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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social Clara Isabel de Andrade Costa PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO: acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial Belo Horizonte 2017

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS ... · 3.2 Contratos de leitura e de ... se como o fio condutor desta pesquisa a partir da observação de como essa narrativa

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

Clara Isabel de Andrade Costa

PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:

acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial

Belo Horizonte

2017

Clara Isabel de Andrade Costa

PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:

acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação Social da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Comunicação Social.

Área de concentração: Interações

Midiáticas.

Linha de pesquisa: Linguagem e mediação

sociotécnica

Orientador: Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck

Belo Horizonte

2017

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Costa, Clara Isabel de Andrade

C837p Podcasts e construção de sentido: acontecimento, narrativa e reverberações

na série jornalística Serial / Clara Isabel de Andrade Costa. Belo Horizonte,

2017.

131 f.:il.

Orientador: Mozahir Salomão Bruck

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

1. Rádio - Transmissores e transmissão. 2. Radiojornalismo. 3.

Radiodifusão - Aspectos sociais. 4. Comunicação e tecnologia. 5. Mídia digital.

I. Bruck, Mozahir Salomão. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. III. Título.

CDU: 654.195

PODCASTS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO:

acontecimento, narrativa e reverberações na série jornalística Serial

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação Social da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Comunicação Social.

Área de concentração: Interações Midiáticas.

Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck – PUC Minas (Orientador)

Profª. Drª. Maria Ângela Mattos – PUC Minas (Banca Examinadora)

Profª. Drª. Sônia Caldas Pessoa – UFMG (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 18 de agosto de 2017

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Mozahir Salomão Bruck que me abriu portas para um novo

olhar ao mundo da comunicação, sempre presente e à disposição para a minha evolução nessa

jornada. Sua contribuição por todas as conversas e pela contagiante empolgação à pesquisa é

o que levo para meu crescimento pessoal e profissional.

À professora Maria Ângela Mattos por todo o aprendizado na sala de aula e pela

dedicação e carinho nas contribuições à minha pesquisa.

À professora Sônia Caldas Pessoa por aceitar o convite para participar das bancas de

qualificação e defesa, contribuindo e enriquecendo esse estudo.

Aos demais professores pelo conhecimento e debates dentro e fora da sala de aula e às

funcionárias do programa, Isana e Camila, sempre à disposição para esclarecer dúvidas e

facilitar o processo da vivência acadêmica.

À minha mãe e ao meu pai que sempre me incentivaram e me ofereceram uma a

melhor estrutura para sempre ir em busca do conhecimento. O apoio de vocês é vital agora e

sempre.

Às minhas irmãs, Aninha e Bárbara, pelas conversas, trocas de experiência e apoio

incondicional. À minha sobrinha Rafaela pelo companheirismo e amizade.

Ao Max, Camila, Bruna e demais colegas das turmas de 2015 e 2016 que deram

leveza à essa experiência, compartilharam alegrias e sentimentos durante esse processo.

À Nádia, Paula, Babi, Bruna, Marcelo, Fabi, Fernanda, Elisa, André e Wesley, amigos

e companheiros de vida que me incentivaram a voltar ao mundo acadêmico, me ouviram e

apoiaram em todo o processo.

Muito obrigada a todos, que de alguma forma, fizeram parte dessa jornada.

RESUMO

O sucesso de audiência do podcast Serial chama atenção por ser uma série jornalística de

linguagem essencialmente sonora, que se destaca mesmo diante da dominante cultura

imagética na sociedade contemporânea. O presente estudo propõe compreender as

construções de sentido a partir da produção, circulação e reverberações em torno da narrativa

do podcast e quais os impactos desse processo comunicacional na construção social da

realidade. Serial apresenta, por meio da voz narrativa da jornalista Sarah Koenig, uma história

real sobre um acontecimento do passado: o assassinato da adolescente Hae Min Lee, a

investigação e a condenação à prisão perpétua de seu ex-namorado Adnan Syed, em 1999, nos

EUA. A partir dessa ocorrência do passado, Sarah Koenig inicia uma investigação jornalística

sobre como foi construída a acusação em torno de Adnan, questionando inclusive a justiça

norte-americana, já que o caso apresentava algumas lacunas que geravam dúvidas sobre a

culpa do acusado pelo crime. O entendimento do podcast como um gênero e forma de

expressão da comunicação radiofônica nas plataformas digitais é analisado em conjunto com

as noções de contratos comunicacionais (articulação das instâncias de emissão e de recepção)

e as noções de acontecimento discursivo e tríplice mimese da narrativa (o ciclo da atividade

mimética em três etapas: compreensão do contexto da ação selecionada; configuração

narrativa dessa ação; e interpretações e sentidos produzidos em torno do que foi

representado). Esses pressupostos teóricos combinados com o mapeamento exploratório do

podcast e a metodologia operacional de Análise de Conteúdo servem de referência para a

definição de categorias analíticas que permitem a investigação de todo o processo

comunicacional (emissão, circulação e recepção) desencadeado por Serial, no intuito de, por

fim, entender como os significados construídos ao redor desse acontecimento discursivo

podem propiciar a emergência de novos acontecimentos e novas narrativas.

Palavras-chave: Acontecimento. Tríplice mimese. Contrato de comunicação. Comunicação

radiofônica. Podcast Serial. Reverberações.

ABSTRACT

The ratings sucess of Serial podcast draws attention for being a journalistic series of

essencially sound language that stands out before the image culture that dominates the

contemporary society. The present study proposes to understand the constructions of meaning

from the production, circulation and reverberations around the narrative of the podcast and

what the impacts of this communicational process in the social construction of reality. Serial

presents, through the narrative voice of the journalist Sarah Koenig, a real story about an

event of the past: the murder of teenage Hae Min Lee, the investigation and life sentence of

her ex-boyfriend Adnan Syed in 1999 in the USA. From this incident of the past, Sarah

Koenig begins a journalistic investigation into the accusation that was built for Adnan, even

questioning the US court, since the case had some gaps that raised doubts about the accused's

guilt crime. The understanding of the podcast as a genre and form of expression of the radio

communication in the digital platforms is analyzed together with the notions of

communication contracts (articulation of the instances of emission and reception) and the

notions of discursive event and triple mimesis of the narrative (the cycle of mimetic activity in

three stages: understanding the context of the selected action, narrative configuration of this

action, and interpretations and senses produced about what was represented). These

theoretical assumptions combined with exploratory mapping of the podcast and the

operational methodology of Content Analysis serve as reference for the definition of

analytical categories that allow the investigation of the entire communication process

(emission, circulation and reception) triggered by Serial, in order to, finally, understand how

the meanings constructed about this discursive event can propitiate the emergence of new

events and new narratives.

Keywords: Event. Triple mimesis. Communication contract. Radio communication. Serial

podcast. Reverberations.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Os três lugares da máquina midiática.............................................................31

LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1 - Aviso na seção de episódios do site oficial com indicação para acompanhar a

narrativa a partir do Episódio 1................................................................................................92

IMAGEM 2 - Episódios da primeira temporada de Serial.......................................................96

IMAGEM 3 - Postagens do blog oficial do podcast Serial......................................................97

IMAGEM 4 - Carta de Asia Mclain enviada à Adnan Syed....................................................98

IMAGEM 5 - Aviso no blog de Serial com links para email, Facebook e Twitter..................99

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

2 O PODCAST SERIAL ........................................................................................................ 13

3 PODCASTS: MODOS DE CONTRATAÇÃO ................................................................. 19

3.1 A radiofonia expandida nas plataformas digitais .......................................................... 19

3.2 Contratos de leitura e de comunicação ........................................................................... 25

3.3 Podcasts: especificidades.................................................................................................. 34

3.3.1 Podcasts como microdispositivo ..................................................................................... 41

3.4 As contratações de comunicação e leitura no podcast................................................... 44

4 A TRÍPLICE MIMESE DA NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DO

ACONTECIMENTO ............................................................................................................. 51

4.1 Sobre a noção de mimese ................................................................................................. 51 4.2 A tríplice mimese de Paul Ricoeur .................................................................................. 53

4.2.1 Mimese e narrativa jornalística ...................................................................................... 62

4.2.2 Tríplice mimese no podcast Serial .................................................................................. 67

4.3 A construção do acontecimento ....................................................................................... 74

4.4 Da construção do acontecimento à mimese III .............................................................. 80

5 ACONTECIMENTO, NARRATIVA E REVERBERAÇÕES EM SERIAL ................ 85

5.1 Considerações metodológicas .......................................................................................... 85

5.2 A configuração narrativa em Serial ................................................................................ 88

5.2.1 A construção dos elementos narrativos........................................................................... 88 5.2.2 A função do testemunho................................................................................................. 100

5.2.3 Ativação dos lugares de fala ......................................................................................... 107

5.3 Construção de sentido e reverberações ........................................................................ 112

5.3.1 Meta-acontecimento em Serial: uma história sem fim .................................................. 119

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 123

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 127

9

1 INTRODUÇÃO

O passo que deu início à elaboração desta dissertação foi dado a partir do

questionamento sobre como um conteúdo de linguagem essencialmente sonora – o podcast

Serial – gerou tanta repercussão em meio à predominância da cultura imagética na

comunicação social. Serial é uma série jornalística que teve um alcance de audiência bem

próximo a de séries televisivas de sucesso, sendo o primeiro podcast a alcançar mais

rapidamente cinco milhões1

de ouvintes no iTunes – uma das principais plataformas que

hospedam esse microdispositivo – após o primeiro mês desde o lançamento de seu primeiro

episódio. Atualmente, quase três anos após sua divulgação, a primeira temporada dessa série –

objeto empírico desta dissertação – ultrapassou a marca de 90 milhões de downloads2

em todo

o mundo.

Por ser uma mídia relativamente nova e que circula no meio digital, o podcast não

possui regras rígidas que definem sua linguagem, já que não estabelece um padrão de locução

e de usos de recursos como efeitos sonoros, nem mesmo uma definição de temas a serem

abordados. No caso de Serial, encontramos um potente fenômeno comunicacional em função

de seus processos de mediação. A circulação dessa narrativa sonora trouxe como repercussão

uma ampla gama de debates nas redes sociais digitais com diversos questionamentos por parte

dos ouvintes sobre o acontecimento transformado em discurso que constitui a série. A

construção de sentido em torno do ato comunicacional proporcionado por Serial estabeleceu-

se como o fio condutor desta pesquisa a partir da observação de como essa narrativa se

instituiu e quais são suas estratégias enunciativas, para, a partir daí, buscar compreender as

múltiplas leituras e interpretações geradas pela instância de recepção e, por fim, entender

como o processo de elaboração discursiva de um acontecimento pode propiciar a emergência

de novos acontecimentos e novas narrativas.

Antes de acionar os operadores conceituais que nos auxiliam na observação do ato

comunicacional a partir da circulação do podcast Serial, apresentamos no capítulo inicial o

próprio podcast, que foi elaborado por produtoras de uma emissora radiofônica dos Estados

Unidos e divulgado nas mídias digitais em outubro de 2014. Serial traz uma história de

1

Dado fornecido pela Apple em 2014 e divulgado em vários veículos de comunicação, como na matéria

publicada no The Guardian em novembro de 2014, disponível em

<https://www.theguardian.com/technology/2014/nov/18/serial-podcast-itunes-apple-downloads-streams>. Ainda

de acordo com a Apple, Serial se manteve em primeiro lugar no ranking de podcasts nos EUA, Canadá, Reino

Unido e Austrália, além de alcançar o top 10 em diversos países como Alemanha, África do Sul e Índia. 2

Dado disponível em <http://economia.estadao.com.br/blogs/radar-da-propaganda/na-2a-temporada-podcast-

serial-e-obrigado-a-fazer-mudancas/>. Acesso em 11 de julho de 2017.

10

linguagem essencialmente sonora guiada pela voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. É

importante destacar que a proposta de Serial é narrar uma história real da vida cotidiana e

contá-la em diversos capítulos com uso de linguagem essencialmente sonora, principalmente

por meio da narração oral. Até 2017, o podcast lançou duas histórias nesse formato. Nossa

atenção, no entanto, é dedicada à primeira temporada dessa série não ficcional. Essa primeira

história de Serial traz o resgate de um acontecimento que ocorreu em Maryland (EUA) no ano

de 1999: o assassinato da jovem Hae Lee e a condenação à prisão perpétua de seu ex-

namorado Adnan Syed. A partir dessa ocorrência do passado, Sarah Koenig inicia uma

investigação sobre a forma como foi construída a acusação em torno de Adnan, questionando

inclusive a justiça norte-americana, já que o caso apresentava algumas lacunas que geravam

dúvidas sobre a culpa do rapaz pelo crime. Para resgatar a memória desse acontecimento e

reagendá-lo no presente em que circula esse podcast, a narradora aciona depoimentos e

entrevistas de pessoas ligadas direta e indiretamente aos jovens protagonistas da história,

como familiares, amigos, colegas, advogados, detetives e psicólogos. Além desses, Sarah

Koenig conversa na maioria dos episódios com o próprio Adnan Syed por meio de gravação

telefônica direto do presídio em que o rapaz se encontra até hoje.

Após nos determos sobre os elementos de constituição da narrativa jornalística

apresentada pelo podcast Serial, voltamos nosso olhar, no capítulo 3, para a compreensão de

como se relacionam as instâncias de emissão e recepção na circulação de discursos no campo

do jornalismo. As noções de contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e de

contrato de leitura (VERÓN, 2004 e FAUSTO NETO, 2007) servem de guia teórico para

compreender as condições e restrições em que se elaboram as estratégias enunciativas do

discurso jornalístico, suas formas de circulação e como estas influenciam no impacto de um

conteúdo em seu público receptor. Considerando que o podcast é um microdispositivo

(CHARAUDEAU, 2006b) que se manifesta como um gênero e modo de expressão da

radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) nas plataformas digitais, consideramos

necessário analisar também os impactos das transformações tecnológicas e sociais neste novo

cenário da comunicação radiofônica, por meio da observação do uso de elementos narrativos

sonoros e não sonoros na configuração discursiva em conjunto com as práticas interacionais

que emergem nas redes digitais, o que permite compreender as especificidades das formas que

se estabelecem os contratos no ato comunicacional de Serial.

A reflexão sobre os modos de contratação no podcast nos auxilia a compreender como

as condições e estratégias que se dão o ato comunicativo afetam os modos de dizer, ou seja, a

maneira de construção do acontecimento discursivo, que é o principal elemento constituinte

11

de uma narrativa jornalística. A partir dessa constatação, seguimos para o capítulo 4 com o

intuito de entender como um acontecimento do mundo da ação é selecionado e se transforma

em discurso jornalístico, sendo responsável pela emergência de diversas interpretações. A

compreensão desse processo é auxiliada pelo viés teórico da tríplice mimese da narrativa do

filósofo francês Paul Ricoeur (2010), encadeada com as reflexões sobre a dupla vida do

acontecimento do sociólogo francês Louis Quéré (2012) e o conceito de meta-acontecimento

de Adriano Rodrigues (1993). Ao compreender os novos significados que surgiram a partir do

acontecimento midiatizado em Serial foi analisada a possibilidade de retorno de novos

acontecimentos de natureza não discursiva no mundo cotidiano a partir da circulação de uma

narrativa, já que, pouco mais de um ano após o lançamento do podcast, observou-se a

emergência de um novo acontecimento: um novo julgamento para Adnan Syed foi autorizado

pela Justiça de Maryland (EUA) em junho de 2016, quase duas décadas após sua condenação

pelo crime.

O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do

caso de Adnan Syed. Com o sucesso do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por

milhões de pessoas ao redor do mundo. Tendo em vista o processo comunicacional

proporcionado por Serial, propomos, no capítulo 5 dessa pesquisa, investigar a articulação

entre a instância emissora e a instância de recepção, a partir da escuta exploratória dos

episódios da primeira temporada do podcast e também da leitura exploratória dos elementos

parassonoros, que complementam o enunciado da série, disponíveis no site oficial, em busca

de compreender as estratégias acionadas para a configuração da narrativa. Para proceder com

a abordagem de exploração da elaboração deste enunciado, estabeleceu-se a constituição de

três categorias analíticas desenvolvidas de acordo com a metodologia operacional da Análise

de Conteúdo: a) construção dos elementos narrativos; b) função do testemunho; e c) ativação

dos lugares de fala.

Tais categorias combinadas servem de referência, portanto, para o primeiro momento

da etapa da análise proposta no intuito de compreender o processo de emissão em Serial. Na

outra etapa, segue-se para observação das reverberações incitadas pela narrativa por meio do

mapeamento exploratório da rede social digital Reddit, uma grande comunidade virtual que

possui mais de 50 mil usuários cadastrados em uma seção dedicada exclusivamente ao

podcast Serial para investigação e discussão de diversos aspectos relativos a essa história da

vida real. Analisar as reverberações dos receptores-usuários de Serial no Reddit implica,

então, em mapear as diversas construções de sentidos estabelecidas nos comentários e

debates, o que permite articular a relação dessas interpretações de um acontecimento do

12

passado, que não se deram à época de sua ocorrência, com a emergência de novos

acontecimentos que retornam à ordem mundana, em busca de entender qual o impacto deste

processo comunicacional na construção social da realidade.

13

2 O PODCAST SERIAL

As transformações sociais e tecnológicas da sociedade contemporânea propiciam o

desenvolvimento de diferentes mídias digitais utilizadas como meios para os processos

comunicacionais e de construção e representação do que nos habituamos a chamar de

realidade. Nesta dissertação, esse cenário serve de ponto de partida para refletirmos sobre a

comunicação radiofônica e suas transformações inseridas nesta lógica de midiatização, que

apresenta novos gêneros e modos de oferta, combinando a linguagem essencialmente sonora

do rádio tradicional com outros elementos parassonoros (textos, imagens, links, comentários,

ferramentas de compartilhamento de conteúdo, entre outros), o que impacta diretamente nos

modos de configurações narrativas e nas formas de recepção.

Um desses gêneros e modos de expressão da radiofonia expandida é o podcast, que se

apresenta como um caminho para produção de conteúdos com novas possibilidades narrativas

e modos de circulação pela internet. O podcast está vinculado a conteúdos com estética

linguageira marcadamente oralizada, sendo considerado, a grosso modo, a junção do rádio

tradicional com as possibilidades de difusão de conteúdo da internet. Apesar de ser conhecido

por sua linguagem sonora, o podcast não se limita somente ao som, já que disponibiliza

conteúdo para diversos meios digitais, seja em arquivos de áudio, texto ou imagem, o que

possibilita novas explorações de conteúdo, criatividade narrativa e novas práticas

interacionais entre os seus receptores.

O objeto empírico analisado nesta dissertação é o podcast Serial, que é uma produção

de profissionais com experiência também na mídia tradicional - as produtoras de Serial são

profissionais da emissora pública norte-americana WBEZ Chicago. Serial é um spin-off3

de

This American Life, sendo este último um programa semanal da rádio pública dos EUA,

difundido em mais de 500 estações de rádio para mais de 2 milhões de ouvintes em todo país.

Em cada edição, o programa conta uma diferente história da vida cotidiana de uma pessoa

ordinária. This American Life é também disponibilizado em podcast, atingindo como marca

mais de um milhão de usuários das mídias digitais que fazem download do programa

semanalmente.

3 Ao pensarmos nos produtos midiáticos oferecidos pelos veículos de comunicação, o spin-off é considerado uma

derivação de qualquer obra narrativa (filme, programa de rádio ou de TV, séries televisivas, novelas, entre

outros) já existente. O que diferencia um spin-off e uma obra original é que o primeiro concentra sua produção

narrativa de forma mais detalhada em apenas um elemento particular (um tema ou um personagem, por exemplo)

da obra inicial que inspirou a produção narrativa derivada.

14

E foi a partir do popular programa de rádio This American Life que Serial começou a

ser divulgado. O editor e apresentador do programa, Ira Glass, anunciou no dia 3 de outubro

de 2014 que a partir daquela edição seriam produzidos não apenas um programa semanal, mas

sim dois programas. Era o lançamento do primeiro episódio de Serial. Neste dia, Ira Glass

anunciou que, em vez de cada episódio trazer um diferente tema e diferentes histórias, cada

episódio do novo podcast seria sobre a mesma história, dividida, então, em capítulos.

Importante ressaltar que este era o lançamento da primeira temporada de Serial. Até

2017, o podcast conta com duas temporadas, sendo que a primeira retrata a história de Adnan

Syed - condenado à prisão perpétua pela morte de sua ex-namorada - em 12 episódios

divulgados semanalmente nas mídias digitais, enquanto a segunda, lançada no final de 2016,

conta a história do sargento Bowe Bergdahl - que ficou cinco anos preso pelo regime taleban,

no Afeganistão – em 11 episódios divulgados quinzenalmente. Assim, selecionamos a

primeira temporada da série jornalística para observarmos o processo comunicacional do

podcast e como se dá a construção de sentidos a partir de sua circulação.

A primeira temporada de Serial é uma história real dividida em 12 episódios e é

apresentada pela produtora da WBEZ Chicago, Sarah Koenig. Ira Glass esclarece no

lançamento de Serial que este spin-off não seria mais um tradicional programa radiofônico e

sim um podcast, com cada edição disponibilizada exclusivamente nas mídias digitais

semanalmente, a partir do dia 3 de outubro de 2014. Após a apresentação do editor Ira Glass,

começa a narração da produtora Sarah Koenig dando início ao primeiro episódio do podcast

Serial. A história contada pela apresentadora tem origem em um caso de um assassinato

verídico da jovem de 17 anos e filha de imigrantes coreanos, Hae Min Lee, que aconteceu há

quase duas décadas (1999) em Baltimore, nos Estados Unidos. O ex-namorado, de origem

muçulmana, Adnan Syed, foi condenado à prisão perpétua pelo crime e se encontra na prisão

até os dias atuais. A acusação foi construída principalmente em torno do depoimento de Jay,

colega de escola de Adnan, que afirmou que o acusado tinha planejado todo o crime, já que

estava inconformado com o fim do namoro. Mesmo com a condenação, Syed alega inocência.

A comunidade de imigrantes muçulmanos da qual Adnan faz parte se organizou para

levantar fundos e ajudar a provar sua inocência. A advogada Rabia Chaudry, que pertence a

esta comunidade, acredita na inocência do acusado e apresentou a história para a equipe de

produção do podcast This American Life. A produtora Sarah Koenig ao receber o caso por

meio de um email de Chaudry compreendeu que ali havia uma interessante história para ser

investigada e apresentada no novo podcast. No primeiro episódio de Serial, Sarah Koenig

relata que a advogada entrou em contato com a equipe de produção e apresentou a história de

15

Adnan, o que fez a produtora perceber que a investigação daquele crime e a condenação ainda

não esclareciam certos aspectos do caso, questionando até mesmo a culpa do jovem como

responsável pelo crime.

A primeira temporada do podcast Serial é uma narrativa que se apresenta em forma de

uma série jornalística dividida em 12 episódios, que totalizam dez horas de duração, e com

linguagem essencialmente sonora, fazendo uso principalmente da narração oral e de

depoimentos e entrevistas gravadas em áudio. A voz narrativa da jornalista Sarah Koenig, que

mescla seu próprio testemunho com as entrevistas em áudio dos envolvidos direta e

indiretamente com o acontecimento narrado, funciona como elemento-chave para a tessitura

do enunciado do podcast. A proposta de Serial não é a mesma das reportagens policiais que

buscam uma conclusão concreta ao revelar um culpado por determinado crime. Sarah Koenig,

Dana Chivis e Julie Snyder (criadoras e produtoras de Serial) se distanciam dessa lógica ao

explorar as contradições da história, sem ter a obrigatoriedade de, ao fim dos 12 episódios da

primeira temporada, apresentarem a solução para o crime.

Um dos principais depoimentos que compõem a narrativa são as entrevistas gravadas

por telefone com Adnan Syed, direto do presídio em que ele ainda se encontra. O condenado

se declara inocente durante toda a série, mas não se recorda com clareza dos eventos

ocorridos no dia do crime que poderiam provar sua inocência. A acusação que o levou a esta

condenação foi construída principalmente em torno do depoimento de Jay, colega de Adnan,

que testemunhou que o acusado tinha planejado todo o crime. Jay, porém, não concede

entrevista diretamente à jornalista. As falas de Jay que se escutam na série correspondem às

gravações de depoimentos à polícia e do julgamento de Adnan, no ano 2000. Sarah Koenig

relata que outras evidências se somaram ao depoimento dessa testemunha-chave da acusação,

como o registro de torres de celular que indicaram que Adnan esteve próximo ao local onde

foi encontrado o corpo da vítima. Mesmo com a condenação, Syed reafirma sua inocência na

narrativa do podcast. Além dessas entrevistas com Adnan e as gravações de Jay, são

acionados outros depoimentos de pessoas que vivenciaram o acontecimento naquela época

como familiares de Adnan, amigos da escola do acusado e da vítima, professores, além de

especialistas que analisam o caso de uma perspectiva mais externa, como advogados,

detetives e psicólogos. A cronologia do crime, a credibilidade de algumas testemunhas e o

próprio Adnan são questionados a todo o momento pela narradora de Serial.

As técnicas de investigação de Serial utilizando de múltiplas fontes e personagens

atestam seu caráter jornalístico, mas é importante ressaltar que a narrativa do podcast acionou

em seu discurso recursos estético-linguageiros típicos da ficção, presentes em outros produtos

16

comunicacionais, como as séries televisivas e os livros em áudio, considerando que as 10

horas de narrativa foram divididas em 12 capítulos, que apresentam diferentes visões

temáticas sobre o caso e se interligam formando uma unidade de sentido, já que para o

ouvinte compreender um episódio se faz necessário ouvir o anterior.

No contexto da radiofonia expandida4, o podcast Serial possui na composição de seu

enunciado outros elementos estético-linguageiros, além dos 12 episódios em áudio. No site

oficial de Serial, encontramos informações que não estavam presentes nos episódios e

complementam a investigação jornalística realizada por Sarah Koenig, através de recursos

como textos (postagens no blog oficial da série), fotografias (no site há registros fotográficos

de Adnan, Hae Lee, diversos personagens, da escola, cena do crime e outras imagens

relacionadas à história), infográficos (as produtoras criam vários gráficos explicativos, como é

o caso do que identifica todos os personagens abordados nos episódios e como eles se

relacionam dentro da trama), mapas (um exemplo é o mapa do estacionamento, onde ocorreu

o crime, feito à mão por Jay e utilizado como evidência no julgamento de Adnan), além de

diversos documentos relacionados ao assassinato da jovem Hae Lee e à condenação de

Adnan. Não há no site oficial, um espaço para os ouvintes do podcast comentarem e

debaterem o conteúdo da série, porém a equipe de produção de Serial criou diversos perfis em

redes sociais digitais (Twitter, Facebook e Instagram) e publicou em seu blog oficial uma

mensagem para o público utilizar tais redes para interação e debates sobre a série.

A primeira temporada de Serial nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre as

circunstâncias em que o relato de um acontecimento do passado parece se autonomizar ao ser

representado por meio de uma narrativa, gerando novos acontecimentos de natureza midiática

no tempo presente. Ao transformar a história de Adnan Syed em narrativa, por meio da

construção do podcast, a série institui-se e transforma o caso em um acontecimento

midiatizado, estabelecendo, na dimensão simbólica, possíveis novos significados e

interpretações que assim não se deram à época do assassinato. Um detalhe que nos chama a

atenção foi o novo acontecimento que emergiu após a circulação de Serial: no dia 30 de junho

de 2016, pouco mais de um ano após a divulgação do primeiro episódio, a Justiça de

Maryland (EUA) autorizou um novo julgamento para Adnan Syed, que havia sido condenado

à prisão perpétua em 2000.

Para realizarmos a análise de como os ouvintes geraram novos significados sobre o

acontecimento e qual a relação dessa dimensão simbólica com os novos acontecimentos que

4

As reflexões sobre radiofonia expandida com base nos estudos de Marcelo Kischinhevsky (2014) serão

aprofundadas no capítulo 3.

17

retornam ao mundo cotidiano, realizamos no próximo capítulo uma discussão sobre os

contratos de comunicação estabelecidos pelo podcast, em um contexto de emergência de

novos modos de enunciação e novas práticas interacionais proporcionadas pela radiofonia

expandida nas plataformas digitais. Assim, na reflexão que se segue, buscamos compreender a

relação entre a instância de produção e a instância de recepção e como estas duas vertentes do

ato comunicacional são determinantes nos modos de enunciação, circulação e interpretação do

discurso jornalístico oferecido em Serial.

18

19

3 PODCASTS: MODOS DE CONTRATAÇÃO

As noções de contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e de contrato de

leitura (VÉRON, 2004; FAUSTO NETO, 2007) são importantes contribuições para a

compreensão de como se relacionam as instâncias de produção e recepção na circulação de

discursos no campo do jornalismo. Com as recentes transformações sociais e evoluções da

tecnologia, é importante refletir sobre os impactos da midiatização5

sobre o papel que o

jornalismo exerce como ator social na construção da realidade e quais consequências esse

processo traz para os produtores e consumidores da informação. Para esta dissertação, essa

reflexão será direcionada para o microdispositivo – conceito trabalhado por Charaudeau

(2006b) que diz respeito aos gêneros e modos de oferta do processo comunicacional – podcast

e como se dão os contratos comunicacionais ao considerarmos as possibilidades de produção,

circulação e recepção da informação por meio deste processo midiático. O fenômeno

comunicacional em torno do podcast se situa na radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY,

2014) vinculada às mídias digitais e compreender este novo cenário da comunicação

radiofônica é essencial para analisar a produção, circulação e recepção de discursos

juntamente com as práticas interacionais propiciadas pelos avanços tecnológicos. Mais

especificamente, vamos trazer esta reflexão para o podcast Serial e buscar compreender os

contratos de comunicação para, então, entendermos qual a influência destes aspectos do

microdispositvo na produção de sentidos gerados a partir da construção discursiva do

acontecimento desta série jornalística.

3.1 A radiofonia expandida nas plataformas digitais

As constantes transformações tecnológicas e sociais impactam profundamente a

trajetória dos meios de comunicação, incluindo-se aí a do rádio. Ao considerarmos tais

transformações, é possível identificar dois momentos de transição e mudancas, do ponto de

5

Compreendemos o conceito de sociedade midiatizada por meio das reflexões de José Luiz Braga (2012) acer ca

da midiatização. De acordo com o autor, a midiatização corresponde à compreensão das diversas experiências

sociais de produção de dispositivos que são atravessados por uma intensificação da prática de interação social,

permitindo entender como se encaminham as mediações comunicativas da sociedade. Braga percebe então a

midiatização como “uma criação e recriação contínua de circuitos, nos quais articulados com processos de

oralidade e processos do mundo da escrita, os processos que exigem ou exercem inter mediação tecnológica se

tornam particularmente caracterizadores da interação” (BRAGA, 2012, p.50). Assim, na sociedade em

midiatização os meios, tecnologias, as indústrias culturais em conjunto com todos os participantes sociais,

grupos, sujeitos e instituições acionam os mais diversos processos de produção de sentido acerca de uma

realidade social e podem definir os modos como tais processos se dão.

20

vista da linguagem e práticas desse meio, que marcam a história da radiofonia. No primeiro

momento, podemos identificar o intenso debate acerca da sobrevivência do veículo com o

nascimento da televisão na década de 1950. Entre outros motivos e impactado com o advento

da TV, que além do som trazia o recurso da imagem para compor as narrativas, o rádio passou

por reconfigurações, principalmente em sua linguagem e formas discursivas, e manteve-se

firme como meio protagonista junto à TV e o impresso nos processos comunicacionais

sociais. A segunda mudança na trajetória da radiofonia diz respeito ao momento atual que

vivemos, em que se busca compreender de que forma a internet influencia na reconfiguração

de novas formas e gêneros radiofônicos. Nair Prata Martins (2008) aponta o surgimento de

uma nova era radiofônica propiciada pela emergência e desenvolvimento das mídias digitais.

Quando Meditsch (2001) fala que o fantasma da extinção do rádio ronda nossos

estúdios sob a ameaça da internet, é preciso lembrar que a web, certamente, não

representa o fim, mas o início de uma nova era, regida pela digitalização. Desta vez

com uma nova linguagem, novos signos textuais e imagéticos, novo suporte, novas

formas de interação e a presença de gêneros reconfigurados, alguns do velho modo

hertziano e outros novos nascidos das modernas tecnologias (MARTINS, 2008, p.

220).

Ao olharmos para a história dos meios de comunicação, o rádio aparece como pioneiro

dentro da comunicação eletrônica, sendo que sua linguagem abriu caminho para o

desenvolvimento das mais variadas narrativas e discursos de outros meios eletrônicos que o

sucederam. O rádio é, inegavelmente, um dos mais importantes veículos da história, já que

desde seu surgimento se constituiu como um espaço privilegiado para as representações

socioculturais, a construção de identidades e afirmação da cidadania. Marcelo Kischinhevsky

(2014) demonstra que a nova configuração da radiofonia se torna mais complexa com as

transformações tecnológicas das últimas duas décadas e aborda o conceito de rádio expandido

para tratar dos novos gêneros e novos formatos que emergem na comunicação radiofônica

com o advento da internet e a incorporação de novos elementos como textos, imagens, vídeos,

comentários e ferramentas de compartilhamento.

Para o autor, o rádio, desde seus primórdios, tem sido espaço para apropriações de

formas simbólicas sujeitas às mais variadas e imprevistas leituras se constituindo como uma

espécie de arena para discursos em construção e intervenções dos ouvintes. A radiofonia,

tanto a de transmissão hertziana quanto a das plataformas digitais, não pode ser reduzida a um

roteiro pré-estabelecido de discurso construído para o público ouvinte. Apesar dos discursos

que circulam no rádio contemporâneo serem influenciados fortemente pelos contratos

comunicacionais (conceito aprofundado no item 3.2) – um conjunto de regras não escritas,

que envolvem interesses mercadológicos, institucionais e políticos e que interferem no

21

conteúdo produzido -, a participação cada vez mais direta do público, principalmente por

meio das práticas interacionais proporcionadas pela rede, também é vital para o

funcionamento completo do processo comunicacional radiofônico. Assim, a radiofonia que se

desenvolve atualmente mediante influência das mídias digitais apresenta mudanças

substanciais tanto no seu processo de produção e distribuição de conteúdo quanto na etapa de

recepção.

No intuito de entender quais os desafios teóricos-metodológicos que envolvem essa

radiofonia expandida na era digital, o primeiro passo em nossa reflexão será em busca da

compreensão da especificidade da comunicação radiofônica. Ao começarmos por sua

linguagem, entende-se nesta pesquisa que a expressão radiofônica contemporânea independe

do suporte tecnológico ao qual se vincula, seja a emissão da mensagem sonora pelas mídias

digitais, seja pelas ondas eletromagnéticas das frequências hertzianas. É perceptível que a

linguagem radiofônica se reconfigurou com o surgimento das plataformas digitais, porém é

possível observar que os elementos característicos da radiofonia tradicional se mesclam com

outros elementos estético-linguageiros oferecidos pelas mídias digitais.

Considerando que a oralidade combinada com o uso de recursos sonoros, trilhas

musicais e até mesmo o silêncio constituem os principais elementos que compõem esta

linguagem, é importante trazer à nossa reflexão a maneira como a circulação dos conteúdos

radiofônicos nas mídias digitais impacta a audiência, já que sites, aplicativos e redes sociais

na internet apresentam conteúdos inseridos em um contexto de valorização visual, oferecendo

ao ouvinte um contato além do som e da oralidade característicos da linguagem dos veículos

radiofônicos tradicionais, com inserção de outros elementos como texto, vídeo, imagens,

links, ferramentas de compartilhamento, espaço para comentários, entre outros.

Magda Rodrigues da Cunha (2012) aponta que a radiofonia se insere em um conceito

de maior amplitude, pois vai além da linguagem sonora ou de uma plataforma específica,

considerando que sua linguagem, produção e recepção de narrativas também são

influenciadas pelas possibilidades interacionais da rede digital e pela cultura imagética em

que se insere a sociedade contemporânea. É importante ressaltar que a autora defende que,

apesar do grande fluxo visual que permeia os atuais processos comunicacionais, o som ainda é

o principal elemento que serve de base para o desenvolvimento da radiofonia, seja nas

transmissões hertzianas seja pelas mídias digitais.

Radiofonia, de maneira ampla, já se relaciona com o novo contexto, onde áudio e

oralidade permeiam todos os formatos, em um modelo reinventado. Mais do que

rádio, oralidade ou áudio, independentes ou recombinados, hoje podemos descrever

22

a radiofonia como um conceito que corresponde diretamente à nova mídia,

obedecendo à variabilidade e à modularidade. (CUNHA, 2012, p.10)

Em seu ensaio O rádio está morto...Viva o som! (2012), Armand Balsebre constrói sua

reflexão ao questionar se o rádio pode se converter em uma nova mídia sonora para os novos

rádio-ouvintes inseridos no contexto das transformações sociais e tecnológicas que perpassam

a sociedade contemporânea. De acordo com o autor, o posicionamento do rádio na nova

“sonosfera” se dá em um cenário em que os meios tradicionais se conciliam com os novos

meios. Para se constituir como um novo meio sonoro independente do aparato tecnológico em

que se apoia, Balsebre aponta a emergência de um paradoxo nesta nova radiofonia, já que

para se converter em uma nova mídia, o rádio “terá que respeitar sua tradicional e particular

estrutura comunicativa sonora (BALSEBRE, 2013, p.17)”.

Para tratar da relação da radiofonia com as plataformas digitais, Marcelo

Kischinhevsky e Cláudia Modesto (2014) acionam o conceito de remediação de Jay Bolter e

Richard Grusin. Tal conceito parte de uma dupla lógica: a imediação transparente combinada

com a hipermediação, no intuito de reposicionar os meios de comunicação diante deste novo

comportamento do público, marcado por novas práticas interacionais proporcionadas pelas

transformações sociais e inovações tecnológicas. O objetivo da imediação, segundo os

autores, é tornar o meio de comunicação invisível, uma espécie de apagamento do meio que

busca simular uma experiência direta, como é possível observar, por exemplo, em portais de

internet que liberam acesso a conteúdos de outros veículos pertencentes ao mesmo grupo

econômico, como jornais, revistas, entre outros. Ainda de acordo com Kischinhevsky e

Modesto, a hipermediação diz respeito à multiplicidade e volta para o processo de remediação

em si ao observarmos a infiltração de características de um meio em outro em busca de

atualização e afirmação diante da enxurrada de novas mídias, como, por exemplo, portais de

internet com conteúdos sonoros, que utilizam em seu nome expressões advindas dos veículos

tradicionais como “rádio” ou “FM”.

