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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Daniel Vieira Sarapu DIREITO E MEMÓRIA: em direção a uma compreensão temporal da experiência jurídica Belo Horizonte 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito

Daniel Vieira Sarapu

DIREITO E MEMÓRIA: em direção a uma compreensão temporal da experiência jurídica

Belo Horizonte 2012

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Daniel Vieira Sarapu

DIREITO E MEMÓRIA: em direção a uma compreensão temporal da experiência jurídica

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Marcelo Campos Galuppo

Belo Horizonte 2012

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Sarapu, Daniel Vieira S246d Direito e memória: em direção a uma compreensão temporal da experiência

jurídica / Daniel Vieira Sarapu. Belo Horizonte, 2012. 353f. Orientador: Marcelo Campos Galuppo Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Direito – Filosofia. 2. Memória coletiva. I. Galuppo, Marcelo Campos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 340.12

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Daniel Vieira Sarapu

DIREITO E MEMÓRIA : em direção a uma compreensão temporal da experiência jurídica

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito

_______________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo (orientador) – PUC Minas

_______________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca – UFPR

_______________________________________________ Profa. Dra. Mônica Sette Lopes – UFMG

_______________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira – PUC Minas

_______________________________________________ Prof. Dr. Lucas de Alvarenga Gontijo – PUC Minas

Belo Horizonte, 29 de fevereiro de 2012

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Dedico esse trabalho a minha esposa e aos meus filhos, que me proporcionam as memórias mais felizes de minha vida

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar e especialmente, a meu orientador Marcelo Campos

Galuppo, que acompanhou e dirigiu toda minha evolução como pesquisador em direito e a

quem eu devo todo o crédito de minha formação enquanto acadêmico e professor de Direito.

Agradeço também ao restante do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em

Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais por ter aperfeiçoado a qualidade

da presente pesquisa com valiosas contribuições. Em especial, agradeço ao meu amigo e

professor Marcelo Cattoni pela iniciação nos pensamentos de Ronald Dworkin e François Ost.

Agradeço aos meus colegas que integram o Grupo de Estudos coordenado pelo prof.

Marcelo Galuppo e que me acompanharam nos permanentes debates acerca dos temas

tratados pela presente pesquisa.

Agradeço a minha ‘tia’ Solange Nobre por contribuir para fazer que as idéias contidas

nessa tese ficassem dispostas em um texto mais claro e objetivo.

Devo um agradecimento especial ao professor Stephan Kirste que, em suas visitas ao

Brasil, sempre nos brindou com sua leitura problematizante da relação entre tempo e direito.

Por fim, agradeço do fundo do meu coração a minha mãe, que durante essa longa

jornada sempre me deu suporte e esteve ao meu lado nos momentos mais difíceis.

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People, even regular people, are never just any one person with one set of

attributes. It's not that simple. We're all at the mercy of the limbic system,

clouds of electricity drifting through the brain. Every man is broken into

twenty-four-hour fractions, and then again within those twenty-four hours.

It's a daily pantomime, one man yielding control to the next: a backstage

crowded with old hacks clamoring for their turn in the spotlight. Every week,

every day. The angry man hands the baton over to the sulking man, and in

turn to the sex addict, the introvert, the conversationalist. Every man is a

mob, a chain gang of idiots.

This is the tragedy of life. Because for a few minutes of every day, every man

becomes a genius. Moments of clarity, insight, whatever you want to call

them. The clouds part, the planets get in a neat little line, and everything

becomes obvious. I should quit smoking, maybe, or here's how I could make a

fast million, or such and such is the key to eternal happiness. That's the

miserable truth. For a few moments, the secrets of the universe are opened to

us. Life is a cheap parlor trick.

But then the genius, the savant, has to hand over the controls to the next guy

down the pike, most likely the guy who just wants to eat potato chips, and

insight and brilliance and salvation are all entrusted to a moron or a

hedonist or a narcoleptic.

The only way out of this mess, of course, is to take steps to ensure that you

control the idiots that you become. To take your chain gang, hand in hand,

and lead them. The best way to do this is with a list.

It's like a letter you write to yourself. A master plan, drafted by the guy who

can see the light, made with steps simple enough for the rest of the idiots to

understand. Follow steps one through one hundred. Repeat as necessary.

(NOLAN, 2012)

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a investigar o problema da compreensão temporal do direito na

literatura pós-positivista. Parte-se da suposição de que tempo e direito se encontram em uma

relação dialética recíproca que foi ignorada durante a hegemonia do discurso científico da

modernidade, seja em razão das concepções de tempo construídas no seio da física e da

filosofia, seja em razão das concepções de direito que enfatizaram apenas o aspecto normativo

do fenômeno jurídico – notadamente o jusnaturalismo racionalista e o positivismo legalista

dos séculos XIX e XX. Por conseguinte, a hipótese central de trabalho sustenta que a

superação dessa leitura empobrecida da relação entre tempo e direito parte da incorporação do

conceito de memória jurídica pela teoria jurídica, já que a leitura do direito a partir da

memória imporia uma necessária conexão da experiência jurídica com a temporalidade.

