo que sejam dois termos intimamente vinculados, são concepções distintas. O estudo da

nação, sua gênese e suas fronteiras, não é sinônimo do estudo do nacionalismo enquanto

componente de grupos políticos. O estudo do contexto histórico no qual surgiu a entidade

política denominada nação é peça fundamental, mas não é a única, no entendimento do

fenômeno dos nacionalismos.

Seguindo a definição de Anderson (2008) a nação é uma comunidade política

imaginada concebida como igualmente soberana e territorialmente limitada. Isto é, a nação é

concebida como uma comunidade de iguais baseada na camaradagem horizontal que faz com

que as diferenças de classes e status se tornem superficiais. Além do mais, a nação é a fonte

de legitimidade para a autoridade política nos Estados Modernos. De um modo geral, as

nações são constituídas a partir de orientações cognitivas, valores emocionais e símbolos que

servem como balizas da fronteira da coletividade. Para alguns autores, como Montserrat

Guiberneau (1996) e Immanuel Wallerstein (1991), estes marcos simbólicos, que estabelecem

as regras de quem está inserido e de quem está situado fora da coletividade, são construções

históricas relativamente recentes, mas que são vivenciadas como elementos primordiais e

ancestrais da vida coletiva. Deste modo, nações vivenciam uma constante tensão entre a

inclusão e a exclusão. (CHATTERJEE, 1993). Grupos excluídos, como minorias étnicas ou

imigrantes, geralmente apresentam visões alternativas da nação, reformulando o imaginário

nacional e expandindo as fronteiras internas11

.

Ao se conceituar a nação como uma comunidade imaginada contestada levanta-se a

questão de como certos juízos sobre o pertencimento nacional se tornaram hegemônicos. É

neste aspecto que o nacionalismo desempenha uma função primordial. O nacionalismo

pretende demarcar as fronteiras da coletividade e estabelecer os princípios da organização e

relações mútuas dentro da comunidade nacional. No presente trabalho, o nacionalismo pode

ser visto, de um modo geral, como uma ideologia política (GELLNER, 1993, SMITH, 2010).

11

Nesse contexto, é importante destacar que a inclusão nacional está relacionada, mas é analiticamente distinta,

do acesso à cidadania. O acesso à cidadania não é a mesma coisa que a inclusão nacional, pois um cidadão pode

coexistir com formas simbólicas de exclusão, que por sua vez afeta o acesso prático a direitos políticos e civis.

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Neste ponto é importante observar que o conteúdo dos movimentos nacionalistas não é

unicamente entendido pelo estudo da gênese das Nações. Existem outros elementos que

induzem a agenda política e as visões de mundo dos movimentos nacionalistas.

A teoria de Benedict Anderson (2008) explica a formação da nação e o surgimento do

pertencimento nacional. Mas Anderson não explora o conteúdo dos nacionalismos, exceto o

fato de que eles estão enraizados no passado e confiam numa concepção linear e abstrata da

história (JAFFRELOT, 2005). O que Anderson busca explicar são as condições que tornaram

possíveis o surgimento do sentimento de pertencimento nacional. O modelo teórico de

Anderson combina duas dimensões que podem ser sintetizadas pela emergência da imprensa e

pela peregrinação da elite política e da intelligentsia,12

cujos membros acabam adquirindo

uma consciência nacional num sistema centralizado e uniforme de educação.

Segue-se aqui a distinção feita por Cristophe Jaffrelot (2005) de que o estudo da nação

tem uma dimensão que é orientada para o Estado, ao passo que o nacionalismo é uma

ideologia (um “ismo”) que geralmente reivindica o controle da nação e/ou promove uma

identidade de um grupo em prejuízo de outro. Suas fundações estão enraizadas na identidade

política e cultural.

O presente estudo pretende explorar esta ambiguidade do nacionalismo (enquanto

produto político e fundo cultural) no caso da Irmandade Muçulmana no Egito. Por um lado,

apresentando um modelo que aborda o nacionalismo a partir da perspectiva das permanências

culturais nas sociedades, e, por outro, um modelo que considera a dimensão de estratégia dos

atores como fundamental na construção do nacionalismo (ROGER, 2001). No primeiro caso,

a Irmandade Muçulmana representa uma continuidade da dinâmica cultural do Egito e Oriente

Médio, uma reação destas sociedades face à expansão de um modelo de sociedade e política

europeia. No segundo caso, a história cultural do Islã seria apropriada e repensada por atores

sociais e políticos em um dado contexto da modernidade tendo em vista a competição política

intrínseca ao Estado Moderno.

2.4.2 Nacionalismo como ideologia

Entendido em termos de estratégia dos atores, o nacionalismo é assimilado a uma

construção ideológica que responde às expectativas individualizadas. Segundo Antoine Roger

12

A intelligentsia é o grupo composto por aqueles que receberam alguma forma de educação superior e que são

profissionais que dependem do diploma para exercer as suas funções, e que desdobram as categorias elaboradas

pelos intelectuais. Os intelectuais, por sua vez, recebem a modernidade e a partir dela tentam elaborar um novo

equilíbrio para o modelo de sociedade (Smith, 1971)

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(2001), há duas linhas de análises dentro desse campo. Uma que privilegia o princípio de

coesão e a outra que enfatiza o princípio de dominação.

Nas análises do princípio de coesão, as mobilizações identitárias são explicadas por

uma transformação complexa das culturas nacionais. Os autores que partem dessa premissa

defendem que os movimentos procedem de orientações subjetivas e que eles são um meio de

fundamentar a identidade da coletividade13

. O princípio de dominação, por sua vez, defende

que as mobilizações identitárias são entendidas como o resultado de uma escolha e como

meio que certos atores utilizam para se afirmarem na arena política. Dentro desta perspectiva,

alguns priorizam o nacionalismo como instrumento que permite aos grupos se posicionarem

em relação ao Estado e reivindicar uma reconstrução da ordem estabelecida.

2.4.3 Anthony Smith e a adaptação cultural

A mobilização nacionalista pode ser interpretada como uma reação automática e

espontânea à importação de modelos ideológicos estrangeiros (ROGER, 2001). A abordagem

difusionista vê o nacionalismo como uma ideologia surgida no Ocidente (sobretudo na

França, Grã-Bretanha e Alemanha) nos séculos XVIII e XIX, posteriormente difundido de

maneira indiferenciada pelo globo. Nesta perspectiva, as entidades nacionais mobilizadas

tardiamente não tiveram outra opção senão a de adotar ideologias concebidas por outros

povos14

. Nesta abordagem, o choque é privilegiado e não há espaço para a mistura cultural ou

política.

Contudo, o equívoco dos difusionistas é pressupor que a sociedade receptora seja uma

tabula rasa. Cristophe Jaffrelot (2005) argumenta que nenhum elemento no discurso

ideológico disponível no sistema internacional pode ser transplantado para um novo contexto

social sem mudanças consideráveis. Para resolver este impasse, teóricos do difusionismo

voltaram o seu olhar para a dinâmica das regiões que receberam estas influências, e passaram

a analisar como o impacto desta interação deu início a um processo de criação ideológica

através da redistribuição dos elementos das culturas locais. Com isso, o nacionalismo não é

simplesmente importado, mas modelado pela intelligentsia das sociedades sob domínio

político, cultural e também simbólico (PLAMENATZ, 1973; GREENFIELD, 1992).

13

Duas perspectivas são traçadas. A que descreve o nacionalismo como instrumento de adaptação cultural e a

que caracteriza o nacionalismo em termos de interação cultural. (ROGER, 2001) 14

Hans Kohn (1946), por exemplo, opõe um nacionalismo político e racional nascido no Ocidente com um

nacionalismo cultural e mítico desenvolvido na Europa Oriental, na Ásia e na África.

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Anthony Smith se aproxima desta explicação, mas possui características próprias. A

análise de Anthony Smith, ainda que compartilhe alguns pontos com a perspectiva

difusionista, pode ser entendida como uma sofisticação do argumento. A abordagem de Smith

aponta para um processo complexo que mistura a defesa de uma cultura “local” e a

apropriação de uma cultura alógena. Este processo se desdobra em modalidades diferentes

dependendo dos grupos sociais que compõem a coletividade nacional.

A partir da definição de nacionalismo como um “movimento ideológico para a

obtenção e a manutenção da autonomia, unidade e identidade de uma população, a qual

alguns de seus membros consideram como constituindo uma nação existente ou potencial15

(SMITH, 2010 p.9, tradução nossa), Smith argumenta que o nacionalismo nasceu da tensão

entre as sociedades tradicionais e a modernidade. Com o avanço do progresso técnico, os

valores ancestrais sobre os quais se edificaram as disposições sociais foram fragmentados.

Com isso, um novo modelo de sociedade toma forma a partir de novos códigos culturais e um

novo sistema de pensamento.

Para Smith (1971), a emergência de uma sociedade industrial deu origem a um

“Estado científico”, entendido como um modo de organização política que busca

homogeneizar, com fins administrativos a população estabelecida num território utilizando

métodos e técnicas científicos das mais modernas.

O Estado científico teve origem com a Revolução técnica e científica na Europa nos

séculos XVIII e XIX. Nas demais regiões do globo, este processo foi realizado com um

relativo atraso, induzido pela dominação colonial das potências europeias. Nestes países, o

Estado científico funcionou como solvente da ordem tradicional desmantelando as categorias

mentais estabelecidas pelo fundamento religioso. Todo um conjunto de visões sobre a

natureza e a sociedade se tornou obsoleto com o advento da modernidade e a construção de

uma nova narrativa histórica científica não mais vinculada à narrativa religiosa (SMITH, 1981

pp.93-95). Desta forma, a Revolução técnica e científica dá início a uma revolução intelectual

e emotiva ao relegar a religião à dimensão privada do indivíduo. A religião não mais

interferirá na esfera das relações sociais e políticas, domínio cada vez mais reservado aos

métodos científicos e racionais (SMITH, 1981).

Para a classe letrada ocorre uma situação de ambiguidades e contradições a respeito da

legitimidade: tanto a ordem antiga quanto a ordem moderna passam a ser vistas como fonte de

autoridade, sem que uma possa coexistir com a outra em harmonia. Para Smith, uma é a

15

An ideological movement for attaining and maintaining autonomy, unity and identity for a population which

some of its members deem to constitute an actual or potential “nation.”

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negação da outra. Jurar fidelidade ao primeiro implica “virar as costas” à segunda. A questão

do nacionalismo surge, então, não como uma simples resposta impulsiva contra a

modernidade, mas é derivada de respostas múltiplas ao problema da “dupla legitimidade”. Os

intelectuais, frente a este desafio, não apresentaram uma resposta homogênea e padronizada.

Smith elenca três estratégias utilizadas: a resposta neo-tradicionalista, a assimilacionista, e a

reformista.

A estratégia neo-tradicionalista se fundamenta na ortodoxia. Ela responde ao desafio

da modernidade contestando o valor e a eficácia do Estado científico. Ela considera a ciência

e a modernização como instrumento do pecado. Nesta perspectiva, a única verdade é aquela

da Verdade revelada, a qual o progresso puramente material da ciência não pode colocar em

causa. Neste aspecto, a religião fala um idioma distinto da ciência. Os neo-tradicionalistas

buscaram integrar certas técnicas e métodos vindos dos países europeus, mas filtrando-os de

modo a impedir a penetração de valores. “Sobre o plano social e político, ele emprega meios

de mobilização modernos, mas a serviço de objetivos tradicionais” (SMITH, 1971, p.242;

1981, p.96)

Mas esta postura traz diversas contradições. Entre elas está a dificuldade em articular

numa mesma doutrina as esferas espirituais e temporais. Essencialmente, a estratégia neo-

tradicionalista carrega um propósito de ordem religiosa: ela exige uma participação e a

observação de uma disciplina moral bem rígida. O objetivo é defender um dogma cuja rigidez

e ortodoxia exclui o aparato moderno e racionalista. Entretanto, a estratégia neo-

tradicionalista se apresenta sob uma ideologia secular. Ela não acha uma audiência a não ser

pela linguagem e técnicas modernas. Ela não reivindica a conversão ou um ato de fé em

particular; ela pretende abranger todos aqueles que pertencem à coletividade, quaisquer que

sejam as suas aspirações específicas. Ela proclama a salvação de todos aqueles que

historicamente e politicamente, a despeito de quem quer que sejam, façam parte da

coletividade.

A estratégia assimilacionista parte do princípio que o Estado científico tornou Deus

impotente, e deste modo, a autoridade deve ser transferida a única autoridade eficaz. Diante

de todos os desafios da modernidade, a religião só é capaz de dar respostas cognitivas e

emocionais. O Estado científico, por sua vez, fornece soluções sociais e práticas. Assim, os

intelectuais assimilacionistas defendem a adoção imediata da nova ordem, pois insistir na

tradição apenas agrava o quadro de atraso social e político destas sociedades em relação às

potências Ocidentais.

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37

Ironicamente, a perspectiva assimilacionista possui um caráter messiânico, no qual o

triunfo da Razão e da Ciência é venerado. O que permanece da tradição é residual de uma

estrutura em colapso e em erosão. Nesse processo, as diferenças culturais são cada vez mais

irrelevantes, abrindo espaço para um mundo cosmopolita e unificado. O projeto de

secularização da Turquia promovida por Kemal Atartuk se aproxima deste modelo.

Esta visão escatológica, de um progresso unilinear em direção a um futuro apoteótico,

é inspirada pelo exemplo do desenvolvimento das sociedades ocidentais, e não leva em

consideração a situação específica das sociedades tradicionais. Em virtude do processo de

racionalização, a ordem tradicional, independente de qual ela seja, o caminho a ser trilhado é

mais ou menos o mesmo. Mas esta utopia da razão mostra os seus limites, pois por mais

atraente que seja este projeto, um mundo não pode se alterar completamente do dia para a

noite (SMITH, 1981). O peso do passado não pode ser mudado por um ato de vontade de

uma determinada elite intelectual caso este projeto não encontre ressonância entre a

população.

Por fim, a proposta reformista busca reconciliar as duas fontes de autoridade, a Ordem

Divina e o Estado científico, com a finalidade de fundir as duas dimensões num sistema

harmonioso. Para Smith (1971) a modernidade fragmentou a totalidade da ordem tradicional.

Mas o reformista não busca reconstruir esta ordem, mas recuperar determinados elementos

que ajudam a construir uma nova ordem.

Mas a questão central para os reformistas é o problema da demarcação: até que ponto

a religião pode ser reformada sem perder a sua substância? Invariavelmente, no processo de

seleção daquilo que permanece, o conjunto da tradição se vê ameaçado. As elites tradicionais,

por sua vez, em sua maioria criam obstáculos para a reforma, não somente por questões

dogmáticas, mas pelo interesse em manter uma determinada distribuição de poder.

Frente a estas dificuldades, os reformistas tentam conciliar as duas fontes de

autoridades em um “plano superior”. Em oposição ao assimilacionista, o reformista propõe a

visão de Deus como ordenador da História: o Estado científico é resolução do desenho divino

de Deus. Este passo, esta “historicização” do âmbito divino, resulta na racionalização da

religião. Os traços supersticiosos e rituais arcaicos desaparecem, e somente os elementos que

resistem ao “teste da razão” podem se sustentar (SMITH, 1971, p.246). O projeto reformista

busca, então, elementos na tradição que podem auxiliar a constituição de um conjunto

identitário mais maleável, com a intenção de “preservar um conjunto de valores étnicos

sagrados no meio do mundo profano” (SMITH, 1981).

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Esta volta ao passado é entendida, por Smith, como movimento revivalista. Ele não

propõe um retorno ao dogma rígido dos tempos antigos nem reivindica a observação de

preceitos divinos estritos. O olhar ao passado não é uma fuga do mundo moderno, mas um

meio de alavancar uma nação de seu estado de imobilidade em direção ao desenvolvimento

social. O revivalismo, deste modo, se prende à história mais do que à Revelação Divina. O

revivalismo permite em forjar o mito de uma Idade de Ouro da nação, um período histórico

que serve de bússola identitária no decorrer dos séculos. Mas, ao “historicizar” a tradição

religiosa, os revivalistas acabam por transformar a religião numa criação da sua comunidade.

(SMITH, 1981) A coletividade não é mais o veículo de seu valor, ela é a própria fonte.

Para utilizar a teoria de Smith sem risco de deturpar o seu conteúdo analítico, é preciso

identificar as complexidades de seu posicionamento epistemológico. A análise é feita sobre

representações intelectuais e de construções simbólicas. Uma observação mais detida permite

notar que Smith concede uma atenção especial às evoluções estruturais. Não se pode catalogá-

lo entre os autores que veem o nacionalismo como produto de especulações intelectuais

contingentes e indeterminados. As orientações ideacionais que conduzem ao nacionalismo

não são simples reflexos dos interesses materiais, mas elas também não surgem por geração

espontânea. O fator que está nas origens do processo é a modernidade (SMITH, 1981).

Todavia, o nacionalismo não é a consequência direta de uma mutação econômica e

social, ele resulta das necessidades que obrigam os atores a adaptarem suas categorias mentais

e suas representações subjetivas a esta mutação. Por outro lado, se o nacionalismo é um

conjunto de representações, o quadro econômico e político particular de uma época limita o

horizonte de possibilidades. Os indivíduos estruturam suas escolhas em função de

representações da sociedade que prevalecem, mas somente aquelas percepções que entram em

consonância com as forças e necessidades políticas e econômicas da realidade histórica

podem moldar as escolhas dos indivíduos (SMITH, 1981).

Um aspecto que Smith não desenvolve na sua teoria é a relação de alteridade em

relação àquele quem introduz o Estado científico. Além do mais, ele não aprofunda a

discussão sobre o reformismo e revivalismo, pois ambos os movimentos são motivados pela

ansiedade de adaptar a tradição ao espírito de seu tempo.

2.4.4 Quadro analítico de Anthony Smith

Embora Smith reconheça que nacionalismo, como ideologia e movimento, data do

final do século XVIII, o sentimento nacional, em sentido mais amplo, pode ser encontrado em

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épocas mais antigas. A ideia de povos sendo divididos pelo caráter nacional e possuindo uma

identidade comum se tornou difundido entre a classe educada só na era moderna. Mas para

Smith, é possível achar em períodos mais antigos paralelos à ideia de identidade nacional.

Deste modo, Smith confere maior continuidade entre época pré-moderna e modernidade.

Ao mesmo tempo Smith se afasta dos perenialistas ao considerar as transformações

advindas com a modernidade e os efeitos desta nas unidades básicas de lealdade humana.

Smith não ignora as mudanças das unidades coletivas, mas estas ocorreram dentro de um

quadro pré-existente de lealdades coletivas e identidades (SMITH, 1986).

O argumento central de Smith é que não somente muitas nações e nacionalismos

tiveram bases de ethnies pré-existentes, como também a “edificação” de uma nação hoje

necessita a criação e cristalização de componentes étnicos, sem os quais cria um grande

obstáculo para a construção da nação (SMITH, 1986). Desta forma, a teoria de Smith parece

ser uma via média entre os modernistas e os perenialistas, tentando equilibrar a novidade do

nacionalismo como a permanência de elementos pré-modernos. Esta abordagem permite

desenhar diferentes padrões de formação da nação, de acordo com o grau no qual um mosaico

étnico persistiu numa área relevante nas vésperas da era do nacionalismo.

Mas quais são os elementos que permitem identificar nação, nacionalismo e ethnie

para Anthony Smith? Primeiramente, o nacionalismo é um movimento e ideologia modernos

que podem ser sumarizados, de acordo com Smith em seis tópicos: 1) O mundo é dividido em

nações, cada uma com suas próprias características, história e destino. 2) a nação é a única

fonte de poder político. 3) A lealdade à nação sobrepuja as outras lealdades. 4) Para ser livre,

cada indivíduo precisa pertencer a uma nação. 5) cada nação requer autonomia. 6) A paz e a

justiça global requerem um mundo de nações autônomas. (SMITH, 2010). É importante

observar que esta síntese é um tipo ideal e não uma descrição dos elementos comuns. Mas

mesmo assim, este tipo ideal apresenta problemas para enquadrar a ideologia fascista e a

nazista, por exemplo.

A nação, por sua vez, é uma comunidade humana residindo no que é percebido como

pátria, e tendo mitos comuns e uma história compartilhada, uma cultura pública distinta, e leis

e costumes comuns para todos os membros. Em contraste, o conceito de ethnie define uma

comunidade humana conectada a um território, possuindo mitos de origens, memórias

compartilhadas, um ou mais elementos de cultura compartilhada e uma solidariedade pelo

menos entre as elites. Smith reconhece que não há um desenvolvimento obrigatório de toda

ethine em uma nação e que as ethnies não são imutáveis e eternas, e nem que toda nação

deriva de uma ethnie. O argumento de Smith é mais abstrato e impreciso, afirmando que

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geralmente as nações possuem um passado étnico importante, o que não implica dizer que as

nações são culturalmente homogêneas, e sim que há um núcleo étnico que caracteriza a nação.

Tabela 2 - Atributos das ethnies e nações

Ethnie Nação

- Nome próprio

- Mitos comuns de ancestralidade, etc.

- Memórias compartilhadas

- Diferenciação cultural

- Associação afetiva a um território

- Alguma solidariedade, pelo menos entre

as elites.

- Nome próprio

- Mitos comuns

- História compartilhada

- Cultura pública distinta

- Residência numa pátria concebida e

imaginada

- Leis e costumes comuns. Fonte: Adaptado de Smith, 2010, p.14.

Portanto, Smith elenca seis elementos que tornam possíveis a identificação de uma

ethnie e a comparação desta com uma nação moderna. São eles: um nome coletivo, um mito

comum de descendência, uma memória compartilhada, uma cultura distinta compartilhada,

associação com um território específico e um sentimento de solidariedade pelo menos entre as

elites.

O nome coletivo é a marca identificadora da ethnies no registro histórico Geralmente,

nomes coletivos são signos e emblemas de comunidades étnicas, pelos quais eles se

distinguem e sumarizam as suas “essências”. A qualidade mítica do nome é mais importante

no estudo das ethnies do que o estudo das suas origens e práticas.

O mito comum de ascendência é elemento primordial da etnicidade e no complexo de

significados que perpassa o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Os mitos de

origens e de descendência fornecem os meios da locação coletiva no mundo. Os mitos

emergem e experiências coletivas de gerações sucessivas. Sem estes mitos, uma comunidade

étnica não pode se definir ante a si mesmo e perante aos outros, e não pode direcionar uma

ação coletiva.

Uma história compartilhada é o terceiro elemento elencado. Uma ethnie necessita de

memórias compartilhadas. O sentimento de uma história comum une gerações sucessivas,

cada uma com suas próprias experiências que são adicionadas ao repertório comum. As

experiências históricas fornecem formas para experiências posteriores, canais e matriz para as

suas interpretações. Não importa a autenticidade destes registros históricos, mas sim o sentido

que eles dão a uma comunidade. E as disputas das interpretações da história chegam a

fortalecer a consciência étnica em uma comunidade, ao sugerir aos debatedores um destino

comum fundado num passado compartilhado.

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Uma cultura distinta compartilhada é o quarto. Além dos mitos e das memórias

coleivas, uma ethnie é diferenciada por um ou mais elementos da cultura que ajuda a atar

membros de uma comunidade e a separar de estrangeiros.

O quinto elemento é a associação a um território específico: A ethnie possui laços com

um território em particular. Eles podem residir neste território, ou pode ser apenas uma

memória histórica. A ethnie não necessariamente precisa ter a possessão física do território

que reivindica como o seu; o que importa é o centro geográfico simbólico que confere um

caráter sagrado ao território.

Por fim há o sentimento de solidariedade. Uma ethnie para Anthony Smith não é

somente uma categoria de população com um nome comum, mitos de origem, e com uma

associação territorial e cultural. É também uma comunidade que possui um sentimento

definido de solidariedade que geralmente encontra uma expressão filantrópica institucional.

Na prática, o sentimento de solidariedade e cooperação varia consideravelmente. Mas numa

ethnie, o sentimento de solidariedade precisa mobilizar pelo menor o estrato social educado

que pode se comunicar aos demais estratos e regiões.

Estas categorias funcionam como tipos-ideais de nação e ethnie e não necessariamente

como denominadores comuns. Apesar de pertencerem à mesma categoria de fenômenos,

nação e ethnie possuem diferenças importantes. As nações se diferenciam pelo fato de possuir

costumes, leis e uma cultura pública distinta. Além disso, o tipo ideal de nação ocupa o

território com o qual possui algum vínculo. A ethnie, por sua vez, não precisa de uma cultura

pública comum, mas apenas um atributo cultural compartilhado, ao passo que a cultura

pública é fundamental para a nação. Contudo, Smith reconhece que é um erro conferir um

caráter evolutivo da ethnie para a nação. Afinal de contas, no mundo contemporâneo é

possível encontrar muitas ethnies cruzando os territórios nacionais.

2.4.5 John Breuilly e o papel do Estado Moderno

Os autores que abordam o nacionalismo sob a perspectiva da estratégia política

consideram que o estabelecimento do Estado Moderno foi o determinante da eclosão do

nacionalismo. Porém, estes autores consideram que os nacionalismos não procuraram

somente obter a autoridade pública, mas também pretendiam reformar as estruturas

institucionais estabelecidas.

John Breuilly (1993; 2000) está entre estes autores que consideram a modernidade

crucial para o surgimento das nações, rejeitando uma análise que leva em consideração o

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passado mais remoto das sociedades. O aspecto central de sua análise é desenvolvimento do

Estado soberano e delimitado por fronteiras como parte de um sistema de Estados em

competição. Este processo, por sua vez, teve grande impacto para as próprias sociedades no

momento em que as funções sociais principais (além de políticas, econômicas e culturais)

concentraram-se em instituições especializadas. Enfim, John Breuilly entende o processo de

modernização como a modernização política.

Deste modo, a perspectiva teórica de Breuilly enfatiza as transformações da natureza

do poder, realçando a produção e aceitação da política nacionalista, e como este cenário induz

a alteração do caráter intelectual das ideologias uma vez que estas entrem no cenário político

(BREUILLY, 2000). Ou seja, “a menos (e até) que essas ideias se “fixem”, por se tornarem

parte de um movimento político que tem que negociar com governos e granjear apoio na

sociedade, elas tendem a ser vagas e descontínuas” (BREUILLY, 2000, p.170).

Deste modo, a ação política nacionalista tende a criar um conjunto mais coerente de

doutrinas e sentimentos, e a tornar mais fácil avaliar-lhes a importância. As exigências da

ação política, seja ela de movimentos oposicionistas ou dos governos, disciplinam as ideias e

as direcionam para objetivos práticos, assim como canalizam sentimentos difusos numa

direção particular. Para Breuilly (2000), pode-se ter uma medida da importância do

nacionalismo indagando quanto apoio esses movimentos políticos conseguem granjear em sua

sociedade e quão poderoso ele é, ao passo que é notoriamente difícil avaliar a importância das

ideias ou sentimentos “em si”. Portanto, Breuilly se afasta da abordagem de Anthony Smith

ao considerar o estudo de aspectos culturais um exercício vago. Breuilly chega à conclusão de

que o estudo da dimensão política é a mais adequada para se entender o nacionalismo, pois

sem a modernização estatal, o nacionalismo é simplesmente uma retórica que fornece poucos

indícios quanto ao verdadeiro caráter dos movimentos. Neste caso, eles ficam dependentes do

desenvolvimento anterior de ideias nacionalistas em outras sociedades. (BREUILLY, 2000).

Em última instância, o nacionalismo é um “movimento e uma ideologia parasita”

moldado por aquilo a que se opõe. Uma sociedade “privada” na qual os nacionalistas podem

se identificar como um grupo cultural, e um Estado público o qual os nacionalistas podem

reivindicar em nome deste grupo cultural, são condições necessárias para o desenvolvimento

do nacionalismo como uma forma efetiva e específica de prática e ideologia política

(BREUILLY, 1993). O nacionalismo além de promover os interesses da oposição política é

reflexo da natureza do conflito ao se constituir a partir de certos atributos culturais e tradições

institucionais (BREUILLY, 1993). Ou seja, o nacionalismo não é a mera expressão da

nacionalidade, mas surge quando faz sentido político para a oposição reivindicar a

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representação da nação. Por um lado, o nacionalismo não é um movimento político irracional

enraizado num estado emocional particular. Mas igualmente, não basta o pragmatismo. É o

processo que leva grupos a buscarem o controle do Estado que dá origem ao nacionalismo.

Por tanto, a ideologia nacionalista não é nem a expressão de uma identidade nacional

nem uma ficção inventada pelos nacionalistas para motivos políticos. A ideologia surge da

necessidade de conferir sentido a determinado arranjo político e social. Mas esta necessidade

é ela mesma moldada pelas tradições intelectuais e pelo conjunto de respostas que os quadros

intelectuais suscitam. Neste sentido, a ideologia fornece aos nacionalistas uma causa na qual

além deles próprios, muitos outros acreditam, incluindo os oponentes, os quais compartilham

pressupostos e valores intelectuais similares. Deste modo, é possível perceber como a

Irmandade Muçulmana, no decorrer do século XX, ostentou uma agenda política que, ainda

que fizesse frente ao regime, continha pressupostos políticos e intelectuais compartilhados

pela liderança política do Egito.

2.4.6 Quadro analítico proposto por John Breuilly

Mas qual a definição que Breuilly confere ao termo? (1993) Breuilly não concebe uma

“Grande Teoria do nacionalismo”, mas opta por observar o fenômeno em sua diversidade, a

partir de uma tipologia que enquadra as diversas manifestações. De um modo geral, o

nacionalismo diz respeito a “movimentos políticos que buscam ou possuem o controle do

estado e justificam estas ações com argumentos nacionalistas”.16

(BREUILLY, 1993, p.2,

tradução nossa) Estes argumentos, por sua vez, são doutrinas políticas constituídas a partir de

três premissas básicas. A primeira profere que existe uma nação com um caráter explícito e

particular. A segunda premissa prevê que os interesses e os valores desta nação têm prioridade

sobre todos os outros interesses e valores. Por fim, a terceira premissa versa que a nação

precisa ser independente na medida do possível, o que geralmente requer a soberania política

(BREUILLY, 1993). Portanto, Breuilly não desconsidera o emprego das ideias para a

identificação de movimentos nacionalistas, mas são as políticas, mais do que a ideologia, que

têm a primazia na análise (BREUILLY, 1993).

A partir desta definição de nacionalismo, John Breuilly cria uma tipologia sustentada

em concebe dois aspectos. O primeiro considera a natureza do Estado a que os movimentos se

opõem ou que controlam. Neste caso pode ser Estados nacionais ou Estados não nacionais. A

16

“(...) political movements seeking or exercising state Power and justifying such action with nationalist

arguments”.

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44

partir destes dois casos, Breuilly propõe uma segunda divisão assentada em três categorias de

objetivos políticos: separação, reforma e unificação.

Tabela 3 – Classes de nacionalismos

Oposição a Estados não

nacionais

Oposição a Estados

nacionais

Separação Húngaros, gregos,

nigerianos

Bascos, Ibos

Reforma Turcos, japoneses Facismo, Nazismo

Unificação Alemães, italianos. Arabismo, Pan-

Africanismo

Fonte: Adaptado de Breuilly, 1993, p.9

Por outro lado, Breuilly distingue três funções diferentes que as ideias nacionalistas

podem exercer: são as funções de coordenação, de mobilização e de legitimidade. Por

coordenação entende-se que as ideias nacionalistas são usadas para promover interesses

comuns entre elites que, afora isso, opõem-se ao Estado existente a partir de interesses

bastante distintos. Por mobilização, ele se refere ao uso de ideias nacionalistas para gerar

apoio para o movimento político. Por fim, a legitimidade é o uso de ideias nacionalistas para

justificar as metas do movimento político, tanto em relação ao Estado a que ele se opõe

quanto em relação a poderosos agentes externos (BREUILLY, 2000).

Portanto, John Breuilly está preocupado principalmente com movimentos políticos,

principalmente os oposicionistas, que buscam ganhar ou exercer o poder estatal. Desta forma,

o nacionalismo é uma forma de política classificada a partir da relação que o movimento

mantém com o Estado. Mas apesar deste fenômeno estar vinculado às elites políticas, de

forma alguma os outros setores da sociedade são desconsiderados. Pois mesmo que os

movimentos nacionalistas não tenham apoio popular ativo, eles reivindicam a representação

de toda a nação. Neste sentido, as políticas nacionalistas são sempre políticas de massa. E, de

fato, em muitos casos, o nacionalismo envolve a organização de apoio popular para objetivos

políticos ou o controle de grupos amplos.