O conceito de remediação apresentado por Kischinhevsky e Modesto nos mostra que,

em um cenário de emergência de novas possibilidades de mediação6, os meios não devem ser

analisados separadamente, e sim como integrantes de um sistema interdependente, no qual as

características de linguagem, produção e recepção de conteúdo de diversos veículos se

conciliam, geram uma interseção e se adaptam a um novo contexto midiático. E é justamente

6 O conceito de mediação é abordado nesta dissertação de acordo com a noção trabalhada por Jesús Martín-

Barbero (1997), que diz respeito ao processo de produção de sentidos resultantes das interações de atores sociais

em distintas dimensões de atuação nos campos social, político, econônomico, cultural, entre outros, atravessados

pela forte presença dos dispositivos midiáticos.

23

este conceito que pode servir de referência para a compreensão da atual radiofonia, do rádio

expandido caracterizado pela mistura da linguagem exclusivamente sonora do meio

tradicional com outros elementos (texto, imagens, comentários, links, etc.) que ganham

espaço na rede digital. Esta combinação também impacta e transforma as formas de interações

comunicacionais e contribui para definir novos parâmetros de análise da comunicação

radiofônica.

Esta pesquisa tem como objeto de estudo o podcast, cujo conceito e especificidades

serão debatidos também neste capítulo (item 3.3) e sendo considerado aqui como gênero e

modo de oferta desta radiofonia, ou seja, como microdispositivo (conceito aprofundado no

item 3.4) na perspectiva de Patrick Charaudeau (2006b), o qual emerge das transformações

substanciais no processo comunicacional proporcionadas pelo advento da internet. Marcelo

Kischinhevsky (2012) apresenta o podcast como uma modalidade da radiofonia e,

considerando que uma de suas principais características é a assincronia na recepção (o

conteúdo do podcast não precisa ser acompanhado simultaneamente à sua emissão, como

ocorre nas transmissões radiofônicas hertzianas, já que pode ser baixado para ser ouvido

posteriormente à sua emissão pelas redes digitais e consumido em diversas plataformas

midiáticas), o autor argumenta que este microdispositivo é responsável por engendrar “um

novo tipo de mediação sonora, com múltiplas temporalidades e possibilidades de inserção

espacial, e propiciando o fortalecimento de uma cultura da portabilidade”

(KISCHINHEVSKY, 2012, p. 426).

Como integrante desta nova radiofonia, o podcast propicia o desenvolvimento de

novas práticas interacionais e modalidades de recepção. Cabe ressaltar que reconhecemos a

amplitude dos estudos dos processos comunicacionais que buscam compreender as práticas

interacionais mediante as possibilidades proporcionadas pelo desenvolvimento das redes

digitais e suas tecnologias. Apesar de a noção de recepção estar vinculada ao tradicional fluxo

comunicacional massivo, o uso do termo receptor aqui nesta pesquisa não está relacionado a

uma completa passividade do ouvinte como mero consumidor de uma determinada

mensagem, ao mesmo tempo em que não remete exclusivamente aos usuários das redes

digitais que dominam os processos tecnológicos de produção, gravação e distribuição de

produtos sonoros. Existe um grande potencial de transformação dos receptores do podcast em

emissores, justamente por esse domínio possibilitado pelo fácil acesso a tecnologia, porém,

entendemos aqui que não deve haver uma celebração utópica do empoderamento deste perfil

de receptor, ou seja, tal receptor não deve ser tomado pelo todo no panorama midiático, já que

24

apenas uma pequena parcela do público das redes digitais tem potencial para assumir o papel

de produção da informação que circula via podcast.

Tendo em vista essa ampla gama de possibilidades no papel da recepção dentro do

contexto das mídias digitais, adotaremos o termo receptor-usuário para nos referirmos ao

público que consome e interage em diversos níveis com o conteúdo de um podcast. Assim,

nosso ponto de partida diz respeito a um entendimento da amplitude da instância da recepção

desta nova radiofonia, em que se pode repensar os fenômenos comunicacionais por meio das

práticas de recepção e interação de um público diverso, que se apropria desta mídia digital em

maior ou menor grau de envolvimento, de acordo com sua subjetividade e condições política,

econômica e cultural, no intuito de se estabelecer e interferir em uma agenda pública de

debates, com a circulação de opiniões, reclamações, demandas e representações, por meio de

redes sociais, ferramentas de compartilhamento, entre outros recursos para práticas

interativas, conforme será aprofundado na análise (capítulo 5) do objeto empírico desta

pesquisa – o podcast Serial.

Como o podcast Serial se trata de uma narrativa jornalística, é possível fazer uso da

reflexão de Sônia Pessoa (2016) acerca da cultura além da escuta voltada para o

radiojornalismo. Segundo a autora, o ouvinte se apresenta como um dos principais atores na

configuração do radiojornalismo contemporâneo, sendo que o processo de escuta diz respeito

não só à compreensão das mensagens que fazem uso de uma linguagem audioverbovisual,

como também do cenário das redes sociais online, espaço em que o ouvinte digital expressa

sua opinião e expande debates.

Percebe-se que o mapeamento das interações radiofônicas nas mídias digitais

apresenta ampla complexidade devido às suas especificidades e hibridização, já que novas

práticas coexistem com outras oriundas da tradicional comunicação massiva do rádio. Assim,

a análise deste rádio expandido, conforme conceito abordado por Marcelo Kischinhevsky

(2014), por meio do podcast Serial engloba nesta pesquisa tanto a instância narrativa da série,

principalmente no que diz respeito à linguagem acionada para a produção do discurso

jornalístico de Serial, quanto o importante papel dos receptores na interação com o podcast -

associada às potencialidades das redes digitais - e na construção de sentidos em torno desta

narrativa. E para entender a relação entre as instâncias de emissão e de recepção no podcast

Serial vamos acionar os conceitos de contratos de comunicação (CHARAUDEAU, 2006a) e

de leitura (VÉRON, 2004; FAUSTO NETO, 2007) e, a partir destes conceitos, analisar as

transformações que se deram nesses contratos do cenário da comunicação radiofônica

tradicional para o da radiofonia expandida nas plataformas digitais.

25

3.2 Contratos de leitura e de comunicação

Quando pensamos na forma como os sujeitos sociais constroem a realidade,

encontramos os atos discursivos como um caminho para estes indivíduos, inseridos em uma

coletividade, interpretarem os atos que os rodeiam. E, em se tratando de sujeitos e seus

discursos, encontramos no jornalismo e seus dispositivos comunicacionais um meio que

condiciona a produção, a circulação e a recepção destes discursos que expressam e

representam o mundo da ação humana.

Um fato selecionado do mundo da ação e transformado em discurso circula por meio

de diversos meios e plataformas de comunicação (massivos ou pela rede digital), o que resulta

em múltiplas interpretações sobre o que aquele acontecimento discursivo7

representa para

uma determinada realidade social em um determinado momento. Para analisarmos a produção

de sentidos gerada pelos discursos jornalísticos, é importante observarmos a relação de

articulação entre a instância de produção e a instância de recepção, por meio das condições de

concretização das trocas linguageiras que ocorrem entre os atores sociais envolvidos. Tratam-

se de estratégias do campo midiático para se realizar a enunciação de discursos, ou seja,

regras que não são declaradas explicitamente, porém são naturalizadas às rotinas produtivas,

sendo um contrato de leitura que se viabiliza por meio do vínculo entre leitores e produtores

dos suportes midiáticos.

Eliseo Verón (2004) apresenta em suas reflexões o conceito de contrato de leitura,

definindo-o como uma espécie de espaço imaginário em que múltiplos percursos são

ofertados ao leitor com opções de relativa liberdade, encontrando zonas em que ele pode se

perder ou encontrar sinalizações perfeitas para seguir e gerar sua leitura e interpretação acerca

de um discurso. Verón percebe o discurso como um espaço habitado por sujeitos sociais,

cenários e objetos que os cercam e considera que o ato de leitura é a movimentação de todo

este universo, ou seja, para o autor leitura é ação. Esta ideia de leitura ativa se opõe ao

procedimento tradicional que caracteriza o leitor de forma objetiva como um ser passivo no

processo comunicacional, sem se questionar sobre o conhecimento produzido na recepção

durante o ato de leitura. Verón ressalta o papel do leitor que, a partir de sua cultura, hábitos e

vivências, constrói sentidos sobre os enunciados difundidos pelo emissor, gerando novos

7

O conceito de acontecimento discursivo é trabalhado com maior profundidade no próximo capítulo desta

dissertação pelo viés teórico de Louis Quéré (2012), cujos estudos abordam a dupla vida do acontecimento, e de

Adriano Rodrigues (1993), autor que desenvolve o conceito de acontecimento e meta-acontecimento no campo

jornalístico.

26

discursos, provocando um constante processo de negociação entre produtor e receptor em uma

permanente troca de sentidos.

Alinhado ao conceito de Verón, Antônio Fausto Neto (2007) também apresenta a

noção de contrato de leitura como normas naturalizadas nas operações de produção que

regulam as relações entre os sujeitos envolvidos no processo comunicacional, o que diz

respeito aos processos que estruturam a interação entre emissor e receptor e que norteiam a

produção dos discursos midiáticos.

Entende-se, aqui, por contratos de leituras regras, estratégias e ‘políticas’ de sentidos

que organizam os modos de vinculação entre as ofertas e recepção dos discursos

midiáticos, e que se formalizam nas práticas textuais, como instâncias que

constituem o ponto de vínculo entre produtores e usuários. (FAUSTO NETO, 2007,

p.10)

Ainda de acordo com Fausto Neto, o processo de produção de um discurso já nasce

vinculado às lógicas que envolvem a instância emissora midiática. Um jornal, por exemplo,

ao produzir um acontecimento discursivo e buscar a construção de um espaço interacional

com seus leitores, está sujeito às regras e procedimentos internos que antecedem a emissão de

seu enunciado e moldam a sua linguagem e forma de se dirigir ao seu público, estruturando o

modo de dizer. É a partir desta influência da atmosfera interna de um veículo de comunicação

que se constrói a identidade do discurso midiático, definindo as características estético-

linguageiras que marcam o enunciado, o que possibilita um reconhecimento de presença de

determinado veículo de comunicação (impresso, rádio, TV e plataformas online) pelos seus

receptores.

Entende-se que o contrato de leitura estabelece uma via de mão dupla entre a instância

de produção e a instância de recepção envolvidas no ato da comunicação. A abordagem de

Antônio Fausto Neto acerca da emissão nos possibilita observar que uma das vias desta

relação permite situar o leitor em um campo de interesses e expectativas de efeitos de sentido

pré-estabelecidos por quem gera e põe em circulação um determinado discurso. Quando um

dispositivo comunicacional (como o jornal impresso, emissora de rádio ou TV) realiza

operações enunciativas que guiam um potencial sentido a seu público, ele também desenvolve

estratégias cujo intuito é inserir o receptor em um espaço de interação delimitado

parcialmente pelo próprio emissor, de acordo com as regras naturalizadas pelo contrato de

leitura e com as características linguageiras do discurso. Assim, a força deste “contrato” se

destaca em suas operações de emissão da mensagem, uma vez que é possível perceber os

efeitos de sentidos pré-estabelecidos responsáveis pela articulação da oferta do discurso

midiático e a apropriação feita pelo leitor por meio das mensagens em circulação.

27

Importante ressaltar que, apesar de haver uma intenção de sentido da instância de

produção do discurso, é preciso refletir sobre a construção de sentido produzida na recepção,

que não depende exclusivamente da intenção dos produtores de discurso, para melhor

compreensão do vínculo que articula mídias e receptores. Fausto Neto (2007) aponta as

diferenças existentes entre o campo midiático jornalístico e os leitores. O primeiro, como

explicado anteriormente, constrói o seu discurso não somente pela mera representação de um

acontecimento mundano e interesses de leitores, mas também definido pelas instâncias

organizacionais e tecno-editoriais, que influenciam na elaboração dos modos de dizer deste

campo. Estas “normas contratuais” que permeiam a instância de produção constitui um dos

fatores que influenciam a produção de sentido na recepção. Este campo dos leitores, por sua

vez, é influenciado pelo campo da emissão, mas também se constitui pela pluralidade dos

atores sociais que realizam as mais diversas leituras acerca de um mesmo discurso midiático,

devido aos diferentes contextos sócio-culturais que estão inseridos, às múltiplas identidades

biográficas e às diferentes construções simbólicas que se dão pela subjetividade que envolve o

indivíduo e a coletividade que o cerca.

A força dessas duas instâncias nos mostra como a articulação entre produção-recepção

exige reciprocidade e influencia diretamente na constituição do contrato de leitura. Apesar de

o termo “contrato” implicar em cálculo e previsibilidade, não podemos considerar os

contratos como unidimensionais no que diz respeito à produção de sentido, pois a significação

produzida ocorre permeada por relações complexas, sendo o âmbito interacional um elemento

essencial para a compreensão e análise do contrato de leitura. Sibila Rocha e Taís Ghisleni

(2010) reforçam a ideia de que o entendimento do contrato e das convenções que regulam as

relações dos sujeitos em comunicação dependem não apenas dos modos de dizer, mas

também dos modos de reconhecer. “O reconhecimento, por parte do receptor, influencia os

“modos de dizer” do enunciador. Reconhecer é também produzir sentidos; enunciador e

receptor se atualizam num processo recíproco” (ROCHA e GHISLENI, 2010, p.4).

Pode-se afirmar que a noção de Patrick Charaudeau (2006a) possui forte relação com a

perspectiva de Eliseo Verón ao enfatizar que o ato de comunicação realizado entre os atores

sociais é regulado por um contrato de comunicação. Charaudeau desenvolve sua concepção de

contrato ao afirmar que o discurso da informação propicia o reconhecimento identitário nas

sociedades e as mídias, como parte interessada nessa prática social, se organizam para fabricar

este tipo de discurso por meio dos seus diversos veículos, que constituem a “máquina

midiática”. Essa máquina coloca em evidência o contrato comunicacional, pois é justamente

pela mídia que se percebe a atividade de linguagem exercida pelo discurso da informação e é

28

por meio desse ato de comunicação que se dá a prática social de construção da realidade.

Charaudeau destaca que as restrições existentes em uma situação de comunicação são

naturalmente reguladas pelos indivíduos envolvidos nesta produção e circulação de discursos

que representam as práticas sociais, por meio de normas e convenções que definem os

comportamentos linguageiros essenciais para a realização da comunicação humana por meio

da máquina midiática.

Charaudeau discorre então sobre o conceito de contrato de comunicação e mostra que

para os indivíduos comunicarem entre si é necessário que tanto o locutor quanto o destinatário

reconheçam as restrições envolvidas nesta prática social, ao afirmar que

(...) toda troca linguageira se realiza num quadro de co-intencionalidade, cuja

garantia são as restrições da situação da comunicação. O necessário reconhecimento

recíproco das restrições da situação pelos parceiros da troca linguageira nos leva a

dizer que estes estão ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os dados desse

quadro de referência. Eles se encontram na situação de dever subscrever, antes de

qualquer intenção e estratégia particular, a um contrato de reconhecimento das

condições de realização da troca linguageira em que estão envolvidos: um contrato

de comunicação. Este resulta das características próprias à situação de troca, os

dados externos, e das características discursivas decorrente, os dados internos

(CHARAUDEAU, 2006a, p.68).

A interação comunicativa resulta do modo como os aspectos discursivos são dispostos

e do contexto que envolve a troca linguageira. Patrick Charaudeau aponta duas formas de

organização dos dados das estratégias enunciativas presentes no contrato de comunicação:

externa e interna. Segundo o autor, os dados externos do contrato se referem ao modo como

ocorre a troca informacional, enquanto os dados internos dizem respeito às formas discursivas

da enunciação.

Os dados externos são constituídos pela forma comportamental dos indivíduos

envolvidos na troca e pelo contexto que cerca a organização da informação. De acordo com o

pesquisador francês, estes dados “não são essencialmente linguageiros (o que os opõem aos

dados internos), mas são semiotizados, pois correspondem a índices que, retirados do

conjunto dos comportamentos sociais, apresentam uma convergência, configurando-se em

constantes” (CHARAUDEAU, 2006a, p.68). As formas externas se agrupam em quatro

categorias que ilustram as condições de enunciação da produção linguística: condição de

identidade, condição de finalidade, condição de propósito e condição de dispositivo.

A primeira categoria se refere à identidade dos sujeitos engajados no ato

comunicacional, que é uma das principais condições para que a troca ocorra. As

características que identificam os atores do ato de linguagem interferem na construção do

discurso a ser colocado em circulação. Desde a subjetividade que envolve os traços de

29

personalidade até os traços que estão no contexto dos sujeitos da troca, como status social,

econômico e cultural, são elementos que definem a forma que os emissores e receptores de

um discurso realizam a troca linguageira e produzem sentido acerca da ação representada.

A finalidade é a segunda condição externa apontada por Charaudeau (2006a) para a

concretização da organização da informação. Esta condição representa o objetivo da

construção de determinado ato comunicacional, sendo definida pela expectativa de sentido a

ser causado no receptor. Ao elaborarem e fazerem circular um discurso informativo, os

sujeitos envolvidos buscam incorporar um ao outro à sua própria intencionalidade, ou seja,

encontramos nesta categoria uma espécie de efeitos visados, os quais se dividem, por sua vez,

em quatro tipos, que podem combinar entre si: visada prescritiva, que consiste em querer

fazer o outro a ter um determinado comportamento; visada informativa, cujo intuito é

transmitir um conhecimento a quem não o possui; visada iniciativa, que tem a intenção de

fazer com que o outro creia que o que fora dito é verdadeiro; e por último a visada do páthos,

relacionada ao fazer sentir, à intenção de provocar um determinado estado emocional com o

discurso elaborado.

A terceira condição dos dados externos do contrato de comunicação de Charaudeau é

o propósito. Aqui, trata-se da tematização do discurso, o que requer uma maneira de recortar o

mundo da ação em torno de um domínio de saber. Os sujeitos que compõem a troca devem

reconhecer o tema para construírem suas interpretações em torno de determinado propósito, o

que pode levar a outros temas e subtemas derivados do inicial proposto no ato

comunicacional.

O dispositivo é a quarta condição externa que regula a construção discursiva da troca

comunicativa. Esta condição diz respeito às condições materiais em que se insere o ato, o

ambiente em que está instaurado junto com os indivíduos que os compõe e são responsáveis

pela transmissão do discurso. A definição da categoria do dispositivo está nas respostas das

perguntas: em que ambiente está inscrito o ato de comunicação? Quais espaços físicos são

ocupados pelos sujeitos ligados à troca discursiva? E qual é o meio de transmissão de

determinado discurso?

No contrato de comunicação de Charaudeau (2006a), a segunda forma de organização

das estratégias enunciativas passa pelos dados internos. A partir do momento que se

compreende as influências externas em que se dão as trocas discursivas entre produtores e

receptores, é importante entender o papel dos dados internos. Estes se referem à percepção de

como será dita a mensagem, ou seja, quais serão as formas linguísticas empregadas em função

das restrições situacionais percebidas e reconhecidas por meio dos dados externos. O autor

30

divide as formas internas em três espaços comportamentais de linguagem: o espaço de

locução, o espaço de relação e o espaço de tematização.

O espaço de locução influencia diretamente na maneira em que irá se construir o

discurso, uma vez que é neste espaço que o locutor se legitima como sujeito falante e seu

direito de falar, ao tomar a palavra para si e justificar por que escolheu produzir determinada

locução ao mesmo tempo em que idealiza um interlocutor ao qual irá se dirigir com suas

palavras escolhidas. O locutor conquista neste espaço seu direito de exercer a comunicação.

O segundo espaço de comportamento de linguagem se define pela forma como o

emissor constrói seu relacionamento com o destinatário. O sujeito falante, ao se posicionar

como locutor de um determinado discurso e pré-estabelecer seu interlocutor, desenvolve

relações de aproximação ou afastamento, de exclusão ou inclusão, a partir do momento que a

circulação de um enunciado propicia uma troca entre receptor e produtor.

A tematização é o espaço onde se organiza o tema do ato comunicacional pelo sujeito

falante. É neste espaço que ocorre o tratamento da informação, em que se define o modo de

como se projetará o saber, seja ele pré-definido pelas restrições externas da comunicação ou

pelos sujeitos envolvidos no ato. O locutor escolhe o modo de intervenção, ou seja, a forma

como vai se posicionar diante da temática escolhida e, principalmente, a forma como vai

desenvolver um determinado discurso, como, por exemplo, por meio de descrição, narração e

argumentação.

Apesar de apontar as condições externas restritivas que permeiam o ato

comunicacional entre os atores sociais das instâncias de produção e de recepção, Patrick

Charaudeau assinala que o contrato comunicacional determina a maneira de criação discursiva

apenas parcialmente, caracterizando uma possibilidade de liberdade criativa por parte da

subjetividade da fala de um locutor, já que este não depende única e exclusivamente das

interferências externas para construir seu discurso.

Nenhum ato de comunicação está previamente determinado. Se é verdade que o

sujeito falante está sempre sobredeterminado pelo contrato de comunicação que

caracteriza cada situação de troca (condição de socialidade do ato de linguagem e da

construção de sentido), é apenas em parte que está determinado, pois dispõe de uma

margem de manobra que lhe permite realizar seu projeto de fala pessoal, ou seja, lhe

permite manifestar um ato de individuação: na realização do ato de linguagem, pode

escolher os modos de expressão que correspondam a seu próprio projeto de fala.

(CHARAUDEAU, 2006a, p.71)

Ao compreendermos os dados externos e internos que compõem o contrato,

percebemos como a prática comunicacional traz à tona o protagonismo da força da

reciprocidade existente entre as duas vertentes midiáticas da produção e da recepção. Toda a

31

organização discursiva influenciada pelas estratégias linguísticas escolhidas pelo emissor e

pelas influências externas do contexto organizacional que o rodeia necessita ser reconhecida

pelo receptor, que consequentemente deve manifestar seu interesse pelo consumo de

determinada informação, para então se estabelecer a troca comunicativa.

Assim, o sentido resultante do ato de comunicação está diretamente relacionado à co-

intencionalidade entre as duas vertentes midiáticas. Charaudeau (2006a) afirma que esta troca

entre essas duas instâncias determina três lugares de construção de sentido: o da instância de

produção, o da instância de recepção e o do texto como produto, conforme podemos observar

na figura abaixo:

Figura 1

OS TRÊS LUGARES DA MÁQUINA MIDIÁTICA

Produção

Lugar das condições de

produção

Produto

Lugar de construção do

produto

Recepção

Lugar das condições de

interpretação

[Externo-Externo]

- Práticas de

organização

socioprofissionais;

- Representações por

discursos de

justificativas de

intencionalidade dos

“efeitos

econômicos”;

[Externo-Interno]

- Práticas de

realização do

produto;

- Representações

por discursos de

justificativas da

intencionalidade

dos “efeitos

visados”;

[Interno]

- Organização

estrutural

semiodiscursiva

segundo hipóteses

sobre a co-

intencionalidade;

- Enunciador-

destinatário;

- “efeitos

[Interno-Externo]

- Alvo imaginado

pela instância

midiática;

- “efeitos

supostos”;

[Externo-externo]

- Público como

instância de

consumo do

produto;

- “efeitos

produzidos”;

Fonte: Adaptação de figura elaborada por Patrick Charaudeau sobre a máquina midiática e seus lugares de

construção de sentido (CHARAUDEAU, 2006a, p.23).

Os atores de um determinado contrato de comunicação inseridos na instância de

produção agem de acordo com critérios externos e internos segundo Charaudeau (2006a). Os

externos se referem às lógicas de atuação dessa instância de acordo com fatores

32

socioeconômicos da mídia juntamente com as práticas de organização da máquina midiática

enquanto empresa. Tais fatores influenciam na elaboração do enunciado a partir de um ponto

de vista mercadológico. Os atores-produtores de um ato comunicacional atuam de acordo com

práticas quase institucionalizadas, com funções pré-estabelecidas por uma intencionalidade da

própria empresa, ou seja, o veículo de comunicação também influencia nos modos de dizer

dos produtores visando efeitos econômicos. São saberes que preexistem à construção de um

discurso antes mesmo da percepção e seleção de um acontecimento mundano que será narrado

por um locutor. Já os fatores externos-internos da produção se constituem em um espaço de

práticas em que os atores constroem o discurso de representação de acordo com algum

objetivo específico no intuito de alcançar um destinatário ideal. Estes fatores da produção irão

definir o tipo de produto midiático a ser construído (artigo ou reportagem de impresso,

telejornal, programa radiofônico, entre outros) em busca de um efeito visado à instância de

recepção (receptor ideal).

A intencionalidade da instância de produção em construir um discurso visando um

receptor ideal constitui um aspecto interno da instância de recepção prevista em um contrato

de comunicação. Ao colocar um discurso em circulação, o polo produtor não tem controle

total sobre a recepção, mesmo que proponha um efeito de sentido. É neste aspecto que se

compreende uma espécie de espaço externo dentro da instância de recepção, pois o consumo

da informação midiática é realizado pelo receptor real, responsável pela produção de sentidos

dirigida de acordo com suas próprias condições de interpretação. Assim, no contrato de

comunicação, o público-receptor não pode ser tratado de maneira global, ele é heterogêneo e

se diferencia de acordo com o suporte de transmissão da mensagem. A construção de sentido

pela recepção depende de elementos que combinam categorias sociais, culturais e econômicas

de uma coletividade e de categorias mentais que correspondem à forma como os indivíduos

percebem e interpretam os acontecimentos que representam uma determinada realidade social.

Essa distinção de lugares da máquina midiática proposta por Charaudeau nos mostra

que a produção discursiva corresponde não somente à intenção do produtor ou somente à do

receptor, ela resulta de uma relação de via de mão dupla entre os efeitos visados pelos

emissores e os múltiplos efeitos produzidos pelas interpretações do público. Esses três lugares

incidem um sobre o outro e formam um ciclo na construção de sentido pela representação

discursiva de uma determinada realidade social.

É importante ressaltar que estas noções de contrato de comunicação por Charaudeau

(2006a) e de contrato de leitura por Verón (2004) e Antônio Fausto Neto (2007) são reflexões

voltadas principalmente para o contexto dos processos comunicacionais massivos, mais

33

vinculados aos veículos impressos e eletrônicos (jornais, revistas, rádio e TV). Considerar as

transformações sociais e mudanças da tecnologia se faz essencial para analisarmos como estes

contratos se transformam na lógica da sociedade midiatizada. Mais especificamente nos

interessa perceber como se transforma a relação entre emissão e recepção no podcast, objeto

de estudo desta pesquisa, além de compreender como esses novos aspectos do contrato

comunicacional influenciam na construção do acontecimento do podcast Serial. E

considerando que o podcast está inserido dentro da radiofonia expandida, ainda cabe em

nossa reflexão ressaltarmos a ideia do contrato de comunicação de Charaudeau aplicada à

comunicação radiofônica por Castro e Bruck (2012).

Nas emissões radiofônicas, os postulados de intencionalidade descritos por

Chareaudeau parecem atuar simultaneamente em uma ação combinatória de

objetivos de persuasão, de sedução e de informação. O discurso radiofônico é de

permanente tentativa de sedução do receptor. Refém de uma circunstância técnica

precária, o rádio procura vencer as limitações que lhe são impostas pelo ambiente

exclusivamente sonoro com sofisticadas e envolventes estratégias estético-

discursivas. Objetividade, simplicidade, clareza, concisão, etc são parâmetros

indispensáveis ao processo de construção da linguagem radiofônica, mas a esses

parâmetros, o rádio aciona de modo intenso e apriorístico aspectos estéticos que

reenquadram a comunicação radiofônica transformando-a, como assinala Rodrigues

(1999), num envelope sonoro da realidade (CASTRO e BRUCK, 2012, p.44).

Apesar de os autores trabalharem com foco maior na radiofonia tradicional,

entendemos que a operação da linguagem radiofônica se mantém na radiofonia expandida,

englobando o podcast. Isso quer dizer que, apesar da oralidade característica do meio

tradicional poder até ganhar novas possibilidades nos meios digitais com a inserção de outros

elementos (imagem, texto, vídeo, etc.), ainda permanece o contrato entre as instâncias de

produção e de recepção, principalmente por meio de dois compromissos apontados por Castro

e Bruck: o reconhecimento e a adesão. Mesmo que a interseção estabelecida entre o polo

emissor e o ouvinte ainda não ocorra de forma essencialmente sonora, ainda percebemos que

o receptor da radiofonia expandida se identifica com os atos de fala e com a abordagem dos

acontecimentos mundanos, além de aderir ao lugar de representação de uma realidade

construída pela instância de produção e, a partir destes dois compromissos e suas

interpretações, irá construir os sentidos acerca do conteúdo que lhe é apresentado.

Assim, antes de buscarmos compreender os modos de contratação de leitura e

comunicação no podcast, é necessário conhecer melhor este microdispositivo, por meio do

estudo de suas características estético-linguageiras, de seus gêneros e formatos, além de seus

modos de oferta, pela compreensão das suas possibilidades de produção, circulação e

recepção de discursos nas redes digitais.

34

3.3 Podcasts: especificidades

O desenvolvimento das mídias digitais proporcionou mudanças importantes na

construção e circulação das mensagens sonoras e suas linguagens, possibilitando novas

variações narrativas. É neste contexto que o podcast se apresenta como um possível caminho

para escapar da padronização de conteúdos, definidos principalmente pela brevidade e

instantaneidade, sendo permitido pela emergência de diferentes formatos oriundos dos

avanços tecnológicos e com as distintas maneiras de divulgação das produções pela internet.

O podcast é um dos produtos que instaura processos comunicacionais inserido dentro

da radiofonia expandida, cuja principal função é disponibilizar conteúdos de diversos

formatos para os mais distintos meios e plataformas digitais. Atualmente, está vinculado a

conteúdos essencialmente sonoros, sendo considerado a junção do rádio tradicional com as

possibilidades de difusão de conteúdo da internet. Apesar de ter se popularizado pelo uso da

linguagem sonora, o podcast não se limita somente ao som, já que disponibiliza conteúdo para

diversos meios digitais, seja em arquivos de áudio, texto ou imagem disponibilizados na

internet, além de possibilitar também novas explorações de conteúdo e criatividade narrativa

em busca dos mais variados públicos.

O podcasting não é só baixar e logo subir uma música ou outro documento sonoro. Possibilita qualquer elaboração pessoal mediante a inclusão de comentários, relatos ou documentos sonoros procedentes de outras fontes até mesmo criar um documento pessoal. É a organização de fontes externas e a incorporação da própria criatividade do usuário. Os sons radiofônicos se entrelaçam com outros procedentes da Rede ou de outros suportes e, em suma, se submetem a contextos diferentes que é de onde

surgem os novos significados (HERREROS, 2008, p.216, tradução nossa).8

De acordo com o pesquisador espanhol Juan Ignacio Gallego Pérez (2010), o contexto

em que se dá o surgimento do podcast é composto pela combinação das ideias de três

personagens: o desenvolvedor de software e da tecnologia de feed RSS9, Dave Winer, o ex-

apresentador da MTV e blogueiro, Adam Curry e o jornalista Christopher Lydon. Em outubro

8 El podcasting no es solo bajar y luego subir música u otro documento sonoro. Es posible cualquier elaboración

personal mediante la inclusión de comentarios, relatos o documentos sonoros procedentes de otras fuentes hasta

crear un documento personal. Es la organización de fuentes hasta ajenas y la incorporación de la propia

creatividad de cada usuario. Los sonidos radiofónicos se entrelazan con otros procedentes de la Red o de otros

soportes y, en suma, se someten a contextos diferentes que es de donde surgen los nuevos significados. 9

RSS é a sigla de Really Simple Sindycation e é um sistema de feed. A tradução de “feed” vem termo em inglês e

significa alimentar. Tal significado é aplicado a este sistema e é relacionado ao formato de distribuição de

conteúdo de sites, blogs e outras mídias digitais. O objetivo deste sistema de feed é alimentar o usuário das redes

digitais que recebe um determinado conteúdo por meio de uma assinatura de RSS. Assim, ao invés de o usuário

navegar por vários sites em busca de determinados conteúdos, o sistema de feed permite que determinada

postagem chegue direto ao assinante em seu leitor de feed, sempre que um conteúdo (texto, vídeo ou áudio) for

atualizado.

35

de 2000, Curry apresenta a Winer uma de suas preocupações, que se referia ao RSS não se

reduzir à um sistema agregador de conteúdo unicamente voltado à linguagem textual. Para

Curry, havia potencial para a indexação de outros arquivos multimídias, como o áudio. A

partir desta inquietação de Adam Curry, Dave Winer desenvolve uma nova versão do sistema

RSS que possibilitou anexar uma canção da banda norte-americana Greatful Dead em um post

de seu blog em janeiro de 2001, o que permitiu que diversos audiobloggers utilizassem esta

tecnologia para indexar músicas em suas postagens. O jornalista Cristopher Lydon, que

também possuía um audioblog, buscava uma tecnologia que permitia não só o download,

como uma transferência direta do arquivo de áudio disponível na rede para o equipamento

reprodutor de arquivos de som no formato MP3. Assim, ainda de acordo com Gallego Pérez

(2010), Lydon em parceria com Dave Winer conseguiram desenvolver, em 2003, um

agregador de conteúdo que descarregava automaticamente arquivos de entrevistas em áudio

que Cristopher Lydon realizava com blogueiros e personalidades da política.

Entretanto, Adam Curry foi além e seguiu com sua inquietação do download

automático direto para seu iPod (aparelho de reprodução de MP3 da Apple) deste tipo de

arquivo multimídia sempre que houvesse uma nova atualização de conteúdo, sem a

necessidade de visitar o site ou o audioblog em que tal arquivo era publicado. O que se

sucedeu foi que, em 2004, Curry criou com uso de licença de software livre uma primeira

versão de um sistema denominado RsstoiPod, que permitia o download de arquivos direto no

aparelho da Apple, o que é considerado os primórdios da experiência de podcast, conforme o

ex-apresentador da MTV relata em entrevista à revista Wired (2005):

Eu sou uma das pessoas que criou, embora eu não tenha criado o nome. Foi em julho

de 2004. Eu simplesmente peguei bits e pedaços de tecnologia já existentes – RSS, MP3s, iPods e outros aparelhos de MP3 portáteis – e tentei juntá-los para cumprir

uma simples tarefa. Eu gostava do fato de as pessoas estarem começando a publicar

em blogs arquivos de áudio, mas eu não queria ter que procurar por eles. Eu queria a experiência mágica...que meu computador simplesmente fizesse todo o trabalho por

mim. Eu queria que fizesse o download do arquivo MP3 assim que um novo arquivo estivesse disponível em um site favorito e simplesmente colocasse ele no meu iPod.

Eu estava perguntando a amigos desenvolvedores de software se eles podiam

programar algo parecido para mim, e foi o tipo de coisa que nunca tinham pensado em fazer, então eu simplesmente aprendi o suficiente para elaborar os componentes

básicos por conta própria (JARDIN, 2005, tradução nossa).10

10 I'm one of the people who created it, although I didn't create the name. It was back in July 2004. I just took

bits and pieces of technology that already existed – RSS, MP3s, iPods and other portable players – and tried to

bring them together to accomplish a simple task. I liked the fact that people were starting to blog audio files, but I

didn't want to go have to look for them. I wanted that magical experience ... for my computer to just go out and do

all the work for me. I wanted it to download the MP3 file when a new one became available from a favorite site,

and just put it on my iPod. I'd been asking software developer friends if they could program something like that

for me, and it was the kind of thing that never got around to happening, so I just learned enough to build the basic

components myself.

36

O termo podcast foi utilizado pela primeira vez pelo jornalista Ben Hammersley em

um artigo para a edição digital do jornal britânico The Guardian intitulado Revolução Sonora

– tradução do título original Audible Revolution – em que o jornalista sugere o termo em

busca de compreender o uso do áudio e sua linguagem sonora na internet, configurando um

novo boom da radiofonia.

Com o benefício de retrospectiva, tudo parece bastante óbvio. MP3 players, como o iPod da Apple, em muitos bolsos, software de produção de áudio barato ou gratuito, e weblogging uma parte estabelecida da internet; todos os ingredientes estão lá para um novo boom no rádio amador. Mas como chamá-lo? Audioblogging? Podcasting?

GuerillaMedia? "É realmente um experimento", diz Christopher Lydon, ex- jornalista do New York Times e da National Public Radio, e agora um pioneiro no campo. "Tudo é barato, as ferramentas estão disponíveis, todos têm afirmado que qualquer pessoa pode ser um editor, qualquer pessoa pode ser um emissor", diz ele,

"Vamos ver se isso funciona"(HAMMERSLEY, 2004, tradução nossa).11

Gallego Pérez (2010) explica que a origem do termo apresentado por Ben Hammersley

em 2004 se refere à junção das palavras iPod e broadcasting e, mesmo considerando que a

escolha de uma marca da Apple no nome do termo vai na contramão do mundo de software

livre em que o podcast foi criado, o termo se refere mais às possibilidades de emissão e

circulação de diversos arquivos de áudio pela rede digital. E é a partir deste cenário que o

autor segue sua reflexão ao apresentar sua definição de podcast, que se refere ao processo de

emissão e distribuição de conteúdo sonoro por meio do sistema de RSS, funcionando como

uma espécie de assinatura, já que a cada vez que o conteúdo de um determinado site, blog ou

outro polo emissor de conteúdo da rede digital é produzido, o assinante recebe a atualização

diretamente em seu aparelho ou mídia digital que suporta tal conteúdo.

Pode-se afirmar, então, que o termo podcast alude hoje a uma alargada significação de

produtos, suportes e formas de distribuição, mas cada vez mais associado a produtos

acústicos. O nome traz em si ambiguidades no que diz respeito às definições que estabelece,

pois pode significar os conteúdos em si (programas), modos de circulação (como é

distribuído) e o gênero e formas que os desenham.

Apesar de fazer uso similar da linguagem radiofônica, o podcast se diferencia do rádio

principalmente pelos seus modos de distribuição da informação. No tradicional veículo

massivo, a informação circula por transmissores de ondas eletromagnéticas, o que faz o som

11 With the benefit of hindsight, it all seems quite obvious. MP3 players, like Apple's iPod, in many pockets,

audio production software cheap or free, and weblogging an established part of the internet; all the ingredients

are there for a new boom in amateur radio. But what to call it? Audioblogging? Podcasting? GuerillaMedia? "It's

an experiment, really," says Christopher Lydon, the ex-New York Times and National Public Radio journalist,

and now a pioneer in the field. "Everything is inexpensive. The tools are available. Everyone has been saying

anyone can be a publisher, anyone can be a broadcaster," he says, "Let's see if that works."

37

ser captado e sintonizado pelas antenas de receptores de rádio, o que significa que a escuta

ocorre de maneira sincronizada com a emissão do sinal. Já o podcast se diferencia da

radiodifusão tradicional, pois o tempo de produção e circulação do conteúdo não coincide

com o tempo da escuta pelo receptor-usuário. A distribuição do conteúdo pelas redes digitais

ocorre por meio da tecnologia RSS, que funciona como um agregador de conteúdo (vinculado

tanto a sites quanto à aplicativos de dispositivos móveis, como celulares e tablets), no qual o

receptor pode se inscrever e acompanhar todas as atualizações relativas à produção de

determinado podcast. Isso quer dizer que após o ouvinte se inscrever via RSS, ele poderá ter

acesso a qualquer atualização por meio destes agregadores, que irão informar e disponibilizar

ao receptor quando houver um novo episódio disponível. Esta tecnologia caracteriza o

podcast como uma espécie de assinatura, já que dispensa o ouvinte de ir novamente ao site

original, onde o arquivo está hospedado.

