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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
Clara Isabel de Andrade Costa
PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:
acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial
Belo Horizonte
2017
Clara Isabel de Andrade Costa
PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:
acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Comunicação Social.
Área de concentração: Interações
Midiáticas.
Linha de pesquisa: Linguagem e mediação
sociotécnica
Orientador: Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck
Belo Horizonte
2017
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Costa, Clara Isabel de Andrade
C837p Podcasts e construção de sentido: acontecimento, narrativa e reverberações
na série jornalística Serial / Clara Isabel de Andrade Costa. Belo Horizonte,
2017.
131 f.:il.
Orientador: Mozahir Salomão Bruck
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
1. Rádio - Transmissores e transmissão. 2. Radiojornalismo. 3.
Radiodifusão - Aspectos sociais. 4. Comunicação e tecnologia. 5. Mídia digital.
I. Bruck, Mozahir Salomão. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. III. Título.
CDU: 654.195
PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:
acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Comunicação Social.
Área de concentração: Interações Midiáticas.
Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck – PUC Minas (Orientador)
Profª. Drª. Maria Ângela Mattos – PUC Minas (Banca Examinadora)
Profª. Drª. Sônia Caldas Pessoa – UFMG (Banca Examinadora)
Belo Horizonte, 18 de agosto de 2017
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Mozahir Salomão Bruck que me abriu portas para um novo
olhar ao mundo da comunicação, sempre presente e à disposição para a minha evolução nessa
jornada. Sua contribuição por todas as conversas e pela contagiante empolgação à pesquisa é
o que levo para meu crescimento pessoal e profissional.
À professora Maria Ângela Mattos por todo o aprendizado na sala de aula e pela
dedicação e carinho nas contribuições à minha pesquisa.
À professora Sônia Caldas Pessoa por aceitar o convite para participar das bancas de
qualificação e defesa, contribuindo e enriquecendo esse estudo.
Aos demais professores pelo conhecimento e debates dentro e fora da sala de aula e às
funcionárias do programa, Isana e Camila, sempre à disposição para esclarecer dúvidas e
facilitar o processo da vivência acadêmica.
À minha mãe e ao meu pai que sempre me incentivaram e me ofereceram uma a
melhor estrutura para sempre ir em busca do conhecimento. O apoio de vocês é vital agora e
sempre.
Às minhas irmãs, Aninha e Bárbara, pelas conversas, trocas de experiência e apoio
incondicional. À minha sobrinha Rafaela pelo companheirismo e amizade.
Ao Max, Camila, Bruna e demais colegas das turmas de 2015 e 2016 que deram
leveza à essa experiência, compartilharam alegrias e sentimentos durante esse processo.
À Nádia, Paula, Babi, Bruna, Marcelo, Fabi, Fernanda, Elisa, André e Wesley, amigos
e companheiros de vida que me incentivaram a voltar ao mundo acadêmico, me ouviram e
apoiaram em todo o processo.
Muito obrigada a todos, que de alguma forma, fizeram parte dessa jornada.
RESUMO
O sucesso de audiência do podcast Serial chama atenção por ser uma série jornalística de
linguagem essencialmente sonora, que se destaca mesmo diante da dominante cultura
imagética na sociedade contemporânea. O presente estudo propõe compreender as
construções de sentido a partir da produção, circulação e reverberações em torno da narrativa
do podcast e quais os impactos desse processo comunicacional na construção social da
realidade. Serial apresenta, por meio da voz narrativa da jornalista Sarah Koenig, uma história
real sobre um acontecimento do passado: o assassinato da adolescente Hae Min Lee, a
investigação e a condenação à prisão perpétua de seu ex-namorado Adnan Syed, em 1999, nos
EUA. A partir dessa ocorrência do passado, Sarah Koenig inicia uma investigação jornalística
sobre como foi construída a acusação em torno de Adnan, questionando inclusive a justiça
norte-americana, já que o caso apresentava algumas lacunas que geravam dúvidas sobre a
culpa do acusado pelo crime. O entendimento do podcast como um gênero e forma de
expressão da comunicação radiofônica nas plataformas digitais é analisado em conjunto com
as noções de contratos comunicacionais (articulação das instâncias de emissão e de recepção)
e as noções de acontecimento discursivo e tríplice mimese da narrativa (o ciclo da atividade
mimética em três etapas: compreensão do contexto da ação selecionada; configuração
narrativa dessa ação; e interpretações e sentidos produzidos em torno do que foi
representado). Esses pressupostos teóricos combinados com o mapeamento exploratório do
podcast e a metodologia operacional de Análise de Conteúdo servem de referência para a
definição de categorias analíticas que permitem a investigação de todo o processo
comunicacional (emissão, circulação e recepção) desencadeado por Serial, no intuito de, por
fim, entender como os significados construídos ao redor desse acontecimento discursivo
podem propiciar a emergência de novos acontecimentos e novas narrativas.
Palavras-chave: Acontecimento. Tríplice mimese. Contrato de comunicação. Comunicação
radiofônica. Podcast Serial. Reverberações.
ABSTRACT
The ratings sucess of Serial podcast draws attention for being a journalistic series of
essencially sound language that stands out before the image culture that dominates the
contemporary society. The present study proposes to understand the constructions of meaning
from the production, circulation and reverberations around the narrative of the podcast and
what the impacts of this communicational process in the social construction of reality. Serial
presents, through the narrative voice of the journalist Sarah Koenig, a real story about an
event of the past: the murder of teenage Hae Min Lee, the investigation and life sentence of
her ex-boyfriend Adnan Syed in 1999 in the USA. From this incident of the past, Sarah
Koenig begins a journalistic investigation into the accusation that was built for Adnan, even
questioning the US court, since the case had some gaps that raised doubts about the accused's
guilt crime. The understanding of the podcast as a genre and form of expression of the radio
communication in the digital platforms is analyzed together with the notions of
communication contracts (articulation of the instances of emission and reception) and the
notions of discursive event and triple mimesis of the narrative (the cycle of mimetic activity in
three stages: understanding the context of the selected action, narrative configuration of this
action, and interpretations and senses produced about what was represented). These
theoretical assumptions combined with exploratory mapping of the podcast and the
operational methodology of Content Analysis serve as reference for the definition of
analytical categories that allow the investigation of the entire communication process
(emission, circulation and reception) triggered by Serial, in order to, finally, understand how
the meanings constructed about this discursive event can propitiate the emergence of new
events and new narratives.
Keywords: Event. Triple mimesis. Communication contract. Radio communication. Serial
podcast. Reverberations.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Os três lugares da máquina midiática.............................................................31
LISTA DE IMAGENS
IMAGEM 1 - Aviso na seção de episódios do site oficial com indicação para acompanhar a
narrativa a partir do Episódio 1................................................................................................92
IMAGEM 2 - Episódios da primeira temporada de Serial.......................................................96
IMAGEM 3 - Postagens do blog oficial do podcast Serial......................................................97
IMAGEM 4 - Carta de Asia Mclain enviada à Adnan Syed....................................................98
IMAGEM 5 - Aviso no blog de Serial com links para email, Facebook e Twitter..................99
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 O PODCAST SERIAL ........................................................................................................ 13
3 PODCASTS: MODOS DE CONTRATAÇÃO ................................................................. 19
3.1 A radiofonia expandida nas plataformas digitais .......................................................... 19
3.2 Contratos de leitura e de comunicação ........................................................................... 25
3.3 Podcasts: especificidades.................................................................................................. 34
3.3.1 Podcasts como microdispositivo ..................................................................................... 41
3.4 As contratações de comunicação e leitura no podcast................................................... 44
4 A TRÍPLICE MIMESE DA NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DO
ACONTECIMENTO ............................................................................................................. 51
4.1 Sobre a noção de mimese ................................................................................................. 51 4.2 A tríplice mimese de Paul Ricoeur .................................................................................. 53
4.2.1 Mimese e narrativa jornalística ...................................................................................... 62
4.2.2 Tríplice mimese no podcast Serial .................................................................................. 67
4.3 A construção do acontecimento ....................................................................................... 74
4.4 Da construção do acontecimento à mimese III .............................................................. 80
5 ACONTECIMENTO, NARRATIVA E REVERBERAÇÕES EM SERIAL ................ 85
5.1 Considerações metodológicas .......................................................................................... 85
5.2 A configuração narrativa em Serial ................................................................................ 88
5.2.1 A construção dos elementos narrativos........................................................................... 88 5.2.2 A função do testemunho................................................................................................. 100
5.2.3 Ativação dos lugares de fala ......................................................................................... 107
5.3 Construção de sentido e reverberações ........................................................................ 112
5.3.1 Meta-acontecimento em Serial: uma história sem fim .................................................. 119
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 123
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 127
9
1 INTRODUÇÃO
O passo que deu início à elaboração desta dissertação foi dado a partir do
questionamento sobre como um conteúdo de linguagem essencialmente sonora – o podcast
Serial – gerou tanta repercussão em meio à predominância da cultura imagética na
comunicação social. Serial é uma série jornalística que teve um alcance de audiência bem
próximo a de séries televisivas de sucesso, sendo o primeiro podcast a alcançar mais
rapidamente cinco milhões1
de ouvintes no iTunes – uma das principais plataformas que
hospedam esse microdispositivo – após o primeiro mês desde o lançamento de seu primeiro
episódio. Atualmente, quase três anos após sua divulgação, a primeira temporada dessa série –
objeto empírico desta dissertação – ultrapassou a marca de 90 milhões de downloads2
em todo
o mundo.
Por ser uma mídia relativamente nova e que circula no meio digital, o podcast não
possui regras rígidas que definem sua linguagem, já que não estabelece um padrão de locução
e de usos de recursos como efeitos sonoros, nem mesmo uma definição de temas a serem
abordados. No caso de Serial, encontramos um potente fenômeno comunicacional em função
de seus processos de mediação. A circulação dessa narrativa sonora trouxe como repercussão
uma ampla gama de debates nas redes sociais digitais com diversos questionamentos por parte
dos ouvintes sobre o acontecimento transformado em discurso que constitui a série. A
construção de sentido em torno do ato comunicacional proporcionado por Serial estabeleceu-
se como o fio condutor desta pesquisa a partir da observação de como essa narrativa se
instituiu e quais são suas estratégias enunciativas, para, a partir daí, buscar compreender as
múltiplas leituras e interpretações geradas pela instância de recepção e, por fim, entender
como o processo de elaboração discursiva de um acontecimento pode propiciar a emergência
de novos acontecimentos e novas narrativas.
Antes de acionar os operadores conceituais que nos auxiliam na observação do ato
comunicacional a partir da circulação do podcast Serial, apresentamos no capítulo inicial o
próprio podcast, que foi elaborado por produtoras de uma emissora radiofônica dos Estados
Unidos e divulgado nas mídias digitais em outubro de 2014. Serial traz uma história de
1
Dado fornecido pela Apple em 2014 e divulgado em vários veículos de comunicação, como na matéria
publicada no The Guardian em novembro de 2014, disponível em
<https://www.theguardian.com/technology/2014/nov/18/serial-podcast-itunes-apple-downloads-streams>. Ainda
de acordo com a Apple, Serial se manteve em primeiro lugar no ranking de podcasts nos EUA, Canadá, Reino
Unido e Austrália, além de alcançar o top 10 em diversos países como Alemanha, África do Sul e Índia. 2
Dado disponível em <http://economia.estadao.com.br/blogs/radar-da-propaganda/na-2a-temporada-podcast-
serial-e-obrigado-a-fazer-mudancas/>. Acesso em 11 de julho de 2017.
10
linguagem essencialmente sonora guiada pela voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. É
importante destacar que a proposta de Serial é narrar uma história real da vida cotidiana e
contá-la em diversos capítulos com uso de linguagem essencialmente sonora, principalmente
por meio da narração oral. Até 2017, o podcast lançou duas histórias nesse formato. Nossa
atenção, no entanto, é dedicada à primeira temporada dessa série não ficcional. Essa primeira
história de Serial traz o resgate de um acontecimento que ocorreu em Maryland (EUA) no ano
de 1999: o assassinato da jovem Hae Lee e a condenação à prisão perpétua de seu ex-
namorado Adnan Syed. A partir dessa ocorrência do passado, Sarah Koenig inicia uma
investigação sobre a forma como foi construída a acusação em torno de Adnan, questionando
inclusive a justiça norte-americana, já que o caso apresentava algumas lacunas que geravam
dúvidas sobre a culpa do rapaz pelo crime. Para resgatar a memória desse acontecimento e
reagendá-lo no presente em que circula esse podcast, a narradora aciona depoimentos e
entrevistas de pessoas ligadas direta e indiretamente aos jovens protagonistas da história,
como familiares, amigos, colegas, advogados, detetives e psicólogos. Além desses, Sarah
Koenig conversa na maioria dos episódios com o próprio Adnan Syed por meio de gravação
telefônica direto do presídio em que o rapaz se encontra até hoje.
Após nos determos sobre os elementos de constituição da narrativa jornalística
apresentada pelo podcast Serial, voltamos nosso olhar, no capítulo 3, para a compreensão de
como se relacionam as instâncias de emissão e recepção na circulação de discursos no campo
do jornalismo. As noções de contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e de
contrato de leitura (VERÓN, 2004 e FAUSTO NETO, 2007) servem de guia teórico para
compreender as condições e restrições em que se elaboram as estratégias enunciativas do
discurso jornalístico, suas formas de circulação e como estas influenciam no impacto de um
conteúdo em seu público receptor. Considerando que o podcast é um microdispositivo
(CHARAUDEAU, 2006b) que se manifesta como um gênero e modo de expressão da
radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) nas plataformas digitais, consideramos
necessário analisar também os impactos das transformações tecnológicas e sociais neste novo
cenário da comunicação radiofônica, por meio da observação do uso de elementos narrativos
sonoros e não sonoros na configuração discursiva em conjunto com as práticas interacionais
que emergem nas redes digitais, o que permite compreender as especificidades das formas que
se estabelecem os contratos no ato comunicacional de Serial.
A reflexão sobre os modos de contratação no podcast nos auxilia a compreender como
as condições e estratégias que se dão o ato comunicativo afetam os modos de dizer, ou seja, a
maneira de construção do acontecimento discursivo, que é o principal elemento constituinte
11
de uma narrativa jornalística. A partir dessa constatação, seguimos para o capítulo 4 com o
intuito de entender como um acontecimento do mundo da ação é selecionado e se transforma
em discurso jornalístico, sendo responsável pela emergência de diversas interpretações. A
compreensão desse processo é auxiliada pelo viés teórico da tríplice mimese da narrativa do
filósofo francês Paul Ricoeur (2010), encadeada com as reflexões sobre a dupla vida do
acontecimento do sociólogo francês Louis Quéré (2012) e o conceito de meta-acontecimento
de Adriano Rodrigues (1993). Ao compreender os novos significados que surgiram a partir do
acontecimento midiatizado em Serial foi analisada a possibilidade de retorno de novos
acontecimentos de natureza não discursiva no mundo cotidiano a partir da circulação de uma
narrativa, já que, pouco mais de um ano após o lançamento do podcast, observou-se a
emergência de um novo acontecimento: um novo julgamento para Adnan Syed foi autorizado
pela Justiça de Maryland (EUA) em junho de 2016, quase duas décadas após sua condenação
pelo crime.
O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do
caso de Adnan Syed. Com o sucesso do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por
milhões de pessoas ao redor do mundo. Tendo em vista o processo comunicacional
proporcionado por Serial, propomos, no capítulo 5 dessa pesquisa, investigar a articulação
entre a instância emissora e a instância de recepção, a partir da escuta exploratória dos
episódios da primeira temporada do podcast e também da leitura exploratória dos elementos
parassonoros, que complementam o enunciado da série, disponíveis no site oficial, em busca
de compreender as estratégias acionadas para a configuração da narrativa. Para proceder com
a abordagem de exploração da elaboração deste enunciado, estabeleceu-se a constituição de
três categorias analíticas desenvolvidas de acordo com a metodologia operacional da Análise
de Conteúdo: a) construção dos elementos narrativos; b) função do testemunho; e c) ativação
dos lugares de fala.
Tais categorias combinadas servem de referência, portanto, para o primeiro momento
da etapa da análise proposta no intuito de compreender o processo de emissão em Serial. Na
outra etapa, segue-se para observação das reverberações incitadas pela narrativa por meio do
mapeamento exploratório da rede social digital Reddit, uma grande comunidade virtual que
possui mais de 50 mil usuários cadastrados em uma seção dedicada exclusivamente ao
podcast Serial para investigação e discussão de diversos aspectos relativos a essa história da
vida real. Analisar as reverberações dos receptores-usuários de Serial no Reddit implica,
então, em mapear as diversas construções de sentidos estabelecidas nos comentários e
debates, o que permite articular a relação dessas interpretações de um acontecimento do
12
passado, que não se deram à época de sua ocorrência, com a emergência de novos
acontecimentos que retornam à ordem mundana, em busca de entender qual o impacto deste
processo comunicacional na construção social da realidade.
13
2 O PODCAST SERIAL
As transformações sociais e tecnológicas da sociedade contemporânea propiciam o
desenvolvimento de diferentes mídias digitais utilizadas como meios para os processos
comunicacionais e de construção e representação do que nos habituamos a chamar de
realidade. Nesta dissertação, esse cenário serve de ponto de partida para refletirmos sobre a
comunicação radiofônica e suas transformações inseridas nesta lógica de midiatização, que
apresenta novos gêneros e modos de oferta, combinando a linguagem essencialmente sonora
do rádio tradicional com outros elementos parassonoros (textos, imagens, links, comentários,
ferramentas de compartilhamento de conteúdo, entre outros), o que impacta diretamente nos
modos de configurações narrativas e nas formas de recepção.
Um desses gêneros e modos de expressão da radiofonia expandida é o podcast, que se
apresenta como um caminho para produção de conteúdos com novas possibilidades narrativas
e modos de circulação pela internet. O podcast está vinculado a conteúdos com estética
linguageira marcadamente oralizada, sendo considerado, a grosso modo, a junção do rádio
tradicional com as possibilidades de difusão de conteúdo da internet. Apesar de ser conhecido
por sua linguagem sonora, o podcast não se limita somente ao som, já que disponibiliza
conteúdo para diversos meios digitais, seja em arquivos de áudio, texto ou imagem, o que
possibilita novas explorações de conteúdo, criatividade narrativa e novas práticas
interacionais entre os seus receptores.
O objeto empírico analisado nesta dissertação é o podcast Serial, que é uma produção
de profissionais com experiência também na mídia tradicional - as produtoras de Serial são
profissionais da emissora pública norte-americana WBEZ Chicago. Serial é um spin-off3
de
This American Life, sendo este último um programa semanal da rádio pública dos EUA,
difundido em mais de 500 estações de rádio para mais de 2 milhões de ouvintes em todo país.
Em cada edição, o programa conta uma diferente história da vida cotidiana de uma pessoa
ordinária. This American Life é também disponibilizado em podcast, atingindo como marca
mais de um milhão de usuários das mídias digitais que fazem download do programa
semanalmente.
3 Ao pensarmos nos produtos midiáticos oferecidos pelos veículos de comunicação, o spin-off é considerado uma
derivação de qualquer obra narrativa (filme, programa de rádio ou de TV, séries televisivas, novelas, entre
outros) já existente. O que diferencia um spin-off e uma obra original é que o primeiro concentra sua produção
narrativa de forma mais detalhada em apenas um elemento particular (um tema ou um personagem, por exemplo)
da obra inicial que inspirou a produção narrativa derivada.
14
E foi a partir do popular programa de rádio This American Life que Serial começou a
ser divulgado. O editor e apresentador do programa, Ira Glass, anunciou no dia 3 de outubro
de 2014 que a partir daquela edição seriam produzidos não apenas um programa semanal, mas
sim dois programas. Era o lançamento do primeiro episódio de Serial. Neste dia, Ira Glass
anunciou que, em vez de cada episódio trazer um diferente tema e diferentes histórias, cada
episódio do novo podcast seria sobre a mesma história, dividida, então, em capítulos.
Importante ressaltar que este era o lançamento da primeira temporada de Serial. Até
2017, o podcast conta com duas temporadas, sendo que a primeira retrata a história de Adnan
Syed - condenado à prisão perpétua pela morte de sua ex-namorada - em 12 episódios
divulgados semanalmente nas mídias digitais, enquanto a segunda, lançada no final de 2016,
conta a história do sargento Bowe Bergdahl - que ficou cinco anos preso pelo regime taleban,
no Afeganistão – em 11 episódios divulgados quinzenalmente. Assim, selecionamos a
primeira temporada da série jornalística para observarmos o processo comunicacional do
podcast e como se dá a construção de sentidos a partir de sua circulação.
A primeira temporada de Serial é uma história real dividida em 12 episódios e é
apresentada pela produtora da WBEZ Chicago, Sarah Koenig. Ira Glass esclarece no
lançamento de Serial que este spin-off não seria mais um tradicional programa radiofônico e
sim um podcast, com cada edição disponibilizada exclusivamente nas mídias digitais
semanalmente, a partir do dia 3 de outubro de 2014. Após a apresentação do editor Ira Glass,
começa a narração da produtora Sarah Koenig dando início ao primeiro episódio do podcast
Serial. A história contada pela apresentadora tem origem em um caso de um assassinato
verídico da jovem de 17 anos e filha de imigrantes coreanos, Hae Min Lee, que aconteceu há
quase duas décadas (1999) em Baltimore, nos Estados Unidos. O ex-namorado, de origem
muçulmana, Adnan Syed, foi condenado à prisão perpétua pelo crime e se encontra na prisão
até os dias atuais. A acusação foi construída principalmente em torno do depoimento de Jay,
colega de escola de Adnan, que afirmou que o acusado tinha planejado todo o crime, já que
estava inconformado com o fim do namoro. Mesmo com a condenação, Syed alega inocência.
A comunidade de imigrantes muçulmanos da qual Adnan faz parte se organizou para
levantar fundos e ajudar a provar sua inocência. A advogada Rabia Chaudry, que pertence a
esta comunidade, acredita na inocência do acusado e apresentou a história para a equipe de
produção do podcast This American Life. A produtora Sarah Koenig ao receber o caso por
meio de um email de Chaudry compreendeu que ali havia uma interessante história para ser
investigada e apresentada no novo podcast. No primeiro episódio de Serial, Sarah Koenig
relata que a advogada entrou em contato com a equipe de produção e apresentou a história de
15
Adnan, o que fez a produtora perceber que a investigação daquele crime e a condenação ainda
não esclareciam certos aspectos do caso, questionando até mesmo a culpa do jovem como
responsável pelo crime.
A primeira temporada do podcast Serial é uma narrativa que se apresenta em forma de
uma série jornalística dividida em 12 episódios, que totalizam dez horas de duração, e com
linguagem essencialmente sonora, fazendo uso principalmente da narração oral e de
depoimentos e entrevistas gravadas em áudio. A voz narrativa da jornalista Sarah Koenig, que
mescla seu próprio testemunho com as entrevistas em áudio dos envolvidos direta e
indiretamente com o acontecimento narrado, funciona como elemento-chave para a tessitura
do enunciado do podcast. A proposta de Serial não é a mesma das reportagens policiais que
buscam uma conclusão concreta ao revelar um culpado por determinado crime. Sarah Koenig,
Dana Chivis e Julie Snyder (criadoras e produtoras de Serial) se distanciam dessa lógica ao
explorar as contradições da história, sem ter a obrigatoriedade de, ao fim dos 12 episódios da
primeira temporada, apresentarem a solução para o crime.
Um dos principais depoimentos que compõem a narrativa são as entrevistas gravadas
por telefone com Adnan Syed, direto do presídio em que ele ainda se encontra. O condenado
se declara inocente durante toda a série, mas não se recorda com clareza dos eventos
ocorridos no dia do crime que poderiam provar sua inocência. A acusação que o levou a esta
condenação foi construída principalmente em torno do depoimento de Jay, colega de Adnan,
que testemunhou que o acusado tinha planejado todo o crime. Jay, porém, não concede
entrevista diretamente à jornalista. As falas de Jay que se escutam na série correspondem às
gravações de depoimentos à polícia e do julgamento de Adnan, no ano 2000. Sarah Koenig
relata que outras evidências se somaram ao depoimento dessa testemunha-chave da acusação,
como o registro de torres de celular que indicaram que Adnan esteve próximo ao local onde
foi encontrado o corpo da vítima. Mesmo com a condenação, Syed reafirma sua inocência na
narrativa do podcast. Além dessas entrevistas com Adnan e as gravações de Jay, são
acionados outros depoimentos de pessoas que vivenciaram o acontecimento naquela época
como familiares de Adnan, amigos da escola do acusado e da vítima, professores, além de
especialistas que analisam o caso de uma perspectiva mais externa, como advogados,
detetives e psicólogos. A cronologia do crime, a credibilidade de algumas testemunhas e o
próprio Adnan são questionados a todo o momento pela narradora de Serial.
As técnicas de investigação de Serial utilizando de múltiplas fontes e personagens
atestam seu caráter jornalístico, mas é importante ressaltar que a narrativa do podcast acionou
em seu discurso recursos estético-linguageiros típicos da ficção, presentes em outros produtos
16
comunicacionais, como as séries televisivas e os livros em áudio, considerando que as 10
horas de narrativa foram divididas em 12 capítulos, que apresentam diferentes visões
temáticas sobre o caso e se interligam formando uma unidade de sentido, já que para o
ouvinte compreender um episódio se faz necessário ouvir o anterior.
No contexto da radiofonia expandida4, o podcast Serial possui na composição de seu
enunciado outros elementos estético-linguageiros, além dos 12 episódios em áudio. No site
oficial de Serial, encontramos informações que não estavam presentes nos episódios e
complementam a investigação jornalística realizada por Sarah Koenig, através de recursos
como textos (postagens no blog oficial da série), fotografias (no site há registros fotográficos
de Adnan, Hae Lee, diversos personagens, da escola, cena do crime e outras imagens
relacionadas à história), infográficos (as produtoras criam vários gráficos explicativos, como é
o caso do que identifica todos os personagens abordados nos episódios e como eles se
relacionam dentro da trama), mapas (um exemplo é o mapa do estacionamento, onde ocorreu
o crime, feito à mão por Jay e utilizado como evidência no julgamento de Adnan), além de
diversos documentos relacionados ao assassinato da jovem Hae Lee e à condenação de
Adnan. Não há no site oficial, um espaço para os ouvintes do podcast comentarem e
debaterem o conteúdo da série, porém a equipe de produção de Serial criou diversos perfis em
redes sociais digitais (Twitter, Facebook e Instagram) e publicou em seu blog oficial uma
mensagem para o público utilizar tais redes para interação e debates sobre a série.
A primeira temporada de Serial nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre as
circunstâncias em que o relato de um acontecimento do passado parece se autonomizar ao ser
representado por meio de uma narrativa, gerando novos acontecimentos de natureza midiática
no tempo presente. Ao transformar a história de Adnan Syed em narrativa, por meio da
construção do podcast, a série institui-se e transforma o caso em um acontecimento
midiatizado, estabelecendo, na dimensão simbólica, possíveis novos significados e
interpretações que assim não se deram à época do assassinato. Um detalhe que nos chama a
atenção foi o novo acontecimento que emergiu após a circulação de Serial: no dia 30 de junho
de 2016, pouco mais de um ano após a divulgação do primeiro episódio, a Justiça de
Maryland (EUA) autorizou um novo julgamento para Adnan Syed, que havia sido condenado
à prisão perpétua em 2000.
Para realizarmos a análise de como os ouvintes geraram novos significados sobre o
acontecimento e qual a relação dessa dimensão simbólica com os novos acontecimentos que
4
As reflexões sobre radiofonia expandida com base nos estudos de Marcelo Kischinhevsky (2014) serão
aprofundadas no capítulo 3.
17
retornam ao mundo cotidiano, realizamos no próximo capítulo uma discussão sobre os
contratos de comunicação estabelecidos pelo podcast, em um contexto de emergência de
novos modos de enunciação e novas práticas interacionais proporcionadas pela radiofonia
expandida nas plataformas digitais. Assim, na reflexão que se segue, buscamos compreender a
relação entre a instância de produção e a instância de recepção e como estas duas vertentes do
ato comunicacional são determinantes nos modos de enunciação, circulação e interpretação do
discurso jornalístico oferecido em Serial.
19
3 PODCASTS: MODOS DE CONTRATAÇÃO
As noções de contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e de contrato de
leitura (VÉRON, 2004; FAUSTO NETO, 2007) são importantes contribuições para a
compreensão de como se relacionam as instâncias de produção e recepção na circulação de
discursos no campo do jornalismo. Com as recentes transformações sociais e evoluções da
tecnologia, é importante refletir sobre os impactos da midiatização5
sobre o papel que o
jornalismo exerce como ator social na construção da realidade e quais consequências esse
processo traz para os produtores e consumidores da informação. Para esta dissertação, essa
reflexão será direcionada para o microdispositivo – conceito trabalhado por Charaudeau
(2006b) que diz respeito aos gêneros e modos de oferta do processo comunicacional – podcast
e como se dão os contratos comunicacionais ao considerarmos as possibilidades de produção,
circulação e recepção da informação por meio deste processo midiático. O fenômeno
comunicacional em torno do podcast se situa na radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY,
2014) vinculada às mídias digitais e compreender este novo cenário da comunicação
radiofônica é essencial para analisar a produção, circulação e recepção de discursos
juntamente com as práticas interacionais propiciadas pelos avanços tecnológicos. Mais
especificamente, vamos trazer esta reflexão para o podcast Serial e buscar compreender os
contratos de comunicação para, então, entendermos qual a influência destes aspectos do
microdispositvo na produção de sentidos gerados a partir da construção discursiva do
acontecimento desta série jornalística.
3.1 A radiofonia expandida nas plataformas digitais
As constantes transformações tecnológicas e sociais impactam profundamente a
trajetória dos meios de comunicação, incluindo-se aí a do rádio. Ao considerarmos tais
transformações, é possível identificar dois momentos de transição e mudancas, do ponto de
5
Compreendemos o conceito de sociedade midiatizada por meio das reflexões de José Luiz Braga (2012) acer ca
da midiatização. De acordo com o autor, a midiatização corresponde à compreensão das diversas experiências
sociais de produção de dispositivos que são atravessados por uma intensificação da prática de interação social,
permitindo entender como se encaminham as mediações comunicativas da sociedade. Braga percebe então a
midiatização como “uma criação e recriação contínua de circuitos, nos quais articulados com processos de
oralidade e processos do mundo da escrita, os processos que exigem ou exercem inter mediação tecnológica se
tornam particularmente caracterizadores da interação” (BRAGA, 2012, p.50). Assim, na sociedade em
midiatização os meios, tecnologias, as indústrias culturais em conjunto com todos os participantes sociais,
grupos, sujeitos e instituições acionam os mais diversos processos de produção de sentido acerca de uma
realidade social e podem definir os modos como tais processos se dão.
20
vista da linguagem e práticas desse meio, que marcam a história da radiofonia. No primeiro
momento, podemos identificar o intenso debate acerca da sobrevivência do veículo com o
nascimento da televisão na década de 1950. Entre outros motivos e impactado com o advento
da TV, que além do som trazia o recurso da imagem para compor as narrativas, o rádio passou
por reconfigurações, principalmente em sua linguagem e formas discursivas, e manteve-se
firme como meio protagonista junto à TV e o impresso nos processos comunicacionais
sociais. A segunda mudança na trajetória da radiofonia diz respeito ao momento atual que
vivemos, em que se busca compreender de que forma a internet influencia na reconfiguração
de novas formas e gêneros radiofônicos. Nair Prata Martins (2008) aponta o surgimento de
uma nova era radiofônica propiciada pela emergência e desenvolvimento das mídias digitais.
Quando Meditsch (2001) fala que o fantasma da extinção do rádio ronda nossos
estúdios sob a ameaça da internet, é preciso lembrar que a web, certamente, não
representa o fim, mas o início de uma nova era, regida pela digitalização. Desta vez
com uma nova linguagem, novos signos textuais e imagéticos, novo suporte, novas
formas de interação e a presença de gêneros reconfigurados, alguns do velho modo
hertziano e outros novos nascidos das modernas tecnologias (MARTINS, 2008, p.
220).
Ao olharmos para a história dos meios de comunicação, o rádio aparece como pioneiro
dentro da comunicação eletrônica, sendo que sua linguagem abriu caminho para o
desenvolvimento das mais variadas narrativas e discursos de outros meios eletrônicos que o
sucederam. O rádio é, inegavelmente, um dos mais importantes veículos da história, já que
desde seu surgimento se constituiu como um espaço privilegiado para as representações
socioculturais, a construção de identidades e afirmação da cidadania. Marcelo Kischinhevsky
(2014) demonstra que a nova configuração da radiofonia se torna mais complexa com as
transformações tecnológicas das últimas duas décadas e aborda o conceito de rádio expandido
para tratar dos novos gêneros e novos formatos que emergem na comunicação radiofônica
com o advento da internet e a incorporação de novos elementos como textos, imagens, vídeos,
comentários e ferramentas de compartilhamento.
Para o autor, o rádio, desde seus primórdios, tem sido espaço para apropriações de
formas simbólicas sujeitas às mais variadas e imprevistas leituras se constituindo como uma
espécie de arena para discursos em construção e intervenções dos ouvintes. A radiofonia,
tanto a de transmissão hertziana quanto a das plataformas digitais, não pode ser reduzida a um
roteiro pré-estabelecido de discurso construído para o público ouvinte. Apesar dos discursos
que circulam no rádio contemporâneo serem influenciados fortemente pelos contratos
comunicacionais (conceito aprofundado no item 3.2) – um conjunto de regras não escritas,
que envolvem interesses mercadológicos, institucionais e políticos e que interferem no
21
conteúdo produzido -, a participação cada vez mais direta do público, principalmente por
meio das práticas interacionais proporcionadas pela rede, também é vital para o
funcionamento completo do processo comunicacional radiofônico. Assim, a radiofonia que se
desenvolve atualmente mediante influência das mídias digitais apresenta mudanças
substanciais tanto no seu processo de produção e distribuição de conteúdo quanto na etapa de
recepção.
No intuito de entender quais os desafios teóricos-metodológicos que envolvem essa
radiofonia expandida na era digital, o primeiro passo em nossa reflexão será em busca da
compreensão da especificidade da comunicação radiofônica. Ao começarmos por sua
linguagem, entende-se nesta pesquisa que a expressão radiofônica contemporânea independe
do suporte tecnológico ao qual se vincula, seja a emissão da mensagem sonora pelas mídias
digitais, seja pelas ondas eletromagnéticas das frequências hertzianas. É perceptível que a
linguagem radiofônica se reconfigurou com o surgimento das plataformas digitais, porém é
possível observar que os elementos característicos da radiofonia tradicional se mesclam com
outros elementos estético-linguageiros oferecidos pelas mídias digitais.
Considerando que a oralidade combinada com o uso de recursos sonoros, trilhas
musicais e até mesmo o silêncio constituem os principais elementos que compõem esta
linguagem, é importante trazer à nossa reflexão a maneira como a circulação dos conteúdos
radiofônicos nas mídias digitais impacta a audiência, já que sites, aplicativos e redes sociais
na internet apresentam conteúdos inseridos em um contexto de valorização visual, oferecendo
ao ouvinte um contato além do som e da oralidade característicos da linguagem dos veículos
radiofônicos tradicionais, com inserção de outros elementos como texto, vídeo, imagens,
links, ferramentas de compartilhamento, espaço para comentários, entre outros.
Magda Rodrigues da Cunha (2012) aponta que a radiofonia se insere em um conceito
de maior amplitude, pois vai além da linguagem sonora ou de uma plataforma específica,
considerando que sua linguagem, produção e recepção de narrativas também são
influenciadas pelas possibilidades interacionais da rede digital e pela cultura imagética em
que se insere a sociedade contemporânea. É importante ressaltar que a autora defende que,
apesar do grande fluxo visual que permeia os atuais processos comunicacionais, o som ainda é
o principal elemento que serve de base para o desenvolvimento da radiofonia, seja nas
transmissões hertzianas seja pelas mídias digitais.
Radiofonia, de maneira ampla, já se relaciona com o novo contexto, onde áudio e
oralidade permeiam todos os formatos, em um modelo reinventado. Mais do que
rádio, oralidade ou áudio, independentes ou recombinados, hoje podemos descrever
22
a radiofonia como um conceito que corresponde diretamente à nova mídia,
obedecendo à variabilidade e à modularidade. (CUNHA, 2012, p.10)
Em seu ensaio O rádio está morto...Viva o som! (2012), Armand Balsebre constrói sua
reflexão ao questionar se o rádio pode se converter em uma nova mídia sonora para os novos
rádio-ouvintes inseridos no contexto das transformações sociais e tecnológicas que perpassam
a sociedade contemporânea. De acordo com o autor, o posicionamento do rádio na nova
“sonosfera” se dá em um cenário em que os meios tradicionais se conciliam com os novos
meios. Para se constituir como um novo meio sonoro independente do aparato tecnológico em
que se apoia, Balsebre aponta a emergência de um paradoxo nesta nova radiofonia, já que
para se converter em uma nova mídia, o rádio “terá que respeitar sua tradicional e particular
estrutura comunicativa sonora (BALSEBRE, 2013, p.17)”.
Para tratar da relação da radiofonia com as plataformas digitais, Marcelo
Kischinhevsky e Cláudia Modesto (2014) acionam o conceito de remediação de Jay Bolter e
Richard Grusin. Tal conceito parte de uma dupla lógica: a imediação transparente combinada
com a hipermediação, no intuito de reposicionar os meios de comunicação diante deste novo
comportamento do público, marcado por novas práticas interacionais proporcionadas pelas
transformações sociais e inovações tecnológicas. O objetivo da imediação, segundo os
autores, é tornar o meio de comunicação invisível, uma espécie de apagamento do meio que
busca simular uma experiência direta, como é possível observar, por exemplo, em portais de
internet que liberam acesso a conteúdos de outros veículos pertencentes ao mesmo grupo
econômico, como jornais, revistas, entre outros. Ainda de acordo com Kischinhevsky e
Modesto, a hipermediação diz respeito à multiplicidade e volta para o processo de remediação
em si ao observarmos a infiltração de características de um meio em outro em busca de
atualização e afirmação diante da enxurrada de novas mídias, como, por exemplo, portais de
internet com conteúdos sonoros, que utilizam em seu nome expressões advindas dos veículos
tradicionais como “rádio” ou “FM”.
O conceito de remediação apresentado por Kischinhevsky e Modesto nos mostra que,
em um cenário de emergência de novas possibilidades de mediação6, os meios não devem ser
analisados separadamente, e sim como integrantes de um sistema interdependente, no qual as
características de linguagem, produção e recepção de conteúdo de diversos veículos se
conciliam, geram uma interseção e se adaptam a um novo contexto midiático. E é justamente
6 O conceito de mediação é abordado nesta dissertação de acordo com a noção trabalhada por Jesús Martín-
Barbero (1997), que diz respeito ao processo de produção de sentidos resultantes das interações de atores sociais
em distintas dimensões de atuação nos campos social, político, econônomico, cultural, entre outros, atravessados
pela forte presença dos dispositivos midiáticos.