Partindo de uma investigação sobre a polissemia da noção de memória no discurso científico

e filosófico, o trabalho buscou se apropriar das características centrais desse conceito a fim de

se construir as dimensões da memória jurídica e, com isso, demonstrar a sua relevância e

importância para compreensão temporal do direito.

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Memória Coletiva; Memória Jurídica

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ABSTRACT

The following paper intends to research the problem of temporal reading of Law in post-

positivism theories. Research’s point of departure is the assumption that Time and Law are in

a mutual dialectical relation that has been ignored since scientific revolution, rather by time’s

concepts built within Physics and Philosophy, rather by Law’s concepts that focused only on

normative dimension of legal practice – namely Modern Natural Law Theories and Legal

Positivism of XIXth and XXth centuries. Thus, the main hypothesis sustains that the

overcoming of this poor relation between Law and Time relies on the use of legal memory by

legal theory, since memory binds people to its temporality. Then, upon the research of

memory’s fundamental features, investigation built legal memory’s concept in order to

demonstrate its relevance and utterance for a temporal reading of Law.

Keywords: Legal Philosophy; Collective Memory; Legal Memory

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .21 2 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS CONDIÇÕES EPISTÊMICAS DO DISCURSO CIENTÍFICO E FILOSÓFICO SOBRE O TEMPO NO PENSAMENTO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

.28

2.1 A matriz física: o tempo como uma propriedade do mundo natural .30 2.1.1 O tempo absoluto da mecânica clássica de matriz newtoniana .32 2.1.2 O espaço-tempo da física quântica .38 2.2 A matriz filosófica: o tempo como uma propriedade da estrutura cognitiva humana

.46

2.2.1 Santo Agostinho e a distentio animi .47 2.2.2 O tempo como condição de possibilidade da experiência em Immanuel Kant

.49

2.2.3 A compreensão do tempo a partir do intuicionismo de Henri Bergson

.55

2.2.4 A temporalidade como condição de possibilidade da ontologia na fenomenologia de Edmund Husserl e de Martin Heidegger

.60

2.3 A matriz sociológica: o tempo social como produto da vivência coletiva do homem

.69

2.3.1 O tempo como uma construção social .70 2.3.2 O tempo como distinção entre passado e futuro na teoria dos sistemas sociais

.75

3 SOBRE A IMAGEM DO TEMPO NAS TEORIAS JURÍDICAS MODERNAS

.80

3.1 Contextualização histórica da formação do direito moderno .81 3.2 O jusnaturalismo e o Direito Natural .83 3.2.1 Principais traços da configuração do Direito Natural na antiguidade .85 3.2.2 O jusnaturalismo racionalista e os efeitos da geometrização do Direito Natural na relação entre tempo e direito

.97

3.3 O positivismo jurídico e suas vertentes .109 3.3.1 Origem e características gerais do positivismo jurídico .110 3.3.2 Os métodos interpretativos desenvolvidos pela hermenêutica jurídica como elementos responsáveis pela blindagem do direito em relação ao tempo

.120

3.3.2.1 A hermenêutica romântica e a consolidação do modelo conversacional de interpretação na tradição romano-germânica

.121

3.3.2.2 O apogeu do modelo conversacional no positivismo semântico – Do positivismo analítico inglês ao normativismo de Hans Kelsen

.127

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4 O RESGATE DA COMPREENSÃO TEMPORAL DO DIREITO NA TEORIA JURÍDICA PÓS-POSITIVISTA

.144

4.1 A renovação metodológica do pós-positivismo e a abertura teórica para uma compreensão temporal do direito

.145

4.2 François Ost e a influência do positivismo jurídico na relação dialética entre tempo e direito

.148

4.2.1 Sobre a relação dialética entre tempo e direito .148 4.2.2 Da relação entre a compreensão do direito sob o paradigma do positivismo e a destemporalização

.154

4.3 A busca do equilíbrio temporal no modelo de princípios de Ronald Dworkin

.162

4.3.1 A atitude interpretativa .164 4.3.2 Apresentação das concepções interpretativas do direito e de sua respectiva relação com a temporalidade

.178

4.3.2.1 O convencionalismo .178 4.3.2.2 O pragmatismo jurídico .185 4.3.2.3 O direito como integridade: entre a história e a estória .195 4.4 Conclusão do capítulo .204 5 FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA UMA TEORIA GERAL DA MEMÓRIA

.206

5.1 A memória enquanto função biológica .208 5.1.1 Conceituação e caracterização da memória enquanto propriedade dos organismos biológicos

.208

5.1.2 Classificação dos tipos de memória segundo sua função, conteúdo e duração

.210

5.1.3 Evocação e extinção das memórias .215 5.1.4 Amnésias e patologias da memória .217 5.2 A memória como objeto e como método da História .218 5.3 A memória como objeto de investigação das ciências sociais .232 5.3.1 A memória como produto da experiência coletiva e cultural .232 5.3.2 A memória como propriedade dos sistemas sociais .240 5.4 A investigação filosófica em busca de uma fenomenologia da memória

.245

5.5 Traços gerais do conceito de memória e síntese do capítulo .263 5.5.1 A memória como elemento de conexão entre o indivíduo e a temporalidade