Enquanto o programa de rádio e rádio Web são fugazes e cada programa é

consumido sincronicamente com a transmissão, no podcasting o programa não se

“perde” assim que ocorra a transmissão e escuta. Neste último processo é preciso ter

posse da integralidade do arquivo para que ele possa ser escutado. No rádio a escuta

do final de um programa ocorre simultaneamente à finalização de sua produção (nos

casos ao vivo) e transmissão. No podcasting o final de um programa já é possuído,

ele já existe em sua completude, mesmo quando a escuta tem início (PRIMO, 2005,

p.14).

Conforme aponta o pesquisador Mariano Cébrian Herreros (2008), apesar de ser

conhecido por milhares de usuários das redes digitais, percebe-se que nos tempos atuais ainda

existe um grande público que desconhece o podcast e suas potencialidades. Tal constatação

pode ser percebida justamente através do objeto empírico desta pesquisa. O lançamento do

primeiro episódio do podcast Serial - que é uma produção de uma equipe de profissionais

vinculada à uma tradicional e popular emissora radiofônica norte-americana (WBEZ Chicago)

– foi acompanhado com a publicação de um vídeo em que se explica como assinar um

podcast para acompanhar os episódios semanais da série jornalística, seja no computador ou

em algum dispositivo móvel (celular, tablets, etc). Ira Glass, um dos editores da emissora

radiofônica responsável pela criação de Serial, divulgou um vídeo12

em que aparece com uma

amiga, uma senhora que aparenta ter a faixa etária ligada ao público da terceira idade,

explicando como é simples se inscrever no serviço de podcast e receber notificações

automáticas sempre que um novo episódio de Serial for lançado.

12 O vídeo produzido pela equipe de Serial com a explicação de como se inscrever e acompanhar semanalmente

o podcast está disponível no site oficial em <https://serialpodcast.org/how-to-listen>. Acesso em 10 de julho de

2017.

38

Herreros (2008) aponta que o sistema de distribuição do podcast permite que os atores

sociais tenham acesso a diversos tipos de conteúdo pela simplicidade do processo de

assinatura do RSS, ao mesmo tempo que propicia às tradicionais emissoras ofertarem

conteúdos que explorem a potencialidade deste meio e, consequentemente, encontrem novas

formas de interação com seu público ouvinte. Os meios de comunicação tradicionais abrem os

olhos para esta nova possibilidade ofertada pelo sistema do podcast, que possibilita a criação

de conteúdo por profissionais oriundos de veículos massivos mesclando a linguagem

radiofônica com as potencialidades de difusão e consumo pelas redes digitais. Já se fazem

muito presentes nos portais e sites de emissoras radiofônicas na web arquivos de áudio

apresentados como podcasts e que, na verdade, são trechos extraídos de programas regulares

das emissoras, como a participação de comentaristas, colunistas, etc.

Ao analisar as possibilidades de produção e recepção do podcast, Herreros assinala

que este processo da radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) pode ser

compreendido em três modalidades. A primeira diz respeito aos possíveis emissores de

conteúdo via podcast que incorporam a mídia na rede, por meio dos veículos tradicionais

radiofônicos que disponibilizam conteúdos sonoros neste sistema de feed, ou seja, por meio

de grandes empresas e instituições com conteúdo especializado. Em uma segunda dimensão,

encontra-se a produção de conteúdo realizada por receptores ativos que, em uma espécie de

resposta à informação difundida pelos meios tradicionais na rede, criam seus podcasts com

recursos pessoais (microfones, softwares de edição de som e acesso à internet) e o distribuem

por conta própria. Já na terceira modalidade, Herreros visualiza um meio de produção em que

os usuários ora se portam como produtores e ora se portam como receptores, realizando trocas

e múltiplas interpretações acerca do que foi produzido e ofertado por eles próprios.

Independente da modalidade em que se insere, o autor defende que o podcast pertence a um

modelo comunicacional marcado pela interatividade entre a instância de produção e a

instância de recepção.

A princípio se mantém o esquema de emissões unidirecionais nos quais as emissoras são as responsáveis por elaborar seus produtos e colocá-los à disposição dos destinatários com a difusão e presença na Internet. As diferenças são provenientes da

interatividade que cada destinatário queira realizar com aquele registro, o que quer dizer que se trata de uma interatividade, em primeiro lugar, com a técnica de difusão e assinatura e, em segundo lugar, com os conteúdos baixados e registrados; cada usuário interage com estes conteúdos, seleciona umas partes e consome a seu gosto

(HERREROS, 2008, p.207-208, tradução nossa)13

.

13

En principio se mantiene el esquema de emisores unidireccionales en lós que las emisoras son las que elaboran

sus productos y los ponen a disposición de los destinatarios como en la difusión y en la presencia en Internet. Las

diferencias provienen de la interactividad que cada destinatario quiera efectuar luego con lo registrado, es decir,

se trata de una interactividad, en primer lugar, con la técnica de difusión y sindicación y, em segundo lugar, con

39

Com as diversas possibilidades interativas entre as instâncias de produção e recepção

que envolvem o podcast, percebe-se uma grande variação de temáticas proposta pelos seus

produtores. Conteúdos que englobam diversos assuntos – música, arte, tecnologia, ciência,

política, temas e debates jornalísticos, entre outros – são abordados neste suporte midiático e

expressos com o uso da linguagem sonora proveniente das emissoras de rádio. A hibridização

de linguagem, que se percebe entre rádio e podcast, é um processo já conhecido se

considerarmos a história do surgimento de novas mídias. O mesmo ocorreu na construção da

linguagem televisiva, que em seu surgimento apareceu como uma ameaça à vida do veículo

radiofônico. O que se percebeu na construção da linguagem televisiva foi o referencial rádio

predominar até prevalecer o conhecimento e experimentação das próprias potencialidades

técnicas e comunicacionais da TV. Manuel Castells (2000) ressalta que o surgimento das

mídias digitais levou a uma coexistência entre a cultura da mídia massiva e a comunicação

eletrônica, o que permite uma maior atividade interativa entre os receptores e produtores. E,

apesar de estarmos tratando aqui da comparação de um veículo massivo com um veículo

digital, é possível afirmar que, em termos de linguagem e códigos, o podcast se apropria

bastante das características estético-linguageiras do rádio.

Herreros (2008) aponta que o podcast integra diversas características linguísticas

sonoras, como a palavra oral, músicas e trilhas, efeitos sonoros, som ambiente e o silêncio. O

autor ressalta que a linguagem encampada pelo podcast faz uso dos recursos linguísticos

utilizados pelas emissoras radiofônicas tradicionais e acrescenta as possibilidades de difusão

sonora que as redes digitais propiciam.

Dos elementos linguísticos sonoros citados por Herreros, o que mais se destaca em

Serial é a palavra oral. E é exatamente o uso deste elemento que é responsável pela linguagem

deste podcast ser tão próxima da utilizada pelo jornalismo radiofônico. A história é guiada

pela voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. A narradora utiliza principalmente o recurso

vocal e aciona a palavra radiofônica como elemento central para construir a narração da

história que investiga o assassinato da jovem Hae Lee e a acusação construída em torno de

Adnan Syed. Sarah Koenig faz uso de sua própria voz para relatar a partir de suas apurações

por meio de documentos, reportagens da época e relatos de personagens e fontes associadas

(direta ou indiretamente) ao acontecimento destacado na série. Para compor a narrativa, a

jornalista aciona, então, além da sua própria palavra oral, outras vozes por meio de entrevistas

los contenidos uma vez descargados y registrados; cada usuario interactúa con ellos, selecciona unas partes y las

consume a su gusto.

40

em áudio realizadas com Adnan Syed (feita por telefone, direto do presídio em que se

encontra), seus familiares, amigos e pessoas próximas que conviveram com os jovens

protagonistas da história, junto com depoimentos de profissionais especializados (detetives,

advogados, psicólogos) que opinam sobre o caso e enriquecem a história narrada no podcast.

Outros elementos sonoros também são acionados no podcast Serial, apesar de não

terem o protagonismo da palavra oral de Sarah Koenig e das vozes acionadas pela narradora.

O uso de trilhas e efeitos sonoros complementa a linguagem da série jornalística. Algumas

músicas são acionadas em momentos pontuais que marcam a abertura e o encerramento de

cada episódio, além de algumas trilhas serem utilizadas em pontos da narrativa que demarcam

uma mudança temática. Um exemplo de efeito sonoro bem marcante é a gravação da

mensagem telefônica do presídio que é indício de que a narradora irá conversar com Adnan

Syed direto do presídio em que este se encontra nos dias atuais.

O pesquisador Armand Balsebre (2005), ao refletir sobre a linguagem radiofônica e

sua função comunicativa, mostra como a palavra é um elemento vital para a produção de

sentido a partir do seu uso. De acordo com o autor espanhol, “não há dúvida de que a

linguagem radiofônica é uma linguagem artificial, e que a palavra radiofônica (...) é palavra

imaginada, fonte evocadora de uma experiência sensorial mais complexa. (BALSEBRE,

2005, p.330). Assim, na linguagem do rádio, a palavra é responsável por se dirigir à razão do

ouvinte, sendo uma espécie de fonte geradora de ideias e interpretações. Em Serial, e na

maioria dos podcasts disponíveis nas mídias digitais, a palavra oral continua sendo o

elemento prevalente da construção narrativa.

No caso deste estudo, a essencialidade sonora do podcast demonstra como ainda há o

interesse em compreender o mundo e construir realidades por meio das sensações e emoções

despertadas pelo som, considerando que vivemos em uma sociedade amplamente dominada

pela visualidade. Ángel Rodriguez Bravo (2006) valoriza a dimensão sonora da linguagem ao

defender que a nossa percepção aliada à nossa experiência auditiva proporciona um novo

nível de produção de sentido a partir da interpretação do que estamos ouvindo. Assim, o uso

das potencialidades sonoras na linguagem do podcast influencia na valorização de uma

cultura da oralidade que, associada à atividade interativa permitida pelas novas tecnologias,

pode resultar em novos processos de significação e interpretação acerca de experiências do

mundo da ação que são transformadas em discursos e postas em circulação por meio das

mídias digitais.

41

3.3.1 Podcasts como microdispositivo

Patrick Charaudeau (2006b) ao analisar o processamento do discurso na esfera da

política, assinala que as significações do discurso são construídas e reconstruídas todo o

tempo pelas condições da comunicação e pelos seus atores. Com esta afirmação, o estudioso

francês procura destacar que além de uma circunstância técnica, o discurso é configurador do

próprio processo comunicacional. Ao pensarmos na produção discursiva como forma de

representação de um indivíduo e da coletividade em que este se insere, como poderíamos

compreender o papel dos podcasts no ato comunicativo da construção de uma determinada

realidade social?

Um caminho para responder a essa pergunta é retomar as reflexões de Charaudeau

(2006b) sobre as significações que são construídas e reconstruídas pelos atores sociais e pela

influência das condições e restrições do dispositivo situacional do ato comunicativo. Para

seguir esse trajeto, é importante trazer à tona o conceito de dispositivo e o realocar para a

realidade da comunicação. De acordo com Edson Dalmonte (2009), ao se tratar do significado

do termo dispositivo encontramos duas linhas de raciocínio que abordam este termo, sendo

que uma o define como uma concepção de ordem técnica, referente à uma organização

material das coisas, ou seja, à disposição dos componentes de um mecanismo. Assim, nos

dicionários relativos à informática, o dispositivo técnico corresponde ao termo device

(dispositivo em inglês). A segunda perspectiva de pensamento é proveniente da filosofia e

apresenta uma definição que aborda o dispositivo pelo viés da organização humana, a maneira

como ela se sucede, sob quais condições e de acordo com uma finalidade específica. Este tipo

de dispositivo se diferencia do técnico, pois não há uma proposição e ordenamento que

oriente o sujeito da ação de forma plena. O conjunto de estratégias que guiam os modos de

agir dentro de um dispositivo escapa de regras previstas e estabelecidas, o que significa que

são regras entre os sujeitos da ação sujeitas a constantes mudanças de acordo com o contexto

social.

Apesar de essas duas perspectivas acerca de dispositivo serem aparentemente afastadas,

Dalmonte busca uma aproximação entre elas, que serve de base para a reflexão sobre o

conceito de dispositivo midiático14

. O autor afirma que o dispositivo midiático provém de

14 Importante ressaltar que Edson Dalmonte constrói sua noção de dispositivo midiático com base no conceito de

dispositivo trabalhado por Michel Foucault e por Gilles Deleuze. O dispositivo foucaultiano é compreendido

como uma rede composta de elementos heterogêneos, os quais apresentam suas particularidades, ao mesmo

tempo em que possuem interseções. Tais elementos se encontram em constante deslocamento espacial e

temporal, estabelecendo variadas dinâmicas comunicacionais na sociedade. Deleuze faz uma releitura de

42

uma estrutura física ao mesmo tempo em que opera no campo das ideias e defende que, dessa

maneira, o dispositivo se torna um elemento capaz de impulsionar o ato comunicacional,

sendo que as situações e estratégias de comunicação e suas restrições são estruturadas de

acordo com o dispositivo, que delineia um ambiente, no sentido metafórico, para os atores

envolvidos na troca.

Dalmonte continua sua análise sobre o dispositivo midiático ao direcionar o conceito

especificamente para o campo do jornalismo. Segundo o autor, é neste campo que operam as

produções de sentido e é por causa de seus dispositivos que a construção discursiva dos

acontecimentos e sua circulação pela mídia vêm se transformando. A noticiabilidade era

considerada apenas um processo de transição unidirecional – produzia-se um conteúdo com

um efeito de sentido programado - entre produtores e leitores, porém, com as transformações

tecnológicas e sociais, a produção jornalística encontra em seus dispositivos novos modos

enunciativos e de vinculação com seus receptores. Ainda de acordo com o autor, as condições

do dispositivo permitem um rearranjo na modalidade de dizer do discurso jornalístico, com

possibilidades de se elaborar novas formas de narrativas no processo de construção das

realidades. Em relação ao leitor, as novas configurações do dispositivo no campo do

jornalismo permitem o receptor a conhecer de outra forma a organização discursiva, além de

ter acesso a novas maneiras de interagir e ressignificar o conteúdo que lhe é ofertado.

O dispositivo midiático não é apenas uma estrutura enunciativa, tampouco é

somente o enunciado em si. É a própria explicitação da notícia e de seus entornos, o

que compreende os lugares de fala priorizados pela instância de produção, (...)

caracterizado pela intencionalidade na seleção dos elementos que compõem o

enunciado (DALMONTE, 2009, p.65).

Charaudeau (2006b) esclarece em suas reflexões que o dispositivo é, primeiramente, de

ordem conceitual. A partir desta definição, o autor aponta possíveis características do

dispositivo comunicacional: a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras; os

lugares dos atores sociais envolvidos na troca; a natureza da identidade desses atores; e, por

fim, a relação construída entre eles a partir de uma determinada finalidade de realização do

ato comunicativo. Ao unir estas categorias verifica-se a possibilidade de estabelecer, a partir

delas, parâmetros de análise, no intuito de compreender a organização de um discurso

midiático e como este atua na articulação entre as instâncias enunciadora e destinatária.

Importante reforçar que as condições materiais também são consideradas pelo autor como

Foucault e contribui com a reflexão ao demonstrar que o dispositivo se constitui em um conjunto multilinear

atravessado pelo constante e mutante tensionamento entre sujeitos de múltiplas identidades, variados objetos e

linguagens discursivas.

43

parte integrante do dispositivo, sendo também determinantes no desenvolvimento do ato

comunicacional.

Para Charaudeau, o dispositivo é responsável por estruturar o cenário no qual se

desenvolvem as trocas entre os sujeitos das instâncias da produção e da recepção discursivas.

O dispositivo situa os atores do ato comunicacional de acordo com as condições externas - tal

como as práticas organizacionais de onde se veicula determinado conteúdo e as

intencionalidades guiadas por motivações econômicas – e também pelas subjetividades destes

sujeitos, que tanto do lugar da emissão quanto do lugar dos destinatários, serão influenciados

pelo contexto sociocultural que os envolve juntamente com suas experiências pessoais e

características psicológicas.

Uma vez que estas [condições materiais] podem variar de uma situação de

comunicação a outra, estabelece-se uma relação de encaixamento entre o

macrodispositivo conceitual que estrutura cada situação de troca social e os

microdispositivos materiais que a especificam enquanto variantes

(CHARAUDEAU, 2006b, p.53-54).

O discurso político é entendido pelo pesquisador como este macrodispositivo conceitual

da informação e suas variantes - as formas materiais de propagação deste tipo de discurso e

seus modos de oferta – são consideradas os microdispositivos. Nesta pesquisa, nos interessa

adequar estes conceitos de Charaudeau (2006b) e Dalmonte (2009) para o campo do

jornalismo, o que nos leva a associar que o discurso jornalístico se adequa ao conceito de

macrodispositivo, enquanto os microdispositivos seriam os meios (rádio, TV e impresso) e as

formas e gêneros que estes são ofertados (telejornal, reportagem, entrevistas, debates,

documentários).

Pode-se afirmar, então, que o dispositivo busca garantir que todo enunciado que se

encontra em seu interior seja interpretado e a ele relacionado, o que o torna responsável pela

constituição do contrato de comunicação, ao garantir normas de comportamento naturalizadas

entre os atores sociais envolvidos na produção de sentido acerca de um conjunto de discursos.

Esta realidade do dispositivo também se aplica aos suportes midiáticos digitais, apesar de

apresentar diferenças significativas nas formas de relação entre as esferas de produção e

recepção na produção de sentidos (como veremos no item 3.4).

É importante ressaltar a necessidade de se caracterizar esse novo lugar que permite a

emergência de novos modos de enunciação e, consequentemente, estreita ainda mais as

interações e produção de sentido que surgem a partir das trocas entre as instâncias emissora e

receptora. Este novo lugar das formas discursivas jornalísticas também deve ser

compreendido como fruto das transformações tecnológicas que afetam o funcionamento das

44

mídias e também influenciam as formas e gêneros da enunciação do conteúdo informativo.

Nessa perspectiva de Charaudeau (2006b), pode-se tomar, assim, os podcasts como

microdispositivos, na medida em que instalam sistemas de trocas simbólicas entre atores que

se envolvem em função de interesses comuns em distintos canais por meio dos quais a

informação é disponibilizada.

3.4 As contratações de comunicação e leitura no podcast

As recentes transformações sociais e tecnológicas são elementos catalisadores da

transformação do processo comunicacional, o que nos faz observar uma reorganização do

ambiente midiático juntamente com a emergência de novos modos de funcionamento dos

discursos sociais. Neste cenário de midiatização que atravessa a sociedade contemporânea, as

formas e estratégias que regulam a circulação do discurso jornalístico dentro de um

dispositivo midiático são afetadas por estas transformações e estabelecem diferentes formas

de articulação no ato comunicacional entre as instâncias de produção e de recepção.

Bruno Leal (2011) argumenta que os desafios encarados pelo campo do jornalismo na

sociedade midiatizada abalam a estrutura sólida que sustenta o seu protagonismo e lugar de

privilégio como mediador da realidade social, colocando em xeque a legitimidade jornalística.

A reconfiguração do ato comunicacional na era digital não diz respeito somente a fatores

econômicos - a adaptação dos modelos de negócio, de produção e de distribuição diante deste

novo cenário – mas vai além ao considerar como o uso e a disponibilidade das tecnologias

digitais são essenciais na alteração de patamar do público, que passa a ter maior poder de

legitimar quem são os responsáveis pela construção social da realidade por meio da

representação discursiva. Ainda de acordo com o autor, “nesse processo, o jornalismo

enfrentaria não apenas transformações internas em seus processos e produtos, mas também

modos cada vez mais diversificados de mediação social e de estabelecimento do que seria

verdade ou não” (LEAL, 2011, p.105-106).

Ao acionarmos os contratos de comunicação e de leitura de Charaudeau (2006a) e

Verón (2004), entende-se que a noção das condições e restrições do processo de troca entre as

instâncias de enunciação e de recepção, oriundas da sociedade dos meios (veículos

tradicionais como impresso, rádio e TV), passam por transformações diante das lógicas da

midiatização na sociedade contemporânea. Estas mudanças contratuais diante das

possibilidades dos novos dispositivos midiáticos são apontadas por Rocha e Ghisleni (2010)

45

que defendem que o crescente processo de midiatização afeta as formas de relações entre as

mídias, instituições e atores sociais, o que contribui para a emergência de novas disposições

no contrato comunicacional.

As autoras apresentam em seus estudos uma mudança de foco na noção de vínculo

entre as instâncias de produção e de recepção dos veículos tradicionais de comunicação para

as mídias digitais. Rocha e Ghisleni voltam os olhares para a circulação do discurso que

ocorre nos dispositivos e apontam que esse vínculo deixa de ser tratado apenas como um

intervalo, uma transição entre os dois polos do ato comunicacional e passa a ser considerado

um processo gerado por pontos de articulação entre as duas instâncias. Tal mudança se deve

às alterações entre as operações de sentido realizadas pelos receptores diante da oferta de

discursos nos dispositivos inseridos na sociedade midiatizada.

A partir desses dispositivos é possível observar como os receptores ganham mais força

de atuação na troca comunicativa, com maior liberdade de utilizar suas próprias estratégias

para realizar suas interpretações das representações ofertadas. Assim, as transformações

sociais associadas aos elementos técnicos da era digital impactam as normas dos contratos

comunicacionais e motivam esta mudança das estratégias que emanam da recepção

demonstrando pontos de forte articulação entre as práticas discursivas do público com as

práticas discursivas ofertadas pelos produtores midiáticos.

As novas formas de articulação dos personagens ativos envolvidos no processo

comunicacional delineiam um novo processo de relacionalidade, uma vez que os receptores

podem ter domínio sobre tecnologias que na comunicação massiva estavam sob controle

apenas dos produtores jornalísticos. Além disso, há também a possibilidade do leitor assumir

o papel de produtor e transitar entre os dois polos da troca informacional, uma vez que a

midiatização propicia acesso mais democrático às tecnologias informáticas e aos meios

comunicacionais, o que reverbera sobre a organização das mídias e seus modos de

enunciação. De acordo com Rocha e Ghisleni, além das alterações nas estruturas dos

dispositivos midiáticos, há repercussão também sobre a noção de acontecimento e suas formas

discursivas, já que cada sujeito que faz uso das tecnologias à sua disposição pode se

transformar em produtor de acontecimento e disponibilizar e retornar suas produções aos

veículos de comunicação.

(...) o que se registra destas configurações midiáticas, é a estruturação de um novo

modelo de interação sócio-discursivo, talvez menos profissionalizado, ainda que as

mídias guardem suas características organizacionais, os receptores desfrutam do

mundo das tecnologias, mas também em contato com o mundo da vida. Uma espécie

de `dentro e fora`, que os torna em novos atores (ROCHA e GHISLENI, 2010,

p.10).

46

Esta articulação que caracteriza o contrato comunicacional pode ser contextualizada ao

nosso objeto empírico, o microdispositivo podcast, no intuito de compreendermos como a

forma material responsável por difundir o discurso jornalístico e os modos que se dão essa

oferta discursiva influenciam nas estratégias, condições e restrições do ato comunicacional

nesse microdispositivo. Na discussão teórica que se desenvolveu até aqui, ficou nítido o

potencial que a comunicação das mídias digitais oferece aos receptores-usuários de

transitarem entre os polos da troca discursiva e de terem forte influencia nos modos de dizer

da produção midiática. A noção de comunidade de experiência trabalhada nas reflexões de

Edson Dalmonte (2009) sobre o fazer textual no webjornalismo nos ajuda a entender a

importância da participação ativa dos ouvintes do podcast Serial nos modos discursivos

acionados na narração de Sarah Koenig.

Na comunidade de experiência: a noção de indivíduo apresenta-se ampliada, pois

não interessa apenas a produção oficial, originada a partir do autor ou de uma

estrutura similar. Interessa também a opinião de quem consumiu o produto, que

passa a colaborar com a divulgação do material em questão. (...) na estrutura das

comunidades de experiência o contato com a obra pode ser visto como o argumento

necessário para a instauração de uma comunidade virtual. A partir do autor ou de sua

obra, são criados níveis de discussão que passam a integrar o campo mais amplo no

qual se inserem tais elementos. (DALMONTE, 2009, p.147)

Os intensos debates entre os receptores de Serial verificados nas redes sociais digitais

a partir da divulgação do primeiro episódio do podcast ilustram como o público ampliou o

campo de produção de sentido que envolve a construção da narrativa dessa série jornalística.

O conteúdo de Serial deixa de ser vinculado somente à jornalista Sarah Koenig e à equipe de

produção da rádio WBEZ Chicago e se estende para o campo da recepção nas redes sociais

digitais. É justamente nessa instância que se estabelece uma comunidade de ouvintes que

trabalha em cima do discurso jornalístico emitido pelo microdispositivo e, a partir de

múltiplas leituras, essa comunidade, que acompanha o resgate de um acontecimento do

passado, cria novos significados e interpretações que não se deram à época do assassinato.

Como a repercussão do podcast Serial nas redes foi ampla desde o primeiro episódio,

é importante observar como a atividade do público receptor do microdispositivo retorna à

esfera produtiva do discurso da série. Percebe-se pela maneira como a jornalista Sarah Koenig

constrói a narrativa que a apuração dos fatos e dos depoimentos continua sendo feita, mesmo

após o podcast começar a circular pela rede, o que significa que a história não foi construída

de forma fechada, permitindo a alteração do curso da narrativa.

Ao estudar a história de Syed, a jornalista percebeu que na investigação do crime

faltava a elucidação de vários pontos importantes e que, em alguns aspectos, essa falta de

47

certeza colocava em questão até mesmo a verdadeira culpa do jovem como responsável pelo

crime. Em busca de preencher as lacunas de sua investigação sobre aquele acontecimento do

passado, a narradora entrevistou uma série de pessoas ligadas àquele evento, porém algumas

pessoas se recusaram a conversar com Koenig, alegando que o assunto já estava encerrado

com a condenação de Adnan Syed à prisão perpétua. Um exemplo que ilustra como a

construção discursiva do acontecimento pode ser influenciada pela instância de recepção é a

entrevista com Don, o último namorado de Hae Lee antes dela ser assassinada. Quando Sarah

Koenig iniciou sua investigação para construir a narrativa do podcast, ela tentou entrevistar

Don, mas ele se recusou. No episódio final da temporada, três meses após o início da série

jornalística, ela relata que o rapaz a procurou e resolveu dar o seu depoimento sobre o caso.

Eu conversei com Don. Oito meses atrás ele me disse que não queria conversar

comigo sobre essa história e na última semana ele conversou comigo sobre essa história. Ele não quis que eu fizesse uma gravação da voz dele ou que eu divulgasse o sobrenome dele mas ele disse que eu poderia usar o que ele disse. Um spoiler: Don não parece saber o que aconteceu com Hae, ou por que isso aconteceu com ela,

ou se Adnan é culpado. Mas foi interessante ouvir o que ele disse que lembrava sobre o dia que Hae desapareceu e sobre ela e sobre o julgamento (All Serial

Podcast Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)15

.

A articulação entre a esfera produtiva e os ouvintes do microdispositivo podcast

demonstram o potencial de se elaborar novos modos de narrar e construir representações da

realidade social no âmbito do jornalismo. O modo como foi construído o discurso sobre o

caso de Adnan Syed em Serial, sua forma de composição discursiva, o uso da linguagem

essencialmente sonora (apesar do uso de elementos complementares – imagens, vídeos e texto

- que também compõem a narrativa) em uma sociedade amplamente dominada pelas imagens

visuais aliada aos modos de circulação possibilitados pelo microdispositivo nos fazem

compreender o surgimento de novas formas de ser e aparecer dos produtos comunicacionais,

como explica Bruno Leal (2011) ao argumentar que

Estes [produtos comunicacionais], então, passam a ser vistos em sua dimensão

sensível, em seu poder de afecção, nas suas possibilidades de constituição de lugares

de experiência para os sujeitos. Nessa perspectiva, o jornalismo e seus modos de

fazer e narrar são instâncias que mobilizam tanto a produção de significado, ou seja,

a circulação da informação, como outras dimensões de sentido (LEAL, 2011, p.105-

106).

15 For instance, I talked to Don. Eight months ago he told me he did not want to talk to me for this story and then

last week he talked to me for this story. He didn’t want me to use tape of his voice or his last name but he said I

could use what he said. Spoiler here: Don does not appear to know what happened to Hae, or why it happened to

her, or whether Adnan is guilty. But it was interesting to hear what he said he remembered about the day Hae

disappeared and about her and about the trial.

48

O processo de midiatização permite a entrada de uma gama mais ampla e diversificada

de atores sociais na construção de discursos acerca da realidade social. Isso acarreta em um

abalo da legitimidade institucional do jornalismo, uma vez que se amplia a concorrência de

modos de representações da vida cotidiana. Uma das formas que o campo jornalístico

encontra para combater essa crise de credibilidade e se manter como um ator social legítimo

em meio ao surgimento de tantas formas de veiculação de conteúdo informacional pode ser

repensar as formas estéticas de produção de seus discursos. Ao buscar inovar em seus

mecanismos textuais e retóricos, a instância produtiva do jornalismo encontra um caminho

para reaproximar de seu público, que irá reconhecer nas suas novas formas de construção

discursiva um produtor legítimo de informação.

A estética do discurso construído em Serial nos permite observar uma tentativa de

articulação entre a instância de produção da série e o seu público ouvinte. Sarah Koenig insere

em sua narrativa elementos que caracterizam objetividade do discurso jornalístico: o

assassinato de Hae, a investigação do crime à época do ocorrido, a acusação de Adnan e sua

condenação à prisão perpétua. Ao realizar o reagendamento do acontecimento ocorrido no

passado (o podcast foi divulgado quase duas décadas após o crime), a jornalista aciona

estratégias discursivas que visam a proximidade com o ouvinte, com o uso de recursos

textuais que vão além do simples relato objetivo dos fatos e insere uma espécie de elemento

melodramático caracterizando uma estética híbrida do discurso jornalístico em Serial, como

podemos perceber em um episódio que Sarah relata sensações de dúvida em relação à

investigação sobre o caso de Adnan, já que após a repercussão do podcast começou a receber

diversas informações sobre o caso e o acusado, sendo que muitos eram rumores que ela

recebia via ligações e email, o que fez o seu trabalho de apuração aumentar. E ao relatar estes

rumores com os quais ela lidava após a grande repercussão do podcast, a narradora usa em

seu discurso nova estratégia estética que articula uma aproximação da instância produtora

com receptores, quando ela informa aos ouvintes que assim como muitos que lhe relatavam os

rumores sobre a personalidade de Adnan, ela também chegou a duvidar, por diversas vezes,

do caráter do rapaz e consequentemente da necessidade de investigação deste acontecimento.

Sarah realiza uma espécie de desabafo aos seus ouvintes inserido em um discurso jornalístico.

Por dois meses eu estive lidando com rumores sobre Adnan. As pessoas me diziam,

“tem coisas que você não sabe sobre Adnan, coisas que você precisa saber para

entender com quem está lidando”. Estes comunicados vinham em ligações

telefônicas, várias ligações, às vezes individuais, às vezes de ligações em

conferência. Também recebi mensagens e emails nervosos (...). Todos esses rumores

vieram de pessoas que viram Adnan crescer na comunidade da mesquita, as famílias

do sul da Ásia que frequentam a Sociedade Islâmica de Baltimore. Algumas dessas

pessoas eu já tinha conversado na minha primeira rodada de entrevistas para esta

49

história, mas uma vez que a série iniciou e eles ouviram como Adnan estava sendo

retratado, uma nova rodada de ligações começou. (All Serial Podcast Transcripts,

2014, episódio 11, tradução nossa)16

.

A partir das formas discursivas (com linguagem predominantemente marcada pela

oralidade) acionadas em Serial e das múltiplas leituras e interpretações geradas pelos

receptores-usuários nas redes sociais digitais, é possível compreender que o microdispositivo

podcast atua como suporte midiático e modos de formas e gêneros do discurso jornalístico.

Esse microdispositivo é integrante da lógica de midiatização da sociedade contemporânea,

sendo constitutivo da radiofonia expandida nas plataformas digitais e, ao apresentar um

gênero discursivo como a série jornalística de Serial, gera novas formas de interfaces entre os

atores sociais envolvidos na circulação da história de Adnan Syed. As estratégias e condições

em que circula o discurso do podcast demonstram que existe um contrato de comunicação e

de leitura com especificidades que apresentam interfaces e diferenças com os modos de

produção e recepção da comunicação radiofônica tradicional.

Nota-se que a jornalista-narradora Sarah Koenig não assume somente para si o

protagonismo do ato comunicacional, pois não só o que ela diz impacta o público, como o que

os receptores interpretam e ressignificam afetam o modo de produção discursiva dos

episódios da série. A produção dos conteúdos de escuta sob demanda que constituem o

processo comunicacional do podcast conservam muito das práticas do rádio tradicional,

principalmente no uso de linguagem essencialmente sonora. Uma das mudanças do processo

em relação a tradicional comunicação radiofônica ocorre na sua forma de circulação que se dá

pela internet (por meio de computadores em rede e pela telefonia móvel). A inovação mais

considerável, que não se constitui necessariamente em uma ruptura total, está nas práticas

interacionais que envolvem o podcast Serial e que não se limitam aos canais de retorno

estabelecidos pela própria instância produtora deste podcast.

No site oficial de Serial, é ofertado acesso ao blog e às redes oficiais, como Twitter,

página do Facebook e perfil do Instagram, sendo que todos estes espaços trazem informações

complementares da série ao mesmo tempo em que permitem inserção de comentários e

ampliação do debate acerca da narrativa dos episódios do podcast. No entanto, boa parte da

16

For two months now I’ve been grappling with rumors about Adnan. People telling me, “there’s stuff you don’t

know about Adnan, stuff you need to know to understand who you’re dealing with.” These communications

came in the form of phone calls, many phone calls, sometimes one on one, sometimes conference calls. Also

texts and nervous emails (...). All these rumors are coming from people Adnan knew growing up in the mosque

community, the South Asian families who attend the Islamic Society of Baltimore. Some of these people I’d

already talked to during my first round of reporting for this story, but then once the series started and they heard

how Adnan was being portrayed, a new round of phone calls began.

50

construção de sentidos por parte da instância de recepção de Serial não se observa neste

espaço pré-estabelecido pela equipe de produção, e sim, por meio de compartilhamento de

conteúdo dos usuários em redes sociais fora dos perfis oficiais, principalmente com o uso de

hashtags, e também em comunidades virtuais voltadas para uma extensão do debate, que vai

além do conteúdo apresentado nos episódios, o que significa que as práticas interacionais do

processo que envolve o podcast não ocorrem em um único espaço delimitado, como um site

oficial do polo emissor, e sim em um complexo de redes online, que se articulam em

atividades que envolvem compartilhamento, comentários e múltiplas discussões. Assim, a

circulação dos episódios de Serial pela rede digital e a análise do processo comunicacional

que envolve o podcast deve ser articulada com a presença da instância de recepção nas mídias

sociais hegemônicas (a comunidade virtual Reddit foi selecionada para nossa análise no

capítulo 5), que apresentam grande concentração dos compartilhamentos de conteúdos,

comentários, debates e construção de sentidos acerca do acontecimento narrado nesta série

jornalística. Observamos então que a articulação entre instância de produção e instância de

recepção tem potencial para reconfigurar a todo momento o ambiente do microdispositivo, o

que influencia diretamente na natureza da produtividade jornalística: a construção do

acontecimento.

A reflexão feita até aqui teve o objetivo de apresentar as transformações nos contratos

comunicacionais influenciadas pelo processo de midiatização dentro do microdispositivo

podcast. É possível observar que a relação entre as instâncias de emissão e de recepção de

Serial impacta diretamente nos modos de produção, circulação e interpretação do discurso

jornalístico. Todo esse processo apresenta relação direta com a maneira de construção do

acontecimento discursivo, que é o principal elemento constituinte da narrativa jornalística.

Para avançarmos nesta investigação e compreendermos como ocorre a construção de sentidos

no ato comunicacional que envolve o podcast Serial, é importante também estudar como um

acontecimento da vida mundana é selecionado e se transforma em acontecimento discursivo,

gerando as mais diversas interpretações. A proposta do capítulo 4 é, portanto, investigar a

construção social da realidade a partir da compreensão de como os acontecimentos

transformados em narrativas jornalísticas podem ganhar novos significados e gerar novamente

acontecimentos de natureza não discursiva no tempo presente do mundo cotidiano.

51

4 A TRÍPLICE MIMESE DA NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DO

ACONTECIMENTO

Como um acontecimento nos toca, nos emociona e como ele afeta uma pessoa ou uma

coletividade? O que nos impacta ao vivermos e compartilharmos a experiência de um

acontecimento na vida cotidiana? O ato comunicacional, especialmente o discurso

jornalístico, é um dos grandes responsáveis pela construção da realidade social por meio da

percepção e seleção de um acontecimento da vida mundana, sua representação discursiva e as

interpretações que emergem deste processo. Assim, a transformação do acontecimento em

narrativa pode ser responsável pela mudança de patamar do acontecimento existencial para

um objeto com significados, por meio da análise da natureza, relações com outros

acontecimentos e suas consequências, gerando então uma segunda vida do acontecimento

(QUÉRÉ, 2012). Ao pensarmos na mídia como um meio em que a sociedade fala de si

mesma, é possível entender que é exatamente através dela que os acontecimentos,

transformados em discursos, ganham nova vida e, consequentemente, novos significados.

O conceito de tríplice mimese de Paul Ricoeur (2010) aliado à noção de representação

da ação pela construção do acontecimento discursivo, trabalhada por Louis Quéré (2012) e

também por Adriano Rodrigues (1993), nos servem para refletirmos sobre a transformação de

um acontecimento em narrativa e compreendermos a dimensão simbólica gerada por esta

narrativa, envolvendo a atividade mimética (composição da intriga) e sua relação com a

dimensão temporal e a dupla vida do acontecimento.

4.1 Sobre a noção de mimese

O conceito de mímesis apresenta uma amplitude em sua significação e tem sido objeto

de análise de muitos estudiosos desde os filósofos da Grécia Antiga. O termo mímesis é

proveniente do latim imitatio, que significa, a grosso modo, imitação. A partir desta tradução

primeira do termo, surgem várias interpretações utilizadas para a compreensão da

representação dentro das manifestações artísticas, principalmente da produção literária.