23
este conceito que pode servir de referência para a compreensão da atual radiofonia, do rádio
expandido caracterizado pela mistura da linguagem exclusivamente sonora do meio
tradicional com outros elementos (texto, imagens, comentários, links, etc.) que ganham
espaço na rede digital. Esta combinação também impacta e transforma as formas de interações
comunicacionais e contribui para definir novos parâmetros de análise da comunicação
radiofônica.
Esta pesquisa tem como objeto de estudo o podcast, cujo conceito e especificidades
serão debatidos também neste capítulo (item 3.3) e sendo considerado aqui como gênero e
modo de oferta desta radiofonia, ou seja, como microdispositivo (conceito aprofundado no
item 3.4) na perspectiva de Patrick Charaudeau (2006b), o qual emerge das transformações
substanciais no processo comunicacional proporcionadas pelo advento da internet. Marcelo
Kischinhevsky (2012) apresenta o podcast como uma modalidade da radiofonia e,
considerando que uma de suas principais características é a assincronia na recepção (o
conteúdo do podcast não precisa ser acompanhado simultaneamente à sua emissão, como
ocorre nas transmissões radiofônicas hertzianas, já que pode ser baixado para ser ouvido
posteriormente à sua emissão pelas redes digitais e consumido em diversas plataformas
midiáticas), o autor argumenta que este microdispositivo é responsável por engendrar “um
novo tipo de mediação sonora, com múltiplas temporalidades e possibilidades de inserção
espacial, e propiciando o fortalecimento de uma cultura da portabilidade”
(KISCHINHEVSKY, 2012, p. 426).
Como integrante desta nova radiofonia, o podcast propicia o desenvolvimento de
novas práticas interacionais e modalidades de recepção. Cabe ressaltar que reconhecemos a
amplitude dos estudos dos processos comunicacionais que buscam compreender as práticas
interacionais mediante as possibilidades proporcionadas pelo desenvolvimento das redes
digitais e suas tecnologias. Apesar de a noção de recepção estar vinculada ao tradicional fluxo
comunicacional massivo, o uso do termo receptor aqui nesta pesquisa não está relacionado a
uma completa passividade do ouvinte como mero consumidor de uma determinada
mensagem, ao mesmo tempo em que não remete exclusivamente aos usuários das redes
digitais que dominam os processos tecnológicos de produção, gravação e distribuição de
produtos sonoros. Existe um grande potencial de transformação dos receptores do podcast em
emissores, justamente por esse domínio possibilitado pelo fácil acesso a tecnologia, porém,
entendemos aqui que não deve haver uma celebração utópica do empoderamento deste perfil
de receptor, ou seja, tal receptor não deve ser tomado pelo todo no panorama midiático, já que
24
apenas uma pequena parcela do público das redes digitais tem potencial para assumir o papel
de produção da informação que circula via podcast.
Tendo em vista essa ampla gama de possibilidades no papel da recepção dentro do
contexto das mídias digitais, adotaremos o termo receptor-usuário para nos referirmos ao
público que consome e interage em diversos níveis com o conteúdo de um podcast. Assim,
nosso ponto de partida diz respeito a um entendimento da amplitude da instância da recepção
desta nova radiofonia, em que se pode repensar os fenômenos comunicacionais por meio das
práticas de recepção e interação de um público diverso, que se apropria desta mídia digital em
maior ou menor grau de envolvimento, de acordo com sua subjetividade e condições política,
econômica e cultural, no intuito de se estabelecer e interferir em uma agenda pública de
debates, com a circulação de opiniões, reclamações, demandas e representações, por meio de
redes sociais, ferramentas de compartilhamento, entre outros recursos para práticas
interativas, conforme será aprofundado na análise (capítulo 5) do objeto empírico desta
pesquisa – o podcast Serial.
Como o podcast Serial se trata de uma narrativa jornalística, é possível fazer uso da
reflexão de Sônia Pessoa (2016) acerca da cultura além da escuta voltada para o
radiojornalismo. Segundo a autora, o ouvinte se apresenta como um dos principais atores na
configuração do radiojornalismo contemporâneo, sendo que o processo de escuta diz respeito
não só à compreensão das mensagens que fazem uso de uma linguagem audioverbovisual,
como também do cenário das redes sociais online, espaço em que o ouvinte digital expressa
sua opinião e expande debates.
Percebe-se que o mapeamento das interações radiofônicas nas mídias digitais
apresenta ampla complexidade devido às suas especificidades e hibridização, já que novas
práticas coexistem com outras oriundas da tradicional comunicação massiva do rádio. Assim,
a análise deste rádio expandido, conforme conceito abordado por Marcelo Kischinhevsky
(2014), por meio do podcast Serial engloba nesta pesquisa tanto a instância narrativa da série,
principalmente no que diz respeito à linguagem acionada para a produção do discurso
jornalístico de Serial, quanto o importante papel dos receptores na interação com o podcast -
associada às potencialidades das redes digitais - e na construção de sentidos em torno desta
narrativa. E para entender a relação entre as instâncias de emissão e de recepção no podcast
Serial vamos acionar os conceitos de contratos de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e
de leitura (VÉRON, 2004; FAUSTO NETO, 2007) e, a partir destes conceitos, analisar as
transformações que se deram nesses contratos do cenário da comunicação radiofônica
tradicional para o da radiofonia expandida nas plataformas digitais.
25
3.2 Contratos de leitura e de comunicação
Quando pensamos na forma como os sujeitos sociais constroem a realidade,
encontramos os atos discursivos como um caminho para estes indivíduos, inseridos em uma
coletividade, interpretarem os atos que os rodeiam. E, em se tratando de sujeitos e seus
discursos, encontramos no jornalismo e seus dispositivos comunicacionais um meio que
condiciona a produção, a circulação e a recepção destes discursos que expressam e
representam o mundo da ação humana.
Um fato selecionado do mundo da ação e transformado em discurso circula por meio
de diversos meios e plataformas de comunicação (massivos ou pela rede digital), o que resulta
em múltiplas interpretações sobre o que aquele acontecimento discursivo7
representa para
uma determinada realidade social em um determinado momento. Para analisarmos a produção
de sentidos gerada pelos discursos jornalísticos, é importante observarmos a relação de
articulação entre a instância de produção e a instância de recepção, por meio das condições de
concretização das trocas linguageiras que ocorrem entre os atores sociais envolvidos. Tratam-
se de estratégias do campo midiático para se realizar a enunciação de discursos, ou seja,
regras que não são declaradas explicitamente, porém são naturalizadas às rotinas produtivas,
sendo um contrato de leitura que se viabiliza por meio do vínculo entre leitores e produtores
dos suportes midiáticos.
Eliseo Verón (2004) apresenta em suas reflexões o conceito de contrato de leitura,
definindo-o como uma espécie de espaço imaginário em que múltiplos percursos são
ofertados ao leitor com opções de relativa liberdade, encontrando zonas em que ele pode se
perder ou encontrar sinalizações perfeitas para seguir e gerar sua leitura e interpretação acerca
de um discurso. Verón percebe o discurso como um espaço habitado por sujeitos sociais,
cenários e objetos que os cercam e considera que o ato de leitura é a movimentação de todo
este universo, ou seja, para o autor leitura é ação. Esta ideia de leitura ativa se opõe ao
procedimento tradicional que caracteriza o leitor de forma objetiva como um ser passivo no
processo comunicacional, sem se questionar sobre o conhecimento produzido na recepção
durante o ato de leitura. Verón ressalta o papel do leitor que, a partir de sua cultura, hábitos e
vivências, constrói sentidos sobre os enunciados difundidos pelo emissor, gerando novos
7
O conceito de acontecimento discursivo é trabalhado com maior profundidade no próximo capítulo desta
dissertação pelo viés teórico de Louis Quéré (2012), cujos estudos abordam a dupla vida do acontecimento, e de
Adriano Rodrigues (1993), autor que desenvolve o conceito de acontecimento e meta-acontecimento no campo
jornalístico.
26
discursos, provocando um constante processo de negociação entre produtor e receptor em uma
permanente troca de sentidos.
Alinhado ao conceito de Verón, Antônio Fausto Neto (2007) também apresenta a
noção de contrato de leitura como normas naturalizadas nas operações de produção que
regulam as relações entre os sujeitos envolvidos no processo comunicacional, o que diz
respeito aos processos que estruturam a interação entre emissor e receptor e que norteiam a
produção dos discursos midiáticos.
Entende-se, aqui, por contratos de leituras regras, estratégias e ‘políticas’ de sentidos
que organizam os modos de vinculação entre as ofertas e recepção dos discursos
midiáticos, e que se formalizam nas práticas textuais, como instâncias que
constituem o ponto de vínculo entre produtores e usuários. (FAUSTO NETO, 2007,
p.10)
Ainda de acordo com Fausto Neto, o processo de produção de um discurso já nasce
vinculado às lógicas que envolvem a instância emissora midiática. Um jornal, por exemplo,
ao produzir um acontecimento discursivo e buscar a construção de um espaço interacional
com seus leitores, está sujeito às regras e procedimentos internos que antecedem a emissão de
seu enunciado e moldam a sua linguagem e forma de se dirigir ao seu público, estruturando o
modo de dizer. É a partir desta influência da atmosfera interna de um veículo de comunicação
que se constrói a identidade do discurso midiático, definindo as características estético-
linguageiras que marcam o enunciado, o que possibilita um reconhecimento de presença de
determinado veículo de comunicação (impresso, rádio, TV e plataformas online) pelos seus
receptores.
Entende-se que o contrato de leitura estabelece uma via de mão dupla entre a instância
de produção e a instância de recepção envolvidas no ato da comunicação. A abordagem de
Antônio Fausto Neto acerca da emissão nos possibilita observar que uma das vias desta
relação permite situar o leitor em um campo de interesses e expectativas de efeitos de sentido
pré-estabelecidos por quem gera e põe em circulação um determinado discurso. Quando um
dispositivo comunicacional (como o jornal impresso, emissora de rádio ou TV) realiza
operações enunciativas que guiam um potencial sentido a seu público, ele também desenvolve
estratégias cujo intuito é inserir o receptor em um espaço de interação delimitado
parcialmente pelo próprio emissor, de acordo com as regras naturalizadas pelo contrato de
leitura e com as características linguageiras do discurso. Assim, a força deste “contrato” se
destaca em suas operações de emissão da mensagem, uma vez que é possível perceber os
efeitos de sentidos pré-estabelecidos responsáveis pela articulação da oferta do discurso
midiático e a apropriação feita pelo leitor por meio das mensagens em circulação.
27
Importante ressaltar que, apesar de haver uma intenção de sentido da instância de
produção do discurso, é preciso refletir sobre a construção de sentido produzida na recepção,
que não depende exclusivamente da intenção dos produtores de discurso, para melhor
compreensão do vínculo que articula mídias e receptores. Fausto Neto (2007) aponta as
diferenças existentes entre o campo midiático jornalístico e os leitores. O primeiro, como
explicado anteriormente, constrói o seu discurso não somente pela mera representação de um
acontecimento mundano e interesses de leitores, mas também definido pelas instâncias
organizacionais e tecno-editoriais, que influenciam na elaboração dos modos de dizer deste
campo. Estas “normas contratuais” que permeiam a instância de produção constitui um dos
fatores que influenciam a produção de sentido na recepção. Este campo dos leitores, por sua
vez, é influenciado pelo campo da emissão, mas também se constitui pela pluralidade dos
atores sociais que realizam as mais diversas leituras acerca de um mesmo discurso midiático,
devido aos diferentes contextos sócio-culturais que estão inseridos, às múltiplas identidades
biográficas e às diferentes construções simbólicas que se dão pela subjetividade que envolve o
indivíduo e a coletividade que o cerca.
A força dessas duas instâncias nos mostra como a articulação entre produção-recepção
exige reciprocidade e influencia diretamente na constituição do contrato de leitura. Apesar de
o termo “contrato” implicar em cálculo e previsibilidade, não podemos considerar os
contratos como unidimensionais no que diz respeito à produção de sentido, pois a significação
produzida ocorre permeada por relações complexas, sendo o âmbito interacional um elemento
essencial para a compreensão e análise do contrato de leitura. Sibila Rocha e Taís Ghisleni
(2010) reforçam a ideia de que o entendimento do contrato e das convenções que regulam as
relações dos sujeitos em comunicação dependem não apenas dos modos de dizer, mas
também dos modos de reconhecer. “O reconhecimento, por parte do receptor, influencia os
“modos de dizer” do enunciador. Reconhecer é também produzir sentidos; enunciador e
receptor se atualizam num processo recíproco” (ROCHA e GHISLENI, 2010, p.4).
Pode-se afirmar que a noção de Patrick Charaudeau (2006a) possui forte relação com a
perspectiva de Eliseo Verón ao enfatizar que o ato de comunicação realizado entre os atores
sociais é regulado por um contrato de comunicação. Charaudeau desenvolve sua concepção de
contrato ao afirmar que o discurso da informação propicia o reconhecimento identitário nas
sociedades e as mídias, como parte interessada nessa prática social, se organizam para fabricar
este tipo de discurso por meio dos seus diversos veículos, que constituem a “máquina
midiática”. Essa máquina coloca em evidência o contrato comunicacional, pois é justamente
pela mídia que se percebe a atividade de linguagem exercida pelo discurso da informação e é
28
por meio desse ato de comunicação que se dá a prática social de construção da realidade.
Charaudeau destaca que as restrições existentes em uma situação de comunicação são
naturalmente reguladas pelos indivíduos envolvidos nesta produção e circulação de discursos
que representam as práticas sociais, por meio de normas e convenções que definem os
comportamentos linguageiros essenciais para a realização da comunicação humana por meio
da máquina midiática.
Charaudeau discorre então sobre o conceito de contrato de comunicação e mostra que
para os indivíduos comunicarem entre si é necessário que tanto o locutor quanto o destinatário
reconheçam as restrições envolvidas nesta prática social, ao afirmar que
(...) toda troca linguageira se realiza num quadro de co-intencionalidade, cuja
garantia são as restrições da situação da comunicação. O necessário reconhecimento
recíproco das restrições da situação pelos parceiros da troca linguageira nos leva a
dizer que estes estão ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os dados desse
quadro de referência. Eles se encontram na situação de dever subscrever, antes de
qualquer intenção e estratégia particular, a um contrato de reconhecimento das
condições de realização da troca linguageira em que estão envolvidos: um contrato
de comunicação. Este resulta das características próprias à situação de troca, os
dados externos, e das características discursivas decorrente, os dados internos
(CHARAUDEAU, 2006a, p.68).
A interação comunicativa resulta do modo como os aspectos discursivos são dispostos
e do contexto que envolve a troca linguageira. Patrick Charaudeau aponta duas formas de
organização dos dados das estratégias enunciativas presentes no contrato de comunicação:
externa e interna. Segundo o autor, os dados externos do contrato se referem ao modo como
ocorre a troca informacional, enquanto os dados internos dizem respeito às formas discursivas
da enunciação.
Os dados externos são constituídos pela forma comportamental dos indivíduos
envolvidos na troca e pelo contexto que cerca a organização da informação. De acordo com o
pesquisador francês, estes dados “não são essencialmente linguageiros (o que os opõem aos
dados internos), mas são semiotizados, pois correspondem a índices que, retirados do
conjunto dos comportamentos sociais, apresentam uma convergência, configurando-se em
constantes” (CHARAUDEAU, 2006a, p.68). As formas externas se agrupam em quatro
categorias que ilustram as condições de enunciação da produção linguística: condição de
identidade, condição de finalidade, condição de propósito e condição de dispositivo.
A primeira categoria se refere à identidade dos sujeitos engajados no ato
comunicacional, que é uma das principais condições para que a troca ocorra. As
características que identificam os atores do ato de linguagem interferem na construção do
discurso a ser colocado em circulação. Desde a subjetividade que envolve os traços de
29
personalidade até os traços que estão no contexto dos sujeitos da troca, como status social,
econômico e cultural, são elementos que definem a forma que os emissores e receptores de
um discurso realizam a troca linguageira e produzem sentido acerca da ação representada.
A finalidade é a segunda condição externa apontada por Charaudeau (2006a) para a
concretização da organização da informação. Esta condição representa o objetivo da
construção de determinado ato comunicacional, sendo definida pela expectativa de sentido a
ser causado no receptor. Ao elaborarem e fazerem circular um discurso informativo, os
sujeitos envolvidos buscam incorporar um ao outro à sua própria intencionalidade, ou seja,
encontramos nesta categoria uma espécie de efeitos visados, os quais se dividem, por sua vez,
em quatro tipos, que podem combinar entre si: visada prescritiva, que consiste em querer
fazer o outro a ter um determinado comportamento; visada informativa, cujo intuito é
transmitir um conhecimento a quem não o possui; visada iniciativa, que tem a intenção de
fazer com que o outro creia que o que fora dito é verdadeiro; e por último a visada do páthos,
relacionada ao fazer sentir, à intenção de provocar um determinado estado emocional com o
discurso elaborado.
A terceira condição dos dados externos do contrato de comunicação de Charaudeau é
o propósito. Aqui, trata-se da tematização do discurso, o que requer uma maneira de recortar o
mundo da ação em torno de um domínio de saber. Os sujeitos que compõem a troca devem
reconhecer o tema para construírem suas interpretações em torno de determinado propósito, o
que pode levar a outros temas e subtemas derivados do inicial proposto no ato
comunicacional.
O dispositivo é a quarta condição externa que regula a construção discursiva da troca
comunicativa. Esta condição diz respeito às condições materiais em que se insere o ato, o
ambiente em que está instaurado junto com os indivíduos que os compõe e são responsáveis
pela transmissão do discurso. A definição da categoria do dispositivo está nas respostas das
perguntas: em que ambiente está inscrito o ato de comunicação? Quais espaços físicos são
ocupados pelos sujeitos ligados à troca discursiva? E qual é o meio de transmissão de
determinado discurso?
No contrato de comunicação de Charaudeau (2006a), a segunda forma de organização
das estratégias enunciativas passa pelos dados internos. A partir do momento que se
compreende as influências externas em que se dão as trocas discursivas entre produtores e
receptores, é importante entender o papel dos dados internos. Estes se referem à percepção de
como será dita a mensagem, ou seja, quais serão as formas linguísticas empregadas em função
das restrições situacionais percebidas e reconhecidas por meio dos dados externos. O autor
30
divide as formas internas em três espaços comportamentais de linguagem: o espaço de
locução, o espaço de relação e o espaço de tematização.
O espaço de locução influencia diretamente na maneira em que irá se construir o
discurso, uma vez que é neste espaço que o locutor se legitima como sujeito falante e seu
direito de falar, ao tomar a palavra para si e justificar por que escolheu produzir determinada
locução ao mesmo tempo em que idealiza um interlocutor ao qual irá se dirigir com suas
palavras escolhidas. O locutor conquista neste espaço seu direito de exercer a comunicação.
O segundo espaço de comportamento de linguagem se define pela forma como o
emissor constrói seu relacionamento com o destinatário. O sujeito falante, ao se posicionar
como locutor de um determinado discurso e pré-estabelecer seu interlocutor, desenvolve
relações de aproximação ou afastamento, de exclusão ou inclusão, a partir do momento que a
circulação de um enunciado propicia uma troca entre receptor e produtor.
A tematização é o espaço onde se organiza o tema do ato comunicacional pelo sujeito
falante. É neste espaço que ocorre o tratamento da informação, em que se define o modo de
como se projetará o saber, seja ele pré-definido pelas restrições externas da comunicação ou
pelos sujeitos envolvidos no ato. O locutor escolhe o modo de intervenção, ou seja, a forma
como vai se posicionar diante da temática escolhida e, principalmente, a forma como vai
desenvolver um determinado discurso, como, por exemplo, por meio de descrição, narração e
argumentação.
Apesar de apontar as condições externas restritivas que permeiam o ato
comunicacional entre os atores sociais das instâncias de produção e de recepção, Patrick
Charaudeau assinala que o contrato comunicacional determina a maneira de criação discursiva
apenas parcialmente, caracterizando uma possibilidade de liberdade criativa por parte da
subjetividade da fala de um locutor, já que este não depende única e exclusivamente das
interferências externas para construir seu discurso.
Nenhum ato de comunicação está previamente determinado. Se é verdade que o
sujeito falante está sempre sobredeterminado pelo contrato de comunicação que
caracteriza cada situação de troca (condição de socialidade do ato de linguagem e da
construção de sentido), é apenas em parte que está determinado, pois dispõe de uma
margem de manobra que lhe permite realizar seu projeto de fala pessoal, ou seja, lhe
permite manifestar um ato de individuação: na realização do ato de linguagem, pode
escolher os modos de expressão que correspondam a seu próprio projeto de fala.
(CHARAUDEAU, 2006a, p.71)
Ao compreendermos os dados externos e internos que compõem o contrato,
percebemos como a prática comunicacional traz à tona o protagonismo da força da
reciprocidade existente entre as duas vertentes midiáticas da produção e da recepção. Toda a
31
organização discursiva influenciada pelas estratégias linguísticas escolhidas pelo emissor e
pelas influências externas do contexto organizacional que o rodeia necessita ser reconhecida
pelo receptor, que consequentemente deve manifestar seu interesse pelo consumo de
determinada informação, para então se estabelecer a troca comunicativa.
Assim, o sentido resultante do ato de comunicação está diretamente relacionado à co-
intencionalidade entre as duas vertentes midiáticas. Charaudeau (2006a) afirma que esta troca
entre essas duas instâncias determina três lugares de construção de sentido: o da instância de
produção, o da instância de recepção e o do texto como produto, conforme podemos observar
na figura abaixo:
Figura 1
OS TRÊS LUGARES DA MÁQUINA MIDIÁTICA
Produção
Lugar das condições de
produção
Produto
Lugar de construção do
produto
Recepção
Lugar das condições de
interpretação
[Externo-Externo]
- Práticas de
organização
socioprofissionais;
- Representações por
discursos de
justificativas de
intencionalidade dos
“efeitos
econômicos”;
[Externo-Interno]
- Práticas de
realização do
produto;
- Representações
por discursos de
justificativas da
intencionalidade
dos “efeitos
visados”;
[Interno]
- Organização
estrutural
semiodiscursiva
segundo hipóteses
sobre a co-
intencionalidade;
- Enunciador-
destinatário;
- “efeitos
[Interno-Externo]
- Alvo imaginado
pela instância
midiática;
- “efeitos
supostos”;
[Externo-externo]
- Público como
instância de
consumo do
produto;
- “efeitos
produzidos”;
Fonte: Adaptação de figura elaborada por Patrick Charaudeau sobre a máquina midiática e seus lugares de
construção de sentido (CHARAUDEAU, 2006a, p.23).
Os atores de um determinado contrato de comunicação inseridos na instância de
produção agem de acordo com critérios externos e internos segundo Charaudeau (2006a). Os
externos se referem às lógicas de atuação dessa instância de acordo com fatores
32
socioeconômicos da mídia juntamente com as práticas de organização da máquina midiática
enquanto empresa. Tais fatores influenciam na elaboração do enunciado a partir de um ponto
de vista mercadológico. Os atores-produtores de um ato comunicacional atuam de acordo com
práticas quase institucionalizadas, com funções pré-estabelecidas por uma intencionalidade da
própria empresa, ou seja, o veículo de comunicação também influencia nos modos de dizer
dos produtores visando efeitos econômicos. São saberes que preexistem à construção de um
discurso antes mesmo da percepção e seleção de um acontecimento mundano que será narrado
por um locutor. Já os fatores externos-internos da produção se constituem em um espaço de
práticas em que os atores constroem o discurso de representação de acordo com algum
objetivo específico no intuito de alcançar um destinatário ideal. Estes fatores da produção irão
definir o tipo de produto midiático a ser construído (artigo ou reportagem de impresso,
telejornal, programa radiofônico, entre outros) em busca de um efeito visado à instância de
recepção (receptor ideal).
A intencionalidade da instância de produção em construir um discurso visando um
receptor ideal constitui um aspecto interno da instância de recepção prevista em um contrato
de comunicação. Ao colocar um discurso em circulação, o polo produtor não tem controle
total sobre a recepção, mesmo que proponha um efeito de sentido. É neste aspecto que se
compreende uma espécie de espaço externo dentro da instância de recepção, pois o consumo
da informação midiática é realizado pelo receptor real, responsável pela produção de sentidos
dirigida de acordo com suas próprias condições de interpretação. Assim, no contrato de
comunicação, o público-receptor não pode ser tratado de maneira global, ele é heterogêneo e
se diferencia de acordo com o suporte de transmissão da mensagem. A construção de sentido
pela recepção depende de elementos que combinam categorias sociais, culturais e econômicas
de uma coletividade e de categorias mentais que correspondem à forma como os indivíduos
percebem e interpretam os acontecimentos que representam uma determinada realidade social.
Essa distinção de lugares da máquina midiática proposta por Charaudeau nos mostra
que a produção discursiva corresponde não somente à intenção do produtor ou somente à do
receptor, ela resulta de uma relação de via de mão dupla entre os efeitos visados pelos
emissores e os múltiplos efeitos produzidos pelas interpretações do público. Esses três lugares
incidem um sobre o outro e formam um ciclo na construção de sentido pela representação
discursiva de uma determinada realidade social.
É importante ressaltar que estas noções de contrato de comunicação por Charaudeau
(2006a) e de contrato de leitura por Verón (2004) e Antônio Fausto Neto (2007) são reflexões
voltadas principalmente para o contexto dos processos comunicacionais massivos, mais
33
vinculados aos veículos impressos e eletrônicos (jornais, revistas, rádio e TV). Considerar as
transformações sociais e mudanças da tecnologia se faz essencial para analisarmos como estes
contratos se transformam na lógica da sociedade midiatizada. Mais especificamente nos
interessa perceber como se transforma a relação entre emissão e recepção no podcast, objeto
de estudo desta pesquisa, além de compreender como esses novos aspectos do contrato
comunicacional influenciam na construção do acontecimento do podcast Serial. E
considerando que o podcast está inserido dentro da radiofonia expandida, ainda cabe em
nossa reflexão ressaltarmos a ideia do contrato de comunicação de Charaudeau aplicada à
comunicação radiofônica por Castro e Bruck (2012).
Nas emissões radiofônicas, os postulados de intencionalidade descritos por
Chareaudeau parecem atuar simultaneamente em uma ação combinatória de
objetivos de persuasão, de sedução e de informação. O discurso radiofônico é de
permanente tentativa de sedução do receptor. Refém de uma circunstância técnica
precária, o rádio procura vencer as limitações que lhe são impostas pelo ambiente
exclusivamente sonoro com sofisticadas e envolventes estratégias estético-
discursivas. Objetividade, simplicidade, clareza, concisão, etc são parâmetros
indispensáveis ao processo de construção da linguagem radiofônica, mas a esses
parâmetros, o rádio aciona de modo intenso e apriorístico aspectos estéticos que
reenquadram a comunicação radiofônica transformando-a, como assinala Rodrigues
(1999), num envelope sonoro da realidade (CASTRO e BRUCK, 2012, p.44).
Apesar de os autores trabalharem com foco maior na radiofonia tradicional,
entendemos que a operação da linguagem radiofônica se mantém na radiofonia expandida,
englobando o podcast. Isso quer dizer que, apesar da oralidade característica do meio
tradicional poder até ganhar novas possibilidades nos meios digitais com a inserção de outros
elementos (imagem, texto, vídeo, etc.), ainda permanece o contrato entre as instâncias de
produção e de recepção, principalmente por meio de dois compromissos apontados por Castro
e Bruck: o reconhecimento e a adesão. Mesmo que a interseção estabelecida entre o polo
emissor e o ouvinte ainda não ocorra de forma essencialmente sonora, ainda percebemos que
o receptor da radiofonia expandida se identifica com os atos de fala e com a abordagem dos
acontecimentos mundanos, além de aderir ao lugar de representação de uma realidade
construída pela instância de produção e, a partir destes dois compromissos e suas
interpretações, irá construir os sentidos acerca do conteúdo que lhe é apresentado.
Assim, antes de buscarmos compreender os modos de contratação de leitura e
comunicação no podcast, é necessário conhecer melhor este microdispositivo, por meio do
estudo de suas características estético-linguageiras, de seus gêneros e formatos, além de seus
modos de oferta, pela compreensão das suas possibilidades de produção, circulação e
recepção de discursos nas redes digitais.
34
3.3 Podcasts: especificidades
O desenvolvimento das mídias digitais proporcionou mudanças importantes na
construção e circulação das mensagens sonoras e suas linguagens, possibilitando novas
variações narrativas. É neste contexto que o podcast se apresenta como um possível caminho
para escapar da padronização de conteúdos, definidos principalmente pela brevidade e
instantaneidade, sendo permitido pela emergência de diferentes formatos oriundos dos
avanços tecnológicos e com as distintas maneiras de divulgação das produções pela internet.
O podcast é um dos produtos que instaura processos comunicacionais inserido dentro
da radiofonia expandida, cuja principal função é disponibilizar conteúdos de diversos
formatos para os mais distintos meios e plataformas digitais. Atualmente, está vinculado a
conteúdos essencialmente sonoros, sendo considerado a junção do rádio tradicional com as
possibilidades de difusão de conteúdo da internet. Apesar de ter se popularizado pelo uso da
linguagem sonora, o podcast não se limita somente ao som, já que disponibiliza conteúdo para
diversos meios digitais, seja em arquivos de áudio, texto ou imagem disponibilizados na
internet, além de possibilitar também novas explorações de conteúdo e criatividade narrativa
em busca dos mais variados públicos.
O podcasting não é só baixar e logo subir uma música ou outro documento sonoro. Possibilita qualquer elaboração pessoal mediante a inclusão de comentários, relatos ou documentos sonoros procedentes de outras fontes até mesmo criar um documento pessoal. É a organização de fontes externas e a incorporação da própria criatividade do usuário. Os sons radiofônicos se entrelaçam com outros procedentes da Rede ou de outros suportes e, em suma, se submetem a contextos diferentes que é de onde
surgem os novos significados (HERREROS, 2008, p.216, tradução nossa).8
De acordo com o pesquisador espanhol Juan Ignacio Gallego Pérez (2010), o contexto
em que se dá o surgimento do podcast é composto pela combinação das ideias de três
personagens: o desenvolvedor de software e da tecnologia de feed RSS9, Dave Winer, o ex-
apresentador da MTV e blogueiro, Adam Curry e o jornalista Christopher Lydon. Em outubro
8 El podcasting no es solo bajar y luego subir música u otro documento sonoro. Es posible cualquier elaboración
personal mediante la inclusión de comentarios, relatos o documentos sonoros procedentes de otras fuentes hasta
crear un documento personal. Es la organización de fuentes hasta ajenas y la incorporación de la propia
creatividad de cada usuario. Los sonidos radiofónicos se entrelazan con otros procedentes de la Red o de otros
soportes y, en suma, se someten a contextos diferentes que es de donde surgen los nuevos significados. 9
RSS é a sigla de Really Simple Sindycation e é um sistema de feed. A tradução de “feed” vem termo em inglês e
significa alimentar. Tal significado é aplicado a este sistema e é relacionado ao formato de distribuição de
conteúdo de sites, blogs e outras mídias digitais. O objetivo deste sistema de feed é alimentar o usuário das redes
digitais que recebe um determinado conteúdo por meio de uma assinatura de RSS. Assim, ao invés de o usuário
navegar por vários sites em busca de determinados conteúdos, o sistema de feed permite que determinada
postagem chegue direto ao assinante em seu leitor de feed, sempre que um conteúdo (texto, vídeo ou áudio) for
atualizado.
35
de 2000, Curry apresenta a Winer uma de suas preocupações, que se referia ao RSS não se
reduzir à um sistema agregador de conteúdo unicamente voltado à linguagem textual. Para
Curry, havia potencial para a indexação de outros arquivos multimídias, como o áudio. A
partir desta inquietação de Adam Curry, Dave Winer desenvolve uma nova versão do sistema
RSS que possibilitou anexar uma canção da banda norte-americana Greatful Dead em um post
de seu blog em janeiro de 2001, o que permitiu que diversos audiobloggers utilizassem esta
tecnologia para indexar músicas em suas postagens. O jornalista Cristopher Lydon, que
também possuía um audioblog, buscava uma tecnologia que permitia não só o download,
como uma transferência direta do arquivo de áudio disponível na rede para o equipamento
reprodutor de arquivos de som no formato MP3. Assim, ainda de acordo com Gallego Pérez
(2010), Lydon em parceria com Dave Winer conseguiram desenvolver, em 2003, um
agregador de conteúdo que descarregava automaticamente arquivos de entrevistas em áudio
que Cristopher Lydon realizava com blogueiros e personalidades da política.
Entretanto, Adam Curry foi além e seguiu com sua inquietação do download
automático direto para seu iPod (aparelho de reprodução de MP3 da Apple) deste tipo de
arquivo multimídia sempre que houvesse uma nova atualização de conteúdo, sem a
necessidade de visitar o site ou o audioblog em que tal arquivo era publicado. O que se
sucedeu foi que, em 2004, Curry criou com uso de licença de software livre uma primeira
versão de um sistema denominado RsstoiPod, que permitia o download de arquivos direto no
aparelho da Apple, o que é considerado os primórdios da experiência de podcast, conforme o
ex-apresentador da MTV relata em entrevista à revista Wired (2005):
Eu sou uma das pessoas que criou, embora eu não tenha criado o nome. Foi em julho
de 2004. Eu simplesmente peguei bits e pedaços de tecnologia já existentes – RSS, MP3s, iPods e outros aparelhos de MP3 portáteis – e tentei juntá-los para cumprir
uma simples tarefa. Eu gostava do fato de as pessoas estarem começando a publicar
em blogs arquivos de áudio, mas eu não queria ter que procurar por eles. Eu queria a experiência mágica...que meu computador simplesmente fizesse todo o trabalho por
mim. Eu queria que fizesse o download do arquivo MP3 assim que um novo arquivo estivesse disponível em um site favorito e simplesmente colocasse ele no meu iPod.
Eu estava perguntando a amigos desenvolvedores de software se eles podiam
programar algo parecido para mim, e foi o tipo de coisa que nunca tinham pensado em fazer, então eu simplesmente aprendi o suficiente para elaborar os componentes
básicos por conta própria (JARDIN, 2005, tradução nossa).10
10 I'm one of the people who created it, although I didn't create the name. It was back in July 2004. I just took
bits and pieces of technology that already existed – RSS, MP3s, iPods and other portable players – and tried to
bring them together to accomplish a simple task. I liked the fact that people were starting to blog audio files, but I
didn't want to go have to look for them. I wanted that magical experience ... for my computer to just go out and do
all the work for me. I wanted it to download the MP3 file when a new one became available from a favorite site,
and just put it on my iPod. I'd been asking software developer friends if they could program something like that
for me, and it was the kind of thing that never got around to happening, so I just learned enough to build the basic
components myself.
36
O termo podcast foi utilizado pela primeira vez pelo jornalista Ben Hammersley em
um artigo para a edição digital do jornal britânico The Guardian intitulado Revolução Sonora
– tradução do título original Audible Revolution – em que o jornalista sugere o termo em
busca de compreender o uso do áudio e sua linguagem sonora na internet, configurando um
novo boom da radiofonia.
Com o benefício de retrospectiva, tudo parece bastante óbvio. MP3 players, como o iPod da Apple, em muitos bolsos, software de produção de áudio barato ou gratuito, e weblogging uma parte estabelecida da internet; todos os ingredientes estão lá para um novo boom no rádio amador. Mas como chamá-lo? Audioblogging? Podcasting?
GuerillaMedia? "É realmente um experimento", diz Christopher Lydon, ex- jornalista do New York Times e da National Public Radio, e agora um pioneiro no campo. "Tudo é barato, as ferramentas estão disponíveis, todos têm afirmado que qualquer pessoa pode ser um editor, qualquer pessoa pode ser um emissor", diz ele,
"Vamos ver se isso funciona"(HAMMERSLEY, 2004, tradução nossa).11
Gallego Pérez (2010) explica que a origem do termo apresentado por Ben Hammersley
em 2004 se refere à junção das palavras iPod e broadcasting e, mesmo considerando que a
escolha de uma marca da Apple no nome do termo vai na contramão do mundo de software
livre em que o podcast foi criado, o termo se refere mais às possibilidades de emissão e
circulação de diversos arquivos de áudio pela rede digital. E é a partir deste cenário que o
autor segue sua reflexão ao apresentar sua definição de podcast, que se refere ao processo de
emissão e distribuição de conteúdo sonoro por meio do sistema de RSS, funcionando como
uma espécie de assinatura, já que a cada vez que o conteúdo de um determinado site, blog ou
outro polo emissor de conteúdo da rede digital é produzido, o assinante recebe a atualização
diretamente em seu aparelho ou mídia digital que suporta tal conteúdo.
Pode-se afirmar, então, que o termo podcast alude hoje a uma alargada significação de
produtos, suportes e formas de distribuição, mas cada vez mais associado a produtos
acústicos. O nome traz em si ambiguidades no que diz respeito às definições que estabelece,
pois pode significar os conteúdos em si (programas), modos de circulação (como é
distribuído) e o gênero e formas que os desenham.
Apesar de fazer uso similar da linguagem radiofônica, o podcast se diferencia do rádio
principalmente pelos seus modos de distribuição da informação. No tradicional veículo
massivo, a informação circula por transmissores de ondas eletromagnéticas, o que faz o som
11 With the benefit of hindsight, it all seems quite obvious. MP3 players, like Apple's iPod, in many pockets,
audio production software cheap or free, and weblogging an established part of the internet; all the ingredients
are there for a new boom in amateur radio. But what to call it? Audioblogging? Podcasting? GuerillaMedia? "It's
an experiment, really," says Christopher Lydon, the ex-New York Times and National Public Radio journalist,
and now a pioneer in the field. "Everything is inexpensive. The tools are available. Everyone has been saying
anyone can be a publisher, anyone can be a broadcaster," he says, "Let's see if that works."
37
ser captado e sintonizado pelas antenas de receptores de rádio, o que significa que a escuta
ocorre de maneira sincronizada com a emissão do sinal. Já o podcast se diferencia da
radiodifusão tradicional, pois o tempo de produção e circulação do conteúdo não coincide
com o tempo da escuta pelo receptor-usuário. A distribuição do conteúdo pelas redes digitais
ocorre por meio da tecnologia RSS, que funciona como um agregador de conteúdo (vinculado
tanto a sites quanto à aplicativos de dispositivos móveis, como celulares e tablets), no qual o
receptor pode se inscrever e acompanhar todas as atualizações relativas à produção de
determinado podcast. Isso quer dizer que após o ouvinte se inscrever via RSS, ele poderá ter
acesso a qualquer atualização por meio destes agregadores, que irão informar e disponibilizar
ao receptor quando houver um novo episódio disponível. Esta tecnologia caracteriza o
podcast como uma espécie de assinatura, já que dispensa o ouvinte de ir novamente ao site
original, onde o arquivo está hospedado.