É difícil de identificar os fatores que possibilitam os políticos forjarem ligações com

amplos setores da população que até então não estavam envolvidos na política. Pelo processo

de mobilização, Breuilly (1993) julga as mudanças que tornaram possíveis aos políticos

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estabelecerem contato com uma ampla parte da população ou criarem a expectativa para

algum tipo de representação política. Isso quer dizer que a doutrina nacionalista deve ser

considerada fundamental na análise, mas não constitui a base de classificação dos

movimentos nacionalistas. Teoricamente, os movimentos nacionalistas combinam objetivos

políticos contraditórios com outras ideologias mobilizadas para sustentar o argumento

nacionalista. Mas o pesquisador deve respeitar a maneira como os movimentos articulam as

ideias e apreender as ambiguidades e contradições do movimento estudado. Neste aspecto, cabe

perguntar se o “conteúdo Islâmico” da Irmandade Muçulmana seria marginal na classificação da

Organização em um movimento nacionalista.

Em suma, Breuilly defende que o nacionalismo deve ser entendido como uma forma

de política que deve ser compreendida em termos de contextos políticos particulares. O

Estado Moderno molda o movimento nacionalista e fornece os objetivos da política desses

movimentos, vinculados ao exercício do poder de um Estado (BREUILLY, 1993).

2.5 Esquema analítico proposto para o exame do conteúdo nacionalista da Irmandade

Muçulmana

Concluindo o capítulo teórico, apresenta-se um esquema que orientou a pesquisa

sintetizando a discussão teórica da Escola Inglesa e das abordagens do nacionalismo. Buzan

divide a sociedade internacional em dois componentes. O primeiro é a faceta que abarca a

divisão da sociedade internacional em estados, concebido como a parte “contratual” da

sociedade internacional. O segundo componente é o conteúdo comunitário, que diz respeito às

identidades regionais e locais, assim como às tradições culturais coletivas. No primeiro caso,

o domínio vinculado é o interestatal, sendo que o segundo caso abrange os domínios inter-

humanos (entre indivíduos) e transnacionais (entre organizações não-estatais para além das

fronteiras dos estados), domínio dos valores, costumes e identidades. Tendo isto em vista,

Buzan argumenta que nos casos onde os âmbitos contratuais e comunitários não coincidem,

há a emergência de uma tensão entre os domínios. Buzan e Gonzalez-Pelaez afirmam que no

Oriente Médio estas duas dimensões não coincidem, ou seja, Estado e identidade não são

congruentes, o que enfraquece os estados e cria uma ordem frágil.

A partir desta observação, é proposta a utilização de duas abordagens do nacionalismo,

cada uma explorando uma dimensão da sociedade internacional, isto é, o domínio do Estado-

Moderno e o domínio da tradição cultural regional, para verificar a qualidade nacional ou

transnacional da Irmandade Muçulmana.

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Tabela 4 – Esquematização teórica

Sociedade Internacional

Composição Funcional, contratual. Comunitária; identitária

Domínios relacionados Interestatal Transnacional e Inter-

humano

Abordagens do

nacionalismo utilizadas

John Breuilly Anthony Smith

Fonte: Criado pelo autor

A compreensão da Irmandade muçulmana enquanto movimento nacionalista só faz

sentido se for analisada em referência à história da nação egípcia, embora estes dois estudos

envolvam atividades analíticas distintas. A Irmandade surge no contexto da tensão existente

entre a Grã-Bretanha e a região do Oriente Médio. Herdeira de uma tradição intelectual que

remonta ao século XIX, a Irmandade Muçulmana transitou, em seus primeiros anos, entre os

modelos neo-tradicionalistas e Reformistas propostos por Smith. Contudo, o que se observa

no decorrer das décadas seguintes é a gradual mudança das prioridades do grupo. A partir da

década de 1950, sobretudo a partir da revolução dos Oficiais Livres, para a Irmandade

Muçulmana, o embate explícito entre “Ocidente” e o Mundo do Islã é substituído pelo atrito

com o governo nacional. Neste processo, a Irmandade adota gradativamente um conteúdo

nacionalista circunscrito ao Egito, pois ainda que mantivesse fortes ligações com “filiais” da

Irmandade em outros países, a realidade social e política do Egito favoreceram, e até

induziram, o grupo adotar uma postura política circunscrita às fronteiras nacionais.

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3 PERSPECTIVA DE LONGA DURAÇÃO

Este capítulo está comprometido com uma perspectiva mais amplo que contempla o

processo do encontro do modelo de sociedade internacional europeia com a região do Oriente

Médio, com ênfase no princípio do nacionalismo. É observado que os séculos XIX e XX

foram momentos de ruptura, mas também um período de adaptação da tradição intelectual e

política do Oriente Médio à nova Ordem Mundial, sendo que os reformistas da tradição

intelectual do Islã possuíram um lugar especial nesta história. O capítulo conclui que a

heterogeneidade das manifestações da fé islâmica ao longo dos séculos permitiu a emergência

de movimentos reformistas plurais.

Este capítulo se inicia discutindo a hipótese de Buzan e Gonzalez-Pelaez (2009) de

que o Islã seria uma instituição primária no domínio transnacional no Oriente Médio.

Primeiramente, questiona-se a noção do Islã enquanto um conjunto de práticas, normas e

valores que orientam as ações dos atores no ambiente transnacional no Oriente Médio. O Islã

possui diversas leituras e significados que dependem de quem o interpreta e das condições nas

quais a interpretação é realizada, (GILSENAN, 1980) o que problematiza a noção do Islã

como uma instituição primária. Obviamente, a fé islâmica teve um papel fundamental na

história regional, mas a diversidade na forma como ela é sentida não permite enquadrá-la

numa categoria generalizante para os indivíduos e os grupos.

O segundo ponto, é separar a dimensão estritamente religiosa do Islã das dimensões

políticas e sociais (HALLIDAY, 2003). Neste sentido, é enganoso associar as pessoas que

professam a fé islâmica como pré-determinadas a certas ações e comportamentos. Isto é, o

fato da maioria das pessoas no Oriente Médio professar a fé islâmica não é indício de que elas

defendam um determinado arranjo político. Esta separação é importante, pois evita que o

pesquisador caia na tentação de explicar fenômenos sociais e políticos unicamente pelo

determinismo cultural.

Por fim, é essencial compreender que os indivíduos e grupos que defendem uma

concepção islâmica de Estado não correspondem à maioria da população na região, o que

problematiza a noção de Islã (em sua dimensão política) como instituição primária no

domínio transnacional. Certamente, o Islã Político ocupa um lugar importante na dimensão

transnacional no Oriente Médio, mas não é um aspecto consensual entre a população da

região. O presente estudo se restringe à compreensão de um grupo particular, a Irmandade

Muçulmana, tendo ciência de que ela não é representativa da população do Oriente Médio

nem do Islã.

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3.1 Discussão acerca do termo “movimento islamista”

As últimas décadas testemunhou o crescimento dos movimentos islamistas, muitos dos

quais são renovações de movimentos já existentes, ao passo que outros são bastante recentes

(LAPIDUS, 2001). Da perspectiva da história, estes movimentos dialogam com precedentes

histórico-culturais, os quais são reproduzidos, reconstruídos ou substituídos. Mas quando se

fala em movimentos islamistas, ao o quê está sendo referido?17

Qual a precisão e o valor

analítico do termo? O próprio termo Islamismo é polêmico e não há um consenso sobre o seu

significado. Mas, para além da preferência analítica do pesquisador, o termo islamista é um

neologismo que não encontra raízes nas tradições mais antigas das sociedades muçulmanas,

nem é derivado do discurso teológico tradicional. Mas, hoje, o termo tornou-se popular na

linguagem midiática e acadêmica (MARTIN; BAZERGAR, 2010).

Entender uma tradição religiosa viva como o Islã não é somente identificar os

elementos primordiais da Escritura Sagrada. Mas envolve apreender práticas e conceitos que

informam e, simultaneamente, são informados pelas diversas dimensões das sociedades

humanas. (MARTIN; BAZERGAR, 2010). Diante disso, a questão que se coloca é se o termo

islamista é um conceito útil para entender estes movimentos e suas reivindicações mais

diversas.

Grahan Fuller (2004) oferece uma definição útil de islamista para a presente

dissertação: “um islamista é aquele que acredita que o Islã, enquanto um corpo de fé tem algo

importante a dizer sobre como a política e a sociedade deveriam ser ordenadas no Mundo

Muçulmano contemporâneo, e que busca implantar de alguma maneira esta ideia.”18

(FULLER, 2004, p.xi, tradução nossa)

Para Fuller (2010), as políticas dos islamistas apresentam manifestações distintas –

pacífica, violenta, democrática, autoritária, pragmática e ideologicamente rígida – sem que

nenhuma delas caracterizem um movimento islamista. A presente dissertação não realiza um

estudo comparado com a finalidade de estabelecer generalizações sobre tais movimentos.

Mas, trata-se de um estudo de caso que observa mais detidamente a trajetória histórica da

Irmandade Muçulmana com ênfase no aspecto do nacionalismo. Embora a noção de

17

Neste trabalho não será discutido a noção de fundamentalismo por causa das restrições analíticas como aponta

Nikki Keddie (1986). A própria ideia de movimentos islamistas já é um conceito contestado e com diversas

interpretações. 18

Islamist is one who believes that Islam as a body of faith has something important to say about how politics

and society should be ordered in the contemporary Muslim World and who seeks to implement this Idea in some

fashion.

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movimento islamista seja crucial, o objeto se restringe ao “conteúdo nacional” da Irmandade

Muçulmana.

Fuller (2004) observa que, traduzidos para o imaginário Ocidental, o Islamismo se

comporta como nacionalismo e como resposta ideológica ao desafio do domínio pelas

Potências ocidentais. Os nacionalismos étnicos, tais como o árabe e o turco seriam

importantes, mas no contexto atual, o chamado islâmico adquire uma força maior. Neste

aspecto em particular, o presente trabalho se distancia de Fuller (2004) para adotar uma

postura mais critica, insistindo no argumento que a relação entre Islã e nacionalismo teve

manifestações distintas e até mesmo contraditórias para a própria Irmandade Muçulmana.

3.2 Memória Coletiva e Legitimidade.

A história é um meio de estimular uma comunidade idealizada. Tanto os nacionalistas

como os islamistas usam o passado para sustentar as suas ações no presente. Os nacionalistas,

por exemplo, defendem que a sua nação existe desde sempre em um território delimitado. Os

islamistas, por sua vez, veem o passado como o período áureo que serve de referência às

sociedades de maioria muçulmana hoje. Neste aspecto, as eras de ouro perdidas se

transformam em ferramentas eficientes para a motivação de pessoas no presente (BURKE,

2000).

Para Anthony Smith (1986), não pode haver identidade sem memória (ainda que

seletiva), sem um objetivo coletivo e sem o mito. Identidade e destino são elementos

necessários no conceito de nação. Mas como é possível que nações contenham elementos

étnicos pré-modernos se as comunidades étnicas, bem reconhecidas na distância, parecem se

dissolver diante dos olhos do pesquisador assim que ele aproxima o olhar? É possível que o

caráter étnico esteja somente nos olhos do observador, que tudo é situacional, matéria de

contexto e tempo? Smith argumenta que, a despeito das mudanças, os processos da

modernidade não obliteraram as identidades e culturas formadas em períodos pré-modernos.

Algumas culturas se transformaram, outras foram destruídas, outras se amalgamaram e

reviveram. Enfim, o conteúdo destas identidades e culturas podem ser adaptar às novas

circunstâncias, ao serem articuladas com novos significados e funções.

Portanto, o importante não é o passado reconstituído pelos pesquisadores, mas

a memória do passado que sobrevive na consciência coletiva. Contudo, é preciso destacar que

as memórias coletivas não são estáveis. Elas variam significativamente dependendo da época

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e do lugar, e grande parte das sociedades não possui uma narrativa sobre seus passados.

(MACMILLAN, 2010). Consequentemente, é importante situar historicamente a Irmandade

Muçulmana, para entender quais os seus anseios e como ela resgata o próprio passado.

O problema do resgate do passado é que a memória não é somente seletiva, como

também é bastante maleável. Nos anos 1920, o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990)

cunhou o termo “memória coletiva”. Segundo o autor, “quase sempre a memória coletiva,

sobretudo a memória coletiva significativa, é entendida como aquela que expressa alguma

verdade eterna ou essencial sobre a coletividade quase trágica”. Neste sentido, a memória

coletiva tem mais a ver com o presente do que com o passado. Esta memória coletiva é, em

muitas ocasiões, a competição entre as narrativas sobre os símbolos centrais do passado.

Partindo-se da premissa de que a memória social é seletiva, faz-se necessário

observar como os mesmos variam de lugar para lugar, ou de um grupo para o outro, e como se

transformam na passagem do tempo. Pois, como lembra Peter Burke, “As memórias são

maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os

limites dessa maleabilidade.” (BURKE, 2000, p.73).

Na história contemporânea do mundo árabe dois discursos diferentes surgiram ao

mesmo tempo, muitas vezes interagindo e algumas vezes até interligados, permanecendo,

porém, como duas vertentes claramente distintas. Um desses discursos destaca o papel do Islã

e de suas tradições religiosas, realçando a influência massiva do passado remoto sobre as

sociedades árabes atuais. O outro, geralmente chamado de Renascimento Árabe ou Nahda19

, –

surgiu no século XIX, unindo cristãos, muçulmanos e judeus que falavam a língua árabe e que

sentiam pertencer a uma única cultura a despeito da fé que professavam. Portanto, diante

desta diversidade de registros históricos, é interessante realizar um breve estudo em uma

perspectiva mais ampla das tradições que dizem respeito ao lugar da comunidade dos fieis nas

organizações políticas no Mundo Árabe.

3.3 O Islã transnacional e o Islã local.

Em sua origem, o Islã foi tomado como a revelação em árabe da mensagem divina

para os povos árabes (LAPIDUS, 2001). Mesmo após a conquista islâmica do Oriente Médio

no século VII, a elite conquistadora árabe tomou o Islã como a religião de um estrato superior

19

Al-Nahda (que significa despertar ou renascimento em árabe.) foi um movimento cultural do século XIX que

buscava implantar uma reforma intelectual e modernizar as sociedades árabes. Suas origens remetem ao Egito, e

posteriormente se difundiu a outras regiões árabes do império Turco Otomano, principalmente a região que hoje

é a Síria e o Líbano.

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51

dominante. Foi somente no reino de Omar II (717-721) que o conceito de Islã como uma

religião para todos os povos do império começou a tomar forma, e desta forma o Império

Islâmico passou a ser associado a uma entidade multitribal e multicultural.

Neste momento, o Islã uniu a maioria dos grupos e indivíduos numa sociedade de

grande escala, denominada Umma, entendida no modo mais amplo como a “comunidades dos

fieis” (LAPIDUS, 2001). A Umma, porém, não obliterou as unidades menores, como os clãs e

facções religiosas, que mantiveram a sua identidade e sua capacidade de ação autônoma.

Desta forma, a unidade em grande escala do Islã nunca eliminou as unidades menores, mas

promovia uma relação dialética de cooperação e de lealdades concorrentes.

O Mapa 1 mostra que até 1700 as fronteiras políticas do chamado Mundo Muçulmano

ainda eram consideravelmente flexíveis. Além disso, a expansão das fronteiras rumo ao

coração da África e da Ásia fez com que o Mundo Muçulmano extrapolasse em muito o seu

núcleo de origem árabe no Oriente Médio. Invariavelmente, esta amplitude territorial traria

enormes consequências para este Mundo Muçulmano: os imperativos geográficos junto com

as diversidades culturais e sociais de cada região contribuíram para a fragmentação desta

unidade.

Na verdade, se houve algum consenso no Mundo Muçulmano, foi no período de

Maomé e, posteriormente, dos Califas Bem-Guiados (Rashidun) (632-661). Mas durante o

reinado do quarto califa Ali surgiram dissidências a respeito da sucessão da liderança do

império. Com a morte de Ali, a grande cisão no Mundo Muçulmano entre sunitas e xiitas foi

estabelecida. Contudo, a congruência entre território político e território islâmico foi garantida

pela centralização promovida pelo califado Omíada (661-750), ainda que movimentos de

contestações não tivessem desaparecido do cenário político. Mas logo quando uma nova

dinastia, a dos Abássidas (750-1258), subiu ao poder, momento considerado o ápice cultural

do califado, já era perceptível o processo de fragmentação política. Gradativamente, as

regiões distantes se tornaram autônomas, ainda que estivessem teoricamente submetidas ao

califa de Bagdá.

Contudo, a imigração de novos povos, além daqueles que já viviam na região, acelerou

o processo de diversificação política e cultural dentro do califado. E no ano 1000, o era uma

figura mais simbólica do que uma verdadeira liderança política. A invasão mongol no século

XIII e a tomada de Bagdá pelos exércitos mongóis selou o destino da instituição política do

califado. Posteriormente, ela seria mantida de forma simbólica, até que sultões Otomanos já

na idade Moderna reivindicaram o título de califa. Contudo, o título de califa tinha mais como

desígnio a legitimação e o fortalecimento do poder do sultão do que a

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representação da unidade do Mundo Muçulmano há muito fragmentada em diversas unidades

políticas e entre diversos povos. Os neo-tradicionalistas a partir do século XVIII, e em certa

medida, os Reformistas no século XIX, vão dirigir o olhar para as primeiras décadas da

história do Islã, para a época de Maomé e dos Califas Bem-Guiados para extrair exemplos e

modelos de sociedade e política a fim de adaptá-los ao cenário contemporâneo. Contudo, a

maneira como os neo-tradicionalistas e os revivalistas utilizaram o Mito da Idade de Ouro

variou consideravelmente: de ideologias pan-nacionalistas até movimentos locais que

recorreram ao passado islâmico para realçar o nacionalismo das próprias comunidades.

Nos séculos XVIII e XIX o sistema político do Mundo Islâmico estava se

desintegrando e a supremacia europeia ficava cada vez mais evidente (LAPIDUS, 200). O

colapso dos impérios regionais foi consequência do desenrolar de crises internas e de fatores

externos. Por um lado, estes impérios foram edificados sobre coalizões, e suas bases foram

comprometidas quando as elites trocaram os interesses do império pelos seus próprios

interesses de classe e pessoais, ao passo que suas autoridades foram contestadas por forças

que até então foram deixadas de fora do poder político (LAPIDUS, 1997; 2001). Por outro

lado, os impérios islâmicos foram duramente solapados pela expansão comercial e militar

europeia, e pela ascensão da economia mundial capitalista.

Com isso, o colapso dos estados do Oriente Médio precipitou uma crise política e

religiosa nas sociedades. Mudanças econômicas precipitaram agitações sociais e movimentos

migratórios. Este quadro político e social criou condições para que líderes locais, incluindo

ulemás, desafiassem os impérios já bastante debilitados.

Nos séculos XIX e XX, a emergência dos nacionalismos em sociedades islâmicas

fornecem exemplos de como os impulsos universalistas foram transformados em movimentos

particularistas (LAPIDUS, 2001). No final do século XIX, o modernismo Islâmico,

promovido por Jamal al-din al-Afghani, era um movimento global para a reconstrução das

sociedades islâmicas e de suas libertações do controle colonial europeu. Enquanto os Neo-

tradicionalistas defendiam o retorno das práticas sociais e políticas da época do Profeta

Maomé, os reformistas modernistas reivindicavam a reconstrução de sociedades islâmicas a

partir dos princípios de patriotismo, racionalismo e responsabilidade, termos que para estes

ideólogos seriam inerentes ao pensamento Islâmico (KEDDIE, 1968). Mas, paulatinamente, o

apelo universalista e transnacional foi sendo apropriado por movimentos nacionalistas. Assim,

ao passo que na Idade Média o Islã era introduzido como uma religião de unificação entre

povos não muçulmanos, a partir do século XVIII, o reformismo Islâmico era a base de

unificação social e tribal entre populações já muçulmanas.

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Ira M. Lapidus (2001) vê este resgate da tradição islâmica não como uma ameaça às

nacionalidades no Oriente Médio, mas como uma disputa interna entre os componentes

“étnicos” e fatores “religiosos” sobre como se deve definir um mesmo povo. Segundo o autor,

a identidade nacional não é rigorosamente secular ou exclusivamente religiosa. Nacionalidade

mobiliza conceitos de cidadania, identidade étnica e religião de maneira ambígua de forma

que é possível que povos diferentes participem da mesma nacionalidade a partir de um ou

mais critérios, ou pela combinação deles. Isto é, a expressão pública destes conceitos se altera

em resposta a situações políticas diversas.

Com isso, o nacionalismo emergiu como força proeminente no final do século XIX e

início do XX como uma estratégia para estabelecer as reivindicações da intelligentsia. Para os

indivíduos educados e cosmopolitas, que foram retirados do quadro das comunidades locais e

inseridos em relações vinculadas a escalas mais amplas, entraram em contato com novas

culturas e idiomas tomando ciência da política global. Essas pessoas não mais pertenciam à

velha ordem, mas, por outro lado, o sistema colonial não fornecia oportunidades. Desta forma,

o nacionalismo se tornou uma forma de afirmação perante as elites estrangeiras. O

nacionalismo se tornou um argumento poderoso contra as potências coloniais exatamente pelo

fato dos Europeus o aceitarem como a base da sociedade internacional. Além disso, os

símbolos nacionais facilitou alinhar as diversas comunidades religiosas na luta contra o

colonialismo. Nas bases de uma visão secular e nacional, a intelligentsia reivindicou o direito

de governar como representantes da modernidade.

Com as independências, o nacionalismo se difundiu das elites para as massas. As

massas, por sua vez, sujeitas aos novos regimes, tinham que lidar com as transformações

sociais e econômicas. Assim sendo, o nacionalismo serviu como meio de substituir as

lealdades às famílias locais, às vilas e às comunidades regionais, mobilizando o povo para um

conceito mais amplo de identidade política, ainda que este movimento não tenha se

completado em diversos casos (LAPIDUS, 2001).

Mas ainda assim, o Islã permaneceu um fator importante na região. Para alguns

muçulmanos a identidade nunca foi completamente secularizada (LAPIDUS, 2001). No caso

árabe, a vinculação entre a etnia e língua árabe com a história da expansão do Islã é muito

forte e ambígua20

. Muito da força emocional do nacionalismo nas sociedades de maioria

muçulmana vem da capacidade dos movimentos nacionais em regionalizar o Islã e canalizar a

20

Mas é preciso destacar a existência de uma fração importante da população árabe que professa outras religiões.

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força da fé Islâmica em compromissos nacionais. Deste modo, o nacionalismo se tornou o

portador do Islã.

Em décadas recentes esta identificação se tornou mais clara. Para os Egípcios, o

componente religioso é fundamental na consciência nacional. E em resposta às pressões

populares, as elites políticas adotaram uma postura mais positiva em relação ao Islã. Deste

modo, é evidente as variações na relação entre os componentes religiosos na formação da

identidade nacional. Em alguns casos, movimentos religiosos islâmicos são continuações de

movimentos passados, como é o caso dos reformistas Salafistas no final do século XIX que

contribuíram para a formação da identidade nacional na Tunísia, Argélia, Marrocos e no

próprio Egito (LAPIDUS, 2001). Mas para a formação dos movimentos islamistas atuais,

pode-se destacar duas tendências contraditórias: uma em direção à integração global, que

favorece o islamismo universalista; e a outra que vai em direção à consolidação dos Estados

nacionais.

Conceitos islâmicos universalistas estão em voga desde o século XVIII quando alguns

movimentos pregavam o abandono das práticas locais e defendiam a aproximação de uma

leitura comum dos textos sagrados. A hostilidade à veneração de santos e às práticas locais,

no século XX, foi substituída pela hostilidade às práticas e ideias derivadas da Europa. Além

disso, desde o século XVIII há um crescente esforço para a padronização do Islã entre todas

as sociedades de maioria muçulmana. Cada vez mais o Islã é definido por símbolos simples

abstratos comuns a todos os muçulmanos.

A ideologia do Pan-Islamismo surgiu neste contexto e, embora não haja marcadores

históricos claros em termos de eventos que sinalizam a emergência da ideologia, ela se

desenvolveu como uma força política no Império Otomano durante a segunda metade do

século XIX. O Pan-Islamismo começou como um conjunto de ideias desconectadas que ao

longo do tempo se tornou uma ideologia que pregava que a unidade Islâmica só seria

alcançada através da cooptação e da cooperação (HASHIMI, 2009). Esta ideologia era

particularmente interessante ao Império Otomano para legitimar sua fundação política de um

império multiétnico e multinacional.

Mas a reivindicação do califado universal vinculado ao pan-islamismo foi contestada

tanto no interior como no exterior do Império Otomano. Particularmente entre os intelectuais

árabes, houve uma crescente hostilidade em resposta ao descontentamento com a corrupção

do Império. Exteriormente, a penetração de instituições europeias obrigou o Império Otomano

a realizar reformas em direção à modernização do aparato político do Estado e à paulatina

adoção do nacionalismo como princípio político. Por outro lado, as experiências históricas

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compartilhadas pelos povos da região de desestruturação dos impérios islâmicos

acompanhada pelo domínio europeu geraram movimentos anticoloniais por todo o Oriente

Médio que ajudaram a edificar o sentimento de identidade islâmica.

Atualmente, a tendência a uma expressão universalista do Islã pode ser vista como

consequência de processos vinculados à globalização, tais como o avanço na tecnologia, na

comunicação e transporte. Além disso, o comércio e a imigração aumentou o contato entre as

populações no Oriente Médio. Portanto, ao passo que os movimentos transnacionais não são

novos no mundo muçulmano, o escopo e a variedade destes movimentos hoje são bem

diferentes daqueles do final do século XIX.

Em contraste ao universalismo islâmico, há precedentes que favoreceram a expressão

do Islã em quadros mais particularistas. Historicamente, a identidade islâmica geralmente vem

acompanhada de outras identidades vinculadas a grupos étnicos, famílias e países. A

identidade religiosa confere ao muçulmano uma afiliação a uma comunidade ampla. Por outro

lado, a identidade “secular” favoreceu o enraizamento em comunidades particulares. Segundo

Lapidus (2001), a combinação entre estes dois aspectos resultou em fenômenos como o Islã-

tribal ou o Islã-nacional. Desta forma, a absorção de movimentos islâmicos em contextos

nacionais vem da própria ambiguidade da tradição islâmica que leva os movimentos

islamistas a oscilarem entre objetivos políticos e socioculturais; entre princípios universalistas

e princípios enraizados no contexto nacional.

Somado a isso, a existência de instituições políticas internacionais definem o campo

de ação dos movimentos islamistas. A consolidação dos Estados nacionais teve um grande

impacto na configuração e distribuição de poder na escala internacional e na região. Os

Estados nacionais absorveram todo o espaço territorial político e o controle do aparato

político, e, por causa disso, os movimentos islamistas têm, de um modo ou de outro, que lidar

com esta entidade política.

Anthony Smith propõe pesquisar o estado da identidade cultural de uma dada

comunidade na véspera dela ser exposta às forças da modernidade, para ser possível localizar

as bases das evoluções subsequentes destas comunidades em uma nação completa. No

presente estudo, o que um breve olhar demonstra é que, no caso do Oriente Médio, elementos

da tradição islâmica enraizados nas experiências históricas se mantiveram relevantes na

memória coletiva. Porém, o repertório destas identidades aponta para direções díspares, pois

as memórias coletivas puderam ser mobilizadas para caracterizar comunidades distintas. Os

precedentes históricos e as práticas contemporâneas dos movimentos islamistas geraram

movimentos que são tanto universais quanto particulares, locais e globais, nacionais e

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transnacionais. Não é possível estudar estes movimentos sem identificar as complexidades

históricas, políticas, sociais e culturais do Oriente Médio e dos casos nacionais.

O próximo passo é observar como se deu a expansão da sociedade internacional de

matriz europeia no Oriente Médio, e quais os impactos gerados na ordem social e política

regional. Este panorama histórico político regional deu origem a uma tradição intelectual que

influenciou posteriormente Hassan al-Banna e a criação da Irmandade Muçulmana.

3.4 A expansão europeia

A primeira intervenção militar europeia em larga escala no Oriente Médio e no

Magrebe foi a campanha de Napoleão no Egito entre 1789 e 1801. A invasão mostrou a

superioridade militar, tecnológica e administrativa das potências europeias, o que principiou

profundas mudanças sociais na região. Junto com a dominação, contudo, foram introduzidas

também as invenções tecnológicas e ideacionais da Europa, levando ao processo de

modernização do Egito iniciado pelo Pasha Muhammad Ali na primeira metade do século

XIX e ao Renascimento Árabe (Nahda) (CLEVELAND; BUNTON, 2009).

Neste contexto, o governo Otomano adotou novos métodos de organização e

administração militar, além de novos códigos baseados daqueles da Europa. Os governos das

províncias relativamente autônomas do Império – Egito e Tunísia – também seguiram este

processo. Nas capitais destes governos surgiu, como resultado da expansão do comércio com

a Europa, uma nova aliança de interesses entre governos reformadores, comerciantes

estrangeiros e uma elite nativa de mercadores empenhados no comércio com a Europa. Mas

esta aliança formava um equilíbrio instável, e com o tempo o Egito e Tunísia caíram sob o

controle das potências europeias, seguidos pelo Marrocos e a Líbia. O Império Otomano

também perdeu a maior parte de suas províncias no continente europeu, delimitando-se cada

vez mais, como um império turco e árabe (HOURANI, 2006)

Embora a cultura religiosa e legal do Islã continuasse sendo preservada, surgiu um

novo tipo de pensamento que visava explicar a força da Europa e mostrar que os países

muçulmanos podiam adotar ideias e métodos europeus sem trair suas próprias crenças. Os que

desenvolveram esse novo pensamento eram, em grande parte, formados em escolas criadas

por governos reformadores ou missionários estrangeiros, e podiam expressar suas ideias por

meio de um novo veículo: o jornal21

. Os argumentos dominantes defendiam as a reforma da

21

Neste aspecto, a tese de Benedict Anderson (2008) que enfatiza o papel da imprensa e do jornal na formação

da nação tem sua validade corroborada.

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lei islâmica; a fundação da cidadania como uma nova base para o Império Otomano; e o

nacionalismo. Mas com exceção de alguns momentos, estas ideias não afetaram a vida da

maioria das pessoas (HOURANI, 2006).

Mapa 2 – Divisão do Oriente Médio entre França e Grã-Bretanha em 1925

Fonte: RUTHVEN; NANJI, 2004, p.115.

Já no século XX, o término da primeira Guerra assinalou o fim do Império Turco

Otomano, e das ruínas do Império surgiu um novo Estado independente na Turquia. As

províncias árabes do Império, contudo, não tiveram a mesma sorte e foram postas sob a

“tutela” britânica e francesa como mostra o Mapa 2. Este período caracterizado pelo controle

estrangeiro trouxe mudanças administrativas e algum avanço na educação, mas também

estimulou o surgimento do nacionalismo, sobretudo entre as camadas educadas da sociedade.

Os estados e as sociedades de maioria muçulmanas não mais poderiam viver num sistema

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independente e autóctone de cultura herdada (HOURANI, 2006), se é que este sistema alguma

vez realmente existiu. A partir da dominação, os países árabes passaram a procurar a mudança

a fim de se afirmarem num sistema internacional governado por outros.

Particularmente importante para o desenvolvimento histórico posterior na região foi o

estímulo dado pelo governo britânico à criação de um lar nacional judeu na Palestina

(HOURANI, 2006). Este apoio gerou uma situação que afetaria a opinião nacionalista em

todos os países de língua árabe, e foi uma questão central para a Irmandade Muçulmana em

seus primeiros anos. A atuação da Irmandade na revolta de 1936 e na guerra de 1948 foram

dois eventos que evidenciam a vocação transnacional do movimento. Além disso, a

Irmandade, nestes anos, pregava a união entre os muçulmanos contra o colonialismo e contra

a evidência do domínio da região pelas potências estrangeiras: o Estado Israelense (EL-

AWAISI, 1998).

O nacionalismo turco, por sua vez, foi uma reação à crescente pressão da Europa e ao

colapso do ideal de nacionalismo otomano. No início do século XIX, à medida que os povos

cristãos do Império conquistavam a independência, o nacionalismo otomano foi adquirindo

um conteúdo mais islâmico. A essa altura, o Império se tornara em grande parte um Estado

turco-árabe, e qualquer tentativa de acentuar a predominância do fator turco perturbaria o

equilíbrio entre eles e os árabes. O nacionalismo árabe surgiu como um movimento de

sentimentos entre alguns muçulmanos educados da Síria, sobretudo em Damasco, e de

escritores sírios e libaneses. Este movimento só se tornou uma força política relevante depois

que a revolução de 1908 na Turquia enfraqueceu a posição do sultão e culminou na

Revolução dos Jovens Turcos22

, enfatizando o caráter turco do governo de Istambul. Diante

disso, alguns oficiais e funcionários árabes, sobretudo sírios começaram a apresentar a

exigência de melhores posições para as províncias árabes.