.263

5.5.2 A memória é a propriedade pela qual os indivíduos constituem sua identidade

.264

5.5.3 A memória organiza a experiência de forma narrativa .264

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6 A MEMÓRIA JURÍDICA E A SUPERAÇÃO DA AMNÉSIA DO DIREITO

.266

6.1 A memória como função do subsistema social do direito .267 6.1.1 O direito como um subsistema da sociedade .267 6.1.2 A temporalidade do direito .273 6.1.3 A memória jurídica e sua função de tornar disponível informação ao sistema jurídico

.277

6.2 A memória do direito como elemento integração social por meio da recordação do passado

.281

6.2.1 O direito como elemento integrante da memória social .283 6.2.1.1 A memória social como ferramenta de investigação da memória jurídica

.283

6.2.1.2 A conservação da memória social nas etapas evolutivas do direito

.289

6.2.2 O direito como guardião da memória social .295 6.3 A memória jurídica como metanarrativa da interpretação jurídica .302 6.3.1 Do caráter narrável do direito .304 6.3.2 Os elementos da estrutura narrativa segundo Paul Ricoeur .307 6.3.2.1 A frase narrativa .310 6.3.2.2 Followability ou a capacidade de seguir uma estória .318 6.3.2.3 O ato configurante como elemento de organização da narrativa .327 6.3.2.4 A armação da intriga como a operação narrativa da metahistória

.329

6.3.3 Interpretação, lembrança e narrativa no direito como integridade .331 7 CONCLUSÃO .333 REFERÊNCIAS .338

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a investigar a relação existente entre a experiência

social do direito e a vivência do fenômeno da temporalidade dentro dos grupos sociais em que

o homem se insere. O problema subjacente à pesquisa sustenta que os modelos teóricos da

ciência e da ciência jurídica predominantes na modernidade culminaram na produção de um

direito desprovido de relação com o tempo e que, por essa razão, tornou-se um direito sem

memória. Assim, o objetivo principal dessa tese consistiu em compreender de que maneira é

possível superar a ausência de uma perspectiva temporal da experiência jurídica. Para tanto, a

hipótese central de trabalho é que o aprofundamento da relação entre tempo e direito exige a

introdução do conceito de memória jurídica na teoria jurídica, uma vez que a compreensão do

fenômeno do direito a partir das características da memória relaciona, de modo necessário, a

experiência jurídica à temporalidade.

O primeiro fundamento teórico de elaboração da hipótese de trabalho encontra-se nas

afirmações de Norbert Elias e de Niklas Luhmann de que o tempo não seria nem uma

dimensão mensurável do universo natural em que os eventos têm lugar, nem uma propriedade

da estrutura cognitiva humana que condiciona a possibilidade de toda experiência. Pelo

contrário, esses dois autores afirmam que o tempo é o produto de uma construção social que

ocorre no interior de cada sociedade humana e que, por essa razão, está diretamente

relacionado aos acontecimentos e ao estágio de desenvolvimento cultural desta. Com base

nesse postulado, o direito influencia e é diretamente influenciado pelo tempo social, já que a

prática jurídica de uma sociedade é uma das formas mais relevantes de sua manifestação

cultural. Contudo, a compreensão temporal do direito exige também uma reformulação do

conceito de direito construído na era moderna, a fim de ultrapassar a perspectiva teórica que

limitou a análise do fenômeno jurídico a sua dimensão normativa. Desse modo, a segunda

fundamentação teórica do trabalho está na afirmação da teoria jurídica pós-positivista que o

direito é antes o produto de um discurso intersubjetivo construído socialmente a partir da

argumentação e da hermenêutica do que um conjunto de normas criadas pelo Estado com

vistas à organização sociedade.

A partir desses dois fundamentos teóricos pretendeu-se reconstruir as linhas gerais da

relação entre tempo e direito no discurso científico e filosófico ao longo da modernidade. Ao

final dessa tarefa, foi possível concluir que uma relação equilibrada entre tempo e direito

depende de uma compreensão do direito a partir da figura da memória. Isso levou a pesquisa a

direcionar os seus esforços para formular o conceito de memória jurídica. Para tanto, o

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método de trabalho empregado partiu inicialmente de uma apresentação sobre a polissemia do

conceito de memória nas disciplinas do saber que utilizam essa expressão em suas

formulações teóricas. A finalidade desse procedimento foi encontrar os traços característicos

da noção de memória para que, posteriormente, pudessem ser transplantados para a teoria

jurídica. Em seguida, de posse dos elementos caracterizadores da memória, foi possível

construir o conceito de memória jurídica e demonstrar a sua importância para uma

compreensão temporal da experiência jurídica, conforme pretendido no início da investigação.

Desse modo, o itinerário seguido pela pesquisa para alcançar as conclusões acima se

iniciou no segundo capítulo com uma reconstrução histórica das condições de possibilidade

do discurso científico sobre o tempo. A partir de uma crítica das condições epistêmicas em

que se formulou o discurso científico e filosófico das definições de tempo, foi possível

identificar duas grandes matrizes que se destacaram em um primeiro momento como

responsáveis por sustentarem uma conceituação do tempo, a saber, a matriz física e a matriz

filosófica. A partir de cada uma delas a imagem do tempo se refletiu no discurso científico

positivista construído ao longo dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, influenciando,

assim, o discurso da nascente ciência jurídica. Logo, com base nas definições de tempo

presentes nessas matrizes, o pensamento jurídico sedimentou a relação entre tempo e direito

deduzida das teorias jurídicas da era moderna, cuja marca é a indiferença recíproca entre

ambos.