Enquanto o programa de rádio e rádio Web são fugazes e cada programa é
consumido sincronicamente com a transmissão, no podcasting o programa não se
“perde” assim que ocorra a transmissão e escuta. Neste último processo é preciso ter
posse da integralidade do arquivo para que ele possa ser escutado. No rádio a escuta
do final de um programa ocorre simultaneamente à finalização de sua produção (nos
casos ao vivo) e transmissão. No podcasting o final de um programa já é possuído,
ele já existe em sua completude, mesmo quando a escuta tem início (PRIMO, 2005,
p.14).
Conforme aponta o pesquisador Mariano Cébrian Herreros (2008), apesar de ser
conhecido por milhares de usuários das redes digitais, percebe-se que nos tempos atuais ainda
existe um grande público que desconhece o podcast e suas potencialidades. Tal constatação
pode ser percebida justamente através do objeto empírico desta pesquisa. O lançamento do
primeiro episódio do podcast Serial - que é uma produção de uma equipe de profissionais
vinculada à uma tradicional e popular emissora radiofônica norte-americana (WBEZ Chicago)
– foi acompanhado com a publicação de um vídeo em que se explica como assinar um
podcast para acompanhar os episódios semanais da série jornalística, seja no computador ou
em algum dispositivo móvel (celular, tablets, etc). Ira Glass, um dos editores da emissora
radiofônica responsável pela criação de Serial, divulgou um vídeo12
em que aparece com uma
amiga, uma senhora que aparenta ter a faixa etária ligada ao público da terceira idade,
explicando como é simples se inscrever no serviço de podcast e receber notificações
automáticas sempre que um novo episódio de Serial for lançado.
12 O vídeo produzido pela equipe de Serial com a explicação de como se inscrever e acompanhar semanalmente
o podcast está disponível no site oficial em <https://serialpodcast.org/how-to-listen>. Acesso em 10 de julho de
2017.
38
Herreros (2008) aponta que o sistema de distribuição do podcast permite que os atores
sociais tenham acesso a diversos tipos de conteúdo pela simplicidade do processo de
assinatura do RSS, ao mesmo tempo que propicia às tradicionais emissoras ofertarem
conteúdos que explorem a potencialidade deste meio e, consequentemente, encontrem novas
formas de interação com seu público ouvinte. Os meios de comunicação tradicionais abrem os
olhos para esta nova possibilidade ofertada pelo sistema do podcast, que possibilita a criação
de conteúdo por profissionais oriundos de veículos massivos mesclando a linguagem
radiofônica com as potencialidades de difusão e consumo pelas redes digitais. Já se fazem
muito presentes nos portais e sites de emissoras radiofônicas na web arquivos de áudio
apresentados como podcasts e que, na verdade, são trechos extraídos de programas regulares
das emissoras, como a participação de comentaristas, colunistas, etc.
Ao analisar as possibilidades de produção e recepção do podcast, Herreros assinala
que este processo da radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) pode ser
compreendido em três modalidades. A primeira diz respeito aos possíveis emissores de
conteúdo via podcast que incorporam a mídia na rede, por meio dos veículos tradicionais
radiofônicos que disponibilizam conteúdos sonoros neste sistema de feed, ou seja, por meio
de grandes empresas e instituições com conteúdo especializado. Em uma segunda dimensão,
encontra-se a produção de conteúdo realizada por receptores ativos que, em uma espécie de
resposta à informação difundida pelos meios tradicionais na rede, criam seus podcasts com
recursos pessoais (microfones, softwares de edição de som e acesso à internet) e o distribuem
por conta própria. Já na terceira modalidade, Herreros visualiza um meio de produção em que
os usuários ora se portam como produtores e ora se portam como receptores, realizando trocas
e múltiplas interpretações acerca do que foi produzido e ofertado por eles próprios.
Independente da modalidade em que se insere, o autor defende que o podcast pertence a um
modelo comunicacional marcado pela interatividade entre a instância de produção e a
instância de recepção.
A princípio se mantém o esquema de emissões unidirecionais nos quais as emissoras são as responsáveis por elaborar seus produtos e colocá-los à disposição dos destinatários com a difusão e presença na Internet. As diferenças são provenientes da
interatividade que cada destinatário queira realizar com aquele registro, o que quer dizer que se trata de uma interatividade, em primeiro lugar, com a técnica de difusão e assinatura e, em segundo lugar, com os conteúdos baixados e registrados; cada usuário interage com estes conteúdos, seleciona umas partes e consome a seu gosto
(HERREROS, 2008, p.207-208, tradução nossa)13
.
13
En principio se mantiene el esquema de emisores unidireccionales en lós que las emisoras son las que elaboran
sus productos y los ponen a disposición de los destinatarios como en la difusión y en la presencia en Internet. Las
diferencias provienen de la interactividad que cada destinatario quiera efectuar luego con lo registrado, es decir,
se trata de una interactividad, en primer lugar, con la técnica de difusión y sindicación y, em segundo lugar, con
39
Com as diversas possibilidades interativas entre as instâncias de produção e recepção
que envolvem o podcast, percebe-se uma grande variação de temáticas proposta pelos seus
produtores. Conteúdos que englobam diversos assuntos – música, arte, tecnologia, ciência,
política, temas e debates jornalísticos, entre outros – são abordados neste suporte midiático e
expressos com o uso da linguagem sonora proveniente das emissoras de rádio. A hibridização
de linguagem, que se percebe entre rádio e podcast, é um processo já conhecido se
considerarmos a história do surgimento de novas mídias. O mesmo ocorreu na construção da
linguagem televisiva, que em seu surgimento apareceu como uma ameaça à vida do veículo
radiofônico. O que se percebeu na construção da linguagem televisiva foi o referencial rádio
predominar até prevalecer o conhecimento e experimentação das próprias potencialidades
técnicas e comunicacionais da TV. Manuel Castells (2000) ressalta que o surgimento das
mídias digitais levou a uma coexistência entre a cultura da mídia massiva e a comunicação
eletrônica, o que permite uma maior atividade interativa entre os receptores e produtores. E,
apesar de estarmos tratando aqui da comparação de um veículo massivo com um veículo
digital, é possível afirmar que, em termos de linguagem e códigos, o podcast se apropria
bastante das características estético-linguageiras do rádio.
Herreros (2008) aponta que o podcast integra diversas características linguísticas
sonoras, como a palavra oral, músicas e trilhas, efeitos sonoros, som ambiente e o silêncio. O
autor ressalta que a linguagem encampada pelo podcast faz uso dos recursos linguísticos
utilizados pelas emissoras radiofônicas tradicionais e acrescenta as possibilidades de difusão
sonora que as redes digitais propiciam.
Dos elementos linguísticos sonoros citados por Herreros, o que mais se destaca em
Serial é a palavra oral. E é exatamente o uso deste elemento que é responsável pela linguagem
deste podcast ser tão próxima da utilizada pelo jornalismo radiofônico. A história é guiada
pela voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. A narradora utiliza principalmente o recurso
vocal e aciona a palavra radiofônica como elemento central para construir a narração da
história que investiga o assassinato da jovem Hae Lee e a acusação construída em torno de
Adnan Syed. Sarah Koenig faz uso de sua própria voz para relatar a partir de suas apurações
por meio de documentos, reportagens da época e relatos de personagens e fontes associadas
(direta ou indiretamente) ao acontecimento destacado na série. Para compor a narrativa, a
jornalista aciona, então, além da sua própria palavra oral, outras vozes por meio de entrevistas
los contenidos uma vez descargados y registrados; cada usuario interactúa con ellos, selecciona unas partes y las
consume a su gusto.
40
em áudio realizadas com Adnan Syed (feita por telefone, direto do presídio em que se
encontra), seus familiares, amigos e pessoas próximas que conviveram com os jovens
protagonistas da história, junto com depoimentos de profissionais especializados (detetives,
advogados, psicólogos) que opinam sobre o caso e enriquecem a história narrada no podcast.
Outros elementos sonoros também são acionados no podcast Serial, apesar de não
terem o protagonismo da palavra oral de Sarah Koenig e das vozes acionadas pela narradora.
O uso de trilhas e efeitos sonoros complementa a linguagem da série jornalística. Algumas
músicas são acionadas em momentos pontuais que marcam a abertura e o encerramento de
cada episódio, além de algumas trilhas serem utilizadas em pontos da narrativa que demarcam
uma mudança temática. Um exemplo de efeito sonoro bem marcante é a gravação da
mensagem telefônica do presídio que é indício de que a narradora irá conversar com Adnan
Syed direto do presídio em que este se encontra nos dias atuais.
O pesquisador Armand Balsebre (2005), ao refletir sobre a linguagem radiofônica e
sua função comunicativa, mostra como a palavra é um elemento vital para a produção de
sentido a partir do seu uso. De acordo com o autor espanhol, “não há dúvida de que a
linguagem radiofônica é uma linguagem artificial, e que a palavra radiofônica (...) é palavra
imaginada, fonte evocadora de uma experiência sensorial mais complexa. (BALSEBRE,
2005, p.330). Assim, na linguagem do rádio, a palavra é responsável por se dirigir à razão do
ouvinte, sendo uma espécie de fonte geradora de ideias e interpretações. Em Serial, e na
maioria dos podcasts disponíveis nas mídias digitais, a palavra oral continua sendo o
elemento prevalente da construção narrativa.
No caso deste estudo, a essencialidade sonora do podcast demonstra como ainda há o
interesse em compreender o mundo e construir realidades por meio das sensações e emoções
despertadas pelo som, considerando que vivemos em uma sociedade amplamente dominada
pela visualidade. Ángel Rodriguez Bravo (2006) valoriza a dimensão sonora da linguagem ao
defender que a nossa percepção aliada à nossa experiência auditiva proporciona um novo
nível de produção de sentido a partir da interpretação do que estamos ouvindo. Assim, o uso
das potencialidades sonoras na linguagem do podcast influencia na valorização de uma
cultura da oralidade que, associada à atividade interativa permitida pelas novas tecnologias,
pode resultar em novos processos de significação e interpretação acerca de experiências do
mundo da ação que são transformadas em discursos e postas em circulação por meio das
mídias digitais.
41
3.3.1 Podcasts como microdispositivo
Patrick Charaudeau (2006b) ao analisar o processamento do discurso na esfera da
política, assinala que as significações do discurso são construídas e reconstruídas todo o
tempo pelas condições da comunicação e pelos seus atores. Com esta afirmação, o estudioso
francês procura destacar que além de uma circunstância técnica, o discurso é configurador do
próprio processo comunicacional. Ao pensarmos na produção discursiva como forma de
representação de um indivíduo e da coletividade em que este se insere, como poderíamos
compreender o papel dos podcasts no ato comunicativo da construção de uma determinada
realidade social?
Um caminho para responder a essa pergunta é retomar as reflexões de Charaudeau
(2006b) sobre as significações que são construídas e reconstruídas pelos atores sociais e pela
influência das condições e restrições do dispositivo situacional do ato comunicativo. Para
seguir esse trajeto, é importante trazer à tona o conceito de dispositivo e o realocar para a
realidade da comunicação. De acordo com Edson Dalmonte (2009), ao se tratar do significado
do termo dispositivo encontramos duas linhas de raciocínio que abordam este termo, sendo
que uma o define como uma concepção de ordem técnica, referente à uma organização
material das coisas, ou seja, à disposição dos componentes de um mecanismo. Assim, nos
dicionários relativos à informática, o dispositivo técnico corresponde ao termo device
(dispositivo em inglês). A segunda perspectiva de pensamento é proveniente da filosofia e
apresenta uma definição que aborda o dispositivo pelo viés da organização humana, a maneira
como ela se sucede, sob quais condições e de acordo com uma finalidade específica. Este tipo
de dispositivo se diferencia do técnico, pois não há uma proposição e ordenamento que
oriente o sujeito da ação de forma plena. O conjunto de estratégias que guiam os modos de
agir dentro de um dispositivo escapa de regras previstas e estabelecidas, o que significa que
são regras entre os sujeitos da ação sujeitas a constantes mudanças de acordo com o contexto
social.
Apesar de essas duas perspectivas acerca de dispositivo serem aparentemente afastadas,
Dalmonte busca uma aproximação entre elas, que serve de base para a reflexão sobre o
conceito de dispositivo midiático14
. O autor afirma que o dispositivo midiático provém de
14 Importante ressaltar que Edson Dalmonte constrói sua noção de dispositivo midiático com base no conceito de
dispositivo trabalhado por Michel Foucault e por Gilles Deleuze. O dispositivo foucaultiano é compreendido
como uma rede composta de elementos heterogêneos, os quais apresentam suas particularidades, ao mesmo
tempo em que possuem interseções. Tais elementos se encontram em constante deslocamento espacial e
temporal, estabelecendo variadas dinâmicas comunicacionais na sociedade. Deleuze faz uma releitura de
42
uma estrutura física ao mesmo tempo em que opera no campo das ideias e defende que, dessa
maneira, o dispositivo se torna um elemento capaz de impulsionar o ato comunicacional,
sendo que as situações e estratégias de comunicação e suas restrições são estruturadas de
acordo com o dispositivo, que delineia um ambiente, no sentido metafórico, para os atores
envolvidos na troca.
Dalmonte continua sua análise sobre o dispositivo midiático ao direcionar o conceito
especificamente para o campo do jornalismo. Segundo o autor, é neste campo que operam as
produções de sentido e é por causa de seus dispositivos que a construção discursiva dos
acontecimentos e sua circulação pela mídia vêm se transformando. A noticiabilidade era
considerada apenas um processo de transição unidirecional – produzia-se um conteúdo com
um efeito de sentido programado - entre produtores e leitores, porém, com as transformações
tecnológicas e sociais, a produção jornalística encontra em seus dispositivos novos modos
enunciativos e de vinculação com seus receptores. Ainda de acordo com o autor, as condições
do dispositivo permitem um rearranjo na modalidade de dizer do discurso jornalístico, com
possibilidades de se elaborar novas formas de narrativas no processo de construção das
realidades. Em relação ao leitor, as novas configurações do dispositivo no campo do
jornalismo permitem o receptor a conhecer de outra forma a organização discursiva, além de
ter acesso a novas maneiras de interagir e ressignificar o conteúdo que lhe é ofertado.
O dispositivo midiático não é apenas uma estrutura enunciativa, tampouco é
somente o enunciado em si. É a própria explicitação da notícia e de seus entornos, o
que compreende os lugares de fala priorizados pela instância de produção, (...)
caracterizado pela intencionalidade na seleção dos elementos que compõem o
enunciado (DALMONTE, 2009, p.65).
Charaudeau (2006b) esclarece em suas reflexões que o dispositivo é, primeiramente, de
ordem conceitual. A partir desta definição, o autor aponta possíveis características do
dispositivo comunicacional: a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras; os
lugares dos atores sociais envolvidos na troca; a natureza da identidade desses atores; e, por
fim, a relação construída entre eles a partir de uma determinada finalidade de realização do
ato comunicativo. Ao unir estas categorias verifica-se a possibilidade de estabelecer, a partir
delas, parâmetros de análise, no intuito de compreender a organização de um discurso
midiático e como este atua na articulação entre as instâncias enunciadora e destinatária.
Importante reforçar que as condições materiais também são consideradas pelo autor como
Foucault e contribui com a reflexão ao demonstrar que o dispositivo se constitui em um conjunto multilinear
atravessado pelo constante e mutante tensionamento entre sujeitos de múltiplas identidades, variados objetos e
linguagens discursivas.
43
parte integrante do dispositivo, sendo também determinantes no desenvolvimento do ato
comunicacional.
Para Charaudeau, o dispositivo é responsável por estruturar o cenário no qual se
desenvolvem as trocas entre os sujeitos das instâncias da produção e da recepção discursivas.
O dispositivo situa os atores do ato comunicacional de acordo com as condições externas - tal
como as práticas organizacionais de onde se veicula determinado conteúdo e as
intencionalidades guiadas por motivações econômicas – e também pelas subjetividades destes
sujeitos, que tanto do lugar da emissão quanto do lugar dos destinatários, serão influenciados
pelo contexto sociocultural que os envolve juntamente com suas experiências pessoais e
características psicológicas.
Uma vez que estas [condições materiais] podem variar de uma situação de
comunicação a outra, estabelece-se uma relação de encaixamento entre o
macrodispositivo conceitual que estrutura cada situação de troca social e os
microdispositivos materiais que a especificam enquanto variantes
(CHARAUDEAU, 2006b, p.53-54).
O discurso político é entendido pelo pesquisador como este macrodispositivo conceitual
da informação e suas variantes - as formas materiais de propagação deste tipo de discurso e
seus modos de oferta – são consideradas os microdispositivos. Nesta pesquisa, nos interessa
adequar estes conceitos de Charaudeau (2006b) e Dalmonte (2009) para o campo do
jornalismo, o que nos leva a associar que o discurso jornalístico se adequa ao conceito de
macrodispositivo, enquanto os microdispositivos seriam os meios (rádio, TV e impresso) e as
formas e gêneros que estes são ofertados (telejornal, reportagem, entrevistas, debates,
documentários).
Pode-se afirmar, então, que o dispositivo busca garantir que todo enunciado que se
encontra em seu interior seja interpretado e a ele relacionado, o que o torna responsável pela
constituição do contrato de comunicação, ao garantir normas de comportamento naturalizadas
entre os atores sociais envolvidos na produção de sentido acerca de um conjunto de discursos.
Esta realidade do dispositivo também se aplica aos suportes midiáticos digitais, apesar de
apresentar diferenças significativas nas formas de relação entre as esferas de produção e
recepção na produção de sentidos (como veremos no item 3.4).
É importante ressaltar a necessidade de se caracterizar esse novo lugar que permite a
emergência de novos modos de enunciação e, consequentemente, estreita ainda mais as
interações e produção de sentido que surgem a partir das trocas entre as instâncias emissora e
receptora. Este novo lugar das formas discursivas jornalísticas também deve ser
compreendido como fruto das transformações tecnológicas que afetam o funcionamento das
44
mídias e também influenciam as formas e gêneros da enunciação do conteúdo informativo.
Nessa perspectiva de Charaudeau (2006b), pode-se tomar, assim, os podcasts como
microdispositivos, na medida em que instalam sistemas de trocas simbólicas entre atores que
se envolvem em função de interesses comuns em distintos canais por meio dos quais a
informação é disponibilizada.
3.4 As contratações de comunicação e leitura no podcast
As recentes transformações sociais e tecnológicas são elementos catalisadores da
transformação do processo comunicacional, o que nos faz observar uma reorganização do
ambiente midiático juntamente com a emergência de novos modos de funcionamento dos
discursos sociais. Neste cenário de midiatização que atravessa a sociedade contemporânea, as
formas e estratégias que regulam a circulação do discurso jornalístico dentro de um
dispositivo midiático são afetadas por estas transformações e estabelecem diferentes formas
de articulação no ato comunicacional entre as instâncias de produção e de recepção.
Bruno Leal (2011) argumenta que os desafios encarados pelo campo do jornalismo na
sociedade midiatizada abalam a estrutura sólida que sustenta o seu protagonismo e lugar de
privilégio como mediador da realidade social, colocando em xeque a legitimidade jornalística.
A reconfiguração do ato comunicacional na era digital não diz respeito somente a fatores
econômicos - a adaptação dos modelos de negócio, de produção e de distribuição diante deste
novo cenário – mas vai além ao considerar como o uso e a disponibilidade das tecnologias
digitais são essenciais na alteração de patamar do público, que passa a ter maior poder de
legitimar quem são os responsáveis pela construção social da realidade por meio da
representação discursiva. Ainda de acordo com o autor, “nesse processo, o jornalismo
enfrentaria não apenas transformações internas em seus processos e produtos, mas também
modos cada vez mais diversificados de mediação social e de estabelecimento do que seria
verdade ou não” (LEAL, 2011, p.105-106).
Ao acionarmos os contratos de comunicação e de leitura de Charaudeau (2006a) e
Verón (2004), entende-se que a noção das condições e restrições do processo de troca entre as
instâncias de enunciação e de recepção, oriundas da sociedade dos meios (veículos
tradicionais como impresso, rádio e TV), passam por transformações diante das lógicas da
midiatização na sociedade contemporânea. Estas mudanças contratuais diante das
possibilidades dos novos dispositivos midiáticos são apontadas por Rocha e Ghisleni (2010)
45
que defendem que o crescente processo de midiatização afeta as formas de relações entre as
mídias, instituições e atores sociais, o que contribui para a emergência de novas disposições
no contrato comunicacional.
As autoras apresentam em seus estudos uma mudança de foco na noção de vínculo
entre as instâncias de produção e de recepção dos veículos tradicionais de comunicação para
as mídias digitais. Rocha e Ghisleni voltam os olhares para a circulação do discurso que
ocorre nos dispositivos e apontam que esse vínculo deixa de ser tratado apenas como um
intervalo, uma transição entre os dois polos do ato comunicacional e passa a ser considerado
um processo gerado por pontos de articulação entre as duas instâncias. Tal mudança se deve
às alterações entre as operações de sentido realizadas pelos receptores diante da oferta de
discursos nos dispositivos inseridos na sociedade midiatizada.
A partir desses dispositivos é possível observar como os receptores ganham mais força
de atuação na troca comunicativa, com maior liberdade de utilizar suas próprias estratégias
para realizar suas interpretações das representações ofertadas. Assim, as transformações
sociais associadas aos elementos técnicos da era digital impactam as normas dos contratos
comunicacionais e motivam esta mudança das estratégias que emanam da recepção
demonstrando pontos de forte articulação entre as práticas discursivas do público com as
práticas discursivas ofertadas pelos produtores midiáticos.
As novas formas de articulação dos personagens ativos envolvidos no processo
comunicacional delineiam um novo processo de relacionalidade, uma vez que os receptores
podem ter domínio sobre tecnologias que na comunicação massiva estavam sob controle
apenas dos produtores jornalísticos. Além disso, há também a possibilidade do leitor assumir
o papel de produtor e transitar entre os dois polos da troca informacional, uma vez que a
midiatização propicia acesso mais democrático às tecnologias informáticas e aos meios
comunicacionais, o que reverbera sobre a organização das mídias e seus modos de
enunciação. De acordo com Rocha e Ghisleni, além das alterações nas estruturas dos
dispositivos midiáticos, há repercussão também sobre a noção de acontecimento e suas formas
discursivas, já que cada sujeito que faz uso das tecnologias à sua disposição pode se
transformar em produtor de acontecimento e disponibilizar e retornar suas produções aos
veículos de comunicação.
(...) o que se registra destas configurações midiáticas, é a estruturação de um novo
modelo de interação sócio-discursivo, talvez menos profissionalizado, ainda que as
mídias guardem suas características organizacionais, os receptores desfrutam do
mundo das tecnologias, mas também em contato com o mundo da vida. Uma espécie
de `dentro e fora`, que os torna em novos atores (ROCHA e GHISLENI, 2010,
p.10).
46
Esta articulação que caracteriza o contrato comunicacional pode ser contextualizada ao
nosso objeto empírico, o microdispositivo podcast, no intuito de compreendermos como a
forma material responsável por difundir o discurso jornalístico e os modos que se dão essa
oferta discursiva influenciam nas estratégias, condições e restrições do ato comunicacional
nesse microdispositivo. Na discussão teórica que se desenvolveu até aqui, ficou nítido o
potencial que a comunicação das mídias digitais oferece aos receptores-usuários de
transitarem entre os polos da troca discursiva e de terem forte influencia nos modos de dizer
da produção midiática. A noção de comunidade de experiência trabalhada nas reflexões de
Edson Dalmonte (2009) sobre o fazer textual no webjornalismo nos ajuda a entender a
importância da participação ativa dos ouvintes do podcast Serial nos modos discursivos
acionados na narração de Sarah Koenig.
Na comunidade de experiência: a noção de indivíduo apresenta-se ampliada, pois
não interessa apenas a produção oficial, originada a partir do autor ou de uma
estrutura similar. Interessa também a opinião de quem consumiu o produto, que
passa a colaborar com a divulgação do material em questão. (...) na estrutura das
comunidades de experiência o contato com a obra pode ser visto como o argumento
necessário para a instauração de uma comunidade virtual. A partir do autor ou de sua
obra, são criados níveis de discussão que passam a integrar o campo mais amplo no
qual se inserem tais elementos. (DALMONTE, 2009, p.147)
Os intensos debates entre os receptores de Serial verificados nas redes sociais digitais
a partir da divulgação do primeiro episódio do podcast ilustram como o público ampliou o
campo de produção de sentido que envolve a construção da narrativa dessa série jornalística.
O conteúdo de Serial deixa de ser vinculado somente à jornalista Sarah Koenig e à equipe de
produção da rádio WBEZ Chicago e se estende para o campo da recepção nas redes sociais
digitais. É justamente nessa instância que se estabelece uma comunidade de ouvintes que
trabalha em cima do discurso jornalístico emitido pelo microdispositivo e, a partir de
múltiplas leituras, essa comunidade, que acompanha o resgate de um acontecimento do
passado, cria novos significados e interpretações que não se deram à época do assassinato.
Como a repercussão do podcast Serial nas redes foi ampla desde o primeiro episódio,
é importante observar como a atividade do público receptor do microdispositivo retorna à
esfera produtiva do discurso da série. Percebe-se pela maneira como a jornalista Sarah Koenig
constrói a narrativa que a apuração dos fatos e dos depoimentos continua sendo feita, mesmo
após o podcast começar a circular pela rede, o que significa que a história não foi construída
de forma fechada, permitindo a alteração do curso da narrativa.
Ao estudar a história de Syed, a jornalista percebeu que na investigação do crime
faltava a elucidação de vários pontos importantes e que, em alguns aspectos, essa falta de
47
certeza colocava em questão até mesmo a verdadeira culpa do jovem como responsável pelo
crime. Em busca de preencher as lacunas de sua investigação sobre aquele acontecimento do
passado, a narradora entrevistou uma série de pessoas ligadas àquele evento, porém algumas
pessoas se recusaram a conversar com Koenig, alegando que o assunto já estava encerrado
com a condenação de Adnan Syed à prisão perpétua. Um exemplo que ilustra como a
construção discursiva do acontecimento pode ser influenciada pela instância de recepção é a
entrevista com Don, o último namorado de Hae Lee antes dela ser assassinada. Quando Sarah
Koenig iniciou sua investigação para construir a narrativa do podcast, ela tentou entrevistar
Don, mas ele se recusou. No episódio final da temporada, três meses após o início da série
jornalística, ela relata que o rapaz a procurou e resolveu dar o seu depoimento sobre o caso.
Eu conversei com Don. Oito meses atrás ele me disse que não queria conversar
comigo sobre essa história e na última semana ele conversou comigo sobre essa história. Ele não quis que eu fizesse uma gravação da voz dele ou que eu divulgasse o sobrenome dele mas ele disse que eu poderia usar o que ele disse. Um spoiler: Don não parece saber o que aconteceu com Hae, ou por que isso aconteceu com ela,
ou se Adnan é culpado. Mas foi interessante ouvir o que ele disse que lembrava sobre o dia que Hae desapareceu e sobre ela e sobre o julgamento (All Serial
Podcast Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)15
.
A articulação entre a esfera produtiva e os ouvintes do microdispositivo podcast
demonstram o potencial de se elaborar novos modos de narrar e construir representações da
realidade social no âmbito do jornalismo. O modo como foi construído o discurso sobre o
caso de Adnan Syed em Serial, sua forma de composição discursiva, o uso da linguagem
essencialmente sonora (apesar do uso de elementos complementares – imagens, vídeos e texto
- que também compõem a narrativa) em uma sociedade amplamente dominada pelas imagens
visuais aliada aos modos de circulação possibilitados pelo microdispositivo nos fazem
compreender o surgimento de novas formas de ser e aparecer dos produtos comunicacionais,
como explica Bruno Leal (2011) ao argumentar que
Estes [produtos comunicacionais], então, passam a ser vistos em sua dimensão
sensível, em seu poder de afecção, nas suas possibilidades de constituição de lugares
de experiência para os sujeitos. Nessa perspectiva, o jornalismo e seus modos de
fazer e narrar são instâncias que mobilizam tanto a produção de significado, ou seja,
a circulação da informação, como outras dimensões de sentido (LEAL, 2011, p.105-
106).
15 For instance, I talked to Don. Eight months ago he told me he did not want to talk to me for this story and then
last week he talked to me for this story. He didn’t want me to use tape of his voice or his last name but he said I
could use what he said. Spoiler here: Don does not appear to know what happened to Hae, or why it happened to
her, or whether Adnan is guilty. But it was interesting to hear what he said he remembered about the day Hae
disappeared and about her and about the trial.
48
O processo de midiatização permite a entrada de uma gama mais ampla e diversificada
de atores sociais na construção de discursos acerca da realidade social. Isso acarreta em um
abalo da legitimidade institucional do jornalismo, uma vez que se amplia a concorrência de
modos de representações da vida cotidiana. Uma das formas que o campo jornalístico
encontra para combater essa crise de credibilidade e se manter como um ator social legítimo
em meio ao surgimento de tantas formas de veiculação de conteúdo informacional pode ser
repensar as formas estéticas de produção de seus discursos. Ao buscar inovar em seus
mecanismos textuais e retóricos, a instância produtiva do jornalismo encontra um caminho
para reaproximar de seu público, que irá reconhecer nas suas novas formas de construção
discursiva um produtor legítimo de informação.
A estética do discurso construído em Serial nos permite observar uma tentativa de
articulação entre a instância de produção da série e o seu público ouvinte. Sarah Koenig insere
em sua narrativa elementos que caracterizam objetividade do discurso jornalístico: o
assassinato de Hae, a investigação do crime à época do ocorrido, a acusação de Adnan e sua
condenação à prisão perpétua. Ao realizar o reagendamento do acontecimento ocorrido no
passado (o podcast foi divulgado quase duas décadas após o crime), a jornalista aciona
estratégias discursivas que visam a proximidade com o ouvinte, com o uso de recursos
textuais que vão além do simples relato objetivo dos fatos e insere uma espécie de elemento
melodramático caracterizando uma estética híbrida do discurso jornalístico em Serial, como
podemos perceber em um episódio que Sarah relata sensações de dúvida em relação à
investigação sobre o caso de Adnan, já que após a repercussão do podcast começou a receber
diversas informações sobre o caso e o acusado, sendo que muitos eram rumores que ela
recebia via ligações e email, o que fez o seu trabalho de apuração aumentar. E ao relatar estes
rumores com os quais ela lidava após a grande repercussão do podcast, a narradora usa em
seu discurso nova estratégia estética que articula uma aproximação da instância produtora
com receptores, quando ela informa aos ouvintes que assim como muitos que lhe relatavam os
rumores sobre a personalidade de Adnan, ela também chegou a duvidar, por diversas vezes,
do caráter do rapaz e consequentemente da necessidade de investigação deste acontecimento.
Sarah realiza uma espécie de desabafo aos seus ouvintes inserido em um discurso jornalístico.
Por dois meses eu estive lidando com rumores sobre Adnan. As pessoas me diziam,
“tem coisas que você não sabe sobre Adnan, coisas que você precisa saber para
entender com quem está lidando”. Estes comunicados vinham em ligações
telefônicas, várias ligações, às vezes individuais, às vezes de ligações em
conferência. Também recebi mensagens e emails nervosos (...). Todos esses rumores
vieram de pessoas que viram Adnan crescer na comunidade da mesquita, as famílias
do sul da Ásia que frequentam a Sociedade Islâmica de Baltimore. Algumas dessas
pessoas eu já tinha conversado na minha primeira rodada de entrevistas para esta
49
história, mas uma vez que a série iniciou e eles ouviram como Adnan estava sendo
retratado, uma nova rodada de ligações começou. (All Serial Podcast Transcripts,
2014, episódio 11, tradução nossa)16
.
A partir das formas discursivas (com linguagem predominantemente marcada pela
oralidade) acionadas em Serial e das múltiplas leituras e interpretações geradas pelos
receptores-usuários nas redes sociais digitais, é possível compreender que o microdispositivo
podcast atua como suporte midiático e modos de formas e gêneros do discurso jornalístico.
Esse microdispositivo é integrante da lógica de midiatização da sociedade contemporânea,
sendo constitutivo da radiofonia expandida nas plataformas digitais e, ao apresentar um
gênero discursivo como a série jornalística de Serial, gera novas formas de interfaces entre os
atores sociais envolvidos na circulação da história de Adnan Syed. As estratégias e condições
em que circula o discurso do podcast demonstram que existe um contrato de comunicação e
de leitura com especificidades que apresentam interfaces e diferenças com os modos de
produção e recepção da comunicação radiofônica tradicional.
Nota-se que a jornalista-narradora Sarah Koenig não assume somente para si o
protagonismo do ato comunicacional, pois não só o que ela diz impacta o público, como o que
os receptores interpretam e ressignificam afetam o modo de produção discursiva dos
episódios da série. A produção dos conteúdos de escuta sob demanda que constituem o
processo comunicacional do podcast conservam muito das práticas do rádio tradicional,
principalmente no uso de linguagem essencialmente sonora. Uma das mudanças do processo
em relação a tradicional comunicação radiofônica ocorre na sua forma de circulação que se dá
pela internet (por meio de computadores em rede e pela telefonia móvel). A inovação mais
considerável, que não se constitui necessariamente em uma ruptura total, está nas práticas
interacionais que envolvem o podcast Serial e que não se limitam aos canais de retorno
estabelecidos pela própria instância produtora deste podcast.
No site oficial de Serial, é ofertado acesso ao blog e às redes oficiais, como Twitter,
página do Facebook e perfil do Instagram, sendo que todos estes espaços trazem informações
complementares da série ao mesmo tempo em que permitem inserção de comentários e
ampliação do debate acerca da narrativa dos episódios do podcast. No entanto, boa parte da
16
For two months now I’ve been grappling with rumors about Adnan. People telling me, “there’s stuff you don’t
know about Adnan, stuff you need to know to understand who you’re dealing with.” These communications
came in the form of phone calls, many phone calls, sometimes one on one, sometimes conference calls. Also
texts and nervous emails (...). All these rumors are coming from people Adnan knew growing up in the mosque
community, the South Asian families who attend the Islamic Society of Baltimore. Some of these people I’d
already talked to during my first round of reporting for this story, but then once the series started and they heard
how Adnan was being portrayed, a new round of phone calls began.
50
construção de sentidos por parte da instância de recepção de Serial não se observa neste
espaço pré-estabelecido pela equipe de produção, e sim, por meio de compartilhamento de
conteúdo dos usuários em redes sociais fora dos perfis oficiais, principalmente com o uso de
hashtags, e também em comunidades virtuais voltadas para uma extensão do debate, que vai
além do conteúdo apresentado nos episódios, o que significa que as práticas interacionais do
processo que envolve o podcast não ocorrem em um único espaço delimitado, como um site
oficial do polo emissor, e sim em um complexo de redes online, que se articulam em
atividades que envolvem compartilhamento, comentários e múltiplas discussões. Assim, a
circulação dos episódios de Serial pela rede digital e a análise do processo comunicacional
que envolve o podcast deve ser articulada com a presença da instância de recepção nas mídias
sociais hegemônicas (a comunidade virtual Reddit foi selecionada para nossa análise no
capítulo 5), que apresentam grande concentração dos compartilhamentos de conteúdos,
comentários, debates e construção de sentidos acerca do acontecimento narrado nesta série
jornalística. Observamos então que a articulação entre instância de produção e instância de
recepção tem potencial para reconfigurar a todo momento o ambiente do microdispositivo, o
que influencia diretamente na natureza da produtividade jornalística: a construção do
acontecimento.
A reflexão feita até aqui teve o objetivo de apresentar as transformações nos contratos
comunicacionais influenciadas pelo processo de midiatização dentro do microdispositivo
podcast. É possível observar que a relação entre as instâncias de emissão e de recepção de
Serial impacta diretamente nos modos de produção, circulação e interpretação do discurso
jornalístico. Todo esse processo apresenta relação direta com a maneira de construção do
acontecimento discursivo, que é o principal elemento constituinte da narrativa jornalística.
Para avançarmos nesta investigação e compreendermos como ocorre a construção de sentidos
no ato comunicacional que envolve o podcast Serial, é importante também estudar como um
acontecimento da vida mundana é selecionado e se transforma em acontecimento discursivo,
gerando as mais diversas interpretações. A proposta do capítulo 4 é, portanto, investigar a
construção social da realidade a partir da compreensão de como os acontecimentos
transformados em narrativas jornalísticas podem ganhar novos significados e gerar novamente
acontecimentos de natureza não discursiva no tempo presente do mundo cotidiano.
51
4 A TRÍPLICE MIMESE DA NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DO
ACONTECIMENTO
Como um acontecimento nos toca, nos emociona e como ele afeta uma pessoa ou uma
coletividade? O que nos impacta ao vivermos e compartilharmos a experiência de um
acontecimento na vida cotidiana? O ato comunicacional, especialmente o discurso
jornalístico, é um dos grandes responsáveis pela construção da realidade social por meio da
percepção e seleção de um acontecimento da vida mundana, sua representação discursiva e as
interpretações que emergem deste processo. Assim, a transformação do acontecimento em
narrativa pode ser responsável pela mudança de patamar do acontecimento existencial para
um objeto com significados, por meio da análise da natureza, relações com outros
acontecimentos e suas consequências, gerando então uma segunda vida do acontecimento
(QUÉRÉ, 2012). Ao pensarmos na mídia como um meio em que a sociedade fala de si
mesma, é possível entender que é exatamente através dela que os acontecimentos,
transformados em discursos, ganham nova vida e, consequentemente, novos significados.
O conceito de tríplice mimese de Paul Ricoeur (2010) aliado à noção de representação
da ação pela construção do acontecimento discursivo, trabalhada por Louis Quéré (2012) e
também por Adriano Rodrigues (1993), nos servem para refletirmos sobre a transformação de
um acontecimento em narrativa e compreendermos a dimensão simbólica gerada por esta
narrativa, envolvendo a atividade mimética (composição da intriga) e sua relação com a
dimensão temporal e a dupla vida do acontecimento.
4.1 Sobre a noção de mimese
O conceito de mímesis apresenta uma amplitude em sua significação e tem sido objeto
de análise de muitos estudiosos desde os filósofos da Grécia Antiga. O termo mímesis é
proveniente do latim imitatio, que significa, a grosso modo, imitação. A partir desta tradução
primeira do termo, surgem várias interpretações utilizadas para a compreensão da
representação dentro das manifestações artísticas, principalmente da produção literária.