Contudo, o nacionalismo egípcio, tunisiano e argelino se diferenciava dos movimentos

do Levante. Todos os três, países com fronteiras bem delimitadas, viam-se diante de

problemas específicos relacionados ao domínio europeu (HOURANI, 2006). Na verdade, já

havia muito tempo que o Egito e a Tunísia tinham sido praticamente entidades políticas

separadas, primeiro sob suas próprias dinastias, depois sob domínio britânico ou francês.

Quando surgiu, o nacionalismo egípcio foi uma tentativa de encerrar a ocupação

britânica, e tinha um conteúdo especificamente egípcio, mais que árabe ou muçulmano. Neste

22

A Revolução dos Jovens Turcos em 1908 foi um marco na história moderna da Turquia. Foi um movimento

composto por grupos distintos que ansiavam por reformas modernizantes nacionalistas. Tinha um forte cunho

secular e pregava uma mudança institucional e constitucional do Império Otomano, reduzindo, assim, os

atributos políticos do Sultão e fortalecendo o parlamento. (HOURANI, 2005).

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aspecto o estudo da Irmandade Muçulmana permite visualizar convergências e divergências

entre uma fração da sociedade e a postura oficial do governo egípcio. Por um lado, a

Irmandade foi criada em clara oposição à presença britânica no Egito. Repudiava tanto o

domínio político e militar quanto a influência “europeia” na sociedade egípcia. Por outro lado,

a Irmandade defendia uma maior integração do Egito na região.

3.5 As ambiguidades da construção da nacionalidade egípcia

O Egito, que já era uma entidade geográfica e política bem conhecida na Idade Média,

quando foi conquistado pelo Império Otomano foi convertido em uma província homônima

com as mesmas fronteiras territoriais. Além disso, o Egito também foi administrado de forma

diferenciada das outras províncias do Império, por causa talvez da importância estratégia do

Egito para a produção de grãos do império e à distância geográfica. A autonomia egípcia se

intensificou ainda mais quando a antiga elite Mameluca, uma fez expulsa quando o país foi

conquisto, começou a retorna à administração do Egito. E Istambul, satisfeito com as

remessas de grãos nunca contestou seriamente a elite local egípcia. Após a invasão do Egito

por Napoleão, um oficial do exército Otomano no Egito, Muhammad Ali, aproveitou-se da

anarquia e tomou o controle do país em 1804, estabelecendo-se como um governante

efetivamente independente do Império Otomano, ainda que formalmente estivesse submetido

à Istambul (GERBER, 2004).

Com isso, desde cedo surgiu no Egito um sentimento de pertencimento a uma

comunidade política distinta. Apesar de argumentos do arabismo serem evidentes no Egito

antes do século XIX, as circunstâncias históricas o diferenciou dos demais países árabes. E

quando o nacionalismo árabe emergiu no Levante no final do período Otomano, a maior parte

da opinião pública egípcia permaneceu indiferente ao que ocorria nos países vizinhos

(JANKOSWSKI, 1991).

Contudo, esta relação com os árabes era repleta de ambiguidades, pois ao mesmo

tempo em que politicamente o Egito se apartava do Mundo Árabe, culturamente, o Egito

esteve intimamente relacionado ao desenvolvido do pensamento árabe. E, em contraste com

as realidades políticas distintas, neste período, os laços culturais entre Egito e o Mundo Árabe

foram intensos. E, de fato, durante a fase do Império Otomano a Universidade de al-Azhar no

Cairo se consolidou como o coração cultural do Mundo Árabe, atraindo diversas figuras

importantes no Mundo Árabe ao território egípcio (GERBER, 2004). Esta ambiguidade

evidencia que os domínios inter-humanos e transnacionais possuíam uma dinâmica própria

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não necessariamente submetida às tendências do domínio interestatal. Esta ambivalência das

relações entre o Egito e o Mundo Árabe foi mantida no século XX. Pois, mesmo quando o

Egito se aproximou do nacionalismo árabe a partir de 1930, ele sempre o fazia buscando

situar o Egito na vanguarda do movimento.

Mas a despeito destas particularidades, de maneira geral, o nacionalismo no Oriente

Médio (e no Egito) se tornou uma força realmente relevante no período da Primeira Guerra

Mundial com a convergência de três fatores: O primeiro foi a desintegração do Império

Otomano e a emergência de Estados Modernos que não compartilhavam uma ideologia

comum. O segundo foi a intensificação da luta pela independência dos povos árabes da

dominação política e cultural europeia. O terceiro elemento foi a influência ideológica de

pensadores, tais como ‘Abduh e Rida. No caso do Egito, ao fim da Primeira Guerra, um

movimento por independência, iniciado em 1919, forçou a Grã-Bretanha a suspender o

protetorado em 1922 (ESPOSITO, 1998). Mas ainda assim, o Egito permaneceu sob a

influência britânica, que só terminaria de fato com o final da Crise de Suez em 195623

.

Embora a Revolução de 191924

tenha sido um evento importante no período entre

Guerras, que contribuiu para a reformulação do nacionalismo egípcio, não foi o único que

definiu as orientações nacionalistas. O desmantelamento do Império Otomano e o fim do

califado tiveram um impacto considerável para a população da região. Naquele momento, não

havia no Mundo Muçulmano nenhum líder que pudesse reivindicar a herança do califado sem

ser amplamente questionado. Com o desmantelamento do Império Otomano, os muçulmanos

deixaram de estarem sob o governo de um Estado Muçulmano que, teoricamente, forneceria

uma entidade política congruente com parte da comunidade dos fieis (GERSHONI, 1987).

A opinião pública do Egito foi extremamente desfavorável à decisão do governo

republicano turco. Pensadores e intelectuais condenaram a dissolução sob o argumento de ter

sido um ato ilegal, uma vez que a figura do califa dizia respeito a todo o Mundo Muçulmano.

23

A crise teve início quando Israel conjuntamente com a Grã-Bretanha e a França invadiram o Egito em resposta

à nacionalização do canal de Suez pelo governo egípcio de Gamal Abdel Nasser. Contudo, os países invasores

foram forçados pelas novas potências mundiais, os Estados Unidos e a União Soviética, a se retirarem. O

episódio evidenciou a nova distribuição de poder no cenário mundial e a superação da antiga ordem. Além disso,

Nasser saiu politicamente vitorioso da crise, o que lhe garantiu prestígio nacional e regional, tornando-se, assim,

uma das principais lideranças no Oriente Médio e promotor do pan-arabismo (HOURANI, 2006). 24

A Revolução de 1919 foi um movimento no Egito e Sudão que se colocou contra a ocupação britânica. A Grã-

Bretanha, que controlava o Egito de fato desde 1882, viu seu domínio ser contestado em 1918, quando

nacionalistas egípcios insatisfeitos com a política britânica exigiram o fim do protetorado. O movimento se

espalhou pela sociedade e mobilizou tanto homens e mulheres, assim como muçulmanos e cristãos. O resultado

da Revolução foi o reconhecimento de independência do Egito em 1922 pela Grã-Bretanha. Contudo, a Grã-

Bretanha manteve um forte controle da política interna egípcia até a Revolução de 1956. (GERSHONI, 1987).

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Por outro lado, o Egito mostrou desdém pelas pretensões do rei Hussein do Hejaz, líder da

insurgência árabe contra o império Turco na Primeira Guerra, de herdar o califado.

Segundo Gershoni (1987), houve no Egito uma mobilização por parte de intelectuais

para a realização de um congresso Islâmico internacional para discutir o futuro do califado.

Em paralelo, foi proposta a ideia de trazer o califado ao Egito sob a figura do rei Fu’ad.

Contudo, opiniões domésticas colocaram sérias dúvidas em relação a essa proposta,

principalmente pelo partido Wafd25

, que defendia o caráter secular do governo, além dos

ulemás que ainda consideravam o sultão ser o califa legítimo.

Os debates ocorridos no Egito em meados da década de 1920 são representativos das

atitudes da elite educada egípcia a respeito da relação entre o Egito e a Comunidade Islâmica.

Gershoni (1987) aponta para dois elementos proeminentes nessas discussões. O primeiro foi a

ausência de consenso a respeito da instituição do califado. O segundo elemento foi a

prioridade dos interesses egípcios na discussão. Havia também aqueles que consideravam a

questão do califado um aspecto menos importante do que a condição de dominação do Egito

pela Grã-Bretanha.

A exposição islâmica egípcia mais detalhada sobre o projeto moderno de califado foi

feito pelo Jurista ‘Abd al-Razzaq Ahmad al-Sanhuri. Al-Sanhuri num livro publicado na

França em 1926 chamado Le califat: son évolution vers une société des nations orientale. A

tese do livro era que o califado tradicional não poderia ser restabelecido tendo em vista o

novo contexto histórico do Mundo Muçulmano. Mas, ao invés, ele defendia a criação de uma

“sociedade de nações orientais” composta pelos estados muçulmanos independentes, os quais

restabeleceriam o califado futuramente (GERSHONI, 1987). Gershoni ressalta que o

interessante dessa perspectiva é o reconhecimento da divisão do Mundo Muçulmano em

Estados nacionais distintos e o esforço direcionado para a criação de um mecanismo de

colaboração periódica entre as unidades em forma de uma Liga das Nações Islâmicas.

Furutamente, Hassan al-Banna se aproximará de algum modo dessa visão “moderna” sobre as

nações islâmicas e o papel do Egito.

Esse novo pensamento evidencia que a concepção otomana de califado se desvaneceu

junto com o Império. Os anos após a Primeira Guerra Mundial deixaram claro que a

restauração política e simbólica do califado Otomano não passava de uma miragem. Dos

escombros do Império surgiu um novo universo político onde o Império multinacional foi

25

Partido político nacionalista com cunho liberal criado após a primeira Guerra Mundial. Desempenhou um

papel fundamental na década de 1920 e 1930. Contudo o partido perdeu popularidade ao demonstrar relativa

acomodação com o regime monárquico e com a manutenção do domínio político britânico no Egito após a

independência (GERSHONI, 1978).

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substituído por diversas entidades políticas nacionais. A partir de então, a soberania dessas

unidades políticas prevaleceria, de uma vez por todas, sobre a posição privilegiada da Umma

na ideologia. No caso do Egito, o nacionalismo territorial conheceu grande popularidade e a

criação de uma monarquia parlamentar formalmente independente no início de 1920 veio a

corroborar esta tendência (GERSHONI, 1987).

A década de 1930, por sua vez, foi essencial para a evolução do nacionalismo no

Egito. Entre a depressão de 1929 e o início da Segunda Guerra Mundial, o cenário mudou

drasticamente. As transformações ocorridas propiciaram a emergência de uma nova

concepção de nacionalismo no Egito: no lugar da noção territorial da década de 1920, o

período de 1930 testemunhou o desenvolvimento de conceitos que transcendiam a identidade

territorial.

Gershoni e Jankowski (1995) explicam esta mudança a partir de três fatores. O

primeiro foram as dificuldades políticas e econômicas que o Egito enfrentou durante este

período e que produziram uma desilusão entre a população como um todo. O segundo

elemento foi a mudança da composição social e do aumento da população letrada cujas

inclinações nacionalistas convergiam para a identidade árabe e/ou islâmica. O terceiro

elemento foi o aumento das interações pessoais e institucionais entre os egípcios e os vizinhos

árabes, que reforçaram a identificação dos egípcios com o nacionalismo arabista e a noção de

Mundo Islâmico. Além disso, o movimento sionista (GERSHONI; JANKOWSKI, 1995) e,

posteriormente, a criação de Israel, podem ser considerados um “fator de extrema importância

para a coesão e o sentimento de unidade entre os árabes, pois Israel foi considerado um

‘estrangeiro’ no sistema regional” (ZAHREDDINE; LASMAR; TEIXEIRA, 2011, p.65).

3.6 Reformismo e Revivalismo

A expedição napoleônica ao Egito evidenciou ao mundo muçulmano que a força

originada da civilização islâmica havia entrado de modo irremediável em crise, e os

reformadores religiosos e os intelectuais testemunhavam o alargamento da distância entre o

mundo muçulmano e o mundo europeu (PACE, 2005). É exatamente nesta fase de decadência

política do mundo muçulmano que se forma no imaginário coletivo o mito da idade de ouro

do Islã. O mito de um Islã das origens que encerra o modelo de uma sociedade perfeita,

mediante a qual o Islã havia demonstrado não só que era capaz de dominar um vasto

território, mas de ter capacidade para inventar uma cultura (científica e filosófica, artística e

jurídica) original. Esse mito coletivo representou a fonte de inspiração do pensamento social e

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religioso que foi a base dos movimentos do renascimento islâmico que se desencadearam no

final do século XVIII e se desenvolvem com grande ímpeto na realidade contemporânea

(PACE, 2005).

Por outro lado, o contato com a Europa gerou outras respostas por parte dos religiosos

e da intelligentsia local. Entre 1870 e 1930 parecia claro às mentes mais despertas da

intelligentsia religiosa e política do mundo muçulmano que o Islã estava preso em um dilema.

De um lado a desagregação sempre mais visível do Império Otomano e a trajetória turca rumo

a um Estado laico. E do outro lado, o domínio dos europeus que avança pela África, a Ásia e

o Oriente Médio26

.

Diante das evidentes dificuldades do pensamento islâmico para se apresentar como

uma alternativa digna ao avanço dos valores ocidentais, a reflexão que a intelligentsia

revivalista iniciou foi bem diversa dos movimentos neo-tradicionais anteriores. Para estes, o

mito da volta às origens ocultou em muitos casos qual era de fato o real desafio que o mundo

islâmico enfrentava. A dimensão carismática desses movimentos acabou por fazer os seus

militantes acreditarem que bastaria lançar a guerra santa contra o inimigo que seria possível

superar a defasagem política e militar (PACE, 2005).

Distanciando-se dos neo-tradicionalistas, os movimentos reformistas revivalistas, que

surgiram entre o fim do século XIX e o início do XX, foram produtos da mente de alguns

intelectuais, que possuíam atrás de si um histórico de debates e reflexões. Pode-se dizer que o

revivalismo se desenvolveu mais como pequena rede de pessoas em torno das quais se

constituiu o núcleo de uma futura classe dirigente que buscou concretizar as ideias em

projetos de reforma religiosa e política (PACE, 2005).

Que se trata de uma pequena rede é, em certo sentido, confirmado pelo deslocamento

geográfico dos primeiros representantes do reformismo: Jamal al-Din al-Afghani (1838-

1897), persa ou afegão; Muhammad ‘Abduh (1848), egípcio, sunita e sufista; Rashid Rida

(1865-1935), egípcio e discípulo de Abdu; Said al-Nursi (nascido em 1873), turco de origem

curda; Abd’ al-Hamid Ibn Badis (1889-1940), argelino; Muhamad Iqbal (1873), indiano.

Enfim, pensadores de diversas origens que dialogavam entre si.

26 Além dessa linha de pensamento que Enzo Pace (2005, p.253) definiu como de reformismo religioso, emergiu

outra linha importante composta por pensadores concentrados sobretudo no Império Otomano.Trata-se de uma

linha de pensamento que se empenhou na promoção de reformas sociais, políticas e econômicas desvinculadas

da tradição islâmica e de caráter laico.

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3.7 A influência de Jamal al-Din al-Afghani.

Um dos principais reformistas foi persa Jamal al-Din al-Afghani (KEDDIE, 1968),

que teve uma vida itinerante pelo Oriente Médio, com uma passagem pelo Egito, país para o

qual diversos intelectuais se dirigiram, atraídos pela vivacidade cultural da sociedade egípcia.

Além disso, desde muitos séculos, existia no Cairo a prestigiosa Universidade teológica, al-

Azhar, que se tornou referência nos estudos jurídicos islâmicos (PACE, 2005).

Al-Afghani enuncia uma série de princípios inspirados por um realismo político e pelo

reconhecimento que os males do Islã resultavam da ausência de reforma. Enzo Pace (2005)

resume a obra de al-Afghani na necessidade de reformar o Islã a partir de dentro, para que os

muçulmanos possam enfrentar em pé de igualdade a potência cultural europeia. Reformar

significava, então, redescobrir as forças racionais adormecidas no Islã. Esta obra de reforma

devia ser orientada em mais de uma direção, revisitando o pensamento filosófico árabe e persa

do passado, e abrindo novamente a porta da interpretação jurídica aplicada à Lei religiosa. Só

através desta imponente obra de reforma interna e espiritual é que o Islã poderia dar um novo

impulso à ação social e à militância religiosa. Portanto, para estabelecer uma sociedade

fundada sobre a fé religiosa islâmica assim renovada, impunha-se um longo trabalho,

profundo e gradual, um verdadeiro processo de reforma (PACE, 2005).

No início de sua atividade intelectual, al-Afghani enfatizava a necessidade de reforma

dos estados islâmicos sob a liderança de seus próprios governantes. Contudo, a partir de 1870,

o seu ativismo assumiu um caráter explicitamente Pan-Islamista (PACE, 2005). Al-Afghani

argumentava que a única maneira de matizar a fraqueza dos estados islâmicos era formar um

bloco de estados semi-autônomos, sendo que todos reconhecesse a soberania do califa

Otomano. Al-Afghani articulou, assim, nacionalismo e pan-islamismo, e não via contradições

entre as duas ideologias (KEDDIE, 1968).

O fim do califado Otomano, com a proclamação da República turca por Kemal

Atartuk, levantou questões sobre a comunidade religiosa islâmica. O vácuo deixado pelo

desaparecimento da figura simbólica do califa iniciou diversos debates sobre quem herdaria a

autoridade simbólica entre os muçulmanos. O Sharif de Meca, Hussein da casa dos

Hashemitas, se apresentou como candidato a ocupar tal posição reivindicando a descendência

do Profeta. Além do mais, devido ao fato de ter sido o líder da revolta árabe contra o Império

turco, ele justificava esta pretensão em termos de liderança entre os árabes. Entretanto,

Hussein não era popular entre os muçulmanos do território indiano e entre aqueles que não

viam com bons olhos a revolta contra a liderança turca. Além disso, a liderança de Hussein

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era disputada entre os próprios árabes, principalmente pelo Egito e pelos líderes da região

central da Arábia Saudita (HASHIMI, 2009).

A partir dos conflitos regionais, o apelo à reforma se conjugou com o movimento de

rebelião e de tomada de consciência nacional de povos sob o domínio colonial. Foi o caso, por

exemplo, de Muhamad ‘Abduh no Egito. Este representante do reformismo reproduziu

conceitos de al-Afghani, mas acrescentou um forte sentimento racionalista: para ‘Abduh, a

crença religiosa não é incompatível com a razão, e deste modo era possível desenvolver as

potências racionais para o ressurgir dos países muçulmanos oprimidos pelo nacionalismo

europeu. O nacionalismo dos reformistas, no entanto, nunca se limitou a uma simples retórica

vazia. Ao contrário, esforçou-se para extrair do Islã todos os recursos simbólicos e culturais

que se prestavam a redefinir a identidade coletiva de povos inteiros (PACE, 2005).

Daí o empenho destes pensadores para encontrar as afinidades entre conceitos próprios

da cultura política moderna ocidental e as instituições próprias do Islã. Além disso,

procuravam mostrar que o Islã não tinha a necessidade de imitar servilmente os paradigmas

de um mundo que lhe era estranho. Para estes homens, no Islã corretamente interpretado, o

muçulmano podia encontrar uma modernidade islâmica que não devia em nada à

modernidade europeia (PACE, 2005).

Tanto para al-Afghani quanto para ‘Abduh, o Islã era o elemento que unia os

muçulmanos de todos os países e obliterava os laços raciais e tribais. A noção de

nacionalismo secular era visto por eles como uma introdução feita pelos europeus na cultura e

nas sociedades da região. Deste modo, o nacionalismo sem vinculação ao Islã era uma força

que dividia a comunidade dos muçulmanos, promovendo a propagação de injustiças

(DAWISHA, 2003, p.20). Além disso, nem al-Afghani nem ‘Abduh eram hostis ao Império

Otomano e a sua presença em terras árabes. E importante observar que ‘Abduh também

entendia a Umma no sentido tradicional de comunidade dos fiéis, isto é, no sentido mais

amplo e abstrato (SAFRAN, 1961).

Nas obras de Rashid Rida (1865-1935), por outro lado, além de defender a integridade

da comunidade islâmica, enaltecia a comunidade árabe dentre os muçulmanos. Rida, ao

escrever sobre a reforma do Islã dava um lugar primordial aos árabes (DAWISHA, 2003).

Para ele, a língua árabe era a única capaz de transmitir integralmente a mensagem divina no

Corão (HOURANI, 2006). Com isso, investir os sultões turcos com a autoridade de califa era

uma incoerência absurda. Além do mais, para Rida, foram os turcos que usurparam o califado

de seus verdadeiros representantes na Idade Média, os Abássidas (SAFRAN, 1961; KERR,

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1966). Na verdade, o ápice da civilização islâmica seu deu, para Rida, com os árabes,

tornando-os figuras proeminentes dentro da própria Umma.

A postura de Rida se aproxima do modelo revivalista de Smith, em que a religião é

“historicizada” e passa a ser vinculada à criação do gênio de uma determinada comunidade

(SMITH, 1981). Neste caso, a comunidade árabe ampara sua vitalidade a partir da relação que

ela tem a religião islâmica. Mas ainda assim, a principal preocupação de Rida dizia respeito

ao Islã e a sua argumentação tinha como objetivo defender o mundo muçulmano. O arabismo

presente na obra de Rida era uma força que catalisaria a reforma do Islã e da Umma Islâmica.

Mas isso não quer dizer que a noção de arabismo, para Rida, sobrepujaria a solidariedade

mais ampla entre os fiéis muçulmanos (DAWISHA, 2003)

Rida defendia uma concepção pan-islâmica na qual a Umma seria fortalecida pela

reinstituição da figura do califa (HASHIMI, 2009). O próprio Rida participou de três

conferências no mundo islâmico, em 1926 e 1931, para definir a questão do califado. Contudo

as conferências não chegaram a nenhuma conclusão sobre a instituição e a pessoa que tomaria

o título de califa. Neste momento, a questão do Sionismo e da Palestina vinha recebendo

paulatinamente maior atenção entre os muçulmanos, constituindo um problema central na

agenda política (HASHIMI, 2009). E assim, a questão do califado perdeu em definitivo o

lugar central nos debates entre os movimentos de caráter islamistas.

Por outro lado, entre os líderes árabes que tomariam o poder após a Segunda Guerra, a

ideologia Islâmica não constituía uma base ideológica para seus regimes e para os

nacionalismos. A ascendência do nacionalismo árabe secular, que também remetia ao século

XIX, apelava a uma herança histórica e cultural mais vinculada à ethnie do que à comunidade

religiosa. Assim, a ideia de comunidade dos fiéis deixava de ter significado e dava lugar a

comunidades pensadas em termos étnicos ou nacionais (HASHIMI, 2009). Grupos de

oposição no mundo Árabe, como a Irmandade Muçulmana, que rejeitavam o nacionalismo

secular em defesa de uma concepção islâmica, foram marginalizados. Contudo, é preciso

destacar que na década de 1930, a Irmandade Muçulmana defendeu uma ideia de pan-

islamismo que se amparava na unidade pan-arabista como primeiro passo para uma

confederação de estados islâmicos.

Hassan al-Banna pode ser considerado como seguidor das ideias apresentadas por al-

Afghani, ‘Abduh e Rida. Porém, ele foi além. Hassan al-Banna retirou o reformismo islâmico

de sua dimensão puramente abstrata e a traduziu em um verdadeiro movimento social e

político. Observando o pensamento de al-Banna pode-se dizer que ele estaria entre o modelo

neo-tradicionalista e o modelo reformista revivalista.

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3.8 O Mito da Idade de Ouro para movimentos os islamistas contemporâneos.

Os islamistas modernos se veem diante de um desafio muito distinto daquele vivido

pelo Mundo Muçulmano clássico: o desafio de como abordar o legado Islâmico para as

sociedades muçulmanas contemporâneas. Como mostra Dale Eickelman e James Piscatori

(1996), ementas e adições ao presumido invariável Direito Islâmico ocorreu ao longo de toda

a historia do Islã, sobretudo no século XIX. Além disso, a relação entre o tradicional e o

moderno se torna ainda mais complexa quando aquilo que é comumente considerado como

tradicional na verdade é produto da contemporaneidade. A reapropriação do passado em

termos de uma noção idealizada do passado mítico da Idade de Ouro do Profeta,é elemento

fundamental da construção identitária dos grupos islamistas. Esse resgate do passado visa

purgar as sociedades muçulmanas das impurezas resultantes do contato com outros grupos

culturais ao longo da história. Mas como mostra Mohammed Ayoob estas leituras são

fundamentalmente uma reinterpretação moderna do passado (AYOOB, 2008). Além disso, o

colonialismo, com todos os seus problemas, foi um componente crucial na própria

constituição das sociedades contemporâneas na no Oriente Médio.

Patricia Crone (1983), por sua vez, caracteriza a noção islâmica de Idade de Ouro

central para o pensamento Islâmico, como uma utopia primitivista, tanto no sentido que ela

apresenta o momento da origem quanto no sentido que considera a sociedade simples como a

mais virtuosa. Essa noção de Idade de Ouro, limitada ao tempo do Profeta e dos primeiros

Califas Bem-Guiados, não é uma ideia nova do século XX. Ela existiu, com certas variações,

desde os primeiros séculos do Islã. Entretanto, o que é novo é o modo como ela é usada pelos

islamistas modernos. Estes islamistas colocam que é possível recriar a Idade de Ouro e que as

energias políticas dos fieis deveriam ser direcionadas para a realização deste fim. Deste modo,

as políticas devem ser empregadas para a criação de uma sociedade perfeita que reproduza a

sociedade dos tempos do Profeta (AYOOB, 2008).

Em contraste, a noção clássica de Idade de Ouro está fundada na suposição de que a

realização da sociedade perfeita é inatingível no tempo histórico. Nessa perspectiva, a

sociedade de Medina do século VII não podia ser recriada devido ao contexto bem distinto

dos séculos posteriores. Carl Brown (2000) observa que o pensamento político da tradição

Islâmica ao longo da história tendeu a proteger a comunidade idealizada dos primeiros anos

da tentação de recriá-la no tempo histórico, corrompendo a noção de sociedade perfeita. Desta

forma, a impossibilidade de recriar o modelo da Idade de Ouro ajudou a maioria dos

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muçulmanos a se reconciliarem com a realidade imperfeita dos arranjos políticos, incluindo

ordens injustas e governos tirânicos (AYOOB, 2008).

Para a maioria dos autores islâmicos clássicos (2008), caso a Idade de Ouro fosse vista

como modelo a ser emulado no tempo histórico, isso acabaria levando a tumultos e desordens

que ameaçariam as sociedades islâmicas de anarquia. As noções de justiça e igualdade,

enraizada no modelo da sociedade de Medina, teriam prioridade sobre os princípios da ordem

e hierarquia, e deste modo ameaçariam a estabilidade frágil do Império Omíada, e

posteriormente, do Império Abássida. Além do mais, o modelo da cidade-estado de Medina

nunca seria operacionalizado no contexto de impérios gigantescos e agrícolas que emergiram

da expansão e conquista árabe no período após a morte do Profeta. A ordem política então

vigente estabeleceu o princípio dinástico que forneceu estabilidade e continuidade, e neste

aspecto, a busca de uma ordem ideal representava uma futilidade, senão uma ameaça.

Em relação ao mito da Idade de Ouro, Anthony Smith (2004) argumenta que os

movimentos reformistas-revivalistas não buscam recriar a Idade de Ouro. O que estes

movimentos fazem é se voltarem a um passado idealizado com o objetivo de regenerar a

própria comunidade e assegurar o seu destino.

3.9 Aplicação do Modelo de Anthony Smith.

A abordagem etnosimbolista de Anthony Smith é um exemplo da escola de

pensamento culturalista dos estudos do nacionalismo que busca explicar as nações e os

nacionalismos enfatizando os fatores culturais e continuidades pré-modernas. Smith defende

que o paradigma modernista dá pouca atenção às formações de média e longa duração das

identidades nacionais, e ao poder político dos mitos da Idade de Ouro e da eleição étnica que

fornece aos nacionalismos instrumentos preciosos para a mobilização. Contudo, Anthony

Smith é bastante cauteloso para reconhecer o fato de que muitos mitos supostamente antigos,

na verdade são invenções modernas.

Tendo em vista a tipologia proposta por Anthony Smith, coloca-se a pergunta: é

possível achar alguma ethnie que corresponda à comunidade dos fieis? Analisando o caso do

Egito, onde a Irmandade Muçulmana se originou, observa-se uma ambivalência das relações

entre lealdade territorial e um sentimento comunitário mais amplo.

O primeiro aspecto, o sentimento de solidariedade foi bastante variável, ora pendendo

para o isolamento egípcio, ora favorecendo uma aproximação com os demais povos árabes.

Em relação ao segundo aspecto, os movimentos revivalistas propuseram uma cultura distinta

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compartilhada, adaptando traços da tradição islâmica árabe à modernidade. Neste caso, não há

a observação de uma cultura egípcia desconectada da do Mundo Árabe.

No terceiro aspecto, a associação com um território específico, fica claro que a

associação ao território egípcio foi bem intensa e tem uma longa tradição, ao passo que um

espaço islâmico não apresenta a mesma precisão. Seguindo esta lógica, o quarto aspecto que

diz respeito à existência de um nome coletivo privilegia o pertencimento egípcio: a Umma

islâmica, embora um termo clássico, teve diversos significados. A comunidade árabe, por sua

vez, está relacionada a um grupo bem mais preciso. Contudo, a coletividade egípcia, sem

dúvida, é o nome que remete de forma mais clara a um determinado território e a uma

coletividade no decorrer da história.

Por fim há os dois aspectos que abarca o papel da memória: uma história

compartilhada e o mito comum de descendência. A história particular do Egito parece exercer

grande atração. Mas tanto a história da “civilização” islâmica como a condição de dominação

comum à região criaram uma experiência histórica compartilhada pela população regional. No

caso do mito comum de ascendência, as filiações árabe e islâmica se sobrepuseram na

nacionalidade egípcia, conferindo um passado que conecta o Egito a uma comunidade mais

ampla, mas, ao mesmo tempo, fortalecendo a própria identidade egípcia. Em outras palavras,

é difícil pensar uma memória histórica egípcia sem pensar no Islã ou no componente árabe.

Contudo, dentro da história compartilhada do mundo árabe, o Egito ocuparia um lugar de

destaque o que lhe garantiria a primazia entre os povos árabes e muçulmanos. Desta forma,

através de sua posição no Mundo Árabe, o Egito acaba fortalecendo a identidade própria.

No caso da Irmandade Muçulmana, por um lado, ela teve que lidar com a expansão da

sociedade internacional europeia e suas instituições no Oriente Médio, principalmente o

nacionalismo. Mas, por outro lado, esta expansão não apagou as tradições culturais e

intelectuais próprias do Oriente Médio. A adoção do nacionalismo não resultou no

esquecimento da história da região.

O próximo capítulo explorará o pensamento de Hassan al-Banna, assim como de

Sayyid Qutb e Hasan al-Hudaybi. Contudo é preciso observar aqui que Hassan al-Banna,

apesar da sua importância, é um nome que se insere numa cadeia mais ampla de pensadores

no Oriente Médio que lidaram com a herança da tradição, junto com suas possibilidades e

desafios no novo contexto histórico. Apesar do impacto da modernidade e do colonialismo,

identidades regionais tais como o sentimento de pertencimento a uma comunidade árabe ou

islâmica, não foram inventadas do nada, elas são produtos de um processo mais amplo

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(GERBER, 2004). Contudo, o modo e a intensidade como foram mobilizadas dependeram

primordialmente das circunstâncias históricas.

O modelo de Smith deixa alguns vácuos na compreensão da Irmandade Muçulmana. O

maior deles é não ser capaz de explicar a ambiguidade da organização quanto à identidade e à

solidariedade política. Certamente a Irmandade Muçulmana apresenta uma continuação de

uma tradição intelectual presente na região do Oriente Médio antes mesmo da colonização

europeia. Contudo, o modelo de Smith não esclarece qual deveria ser o limite da comunidade

imaginada pela Irmandade. Ora a Irmandade se refere ao povo egípcio, ora ao povo árabe.