A discussão de mímesis passa por Platão, que ao usar de referência os diálogos de

Sócrates sobre as teorias do belo e concepção de arte, elaborou uma compreensão deste

conceito como uma produtividade que não era carregada de originalidade, mas apenas meras

cópias distintas do que seria o real. O papel que Platão atribui à mímesis se limita apenas a

52

representar, sem propósitos educativos ou de transmissão de valores, cuja finalidade se

distancia da natureza e da essência dos objetos. Assim, a imitação mimética na visão do

filósofo se apresenta como falsidade e ilusória, distante da verdade.

Na contramão de Platão, seu discípulo Aristóteles refuta o sentido de mímesis

defendido pelo seu mestre e valoriza a atividade mimética ao ressaltar que a imitação está

vinculada ao processo de verossimilhança, sem a obrigação de traduzir uma realidade. Os

escritos de Aristóteles servem de referência para a teoria da literatura ocidental, em especial

sua obra Poética17

, da qual se valem, até os dias atuais, vários teóricos de áreas que envolvem

linguagem, literatura e narrativas.

Maria Cláudia Araújo (2011) apresenta sua definição de mímesis de acordo com

Aristóteles em suas reflexões e credita à atividade mimética uma função de construção de

identidade realizada pelos sujeitos sociais.

Na Poética, mímesis é imitação e representação, e corresponde a um processo de

construção através dos meios, objetos e modos, dos quais decorrem as diferentes

espécies de poesia. Os meios são apenas um dos aspectos, pois o objeto da mímesis

são homens em ação, cada qual com seu caráter: melhores, piores, iguais ou comuns.

A mímesis pode ser produzida em modo narrativo ou dramático e explica-se pela

tendência do homem a contemplar, conhecer e reconhecer (identificar a forma

original) (ARAÚJO, 2011, p.78).

Araújo avança em seu raciocínio e ressalta que a mímesis poética não é mera

reprodução do real, pois é uma representação que resulta de um processo de construção regido

por regras e elementos estruturais que visam possíveis efeitos. Os critérios de verossimilhança

– material verbal para a elaboração da narrativa e referências externas de temporalidade - que

guiam a construção mimética são responsáveis por situar a mímesis como uma realidade

possível, já que o discurso mimético é constituído pelo significante em busca de significado.

Em sua obra Mímesis e modernidade: formas das sombras (1980), Luiz Costa Lima

também analisa o conceito aristotélico de mimese. De acordo com Lima, o processo mimético

se delimita no campo poético e o conceito de poético não se restringe ao texto escrito em

versos, ele se equipara à mímesis, sendo esta uma “imitação” da ação humana. Aqui, a

imitação adquire um sentido metafórico se afastando da visão platônica de falsidade, de

distância de uma projeção perfeita da realidade. O autor inclui na conceituação aristotélica a

presença de um receptor da representação, que será responsável por interpretar e gerar

17 As obras de Aristóteles são provenientes de anotações registradas para as aulas do Liceu (uma espécie de

instituto de ensino fundado pelo filósofo). Na obra Poética, Aristóteles discute o conceito de mímesis na

composição literária e dramática. A obra circulou pela primeira vez por volta de 340 a.C., tratando de música,

dança, belas-artes e literatura. Tal obra influencia e continua a ecoar, mais de dois mil anos depois de sua

concepção, as mais variadas discussões sobre arte, poesia, representações artísticas, além de diversas formas

narrativas até os dias atuais.

53

sentidos ao objeto representado. A presença do leitor se faz essencial para que a sensação de

real da representação seja concluída. A efetividade da mímesis passa, então, pela subjetividade

dos sujeitos, sendo que as experiências que viveram e os valores que compartilham

influenciam diretamente na construção de significações acerca de uma representação que os

alcança, como explica o autor ao falar sobre a concepção de uma realidade em um

conhecimento mimetizado:

(...) deveremos observar que o objeto irrealizante, o objeto mimético, é tanto criado

e recebido a partir de uma concepção internalizada do real, que, portanto, aquela

irrealização há sempre de ser comparada com o estoque de conhecimentos que

constituem a concepção do real, quer do autor, quer do receptor (LIMA, 1980, p.50).

O filósofo francês Paul Ricoeur (2000) afirma que a mímesis aristotélica diz respeito a

tessitura de uma intriga e que sua existência depende da produção de uma singularidade.

Ricoeur entende que a mímesis de Aristóteles, desvincula-se do sentido de cópia e relaciona-

se com a metáfora. O autor francês coloca o conceito de mŷthos (ação de constituição da

intriga) diretamente relacionado à atividade mimética, considerando-o um processo dinâmico

de criação, responsável por uma nova vida do já existente aliado a temporalidade que envolve

o objeto representado. Ricoeur ainda defende que a interpretação de realidade dada a um

objeto representado será elaborada na instância da recepção, a partir de uma leitura particular.

Este ciclo da mímesis é trabalhado por Ricoeur em suas investigações sobre tempo e narrativa

(item 4.2) e nos servirá de referência teórica para compreensão das narrativas jornalísticas e

suas representações de realidade (item 4.2.1) e sua relação com o objeto empírico desta

pesquisa (item 4.2.2).

4.2 A tríplice mimese de Paul Ricoeur

A tríplice mimese proposta pelo filósofo francês Paul Ricoeur em sua trilogia Tempo e

Narrativa (2010) pode contribuir efetivamente para a reflexão sobre as mediações que o

jornalismo estabelece com o conjunto social. Para dar início a esta reflexão, é importante

ressaltar que, nesta pesquisa, tomamos a noção de mediação pela ótica de Jesús Martín-

Barbero (1997), considerando-a como um amplo processo de negociação de sentidos guiado

pelo envolvimento de atores sociais e dimensões distintas em que se inserem (social, política,

cultural, entre outras) aliados à forte presença dos dispositivos midiáticos.

Os modos como se desenvolvem esta ampla negociação de sentidos em uma narrativa

jornalística podem ser observados pelo conceito de tríplice mimese de Ricoeur. Para o

54

filósofo francês, o tempo e a tessitura da intriga são os elementos centrais em toda narrativa:

“o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a

narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência

temporal” (RICOEUR, 2010, p.93).

É justamente ao relacionar estes dois elementos da narrativa que o autor constrói a

base de fundação do conceito de tríplice mimese. E para descrever esta relação, Ricoeur

relaciona dois estudos que foram desenvolvidos em épocas e contextos culturais bastante

distintos: a análise da composição da intriga na obra Poética de Aristóteles e a análise do

tempo desenvolvida por Santo Agostinho em sua obra Confissões18

.

Para discorrer sobre a temporalidade, Paul Ricoeur traz as reflexões de Santo

Agostinho, que parte da seguinte pergunta: o que é, afinal, o tempo? A partir deste

questionamento, Ricoeur explicita a antítese que envolve as dificuldades advindas da

característica de ser ou não ser do tempo. Este caráter aporético da experiência temporal é

percebido tanto pela argumentação cética – a qual tende a afirmar que o tempo não tem que

ser, já que o futuro ainda não é, pois o passado já não é e o presente não permanece – quanto

pela confiança proveniente do uso cotidiano da linguagem – argumentação esta que defende o

tempo como tendo de ser, já que o porvir será, as coisas passadas foram e as presentes

passam. A partir desta ideia do tempo em Agostinho, o pensador francês dedica-se a uma

investigação que utiliza a composição da intriga como possibilidade de resposta capaz de

esclarecer, apesar de não resolver teoricamente, a aporia do tempo. E ao abordar o fazer

poético de Aristóteles, Paul Ricoeur busca demonstrar como a atividade narrativa desvia desta

aporia e delineia sentidos para a experiência temporal.

Assim, é por meio da poieses aristotélica que o filósofo francês aborda o conceito de

mímesis (atividade mimética) como imitação, num sentido de representação criativa da ação

pelo viés da problemática da intriga, ou seja, busca relacionar a tessitura da intriga (mŷthos) e

a atividade mimética. O autor ressalta, porém, que Aristóteles nada comenta sobre a relação

entre a atividade poética e a experiência temporal.

O conceito de tríplice mimese da narrativa de Paul Ricoeur (2010) pretende então

investigar as operações de mediação entre a experiência cotidiana do mundo da vida e sua

representação na elaboração do discurso. Ao aprofundar na reflexão sobre a relação entre

tempo e tessitura da intriga, o autor aponta a necessidade de estabelecer a configuração da

11As reflexões sobre as aporias do tempo encontram-se no livro XI da obra Confissões de Santo Agostinho,

sendo esta uma obra autobiográfica do autor, redigida entre os anos 397 e 398. Para desenvolver suas ideias

acerca da temporalidade, Paul Ricoeur se baseia na tradução francesa da obra de Agostinho, feita por E. Tréhorel

e G. Bouissou, publicada pela editora Teubner em 1934.

55

intriga pela narrativa como mediadora da experiência prática que precede a ação representada

e do estágio em que ocorre a recepção dos leitores da narrativa. “Seguimos, pois, o destino de

um tempo prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado”

(RICOEUR, 2010, p.95).

O filósofo francês considera a representação da ação como um processo composto por

três etapas que integram todo o percurso da mímesis – mimese I, mimese II e mimese III –

considerando o leitor/ouvinte o operador que dá unidade ao percurso da tríplice mimese, já

que o contexto em que se sucede a ação (mimese I) e esta ação transformada em discurso, em

uma narrativa configurada (mimese II) só terão sentido completo quando atingem a recepção

ativa de tais leitores, que atribuem novos sentidos aos acontecimentos narrados (mimese III).

O primeiro passo para a compreensão do ciclo da narrativa em Ricoeur é denominado

pelo autor de mimese I. Podemos considerar essa instância da tríplice mimese o ponto de

partida da composição da intriga, pois é em mimese I que se dá a pré-compreensão da ação e

experiência humana a ser representada e do mundo em que ela se insere, seja em uma

narrativa ficcional ou documental.

Percebe-se, em toda a sua riqueza, qual o sentido de mímesis I: imitar ou representar

a ação é, em primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica,

sua simbólica, sua temporalidade. É nessa pré-compreensão que se delineia a

construção da intriga e, com ela, a mimética textual e literária (RICOEUR, 2010,

p.112).

Assim, de acordo com o filósofo, o mundo que prefigura a composição da intriga

(mimese I) se apresenta nestas três dimensões: estrutural, simbólica e temporal. A primeira

dimensão que caracteriza a mimese I diz respeito às estruturas inteligíveis do mundo da ação.

Aqui se trata de analisar os aspectos estruturais da narrativa, ou seja, conhecer o “fazer” que

dá origem às formas de narrar, entender como se constitui o conjunto de regras que servem de

alicerce para o percurso da construção narrativa.

É importante ressaltar que esta dimensão semântica não se delineia apenas pelo uso do

conceito simplificado de ação. Vai além ao buscar compreender os objetivos, reconhecer os

motivos, identificar os agentes envolvidos, as circunstâncias em que se desenvolve uma ação

e suas consequências, construindo uma rede de significados e definindo sua compreensão

prática. A esta compreensão é preciso somar os aspectos discursivos que colaboram na

composição narrativa porvir, que determinam a ordem diacrônica da história. É exatamente

nessa soma que se define a modalidade dos discursos, sejam eles históricos ou ficcionais. Na

análise da estrutura inteligível da narrativa que integra a mimese I, percebemos uma relação

recíproca entre inteligência prática e inteligência narrativa, que demonstra que o

56

conhecimento da ação ganha novos sentidos ao ser aliado ao encadeamento sequencial do

fazer na composição da intriga.

A segunda dimensão da primeira etapa da tríplice mimese ricoeuriana trata da

dimensão simbólica que envolve o mundo da ação. Aqui a compreensão da ação passa pelas

manifestações da cultura que a influenciam, já que ela está articulada em questões éticas e

morais, valores, crenças, entre outras. Qualquer ação mundana que pode ser selecionada por

atores sociais e transformada em uma narrativa já pertence a um conjunto de signos, regras e

normas, ou seja, está desde sua emergência no mundo da vida inserida num sistema

simbólico. Importante destacar que Ricoeur conceitua símbolo como processos culturais que

articulam toda a experiência, sendo que a função primordial da mediação simbólica seria

compor o processo de constituição da significação da ação.

O símbolo traz para a ação a ideia de regra, no sentido de uma norma descritiva que

caracteriza a ação significante como um comportamento governado por regras, tendo os

códigos culturais como programadores do comportamento. Isso gera uma direção e

ordenamento à vida, pelos hábitos e costumes que vão delinear a experiência prática humana,

que pode se transformar em objeto de julgamento, de acordo com uma preferência de ética e

moral, ao ser moldada em uma narrativa. Carlos Alberto de Carvalho (2012) destaca a força e

relevância na questão ética que emerge ao se tratar da dimensão simbólica em mimese I,

quando afirma que

O traço que mais se evidencia em mimese I é a sua exigência de uma necessidade

ética, posto que enraizada em situações concretas do mundo de referência para a

narrativa que logo em seguida surgirá. O caldeirão simbólico que estrutura a

narrativa, dando-lhe sentidos, não é imutável, inscreve-se na dinâmica das

transformações que, afinal, as próprias narrativas ajudarão a concretizar, razão

adicional para que haja compromisso ético (CARVALHO, 2012, p.176).

O terceiro aspecto que envolve a pré-compreensão do mundo da ação que será

configurada pela atividade mimética é a dimensão temporal. Aqui temos um dos elementos

centrais que perpassa todo o processo da construção da narrativa e que também será analisado

na relação com a construção do acontecimento jornalístico. É possível encontrar na

experiência prática estruturas temporais que são propícias para um desenrolar da narratividade

da ação. São aspectos do tempo que estão embutidos nas mediações simbólicas da ação e

funcionam como verdadeiros indutores da atividade mimética.

A aporia temporal (o ser ou não ser do tempo) de Santo Agostinho é acionada nesta

dimensão da pré-compreensão da ação por Ricoeur. O filósofo francês demonstra que o triplo

presente – Agostinho afirma que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo

57

presente, mas sim um triplo presente, um presente das coisas futuras, um das passadas e um

das presentes – facilita o caminho para compreender a estrutura temporal básica que compõe

o fazer. Para além desta compreensão, Ricoeur, ainda inspirado por Santo Agostinho, ressalta

a importância da correlação estabelecida pela práxis cotidiana entre estes tempos. A maneira

como o presente do passado, o presente do futuro e o presente do presente se relacionam

determina a forma como a narração irá se constituir.

Ainda nessa linha de raciocínio do triplo presente da ação, Paul Ricoeur aciona a

análise da intratemporalidade, a qual traz uma ruptura com a simples linearidade temporal,

entendida como um simplificado encadeamento sequencial de presentes. Para o autor, é

justamente esta intratemporalidade que caracteriza o aspecto temporal da ação, já que

demonstra como os atores sociais inseridos, direta ou indiretamente, em uma experiência

prática cotidiana se relacionam com o tempo.

É dessa maneira que a intratemporalidade ou ser-“dentro”-do-tempo revela aspectos

irredutíveis à representação do tempo linear. Ser-“dentro”-do-tempo já é algo

diferente de medir intervalos entre instantes-limite. Ser-“dentro”-do-tempo é antes

de mais nada contar com o tempo e em consequência disso calcular. (RICOEUR,

2010, p.109)

É por meio da intratemporalidade, que traz, então, a ruptura do caráter linear do

tempo, associada à rede conceitual que envolve a ação junto com suas mediações simbólicas,

que se constitui a mimese I. Esta primeira instância da tríplice mimese ricoeuriana serve de

alicerce para se erguerem as mais variadas formas de configurações narrativas acerca de uma

ação de uma determinada experiência prática mundana em conjunto com as formas mais

elaboradas de temporalidade, avançando então para a mimese II.

Nessa segunda instância da tríplice mimese de Ricoeur, nos deparamos com uma

dupla função da configuração narrativa. Mimese II assume o papel de dar sentindo à

experiência prática humana através da configuração poética e ao mesmo tempo propiciar

novas formas e sentidos de compreensão do mundo. O autor ressalta essa função mediadora

do processo de elaboração da narrativa ao afirmar que “mímesis II extrai sua inteligibilidade

de sua faculdade de mediação, que é a de conduzir o antes ao depois do texto, de transfigurar

o antes em depois por seu poder de configuração (RICOEUR, 2010, p.94)”. Os novos sentidos

só são possíveis devido a essa mediação, pois estabelece a ponte que liga a prefiguração do

mundo prático ao receptor da configuração deste mundo, recepção essa responsável pela

ressignificação dos acontecimentos narrados em mimese II.

A operação de configuração, que é uma característica central da segunda mimese

ricoeuriana, é referenciada pelo conceito de mŷthos de Aristóteles, unindo a tessitura da

58

intriga e o agenciamento dos fatos. A intriga é vital para o desenvolvimento da mimese II,

pois possui também uma função mediadora e, de acordo com o filósofo, este papel da intriga

se dá, primeiramente, pela mediação que ela faz entre os acontecimentos e uma história

narrada. Nesse caso, a intriga transforma uma ampla gama de acontecimentos ou incidentes -

que são mais do que uma ocorrência singular e são selecionados para servir de ponto de

partida ao desenvolvimento da própria intriga - em uma história que se organiza em uma

totalidade inteligível, que vai além da mera sucessão serial de ocorrências.

Outra característica mediadora da intriga se refere aos seus caracteres temporais

próprios, tornando-a uma síntese do heterogêneo, segundo Paul Ricoeur. Aqui retornamos à

aporia temporal de Santo Agostinho, já que a configuração narrativa combina duas dimensões

temporais que solucionam na poética as características de ser e não ser do tempo. A primeira

dimensão é cronológica e constitui a caracterização episódica da narrativa, ao definir uma

história como feita de acontecimentos. Já a segunda dimensão é não cronológica e caracteriza

a configuração em si, na qual a intriga transforma os acontecimentos em história. É neste

ponto que se pode ver claramente esse paradoxo temporal, considerando que o ato de compor

a intriga retira e seleciona acontecimentos singulares da experiência mundana repleta de

ocorrências e insere estes selecionados em outra totalidade do temporal, em uma

temporalidade que é exclusiva da narrativa.

A temporalidade é uma característica bem marcante da configuração em mimese II.

Ao articular uma história de uma sucessão de acontecimentos do mundo da vida, a elaboração

de um discurso em volta de uma ocorrência singular ganha sentido para o receptor deste

discurso na capacidade que a história configurada tem de ser acompanhada. E acompanhar

uma história diz respeito a sua capacidade de conduzir um leitor ou um ouvinte a um ponto

final onde este encontra uma satisfação. A conclusão estabelece um ponto temporal de onde o

receptor pode compreender o todo que envolve a narração da ação.

Agostinho abordava o caráter aporético do tempo como uma inquietação praticamente

sem solução, porém o ato de narrar uma história reverte esse incômodo e o usa como solução

para se tecer uma narrativa e dar-lhe um ritmo com uma conclusão e abertura para as

interpretações de quem a acompanha. Na configuração narrativa, percebemos a presença

desse paradoxo temporal ao observarmos a dimensão episódica e a dimensão configurante da

narrativa.

O aspecto episódico constitui o tempo narrativo de modo a escapar do campo da

representação linear. Os episódios de uma história se apresentam como uma série aberta de

acontecimentos, sendo interligados na narrativa em uma temporalidade não cronológica, a

59

qual não corresponde ao tempo da ação ocorrida no mundo da vida. A dimensão configurante,

no entanto, segue o caminho inverso ao tratar dos aspectos temporais da narrativa. Uma das

explicações que justifica esse outro rumo dessa dimensão é que a configuração é responsável

por reunir os acontecimentos em um todo significante. Tal operação permite que a intriga

possa ser compreendida em um tema, ser traduzida em uma ideia ou conceito que a

caracteriza.

Outra questão que mostra a diferença temporal da configuração em relação ao episódio

em si é a função de organização e conclusão que a tessitura da intriga impõe à vasta

ocorrência de variados incidentes do campo da ação. Paul Ricoeur mostra como o senso de

ponto final é responsável por delinear a totalidade da história e vai além ao refletir que o ato

de recontar uma história valoriza a sua conclusão, e, consequentemente, sua compreensão

como um todo. Nota-se então uma nova qualidade do tempo nas narrativas, pois o senso de

ponto final, a cada vez que uma história é recontada, nos coloca em contato com outras

interpretações dos episódios e nos ajuda a compreendê-los de forma mais aprofundada, o que

permite manter uma narrativa em circulação na sociedade com sua permanência cada vez

mais fixa na memória.

Assim, ao pensarmos no tempo narrativo como um todo, não devemos separar os

tempos de cada dimensão. Apesar de aparentarem serem temporalidades específicas e

paradoxais, quando reunidas constituem o tempo narrativo, que exerce o papel de mediador

entre os aspectos episódico e configurante, gerando então uma ação poética única que

constitui a mimese II de Paul Ricoeur, garantindo a mediação entre a pré-compreensão da

ação e sua refiguração ao alcançar os leitores/ouvintes, a qual caracteriza o processo de

mimese III.

Na ótica da tríplice mimese ricoueriana, o ciclo da mímesis se completa justamente na

terceira mimese. É nesta instância que a narrativa alcança seu sentido mais avançado, pois é

exatamente nesse momento que o leitor ou ouvinte exerce a função de refiguração da

narrativa, se integrando de forma ativa dentro da trama narrada e gerando suas interpretações

sobre ela, completando assim o processo de mímesis que, segundo o filósofo francês, é

responsável pela mediação entre tempo e narrativa.

(...) mímesis III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte e

do leitor. A intersecção, portanto, entre o mundo configurado pelo poema e o mundo

no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua temporalidade específica.

(RICOEUR, 2010, p.123)

Antes de aprofundar no ato da leitura como responsável por todo o processo que

envolve a compreensão de uma ação e sua transformação em discurso, Paul Ricoeur questiona

60

se o encadeamento dos três estágios da mímesis realmente define uma progressão que seria

responsável por todo o processo da mediação entre tempo e narrativa. Seria a tríplice mimese

suficiente para a análise do caminho entre os acontecimentos da vida mundana, sua

transformação em discurso e a dimensão simbólica gerada pelas múltiplas leituras e

interpretações dos receptores?

Para responder a este questionamento, o autor francês aborda a noção de circularidade

da análise narrativa. Logo no início dessa discussão, Ricoeur refuta a ideia de que o círculo

que envolve todo o ato de narrar seja vicioso. Ele defende que a circularidade que envolve o

trânsito da mimese I até a mimese III, mediada pela mimese II, funciona como uma espiral

sem fim que faz um acontecimento se deslocar, gerar conhecimentos e, consequentemente,

novos acontecimentos derivados da experiência prática inicial e de sua transformação em

discurso. Isso pode gerar a ideia de círculo vicioso, porém a oposição a esta ideia está

justamente na diferença de atitude que ocorre dentro dessa espiral a cada nova interpretação

das narrativas e retorno de novas ações no mundo da vida. Assim, o autor francês classifica a

circularidade como um elemento vital, e não vicioso, sendo esse círculo formado pelo

percurso da tríplice mimese e essencial para o funcionamento da mediação entre tempo e

narrativa. Esta compreensão da circularidade que envolve os três estágios da mímesis permite

voltar nossa atenção para o ato de leitura, que diz respeito especialmente à transição de

mimese II para mimese III, sendo esta última responsável pela refiguração da narrativa e

geração de novos significados acerca da intriga narrada, dando conclusão ao ato configurante.

Para escapar da noção que trata o texto como uma estrutura estática, dotada de sentido

fechado e sem a participação ativa do receptor na sua interpretação, Ricoeur aborda os

aspectos de tradicionalidade e esquematização da intriga, que permitem que escritura e leitura

sejam duas operações que estabeleçam uma interação entre si. Um dos aspectos que propicia o

encontro entre texto e leitor são os paradigmas aceitos que estruturam e moldam a narrativa,

permitindo que o receptor ao se deparar com uma história contada reconheça nela a regra

formal, o gênero e a forma que a delineia. Quando o leitor identifica um gênero narrativo, o

próprio ato de leitura completa o ciclo da configuração da intriga e reforça a capacidade de

uma história em ser acompanhada e a partir daí gerar novos sentidos e novos acontecimentos

na experiência prática humana.

É ainda o ato de ler que se junta ao jogo da inovação e da sedimentação dos

paradigmas que esquematizam a composição da intriga. É no ato de ler que o

destinatário brinca com as exigências narrativas, efetua os desvios, participa do

combate entre o romance e o antirromance e experimenta o prazer que Roland

Barthes chamava o prazer do texto (RICOEUR, 2010, p.131).

61

Em mimese III, o protagonismo do leitor fica nítido, já que seria ele um dos principais

responsáveis por dar sentido à obra narrativa, considerando que um texto escrito pode

apresentar lacunas, caminhos abertos e indefinidos, com possibilidade de múltiplos sentidos,

justamente para o leitor terminar a configuração iniciada pelo autor da intriga apresentada em

uma narrativa. Seria, então, o ato de leitura responsável pela refiguração da narrativa no ciclo

da mímesis ricoeuriana, pois estabelece uma conexão entre mimese II e mimese III. Os

sentidos construídos em torno do mundo da ação mediada pela intriga só são possíveis de se

estabelecerem a partir do momento que acontece a interação entre texto e receptor.

Além da característica da leitura que completa o ciclo da escrita, mimese III também

traz a questão que envolve a referência. Quando tratamos da instância do discurso,

consideramos que o acontecimento traz em sua completude não só um texto dirigido a um

receptor, mas também compartilha, por meio da linguagem, uma nova experiência. Assim, ao

pensarmos na recepção, devemos considerar que a capacidade humana de comunicação está

diretamente relacionada às referências do ser humano e sua relação com o mundo. Quando um

leitor entra em contato com uma obra, ele também passa a se relacionar com a experiência que

esta traz para a linguagem, que por sua vez traz em si uma temporalidade ligada ao mundo e

suas ações.

O filósofo assinala que as referências que servem de base para o fazer narrativo

ressignificam o mundo em sua dimensão temporal. Para Paul Ricoeur, a composição da

intriga tem a capacidade de expressar o mundo e, assim, a leitura desse agir humano

configurado pela narrativa reconstrói o significado da dimensão temporal, já que narrar é uma

forma de refazer a ação conforme a elaboração do processo mimético.

Para tratar da questão da temporalidade, o autor francês compara a narrativa de ficção

à narrativa histórica, mostrando diferenças entre os modos referenciais por meio dos quais se

constroem cada uma dessas modalidades do ato de narrar. Ele considera que somente a

historiografia pode ser construída referenciada em acontecimentos que ocorreram

efetivamente, pertencentes ao mundo empírico. Mesmo que o passado não exista mais e

necessite de vestígios para ser resgatado narrativamente no presente, não deixa de ser real que

esse passado ocorreu. Ainda segundo Ricoeur, o acontecimento passado, mesmo estando

ausente no presente, guia a intencionalidade histórica e caracteriza a narrativa com um tom

realista diferente do que ocorre na literatura de ficção. É importante observar, porém, que a

referência elaborada a partir de vestígios de um passado real também possui interseção com as

referências metafóricas, considerando que o passado só pode ser narrado por meio do recurso

da imaginação. Assim, a dimensão temporal é considerada como essencial para o uso

62

combinado das referências ligadas tanto aos vestígios históricos quanto às metáforas poéticas

na construção de um discurso narrativo.

Contudo, onde se cruzam a referência por vestígios e a referência metafórica, senão

na temporalidade da ação humana? Não é o tempo humano que a historiografia e a

ficção lieterária refiguram em comum, cruzando nele seus modos referenciais?

(RICOEUR, 2010, p.140)

A dimensão temporal mostra sua relação direta com a mímesis mais uma vez, ao

também constituir a caracterização da mimese III de Ricoeur. A temporalidade, que perpassa

por todas as três mimeses, se apresenta como elemento essencial da constituição de uma

narrativa. A investigação da mediação entre tempo e narrativa por meio da tríplice mimese

apresenta, portanto, uma dialética em que convivem no mesmo círculo a poética da narrativa e

a aporia que envolve os aspectos temporais.

4.2.1 Mimese e narrativa jornalística

Paul Ricoeur (2010) considera a narrativa uma forma privilegiada de conhecer o

mundo. No entanto, o filósofo desenvolve seus estudos com enfoque nas narrativas ficcionais

literárias e nas narrativas de cunho histórico. A abordagem jornalística é a que nos interessa

nesta dissertação. E para relacionar as narrativas jornalísticas com a tríplice mimese

ricoeuriana, vamos nos valer das reflexões de Luiz Gonzaga Motta (2005) e Carlos Alberto de

Carvalho (2012), já que ambos desenvolvem estudos que mostram como a mediação entre a

temporalidade e a narratividade pode ser aplicada também ao campo do jornalismo.

Iniciamos esta reflexão com o questionamento de Motta (2005) que busca

compreender se o enunciado do jornalismo realmente se caracteriza como uma narrativa. O

autor traz uma comparação entre os conceitos de narração e de descrição, considerando o

primeiro como uma representação que se constitui pelo relato de eventos que configuram o

desenrolar de uma ação temporal, que leva a interpretações dos receptores de tal relato. Já a

descrição é considerada como uma representação de um momento estático, com a

temporalidade inalterada pelo discurso e com o objetivo de criar o efeito de real por meio de

informações que buscam a verossimilhança. Tal comparação feita pelo autor não coloca os

dois conceitos em caminhos de sentidos opostos no jornalismo, pois para Motta a

possibilidade de se encontrar textos tanto puramente descritivos quanto puramente narrativos

é remota, praticamente impossível. No entanto, o autor aponta para a tendência descritiva do

discurso jornalístico que, na maior parte de sua produção, busca uma forma de abordagem que

63

tende mais a concisão e clareza, criando mais o efeito do real do que incentivando o

imaginário do leitor.

Com esta comparação de estilo discursivo no jornalismo, Motta busca mostrar que os

enunciados jornalísticos por si só se afastam da forma narrativa e se caracterizam mais pela

aproximação da realidade pelo discurso conciso e objetivo, evitando contar histórias. Assim,

de acordo com o autor, a expressão narrativa do jornalismo encontra sua força na instância da

recepção, deixando muito mais nas mãos do leitor a função de interpretar e refigurar as

representações propostas nos enunciados jornalísticos.

A participação dos leitores é característica marcante da narrativa. E para mostrar como

o ato de narrar se aplica ao jornalismo, Motta discorre sobre o conceito de narrar e também

sobre a narratividade. O autor define narrar como o relato de fatos que se desenvolvem ao

longo de uma temporalidade. É por meio da narração que se convoca o leitor a ter voz ativa na

participação dos eventos relatados em uma configuração poética. Motta avança, então, para o

conceito de narratividade, que se manifestaria pela irrupção do descontínuo, sendo

responsável pela produção de sentido. A narratividade diz respeito, assim, às transformações

que se inserem no discurso a partir do rompimento da ordem do mundo cotidiano. Essa

transição do contínuo para o descontínuo é registrada por meio do processo da narratividade,

por meio da estrutura de um texto que se produz a partir de transformações em uma história,

em uma vida, em um indivíduo e/ou em uma cultura.

No livro Dicionário de Teoria da Narrativa, Reis e Lopes (1988) também discutem o

conceito e apontam que a narratividade envolve circunstâncias sociopsicológicas e

pragmáticas da produção de texto e se completa na instância da recepção ao afirmarem que

(...) a narratividade pode ser concebida também como qualidade discursiva que

carece de ser atualizada e saturada pelo processo de leitura; se a leitura da narrativa

for entendida como gradual reconstrução de um universo que o desenvolvimento

sintagmático do discurso vai configurando, se se postular a existência de uma

competência narrativa que habilita a ler um romance ou um conto em termos

diferentes dos que regem a leitura de um soneto, então dir-se-á que a narratividade,

com as propriedades intrínsecas que aqui foram sendo descritas, constitui a

referência latente que coordena e sistematiza a atividade de descodificação narrativa.

Nesta linha de pensamento, (...) a narratividade tem que ver com a capacidade

possuída pelo texto (narrativo) para facultar ao receptor o acesso a ações de

dimensão humana, de matriz temporal e englobadas em universos internamente

coerentes (REIS e LOPES, 1988, p.78-79).

Ao discutirmos a tríplice mimese de Paul Ricoeur anteriormente, é importante lembrar

que o filósofo se referia principalmente às narrativas literárias de ficção e às historiográficas.

Quando desenvolve sua reflexão sobre as narrativas jornalísticas, Luiz Gonzaga Motta (2005)

busca demonstrar os contrastes das características da história e da ficção literária em relação

64

ao discurso jornalístico. De acordo com o autor, o principal fator que diferencia a narrativa

jornalística das outras duas se deve ao nível e grau da composição dos fatos em uma intriga

coerente com a realidade. Enquanto nas demais narrativas a necessidade de se contar histórias

permite o autor a introduzir fatos que não correspondem completamente a realidade, no

jornalismo existe a responsabilidade de se trabalhar com acontecimentos ainda abertos que

envolvem pessoas que ainda não terminaram de viver. Isso faz com que o texto jornalístico se

insira em um dilema e oscile entre a necessidade de ser fiel ao fato ocorrido ao descrevê-lo e a

necessidade de preencher tal fato com histórias e conexões que podem se desviar da realidade

relatada.

A qualidade da narratividade dos enunciados jornalísticos estaria então na relação

entre o texto e sua recriação a partir das múltiplas leituras que geram novos significados a

esse tipo de narrativa. Considerando as reflexões de Ricoeur sobre o tempo se tornar humano

na medida em que é articulado narrativamente e a narrativa atingir seu pleno significado ao se

tornar uma condição da temporalidade, a ideia de que o tempo e a ação comunicativa

compõem o paradigma narrativo, mostra que a narratividade não é uma qualidade exclusiva

do texto configurado, e sim de algo muito maior que tem sua força estampada na relação obra-

autor-leitor. Portanto, a partir das investigações sobre a mediação entre tempo e narrativa de

Ricoeur, Motta enxerga o caminho pelo qual se dará o encontro entre os enunciados

jornalísticos e a narratividade.

A força narrativa dos enunciados jornalísticos estaria menos nas qualidades

narrativas intrínsecas do texto das notícias e reportagens ou no confronto entre o

estilo descritivo e o narrativo, mas principalmente no entendimento da comunicação

jornalística como uma forma contemporânea de domar o tempo, de mediar a relação

entre um mundo temporal e ético (ou intratemporal) pré-figurado e um mundo

refigurado pelo ato de leitura (MOTTA, 2005, p.33).

A configuração de narrativas pelo jornalismo se revela como um caminho de

reconfiguração da cultura contemporânea, na qual não podemos considerar somente a

tendência de objetividade dos discursos deste campo, já que os próprios jornalistas não

conseguem e muito menos tem a intenção de se descolarem da subjetividade que os

envolvem. Com isso, não é somente no estilo discursivo e na linguagem que a narratividade

se constrói no jornalismo, mas, principalmente, no ciclo que envolve a pré-configuração do

mundo da ação, a configuração pela narrativa do acontecimento e a refiguração pela

construção de sentido que ocorre na relação autor-obra-leitor. A significação construída na

recepção aliada ao contexto cultural, ético e moral em que se insere uma história ou uma

65

intriga nos mostra como o jornalismo se constitui como uma narrativa que retrata uma

contemporaneidade.

Carvalho também reforça essa relação dos enunciados jornalísticos e a tríplice mimese

ricoeuriana ao abordar a narrativa jornalística como um meio da sociedade conhecer a si

mesma ao se deparar com a realidade em que tal narrativa se insere. É a partir do contato com

as marcas (marcas do social, do econômico, do cultural, etc.) daquilo que se narra que os

receptores criam sentidos a partir de múltiplas leituras acerca do enunciado, já que “aquilo

que vem configurado em uma determinada narrativa receberá novas configurações a partir da

perspectiva de quem lê, propiciando assim, a criação/recriação da realidade, processo que

nunca finda” (CARVALHO, 2012, p.171).

O jornalismo encontra à sua disposição uma grande variedade de estratégias

narrativas, que vão desde um simples relato objetivo dos fatos, entrevistas, grandes

reportagens até estruturas como colunas, crônicas, artigos, entre outras formas. Para Carvalho

(2012), essa ampla possibilidade de estruturas narrativas que atendem ao jornalismo existem

em função de objetivos estético-linguageiros e também para a criação de um efeito, sendo que

para cada efeito sugerido sempre haverá múltiplas formas de leitura e interpretação, o que

reforça a relação dos enunciados jornalísticos com a tríplice mimese. É possível a partir da

pré-configuração do mundo da ação (mimese I) e da consequente configuração da narrativa

(mimese II) – por meio da organização textual com as estratégias de enquadramento e seleção

de aspectos dos acontecimentos que lhe conferem determinada inteligibilidade - criar uma

expectativa de sentido para a instância da recepção, porém, é justamente no estágio de

mimese III que os acontecimentos narrados recebem múltiplas significações e que são

ampliadas as possibilidades de percepção do mundo mediado pelo jornalismo.

O papel dos narradores em mimese II também ganha papel relevante nas reflexões de

Carvalho (2012) acerca das narrativas jornalísticas. O autor aponta que os ideais de

objetividade deste tipo de enunciado – mesmo considerando que a dimensão subjetiva ainda é

marcante neste tipo de discurso, já que os conhecimentos e o contexto (político, social,

cultural, etc.) que envolvem o narrador influenciam na seleção dos eventos reportados e dos

personagens e fontes que os interpretam – reforçam o protagonismo destes autores na

configuração poética, pois precisam ser rigorosos com os valores éticos e culturais que

envolvem mimese I, considerando que necessitam manter a credibilidade das informações

jornalísticas e não podem preencher lacunas no resgate dos acontecimentos com recursos

imaginativos.

66

A forma como o narrador configura um acontecimento no jornalismo está diretamente

relacionada com mimese III, pois não é apenas o contexto que envolve a ação que deve ser

considerado na configuração, é preciso também que os leitores compartilhem, direta ou

indiretamente, deste mundo prefigurado, sendo que somente assim se sentirão impactados

pelo acontecimento narrado jornalisticamente e estarão aptos a serem reconfiguradores do

mundo da ação narrado, abrindo um leque de possibilidades de interpretações e disputas de

sentido, afastando a ideia de reprodução fiel das ocorrências nas narrativas jornalísticas.

A narração fidedigna do acontecimento é uma das principais exigências do jornalismo.

A ficcionalização, pensada como recurso de ocultamento do real, não encontra espaço nesse

tipo de narrativa, já que para desenvolver de forma ética a mimese II, não é possível criar

realidades para as lacunas deixadas por mimese I, o que comprometeria o estágio da mimese

III, considerando que o leitor teria a confiança abalada caso se deparasse com uma narrativa

envolvendo o cotidiano do mundo da ação que se afastasse do fato que realmente ocorreu.

Carvalho (2012) demonstra, no entanto, que isso não impede o uso de técnicas da narrativa

ficcional como recurso estético na construção do discurso jornalístico. O autor aponta como

os recursos da literatura realista do final do século XIX tiveram forte influência no

compromisso social com a investigação mais rigorosa e aprofundada por parte dos jornalistas.