A discussão de mímesis passa por Platão, que ao usar de referência os diálogos de
Sócrates sobre as teorias do belo e concepção de arte, elaborou uma compreensão deste
conceito como uma produtividade que não era carregada de originalidade, mas apenas meras
cópias distintas do que seria o real. O papel que Platão atribui à mímesis se limita apenas a
52
representar, sem propósitos educativos ou de transmissão de valores, cuja finalidade se
distancia da natureza e da essência dos objetos. Assim, a imitação mimética na visão do
filósofo se apresenta como falsidade e ilusória, distante da verdade.
Na contramão de Platão, seu discípulo Aristóteles refuta o sentido de mímesis
defendido pelo seu mestre e valoriza a atividade mimética ao ressaltar que a imitação está
vinculada ao processo de verossimilhança, sem a obrigação de traduzir uma realidade. Os
escritos de Aristóteles servem de referência para a teoria da literatura ocidental, em especial
sua obra Poética17
, da qual se valem, até os dias atuais, vários teóricos de áreas que envolvem
linguagem, literatura e narrativas.
Maria Cláudia Araújo (2011) apresenta sua definição de mímesis de acordo com
Aristóteles em suas reflexões e credita à atividade mimética uma função de construção de
identidade realizada pelos sujeitos sociais.
Na Poética, mímesis é imitação e representação, e corresponde a um processo de
construção através dos meios, objetos e modos, dos quais decorrem as diferentes
espécies de poesia. Os meios são apenas um dos aspectos, pois o objeto da mímesis
são homens em ação, cada qual com seu caráter: melhores, piores, iguais ou comuns.
A mímesis pode ser produzida em modo narrativo ou dramático e explica-se pela
tendência do homem a contemplar, conhecer e reconhecer (identificar a forma
original) (ARAÚJO, 2011, p.78).
Araújo avança em seu raciocínio e ressalta que a mímesis poética não é mera
reprodução do real, pois é uma representação que resulta de um processo de construção regido
por regras e elementos estruturais que visam possíveis efeitos. Os critérios de verossimilhança
– material verbal para a elaboração da narrativa e referências externas de temporalidade - que
guiam a construção mimética são responsáveis por situar a mímesis como uma realidade
possível, já que o discurso mimético é constituído pelo significante em busca de significado.
Em sua obra Mímesis e modernidade: formas das sombras (1980), Luiz Costa Lima
também analisa o conceito aristotélico de mimese. De acordo com Lima, o processo mimético
se delimita no campo poético e o conceito de poético não se restringe ao texto escrito em
versos, ele se equipara à mímesis, sendo esta uma “imitação” da ação humana. Aqui, a
imitação adquire um sentido metafórico se afastando da visão platônica de falsidade, de
distância de uma projeção perfeita da realidade. O autor inclui na conceituação aristotélica a
presença de um receptor da representação, que será responsável por interpretar e gerar
17 As obras de Aristóteles são provenientes de anotações registradas para as aulas do Liceu (uma espécie de
instituto de ensino fundado pelo filósofo). Na obra Poética, Aristóteles discute o conceito de mímesis na
composição literária e dramática. A obra circulou pela primeira vez por volta de 340 a.C., tratando de música,
dança, belas-artes e literatura. Tal obra influencia e continua a ecoar, mais de dois mil anos depois de sua
concepção, as mais variadas discussões sobre arte, poesia, representações artísticas, além de diversas formas
narrativas até os dias atuais.
53
sentidos ao objeto representado. A presença do leitor se faz essencial para que a sensação de
real da representação seja concluída. A efetividade da mímesis passa, então, pela subjetividade
dos sujeitos, sendo que as experiências que viveram e os valores que compartilham
influenciam diretamente na construção de significações acerca de uma representação que os
alcança, como explica o autor ao falar sobre a concepção de uma realidade em um
conhecimento mimetizado:
(...) deveremos observar que o objeto irrealizante, o objeto mimético, é tanto criado
e recebido a partir de uma concepção internalizada do real, que, portanto, aquela
irrealização há sempre de ser comparada com o estoque de conhecimentos que
constituem a concepção do real, quer do autor, quer do receptor (LIMA, 1980, p.50).
O filósofo francês Paul Ricoeur (2000) afirma que a mímesis aristotélica diz respeito a
tessitura de uma intriga e que sua existência depende da produção de uma singularidade.
Ricoeur entende que a mímesis de Aristóteles, desvincula-se do sentido de cópia e relaciona-
se com a metáfora. O autor francês coloca o conceito de mŷthos (ação de constituição da
intriga) diretamente relacionado à atividade mimética, considerando-o um processo dinâmico
de criação, responsável por uma nova vida do já existente aliado a temporalidade que envolve
o objeto representado. Ricoeur ainda defende que a interpretação de realidade dada a um
objeto representado será elaborada na instância da recepção, a partir de uma leitura particular.
Este ciclo da mímesis é trabalhado por Ricoeur em suas investigações sobre tempo e narrativa
(item 4.2) e nos servirá de referência teórica para compreensão das narrativas jornalísticas e
suas representações de realidade (item 4.2.1) e sua relação com o objeto empírico desta
pesquisa (item 4.2.2).
4.2 A tríplice mimese de Paul Ricoeur
A tríplice mimese proposta pelo filósofo francês Paul Ricoeur em sua trilogia Tempo e
Narrativa (2010) pode contribuir efetivamente para a reflexão sobre as mediações que o
jornalismo estabelece com o conjunto social. Para dar início a esta reflexão, é importante
ressaltar que, nesta pesquisa, tomamos a noção de mediação pela ótica de Jesús Martín-
Barbero (1997), considerando-a como um amplo processo de negociação de sentidos guiado
pelo envolvimento de atores sociais e dimensões distintas em que se inserem (social, política,
cultural, entre outras) aliados à forte presença dos dispositivos midiáticos.
Os modos como se desenvolvem esta ampla negociação de sentidos em uma narrativa
jornalística podem ser observados pelo conceito de tríplice mimese de Ricoeur. Para o
54
filósofo francês, o tempo e a tessitura da intriga são os elementos centrais em toda narrativa:
“o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a
narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência
temporal” (RICOEUR, 2010, p.93).
É justamente ao relacionar estes dois elementos da narrativa que o autor constrói a
base de fundação do conceito de tríplice mimese. E para descrever esta relação, Ricoeur
relaciona dois estudos que foram desenvolvidos em épocas e contextos culturais bastante
distintos: a análise da composição da intriga na obra Poética de Aristóteles e a análise do
tempo desenvolvida por Santo Agostinho em sua obra Confissões18
.
Para discorrer sobre a temporalidade, Paul Ricoeur traz as reflexões de Santo
Agostinho, que parte da seguinte pergunta: o que é, afinal, o tempo? A partir deste
questionamento, Ricoeur explicita a antítese que envolve as dificuldades advindas da
característica de ser ou não ser do tempo. Este caráter aporético da experiência temporal é
percebido tanto pela argumentação cética – a qual tende a afirmar que o tempo não tem que
ser, já que o futuro ainda não é, pois o passado já não é e o presente não permanece – quanto
pela confiança proveniente do uso cotidiano da linguagem – argumentação esta que defende o
tempo como tendo de ser, já que o porvir será, as coisas passadas foram e as presentes
passam. A partir desta ideia do tempo em Agostinho, o pensador francês dedica-se a uma
investigação que utiliza a composição da intriga como possibilidade de resposta capaz de
esclarecer, apesar de não resolver teoricamente, a aporia do tempo. E ao abordar o fazer
poético de Aristóteles, Paul Ricoeur busca demonstrar como a atividade narrativa desvia desta
aporia e delineia sentidos para a experiência temporal.
Assim, é por meio da poieses aristotélica que o filósofo francês aborda o conceito de
mímesis (atividade mimética) como imitação, num sentido de representação criativa da ação
pelo viés da problemática da intriga, ou seja, busca relacionar a tessitura da intriga (mŷthos) e
a atividade mimética. O autor ressalta, porém, que Aristóteles nada comenta sobre a relação
entre a atividade poética e a experiência temporal.
O conceito de tríplice mimese da narrativa de Paul Ricoeur (2010) pretende então
investigar as operações de mediação entre a experiência cotidiana do mundo da vida e sua
representação na elaboração do discurso. Ao aprofundar na reflexão sobre a relação entre
tempo e tessitura da intriga, o autor aponta a necessidade de estabelecer a configuração da
11As reflexões sobre as aporias do tempo encontram-se no livro XI da obra Confissões de Santo Agostinho,
sendo esta uma obra autobiográfica do autor, redigida entre os anos 397 e 398. Para desenvolver suas ideias
acerca da temporalidade, Paul Ricoeur se baseia na tradução francesa da obra de Agostinho, feita por E. Tréhorel
e G. Bouissou, publicada pela editora Teubner em 1934.
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intriga pela narrativa como mediadora da experiência prática que precede a ação representada
e do estágio em que ocorre a recepção dos leitores da narrativa. “Seguimos, pois, o destino de
um tempo prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado”
(RICOEUR, 2010, p.95).
O filósofo francês considera a representação da ação como um processo composto por
três etapas que integram todo o percurso da mímesis – mimese I, mimese II e mimese III –
considerando o leitor/ouvinte o operador que dá unidade ao percurso da tríplice mimese, já
que o contexto em que se sucede a ação (mimese I) e esta ação transformada em discurso, em
uma narrativa configurada (mimese II) só terão sentido completo quando atingem a recepção
ativa de tais leitores, que atribuem novos sentidos aos acontecimentos narrados (mimese III).
O primeiro passo para a compreensão do ciclo da narrativa em Ricoeur é denominado
pelo autor de mimese I. Podemos considerar essa instância da tríplice mimese o ponto de
partida da composição da intriga, pois é em mimese I que se dá a pré-compreensão da ação e
experiência humana a ser representada e do mundo em que ela se insere, seja em uma
narrativa ficcional ou documental.
Percebe-se, em toda a sua riqueza, qual o sentido de mímesis I: imitar ou representar
a ação é, em primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica,
sua simbólica, sua temporalidade. É nessa pré-compreensão que se delineia a
construção da intriga e, com ela, a mimética textual e literária (RICOEUR, 2010,
p.112).
Assim, de acordo com o filósofo, o mundo que prefigura a composição da intriga
(mimese I) se apresenta nestas três dimensões: estrutural, simbólica e temporal. A primeira
dimensão que caracteriza a mimese I diz respeito às estruturas inteligíveis do mundo da ação.
Aqui se trata de analisar os aspectos estruturais da narrativa, ou seja, conhecer o “fazer” que
dá origem às formas de narrar, entender como se constitui o conjunto de regras que servem de
alicerce para o percurso da construção narrativa.
É importante ressaltar que esta dimensão semântica não se delineia apenas pelo uso do
conceito simplificado de ação. Vai além ao buscar compreender os objetivos, reconhecer os
motivos, identificar os agentes envolvidos, as circunstâncias em que se desenvolve uma ação
e suas consequências, construindo uma rede de significados e definindo sua compreensão
prática. A esta compreensão é preciso somar os aspectos discursivos que colaboram na
composição narrativa porvir, que determinam a ordem diacrônica da história. É exatamente
nessa soma que se define a modalidade dos discursos, sejam eles históricos ou ficcionais. Na
análise da estrutura inteligível da narrativa que integra a mimese I, percebemos uma relação
recíproca entre inteligência prática e inteligência narrativa, que demonstra que o
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conhecimento da ação ganha novos sentidos ao ser aliado ao encadeamento sequencial do
fazer na composição da intriga.
A segunda dimensão da primeira etapa da tríplice mimese ricoeuriana trata da
dimensão simbólica que envolve o mundo da ação. Aqui a compreensão da ação passa pelas
manifestações da cultura que a influenciam, já que ela está articulada em questões éticas e
morais, valores, crenças, entre outras. Qualquer ação mundana que pode ser selecionada por
atores sociais e transformada em uma narrativa já pertence a um conjunto de signos, regras e
normas, ou seja, está desde sua emergência no mundo da vida inserida num sistema
simbólico. Importante destacar que Ricoeur conceitua símbolo como processos culturais que
articulam toda a experiência, sendo que a função primordial da mediação simbólica seria
compor o processo de constituição da significação da ação.
O símbolo traz para a ação a ideia de regra, no sentido de uma norma descritiva que
caracteriza a ação significante como um comportamento governado por regras, tendo os
códigos culturais como programadores do comportamento. Isso gera uma direção e
ordenamento à vida, pelos hábitos e costumes que vão delinear a experiência prática humana,
que pode se transformar em objeto de julgamento, de acordo com uma preferência de ética e
moral, ao ser moldada em uma narrativa. Carlos Alberto de Carvalho (2012) destaca a força e
relevância na questão ética que emerge ao se tratar da dimensão simbólica em mimese I,
quando afirma que
O traço que mais se evidencia em mimese I é a sua exigência de uma necessidade
ética, posto que enraizada em situações concretas do mundo de referência para a
narrativa que logo em seguida surgirá. O caldeirão simbólico que estrutura a
narrativa, dando-lhe sentidos, não é imutável, inscreve-se na dinâmica das
transformações que, afinal, as próprias narrativas ajudarão a concretizar, razão
adicional para que haja compromisso ético (CARVALHO, 2012, p.176).
O terceiro aspecto que envolve a pré-compreensão do mundo da ação que será
configurada pela atividade mimética é a dimensão temporal. Aqui temos um dos elementos
centrais que perpassa todo o processo da construção da narrativa e que também será analisado
na relação com a construção do acontecimento jornalístico. É possível encontrar na
experiência prática estruturas temporais que são propícias para um desenrolar da narratividade
da ação. São aspectos do tempo que estão embutidos nas mediações simbólicas da ação e
funcionam como verdadeiros indutores da atividade mimética.
A aporia temporal (o ser ou não ser do tempo) de Santo Agostinho é acionada nesta
dimensão da pré-compreensão da ação por Ricoeur. O filósofo francês demonstra que o triplo
presente – Agostinho afirma que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo
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presente, mas sim um triplo presente, um presente das coisas futuras, um das passadas e um
das presentes – facilita o caminho para compreender a estrutura temporal básica que compõe
o fazer. Para além desta compreensão, Ricoeur, ainda inspirado por Santo Agostinho, ressalta
a importância da correlação estabelecida pela práxis cotidiana entre estes tempos. A maneira
como o presente do passado, o presente do futuro e o presente do presente se relacionam
determina a forma como a narração irá se constituir.
Ainda nessa linha de raciocínio do triplo presente da ação, Paul Ricoeur aciona a
análise da intratemporalidade, a qual traz uma ruptura com a simples linearidade temporal,
entendida como um simplificado encadeamento sequencial de presentes. Para o autor, é
justamente esta intratemporalidade que caracteriza o aspecto temporal da ação, já que
demonstra como os atores sociais inseridos, direta ou indiretamente, em uma experiência
prática cotidiana se relacionam com o tempo.
É dessa maneira que a intratemporalidade ou ser-“dentro”-do-tempo revela aspectos
irredutíveis à representação do tempo linear. Ser-“dentro”-do-tempo já é algo
diferente de medir intervalos entre instantes-limite. Ser-“dentro”-do-tempo é antes
de mais nada contar com o tempo e em consequência disso calcular. (RICOEUR,
2010, p.109)
É por meio da intratemporalidade, que traz, então, a ruptura do caráter linear do
tempo, associada à rede conceitual que envolve a ação junto com suas mediações simbólicas,
que se constitui a mimese I. Esta primeira instância da tríplice mimese ricoeuriana serve de
alicerce para se erguerem as mais variadas formas de configurações narrativas acerca de uma
ação de uma determinada experiência prática mundana em conjunto com as formas mais
elaboradas de temporalidade, avançando então para a mimese II.
Nessa segunda instância da tríplice mimese de Ricoeur, nos deparamos com uma
dupla função da configuração narrativa. Mimese II assume o papel de dar sentindo à
experiência prática humana através da configuração poética e ao mesmo tempo propiciar
novas formas e sentidos de compreensão do mundo. O autor ressalta essa função mediadora
do processo de elaboração da narrativa ao afirmar que “mímesis II extrai sua inteligibilidade
de sua faculdade de mediação, que é a de conduzir o antes ao depois do texto, de transfigurar
o antes em depois por seu poder de configuração (RICOEUR, 2010, p.94)”. Os novos sentidos
só são possíveis devido a essa mediação, pois estabelece a ponte que liga a prefiguração do
mundo prático ao receptor da configuração deste mundo, recepção essa responsável pela
ressignificação dos acontecimentos narrados em mimese II.
A operação de configuração, que é uma característica central da segunda mimese
ricoeuriana, é referenciada pelo conceito de mŷthos de Aristóteles, unindo a tessitura da
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intriga e o agenciamento dos fatos. A intriga é vital para o desenvolvimento da mimese II,
pois possui também uma função mediadora e, de acordo com o filósofo, este papel da intriga
se dá, primeiramente, pela mediação que ela faz entre os acontecimentos e uma história
narrada. Nesse caso, a intriga transforma uma ampla gama de acontecimentos ou incidentes -
que são mais do que uma ocorrência singular e são selecionados para servir de ponto de
partida ao desenvolvimento da própria intriga - em uma história que se organiza em uma
totalidade inteligível, que vai além da mera sucessão serial de ocorrências.
Outra característica mediadora da intriga se refere aos seus caracteres temporais
próprios, tornando-a uma síntese do heterogêneo, segundo Paul Ricoeur. Aqui retornamos à
aporia temporal de Santo Agostinho, já que a configuração narrativa combina duas dimensões
temporais que solucionam na poética as características de ser e não ser do tempo. A primeira
dimensão é cronológica e constitui a caracterização episódica da narrativa, ao definir uma
história como feita de acontecimentos. Já a segunda dimensão é não cronológica e caracteriza
a configuração em si, na qual a intriga transforma os acontecimentos em história. É neste
ponto que se pode ver claramente esse paradoxo temporal, considerando que o ato de compor
a intriga retira e seleciona acontecimentos singulares da experiência mundana repleta de
ocorrências e insere estes selecionados em outra totalidade do temporal, em uma
temporalidade que é exclusiva da narrativa.
A temporalidade é uma característica bem marcante da configuração em mimese II.
Ao articular uma história de uma sucessão de acontecimentos do mundo da vida, a elaboração
de um discurso em volta de uma ocorrência singular ganha sentido para o receptor deste
discurso na capacidade que a história configurada tem de ser acompanhada. E acompanhar
uma história diz respeito a sua capacidade de conduzir um leitor ou um ouvinte a um ponto
final onde este encontra uma satisfação. A conclusão estabelece um ponto temporal de onde o
receptor pode compreender o todo que envolve a narração da ação.
Agostinho abordava o caráter aporético do tempo como uma inquietação praticamente
sem solução, porém o ato de narrar uma história reverte esse incômodo e o usa como solução
para se tecer uma narrativa e dar-lhe um ritmo com uma conclusão e abertura para as
interpretações de quem a acompanha. Na configuração narrativa, percebemos a presença
desse paradoxo temporal ao observarmos a dimensão episódica e a dimensão configurante da
narrativa.
O aspecto episódico constitui o tempo narrativo de modo a escapar do campo da
representação linear. Os episódios de uma história se apresentam como uma série aberta de
acontecimentos, sendo interligados na narrativa em uma temporalidade não cronológica, a
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qual não corresponde ao tempo da ação ocorrida no mundo da vida. A dimensão configurante,
no entanto, segue o caminho inverso ao tratar dos aspectos temporais da narrativa. Uma das
explicações que justifica esse outro rumo dessa dimensão é que a configuração é responsável
por reunir os acontecimentos em um todo significante. Tal operação permite que a intriga
possa ser compreendida em um tema, ser traduzida em uma ideia ou conceito que a
caracteriza.
Outra questão que mostra a diferença temporal da configuração em relação ao episódio
em si é a função de organização e conclusão que a tessitura da intriga impõe à vasta
ocorrência de variados incidentes do campo da ação. Paul Ricoeur mostra como o senso de
ponto final é responsável por delinear a totalidade da história e vai além ao refletir que o ato
de recontar uma história valoriza a sua conclusão, e, consequentemente, sua compreensão
como um todo. Nota-se então uma nova qualidade do tempo nas narrativas, pois o senso de
ponto final, a cada vez que uma história é recontada, nos coloca em contato com outras
interpretações dos episódios e nos ajuda a compreendê-los de forma mais aprofundada, o que
permite manter uma narrativa em circulação na sociedade com sua permanência cada vez
mais fixa na memória.
Assim, ao pensarmos no tempo narrativo como um todo, não devemos separar os
tempos de cada dimensão. Apesar de aparentarem serem temporalidades específicas e
paradoxais, quando reunidas constituem o tempo narrativo, que exerce o papel de mediador
entre os aspectos episódico e configurante, gerando então uma ação poética única que
constitui a mimese II de Paul Ricoeur, garantindo a mediação entre a pré-compreensão da
ação e sua refiguração ao alcançar os leitores/ouvintes, a qual caracteriza o processo de
mimese III.
Na ótica da tríplice mimese ricoueriana, o ciclo da mímesis se completa justamente na
terceira mimese. É nesta instância que a narrativa alcança seu sentido mais avançado, pois é
exatamente nesse momento que o leitor ou ouvinte exerce a função de refiguração da
narrativa, se integrando de forma ativa dentro da trama narrada e gerando suas interpretações
sobre ela, completando assim o processo de mímesis que, segundo o filósofo francês, é
responsável pela mediação entre tempo e narrativa.
(...) mímesis III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte e
do leitor. A intersecção, portanto, entre o mundo configurado pelo poema e o mundo
no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua temporalidade específica.
(RICOEUR, 2010, p.123)
Antes de aprofundar no ato da leitura como responsável por todo o processo que
envolve a compreensão de uma ação e sua transformação em discurso, Paul Ricoeur questiona
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se o encadeamento dos três estágios da mímesis realmente define uma progressão que seria
responsável por todo o processo da mediação entre tempo e narrativa. Seria a tríplice mimese
suficiente para a análise do caminho entre os acontecimentos da vida mundana, sua
transformação em discurso e a dimensão simbólica gerada pelas múltiplas leituras e
interpretações dos receptores?
Para responder a este questionamento, o autor francês aborda a noção de circularidade
da análise narrativa. Logo no início dessa discussão, Ricoeur refuta a ideia de que o círculo
que envolve todo o ato de narrar seja vicioso. Ele defende que a circularidade que envolve o
trânsito da mimese I até a mimese III, mediada pela mimese II, funciona como uma espiral
sem fim que faz um acontecimento se deslocar, gerar conhecimentos e, consequentemente,
novos acontecimentos derivados da experiência prática inicial e de sua transformação em
discurso. Isso pode gerar a ideia de círculo vicioso, porém a oposição a esta ideia está
justamente na diferença de atitude que ocorre dentro dessa espiral a cada nova interpretação
das narrativas e retorno de novas ações no mundo da vida. Assim, o autor francês classifica a
circularidade como um elemento vital, e não vicioso, sendo esse círculo formado pelo
percurso da tríplice mimese e essencial para o funcionamento da mediação entre tempo e
narrativa. Esta compreensão da circularidade que envolve os três estágios da mímesis permite
voltar nossa atenção para o ato de leitura, que diz respeito especialmente à transição de
mimese II para mimese III, sendo esta última responsável pela refiguração da narrativa e
geração de novos significados acerca da intriga narrada, dando conclusão ao ato configurante.
Para escapar da noção que trata o texto como uma estrutura estática, dotada de sentido
fechado e sem a participação ativa do receptor na sua interpretação, Ricoeur aborda os
aspectos de tradicionalidade e esquematização da intriga, que permitem que escritura e leitura
sejam duas operações que estabeleçam uma interação entre si. Um dos aspectos que propicia o
encontro entre texto e leitor são os paradigmas aceitos que estruturam e moldam a narrativa,
permitindo que o receptor ao se deparar com uma história contada reconheça nela a regra
formal, o gênero e a forma que a delineia. Quando o leitor identifica um gênero narrativo, o
próprio ato de leitura completa o ciclo da configuração da intriga e reforça a capacidade de
uma história em ser acompanhada e a partir daí gerar novos sentidos e novos acontecimentos
na experiência prática humana.
É ainda o ato de ler que se junta ao jogo da inovação e da sedimentação dos
paradigmas que esquematizam a composição da intriga. É no ato de ler que o
destinatário brinca com as exigências narrativas, efetua os desvios, participa do
combate entre o romance e o antirromance e experimenta o prazer que Roland
Barthes chamava o prazer do texto (RICOEUR, 2010, p.131).
61
Em mimese III, o protagonismo do leitor fica nítido, já que seria ele um dos principais
responsáveis por dar sentido à obra narrativa, considerando que um texto escrito pode
apresentar lacunas, caminhos abertos e indefinidos, com possibilidade de múltiplos sentidos,
justamente para o leitor terminar a configuração iniciada pelo autor da intriga apresentada em
uma narrativa. Seria, então, o ato de leitura responsável pela refiguração da narrativa no ciclo
da mímesis ricoeuriana, pois estabelece uma conexão entre mimese II e mimese III. Os
sentidos construídos em torno do mundo da ação mediada pela intriga só são possíveis de se
estabelecerem a partir do momento que acontece a interação entre texto e receptor.
Além da característica da leitura que completa o ciclo da escrita, mimese III também
traz a questão que envolve a referência. Quando tratamos da instância do discurso,
consideramos que o acontecimento traz em sua completude não só um texto dirigido a um
receptor, mas também compartilha, por meio da linguagem, uma nova experiência. Assim, ao
pensarmos na recepção, devemos considerar que a capacidade humana de comunicação está
diretamente relacionada às referências do ser humano e sua relação com o mundo. Quando um
leitor entra em contato com uma obra, ele também passa a se relacionar com a experiência que
esta traz para a linguagem, que por sua vez traz em si uma temporalidade ligada ao mundo e
suas ações.
O filósofo assinala que as referências que servem de base para o fazer narrativo
ressignificam o mundo em sua dimensão temporal. Para Paul Ricoeur, a composição da
intriga tem a capacidade de expressar o mundo e, assim, a leitura desse agir humano
configurado pela narrativa reconstrói o significado da dimensão temporal, já que narrar é uma
forma de refazer a ação conforme a elaboração do processo mimético.
Para tratar da questão da temporalidade, o autor francês compara a narrativa de ficção
à narrativa histórica, mostrando diferenças entre os modos referenciais por meio dos quais se
constroem cada uma dessas modalidades do ato de narrar. Ele considera que somente a
historiografia pode ser construída referenciada em acontecimentos que ocorreram
efetivamente, pertencentes ao mundo empírico. Mesmo que o passado não exista mais e
necessite de vestígios para ser resgatado narrativamente no presente, não deixa de ser real que
esse passado ocorreu. Ainda segundo Ricoeur, o acontecimento passado, mesmo estando
ausente no presente, guia a intencionalidade histórica e caracteriza a narrativa com um tom
realista diferente do que ocorre na literatura de ficção. É importante observar, porém, que a
referência elaborada a partir de vestígios de um passado real também possui interseção com as
referências metafóricas, considerando que o passado só pode ser narrado por meio do recurso
da imaginação. Assim, a dimensão temporal é considerada como essencial para o uso
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combinado das referências ligadas tanto aos vestígios históricos quanto às metáforas poéticas
na construção de um discurso narrativo.
Contudo, onde se cruzam a referência por vestígios e a referência metafórica, senão
na temporalidade da ação humana? Não é o tempo humano que a historiografia e a
ficção lieterária refiguram em comum, cruzando nele seus modos referenciais?
(RICOEUR, 2010, p.140)
A dimensão temporal mostra sua relação direta com a mímesis mais uma vez, ao
também constituir a caracterização da mimese III de Ricoeur. A temporalidade, que perpassa
por todas as três mimeses, se apresenta como elemento essencial da constituição de uma
narrativa. A investigação da mediação entre tempo e narrativa por meio da tríplice mimese
apresenta, portanto, uma dialética em que convivem no mesmo círculo a poética da narrativa e
a aporia que envolve os aspectos temporais.
4.2.1 Mimese e narrativa jornalística
Paul Ricoeur (2010) considera a narrativa uma forma privilegiada de conhecer o
mundo. No entanto, o filósofo desenvolve seus estudos com enfoque nas narrativas ficcionais
literárias e nas narrativas de cunho histórico. A abordagem jornalística é a que nos interessa
nesta dissertação. E para relacionar as narrativas jornalísticas com a tríplice mimese
ricoeuriana, vamos nos valer das reflexões de Luiz Gonzaga Motta (2005) e Carlos Alberto de
Carvalho (2012), já que ambos desenvolvem estudos que mostram como a mediação entre a
temporalidade e a narratividade pode ser aplicada também ao campo do jornalismo.
Iniciamos esta reflexão com o questionamento de Motta (2005) que busca
compreender se o enunciado do jornalismo realmente se caracteriza como uma narrativa. O
autor traz uma comparação entre os conceitos de narração e de descrição, considerando o
primeiro como uma representação que se constitui pelo relato de eventos que configuram o
desenrolar de uma ação temporal, que leva a interpretações dos receptores de tal relato. Já a
descrição é considerada como uma representação de um momento estático, com a
temporalidade inalterada pelo discurso e com o objetivo de criar o efeito de real por meio de
informações que buscam a verossimilhança. Tal comparação feita pelo autor não coloca os
dois conceitos em caminhos de sentidos opostos no jornalismo, pois para Motta a
possibilidade de se encontrar textos tanto puramente descritivos quanto puramente narrativos
é remota, praticamente impossível. No entanto, o autor aponta para a tendência descritiva do
discurso jornalístico que, na maior parte de sua produção, busca uma forma de abordagem que
63
tende mais a concisão e clareza, criando mais o efeito do real do que incentivando o
imaginário do leitor.
Com esta comparação de estilo discursivo no jornalismo, Motta busca mostrar que os
enunciados jornalísticos por si só se afastam da forma narrativa e se caracterizam mais pela
aproximação da realidade pelo discurso conciso e objetivo, evitando contar histórias. Assim,
de acordo com o autor, a expressão narrativa do jornalismo encontra sua força na instância da
recepção, deixando muito mais nas mãos do leitor a função de interpretar e refigurar as
representações propostas nos enunciados jornalísticos.
A participação dos leitores é característica marcante da narrativa. E para mostrar como
o ato de narrar se aplica ao jornalismo, Motta discorre sobre o conceito de narrar e também
sobre a narratividade. O autor define narrar como o relato de fatos que se desenvolvem ao
longo de uma temporalidade. É por meio da narração que se convoca o leitor a ter voz ativa na
participação dos eventos relatados em uma configuração poética. Motta avança, então, para o
conceito de narratividade, que se manifestaria pela irrupção do descontínuo, sendo
responsável pela produção de sentido. A narratividade diz respeito, assim, às transformações
que se inserem no discurso a partir do rompimento da ordem do mundo cotidiano. Essa
transição do contínuo para o descontínuo é registrada por meio do processo da narratividade,
por meio da estrutura de um texto que se produz a partir de transformações em uma história,
em uma vida, em um indivíduo e/ou em uma cultura.
No livro Dicionário de Teoria da Narrativa, Reis e Lopes (1988) também discutem o
conceito e apontam que a narratividade envolve circunstâncias sociopsicológicas e
pragmáticas da produção de texto e se completa na instância da recepção ao afirmarem que
(...) a narratividade pode ser concebida também como qualidade discursiva que
carece de ser atualizada e saturada pelo processo de leitura; se a leitura da narrativa
for entendida como gradual reconstrução de um universo que o desenvolvimento
sintagmático do discurso vai configurando, se se postular a existência de uma
competência narrativa que habilita a ler um romance ou um conto em termos
diferentes dos que regem a leitura de um soneto, então dir-se-á que a narratividade,
com as propriedades intrínsecas que aqui foram sendo descritas, constitui a
referência latente que coordena e sistematiza a atividade de descodificação narrativa.
Nesta linha de pensamento, (...) a narratividade tem que ver com a capacidade
possuída pelo texto (narrativo) para facultar ao receptor o acesso a ações de
dimensão humana, de matriz temporal e englobadas em universos internamente
coerentes (REIS e LOPES, 1988, p.78-79).
Ao discutirmos a tríplice mimese de Paul Ricoeur anteriormente, é importante lembrar
que o filósofo se referia principalmente às narrativas literárias de ficção e às historiográficas.
Quando desenvolve sua reflexão sobre as narrativas jornalísticas, Luiz Gonzaga Motta (2005)
busca demonstrar os contrastes das características da história e da ficção literária em relação
64
ao discurso jornalístico. De acordo com o autor, o principal fator que diferencia a narrativa
jornalística das outras duas se deve ao nível e grau da composição dos fatos em uma intriga
coerente com a realidade. Enquanto nas demais narrativas a necessidade de se contar histórias
permite o autor a introduzir fatos que não correspondem completamente a realidade, no
jornalismo existe a responsabilidade de se trabalhar com acontecimentos ainda abertos que
envolvem pessoas que ainda não terminaram de viver. Isso faz com que o texto jornalístico se
insira em um dilema e oscile entre a necessidade de ser fiel ao fato ocorrido ao descrevê-lo e a
necessidade de preencher tal fato com histórias e conexões que podem se desviar da realidade
relatada.
A qualidade da narratividade dos enunciados jornalísticos estaria então na relação
entre o texto e sua recriação a partir das múltiplas leituras que geram novos significados a
esse tipo de narrativa. Considerando as reflexões de Ricoeur sobre o tempo se tornar humano
na medida em que é articulado narrativamente e a narrativa atingir seu pleno significado ao se
tornar uma condição da temporalidade, a ideia de que o tempo e a ação comunicativa
compõem o paradigma narrativo, mostra que a narratividade não é uma qualidade exclusiva
do texto configurado, e sim de algo muito maior que tem sua força estampada na relação obra-
autor-leitor. Portanto, a partir das investigações sobre a mediação entre tempo e narrativa de
Ricoeur, Motta enxerga o caminho pelo qual se dará o encontro entre os enunciados
jornalísticos e a narratividade.
A força narrativa dos enunciados jornalísticos estaria menos nas qualidades
narrativas intrínsecas do texto das notícias e reportagens ou no confronto entre o
estilo descritivo e o narrativo, mas principalmente no entendimento da comunicação
jornalística como uma forma contemporânea de domar o tempo, de mediar a relação
entre um mundo temporal e ético (ou intratemporal) pré-figurado e um mundo
refigurado pelo ato de leitura (MOTTA, 2005, p.33).
A configuração de narrativas pelo jornalismo se revela como um caminho de
reconfiguração da cultura contemporânea, na qual não podemos considerar somente a
tendência de objetividade dos discursos deste campo, já que os próprios jornalistas não
conseguem e muito menos tem a intenção de se descolarem da subjetividade que os
envolvem. Com isso, não é somente no estilo discursivo e na linguagem que a narratividade
se constrói no jornalismo, mas, principalmente, no ciclo que envolve a pré-configuração do
mundo da ação, a configuração pela narrativa do acontecimento e a refiguração pela
construção de sentido que ocorre na relação autor-obra-leitor. A significação construída na
recepção aliada ao contexto cultural, ético e moral em que se insere uma história ou uma
65
intriga nos mostra como o jornalismo se constitui como uma narrativa que retrata uma
contemporaneidade.
Carvalho também reforça essa relação dos enunciados jornalísticos e a tríplice mimese
ricoeuriana ao abordar a narrativa jornalística como um meio da sociedade conhecer a si
mesma ao se deparar com a realidade em que tal narrativa se insere. É a partir do contato com
as marcas (marcas do social, do econômico, do cultural, etc.) daquilo que se narra que os
receptores criam sentidos a partir de múltiplas leituras acerca do enunciado, já que “aquilo
que vem configurado em uma determinada narrativa receberá novas configurações a partir da
perspectiva de quem lê, propiciando assim, a criação/recriação da realidade, processo que
nunca finda” (CARVALHO, 2012, p.171).
O jornalismo encontra à sua disposição uma grande variedade de estratégias
narrativas, que vão desde um simples relato objetivo dos fatos, entrevistas, grandes
reportagens até estruturas como colunas, crônicas, artigos, entre outras formas. Para Carvalho
(2012), essa ampla possibilidade de estruturas narrativas que atendem ao jornalismo existem
em função de objetivos estético-linguageiros e também para a criação de um efeito, sendo que
para cada efeito sugerido sempre haverá múltiplas formas de leitura e interpretação, o que
reforça a relação dos enunciados jornalísticos com a tríplice mimese. É possível a partir da
pré-configuração do mundo da ação (mimese I) e da consequente configuração da narrativa
(mimese II) – por meio da organização textual com as estratégias de enquadramento e seleção
de aspectos dos acontecimentos que lhe conferem determinada inteligibilidade - criar uma
expectativa de sentido para a instância da recepção, porém, é justamente no estágio de
mimese III que os acontecimentos narrados recebem múltiplas significações e que são
ampliadas as possibilidades de percepção do mundo mediado pelo jornalismo.
O papel dos narradores em mimese II também ganha papel relevante nas reflexões de
Carvalho (2012) acerca das narrativas jornalísticas. O autor aponta que os ideais de
objetividade deste tipo de enunciado – mesmo considerando que a dimensão subjetiva ainda é
marcante neste tipo de discurso, já que os conhecimentos e o contexto (político, social,
cultural, etc.) que envolvem o narrador influenciam na seleção dos eventos reportados e dos
personagens e fontes que os interpretam – reforçam o protagonismo destes autores na
configuração poética, pois precisam ser rigorosos com os valores éticos e culturais que
envolvem mimese I, considerando que necessitam manter a credibilidade das informações
jornalísticas e não podem preencher lacunas no resgate dos acontecimentos com recursos
imaginativos.
66
A forma como o narrador configura um acontecimento no jornalismo está diretamente
relacionada com mimese III, pois não é apenas o contexto que envolve a ação que deve ser
considerado na configuração, é preciso também que os leitores compartilhem, direta ou
indiretamente, deste mundo prefigurado, sendo que somente assim se sentirão impactados
pelo acontecimento narrado jornalisticamente e estarão aptos a serem reconfiguradores do
mundo da ação narrado, abrindo um leque de possibilidades de interpretações e disputas de
sentido, afastando a ideia de reprodução fiel das ocorrências nas narrativas jornalísticas.
A narração fidedigna do acontecimento é uma das principais exigências do jornalismo.
A ficcionalização, pensada como recurso de ocultamento do real, não encontra espaço nesse
tipo de narrativa, já que para desenvolver de forma ética a mimese II, não é possível criar
realidades para as lacunas deixadas por mimese I, o que comprometeria o estágio da mimese
III, considerando que o leitor teria a confiança abalada caso se deparasse com uma narrativa
envolvendo o cotidiano do mundo da ação que se afastasse do fato que realmente ocorreu.
Carvalho (2012) demonstra, no entanto, que isso não impede o uso de técnicas da narrativa
ficcional como recurso estético na construção do discurso jornalístico. O autor aponta como
os recursos da literatura realista do final do século XIX tiveram forte influência no
compromisso social com a investigação mais rigorosa e aprofundada por parte dos jornalistas.