Mas, no horizonte, o objetivo último é a comunidade dos fiéis. Existem elementos presentes

na história regional que permitem justificar a opção por qualquer um desses conjuntos, sem

que isso, no entanto, deixe de contradizer a abordagem de Smith.

Outra fraqueza da abordagem de Anthony Smith é que, apesar de pregar uma

perspectiva de longa duração, ela não contempla as constantes mudanças e ambiguidades do

Mundo Muçulmano desde o século VII. Neste caso, é perigosa uma explicação que flerta com

um determinismo cultural.

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4 O PENSAMENTO DA IRMANDADE MUÇULMANA ACERCA DO

NACIONALISMO

O presente capítulo é voltado para o exame, a partir de uma bibliografia auxiliar, do

pensamento das figuras mais influentes do grupo – Hassan al-Banna, Saiyyd Qutb e Hassan

al-al-Hudaybi – buscando identificar quais as acepções atribuídas ao nacionalismo, à

comunidade árabe e à comunidade islâmica, e observar como essas três identidades são

mobilizadas e articuladas. Ao final do capítulo é verificada a aproximação ou o afastamento

da ideologia destas figuras importantes em relação aos princípios básicos do nacionalismo tais

como foram apontados por Anthony Smith.

4.1 O surgimento da Irmandade Muçulmana

A Irmandade Muçulmana foi fundada por Hassan al-Banna, um professor de colégio,

na cidade de Isma’iliya, próxima ao Canal de Suez. A Irmandade Muçulmana era um entre os

vários grupos religiosos que al-Banna participava, e a origem da Irmandade não se distinguia

de grupos muito similares que existiam pelo Egito naquela época.

Na sua juventude, al-Banna participou de confrarias religiosas, inclusive grupos com

teor sufistas, que atuavam pela preservação da moral islâmica. Em 1923, al-Banna se mudou

para o Cairo, onde teve contato com a ocidentalização da cultura egípcia, processo que ele

considerou alarmante dada a recente secularização promovida por Mustafa Kemal Ataturk na

Turquia (COMMINS, 1994). Em 1927, al-Banna se juntou a outros jovens com ideias

semelhantes em uma sociedade que promovia o Revivalismo Islâmico, a Associação dos

jovens Muçulmanos (COMMINS, 1994). Este grupo pretendia restaurar a vitalidade da

sociedade egípcia através do retorno ao verdadeiro Islã e da assimilação da ciência moderna.

Para a realização desta agenda, a Associação dos Jovens Muçulmanos estabeleceu escolas que

pregavam a mensagem à população como um todo. Com isso, pode-se dizer que a Associação

foi um antecedente da Irmandade Muçulmana não só nas ideias, mas também na organização

e na mobilização popular.

Quando se graduou em 1927, o ministério da educação indicou Hassan al-Banna como

professor de língua árabe na cidade de Isma’iliya, localizada no Canal de Suez e local da

administração da Companhia do Canal de Suez. Deste modo, al-Banna entrou em contato

direto com a dominação estrangeira e com os administradores europeus que trabalhavam para

a companhia e viviam em casas de luxo (COMMINS, 1994). Em 1928, al-Banna fundou a

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Irmandade Muçulmana com o objetivo de promover o que ele considerava ser o verdadeiro

Islã e de lutar contra a dominação estrangeira. Nos próximos quatro anos, outras ramificações

foram criadas nas cidades vizinhas e na região do Delta.

A Irmandade permaneceu um grupo pequeno nos primeiros três anos e al-Banna se

empenhou para atrair adeptos para a Organização nos arredores de Isma’iliya. Contudo, em

1932, al-Banna constatou que o grupo só poderia crescer se movesse o núcleo de atividades

para um centro urbano maior. A decisão de mudança para o Cairo foi facilitada pela

incorporação de uma sociedade Islâmica existente na capital liderada pelo irmão de al-Banna.

Após um ano estabelecida no Cairo, a Irmandade Muçulmana iniciou a publicação de

um jornal e organizou a primeira conferência para os integrantes. A partir de então, o número

de adeptos aumentou vertiginosamente. Em 1930, ela possuía cinco sedes. Já em 1938, a

Irmandade contava com trezentas sedes e aproximadamente 50.000 membros (MITCHELL,

1969).

Inicialmente, a Irmandade Muçulmana era um movimento apolítico que buscava

reformar a prática religiosa e prestar auxílio social aos integrantes. Contudo, as atividades da

Irmandade se tornaram políticas ao final da década de 1930. O evento que precipitou esta

mudança foi o protesto árabe na Palestina. A Irmandade apoiou maciçamente os protestos e

militou pela a causa Palestina entre a população egípcia. Ao mesmo tempo, a Organização

publicou críticas ao regime monárquico do Egito e da forte influência da Grã-Bretanha na

política egípcia. Em 1941, o grupo lançou os próprios candidatos nas eleições parlamentares e

promoveu mobilizações públicas defendendo a reforma social e a retirada completa das tropas

britânicas do Egito (MUNSON, 2001). No mesmo ano, as autoridades militares britânicas

exigiram que al-Banna se retirasse do Cairo, e em outubro daquele ano, al-Banna e outros

líderes da Irmandade foram presos e os encontros da organização foram banidos.

Contudo, a maior preocupação do governo no período era o desenrolar da Segunda

Guerra Mundial, e não a atuação movimentos reformistas religiosos. Deste modo, as

lideranças foram soltas e as manifestações reapareceram no espaço público. Foram nesses

anos também que a Irmandade criou uma unidade paramilitar. Ao final de 1949, a

Organização possuía aproximadamente entre 300.000 e 600.000 membros ativos, constituindo

uma das maiores forças políticas e sociais organizada no Egito (MUNSON, 2001).

Após a Segunda Guerra Mundial, a opinião popular egípcia começou a dar sinais de

inquietação, e a Irmandade Muçulmana aproveitou o momento para levar adiante a sua

agenda política. Em 1947, a polícia egípcia descobriu um armazenamento de armas

pertencentes à Organização e um ano após foi confiscado um jipe pertencente ao grupo

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contendo explosivos. Com isso, a Irmandade Muçulmana foi oficialmente dissolvida em

1948. Em resposta, a Organização assassinou o Primeiro-Ministro egípcio Mahmud Fahmi al-

Nuqrashi, responsável pela dissolução. Dois meses depois, Al-Banna seria morto pela polícia,

encerrando, assim, a primeira fase da Irmandade Muçulmana (MUNSON, 2001).

Al-Banna foi substituído por Hasan Isma’il al-Hudaybi, um juiz da Alta Corte Egípcia

e uma figura respeitada pela elite egípcia. Embora não fosse tão carismático quanto o seu

predecessor, al-Hudaybi conseguiu garantir a sobrevivência do grupo durante os anos mais

difíceis de sua história, a despeito das rixas internas entre as lideranças.

Contudo, o regime monárquico estava em seus últimos anos. Em julho de 1952, um

grupo proveniente do meio militar, conhecido como os Oficiais Livres, derrubou o rei Faruk.

O regime dos Oficiais Livres libertou diversos membros que estavam presos e permitiu que o

grupo retomasse as atividades públicas. Entretanto, esta relação pacífica entre governo e a

Organização não durou muito tempo. Logo surgiram tensões entre a Irmandade Muçulmana e

a liderança do novo regime, sobretudo o coronel Gamal ‘Abd al-Nasser. Em 1954, um

membro da Irmandade Muçulmana tentou assassinar o já então presidente Nasser durante um

discurso público. Nasser respondeu ordenando novamente a dissolução da Irmandade e a

prisão de centenas de membros. Os julgamentos subsequentes levaram à execução de seis

líderes da irmandade (MUNSON, 2001). Neste período, a Irmandade viu a liderança

institucional de al-Hudaybi ser questionada por facções mais radicais do movimento. Figuras

carismáticas, entre eles o ideólogo Sayyid Qutb, reivindicavam uma oposição mais radical ao

regime de Nasser e a radicalização das ações.

4.2 O pensamento de Hassan al-Banna

Os principais pontos do pensamento de Hassan al-Banna era a presença das potências

estrangeiras no Egito e a degradação moral e econômica do Egito. Tanto é assim que Richard

P. Mitchell (1969) afirma que a ideologia da Irmandade Muçulmana estava relacionada a

“imagem de mundo” no qual ela vivia; e esta imagem é dividida em três facetas: O Egito, o

Islã e o Ocidente.

O ponto de partida para o pensamento de Al-Banna é o entendimento do Islã como

fonte das soluções adequadas aos principais problemas do Egito e dos países da região. Além

disso, Al-Banna entendia que todos os muçulmanos formavam uma comunidade coesa e

somente a união de todos os muçulmanos possibilitaria a resistência às pressões dos países

europeus. A divisão e as disputas entre os muçulmanos contrariavam os princípios islâmicos

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de viver em uma fraternidade, e por causa da divisão os estados muçulmanos se tornaram

fracos e vieram a ser dominados por forças e ideias estrangeiras (MITCHELL, 1969). Neste

aspecto, a ideologia da organização é um legado do pensamento de al-Afghani (HARRIS,

1964).

Além disso, al-Banna distinguia dois tipos de imperialismos contra os quais a

Irmandade deveria se opor: o primeiro é o imperialismo externo, isto é, a força bruta da

ocupação estrangeira. O segundo é o imperialismo interno, que são as forças que servem aos

interesses das potências estrangeiras no ambiente doméstico, e que foram responsáveis pela

desunião entre os países islâmicos e desviou o Egito de sua posição tradicional de liderança na

região (MITCHELL, 1969).

O imperialismo externo diz respeito, então, ao fato da Europa ter sido capaz de impor

sua hegemonia à região e dificultar o processo de reforma. Mas, dentre todos os obstáculos

criados pela Europa, o apoio ao movimento Sionista pela Grã-Bretanha constituiu uma das

maiores entraves para a estabilização regional. Israel é visto como um “posto-avançado”

ocidental na região, isto é, um país criado com a intenção de garantir o domínio estrangeiro

permanentemente. Enfatizando esta postura, al-Banna relaciona a atuação da Grã-Bretanha e

das Nações Unidas à continuação de uma tendência histórica da agressão europeia aos países

da região que começou com as Cruzadas (MITCHELL, 1969). Obviamente, a associação do

movimento Sionista com as Cruzadas é uma reinterpretação da história que carece de

fundamentos “fatuais”, mas é uma releitura do passado realizado por al-Banna.

Mas além do aspecto religioso, a Palestina tem um papel importante na dimensão

política e estratégica, percebido pelo mundo árabe como a “porta de entrada” da região para

os países europeus (EL-AWAISI, 1998); além do fato de, historicamente, a Palestina ser

considerada pelo Egito um território vital à segurança do país. Particularmente, a Irmandade

temia que o Egito fosse incorporado ao Estado judaico pela expansão Sionista, além de

considerar Israel uma fonte de irradiação de valores nocivos às sociedades da região. Portanto,

o estabelecimento de Israel ameaçava não somente o domínio cultural e simbólico, como

também a própria soberania egípcia. El-Awaisi (1998) afirma que a eminência da criação de

um Estado judeu foi percebida pela Irmandade Muçulmana uma ameaça social, cultural

econômica e política, vinculada à perpetuação da dominação estrangeira.

No caso do “imperalismo interno”, o domínio europeu era perpetuado pela presença de

tropas estrangeiras no solo egípcio e por uma elite política conivente com esta dominação.

Neste aspecto, tão danoso quanto a força militar, era a reprodução da ordem social

imperialista pelo regime monárquico (MITCHELL, 1969). Esta ordem social englobava o

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próprio sistema político partidário, visto com desconfiança por al-Banna, pois considerava

que os partidos eram guiados por interesses e ambições pessoais, além de serem considerados

meros instrumentos do domínio britânico e agentes de secularização da vida egípcia. Isso,

pois, ao invés de servir o povo egípcio, os partidos governavam sem nenhum respaldo político

e, deste modo, não eram representativos do interesse da nação (MITCHELL, 1969). Em suma,

al-Banna entendia que a introdução de tradições e valores europeus, junto com a dominação

política e econômica, corrompeu e enfraqueceu a sociedade egípcia.

Assim como muitos dos reformistas muçulmanos modernos, a Irmandade defendia um

sistema político que fizesse referência ao passado islâmico. O modelo referido era Estado

governado pelos “Califas perfeitos”, a representação legítima do Islã enquanto fé e enquanto

sistema. O governante seria escolhido entre o povo pelos suas qualificações pessoais e pelas

suas competências. Neste sentido, além de um bom político, o governante deveria ser um

homem piedoso e ser versado no Direito Islâmico (MITCHELL, 1969). Além disso, os

reformistas entendiam que, em última instância, a comunidade dos fieis seria o árbitro de seus

governantes.

Contudo, Hassan al-Banna não deixou clara a maneira como seriam aplicados os

preceitos islâmicos na realidade política egípcia e regional. Em algumas publicações, a

Irmandade defendia alguns pontos bem específicos: o fortalecimento das forças armadas

egípcias, o fortalecimento dos laços entre os países árabes, a expansão de hospitais e clínicas,

o banimento da usura, a melhora das condições de trabalhos no campo e na cidade e

intervencionismo governamental para eliminar o desemprego. Mas não era evidente o

conteúdo daquilo que seria um “Estado Islâmico”.

Além disso, Hassan al-Banna dava importância especial à questão da moral e dos

valores, considerados as verdadeiras causas da decadência econômica e política. Pois, foi a

adoção do estilo de vida europeu que levou à imoralidade, pobreza e ao enfraquecimento dos

povos da região. Para reverter este processo, o grupo advogava maior presença do Estado em

questões morais – como a censura nos meios de comunicação, o incentivo à educação

religiosa e a leitura do Corão – e na promoção e defesa da língua árabe. Para o âmbito

privado, o modelo de vida pregado pela Irmandade estipulava padrões de vida mais rígidos

para os indivíduos, incluindo a abstenção do álcool, jogo, dança e prostituição. (MUNSON,

2001).

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4.2.1 Apresentação das diversas perspectivas críticas sobre o pensamento de Hassan al-

Banna

Entes de iniciar a discussão sobre o nacionalismo no pensamento de al-Banna é

importante mapear algumas interpretações acadêmicas sobre a ideologia do fundador de

Irmandade Muçulmana.

Tariq Ramadan (1998) insere o pensamento de al-Banna na tradição reformista

muçulmana dos séculos XIX e XX. Com isso, ao invés de enfatizar a Irmandade como a

origem da militância egípcia contemporânea, Ramadan coloca o grupo como herdeiro de uma

tradição mais antiga. Neste sentido, é importante observar a Irmandade não somente como a

fonte de movimentos islamistas atuais, mas como um movimento enraizado em tradições

intelectuais que remetem ao século XIX (RAMADAN, 1998).

Nesta perspectiva, Hassan al-Banna foi herdeiro das ideias desenvolvidas por al-

Afghani, ‘Abduh e Rida, além do pensamento desenvolvido por Said al-Nursi, Abd al-Hamid

Ibn Badis e Muhammad Iqbal, que defendiam o retorno às fontes sagradas islâmicas através

do pragmatismo da reforma social (ZEGHAL, 1999a). Tendo isto em mente, Ramadan

considera que o fenômeno de “retorno ao Islã” não é produto da década de 1970. Na sua

perspectiva, fatores políticos, econômicos e sociais são secundários para explicar o

movimento frente a uma perspectiva intelectual (ZEGHAL, 1999a).

Neste ponto, Ramadan se afasta do primeiro grande livro de referência sobre o

movimento, escrito por Mitchell em 1969. Mitchell, apesar de reconhecer a afiliação de al-

Banna aos pensamentos de al-Afghani e ‘Abduh, não situava a Irmandade na linhagem de

movimentos islâmicos reformistas.

Para Mitchell, a Irmandade insistia no aspecto político como componente fundamental

do Islã: o Estado tem por função assegurar que a Sharia seja aplicada. Desta forma, mais do

que o reformismo tradicional, a Irmandade reivindicava o direito à ação política, pois a

faculdade de reformar estava intimamente ligada à capacidade de governar. Por outro lado, o

autor considerava que a ideologia da Irmandade Muçulmana mais próxima da ortodoxia e

rigidez de Rashid Rida do que do reformismo universalista e modernista de ‘Abduh.

O que se observa com esta discussão, no fundo, é uma divisão entre uma abordagem

que se prende ao estudo dos textos e das ideias produzidas no mundo muçulmano, e de outra

parte, uma tradição, que emerge na França na década de 1980, que estuda mais

profundamente o quadro social e político nos quais os intelectuais muçulmanos estão

inseridos (ZEGHAL, 1999a).

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A análise de Ramadan mostra que al-Banna desempenha um papel fundamental na

passagem de um reformismo teórico para um reformismo ancorado na ação social e política.

Mas Ramadan se prende ao período de construção da Irmandade para insistir sobre a

formação e as influências das ideias do pensamento islâmico sobre al-Banna. O que Ramadan

tenta mostrar ao leitor são os riscos de reduzir o pensamento islâmico à expressão e às

dinâmicas particulares de manifestações radicais que ganham mais visibilidade no decorrer do

século XX (RAMADAN, 1998). Contudo, a história da Irmandade é demasiada complexa

para enquadrá-la em uma divisão simplista dos movimentos Islamistas. A violência esteve

presente na história da Irmandade, assim como conflitos internos e externos deram evasão a

diversas ambiguidades (ZEGHAL, 1999a).

Por outro lado, Brynjar Lia (1998), apresenta uma outra perspectiva que argumenta

que a ascensão do grupo nos anos de 1930 foi reflexo da organização interna, do modo de

atuação, dos métodos de recrutamento e do vínculo à classe média. Uma perspectiva

semelhante é adotada por Ziad Munson (2001). Ao detalhar a organização da Irmandade

Muçulmana desde os anos de 1930, Lia mostra que o sucesso do grupo está diretamente

vinculado à aparição dos primeiros movimentos políticos de massa no Egito. Os militantes da

Irmandade Muçulmana se estabeleciam no campo e nos centros urbanos, e utilizam as

mesquitas, mas também outros espaços de socialização, para difundir a mensagem do grupo.

A fundação do braço paramilitar e a campanha em defesa da causa palestina nos anos de 1930

ajudou consolidar a popularidade da Organização. Desde o início do movimento, são

principalmente os homens da classe média inferior que são recrutados por al-Banna, em geral

migrantes recém chegados nas cidades que receberam uma educação moderna, ligando, assim

a tradição e a modernidade (ZEGHAL, 1999a).

Com isso, Lia se aproxima de Ramadan, ao considerar a Irmandade Muçulmana um

movimento essencialmente moderno e reformista. Além disso, Lia considera que al-Banna

não foi um líder tradicional, mas um ideólogo que utilizou todos os meios de propaganda

moderna27

, e se opondo aos homens do establishment religioso. Para Lia, a tese de Mitchell

está em conformidade com a representação globalmente aceita da Irmandade Muçulmana: que

foi uma resposta patológica e xenófoba ao processo de secularização, ocidentalização e

modernização (LIA, 1998). E estes três elementos entendidos como sendo quase que

correspondentes.

27

Mas, como mostra Bendix (1996), um grupo pode selecionar alguns meios modernos específicos, mas, ainda

ser caracterizado como tradicional em outros aspectos. Não há esta pureza. A seletividade da modernidade de

alguns grupos permite que eles mobilizem métodos e ações modernas, mas mantenham ideias tradicionais. Olhar

somente para os métodos como prova da modernidade não permite contemplar as ambiguidades dos grupos.

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Adota-se aqui a perspectiva que vincula o pensamento de al-Banna ao movimento

reformistas iniciado no século XIX. Contudo, considera-se também que a atuação militante da

Irmandade Muçulmana só é compreendida a partir da oposição ao domínio europeu. Contudo,

o fato da Irmandade ter hostilizado a Grã-Bretanha não necessariamente alinha o grupo a

movimentos neo-tradicionalistas. Hassan al-Banna se apropriou do pensamento da reforma e

o empregou num contexto bem distinto daquele de ‘Abduh ou Rida.

4.2.2 Watan e Qawm.

Hassan al-Banna nunca escreveu um tratado completo que explicasse concisamente as

suas ideias. Os escritos do al-Banna, grande parte panfletos e correspondências, não são

apenas exposições teóricas sobre o assunto, mas são manifestos políticos direcionados aos

integrantes da Irmandade e à população egípcia. Portanto, as incongruências da obra refletem

as diversas estratégias de apresentar a sua mensagem a públicos distintos. Mas é possível

encontrar alguns termos recorrentes que dizem respeito ao nacionalismo.

O conceito de nacionalismo para al-Banna se diferia daquele pensado no continente

europeu no início do século XX. Para al-Banna, o sentimento de pertencimento nacional

acompanhou o estabelecimento do Estado moderno, mas, como consequência, destruiu a

unidade do mundo muçulmano. A lealdade a entidades territoriais deixou os países

muçulmanos vulneráveis ao imperialismo “Cristão” e “Sionista”. Além disso, esse

“nacionalismo restrito” transformou a nação num novo objeto de adoração. (MITCHELL,

1969). Além disso, o nacionalismo “material e territorial” é destrutivo e é a negação de um

nacionalismo mais amplo fundado nos princípios divinos do Islã. Em outras palavras, Hassan

al-Banna considerava o nacionalismo sem religião inconcebível, pois enquanto o

nacionalismo é lealdade à nação, a religião seria o caminho que a nação precisa seguir.

Contudo, é importante destacar que os termos utilizados por al-Banna para se referir à

nação e ao nacionalismo não eram precisos. Diversos termos – Watan, qawm e umma – eram

utilizados sem maiores critérios para se referir à nação. O nacionalismo, por sua vez, era

referido como wataniyya ou qamiyya. Richard P. Mitchell observa que, de um modo geral,

Al-Banna distinguia wataniyya, que era a devoção ao país, e qawmiyya, entendido como a

devoção a um povo. O Islã defende a wataniyya, mas somente aquela que é contingente com a

religião, e seu objetivo não é a promoção do bem-estar material do país, mas difundir as

palavras de Deus pelo globo (MITCHELL, 1969). A definição de qawmiyya também aponta

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80

para a mesma direção: a lealdade a um povo não deve tomar uma determinada “raça” como

força dominante na relação entre os homens.

Esta concepção de wataniyya e qawmiyya levou al-Banna a repudiar movimentos que

consideravam as lealdades ao Egito ou à comunidade Árabe como objetivos últimos e

prioritários. Contudo, se o arabismo, enquanto ideologia secular, era criticada, a noção de

pertencimento à comunidade árabe está presente no pensamento de al-Banna. Pois sendo o

árabe a língua na qual o Corão fora revelado, então a reforma do mundo islâmico deveria

partir dos povos árabes. Mas o pan-arabismo, enquanto união dos árabes, só deveria ser

realizada enquanto uma ação em benefício do Mundo Muçulmano (MITCHELL, 1969).

A literatura da Irmandade Muçulmana descreve o Islã como a pátria e como

nacionalidade. Contudo, ela reconhece que por imperativos de ação coletiva a humanidade é

dividida em povos e em tribos. Hassan al-Banna propunha duas categorias de nação: a nação

de nascimento e a nação espiritual Islâmica; ambas apresentando deveres e direitos. A partir

destas duas categorias, a lealdade política apontava para três direções: a lealdade ao país, à

comunidade árabe e ao Islã. Mas, para al-Banna, seria possível combinar estas três lealdades e

alcançar uma unidade entre eles. O patriotismo, entendido como o amor por um país28

, era

aprovado na medida em que era concebido como meio de se alcançar a independência dos

países do Mundo Islâmico.

Percebem-se, com isso, múltiplas narrativas que convergem numa visão de mundo.

Narrativas que envolvem passados distintos são mobilizadas num projeto de futuro comum.

Neste aspecto, é possível encontrar algumas reflexões sobre a história dos egípcios, árabes e

muçulmanos que refletem as concepções de nacionalismo. Obviamente, a história do Islã que

se entende desde o Profeta até o período dos primeiros califados, ocupa um lugar central. A

Idade de ouro, em al-Banna, não remete, em primeira instância, aos povos árabes, mas à

comunidade Islâmica. Mas ainda assim, a narrativa da história dos povos árabes tem uma

posição privilegiada dentro da história do Islã. Nesse aspecto, al-Banna se aproxima da visão

de Rashid Rida quando considera a transferência de autoridade dentro do mundo muçulmano

para outros povos insuficientemente islâmicos como um dos motivos da decadência do

califado. A posição especial conferida aos árabes é incongruente com a defesa da união de

todos os fiéis, mas não consiste, a priori, uma superioridade puramente étnica. Ela seria o

28

Patriotismo tem um significado diverso de nacionalismo. O nacionalismo remete a ideia de um povo que

compartilha determinadas características e compartilham um projeto de futuro, ao passo que o patriotismo está

mais vinculado ao sentimento que alguém sente pelo país em que nasceu; é mais ligado ao espaço geográfico

(HOBSBAWM, 1991).

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resultado de um “grau de pureza religiosa” maior entre os povos árabes, uma vez que o Corão

fora revelado no idioma árabe.

Contudo, se Hassan al-Banna confere uma posição importante aos árabes, por outro

lado, ele viu a revolta árabe contra o Império Otomano com um misto de desconfiança. Não

tanto pelo objetivo do movimento ter sido a independência em relação ao Império Otomano,

mas porque a insurreição resultou na sujeição da região ao domínio estrangeiro. Além disso,

Hassan al-Banna se opunha ao projeto da Grande Síria, pois, ainda que ele defendesse a união

dos árabes, a expansão da Jordânia era considerada apenas um ato de promoção da monarquia

Hashemita de ‘Abdullah, ao qual al-Banna nutria certa aversão (MITCHELL, 1969).

Se os árabes ocupam um lugar importante na narrativa de al-Banna, a relação do Egito

com o Islã era igualmente única. Para a Irmandade Muçulmana, desde o princípio, a história

do Egito esteve atrelada ao destino dos povos islâmicos. Além de ser o centro da civilização

mais antiga da humanidade, o Egito foi o protetor do “Mundo Islâmico” em seus momentos

mais difíceis, como as Cruzadas e a invasão mongol. Para al-Banna, o Islã se tornou a fé, a

língua e a civilização do Egito, e o Egito, por sua vez, tem um lugar único no ressurgimento

do Islã.

Richard P. Mitchell (1969) observa que durante um bom período de sua vida, Hassan

al-Banna se manteve fiel à monarquia. Mas a dinâmica interna do grupo levou diversos

membros a se oporem ao regime, causando a supressão do movimento. Esta postura de al-

Banna reflete um pouco da ambiguidade que ele nutria em relação ao passado monárquico do

país. Por um lado, al-Banna admirava Muhammad Ali, o fundador da última dinastia, por ser

o responsável pela modernização do Egito e ser defensor da dignidade do povo egípcio. Mas,

por outro lado, Muhammad Ali era criticado sob o argumento de que ele permitira a

penetração de ideias ocidentais, o que posteriormente levou ao domínio britânico.

4.2.3 A imagem do nacionalismo na Europa e no Oriente Médio em Hassan al-Banna

Outra narrativa que ajuda a fundamentar a identidade islâmica proposta por al-Banna é

a comparação com a história europeia. Ao descrever o desenvolvimento da sociedade

europeia e a formação das nações, al-Banna contrapõe a identidade islâmica ao “modelo de

civilização ocidental”. Desta forma, a própria noção de identidade islâmica é tributária não

apenas da sua própria história, mas do encontro e da oposição a outros grupos vistos como

diferentes. Este encontro produz em al-Banna o sentimento de que os muçulmanos pertencem

a um grupo limitado com características próprias distintas dos grupos estrangeiros.

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Hassan al-Banna considerava a Europa até a época da Reforma uma entidade

semelhante a Umma islâmica: um conjunto movido por uma vontade única fundada no

Catolicismo. As nacionalidades europeias só surgiram, segundo al-Banna, após os

movimentos de Reforma religiosa (AL-BANNA, 2006). Na Umma islâmica, ao contrário, o

nacionalismo só foi introduzido como o resultado do envolvimento europeu e da reação dos

povos da região à colonização europeia. Mas, para al-Banna o despertar do nacionalismo no

Oriente médio consiste num evento histórico transitório, e o sentimento de pertencimento à

comunidade dos fieis subsistirá:

Apesar da colonização europeia do mundo Muçulmano ter levado ao

desenvolvimento do nacionalismo local, com cada nação reivindicando o direito à

liberdade como uma entidade independente, e ao passo que muitos destes que se

empenhavam nessa renovação conscientemente ignoram a ideia de unidade, todavia

o resultado deste processo será, sem dúvida, a consolidação e ressurreição do

império Islâmico como um estado unificado abarcando os povos dispersos do

mundo Islâmico, erguendo a bandeira do Islã e promovendo a sua mensagem. Não

há nação no mundo que sustenta ao mesmo tempo a unidade linguística, a

participação associada em interesses materiais e espirituais, e similaridade no

sofrimento e na esperança como os Muçulmanos o fazem juntos29

. (AL-BANNA,

2006, p.39, tradução nossa).

Portanto, para al-Banna, o nacionalismo europeu é retratado como um fenômeno

pernicioso reflexo do individualismo egoísta europeu (AL-BANNA, 2006). Mas entre os

muçulmanos, o nacionalismo ganha uma conotação mais positiva por ser entendido como o

primeiro passo para o reestabelecimento da autonomia política regional frente às potências

coloniais.

4.2.4 Dupla caracterização do pensamento de al-Banna: transnacional e pan-nacional

A noção de Umma imaginada por al-Banna aponta para o papel da religião como

motivadora de uma comunidade política. Mas seria possível ver a concepção de Umma em al-

Banna como uma grande nação? E, com isso, a Irmandade Muçulmana, em seus primeiros

anos, seria um movimento pan-nacionalista? Ou, ao contrário, seria um movimento que agia a

despeito das fronteiras nacionais?

29

Although these steps led to the development of local nationalism, with each nation demanding its right to

freedom as an independent entity, and while many of those who worked for this revival purposely ignored the

idea of unity, nevertheless the outcome of these steps will be, without a doubt, consolidation and resurrection of

the Islamic empire as a unified state embracing the scattered peoples of the Islamic world, raising the banner of

Islam and bearing its message. There is no nation in the world held together by same kind of linguistic unity,

joint participation in material and spiritual interests, and similarity of suffering and hope that hold the Muslims

together.

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Na tradição islâmica, a Umma é mais do que uma comunidade política: ela abrange

diversos elementos que dizem respeito à fé e à relação do homem e Deus. O nacionalismo,

por sua vez, tem uma finalidade “secular” e política, ainda que possua mitos e rituais. Porém,

a defesa de al-Banna de uma união entre os povos muçulmanos em uma entidade política

autônoma aponta para uma noção politizada da Umma que se aproxima bastante das

concepções de nacionalismo proposta por Smith: a de um movimento Ideológico que busca

alcançar e manter a autonomia, unidade e identidade de uma dada população cujos integrantes

se veem como uma nação (SMITH, 2010), ainda que neste processo, haja unidades

fragmentadas, que posteriormente seriam unidas em um movimento irredentista. Nas palavras

de al-Banna:

Que a pátria Islâmica seja liberta de toda dominação estrangeira, pois isso é um

direito natural pertencente a todo ser humano que somente os opressores injustos ou

o conquistador explorador irá negar.

Que um estado Islâmico emirja nesta pátria liberta, atuando de acordo com os

preceitos do Islã, aplicando suas regulamentações sociais, proclamando seus

princípios sensatos, e comunicando sua missão sábia à toda a humanidade. Pois,

enquanto este estado não emergir, os muçulmanos, em sua totalidade, estão

cometendo pecado, e são responsáveis perante Allah, o Altivo, o Grande pelo seus

fracassos em estabelecê-lo e pela negligência em criá-lo.

Nós queremos realizar estes dois objetivos no Vale do Nilo e no domínio Árabe, e

em cada terra a qual Allah faz próspera pela crença Islâmica: uma religião, uma

nacionalidade, e uma crença unindo todos os muçulmanos (AL-BANNA, 2006,

p.47, tradução nossa) 30

.

Há uma outra forma de ver a Umma: como uma comunidade que transcende divisões

nacionais, étnicas e raciais, constituindo uma comunidade de princípios e crenças. Esta

percepção distingue um caráter transnacional da Umma caracterizada pela união dos

indivíduos independentes dos estados ou de formações políticas. Esta definição se

aproximaria da noção de uma sociedade Mundial. Isto é, a Irmandade agiria nos domínios

inter-humanos e nos transnacionais reforçando laços identitários entre os indivíduos do

Mundo Islâmico. Contudo, fica evidente que no horizonte de expectativas de al-Banna, ele

vislumbrava que esta aproximação dos fieis resultaria numa entidade política futuramente.