Sendo assim, o ponto de partida do capítulo será a apresentação das matrizes física e

filosófica de investigação do tempo. Visar-se-á, com isso, demonstrar como as suas

respectivas concepções de tempo foram responsáveis por produzir o conceito moderno dessa

categoria, que se caracteriza pela autonomia em relação ao mundo social do homem que vive

no tempo. No entanto, ao final desses dois tópicos pretende-se demonstrar como essas

imagens tradicionais do tempo já se encontram superadas no interior de cada uma das

respectivas matrizes.

Assim, a apresentação da matriz física de compreensão do tempo começa com a

exposição das condições epistemológicas que levaram a física a conceber o tempo como uma

propriedade do mundo natural. Esse modelo partiu da geometrização do universo promovida

por Galileu e teve o seu ápice com a formulação do conceito de tempo absoluto por Isaac

Newton. Em seguida, pretende-se apontar as críticas ao conceito de tempo absoluto a partir

dos cânones de compreensão do mundo físico fornecidos pela teoria da relatividade de Albert

Einstein e pela física quântica, a fim de demonstrar como a visão newtoniana de um tempo

independente ao mundo exterior já se encontra ultrapassada no interior da própria física.

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A exposição da matriz filosófica de investigação do tempo se inicia com a guinada em

direção a uma compreensão do tempo como uma propriedade da estrutura cognitiva humana

promovida por Santo Agostinho. Na sequência, ver-se-á, como o tempo se converte em

condição de possibilidade da experiência sensível com Immanuel Kant e, assim, reforça o

ideário presente no discurso científico e filosófico de que o tempo é uma categoria que não

prescinde do mundo social. Por fim, o tópico se encerra com a crítica ao caráter abstrato do

fenômeno da temporalidade no discurso científico e filosófico proveniente do intuicionismo

de Henri Bergson e da fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger.

O segundo capítulo termina com a apresentação de uma terceira e mais recente matriz

de investigação do problema do tempo. Essa nova formulação é proveniente das necessidades

metodológicas que as ciências sociais tiveram ao estudar o fenômeno da passagem do tempo

nos grupos sociais. Tendo por referência os esforços teóricos de Norbert Elias e de Niklas

Luhmann, ver-se-á que para as ciências sociais o tempo é construído no interior dos grupos

sociais e, portanto, passa a ser qualificado como uma variável dependente da dinâmica

cultural. As conclusões dessa matriz sociológica de investigação do fenômeno do tempo serão

aproveitadas, na sequência da pesquisa, para se estabelecer os contornos teóricos do

aprofundamento da relação entre tempo e direito através da figura da memória.

O terceiro capítulo se dedica a enfrentar o problema da deficiência na relação entre

tempo e direito da perspectiva da teoria jurídica. Pretende-se salientar de que maneira tanto o

discurso construído pela teoria jurídica para a caracterização do conceito de direito, como a

estruturação da prática jurídica moderna foram responsáveis por blindar o direito de uma

leitura temporal da experiência jurídica. Ao destacarem o aspecto normativo do fenômeno

jurídico, as matrizes jusnaturalista e positivista da teoria jurídica, em seus diferentes matizes

construídos ao longo de sua história, caracterizaram o direito como um saber que prescinde do

tempo.

A apresentação da história da doutrina jusnaturalista, desde a antiguidade até a era

moderna, serviu para mostrar que a crença na existência de um direito natural foi responsável

pela construção de uma imagem do direito que ignora a sua inserção temporal. Ver-se-á que

em seu ápice, com o jusracionalismo moderno, a matriz jusnaturalista acreditou que a razão

humana seria capaz de descobrir prescrições de comportamento social juridicamente válidas

em qualquer época do tempo e lugar do espaço, em função da natureza matemática que se

pretendeu atribuir ao conhecimento moral. Para o jusracionalismo do início da era moderna, a

geometria moral produzida pela razão humana seria capaz de produzir um direito natural que

não carecia evoluir ou ser atualizado. Em razão do caráter lógico existente nas relações

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jurídicas construídas pela doutrina jusracionalista, o saber jurídico ganhou o status de um

saber matemático.

De outra sorte, a apresentação da história do discurso jurídico de matriz positivista

revelou que os métodos de interpretação e cognição do direito defendidos por essa teoria

impuseram ao direito um caráter atemporal. Seja sob a égide da exegese legalista da

hermenêutica romântica, seja a partir da abordagem semântica de Herbert Hart e de Hans

Kelsen, a experiência jurídica se restringiu a um trabalho de interpretação e compreensão de

significados linguísticos contidos na expressão formal do direito. Com isso, a partir do

positivismo jurídico o direito se prendeu ao eterno presente dos textos jurídicos estatais. Isso

teve como efeito temporal a cristalização do conteúdo do direito em um determinado

momento histórico específico, a saber, o instante da produção normativa. Assim, o direito

poderia dar-se ao luxo de não estar em compasso com tempo social e seguir uma lógica

temporal própria de ingresso e saída dos textos normativos do universo jurídico, já que as

mudanças do direito somente se dariam por meio de mudanças da legislação – isto é, por meio

da política legislativa.