A pesquisadora argentina María Marcela Farré (1999) defende que é possível manter a

credibilidade nas narrativas jornalísticas fazendo uso dos recursos de ficção, o que seria bem

diferente de lançar mão da fabulação típica da literatura, já que para esta autora “as notícias

são ficções representativas da vida real, assumindo que ficção não significa falsidade.

Realidade é o mundo em que vivemos, enquanto ficção alude às construções culturais que

simbolizam nosso estar no mundo” (FARRÉ, 1999, p.7, tradução nossa)19

.

Pode-se afirmar, enfim, que a tríplice mimese de Paul Ricoeur aplicada ao jornalismo

se constitui como um processo de mediação que as narrativas podem estabelecer com o

mundo da vida e seus acontecimentos. O processo da tríplice mimese permite a compreensão

do mundo social pelas narrativas jornalísticas que trazem por meio de mimese I um mundo da

ação prefigurado (estrutura, simbolização e temporalidade), mediados pela configuração

poética do acontecimento selecionado (mimese II), o qual ganha sentido, nem sempre único e

delimitado, a partir das mais variadas leituras e interpretações das quais são objeto (mimese

19 En este sentido se afirma en el presente trabajo que las noticias son ficciones representativas de la vida real,

asumiendo que ficción no significa falsedad. Realidad es el mundo en que vivimos, mientras que ficción alude a

lãs construcciones culturales que simbolizan nuestro estar en el mundo.

67

III), completando assim todo o ciclo da mímesis que envolve a compreensão do mundo da

vida.

Narrativas jornalísticas são, nessa perspectiva, parte do que Paul Ricoeur denomina

como o próprio esforço de apanhar o tempo, de humanizá-lo, uma vez que a sua

total compreensão remete sempre a uma condição aporética última (CARVALHO,

2012, p.184).

4.2.2 Tríplice mimese no podcast Serial

Para entender a mediação entre tempo e tessitura da intriga que envolve Serial, vamos

observar cada estágio do ciclo mimético nessa narrativa jornalística. A mimese I se manifesta

a partir da percepção do mundo da ação que precede a construção da narrativa desta série.

Aqui nos referimos à pré-configuração relativa ao agir humano, cuja constituição envolve três

dimensões: estrutural, simbólica e temporal. Para entendermos como se deu a tessitura da

intriga que caracteriza a mimese II, é preciso compreender a ação selecionada por Sarah

Koenig e sua equipe de produção.

A dimensão estrutural do primeiro ciclo da mimese é referente às estruturas

inteligíveis que dão origem ao fazer e às formas de narrar, ou seja, nessa dimensão busca-se

entender como se estrutura a rede que envolve o agir, indo além do conceito simplificado da

ação a ser inserida no processo de narratividade. Para dar início a tessitura da intriga em

Serial, Sarah Koenig seleciona um acontecimento cuja imprevisibilidade quebra a

continuidade de uma ordem cotidiana no passado: o assassinato da jovem Hae Lee em 1999

na cidade de Maryland nos Estados Unidos e a consequente investigação do crime feita pelas

autoridades da época. Nessa instância estrutural da mimese I de Serial, é possível identificar

os motivos, os objetivos, os agentes envolvidos e o contexto do acontecimento destacado pela

série jornalística, o que facilita a compreensão da experiência da prática humana em destaque

e delineia a rede de significados que envolve o mundo da ação. Logo no primeiro episódio do

podcast, a narradora relata que esteve apurando informações para a produção da narrativa

durante o ano anterior ao lançamento da série, o que está diretamente relacionado com a

compreensão da rede estrutural que envolve a ação, a partir da qual a narrativa será

configurada.

Durante o último ano, eu passei todos os dias úteis tentando descobrir onde um

garoto colegial esteve uma hora depois da escola em um dia no ano de 1999 – ou se

você quiser usar um termo técnico, e aparentemente eu quero, onde um garoto

colegial esteve durante 21 minutos após o fim da aula em um dia em 1999. Esta

investigação às vezes parecia indigna da minha parte. Eu tive que perguntar sobre a

vida sexual de adolescentes, onde, com que frequência, com quem, sobre bilhetes

68

que eles trocaram nas aulas, sobre seus hábitos com drogas e seus relacionamentos

com seus pais (All Serial Podcast Transcripts, 2014, episódio 01, tradução nossa). 20

A dimensão simbólica também constitui a pré-configuração da narrativa. A

investigação acerca do assassinato de Hae Lee, que levará a tessitura da intriga na mimese II,

nos mostra um fato que, desde a sua emergência, pertence a um conjunto de signos e regras e

se articula em questões éticas e morais, valores e crenças, ou seja, a ação está inserida em um

processo cultural que determina a construção de sua significação. Na própria narrativa de

Serial, é possível visualizar o sistema simbólico em que se insere o acontecimento do

assassinato e suas consequências para os envolvidos direta ou indiretamente nessa trama da

vida real. Sarah Koenig conta como a história de Adnan e Hae Lee chegou às suas mãos.

Rabia Chaudry, advogada de origem muçulmana e amiga da família de Adnan Syed, enviou

um email para Koenig relatando a história do assassinato de Hae e a consequente condenação

à prisão perpétua do jovem Adnan, condenação esta que Rabia considera injusta, pois acredita

na inocência de Syed. O motivo que levou Rabia a procurar especificamente a jornalista foi

porque na época em que Sarah era repórter do jornal Baltimore Sun (estado de Maryland,

EUA), ela havia produzido uma matéria sobre uma advogada conhecida que tinha sido punida

por roubo de dinheiro de clientes. A advogada sobre a qual Sarah Koenig dedicou algumas

reportagens era a mesma que atendeu Adnan à época das investigações do crime. No email

que enviou à Koenig, Chaudry denunciou que esta advogada tinha sido displicente com o caso

de Adnan, sendo negligente com vários aspectos da defesa para ganhar mais dinheiro com a

apelação. Alguns anos após a condenação à prisão perpétua de Adnan, esta mesma advogada

faleceu. A narradora relata no próprio podcast que não estava acostumada a lidar com uma

história como esta em seu trabalho cotidiano.

Esta conversa com Rabia e Saad [irmão de Rabia e amigo de Adnan], isto foi o que

me fez iniciar a – obsessão talvez seja uma palavra muito forte – que tal dizer, o

fascínio com este caso ao longo do ano. Até o final desta hora, você vai ouvir

pessoas diferentes contando diferentes versões sobre o que aconteceu no dia que Hae

Lee foi assassinada. Mas vamos começar com a versão mais importante da história,

a que Rabia me contou primeiramente. E esta é a versão que foi apresentada no

julgamento. A acusação do Estado contra Adnan ocorreu da seguinte forma. Ele e

Hae estavam saindo juntos desde o baile de formatura. Mas Adnan não poderia estar

namorando de forma alguma. Adnan nasceu nos Estados Unidos, mas seus pais são

do Paquistão. E eles são muçulmanos conservadores – sem beber, sem fumar, sem

20 For the last year, I've spent every working day trying to figure out where a high school kid was for an hour

after school one day in 1999-- or if you want to get technical about it, and apparently I do, where a high school

kid was for 21 minutes after school one day in 1999. This search sometimes feels undignified on my part. I've

had to ask about teenagers' sex lives, where, how often, with whom, about notes they passed in class, about their

drug habits, their relationships with their parents.

69

garotas, tudo isso (All Serial Podcast Transcripts, 2014, episódio 01, tradução

nossa).21

O sistema judiciário que apresenta falhas, as questões religiosas que envolvem os

jovens protagonistas dessa história da vida cotidiana, os hábitos da cultura ocidental em

conflito com os hábitos de sua família são alguns dos elementos que integram o sistema

simbólico permitindo a compreensão do contexto ao redor do caso de Adnan. Todos esses

elementos constituem o estágio de mimese I e conferem à ação uma primeira legibilidade que

demonstram se o caso do assassinato de Hae Lee, sua investigação e acusação de Adnan são

passíveis de se tornarem uma transposição poética em termos de sua configuração narrativa.

Juntamente com a rede conceitual da ação e o sistema simbólico em que ela se insere,

estão as estruturas temporais que compõem as três dimensões da mimese I ricoeuriana. Tais

aspectos do tempo encontrados na experiência prática funcionam como indutores da tessitura

da intriga em mimese II. Em Serial, a relação com a temporalidade mais obvia a ser apontada

é pelo passado, já que se trata de uma história da vida cotidiana que ocorreu há mais de 15

anos. Porém, Ricoeur usa o triplo presente de Santo Agostinho como referência ao tratar do

mundo da ação. Para o filósofo, a forma como o presente do passado, o presente do presente e

o presente do futuro se relacionam são determinantes para o desenrolar da configuração

poética da ação. Assim, ao considerarmos o acontecimento narrado no podcast, estas relações

temporais se apresentam de forma a impactar este triplo presente, ao pensarmos no momento

em que ocorreu o assassinato, sua repercussão à época do crime e no momento mais atual, no

qual Sarah Koenig recebe em seu email um relato de alguém próximo aos atores envolvidos

diretamente – Rabia Chaudry, amiga da família de Adnan. Nos deparamos, então, com um

acontecimento que quebrou a ruptura linear do tempo, já que se trata de um assassinato e suas

consequências, seu alcance no presente – momento em que a jornalista Sarah Koenig toma

conhecimento da história – e seu impacto em um futuro, quando Sarah e sua equipe de

produção analisam se este fato é digno de ser transposto a um processo de narratividade e,

consequentemente, definirem a forma como será composta esta narrativa. Todos estes

aspectos temporais da pré-configuração da série jornalística de Serial se interrelacionam e

21 This conversation with Rabia and Saad, this is what launched me on this year long-- "obsession" is maybe too

strong a word-- let's say fascination with this case. By the end of this hour, you're going to hear different people

tell different versions of what happened the day Hae Lee was killed. But let's start with the most important

version of the story, the one Rabia told me first. And that's the one that was presented at trial. The state's case

against Adnan went like this. He and Hae had been going out since junior prom. But Adnan wasn't supp osed to

be dating at all. Adnan was born in the US, but his parents are from Pakistan. And they're conservative Muslims -

- no drinking, no smoking, no girls, all that.

70

estão inseridos na mediação simbólica e dimensão estrutural do acontecimento selecionado

para a configuração narrativa da série.

É a partir desse primeiro ciclo da tríplice mimese que se desenvolve a transformação

de um assassinato ocorrido nos EUA há mais de 15 anos em um discurso narrativo que irá

circular pelas redes sociais digitais e atingirá diversos receptores-usuários. Ao avançarmos

para a mimese II no podcast, encontramos o papel desta mediação, em que por meio da

narrativa de Serial, os ouvintes tomam conhecimento da estrutura, simbolização e

temporalidade que envolve o assassinato da jovem Hae Lee e suas consequências

(investigação do crime e condenação de Adnan), o que possibilita a emergência de novos

sentidos construídos a partir das múltiplas interpretações acerca deste acontecimento e de sua

narração.

Em conjunto com este papel mediador está o ato de configuração da narrativa, na qual

encontramos a presença marcante da voz da narradora Sarah Koenig, que conduz a atividade

mimética e realiza a costura da história principalmente por meio do resgate da memória com

diversos depoimentos em áudio, sejam eles de pessoas que vivenciaram o acontecimento à

época – Adnan Syed, familiares dele e da vítima, amigos da escola, professores, etc - ou de

pessoas que analisam o caso de outro ponto de vista, como advogados e psicólogos que só

tomaram conhecimento deste acontecimento através da equipe de produção do podcast. Junto

com as entrevistas realizadas por Koenig, há também o uso de informações apuradas de

documentos da investigação policial – diário pessoal da jovem assassinada, documentos de

autoridades e do julgamento, entre outros – para a elaboração desta narrativa jornalística. A

cronologia do crime, a credibilidade de algumas testemunhas e a própria imagem do acusado

são colocados em questão pela narradora no podcast.

A tessitura da intriga emerge no tempo narrativo de Serial, materializada na voz

narrativa de Koenig. No segundo episódio da série, a jornalista se posiciona a respeito da

investigação do acontecimento destacado pelo podcast, levanta muitas suspeitas e indica

como será a continuidade da narrativa jornalística tecida por ela.

A esta altura, eu vou dizer claramente que eu não banco a ideia do motivo deste

assassinato, pelo menos não da forma como o Estado explicou. Eu simplesmente não

vejo assim. Nenhuma pessoa disse que ele estava agindo de forma estranha depois

que eles terminaram. Ele e Hae, novamente levando tudo em consideração, ainda

eram amigos. Ele estava interessado em outras garotas. Ele estava trabalhando. Ele

estava a caminho da universidade. Cerca de duas semanas após sua prisão, ele

recebe um pacote com orientações da Universidade de Maryland. Eu não acho que

ele era um garoto de alma vazia que traiu sua família e religião e tinha sido deixado

sem nada naquele momento e conjurou uma fúria assassina a uma garota que partiu

seu coração. Eu simplesmente não banco essa ideia. E a razão pela qual eu não

acredito nisso é porque ninguém que o conhecia naquela época ou agora, afirma que

71

foi assim que aconteceu. Eu quero deixar claro, no entanto, que isso não significa

que ele não fez. Simplesmente significa que, até o momento, acho que a versão do

Estado sobre por que ele matou Hae não se sustenta (All Serial Podcast Transcripts,

2014, episódio 2, tradução nossa). 22

A composição da intriga de Serial parte da seleção de um fato singular de uma ordem

mundana e sua inserção em uma outra temporalidade, pertencente à narrativa da série

jornalística. O trecho abaixo exemplifica como a narração transita entre a temporalidade

referente à época do crime - resgatando gravações referentes aos detetives responsáveis pela

investigação questionando a testemunha do caso (Jay) no julgamento – e a temporalidade

mais ligada ao presente em que se encontra o receptor-usuário.

Sarah Koenig: Aqui está a gravação de Jay sendo entrevistado pelo detetive Greg

MacGillivary. Detetive Greg MacGillivary: Esta conversa, o que ele disse a você?

Jay: Bem, ele me disse que ela partiu o coração dele, que era extremamente errado

alguém o tratar daquele jeito. Hum, que ele não pode acreditar em como ela parou e

o encarou face a face e disse a ele que não o amava e poderia ser tão sem coração e

ele me contou quase brincando “Eu acho que vou matá-la, sim, eu acho que vou

matá-la”. Detetive Greg: Você não sabia como ele ia matá-la. Jay: Não. Não.

Detetive Greg: Mas ele te contou que ia, que ia matá-la. Jay: Sim. Detetive: Porque

ela tinha partido seu coração. Jay: Sim. Sarah Koenig: Mas quase todo mundo com

quem eu conversei, amigos de Adnan e professores, disseram que ele lidou com o

término como qualquer um lidaria. O amigo de Adnan Mac Francis disse que Adnan

inicialmente estava devastado e com ciúmes do novo namorado. Disse que ele

resmungou sobre isso de um jeito típico de um cara, nada estranho. Todo mundo

com quem eu conversei disse alguma versão disso, que ele não estava cheio de raiva

ou vingativo. Ele estava simplesmente triste (All Serial Podcast Transcripts, 2014,

episódio 02, tradução nossa).23

O ouvinte do podcast constrói significações acerca do caso que envolve o assassinato

de Hae Lee à medida que vai acompanhando a sequência dos 12 episódios da série. A

22 At this point, I’m going to say flat out that I don’t buy the motive for this murder, at least not how the State

explained it. I just don’t see it. Not one person says he was acting strangely after they broke up. He and Hae,

again by all accounts were still friends. He was interested in other girls. He was working at his job. He was

headed to college. About two weeks after his arrest, he gets an orientation packet from the University of

Maryland. I don’t think he was some empty shell of a kid who betrayed his family and his religion and was now

left with nothing and conjured up a murderous rage for a girl that broke his heart. I simply don’t buy it. And the

reason I don’t buy it is because no one who knew him, then or now, says that’s how it was. I want to be clear,

though, that that doesn’t mean he didn’t do it. It just means that so far, I think the State’s story about why he

killed her doesn’t hold up. 23

Sarah Koenig: Here’s tape of Jay’s being interviewed by Detective Greg MacGillivary. Detective Greg

MacGillivary: this conversation, what did he tell you? Jay: Um, he told me that she had broke his heart, that it

was extremely wrong for anyone to treat him that way. Um, that he couldn’t believe how she stood and looked

him face to face and told him she didn’t love him and could be that heartless and he told me that almost joking “I

think I’m going to kill her, yeah, I think I’m going to kill her.” Detective Greg MacGillivary: You didn’t know

how he was going to kill her. Jay: No. No. Detective Greg MacGillivary: But he told you that he was, he was

gonna kill her. Jay: Yes. Detective Greg MacGillivary: because she had broken his heart. Jay: Yes. Sarah

Koenig: But nearly everyone I’ve spoke with, Adnan’s friends and teachers say he took the breakup like anyone would. Adnan’s friend Mac Francis said Adnan initially was devastated and jealous about the new boyfriend.

Said he grumbled about it in a typical guy way, nothing strange. Everyone I talked to said some version of this,

that he wasn’t rage filled or vindictive. He was just sad.

72

conclusão da história narrada estabelece um ponto temporal em que o receptor pode

compreender uma totalidade inteligível da intriga e, consequentemente, gerar os sentidos

acerca do acontecimento midiatizado no podcast. Quando tratamos da conclusão da narrativa

de Serial não significa que há uma previsibilidade - inclusive Sarah Koenig deixa bem claro já

no começo da série que não é sua intenção solucionar o caso que envolve Adnan e Hae. Na

série guiada por Sarah Koenig, encontramos uma intriga que agrega vários episódios

sucessivos, uma narrativa com sua temporalidade própria, um tempo do mundo da vida que se

constitui de modo narrativo e que, ao alcançar a instância da recepção dos ouvintes da rede,

gera múltiplas leituras sobre o assassinato de uma jovem mulher, a acusação e condenação de

Syed, as falhas do sistema judiciário, as formas de relações sociais e a reflexão sobre o

sistema simbólico que envolve este acontecimento. Ao transformar este acontecimento em

discurso, a série transforma o caso em um acontecimento midiatizado, estabelecendo, na

dimensão simbólica, possíveis novos significados e interpretações.

O ciclo da mímesis se completa justamente com essas novas leituras que são realizadas

pelo ouvinte de Serial. É a partir desta integração ativa do receptor do podcast com a trama

narrada, desta interseção entre o mundo configurado e o mundo do ouvinte, que são geradas

as mais diversas interpretações acerca do acontecimento que envolve o assassinato da jovem

Hae Lee e a consequente condenação de Adnan Syed. Em nosso entendimento, é possível

observar a manifestação da mimese III da série jornalística a partir da repercussão nas redes

sociais digitais, nas quais o público consumidor do podcast gerou intensos debates a respeito

da história abordada.

Após a circulação do caso de Adnan pela rede digital, deu-se início a uma série de

discussões acerca deste acontecimento midiatizado. Exemplo disso está na ampla mobilização

dos receptores de Serial através de discussões nas redes sociais. Um exemplo de rede em que

se observou a manifestação da mimese III de Ricoeur foi o Reddit24

, na qual se encontram

mais de 50 mil25

usuários cadastrados somente para debater o podcast Serial e os impactos do

acontecimento da história de Adnan nos dias atuais.

O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do

caso de Adnan Syed, mesmo quase duas décadas depois de sua condenação. Com o sucesso

24 <http://www.reddit.com> é um site que funciona como uma rede social, na qual se estabelece as mais variadas

discussões em relação a qualquer conteúdo divulgado na Internet. Todos os posts de temáticas proposto por

algum usuário desta comunidade estão sujeitos a comentários e pontuação de outros que utilizam esta rede. Isso

define o posicionamento por relevância de debate no Reedit e, caso haja uma avaliação muito negativa na

pontuação, o post pode ser até mesmo excluído da página. 25

Dado extraído da página oficial de debate do podcast Serial no Reddit em

<http://www.reddit.com/r/serialpodcast>. Último acesso no dia 08/07/2017.

73

do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por milhões de pessoas ao redor do

mundo. A transformação do acontecimento em discurso gerou impacto nos dias atuais após a

reverberação da série jornalística pelas redes. Em menos de dois anos após a divulgação do

podcast, um novo acontecimento emergiu na dimensão do mundo da vida: um novo

julgamento foi autorizado pela justiça do Estado de Maryland (EUA), 16 anos após Adnan

Syed ser preso.

Em 2010, a defesa de Adnan Syed havia entrado, pela primeira vez após a

condenação, com uma petição à Justiça do Estado de Maryland, com o intuito de obter um

novo julgamento. Em dezembro de 2013, a Justiça norte-americana deu uma resposta negativa

ao recurso. Após a divulgação de todos episódios da série jornalística nas redes sociais

digitais, um novo advogado de Adnan entrou com uma segunda petição em novembro de

2015, sendo que novas provas começaram a ser apresentadas em fevereiro de 2016. A defesa

argumentou que a advogada Cristina Gutierrez, que o defendera anteriormente, havia sido

negligente com seu cliente. Com as novas argumentações apresentadas pela nova equipe de

defesa de Adnan, o juiz responsável pelo caso, o mesmo que havia negado o recurso em 2013,

decidiu reabrir o processo. Assim, no dia 30 de junho de 2016, a Justiça de Maryland

concedeu a Adnan Syed, hoje com 36 anos e preso desde os 19, o direito a um novo

julgamento. No dia 5 de julho de 2016, após a decisão da Justiça de Maryland, Sarah Koenig

escreveu um relato no blog oficial de Serial (KOENIG, 2016) em que conta que, após a

divulgação de um episódio da série, Adnan ainda estava otimista, mesmo com o recurso

negado pelo juiz em 2013, sendo que ele ainda acreditava que se alguém investigasse o seu

caso mais a fundo poderia ter novas chances. E, segundo a narradora, foi exatamente o que

aconteceu, já que após a divulgação desta conversa por telefone com Adnan, muitas pessoas,

como repórteres, advogados, detetives e outros especialistas se interessaram pelo caso, e mais

adiante o juiz Welch também deu uma segunda chance e reavaliou as novas argumentações da

defesa de Adnan. É inegável que a ampla construção de sentidos das mediações em torno de

Serial (o que se pode associar à noção da mimese III de Ricoeur) foi um dos fatores

determinantes para a emergência deste novo acontecimento na dimensão do mundo da vida.

Os modos como se desenvolve a ampla produção de sentidos são nosso objeto de

principal de atenção, em busca de entender como o acontecimento em destaque na série

jornalística de Serial é transformado em discurso jornalístico (acontecimento midiatizado),

circula por meio do microdispositivo podcast e faz emergir diversas leituras e interpretações

pelo seu público nas redes sociais digitais. Assim, a análise dessa dissertação consistirá na

forma como este acontecimento foi configurado em uma narrativa e na relação entre a

74

emergência de um novo acontecimento (novo julgamento de Adnan após quase duas décadas

da condenação e após repercussão de Serial) e a ampla negociação de sentidos percebida entre

os receptores das redes sociais digitais. No entanto, faz-se necessário uma revisão teórica

sobre a noção de acontecimento, os discursos que sobre ele são construídos e sua relação com

a tríplice mimese de Paul Ricoeur, antes de iniciarmos nossa análise nas instâncias de

produção e de recepção do podcast Serial.

4.3 A construção do acontecimento

Compreender o conceito de acontecimento nos ajuda a entender como este se constitui

em um elemento fundamental de composição dos enunciados jornalísticos. Tal conceito se faz

presente nas reflexões do sociólogo francês Louis Quéré (2012) sobre a dupla vida do

acontecimento. O sociólogo define o acontecimento como aquilo que sobressai, o que vem a

ser, o devir, ou seja, são fatos que provocam ruptura na ordem mundana, introduzem uma

diferença e geram sentidos. O autor ressalta que só é possível descrevê-lo e narrá-lo ao

delimitar um começo e um ponto final, o que significa formulá-lo como intriga. Importante

ressaltar que a primeira vida diz respeito ao acontecimento em sua essência, porém Quéré

pontua que apesar de uma mudança existencial se caracterizar como um vir a ser, não

significa que esta mudança na ordem da vida seja um acontecimento propriamente dito, pois

para se transformar em um acontecimento é necessário que esta ocorrência mundana seja

objeto de atenção para um observador no entorno e que se transforme alvo de observação por

meio de investigação e julgamento.

Quéré identifica então o acontecimento-existencial (mudanças produzidas no nosso

entorno) e o acontecimento-objeto (referentes à consciência, pensamento, discurso,

investigação e julgamento) e defende que ambas as formas coexistem na experiência prática

humana. Isso significa que qualquer acontecimento-existencial tem potencial para ser

convertido em objeto de julgamento, o que possibilita aos atores sociais intervirem no curso

destes acontecimentos, amenizando ou expandindo seu impacto na dimensão da vida em que

tal ocorrência irrompeu. Para o autor francês, isso demonstra que o mundo não se constitui de

forma puramente substancial, mas sim de processos e emergências.

A segunda vida diz respeito, portanto, ao potencial da comunicação em transformar as

características imediatas do acontecimento em objeto de julgamento, produzindo

conhecimento a partir de investigação. A transformação do acontecimento em discurso pode

75

ser responsável pela mudança de patamar do acontecimento existencial (o acontecimento na

sua essência) para um objeto com significados, por meio da análise da natureza, relações com

outros acontecimentos e suas consequências.

Os acontecimentos são transformados em objetos, em coisas com significado. [...]

Além de sua existência original, eles são submetidos a uma experimentação como

ideias: seus significados podem ser combinados e reorganizados ilimitadamente pela

imaginação, e o resultado dessa experimentação interna que é o pensamento pode

entrar em interação com os acontecimentos em estado bruto e não tratados.

Desviadas da torrente rápida e tonitruante dos acontecimentos para um canal calmo

e tranquilo, as significações juntam-se ao fluxo principal, dando-lhe um colorido,

moderando seu ritmo, adaptando-se a seu curso [...] (DEWEY apud QUÉRÉ, 2012,

p.31, grifos do autor).

Ainda de acordo com Quéré, a metamorfose do acontecimento existencial em discurso

faz com que ele adquira novos modos de operação e novas características. Os acontecimentos-

objetos são considerados pelo autor agentes da história a ser narrada. O sentido de um

acontecimento, portanto, se define não só pelo o que o condicionou, como também pela forma

como ele se conecta com outras circunstâncias e situações do mundo da vida. Antecipar as

consequências de um acontecimento só é possível parcialmente, pois é necessário acompanhar

a evolução de uma situação ao transformá-la em narrativa, o que ocorre por meio de

operações de investigações que irão produzir conhecimento acerca de determinado

acontecimento.

Ao reforçar a percepção do sociólogo francês, Vera França (2012), aponta a mídia

como um espaço no qual os acontecimentos podem tanto emergir e se produzir em sua

condição existencial, quanto ganhar uma segunda vida e utilizarem este espaço para serem

repercutidos e adquirirem uma dimensão simbólica.

(...) quando falamos na segunda vida do acontecimento, ou seja, do momento em

que ele ganha uma existência simbólica e se transforma em discurso, podemos

constatar que isto pode se dar tanto nas rodas de conversa quanto nas esferas

midiáticas. Contudo, dando-nos conta de que a mídia é a instituição central pela qual

a sociedade fala de si mesma, a si mesma, forçoso é constatar que é principalmente

neste domínio que os acontecimentos são revividos e ganham sua existência

simbólica. E às vezes essa segunda vida é tão transformadora, e causa tanto impacto,

que ela atua igualmente (e novamente) como acontecimento existencial – este, por

sua vez, será comentado, e se transformará, de novo, numa segunda vida, numa

espiral crescente (FRANÇA, 2012, p.16).

Um acontecimento em sua essência traz marcas do que já foi vivido em outras

situações, ou seja, ele integra o repertório de quem é atingido (de forma direta ou indireta)

pela ocorrência. Quando se vivencia uma situação ou circunstância marcante na ordem

cotidiana, são as imagens simbólicas registrada em nosso repertório que permitem que se

estabeleça a conexão entre os diversos acontecimentos que irrompem na dimensão da vida. E

76

isto demonstra como essas duas vidas coexistem, gerando um ciclo em espiral, como

apontado por França (2012), pois, da mesma maneira, o acontecimento simbólico

(configuração narrativa) também apresenta marcas do que já foi vivido, já que a experiência

do narrador também é traduzida dentro da forma discursiva de uma ocorrência da vida.

O pesquisador português Adriano Duarte Rodrigues (1993) também envereda pela

discussão do acontecimento e sua transformação em discurso com maior ênfase no campo do

jornalismo. O autor apresenta em seus estudos os conceitos de acontecimento e meta-

acontecimento. Antes de abordar a relação com as narrativas jornalísticas, Rodrigues traz

primeiramente a definição de acontecimento como “tudo aquilo que irrompe na superfície lisa

da história de entre uma multiplicidade aleatória de fatos virtuais” (RODRIGUES, 1993,

p.27).

Ao aplicar este conceito no discurso jornalístico, o autor considera o acontecimento

como uma espécie de ponto zero da significação, que constitui o referente a partir do qual se

elabora uma construção narrativa. O acontecimento jornalístico é considerado pelo

pesquisador inversamente proporcional à sua probabilidade de ocorrência, pois quanto menos

previsível for, maiores serão as chances de integrar esta categoria discursiva. Assim, a função

deste tipo de narrativa é a de enquadrar e regular o imprevisível, uma forma de racionalizar o

que de irracional pode acontecer. O que parece uma contradição é, na verdade, responsável

por dar forma e gerar sentidos às inúmeras ocorrências que emergem na ordem do cotidiano.

Adriano Rodrigues chama a atenção para a emergência de uma segunda categoria de

acontecimentos no mundo em que vivemos: os meta-acontecimentos, os quais surgem pela

tessitura do discurso jornalístico. Este tipo de discurso funciona como um dispositivo de

visibilidade universal, no qual se garante a notoriedade do mundo da experiência das pessoas,

das coisas, das instituições. O autor define os meta-acontecimentos como fatos discursivos, e,

portanto, inscritos na ordem da visibilidade simbólica da representação cênica. “São factos

discursivos e, como tais, associam valores ilocutórios a valores perlocutórios, na medida em

que acontecem ao serem enunciados e pelo facto de serem enunciados” (RODRIGUES, 1993,

p. 29-30). O meta-acontecimento se concretiza por meio da realização técnica das instâncias

enunciativas que associam o sujeito e o objeto da enunciação, sendo, pois, “um discurso feito

ação e uma ação feita discurso” (RODRIGUES, 1993, p.30).

Afirmar que o meta-acontecimento realiza um ato ilocutório significa que através do

acontecimento relatado, os media produzem um novo acontecimento que também integram o

mundo da vida. Um relato não se trata de uma mera locução, ele é elaborado a partir de um

acontecimento existencial e, após sua circulação, pode retornar como uma nova ocorrência

77

envolvendo diversos atores sociais. Importante ressaltar que este ato apresenta valores

inerentes ao discurso que integram a enunciação, tais como credibilidade relacionada à

instância responsável pela locução, clareza dos fatos expostos no relato, coerência de

argumentação, capacidade de satisfação ao produzir esclarecimentos acerca de um fato. Todos

esses valores são inseparáveis do discurso proferido pelo meta-acontecimento e são

responsáveis pela significação gerada ao alcançar a instância da recepção. Além do ato

ilocutório, o meta-acontecimento também associa o ato perlocutório, o que significa a

produção de um novo estado das coisas ao se realizar uma enunciação. Não se tratam de

meras constatações do estado dos fatos relatados que passarão por uma verificação, e sim, de

enunciações que geram significações apenas pelo fato de enunciarem, produzindo um novo

estado de existência, caracterizando o próprio discurso midiático como um acontecimento

existencial. Isso demonstra como a esfera midiática exerce um poder transformador no mundo

por meio dos atos ilocutórios e perlocutórios de suas enunciações, podendo a partir dos meta-

acontecimentos produzidos gerar novos acontecimentos existenciais que retornam e causam

novos impactos na sociedade.

O conceito de meta-acontecimento possui estreita relação com as reflexões de Louis

Quéré sobre a transformação do acontecimento em objeto de investigação e julgamento. A

série jornalística do podcast Serial nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre as

circunstâncias em que o relato sobre o acontecimento parece se autonomizar em relação a

este, gerando novos acontecimentos, agora de natureza midiática. Ao transformar este

acontecimento em um meta-acontecimento por meio da construção do podcast, a série

institui-se e transforma o caso em um acontecimento midiatizado, estabelecendo, na dimensão

simbólica, possíveis novos significados e interpretações que assim não se deram à época do

assassinato.

A delimitação de um acontecimento para transformá-lo em narrativa está diretamente

ligada à temporalidade que a envolve. A construção de uma narrativa jornalística que elabora

um meta-acontecimento configura uma quebra no tempo linear, uma vez que ao circular em

nosso presente, o acontecimento discursivo também convoca um passado e também influencia

e ressignifica o futuro.

Quando Quéré (2012) afirma que narrar um acontecimento significa formulá-lo como

intriga delimitando um começo e um ponto final, nota-se a importância da instância temporal,

que será responsável por delimitar séries ou ciclos, atribuindo um desenvolvimento entre o

início e o fim da narração configurada. No caso do jornalismo, essa articulação do tempo em

um modo narrativo não é diferente. As narrativas jornalísticas, embora se constituam a partir

78

de modos bem particulares de tornar conhecidos os acontecimentos, são também formas de

atualização e, ao mesmo tempo, de registro histórico ao narrar as ações humanas no cotidiano.

Ressaltamos aqui a relação temporal que o sociólogo francês destaca como uma das

características do acontecimento. Para Louis Quéré, a narração de um acontecimento pode

modificar o passado, já que o presente (momento em que o acontecimento existencial se

transforma em acontecimento-objeto) também sofreu alterações com a configuração da

narrativa e seu alcance aos receptores. Então, o passado começa a ser re-visto de um novo

ponto, já que o acontecimento narrado busca investigar o que provocou e condicionou o

acontecimento existencial e assim, cria um futuro, pois há um interesse nas consequências de

sua reaparição e como ela vai gerar novos significados aos receptores.

Um acontecimento do passado - o assassinato da jovem Hae Lee nos Estados Unidos

em 1999 e a condenação à prisão perpétua de seu ex-namorado, Adnan Syed – conduz a

narrativa jornalística do podcast Serial, que constrói um tempo narrativo que faz um resgate

da história de uma ruptura de um cotidiano de quase duas décadas atrás e o desloca para o

presente dos receptores-usuários, ou seja, o podcast reagenda o acontecimento do assassinato

no tempo atual. Retomando a definição da tríplice mimese, para os sentidos desta história se

definirem, é também essencial, que os acontecimentos sejam percebidos a partir da tessitura

da intriga que os constituem.

Se o tempo é um dos elementos fundamentais de referência para a narrativa, ao

coordená-lo com a noção de intriga, evidencia-se que, na narrativa, o tempo não

corresponde necessariamente ao do acontecimento. O tempo passa a ser o da própria

narrativa, de que pode valer-se o narrador de estratégias que permitam alongar ações

que no acontecimento tiveram pequena importância, encurtar ações que duraram

mais do que sugere o tempo utilizado para narrá-las, fazer remissões ao passado,

assim como projeções no futuro, dentre uma série de outros expedientes

(CARVALHO, 2012, p.173).

No momento em que o acontecimento é inserido em uma narrativa jornalística, a

ruptura do cotidiano a que ele se refere é recontextualizada em uma dimensão com outros

novos significados. De acordo com Elton Antunes (2009), a transformação do acontecimento

em acontecimento jornalístico demanda a construção de um discurso que gera sentidos a partir

de um enredamento de causas, objetivos, motivos e sujeitos da ação. No caso de Serial, cabe

lembrar que o efeito de “presentificação” parece estabelecer uma circunstância ainda maior de

complexidade para pensarmos todo esse processo. Mais de uma década e meia depois, a série

de reportagens retoma um acontecimento cuja história, mesmo para a sociedade já, em

termos, havia chegado ao fim. Serial não apenas efetua um trabalho de significação em

termos de uma textualidade jornalística do acontecimento e seus detalhes, e também em

79

termos de suas ausências de uma “verdade”, mas atua no sentido de fazer voltar ao que

Charaudeau (2006b) denomina de macrodispositivo conceitual da informação, ou seja, a

própria agenda pública, o caso do assassinato da jovem Hae Min Lee.

A relação entre temporalidade e construção do acontecimento no microdispositivo

podcast se diferencia dos meios massivos de comunicação. O teórico francês Jean-Louis

Weissberg (2004) questiona a cultura do tempo real, da instantaneidade e velocidade da

informação com a predominância da teleinformática26

. Para o autor, as teletecnologias

modificam o regime temporal, uma vez que estas mídias digitais exigem uma atenção própria

no tratamento da informação, com formas que podem demandar uma maior durabilidade e

detalhamento em oposição ao fluxo informacional da objetividade e velocidade do “tempo

real”. Weissberg ressalta que as atividades comunicacionais não giram totalmente em torno da

programação de um fluxo independente de produtores de conteúdo, pois as teletecnologias

conectadas às redes dependem muito mais do jogo da interação dos seus usuários do que os

meios massivos. Assim, apesar da agilidade que as teletecnologias propiciam ao tratamento da

informação, a sua apropriação fica mais lenta. A onipotência do imediatismo do regime

temporal que caracteriza a teledifusão de textos, sons e imagens não é mais predominante nas

mídias digitais, ela cede lugar a regimes de difusão de informação e conhecimento que

privilegiam o tempo diferido, variabilidade de durações e espaço para atuação do receptor-

ativo que estabelecerá interações com outros receptores a partir do conteúdo que circula nas

redes.

Com a postura interativa, já se viu, o transporte imaginário articula-se mais

nitidamente com as dimensões corporais (encadeamentos de gestos, de visão, de

audição próprios do exercício da interação). No universo das narrações interativas,

por exemplo, os transportes obrigam o espectador-ator a tomar-se como objeto de

questionamento, convocam-no à escolha, à decisão, ou ainda à exploração da tela,

tudo isso ordenado por um motor narrativo que organiza a pluralidade dos percursos

possíveis. Essa confrontação faz alternarem as fases de adesão/penetração na

narração e de descolamento – pesquisa cega por cliques exploratórios – ou de

tomada de decisão em uma série explícita de encadeamentos possíveis. Todas essas

posturas provocam uma interpelação muito mais clara que na narração audiovisual e

dão um novo vigor à duração local (WEISSBERG, 2004, p.127-128).

Essa forma de temporalidade exposta por Weissberg se alinha com a temporalidade

verificada na construção do acontecimento do podcast Serial. A constituição narrativa – desde

sua pré-configuração do mundo da ação, configuração poética da intriga e construção de

sentido na instância da recepção dos ouvintes das redes digitais – acerca do acontecimento do

26 Em seus estudos, Jean-Louis Weissberg determina o vocábulo teleinformática como “as incidências culturais

das tecnologias intelectuais atuais baseadas na programática (disponibilidade e difusão de programas

informáticos) e a telepresença” (WEISSBERG, 2004, p.113).