Nesta perspectiva, esta mobilização transnacional tinha uma vocação pan-nacional.

30

That the Islamic fatherland be freed from all foreign domination, for this is a natural right belonging to every

human being which only the unjust oppressor or the conquering exploiter will deny.

That a free Islamic state may arise in this free fatherland, acting according to the precepts of Islam, applying its

social regulations, proclaiming its sound principles, and broadcasting its sage mission to all mankind. For as long

as this state does not emerge, the Muslims in their totality, are committing sin, and are responsible before Allah

the Lofty, the Great for their failure to establish it and for their slackness in creating it.

We want to realize these two goals in the Nile Valley and the Arab domain, and in every land which Allah has

made fortunate through the Islamic creed: a religion, a nationality, and a creed uniting all Muslims.

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No domínio interestatal, al-Banna não defendia a abolição do sistema de Estados

nacionais, mas concebia uma relação particular entre as nações islâmicas. Ao invés de

promoverem interesses próprios, as nações islâmicas deveriam estabelecer compromissos

entre si. Esta visão de sociedade internacional para al-Banna se aproxima da concepção de

Sociedade Internacional regional solidarista, uma vez que os interesses coletivos dos estados

constituem um fundo comum para as interações entre eles. Com isso, Al-Banna se opõe ao

que para a Escola Inglesa constitui uma sociedade internacional regional pluralista, onde há

somente um mínimo de regras e valores compartilhados entre os Estados. Os estados

islâmicos deveriam se empenhar na construção e manutenção de uma sociedade de estados

baseada na cooperação e na aproximação. Portanto, o projeto de al-Banna prevê o

estabelecimento de um conjunto de estados que compartilham os mesmos valores (AL-

BANNA, 2006):

Na concepção de ordem internacional em al-Banna, o Islã seria elevado a uma

instituição primária, entendendo a sociedade em seus três níveis (transnacional, inter-humana

e interestatal). Contudo, como já foi observado neste trabalho, o fato de al-Banna considerar o

Islã como fator unificador das pessoas da região não é evidência de que o Islã realmente seja,

ou fosse, uma instituição primária no entendimento da Escola Inglesa. O estudo de uma

organização particular no Egito não é representativo de toda a população do Oriente Médio e,

portanto, é perigoso generalizar as conclusões. Além disso, a Ideologia da Irmandade

Muçulmana passará por mudanças que afetariam o seu conteúdo nos anos que se seguiram à

morte de al-Banna. Uma divisão bem clara ocorrerá entre os pragmáticos e aqueles que

defendiam uma postura mais radical e intransigente.

4.3 Sayyid Qutb: ideólogo do radicalismo

Sayyid Qutb é lembrado como uma das principais figuras da Irmandade Muçulmana.

O fato das suas obras serem muito difundidas, sobretudo entre grupos mais radicais, leva à

conclusão de que ele representa a ideologia da organização (ZOLLNER, 2009). Contudo, é

importante destacar que com a morte de al-Banna, a Irmandade Muçulmana passou por um

momento de crise em relação à liderança e às diretrizes a serem seguidas. Por um lado, Qutb

representa a face carismática com um discurso direcionado aos integrantes mais engajados.

Deste modo, o discurso de Qutb encontrou grande receptividade durante o período de

perseguição. Por outro lado, a liderança institucional foi passada à Hassan al-Hudaybi, que

defendia uma postura mais pragmática e de maior contenção em relação às atividades mais

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radicais. Embora al-Hudaybi não fosse um líder carismático e não desfrutasse de grande

popularidade em sua época, as ideias defendidas por al-Hudaybi acabaram por se tornar as

diretrizes do movimento nas décadas posteriores (ZOLLNER, 2009).

Sayyid Qutb nasceu em 1906 em uma família de classe média da região rural de

Musha, uma pequena cidade no distrito de Asyut. Apesar de Qutb ter uma obra extensa sobre

comentários religiosos, ele próprio teve uma formação secular (ZOLLNER, 2009). Contudo, a

obra de Qutb não se resume a uma obra radical. Ela abarca uma diversidade de gêneros e

conteúdos o que impede a compreensão do pensamento de Qutb em poucas linhas sem que ele

seja extremamente simplificado. Dadas estas limitações, limita-se aqui aos aspectos relevantes

sobre o lugar do nacionalismo para Qutb.

Durante os anos que vão de 1949 a 1954, Qutb escreveu sobre questões sociais. Neste

momento, fica mais perceptível o conteúdo islâmico de sua obra e a diferenciação entre o

“Mundo Ocidental” e o “Mundo Islâmico”. No caso do Mundo Islâmico, Qutb postulava que

a separação entre religião e política era inadequada, pois o Islã fornecia as diretrizes de uma

vida social mais perfeita (ZOLLNER, 2009).

Em 1948, Qutb viaja aos Estados Unidos, por onde permanece por um tempo. Esta

experiência teve um grande impacto no seu pensamento posterior, que adotou gradativamente

um conteúdo “antiocidental”. Ao retornar ao Egito, Qutb se filiou à Irmandade Muçulmana31

.

Prontamente, Qutb galga posições na organização e ocupa um assento no Conselho de

Direção. Não tardou para que ele assumisse a liderança da Sessão de Propaganda e se torna o

editor do periódico semanal, al-Ikhwan al-Muslimun (MITCHELL, 1969).

Após a Revolução de 1952, a Irmandade Muçulmana manteve contato com o novo

regime do Conselho de Comando da Revolução egípcia, principalmente com o general

Naguib. De início, Qutb aprovava os rumos políticos que o país tomava, e inclusive Qutb

chegou a ser o consultor do regime de questões culturais e de ensino (GORDON, 1996). Mas

em 1953, a balança de poder dentro do regime favoreceu o coronel Nasser, que ressentia da

influência política da Irmandade. Neste momento, as relações entre a Organização e o novo

regime foram rompidas e Qutb se afasta do regime (ZOLLNER, 2009).

Em 1954, Qutb foi preso junto com outros integrantes importantes em resposta à

tentativa de assassinato de Nasser. Em 1964, Qutb foi solto, mas logo em 1966 ele foi

novamente preso durante a segunda perseguição promovida por Nasser, e foi condenado à

morte. Foi nos anos entre 1954 e 1966 Qutb escreveu suas obras mais militantes e radicais.

31

A dada exata de sua filiação é incerta. Barbara Zollner (2009) estima que foi entre os anos de 1951 e 1953.

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86

Para além da ideologia de Hassan al-Banna que se opunha às “ideias ocidentais” e defendia o

Islã como um sistema compreensivo que abarcava todas as dimensões da vida, Qutb enfatizou

o dever de todo muçulmano a ser comprometer com o estabelecimento de um Estado islâmico

(ZOLLNER, 2009).

4.3.1 Discussão acerca da obra de Qutb

As obras de Qutb são compreendidas de formas distintas segundo aquilo que é

enfatizado pelo pesquisador, o que deixa ainda em aberto o debate no meio acadêmico acerca

da produção de suas obras. Gilles Kepel (2003) vê o período em que Qutb esteve preso como

fase fundamental para a radicalização de seu pensamento. O argumento apresentado é que os

anos de isolação, e a perda de contato com a realidade externa e os maus tratos favoreceram a

radicalização de Qutb. Barbara Zollner (2009), por outro lado, argumenta que as ideias

elaboradas por Qutb nos anos de prisão já estavam presentes na fase anterior. Além disso,

uma explicação puramente psicológica não dá conta da difusão rápida da obra de Qutb entre

os integrantes da Irmandade. Contrariando a ideia de isolamento, Zollner aponta que Qutb foi

capaz de ter conhecimento do que acontecia no Egito e de manter contato com outros

membros da Irmandade que também estavam na prisão. Com isso, Barbara Zollner defende a

necessidade de inserir as ideias de Qutb no contexto mais amplo do discurso político Islâmico

da década de 1960 (ZOLLNER, 2009). Zollner afirma que os movimentos de reforma do Islã

tiveram um papel fundamental no ativismo político defendido por Qutb. Desta forma, é

importante destacar que as ideias de Qutb deram continuidade ao pensamento de Hassan al-

Banna.

William Shepard (2003) também observa que conceitos fundamentais no pensamento

de Qutb já estavam presentes nos períodos anteriores. A dicotomia entre a Verdade do Islã e a

falsidade já havia sido explorada em obras anteriores ao período da prisão. O que se observa

nas obras posteriores é o desvio da proeminência do caráter moral para uma discussão com

conteúdo mais teológico. Neste novo arranjo, a dicotomia entre o certo e o errado é elevada a

um novo patamar.

Além dos pensadores tradicionais do reformismo islâmico, a ideologia de Qutb

dialogava com dois pensadores contemporâneos: os paquistaneses: Abu A’la al-Maududi32

e

32

Al-Maududi foi um dos fundadores da Organização Islamista Paquistanesa (al-Jama’at-e Islami) e tem um

conjunto vasto de obras. (ZOLLNER, 2009).

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87

Abu al-Hasan ‘Ali al-Nadwi33

. Por um lado, ideias vinculadas à soberania de Deus e da

condição de ignorância a respeito da fé (jahiliyya) evidenciam uma paroximação entre o

pensamento de Qutb e o de Maududi (ZOLLNER, 2009). Por outro lado, a obra de Al-Nadwi,

desenvolvia a noção moderna de jahiliyya, distanciando-se da noção mais clássica do termo, a

qual foi incorporado por Qutb34

.

O presente estudo se prende à leitura do livro Os Marcos (Ma’lim fi al-Tariq). Dentre

todas as obras de Qutb, esta encontrou ampla recepção entre os grupos militantes mais

radicais. É possível observar nesta obra com maior clareza o lugar que o nacionalismo ocupa

no pensamento tardio de Qutb.

4.3.2 A nação enquanto uma condição da jahiliyya

William Shepard (2003) define a ideia de jahiliyya (condição de ignorância) para Qutb

a partir de três características, o que o diferencia dos demais pensadores precedentes. A

primeira característica é a rejeição da autoridade divina, que é substituída pela soberania

humana. Conferir soberania a alguém é uma ação divina, pois a soberania é um atributo

exclusivo de Deus35

, sendo Deus o legislador e o juiz supremo. Desta forma, Qutb não

somente enfatiza princípio da soberania de Deus em termos teológicos, como converte o

princípio em fundamento de ações políticas. A segunda característica versa que a jahiliyya

não se limita um período histórico nem a um espaço geográfico particular. É, antes, uma

condição social e espiritual das sociedades independente do período e do lugar. A terceira

característica é a existência de uma divisão bem clara e intransponível entre Islã e jahiliyya.

Neste sentido, trata-se de uma oposição excludente: ou uma sociedade é islâmica ou ela está

em condição de jahiliyya. Nenhuma sociedade está imbuída das duas características

simultaneamente.

A partir deste conceito, Qutb elabora uma oposição ao governo fundamentada no

argumento de que Nasser não seria um líder genuinamente muçulmano. E, tendo em vista, a

completa ilegitimidade deste governo, a oposição poderia empregar o uso da força caso as

33

Al-Nadwi foi um importante escolar de Lucknow no Paquistão ligado ao Jama’at-e Islami na década de 1940

e 1950, mas se distanciou posteriormente. 34

Importante notar que o próprio al-Nadwi posteriormente se tornou um crítico tanto de Maududi quanto de

Qutb (ZOLLNER, 2009, p.54) 35

O termo Hakimiyyah aparece 250 vezes no Corão, contudo existem diversas leituras e interpretações. Para

Edward W. Lane, o termo hakim palavra árabe da qual deriva hakimiyyah] designa aquele que exerce a

autoridade jurídica, legal e política. Hakkimiyya então designa a autoridade legal e política suprema. (KETHAB,

2002, p.145). Na tradição clássica, este termo não era referência nas discussões jurídicas e políticas, mas Qutb

interpreta esta ideia em termos literais de estabelecer uma sociedade e um governo Islâmico.

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circunstâncias assim o exigissem. Em outras palavras, a doutrina não excluía a ação violenta

como meio legítimo para se atingir o objetivo, caso os outros canais estivessem obstruídos.

Invariavelmente, esta postura estava menos aberta ao diálogo, pois, para a fração que adotou

esta ideologia, o objetivo imediato de reforma da sociedade prevalecia sobre alguma espécie

de compromisso.

É importante observar que, embora a doutrina de Qutb recorresse a um argumento

universalista, o seu objetivo se restringia ao ambiente político egípcio. Certamente, o que

Qutb chamava de “civilização ocidental” era a fonte dos vícios e corrupção. Contudo, a

preocupação imediata de Qutb era em relação às próprias sociedades islâmicas, as quais

sofriam mais nas mãos de “líderes ocidentalizados”, que disfarçam a jahiliyya sob uma

roupagem islâmica, do que pela ingerência europeia ou norte-americana (SHEPARD, 2003)36

.

Esse pensamento intransigente de Qutb foi apropriado por grupos radicais posteriores

(SHEPARD, 2003), principalmente nos anos de 1970 e 1980, quando alguns militantes

levaram essas ideias ao extremo, a ponto de condenar não somente o governo como também a

própria sociedade. Foi neste período que diversos grupos radicais emergiram no Egito, tais

como o Takfir wa-Hijra; o grupo Jihad Islâmica que assassinou o presidente Sadat em 1981; e

o Gama’a al-Islamiyya, responsável por diversos distúrbios nos anos 90 (KEPEL, 2003). Mas

a obra de Qutb teve repercussões mesmo para além das fronteiras egípcias. Um dos nomes

mais conhecidos a fazer referência a Qutb foi Osama Bin Laden, que se apropriou do

pensamento do ideólogo egípcio para justificar atentados contra os Estados Unidos e contra os

próprios muçulmanos. (SHEPARD, 2003).

Na perspectiva de Qutb só é possível que haja uma verdadeira sociedade islâmica onde

a sociedade seja governada de fato por instituições islâmicas. Em outras palavras, o Islã exige

o controle político da sociedade, caso contrário seria violar os preceitos divinos (SHEPARD,

2003). Ao contrário de al-Banna, Qutb não dirigia sua mensagem à públicos diversos. A

perseguição de Nasser havia deixado claro para Qutb que havia uma divisão intransponível

entre nacionalistas e os “muçulmanos puros”. Este recorte imposto pelas condições foi

transposto ao papel inequívoco do Islã na vida social e política do Egito.

Desta forma, Qutb opõe a Umma, entendida como uma comunidade política aspirando

ao próprio Estado, ao mundo não-islâmico, vivendo nas condições de jahiliyya. Esta definição

de Umma por Qutb prevê que qualquer Estado que se fundamente na promoção dos interesses

36

Qutb, que embora nutrisse um desprezo pela sociedade Ocidental, voltava a suas atenções, sobretudo ao

próprio governo egípcio, caracterizado pela ignorância dos princípios divinos, encontrando-se em estado de

jahiliyya. O pronunciamento de Qutb pela excomunhão (takfir) dos governantes egípcios não encontra paralelo

nas obras tanto de Mawdudi quanto de al-Banna (KEPEL, 2002)

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da nação se situa na jahiliyya. Enquanto Hassan al-Banna privilegiara, até certo ponto, a

história dos árabes dentro da grande história do Islã, Qutb, por outro lado, é mais enfático no

caráter universal da civilização Islâmica (QUTB, 1990).

No domínio das relações internacionais, a nacionalidade não desempenha uma função

importante no entendimento de Qutb, pois além da nacionalidade ser estranha à expansão

islâmica, é oposta aos próprios princípios islâmicos (QUTB, 1990). O fator primordial no

ordenamento internacional em Qutb é a oposição da Umma aos países restantes imersos na

condição de jahiliyya. Neste sentido, a divisão proposta por Qutb resgata e reapropria o

pensamento elaborado pela tradição de jurisprudência islâmica clássica que dividia o mundo

principalmente em dois domínios: o domínio do Islã (Dar al-Islam) e o domínio da guerra

(Dar al-Harb)37

. A primeira circunscrição consiste nas terras controladas pelos impérios

muçulmanos, enquanto o segundo é constituído por terras situadas fora do domínio islâmico,

e, por isso, passíveis de serem conquistadas. Nesta concepção, as grandes religiões não se

distinguem somente pelo conteúdo dogmático, mas pelo território controlado por cada uma.

No pensamento de Qutb, não há a ideia de círculos concêntricos de identidade, como

está presente nas obras de al-Banna, pois uma identidade islâmica bem estabelecida implica o

abandono das outras formas de identificação social (QUTB, 1990). Esta postura inclui a

solidariedade entre povos árabes. Ao contrário do modelo revivalista que associa a

emergência de uma religião ao gênio de um povo “seleto”, Qutb não considera a comunidade

étnica relevante à difusão e à defesa da religião. Seguindo esta lógica, a identidade nacional

deixa de ser relevante para um muçulmano, e é proscrito pelo Direito Divino. No lugar, a

unida forma de associação humana permitida pelo Direito Islâmico seria a comunidades de

todos os fiéis sob a direção de um governo islâmico genuíno e virtuoso. Nas palavras de

Qutb:

A pátria Muçulmana é onde a fé Islâmica, o modo de vida Islâmico, e a shari’ah de

[Deus] são dominantes. Somente este sentido de “pátria” é válido para os seres

humanos. Similarmente, “nacionalidade” [umma] significa crença e um modo de

vida, e somente este conceito é válido para a dignidade do homem. Se associar de

acordo com a família, tribo e nação, ou raça, cor e país, [pertence à jahiliyya]

(QUTB apud BRYKCZYNSKI, 2005, tradução nossa) 38

.

37

Ainda há um terceiro domínio, não evidente na obra de Qutb, que é o domínio do acordo: terras não Islâmicas,

mas com as quais os países islâmicos possuem algum tipo de tratados ou relações. 38

A Muslim’s fatherland is where the Islamic faith, the Islamic way of life, and the Shari’ah of [God] are

dominant. Only this meaning of the “fatherland” is worthy of human beings. Similarly, “nationality” [umma]

means belief and a way of life, and only this concept is worthy of man’s dignity. Groupings according to family

and tribe and nation, or race and color and country, [belong to the Jahiliyya]”.

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Desta forma, Qutb chega ao ponto de rejeitar até mesmo o uso instrumental do

nacionalismo, como fez al-Banna ao considerar a afiliação nacional um meio para se efetivar

a união entre os fieis. Qutb entende que o uso do nacionalismo, criador do estado de jahiliyya

contemporâneo, simplesmente não constitui uma estratégia admissível, uma vez que

corromperia a causa da Umma com códigos e princípios não islâmicos (QUTB, 1990).

Em suma, para Qutb, o Islã tem o dever de libertar a humanidade da servidão dos

homens para que eles possam se submeter somente à Deus. Reconhecer a soberania de Deus

garante a liberdade dos homens e os livra das divisões entre raças e entre nações. O Islã, neste

sentido, promove uma civilização internacional (SHEPARD, 2003). Logo, o nacionalismo,

enquanto ideologia que confere legitimidade política à nação, é irreconciliável com os

preceitos islâmicos (QUTB, 1990).

4.4 Hasan al-Hudaybi: sucessor de Hassan al-Banna

Qutb deixou um legado importante para diversos movimentos islamistas

contemporâneos, principalmente aqueles de orientação mais extremista (ZOLLNER, 2009).

Contudo, por mais que o pensamento de Qutb encontre recepção em tais movimentos, isso

não quer dizer que o mesmo ocorra na Irmandade Muçulmana. Se Sayyid Qutb ainda é um

nome importante para a Irmandade Muçulmana, isso se dá não pelas suas obras de

radicalismo, mas pela abordagem de diversos temas envolvidos com a renovação do

movimento. Como foi dito, a obra de Sayyid Qutb é vasto e é também passível de diversas

interpretações. Deste modo, é importante destacar que a popularidade de Sayyid Qutb não se

resume à sua luta contra o regime, mas por outras contribuições que abrangem temas

variados.

Mas, Barbara Zollner, ao estudar a ideologia da Irmandade Muçulmana observa que,

hoje, a ideologia da Organização se aproxima muito mais daquela que foi elaborada por

Hasan al-Hudaybi. Muito embora al-Hudaybi, em sua época, fosse considerado um líder fraco

e sem representatividade, posteriormente, a sua ideologia se tornou a predominante no grupo.

Obviamente, há aqueles que defendem uma postura mais intransigente e que contestam a

“moderação” adotada pelo grupo. Contudo, o importante é estar atento a estas divisões

internas ao grupo e observar como se deram as relações de poder durante a História da

organização.

Com a morte de Hassan al-Banna ainda durante o regime monárquico, a dissolução

da ordem e as perseguições, a organização entrou em um momento de colapso quando a

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própria sobrevivência do grupo estava em questão. Neste cenário era menos importante a

eleição de um novo líder popular entre os integrantes do que garantir a sobrevivência da

Irmandade (ZOLLNER, 2009). De 1948 até 1951, sem uma liderança e sendo perseguida pelo

regime, a Irmandade Muçulmana se viu diante da situação desesperada de garantir

sobrevivência. Neste cenário, era fundamental mobilizar todos os recursos para restaurar a

reputação da Organização. Contudo, se já na época de al-Banna, a Irmandade Muçulmana já

apresentava sinais de fissuras internas, com a morte do líder as divisões entre vertentes se

tornaram ainda mais evidentes (DAVIS, 1984). Uma das consequências deste conflito interno

foi a crescente divisão entre ideólogos e os ativistas da Irmandade, que se aprofundou com a

eleição de al-Hudaybi.

Parte da estratégia de reabilitação da organização era nomear alguém reconhecido

publicamente para ocupar a liderança (ZOLLNER, 2009). Neste processo, acabaram elegendo

Hasan al-Hudaybi por ser uma figura respeitada. A escolha de al-Hudaybi, um juiz respeitado,

evidencia que o critério de seleção do líder decorria do status do candidato entre a elite

política do país. Por outro lado, o regime monárquico cooptou a Irmandade Muçulmana para

o apontamento de al-Hudaybi para a liderança, considerado leal à monarquia. Com isso, a

eleição de Hasan al-Hudaybi criou grande descontentamento entre os membros mais jovens e

os mais ativistas, que consideraram uma traição aos objetivos da Organização, especialmente

ao comprometimento com à oposição à Grã-Bretanha. Deste modo, pode-se dizer que a

eleição de al-Hudaybi representou um marco na história da Irmandade Muçulmana, pois a

partir de então, a principal preocupação da Irmandade seria em relação à política doméstica do

Egito (DAVIS, 1984).

Em 1954, Nasser promoveria uma dura perseguição ao grupo. Mas em 1955, com a

libertação de diversos membros mais jovens, a Irmandade passaria por um processo de

reorganização. Ramificações em diversas cidades sobreviviam sem ter contato uns co os

outros, ao passo que nas prisões a Irmandade formava novas redes de contato. Posteriormente,

quando Nasser promove a segunda perseguição em 1965, al-Hudaybi seria preso, mas foi

libertado por Anwar al-Sadat em 1971, quando este assumiu o governo do Egito.

A escolha do novo líder evidenciou a preocupação da Irmandade com sua reputação

pública, porém, al-Hudaybi não possuía influência política dentro da Irmandade, e os líderes

internos não estavam dispostos a ceder os seus privilégios (ZOLLNER, 2009). Contudo, com

o passar do tempo, ficou evidente que al-Hudaybi pretendia ser mais do que uma figura

simbólica, almejava ser o líder de fato do movimento. Mas a configuração política dos anos

de 1950 contribuiu para a incapacidade de al-Hudaybi em se consolidar como líder. A

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organização necessitava de um líder que transitasse entre a liderança política egípcia e a

Irmandade, mas muitos integrantes permaneceram desconfiados da arena política e dos rumos

tomados pela Organização (ZOLLNER, 2009).

4.4.1 O pensamento de al-Hudaybi acerca da política e religião

A principal obra relacionada a al-Hudaybi é o Du’at la Qudat (traduzido como

Preachers nof judges em inglês por Barbara Zollner). Este livro é relativamente ignorado

pelos estudos da Irmandade Muçulmana segundo Barba Zollner, (2009), ao passo que grande

parte dos estudos é direcionada à obra de Qutb, ideólogo que ganhou mais visibilidade.

O livro Du’at la Qudat, apesar de ser em parte uma resposta ao pensamento radical de

Qutb, seu conteúdo abrange um campo mais vasto (ZOLLNER, 2009). A obra está inserida

num diálogo mais amplo entre os pensadores islâmicos da época. O livro foi publicado em

1977, embora fora escrito na década de 1960. Comumente, a autoria do livro é atribuída à

Hasan al-Hudaybi. Contudo, há evidências que apontam para diversos autores, sendo que al-

Hudaybi assumiu a autoria nominal (ZOLLNER, 2009). Contudo, para além da autoria, o

texto ainda pode ser vinculado à Hasan al-Hudaybi, pois ele assumiu a autoria e consentiu

com o conteúdo da obra. Isto é, mesmo que ele não tenha escrito integralmente, o livro é

representativo da postura adotada pela liderança da Irmandade Muçulmana.

Este livro é importante por representar uma postura moderada contra as vertentes mais

extremistas, e por fornecer as diretrizes para a Irmandade Muçulmana nas décadas

posteriores. Hoje, al-Hudaybi é uma das figuras mais importantes da Irmandade Muçulmana,

cujo pensamento é o fundamento da ideologia atual da organização de oposição não violenta.

O livro de al-Hudaybi obviamente não questiona a unicidade de Deus e a inferência de

que Ele é o criador das regras justas, mas al-Hudaybi considera a interpretação literal de Qutb

e outros mais radicais uma compreensão reducionista da autoridade de Deus. Barbara Zollner

(2009) argumenta que, similarmente a al-Afghani e outros pensadores modernistas do Islã, al-

Hudaybi destaca a importância de se diferenciar o decreto divino e as regras da realidade

humana. As regras pertencentes ao primeiro domínio, presentes no Corão e na Sunna, são

imutáveis e eternas. A segunda categoria, por sua vez, são regras mutáveis. Estas

obrigatoriamente precisam ser congruentes à Revelação Divina, mas elas derivam do

raciocínio e são adaptadas às realidades históricas. Portanto, estas regras estão sujeitas a

possíveis erros e interpretações, além de sofrerem alterações no decorrer da história. Além

disso, para al-Hudaybi, as leis consideradas explicitamente divinas são relativamente poucas.

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Por outro lado, há um conjunto muito maior de “ações permissivas” as quais são produtos da

autoridade humana, que incluem o direito civil e as ideologias nacionalistas.

Apesar de al-Hudaybi se engajar para o estabelecimento de um governo no qual o

Direito Islâmico é a fonte de legislação, ele argumenta que a obediência aos preceitos

Islâmicos se dá no âmbito individual e é independente da aplicação no nível político estatal.

Mesmo que o Direito Islâmico seja adotado nominalmente por diversos países, isso não é

garantia absoluta de um sistema justo, o que contraria a opinião dos mais radicais que

enfatizam que a relação entre a Sharia e política como fundamento da fé islâmica

(ZOLLNER, 2009).

Mas ainda que al-Hudaybi apresente uma visão de mundo mais pluralista e moderada

em relação aos meios, o objetivo político permanece de acordo com a ortodoxia, pois ele

defendia o estabelecimento de um Estado islâmico nos moldes ortodoxos, isto é, um Estado

islâmico que coincidisse com a aplicação da Sharia, como o direito fundamental e com a

governança de um líder virtuoso, o Imam. Deste modo, al-Hudaybi apresenta uma ideologia

conservadora, mas moderada em sua atuação, pois a mudança em direção a uma “ordem

islâmica” deveria ser gradual e discutida (ZOLLNER, 2009). Contudo, se al-Hudaybi

discorria sobre o estabelecimento de um sistema de Estado Islâmico, sua discussão se

restringia, sobretudo, ao campo do Direito, não avançado em tópicos que versassem sobre o

aspecto internacional ou sobre as identidades nacionais ou étnicas. Esta ausência talvez seja

um reflexo da primazia do ambiente doméstico na pauta da Irmandade Muçulmana, uma vez

que a dinâmica internacional parece não influenciar o conteúdo da obra na mesma intensidade

que os eventos domésticos o fizeram.

Mas como al-Banna, al-Hudaybi confere um lugar especial à questão do califado,

entendido como governança islâmica. Neste sentido, o pensamento de al-Hudaybi dialoga

com as obras revivalistas. Mas ao contrário de seu predecessor e outros, al-Hudaybi possuía

uma visão menos idealista em relação ao período dos Califas Bem-Guiados. Não significa que

Maomé e seus companheiros não constituíssem um modelo de sociedade, mas era preciso ter

ciência de que eles eram homens e, por isso mesmo, imperfeitos.

O estudo dos pensamentos de Sayyid Qutb e de Hasan al-Hudaybi ilustra as

transformações pelas quais passou a ideologia da Irmandade Muçulmana, além de apontar

para uma diversidade interna fruto do enfrentamento de elites internas. Estas leituras são

importantes por dois motivos. Primeiro, mostra que o pensamento de Irmandade Muçulmana

se alterou desde a sua criação até as décadas de 1970, e de lá para cá, também sofreu outras

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mudanças. O segundo motivo, é a percepção de projetos distintos dentro da organização, e a

ponderação da representatividade de cada projeto em determinadas circunstâncias históricas.

4.5 Comparação das perspectivas de Hassan al-Banna, Sayyid Qutb e Hasan al-Hudaybi

sobre o nacionalismo

Anthony Smith elenca seis elementos que sintetizam idealmente uma ideologia

nacionalista. Após o estudo do pensamento de Hassan al-Banna, Sayyid Qutb e Hasan al-

Hudaybi, é possível verificar em que medida eles se aproximam deste modelo. Os seis

elementos são: 1) O mundo é dividido em nações, cada uma com suas próprias características,

história e destino. 2) a nação é a única fonte de poder político. 3) A lealdade à nação

sobrepuja as outras lealdades. 4) Para ser livre, cada indivíduo precisa pertencer a uma nação.

5) cada nação requer autonomia. 6) A paz e a justiça global requerem um mundo de nações

autônomas.

De modo geral, uma primeira observação é que a ideologia da Irmandade Muçulmana

não foi consistente e homogênea ao longo do século XX. Ao contrário, ela foi uma

justaposição de diferentes ideias sem que fossem organizadas metodicamente em um quadro

fixo e claro. Ziad Munson (2001) argumenta que é justamente o caráter ambíguo e impreciso

que garantiu o sucesso da Irmandade Muçulmana no Egito (e em outros países também), pois,

garantiu uma amplitude ideológica capaz de comportar indivíduos com orientações políticas

bem distintas. Por outro lado, este repertório de ideias facilitou a adoção de uma postura

pragmática frente aos imperativos políticos e sociais. Como observa Mohammed Ayoob

(2008), a Irmandade Muçulmana é um grupo pragmático que soube se adaptar às oscilações

na vida política egípcia ao longo do século XX.

Dado este caráter ambíguo da Ideologia, não é surpreendente que haja indivíduos com

pontos de vista díspares, e até mesmo contraditórios. O lugar do nacionalismo não é uma

exceção. Para Hassan al-Banna, o nacionalismo poderia ter duas leituras, uma que

enfatizassem o caráter particular, seja ele territorial ou étnico, e a outra que associava a

comunidades dos fieis a uma espécie de comunidade nacional “religiosa”. No primeiro caso,

al-Banna reconhecia que o mundo é dividido entre nações, cada uma com suas próprias

características. Contudo, esta nação particular estaria submetida à nação mais ampla, a do Islã.

Neste caso, a nação territorial não era a única fonte de poder político, pois a lealdade à

comunidade islâmica teria primazia sobre as outras lealdades. E, ainda que as nações

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territoriais fossem consideradas legítimas, elas eram uma etapa rumo a uma entidade mais

ampla. Neste sentido, a nação era uma entidade política “instrumental”, mas que, por si

mesma, não garantia a liberdade e a realização do indivíduo.

Por outro lado, não deixa de ser instigante a tentação de associar a visão pan-islâmica

de al-Banna a uma manifestação de um determinado nacionalismo. Considerando os aspectos

elencados por Anthony Smith, a comunidade dos fieis poderia constituir, na visão de al-

Banna, uma comunidade primordial. Ou seja, a Umma possui um nome próprio, mitos

comuns de ancestralidade, memórias compartilhadas, diferenciação cultural, relação com um

território e possui uma relativa solidariedade entre os integrantes. Contudo, esta aproximação

levantaria diversos problemas, sendo o mais relevante deles é que o conceito de ethnie de

Smith pode ser aplicado a diversas comunidades sem muita distinção entre a natureza delas.