A pesquisadora argentina María Marcela Farré (1999) defende que é possível manter a
credibilidade nas narrativas jornalísticas fazendo uso dos recursos de ficção, o que seria bem
diferente de lançar mão da fabulação típica da literatura, já que para esta autora “as notícias
são ficções representativas da vida real, assumindo que ficção não significa falsidade.
Realidade é o mundo em que vivemos, enquanto ficção alude às construções culturais que
simbolizam nosso estar no mundo” (FARRÉ, 1999, p.7, tradução nossa)19
.
Pode-se afirmar, enfim, que a tríplice mimese de Paul Ricoeur aplicada ao jornalismo
se constitui como um processo de mediação que as narrativas podem estabelecer com o
mundo da vida e seus acontecimentos. O processo da tríplice mimese permite a compreensão
do mundo social pelas narrativas jornalísticas que trazem por meio de mimese I um mundo da
ação prefigurado (estrutura, simbolização e temporalidade), mediados pela configuração
poética do acontecimento selecionado (mimese II), o qual ganha sentido, nem sempre único e
delimitado, a partir das mais variadas leituras e interpretações das quais são objeto (mimese
19 En este sentido se afirma en el presente trabajo que las noticias son ficciones representativas de la vida real,
asumiendo que ficción no significa falsedad. Realidad es el mundo en que vivimos, mientras que ficción alude a
lãs construcciones culturales que simbolizan nuestro estar en el mundo.
67
III), completando assim todo o ciclo da mímesis que envolve a compreensão do mundo da
vida.
Narrativas jornalísticas são, nessa perspectiva, parte do que Paul Ricoeur denomina
como o próprio esforço de apanhar o tempo, de humanizá-lo, uma vez que a sua
total compreensão remete sempre a uma condição aporética última (CARVALHO,
2012, p.184).
4.2.2 Tríplice mimese no podcast Serial
Para entender a mediação entre tempo e tessitura da intriga que envolve Serial, vamos
observar cada estágio do ciclo mimético nessa narrativa jornalística. A mimese I se manifesta
a partir da percepção do mundo da ação que precede a construção da narrativa desta série.
Aqui nos referimos à pré-configuração relativa ao agir humano, cuja constituição envolve três
dimensões: estrutural, simbólica e temporal. Para entendermos como se deu a tessitura da
intriga que caracteriza a mimese II, é preciso compreender a ação selecionada por Sarah
Koenig e sua equipe de produção.
A dimensão estrutural do primeiro ciclo da mimese é referente às estruturas
inteligíveis que dão origem ao fazer e às formas de narrar, ou seja, nessa dimensão busca-se
entender como se estrutura a rede que envolve o agir, indo além do conceito simplificado da
ação a ser inserida no processo de narratividade. Para dar início a tessitura da intriga em
Serial, Sarah Koenig seleciona um acontecimento cuja imprevisibilidade quebra a
continuidade de uma ordem cotidiana no passado: o assassinato da jovem Hae Lee em 1999
na cidade de Maryland nos Estados Unidos e a consequente investigação do crime feita pelas
autoridades da época. Nessa instância estrutural da mimese I de Serial, é possível identificar
os motivos, os objetivos, os agentes envolvidos e o contexto do acontecimento destacado pela
série jornalística, o que facilita a compreensão da experiência da prática humana em destaque
e delineia a rede de significados que envolve o mundo da ação. Logo no primeiro episódio do
podcast, a narradora relata que esteve apurando informações para a produção da narrativa
durante o ano anterior ao lançamento da série, o que está diretamente relacionado com a
compreensão da rede estrutural que envolve a ação, a partir da qual a narrativa será
configurada.
Durante o último ano, eu passei todos os dias úteis tentando descobrir onde um
garoto colegial esteve uma hora depois da escola em um dia no ano de 1999 – ou se
você quiser usar um termo técnico, e aparentemente eu quero, onde um garoto
colegial esteve durante 21 minutos após o fim da aula em um dia em 1999. Esta
investigação às vezes parecia indigna da minha parte. Eu tive que perguntar sobre a
vida sexual de adolescentes, onde, com que frequência, com quem, sobre bilhetes
68
que eles trocaram nas aulas, sobre seus hábitos com drogas e seus relacionamentos
com seus pais (All Serial Podcast Transcripts, 2014, episódio 01, tradução nossa). 20
A dimensão simbólica também constitui a pré-configuração da narrativa. A
investigação acerca do assassinato de Hae Lee, que levará a tessitura da intriga na mimese II,
nos mostra um fato que, desde a sua emergência, pertence a um conjunto de signos e regras e
se articula em questões éticas e morais, valores e crenças, ou seja, a ação está inserida em um
processo cultural que determina a construção de sua significação. Na própria narrativa de
Serial, é possível visualizar o sistema simbólico em que se insere o acontecimento do
assassinato e suas consequências para os envolvidos direta ou indiretamente nessa trama da
vida real. Sarah Koenig conta como a história de Adnan e Hae Lee chegou às suas mãos.
Rabia Chaudry, advogada de origem muçulmana e amiga da família de Adnan Syed, enviou
um email para Koenig relatando a história do assassinato de Hae e a consequente condenação
à prisão perpétua do jovem Adnan, condenação esta que Rabia considera injusta, pois acredita
na inocência de Syed. O motivo que levou Rabia a procurar especificamente a jornalista foi
porque na época em que Sarah era repórter do jornal Baltimore Sun (estado de Maryland,
EUA), ela havia produzido uma matéria sobre uma advogada conhecida que tinha sido punida
por roubo de dinheiro de clientes. A advogada sobre a qual Sarah Koenig dedicou algumas
reportagens era a mesma que atendeu Adnan à época das investigações do crime. No email
que enviou à Koenig, Chaudry denunciou que esta advogada tinha sido displicente com o caso
de Adnan, sendo negligente com vários aspectos da defesa para ganhar mais dinheiro com a
apelação. Alguns anos após a condenação à prisão perpétua de Adnan, esta mesma advogada
faleceu. A narradora relata no próprio podcast que não estava acostumada a lidar com uma
história como esta em seu trabalho cotidiano.
Esta conversa com Rabia e Saad [irmão de Rabia e amigo de Adnan], isto foi o que
me fez iniciar a – obsessão talvez seja uma palavra muito forte – que tal dizer, o
fascínio com este caso ao longo do ano. Até o final desta hora, você vai ouvir
pessoas diferentes contando diferentes versões sobre o que aconteceu no dia que Hae
Lee foi assassinada. Mas vamos começar com a versão mais importante da história,
a que Rabia me contou primeiramente. E esta é a versão que foi apresentada no
julgamento. A acusação do Estado contra Adnan ocorreu da seguinte forma. Ele e
Hae estavam saindo juntos desde o baile de formatura. Mas Adnan não poderia estar
namorando de forma alguma. Adnan nasceu nos Estados Unidos, mas seus pais são
do Paquistão. E eles são muçulmanos conservadores – sem beber, sem fumar, sem
20 For the last year, I've spent every working day trying to figure out where a high school kid was for an hour
after school one day in 1999-- or if you want to get technical about it, and apparently I do, where a high school
kid was for 21 minutes after school one day in 1999. This search sometimes feels undignified on my part. I've
had to ask about teenagers' sex lives, where, how often, with whom, about notes they passed in class, about their
drug habits, their relationships with their parents.
69
garotas, tudo isso (All Serial Podcast Transcripts, 2014, episódio 01, tradução
nossa).21
O sistema judiciário que apresenta falhas, as questões religiosas que envolvem os
jovens protagonistas dessa história da vida cotidiana, os hábitos da cultura ocidental em
conflito com os hábitos de sua família são alguns dos elementos que integram o sistema
simbólico permitindo a compreensão do contexto ao redor do caso de Adnan. Todos esses
elementos constituem o estágio de mimese I e conferem à ação uma primeira legibilidade que
demonstram se o caso do assassinato de Hae Lee, sua investigação e acusação de Adnan são
passíveis de se tornarem uma transposição poética em termos de sua configuração narrativa.
Juntamente com a rede conceitual da ação e o sistema simbólico em que ela se insere,
estão as estruturas temporais que compõem as três dimensões da mimese I ricoeuriana. Tais
aspectos do tempo encontrados na experiência prática funcionam como indutores da tessitura
da intriga em mimese II. Em Serial, a relação com a temporalidade mais obvia a ser apontada
é pelo passado, já que se trata de uma história da vida cotidiana que ocorreu há mais de 15
anos. Porém, Ricoeur usa o triplo presente de Santo Agostinho como referência ao tratar do
mundo da ação. Para o filósofo, a forma como o presente do passado, o presente do presente e
o presente do futuro se relacionam são determinantes para o desenrolar da configuração
poética da ação. Assim, ao considerarmos o acontecimento narrado no podcast, estas relações
temporais se apresentam de forma a impactar este triplo presente, ao pensarmos no momento
em que ocorreu o assassinato, sua repercussão à época do crime e no momento mais atual, no
qual Sarah Koenig recebe em seu email um relato de alguém próximo aos atores envolvidos
diretamente – Rabia Chaudry, amiga da família de Adnan. Nos deparamos, então, com um
acontecimento que quebrou a ruptura linear do tempo, já que se trata de um assassinato e suas
consequências, seu alcance no presente – momento em que a jornalista Sarah Koenig toma
conhecimento da história – e seu impacto em um futuro, quando Sarah e sua equipe de
produção analisam se este fato é digno de ser transposto a um processo de narratividade e,
consequentemente, definirem a forma como será composta esta narrativa. Todos estes
aspectos temporais da pré-configuração da série jornalística de Serial se interrelacionam e
21 This conversation with Rabia and Saad, this is what launched me on this year long-- "obsession" is maybe too
strong a word-- let's say fascination with this case. By the end of this hour, you're going to hear different people
tell different versions of what happened the day Hae Lee was killed. But let's start with the most important
version of the story, the one Rabia told me first. And that's the one that was presented at trial. The state's case
against Adnan went like this. He and Hae had been going out since junior prom. But Adnan wasn't supp osed to
be dating at all. Adnan was born in the US, but his parents are from Pakistan. And they're conservative Muslims -
- no drinking, no smoking, no girls, all that.
70
estão inseridos na mediação simbólica e dimensão estrutural do acontecimento selecionado
para a configuração narrativa da série.
É a partir desse primeiro ciclo da tríplice mimese que se desenvolve a transformação
de um assassinato ocorrido nos EUA há mais de 15 anos em um discurso narrativo que irá
circular pelas redes sociais digitais e atingirá diversos receptores-usuários. Ao avançarmos
para a mimese II no podcast, encontramos o papel desta mediação, em que por meio da
narrativa de Serial, os ouvintes tomam conhecimento da estrutura, simbolização e
temporalidade que envolve o assassinato da jovem Hae Lee e suas consequências
(investigação do crime e condenação de Adnan), o que possibilita a emergência de novos
sentidos construídos a partir das múltiplas interpretações acerca deste acontecimento e de sua
narração.
Em conjunto com este papel mediador está o ato de configuração da narrativa, na qual
encontramos a presença marcante da voz da narradora Sarah Koenig, que conduz a atividade
mimética e realiza a costura da história principalmente por meio do resgate da memória com
diversos depoimentos em áudio, sejam eles de pessoas que vivenciaram o acontecimento à
época – Adnan Syed, familiares dele e da vítima, amigos da escola, professores, etc - ou de
pessoas que analisam o caso de outro ponto de vista, como advogados e psicólogos que só
tomaram conhecimento deste acontecimento através da equipe de produção do podcast. Junto
com as entrevistas realizadas por Koenig, há também o uso de informações apuradas de
documentos da investigação policial – diário pessoal da jovem assassinada, documentos de
autoridades e do julgamento, entre outros – para a elaboração desta narrativa jornalística. A
cronologia do crime, a credibilidade de algumas testemunhas e a própria imagem do acusado
são colocados em questão pela narradora no podcast.
A tessitura da intriga emerge no tempo narrativo de Serial, materializada na voz
narrativa de Koenig. No segundo episódio da série, a jornalista se posiciona a respeito da
investigação do acontecimento destacado pelo podcast, levanta muitas suspeitas e indica
como será a continuidade da narrativa jornalística tecida por ela.
A esta altura, eu vou dizer claramente que eu não banco a ideia do motivo deste
assassinato, pelo menos não da forma como o Estado explicou. Eu simplesmente não
vejo assim. Nenhuma pessoa disse que ele estava agindo de forma estranha depois
que eles terminaram. Ele e Hae, novamente levando tudo em consideração, ainda
eram amigos. Ele estava interessado em outras garotas. Ele estava trabalhando. Ele
estava a caminho da universidade. Cerca de duas semanas após sua prisão, ele
recebe um pacote com orientações da Universidade de Maryland. Eu não acho que
ele era um garoto de alma vazia que traiu sua família e religião e tinha sido deixado
sem nada naquele momento e conjurou uma fúria assassina a uma garota que partiu
seu coração. Eu simplesmente não banco essa ideia. E a razão pela qual eu não
acredito nisso é porque ninguém que o conhecia naquela época ou agora, afirma que
71
foi assim que aconteceu. Eu quero deixar claro, no entanto, que isso não significa
que ele não fez. Simplesmente significa que, até o momento, acho que a versão do
Estado sobre por que ele matou Hae não se sustenta (All Serial Podcast Transcripts,
2014, episódio 2, tradução nossa). 22
A composição da intriga de Serial parte da seleção de um fato singular de uma ordem
mundana e sua inserção em uma outra temporalidade, pertencente à narrativa da série
jornalística. O trecho abaixo exemplifica como a narração transita entre a temporalidade
referente à época do crime - resgatando gravações referentes aos detetives responsáveis pela
investigação questionando a testemunha do caso (Jay) no julgamento – e a temporalidade
mais ligada ao presente em que se encontra o receptor-usuário.
Sarah Koenig: Aqui está a gravação de Jay sendo entrevistado pelo detetive Greg
MacGillivary. Detetive Greg MacGillivary: Esta conversa, o que ele disse a você?
Jay: Bem, ele me disse que ela partiu o coração dele, que era extremamente errado
alguém o tratar daquele jeito. Hum, que ele não pode acreditar em como ela parou e
o encarou face a face e disse a ele que não o amava e poderia ser tão sem coração e
ele me contou quase brincando “Eu acho que vou matá-la, sim, eu acho que vou
matá-la”. Detetive Greg: Você não sabia como ele ia matá-la. Jay: Não. Não.
Detetive Greg: Mas ele te contou que ia, que ia matá-la. Jay: Sim. Detetive: Porque
ela tinha partido seu coração. Jay: Sim. Sarah Koenig: Mas quase todo mundo com
quem eu conversei, amigos de Adnan e professores, disseram que ele lidou com o
término como qualquer um lidaria. O amigo de Adnan Mac Francis disse que Adnan
inicialmente estava devastado e com ciúmes do novo namorado. Disse que ele
resmungou sobre isso de um jeito típico de um cara, nada estranho. Todo mundo
com quem eu conversei disse alguma versão disso, que ele não estava cheio de raiva
ou vingativo. Ele estava simplesmente triste (All Serial Podcast Transcripts, 2014,
episódio 02, tradução nossa).23
O ouvinte do podcast constrói significações acerca do caso que envolve o assassinato
de Hae Lee à medida que vai acompanhando a sequência dos 12 episódios da série. A
22 At this point, I’m going to say flat out that I don’t buy the motive for this murder, at least not how the State
explained it. I just don’t see it. Not one person says he was acting strangely after they broke up. He and Hae,
again by all accounts were still friends. He was interested in other girls. He was working at his job. He was
headed to college. About two weeks after his arrest, he gets an orientation packet from the University of
Maryland. I don’t think he was some empty shell of a kid who betrayed his family and his religion and was now
left with nothing and conjured up a murderous rage for a girl that broke his heart. I simply don’t buy it. And the
reason I don’t buy it is because no one who knew him, then or now, says that’s how it was. I want to be clear,
though, that that doesn’t mean he didn’t do it. It just means that so far, I think the State’s story about why he
killed her doesn’t hold up. 23
Sarah Koenig: Here’s tape of Jay’s being interviewed by Detective Greg MacGillivary. Detective Greg
MacGillivary: this conversation, what did he tell you? Jay: Um, he told me that she had broke his heart, that it
was extremely wrong for anyone to treat him that way. Um, that he couldn’t believe how she stood and looked
him face to face and told him she didn’t love him and could be that heartless and he told me that almost joking “I
think I’m going to kill her, yeah, I think I’m going to kill her.” Detective Greg MacGillivary: You didn’t know
how he was going to kill her. Jay: No. No. Detective Greg MacGillivary: But he told you that he was, he was
gonna kill her. Jay: Yes. Detective Greg MacGillivary: because she had broken his heart. Jay: Yes. Sarah
Koenig: But nearly everyone I’ve spoke with, Adnan’s friends and teachers say he took the breakup like anyone would. Adnan’s friend Mac Francis said Adnan initially was devastated and jealous about the new boyfriend.
Said he grumbled about it in a typical guy way, nothing strange. Everyone I talked to said some version of this,
that he wasn’t rage filled or vindictive. He was just sad.
72
conclusão da história narrada estabelece um ponto temporal em que o receptor pode
compreender uma totalidade inteligível da intriga e, consequentemente, gerar os sentidos
acerca do acontecimento midiatizado no podcast. Quando tratamos da conclusão da narrativa
de Serial não significa que há uma previsibilidade - inclusive Sarah Koenig deixa bem claro já
no começo da série que não é sua intenção solucionar o caso que envolve Adnan e Hae. Na
série guiada por Sarah Koenig, encontramos uma intriga que agrega vários episódios
sucessivos, uma narrativa com sua temporalidade própria, um tempo do mundo da vida que se
constitui de modo narrativo e que, ao alcançar a instância da recepção dos ouvintes da rede,
gera múltiplas leituras sobre o assassinato de uma jovem mulher, a acusação e condenação de
Syed, as falhas do sistema judiciário, as formas de relações sociais e a reflexão sobre o
sistema simbólico que envolve este acontecimento. Ao transformar este acontecimento em
discurso, a série transforma o caso em um acontecimento midiatizado, estabelecendo, na
dimensão simbólica, possíveis novos significados e interpretações.
O ciclo da mímesis se completa justamente com essas novas leituras que são realizadas
pelo ouvinte de Serial. É a partir desta integração ativa do receptor do podcast com a trama
narrada, desta interseção entre o mundo configurado e o mundo do ouvinte, que são geradas
as mais diversas interpretações acerca do acontecimento que envolve o assassinato da jovem
Hae Lee e a consequente condenação de Adnan Syed. Em nosso entendimento, é possível
observar a manifestação da mimese III da série jornalística a partir da repercussão nas redes
sociais digitais, nas quais o público consumidor do podcast gerou intensos debates a respeito
da história abordada.
Após a circulação do caso de Adnan pela rede digital, deu-se início a uma série de
discussões acerca deste acontecimento midiatizado. Exemplo disso está na ampla mobilização
dos receptores de Serial através de discussões nas redes sociais. Um exemplo de rede em que
se observou a manifestação da mimese III de Ricoeur foi o Reddit24
, na qual se encontram
mais de 50 mil25
usuários cadastrados somente para debater o podcast Serial e os impactos do
acontecimento da história de Adnan nos dias atuais.
O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do
caso de Adnan Syed, mesmo quase duas décadas depois de sua condenação. Com o sucesso
24 <http://www.reddit.com> é um site que funciona como uma rede social, na qual se estabelece as mais variadas
discussões em relação a qualquer conteúdo divulgado na Internet. Todos os posts de temáticas proposto por
algum usuário desta comunidade estão sujeitos a comentários e pontuação de outros que utilizam esta rede. Isso
define o posicionamento por relevância de debate no Reedit e, caso haja uma avaliação muito negativa na
pontuação, o post pode ser até mesmo excluído da página. 25
Dado extraído da página oficial de debate do podcast Serial no Reddit em
<http://www.reddit.com/r/serialpodcast>. Último acesso no dia 08/07/2017.
73
do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por milhões de pessoas ao redor do
mundo. A transformação do acontecimento em discurso gerou impacto nos dias atuais após a
reverberação da série jornalística pelas redes. Em menos de dois anos após a divulgação do
podcast, um novo acontecimento emergiu na dimensão do mundo da vida: um novo
julgamento foi autorizado pela justiça do Estado de Maryland (EUA), 16 anos após Adnan
Syed ser preso.
Em 2010, a defesa de Adnan Syed havia entrado, pela primeira vez após a
condenação, com uma petição à Justiça do Estado de Maryland, com o intuito de obter um
novo julgamento. Em dezembro de 2013, a Justiça norte-americana deu uma resposta negativa
ao recurso. Após a divulgação de todos episódios da série jornalística nas redes sociais
digitais, um novo advogado de Adnan entrou com uma segunda petição em novembro de
2015, sendo que novas provas começaram a ser apresentadas em fevereiro de 2016. A defesa
argumentou que a advogada Cristina Gutierrez, que o defendera anteriormente, havia sido
negligente com seu cliente. Com as novas argumentações apresentadas pela nova equipe de
defesa de Adnan, o juiz responsável pelo caso, o mesmo que havia negado o recurso em 2013,
decidiu reabrir o processo. Assim, no dia 30 de junho de 2016, a Justiça de Maryland
concedeu a Adnan Syed, hoje com 36 anos e preso desde os 19, o direito a um novo
julgamento. No dia 5 de julho de 2016, após a decisão da Justiça de Maryland, Sarah Koenig
escreveu um relato no blog oficial de Serial (KOENIG, 2016) em que conta que, após a
divulgação de um episódio da série, Adnan ainda estava otimista, mesmo com o recurso
negado pelo juiz em 2013, sendo que ele ainda acreditava que se alguém investigasse o seu
caso mais a fundo poderia ter novas chances. E, segundo a narradora, foi exatamente o que
aconteceu, já que após a divulgação desta conversa por telefone com Adnan, muitas pessoas,
como repórteres, advogados, detetives e outros especialistas se interessaram pelo caso, e mais
adiante o juiz Welch também deu uma segunda chance e reavaliou as novas argumentações da
defesa de Adnan. É inegável que a ampla construção de sentidos das mediações em torno de
Serial (o que se pode associar à noção da mimese III de Ricoeur) foi um dos fatores
determinantes para a emergência deste novo acontecimento na dimensão do mundo da vida.
Os modos como se desenvolve a ampla produção de sentidos são nosso objeto de
principal de atenção, em busca de entender como o acontecimento em destaque na série
jornalística de Serial é transformado em discurso jornalístico (acontecimento midiatizado),
circula por meio do microdispositivo podcast e faz emergir diversas leituras e interpretações
pelo seu público nas redes sociais digitais. Assim, a análise dessa dissertação consistirá na
forma como este acontecimento foi configurado em uma narrativa e na relação entre a
74
emergência de um novo acontecimento (novo julgamento de Adnan após quase duas décadas
da condenação e após repercussão de Serial) e a ampla negociação de sentidos percebida entre
os receptores das redes sociais digitais. No entanto, faz-se necessário uma revisão teórica
sobre a noção de acontecimento, os discursos que sobre ele são construídos e sua relação com
a tríplice mimese de Paul Ricoeur, antes de iniciarmos nossa análise nas instâncias de
produção e de recepção do podcast Serial.
4.3 A construção do acontecimento
Compreender o conceito de acontecimento nos ajuda a entender como este se constitui
em um elemento fundamental de composição dos enunciados jornalísticos. Tal conceito se faz
presente nas reflexões do sociólogo francês Louis Quéré (2012) sobre a dupla vida do
acontecimento. O sociólogo define o acontecimento como aquilo que sobressai, o que vem a
ser, o devir, ou seja, são fatos que provocam ruptura na ordem mundana, introduzem uma
diferença e geram sentidos. O autor ressalta que só é possível descrevê-lo e narrá-lo ao
delimitar um começo e um ponto final, o que significa formulá-lo como intriga. Importante
ressaltar que a primeira vida diz respeito ao acontecimento em sua essência, porém Quéré
pontua que apesar de uma mudança existencial se caracterizar como um vir a ser, não
significa que esta mudança na ordem da vida seja um acontecimento propriamente dito, pois
para se transformar em um acontecimento é necessário que esta ocorrência mundana seja
objeto de atenção para um observador no entorno e que se transforme alvo de observação por
meio de investigação e julgamento.
Quéré identifica então o acontecimento-existencial (mudanças produzidas no nosso
entorno) e o acontecimento-objeto (referentes à consciência, pensamento, discurso,
investigação e julgamento) e defende que ambas as formas coexistem na experiência prática
humana. Isso significa que qualquer acontecimento-existencial tem potencial para ser
convertido em objeto de julgamento, o que possibilita aos atores sociais intervirem no curso
destes acontecimentos, amenizando ou expandindo seu impacto na dimensão da vida em que
tal ocorrência irrompeu. Para o autor francês, isso demonstra que o mundo não se constitui de
forma puramente substancial, mas sim de processos e emergências.
A segunda vida diz respeito, portanto, ao potencial da comunicação em transformar as
características imediatas do acontecimento em objeto de julgamento, produzindo
conhecimento a partir de investigação. A transformação do acontecimento em discurso pode
75
ser responsável pela mudança de patamar do acontecimento existencial (o acontecimento na
sua essência) para um objeto com significados, por meio da análise da natureza, relações com
outros acontecimentos e suas consequências.
Os acontecimentos são transformados em objetos, em coisas com significado. [...]
Além de sua existência original, eles são submetidos a uma experimentação como
ideias: seus significados podem ser combinados e reorganizados ilimitadamente pela
imaginação, e o resultado dessa experimentação interna que é o pensamento pode
entrar em interação com os acontecimentos em estado bruto e não tratados.
Desviadas da torrente rápida e tonitruante dos acontecimentos para um canal calmo
e tranquilo, as significações juntam-se ao fluxo principal, dando-lhe um colorido,
moderando seu ritmo, adaptando-se a seu curso [...] (DEWEY apud QUÉRÉ, 2012,
p.31, grifos do autor).
Ainda de acordo com Quéré, a metamorfose do acontecimento existencial em discurso
faz com que ele adquira novos modos de operação e novas características. Os acontecimentos-
objetos são considerados pelo autor agentes da história a ser narrada. O sentido de um
acontecimento, portanto, se define não só pelo o que o condicionou, como também pela forma
como ele se conecta com outras circunstâncias e situações do mundo da vida. Antecipar as
consequências de um acontecimento só é possível parcialmente, pois é necessário acompanhar
a evolução de uma situação ao transformá-la em narrativa, o que ocorre por meio de
operações de investigações que irão produzir conhecimento acerca de determinado
acontecimento.
Ao reforçar a percepção do sociólogo francês, Vera França (2012), aponta a mídia
como um espaço no qual os acontecimentos podem tanto emergir e se produzir em sua
condição existencial, quanto ganhar uma segunda vida e utilizarem este espaço para serem
repercutidos e adquirirem uma dimensão simbólica.
(...) quando falamos na segunda vida do acontecimento, ou seja, do momento em
que ele ganha uma existência simbólica e se transforma em discurso, podemos
constatar que isto pode se dar tanto nas rodas de conversa quanto nas esferas
midiáticas. Contudo, dando-nos conta de que a mídia é a instituição central pela qual
a sociedade fala de si mesma, a si mesma, forçoso é constatar que é principalmente
neste domínio que os acontecimentos são revividos e ganham sua existência
simbólica. E às vezes essa segunda vida é tão transformadora, e causa tanto impacto,
que ela atua igualmente (e novamente) como acontecimento existencial – este, por
sua vez, será comentado, e se transformará, de novo, numa segunda vida, numa
espiral crescente (FRANÇA, 2012, p.16).
Um acontecimento em sua essência traz marcas do que já foi vivido em outras
situações, ou seja, ele integra o repertório de quem é atingido (de forma direta ou indireta)
pela ocorrência. Quando se vivencia uma situação ou circunstância marcante na ordem
cotidiana, são as imagens simbólicas registrada em nosso repertório que permitem que se
estabeleça a conexão entre os diversos acontecimentos que irrompem na dimensão da vida. E
76
isto demonstra como essas duas vidas coexistem, gerando um ciclo em espiral, como
apontado por França (2012), pois, da mesma maneira, o acontecimento simbólico
(configuração narrativa) também apresenta marcas do que já foi vivido, já que a experiência
do narrador também é traduzida dentro da forma discursiva de uma ocorrência da vida.
O pesquisador português Adriano Duarte Rodrigues (1993) também envereda pela
discussão do acontecimento e sua transformação em discurso com maior ênfase no campo do
jornalismo. O autor apresenta em seus estudos os conceitos de acontecimento e meta-
acontecimento. Antes de abordar a relação com as narrativas jornalísticas, Rodrigues traz
primeiramente a definição de acontecimento como “tudo aquilo que irrompe na superfície lisa
da história de entre uma multiplicidade aleatória de fatos virtuais” (RODRIGUES, 1993,
p.27).
Ao aplicar este conceito no discurso jornalístico, o autor considera o acontecimento
como uma espécie de ponto zero da significação, que constitui o referente a partir do qual se
elabora uma construção narrativa. O acontecimento jornalístico é considerado pelo
pesquisador inversamente proporcional à sua probabilidade de ocorrência, pois quanto menos
previsível for, maiores serão as chances de integrar esta categoria discursiva. Assim, a função
deste tipo de narrativa é a de enquadrar e regular o imprevisível, uma forma de racionalizar o
que de irracional pode acontecer. O que parece uma contradição é, na verdade, responsável
por dar forma e gerar sentidos às inúmeras ocorrências que emergem na ordem do cotidiano.
Adriano Rodrigues chama a atenção para a emergência de uma segunda categoria de
acontecimentos no mundo em que vivemos: os meta-acontecimentos, os quais surgem pela
tessitura do discurso jornalístico. Este tipo de discurso funciona como um dispositivo de
visibilidade universal, no qual se garante a notoriedade do mundo da experiência das pessoas,
das coisas, das instituições. O autor define os meta-acontecimentos como fatos discursivos, e,
portanto, inscritos na ordem da visibilidade simbólica da representação cênica. “São factos
discursivos e, como tais, associam valores ilocutórios a valores perlocutórios, na medida em
que acontecem ao serem enunciados e pelo facto de serem enunciados” (RODRIGUES, 1993,
p. 29-30). O meta-acontecimento se concretiza por meio da realização técnica das instâncias
enunciativas que associam o sujeito e o objeto da enunciação, sendo, pois, “um discurso feito
ação e uma ação feita discurso” (RODRIGUES, 1993, p.30).
Afirmar que o meta-acontecimento realiza um ato ilocutório significa que através do
acontecimento relatado, os media produzem um novo acontecimento que também integram o
mundo da vida. Um relato não se trata de uma mera locução, ele é elaborado a partir de um
acontecimento existencial e, após sua circulação, pode retornar como uma nova ocorrência
77
envolvendo diversos atores sociais. Importante ressaltar que este ato apresenta valores
inerentes ao discurso que integram a enunciação, tais como credibilidade relacionada à
instância responsável pela locução, clareza dos fatos expostos no relato, coerência de
argumentação, capacidade de satisfação ao produzir esclarecimentos acerca de um fato. Todos
esses valores são inseparáveis do discurso proferido pelo meta-acontecimento e são
responsáveis pela significação gerada ao alcançar a instância da recepção. Além do ato
ilocutório, o meta-acontecimento também associa o ato perlocutório, o que significa a
produção de um novo estado das coisas ao se realizar uma enunciação. Não se tratam de
meras constatações do estado dos fatos relatados que passarão por uma verificação, e sim, de
enunciações que geram significações apenas pelo fato de enunciarem, produzindo um novo
estado de existência, caracterizando o próprio discurso midiático como um acontecimento
existencial. Isso demonstra como a esfera midiática exerce um poder transformador no mundo
por meio dos atos ilocutórios e perlocutórios de suas enunciações, podendo a partir dos meta-
acontecimentos produzidos gerar novos acontecimentos existenciais que retornam e causam
novos impactos na sociedade.
O conceito de meta-acontecimento possui estreita relação com as reflexões de Louis
Quéré sobre a transformação do acontecimento em objeto de investigação e julgamento. A
série jornalística do podcast Serial nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre as
circunstâncias em que o relato sobre o acontecimento parece se autonomizar em relação a
este, gerando novos acontecimentos, agora de natureza midiática. Ao transformar este
acontecimento em um meta-acontecimento por meio da construção do podcast, a série
institui-se e transforma o caso em um acontecimento midiatizado, estabelecendo, na dimensão
simbólica, possíveis novos significados e interpretações que assim não se deram à época do
assassinato.
A delimitação de um acontecimento para transformá-lo em narrativa está diretamente
ligada à temporalidade que a envolve. A construção de uma narrativa jornalística que elabora
um meta-acontecimento configura uma quebra no tempo linear, uma vez que ao circular em
nosso presente, o acontecimento discursivo também convoca um passado e também influencia
e ressignifica o futuro.
Quando Quéré (2012) afirma que narrar um acontecimento significa formulá-lo como
intriga delimitando um começo e um ponto final, nota-se a importância da instância temporal,
que será responsável por delimitar séries ou ciclos, atribuindo um desenvolvimento entre o
início e o fim da narração configurada. No caso do jornalismo, essa articulação do tempo em
um modo narrativo não é diferente. As narrativas jornalísticas, embora se constituam a partir
78
de modos bem particulares de tornar conhecidos os acontecimentos, são também formas de
atualização e, ao mesmo tempo, de registro histórico ao narrar as ações humanas no cotidiano.
Ressaltamos aqui a relação temporal que o sociólogo francês destaca como uma das
características do acontecimento. Para Louis Quéré, a narração de um acontecimento pode
modificar o passado, já que o presente (momento em que o acontecimento existencial se
transforma em acontecimento-objeto) também sofreu alterações com a configuração da
narrativa e seu alcance aos receptores. Então, o passado começa a ser re-visto de um novo
ponto, já que o acontecimento narrado busca investigar o que provocou e condicionou o
acontecimento existencial e assim, cria um futuro, pois há um interesse nas consequências de
sua reaparição e como ela vai gerar novos significados aos receptores.
Um acontecimento do passado - o assassinato da jovem Hae Lee nos Estados Unidos
em 1999 e a condenação à prisão perpétua de seu ex-namorado, Adnan Syed – conduz a
narrativa jornalística do podcast Serial, que constrói um tempo narrativo que faz um resgate
da história de uma ruptura de um cotidiano de quase duas décadas atrás e o desloca para o
presente dos receptores-usuários, ou seja, o podcast reagenda o acontecimento do assassinato
no tempo atual. Retomando a definição da tríplice mimese, para os sentidos desta história se
definirem, é também essencial, que os acontecimentos sejam percebidos a partir da tessitura
da intriga que os constituem.
Se o tempo é um dos elementos fundamentais de referência para a narrativa, ao
coordená-lo com a noção de intriga, evidencia-se que, na narrativa, o tempo não
corresponde necessariamente ao do acontecimento. O tempo passa a ser o da própria
narrativa, de que pode valer-se o narrador de estratégias que permitam alongar ações
que no acontecimento tiveram pequena importância, encurtar ações que duraram
mais do que sugere o tempo utilizado para narrá-las, fazer remissões ao passado,
assim como projeções no futuro, dentre uma série de outros expedientes
(CARVALHO, 2012, p.173).
No momento em que o acontecimento é inserido em uma narrativa jornalística, a
ruptura do cotidiano a que ele se refere é recontextualizada em uma dimensão com outros
novos significados. De acordo com Elton Antunes (2009), a transformação do acontecimento
em acontecimento jornalístico demanda a construção de um discurso que gera sentidos a partir
de um enredamento de causas, objetivos, motivos e sujeitos da ação. No caso de Serial, cabe
lembrar que o efeito de “presentificação” parece estabelecer uma circunstância ainda maior de
complexidade para pensarmos todo esse processo. Mais de uma década e meia depois, a série
de reportagens retoma um acontecimento cuja história, mesmo para a sociedade já, em
termos, havia chegado ao fim. Serial não apenas efetua um trabalho de significação em
termos de uma textualidade jornalística do acontecimento e seus detalhes, e também em
79
termos de suas ausências de uma “verdade”, mas atua no sentido de fazer voltar ao que
Charaudeau (2006b) denomina de macrodispositivo conceitual da informação, ou seja, a
própria agenda pública, o caso do assassinato da jovem Hae Min Lee.
A relação entre temporalidade e construção do acontecimento no microdispositivo
podcast se diferencia dos meios massivos de comunicação. O teórico francês Jean-Louis
Weissberg (2004) questiona a cultura do tempo real, da instantaneidade e velocidade da
informação com a predominância da teleinformática26
. Para o autor, as teletecnologias
modificam o regime temporal, uma vez que estas mídias digitais exigem uma atenção própria
no tratamento da informação, com formas que podem demandar uma maior durabilidade e
detalhamento em oposição ao fluxo informacional da objetividade e velocidade do “tempo
real”. Weissberg ressalta que as atividades comunicacionais não giram totalmente em torno da
programação de um fluxo independente de produtores de conteúdo, pois as teletecnologias
conectadas às redes dependem muito mais do jogo da interação dos seus usuários do que os
meios massivos. Assim, apesar da agilidade que as teletecnologias propiciam ao tratamento da
informação, a sua apropriação fica mais lenta. A onipotência do imediatismo do regime
temporal que caracteriza a teledifusão de textos, sons e imagens não é mais predominante nas
mídias digitais, ela cede lugar a regimes de difusão de informação e conhecimento que
privilegiam o tempo diferido, variabilidade de durações e espaço para atuação do receptor-
ativo que estabelecerá interações com outros receptores a partir do conteúdo que circula nas
redes.
Com a postura interativa, já se viu, o transporte imaginário articula-se mais
nitidamente com as dimensões corporais (encadeamentos de gestos, de visão, de
audição próprios do exercício da interação). No universo das narrações interativas,
por exemplo, os transportes obrigam o espectador-ator a tomar-se como objeto de
questionamento, convocam-no à escolha, à decisão, ou ainda à exploração da tela,
tudo isso ordenado por um motor narrativo que organiza a pluralidade dos percursos
possíveis. Essa confrontação faz alternarem as fases de adesão/penetração na
narração e de descolamento – pesquisa cega por cliques exploratórios – ou de
tomada de decisão em uma série explícita de encadeamentos possíveis. Todas essas
posturas provocam uma interpelação muito mais clara que na narração audiovisual e
dão um novo vigor à duração local (WEISSBERG, 2004, p.127-128).
Essa forma de temporalidade exposta por Weissberg se alinha com a temporalidade
verificada na construção do acontecimento do podcast Serial. A constituição narrativa – desde
sua pré-configuração do mundo da ação, configuração poética da intriga e construção de
sentido na instância da recepção dos ouvintes das redes digitais – acerca do acontecimento do
26 Em seus estudos, Jean-Louis Weissberg determina o vocábulo teleinformática como “as incidências culturais
das tecnologias intelectuais atuais baseadas na programática (disponibilidade e difusão de programas
informáticos) e a telepresença” (WEISSBERG, 2004, p.113).