80

assassinato de Hae Lee e a condenação de Adnan Syed, ao circular pelas redes sociais digitais

demonstra a força do jogo de interação estabelecido na instância da recepção. O

microdispositivo podcast e sua forma de circular e reverberar pelas redes sociais digitais se

insere em um regime temporal que vai na contramão da alta velocidade do “tempo real”, com

a apropriação mais lenta do conhecimento e da informação, o que permitiu o debate mais

duradouro entre os ouvintes e usuários das mídias sociais digitais junto com a extensão deste

debate para outros meios de comunicação e pela sociedade.

4.4 Da construção do acontecimento à mimese III

No intuito de verificar como se deu a construção de sentidos nas instâncias de

recepção do podcast Serial, vamos analisar, juntamente com a construção discursiva da série

jornalística, o conteúdo das interações entre os receptores-usuários nas redes sociais digitais

(mimese III) e como estas múltiplas interpretações geraram impacto a ponto de movimentar o

ciclo espiral crescente do acontecimento (meta-acontecimento permitindo a emergência de

novos acontecimentos). Tal análise irá articular todos estes elementos teóricos, porém antes

de iniciá-la é importante fazer a articulação da noção de mimese III de Paul Ricoeur com a

construção do acontecimento trabalhada por Louis Quéré e Adriano Rodrigues.

No encadeamento de nossa reflexão, optamos por conectar a estrutura temporal do

triplo presente e a temporalidade das teletecnologias defendida por Weissberg (2004) às

mimeses de Ricoeur (2010), ao considerarmos o tempo em que se deu o acontecimento

enunciado no podcast – o assassinato da jovem Hae Lee em 1999 e a consequente acusação e

prisão de Adnan em 2000 – e sua constituição narrativa através da própria criação da série por

Sarah Koenig e sua equipe de produção. Neste ponto, percebemos a relação do tempo com a

mimese I - contextualização social do mundo configurado - e mimese II - configuração da

narrativa e papel mediador para o acontecimento avançar para a mimese III. Esta articulação

entre tempo e acontecimento nos mostra o caminho para a terceira mimese, na qual são

geradas as mais variadas leituras e novos debates pelos receptores-usuários, sendo estes

responsáveis pelas diversas formas de ressignificação deste acontecimento abordado nesta

série jornalística.

As múltiplas leituras de Serial são percebidas por meio dos intensos debates nas redes

sociais, as quais, nitidamente, explicitam a comoção do público em torno de uma possível

inocência do acusado, já que muitos desses debates giram em torno da sentença de Adnan, da

81

forma como a justiça norte-americana o condenou à prisão perpétua e de como o público

clama por uma investigação mais justa no intuito de esclarecer as circunstâncias do

assassinato de Hae Lee. Este processo da mimese III - instância relativa à recepção do público

repercutindo Serial nas mídias sociais – vincula-se à temporalidade de Weissberg que permite

intensos debates, apreensão da informação em detalhes e do conhecimento gerado em torno

do acontecimento midiatizado por meio das trocas de conhecimento exercidas na interação.

Louis Quéré nos aponta o caminho para esta articulação entre meta-acontecimento e

mimese III e envereda por essa discussão ao abordar o potencial do meta-acontecimento em

gerar sentidos e, a partir de sua ressignificação pela instância de recepção, ser responsável por

novos acontecimentos que retornam na atualidade em que se insere a narrativa.

(...) o acontecimento-objeto pode retornar no fluxo dos acontecimentos e no

desenrolar das situações a partir do conhecimento adquirido sobre suas condições e

consequências, a partir das modificações suscitadas nos hábitos e comportamentos,

nas instituições ou nos dispositivos de proteção e regulamentação, a partir de

formulação de novas perícias, etc. Ele desempenha uma função de mediação, à

maneira de Mimésis 2, na tríplice Mimésis de Ricoeur (QUÉRÉ, 2012, p.34).

Após a circulação do meta-acontecimento nas mídias digitais e a sua repercussão entre

os receptores-usuários, observou-se, mais de um ano após a divulgação de Serial, a

autorização pela Justiça de Maryland (EUA) de um novo julgamento para Adnan Syed. Esta

emergência de um acontecimento existencial após o meta-acontecimento causou novamente

forte reação dos receptores nas redes sociais diante do novo rumo da história. No dia 30 de

junho deste ano, o perfil oficial de Serial no Twitter27

publicou a informação: “Um novo

julgamento foi concedido a Adnan Syed. Veja a ordem do juiz Welch”28

. A partir desta

publicação nas redes sociais é possível perceber a forte comoção do público que começa a

debater as possibilidades em torno deste novo acontecimento. Somente este post do perfil de

Serial no Twitter recebeu mais de 7 mil retweets e mais de 9 mil curtidas pelos usuários da

rede.

E pelos debates que se estendem após esta publicação do dia 30 de junho, pela web,

podem ser observadas as mais variadas reações acerca deste novo julgamento, como pessoas

que acreditam que a investigação deve ser refeita, mas não necessariamente o acusado é

inocente, além dos que acham injusta essa nova decisão, pois mesmo com os métodos de

acusação questionáveis não há outro desfecho possível para o assassinato da jovem Hae Lee.

27 O perfil oficial do podcast Serial no Twitter está disponível em http://twitter.com/serial 28

Tradução nossa do tweet do perfil oficial do podcast: Adnan Syed has been granted a new trial. Judge

Welch's order: http://bit.ly/295ZbDn

82

No mesmo dia, a usuária @KSofen respondeu ao perfil de @serial: “Absolutamente

absurdo. O cara é totalmente culpado. Vivacidade ilusória e dúvidas irracionais não servem de

base para novo julgamento”29

. O debate se estende após este tweet de @KSofen. A usuária

@permafrost1979 é um exemplo de quem defende um novo julgamento sem necessariamente

considerar Adnan inocente, já que publicou em resposta a @KSofen o seguinte tweet:

“mesmo que ele seja [culpado], o primeiro julgamento foi mal conduzido. Se ele é ‘totalmente

culpado’ deixa o Estado de Maryland provar isso”30

. Em outro tweet a usuária continua sua

argumentação: “só porque nós não conseguimos pensar em outro suspeito plausível, não

significa que Adnan seja culpado”31

.

Outra demanda dos receptores-usuários de Serial pelas redes é que esse novo

acontecimento também se transforme em um acontecimento discursivo, ou seja, ao tomarem

conhecimento do novo julgamento de Adnan, o público da série jornalística começa a pedir à

equipe de Sarah Koenig para acompanhar o desenrolar do caso através de uma possível

cobertura pelo podcast. O usuário @wolwerine6523 publicou em seu perfil: “vocês precisam

cobrir isso, por favor”32

. Outro exemplo está no tweet do usuário Jonathan of Makati

(@Globesvcs) “Por favor Sarah Koenig! Precisamos de episódios de sequência”33

.

O grande envolvimento do público com esta série certamente impactou o curso do

caso de Adnan Syed, mesmo quase duas décadas depois de sua condenação. Com o sucesso

do podcast, a história de Adnan se tornou conhecida por milhões de pessoas ao redor do

mundo. Por isso, o percurso metodológico a ser seguido na análise do objeto empírico desta

dissertação envolverá, no próximo capítulo, o processo de complexificação do acontecimento

no podcast, partindo da própria narrativa que substancia a série, passando pelos processos de

mediação e modos pelos quais esta circula e alcança seu público, gerando ressignificações e

mesmo novas dimensões simbólicas em torno do fato narrado, o que nos indica que, ao

observarmos tal processo comunicacional, é possível notar o surgimento de novos

acontecimentos de natureza não discursiva motivados pela recepção construtiva a que foram

29 Tradução nossa do tweet da usuária do Twitter, Karla (@KSofen), no dia 30/06/2016: @serial Absolutely

absurd. The guy is as guilty as it gets. Misleading vividness and unreasonable doubts no grounds for new

trial. 30

Tradução nossa do tweet da usuária do Twitter, A R (@permafrost1979) em resposta a @KSofen, publicado

no dia 01/07/2016: @KSofen @serial even if he is, the first Trial was botched. if he’s “as guilty as it gets”, let

the State of Maryland prove it. 31

Tradução nossa do segundo tweet da usuária @permafrost1§979 dando continuidade ao debate com @KSofen:

just cuz we can’t think of another plausible suspect, doesn’t mean Adnan is guilty. 32

Tradução nossa do tweet do usuário do Twitter @wolwerine6523, publicado no dia 30/06/2016: @serial you

guys need to cover this please!! 33

Tradução nossa do tweet do usuário do Twitter @GlobeScvs, publicado no dia 30/06/2016: Please Sarah

Koenig! There has to be follow up episodes!!!

83

submetidos os meta-acontecimentos e que impactam a construção da realidade no tempo

presente.

84

85

5 ACONTECIMENTO, NARRATIVA E REVERBERAÇÕES EM SERIAL

O estabelecimento do percurso metodológico de uma pesquisa requer, tão logo

possível, a definição dos principais elementos que o circunstanciarão, a saber, os operadores

conceituais, a delimitação do corpus e as respectivas categorias de análise, iluminados pelas

definições acerca da natureza da pesquisa em desenvolvimento. No caso desta dissertação,

entendemos que se trata de uma pesquisa de caráter qualitativo, que tem como objetivo buscar

compreender os modos e estratégias da construção de sentido que emergem a partir da

produção e circulação da narrativa do podcast Serial e sua consequente reverberação por meio

das interpretações construídas pelos receptores-usuários das redes sociais digitais. É

importante ressaltar que, para completar o ciclo de nossa análise, também será observada a

possível relação da emergência de um novo acontecimento no mundo cotidiano (autorização

de novo julgamento de Adnan Syed em 2016) com a reverberação do meta-acontecimento (o

podcast Serial).

5.1 Considerações metodológicas

Consideramos este trabalho um estudo de caso, na perspectiva de Duarte (2005), para

quem este método, considerado de natureza qualitativa, investiga um fenômeno

contemporâneo dentro de um contexto da vida real. A autora ainda afirma que as questões

mais apropriadas para este tipo de estudo são as do tipo como e por quê. E a partir destas

questões, este método auxilia a definir as evidências relevantes para se estabelecer as

unidades de análise do caso e assim, produzir as inferências necessárias para a pesquisa.

Tratar nossa investigação como um estudo de caso nos auxilia a interpretar o podcast Serial e

contextualizá-lo dentro do pensamento comunicacional, além de auxiliar na elaboração das

categorias que serão detalhadas adiante.

Nosso estudo de caso, portanto, tem natureza qualitativa na concepção ressaltada por

Lucia Santaella (2001), que aponta como principal característica desta modalidade a

investigação e interpretação das significações produzidas acerca de atos e práticas sociais.

Para Santaella, tais pesquisas abarcam um grande número de divisões e subdivisões, porém,

mesmo com toda essa diversidade, elas apresentam como ponto em comum a

interdependência entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a subjetividade do sujeito,

privilegiando assim a interpretação dos dados analisados.

86

A abordagem de nosso objeto empírico - a primeira temporada do podcast Serial –

percebendo-o como um meta-acontecimento (RODRIGUES, 1999), ou seja, aquilo que, ao se

constituir narrativamente pela mediação entre tempo e tessitura da intriga constrói um

enunciado que gera múltiplas ressignificações ao alcançar seu público, tem como ponto de

partida a metodologia operacional da Análise de Conteúdo (AC), acionada para buscarmos

responder a questão que determina o objetivo desta dissertação: como se dão os modos de

construção de sentidos em Serial, perspectivando-os a partir da relação das estratégias de

enunciação e das formas de recepção desta narrativa?

De acordo com Martin W. Bauer (2002), a AC é um método de análise de texto que se

desenvolveu no campo das ciências sociais empíricas. Tal técnica encontrou forte

acolhimento no campo comunicacional, sendo considerada uma técnica híbrida, que se utiliza

tanto do formalismo estatístico (quantificação de dados), quanto da análise qualitativa de

materiais.

A Análise de Conteúdo aplicada à pesquisa em comunicação corresponde então a uma

operação de investigação com o objetivo de formular inferências (dedução de maneira lógica)

referentes aos conhecimentos sobre a instância emissora e/ou sobre o destinatário de um

processo comunicacional, a partir da observação e tratamento de certos dados do objeto de

estudo organizados em categorias pré-estabelecidas no planejamento da pesquisa proposta.

Em suma, é possível estabelecer o percurso metodológico por meio das três etapas da

AC de acordo com Laurence Bardin (2016): a primeira fase diz respeito ao tratamento

descritivo do objeto; a segunda ao estabelecimento das categorias que permitem a organização

dos elementos constitutivos da mensagem analisada; e a terceira e última etapa do

procedimento diz respeito ao tratamento dos dados organizados nas categorias estabelecidas,

que induzirão às inferências e interpretações da realidade estudada.

A descrição do podcast Serial (capítulo 2) e a revisão teórica (capítulos 3 e 4)

estabelecida até este ponto nesta reflexão apontam para a relação das instâncias de enunciação

e recepção deste microdispotivo (CHARAUDEAU, 2006b) inserido no contexto das mídias

digitais, mais especificamente para a constituição narrativa de um acontecimento do passado

(assassinato de Hae Lee, investigação do crime e condenação de Adnan Syed) transformado

em um discurso jornalístico que circula pelas redes e que, ao alcançar os seus receptores-

usuários, é responsável pela produção de novos sentidos que não necessariamente se deram à

época deste acontecimento.

Para esta abordagem, que tem o objetivo de ir ao encontro da pergunta que move nossa

investigação, a saber, como ocorre a construção de sentidos neste processo comunicacional

87

proporcionado pelo microdispositivo, partimos de uma escuta exploratória do podcast. Tal

observação atenta à integralidade de Serial proporcionou-nos a possibilidade de selecionar

trechos da narrativa que consideramos os mais relevantes e representativos em termos das

questões que levantamos acerca do podcast. Tal processo foi fundamental para que

chegássemos à definição de nossas categorias analíticas. Assim, articulando nossa caminhada

em termos de reflexão conceitual com o mapeamento exploratório de nosso objeto, sob a luz

da hipótese que guiou essa investigação, estabelecemos a constituição de três categorias de

análise, por meio das quais procedemos a abordagem e interpretação deste podcast: a)

construção dos elementos narrativos – descrição, tematização, modos de locução, linguagem e

temporalidade do discurso; b) função do testemunho – como Sarah Koenig faz uso das

entrevistas, depoimentos e documentos para a tessitura da narrativa; e, por fim, c) ativação

dos lugares de fala – reflexão sobre como o discurso jornalístico da série é elaborado a partir

da função de locução da jornalista Sarah Koenig, como são acionados os depoimentos dos

entrevistados e como o discurso é direcionado aos seus destinatários pela ótica da narração.

Por fim, consideramos necessário ainda nos valermos da noção de radiofonia

expandida (KISCHINHEVSKY, 2014) e as possibilidades de práticas interacionais

proporcionadas pelo podcast inserido nesse novo cenário da comunicação radiofônica nas

plataformas digitais para se pensar na forma como o discurso jornalístico da série pode

impactar os receptores-usuários. Como o material de análise circula quase que em sua

totalidade nas mídias digitais, optamos por não nos deter numa visada mais clássica da AC e

acionar, em conjunção, uma metodologia da Análise de Conteúdo Digital, que, de acordo com

a proposição de Thaïs de Mendonça Jorge (2015), é uma adaptação da AC ao meio digital das

comunicações e se desenvolve principalmente pelo uso da rede mundial de computadores

como fonte de informação (uso de motores de busca) e pesquisa na Internet. A autora ainda

afirma que “as redes sociais já são dotadas de ferramentas que permitem fazer Análise de

Conteúdo e são um filão a mais para as pesquisas em Comunicação e no Jornalismo”

(JORGE, 2015, p.273). E é justamente com esse olhar para as redes sociais que procedemos a

esta análise aqui proposta em busca de compreender as práticas interacionais que emergem da

circulação do conteúdo radiofônico digital e a ressignificação do conteúdo enunciado no

podcast ao alcançar seu público, tomando como referência teórica a mimese III de Paul

Ricoeur (2010).

A observação das reverberações será feita no seguinte ambiente das redes sociais

digitais: o Reddit - uma rede social que funciona como uma comunidade virtual, na qual se

estabelece as mais variadas discussões em relação a qualquer conteúdo divulgado na Internet.

88

Todos os posts de temáticas proposto por algum usuário desta comunidade estão sujeitos a

comentários e pontuação de outros que utilizam esta rede. Isso define o posicionamento por

relevância de debate no Reedit e, caso haja uma avaliação muito negativa na pontuação, o post

pode ser até mesmo excluído da página. Por se tratar de uma rede com mais de 50 mil

usuários cadastrados34

somente para debater o podcast, vamos selecionar apenas uma

discussão compreendida em período próximo ao de divulgação de Serial (entre outubro e

dezembro de 2014) e com relevância de debate demonstrada pela pontuação dada pelos

próprios usuários desta rede.

5.2 A configuração narrativa em Serial

Entender as mediações que Serial estabelece com o conjunto social, a partir do seu

discurso jornalístico, passa pela compreensão da ampla negociação de sentidos que emerge

principalmente das práticas interacionais entre seus receptores-usuários em torno do

acontecimento midiatizado pela série jornalística. No entanto, para a compreensão de todo o

processo comunicacional que envolve a atividade mimética em torno da investigação do

crime da jovem Hae Lee em 1999, é preciso analisar a instância de recepção, entendida, claro,

em suas circunstâncias do ambiente digital, em conjunto com a enunciação do discurso e

iniciar a investigação proposta nesta dissertação a partir da configuração narrativa

estabelecida pelos profissionais da rádio pública WBEZ Chicago (a narradora Sarah Koenig e

a equipe de produção da série). Seguimos, então, para as três categorias analíticas que nos

auxiliarão a refletir sobre o processo de tessitura da primeira temporada da série jornalística.

5.2.1 A construção dos elementos narrativos

Ao compreendermos a narrativa da primeira temporada de Serial como um discurso

jornalístico, é possível analisar a transformação do acontecimento em meta-acontecimento por

meio da identificação de elementos vitais para o efeito de real desencadeado pelo processo

mimético da construção deste podcast. O elemento essencial para a configuração da trama de

Serial é a descrição, que é uma característica fundamental no discurso jornalístico para

representar uma realidade, ou seja, a descrição se apresenta como recurso fundamental do

34 Dado extraído da página oficial de debate do podcast Serial no Reddit em <www.reddit.com/r/serialpodcast>.

Último acesso no dia 08/07/2017.

89

desenrolar da atividade mimética – sendo resgatado aqui o conceito aristotélico de mimese

acionado por Ricoeur (2010), referente à imitação em seu sentido metafórico, como

representação de uma realidade.

Maurice Mouillaud e Jean-François Tétu (2013) destacam a importância do elemento

descritivo no discurso jornalístico ao afirmarem que “se a narrativa pode ser definida como o

‘sentido que se transforma’, a descrição é o momento em que a narrativa se detém para que o

sentido possa ser armazenado: a descrição é a memória da narrativa” (MOUILLAUD e

TÉTU, 2013, p.104). Em Serial, a descrição movimenta toda a estrutura narrativa, sendo que,

a todo momento, a narradora Sarah Koenig aciona este elemento para detalhar ambientes em

que se passa o acontecimento, fazer referências aos personagens envolvidos direta e

indiretamente na história que envolve o assassinato da jovem Hae Min Lee e a investigação

deste crime, indicar motivações psicológicas, criar imagens de ambientes em que se deram os

acontecimentos retratados na história, tudo isso no intuito de, enfim, demarcar signos que

constituem a temática abordada no podcast, funcionando como uma espécie de agente da

organização do discurso.

Pode-se, logo no primeiro episódio, observar o uso da descrição pelo simples relato na

voz narrativa da jornalista Sarah Koenig. A narradora expõe aos receptores-usuários do

podcast que havia tomado conhecimento do assassinato e a forma como foi conduzida a

investigação deste crime por meio de um email que recebeu da advogada de origem

muçulmana e amiga da família de Adnan Syed, Rabia Chaudry. Assim, logo no início do

episódio de abertura da série jornalística, Sarah Koenig faz um primeiro movimento descritivo

em sua locução aos ouvintes introduzindo detalhes sobre o acontecimento que irrompeu no

cotidiano dos moradores e familiares dos jovens estudantes de um condado em Baltimore

(EUA), já acionando neste trecho da narrativa as características de uma das principais

personagens da história e os elementos temporais, ao trazer para o presente em que se dá o

discurso do podcast os hábitos da jovem Hae Lee.

Quase 15 anos atrás, no dia 13 de janeiro, 1999, uma garota chamada Hae Min Lee

desapareceu. Ela era uma veterana no colégio Woodlawn no condado de Baltimore

em Maryland. Ela era coreana. Ela era inteligente, e bonita, e alegre, e uma

excelente atleta. Ela jogava hóquei e lacrosse. E ela era responsável. Logo após a

escola ela deveria buscar a sua prima pequena no jardim de infância e deixá-la em

casa. Mas ela não apareceu. Foi quando a família de Hae Lee sabia que alguma coisa

tinha acontecido, quando a escola da prima telefonou. Cerca de um mês depois, no

dia 9 de fevereiro, o corpo de Hae foi encontrado em um grande parque em

Baltimore. Um homem da manutenção, que disse que tinha parado para urinar

quando estava no caminho para o trabalho, a descobriu lá. Ele tinha notado um

pedaço do cabelo preto dela saindo pra fora de uma cova rasa. A causa da morte foi

por estrangulação manual, o que significa que alguém fez com as próprias mãos.

Algumas semanas após isto, seis semanas depois que ela desapareceu, o ex-

90

namorado de Hae, um rapaz chamado Adnan Syed, foi preso pelo assassinato dela. Ele está na prisão desde então. Eu soube desta história pela primeira vez há mais de um ano, quando eu recebi um email de uma mulher chamada Rabia Chaudry. Rabia conhece Adnan muito bem. Seu irmão mais novo Saad é o melhor amigo de Adnan. E eles acreditam que ele é inocente (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01,

tradução nossa).35

A narrativa jornalística da primeira temporada de Serial se desenvolve, então, a partir

da compreensão da apresentadora Sarah Koenig de que a história da qual ela toma

conhecimento por meio da advogada Rabia Chaudry apresenta um acontecimento do passado

com elementos passíveis de investigação no tempo presente em que se produz o podcast.

Conforme citado no capítulo 2 desta dissertação, a acusação foi construída principalmente

com base no depoimento de Jay, um colega de escola, que afirmou em vários depoimentos à

polícia e à Justiça de Maryland (EUA) que Adnan havia planejado o crime. Apesar do

testemunho de Jay, Adnan alega inocência. Sarah Koenig relata, então, sua ida até o escritório

da advogada muçulmana no intuito de entender melhor os detalhes da forma que o Estado

condenou Adnan à prisão pérpetua. Koenig percebe neste primeiro encontro com Chaudry que

ali havia motivos suficientes para iniciar sua investigação jornalística, já que os conflitantes

depoimentos de Adnan e Jay não esclareciam certos aspectos que envolviam o assassinato da

adolescente.

No momento em que eu saí do escritório da Rabia naquele primeiro dia, eu entendi uma coisa claramente, embora talvez não seja o que Rabia e Saad [irmão de Rabia] quisessem que eu entendesse. Mas o que eu tirei de lição da visita foi que alguém estava mentindo aqui. Talvez Adnan seja realmente inocente. Mas e se ele não for? E se ele realmente fez isso, e tem todas essas pessoas boas pensando que ele não fez? Então ou é o Jay ou é o Adnan. Mas alguém está mentindo. E eu realmente

quero descobrir quem (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01, tradução nossa).36

A construção descritiva da estrutura de uma narrativa jornalística exige ideais de

objetividade na seleção dos acontecimentos e na escolha de personagens e fontes que lhe dão

35 Almost 15 years ago, on January 13, 1999, a girl named Hae Min Lee disappeared. She was a senior at

Woodlawn High School in Baltimore County in Maryland. She was Korean. She was smart, and beautiful, and

cheerful, and a great athlete. She played field hockey and lacrosse. And she was responsible. Right after school

she was supposed to pick up her little cousin from kindergarten and drop her home. But she didn't show. That's

when Hae Lee's family knew something was up, when the cousin's school called. About a month later, on

February 9, Hae's body was found in a big park in Baltimore, really a rambling forest. A maintenance guy who

said he'd stopped to take a leak on his way to work discovered her there. He'd noticed a bit of her black hair

poking out of a shallow grave. The cause of death was manual strangulation, meaning someone did it with their

hands. A couple weeks after that, so six weeks after she first went missing, Hae's ex-boyfriend, a guy named

Adnan Syed, was arrested for her murder. He's been in prison ever since. I first heard about this story more than

a year ago when I got an email from a woman named Rabia Chaudry. Rabia knows Adnan pretty well. Her

younger brother Saad is Adnan's best friend. And they believe he's innocent. 36

By the time I left Rabia's office that first day, I understood only one thing clearly, though maybe not the thing

Rabia and Saad wanted me to understand. But what I took away from the visit was, somebody is lying here.

Maybe Adnan really is innocent. But what if he isn't? What if he did do it, and he's got all these good people

thinking he didn't? So either it's Jay or it's Adnan. But someone is lying. And I really wanted to figure out who.

91

sentido para garantir a credibilidade de um conteúdo e o seu efeito de real, o que significa que

não há espaço para recursos imaginativos que preenchem lacunas no resgate de

acontecimentos. Na primeira temporada de Serial, observamos que a configuração do

enunciado obedece aos princípios de narração fidedigna do acontecimento ao acionar

entrevistas de colegas, amigos e familiares de Hae e Adnan, profissionais e especialistas que

analisam o caso, além do uso de documentos e relatórios ligados à investigação do crime.

No entanto, é importante destacar que há espaço para recursos de ficcionalização na

composição estrutural do enunciado do podcast. O principal deles é como Serial se estrutura,

já que a narrativa se desenvolve em 12 episódios de linguagem sonora que totalizam uma

duração de aproximadamente 10 horas. Esta divisão em capítulos remete à influência da

literatura realista no jornalismo, permitindo que o enunciado do podcast seja elaborado com

investigação mais rigorosa e aprofundada.

Os episódios organizam a descrição do acontecimento pela separação de temas que

apresentam vários aspectos do caso abordado na narrativa. Um importante exemplo é o

primeiro episódio, entitulado O Álibi, em que o tema abordado diz respeito a uma colega de

escola de Adnan – Asia McLain – que poderia ser um possível álibi em seu julgamento, já que

ela lembrava ter conversado com o rapaz na biblioteca da escola no horário em que Hae foi

assassinada. O episódio 2, denomindado O Fim do namoro, aborda o relacionamento de

Adnan e Hae e os motivos que levaram a separação do casal. O terceiro episódio retrata sobre

como o corpo de Hae foi encontrado e no quarto capítulo, Sarah relata como os detetives

responsáveis pelo caso realizaram a investigação e aponta quais são as inconsistências da

acusação construída, destacando as constantes mudanças dos depoimentos de Jay, a principal

testemunha do crime, que foi vital para a condenação de Adnan. Outro exemplo de recorte

temático está no episódio 6, em que são analisadas todas as evidências circunstanciais

utilizadas pela acusação do Estado contra Adnan. No décimo episódio, é possível conhecer

mais detalhadamente sobre o trabalho da renomada advogada de defesa de Adnan – Cristina

M. Gutierrez –, quais recursos ela acionou e quais deixou de fora, além do fato dela ter

perdido sua licença um ano após a condenação à prisão perpétua de seu cliente. Um outro

recorte temático presente nos 12 episódios da série é o capítulo 11 que destaca como Sarah

Koenig lidou com os novos rumores que surgiram ao longo da produção da história, já que

após a circulação e popularidade alcançada pelo podcast começou a receber ligações, emails,

entre outros contatos de diversas pessoas que conheceram Adnan e o descreveram como um

tipo de pessoa com características diferentes da personalidade de garoto bom e querido em

sua comunidade, diferenciando das versões dos outros entrevistados da narrativa.

92

A forma de sequenciamento dos episódios estabelece uma unidade de sentido para a

investigação jornalística que se propõe. Para a compreensão de cada abordagem temática é

necessário acompanhar a história desde o seu primeiro episódio, o que é inclusive reforçado

pela própria instância de produção do podcast. No site oficial, ao clicar em um episódio (que

não seja o primeiro), o receptor-usuário encontra o seguinte aviso (Imagem 1): “Serial é um

podcast elaborado para ser ouvido em ordem. Se você simplesmente está de passagem e caiu

aqui, por favor retorne e comece pelo episódio 01 (SERIAL PODCAST, 2014, tradução

nossa)”37

.

Imagem 1: Aviso na seção de episódios do site oficial com indicação para acompanhar a

narrativa a partir do Episódio 1

Fonte: SERIAL PODCAST, 2014

Outro recurso estético tomado de empréstimo da ficcionalização que reforça tal

necessidade de compreender o sentido proposto pela instância de enunciação de Serial é o uso

da recapitulação no início de cada episódio. Em todos os episódios, à exceção do primeiro,

sempre encontramos na primeira fala de abertura o resgate do tema anterior com o uso de uma

chamada gravada na voz de um locutor diferente de Sarah com os seguintes dizeres:

“Anteriormente, em Serial...”. A partir desta chamada, o ouvinte escuta pequenos trechos de

falas de personagens entrevistados no capítulo anterior e na sequência dá-se início à narração

de Koenig. No episódio 4, por exemplo, a narrativa começa com trechos de falas de cinco

personagens do episódio 3, relembrando o ouvinte sobre o episódio que detalha como um

37 Serial is a podcast designed to be listened to in order. If you’re just landing here please go back and start with

episode 1.

93

homem encontrou o corpo de Hae e como as autoridades foram informadas, sendo que tais

trechos selecionados servem de referência para a instância narrativa estabelecer uma conexão

com o tema que está por vir no quarto capítulo – a busca dos detetives por uma pista que os

leva de encontro à principal testemunha da acusação, Jay, e quais as inconsistências dos

vários depoimentos deste jovem utilizados na investigação do assassinato da adolescente.

Eu sou Sarah Koenig. Lembram como no último episódio eu terminei dizendo que

os detetives tinham outras pistas neste caso além do MR. S, o cara que encontrou o

corpo de Hae, que eles também estavam começando a observar Adnan? (All Serial

Transcripts, 2014, episódio 04, tradução nossa)38

.

Serial é um podcast que se insere no contexto da radiofonia expandida

(KISCHINHEVSKY, 2014) e por isso faz uso em sua narrativa de elementos clássicos da

linguagem sonora da tradicional radiofonia hertziana em conjunto com recursos estético-

linguageiros permitidos pela rede digital, como texto, imagens, infográficos e ferramentas de

compartilhamento de conteúdo. Apesar da multiplicidade de elementos estéticos, é importante

destacar que o principal elemento que serve de fio condutor desta narrativa jornalística é

proveniente da tradicional linguagem radiofônica: a palavra oral.

A voz narrativa de Sarah Koenig é responsável pela costura dos episódios temáticos

por meio da mescla de seus relatos a respeito da investigação com a inserção de entrevistas

que a própria narradora realiza com personagens envolvidos direta e indiretamente ao

acontecimento em destaque. A apuração da jornalista envolve entrevistas com amigos de

Adnan e de Hae, colegas, membros da comunidade muçulmana da qual Syed faz parte e

também com especialistas que não viveram o acontecimento à época, mas emitem sua opinião

sobre o caso, como ocorre quando a narradora entrevista advogados integrantes de um projeto

especializado em inocentar pessoas condenadas equivocadamente pela justiça norte-

americana. Em conjunto com essas entrevistas, Koenig aborda em seu discurso as

informações que obteve com documentos e relatórios policiais, gravações de áudio dos

depoimentos colhidos pela polícia e do julgamento – momento em que a voz de Jay é

conhecida pelos receptores-usuários, já que este não conversa diretamente com Sarah –

registros de torres de celular utilizados como prova na acusação de Adnan e, também, visitas

feitas pela jornalista aos locais relacionados ao crime. Todo esse material se apresenta por

meio da oralidade narrativa da apresentadora da série, dimensionando a estrutura dos 12

episódios do podcast.

38 I'm Sarah Koenig. Remember how last time I ended by saying that the detectives had other leads in this case

besides Mr. S, the guy who found Hae's body, that they were also starting to look at Adnan?

94

Um exemplo da tessitura exercida pela voz narrativa da jornalista está no episódio

intitulado O Fim do Namoro, em que Sarah alterna sua própria locução com as informações

obtidas sobre o relacionamento em entrevistas com Aisha Pittman, a melhor amiga de Hae

Lee, e com o próprio Adnan.

Aisha Pittman: Ela queria me mostrar os bilhetes que eles trocaram e então

progrediu a partir disso. Foi um relacionamento que era constantemente secreto

porque a família de nenhum dos dois sabia sobre o relacionamento, então isso criou

muito mais algo do tipo ela dizendo ‘Eu vou estar na sua casa’ mas na verdade

estava saindo com ele, esse tipo de coisa. Koenig: Oh, ela deveria, ela deveria ter

contado aos pais dela que estava na sua casa... Pittman: Isso. Ou na casa dos outros.

Em primeiro lugar era a minha (risadas). Era muito desse tipo de segredo ao redor

deste relacionamento. Adnan Syed: Nós tínhamos muitas, eu acho, nós tínhamos

muitas situações parecidas em nossas famílias. Sarah Koenig: Este é Adnan. Já que

tanto ele quanto Hae tinham pais imigrantes, eles entendiam as expectativas, e as

restrições. Vá bem na escola, vá para a faculdade, tome conta de seu irmão mais

novo, e para Adnan, sem garotas (...). Adnan Syed: Você sabe, foi muito fácil

namorar alguém que vivia uma situação parecida com os mesmos parâmetros no que

diz respeito aos meus, você sabe, ela não teve expectativa de eu ir à casa dela para

jantar com a família dela (All Serial Transcripts, 2014, episódio 02, tradução

nossa)39

.

Apesar de a palavra oral ser predominante no podcast, percebemos o uso de outros

elementos sonoros, como a inserção de trilhas musicais, principalmente na abertura e

encerramento de cada episódio, em que se pode ouvir a música tema da série composta por

Nick Thorburn. Há também composições de outras trilhas sonoras produzidas exclusivamente

para a série e que são utilizadas em alguns momentos específicos dos episódios para marcar

uma mudança temática ou algum momento em que Sarah Koenig se depara com uma nova

informação sobre o caso e um trecho de uma trilha sonora é acionado no intuito de gerar uma

espécie de efeito de suspense, indicando ao ouvinte que a jornalista seguirá um novo caminho

em seu processo investigativo.

O efeito sonoro mais marcante presente em todos os episódios da primeira temporada

é o áudio que introduz a ligação de Adnan Syed à jornalista. A pedido da narradora, Adnan

telefona para Sarah, em média, duas vezes por semana – como ela mesma informa aos seus

ouvintes durante o primeiro episódio do podcast. E todas as conversas que a jornalista

39 Aisha Pittman: She would like show me notes that they shared and then it just progressed from there. Um,

and, but it was some, it was a relationship that was constantly secret because neither of their families knew about

it, so that just created much more of a, like, her saying ‘I’m gonna be at your house’ but really go out with him,

kinda thing. Sarah Koenig: Oh she would, she would tell her parents she was at your place…Aisha Pittman:

Yeah. Or others. Primarily mine. (laughs) Just a lot of that sort of secrecy around it. Adnan Syed: We had a lot

of, I guess, we had a lot of real similar, similar types of situations with our families. Sarah Koenig: That’s

Adnan. Since he and Hae both had immigrant parents, they understood the expectations, and the constraints. Do

well in school, go to college, take care of your younger brother, and for Adnan, no girls (...). Adnan Syed: You

know, it was really easy to date someone that kind of lived within the same parameters that I did with regards to,

you know, she didn’t have the expectation to me coming to her house for dinner with her family (...).

95

mantém por telefone com o acusado são precedidas pela gravação automática do presídio de

segurança máxima com os seguintes dizeres: “Esta é uma ligação pré-paga intermediada pela

Global-Tel de - Adnan Syed - um presidiário da instalação correcional de Maryland”40

(All

Serial Transcripts, 2014, tradução nossa). O recurso sonoro com esta gravação automática das

ligações de Adnan está sempre presente na abertura de cada episódio, mesmo naqueles em

que não se escuta as entrevistas de Adnan, indicando o protagonismo e relevância deste

personagem na abordagem do acontecimento retratado no podcast.

Outro exemplo que demonstra o uso de efeitos sonoros como elemento narrativo está

no episódio 5, em que Sarah Koenig e Dana Chivis (também produtora do podcast) se

propõem a refazer a suposta rota de Adnan no dia do crime. A justiça norte-americana

afirmou que a adolescente foi assassinada às 14h36 em um local a pouco mais de um

quilômetro da escola. Naquele dia, a aula se encerrava às 14h15, o que daria um intervalo de

21 minutos para Adnan sair da sala de aula, passar por diversos colegas, sair do trânsito do

entorno da escola e executar o crime. Segundo o rapaz, tal rota é praticamente impossível de

ser feita neste período de tempo. Então Sarah e Dana vão até a escola Woodland e refazem o

trajeto cronometrando o tempo gasto. Neste trecho do episódio, os efeitos são acionados para

se estabelecer uma paisagem sonora, que permite ao ouvinte recriar mentalmente o cenário do

trajeto percorrido pelas produtoras.

Sarah Koenig (narração direto do colégio): (voz de estudantes conversando ao

fundo da narração): Nós estamos no colégio Woodlawn, quarta-feira à tarde.

Anúncios após a escola (entra áudio da gravação com anúncio nas caixas de som da

escola): Se você é veterano e quer se inscrever para as bolsas escolares locais, dirija-

se à sala da coordenação. Sarah Koenig (narração direto do colégio): Okay,

último sinal (sons de sinal e movimentação de estudantes na escola). Koenig

(narração em estúdio): Mais de mil estudantes enchem os corredores assim como

Adnan nos descreveu em sua carta. Nós imaginamos que Hae entrou em seu carro

rapidamente. Ela estava com pressa. Sarah Koenig (narração direto do colégio):

Okay. Agora são 14h17. O sinal tocou exatamente às 14h15, então o mais rápido

que ela poderia chegar ao seu carro seria em dois minutos. Então isso dá ao Estado o

benefício da dúvida, certo? Se ela realmente está com pressa, talvez ela consiga

chegar no carro dela em dois minutos? (All Serial Transcripts, 2014, episode 05,

tradução nossa)41

.

No contexto da radiofonia expandida (KISCHINHEVSKY, 2014), o podcast Serial

utiliza em sua estrutura narrativa outros recursos estético-linguageiros que complementam a

40 This is a Global-Tel link prepaid call from Adnan Syed an inmate at a Maryland Correctional facility…

41(Voice over school PA) If you’re a senior and you want to apply for local scholarships, you need to go to the

counseling office -- Sarah Koenig (in Woodlawn High School): Okay then, last bell. (chime) Koenig (in studio):

More than a thousand students fill the halls just like Adnan described in his letter. We figure Hae gets in her car

quickly. She’s in a hurry. Sarah Koenig (in Woodlawn High School): Okay. It is now 2:17. The bell rang at

exactly 2:15, say the fastest she could have gotten to her car is two minutes. So that’s giving the State the benefit

of the doubt, right? If she’s really hustling, maybe she can get to her car in say two minutes?