Contudo, mais cauteloso seria a associação de al-Banna a um nacionalismo pan-arabista, no

qual o Islã teria um papel fundamental na união dos povos árabes. Esta associação parece

corresponder melhor ao modelo proposto por Anthony Smith, em que religião é transformada

em um elemento de coesão étnica. Mas ainda assim, este projeto arabista/islamista seria

realizado a partir da liderança egípcia. Em outras palavras, o Egito ocuparia o “centro

gravitacional” destes círculos concêntricos.

O caso de Sayyid Qutb é o mais intrigante, pois a sua visão de mundo se afasta

radicalmente daquela de Hassan al-Banna a respeito do nacionalismo. Como mostra Sami

Zubaida (2004), o islamista geralmente advoga que a “nacionalidade islâmica” constitui a sua

fé, e muitos islamistas denunciaram o nacionalismo territorial na medida em que estes

induzissem a fragmentação da comunidade islâmica, contribuindo para a fraqueza do corpo

islâmico face aos seus inimigos. Mas Sayyid Qutb, um dos ideólogos fundadores do Islã

radical moderno, levou esta proposição a conclusões extremas, condenando explicitamente o

patriotismo baseado em territórios e raças, artefatos que desviariam a atenção dos

muçulmanos de suas lutas contra o “Ocidente” (ZUBAIDA, 2004).

Em oposição a al-Banna, Sayyid Qutb não somente critica a desunião entre os

muçulmanos, como nega qualquer legitimidade da vinculação territorial ou étnica. Hassan al-

Banna enfatizava a primazia da comunidade dos fieis, mas de modo algum rejeitava as

identidades locais, sendo que todas as identidades se reforçavam mutuamente. Na visão de

Qutb, a lealdade à comunidade islâmica era exclusiva e impedia qualquer outra associação do

indivíduo sem que este caísse na condição de jahiliyya. O pertencimento a uma comunidade

excluía o pertencimento a outra. Não era possível pertencer a duas comunidades distintas.

Neste sentido, Sayyid Qutb se afasta radicalmente de uma ideologia nacionalista, pois ele não

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reconhece que o mundo seja dividido em nações com características próprias. Para Qutb, o

mundo é dividido entre o território controlado pelo Islã e pelo resto situado na ignorância.

Contudo, esta visão de Sayyid Qutb não deixa de ser contraditória na medida em que o alvo

de todas as suas críticas é principalmente o governo egípcio. Ao passo que al-Banna se

opunha ao domínio britânico e ao movimento Sionista, Qutb colocava a política egípcia num

patamar superior mesmo àquele da causa Palestina.

Por fim, há a ideologia do sucessor de al-Banna, Hasan al-Hudaybi. O pensamento de

al-Hudaybi pode ser considerado o que menos apresenta problemas em relação ao princípio

do nacionalismo, muito embora ele mesmo não possa ser considerado um. Hasan al-Hudaybi,

ao contrário de Qutb, não associa a essência do Islã com o imperativo de controle político e

territorial, pois o Islã seria concretizado primeiramente na individualidade do fiel. Com isso,

al-Hudaybi consegue propor um conjunto de ideias mais flexíveis que puderam ser adaptadas

à realidade política do Egito. O Estado Islâmico de al-Hudaybi não era mais o Estado

Islâmico total e global, mas o Estado nacional que deveria ser reformado. Certamente, laços

de solidariedade foram mantidos para fora do Estado nacional, mas al-Hudaybi não discorria

sobre a dissolução nem a fusão das nações. Seu escopo ideológico estava voltado sobretudo

ao Egito.

Enfim, o importante a ser destacado é que tanto o pensamento de Sayyid Qutb quanto

o de Hasan al-Hudaybi está circunscrito ao espaço egípcio. Contudo, o fato de estarem

delimitados pelas fronteiras nacionais não obrigatoriamente os transformam em nacionalistas.

É preciso destacar que a ideologia nacionalista possui certos aspectos que não são

contemplados nem por Qutb nem por al-Hudaybi.

Barbara Zollner (2009) argumenta que o enfoque exclusivo no pensamento de Hassan

al-Banna e Sayyid Qutb não permite contemplar a Irmandade Muçulmana hoje de maneira

mais aprofundada. Ela defende que, para além da ideologia destes personagens centrais, a

Irmandade atualmente tem como objetivo o engajamento na política nacional no nível

institucional e ser reconhecida como um partido político. E este tópico será discutido no

próximo capítulo.

O que será visto no próximo capítulo é a trajetória política da Irmandade Muçulmana

ao longo do século XX. No início, a Irmandade se opunha ao domínio britânico e postulava

uma ideologia transancional (ou pan-islâmica). Contudo, ao final do século XX, a realidade

política do Estado Moderno se impôs, e o escopo de atuação de Irmandade Muçulmana

egípcia se restringiu drasticamente ao Egito. Ao final do século XX, o Estado nacional era a

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única realidade política concreta no Oriente Médio. Contudo, tanto o Arabismo quanto o

Islamismo permaneceram aspectos relevantes nos domínios inter-humanos e transnacionais.

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5 A COMPARAÇÃO ENTRE FATORES POLÍTICOS DOMÉSTICOS E

INTERNACIONAIS

Fatores políticos foram fundamentais para a conformação da Irmandade Muçulmana

ao cenário nacional egípcio. Ainda que ela possua uma identidade que a vincule à população

da região, a atuação política do grupo paulatinamente se restringiu ao Egito. A situação

perante Israel é emblemática. Se em 1936 e em 1948 a Irmandade Muçulmana egípcia teve

um papel ativo na Palestina, em 1967 e em 1973, ela não tomou parte do conflito ainda que

condenasse as ações de Israel. Este capítulo realiza um estudo que contempla como a

Irmandade Muçulmana reagiu perante fatores políticos nacionais e internacionais a fim de

apreender o escopo dos seus projetos políticos no decorrer do século XX.

Hassan al-Banna via a causa Palestina sob a ótica religiosa, e mesmo antes da

resolução da Partilha a Irmandade Muçulmana dava precedência à causa Palestina, o que

gerou descontentamento entre alguns integrantes. Al-Banna imaginava que a solução do

impasse era o estabelecimento um governo palestino que pudesse recrutar tropas aos quais se

juntariam voluntários vindos de fora, formando assim uma guerrilha na região. Hassan al-

Banna argumentava que os governos árabes deveriam financiar e armar as forças palestinas,

mas não deveriam participar diretamente do conflito, pois assim evitariam o possível

envolvimento de forças internacionais (EL-AWAISI, 1998).

El-Awaisi (1998) indica que uma das principais causas de enfrentamento entre a

Irmandade e o governo egípcio foi o envolvimento da Irmandade Muçulmana em atividades a

favor da Palestina e contestações contra a presença britânica. Obviamente, a Grã-Bretanha,

que tinha influência sobre o regime egípcio, forçou o governo a limitar as ações da

Irmandade.

Enquanto isso, as intenções da Irmandade Muçulmana ficavam cada vez mais

evidentes. Em 1936, a Irmandade Muçulmana se engajou na mobilização da população

egípcia pela Revolta Palestina que começara naquele ano. Ainda em 1936, Hassan al-Banna

buscou estabelecer vínculos com as forças armadas egípcias e contatos pessoais com oficiais.

Integrantes da Irmandade frequentaram escolas militares e ocuparam alguns cargos civis no

exército. Além disso, a Irmandade Muçulmana conduziu uma campanha de propaganda

dentro das forças armadas para a tomada de consciência dos oficiais de suas funções políticas.

As relações da Irmandade com o corpo de oficiais foram mantidas nos anos seguintes. Em

1939, o próprio Anwar Sadat, futuro presidente do Egito, encontrou-se com al-Banna diversas

vezes durante. Richard P. Mitchell observa que o assunto das conversas abordava a ocupação

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britânica e discutiam a possibilidade de um golpe militar. Mas apesar desta aproximação, a

existência de um braço armado da Irmandade era vista com desconfiança pelos oficiais.

Com a Segunda Guerra Mundial, Hassan al-Banna aproveitou as condições regionais e

nacionais para criar a Sessão Especial, um braço armado com o objetivo de tomar parte na

ação militar na Palestina e conquistar a libertação do Vale do Nilo do domínio britânico. Em

1948, com a guerra deflagrada em Israel após a retirada das tropas britânicas, a Irmandade

Muçulmana teve uma participação militar importante no lado árabe. Autores como Richard P.

Mitchell (1969) consideram o ano de 1948 o auge da Irmandade, que logo em seguida entraria

em fase de decadência. Ainda no mesmo ano, a Irmandade foi dissolvida pelo governo por

considerá-la promotora da instabilidade nacional. Em 1949 Hassan al-Banna foi baleado e

morto. Após a morte de al-Banna, a Irmandade entrou numa fase de crise interna e

enfrentamento com os regimes egípcios.

5.1 A expansão da Irmandade Muçulmana na região do Levante (1935-1948)

Em 1945, Hassan al-Banna anunciou que o próximo passo da Irmandade seria o

compromisso com a jihad e o apoio às reivindicações nacionalistas do Egito e do “Mundo

Islâmico”. Para ele, as condições do pós-guerra eram favoráveis aos movimentos nacionalistas

e representavam um momento crítico na história moderna. E em consonância com este quadro

internacional, al-Banna identificou uma tendência e uma vontade por parte dos países árabes

em se unirem e coordenarem suas forças (EL-AWAISI, 1999). Porém, como foi visto no

capítulo anterior, a luta contra o domínio colonial mobilizou não somente a ideologia

nacionalista e árabe, mas também a identidade islâmica. El-Awaisi (1999) observa que, para

al-Banna, a Irmandade não era um movimento regional, mas um movimento Islâmico

internacional, dada a natureza universal do Islã. Mas como essa ideia se traduziu nas

atividades da organização?

A presença da Irmandade Muçulmana em países da região do Levante foi um

fenômeno iniciado nas décadas de 1930 e de 1940. A repressão de Nasser em 1954, por sua

vez, induziu o exílio em massa dos integrantes para os países vizinhos e mesmo para a

Europa. Em um primeiro momento, os exilados da Irmandade se dirigiram à Arábia Saudita,

aos países do Golfo, ao norte da África, ao Iêmen e ao Sudão (BURGART, 2008).

De maneira geral, o estabelecimento de ramificações em outros países se deu em duas

etapas. A primeira envolveu o envio de representantes da Irmandade aos países vizinhos para

difundirem a mensagem da organização nas mesquitas e estabelecerem contatos com grupos

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islâmicos locais (EL-AWAISI, 1999). A segunda etapa consistiu na formação de ramificações

da Irmandade Muçulmana em outros países.

As atividades e os objetivos políticos da Irmandade Muçulmana em cada país não

foram homogêneos, sendo que cada ramificação adquiriu características próprias. Se no Egito

e na região da Palestina ela se empenhou na Islamização do sistema político e na oposição ao

imperialismo, no Iêmen ela esteve associada à modernização política. Isto é, a Irmandade

ajudou a promover o advento de formas de organização política moderna e a superação de

identidades vinculadas à hierarquia social de divisões sectárias (BURGAT, 2002; 2008).

François Burgat (2008) chama a atenção para o aspecto Reformista da Irmandade e a

capacidade dela para se adaptar. Portanto, as instituições políticas de um Estado, como coloca

Breuilly, são fundamentais para o desenvolvimento dos movimentos políticos, incluindo os

nacionalistas e o conteúdo que eles adquirem.

Entre as atividades no exterior, a Palestina foi o primeiro país para o qual a Irmandade

Muçulmana difundiu a sua mensagem. Em 1935, a Irmandade enviou a primeira delegação

externa à Palestina. Com a Revolta Palestina em 1936-39 contra a tutela britânica, a

Irmandade endossou o apoio à causa Palestina, sendo que um pequeno número de integrantes

da Irmandade tomou parte na revolta. Quantidade que seria bem mais representativa na guerra

de 1948. Mas apesar disso, a delegação enviada não criou condições para o estabelecimento

de uma ramificação da Irmandade Muçulmana, como ocorreu mais tarde na Síria e no Líbano

(EL-AWAISI, 1999). Mas com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Irmandade se mobilizou

para o assentamento de uma ramificação na Palestina.

A ramificação na Palestina não era autônoma, o que foi um caso particular no padrão

de assentamento de novas “filiais” em outros países, caracterizados pela a autonomia da

organização local. A ramificação na Palestina compartilhava os métodos e as crenças da

Irmandade Muçulmana egípcia. Outro aspecto a ser destacado é a preparação militar que a

Irmandade egípcia promoveu na Palestina, o que confirma o interesse da organização na

região vizinha (EL-AWAISI, 1999).

A rápida expansão da Irmandade na Palestina no período pós-guerra e o grau de

preparação militar indicava o início de uma mobilização de resistência à Israel. Isso exigiu

uma abordagem mais ativa, que tomou a forma de envio de mais missões e o aumento do

estabelecimento de novas ramificações em países vizinhos. Estas ramificações estavam em

estado de alerta para agir conjuntamente, o que tornaria mais eficaz alcançar o objetivo. Por

outro lado, na Palestina a Irmandade também se envolvia na disputa entre partidos políticos.

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A Irmandade Muçulmana também enviara representantes à Síria e ao Líbano

difundindo a mensagem de Hassan al-Banna, que foi bem acolhida por organizações islâmicas

locais. Já em 1937, a Irmandade atuava na Síria através de cooperação mantida com os grupos

locais. E em 1946, foi decidido em uma conferência em Damasco para as organizações

islâmicas da Síria e do Líbano que estes grupos seriam unificados sob a alcunha da Irmandade

Muçulmana. Contudo, as ramificações eram autônomas e independentes, mesmo que

reproduzissem o modelo de organização da Irmandade Muçulmana egípcia (EL-AWAISI,

1999).

A Irmandade Muçulmana no Líbano era considerada como parte da Irmandade Síria,

não possuindo a autonomia política e administrativa. Contudo, em 1949, a Irmandade no

Líbano se mostravam independentes em relação à Irmandade do Egito e à ramificação síria,

dadas as particularidades comunitárias e religiosas do Líbano (EL-AWAISI, 1999). Por sua

vez, a Irmandade Muçulmana na Síria posteriormente teve um papel fundamental no

momento em que a Irmandade no Egito entrava em confronto com Nasser. Neste momento, a

ramificação síria se estabeleceu como centro para as atividades da Irmandade, (AL-AWAISI,

1999). E, assim como no Líbano, a Irmandade Muçulmana na Síria desenvolveu uma

trajetória particular, principalmente após a tomada do poder pelo partido Ba’ath.

Em comparação com a situação na Síria e no Líbano, a condição da Irmandade

Muçulmana na Palestina era bastante específica dada a dependência mantida em relação à

Irmandade egípcia. A influência da liderança egípcia era evidente na promoção da resistência,

no treinamento e monitoramento, assim como na organização dos membros da Irmandade

local. Além disso, o centro no Cairo recebia frequentemente relatórios sobre a atividade na

Palestina, e as decisões do Cairo tinham grande importância para as ações na Palestina.

O breve olhar para estes três casos no Levante aponta para uma atuação da Irmandade

no domínio transnacional e inter-humano, evidenciado pelo trânsito de pessoas e ideias para

além das fronteiras políticas. Nestes casos, a expansão da Irmandade Muçulmana não foi uma

“colonização” dos outros países, mas a cooptação de grupos locais para uma organização mais

ampla.

5.2 O período de Nasser (1952-1970): momento de decadência da Irmandade

Muçulmana

Com a Revolução de julho de 1952, um grupo de jovens oficiais, sob a liderança do

general Muhammad Naguib, derrubou o regime monárquico. Após um breve período de

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disputa interna, o coronel Gamal Abd Al-Nasser despontou como a figura forte no grupo e

assumiu a presidência, cargo que ocupou até a morte em 1970. Este foi o período mais crítico

para a Irmandade Muçulmana. Christina Harris (1965) observa, em 1965, o panorama e as

perspectiva para a organização e diz que “é impossível prever se a uma organização que

sobreviveu a diversos períodos de existência marginal pode, ou não pode, ser capaz de

ressurgir. Mas até agora, a Irmandade Muçulmana tem sua existência encerrada39

” (HARRIS,

1965, p.235, tradução nossa).

Como foi visto, durante os anos do governo de Nasser a liderança da Irmandade

Muçulmana foi exercida por Hassan al-Hudaybi, que permaneceu no posto até a morte em

1973. No decorrer deste período, a relação entre a Irmandade Muçulmana e o regime oscilou

entre momentos diferentes: o primeiro momento testemunhou uma aliança tácita, seguido por

um momento caracterizado por uma hostilidade aberta (ASHOUR, 2009).

Nos seis primeiros meses de governo, os Oficiais Livres almejavam manter uma

relação pacífica com a Irmandade. O grupo dos oficiais, por um lado, receava a popularidade

e a capacidade de mobilização da Irmandade Muçulmana. Mas, por outro lado, o novo regime

buscou cooptar a Irmandade para endossar a submissão dos outros partidos políticos ao final

de 1952. A Irmandade Muçulmana, por sua vez, apoiava a Revolução por causa da oposição

dos Oficiais livres à Grã-Bretanha e à liderança doméstica associada à velha ordem. Por outro

lado, a Irmandade endossava a concepção orgânica de Estado promovida pelos Oficiais Livres

e o desmantelamento da oposição que ia de encontro aos interesses da Irmandade, como o

partido Wafd e os grupos comunistas (MITCHELL, 1969). Hassan al-Hudaybi se aproximou

do presidente Naguib, buscando garantir os direitos da organização, a libertação de alguns

integrantes e a formulação de uma Constituição compatível com os princípios islâmicos.

5.2.1 A primeira e a segunda perseguição no governo de Nasser: 1954 e 1965

A aproximação inicial entre a Irmandade Muçulmana e os Oficiais Livres foi

interrompida mais precária quando Nasser sobe ao poder ela é revertida para uma postura de

oposição (GORDON, 1996). Nasser fundamentou a legitimidade de seu governo a partir de

políticas sociais, da oposição a Israel e ao “Imperialismo”, da defesa do nacionalismo egípcio

secular e de um projeto pan-arabista. Ficava evidente a incompatibilidade entre o projeto

político dos Oficiais Livres e a da Irmandade Muçulmana, apesar do breve período de

39

It is impossible to predict whether an organization that has already survived several periods of existence

underground might, or might not, be capable of resurrection.

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cooptação e aproximação. Em outras palavras, diante do objetivo de consolidar a autonomia

política do Egito, houve uma coordenação de grupos com interesses distintos sob o argumento

de defesa de uma causa nacional. Posteriormente, contudo, esta aliança tácita foi rompida.

Apesar do discurso de seu discurso enfatizar a necessidade de desvincular a religião de

seus aspectos políticos, segundo Malika Zeghal (1999b), Nasser não pode ser caracterizado

estritamente como anticlerical. Tanto a sua formação pessoal quanto a estrutura da esfera

religiosa no Egito o induziu a adotar uma postura mais prudente em relação à instituição

religiosa. Quando iniciou a repressão da oposição, inclusiva da Irmandade Muçulmana,

Nasser procurou ter a sua disposição uma instituição religiosa aliada face à oposição interna e

também em oposição à emergência do país rival, a Arábia Saudita. Deste modo, Nasser

buscou controlar a universidade de Al-Azhar, que passou a ser associado a uma instituição

favorável ao regime. Além disso, como já foi visto, Al-Azhar era uma instituição respeitada

no Oriente Médio por causa de sua história, o que serviria como instrumento político de

Nasser na promoção de sua liderança na região.

Nasser não se opôs imediatamente à Irmandade Muçulmana após a Revolução, mas

precisou preparar o terreno político para o desmantelamento da mesma, provavelmente o

movimento mais bem organizado nos últimos anos da Monarquia. Por outro lado, a relação

da Irmandade com o regime mostra que, na época, a Irmandade não possuía claramente uma

estratégia consistente. A postura favorável e conciliatória de al-Hudaybi de cooperação com o

regime contrastava com a crescente desconfiança por integrantes mais jovens da nova ordem.

Apesar da desconfiança em relação a al-Hudaybi, Nasser tentou cooptar figuras

importantes dentro da organização, inclusive oferecendo três ministérios a membros da

Irmandade Muçulmana, os quais a liderança da Irmandade recusou. Esta recusa por parte da

Irmandade constituiu uma primeira divisão em relação ao regime (ZOLLNER, 2009).

O ano de 1954 marca a ruptura nas relações entre a Irmandade e o governo de Nasser.

A perseguição e a prisão dos líderes quase levaram ao desmantelamento da organização. Por

outro lado, a crise de Suez em 1956 que transformara Nasser em herói nacional e regional,

liberando o regime da supressão de dissidência doméstica. A figura política de Nasser ganhou

evidente prestígio que eclipsou qualquer tentativa de oposição ao regime. Em consequência, o

fortalecimento da posição política de Nasser fez que ele não visse mais a Irmandade como

uma ameaça e houve um relativo afrouxamento na supressão (ZOLLNER, 2009).

A Irmandade contava nestes anos com o auxílio de integrantes que estiveram no exílio

e com o apoio de outras organizações similares. Atores externos, como a Arábia Saudita que

rivalizava com Nasser pela liderança na região, se tornaram em fonte de recursos financeiros

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para Irmandade Evidências apontadas por Barbara Zollner (2009) mostra que a sobrevivência

do grupo não se limitou a pequenos grupos no Cairo e em Alexandria, mas abarcava círculos

que compreendiam outras partes do Egito. Esta observação contraria a ideia de que o

ressurgimento do grupo se deu na prisão.

A dissolução da Irmandade Muçulmana em 1954 marca uma nova fase na relação

entre a organização e o regime que durou até 1967, quando os países árabes perdem a guerra

para Israel. Durante esses anos, a Irmandade foi obrigada a agir de forma clandestina. O final

do governo de Nasser marca a quebra da coesão política egípcia e a emergência de protestos

contra o governo.

Após alguns anos de uma liberdade controlada, em Julho de 1965, o regime

novamente intensificou as perseguições contra integrantes da Irmandade Muçulmana. Nasser

condenara a Irmandade sob a justificativa de que integrantes da organização estavam

arquitetando um ataque armado com o intuito de derrubar o governo. As cortes sentenciaram a

pena de morte para diversas membros importantes, como Sayyid Qutb. Hassan al-Hudaybi

também fora condenado à pena de morte, embora, posteriormente, a decisão fosse revista

Quando Sayyid Qutb fora solto em 1964, o espírito de desilusão e fracasso fora

substituído por um novo ativismo da Irmandade. Houve uma maior rejeição do grupo ao

regime de Nasser, e surgiram interpretações mais radicais do que constituía um sistema

islâmico. A radicalização de Qutb estava em consonância com estas ideias. E o ressurgimento

da Irmandade não foi impedido pela nova onde de perseguição de 1965 que visava os

militantes em geral da organização. Esta nova perseguição, apesar de ter sido tão dura quanto

a primeira, não colocou a existência do grupo em risco, pois naquele momento, a organização

da Irmandade estava mais estabelecida e havia um sentimento mais claro da identidade da

organização. Esta circunscrição foi fundamental para a ação política da Irmandade nos anos

posteriores, que restringiu a Irmandade Muçulmana ao cenário político egípcio. Esta segunda

perseguição ajudou a disseminar as ideias de Qutb vinculadas à noção de mártir (ZOLLNER,

2009).

Além disso, a partir de 1965, divisão interna da Irmandade Muçulmana se acentuou.

Apesar de al-Hudaybi consentir com as atividades educacionais e o esforços de atualização da

liderança ideológica realizados por Qutb, o líder da Irmandade buscou se distanciar da

orientação mais radical vinculada ao combate da jahiliyya. Deste modo, al-Hudaybi acabou

sendo isolado pela fração jovem mais radical da organização, e foi considerado uma liderança

fraca incapaz de guiar a Irmandade durante os anos de repressão (ZOLLNER, 2009).

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Hassan al-Hudaybi morreu em 1973, e então foi sucedido por Urmar al-Tilmisani,

proveniente de uma família importante de proprietários de terra, que liderou a Irmandade

durante o regime de Sadat, fase caracterizada em seu início pela relativa cooperação entre a

organização e o Regime. Apesar de não ter sido um líder carismático, al-Hudaybi estabeleceu

as orientações ideológicas que o grupo adotaria ao final da década de 1960, rejeitando os

preceitos radicais e militantes de Sayyid Qutb.

Por fim, é preciso enfatiza aqui a centralidade do campo político moderno na

compreensão do nacionalismo egípcio. O espaço político moderno, que é um complexo de

modelos políticos, vocabulários, organizações e técnicas, consiste o domínio da mobilização e

organização política no mundo contemporâneo. Dado o crescente poder coercitivo e expansão

de funções sociais do aparato estatal no Oriente Médio moderno, o Estado nacional se tornou

o principal determinante no campo político, definindo os parâmetros dentro dos quais os

comportamentos políticos se desenrolam. E neste quadro, a concepção de nação se tornou o

modelo de pensamento e comprometimento das lealdades dos indivíduos. Esta perspectiva

sobre a relação entre o nacionalismo egípcio se aproxima do quadro analítico proposto por

John Breuilly, que enfatiza o papel do aparato institucional estatal nos movimentos

nacionalistas. E este quadro institucional teve grande importância na trajetória da Irmandade

Muçulmana egípcia a partir de então.

5.2.2 O Pan-arabismo e a Guerra de 1967

A adoção do nacionalismo árabe pelo Egito durante a primeira década do regime de

Nasser demonstra tanto continuidades quanto descontinuidades com a história egípcia em

relação ao Mundo Árabe. Jankowski (2002) observa que o Egito não esteve envolvido na

origem do movimento do nacionalismo árabe antes e durante a Primeira Guerra Mundial,

quando a principal a maior preocupação egípcia era a ocupação britânica mais do que o

processo de centralização do Império Otomano que serviu como estopim para o separatismo

das províncias árabes. Após a Revolução de 1919, o Egito manteve a postura de afastamento

perante o Mundo Árabe.

Mas fatores domésticos e internacionais na década de 1940 fizeram com que o Egito

reorientasse sua política e buscasse maior aproximação dos outros países na região.

Internamente, o Egito passava por um período de estagnação política e econômica,

fragilizando o regime monárquico. No âmbito internacional, o prospecto de um estado

povoado por judeus europeus na Palestina serviu como catalisador da aproximação entre os

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países árabes. Além disso, a população educada do Egito passou a ser mais sensível aos

apelos do revivalismo árabe e de cooperação entre os países do Levante. Neste cenário,

intelectuais defendiam que o Egito fazia parte de uma comunidade árabe maior e políticos

egípcios passaram a se envolver mais frequentemente nas políticas dos países vizinhos. Em

1945, o Egito respondeu aos apelos de integração árabe que resultaram na formação da Liga

dos Estados Árabes em 1945.

A política pan-arabista de Nasser deu continuidade às ambiguidades em relação ao

nacionalismo árabe, que concebiam ao Egito a liderança do “Mundo Árabe”. Até a formação

da República Árabe Unida em 1958, o nacionalismo árabe de Nasser manteve um sentimento

de proeminência egípcia entre os países árabes.

O nacionalismo árabe, na segunda metade do século XX foi um movimento poderoso.

Uma explicação para o movimento é que os árabes são uma nação caracterizada por uma

linguagem e por um passado comum. Contudo, John Breuilly contesta esta análise, pois para

ser mais do que uma ideologia vaga, o nacionalismo pan-arabista precisava de uma ação

coordenada que requeria liderança, que só pode derivar de um Estado particular. Esta

condição, segundo Breuilly, ocorreu com a ascensão de Nasser no Egito. Nasser visava

orientar as energias do Egito para uma variedade de causas superficiais a partir de uma

postura anti-imperialista. As causas – o nacionalismo arabista e o Islã – eram artificialmente

trazidas juntas na sua concepção de envolvimento do Egito em anéis de relações

(BREUILLY, 1993). Breuily considera que a mobilização dessas causas, na prática, era mais

uma política externa oportunista e agressiva. Nasser alcançou esta coerência através da

ascensão do nacionalismo árabe em oposição à Israel e ao fato do Egito poder dominar essa

oposição mais eficazmente. A Crise de Suez em 1956 pareceu confirmar a percepção regional

sobre e Israel e dos interesses das potências europeias. Dado este contexto, Nasser se engajou

pela aproximação com outros países árabes, e em 1958 o Egito formou com a Síria, a

,República Árabe. Unida, sendo que mais tarde entraria também o Iêmen, formando os

Estados Árabes Unidos. Tudo isso pareceu confirmar que o pan-nacionalismo seria

concretizado em uma união entre os países da região.

Mas diferenças entre os países árabes se mostraram obstáculos intransponíveis. A

hostilidade entre o Egito e a Arábia Saudita, em termos de liderança e de projeto político,

representou um obstáculo à ascensão de uma liderança socialmente aceita na região. O

nacionalismo radical de Nasser era diametralmente oposto à monarquia conservadora saudita.

Usando noções da Escola Inglesa, é possível observar que a distribuição dos padrões de

amizade e inimizade no Oriente Médio não permitia a construção de uma sociedade

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internacional regional propícia à realização do pan-arabismo40

. O exemplo mais evidente é o

destino da República Árabe Unida que é desestruturada em 1961 quando a Síria se ressentiu

da posição prevalecente do Egito na República.

Por fim, o pan-arabismo encontrou também um obstáculo no ambiente doméstico

egípcio. Quando o Egito saiu derrotado na guerra de 1967 com Israel, muito da popularidade

de Nasser fora abalada, e junto com ela o projeto pan-arabista. A opinião pública se tornou

cada vez mais crítica dos custos das políticas promovidas por Nasser e dos resultados pífios

alcançados. Diante de um cenário político doméstico incerto, a causa árabe perdeu o seu apelo

entre a população (BREUILLY, 1993).

Mas, ainda que a teoria de Breuilly seja de grande utilidade, duas observações são

necessárias. Primeiro, Breuilly não observa a Sociedade Internacional regional e, portanto,

não inclui categorias analíticas da Escola Inglesa que permitem compreender as outras

dimensões das relações políticas na região do Oriente Médio. O pan-arabismo é um fator

importante não somente no processo de unificação nacional, mas também em outras esferas

da sociedade internacional. O seu fracasso político com Nasser não significa que a noção de

arabismo não continue sendo relevante da caracterização da sociedade internacional regional

do Oriente Médio. O fato da união nacionalista árabe não ter se concretizado não impede que

a noção de “pertencimento árabe” não seja um elemento importante na relação entre países e

entre pessoas e grupos na região (VALBJORN, 2009).

Anthony Smith, por sua vez, define o pan-nacionalismo como uma tentativa de

unificar em uma única comunidade política diversos estados a partir da base de uma

característica cultural compartilhada (SMITH, 1990). Smith considera que este pan-

nacionalismo, juntamente com objetivos políticos e paz regional, pode alavancar uma base

para uma cultura regional.

Do ponto de vista político, o pan-arabismo não teve sucesso, entendendo sucesso

como a unificação de estados separados e um estado maior. Mas adotando outras perspectivas,

é possível julgar as consequências do movimento em outras dimensões – culturais,

econômicas, filantrópicas. Smith sublinha que o pan-arabismo não impediu a ocorrência de

guerras entre países árabes, mas, por outro lado, inspirou desenvolvimento de projetos entre

os países árabes, maiores ligações culturais e filantrópicas.

Além disso, Anthony Smith considera que o pan-arabismo, ao lembrar os estados e as

nações da herança cultural mais ampla que os abrange, auxilia a contenção de tendência de

40

Importante observar que Breuilly não trabalha com a noção de sociedade internacional regional.

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fragmentação de minorias étnicas e as rivalidades do nacionalismo territorial. Mesmo que a

vontade política seja insuficiente para a superação dos conflitos, o pan-arabismo ajuda a

manter vivo o desejo de negociar diferenças dentro de uma área cultural e de criar um

alinhamento e instituições regionais (SMITH, 1990).

As unidades são criadas nas esferas políticas e econômicas. Mas elas só têm uma

relação parcial com a realidade das “áreas culturais”. Eles são unidades institucionais

construídas e planejadas. As “áreas culturais”, por sua vez, são produtos de circunstâncias

históricas de longa duração, geralmente não planejada, mas nem por isso menos poderosa.

Smith observa que os sentimentos islâmicos não são menos relevantes do que instituições

políticas e sociais (SMITH, 1990).

É importante destacar que Breuilly reconhece que o nacionalismo arabista permaneceu

uma força política poderosa mesmo sem a liderança egípcia. Diversos países reivindicaram a

herança do nacionalismo árabe, mas por causa das diferenças foi difícil coordenar a ação entre

eles (BREUILLY, 1993). A Arábia Saudita não poderia se comprometer com políticas

radicais exigidos por outros países como a Líbia. Por outro lado, quando um país tomava uma

posição destacada no conflito com Israel, ele reivindicava a liderança entre os países árabes.