80
assassinato de Hae Lee e a condenação de Adnan Syed, ao circular pelas redes sociais digitais
demonstra a força do jogo de interação estabelecido na instância da recepção. O
microdispositivo podcast e sua forma de circular e reverberar pelas redes sociais digitais se
insere em um regime temporal que vai na contramão da alta velocidade do “tempo real”, com
a apropriação mais lenta do conhecimento e da informação, o que permitiu o debate mais
duradouro entre os ouvintes e usuários das mídias sociais digitais junto com a extensão deste
debate para outros meios de comunicação e pela sociedade.
4.4 Da construção do acontecimento à mimese III
No intuito de verificar como se deu a construção de sentidos nas instâncias de
recepção do podcast Serial, vamos analisar, juntamente com a construção discursiva da série
jornalística, o conteúdo das interações entre os receptores-usuários nas redes sociais digitais
(mimese III) e como estas múltiplas interpretações geraram impacto a ponto de movimentar o
ciclo espiral crescente do acontecimento (meta-acontecimento permitindo a emergência de
novos acontecimentos). Tal análise irá articular todos estes elementos teóricos, porém antes
de iniciá-la é importante fazer a articulação da noção de mimese III de Paul Ricoeur com a
construção do acontecimento trabalhada por Louis Quéré e Adriano Rodrigues.
No encadeamento de nossa reflexão, optamos por conectar a estrutura temporal do
triplo presente e a temporalidade das teletecnologias defendida por Weissberg (2004) às
mimeses de Ricoeur (2010), ao considerarmos o tempo em que se deu o acontecimento
enunciado no podcast – o assassinato da jovem Hae Lee em 1999 e a consequente acusação e
prisão de Adnan em 2000 – e sua constituição narrativa através da própria criação da série por
Sarah Koenig e sua equipe de produção. Neste ponto, percebemos a relação do tempo com a
mimese I - contextualização social do mundo configurado - e mimese II - configuração da
narrativa e papel mediador para o acontecimento avançar para a mimese III. Esta articulação
entre tempo e acontecimento nos mostra o caminho para a terceira mimese, na qual são
geradas as mais variadas leituras e novos debates pelos receptores-usuários, sendo estes
responsáveis pelas diversas formas de ressignificação deste acontecimento abordado nesta
série jornalística.
As múltiplas leituras de Serial são percebidas por meio dos intensos debates nas redes
sociais, as quais, nitidamente, explicitam a comoção do público em torno de uma possível
inocência do acusado, já que muitos desses debates giram em torno da sentença de Adnan, da
81
forma como a justiça norte-americana o condenou à prisão perpétua e de como o público
clama por uma investigação mais justa no intuito de esclarecer as circunstâncias do
assassinato de Hae Lee. Este processo da mimese III - instância relativa à recepção do público
repercutindo Serial nas mídias sociais – vincula-se à temporalidade de Weissberg que permite
intensos debates, apreensão da informação em detalhes e do conhecimento gerado em torno
do acontecimento midiatizado por meio das trocas de conhecimento exercidas na interação.
Louis Quéré nos aponta o caminho para esta articulação entre meta-acontecimento e
mimese III e envereda por essa discussão ao abordar o potencial do meta-acontecimento em
gerar sentidos e, a partir de sua ressignificação pela instância de recepção, ser responsável por
novos acontecimentos que retornam na atualidade em que se insere a narrativa.
(...) o acontecimento-objeto pode retornar no fluxo dos acontecimentos e no
desenrolar das situações a partir do conhecimento adquirido sobre suas condições e
consequências, a partir das modificações suscitadas nos hábitos e comportamentos,
nas instituições ou nos dispositivos de proteção e regulamentação, a partir de
formulação de novas perícias, etc. Ele desempenha uma função de mediação, à
maneira de Mimésis 2, na tríplice Mimésis de Ricoeur (QUÉRÉ, 2012, p.34).
Após a circulação do meta-acontecimento nas mídias digitais e a sua repercussão entre
os receptores-usuários, observou-se, mais de um ano após a divulgação de Serial, a
autorização pela Justiça de Maryland (EUA) de um novo julgamento para Adnan Syed. Esta
emergência de um acontecimento existencial após o meta-acontecimento causou novamente
forte reação dos receptores nas redes sociais diante do novo rumo da história. No dia 30 de
junho deste ano, o perfil oficial de Serial no Twitter27
publicou a informação: “Um novo
julgamento foi concedido a Adnan Syed. Veja a ordem do juiz Welch”28
. A partir desta
publicação nas redes sociais é possível perceber a forte comoção do público que começa a
debater as possibilidades em torno deste novo acontecimento. Somente este post do perfil de
Serial no Twitter recebeu mais de 7 mil retweets e mais de 9 mil curtidas pelos usuários da
rede.
E pelos debates que se estendem após esta publicação do dia 30 de junho, pela web,
podem ser observadas as mais variadas reações acerca deste novo julgamento, como pessoas
que acreditam que a investigação deve ser refeita, mas não necessariamente o acusado é
inocente, além dos que acham injusta essa nova decisão, pois mesmo com os métodos de
acusação questionáveis não há outro desfecho possível para o assassinato da jovem Hae Lee.
27 O perfil oficial do podcast Serial no Twitter está disponível em http://twitter.com/serial 28
Tradução nossa do tweet do perfil oficial do podcast: Adnan Syed has been granted a new trial. Judge
Welch's order: http://bit.ly/295ZbDn
82
No mesmo dia, a usuária @KSofen respondeu ao perfil de @serial: “Absolutamente
absurdo. O cara é totalmente culpado. Vivacidade ilusória e dúvidas irracionais não servem de
base para novo julgamento”29
. O debate se estende após este tweet de @KSofen. A usuária
@permafrost1979 é um exemplo de quem defende um novo julgamento sem necessariamente
considerar Adnan inocente, já que publicou em resposta a @KSofen o seguinte tweet:
“mesmo que ele seja [culpado], o primeiro julgamento foi mal conduzido. Se ele é ‘totalmente
culpado’ deixa o Estado de Maryland provar isso”30
. Em outro tweet a usuária continua sua
argumentação: “só porque nós não conseguimos pensar em outro suspeito plausível, não
significa que Adnan seja culpado”31
.
Outra demanda dos receptores-usuários de Serial pelas redes é que esse novo
acontecimento também se transforme em um acontecimento discursivo, ou seja, ao tomarem
conhecimento do novo julgamento de Adnan, o público da série jornalística começa a pedir à
equipe de Sarah Koenig para acompanhar o desenrolar do caso através de uma possível
cobertura pelo podcast. O usuário @wolwerine6523 publicou em seu perfil: “vocês precisam
cobrir isso, por favor”32
. Outro exemplo está no tweet do usuário Jonathan of Makati
(@Globesvcs) “Por favor Sarah Koenig! Precisamos de episódios de sequência”33
.
O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do
caso de Adnan Syed, mesmo quase duas décadas depois de sua condenação. Com o sucesso
do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por milhões de pessoas ao redor do
mundo. Por isso, o percurso metodológico a ser seguido na análise do objeto empírico desta
dissertação envolverá, no próximo capítulo, o processo de complexificação do acontecimento
no podcast, partindo da própria narrativa que substancia a série, passando pelos processos de
mediação e modos pelos quais esta circula e alcança seu público, gerando ressignificações e
mesmo novas dimensões simbólicas em torno do fato narrado, o que nos indica que, ao
observarmos tal processo comunicacional, é possível notar o surgimento de novos
acontecimentos de natureza não discursiva motivados pela recepção construtiva a que foram
29 Tradução nossa do tweet da usuária do Twitter, Karla (@KSofen), no dia 30/06/2016: @serial Absolutely
absurd. The guy is as guilty as it gets. Misleading vividness and unreasonable doubts no grounds for new
trial. 30
Tradução nossa do tweet da usuária do Twitter, A R (@permafrost1979) em resposta a @KSofen, publicado
no dia 01/07/2016: @KSofen @serial even if he is, the first Trial was botched. if he’s “as guilty as it gets”, let
the State of Maryland prove it. 31
Tradução nossa do segundo tweet da usuária @permafrost1§979 dando continuidade ao debate com @KSofen:
just cuz we can’t think of another plausible suspect, doesn’t mean Adnan is guilty. 32
Tradução nossa do tweet do usuário do Twitter @wolwerine6523, publicado no dia 30/06/2016: @serial you
guys need to cover this please!! 33
Tradução nossa do tweet do usuário do Twitter @GlobeScvs, publicado no dia 30/06/2016: Please Sarah
Koenig! There has to be follow up episodes!!!
85
5 ACONTECIMENTO, NARRATIVA E REVERBERAÇÕES EM SERIAL
O estabelecimento do percurso metodológico de uma pesquisa requer, tão logo
possível, a definição dos principais elementos que o circunstanciarão, a saber, os operadores
conceituais, a delimitação do corpus e as respectivas categorias de análise, iluminados pelas
definições acerca da natureza da pesquisa em desenvolvimento. No caso desta dissertação,
entendemos que se trata de uma pesquisa de caráter qualitativo, que tem como objetivo buscar
compreender os modos e estratégias da construção de sentido que emergem a partir da
produção e circulação da narrativa do podcast Serial e sua consequente reverberação por meio
das interpretações construídas pelos receptores-usuários das redes sociais digitais. É
importante ressaltar que, para completar o ciclo de nossa análise, também será observada a
possível relação da emergência de um novo acontecimento no mundo cotidiano (autorização
de novo julgamento de Adnan Syed em 2016) com a reverberação do meta-acontecimento (o
podcast Serial).
5.1 Considerações metodológicas
Consideramos este trabalho um estudo de caso, na perspectiva de Duarte (2005), para
quem este método, considerado de natureza qualitativa, investiga um fenômeno
contemporâneo dentro de um contexto da vida real. A autora ainda afirma que as questões
mais apropriadas para este tipo de estudo são as do tipo como e por quê. E a partir destas
questões, este método auxilia a definir as evidências relevantes para se estabelecer as
unidades de análise do caso e assim, produzir as inferências necessárias para a pesquisa.
Tratar nossa investigação como um estudo de caso nos auxilia a interpretar o podcast Serial e
contextualizá-lo dentro do pensamento comunicacional, além de auxiliar na elaboração das
categorias que serão detalhadas adiante.
Nosso estudo de caso, portanto, tem natureza qualitativa na concepção ressaltada por
Lucia Santaella (2001), que aponta como principal característica desta modalidade a
investigação e interpretação das significações produzidas acerca de atos e práticas sociais.
Para Santaella, tais pesquisas abarcam um grande número de divisões e subdivisões, porém,
mesmo com toda essa diversidade, elas apresentam como ponto em comum a
interdependência entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a subjetividade do sujeito,
privilegiando assim a interpretação dos dados analisados.
86
A abordagem de nosso objeto empírico - a primeira temporada do podcast Serial –
percebendo-o como um meta-acontecimento (RODRIGUES, 1999), ou seja, aquilo que, ao se
constituir narrativamente pela mediação entre tempo e tessitura da intriga constrói um
enunciado que gera múltiplas ressignificações ao alcançar seu público, tem como ponto de
partida a metodologia operacional da Análise de Conteúdo (AC), acionada para buscarmos
responder a questão que determina o objetivo desta dissertação: como se dão os modos de
construção de sentidos em Serial, perspectivando-os a partir da relação das estratégias de
enunciação e das formas de recepção desta narrativa?
De acordo com Martin W. Bauer (2002), a AC é um método de análise de texto que se
desenvolveu no campo das ciências sociais empíricas. Tal técnica encontrou forte
acolhimento no campo comunicacional, sendo considerada uma técnica híbrida, que se utiliza
tanto do formalismo estatístico (quantificação de dados), quanto da análise qualitativa de
materiais.
A Análise de Conteúdo aplicada à pesquisa em comunicação corresponde então a uma
operação de investigação com o objetivo de formular inferências (dedução de maneira lógica)
referentes aos conhecimentos sobre a instância emissora e/ou sobre o destinatário de um
processo comunicacional, a partir da observação e tratamento de certos dados do objeto de
estudo organizados em categorias pré-estabelecidas no planejamento da pesquisa proposta.
Em suma, é possível estabelecer o percurso metodológico por meio das três etapas da
AC de acordo com Laurence Bardin (2016): a primeira fase diz respeito ao tratamento
descritivo do objeto; a segunda ao estabelecimento das categorias que permitem a organização
dos elementos constitutivos da mensagem analisada; e a terceira e última etapa do
procedimento diz respeito ao tratamento dos dados organizados nas categorias estabelecidas,
que induzirão às inferências e interpretações da realidade estudada.
A descrição do podcast Serial (capítulo 2) e a revisão teórica (capítulos 3 e 4)
estabelecida até este ponto nesta reflexão apontam para a relação das instâncias de enunciação
e recepção deste microdispotivo (CHARAUDEAU, 2006b) inserido no contexto das mídias
digitais, mais especificamente para a constituição narrativa de um acontecimento do passado
(assassinato de Hae Lee, investigação do crime e condenação de Adnan Syed) transformado
em um discurso jornalístico que circula pelas redes e que, ao alcançar os seus receptores-
usuários, é responsável pela produção de novos sentidos que não necessariamente se deram à
época deste acontecimento.
Para esta abordagem, que tem o objetivo de ir ao encontro da pergunta que move nossa
investigação, a saber, como ocorre a construção de sentidos neste processo comunicacional
87
proporcionado pelo microdispositivo, partimos de uma escuta exploratória do podcast. Tal
observação atenta à integralidade de Serial proporcionou-nos a possibilidade de selecionar
trechos da narrativa que consideramos os mais relevantes e representativos em termos das
questões que levantamos acerca do podcast. Tal processo foi fundamental para que
chegássemos à definição de nossas categorias analíticas. Assim, articulando nossa caminhada
em termos de reflexão conceitual com o mapeamento exploratório de nosso objeto, sob a luz
da hipótese que guiou essa investigação, estabelecemos a constituição de três categorias de
análise, por meio das quais procedemos a abordagem e interpretação deste podcast: a)
construção dos elementos narrativos – descrição, tematização, modos de locução, linguagem e
temporalidade do discurso; b) função do testemunho – como Sarah Koenig faz uso das
entrevistas, depoimentos e documentos para a tessitura da narrativa; e, por fim, c) ativação
dos lugares de fala – reflexão sobre como o discurso jornalístico da série é elaborado a partir
da função de locução da jornalista Sarah Koenig, como são acionados os depoimentos dos
entrevistados e como o discurso é direcionado aos seus destinatários pela ótica da narração.
Por fim, consideramos necessário ainda nos valermos da noção de radiofonia
expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) e as possibilidades de práticas interacionais
proporcionadas pelo podcast inserido nesse novo cenário da comunicação radiofônica nas
plataformas digitais para se pensar na forma como o discurso jornalístico da série pode
impactar os receptores-usuários. Como o material de análise circula quase que em sua
totalidade nas mídias digitais, optamos por não nos deter numa visada mais clássica da AC e
acionar, em conjunção, uma metodologia da Análise de Conteúdo Digital, que, de acordo com
a proposição de Thaïs de Mendonça Jorge (2015), é uma adaptação da AC ao meio digital das
comunicações e se desenvolve principalmente pelo uso da rede mundial de computadores
como fonte de informação (uso de motores de busca) e pesquisa na Internet. A autora ainda
afirma que “as redes sociais já são dotadas de ferramentas que permitem fazer Análise de
Conteúdo e são um filão a mais para as pesquisas em Comunicação e no Jornalismo”
(JORGE, 2015, p.273). E é justamente com esse olhar para as redes sociais que procedemos a
esta análise aqui proposta em busca de compreender as práticas interacionais que emergem da
circulação do conteúdo radiofônico digital e a ressignificação do conteúdo enunciado no
podcast ao alcançar seu público, tomando como referência teórica a mimese III de Paul
Ricoeur (2010).
A observação das reverberações será feita no seguinte ambiente das redes sociais
digitais: o Reddit - uma rede social que funciona como uma comunidade virtual, na qual se
estabelece as mais variadas discussões em relação a qualquer conteúdo divulgado na Internet.
88
Todos os posts de temáticas proposto por algum usuário desta comunidade estão sujeitos a
comentários e pontuação de outros que utilizam esta rede. Isso define o posicionamento por
relevância de debate no Reedit e, caso haja uma avaliação muito negativa na pontuação, o post
pode ser até mesmo excluído da página. Por se tratar de uma rede com mais de 50 mil
usuários cadastrados34
somente para debater o podcast, vamos selecionar apenas uma
discussão compreendida em período próximo ao de divulgação de Serial (entre outubro e
dezembro de 2014) e com relevância de debate demonstrada pela pontuação dada pelos
próprios usuários desta rede.
5.2 A configuração narrativa em Serial
Entender as mediações que Serial estabelece com o conjunto social, a partir do seu
discurso jornalístico, passa pela compreensão da ampla negociação de sentidos que emerge
principalmente das práticas interacionais entre seus receptores-usuários em torno do
acontecimento midiatizado pela série jornalística. No entanto, para a compreensão de todo o
processo comunicacional que envolve a atividade mimética em torno da investigação do
crime da jovem Hae Lee em 1999, é preciso analisar a instância de recepção, entendida, claro,
em suas circunstâncias do ambiente digital, em conjunto com a enunciação do discurso e
iniciar a investigação proposta nesta dissertação a partir da configuração narrativa
estabelecida pelos profissionais da rádio pública WBEZ Chicago (a narradora Sarah Koenig e
a equipe de produção da série). Seguimos, então, para as três categorias analíticas que nos
auxiliarão a refletir sobre o processo de tessitura da primeira temporada da série jornalística.
5.2.1 A construção dos elementos narrativos
Ao compreendermos a narrativa da primeira temporada de Serial como um discurso
jornalístico, é possível analisar a transformação do acontecimento em meta-acontecimento por
meio da identificação de elementos vitais para o efeito de real desencadeado pelo processo
mimético da construção deste podcast. O elemento essencial para a configuração da trama de
Serial é a descrição, que é uma característica fundamental no discurso jornalístico para
representar uma realidade, ou seja, a descrição se apresenta como recurso fundamental do
34 Dado extraído da página oficial de debate do podcast Serial no Reddit em <www.reddit.com/r/serialpodcast>.
Último acesso no dia 08/07/2017.
89
desenrolar da atividade mimética – sendo resgatado aqui o conceito aristotélico de mimese
acionado por Ricoeur (2010), referente à imitação em seu sentido metafórico, como
representação de uma realidade.
Maurice Mouillaud e Jean-François Tétu (2013) destacam a importância do elemento
descritivo no discurso jornalístico ao afirmarem que “se a narrativa pode ser definida como o
‘sentido que se transforma’, a descrição é o momento em que a narrativa se detém para que o
sentido possa ser armazenado: a descrição é a memória da narrativa” (MOUILLAUD e
TÉTU, 2013, p.104). Em Serial, a descrição movimenta toda a estrutura narrativa, sendo que,
a todo momento, a narradora Sarah Koenig aciona este elemento para detalhar ambientes em
que se passa o acontecimento, fazer referências aos personagens envolvidos direta e
indiretamente na história que envolve o assassinato da jovem Hae Min Lee e a investigação
deste crime, indicar motivações psicológicas, criar imagens de ambientes em que se deram os
acontecimentos retratados na história, tudo isso no intuito de, enfim, demarcar signos que
constituem a temática abordada no podcast, funcionando como uma espécie de agente da
organização do discurso.
Pode-se, logo no primeiro episódio, observar o uso da descrição pelo simples relato na
voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. A narradora expõe aos receptores-usuários do
podcast que havia tomado conhecimento do assassinato e a forma como foi conduzida a
investigação deste crime por meio de um email que recebeu da advogada de origem
muçulmana e amiga da família de Adnan Syed, Rabia Chaudry. Assim, logo no início do
episódio de abertura da série jornalística, Sarah Koenig faz um primeiro movimento descritivo
em sua locução aos ouvintes introduzindo detalhes sobre o acontecimento que irrompeu no
cotidiano dos moradores e familiares dos jovens estudantes de um condado em Baltimore
(EUA), já acionando neste trecho da narrativa as características de uma das principais
personagens da história e os elementos temporais, ao trazer para o presente em que se dá o
discurso do podcast os hábitos da jovem Hae Lee.
Quase 15 anos atrás, no dia 13 de janeiro, 1999, uma garota chamada Hae Min Lee
desapareceu. Ela era uma veterana no colégio Woodlawn no condado de Baltimore
em Maryland. Ela era coreana. Ela era inteligente, e bonita, e alegre, e uma
excelente atleta. Ela jogava hóquei e lacrosse. E ela era responsável. Logo após a
escola ela deveria buscar a sua prima pequena no jardim de infância e deixá-la em
casa. Mas ela não apareceu. Foi quando a família de Hae Lee sabia que alguma coisa
tinha acontecido, quando a escola da prima telefonou. Cerca de um mês depois, no
dia 9 de fevereiro, o corpo de Hae foi encontrado em um grande parque em
Baltimore. Um homem da manutenção, que disse que tinha parado para urinar
quando estava no caminho para o trabalho, a descobriu lá. Ele tinha notado um
pedaço do cabelo preto dela saindo pra fora de uma cova rasa. A causa da morte foi
por estrangulação manual, o que significa que alguém fez com as próprias mãos.
Algumas semanas após isto, seis semanas depois que ela desapareceu, o ex-
90
namorado de Hae, um rapaz chamado Adnan Syed, foi preso pelo assassinato dela. Ele está na prisão desde então. Eu soube desta história pela primeira vez há mais de um ano, quando eu recebi um email de uma mulher chamada Rabia Chaudry. Rabia conhece Adnan muito bem. Seu irmão mais novo Saad é o melhor amigo de Adnan. E eles acreditam que ele é inocente (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01,
tradução nossa).35
A narrativa jornalística da primeira temporada de Serial se desenvolve, então, a partir
da compreensão da apresentadora Sarah Koenig de que a história da qual ela toma
conhecimento por meio da advogada Rabia Chaudry apresenta um acontecimento do passado
com elementos passíveis de investigação no tempo presente em que se produz o podcast.
Conforme citado no capítulo 2 desta dissertação, a acusação foi construída principalmente
com base no depoimento de Jay, um colega de escola, que afirmou em vários depoimentos à
polícia e à Justiça de Maryland (EUA) que Adnan havia planejado o crime. Apesar do
testemunho de Jay, Adnan alega inocência. Sarah Koenig relata, então, sua ida até o escritório
da advogada muçulmana no intuito de entender melhor os detalhes da forma que o Estado
condenou Adnan à prisão pérpetua. Koenig percebe neste primeiro encontro com Chaudry que
ali havia motivos suficientes para iniciar sua investigação jornalística, já que os conflitantes
depoimentos de Adnan e Jay não esclareciam certos aspectos que envolviam o assassinato da
adolescente.
No momento em que eu saí do escritório da Rabia naquele primeiro dia, eu entendi uma coisa claramente, embora talvez não seja o que Rabia e Saad [irmão de Rabia] quisessem que eu entendesse. Mas o que eu tirei de lição da visita foi que alguém estava mentindo aqui. Talvez Adnan seja realmente inocente. Mas e se ele não for? E se ele realmente fez isso, e tem todas essas pessoas boas pensando que ele não fez? Então ou é o Jay ou é o Adnan. Mas alguém está mentindo. E eu realmente
quero descobrir quem (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01, tradução nossa).36
A construção descritiva da estrutura de uma narrativa jornalística exige ideais de
objetividade na seleção dos acontecimentos e na escolha de personagens e fontes que lhe dão
35 Almost 15 years ago, on January 13, 1999, a girl named Hae Min Lee disappeared. She was a senior at
Woodlawn High School in Baltimore County in Maryland. She was Korean. She was smart, and beautiful, and
cheerful, and a great athlete. She played field hockey and lacrosse. And she was responsible. Right after school
she was supposed to pick up her little cousin from kindergarten and drop her home. But she didn't show. That's
when Hae Lee's family knew something was up, when the cousin's school called. About a month later, on
February 9, Hae's body was found in a big park in Baltimore, really a rambling forest. A maintenance guy who
said he'd stopped to take a leak on his way to work discovered her there. He'd noticed a bit of her black hair
poking out of a shallow grave. The cause of death was manual strangulation, meaning someone did it with their
hands. A couple weeks after that, so six weeks after she first went missing, Hae's ex-boyfriend, a guy named
Adnan Syed, was arrested for her murder. He's been in prison ever since. I first heard about this story more than
a year ago when I got an email from a woman named Rabia Chaudry. Rabia knows Adnan pretty well. Her
younger brother Saad is Adnan's best friend. And they believe he's innocent. 36
By the time I left Rabia's office that first day, I understood only one thing clearly, though maybe not the thing
Rabia and Saad wanted me to understand. But what I took away from the visit was, somebody is lying here.
Maybe Adnan really is innocent. But what if he isn't? What if he did do it, and he's got all these good people
thinking he didn't? So either it's Jay or it's Adnan. But someone is lying. And I really wanted to figure out who.
91
sentido para garantir a credibilidade de um conteúdo e o seu efeito de real, o que significa que
não há espaço para recursos imaginativos que preenchem lacunas no resgate de
acontecimentos. Na primeira temporada de Serial, observamos que a configuração do
enunciado obedece aos princípios de narração fidedigna do acontecimento ao acionar
entrevistas de colegas, amigos e familiares de Hae e Adnan, profissionais e especialistas que
analisam o caso, além do uso de documentos e relatórios ligados à investigação do crime.
No entanto, é importante destacar que há espaço para recursos de ficcionalização na
composição estrutural do enunciado do podcast. O principal deles é como Serial se estrutura,
já que a narrativa se desenvolve em 12 episódios de linguagem sonora que totalizam uma
duração de aproximadamente 10 horas. Esta divisão em capítulos remete à influência da
literatura realista no jornalismo, permitindo que o enunciado do podcast seja elaborado com
investigação mais rigorosa e aprofundada.
Os episódios organizam a descrição do acontecimento pela separação de temas que
apresentam vários aspectos do caso abordado na narrativa. Um importante exemplo é o
primeiro episódio, entitulado O Álibi, em que o tema abordado diz respeito a uma colega de
escola de Adnan – Asia McLain – que poderia ser um possível álibi em seu julgamento, já que
ela lembrava ter conversado com o rapaz na biblioteca da escola no horário em que Hae foi
assassinada. O episódio 2, denomindado O Fim do namoro, aborda o relacionamento de
Adnan e Hae e os motivos que levaram a separação do casal. O terceiro episódio retrata sobre
como o corpo de Hae foi encontrado e no quarto capítulo, Sarah relata como os detetives
responsáveis pelo caso realizaram a investigação e aponta quais são as inconsistências da
acusação construída, destacando as constantes mudanças dos depoimentos de Jay, a principal
testemunha do crime, que foi vital para a condenação de Adnan. Outro exemplo de recorte
temático está no episódio 6, em que são analisadas todas as evidências circunstanciais
utilizadas pela acusação do Estado contra Adnan. No décimo episódio, é possível conhecer
mais detalhadamente sobre o trabalho da renomada advogada de defesa de Adnan – Cristina
M. Gutierrez –, quais recursos ela acionou e quais deixou de fora, além do fato dela ter
perdido sua licença um ano após a condenação à prisão perpétua de seu cliente. Um outro
recorte temático presente nos 12 episódios da série é o capítulo 11 que destaca como Sarah
Koenig lidou com os novos rumores que surgiram ao longo da produção da história, já que
após a circulação e popularidade alcançada pelo podcast começou a receber ligações, emails,
entre outros contatos de diversas pessoas que conheceram Adnan e o descreveram como um
tipo de pessoa com características diferentes da personalidade de garoto bom e querido em
sua comunidade, diferenciando das versões dos outros entrevistados da narrativa.
92
A forma de sequenciamento dos episódios estabelece uma unidade de sentido para a
investigação jornalística que se propõe. Para a compreensão de cada abordagem temática é
necessário acompanhar a história desde o seu primeiro episódio, o que é inclusive reforçado
pela própria instância de produção do podcast. No site oficial, ao clicar em um episódio (que
não seja o primeiro), o receptor-usuário encontra o seguinte aviso (Imagem 1): “Serial é um
podcast elaborado para ser ouvido em ordem. Se você simplesmente está de passagem e caiu
aqui, por favor retorne e comece pelo episódio 01 (SERIAL PODCAST, 2014, tradução
nossa)”37
.
Imagem 1: Aviso na seção de episódios do site oficial com indicação para acompanhar a
narrativa a partir do Episódio 1
Fonte: SERIAL PODCAST, 2014
Outro recurso estético tomado de empréstimo da ficcionalização que reforça tal
necessidade de compreender o sentido proposto pela instância de enunciação de Serial é o uso
da recapitulação no início de cada episódio. Em todos os episódios, à exceção do primeiro,
sempre encontramos na primeira fala de abertura o resgate do tema anterior com o uso de uma
chamada gravada na voz de um locutor diferente de Sarah com os seguintes dizeres:
“Anteriormente, em Serial...”. A partir desta chamada, o ouvinte escuta pequenos trechos de
falas de personagens entrevistados no capítulo anterior e na sequência dá-se início à narração
de Koenig. No episódio 4, por exemplo, a narrativa começa com trechos de falas de cinco
personagens do episódio 3, relembrando o ouvinte sobre o episódio que detalha como um
37 Serial is a podcast designed to be listened to in order. If you’re just landing here please go back and start with
episode 1.
93
homem encontrou o corpo de Hae e como as autoridades foram informadas, sendo que tais
trechos selecionados servem de referência para a instância narrativa estabelecer uma conexão
com o tema que está por vir no quarto capítulo – a busca dos detetives por uma pista que os
leva de encontro à principal testemunha da acusação, Jay, e quais as inconsistências dos
vários depoimentos deste jovem utilizados na investigação do assassinato da adolescente.
Eu sou Sarah Koenig. Lembram como no último episódio eu terminei dizendo que
os detetives tinham outras pistas neste caso além do MR. S, o cara que encontrou o
corpo de Hae, que eles também estavam começando a observar Adnan? (All Serial
Transcripts, 2014, episódio 04, tradução nossa)38
.
Serial é um podcast que se insere no contexto da radiofonia expandida
(KISCHINHEVSKY, 2014) e por isso faz uso em sua narrativa de elementos clássicos da
linguagem sonora da tradicional radiofonia hertziana em conjunto com recursos estético-
linguageiros permitidos pela rede digital, como texto, imagens, infográficos e ferramentas de
compartilhamento de conteúdo. Apesar da multiplicidade de elementos estéticos, é importante
destacar que o principal elemento que serve de fio condutor desta narrativa jornalística é
proveniente da tradicional linguagem radiofônica: a palavra oral.
A voz narrativa de Sarah Koenig é responsável pela costura dos episódios temáticos
por meio da mescla de seus relatos a respeito da investigação com a inserção de entrevistas
que a própria narradora realiza com personagens envolvidos direta e indiretamente ao
acontecimento em destaque. A apuração da jornalista envolve entrevistas com amigos de
Adnan e de Hae, colegas, membros da comunidade muçulmana da qual Syed faz parte e
também com especialistas que não viveram o acontecimento à época, mas emitem sua opinião
sobre o caso, como ocorre quando a narradora entrevista advogados integrantes de um projeto
especializado em inocentar pessoas condenadas equivocadamente pela justiça norte-
americana. Em conjunto com essas entrevistas, Koenig aborda em seu discurso as
informações que obteve com documentos e relatórios policiais, gravações de áudio dos
depoimentos colhidos pela polícia e do julgamento – momento em que a voz de Jay é
conhecida pelos receptores-usuários, já que este não conversa diretamente com Sarah –
registros de torres de celular utilizados como prova na acusação de Adnan e, também, visitas
feitas pela jornalista aos locais relacionados ao crime. Todo esse material se apresenta por
meio da oralidade narrativa da apresentadora da série, dimensionando a estrutura dos 12
episódios do podcast.
38 I'm Sarah Koenig. Remember how last time I ended by saying that the detectives had other leads in this case
besides Mr. S, the guy who found Hae's body, that they were also starting to look at Adnan?
94
Um exemplo da tessitura exercida pela voz narrativa da jornalista está no episódio
intitulado O Fim do Namoro, em que Sarah alterna sua própria locução com as informações
obtidas sobre o relacionamento em entrevistas com Aisha Pittman, a melhor amiga de Hae
Lee, e com o próprio Adnan.
Aisha Pittman: Ela queria me mostrar os bilhetes que eles trocaram e então
progrediu a partir disso. Foi um relacionamento que era constantemente secreto
porque a família de nenhum dos dois sabia sobre o relacionamento, então isso criou
muito mais algo do tipo ela dizendo ‘Eu vou estar na sua casa’ mas na verdade
estava saindo com ele, esse tipo de coisa. Koenig: Oh, ela deveria, ela deveria ter
contado aos pais dela que estava na sua casa... Pittman: Isso. Ou na casa dos outros.
Em primeiro lugar era a minha (risadas). Era muito desse tipo de segredo ao redor
deste relacionamento. Adnan Syed: Nós tínhamos muitas, eu acho, nós tínhamos
muitas situações parecidas em nossas famílias. Sarah Koenig: Este é Adnan. Já que
tanto ele quanto Hae tinham pais imigrantes, eles entendiam as expectativas, e as
restrições. Vá bem na escola, vá para a faculdade, tome conta de seu irmão mais
novo, e para Adnan, sem garotas (...). Adnan Syed: Você sabe, foi muito fácil
namorar alguém que vivia uma situação parecida com os mesmos parâmetros no que
diz respeito aos meus, você sabe, ela não teve expectativa de eu ir à casa dela para
jantar com a família dela (All Serial Transcripts, 2014, episódio 02, tradução
nossa)39
.
Apesar de a palavra oral ser predominante no podcast, percebemos o uso de outros
elementos sonoros, como a inserção de trilhas musicais, principalmente na abertura e
encerramento de cada episódio, em que se pode ouvir a música tema da série composta por
Nick Thorburn. Há também composições de outras trilhas sonoras produzidas exclusivamente
para a série e que são utilizadas em alguns momentos específicos dos episódios para marcar
uma mudança temática ou algum momento em que Sarah Koenig se depara com uma nova
informação sobre o caso e um trecho de uma trilha sonora é acionado no intuito de gerar uma
espécie de efeito de suspense, indicando ao ouvinte que a jornalista seguirá um novo caminho
em seu processo investigativo.
O efeito sonoro mais marcante presente em todos os episódios da primeira temporada
é o áudio que introduz a ligação de Adnan Syed à jornalista. A pedido da narradora, Adnan
telefona para Sarah, em média, duas vezes por semana – como ela mesma informa aos seus
ouvintes durante o primeiro episódio do podcast. E todas as conversas que a jornalista
39 Aisha Pittman: She would like show me notes that they shared and then it just progressed from there. Um,
and, but it was some, it was a relationship that was constantly secret because neither of their families knew about
it, so that just created much more of a, like, her saying ‘I’m gonna be at your house’ but really go out with him,
kinda thing. Sarah Koenig: Oh she would, she would tell her parents she was at your place…Aisha Pittman:
Yeah. Or others. Primarily mine. (laughs) Just a lot of that sort of secrecy around it. Adnan Syed: We had a lot
of, I guess, we had a lot of real similar, similar types of situations with our families. Sarah Koenig: That’s
Adnan. Since he and Hae both had immigrant parents, they understood the expectations, and the constraints. Do
well in school, go to college, take care of your younger brother, and for Adnan, no girls (...). Adnan Syed: You
know, it was really easy to date someone that kind of lived within the same parameters that I did with regards to,
you know, she didn’t have the expectation to me coming to her house for dinner with her family (...).
95
mantém por telefone com o acusado são precedidas pela gravação automática do presídio de
segurança máxima com os seguintes dizeres: “Esta é uma ligação pré-paga intermediada pela
Global-Tel de - Adnan Syed - um presidiário da instalação correcional de Maryland”40
(All
Serial Transcripts, 2014, tradução nossa). O recurso sonoro com esta gravação automática das
ligações de Adnan está sempre presente na abertura de cada episódio, mesmo naqueles em
que não se escuta as entrevistas de Adnan, indicando o protagonismo e relevância deste
personagem na abordagem do acontecimento retratado no podcast.
Outro exemplo que demonstra o uso de efeitos sonoros como elemento narrativo está
no episódio 5, em que Sarah Koenig e Dana Chivis (também produtora do podcast) se
propõem a refazer a suposta rota de Adnan no dia do crime. A justiça norte-americana
afirmou que a adolescente foi assassinada às 14h36 em um local a pouco mais de um
quilômetro da escola. Naquele dia, a aula se encerrava às 14h15, o que daria um intervalo de
21 minutos para Adnan sair da sala de aula, passar por diversos colegas, sair do trânsito do
entorno da escola e executar o crime. Segundo o rapaz, tal rota é praticamente impossível de
ser feita neste período de tempo. Então Sarah e Dana vão até a escola Woodland e refazem o
trajeto cronometrando o tempo gasto. Neste trecho do episódio, os efeitos são acionados para
se estabelecer uma paisagem sonora, que permite ao ouvinte recriar mentalmente o cenário do
trajeto percorrido pelas produtoras.
Sarah Koenig (narração direto do colégio): (voz de estudantes conversando ao
fundo da narração): Nós estamos no colégio Woodlawn, quarta-feira à tarde.
Anúncios após a escola (entra áudio da gravação com anúncio nas caixas de som da
escola): Se você é veterano e quer se inscrever para as bolsas escolares locais, dirija-
se à sala da coordenação. Sarah Koenig (narração direto do colégio): Okay,
último sinal (sons de sinal e movimentação de estudantes na escola). Koenig
(narração em estúdio): Mais de mil estudantes enchem os corredores assim como
Adnan nos descreveu em sua carta. Nós imaginamos que Hae entrou em seu carro
rapidamente. Ela estava com pressa. Sarah Koenig (narração direto do colégio):
Okay. Agora são 14h17. O sinal tocou exatamente às 14h15, então o mais rápido
que ela poderia chegar ao seu carro seria em dois minutos. Então isso dá ao Estado o
benefício da dúvida, certo? Se ela realmente está com pressa, talvez ela consiga
chegar no carro dela em dois minutos? (All Serial Transcripts, 2014, episode 05,
tradução nossa)41
.
No contexto da radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014), o podcast Serial
utiliza em sua estrutura narrativa outros recursos estético-linguageiros que complementam a
40 This is a Global-Tel link prepaid call from Adnan Syed an inmate at a Maryland Correctional facility…
41(Voice over school PA) If you’re a senior and you want to apply for local scholarships, you need to go to the
counseling office -- Sarah Koenig (in Woodlawn High School): Okay then, last bell. (chime) Koenig (in studio):
More than a thousand students fill the halls just like Adnan described in his letter. We figure Hae gets in her car
quickly. She’s in a hurry. Sarah Koenig (in Woodlawn High School): Okay. It is now 2:17. The bell rang at
exactly 2:15, say the fastest she could have gotten to her car is two minutes. So that’s giving the State the benefit
of the doubt, right? If she’s really hustling, maybe she can get to her car in say two minutes?