96

linguagem sonora. No site oficial, há, por exemplo, uma seção em que se encontram os 12

episódios da temporada. Em cada episódio, observa-se uma imagem fotográfica que faz

referência ao tema específico abordado em determinado capítulo, como ocorre no episódio 6,

em que se encontra em sua “capa” uma fotografia de Adnan Syed aos 17 anos, considerando

que o tema deste capítulo é referente à forma de investigação da polícia e à acusação

elaborada pela Promotoria contra o rapaz, conforme observamos na imagem abaixo.

Imagem 2: Episódios da primeira temporada de Serial

Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.

Além do uso de imagens e fotografias, os produtores de Serial disponibilizam aos

receptores-usuários informações complementares ao conteúdo dos episódios também por

meio da linguagem textual, que se destaca no blog oficial pertencente ao site do podcast. Os

episódios foram publicados semanalmente entre os meses de outubro e dezembro de 2014 e,

ao longo desse período, a equipe de produção acrescentava novas informações extras

referentes a alguns episódios nas postagens do blog. Em uma das publicações, a produtora

Dana Chivis escreveu um texto em complemento ao episódio 05, cuja temática é centralizada

na rota do crime refeita por ela e Sarah Koenig. Nesta publicação do blog, Dana retoma um

personagem do episódio, Ja’uan, amigo de Adnan que prestou depoimento à polícia mais de

um mês após a prisão, conforme é narrado no próprio episódio. No texto, Chivis acrescenta

informações do encontro que os dois amigos tiveram, dias após o assassinato, no mesmo local

do crime. A produtora anexa para os ouvintes as versões digitalizadas dos desenhos manuais

de mapas que Ja’uan e Jay fizeram para a polícia em seus respectivos depoimentos. Com esta

97

informação extra, Dana Chivis possibilita ao receptor-usuário a chance de comparar tais

mapas e deixa a entender que ambos se referem ao mesmo local, ou seja, que Adnan já tinha

frequentado a cena do crime pelo menos uma vez.

Imagem 3: Postagens do blog oficial do podcast Serial

Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.

Um outro exemplo de uso de linguagem que extrapola a utilizada na radiofonia

tradicional está na imagem que traz uma versão digital da carta do possível álibi que não foi

aproveitado pela advogada de defesa de Adnan. Tal imagem é anexada como material

relacionado dentro da seção que abriga o primeiro episódio da série. Em sua narração deste

capítulo, Sarah cita alguns trechos da primeira carta que Asia McLain escreveu para Adnan,

logo após ele ter sido preso. No site, o receptor-ouvinte pode ter acesso a todo o conteúdo da

carta escrita à mão por Asia, que escreve sobre ter conversado com o rapaz na biblioteca na

tarde em que Hae desapareceu.

98

Imagem 4: Carta de Asia McLain enviada à Adnan Syed

Fonte: SERIAL PODCAST, 2014.

Outro elemento que integra a estrutura estético-linguageira da narrativa de Serial são

as ferramentas de compartilhamento e comentário de conteúdos ofertadas pela instância de

produção do podcast. Na seção do blog oficial, há um anúncio de que não há espaço para

comentários nas próprias postagens, porém um aviso informa aos internautas que o conteúdo

de tais publicações pode ser comentado nas redes sociais oficiais de Serial. Assim, a própria

equipe de produção do podcast incentiva o debate acerca da narrativa e as práticas

interacionais nas redes sociais, ao disponibilizar os links que direcionam para o perfil oficial

do Twitter e do Facebook, além de deixar o email de contato à disposição para o envio de

sugestões e opiniões sobre a série, conforme observamos no aviso disponível no site:

99

Imagem 5: Aviso no blog de Serial com links para email, Facebook e Twitter

Fonte: PODCAST SERIAL, 2014.

A construção dos elementos narrativos da primeira temporada tem como base

estrutural o uso da descrição no intuito de gerar o efeito de real do acontecimento

representado. O recurso descritivo da série se consolida principalmente pela divisão temática

da história combinada com as estratégias de ficcionalização aplicadas ao discurso jornalístico,

além da presença de elementos multimidiáticos da linguagem da radiofonia expandida. Cabe

ressaltar ainda, que esta construção é complementada por elementos temporais característicos

do triplo presente (RICOEUR, 2010).

O jogo temporal que se estabelece entre passado, presente e futuro é nítido

principalmente pela ótica da transformação do acontecimento – o crime e a sua investigação

há mais de uma década e meia – em meta-acontecimento – a configuração narrativa do

podcast. A composição da trama resgata um fato singular do passado de um cotidiano

específico e o insere em uma nova temporalidade, relacionada ao presente em que se encontra

a série. Assim, um crime que aparentemente tinha chegado à sua resolução, ganha possíveis

novas interpretações a partir da produção e circulação dos episódios que realizam uma nova

investigação no tempo atual sobre um fato do passado. Tal investigação de cunho jornalístico

se edifica com o uso de depoimentos de diversos personagens, sendo que tais depoimentos

transitam entre à temporalidade referente à época do assassinato e sua investigação – como

podemos observar por meio dos relatórios, documentos e gravações em áudio de depoimentos

feito pela Polícia e do julgamento de Adnan – à temporalidade atual, na qual se encontram os

receptores-usuários – por meio das entrevistas dos personagens envolvidos direta ou

indiretamente com o acontecimento. Assim, os depoimentos cumprem um papel essencial de

testemunho nesta narrativa, já que exercem uma função de autentificação da origem do ato de

configuração do enunciado da série, como será detalhado a seguir.

100

5.2.2 A função do testemunho

A centralidade do testemunho na primeira temporada de Serial evidencia sua estreita

relação com a tessitura da narrativa, o que caracteriza o discurso jornalístico desta série como

uma modalidade do testemunho. É importante ressaltar que, para via de análise do nosso

objeto empírico, adotamos a percepção de Ana Cláudia Peres (2016) sobre a função vital do

testemunho na configuração de um enunciado jornalístico ao defender que

(...) o testemunho é, também ele, uma construção de linguagem e que, quando

valorizado no percurso da narrativa não apenas como procedimento de uma rotina

jornalística, mas enquanto experiência vivida e narrativizada, pode oferecer uma

chave para colocar sujeitos em relação. (PERES, 2016, p. 103)

Ainda de acordo com a autora, o acionamento do testemunho no jornalismo nos

transforma em testemunha de outros testemunhos, submetendo seus receptores a perceberem

uma dada realidade por meio dos regimes jornalísticos de ver e contar. Assim, o que

realmente importa na construção narrativa de um acontecimento não é se o jornalista

presenciou a experiência relatada, e sim a forma como ele reconstitui tal acontecimento para

seu público destinatário. E é justamente nessa expressão do testemunho que Serial encontra

sua força para autentificação do efeito de real do acontecimento narrado.

O protagonismo exercido pela narração da jornalista Sarah Koenig na tessitura dos 12

episódios do podcast é indício de como ela assume um lugar de testemunho, que se insere na

história, mostrando por meio de seu posicionamento que é uma narradora que ocupa o próprio

texto, ou seja, por meio da construção de seu discurso, Sarah se integra ao próprio meta-

acontecimento de forma incisiva ao seu público, ofertando as nuances e um maior

detalhamento de sua investigação jornalística.

Em um trecho do episódio 5, Sarah analisa a investigação feita pela polícia e como a

Promotoria construiu a acusação para o julgamento. A narradora aciona gravações em áudio

do julgamento em que se escuta o promotor Kevin Urick interrogando Jay diante do júri para

justificar sua argumentação de acusação. Neste episódio, além das gravações antigas, Sarah

apresenta ao ouvinte do podcast trechos selecionados de sua conversa com Adnan nos dias

atuais com comentários do rapaz sobre este dia do julgamento. É neste exemplo que

percebemos a inserção da narradora como testemunha do acontecimento, já que ela se

posiciona diante das provas apresentadas contra Syed e coloca em questão a investigação e

evidências apresentadas pela justiça norte-americana.

Eu não quero ser mesquinha. Eu não acho que devemos exigir de Jay uma linha do

tempo cristalina. Como ele poderia lembrar de cada reviravolta e ligação telefônica

101

daquele dia, seis semanas depois? No entanto, se o estado afirma Adnan é culpado

porque nós temos esta testemunha e a história dela é sustentada pelo registro de

celulares, bem, o que eu vejo é, que se tem uma testemunha, mas sua história mudou

significativamente ao longo do tempo e existem esses registros de ligações, mas eu

não acho que são infalíveis como a acusação faz parecer. Isso porque, na maior parte

do tempo, esses registros não se alinham exatamente com a narrativa da testemunha.

Estes são momentos chave, quando eles [promotoria] sustentam a versão daquela

noite. Mas e quanto ao resto do dia? (All Serial Transcripts, 2014, episódio 5,

tradução nossa)42

.

No mesmo episódio, observa-se novamente a inserção do testemunho da narradora,

após escutarmos uma gravação da advogada de Adnan questionando Jay diante do júri no

intuito de desqualificá-lo e colocar a credibilidade da testemunha em xeque. Após esta

gravação ser exibida aos ouvintes, a jornalista se posiciona mais uma vez e observa que assim

como a versão de Jay apresenta ambiguidades, o mesmo acontece com a versão de Syed sobre

o que aconteceu no dia em que Hae Lee foi assassinada.

Ele [Jay] disse: ‘eu contei a eles [detetives] a verdade, eu não mostrei a elas uma locação que fosse verdadeira’. Por mais que isso soe paradoxal, eu acho que consigo entender o que ele queria dizer. Sim, eu disse algumas mentiras, mas eu disse a verdade. No geral, eu disse a verdade. Tem partes da história de Jay que não fazem sentido, em que parece haver mais coisa acontecendo do que ele próprio relata. Mas a verdade é que você também pode afirmar a mesma coisa sobre a versão de Adnan

(All Serial Transcripts, 2014, episódio 5, tradução nossa)43

.

A jornalista opta por um modo de fala em um tom de conversa intimista com seu

ouvinte, com exposição de suas impressões e questionamentos sobre as personagens da

história e sobre as descobertas de sua investigação. Tal postura é perceptível tanto no texto

narrativo de sua locução quanto no momento em que ela conversa com outras pessoas em

entrevistas sobre o caso. Koenig chega a compartilhar com os ouvintes suas fragilidades das

primeiras impressões que teve sobre Adnan, o que demonstra que seu testemunho como

jornalista não precisa ser um mero registro objetivo da experiência de investigação deste

acontecimento, como podemos observar no trecho do primeiro episódio da série abaixo:

E uma segunda coisa, na qual você não pode deixar de observar em Adnan, é que ele

tem olhos castanhos gigantes como uma vaca leiteira. Esta é, em disparada, minha

42 I’m not trying to be petty here. I don’t think we should hold Jay to some crystal clear timeline. How could he

possibly remember each twist and turn and phone call from that day, six weeks later? However, if the state is

saying, Adnan Syed is guilty because we have this witness and his story is backed up by cell records, well, what

I see is, you have this witness but his story has shifted, rather significantly over time and you have these call

records, but I don’t think they’re as iron-clad as you’re making them out to be. Because, for the most part, they

don’t exactly align with your witness’s narrative. There are key moments, when they do support his version of

that night. But what about the rest of the day? 43

He says, ‘I told them the truth, I did not show them a location that was true.’ As oxymoronic as it sounds, I

think I see what he is saying. Yes, I told some lies, but I told the truth. Overall, I told the truth. There are parts of

Jay’s story that make no sense, where it seems like there must have been more going on than he’s saying. But

here’s what’s also the truth, you can say the same thing about Adnan’s story too.

102

observação mais idiota desta investigação. Alguém com esta aparência poderia realmente estrangular sua namorada? Idiota, eu sei. (All Serial Transcripts, 2014,

episódio 01, tradução nossa)44

.

Outro exemplo se encontra em um trecho do sexto episódio, quando percebemos uma

espécie de desabafo no testemunho da jornalista, em que ela compartilha com seu público – e,

por consequência, se aproxima dele – suas dúvidas sobre a real necessidade de seguir em

frente com essa investigação, explicando, a todo momento, que durante a produção deste

podcast alternava em dúvidas sobre a veracidade da versão da acusação e da versão da defesa

do caso.

Eu vejo muitos problemas com a acusação do Estado. Mas ao mesmo tempo, eu também enxergo muitos problemas com a versão de Adnan. E então eu começo a

duvidar dele, eu converso e converso com ele, e eu começo a duvidar das minhas

dúvidas. E então eu me preocupo em ser a idiota que nada sabe. Este é o ciclo. Uma vez, por volta de seis meses após começarmos nossas conversas telefônicas, Adnan

me questionou, meio nervoso, qual é o meu real interesse nesse caso? Por que você

está fazendo isso? E então eu expliquei todas as coisas interessantes que eu li, e as pessoas que eu conversei e blá, blá, blá. Mas eu também contei que o que realmente

me prendeu nesta história, foi ele. Simplesmente tentando descobrir quem é essa pessoa que afirma não ter matado essa garota, mas está cumprindo prisão perpétua

pelo assassinato desta garota (All Serial Transcripts, 2014, episódio 6, tradução

nossa)45

.

Além do seu próprio testemunho para relatar as descobertas de sua investigação, Sarah

Koenig compõe a narrativa acionando também relatos de personagens que vivenciaram o

acontecimento de forma mais direta e de pessoas que não estavam diretamente envolvidas

naquela experiência à época, porém são capazes de preencher lacunas da história

apresentando sua perspectiva na temporalidade em que o podcast é produzido.

Peres (2016) ressalta que no discurso jornalístico a técnica da entrevista é uma das

principais ferramentas para se reconstituir um fato do passado, transformando-se numa

espécie de dispositivo que, na comunicação humana e mais especificamente no jornalismo,

tem a capacidade de provocar o diálogo. A partir deste raciocínio, observa-se que a

reconstituição do real se apresenta por meio das falas dos entrevistados (ou testemunhos) da

série. A voz narrativa de Sarah mantém sua centralidade na tessitura da intriga em Serial, já

44 And the second thing, which you can't miss about Adnan, is that he has giant brown eyes like a dairy cow.

That's what prompts my most idiotic lines of inquiry. Could someone who looks like that really strangle his

girlfriend? Idiotic, I know. 45

I see many problems with the state’s case. But then, I see many problems with Adnan’s story too. And so I

start to doubt him, I talk to him and talk to him, and I start to doubt my doubts. And then I worry t hat I’m a

sucker that I don’t know. That’s the cycle. Once, about six months after we’d begun our phone calls, Adnan

asked me, a little nervously, what’s your interest in this case, really? Why are you doing this? And so I explained

all the interesting stuff I’d read, and the people I’d talked to blah, blah, blah. But I also told him really what

really hooked me most, was him. Just trying to figure out, who is this person who says he didn’t kill this girl but

is serving a life sentence for killing this girl.

103

que além de inserir seu próprio relato, ela dá voz a diversos testemunhos que complementam

a sua visão e auxiliam a estabelecer uma unidade de sentido para a história.

É inegável o protagonismo atribuído pela narradora à Adnan Syed. As entrevistas

gravadas com ele por telefone pela jornalista estão presentes em 8 dos 12 episódios da

temporada. E como a própria narradora relata em um dos episódios um dos seus principais

objetivos é entender quem é o jovem condenado à prisão perpétua pelo assassinato da ex-

namorada, mas que até os dias de hoje alega inocência. A inserção de Adnan acontece de

diversas formas em boa parte da narrativa, o que propicia um maior espaço para se

desenvolver um aprofudamento e maior envolvimento com este personagem.

No primeiro episódio, a jornalista evoca o testemunho de Adnan após descrever ao

ouvinte como era o namoro entre ele e Hae e que após o término o rapaz estava triste, porém

não obcecado. Inicialmente, ainda não se verifica o diálogo direto entre a narradora e Adnan,

sendo tal diálogo um dos recursos mais aproveitados na constituição da narrativa.

Percebemos, então, que uma das estratégias para acionar o testemunho de Syed é

complementar o discurso textual da locução de Sarah com a entrevista de um dos

protagonistas da história, sem ainda se estabelecer um diálogo direto entre os dois, conforme

ocorre no trecho selecionado abaixo:

Adnan Syed: Eu só queria que eles pudessem analisar dentro do meu cérebro e percebessem como eu realmente me sentia em relação a ela. E não importa o que qualquer outra pessoa afirme, eles iam ver que esse cara não tinha nenhuma intenção contra ela. (...) Sarah Koenig: Ele é firme quanto a isso. Você consegue perceber,

certo? Ele está convicto. O problema é que, quando você pede a Adnan para voltar à memória e contar sua versão sobre o que aconteceu naquele dia, para refutar a versão de Jay, tudo fica sem consistência (All Serial Transcripts, 2014, episódio 01,

tradução nossa)46

.

Os diálogos diretos entre Sarah Koenig e Adnan Syed se fazem constantemente

presentes na série. Por meio dessa estratégia, o ouvinte toma conhecimento dos

questionamentos que a narradora faz a Adnan, o que permite a descrição mais detalhada do

acontecimento, além do receptor-usuário do podcast poder refletir sobre a personalidade e o

envolvimento do protagonista com a trama. Exemplo disso está também no primeiro episódio,

em que a narradora conta que o dia em que Hae Lee foi assassinada era aniversário de

Stephanie, uma das melhores amigas de Adnan e namorada de Jay. Esse relato de Sarah serve

46 Adnan Syed:I just sometimes wish they could look into my brain and see how I really felt about her. And no

matter what else someone would say, they would see, man, this guy had no ill will toward her. (...) Sarah

Koenig: He's adamant about this. You can hear it, right? He's staunch. The problem is, when you ask Adnan to

go back and tell his version of what happened that day, to refute Jay's story, everything becomes a lot mushier.

104

para contextualizar o diálogo entre ela e Syed que o ouvinte toma conhecimento na sequência

da narrativa:

Adnan Syed: E me ocorreu que naquele dia eu ia perguntar ao namorado dela, Jay, se ele tinha comprado um presente pra ela? Então, em algum momento durante o dia antes de meio dia. Sarah Koenig: Espera, Adnan, só espera por um segundo. Por

que você se importava se Jay tinha comprado um presente pra Stephanie? O que isso tem a ver com você? Adnan Syed: Bem, a Stephanie era uma amiga minha muito próxima, como eu tinha mencionado. E eu queria ter certeza que ela também receberia um presente dele, sabe? Ela havia mencionado pra mim que ela estava

esperando ansiosamente por receber um presente dele (All Serial Transcripts, 2014,

episódio 01, tradução nossa)47

.

O papel central que Adnan Syed exerce dentro da narrativa permite à Sarah Koenig

complexificar o uso deste testemunho. O grande aproveitamento das conversas gravadas

direto do presídio com Adnan fica evidente quando a narradora mescla depoimentos de Syed

em distintas temporalidades, conforme ocorre, por exemplo, em um momento que a jornalista

disponibiliza ao seu ouvinte uma antiga gravação do julgamento de Adnan – que acontece

uma década e meia antes – em que se escuta a advogada do réu, Christina Gutierrez, solicitar

uma escolha de seu cliente entre testemunhar no julgamento ou permanecer em silêncio.

Após escutarmos a resposta de Adnan neste áudio do julgamento, Sarah retorna ao tempo

atual do ouvinte e dá voz a Syed, que faz uma espécie de desabafo sobre esta situação a qual

esteve submetido no passado, conforme observamos no seguinte trecho do episódio 9:

Christina Gutierrez: Você está preparado para fazer sua escolha? Adnan Syed:

Sim senhora. Christina Gutierrez: E sua escolha é testemunhar ou permanecer em

silêncio? Adnan Syed: Permanecer em silêncio. Christina Gutierrez: Obrigado.

Você tem alguma pergunta sobre esta escolha? Adnan Syed: Não senhora. Sarah

Koenig: Este é Adnan não testemunhando. Ele me contou que queria, mas sua

advogada o aconselhou a fazer o contrário. Não é incomum. É um alto risco expor seu cliente a um interrogatório detalhado. Então, assim ele permaneceu. Mudo

durante os dois julgamentos, cerca de cinco semanas ao todo o que é realmente

difícil pra qualquer um. Adnan Syed: Foi, eu diria, provavelmente a coisa mais estressante da minha vida. Sei que é um clichê dizer isso, mas ficar sentado lá por

tanto tempo, por tantos dias e semanas sabendo que esse júri estava sentado me

observando e que, ao final, eles seriam os que iriam tomar a decisão (All Serial

Transcripts, 2014, episódio 09, tradução nossa)48

.

47 Adnan Syed: And it occurred to me that day that I was going to ask her boyfriend, Jay, did he get her a gift?

So sometime during the day before noon--Sarah Koenig: Wait, Adnan, just hold up for a second. Why did you

care whether Jay got Stephanie a present? What's it to you? Adnan Syed: Well, Stephanie was a very close

friend of mine, as I mentioned. And I just kind of wanted to make sure that she also got a gift from him, you

know? She had mentioned to me that she was looking forward to getting a gift from him. 48

Christina Gutierrez: Are you prepared to make your election? Adnan Syed: Yes ma’am. Christina

Gutierrez And is your election to testify or to remain silent? Adnan Syed: To remain silent. Christina

Gutierrez: Thank you. Do you have any questions about making that election? Adnan Syed No ma’am. Sarah

Koenig: That’s Adnan not testifying. He told me he wanted to but his attorney advised against it. Not

uncommon. It’s a huge risk to open your client up to cross examination and impeachment. So, there he was.

Mute through two trials, about five weeks total which is really hard for anyone. Adnan Syed: It was very-- I

would say, probably the most stressful thing in my life. It’s kind of cliched to say, going through a trial, but more

105

Outro testemunho marcante na tessitura do enunciado é o da testemunha-chave da

acusação, Jay. Alguns detalhes que envolvem o testemunho de Jay ajudam a compreender o

papel que este personagem possui na narrativa. Primeiramente, conforme informado pela

narradora na própria série, Jay não aceitou gravar entrevistas, sendo que houve apenas

algumas trocas de emails entre ele e a equipe de produção. Porém, não houve muito avanço

nestas conversas e seu testemunho no tempo atual não é aproveitado na narrativa. Nesse

contexto, é relevante registrar que em nenhum momento ouve-se o sobrenome de Jay nos

episódios, sendo um dos poucos personagens que vivenciaram o acontecimento àquela época,

junto com algumas pessoas que pediram para não serem identificadas pela narradora (e que

inclusive tiveram suas vozes alteradas), em que não se revela a identidade completa.

A ausência do sobrenome parece um pequeno detalhe, porém é indício de como Jay se

faz presente na série. Seu testemunho integra a construção do discurso jornalístico de Serial

sempre de forma indireta, já que não há diálogos gravados diretamente entre ele e Sarah.

Somente escutamos a voz de Jay por meio de gravações antigas, feitas nos seus inúmeros

depoimentos aos detetives que investigaram o crime e durante o julgamento. Outra estratégia

para conhecer este personagem ocorre na descrição feita pela jornalista, em momentos da

série que ela analisa o comportamento de Jay, a versão dele sobre o ocorrido e também

quando ela expõe falas de amigos e colegas que o conheceram e comentaram sobre a

personalidade da principal testemunha utilizada na acusação contra Adnan. No episódio 4,

que analisa as inconsistências da investigação da acusação, Sarah resgata gravações com o

depoimento de Jay aos detetives responsáveis pelo caso, utilizando seu depoimento para

construir sua argumentação narrativa ao mesmo tempo que permite que seu público conheça

Jay e desenvolva suas impressões sobre a testemunha.

Detetive MacGillivary: Quando você estava saindo do estacionamento. Por que

você não parou seu carro, e digamos, ligou pra polícia e disse “alguém acabou de

cometer um assassinato. Tem um corpo no porta mala de um carro”? Jay: Bem, eu

estava muito assustado e não pensei direito, como deveria ser. Detetive: De quem

você estava com medo caso você fizesse uma denúncia anônima e desse a descrição

do carro? Jay: Podemos parar por um momento? Detetive: Sim. Jay: Você pode

parar um pouco? Detetive: Se você tem alguma pergunta, você tem que perguntar na

gravação. Jay: Eu não entendo esta linha de questionamento (All Serial Transcripts,

2014, episódio 4, tradução nossa)49.

so sitting there for so long, for so many days and weeks knowing that this jury is sitting there looking at me and

ultimately they’re going to be the ones to make the decision. 49

Detective MacGillivary: When you are driving off the parking lot. Why don't you stop your car, and say, call

the police and say “someone has just committed a murder. There's a body in the trunk of a car?” Jay: Um, I was

just scared and I didn't really think, like-like how it is. Detective:Who are you afraid of if you make an

anonymous phone call and you give a description of her car? You give them the tag number of her car... Jay:

Can we stop for a second? Detective:Yes. Jay: Can you stop that? Detective: If you have any questions, you can

ask me on tape. Jay: I don't understand this line of questioning.

106

A consistência do enunciado se desenha, principalmente, por meio de depoimentos

que se enquadram no mesmo estilo dos testemunhos de Adnan e Jay, ou seja, amigos, colegas,

professores e funcionários da escola, membros da comunidade, familiares, detetives, entre

outros, que vivenciaram o acontecimento de forma mais direta, têm seus testemunhos

acionados por Sarah Koenig tanto por conversa direta gravada com a jornalista, quanto pelo

resgate de gravações antigas, documentos e material relacionados ao crime que servem de

referência para a construção da história. No entanto, para completar o processo de

configuração de sua narrativa, Sarah também cede espaço a um perfil de testemunho mais

indireto, dando voz às pessoas que não têm nenhum envolvimento direto com Adnan ou Hae,

porém são especialistas que utilizam seu conhecimento para apresentar sua perspectiva de

análise sobre o caso e contribuem para um aprofundamento de detalhes desta investigação

jornalística.

No início da série, Sarah Koenig conversa com Justin George, um repórter policial do

jornal Baltimore Sun, que a auxilia com seus conhecimentos profissionais a analisar as

evidências do caso, como ocorre no momento em que ambos estão avaliando as fotografias da

cena do crime. De acordo com Sarah, a experiência e comentários do repórter lhe foram úteis

para ajudá-la na busca de novos detalhes que ela própria não havia considerado.

Outro exemplo desse tipo de testemunho está no sétimo episódio de Serial, quando a

jornalista conversa sobre a acusação construída em torno de Adnan com a advogada Deirdre

Enright, integrante de um projeto especializado em reinvestigar casos de pessoas acusadas

erroneamente pela justiça norte-americana. Sarah apresenta a história de Adnan para a

advogada que aponta elementos que a narradora ainda não considerou em suas interpretações,

como quando Deirdre indica à jornalista que o fatores como religião e xenofobia – o rapaz é

de descendência muçulmana – deve ser levado em consideração.

Deirdre Enright: Quando você mencionou o caso pela primeira vez pra mim, a primeira coisa que eu pensei foi: “okay, nós temos um informante na prisão? Nós

temos uma pessoa que escapou da pena por conta de um acordo?” Quando eu li o resumo das notas policiais, eu ficava voltando ao motivo e pensando “aqui tem um grande buraco negro”. Eu ainda não entendi por que ele queria essa garota morta. Por que ela terminou com ele? As pessoas terminam com as outras o tempo todo. Eu

estou um pouco preocupado com o perfil racial aqui, sabe? Sarah Koenig: Sério? Pelo lado do Adnan. Em outras palavras porque ele é paquistanês muçulmano e --

(All Serial Transcripts, 2014, episódio 07, tradução nossa)50

.

50 Deirdre Enright: You know when you first talked to me about this case, the first thing I thought is:

“okay, do we have a jailhouse informant? Do we have a person who got way too sweet of a deal?” When I read through your summary of your police notes, I just kept going back to motive and thinking “that’s a big black hole” for me. I still don’t understand why you want this girl dead. Because she broke up with you? People break up with people all the time. I’m a little concerned about racial profiling here, you know? Sarah Koenig: Oh really? On the part of Adnan. In other words that he’s a Pakistani muslim and--

107

Ao considerarmos o contexto que envolve as variações de testemunhos na narrativa da

primeira temporada de Serial, enxergamos elementos que abordam de forma indireta na

narração personagens que vivenciaram o acontecimento. É o caso dos familiares de Hae Lee

que somente são mencionados pelo testemunho de Sarah Koenig. A família de Hae se recusou

a contribuir com o podcast e, por consequência, obviamente não há depoimentos em

conversas gravadas, e sim apenas o testemunho descritivo da jornalista que menciona a

preocupação da família ao descrever o acontecimento do crime, como por exemplo, a

preocupação da mãe e do irmão que ligam para a polícia no mesmo dia em que ela foi

assassinada, já que haviam recebido uma ligação da escola da prima pequena, informando que

Hae não apareceu para buscar a garota, como fazia habitualmente. Ainda nessa lógica de

testemunhos acionados de forma indireta, há também o exemplo de Don, namorado de Hae

após Adnan, que surge no episódio 10. Sarah relata que Don inicialmente havia se recusado a

participar, pois acreditava não ter nenhuma informação a acrescentar, porém com a

repercussão do podcast ele volta atrás em seu posicionamento, conversa com a jornalista, mas

pede para não ter sua voz divulgada na série, sendo que seu depoimento integra o enunciado

apenas de forma indireta, pelo testemunho de Sarah sobre o que Don lembrava do dia do

assassinato e da época do julgamento.

Para buscarmos aprofundar a análise do ciclo da configuração narrativa de Serial,

optamos por acionar as reflexões sobre lugar de fala de José Luiz Braga (2000) com a

finalidade de compreender as intenções de sentido da instância de enunciação com os

receptores-usuários do podcast, levando em consideração que, apesar de haver uma intenção

em produzir um efeito de sentido pré-estabelecido por parte do enunciador, novos significados

acerca de uma realidade representada podem emergir ao atingir a instância de recepção,

conforme aponta Patrick Charaudeau (2006a) em seus estudos dos contratos comunicacionais.

5.2.3 Ativação dos lugares de fala

Os sentidos propostos pela voz narrativa de Sarah Koenig também são essenciais para

a compreensão dos modos de configuração do enunciado desta série jornalística. Nesse

sentido, valemo-nos das reflexões de José Luiz Braga (2000) como recurso metodológico para

avaliarmos a estrutura lógica que articula a fala – a qual corresponde ao discurso construído

por Sarah Koenig – e a situação de realidade que esta representa.

(...) o lugar de fala não corresponde ao “contexto”, mas ao lugar construído pelo

discurso nesse contexto – o ângulo proposto estruturalmente pela fala para “ver” a

108

realidade – ou mais exatamente, segundo o qual a realidade – ou mais exatamente,

segundo o qual a realidade se constitui em sentido (BRAGA, 2000, p.168).

Conforme a categoria de análise da função do testemunho (item 5.2.2), entende-se que

o papel de Sarah Koenig é essencial para a tessitura da narrativa, funcionando como elemento

primordial ao dar uma segunda vida ao acontecimento (QUÉRÉ, 2012), alternando o seu

próprio testemunho com as entrevistas e gravações antigas relacionadas à investigação do

crime na construção do conjunto dos 12 episódios. Assim, a centralidade de Koenig serve de

ponto de partida para avaliarmos sob qual perspectiva se constrói o sentido da narrativa de

Serial.

É a partir de seu posto de emissora/narradora que a jornalista convoca o ouvinte a

construir sua interpretação acerca dos acontecimentos narrados. E justamente ao

considerarmos a fala de Sarah Koenig, que se percebe uma pré-determinação de sentido a ser

seguido, deixando para o ouvinte uma espécie de caminho a ser trilhado na interpretação do

conteúdo apresentado por ela no podcast. Faz-se importante observar, primeiramente, como a

narradora propõe à instância de recepção enxergar aquela realidade através de seu discurso

direto e incisivo, compartilhando no enunciado, de forma intimista, suas opiniões e

sentimentos quanto à sua própria investigação jornalística. Exemplo disso está no último

episódio da série, quando Sarah Koenig através do próprio testemunho dialoga diretamente

com o ouvinte, utilizando, inclusive, o termo você, o que dá um tom de conversa para o

discurso jornalístico.

Caso você não tenha reparado, minhas opiniões sobre o caso de Adnan, sobre quem está mentindo e por que, não se mantiveram firmes durante o curso desta história.

Várias vezes, eu tomava uma decisão e permanecia nela, com alívio e então,

inevitavelmente, eu aprendia algo que eu não sabia antes e minha certeza acabava. Às vezes, a reversão levava algumas semanas pra acontecer, às vezes acontecia em

algumas horas. E o que tem sido muito surpreendente é como o vai e volta não

cessa, depois de todo esse tempo. Mesmo nesta semana, e eu não estou brincando com você, mesmo neste dia em que eu estou escrevendo isto. Porque eu tomo

conhecimento de novas informações o tempo inteiro (All Serial Transcripts, 2014,

episódio 12, tradução nossa)51

.

No trecho citado acima, pode-se perceber que o recurso dialógico convoca o ouvinte

de Serial a realizar a mesma reflexão que Sarah faz no balanço final da série, o que nos leva à

compreensão de que há uma proposição de sentido feita pela narradora a seu público. Após

51

In case you haven’t noticed,my thoughts about Adnan’s case, about who is lying and why, have not been fixed

over the course of this story. Several times, I have landed on a decision, I’ve made up my mind and stayed there ,

with relief and then inevitably, I learn something I didn’t know before and I’m up ended. Sometimes the reversal

takes a few weeks, sometimes it happens within hours. And what’s been astonishing to me is how the back and

forth hasn’t let up, after all of this time. Even into this very week and I kid you not, into this very day that I’m

writing this. Because I’m learning new information all the time.

109

mais de um ano de trabalho nesta investigação, conforme relata a própria narradora da série,

ela enxerga que as evidências do caso analisadas nos 11 episódios anteriores apontam para

imprecisão tanto na versão da acusação quanto na versão de defesa do próprio Adnan. E, ao

esclarecer isso no episódio final, ela expõe sua intencionalidade quanto aos destinatários do

podcast, buscando convencer o público de Serial de que não há como definir quem é o

responsável pelo assassinato da jovem Hae Lee.

Este lugar de fala proposto pela instância narrativa de Serial remete então, em linhas

gerais, ao aspecto inconclusivo da investigação proposta pela série. Mesmo com a análise

aprofundada de uma ampla gama de detalhes vinculados ao crime, Koenig ainda deixa claro

ao seu ouvinte que a cada nova informação que recebe sobre o caso ela fica mais distante de

solucioná-lo (o que não significa que em algum momento ela teve a pretensão de um

encerramento concreto). Em outro momento do episódio final da série, Sarah novamente em

seu discurso reforça que suas “certezas” sobre Adnan ser culpado ou inocente se alteram a

cada aspecto do caso investigado. É o que acontece quando ela lembra da ligação de Nisha

(uma jovem que Adnan tinha saído algumas vezes após o término com Hae).

No episódio 5, Sarah acreditava que uma das evidências da acusação que realmente

complicava a situação de Adnan era esta ligação telefônica. Segundo os detetives, Adnan fez

uma ligação para Nisha e a colocou pra conversar com Jay na tarde em que Hae foi

assassinada, o que provava que Jay e Adnan estiveram juntos naquele dia, ao contrário do que

o acusado afirmava. Porém, no último episódio, ela reavalia junto com a equipe de produção

do podcast esta evidência e aponta para o ouvinte o aspecto inconclusivo desta ligação, pois,

ao mesmo tempo em que complica Adnan, há indícios de que pode não ter acontecido na

mesma tarde da execução do crime. Sarah Koenig relata, então, ter encontrado uma brecha

nos contratos da empresa telefônica do celular de Adnan em 1999, que se referia a ligações

que poderiam ser cobradas mesmo não sendo atendidas, apresentando, portanto, uma

alternativa sobre o telefonema ter realmente ocorrido naquela tarde.

Eu sei que esta é uma longa e talvez exageradamente detalhada maneira de explicar isto, mas tudo isso adiciona um elemento importante. Significa que a ligação de

Nisha concebivelmente poderia ser uma discagem automática que ninguém atendeu.

Significa que não há somente uma explicação para a ligação de Nisha. Há cenários alternativos. Poderia ser Adnan chamando Nisha, ou poderia ser que Jay ou alguma

outra pessoa tenha ligado para Nisha, ou talvez Jay ou alguém tenha ligado para Nisha acidentalmente. Se existem cenários alternativos, então isso significa que a

lista de coisas que sabemos, na verdade que sabemos definitivamente, fatos que

podemos mostrar sobre as evidências contra Adnan, esta lista acabou de encurtar

(All Serial Podcasts, 2014, episódio 12, tradução nossa)52

.

52

I know that’s a long and perhaps way too detailed way of explaining it but all this adds up to something

important. It means the Nisha call could conceivably have been a butt dial that no one answered. It means there

110

Este lugar de fala que se apresenta pelo desenrolar do discurso de Serial emerge

também do embate entre outros depoimentos que Sarah insere na narrativa, em uma espécie

de debate sobre o significado de todo o material apurado para a história. A jornalista cede

espaço à fala de Dana Chivis, integrante da equipe de produção da série. Koenig descreve

Dana como a pessoa que sempre melhor seguia a lógica por trás das evidências, sendo a

mente mais racional por trás das investigações. E, em seguida a essa descrição da narradora

sobre sua colega, escuta-se a opinião de Chivis sobre o caso:

Dana Chivis: Adnan sempre disse que foi ideia dele emprestar o carro a Jay porque

ele queria que Jay comprasse para Stephanie um presente de aniversário, certo?

Então, é muito azar você emprestar pra esse cara, que acaba apontando o dedo pra

você no assassinato em que você emprestou a ele o seu carro e celular no dia em que

sua ex-namorada desaparece. A outra coisa é que parece bem claro pra mim que

Adnan pediu uma carona a Hae após a escola, porque nós temos pelo menos dois

dos amigos deles afirmando o terem ouvido pedir uma carona de Hae.(...) Então a

outra peça de azar é a ligação de Nisha. Mesmo que a ligação de Nisha possa ter

sido potencialmente uma discagem automática, talvez tenha sido uma discagem

automática, mas quais são as chances? Isso é péssimo para você, que seu telefone

ligou automaticamente para uma garota que só você conhecia e ligaria neste dia que

sua ex-namorada desaparece e que acontece que você também emprestou seu carro e

seu telefone para o cara que acaba apontando o dedo pra você (All Serial

Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)53

.