Mas isso frequentemente fez com que estes países entrassem em conflito com outros países

árabes e com os próprios Palestinos.

Ainda mais evidente foi a tentativa de Saddam Hussein reivindicar a liderança do

nacionalismo árabe com a Guerra do Golfo. Esta reivindicação envolveu a invasão do Kuwait

e fez com que outros países árabes importantes – o Egito, a Síria e a Arábia Saudita – se

posicionassem contra o Iraque (BREUILLY, 1993). Contudo, a Guerra Do Golfo representou

uma crise maior para o arranjo político no Oriente Médio do que Breuilly apontou. Ela

envolveu não somente uma oposição geopolítica, mas também entre Ideologias e projetos

políticos distintos.

Outro ponto que precisa ser destacado sobre a análise de Breuilly é a ausência das

permanências na história do Oriente Médio. Essas permanências, em parte, ajudam a explicar

as próprias ideias de Nasser. O histórico do pensamento político árabe e islâmico mostra

como a ideia de círculos concêntricos já estava presente na tradição desde o final do século

XIX. A mobilização da ideia de pan-arabismo por Nasser se insere numa tradição mais ampla,

e o estudo da Irmandade Muçulmana ajuda a compreender o ambiente no qual estas ideias

foram concebidas no Egito. Antes de puro oportunismo, a decisões de Nasser estiveram

vinculadas a outros projetos políticos coetâneos. Em relação à união dos povos árabes,

hostilidade à Israel e ao imperialismo, é possível observar que houve um “intercâmbio” entre

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os grupos políticos no Egito e na região. Neste sentido, a teoria de Smith aponta para um

modelo que lida melhor com a relação entre a noção de pertencimento nacional, o caráter

árabe e o papel da religião.

5.3 Anwar Sadat (1970-1981): momento de reconstrução da Irmandade Muçulmana

Logo após a morte de Nasser em 1970, o vice-presidente Anwar Sadat, um dos líderes

da Revolução de 1952, assumiu o cargo de presidente. Sadat assumiu o governo de um país

fragmentado e desmoralizado com a derrota na guerra de 1967. Sem o carisma de Nasser,

Sadat se tornou uma figura política distinta de seu antecessor, não somente no aspecto

pessoal, mas na postura política adotada. Após a guerra com Israel em Outubro de 1973, o

Egito e a região do Oriente Médio passaram por diversas mudanças sociais, políticas e

econômicas, as quais demandaram do líder egípcio novas políticas que respondessem aos

desafios. De forma geral, a postura política de Sadat foi fundada por quatro eixos: abertura

das políticas econômicas, aproximação com os Estados Unidos e afastamento da União

Soviética, abertura política gradual e liberalização da formação de partidos políticos em 1976,

e a normalização das relações com Israel após 1977 (IBRAHIM, 2002, p.37).

A busca por legitimidade levou Sadat a enfatizar o caráter religioso do governo e da

sua própria pessoa. Para isso, ele endossava a construção de um Estado baseado nos valores

islâmicos, ainda que não fosse um Estado teocrático no sentido estrito. Esse discurso ajudou a

galvanizar a identidade islâmica do governo. Importante destacar que foi durante o período de

Sadat que o processo de “re-islamização” da sociedade ganhou força, e, de maneira geral,

Sadat manteve boas relações com os grupos islâmicos. Na tentativa de construir uma nova

imagem pública, Sadat se apresentava como “o Presidente devoto”. Seus discursos públicos

continham versos do Corão. Além disso, os ulemás de Al-Azhar ganharam mais espaços nos

programas das escolas, na mídia, nas universidades. E a própria guerra de 1973 foi justificada

por razões religiosas (AYUBI, 1980). Além do discurso, Sadat começou a libertar

gradualmente islamistas que estavam presos. E, por fim, Sadat propôs uma emenda na Lei que

previa o Islã ser a religião de Estado e um dos princípios da Constituição, ainda que o

significado e a aplicação exata desse artigo permanecessem vagos. Nesses anos a Irmandade

Muçulmana conseguiu ter uma posição privilegiada, ainda que permanecesse marginal no

âmbito legal.

Durante o período de consolidação, Sadat buscou se desvincular dos nasseristas e dos

partidos de esquerda, redirecionando a afinidade política do governo ao outro lado do espectro

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político. Entre 1971 e 1977, Sadat descartou nasseristas e socialistas do aparato

governamental. Em 1973, o Egito entrou na relativa bem sucedida guerra com Israel, que

apesar de ser militarmente derrotado de última hora, obteve ganhos políticos. Esses dois

fizeram com que o Egito reorientasse a política tanto no âmbito doméstico, quanto no âmbito

regional e mundial.

Na busca por aliados no âmbito doméstico, Sadat se aproximou da Irmandade

Muçulmana, mobilizando a lembrança de afinidades passadas para estabelecer tal aliança.

Mas, ao mesmo tempo, Sadat se empenhava para adotar uma postura mais favorável aos

Estados Unidos e às monarquias do Golfo, apontando para a nova posição do Egito no quadro

regional (ZOLLNER, 2009). Estes dois elementos não se harmonizariam facilmente oo longo

do tempo, o que constituiu um desafio para o governo de Sadat.

Foi nesse cenário que a Irmandade voltou a ser um ator importante no espaço público.

Após a dissolução da organização em 1954 e a repressão de 1965, a Irmandade Muçulmana

expandiu suas atividades nos anos após 1967. Em 1971, o Rei Faisal da Arábia Saudita

mediou um encontro entre Sadat e líderes da Irmandade Muçulmana que se exilaram em

países vizinhos durante o período de Nasser. Com a libertação de integrantes da Irmandade e

a gradual abertura política, a Irmandade reconstruiu a organização e consolidou a sua

presença no espaço público rejeitando a ideologia mais radical da vertente de Qutb em defesa

dos preceitos defendidos por al-Hudaybi, que previa uma relação pragmática com as

lideranças políticas (SULLIVAN, 1999).

Ao passo que Nasser estabelecia sua legitimidade a partir do discurso de

independência nacional, redistribuição de riqueza e defesa do nacionalismo árabe, Sadat

utilizou a retórica do “Direito” como fundamento de seu regime. Sadat se amparou no

discurso de abertura das instituições estatais e no Estado de direito. E, realmente, Sadat

consentiu a abertura limitada aos oponentes do governo, mas ao mesmo tempo não permitia

que eles tivessem acesso ao poder. Nesse processo, o governo permitiu a criação de partidos

alternativos para concorrer às eleições parlamentares de 1976. Todavia, o poder executivo do

presidente suplantava as prerrogativas do legislativo, além do governo acompanhar de perto a

criação dos novos partidos. Por exemplo, não era permitida a criação de partidos baseados em

afiliações religiosas, o que excluía a participação direta da Irmandade do poder (AYUBI,

1989).

Nesse ambiente, ainda que o poder fosse exercido de fato pelo partido do governo,

grupos da oposição acolheram esta reforma com entusiasmo. Se por um lado a Irmandade não

poderia constituir um partido político, por outro, foi permitida à Irmandade empregar outros

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meios para expor suas ideias no espaço público e atuar abertamente na sociedade. Desde

então, um dos principais objetivos da irmandade era ser reconhecida como um movimento

legal (AL-AWADI, 2004).

5.3.1 Política Externa com Israel e conflito com os islamistas

Com o final da guerra em 1967, a ONU aprovou a Resolução 242 a fim de resolver o

impasse. Porém, Israel não cumpriu as diretrizes da Resolução que previa a devolução dos

territórios ocupados com a guerra, incluindo a Península do Sinai (ZAHREDDINE;

LASMAR; TEIXEIRA, 2011). Nos anos após a guerra dos Seis Dias houve o aumento das

hostilidades entre Egito e Israel, e Sadat buscou negociar um acordo com Israel no início da

década de 1970. O Egito estava disposto a reconhecer Israel como um Estado em troca da

devolução da Península do Sinai ao Egito. Porém, Israel se recusou a negociar sob o

argumento de que o Sinai era um território fundamental para a segurança de Israel. Diante

dessa situação, o Egito junto com a Síria lançaram um ataque inesperado contra Israel no

feriado judeu de Yom Kippur. Apesar do conflito ter terminado com a vitória Israelense,

Israel foi pego de surpresa e por pouco não lidou com um resultado mais desastroso. Com a

Guerra de Yom Kippur, ficou claro que o Egito ainda era um ator importante e com

consideráveis capabilities no Oriente Médio, e diante disso Israel aceitou iniciar as

negociações de paz. Em 1975, com a intervenção dos Estados Unidos, um acordo de paz entre

Egito e Israel é assinado, prevendo a retirada parcial de Israel da Península do Sinai e das

Colinas de Golã. Em 1978, ocorreram as negociações de Camp David, promovida novamente

pelos Estados Unidos, que foram as bases para o acordo de paz de 1979 entre Egito e Israel

(ZAHREDDINE; LASMAR; TEIXEIRA, 2011). No final deste processo, Israel retirara suas

tropas do Sinai e o Egito, por sua vez, reconheceu Israel como um estado legítimo.

Após a derrota árabe de 1967, o conflito árabe-Israelense foi traduzido em termos

religiosos, e a vitória de Israel passara a ser atribuída, no Egito, ao afastamento da sociedade

dos valores islâmicos. Além disso, a campanha do Egito na guerra de 1973 foi também

explicada pelos símbolos religiosos (AYUBI, 1980).

Contudo, a despeito dos ganhos políticos no cenário internacional, no ambiente

doméstico o regime passou a ser contestado, sobretudo por movimentos islamistas

insatisfeitos com a relativa aproximação do Egito com Israel.

Em 1974, houve uma tentativa de ataque em uma academia militar no Egito

promovida pelo grupo Shabab Muhammad, uma ramificação da Organização de Libertação

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Islâmica. A reação do governo foi prender os líderes da organização e sentenciar alguns à

pena de morte. Em resposta, o grupo Takwir wa-Hijra sequestrou o Ministro de Questões

Islâmicas, Sheikh Mohammad Al-Dhahabi, assassinando-o em junho de 1977. Muitos dos

membros foram presos, acusados, além dos atos de violência, de tentarem depor o governo. A

Irmandade Muçulmana, por sua vez, denunciou tanto a tentativa de atentado de 1974 quanto o

assassinato do Ministro Al-Dhahabi. Foi nesta ocasião que a Irmandade tornou pública a obra

de al-Hudaybi com a finalidade de explicitar o distanciamento da organização em relação aos

grupos radicais.

Por outro lado, a Irmandade estava abertamente desapontada com o regime de Sadat

não tanto por causa da não implementação da Sharia ou do não reconhecimento do status

legal da organização, mas principalmente por causa da visita de Sadat à Israel em 1977. A

segunda metade da década de 1970 foi marcada pela nova atitude do Egito em relação à

Israel, caracterizada por uma aproximação pragmática e mútuo reconhecimento dos regimes

de ambos os países. Essa aproximação foi criticada pela Irmandade.

Estas críticas foram particularmente sentidas pelo regime de Sadat, pois ele se

sustentava na identidade islâmica. Além disso, apesar da Irmandade Muçulmana ainda não ser

reconhecida legalmente pelo regime, Sadat acreditava que os privilégios concedidos à

organização garantiriam o apoio ao seu governo. Mas, ao invés disso, o grupo criticou a

política externa do governo, o que foi considerado por Sadat como uma “ingratidão”. Nos

anos finais do governo de Sadat, a relação entre a organização e o governo foi bastante tensa,

muito embora não chegasse aos níveis de embate entre o regime e grupos tais como o Jihad

Islâmica e o Takwir Al-Hijra (BAKER, 1990). Tanto ou mais do que o fracasso de Sadat em

abrir completamente o espaço político à participação pública irrestrita, o processo de paz de

1977 e reconciliação com Israel com o acordo de Camp David foram motivos das críticas

dirigidas ao governo egípcio. Mas mesmo com toda essa repreensão, a Irmandade se manteve

distante das ações violentas.

É possível observar que apesar das mudanças pelas quais a Irmandade Muçulmana

passou ao longo do século XX, a sua postura hostil em relação à Israel se manteve, o que

indica que a organização tem uma percepção bem precisa sobre o status das terras antes

vinculadas aos domínios árabes e islâmicos. Muito embora o escopo político tenha

gradativamente se limitado à política interna egípcia, a percepção que a Irmandade tem do

Oriente Médio tem raízes mais profundas. Pelo menos na época de Sadat, a ideia de usurpação

de terras Islâmicas pelo movimento Sionista era um aspecto importante. Obviamente, o que

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não quer dizer que, a partir desse único elemento, pode-se caracterizar a Irmandade

Muçulmana na época de Sadat como uma organização transnacional.

A assinatura dos acordos de Camp David também foi criticada regionalmente,

inclusive pela Arábia Saudita, que limitou o apoio dado ao regime egípcio quando Sadat subiu

ao poder. Além disso, outro evento regional contribuiu para a insatisfação dos grupos

islamistas em relação ao governo de Sadat: a Revolução Islâmica Iraniana. Apesar de

Revolução Iraniana ter desembocado em um regime xiita encabeçado pelo Aiatolá Khomeini,

o apoio dado pelo governo egípcio ao Xá deposto, inclusive oferecendo o Egito como abrigo

ao monarca, foi duramente criticado.

Todos estes elementos incentivaram grupos islamistas a realizarem demonstrações

públicas de descontentamento e a promoverem ataques violentos contra as forças de

segurança do regime, criando um clima de tensão que propiciou conflitos sectários. Em 1981,

houve um confronto entre muçulmanos e coptas que deixou centenas de feridos (SCOTT,

2010)41

. A Irmandade Muçulmana, por sua vez, protestou através de publicações criticando

não somente o governo, mas também a instituição de Al-Azhar, que se manteve alinhada ao

regime e publicou opiniões embasadas no direito islâmico a favor da reconciliação com Israel.

Por outro lado, a Irmandade lembrava as guerras e os ataques no Sul do Líbano como

evidências do projeto da imposição da hegemonia pelos israelenses aos países árabes.

A atmosfera de tensão entre Sadat e a oposição ganhou uma nova dimensão em

setembro de 1981, quando jornalistas, políticos e outras figuras importantes foram presos. Um

mês após, em 6 de Outubro de 1981, um integrante do grupo Al-Jihad sob a liderança de Abd

Al-Salam Faraj, assassinou o presidente Sadat durante uma parada militar. O assassinato de

Sadat foi o auge de um conflito que começou em meados da década de 1970. Gilles Kepel

(2003) considera a formação dos grupos islamistas radicais contemporâneos como

consequência da renúncia às ações violentas pela Irmandade Muçulmana. Grupos como o AL-

Gama’at Al-Islamiyya ganharam os primeiros adeptos entre jovens e estudantes universitários

e se tornaram uma força dominante nos movimentos estudantis nos finais dos anos 70

(KEPEL, 2003). A Irmandade Muçulmana, por sua vez, se distanciou dos grupos militantes e

fez condenações públicas contra o assassinato, evidenciando os novos rumos que a

41

O lugar dos coptas é tópico fundamental na discussão sobre a identidade nacional egípcia. Contudo, o presente

trabalho prefere não abordar este tema que, por si só, é amplo e traria muitos desdobramentos que poderiam

fazer o presente trabalho perder o foco da discussão sobre a ambiguidade do nacionalismo para a Irmandade

Muçulmana. Como Rachel Scott (2010) demonstra, a Irmandade reservava um lugar específico para as

populações cristãs em seu ideário. Um lugar muitas vezes marginal, o que torna o projeto de Nação da

Irmandade Muçulmana tema de uma discussão polêmica sobre a inclusão de outros grupos não-islâmicos. Dada

a importância dessas implicações, foi considerado importante fazer esta observação.

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organização tomara a partir do governo de Sadat. A partir da década de 1970, a Irmandade

renunciou à violência e reconheceu de fato o governo, apesar de ainda permanecer banida do

espaço político e de criticar abertamente o regime.

5.4 Era Hosni Mubarak: um panorama da dinâmica política até as eleições de 1995

As relações entre a Irmandade Muçulmana e o governo de Mubarak podem ser

divididas em duas fases: a primeira, que vai de 1981 a 1990, foi um período de acomodação e

relativa tolerância, e o segundo período, de 1990 adiante, foi um período de confronto e

repressão, e no qual a dinâmica da relação foi moldada pela busca de legitimidade de ambos

os lados. O presente estudo encerra a perspectiva histórica com as eleições de 1995 por

considerar que o processo de “nacionalização” do grupo chegou ao seu termo. Certamente o

final de século XX e o início do XIX testemunharam diversos episódios importantíssimos

tanto para o Egito quanto para o Oriente Médio. Contudo, eles não reverteram drasticamente a

postura que a Irmandade tomou ao final do século XX a respeito da questão nacional.

Em 1981, no início de seu governo, Mubarak perseguiu uma série de políticas que

visava fortalecer a legitimidade do regime. Por um lado, Mubarak reorientou a política

externa do Egito, buscando se aproximar dos demais países árabes, e se distanciou das

relações com Israel. Por outro, ele fortalece a noção do governo de Direito e abre espaço para

maior atividade da imprensa. Porém, como mostra Hesham al-Awadi (2004), o que a

população egípcia considerava prioridade na década de 1980 era a capacidade do regime em

melhorar as condições de vida, e nem tanto a abertura política. Mubarak mostrou no início de

seu governo um compromisso para melhorar o setor público e a infraestrutura, entretanto, por

causa da crise econômica que assolou a região em meados dos anos 1980, o regime não foi

capaz de realizar completamente os projetos, o que fez crescer o sentimento de frustração na

população.

Cinco anos após Mubarak ter subido ao poder, o Egito testemunhou a erupção de

movimentos populares contra as forças armadas, reminiscência de movimentos sob o governo

de Sadat, assim como a reemergência de violência perpetuada por grupos islamistas

extremistas. Por outro lado, o fracasso do desempenho do regime no campo econômico

contrastou com o crescimento do papel da Irmandade Muçulmana no empreedendorismo

privado. Além disso, a Irmandade estava em condições muito melhores em comparação com o

início do governo de Sadat, e com isso, ela pôde concorrer às eleições em uniões estudantis e

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sindicatos profissionais com o objetivo de influenciar a opinião a seu favor perante o governo.

(AL-AWADI, 2004)

Uma série de processos locais, regionais e internacionais moldou a percepção do

regime a respeito dos movimentos islamistas. Na década de 1990, a ordem internacional havia

se alterado com o fim da Guerra Fria e a emergência dos Estados Unidos como única

superpotência, o que trouxe importantes consequências para a região do Oriente Médio. Por

um lado, os Estados Unidos passaram diversos países árabes para que se adaptassem ao novo

arranjo geopolítico (BURGAT, 2005; AL-AWAIDI, 2004). Por outro lado, o regime se tornou

apreensivo com a possibilidade de uma oposição islamista se impor no cenário político

egípcio, como ocorreu com a vitória inesperada dos islamistas nas eleições na Argélia em

1992 (BURGAT, 2005, p.20; AL-AWAISI, 2004). Por fim, a primeira Guerra do Golfo em

1991 aprofundou as cisões existentes no Oriente Médio. Todos estes fatores contribuíram para

que o governo egípcio se tornasse bastante sensível à atuação dos islamistas no campo

político.

5.4.1 A inserção da Irmandade no espaço político

No âmbito doméstico, três elementos se sobrepuseram criando um quadro instável.

Primeiro, a tentativa de reforma econômica promovida pelo governo de Mubarak acabou por

não beneficiar a população como um todo. Segundo elemento foi o questionamento das

eleições para a Assembleia, momento em que ficou evidente a crescente tensão entre governo

e oposição. E, por fim, relacionado aos dois elementos anteriores, está o aumento dos

protestos populares e da violência perpetuada por grupos extremistas.

Examinando o desempenho econômico do regime durante a década de 1990

distinguem-se por um lado o esforço do regime para a reforma no nível macroeconômico, e

por outro lado, a dimensão microeconômica que abrange a vida dos cidadãos egípcios. Mas o

regime foi incapaz de traduzir o progresso econômico inicial em avanço no nível

microeconômico, o qual está relacionado às condições de vida da população egípcia.

Contudo, o aspecto econômico ganhou uma nova dimensão quando o governo buscou

manipular a formação da Assembleia de modo que facilitasse a realização das reformas

econômicas. O regime havia aceitado a decisão da Suprema Corte Constitucional que

considerou o sistema eleitoral de 1987 inapropriado. Com isso, a Assembleia foi dissolvida

em foram convocadas novas eleições para 1990. Esta postura do regime foi uma tentativa de

mostrar à população e ao mundo que Egito caminhava rumo a um período “pós-autoritário”.

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Mas a oposição viu este movimento com receio, e os desentendimentos entre governo e a

oposição. A consequência deste impasse foi que a oposição, incluindo a Irmandade

Muçulmana, boicotou as eleições (AL-AWADI, 2004).

Outro que elemento ajudou a abalar a imagem do regime na década de 1990 foi a

crescente confrontação entre grupos radicais e as forças oficiais. Como foi visto, em 1992 a

atuação de extremistas religiosos coincidiu com a ascensão dos islamistas na Argélia e o

assassinato do presidente argelino Muhammad Boudiaf (AYALON; SHAKED, 1992). A

intensificação do extremismo islamista e outras de formas de distúrbios sociais evidenciavam

que a legitimidade do regime passou a ser amplamente questionada, (CASSANDRA, 1995).

A violência extremista religiosa cuja intensificação, embora não sendo explicada

totalmente em termos econômicos, é vinculada à frustração de setores da população em

relação ao regime. O resultado é uma cadeia de escalada de violência, pois o aumento da

agressão contra o Estado e seus oficiais incitou uma resposta radical do regime (BURGAT,

2005). Com isso, o regime passou a não distinguir islamistas radicais dos moderados.

Contudo, ao contrário do que ocorreu durante o governo de Nasser, a violência do governo

não gerou mais violências dos partidos.

Com o aumento da repressão parecia haver, a princípio, duas opções para a

Irmandade: ou o movimento recorria à violência e arriscava a sua credibilidade pública, ou a

Irmandade poderia se conter e se ater nas áreas onde o regime estava menos presente, como a

sociedade e associações informais. (AL-AWADI, 2004). Entre as duas opções, a Irmandade

optou pelo caminho da prudência e da preservação da reputação pública.

Deste modo, com a ausência de plataformas políticas formais que possibilitassem a

expor seus interesses, o ativismo da Irmandade se concentrou em sindicatos e em

universidades. (AL-AWADI, 2004) Contudo, a politização não seria tão poderosa se não

tivesse uma base social de beneficiários para apoiar o movimento, e uma organização

administrativa forte para levar os ganhos para além do escopo da própria organização.

Durante os cinco anos nos quais estiveram ausentes da Assembleia (de 1990 a 1995), a

Irmandade priorizou os sindicatos e as oportunidades políticas que eles forneciam. Mas, por

outro lado, a atividade da Irmandade dentro dos sindicatos não pode ser reduzida à simples

militância política. Houve um verdadeiro empenho para garantir aos trabalhadores melhores

condições, sobretudo naquilo que o Estado não exercia. Houve um aumento nos sindicatos da

assistência médica e social.

Al-Awadi destaca três elementos que explicam o sucesso da Irmandade Muçulmana

no governo de Mubarak. Primeiro, a Irmandade utilizou os sindicatos como plataformas

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efetivas e como uma alternativa ao sistema político desigual que negava a sua participação.

Segundo ponto de sucesso para a Irmandade foi a sua capacidade para representar os anseios

da baixa classe média. E o terceiro aspecto foi a maneira organizada que a Irmandade

Muçulmana realizou este processo. (AL-AWADI, 2004). Com isso, pode-se dizer que a

Irmandade Muçulmana buscou traduzir sua força social em força política de oposição ao

Regime.

A tendência em transformar a legitimidade social em legitimidade legal, e a

mobilização envolvida no processo, foi manifesta também nas tentativas sem sucesso de

estabelecer o partido Hizb Al-Wasat. Contra o cenário de repressão e debate político, uma

grupo grande rompeu com a Irmandade Muçulmana para formar o Hizb al-Wasat no final de

1995. O partido buscava ser o elemento mediador na sociedade feita por uma geração mais

nova que enfatiza a conexão entre o Islã e a sociedade egípcia em um contexto moderno

(NORTON, 2005). A Irmandade Muçulmana reagiu contra a formação deste partido. A

liderança da Irmandade Muçulmana condenava o al-Wasat sob o argumento de não constituir

uma imagem pura do Islã. Mas por de trás desse discurso estava a intenção de evitar a

fragmentação interna da organização (MURPHY, 2002). Contudo, o Al-Wasat foi rejeitado

tanto pelo Comitê dos Partidos como pela Corte.

O auge do conflito entre Mubarak e a Irmandade Muçulmana foi em 1995, quando o

regime prendeu centenas de indivíduos ligados à organização e os levou a julgamento em

cortes militares (AL-AWADI, 2004). Este enfrentamento registra uma mudança na relativa

tolerância que caracterizou a postura do governo na década de 1980, evidenciando o

resurgimento do autoritarismo característico de 1965.

O ano de 1995 testemunhou diversos acontecimentos que fizeram o regime radicalizar

a postura contra a oposição. Primeiro, as eleições para o parlamento em 1995 tiveram um

número bem representativo da oposição, incluindo participantes da Irmandade. Além dos

representantes da Irmandade Muçulmana que pretendiam participar das eleições como

candidatos independentes, a Irmandade forjou aliança com o partido Wafd. Além do mais, o

regime ainda estava sendo alvo de violências perpetuadas por grupos extremistas, os quais a

partir da metade de 1990 passaram a estabelecer bases e redes no Sudão, do Iêmen e do

Afeganistão. Somado a estes fatores, estava o fracasso do setor empresarial em satisfazer as

expectativas do regime em aliviar o impacto social das reformas econômicas e das

privatizações (AL-AWADI, 2004). Com isso, em contraste com as eleições anteriores nas

quais o regime buscou garantir o domínio na Assembleia de maneira mais sutil, as eleições de

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1995 testemunharam uma interferência mais dura com o intuito de prevenir que a ascensão da

oposição (KIENLE, 1998).

O conflito entre Mubarak e a Irmandade foi decorrente da inabilidade do regime em

tolerar uma oposição popular e bem organizada tal como a Irmandade Muçulmana. A

Irmandade Muçulmana também considerava que Mubarak era apoiado por um atores

internacionais hostis aos movimentos islamistas. Ao reprimir a Irmandade, Mubarak provava

aos Estados Unidos que o seu regime continuava no controle de suas questões internas e que

os interesses norte-americanos no Egito estava seguros. Enfim, o que precipitou o conflito

entre o regime a Irmandade foi a decisão da Irmandade em boicotar as eleições de 1990, a

postura de ambos os lados durante a Guerra do Golfo em 1991, a disputa pelo controle dos

sindicatos em 1992, e a recusa da Irmandade em apoiar a nominação de Mubarak para um

terceiro mandato em 1993. Mas o principal elemento que levou ao conflito foi a preocupação

da Irmandade com a legitimidade, e a insistência em competir com o regime em seu próprio

terreno político (AL-AWADI, 2004, p.177). Contudo, em 1991, um evento internacional

contribuiu para a intensificação da oposição entre Irmandade e o regime: a primeira guerra do

Golfo.

5.4.2 A primeira Guerra do Golfo

A invasão do Kuwait pelo Iraque em julho de 1990 e a consequente Guerra do Golfo

deflagrada pelos Estados Unidos e aliados foram eventos importantes para a região, inclusive

para o Egito. Em resposta à agressão do Iraque, a ONU deu um ultimato ao Iraque e o início

da Operação Tempestade no Deserto estava iminente. Neste momento ficaram evidentes as

divisões políticos e ideológicas no Oriente Médio. Particularmente, o conflito dividiu os

países árabes entre aqueles que condenavam o regime de Saddan, tais como o Egito e a Arábia

Saudita, e aqueles que se opuseram à invasão (KEPEL, 2002).

Na eminência da guerra, o Iraque e a Arábia Saudita promoveram movimentos e

conferências tentando angariar apoio dos países árabes. Saddan organizou uma conferência

em Bagdá que conclamava a Jihad contra o “Ocidente”. Na conferência estiveram presentes,

além de grupos islamistas, ulemás que eram sensíveis ao entusiasmo de suas contituencies, e

representantes do nacionalismo árabe. A conferência rival ocorreu em Meca, e contou com o

comparecimento do sheik de Al-Azhar, uma das figuras mais respeitadas entre os Islâmicos

conservadores. Estes participantes denunciaram a tentativa de Saddan Hussein em dividir o

mundo Islâmico em benefício próprio (KEPEL, 2002).

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Contudo, mesmo com o fim do conflito e a derrota do Iraque, a cisão não foi resolvida.

Em 25 de Abril de 1991, Cairo e Cartum receberam, simultaneamente, os representantes dos

dois campos rivais que aspiravam a dominar a expressão política do Islã. No Cairo, sede da

universidade de Al-Azhar se reuniram os representantes da causa Saudita. Porém, a derrota do

Iraque por tropas estadunidenses, europeias e dos aliados árabes criou um sentimento de

ressentimento na população egípcia, e os ulemás que deram apoio à guerra saíram

ideologicamente enfraquecidos (KEPEL, 2002).

Em Cartum no Sudão, a conferência trouxe a Irmandade Muçulmana e movimentos

semelhantes, junto com Yasser Arafat e outros nacionalistas árabes que estavam a favor de

Bagdá. A conferência buscou capitalizar a simpatia por Saddan Hussein no mundo

Muçulmano, e de proteger o que restava do nacionalismo árabe. O objetivo era misturar estes

elementos num Islamismo internacional com um programa mais revolucionário e populista do

que a leitura oferecida pelos Wahhabitas. A conferência se apresentava como uma alternativa

ao projeto Saudita. Entretanto, era difícil fazer frente ao projeto saudita bancado pela riqueza

do petróleo (KEPEL, 2002). Importante notar que as ideologias que anteriormente eram

opostas, nesta ocasião se aproximaram pela defesa de uma causa comum. A Irmandade

Muçulmana egípcia e nacionalistas arabistas coordenaram esforços a fim de defender um

determinado arranjo de poder regional.

A conclusão que se pode chegar com a guerra do Golfo de 1990, é a diversidade da

“opinião islâmica” em resposta ao chamado Saudita e Iraquiano. Demonstrações de rua

criaram a impressão que o Islã sunita estava alinhado a Saddan Hussein. Mas essa

homogeneidade foi apenas uma ilusão (KRAMER, 1992).

Para o Egito, a crise teve uma dimensão particular. O Egito forneceu tropas à coalizão

internacional, que lutaram ao lado de “tropas não-islâmicas”. Mas o regime buscou mostrar

inúmeros ulemás da Al-Azhar que condenavam a invasão do Kuwait pelo Iraque, endossando

as respostas egípcias e norte-americanas. A oposição Islâmica, pelo a Irmandade Muçulmana,

aceitou parcialmente a condenação feita por Al-Azhar. E, de fato, o supervisor geral da

Irmandade, Muhammad Hamid Abu al-Nasr, encontrou oficiais representantes do Iraque e do

Kuwait para expressar a desaprovação da invasão iraquiana. Muhammad Ma’mum al-

Hudaybi, representante da Assembleia Nacional e membro da Irmandade Muçulmana,

condenou a invasão e pediu a retirada iraquiana. Mas a Irmandade não aceitou a leitura oficial

que aprovava e justificava o apoio às tropas internacionais e a ocupação norte-americana. Na

verdade, a invasão era considerada uma oportunidade dos Estados Unidos para consolidar a

sua dominação na região e para fortalecer Israel, a verdadeira ameaça.

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Mas a condenação da Irmandade não passou da argumentação. Não foram mobilizadas

demonstrações em grande escala. Ela percebia que a sociedade egípcia em geral se ressentia

dos maus tratos dados aos trabalhadores egípcios no Iraque nas décadas anteriores. Ao passo

que a Irmandade Muçulmana se opôs à aliança das tropas egípcias com as tropas norte-

americanas, ela não levou uma campanha em grande escala contra o regime (KRAMER,

1992).

Se, por um lado, a crise do golfo representou uma divisão de águas no cenário

internacional, no âmbito doméstico egípcio, o ano de 1990 foi, em grande parte, de

continuidade, apesar dos impactos da crise. O que se observa é a continuidade nas questões

políticas, sociais e econômicas (AYALON, 1992). A crescente pobreza e a ausência de

perspectivas produziram tensões sociopolíticas e iniciou um período de violência.