O quarto capítulo se dedica a apresentar os problemas identificados pelo movimento

teórico do pós-positivismo à ausência de compreensão do direito a partir de uma perspectiva

temporal. Após uma breve descrição dos pressupostos que caracterizam a teoria pós-

positivista do método jurídico, apontou-se como dois importantes representantes dessa

corrente demonstraram os efeitos negativos à relação entre tempo e direito acarretados pela

prática jurídica realizada segundo os cânones do positivismo jurídico. Com François Ost,

mostrou-se de que maneira o positivismo jurídico obliterou a relação entre tempo e direito por

produzir uma concepção amnésica e instantaneísta do direito. Já por meio do estudo da teoria

de Ronald Dworkin, pretende-se explicar que traços do positivismo jurídico fizeram com que

o jurista deixasse de considerar a dimensão temporal do direito em sua interpretação da

prática jurídica. Ainda a partir do pensamento de Dworkin, pretende-se demonstrar que a

superação da leitura semântica do direito efetuada pelo positivismo tardio de Kelsen e Hart

passaria pela adoção de uma atitude interpretativa em relação ao direito. Isso faria com que as

considerações do intérprete sobre o propósito ou o valor do direito fossem o ponto de partida

para a interpretação jurídica, levando, assim, a uma necessária leitura temporal da prática

jurídica.

Dentre as diversas concepções apontadas por Dworkin como modelos concorrentes de

apresentação da prática jurídica, ver-se-á que o direito como integridade por ele defendido

produz uma relação equilibrada entre o direito e a temporalidade. Uma vez que essa

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concepção atribui o fundamento do direito ao material jurídico produzido no passado,

sintetizado sob a forma de princípios, e reconhece que a força normativa do direito decorre do

fato de que o intérprete defende suas interpretações como a melhor continuidade para a

história institucional da prática jurídica, a conclusão preliminar a que se chegou da análise do

pensamento de Dworkin é que o direito como integridade se vale de uma abordagem

cognitiva do direito de natureza similar à da memória.

Isso levará a pesquisa a se perguntar se o equilíbrio da relação entre tempo e direito

não envolveria necessariamente a incorporação do conceito de memória na compreensão do

direito. Com base nessas novas indagações, a investigação dá uma guinada em direção ao

estudo do fenômeno da memória e de suas nuances. O objetivo passa a ser verificar a

possibilidade de construção do conceito de memória jurídica, bem como a verificação de sua

importância para a teoria jurídica.

Desse modo, o quinto capítulo repassa em tela os traços característicos do conceito de

memória construídos nos ramos do saber que se dedicaram a sua teorização. Essa análise

começará por uma exposição da memória enquanto propriedade dos seres biológicos, a partir

de um resumo dos principais avanços científicos já consolidados nessa área. Tendo como

referência a síntese produzida pelo neurocientista Ivan Izquierdo, demonstrar-se-á em que

consiste a operação biológica da memória, que serve de matriz para a elaboração das diversas

metáforas e analogias pelos demais ramos do saber que empregam o termo memória em suas

construções teóricas.

A sequência da investigação acerca dos traços característicos do conceito de memória

se dará com a discussão que se processa no interior da ciência da história sobre importância

metodológica da memória para a investigação e para a apresentação do passado. Pretende-se

demonstrar que a história sempre manteve uma relação ambígua com a memória, ora

utilizando-a como forma privilegiada de realização do registro historiográfico por meio de seu

caráter intrinsecamente narrativo, ora atribuindo à memória a qualidade de um saber

permeado pela fantasia e pela imaginação. A apresentação do uso da noção de memória se

encerra com a renovação metodológica na investigação histórica trazida pelos estudos de

história oral, em que a memória deixa de ser fonte do conhecimento histórico para se tornar o

seu próprio objeto por meio da produção das histórias de vida e dos relatos orais.

A etapa seguinte de investigação dos traços característicos da memória consiste em

apresentá-la como objeto de investigação das ciências sociais em duas matrizes distintas.

Nesse ponto será importante a análise do pensamento do sociólogo Maurice Halbwachs, para

quem a memória se constrói e se reproduz a partir de quadros formados no interior dos grupos

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sociais em que um indivíduo se insere. Trata-se do conceito de memória coletiva, que

revolucionou os estudos sobre memória porque permitiu a identificação de um padrão social e

homogêneo da memória e aproximou as investigações históricas e sociológicas. Ver-se-á,

ainda, que o conceito de memória coletiva foi aperfeiçoado pelo historiador Jan Assmann de

modo a ganhar um status temporal mais duradouro. Segundo Assmann, quando a memória de

um grupo social se objetiva em formas culturais simbólicas, ela se converte em sua memória

cultural e permite a qualquer membro que se depara com esse objeto cultural participar e

comungar do passado do grupo social por meio da reconstrução da experiência histórica que

ele retrata. Desse modo, a memória cultural atuaria como elemento de promoção de

identidade coletiva no grupo social.