Após este testemunho de Dana Chivis, dá-se uma interferência de Sarah Koenig que

entra em cena para comentar sobre a opinião da colega. A jornalista afirma que a perspectiva

de Chivis é lógica e é corroborada de certa forma por essas evidências. No entanto, a

narradora reforça o caráter inconclusivo da investigação feita pela série ao discordar de Dana

e afirmar aos ouvintes que há certos detalhes destas mesmas evidências que ainda são

contraditórios e não incriminam completamente Adnan. E para manter firme a perspectiva de

compreensão do acontecimento, no intuito de justificar o posicionamento de dúvidas que

continuam a pairar sobre o caso, a narradora resgata outra fala além da sua: a opinião do

detetive de homicídios, Jim Trainum, contratado pela produção do podcast e que defende que

há fortes inconsistências na acusação contra Syed.

isn’t only one explanation for the Nisha call. There are alternative scenarios. It could be that Adnan called Nisha,

or it could be that Jay was with somebody else who called Nisha, or maybe Jay or someone else called Nisha by

accident. If there are alternative scenarios, then that means the list of things we know, actually definitively know,

facts we can show about the evidence against Adnan, that list just got shorter. 53

Dana Chivvis: Adnan has always said it was his idea to loan Jay the car because he wanted Jay to go get

Stephanie a birthday present, right? So, that’s pretty crappy luck that you loaned this guy, who ends up pointing

the finger at you for the murder that you loaned him your car and cell phone the day your ex -girlfriend goes

missing. The next thing is that it seems pretty clear to me that Adnan asked Hae for a ride after school, because we’ve got at least two of their friends saying they overheard him ask for a ride fromHae. (...) Then the next piece

of bad luck is the Nisha call. I mean, even if the Nisha call could potentially be a butt dial, in the realmof

possibility,maybe it was a butt dial, but what are the chances? That sucks for you that your phone butt dialed a

girl that only you know and would call on this day that your ex-girlfriend goes missing that you happen to loan

your car and your phone out to the guy who ends up pointing the finger at you.

111

Então nós chamamos Jim Trainum de volta. Ele é um ex-detetive de homicídios que nós contratamos para examinar novamente a investigação e nós perguntamos a ele,

“se o caso de Adnan era singular? Se nós pegarmos uma lente de aumento para

qualquer caso de assassinato, acharíamos questões similares, brechas similares, inconsistências similares?” Trainum afirmou que não. Ele disse que na maioria dos

casos, claro que eles têm alguma ambiguidade, mas no geral, eles são justos e esclarecedores. Este caso é uma bagunça, ele disse. As inconsistências são maiores

do que deveriam ser. Outras pessoas que costumam revisar casos, advogados,

psicólogos forenses, eles nos disseram a mesma coisa. Este caso é uma bagunça (All

Serial Transcripts, 2014, episódio 12, tradução nossa)54

.

O uso de depoimento de quem vivenciou o acontecimento à época do crime também

reforça o posicionamento de inconclusividade e incerteza sobre as evidências do assassinato

de Hae, como podemos observar no exemplo em que a narradora dá voz a Adnan, que

argumenta sobre as dúvidas que sempre existirão por parte do público que acompanha o

podcast.

Adnan Syed: Eu estava pensando outro dia, eu tenho certeza que ela [Sarah Koenig]

tem pessoas dizendo a ela, “veja bem, você sabe que este caso é...ele provavelmente

é culpado. Você está enlouquecendo tentando descobrir se ele é inocente o que você

não vai descobrir, porque ele é culpado”. Eu acho que você nunca vai ter 100% de

certeza ou qualquer tipo de certeza sobre isso. A única pessoa no mundo inteiro que

pode ter essa certeza sou eu. Ou, só para constar, quem quer que seja que fez isso.

Sabe, você nunca terá essa certeza, eu não acho que terá (All Serial Transcripts,

2014, episódio 12, tradução nossa)55

.

Este lugar de fala que aponta para dúvidas e inconclusão não estava definido desde o

primeiro episódio. É notório que, apesar de estar há mais de um ano pesquisando sobre o caso,

Sarah Koenig faz novas descobertas à medida que produz e divulga cada um dos 12 episódios.

Nos primeiros episódios da série, a narradora explicita aos ouvintes sua crença na existência

de uma pessoa específica mentindo, ao expor sua dúvida entre a veracidade da versão de Jay

para a polícia e da versão de Adnan. Em alguns momentos, aponta seu caminho investigativo

para um potencial aspecto de inocência em Adnan, questionando se aquele jovem que todos

afirmavam ser querido em sua comunidade seria capaz de cometer tal atrocidade. No entanto,

ela também toma conhecimento de novas informações que fazem suas certezas sobre Adnan

desaparecerem no desenrolar da investigação jornalística apresentada aos seus ouvintes.

54 So we called Jim Trainumback up. He’s the former homicide detective we hired to review the investigation

and we asked him, “is Adnan’s case unremarkable? If we took a magnifying glass to any murder case, would we

find similar questions, similar holes, similar inconsistencies?” Trainumsaid no. He said most cases, sure they

have some ambiguity, but overall, they’re fairly clear. This one is a mess he said. The holes are bigger than they

should be. Other people who review cases, lawyers, a forensic psychologist, they told us the sa me thing. This

case is a mess. 55

Adnan Syed:I was just thinking the other day, I’m pretty sure that she has people telling her, “look, you know

this case is-- he’s probably guilty. You’re going crazy trying to find out if he’s innocent which you’re not goi ng

to find because he’s guilty.” I don’t think you’ll ever have one hundred percent or any type of certainty about it.

The only person in the whole world who can have that is me. For what it’s worth, whoever did it. You know

you’ll never have that, I don’t think you will.

112

Quando Rabia me contou pela primeira vez sobre o caso de Adnan, certamente, de

um jeito ou de outro parecia tão alcançável. Nós só precisávamos dos documentos

certos, investir tempo suficiente, conversar com as pessoas certas, encontrar seu

álibi. Então eu encontrei a Asia, e ela era real e lembrava e todos nós pensamos “o

quão difícil isso pode ser? Nós só precisamos continuar”. Agora, mais de um ano

depois, eu sinto que estou sacudindo todos pelos ombros como um policial

provocador. Não venha me dizer que Adnan é um cara bacana, não venha me dizer

que Jay estava assustado, não venha me dizer quem talvez tenha feito alguma

ligação telefônica de cinco segundos. Somente me apresente os fatos, porque nós

não o tínhamos há 15 anos e nós ainda não os temos agora (All Serial Transcripts,

2014, episódio 12, tradução nossa)56

.

E assim se instaura o ciclo da dúvida, que permanece até o final da série e se define,

por assim dizer, também como um lugar de fala, ou seja, o modo como aquela realidade é

compreendida pela instância narrativa e repassada aos seus destinatários que, por sua vez,

constroem suas interpretações e ressignificam o acontecimento em questão. Para observamos

como ocorre a continuidade do processo de significação em torno do meta-acontecimento em

estudo nesta dissertação, voltamos nosso olhar para as reverberações nas redes sociais

digitais, espaço onde se manifesta a mimese III (RICOEUR, 2010), em que a instância de

recepção do podcast produz sentidos que ultrapassam o proposto pela instância narrativa da

série e completam o ciclo da atividade mimética de Serial.

5.3 Construção de sentido e reverberações

A compreensão do processo comunicacional que envolve o podcast Serial está

vinculada nesta pesquisa às mediações estabelecidas pelo discurso jornalístico da série. É

importante relembrar que a noção de mediação aplicada ao nosso objeto empírico corresponde

às reflexões de Jesús Martin-Barbero (1997), que a considera como um amplo processo de

negociação de sentidos guiado por atores sociais aliados aos dispositivos midiáticos em uma

troca comunicacional.

A eleição de trabalhar narrativamente um acontecimento ocorrido há mais de 15 anos

e sua transformação em um meta-acontecimento (RODRIGUES, 1993) que circula pelas

redes digitais no tempo presente demonstra que a tessitura de uma narrativa jornalística pode

gerar novos significados com interpretações diferentes das que ocorreram à época. A análise

56

When Rabia first told me about Adnan’s case, certainty, one way or the other seemed so attainable. We just

needed to get the right documents, spend enough time, talk to the right people, find his alibi. Then I did find

Asia, and she was real and she remembered and we all thought “how hard could this possibly be? We just have

to keep going.” Now, more than a year later, I feel like shaking everyone by the shoulders like an aggravated

cop. Don’t tell me Adnan’s a nice guy, don’t tell me Jay was scared, don’t tell me who might have made some

five second phone call. Just tell me the facts, because we didn’t have them fifteen years ago and we still don’t

have them now.

113

da configuração narrativa da primeira temporada de Serial (item 5.2) permitiu avaliar apenas

uma parte do ciclo da atividade mimética em questão, restando ainda compreender quais os

possíveis sentidos gerados pela instância de recepção do podcast, instância esta

correspondente à etapa da mimese III de Paul Ricoeur (2010).

Extrapolar então a instância emissora de Serial é vital para compreender todo o

processo comunicacional. Além da configuração discursiva da série e os sentidos inicialmente

propostos, faz-se necessário acrescentar a observação das práticas interacionais que emergem

após a circulação deste podcast. A partir dessa perspectiva, o papel do receptor-usuário de

Serial será observado pelo viés da radiofonia expandida, em que Marcelo Kischinhevsky

(2014) argumenta como a prática comunicacional do podcast ainda preserva na configuração

narrativa a essência da linguagem sonora da radiofonia tradicional, porém apresenta relevante

inovação em suas práticas interacionais, assim como ocorre em Serial.

Existe, portanto, um lugar de fala construído pela narrativa de Sarah Koenig que

compreende como inconclusivo o caso de Adnan Syed, mostrando que, no passado, a

investigação e o julgamento pela Justiça que resultou em sua condenação à pena máxima

ocorreram de forma obscura, deixando dúvidas ao ouvinte se o processo foi realmente justo.

E, apesar de a instância de produção do podcast propor aos receptores-usuários debater e

interpretar os diversos aspectos do caso abordado pela série nos perfis oficiais das redes

sociais digitais, a continuidade da construção do sentido proposto pela instância narrativa

toma rumos que escapam do controle da equipe de produção de Serial e se manifestam de

forma independente pela rede digital.

Para esta análise das reverberações selecionamos, então, um dos ambientes das redes

sociais em que se observou intensa produção de sentido acerca do acontecimento midiatizado:

o Reddit. Nesta rede, que funciona como uma espécie de comunidade virtual em que os

usuários debatem qualquer conteúdo que circula pela internet, funcionando como uma espécie

de fórum digital, elegemos o debate gerado logo após a divulgação do último episódio da

temporada, levando em consideração que neste momento o receptor-usuário de Serial teve

acesso à narrativa em sua completude e estava apto a opinar de forma ampla. Ressalta-se que

a análise das reverberações aqui proposta não possui caráter quantitativo, já que o objetivo

principal é observar a diversidade dos lugares de fala provenientes das interações entre os

receptores-usuários por meio da seleção de comentários representativos desta multiplicidade

de leituras acerca do meta-acontecimento.

114

Os usuários do Reddit criaram então uma página dedicada57

para debater

exclusivamente o podcast Serial. Ao longo da circulação da série, e também após o seu

término, foram criados centenas de debates com um intenso volume de comentários. Diante

deste excesso de volume informacional, foi selecionada para análise a discussão oficial58

da

comunidade em torno do último episódio. O critério de seleção tem como base o sistema de

pontuação do Reddit. Cada conteúdo publicado nesta rede possui um número de pontos, que é

resultado da diferença entre os votos positivos e os negativos dos usuários. A discussão oficial

do episódio final aparece entre os debates com pontuação mais elevada da página de Serial no

Reddit, sendo que 96% dos usuários da rede a avaliaram como positiva, de acordo com dado

disponível na própria página da discussão.

O mesmo critério de pontuação, dada pelos próprios usuários, também se aplica à

amostra de comentários selecionada para compreender a construção de sentidos em torno de

Serial. Ao todo, foram 3.465 comentários, sem limites de caracteres no texto. Optamos por

avaliar os 200 mais relevantes, ou seja, os 200 comentários com a pontuação mais elevada de

acordo com os votos dados na avaliação dos próprios usuários do Reddit. A discussão foi

publicada por um dos moderadores do grupo, cujo nome de usuário é SerialFan, no dia 18 de

dezembro de 2014, quando ocorreu o lançamento do último episódio nas redes digitais.

SerialFan inicia o debate com elogios ao fórum e aos participantes e, ao final de sua

publicação inicial, o moderador propõe possíveis linhas de debate para organizar o que será

discutido pelos receptores-usuários da série, como observamos neste trecho:

(...) A quantidade de atenção que este subreddit obteve da imprensa foi uma

experiência que eu não esperava. A gente já não era mais simples ouvintes, nós nos

transformamos em participantes ativos. Algumas vezes, nós falhamos, nos

precipitamos, rotulamos erroneamente eles como “personagens”, mas no geral,

fomos respeitosos, embora obssessivos. Eu não sei o que nos aguarda no episódio

final. Eu não sei o que acontecerá na segunda temporada. Eu não sei o que

acontecerá por causa de nossa influência e atenção sobre este caso. Mas eu sei que

isto tem sido maravilhoso, então muito obrigado! Vamos usar o seguinte guia para

discutir o episódio 12 de Serial.

- Primeiras/últimas impressões?

- O episódio frustrou, manteve ou excedeu suas expectativas?

- Você voltará se tiver uma 2ª temporada?

- Você vai acompanhar este subreddit após o fim da série? (Serial: The Podcast -

Reddit, 2014, tradução nossa)59

.

57

A página oficial criado pelos usuários do Reddit em que se encontram centenas de discussões sobre o podcast

Serial é denominada Serial: The Podcast – Reddit e encontra-se disponível em

<https://www.reddit.com/r/serialpodcast>. Último acesso no dia 08/07/2017. 58

A discussão oficial criada no mesmo dia do lançamento do último episódio da primeira temporada de Serial

foi intitulada pelos usuários de Serial, Episode 12: What We Know e encontra-se disponível em

<https://www.reddit.com/r/serialpodcast/comments/2pnyf9/official_discussion_serial_episode_12_what_we_kno

w>. Último acesso no dia 08/07/2017. 59

(...) The amount of attention this subreddit has gained from press was also an experience I did not expect. We

no longer were simply listeners, we became active participants. At times, we faulted, we rushed, we mislabeled

115

A partir desta publicação inicial do fórum sobre o episódio 12, obervou-se uma ampla

variação de interpretações sobre a série, com novas significações sobre o crime ocorrido há

mais de 15 anos. O lugar de fala em que Sarah Koenig se posiciona, demonstrando a

inconclusividade com o apontamento de sérias lacunas na investigação, é reforçado nas

reverberações do Reddit. Nota-se uma espécie de derivação deste lugar de fala, com maior

aprofundamento de detalhes e maior variação de posicionamentos em relação a uma possível

solução do assassinato de Hae Lee.

Entre as diversas derivações de sentidos, é possível destacar conversas sobre

evidências do caso apontadas por Sarah, porém não aprofundadas durante a narrativa, que

demonstram uma espécie de continuidade da investigação por parte dos receptores-usuários.

Um comentário de alta pontuação no Reddit feito pelo usuário all the emotions destaca a

possibilidade levantada pela jornalista sobre a realização do teste de DNA de Hae, que nunca

foi feito durante todos esses anos, com possibilidades de estar vinculado a um assassino

diferente de Adnan.

Tudo o que eu posso dizer é que eu não acho que Adnan deveria ter sido condenado, e se o Innocence Project [projeto que reúne advogados especializados em inocentar acusados erroneamente pela justiça] encontrar qualquer motivo para tirá-lo da

cadeia, eu espero que este seja o resultado, e que a família de Lee possa concordar com isso. E mesmo se, depois de tudo isso, o DNA retornar e for o DNA de Adnan embaixo das unhas dela – bem. Isso não muda minha percepção sobre negligência do sistema judicial, mas talvez todo mundo possa dormir melhor à noite (Serial: The

Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)60

.

Neste mesmo comentário, o usuário all the emotions levanta alguns aspectos do último

episódio que lhe chamaram atenção, entre eles o seu questionamento sobre por que Adnan só

considerou agora, a sugestão (feita pelo grupo Innocence Project durante o podcast) de exigir

o teste de DNA como evidência para a investigação. O questionamento da evidência do DNA

é bastante debatido ente os receptores-usuários, que se posicionam a favor de Adnan, sem

necessariamente o considerar inocente das acusações, mas certamente se arriscam mais em

them as "characters," but overall, we were respectful, albeit obsessive. (...) I don't know what today's finale has

in store. I don't know what will happen in the second season. I don't know what will happen because of our

influence or our attention to this case. But I know this has just been wonderful, so thank you! Let's use this

thread to discuss Episode 12 of Serial.

- First/last impressions?

- Did the episode disappoint, meet or exceed your expectations?

- Will you be back for Season 2?

- Will you be checking the subreddit in the 'off-season'?

60 All I can say is that I don't think Adnan should have been convicted, and if the Innocence Project turns up any

reason to get him out of jail, I hope that that the outcome, and the Lee family can come to terms with that. And if

after all of this, the DNA comes back and there is Adnan's DNA under her fingertips - well. That doesn't change

my perception about a miscarriage of the judicial system, but maybe everyone can sleep a little easier at night.

116

defendê-lo, diferente da preucação de Sarah Koenig que pondera até o último episódio. Os

receptores-usuários começam a se posicionar mais pela ótica de uma possível inocência de

Adnan por meio dessa questão do teste de DNA, como se observa no comentário do usuário

nosmalltalk:

Oh cara, quando ele estava chocado ao falar sobre a evidência nunca ter sido checada nesses 15 anos...Eu pensei que eu tinha isolado minha mente sobre o peso dessa história e o que ela significa na realidade, mas não é simplesmente “entretenimento”. Ouvir isso foi um lembrete brutal de o quão intenso são esses erros e como existe uma possibilidade real de um homem inocente estar na cadeia durante a metade da sua vida e, como Julie [também produtora de Serial] apontou...é

muita falta de sorte!! (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)61

.

Nota-se uma forte comoção sobre a possibilidade de Adnan ter passado metade de sua

vida injustamente na prisão e com isso o público de Serial se manifesta cada vez mais a favor

das evidências que podem livrá-lo da sentença máxima e pelo menos lhe garantir uma

investigação mais justa. Esta postura é evidente no comentário do usuário thefinish, que clama

por justiça também pela evidência do DNA apontada na série.

Este foi um momento brilhante para ser captado na gravação e realmente me fez parar pra pensar na realidade da situação de Adnan. Eu espero, qualquer que seja o resultado, que algumas coisas possam ser esclarecidas com o teste de DNA (Serial:

The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)62

.

Outro aspecto do caso, levantado no episódio 12, é o testemunho de Don sobre o

comportamento do promotor Kevin Urick. Sarah Koenig relata na série que Don estranhou o

fato de Urick ter gritado com ele, pois seu depoimento no julgamento não fez Adnan parecer

um assassino. Este elemento da narrativa também foi bastante repercurtido no Reddit,

servindo de argumento para manter a defesa de Adnan, ou pelo menos, que a justiça não

conduziu bem a investigação sobre o caso, conforme se percebe no comentário da usuária

asha24:

Tem mais alguém intrigado com o que o Don declarou sobre Urick? Ele gritou com

ele por não fazer Adnan parecer suficientemente assustador? Isso faz com que a

ideia de que algo estranho aconteceu durante a conversa entre Urick e Asia [possível

álibi de Adnan] seja muito mais credível para mim, especialmente desde que Asia

declarou em público que ainda se mantém firme quanto a seu depoimento

juramentado. A ligação de Nisha pode ter sido uma discagem automática. No

entanto, Dana tem razão, isso seria realmente muito azar, mas torna a ligação de

61 Oh man when he was choking up talking about the evidence going unchecked for 15 years....I thought I had

wrapped my mind around the weight of this "story" and what it meant on a real level and not just an

"entertainment" one, but damn it. Hearing that was a brutal reminder of how high these stakes are and how

there's a very real possibility an innocent man has been in prison for half of his life based on a lie and as a Julie

put it....very fucking bad luck!! 62

This was such a brilliant moment to catch on tape and really gave me pause on the reality of Adnan's situation. I

hope, whatever the outcome, that some things can be resolved with the DNA test.

117

Nisha menos importante a meu ver (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução

nossa)63

.

A crítica à atuação da promotoria permanece e também gera grande movimentação de

comentários. Há receptores-usuários que ressaltam a má condução do caso de Adnan Syed e

argumentam sobre a fragilidade e negligência da justiça norte-americana, como ocorre no

comentário do usuário reddit1070: “Vejam o link deste artigo. É de autoria de um defensor

público falando sobre como os promotores, ao invés de tentarem serem justos, querem

simplesmente ganhar a todo custo (Serial: The Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)64

”.

Além disso, os receptores-usuários também acreditam que há ligação neste comportamento do

promotor Urick com uma possível indução ao depoimento de Jay, cujos detalhes modificam a

cada interrogatório. “Isso me faz imaginar o que será que eles fizeram com Jay (Serial: The

Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)65

”, afirma o usuário RunDNA em crítica à condução

do caso e ao fato de a acusação ter como justificativa chave o depoimento inconstante de Jay.

Outro debate que se faz muito presente nas reverberações do Reddit gira em torno de

Jay. De um modo geral, os receptores-usuários o enxergam como alguém de caráter duvidoso

e seu testemunho para muitos não é suficiente para incriminar Adnan, já que, a todo

momento, Jay altera detalhes das evidências contra o acusado. No entanto, nota-se uma

ambiguidade na postura dos internautas, pois, ao mesmo tempo em que acreditam na

possibilidade de provas insuficientes, entendem que não há como ignorar totalmente a

testemunha-chave, já que ele sempre teve ciência de quem era o assassino de Hae,

independente de ser Adnan ou um terceiro que o ameaçava, conforme comenta o usuário

totallytopanga:

A atualização do Innocence Project, na minha opinião, foi ofuscada pelo depoimento de Josh sobre Jay ter – o tempo todo – afirmado que sabia quem era o assassino. De maneira alguma a polícia foi até ele e disse algo tipo “nós vamos eventualmente jogar isso em cima do ex-namorado e nós precisamos de você para construir o caso agora”. O que é triste. Eu quero que isso faça sentido (Serial: The

Podcast - Reddit, 2014, tradução nossa)66

.

63 Anyone else intrigued by what Don said about Urick? He yelled at him for not making Adnan seem creepy

enough? This makes the idea that something iffy went on in the conversation between Urick and Asia much

more believable to me, especially since Asia just flat out said she still stands by her affidavit. Nisha call could be

a butt dial! Dana's right though, that's some seriously bad luck, but it does make the Nisha call less important for

me at least. 64

See the link from this article. It's by a public defender talking about how prosecutors, instead of trying to be

the minister of justice, are out to win at all cost. 65

Makes me wonder what they were doing with Jay. 66

The update from the innocence project, in my opinion, was overshadowed by Josh's statement that Jay had - all

along - been saying he knew who the murderer was. There is no way the police went to him right from the get-go

and were like "yo we are going to eventually pin this on the exboyfriend and we need you to start building up a

case now". Which is sad. I wanted this to make sense.

118

Apesar de os usuários do Reddit debaterem sobre a possibilidade da realização de um

exame de DNA - na época da investigação do crime este teste não chegou a ser realizado -

que demonstre compatibilidade com uma pessoa que não seja Adnan e se transforme em

prova para inocentá-lo, a usuária ireadberks reforça seu ceticismo quanto a essa possibilidade,

justamente pelo nível de envolvimento de Jay.

Eu ficaria mais surpreendida se eles descobrissem o DNA do serial killer do que se

eles descobrissem mais alguém. O fato de Jay saber onde o carro estava significa

que Jay estava certamente envolvido. Se este é o caso, e tem que ser, então porque

apontar o dedo para seu amigo ao invés de um serial killer que tinha acabado de sair

da prisão, se Jay estava ajudando o serial killer? (Serial: The Podcast - Reddit,

2014, tradução nossa)67

.

A discussão em torno do papel de Jay na investigação leva em consideração que os

depoimentos desta testemunha complicam Adnan, porém não completamente. Os receptores-

usuários levam em consideração nas suas ponderações as possibilidades em torno das

evidências apontadas por Jay, porém ainda permanece a sensação de que Adnan está sendo

acusado com provas de concretude duvidosa, como é notório neste comentário de baconwaffl:

Jay é a única pessoa que tem algum conhecimento do caso. Ele providencia as pás, se livra de evidências, leva a polícia ao corpo e ao carro. O caso se resume a Jay, um

mentiroso afirmando que Adnan fez. Ele apontou o dedo para Adnan e forneceu os detalhes que o condenaram; não há evidência física, somente a palavra de um traficante de droga que muda sua história constantemente. Independente de culpa ou inocência, nosso sistema judiciário deveria supostamente estar preparado para evitar condenar as pessoas sem nenhuma razão além de outra pessoa ter certeza que ele é

culpado. Você precisa de provas consistentes! (Serial: The Podcast - Reddit, 2014,

tradução nossa)68

.

A dinâmica das práticas interacionais no Reddit, em linhas gerais, se direcionam para

um intenso e complexo debate que funciona como uma espécie de continuidade da

investigação proposta pela narrativa do podcast Serial. O debate selecionado desta imensa

comunidade virtual, que teve início logo após o final da série jornalística, nos indica que as

significações construídas pelos receptores-usuários do podcast ultrapassam o lugar de fala

inicialmente proposto pela instância emissora, o que não significa que se distanciam do

sentido produzido por Sarah Koenig, como bem ilustra o seguinte comentário do usuário

PowerOfYes:

67

I'd be more shocked if they found the serial killer's DNA than if they found anyone else's. The fact that Jay

knew where the car was means Jay was certainly involved. If that's the case, which it has to be, then why point

the finger at his friend than a serial killer who just got out of jail if Jay was helping the serial killer? 68

Jay is the only person professing any knowledge. He provided the shovels, he got rid of evidence, he led the

police to the body and the car. The case came down to Jay, a known liar saying Adnan did it. He pointed the

finger at Adnan and provided the details that convicted him; there was no physical evidence just the word of a

drug dealer who changed his story constantly. Reguardless of guilt or innocence, our justice system is supposed

to be set up to avoid convicting people for no reason other than someone being sure they're guilty. You need

actual proof!

119

Não sei como elas conseguiram, mas de alguma forma SK [Sarah Koenig], Dana e

Julie chegaram a uma maneira de concluir uma história que é completamente sem

solução. Foi tipo um episódio-coração-na-boca – ela iria complicar Adnan

futuramente, iria fechar o caixão da culpa de Jay, iria destruir cada teoria louca

cuidadosamente trabalhada aqui neste subreddit? No final, SK está onde todos nós

parecemos estar, incertos sobre o que aconteceu, certos de que a justiça não foi feita.

A frustração de que a verdade é desconhecida persiste. Mas a satisfação de estar

frustrada, pertubada, engajada e, por fim, cativada por este podcast permanece. Um

final magnífico para um brilhante ciclo dessa história (Serial: The Podcast – Reddit,

2014, tradução nossa)69

.

A inconstância dos depoimentos de Jay e o nível de seu envolvimento com o crime, o

questionamento do comportamento do promotor responsável pelo caso e da atuação do

sistema judiciário, junto com as intensas e complexas reflexões sobre evidências que não

ganharam destaque na investigação policial, como o teste de DNA, direcionam os receptores-

usuários de Serial a uma significação de uma potencial injustiça cometida contra Adnan Syed

por meio de uma investigação inconsistente e mal conduzida, sem esclarecer quem realmente

foi responsável pela morte da jovem Hae Lee. Os receptores-usuários de Serial se propõem,

portanto, a continuar a investigação iniciada pelo podcast e tentam manter a precaução em

suas próprias investigações, mas a mensagem geral que passam com tamanho e complexo

envolvimento é que este julgamento precisa ser reavaliado de forma justa em busca de provas

concretas.

5.3.1 Meta-acontecimento em Serial: uma história sem fim

A análise proposta neste capítulo articula a noção de acontecimento com a tessitura da

narrativa e suas possíveis reverberações na construção de significados acerca da realidade em

torno do assassinato de Hae Min Lee. A primeira temporada do podcast Serial se constitui

como um meta-acontecimento, ou seja, por meio do resgate de um acontecimento que parecia

ter chegado à sua conclusão no passado – o assassinato de Hae Min Lee, a investigação do

crime e a condenação de Adnan Syed no ano de 1999 – a jornalista Sarah Koenig configura

uma narrativa que corresponde a uma segunda vida deste acontecimento, sendo que o sentido

criado em torno de sua existência original passa por um processo de revisão no tempo atual,

com múltiplas leituras feitas tanto pela instância narrativa quanto pelas reverberações das

69 Don't know how they did it, but somehow SK, Dana and Julie managed to bring an end to a story that is

entirely unresolved. Kind of a heart-in-your-mouth episode - would she implicate Adnan further, would she put a

nail in the coffin of Jay's guilt, would she destroy every carefully thought out crazy theory on this subreddit? In

the end, SK is where we all seem to be, uncertain about what happened, certain that justice was not done. The

frustration that the truth is unknowable persists. But the satisfaction of having been frustrated, disturbed,

engaged and ultimately enthralled by this brilliant podcast remains. A superb ending to a brilliant story cycle.

120

redes sociais digitais (conforme se observou na página dedicada a discutir o podcast no

Reddit), repercussão essa que faz um antigo acontecimento adquirir nova dimensão simbólica.

Ao construir a narrativa de Serial, Sarah Koenig explicita que considera o fato

ocorrido em 1999 como inconclusivo, apontando a investigação feita pela polícia como uma

operação com muitas lacunas e dúvidas no que diz respeito às evidências acionadas para

condenar Adnan Syed à prisão perpétua. Essa percepção de que o crime é um acontecimento

cuja investigação não alcançou seu esgotamento circula pelas redes sociais digitais e é

repassada ao público da série, que, através de complexos e intensos debates, elabora novos

sentidos sobre o acontecimento transmitido pelo podcast. A partir deste lugar de fala

construído por Sarah Koenig, os receptores-usuários assumem a investigação iniciada pela

jornalista e aprofundam a análise feita sobre o acontecimento. Assim como a narradora jamais

assume um posicionamento afirmando a culpa ou inocência de Adnan Syed, os ouvintes do

podcast também não o fazem, porém percebeu-se por meio da análise das reverberações que

há uma maior inclinação para a busca de indícios que possam inocentar o acusado ou que ao

menos reafirmem que houve graves falhas na investigação conduzida pelas autoridades. No

entanto, é importante ressaltar que a ponderação e precaução de se estabelecer uma postura

definitiva sobre o caso é também adotada pela instância de recepção, o que mantém o ciclo da

construção de sentidos e emergências de novos acontecimentos em crescente movimento.

Vera França (2012) ao refletir sobre a segunda vida do acontecimento nas esferas

midiáticas, aponta que os acontecimentos que são revividos e ganham uma nova existência

simbólica causam transformações na ordem do mundo da vida e, quando é impactante, um

acontecimento discursivo atua como acontecimento existencial, que por sua vez será

comentado e reinterpretado pela sociedade e, assim sucessivamente, se transformará mais uma

vez em uma segunda vida, processo cíclico que a autora caracteriza como uma espiral

crescente do acontecimento.

Na esteira desta reflexão de França é possível conectar a repercussão do podcast Serial

e os sentidos que foram construídos com a emergência de um acontecimento existencial no

mundo cotidiano: a autorização de um novo julgamento de Adnan Syed pela Justiça de

Maryland (EUA). No dia 30 de junho de 2016, cerca de um ano e meio após a publicação do

último episódio do podcast, o juiz Martin P. Welch concedeu a Adnan o direito a um novo

julgamento. É importante lembrar que, antes do lançamento da série jornalística, a defesa de

Adnan já havia feito uma petição para obter direito a um novo julgamento após sua

condenação, que foi negada em 2013 pelo mesmo juiz que autorizou a medida em 2016, como

121

explica a jornalista Sarah Koenig em uma postagem a respeito da medida no blog oficial da

série:

Adnan tinha feito a primeira petição por uma audiência pós-condenação em 2010, argumentando que ele tinha recebido uma assistência ineficiente de sua advogada no julgamento daquela época, M. Cristina Gutierrez, com base principalmente na questão que envolve Asia McClain [potencial álibi que não prestou depoimento em favor de Adnan em seu julgamento]. Ele esperou três anos e meio pela resposta do juiz Welch. A decisão do juiz finalmente veio no fim de dezembro de 2013: Negado

(KOENIG, 2016, tradução nossa)70

.

A decisão da Justiça de Maryland (EUA) em favor de ceder um novo julgamento vai

de encontro ao lugar de fala estabelecido pelos receptores-usuários de Serial, já que estes

clamam nas redes sociais por uma investigação que apresente evidências mais concretas que

as utilizadas no primeiro julgamento e que revele de forma justa o responsável pela morte de

Hae Min Lee. Este direito a um novo julgamento representa o retorno do acontecimento que

rompe mais uma vez a ordem cotidiana, assim como se sucedeu com a criação do meta-

acontecimento, adicionando, então, mais um elemento à essa história da vida real. Tanto a

narrativa jornalística de Serial quanto o acontecimento que emerge após o podcast são

integrantes desse fato da vida cotidiana, o qual está constantemente sujeito a novas

interpretações e, consequentemente, possui potencial para gerar novos discursos, alimentando

esta história sem fim que reconfigura a todo momento a realidade social que a envolve.

70 Adnan had first petitioned for post-conviction relief in 2010, arguing, among other things, that he’d received

ineffective assistance of counsel from his then-attorney, M. Cristina Gutierrez, based mostly on the Asia

McClain issue. He waited three and a half years for Welch’s opinion. The judge’s order finally came at the very

endo f December, 2013: Denied.

122

123

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo comunicacional desencadeado pelo podcast Serial nos indica como uma

narrativa que se institui por meio da atividade mimética pode integrar e interferir em dada

realidade social. Esta ruptura na ordem cotidiana que gera constantes ressignificações no

mundo da vida é perceptível pelo processo de complexificação do acontecimento existencial,

referente ao assassinato de Hae Lee e sua investigação pelas autoridades à época do crime,

que toma como ponto de partida a própria narrativa que substancia a série, passando pelos

modos de circulação do enunciado até este alcançar seus receptores na rede digital, que geram

então interpretações, que não se deram à época do ocorrido, responsáveis por criar novos

lugares diante dos quais a realidade se constitui em sentido.

A compreensão do microdispositivo podcast como um gênero da radiofonia expandida

teve papel relevante para a análise do fenômeno comunicacional que engloba esta série

jornalística. A narrativa de Serial é estruturada por elementos estéticos-linguageiros sonoros e

parassonoros característicos da comunicação radiofônica que se institui pelas plataformas

digitais. A oralidade é um dos elementos que mais se destaca na série, principalmente pela

voz narrativa de Sarah Koenig em conjunto com as entrevistas e gravações de depoimentos

em áudio de pessoas envolvidas de alguma forma com o acontecimento narrado. Apesar de a

sonoridade ser o principal fio condutor da estrutura estética do enunciado, encontramos outros

elementos provenientes da cultura visual-imagética, como se observou no site oficial de

Serial, onde se encontram fotografias antigas dos personagens da história, imagens

digitalizadas de documentos antigos, mapas que foram usados como provas da acusação e

infográficos elaborados pelas produtoras de Serial, como por exemplo, o que identifica cada

personagem da história e como eles se relacionam na reconstituição do acontecimento. Após

esta construção do enunciado, o podcast circula pelas redes digitais e alcança seu público que

encontra ferramentas que propiciam o debate do conteúdo divulgado por meio de novas

práticas interacionais. Os lugares de fala que se estabeleceram nas redes sociais digitais, com

destaque para a página do Reddit dedicada a debater Serial, após a circulação da trama pelas

redes indicaram como se estabeleceu um contrato comunicacional de acordo com as

possibilidades de emissão e recepção do microdispositivo podcast.

As formas como a instância de emissão e a instância de recepção interagem e

produzem significações diversas sobre o acontecimento é uma consequência das condições e

estratégias em que se desenvolve o ato comunicativo da série, ou seja, é resultado das

estratégias acionadas para a construção do acontecimento discursivo. A atividade mimética

124

responsável pela segunda vida do acontecimento tem início com a seleção de uma ocorrência

do passado junto com a compreensão de que o assassinato de Hae Lee e a condenação de

Adnan Syed significaram para a sociedade naquela época. Ao considerar o contexto deste fato

e os elementos simbólicos que o cercam, a instância narrativa do podcast conseguiu

estabelecer a função mediadora que resgata este acontecimento de quase duas décadas atrás e

o transporta para o presente em que se encontra o público ouvinte, que irá analisar e

interpretar este meta-acontecimento.

É possível perceber a proposição de intensificação das práticas interacionais pela

instância emissora do podcast no intuito de incentivar o debate sobre a narrativa pelo público

ouvinte. Serial possui perfis em redes sociais digitais, como Twitter e Facebook, em que se

encontram uma parcela considerável da audiência, no entanto, este é apenas um espaço pré-

delimitado pela produção do podcast para se realizarem as discussões e interpretações do

enunciado em questão. O que se observou nesta pesquisa foi a manifestação espontânea dos

receptores-usuários em estabelecerem o próprio espaço em que ocorre a continuação da

investigação proposta por Sarah Koenig, por meio de intensos e complexos debates, conforme

observado na página do Reddit dedicada à série jornalística.

Nesta comunidade virtual, nota-se que um dos principais lugares de fala produzidos

pela narradora – a inconclusividade e incerteza que pairam sobre a forma como se deu a

resolução da investigação feita no passado – permaneceu ditando o rumo dos debates entre os

receptores-usuários. No entanto, também se observou uma inclinação mais acentuada por

parte da instância de recepção do podcast em direção a uma possível inocência de Adnan,

com incentivo de uma nova investigação do caso pela Justiça norte-americana apontando

evidências mais concretas que as acionadas no primeiro julgamento e que indique com mais

clareza o responsável pelo crime.

E, justamente após essa grande repercussão desta história da vida real transformada

em meta-acontecimento, aproximadamente um ano e meio depois da divulgação do episódio

final da série, um novo acontecimento irrompe a ordem cotidiana: a Justiça de Maryland

decide a favor de ceder um novo julgamento à Adnan Syed. Esta decisão vai ao encontro ao

que o público de Serial, em linhas gerais, demandava nas reverberações observadas nesta

pesquisa, demanda essa correspondente a uma segunda chance ao caso, com investigação

mais detalhada em busca de provas concretas que apontem de forma justa e transparente a

autoria do crime.

O retorno do acontecimento não é um elemento aleatório que quebra a ordem

cotidiana após a circulação do podcast, mas sim um novo elemento integrante do ciclo desta

125

história da vida real, desde sua ocorrência há mais de 15 anos, passando pelos novos olhares e

leituras que recebe no tempo presente e com potencial para estender o fluxo dos

acontecimentos no futuro, já que este direito concedido a um novo julgamento será

novamente comentado, interpretado e será responsável pela criação de novos sentidos.

Assim, todos os acontecimentos que emergem após o assassinato de Hae Lee em 1999 – a

configuração narrativa de Serial, suas reverberações, interpretações e a decisão da Justiça para

um novo julgamento – são elementos que constituem uma história real distante de ter um

caráter conclusivo, o que indica a potência do fenômeno comunicacional do podcast Serial

em aderir à realidade e reconfigurá-la em uma crescente espiral.

126

127

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