A posição regional e internacional egípcia era confortável até o início da crise do

Golfo em Agosto. Cairo continuava a consolidar a sua posição influente entre os países

árabes, usufruindo o status de conciliador, especialmente com a Síria. Simultaneamente, o

regime de Mubarak buscou incrementar as relações com a ainda existente União Soviética. O

tratado de paz com Israel foi mantido, apesar de momentos de tensão entre Egito e Israel

(AYALON, 1992).

A crise do Golfo colocou um dilema ao Egito. Crítico da Invasão do Iraque ao Kuwait,

e apreensivo da ameaça que o Iraque colocava à região, o Egito achou difícil se prender a uma

aliança “ocidental” liderada pelos Estados Unidos numa guerra contra um país árabe. Mas a

pressão internacional e os interesses nacionais levaram o Egito a colaborar com a empreitada

militar internacional contra o Iraque. E o Egito se tornou liderou a conjunto de países contra o

Iraque. Esta posição estratégia não resolveu o dilema do Egito, que continuou a mostrar

ambivalência ao longo dos meses. Mas a postura do Egito levou o país a receber contribuições

financeiras preciosas dos aliados, os Estados Unidos e os países árabes do Golfo, que

melhoraram momentaneamente a situação econômica egípcia que vinha estagnada desde os

anos de 1980. (AYALON, 1992) A Irmandade Muçulmana, por sua vez, condenou

prontamente a invasão do Iraque. Apesar de estar ausente do parlamento, a Irmandade utilizou

o controle que ela exercia sobre os sindicatos e da influência nas universidades para expressar

uma postura contrária contra o apoio do regime à guerra.

Estimulados pela a invasão do Kuwait e pelas ameaças da guerra, os sindicatos que

estavam sob a influência da Irmandade fomentaram coalizões para coordenar as suas ações,

criando um Comitê para a Coordenação da Ação dos Sindicatos em 1990. A ideia por detrás

do Comitê não era nova, tendo sido elaborado pela Irmandade ao final dos anos de 1980. Em

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uma declaração considerada provocativa, o Comitê condenou a presença “Ocidental” no

Golfo Pérsico e considerou que o governo era responsável pela segurança dos egípcios que

trabalhavam no Iraque e no Kuwait. Em uma segunda declaração, assinada no nome de menos

sindicatos, o Comitê condenou duramente o envolvimento do Egito na Guerra, e reivindicou o

retorno imediato das forças armadas (KEPEL, 2002). Contudo, a Irmandade Muçulmana

egípcia não se envolvera em maiores manifestações públicas em defesa do Iraque.

Ao contrário da revolta palestina em 1936, o evento internacional que incitou a

politização da Irmandade Muçulmana, a primeira guerra do Golfo não teve as mesmas

repercussões para a organização, que naquele momento estava completamente imersa na

política doméstica. É interessante observar aqui que eventos que mobilizaram apoio por todo

o Oriente Médio, apresentem resultados díspares para a Irmandade Muçulmana. Obviamente,

são eventos situados em contextos históricos completamente distintos. Mas não deixa de ser

ilustrativo a comparação entre os dois episódios em relação às respostas dadas pela Irmandade

Muçulmana. No primeiro caso, a organização se empenhou numa atividade transnacional pela

a união dos árabes em defesa da causa Palestina. No segundo momento, embora a Irmandade

tenha participado de reuniões e conferências, e embora ela tenha mobilizado manifestações

populares, este engajamento não teve a mesma profundidade e dedicação dos membros e dos

ideólogos da Irmandade.

E em uma perspectiva que contempla as ramificações da Irmandade Muçulmana em

outros países é igualmente indicativo as posturas divergentes entre as diversas “filiais”. Uma

concepção que considera a Irmandade Muçulmana como uma fronte sólida e homogênea

deixa de fora divisões importantes. Por exemplo, ao passo que a Irmandade Muçulmana

apoiou a revolução de Khomeini e condenou o áxilo oferecido por Sadat ao Xá, as

ramificações na Arábia Saudita se opuseram. Por outro lado, ao passo que a Irmandade

Muçulmana no Egito se pôs ao lado de Saddan, a ramificação no Kuwait se opunha à Saddan.

E, finalmente, há o exemplo da Irmandade Muçulmana do Iraque que foi um dos principais

aliados da invasão estadunidense, pois a ditadura de Saddan dominava radicalmente a

oposição (MEIJER; BAKKER, 2012). Enfim, é importante empregar instrumentos analíticos

e uma perspectiva histórica que auxiliem na compreensão destes movimentos. No caso da

Irmandade Muçulmana egípcia, o apelo à nacionalidade egípcia parece ser um fator

fundamental na caracterização do grupo nos dias atuais.

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5.5 Aplicação da abordagem de John Breuilly

O estudo da trajetória histórica da Irmandade Muçulmana ajuda a compreender os

rumos que o grupo tomou em resposta aos contextos nacional e internacional nos quais ela

estava inserida. Comparando o cenário doméstico e o regional, é possível observar um

processo de “nacionalização” da Irmandade Muçulmana. Isto é, no decorrer das décadas,

fatores internacionais passaram a exercer uma influência relativamente menor em comparação

com os fatores domésticos. Crucial para o surgimento e para a “própria razão de ser”, a

presença britânica e o movimento Sionista foram fatores que retroalimentaram a identidade e

a existência da Irmandade, neste período caracterizado pelo seu aspecto mais transnacional.

Mas ao longo do século XX, cada vez mais os fatores domésticos sobrepujaram as variáveis

externas, de modo que a Irmandade Muçulmana egípcia gradualmente foi restringindo a sua

atuação ao território egípcio. Nesta condição, ainda que a dinâmica internacional seja de

extrema importância, acentuando ou retardando processo em andamento, ela própria é filtrada

pelas condições nacionais. Mas como entender esta mudança ocorrida na ação política da

Irmandade Muçulmana?

Particularmente importante é o arranjo político introduzido com o Estado Moderno,

que teve papel fundamental na demarcação da agenda política do grupo. Nos capítulos

anteriores foi visto que a Irmandade Muçulmana é, em parte, a continuação de uma tradição

mais ampla. Contudo, esta longa tradição foi radicalmente alterada com a introdução do

Estado Moderno, o qual moldou o espaço de atuação política. Com isso, se elementos

culturais permaneceram, o modo e a intensidade como foram mobilizados dependeram

amplamente dos processos de modernização. Entre estes processos, a presente dissertação

optou por abordar o domínio político como fator fundamental para a caracterização nacional.

John Breuilly não nega a importância das identidades. Contudo, fora da esfera política,

elas tendem a ser dados pouco articulados, vagos e ambíguos. Um dos efeitos do espaço

político introduzido pela modernidade é a exigência que estes elementos se articulem de

maneira a fazer sentido politicamente. Isto é, “a menos (e até) que essas ideias se “fixem”, por

se tornarem parte de um movimento político que tem que negociar com governos e granjear

apoio na sociedade, elas tendem a ser vagas e descontínuas” (BREUILLY, 2000, p.170). O

que se observa no caso da Irmandade Muçulmana é reflexo deste processo. No princípio, a

Irmandade era um movimento social que abarcava um espectro amplo de ideias. Assim

permaneceu nos primeiros anos, quando os círculos de identidade eram mobilizados de forma

bastante ambígua. Contudo, a realidade política do Egito obrigou a Irmandade Muçulmana

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articular as suas ideias de maneira que elas fizessem sentido politicamente. Com isso, o

argumento nacionalista aos poucos foi se impondo à Irmandade, ainda que não de forma

absoluta, pois a ambiguidade permaneceu mesmo no final do século XX.

A abordagem de John Breuiily chama a atenção para o fato de que a ação política

nacionalista tende a criar um conjunto mais coerente de doutrinas e sentimentos. As

exigências da ação política, seja ela de movimentos oposicionistas ou dos governos,

disciplinam as ideias e as direcionam para objetivos práticos, assim como canalizam

sentimentos difusos numa direção particular.

Deste modo, é possível perceber como a Irmandade Muçulmana, no decorrer do século

XX, ostentou uma agenda política que, mesmo se opondo ao regime, continha pressupostos

políticos e intelectuais compartilhados pela liderança política do Egito. O conteúdo

nacionalista da agenda política da Irmandade Muçulmana passou a contestar o regime egípcio

em nome da própria nação egípcia. Ou seja, o horizonte de referência não é mais a Umma

islâmica, mas a nação egípcia, ainda que ela tenha uma concepção bem específica sobre

identidade nacional egípcia.

Talal Asad (1999), ao estudar a relação entre secularismo e religião no espaço político

nacional, chama a atenção para o fato que, hoje, todo muçulmano habita um mundo diferente

daquele vivido pelos fieis do período clássico. Mesmo o mais conservador dos muçulmanos

se ampara em experiências do mundo contemporâneo para dar consistência às suas

interpretações teológicas. Talal Asad considera que os islamistas estão, de diversas maneiras,

próximos aos nacionalistas, mesmo que a doutrina nacionalismo não tenha um correspondente

nas doutrinas teológicas clássicas.

Tanto o nacionalismo árabe quando as ideologias islamistas compartilham a

preocupação de modernizar o Estado cujo modelo foi introduzido pela Europa. Os islamistas

buscam atuar através dos Estados Nacionais, os quais se tornaram centrais na vida de todos os

muçulmanos. Para Talal Asad (1999) é exatamente este projeto “estadocêntrico” e não a fusão

de religião e política que confere o caráter nacionalista aos grupos islamistas42

. Portanto, a

preocupação dos islamistas com o poder do Estado não é um comprometimento a priori com

ideais nacionalistas, mas é uma resposta às delimitações colocadas pela reivindicação do

Estado nacional moderno de constituir a arena e identidade social legítima (ASAD, 1999).

42

Nacionalismo e religião são termos contestados que designam campos amplos e multidimensionais de

fenômenos. Dada a falta de consenso sobre o que é o nacionalismo ou religião, não é surpreendente encontrar

afirmações contraditórias sobre a relação entre ambos. Recentemente, há uma literatura produzida sobre o

assunto (VAN DER VEER & LEHMANN, 1999) que apontam para direções diferentes no modo de se estudar o

nacionalismo em virtude de símbolos religiosos.

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Desenvolvendo um argumento semelhante, Olivier Roy considera o fato das agendas

políticas dos movimentos islamistas se tornarem mais “nacionalistas” ser indício de seu

“desvirtuamento” (ROY, 2012) 43

. Roy introduz o termo “pós-islamismo” para os grupos que

abandonaram a ambição utópica de instaurar um “Estado Islâmico” diante dos imperativos

das realidades sociais, políticas e geoestratégicas. Uma das opções para esses movimentos

islamistas é a mudança do modelo de fraternidade para um partido político moderno. E isto

implica a aceitação das regras institucionais do espaço político moderno. A outra opção é o

alinhamento desses grupos a forças “contrarrevolucionárias” (ROY, 2012).

De um lado, os partidos islamistas se transformam em puros partidos políticos, sem o

aspecto de fraternidade, como é o modelo da Irmandade Muçulmana. Eles se integraram no

jogo político, interiorizaram este jogo e se “nacionalizaram”. Neste aspecto, eles

experimentaram uma espécie de nacionalismo islâmico e não a nostalgia da Umma (ROY,

1999). Além disso, o fato dos islamistas avaliarem os seus potenciais eleitores na arena

política leva à ampliação de seu eleitorado, não mais restrito aos setores “islamistas”. Por

outro lado, estes movimentos também se aliam a outros partidos com ideologias e orientações

políticas diferentes a fim de buscar o poder no estado.

Sobre as ramificações da Irmandade Muçulmana em diversos países, Olivier Roy

mostra que elas possuem suas próprias agendas nacionais, e, apesar de proximidade

ideológica entre elas, essas facções não apresentam uma estratégia regional coesa e efetiva

(ROY, 2012). Neste sentido, cada ramificação foi “nacionalizada” tanto no aspecto da agenda

política como no escopo da atuação.

Nesta perspectiva, a obra de John Breuilly, ainda que não aborde o estudo de

movimentos islamistas, é bastante útil ao chamar a atenção para o caráter ambíguo e utópico

de qualquer ideologia, e sua transformação diante da realidade política. Além disso, John

Breuilly assinala que os movimentos nacionalistas tendem a refletir a natureza do Estado a

que se opõe. Ao se observar a Irmandade Muçulmana, percebe-se que ela surgiu num caso

particular no Oriente Médio: ao contrário dos países árabes vizinhos, o Egito tem um passado

institucional e político relativamente mais antigo. Além disso, antes que os demais países

árabes, o Egito teve contato com a Europa e com as ideias da modernidade.

Desde o século XIX, o Egito era uma entidade política autônoma do Império

Otomano. Além do mais, o país passou por um processo de modernização iniciado por

43

Olivier Roy (2010) defende a tese de que a religião não deixou de ser elemento importante após a

modernidade, mas, em direção contrária de Smith, ele considera que a religião na modernidade não possui mais

um lastro cultural. Ela se tornou cada vez mais um aspecto da vida privada, e com isso, ela perde os laços que a

ligava a uma determinada religião. Para Roy, as religiões não são parte de uma herança cultural.

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Muhammad Ali, processo que os países árabes só conheceram mais tarde. Deste modo, o

Egito apresentava um aparato institucional que favorecia a emergência bem cedo de

movimentos nacionalistas. Portanto, já no século XX, a Irmandade atuava em um Estado

nacional bem consolidado e com instituições que remetiam ao século XIX.

Por outro lado, a oposição a potências distintas também é um fator relevante como

observa John Breuiily (1993). Enquanto os países do Levante, num primeiro momento,

coordenaram alianças entre elites heterogêneas contra o domínio Otomano, o Egito se opunha

à presença britânica. Esta distinção trouxe consequências para a solidariedade entre as elites e

para a distribuição das ideologias nacionais na região.

Contudo, cabe perguntar como a abordagem de Breuiily explicaria o apelo da

Irmandade Muçulmana a uma comunidade mais ampla do que o estado egípcio? Talvez a

resposta esteja na tipologia dos objetivos políticos colocados por Breuilly. Tendo em vista o

domínio britânico e francês que, após o final da Primeira Guerra, se estendeu pelo mundo

árabe e, de forma mais geral, pelo conjunto dos países muçulmanos, talvez fizesse sentido a

mobilização de elites distintas em oposição ao domínio colonial europeu. Neste aspecto, a

Irmandade Muçulmana defendia uma estratégia de unificação.

Assim sendo, a oposição ao domínio britânico e, posteriormente, ao movimento

sionista e ao regime monárquico, fez com que a função de coordenação do nacionalismo

tivesse exercido um papel importante para a Irmandade, pois entende-se aqui que as ideias

nacionalistas são usadas para promover interesses comuns entre elites que, afora isso, opõem-

se ao Estado existente a partir de interesses bastante distintos. Tanto é assim que a Irmandade

se aproximou dos Oficiais Livre num primeiro momento, muito embora tivessem interesses

particulares distintos. Mas o argumento nacionalista os aproximara neste breve período na

oposição à Grã-Bretanha e à Israel.

Contudo a partir da metade do século XX, devido ao contexto de descolonização e o

fim da influência britânica, a Irmandade não mais se opunha a uma potência externa global,

mas ao próprio estado egípcio. Esta mudança alterou o conteúdo da agenda política bem como

a atuação da Irmandade Muçulmana. Diante deste cenário, a Irmandade teve duas reações

distintas, uma que optou pelo radicalismo segmentário que não buscou coordenar nem

mobilizar a comunidade egípcia como um todo. Neste caso o objetivo político se daria por

meios diferentes do que o apelo à nação. Por outro lado, a liderança escolheu o caminho do

compromisso com o povo egípcio como meio de garantir a reputação pública e a realização de

seu projeto, muito embora este compromisso não se traduzisse em uma visão de mundo

pluralista. Desta forma, a função de mobilização, como é apresentada por John Breuiily, é

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igualmente importante, na medida em que a Irmandade é um movimento de organização de

massa. Por fim, pode-se indicar que a função de legitimidade apareceu tardiamente, após o

regime de Sadat, quando a Irmandade Muçulmana passa a utilizar o argumento nacionalista

para justificar as metas do movimento político em relação ao Estado, à sociedade, e,

principalmente, aos agentes externos, os quais a Irmandade buscava convencer de seu caráter

nacional e não segmentário.

Com isso, ao fim do século XX, o programa político da Irmandade Muçulmana pode

ser dividido, como propôs Sullivan e Kotob (1999), em três aspectos. O primeiro é a

acomodação e mudança constitucional. Neste sentido, apesar do governo ter negado o pedido

de reconhecimento legal, a Irmandade se aliou a partidos autorizados para ganhar acesso ao

sistema político. Em 1984, o grupo formou aliança tática com o partido Wafd. Já em 1987

estabeleceu uma aliança tripartite com partidos liberais e trabalhadores. Esta coordenação

com partidos díspares foi uma estratégia necessária para contornar as restrições legislativas.

Com isso, esta aliança acabou coordenando grupos distintos. O segundo aspecto é a difusão

da mensagem. Para a Irmandade Muçulmana, o argumento nacionalista serve como

fundamento para a defesa do interesse do grupo, muito embora não se trate de um interesse

material, como a teoria de Breuilly deixa transpor. Trata-se da promoção de um interesse

vinculado a dimensões simbólicas. E, por fim, o último aspecto é a afirmação da não-

violência. A Irmandade Muçulmana, por motivos ideológicos e pragmáticos, é sensível aos

juízos sobre sua reputação pública. Ao contrário do pensamento de Sayyid Qutb que

hostilizava o compromisso nacional, atualmente a Irmandade Muçulmana tem ciência da

importância da opinião pública egípcia. Neste sentido, a Irmandade Muçulmana não apenas

releva a opinião de um determinado segmento social, mas considera o julgamento de todos os

indivíduos da comunidade nacional essencial para os seus interesses.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nacionalismo é uma instituição fundamental na sociedade internacional, pois o

Estado nacional é a unidade política básica que define os atores da sociedade de estados.

Contudo, a definição de nacionalismo não é unânime entre os pesquisadores. Mas é possível

destacar duas ideias básicas: o nacionalismo pode ser tanto uma ideologia quanto um

sentimento. Enquanto uma ideologia, ela identifica uma entidade comportamental

denominada “nação” e busca objetivos políticos. Como sentimento, o nacionalismo significa a

lealdade para com uma comunidade de pessoas (EVANS, NEWNHAM, 1998).

Como Ana Gonzalez-Pelaez (2004) lembra, a interpretação do nacionalismo no

Oriente Médio árabe está enraizada na distinção entre duas palavras: a qawmiyya, que remete

à ideia de povos, e wataniyya, que diz respeito ao território ou à “pátria”. O primeiro vocábulo

se relaciona ao nacionalismo árabe, ao passo que o segundo está vinculado às manifestações

mais locais do nacionalismo. Com isso, observa-se que há diversas acepções para o

nacionalismo tanto quanto conceito analítico quanto em suas manifestações políticas. As

abordagens adotadas na presente dissertação refletem este duplo significado: John Breuiily

associa nacionalismo ao Estado Moderno enquanto Anthony D. Smith vê o nacionalismo

como manifestação de uma identidade mais ampla e mais remota.

Após o estudo da trajetória história a luz das duas abordagens teóricas, é possível

apontar para uma resposta à pergunta “como a Irmandade Muçulmana se situa no âmbito

nacional e no transnacional?”. Ao início da pesquisa foram elencadas três respostas

plausíveis: A) Prevalência do aspecto Nacional: o Islã seria elemento unificador importante

somente na dimensão nacional egípcia. B) Prevalência do aspecto “internacional”: há um

engajamento para o estabelecimento da comunidade dos fiéis, mas os estados e suas fronteiras

seriam mantidos. Neste caso o Islã seria um vínculo de identificação e conexão entre as

nações muçulmanas. C) Transnacional: Prioriza a criação de uma entidade mais ampla na qual

as fronteiras nacionais teriam a importância reduzida.

O que se observou na pesquisa foi a alternância e a coexistência destes três elementos

ao longo da história. A princípio, a Irmandade Muçulmana buscou atuar na região do Oriente

Médio em defesa da união entre os árabes e, num sentido mais amplo, os muçulmanos. O seu

projeto político contemplava tanto o aspecto internacional como o aspecto transnacional. Por

um lado, ela defendia o nacionalismo territorial como forma de conquistar a independência

em relação às potências europeias. Porém, este nacionalismo territorial não teria um fim em si

mesmo, mas contemplava um futuro onde estes nacionalismos seriam fundidos numa única

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entidade. Deste modo, cada aspecto elencado seria uma etapa provisória rumo a uma

associação coletiva maior. Os países independentes deveriam se aliar e formar organizações

internacionais de cooperação estimulando a ação conjunta, e só assim seria possível a criação

no futuro de uma entidade política que abarcasse todos estes países. Contudo, diversos fatores

minaram este projeto e, paulatinamente, a Irmandade passou a pender para a extremidade

nacionalista local. Tendo isto em vista, pode-se dizer que, hoje, a Irmandade Muçulmana

egípcia é uma organização que se aproxima de um movimento com caráter nacionalista.

Para responder esta pergunta as abordagens utilizadas deram contribuições valiosas,

mas, por outro lado, apresentaram lacunas importantes. Talvez seja proveitosa a busca de uma

abordagem do nacionalismo que dê conta destas ambiguidades apresentadas por movimentos

semelhantes.

A abordagem de Anthony Smith esclareceu diversos aspectos, principalmente o fato

de que identidades culturais regionais que, mesmo com a criação dos Estados Modernos,

mostram-se resilentes, ainda que não sejam imutáveis. Smith distingue processos de longa

duração nos quais as histórias étnicas e nacionais forjaram os valores, a linguagem e as

culturas nas quais a memórias e os discursos estão assentados. O fato da Irmandade

Muçulmana ter se transformado em modelo para movimentos importantes nos países vizinhos

e a mensagem de al-Banna ter encontrado público na região é indicativo de que há algum

compartilhamento de valores e princípios por algumas pessoas da região.

Contudo, no caso da Irmandade Muçulmana, um problema surge de imediato com a

abordagem de Smith: a definição e o escopo do conceito de ethnie. Dependendo do recorte e

do entendimento, o conceito deixa espaço para interpretações distintas perdendo, assim, a

clareza conceitual fundamental a qualquer instrumento analítico. A definição de Smith não

delimita o escopo “geográfico” do que seriam as comunidades étnicas. No caso da Irmandade

Muçulmana, a ideia de uma comunidade histórica com mitos, valores e uma memória

compartilhada pode ser aplicada tanto à comunidade egípcia, à comunidade árabe ou à

comunidade dos fiéis. E fica difícil definir qual seria o “verdadeiro” núcleo dessa comunidade

ou de que maneira esses círculos se sobreporiam.

A teoria de John Breuilly, por sua vez, é extremamente demarcada o que permite

traçar fronteiras mais específicas, ainda que com isso percam-se os elementos

caracterizadores das relações entre as pessoas de uma dada região. A vantagem de se adotar

uma definição estritamente política do nacionalismo é que ela recorta concisamente o objeto e

fornece instrumentos analíticos mais precisos. O preço dessa teoria bem delimitada é a

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simplificação dos processos a um fator único e, com isso, perde-se a amplitude dos processos

históricos.

Enfim, são duas abordagens bem distintas, mas nem por isso são excludentes. A obra

de Smith ilumina o processo que deu origem à Irmandade Muçulmana. Hassan al-Banna

dialogava com uma tradição proveniente de um processo mais amplo de adaptação cultual.

Neste sentido, é importante avaliar o legado daqueles que pensaram o lugar do Islã na nova

ordem mundial e as reformas necessárias para adaptar a tradição. Por outro lado, é preciso

reconhecer que al-Banna não reproduziu simplesmente os discursos passados. Ele adaptou as

ideias dos reformistas e revivalistas à sua época, criando algo original.

A obra de John Breuilly, por sua vez, enfatiza o papel do Estado para os movimentos

nacionalistas. Isto é, os movimentos nacionalistas refletem o aparato institucional e o formato

do Estado no qual estão inseridos. Nesta perspectiva, o aspecto político permite entender as

mudanças pelas quais a Irmandade passou ao longo do século XX, particularmente o processo

de “nacionalização” do movimento. Se a Irmandade Muçulmana foi criada como resposta à

nova ordem mundial, na qual os países do Oriente Médio se viam cada vez subjulgados pelas

potências europeias, o contexto doméstico após a consolidação do estado egípcio se tornou

doravante fator primordial para a organização do grupo. O Estado Moderno se tornou o

espaço no qual as relações de poder foram estabelecidas. Ou seja, o Estado impôs uma arena

específica dentro da qual a Irmandade passou a atuar para fazer valer seus interesses, e neste

processo, suas visões precisaram ser adaptadas. Enfim, o grupo se viu diante de um aparato

institucional estatal concreto que passara a ser o parâmetro das ações políticas, e as ações não

mais se dirigiriam a uma comunidade abstrata, mas a uma entidade bem delimitada.

Para Breuilly, o nacionalismo se desenvolve onde é necessário para a oposição do

governo reivindicar a noção de nação contra o estado presente. Caso a Irmandade quisesse

valer seus interesses ela teria dois caminhos, como foi apontado por Olivier Roy (1999). Um

seria se aliar a movimentos contrarrevolucionários. E isso foi o que ocorreu na época da maior

repressão no regime de Nasser, quando uma facção da Irmandade Muçulmana adotou uma

postura radical orientada pelas ideias de Sayyid Qutb. O outro caminho seria se transformar

em um partido político moderno. Esse foi o caminho que a organização adotara a partir da

década de 1970. Para a Irmandade Muçulmana se tornar um movimento socialmente

relevante, ela precisava se dirigir ao público a partir do referencial que fizesse sentido aos

egípcios. E nesse cenário, o argumento nacionalista é o mais poderoso. O apelo feito por al-

Banna da unidade de todos os muçulmanos não mais aparecia como um objetivo plausível

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imediato, pois a realidade política do Estado egípcio impôs uma noção bem mais precisa da

“massa” a qual a Irmandade Muçulmana buscaria mobilizar.

Em suma, é possível destacar dois pontos a respeito do caráter histórico da Irmandade

Muçulmana. O primeiro é que ela não reflete uma suposta característica essencial do Islã que,

desde a época do Profeta, predizia a unidade política de todos os muçulmanos em um único

Estado. O segundo elemento é que a Irmandade Muçulmana não é produto do processo de

“re-islamização” ocorrido no Egito e no Oriente Médio ao final dos anos de 1960. A

Irmandade Muçulmana herdou uma tradição intelectual que buscava reformar o Islã e as

sociedades de maioria muçulmana no Oriente Médio em resposta à expansão política,

econômica e militar da Europa no século XIX. Porém, o conteúdo da agenda política e do

discurso religioso se alterou ao longo do século XX em função da história nacional egípcia. A

partir da segunda metade do século XX, a Irmandade Muçulmana egípcia estava cada vez

mais próxima de um movimento nacionalista de fato. Mas ainda assim manteve intercâmbios

em outros domínios com organizações semelhantes em outros países.

O ponto de partida desta dissertação foi a constatação da incongruência entre o aspecto

contratual e o aspecto identitário no Oriente Médio. Mas, no caso da Irmandade Muçulmana,

esta incongruência não necessariamente fragiliza o sentimento de pertencimento à

nacionalidade egípcia. Pois, ao mesmo tempo em que as identidades islâmica e árabe são

fatores importantes no domínio transnacional, no caso da Irmandade, ainda que Sayyid Qutb

apresentasse uma ruptura, estes dois fatores acabam fortalecendo, mais do que questionando,

a nacionalidade egípcia.

A Escola Inglesa segundo o modelo de Buzan abre novas possibilidades para o estudo

das Relações Internacionais ao constatar a existência dos três domínios na sociedade

internacional. Contudo, esta abordagem precisa de um aparato analítico auxiliar para

compreender como estes três domínios interagem entre si e qual a dinâmica desta interação.

Como Barry Buzan e Ana Gonzalez-Pelaez observam:

A importância dos três domínios na definição da região aponta para a necessidade de

dar atenção não somente às instituições da sociedade interestatal, como a Escola

Inglesa tradicionalmente o faz, mas também às instituições da sociedade global, nos

domínios transnacionais e inter-humanos, sobre os quais a Escola Inglesa tem pouco

a dizer (BUZAN; GONZALEZ-PELAEZ, 2009, p.231, tradução nossa)44

.

44

The importance of all three domains in defining the region points to the need to pay attention not just to the

institutions of interstate society, as the English school mainly does, but also to the institutions of “world society”,

in the transnational and interhuman domains, about which the English school has had rather little to say.

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No presente estudo, considerou-se adequada a escolha de abordagens do nacionalismo

para compreender a relação entre os três domínios no Oriente Médio. Considera-se que o

recurso aos estudos do nacionalismo enriquece a discussão aberta por Barry Buzan, apontando

para novos caminhos.

Com isso, o presente estudo caminha para conclusão ao discutir a proposição de Barry

Buzan para as características entre os domínios na sociedade internacional regional do Oriente

Médio. Buzan (2009) identifica as identidades pan-islâmicas e pan-árabes, mais a história de

domínio colonial, a interferência das potências globais e os sentimentos anti-imperiais como

características fundamentais do Oriente Médio. Neste sentido, os sentimentos anti-

imperialista, o pan-islamismo e o pan-arabismo se situariam nos domínios inter-humanos e

transnacionais. As elites estatais, por sua vez, estariam comprometidas com a dependência

material das potências externas o que faria com que elas perdessem a legitimidade no âmbito

doméstico. Com isso, Barry Buzan e Ana Gonzalez-Pelaez fazem a seguinte observação sobre

a sociedade internacional regional do Oriente Médio:

(...) tem uma clivagem estrutural entre o domínio interestatal por um lado, e o

domínios transnacional e inter-humano por outro, com aquele participando do jogo

imposto pelo Ocidente, e este se tornando posteriormente lugar de intensa resistência

às potências externas e sua sociedade interestatal, a cultura (secular) ocidental e a

elite dominante em particular (BUZAN; GONZALEZ-PELAEZ, 2009, p.230,

tradução nossa) 45

.

Esta observação, bastante esclarecedora, deixa em aberto alguns aspectos. Primeiro,

Buzan toma o secularismo como um valor estranho à região, supondo que a religião (o quer

que isso queira dizer) é fator dominante na região. Se, por um lado, é fato que há movimentos

religiosos transnacionais no Oriente Médio, o secularismo não é um valor estranho às pessoas

da região. Além disso, esta caracterização perde de vista os conflitos ideológicos regionais

presentes no campo transnacional e no inter-humano. Por exemplo, uma concepção arabista

secular se opõe em alguns aspectos a uma ideologia islamista. É sempre perigoso tomar o

todo pelas partes.

Mas o ponto principal é que o fato de não haver congruência entre os domínios não

necessariamente leva a conflitos. Buzan (2004) coloca a expansão da sociedade internacional

como a exportação (e imposição) de determinados valores e instituições europeias ao resto do

45

(...) there is a major structural cleavage between the interstate domain on the one hand, and the transnational

and interhuman ones on the other, with the former largely playing a Western-imposed game, and the latter being

a site of intense resistance to external powers and their interstate society, Western (secular) culture generally and

the local ruling elites in particular.

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globo. Com isso, ele verifica a criação de ambiguidades regionais onde o domínio interestatal

caracterizado por estas instituições europeias e o domínio inter-humano e transnacional

caracterizado pelas culturas locais. Mas é preciso destacar que Buzan reconhece que as

pessoas possam interiorizar estas instituições, e o fazem frequentemente. Contudo, como

Anthony Smith (2010) mostra, é preciso observar o processo de adaptação das instituições

europeias às realidades regionais. Ou seja, não há somente oposição (os neo-tradicionalistas)

ou aceitação (assimilacionistas). Uma terceira via importante é a adaptação cultural. Neste

sentido, é salutar considerar a possibilidade das instituições internacionais serem apropriadas

segundo as condições regionais.

Por um lado, houve a imposição de uma entidade política, o Estado Moderno, como

unidade básica das relações internacionais. Mas, por outro lado, esta expansão não apagou os

processos históricos regionais. Ela fez com que características regionais se modificassem em

resposta à nova ordem. Neste sentido, as instituições internacionais, particularmente o

nacionalismo, não foram simplesmente transplantadas de seu modelo europeu às regiões do

globo. Elas sofreram adaptações a fim de se enquadrarem nas especificidades regionais. Deste

modo, a fundação de uma entidade política moderna foi realizada concomitantemente à

adaptação dos valores, mitos e memórias regionais, que permaneceram aspectos importantes

da dinâmica regional.

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