A segunda matriz de investigação da memória como objeto de estudo das ciências

sociais decorre da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Aqui a memória deixaria de ser

uma propriedade do indivíduo – da unidade que compõe a sociedade – para ser uma

propriedade atribuída ao sistema social como um todo, composto das comunicações

recursivas que circulam em seu interior. Como se verá, a memória será a operação

responsável por testar a consistência das comunicações consideradas relevantes para a

sobrevivência do sistema, permitindo, assim, que o mesmo possa relegar ao esquecimento as

comunicações irrelevantes ou sem significação. Isso evita o acúmulo de informações

desnecessárias que causam a inoperância do sistema social e proporciona a conservação do

conteúdo de comunicações utilizadas pelo sistema social em suas operações corriqueiras.

O estudo sobre os traços característicos da memória será concluído com a proposta de

construção de uma fenomenologia da memória feita por Paul Ricoeur. Nessa investigação, o

autor pretende restabelecer o estatuto epistemológico da memória. A partir uma exposição

fragmentada de tipos-ideais de fenômenos da memória, Ricoeur busca apontar de que maneira

se revela o caráter veritativo da memória envolvido em todas as formas de lembrança.

Essa análise multidisciplinar do conceito de memória permitirá que ao final do

capítulo seja possível sintetizar as características essenciais da noção de memória. Em síntese,

será possível afirmar, em primeiro lugar, que a memória é o elemento que promove a inserção

do indivíduo na temporalidade. Em segundo lugar, apontar-se-á que a memória consiste na

propriedade responsável por constituir a identidade do ser portador de memória, seja ele um

indivíduo ou grupo social. Por fim, verificar-se-á que a memória organiza a experiência

temporal sob a forma de um discurso narrativo.

No sexto e último capítulo esses três traços característicos do fenômeno da memória

servirão de referência para derivar três conceitos possíveis de memória jurídica. Cada um

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deles será responsável, a sua maneira, pelo resgate do equilíbrio da relação entre tempo e

direito, perdido em razão da hegemonia da prática jurídica de matriz teoria positivista. Em

primeiro lugar, a partir da teoria dos sistemas será possível caracterizar a memória jurídica

como a propriedade do subsistema social do direito que cria um valor responsável por

conservar operações comunicativas existosas em seu interior. A partir da noção de validade, o

subsistema jurídico pode estabelecer para si próprio distinções entre diferentes estados

temporais e, assim, construir a sua própria temporalidade a partir de marcações temporais

socialmente compartilhadas no sistema social. A segunda forma de caracterização da memória

jurídica consiste na função inerente ao direito de proporcionar a identidade coletiva por meio

de sua capacidade de proporcionar a integração social. Seja por meio da incorporação da

experiência jurídica ao acervo da memória social, conforme aponta Stephan Kirste, seja por

meio do emprego de suas prescrições e regulamentações para a preservação dos elementos

que promovem a indentidade social, segundo relata François Ost, a experiência jurídica se

mostra intrinsecamente atrelada ao seu papel de reforçar os laços coletivos que unem os

indivíduos em torno de um projeto coletivo de vida social. Por fim, partindo da concepção do

direito como integridade de Ronald Dworkin, será possível caracterizar a memória jurídica

como sendo a estrutura presente no raciocínio jurídico responsável por organizar a

experiência jurídica de forma narrativa. Esse modo de ser da memória jurídica decorre da

operação intrínseca de construção de uma metanarrativa da história da interpretação jurídica

pelo próprio intérprete, para que ele situe temporalmente a sua interpretação sobre o direito

que ele está a aplicar. O caráter narrativo dessa operação ficará manifesto a partir da

submissão do método do romance em cadeia, próprio do direito como integridade, aos

elementos que compõem o discurso narrativo na historiografia, explicitados por Paul Ricoeur

em Tempo e Narrativa.

Desse modo, será possível confirmar que cada uma dessas três vertentes da memória

jurídica é responsável por conduzir o direito a uma ligação íntima com o fenômeno da

temporalidade, em especial com o tempo social responsável por ditar as marcações temporais

da vida em sociedade. Com isso, passa-se a se exigir do discurso jurídico que abdique de uma

autocompreensão em bases exclusivamente normativas e, pelo contrário, se veja como um

discurso social intersubjetivo capaz de incorporar a experiência histórica sobre a vivência

social do direito em seu interior.

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2 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS CONDIÇÕES EPISTÊMICAS DO DISCURSO CIENTÍFICO E FILOSÓFICO SOBRE O TEMPO NO PENSAMENTO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

Tempo, tempo, mano velho Falta um tanto ainda eu sei,

Pra você correr macio Sobre o Tempo - John Ulhoa

Tendo em vista que o presente trabalho se propõe a investigar a existência e o papel de

uma memória jurídica1 na compreensão da experiência jurídica, a pesquisa necessariamente

deverá abordar a questão da relação2 existente entre o tempo e o direito3. Mais

especificamente, como se adota a premissa de que o direito se tornou indiferente à marcha do

tempo social a partir do advento do discurso científico positivista, faz-se necessário apontar

quais elementos desses dois conceitos levaram à construção da imagem de que o direito não

se relacionaria com o tempo, assim como o transcurso do tempo seria independente em

relação a qualquer condição exterior ao seu próprio fluxo. A origem dessa indiferença

recíproca entre tempo e direito remonta à formulação desses dois conceitos no início da

modernidade.