96
linguagem sonora. No site oficial, há, por exemplo, uma seção em que se encontram os 12
episódios da temporada. Em cada episódio, observa-se uma imagem fotográfica que faz
referência ao tema específico abordado em determinado capítulo, como ocorre no episódio 6,
em que se encontra em sua “capa” uma fotografia de Adnan Syed aos 17 anos, considerando
que o tema deste capítulo é referente à forma de investigação da polícia e à acusação
elaborada pela Promotoria contra o rapaz, conforme observamos na imagem abaixo.
Imagem 2: Episódios da primeira temporada de Serial
Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.
Além do uso de imagens e fotografias, os produtores de Serial disponibilizam aos
receptores-usuários informações complementares ao conteúdo dos episódios também por
meio da linguagem textual, que se destaca no blog oficial pertencente ao site do podcast. Os
episódios foram publicados semanalmente entre os meses de outubro e dezembro de 2014 e,
ao longo desse período, a equipe de produção acrescentava novas informações extras
referentes a alguns episódios nas postagens do blog. Em uma das publicações, a produtora
Dana Chivis escreveu um texto em complemento ao episódio 05, cuja temática é centralizada
na rota do crime refeita por ela e Sarah Koenig. Nesta publicação do blog, Dana retoma um
personagem do episódio, Ja’uan, amigo de Adnan que prestou depoimento à polícia mais de
um mês após a prisão, conforme é narrado no próprio episódio. No texto, Chivis acrescenta
informações do encontro que os dois amigos tiveram, dias após o assassinato, no mesmo local
do crime. A produtora anexa para os ouvintes as versões digitalizadas dos desenhos manuais
de mapas que Ja’uan e Jay fizeram para a polícia em seus respectivos depoimentos. Com esta
97
informação extra, Dana Chivis possibilita ao receptor-usuário a chance de comparar tais
mapas e deixa a entender que ambos se referem ao mesmo local, ou seja, que Adnan já tinha
frequentado a cena do crime pelo menos uma vez.
Imagem 3: Postagens do blog oficial do podcast Serial
Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.
Um outro exemplo de uso de linguagem que extrapola a utilizada na radiofonia
tradicional está na imagem que traz uma versão digital da carta do possível álibi que não foi
aproveitado pela advogada de defesa de Adnan. Tal imagem é anexada como material
relacionado dentro da seção que abriga o primeiro episódio da série. Em sua narração deste
capítulo, Sarah cita alguns trechos da primeira carta que Asia McLain escreveu para Adnan,
logo após ele ter sido preso. No site, o receptor-ouvinte pode ter acesso a todo o conteúdo da
carta escrita à mão por Asia, que escreve sobre ter conversado com o rapaz na biblioteca na
tarde em que Hae desapareceu.
98
Imagem 4: Carta de Asia McLain enviada à Adnan Syed
Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.
Outro elemento que integra a estrutura estético-linguageira da narrativa de Serial são
as ferramentas de compartilhamento e comentário de conteúdos ofertadas pela instância de
produção do podcast. Na seção do blog oficial, há um anúncio de que não há espaço para
comentários nas próprias postagens, porém um aviso informa aos internautas que o conteúdo
de tais publicações pode ser comentado nas redes sociais oficiais de Serial. Assim, a própria
equipe de produção do podcast incentiva o debate acerca da narrativa e as práticas
interacionais nas redes sociais, ao disponibilizar os links que direcionam para o perfil oficial
do Twitter e do Facebook, além de deixar o email de contato à disposição para o envio de
sugestões e opiniões sobre a série, conforme observamos no aviso disponível no site:
99
Imagem 5: Aviso no blog de Serial com links para email, Facebook e Twitter
Fonte: PODCAST SERIAL, 2014.
A construção dos elementos narrativos da primeira temporada tem como base
estrutural o uso da descrição no intuito de gerar o efeito de real do acontecimento
representado. O recurso descritivo da série se consolida principalmente pela divisão temática
da história combinada com as estratégias de ficcionalização aplicadas ao discurso jornalístico,
além da presença de elementos multimidiáticos da linguagem da radiofonia expandida. Cabe
ressaltar ainda, que esta construção é complementada por elementos temporais característicos
do triplo presente (RICOEUR, 2010).
O jogo temporal que se estabelece entre passado, presente e futuro é nítido
principalmente pela ótica da transformação do acontecimento – o crime e a sua investigação
há mais de uma década e meia – em meta-acontecimento – a configuração narrativa do
podcast. A composição da trama resgata um fato singular do passado de um cotidiano
específico e o insere em uma nova temporalidade, relacionada ao presente em que se encontra
a série. Assim, um crime que aparentemente tinha chegado à sua resolução, ganha possíveis
novas interpretações a partir da produção e circulação dos episódios que realizam uma nova
investigação no tempo atual sobre um fato do passado. Tal investigação de cunho jornalístico
se edifica com o uso de depoimentos de diversos personagens, sendo que tais depoimentos
transitam entre à temporalidade referente à época do assassinato e sua investigação – como
podemos observar por meio dos relatórios, documentos e gravações em áudio de depoimentos
feito pela Polícia e do julgamento de Adnan – à temporalidade atual, na qual se encontram os
receptores-usuários – por meio das entrevistas dos personagens envolvidos direta ou
indiretamente com o acontecimento. Assim, os depoimentos cumprem um papel essencial de
testemunho nesta narrativa, já que exercem uma função de autentificação da origem do ato de
configuração do enunciado da série, como será detalhado a seguir.
100
5.2.2 A função do testemunho
A centralidade do testemunho na primeira temporada de Serial evidencia sua estreita
relação com a tessitura da narrativa, o que caracteriza o discurso jornalístico desta série como
uma modalidade do testemunho. É importante ressaltar que, para via de análise do nosso
objeto empírico, adotamos a percepção de Ana Cláudia Peres (2016) sobre a função vital do
testemunho na configuração de um enunciado jornalístico ao defender que
(...) o testemunho é, também ele, uma construção de linguagem e que, quando
valorizado no percurso da narrativa não apenas como procedimento de uma rotina
jornalística, mas enquanto experiência vivida e narrativizada, pode oferecer uma
chave para colocar sujeitos em relação. (PERES, 2016, p. 103)
Ainda de acordo com a autora, o acionamento do testemunho no jornalismo nos
transforma em testemunha de outros testemunhos, submetendo seus receptores a perceberem
uma dada realidade por meio dos regimes jornalísticos de ver e contar. Assim, o que
realmente importa na construção narrativa de um acontecimento não é se o jornalista
presenciou a experiência relatada, e sim a forma como ele reconstitui tal acontecimento para
seu público destinatário. E é justamente nessa expressão do testemunho que Serial encontra
sua força para autentificação do efeito de real do acontecimento narrado.
O protagonismo exercido pela narração da jornalista Sarah Koenig na tessitura dos 12
episódios do podcast é indício de como ela assume um lugar de testemunho, que se insere na
história, mostrando por meio de seu posicionamento que é uma narradora que ocupa o próprio
texto, ou seja, por meio da construção de seu discurso, Sarah se integra ao próprio meta-
acontecimento de forma incisiva ao seu público, ofertando as nuances e um maior
detalhamento de sua investigação jornalística.
Em um trecho do episódio 5, Sarah analisa a investigação feita pela polícia e como a
Promotoria construiu a acusação para o julgamento. A narradora aciona gravações em áudio
do julgamento em que se escuta o promotor Kevin Urick interrogando Jay diante do júri para
justificar sua argumentação de acusação. Neste episódio, além das gravações antigas, Sarah
apresenta ao ouvinte do podcast trechos selecionados de sua conversa com Adnan nos dias
atuais com comentários do rapaz sobre este dia do julgamento. É neste exemplo que
percebemos a inserção da narradora como testemunha do acontecimento, já que ela se
posiciona diante das provas apresentadas contra Syed e coloca em questão a investigação e
evidências apresentadas pela justiça norte-americana.
Eu não quero ser mesquinha. Eu não acho que devemos exigir de Jay uma linha do
tempo cristalina. Como ele poderia lembrar de cada reviravolta e ligação telefônica
101
daquele dia, seis semanas depois? No entanto, se o estado afirma Adnan é culpado
porque nós temos esta testemunha e a história dela é sustentada pelo registro de
celulares, bem, o que eu vejo é, que se tem uma testemunha, mas sua história mudou
significativamente ao longo do tempo e existem esses registros de ligações, mas eu
não acho que são infalíveis como a acusação faz parecer. Isso porque, na maior parte
do tempo, esses registros não se alinham exatamente com a narrativa da testemunha.
Estes são momentos chave, quando eles [promotoria] sustentam a versão daquela
noite. Mas e quanto ao resto do dia? (All Serial Transcripts, 2014, episódio 5,
tradução nossa)42
.
No mesmo episódio, observa-se novamente a inserção do testemunho da narradora,
após escutarmos uma gravação da advogada de Adnan questionando Jay diante do júri no
intuito de desqualificá-lo e colocar a credibilidade da testemunha em xeque. Após esta
gravação ser exibida aos ouvintes, a jornalista se posiciona mais uma vez e observa que assim
como a versão de Jay apresenta ambiguidades, o mesmo acontece com a versão de Syed sobre
o que aconteceu no dia em que Hae Lee foi assassinada.
Ele [Jay] disse: ‘eu contei a eles [detetives] a verdade, eu não mostrei a elas uma locação que fosse verdadeira’. Por mais que isso soe paradoxal, eu acho que consigo entender o que ele queria dizer. Sim, eu disse algumas mentiras, mas eu disse a verdade. No geral, eu disse a verdade. Tem partes da história de Jay que não fazem sentido, em que parece haver mais coisa acontecendo do que ele próprio relata. Mas a verdade é que você também pode afirmar a mesma coisa sobre a versão de Adnan
(All Serial Transcripts, 2014, episódio 5, tradução nossa)43
.
A jornalista opta por um modo de fala em um tom de conversa intimista com seu
ouvinte, com exposição de suas impressões e questionamentos sobre as personagens da
história e sobre as descobertas de sua investigação. Tal postura é perceptível tanto no texto
narrativo de sua locução quanto no momento em que ela conversa com outras pessoas em
entrevistas sobre o caso. Koenig chega a compartilhar com os ouvintes suas fragilidades das
primeiras impressões que teve sobre Adnan, o que demonstra que seu testemunho como
jornalista não precisa ser um mero registro objetivo da experiência de investigação deste
acontecimento, como podemos observar no trecho do primeiro episódio da série abaixo:
E uma segunda coisa, na qual você não pode deixar de observar em Adnan, é que ele
tem olhos castanhos gigantes como uma vaca leiteira. Esta é, em disparada, minha
42 I’m not trying to be petty here. I don’t think we should hold Jay to some crystal clear timeline. How could he
possibly remember each twist and turn and phone call from that day, six weeks later? However, if the state is
saying, Adnan Syed is guilty because we have this witness and his story is backed up by cell records, well, what
I see is, you have this witness but his story has shifted, rather significantly over time and you have these call
records, but I don’t think they’re as iron-clad as you’re making them out to be. Because, for the most part, they
don’t exactly align with your witness’s narrative. There are key moments, when they do support his version of
that night. But what about the rest of the day? 43
He says, ‘I told them the truth, I did not show them a location that was true.’ As oxymoronic as it sounds, I
think I see what he is saying. Yes, I told some lies, but I told the truth. Overall, I told the truth. There are parts of
Jay’s story that make no sense, where it seems like there must have been more going on than he’s saying. But
here’s what’s also the truth, you can say the same thing about Adnan’s story too.
102
observação mais idiota desta investigação. Alguém com esta aparência poderia realmente estrangular sua namorada? Idiota, eu sei. (All Serial Transcripts, 2014,
episódio 01, tradução nossa)44
.
Outro exemplo se encontra em um trecho do sexto episódio, quando percebemos uma
espécie de desabafo no testemunho da jornalista, em que ela compartilha com seu público – e,
por consequência, se aproxima dele – suas dúvidas sobre a real necessidade de seguir em
frente com essa investigação, explicando, a todo momento, que durante a produção deste
podcast alternava em dúvidas sobre a veracidade da versão da acusação e da versão da defesa
do caso.
Eu vejo muitos problemas com a acusação do Estado. Mas ao mesmo tempo, eu também enxergo muitos problemas com a versão de Adnan. E então eu começo a
duvidar dele, eu converso e converso com ele, e eu começo a duvidar das minhas
dúvidas. E então eu me preocupo em ser a idiota que nada sabe. Este é o ciclo. Uma vez, por volta de seis meses após começarmos nossas conversas telefônicas, Adnan
me questionou, meio nervoso, qual é o meu real interesse nesse caso? Por que você
está fazendo isso? E então eu expliquei todas as coisas interessantes que eu li, e as pessoas que eu conversei e blá, blá, blá. Mas eu também contei que o que realmente
me prendeu nesta história, foi ele. Simplesmente tentando descobrir quem é essa pessoa que afirma não ter matado essa garota, mas está cumprindo prisão perpétua
pelo assassinato desta garota (All Serial Transcripts, 2014, episódio 6, tradução
nossa)45
.
Além do seu próprio testemunho para relatar as descobertas de sua investigação, Sarah
Koenig compõe a narrativa acionando também relatos de personagens que vivenciaram o
acontecimento de forma mais direta e de pessoas que não estavam diretamente envolvidas
naquela experiência à época, porém são capazes de preencher lacunas da história
apresentando sua perspectiva na temporalidade em que o podcast é produzido.
Peres (2016) ressalta que no discurso jornalístico a técnica da entrevista é uma das
principais ferramentas para se reconstituir um fato do passado, transformando-se numa
espécie de dispositivo que, na comunicação humana e mais especificamente no jornalismo,
tem a capacidade de provocar o diálogo. A partir deste raciocínio, observa-se que a
reconstituição do real se apresenta por meio das falas dos entrevistados (ou testemunhos) da
série. A voz narrativa de Sarah mantém sua centralidade na tessitura da intriga em Serial, já
44 And the second thing, which you can't miss about Adnan, is that he has giant brown eyes like a dairy cow.
That's what prompts my most idiotic lines of inquiry. Could someone who looks like that really strangle his
girlfriend? Idiotic, I know. 45
I see many problems with the state’s case. But then, I see many problems with Adnan’s story too. And so I
start to doubt him, I talk to him and talk to him, and I start to doubt my doubts. And then I worry t hat I’m a
sucker that I don’t know. That’s the cycle. Once, about six months after we’d begun our phone calls, Adnan
asked me, a little nervously, what’s your interest in this case, really? Why are you doing this? And so I explained
all the interesting stuff I’d read, and the people I’d talked to blah, blah, blah. But I also told him really what
really hooked me most, was him. Just trying to figure out, who is this person who says he didn’t kill this girl but
is serving a life sentence for killing this girl.
103
que além de inserir seu próprio relato, ela dá voz a diversos testemunhos que complementam
a sua visão e auxiliam a estabelecer uma unidade de sentido para a história.
É inegável o protagonismo atribuído pela narradora à Adnan Syed. As entrevistas
gravadas com ele por telefone pela jornalista estão presentes em 8 dos 12 episódios da
temporada. E como a própria narradora relata em um dos episódios um dos seus principais
objetivos é entender quem é o jovem condenado à prisão perpétua pelo assassinato da ex-
namorada, mas que até os dias de hoje alega inocência. A inserção de Adnan acontece de
diversas formas em boa parte da narrativa, o que propicia um maior espaço para se
desenvolver um aprofudamento e maior envolvimento com este personagem.
No primeiro episódio, a jornalista evoca o testemunho de Adnan após descrever ao
ouvinte como era o namoro entre ele e Hae e que após o término o rapaz estava triste, porém
não obcecado. Inicialmente, ainda não se verifica o diálogo direto entre a narradora e Adnan,
sendo tal diálogo um dos recursos mais aproveitados na constituição da narrativa.
Percebemos, então, que uma das estratégias para acionar o testemunho de Syed é
complementar o discurso textual da locução de Sarah com a entrevista de um dos
protagonistas da história, sem ainda se estabelecer um diálogo direto entre os dois, conforme
ocorre no trecho selecionado abaixo:
Adnan Syed: Eu só queria que eles pudessem analisar dentro do meu cérebro e percebessem como eu realmente me sentia em relação a ela. E não importa o que qualquer outra pessoa afirme, eles iam ver que esse cara não tinha nenhuma intenção contra ela. (...) Sarah Koenig: Ele é firme quanto a isso. Você consegue perceber,
certo? Ele está convicto. O problema é que, quando você pede a Adnan para voltar à memória e contar sua versão sobre o que aconteceu naquele dia, para refutar a versão de Jay, tudo fica sem consistência (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01,
tradução nossa)46
.
Os diálogos diretos entre Sarah Koenig e Adnan Syed se fazem constantemente
presentes na série. Por meio dessa estratégia, o ouvinte toma conhecimento dos
questionamentos que a narradora faz a Adnan, o que permite a descrição mais detalhada do
acontecimento, além do receptor-usuário do podcast poder refletir sobre a personalidade e o
envolvimento do protagonista com a trama. Exemplo disso está também no primeiro episódio,
em que a narradora conta que o dia em que Hae Lee foi assassinada era aniversário de
Stephanie, uma das melhores amigas de Adnan e namorada de Jay. Esse relato de Sarah serve
46 Adnan Syed:I just sometimes wish they could look into my brain and see how I really felt about her. And no
matter what else someone would say, they would see, man, this guy had no ill will toward her. (...) Sarah
Koenig: He's adamant about this. You can hear it, right? He's staunch. The problem is, when you ask Adnan to
go back and tell his version of what happened that day, to refute Jay's story, everything becomes a lot mushier.
104
para contextualizar o diálogo entre ela e Syed que o ouvinte toma conhecimento na sequência
da narrativa:
Adnan Syed: E me ocorreu que naquele dia eu ia perguntar ao namorado dela, Jay, se ele tinha comprado um presente pra ela? Então, em algum momento durante o dia antes de meio dia. Sarah Koenig: Espera, Adnan, só espera por um segundo. Por
que você se importava se Jay tinha comprado um presente pra Stephanie? O que isso tem a ver com você? Adnan Syed: Bem, a Stephanie era uma amiga minha muito próxima, como eu tinha mencionado. E eu queria ter certeza que ela também receberia um presente dele, sabe? Ela havia mencionado pra mim que ela estava
esperando ansiosamente por receber um presente dele (All Serial Transcripts, 2014,
episódio 01, tradução nossa)47
.
O papel central que Adnan Syed exerce dentro da narrativa permite à Sarah Koenig
complexificar o uso deste testemunho. O grande aproveitamento das conversas gravadas
direto do presídio com Adnan fica evidente quando a narradora mescla depoimentos de Syed
em distintas temporalidades, conforme ocorre, por exemplo, em um momento que a jornalista
disponibiliza ao seu ouvinte uma antiga gravação do julgamento de Adnan – que acontece
uma década e meia antes – em que se escuta a advogada do réu, Christina Gutierrez, solicitar
uma escolha de seu cliente entre testemunhar no julgamento ou permanecer em silêncio.
Após escutarmos a resposta de Adnan neste áudio do julgamento, Sarah retorna ao tempo
atual do ouvinte e dá voz a Syed, que faz uma espécie de desabafo sobre esta situação a qual
esteve submetido no passado, conforme observamos no seguinte trecho do episódio 9:
Christina Gutierrez: Você está preparado para fazer sua escolha? Adnan Syed:
Sim senhora. Christina Gutierrez: E sua escolha é testemunhar ou permanecer em
silêncio? Adnan Syed: Permanecer em silêncio. Christina Gutierrez: Obrigado.
Você tem alguma pergunta sobre esta escolha? Adnan Syed: Não senhora. Sarah
Koenig: Este é Adnan não testemunhando. Ele me contou que queria, mas sua
advogada o aconselhou a fazer o contrário. Não é incomum. É um alto risco expor seu cliente a um interrogatório detalhado. Então, assim ele permaneceu. Mudo
durante os dois julgamentos, cerca de cinco semanas ao todo o que é realmente
difícil pra qualquer um. Adnan Syed: Foi, eu diria, provavelmente a coisa mais estressante da minha vida. Sei que é um clichê dizer isso, mas ficar sentado lá por
tanto tempo, por tantos dias e semanas sabendo que esse júri estava sentado me
observando e que, ao final, eles seriam os que iriam tomar a decisão (All Serial
Transcripts, 2014, episódio 09, tradução nossa)48
.
47 Adnan Syed: And it occurred to me that day that I was going to ask her boyfriend, Jay, did he get her a gift?
So sometime during the day before noon--Sarah Koenig: Wait, Adnan, just hold up for a second. Why did you
care whether Jay got Stephanie a present? What's it to you? Adnan Syed: Well, Stephanie was a very close
friend of mine, as I mentioned. And I just kind of wanted to make sure that she also got a gift from him, you
know? She had mentioned to me that she was looking forward to getting a gift from him. 48
Christina Gutierrez: Are you prepared to make your election? Adnan Syed: Yes ma’am. Christina
Gutierrez And is your election to testify or to remain silent? Adnan Syed: To remain silent. Christina
Gutierrez: Thank you. Do you have any questions about making that election? Adnan Syed No ma’am. Sarah
Koenig: That’s Adnan not testifying. He told me he wanted to but his attorney advised against it. Not
uncommon. It’s a huge risk to open your client up to cross examination and impeachment. So, there he was.
Mute through two trials, about five weeks total which is really hard for anyone. Adnan Syed: It was very-- I
would say, probably the most stressful thing in my life. It’s kind of cliched to say, going through a trial, but more
105
Outro testemunho marcante na tessitura do enunciado é o da testemunha-chave da
acusação, Jay. Alguns detalhes que envolvem o testemunho de Jay ajudam a compreender o
papel que este personagem possui na narrativa. Primeiramente, conforme informado pela
narradora na própria série, Jay não aceitou gravar entrevistas, sendo que houve apenas
algumas trocas de emails entre ele e a equipe de produção. Porém, não houve muito avanço
nestas conversas e seu testemunho no tempo atual não é aproveitado na narrativa. Nesse
contexto, é relevante registrar que em nenhum momento ouve-se o sobrenome de Jay nos
episódios, sendo um dos poucos personagens que vivenciaram o acontecimento àquela época,
junto com algumas pessoas que pediram para não serem identificadas pela narradora (e que
inclusive tiveram suas vozes alteradas), em que não se revela a identidade completa.
A ausência do sobrenome parece um pequeno detalhe, porém é indício de como Jay se
faz presente na série. Seu testemunho integra a construção do discurso jornalístico de Serial
sempre de forma indireta, já que não há diálogos gravados diretamente entre ele e Sarah.
Somente escutamos a voz de Jay por meio de gravações antigas, feitas nos seus inúmeros
depoimentos aos detetives que investigaram o crime e durante o julgamento. Outra estratégia
para conhecer este personagem ocorre na descrição feita pela jornalista, em momentos da
série que ela analisa o comportamento de Jay, a versão dele sobre o ocorrido e também
quando ela expõe falas de amigos e colegas que o conheceram e comentaram sobre a
personalidade da principal testemunha utilizada na acusação contra Adnan. No episódio 4,
que analisa as inconsistências da investigação da acusação, Sarah resgata gravações com o
depoimento de Jay aos detetives responsáveis pelo caso, utilizando seu depoimento para
construir sua argumentação narrativa ao mesmo tempo que permite que seu público conheça
Jay e desenvolva suas impressões sobre a testemunha.
Detetive MacGillivary: Quando você estava saindo do estacionamento. Por que
você não parou seu carro, e digamos, ligou pra polícia e disse “alguém acabou de
cometer um assassinato. Tem um corpo no porta mala de um carro”? Jay: Bem, eu
estava muito assustado e não pensei direito, como deveria ser. Detetive: De quem
você estava com medo caso você fizesse uma denúncia anônima e desse a descrição
do carro? Jay: Podemos parar por um momento? Detetive: Sim. Jay: Você pode
parar um pouco? Detetive: Se você tem alguma pergunta, você tem que perguntar na
gravação. Jay: Eu não entendo esta linha de questionamento (All Serial Transcripts,
2014, episódio 4, tradução nossa)49.
so sitting there for so long, for so many days and weeks knowing that this jury is sitting there looking at me and
ultimately they’re going to be the ones to make the decision. 49
Detective MacGillivary: When you are driving off the parking lot. Why don't you stop your car, and say, call
the police and say “someone has just committed a murder. There's a body in the trunk of a car?” Jay: Um, I was
just scared and I didn't really think, like-like how it is. Detective:Who are you afraid of if you make an
anonymous phone call and you give a description of her car? You give them the tag number of her car... Jay:
Can we stop for a second? Detective:Yes. Jay: Can you stop that? Detective: If you have any questions, you can
ask me on tape. Jay: I don't understand this line of questioning.
106
A consistência do enunciado se desenha, principalmente, por meio de depoimentos
que se enquadram no mesmo estilo dos testemunhos de Adnan e Jay, ou seja, amigos, colegas,
professores e funcionários da escola, membros da comunidade, familiares, detetives, entre
outros, que vivenciaram o acontecimento de forma mais direta, têm seus testemunhos
acionados por Sarah Koenig tanto por conversa direta gravada com a jornalista, quanto pelo
resgate de gravações antigas, documentos e material relacionados ao crime que servem de
referência para a construção da história. No entanto, para completar o processo de
configuração de sua narrativa, Sarah também cede espaço a um perfil de testemunho mais
indireto, dando voz às pessoas que não têm nenhum envolvimento direto com Adnan ou Hae,
porém são especialistas que utilizam seu conhecimento para apresentar sua perspectiva de
análise sobre o caso e contribuem para um aprofundamento de detalhes desta investigação
jornalística.
No início da série, Sarah Koenig conversa com Justin George, um repórter policial do
jornal Baltimore Sun, que a auxilia com seus conhecimentos profissionais a analisar as
evidências do caso, como ocorre no momento em que ambos estão avaliando as fotografias da
cena do crime. De acordo com Sarah, a experiência e comentários do repórter lhe foram úteis
para ajudá-la na busca de novos detalhes que ela própria não havia considerado.
Outro exemplo desse tipo de testemunho está no sétimo episódio de Serial, quando a
jornalista conversa sobre a acusação construída em torno de Adnan com a advogada Deirdre
Enright, integrante de um projeto especializado em reinvestigar casos de pessoas acusadas
erroneamente pela justiça norte-americana. Sarah apresenta a história de Adnan para a
advogada que aponta elementos que a narradora ainda não considerou em suas interpretações,
como quando Deirdre indica à jornalista que o fatores como religião e xenofobia – o rapaz é
de descendência muçulmana – deve ser levado em consideração.
Deirdre Enright: Quando você mencionou o caso pela primeira vez pra mim, a primeira coisa que eu pensei foi: “okay, nós temos um informante na prisão? Nós
temos uma pessoa que escapou da pena por conta de um acordo?” Quando eu li o resumo das notas policiais, eu ficava voltando ao motivo e pensando “aqui tem um grande buraco negro”. Eu ainda não entendi por que ele queria essa garota morta. Por que ela terminou com ele? As pessoas terminam com as outras o tempo todo. Eu
estou um pouco preocupado com o perfil racial aqui, sabe? Sarah Koenig: Sério? Pelo lado do Adnan. Em outras palavras porque ele é paquistanês muçulmano e --
(All Serial Transcripts, 2014, episódio 07, tradução nossa)50
.
50 Deirdre Enright: You know when you first talked to me about this case, the first thing I thought is:
“okay, do we have a jailhouse informant? Do we have a person who got way too sweet of a deal?” When I read through your summary of your police notes, I just kept going back to motive and thinking “that’s a big black hole” for me. I still don’t understand why you want this girl dead. Because she broke up with you? People break up with people all the time. I’m a little concerned about racial profiling here, you know? Sarah Koenig: Oh really? On the part of Adnan. In other words that he’s a Pakistani muslim and--
107
Ao considerarmos o contexto que envolve as variações de testemunhos na narrativa da
primeira temporada de Serial, enxergamos elementos que abordam de forma indireta na
narração personagens que vivenciaram o acontecimento. É o caso dos familiares de Hae Lee
que somente são mencionados pelo testemunho de Sarah Koenig. A família de Hae se recusou
a contribuir com o podcast e, por consequência, obviamente não há depoimentos em
conversas gravadas, e sim apenas o testemunho descritivo da jornalista que menciona a
preocupação da família ao descrever o acontecimento do crime, como por exemplo, a
preocupação da mãe e do irmão que ligam para a polícia no mesmo dia em que ela foi
assassinada, já que haviam recebido uma ligação da escola da prima pequena, informando que
Hae não apareceu para buscar a garota, como fazia habitualmente. Ainda nessa lógica de
testemunhos acionados de forma indireta, há também o exemplo de Don, namorado de Hae
após Adnan, que surge no episódio 10. Sarah relata que Don inicialmente havia se recusado a
participar, pois acreditava não ter nenhuma informação a acrescentar, porém com a
repercussão do podcast ele volta atrás em seu posicionamento, conversa com a jornalista, mas
pede para não ter sua voz divulgada na série, sendo que seu depoimento integra o enunciado
apenas de forma indireta, pelo testemunho de Sarah sobre o que Don lembrava do dia do
assassinato e da época do julgamento.
Para buscarmos aprofundar a análise do ciclo da configuração narrativa de Serial,
optamos por acionar as reflexões sobre lugar de fala de José Luiz Braga (2000) com a
finalidade de compreender as intenções de sentido da instância de enunciação com os
receptores-usuários do podcast, levando em consideração que, apesar de haver uma intenção
em produzir um efeito de sentido pré-estabelecido por parte do enunciador, novos significados
acerca de uma realidade representada podem emergir ao atingir a instância de recepção,
conforme aponta Patrick Charaudeau (2006a) em seus estudos dos contratos comunicacionais.
5.2.3 Ativação dos lugares de fala
Os sentidos propostos pela voz narrativa de Sarah Koenig também são essenciais para
a compreensão dos modos de configuração do enunciado desta série jornalística. Nesse
sentido, valemo-nos das reflexões de José Luiz Braga (2000) como recurso metodológico para
avaliarmos a estrutura lógica que articula a fala – a qual corresponde ao discurso construído
por Sarah Koenig – e a situação de realidade que esta representa.
(...) o lugar de fala não corresponde ao “contexto”, mas ao lugar construído pelo
discurso nesse contexto – o ângulo proposto estruturalmente pela fala para “ver” a
108
realidade – ou mais exatamente, segundo o qual a realidade – ou mais exatamente,
segundo o qual a realidade se constitui em sentido (BRAGA, 2000, p.168).
Conforme a categoria de análise da função do testemunho (item 5.2.2), entende-se que
o papel de Sarah Koenig é essencial para a tessitura da narrativa, funcionando como elemento
primordial ao dar uma segunda vida ao acontecimento (QUÉRÉ, 2012), alternando o seu
próprio testemunho com as entrevistas e gravações antigas relacionadas à investigação do
crime na construção do conjunto dos 12 episódios. Assim, a centralidade de Koenig serve de
ponto de partida para avaliarmos sob qual perspectiva se constrói o sentido da narrativa de
Serial.
É a partir de seu posto de emissora/narradora que a jornalista convoca o ouvinte a
construir sua interpretação acerca dos acontecimentos narrados. E justamente ao
considerarmos a fala de Sarah Koenig, que se percebe uma pré-determinação de sentido a ser
seguido, deixando para o ouvinte uma espécie de caminho a ser trilhado na interpretação do
conteúdo apresentado por ela no podcast. Faz-se importante observar, primeiramente, como a
narradora propõe à instância de recepção enxergar aquela realidade através de seu discurso
direto e incisivo, compartilhando no enunciado, de forma intimista, suas opiniões e
sentimentos quanto à sua própria investigação jornalística. Exemplo disso está no último
episódio da série, quando Sarah Koenig através do próprio testemunho dialoga diretamente
com o ouvinte, utilizando, inclusive, o termo você, o que dá um tom de conversa para o
discurso jornalístico.
Caso você não tenha reparado, minhas opiniões sobre o caso de Adnan, sobre quem está mentindo e por que, não se mantiveram firmes durante o curso desta história.
Várias vezes, eu tomava uma decisão e permanecia nela, com alívio e então,
inevitavelmente, eu aprendia algo que eu não sabia antes e minha certeza acabava. Às vezes, a reversão levava algumas semanas pra acontecer, às vezes acontecia em
algumas horas. E o que tem sido muito surpreendente é como o vai e volta não
cessa, depois de todo esse tempo. Mesmo nesta semana, e eu não estou brincando com você, mesmo neste dia em que eu estou escrevendo isto. Porque eu tomo
conhecimento de novas informações o tempo inteiro (All Serial Transcripts, 2014,
episódio 12, tradução nossa)51
.
No trecho citado acima, pode-se perceber que o recurso dialógico convoca o ouvinte
de Serial a realizar a mesma reflexão que Sarah faz no balanço final da série, o que nos leva à
compreensão de que há uma proposição de sentido feita pela narradora a seu público. Após
51
In case you haven’t noticed,my thoughts about Adnan’s case, about who is lying and why, have not been fixed
over the course of this story. Several times, I have landed on a decision, I’ve made up my mind and stayed there ,
with relief and then inevitably, I learn something I didn’t know before and I’m up ended. Sometimes the reversal
takes a few weeks, sometimes it happens within hours. And what’s been astonishing to me is how the back and
forth hasn’t let up, after all of this time. Even into this very week and I kid you not, into this very day that I’m
writing this. Because I’m learning new information all the time.
109
mais de um ano de trabalho nesta investigação, conforme relata a própria narradora da série,
ela enxerga que as evidências do caso analisadas nos 11 episódios anteriores apontam para
imprecisão tanto na versão da acusação quanto na versão de defesa do próprio Adnan. E, ao
esclarecer isso no episódio final, ela expõe sua intencionalidade quanto aos destinatários do
podcast, buscando convencer o público de Serial de que não há como definir quem é o
responsável pelo assassinato da jovem Hae Lee.
Este lugar de fala proposto pela instância narrativa de Serial remete então, em linhas
gerais, ao aspecto inconclusivo da investigação proposta pela série. Mesmo com a análise
aprofundada de uma ampla gama de detalhes vinculados ao crime, Koenig ainda deixa claro
ao seu ouvinte que a cada nova informação que recebe sobre o caso ela fica mais distante de
solucioná-lo (o que não significa que em algum momento ela teve a pretensão de um
encerramento concreto). Em outro momento do episódio final da série, Sarah novamente em
seu discurso reforça que suas “certezas” sobre Adnan ser culpado ou inocente se alteram a
cada aspecto do caso investigado. É o que acontece quando ela lembra da ligação de Nisha
(uma jovem que Adnan tinha saído algumas vezes após o término com Hae).
No episódio 5, Sarah acreditava que uma das evidências da acusação que realmente
complicava a situação de Adnan era esta ligação telefônica. Segundo os detetives, Adnan fez
uma ligação para Nisha e a colocou pra conversar com Jay na tarde em que Hae foi
assassinada, o que provava que Jay e Adnan estiveram juntos naquele dia, ao contrário do que
o acusado afirmava. Porém, no último episódio, ela reavalia junto com a equipe de produção
do podcast esta evidência e aponta para o ouvinte o aspecto inconclusivo desta ligação, pois,
ao mesmo tempo em que complica Adnan, há indícios de que pode não ter acontecido na
mesma tarde da execução do crime. Sarah Koenig relata, então, ter encontrado uma brecha
nos contratos da empresa telefônica do celular de Adnan em 1999, que se referia a ligações
que poderiam ser cobradas mesmo não sendo atendidas, apresentando, portanto, uma
alternativa sobre o telefonema ter realmente ocorrido naquela tarde.
Eu sei que esta é uma longa e talvez exageradamente detalhada maneira de explicar isto, mas tudo isso adiciona um elemento importante. Significa que a ligação de
Nisha concebivelmente poderia ser uma discagem automática que ninguém atendeu.
Significa que não há somente uma explicação para a ligação de Nisha. Há cenários alternativos. Poderia ser Adnan chamando Nisha, ou poderia ser que Jay ou alguma
outra pessoa tenha ligado para Nisha, ou talvez Jay ou alguém tenha ligado para Nisha acidentalmente. Se existem cenários alternativos, então isso significa que a
lista de coisas que sabemos, na verdade que sabemos definitivamente, fatos que
podemos mostrar sobre as evidências contra Adnan, esta lista acabou de encurtar
(All Serial Podcasts, 2014, episódio 12, tradução nossa)52
.
52
I know that’s a long and perhaps way too detailed way of explaining it but all this adds up to something
important. It means the Nisha call could conceivably have been a butt dial that no one answered. It means there
110
Este lugar de fala que se apresenta pelo desenrolar do discurso de Serial emerge
também do embate entre outros depoimentos que Sarah insere na narrativa, em uma espécie
de debate sobre o significado de todo o material apurado para a história. A jornalista cede
espaço à fala de Dana Chivis, integrante da equipe de produção da série. Koenig descreve
Dana como a pessoa que sempre melhor seguia a lógica por trás das evidências, sendo a
mente mais racional por trás das investigações. E, em seguida a essa descrição da narradora
sobre sua colega, escuta-se a opinião de Chivis sobre o caso:
Dana Chivis: Adnan sempre disse que foi ideia dele emprestar o carro a Jay porque
ele queria que Jay comprasse para Stephanie um presente de aniversário, certo?
Então, é muito azar você emprestar pra esse cara, que acaba apontando o dedo pra
você no assassinato em que você emprestou a ele o seu carro e celular no dia em que
sua ex-namorada desaparece. A outra coisa é que parece bem claro pra mim que
Adnan pediu uma carona a Hae após a escola, porque nós temos pelo menos dois
dos amigos deles afirmando o terem ouvido pedir uma carona de Hae.(...) Então a
outra peça de azar é a ligação de Nisha. Mesmo que a ligação de Nisha possa ter
sido potencialmente uma discagem automática, talvez tenha sido uma discagem
automática, mas quais são as chances? Isso é péssimo para você, que seu telefone
ligou automaticamente para uma garota que só você conhecia e ligaria neste dia que
sua ex-namorada desaparece e que acontece que você também emprestou seu carro e
seu telefone para o cara que acaba apontando o dedo pra você (All Serial
Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)53
.