De um lado, foi nessa época que se consolidou uma concepção ‘objetiva’ e

‘naturalista’ do tempo em diferentes ramos do saber, como a Física e a Filosofia. Até hoje

essa concepção prevalece nas disciplinas não especializadas que se dedicam à reflexão sobre o

problema do tempo, fato que não favorece ao propósito da investigação mais profunda que

aqui se pretende traçar (STARR, 1966). De um modo geral, as ciências humanas e sociais e,

especificamente, o direito nunca problematizaram o conceito de tempo4. Tais disciplinas

1 Deixar-se-á uma definição mais extensa de memória jurídica para o capítulo próprio que irá analisar esse

conceito. Por hora, pode-se sintetizar o conceito de memória jurídica como a capacidade ativa de um grupo social organizar e estruturar a sua prática jurídica segundo um fio narrativo de modo a conferir identidade e unidade de sentido à compreensão de sua experiência jurídica.

2 Assume-se aqui a tese de François Ost (2005a) de que há uma relação dialética entre tempo e direito, no sentido de que o direito tem a função de conferir sentido social ao tempo, tornando-adequado ao momento histórico vivido, assim como o tempo é responsável por determinar a força instituinte do direito, reforçando, com isso o laço social entre os indivíduos. Essa relação será analisada com maior profundidade no próximo capítulo.

3 Em diversas passagens do texto o leitor irá perceber que se emprega a expressão ‘tempo’ na condição de sujeito, como se o mesmo fosse um ente. No entanto, a finalidade dessa subjetivação do tempo tem o único intuito de construir metáforas capazes de exprimir melhor as construções conceituais que se pretende fazer ao longo do trabalho. O que é, na verdade, o tempo, segundo as contribuições de diversas áreas do conhecimento, será debatido ao longo do capítulo. O mesmo vale para o direito.

4 A título de exemplo, vale transcrever um interessante depoimento sobre como a historiografia também se mantém alheia aos debates sobre o problema do tempo: “When occasionally the historian looks up from his facts, he will perhaps be amazed to hear that some colleagues in allied fields find time to be ‘one of the most difficult and insoluble problems we meet at the ultimate boundary of our thinking about the world’. In normal

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sempre lidaram com o tempo apenas como se ele fosse uma dimensão objetiva em que se

desenrolam os eventos e acontecimentos no mundo. Entretanto, nem a Física, nem a Filosofia

aceitam de maneira unânime essa posição. Assim, propõe-se como primeiro esforço desse

capítulo apresentar uma breve síntese do status das reflexões teóricas sobre o conceito de

tempo na epistemologia moderna e contemporânea5. O propósito dessa recapitulação é traçar

um mapa geral das concepções sobre o tempo capazes de fornecer referências para se

construir as possíveis relações existentes entre tempo e direito. Especificamente, pretende-se

apontar as diversas concepções de tempo que superam a visão objetiva e naturalista construída

na era moderna, na medida em que fazem do tempo um conceito permeável às experiências

sociais e culturais do homem e delas dependente.

É lugar comum mencionar que a natureza do tempo consiste em um dos problemas

mais misteriosos que circunda o homem. E talvez seja mais lugar comum ainda invocar a

célebre passagem das Confissões de Santo Agostinho6 como forma de demonstrar o

sentimento de perplexidade envolvido nessa reflexão. No entanto, o debate sobre o tempo é

tão rico em nuances e posições que o misto de espanto e admiração diante desse enigmático

tema torna-se, de fato, natural.

Nesse capítulo serão abordadas três diferentes perspectivas de análise do conceito do

tempo. Cada uma delas encara o tempo a partir de uma matriz epistemológica específica, que

se diferenciam em razão de como concebem a ‘natureza’ do tempo. A matriz física concebe o

tempo como um elemento do mundo natural. A matriz filosófica concebe o tempo como uma

practice, the modern historical student simply eliminates this range of controversy on the ground that it represents an unwarranted intrusion into historical narrative of the theoretical issues connected with human destiny and the purpose of man’s development. A more direct criticism of the philosophical approach, which is sometime made by reflective historians, is their judgment that theologians and philosophers reify time and thus – from the historical point of view – corrupt its meaning from that of a chronological scale to the events which take place along this scale.” (STARR, 1966, p. 24-25). (Tradução nossa: “Quando ocasionalmente o historiador olha além de suas próprias questões, ele talvez irá se espantar em ouvir que alguns colegas de ramos similares do saber consideram o tempo como ‘um dos mais difíceis e insolúveis questões que encontramos nas fronteiras limítrofes de nosso pensamento sobre o mundo’. Em sua prática normal, o moderno estudante de história simplesmente elimina essa gama de controvérsias de seu campo de visão sob o argumento de que isso representaria uma intromissão não autorizada de questões teóricas conectadas com o destino e com a finalidade do desenvolvimento humano na narrativa histórica. Uma crítica mais direta da abordagem filosófica, que é feita em algumas ocasiões por historiadores teóricos, é a sua conclusão de que teólogos e filósofos reificam o tempo e, portanto – de um ponto de vista histórico –, corrompem aquele seu significado de que seria uma escala cronológica em que os eventos acontecem nessa escala.”)