Após este testemunho de Dana Chivis, dá-se uma interferência de Sarah Koenig que
entra em cena para comentar sobre a opinião da colega. A jornalista afirma que a perspectiva
de Chivis é lógica e é corroborada de certa forma por essas evidências. No entanto, a
narradora reforça o caráter inconclusivo da investigação feita pela série ao discordar de Dana
e afirmar aos ouvintes que há certos detalhes destas mesmas evidências que ainda são
contraditórios e não incriminam completamente Adnan. E para manter firme a perspectiva de
compreensão do acontecimento, no intuito de justificar o posicionamento de dúvidas que
continuam a pairar sobre o caso, a narradora resgata outra fala além da sua: a opinião do
detetive de homicídios, Jim Trainum, contratado pela produção do podcast e que defende que
há fortes inconsistências na acusação contra Syed.
isn’t only one explanation for the Nisha call. There are alternative scenarios. It could be that Adnan called Nisha,
or it could be that Jay was with somebody else who called Nisha, or maybe Jay or someone else called Nisha by
accident. If there are alternative scenarios, then that means the list of things we know, actually definitively know,
facts we can show about the evidence against Adnan, that list just got shorter. 53
Dana Chivvis: Adnan has always said it was his idea to loan Jay the car because he wanted Jay to go get
Stephanie a birthday present, right? So, that’s pretty crappy luck that you loaned this guy, who ends up pointing
the finger at you for the murder that you loaned him your car and cell phone the day your ex -girlfriend goes
missing. The next thing is that it seems pretty clear to me that Adnan asked Hae for a ride after school, because we’ve got at least two of their friends saying they overheard him ask for a ride fromHae. (...) Then the next piece
of bad luck is the Nisha call. I mean, even if the Nisha call could potentially be a butt dial, in the realmof
possibility,maybe it was a butt dial, but what are the chances? That sucks for you that your phone butt dialed a
girl that only you know and would call on this day that your ex-girlfriend goes missing that you happen to loan
your car and your phone out to the guy who ends up pointing the finger at you.
111
Então nós chamamos Jim Trainum de volta. Ele é um ex-detetive de homicídios que nós contratamos para examinar novamente a investigação e nós perguntamos a ele,
“se o caso de Adnan era singular? Se nós pegarmos uma lente de aumento para
qualquer caso de assassinato, acharíamos questões similares, brechas similares, inconsistências similares?” Trainum afirmou que não. Ele disse que na maioria dos
casos, claro que eles têm alguma ambiguidade, mas no geral, eles são justos e esclarecedores. Este caso é uma bagunça, ele disse. As inconsistências são maiores
do que deveriam ser. Outras pessoas que costumam revisar casos, advogados,
psicólogos forenses, eles nos disseram a mesma coisa. Este caso é uma bagunça (All
Serial Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)54
.
O uso de depoimento de quem vivenciou o acontecimento à época do crime também
reforça o posicionamento de inconclusividade e incerteza sobre as evidências do assassinato
de Hae, como podemos observar no exemplo em que a narradora dá voz a Adnan, que
argumenta sobre as dúvidas que sempre existirão por parte do público que acompanha o
podcast.
Adnan Syed: Eu estava pensando outro dia, eu tenho certeza que ela [Sarah Koenig]
tem pessoas dizendo a ela, “veja bem, você sabe que este caso é...ele provavelmente
é culpado. Você está enlouquecendo tentando descobrir se ele é inocente o que você
não vai descobrir, porque ele é culpado”. Eu acho que você nunca vai ter 100% de
certeza ou qualquer tipo de certeza sobre isso. A única pessoa no mundo inteiro que
pode ter essa certeza sou eu. Ou, só para constar, quem quer que seja que fez isso.
Sabe, você nunca terá essa certeza, eu não acho que terá (All Serial Transcripts,
2014, episódio 12, tradução nossa)55
.
Este lugar de fala que aponta para dúvidas e inconclusão não estava definido desde o
primeiro episódio. É notório que, apesar de estar há mais de um ano pesquisando sobre o caso,
Sarah Koenig faz novas descobertas à medida que produz e divulga cada um dos 12 episódios.
Nos primeiros episódios da série, a narradora explicita aos ouvintes sua crença na existência
de uma pessoa específica mentindo, ao expor sua dúvida entre a veracidade da versão de Jay
para a polícia e da versão de Adnan. Em alguns momentos, aponta seu caminho investigativo
para um potencial aspecto de inocência em Adnan, questionando se aquele jovem que todos
afirmavam ser querido em sua comunidade seria capaz de cometer tal atrocidade. No entanto,
ela também toma conhecimento de novas informações que fazem suas certezas sobre Adnan
desaparecerem no desenrolar da investigação jornalística apresentada aos seus ouvintes.
54 So we called Jim Trainumback up. He’s the former homicide detective we hired to review the investigation
and we asked him, “is Adnan’s case unremarkable? If we took a magnifying glass to any murder case, would we
find similar questions, similar holes, similar inconsistencies?” Trainumsaid no. He said most cases, sure they
have some ambiguity, but overall, they’re fairly clear. This one is a mess he said. The holes are bigger than they
should be. Other people who review cases, lawyers, a forensic psychologist, they told us the sa me thing. This
case is a mess. 55
Adnan Syed:I was just thinking the other day, I’m pretty sure that she has people telling her, “look, you know
this case is-- he’s probably guilty. You’re going crazy trying to find out if he’s innocent which you’re not goi ng
to find because he’s guilty.” I don’t think you’ll ever have one hundred percent or any type of certainty about it.
The only person in the whole world who can have that is me. For what it’s worth, whoever did it. You know
you’ll never have that, I don’t think you will.
112
Quando Rabia me contou pela primeira vez sobre o caso de Adnan, certamente, de
um jeito ou de outro parecia tão alcançável. Nós só precisávamos dos documentos
certos, investir tempo suficiente, conversar com as pessoas certas, encontrar seu
álibi. Então eu encontrei a Asia, e ela era real e lembrava e todos nós pensamos “o
quão difícil isso pode ser? Nós só precisamos continuar”. Agora, mais de um ano
depois, eu sinto que estou sacudindo todos pelos ombros como um policial
provocador. Não venha me dizer que Adnan é um cara bacana, não venha me dizer
que Jay estava assustado, não venha me dizer quem talvez tenha feito alguma
ligação telefônica de cinco segundos. Somente me apresente os fatos, porque nós
não o tínhamos há 15 anos e nós ainda não os temos agora (All Serial Transcripts,
2014, episódio 12, tradução nossa)56
.
E assim se instaura o ciclo da dúvida, que permanece até o final da série e se define,
por assim dizer, também como um lugar de fala, ou seja, o modo como aquela realidade é
compreendida pela instância narrativa e repassada aos seus destinatários que, por sua vez,
constroem suas interpretações e ressignificam o acontecimento em questão. Para observamos
como ocorre a continuidade do processo de significação em torno do meta-acontecimento em
estudo nesta dissertação, voltamos nosso olhar para as reverberações nas redes sociais
digitais, espaço onde se manifesta a mimese III (RICOEUR, 2010), em que a instância de
recepção do podcast produz sentidos que ultrapassam o proposto pela instância narrativa da
série e completam o ciclo da atividade mimética de Serial.
5.3 Construção de sentido e reverberações
A compreensão do processo comunicacional que envolve o podcast Serial está
vinculada nesta pesquisa às mediações estabelecidas pelo discurso jornalístico da série. É
importante relembrar que a noção de mediação aplicada ao nosso objeto empírico corresponde
às reflexões de Jesús Martin-Barbero (1997), que a considera como um amplo processo de
negociação de sentidos guiado por atores sociais aliados aos dispositivos midiáticos em uma
troca comunicacional.
A eleição de trabalhar narrativamente um acontecimento ocorrido há mais de 15 anos
e sua transformação em um meta-acontecimento (RODRIGUES, 1993) que circula pelas
redes digitais no tempo presente demonstra que a tessitura de uma narrativa jornalística pode
gerar novos significados com interpretações diferentes das que ocorreram à época. A análise
56
When Rabia first told me about Adnan’s case, certainty, one way or the other seemed so attainable. We just
needed to get the right documents, spend enough time, talk to the right people, find his alibi. Then I did find
Asia, and she was real and she remembered and we all thought “how hard could this possibly be? We just have
to keep going.” Now, more than a year later, I feel like shaking everyone by the shoulders like an aggravated
cop. Don’t tell me Adnan’s a nice guy, don’t tell me Jay was scared, don’t tell me who might have made some
five second phone call. Just tell me the facts, because we didn’t have them fifteen years ago and we still don’t
have them now.
113
da configuração narrativa da primeira temporada de Serial (item 5.2) permitiu avaliar apenas
uma parte do ciclo da atividade mimética em questão, restando ainda compreender quais os
possíveis sentidos gerados pela instância de recepção do podcast, instância esta
correspondente à etapa da mimese III de Paul Ricoeur (2010).
Extrapolar então a instância emissora de Serial é vital para compreender todo o
processo comunicacional. Além da configuração discursiva da série e os sentidos inicialmente
propostos, faz-se necessário acrescentar a observação das práticas interacionais que emergem
após a circulação deste podcast. A partir dessa perspectiva, o papel do receptor-usuário de
Serial será observado pelo viés da radiofonia expandida, em que Marcelo Kischinhevsky
(2014) argumenta como a prática comunicacional do podcast ainda preserva na configuração
narrativa a essência da linguagem sonora da radiofonia tradicional, porém apresenta relevante
inovação em suas práticas interacionais, assim como ocorre em Serial.
Existe, portanto, um lugar de fala construído pela narrativa de Sarah Koenig que
compreende como inconclusivo o caso de Adnan Syed, mostrando que, no passado, a
investigação e o julgamento pela Justiça que resultou em sua condenação à pena máxima
ocorreram de forma obscura, deixando dúvidas ao ouvinte se o processo foi realmente justo.
E, apesar de a instância de produção do podcast propor aos receptores-usuários debater e
interpretar os diversos aspectos do caso abordado pela série nos perfis oficiais das redes
sociais digitais, a continuidade da construção do sentido proposto pela instância narrativa
toma rumos que escapam do controle da equipe de produção de Serial e se manifestam de
forma independente pela rede digital.
Para esta análise das reverberações selecionamos, então, um dos ambientes das redes
sociais em que se observou intensa produção de sentido acerca do acontecimento midiatizado:
o Reddit. Nesta rede, que funciona como uma espécie de comunidade virtual em que os
usuários debatem qualquer conteúdo que circula pela internet, funcionando como uma espécie
de fórum digital, elegemos o debate gerado logo após a divulgação do último episódio da
temporada, levando em consideração que neste momento o receptor-usuário de Serial teve
acesso à narrativa em sua completude e estava apto a opinar de forma ampla. Ressalta-se que
a análise das reverberações aqui proposta não possui caráter quantitativo, já que o objetivo
principal é observar a diversidade dos lugares de fala provenientes das interações entre os
receptores-usuários por meio da seleção de comentários representativos desta multiplicidade
de leituras acerca do meta-acontecimento.
114
Os usuários do Reddit criaram então uma página dedicada57
para debater
exclusivamente o podcast Serial. Ao longo da circulação da série, e também após o seu
término, foram criados centenas de debates com um intenso volume de comentários. Diante
deste excesso de volume informacional, foi selecionada para análise a discussão oficial58
da
comunidade em torno do último episódio. O critério de seleção tem como base o sistema de
pontuação do Reddit. Cada conteúdo publicado nesta rede possui um número de pontos, que é
resultado da diferença entre os votos positivos e os negativos dos usuários. A discussão oficial
do episódio final aparece entre os debates com pontuação mais elevada da página de Serial no
Reddit, sendo que 96% dos usuários da rede a avaliaram como positiva, de acordo com dado
disponível na própria página da discussão.
O mesmo critério de pontuação, dada pelos próprios usuários, também se aplica à
amostra de comentários selecionada para compreender a construção de sentidos em torno de
Serial. Ao todo, foram 3.465 comentários, sem limites de caracteres no texto. Optamos por
avaliar os 200 mais relevantes, ou seja, os 200 comentários com a pontuação mais elevada de
acordo com os votos dados na avaliação dos próprios usuários do Reddit. A discussão foi
publicada por um dos moderadores do grupo, cujo nome de usuário é SerialFan, no dia 18 de
dezembro de 2014, quando ocorreu o lançamento do último episódio nas redes digitais.
SerialFan inicia o debate com elogios ao fórum e aos participantes e, ao final de sua
publicação inicial, o moderador propõe possíveis linhas de debate para organizar o que será
discutido pelos receptores-usuários da série, como observamos neste trecho:
(...) A quantidade de atenção que este subreddit obteve da imprensa foi uma
experiência que eu não esperava. A gente já não era mais simples ouvintes, nós nos
transformamos em participantes ativos. Algumas vezes, nós falhamos, nos
precipitamos, rotulamos erroneamente eles como “personagens”, mas no geral,
fomos respeitosos, embora obssessivos. Eu não sei o que nos aguarda no episódio
final. Eu não sei o que acontecerá na segunda temporada. Eu não sei o que
acontecerá por causa de nossa influência e atenção sobre este caso. Mas eu sei que
isto tem sido maravilhoso, então muito obrigado! Vamos usar o seguinte guia para
discutir o episódio 12 de Serial.
- Primeiras/últimas impressões?
- O episódio frustrou, manteve ou excedeu suas expectativas?
- Você voltará se tiver uma 2ª temporada?
- Você vai acompanhar este subreddit após o fim da série? (Serial: The Podcast -
Reddit, 2014, tradução nossa)59
.
57
A página oficial criado pelos usuários do Reddit em que se encontram centenas de discussões sobre o podcast
Serial é denominada Serial: The Podcast – Reddit e encontra-se disponível em
<https://www.reddit.com/r/serialpodcast>. Último acesso no dia 08/07/2017. 58
A discussão oficial criada no mesmo dia do lançamento do último episódio da primeira temporada de Serial
foi intitulada pelos usuários de Serial, Episode 12: What We Know e encontra-se disponível em
<https://www.reddit.com/r/serialpodcast/comments/2pnyf9/official_discussion_serial_episode_12_what_we_kno
w>. Último acesso no dia 08/07/2017. 59
(...) The amount of attention this subreddit has gained from press was also an experience I did not expect. We
no longer were simply listeners, we became active participants. At times, we faulted, we rushed, we mislabeled
115
A partir desta publicação inicial do fórum sobre o episódio 12, obervou-se uma ampla
variação de interpretações sobre a série, com novas significações sobre o crime ocorrido há
mais de 15 anos. O lugar de fala em que Sarah Koenig se posiciona, demonstrando a
inconclusividade com o apontamento de sérias lacunas na investigação, é reforçado nas
reverberações do Reddit. Nota-se uma espécie de derivação deste lugar de fala, com maior
aprofundamento de detalhes e maior variação de posicionamentos em relação a uma possível
solução do assassinato de Hae Lee.
Entre as diversas derivações de sentidos, é possível destacar conversas sobre
evidências do caso apontadas por Sarah, porém não aprofundadas durante a narrativa, que
demonstram uma espécie de continuidade da investigação por parte dos receptores-usuários.
Um comentário de alta pontuação no Reddit feito pelo usuário all the emotions destaca a
possibilidade levantada pela jornalista sobre a realização do teste de DNA de Hae, que nunca
foi feito durante todos esses anos, com possibilidades de estar vinculado a um assassino
diferente de Adnan.
Tudo o que eu posso dizer é que eu não acho que Adnan deveria ter sido condenado, e se o Innocence Project [projeto que reúne advogados especializados em inocentar acusados erroneamente pela justiça] encontrar qualquer motivo para tirá-lo da
cadeia, eu espero que este seja o resultado, e que a família de Lee possa concordar com isso. E mesmo se, depois de tudo isso, o DNA retornar e for o DNA de Adnan embaixo das unhas dela – bem. Isso não muda minha percepção sobre negligência do sistema judicial, mas talvez todo mundo possa dormir melhor à noite (Serial: The
Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)60
.
Neste mesmo comentário, o usuário all the emotions levanta alguns aspectos do último
episódio que lhe chamaram atenção, entre eles o seu questionamento sobre por que Adnan só
considerou agora, a sugestão (feita pelo grupo Innocence Project durante o podcast) de exigir
o teste de DNA como evidência para a investigação. O questionamento da evidência do DNA
é bastante debatido ente os receptores-usuários, que se posicionam a favor de Adnan, sem
necessariamente o considerar inocente das acusações, mas certamente se arriscam mais em
them as "characters," but overall, we were respectful, albeit obsessive. (...) I don't know what today's finale has
in store. I don't know what will happen in the second season. I don't know what will happen because of our
influence or our attention to this case. But I know this has just been wonderful, so thank you! Let's use this
thread to discuss Episode 12 of Serial.
- First/last impressions?
- Did the episode disappoint, meet or exceed your expectations?
- Will you be back for Season 2?
- Will you be checking the subreddit in the 'off-season'?
60 All I can say is that I don't think Adnan should have been convicted, and if the Innocence Project turns up any
reason to get him out of jail, I hope that that the outcome, and the Lee family can come to terms with that. And if
after all of this, the DNA comes back and there is Adnan's DNA under her fingertips - well. That doesn't change
my perception about a miscarriage of the judicial system, but maybe everyone can sleep a little easier at night.
116
defendê-lo, diferente da preucação de Sarah Koenig que pondera até o último episódio. Os
receptores-usuários começam a se posicionar mais pela ótica de uma possível inocência de
Adnan por meio dessa questão do teste de DNA, como se observa no comentário do usuário
nosmalltalk:
Oh cara, quando ele estava chocado ao falar sobre a evidência nunca ter sido checada nesses 15 anos...Eu pensei que eu tinha isolado minha mente sobre o peso dessa história e o que ela significa na realidade, mas não é simplesmente “entretenimento”. Ouvir isso foi um lembrete brutal de o quão intenso são esses erros e como existe uma possibilidade real de um homem inocente estar na cadeia durante a metade da sua vida e, como Julie [também produtora de Serial] apontou...é
muita falta de sorte!! (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)61
.
Nota-se uma forte comoção sobre a possibilidade de Adnan ter passado metade de sua
vida injustamente na prisão e com isso o público de Serial se manifesta cada vez mais a favor
das evidências que podem livrá-lo da sentença máxima e pelo menos lhe garantir uma
investigação mais justa. Esta postura é evidente no comentário do usuário thefinish, que clama
por justiça também pela evidência do DNA apontada na série.
Este foi um momento brilhante para ser captado na gravação e realmente me fez parar pra pensar na realidade da situação de Adnan. Eu espero, qualquer que seja o resultado, que algumas coisas possam ser esclarecidas com o teste de DNA (Serial:
The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)62
.
Outro aspecto do caso, levantado no episódio 12, é o testemunho de Don sobre o
comportamento do promotor Kevin Urick. Sarah Koenig relata na série que Don estranhou o
fato de Urick ter gritado com ele, pois seu depoimento no julgamento não fez Adnan parecer
um assassino. Este elemento da narrativa também foi bastante repercurtido no Reddit,
servindo de argumento para manter a defesa de Adnan, ou pelo menos, que a justiça não
conduziu bem a investigação sobre o caso, conforme se percebe no comentário da usuária
asha24:
Tem mais alguém intrigado com o que o Don declarou sobre Urick? Ele gritou com
ele por não fazer Adnan parecer suficientemente assustador? Isso faz com que a
ideia de que algo estranho aconteceu durante a conversa entre Urick e Asia [possível
álibi de Adnan] seja muito mais credível para mim, especialmente desde que Asia
declarou em público que ainda se mantém firme quanto a seu depoimento
juramentado. A ligação de Nisha pode ter sido uma discagem automática. No
entanto, Dana tem razão, isso seria realmente muito azar, mas torna a ligação de
61 Oh man when he was choking up talking about the evidence going unchecked for 15 years....I thought I had
wrapped my mind around the weight of this "story" and what it meant on a real level and not just an
"entertainment" one, but damn it. Hearing that was a brutal reminder of how high these stakes are and how
there's a very real possibility an innocent man has been in prison for half of his life based on a lie and as a Julie
put it....very fucking bad luck!! 62
This was such a brilliant moment to catch on tape and really gave me pause on the reality of Adnan's situation. I
hope, whatever the outcome, that some things can be resolved with the DNA test.
117
Nisha menos importante a meu ver (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução
nossa)63
.
A crítica à atuação da promotoria permanece e também gera grande movimentação de
comentários. Há receptores-usuários que ressaltam a má condução do caso de Adnan Syed e
argumentam sobre a fragilidade e negligência da justiça norte-americana, como ocorre no
comentário do usuário reddit1070: “Vejam o link deste artigo. É de autoria de um defensor
público falando sobre como os promotores, ao invés de tentarem serem justos, querem
simplesmente ganhar a todo custo (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)64
”.
Além disso, os receptores-usuários também acreditam que há ligação neste comportamento do
promotor Urick com uma possível indução ao depoimento de Jay, cujos detalhes modificam a
cada interrogatório. “Isso me faz imaginar o que será que eles fizeram com Jay (Serial: The
Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)65
”, afirma o usuário RunDNA em crítica à condução
do caso e ao fato de a acusação ter como justificativa chave o depoimento inconstante de Jay.
Outro debate que se faz muito presente nas reverberações do Reddit gira em torno de
Jay. De um modo geral, os receptores-usuários o enxergam como alguém de caráter duvidoso
e seu testemunho para muitos não é suficiente para incriminar Adnan, já que, a todo
momento, Jay altera detalhes das evidências contra o acusado. No entanto, nota-se uma
ambiguidade na postura dos internautas, pois, ao mesmo tempo em que acreditam na
possibilidade de provas insuficientes, entendem que não há como ignorar totalmente a
testemunha-chave, já que ele sempre teve ciência de quem era o assassino de Hae,
independente de ser Adnan ou um terceiro que o ameaçava, conforme comenta o usuário
totallytopanga:
A atualização do Innocence Project, na minha opinião, foi ofuscada pelo depoimento de Josh sobre Jay ter – o tempo todo – afirmado que sabia quem era o assassino. De maneira alguma a polícia foi até ele e disse algo tipo “nós vamos eventualmente jogar isso em cima do ex-namorado e nós precisamos de você para construir o caso agora”. O que é triste. Eu quero que isso faça sentido (Serial: The
Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)66
.
63 Anyone else intrigued by what Don said about Urick? He yelled at him for not making Adnan seem creepy
enough? This makes the idea that something iffy went on in the conversation between Urick and Asia much
more believable to me, especially since Asia just flat out said she still stands by her affidavit. Nisha call could be
a butt dial! Dana's right though, that's some seriously bad luck, but it does make the Nisha call less important for
me at least. 64
See the link from this article. It's by a public defender talking about how prosecutors, instead of trying to be
the minister of justice, are out to win at all cost. 65
Makes me wonder what they were doing with Jay. 66
The update from the innocence project, in my opinion, was overshadowed by Josh's statement that Jay had - all
along - been saying he knew who the murderer was. There is no way the police went to him right from the get-go
and were like "yo we are going to eventually pin this on the exboyfriend and we need you to start building up a
case now". Which is sad. I wanted this to make sense.
118
Apesar de os usuários do Reddit debaterem sobre a possibilidade da realização de um
exame de DNA - na época da investigação do crime este teste não chegou a ser realizado -
que demonstre compatibilidade com uma pessoa que não seja Adnan e se transforme em
prova para inocentá-lo, a usuária ireadberks reforça seu ceticismo quanto a essa possibilidade,
justamente pelo nível de envolvimento de Jay.
Eu ficaria mais surpreendida se eles descobrissem o DNA do serial killer do que se
eles descobrissem mais alguém. O fato de Jay saber onde o carro estava significa
que Jay estava certamente envolvido. Se este é o caso, e tem que ser, então porque
apontar o dedo para seu amigo ao invés de um serial killer que tinha acabado de sair
da prisão, se Jay estava ajudando o serial killer? (Serial: The Podcast - Reddit,
2014, tradução nossa)67
.
A discussão em torno do papel de Jay na investigação leva em consideração que os
depoimentos desta testemunha complicam Adnan, porém não completamente. Os receptores-
usuários levam em consideração nas suas ponderações as possibilidades em torno das
evidências apontadas por Jay, porém ainda permanece a sensação de que Adnan está sendo
acusado com provas de concretude duvidosa, como é notório neste comentário de baconwaffl:
Jay é a única pessoa que tem algum conhecimento do caso. Ele providencia as pás, se livra de evidências, leva a polícia ao corpo e ao carro. O caso se resume a Jay, um
mentiroso afirmando que Adnan fez. Ele apontou o dedo para Adnan e forneceu os detalhes que o condenaram; não há evidência física, somente a palavra de um traficante de droga que muda sua história constantemente. Independente de culpa ou inocência, nosso sistema judiciário deveria supostamente estar preparado para evitar condenar as pessoas sem nenhuma razão além de outra pessoa ter certeza que ele é
culpado. Você precisa de provas consistentes! (Serial: The Podcast - Reddit, 2014,
tradução nossa)68
.
A dinâmica das práticas interacionais no Reddit, em linhas gerais, se direcionam para
um intenso e complexo debate que funciona como uma espécie de continuidade da
investigação proposta pela narrativa do podcast Serial. O debate selecionado desta imensa
comunidade virtual, que teve início logo após o final da série jornalística, nos indica que as
significações construídas pelos receptores-usuários do podcast ultrapassam o lugar de fala
inicialmente proposto pela instância emissora, o que não significa que se distanciam do
sentido produzido por Sarah Koenig, como bem ilustra o seguinte comentário do usuário
PowerOfYes:
67
I'd be more shocked if they found the serial killer's DNA than if they found anyone else's. The fact that Jay
knew where the car was means Jay was certainly involved. If that's the case, which it has to be, then why point
the finger at his friend than a serial killer who just got out of jail if Jay was helping the serial killer? 68
Jay is the only person professing any knowledge. He provided the shovels, he got rid of evidence, he led the
police to the body and the car. The case came down to Jay, a known liar saying Adnan did it. He pointed the
finger at Adnan and provided the details that convicted him; there was no physical evidence just the word of a
drug dealer who changed his story constantly. Reguardless of guilt or innocence, our justice system is supposed
to be set up to avoid convicting people for no reason other than someone being sure they're guilty. You need
actual proof!
119
Não sei como elas conseguiram, mas de alguma forma SK [Sarah Koenig], Dana e
Julie chegaram a uma maneira de concluir uma história que é completamente sem
solução. Foi tipo um episódio-coração-na-boca – ela iria complicar Adnan
futuramente, iria fechar o caixão da culpa de Jay, iria destruir cada teoria louca
cuidadosamente trabalhada aqui neste subreddit? No final, SK está onde todos nós
parecemos estar, incertos sobre o que aconteceu, certos de que a justiça não foi feita.
A frustração de que a verdade é desconhecida persiste. Mas a satisfação de estar
frustrada, pertubada, engajada e, por fim, cativada por este podcast permanece. Um
final magnífico para um brilhante ciclo dessa história (Serial: The Podcast – Reddit,
2014, tradução nossa)69
.
A inconstância dos depoimentos de Jay e o nível de seu envolvimento com o crime, o
questionamento do comportamento do promotor responsável pelo caso e da atuação do
sistema judiciário, junto com as intensas e complexas reflexões sobre evidências que não
ganharam destaque na investigação policial, como o teste de DNA, direcionam os receptores-
usuários de Serial a uma significação de uma potencial injustiça cometida contra Adnan Syed
por meio de uma investigação inconsistente e mal conduzida, sem esclarecer quem realmente
foi responsável pela morte da jovem Hae Lee. Os receptores-usuários de Serial se propõem,
portanto, a continuar a investigação iniciada pelo podcast e tentam manter a precaução em
suas próprias investigações, mas a mensagem geral que passam com tamanho e complexo
envolvimento é que este julgamento precisa ser reavaliado de forma justa em busca de provas
concretas.
5.3.1 Meta-acontecimento em Serial: uma história sem fim
A análise proposta neste capítulo articula a noção de acontecimento com a tessitura da
narrativa e suas possíveis reverberações na construção de significados acerca da realidade em
torno do assassinato de Hae Min Lee. A primeira temporada do podcast Serial se constitui
como um meta-acontecimento, ou seja, por meio do resgate de um acontecimento que parecia
ter chegado à sua conclusão no passado – o assassinato de Hae Min Lee, a investigação do
crime e a condenação de Adnan Syed no ano de 1999 – a jornalista Sarah Koenig configura
uma narrativa que corresponde a uma segunda vida deste acontecimento, sendo que o sentido
criado em torno de sua existência original passa por um processo de revisão no tempo atual,
com múltiplas leituras feitas tanto pela instância narrativa quanto pelas reverberações das
69 Don't know how they did it, but somehow SK, Dana and Julie managed to bring an end to a story that is
entirely unresolved. Kind of a heart-in-your-mouth episode - would she implicate Adnan further, would she put a
nail in the coffin of Jay's guilt, would she destroy every carefully thought out crazy theory on this subreddit? In
the end, SK is where we all seem to be, uncertain about what happened, certain that justice was not done. The
frustration that the truth is unknowable persists. But the satisfaction of having been frustrated, disturbed,
engaged and ultimately enthralled by this brilliant podcast remains. A superb ending to a brilliant story cycle.
120
redes sociais digitais (conforme se observou na página dedicada a discutir o podcast no
Reddit), repercussão essa que faz um antigo acontecimento adquirir nova dimensão simbólica.
Ao construir a narrativa de Serial, Sarah Koenig explicita que considera o fato
ocorrido em 1999 como inconclusivo, apontando a investigação feita pela polícia como uma
operação com muitas lacunas e dúvidas no que diz respeito às evidências acionadas para
condenar Adnan Syed à prisão perpétua. Essa percepção de que o crime é um acontecimento
cuja investigação não alcançou seu esgotamento circula pelas redes sociais digitais e é
repassada ao público da série, que, através de complexos e intensos debates, elabora novos
sentidos sobre o acontecimento transmitido pelo podcast. A partir deste lugar de fala
construído por Sarah Koenig, os receptores-usuários assumem a investigação iniciada pela
jornalista e aprofundam a análise feita sobre o acontecimento. Assim como a narradora jamais
assume um posicionamento afirmando a culpa ou inocência de Adnan Syed, os ouvintes do
podcast também não o fazem, porém percebeu-se por meio da análise das reverberações que
há uma maior inclinação para a busca de indícios que possam inocentar o acusado ou que ao
menos reafirmem que houve graves falhas na investigação conduzida pelas autoridades. No
entanto, é importante ressaltar que a ponderação e precaução de se estabelecer uma postura
definitiva sobre o caso é também adotada pela instância de recepção, o que mantém o ciclo da
construção de sentidos e emergências de novos acontecimentos em crescente movimento.
Vera França (2012) ao refletir sobre a segunda vida do acontecimento nas esferas
midiáticas, aponta que os acontecimentos que são revividos e ganham uma nova existência
simbólica causam transformações na ordem do mundo da vida e, quando é impactante, um
acontecimento discursivo atua como acontecimento existencial, que por sua vez será
comentado e reinterpretado pela sociedade e, assim sucessivamente, se transformará mais uma
vez em uma segunda vida, processo cíclico que a autora caracteriza como uma espiral
crescente do acontecimento.
Na esteira desta reflexão de França é possível conectar a repercussão do podcast Serial
e os sentidos que foram construídos com a emergência de um acontecimento existencial no
mundo cotidiano: a autorização de um novo julgamento de Adnan Syed pela Justiça de
Maryland (EUA). No dia 30 de junho de 2016, cerca de um ano e meio após a publicação do
último episódio do podcast, o juiz Martin P. Welch concedeu a Adnan o direito a um novo
julgamento. É importante lembrar que, antes do lançamento da série jornalística, a defesa de
Adnan já havia feito uma petição para obter direito a um novo julgamento após sua
condenação, que foi negada em 2013 pelo mesmo juiz que autorizou a medida em 2016, como
121
explica a jornalista Sarah Koenig em uma postagem a respeito da medida no blog oficial da
série:
Adnan tinha feito a primeira petição por uma audiência pós-condenação em 2010, argumentando que ele tinha recebido uma assistência ineficiente de sua advogada no julgamento daquela época, M. Cristina Gutierrez, com base principalmente na questão que envolve Asia McClain [potencial álibi que não prestou depoimento em favor de Adnan em seu julgamento]. Ele esperou três anos e meio pela resposta do juiz Welch. A decisão do juiz finalmente veio no fim de dezembro de 2013: Negado
(KOENIG, 2016, tradução nossa)70
.
A decisão da Justiça de Maryland (EUA) em favor de ceder um novo julgamento vai
de encontro ao lugar de fala estabelecido pelos receptores-usuários de Serial, já que estes
clamam nas redes sociais por uma investigação que apresente evidências mais concretas que
as utilizadas no primeiro julgamento e que revele de forma justa o responsável pela morte de
Hae Min Lee. Este direito a um novo julgamento representa o retorno do acontecimento que
rompe mais uma vez a ordem cotidiana, assim como se sucedeu com a criação do meta-
acontecimento, adicionando, então, mais um elemento à essa história da vida real. Tanto a
narrativa jornalística de Serial quanto o acontecimento que emerge após o podcast são
integrantes desse fato da vida cotidiana, o qual está constantemente sujeito a novas
interpretações e, consequentemente, possui potencial para gerar novos discursos, alimentando
esta história sem fim que reconfigura a todo momento a realidade social que a envolve.
70 Adnan had first petitioned for post-conviction relief in 2010, arguing, among other things, that he’d received
ineffective assistance of counsel from his then-attorney, M. Cristina Gutierrez, based mostly on the Asia
McClain issue. He waited three and a half years for Welch’s opinion. The judge’s order finally came at the very
endo f December, 2013: Denied.
123
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo comunicacional desencadeado pelo podcast Serial nos indica como uma
narrativa que se institui por meio da atividade mimética pode integrar e interferir em dada
realidade social. Esta ruptura na ordem cotidiana que gera constantes ressignificações no
mundo da vida é perceptível pelo processo de complexificação do acontecimento existencial,
referente ao assassinato de Hae Lee e sua investigação pelas autoridades à época do crime,
que toma como ponto de partida a própria narrativa que substancia a série, passando pelos
modos de circulação do enunciado até este alcançar seus receptores na rede digital, que geram
então interpretações, que não se deram à época do ocorrido, responsáveis por criar novos
lugares diante dos quais a realidade se constitui em sentido.
A compreensão do microdispositivo podcast como um gênero da radiofonia expandida
teve papel relevante para a análise do fenômeno comunicacional que engloba esta série
jornalística. A narrativa de Serial é estruturada por elementos estéticos-linguageiros sonoros e
parassonoros característicos da comunicação radiofônica que se institui pelas plataformas
digitais. A oralidade é um dos elementos que mais se destaca na série, principalmente pela
voz narrativa de Sarah Koenig em conjunto com as entrevistas e gravações de depoimentos
em áudio de pessoas envolvidas de alguma forma com o acontecimento narrado. Apesar de a
sonoridade ser o principal fio condutor da estrutura estética do enunciado, encontramos outros
elementos provenientes da cultura visual-imagética, como se observou no site oficial de
Serial, onde se encontram fotografias antigas dos personagens da história, imagens
digitalizadas de documentos antigos, mapas que foram usados como provas da acusação e
infográficos elaborados pelas produtoras de Serial, como por exemplo, o que identifica cada
personagem da história e como eles se relacionam na reconstituição do acontecimento. Após
esta construção do enunciado, o podcast circula pelas redes digitais e alcança seu público que
encontra ferramentas que propiciam o debate do conteúdo divulgado por meio de novas
práticas interacionais. Os lugares de fala que se estabeleceram nas redes sociais digitais, com
destaque para a página do Reddit dedicada a debater Serial, após a circulação da trama pelas
redes indicaram como se estabeleceu um contrato comunicacional de acordo com as
possibilidades de emissão e recepção do microdispositivo podcast.
As formas como a instância de emissão e a instância de recepção interagem e
produzem significações diversas sobre o acontecimento é uma consequência das condições e
estratégias em que se desenvolve o ato comunicativo da série, ou seja, é resultado das
estratégias acionadas para a construção do acontecimento discursivo. A atividade mimética
124
responsável pela segunda vida do acontecimento tem início com a seleção de uma ocorrência
do passado junto com a compreensão de que o assassinato de Hae Lee e a condenação de
Adnan Syed significaram para a sociedade naquela época. Ao considerar o contexto deste fato
e os elementos simbólicos que o cercam, a instância narrativa do podcast conseguiu
estabelecer a função mediadora que resgata este acontecimento de quase duas décadas atrás e
o transporta para o presente em que se encontra o público ouvinte, que irá analisar e
interpretar este meta-acontecimento.
É possível perceber a proposição de intensificação das práticas interacionais pela
instância emissora do podcast no intuito de incentivar o debate sobre a narrativa pelo público
ouvinte. Serial possui perfis em redes sociais digitais, como Twitter e Facebook, em que se
encontram uma parcela considerável da audiência, no entanto, este é apenas um espaço pré-
delimitado pela produção do podcast para se realizarem as discussões e interpretações do
enunciado em questão. O que se observou nesta pesquisa foi a manifestação espontânea dos
receptores-usuários em estabelecerem o próprio espaço em que ocorre a continuação da
investigação proposta por Sarah Koenig, por meio de intensos e complexos debates, conforme
observado na página do Reddit dedicada à série jornalística.
Nesta comunidade virtual, nota-se que um dos principais lugares de fala produzidos
pela narradora – a inconclusividade e incerteza que pairam sobre a forma como se deu a
resolução da investigação feita no passado – permaneceu ditando o rumo dos debates entre os
receptores-usuários. No entanto, também se observou uma inclinação mais acentuada por
parte da instância de recepção do podcast em direção a uma possível inocência de Adnan,
com incentivo de uma nova investigação do caso pela Justiça norte-americana apontando
evidências mais concretas que as acionadas no primeiro julgamento e que indique com mais
clareza o responsável pelo crime.
E, justamente após essa grande repercussão desta história da vida real transformada
em meta-acontecimento, aproximadamente um ano e meio depois da divulgação do episódio
final da série, um novo acontecimento irrompe a ordem cotidiana: a Justiça de Maryland
decide a favor de ceder um novo julgamento à Adnan Syed. Esta decisão vai ao encontro ao
que o público de Serial, em linhas gerais, demandava nas reverberações observadas nesta
pesquisa, demanda essa correspondente a uma segunda chance ao caso, com investigação
mais detalhada em busca de provas concretas que apontem de forma justa e transparente a
autoria do crime.
O retorno do acontecimento não é um elemento aleatório que quebra a ordem
cotidiana após a circulação do podcast, mas sim um novo elemento integrante do ciclo desta
125
história da vida real, desde sua ocorrência há mais de 15 anos, passando pelos novos olhares e
leituras que recebe no tempo presente e com potencial para estender o fluxo dos
acontecimentos no futuro, já que este direito concedido a um novo julgamento será
novamente comentado, interpretado e será responsável pela criação de novos sentidos.
Assim, todos os acontecimentos que emergem após o assassinato de Hae Lee em 1999 – a
configuração narrativa de Serial, suas reverberações, interpretações e a decisão da Justiça para
um novo julgamento – são elementos que constituem uma história real distante de ter um
caráter conclusivo, o que indica a potência do fenômeno comunicacional do podcast Serial
em aderir à realidade e reconfigurá-la em uma crescente espiral.
127
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