5 Por não interessar diretamente às conclusões desse trabalho, optou-se por não apresentar a longa tradição de reflexão sobre o conceito de tempo na filosofia antiga, que se inicia em Anaximandro, passa por Zenão de Élea, Platão e Aristóteles, até chegar ao pensamento estóico. Para uma síntese desse debate recomenda-se a leitura de Starr (1966).

6 “O que é realmente o tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Quem poderia captar o seu conceito, para exprimi-lo em palavras? No entanto, que assunto mais familiar e conhecido em nossas conversações? Sem dúvida, nós o compreendemos quando dele falamos, e compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Por conseguinte, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei.” (AGOSTINHO, 2006, p. 338).

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propriedade da estrutura cognitiva humana. E a matriz sociológica concebe o tempo como

uma instituição social. Por partirem de premissas incomensuráveis, não se procederá a

nenhum tipo de análise comparativa das matrizes entre si, como se uma pudesse refutar ou

suceder a outra – muito embora na exposição de um determinado autor, será possível

identificar críticas aos conceitos de tempo de autores que partem das outras matrizes. A

finalidade da reconstrução histórico-crítica do discurso científico e filosófico sobre o tempo é

apontar como o desenvolvimento dessas três matrizes formulou diferentes imagens do tempo

e, explícita ou implicitamente, condicionou a relação entre tempo e direito. Pretende-se, com

isso, apontar os limites de possibilidade do discurso científico em cada época do

desenvolvimento histórico a fim de indicar que as mudanças na prática discursiva que

ocorrem no interior de cada um desses ramos do saber leva a uma necessidade de

reformulação da relação entre tempo e direito7.

2.1 A matriz física: o tempo como uma propriedade do mundo natural

Desde a Revolução Científica8 ocorrida no início da era moderna, a Física iniciou um

processo de redução do seu campo de investigação aos fenômenos do mundo natural. Em

consonância com o paradigma emergente, o saber sobre o mundo físico contou cada vez

7 A metodologia adotada na elaboração dessa reconstrução – e também na que se operará no terceiro e quarto

capítulos – tem por referência o desvalemanto da racionalidade imanente à razão comunicativa presente em uma determinada época do desenvolvimento histórico, tal como sustentado por Jürgen Habermas em sua proposta de uma teoria reconstrutiva da sociedade. Essa metodologia encontra-se esboçada no trabalho de reconstrução da teoria do direito feita por Habermas em Faticidade e Validade e que aqui se apropriará: “O que torna a razão comuncativa possível é o medium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam. Tal racionlidade está escrita no telos lingüístico do entendimento, formando um ensemble de condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadora. Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com um destinatário sobre algo no mundo, vê-se forçado a adotar um enfoque performativo e a aceitar determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as consequências da interação e que resultam de um consenso. E o que está embutido na base de validade de fala também se comunica às formas de vida reproduzidas pela via do agir comunicativo. A racionalidade comunicativa manifesta-se num contexto descentrado de condições que impregnam e formam estruturas, transcendentalmente possibilitadoras;” (HABERMAS, 2003, p. 20). É por meio da identificação da razão comunicativa presente no discurso científico, filosófico e jurídico da era moderna que será possível traçar o espectro das pretensões de validade da verdade proposicional, da veracidade subjetiva e da correção normativa sobre a relação entre tempo e direito ao longo de todo esse período até se chegar aos debates contemporâneos sobre o tema. Por essa razão, é que o recorte epistemológico utilizado para a análise do problema do tempo circunscreveu-se às três matrizes de investigação acima mencionadas – física, filosófica e sociológica – já que foram elas que contribuíram da maneira relevante para o aprofundamento da relação entre tempo e direito que se pretende analisar. Isso justificou deixar de lado outras tradições de reflexão sobre o tempo, como a que se verifica na história, na literatura ou na psicologia, por exemplo.

8 Denomina-se Revolução Científica o processo de mudança paradigmática vivenciado pela ciência a partir do séc. XV e que culminou na sublimação do método experimental e no emprego da linguagem matemática na descrição dos processos físicos do mundo natural.

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menos explicitamente com pressupostos metafísicos em seus domínios e confiou cada vez

mais nos conhecimentos lastreados na experiência empírica e, preferencialmente, oriundos de

experimentos controlados e passíveis de mensuração. A reflexão sobre o problema do tempo

seguiu essas premissas. Como afirma Paty (1996), a proposta dos físicos modernos era

construir uma noção de tempo que substituísse o sentimento de ‘passagem’ proveniente do

senso comum. Afinal, a experiência psicológica da passagem do tempo não poderia ser

traduzida em quantidades objetivas e, portanto, não servia para auxiliar a tarefa de descrição

objetiva da realidade natural. Da mesma maneira, a concepção aristotélica de tempo estava

vinculada a uma série de pressupostos metafísicos de sua filosofia9 (REY PUENTE, 2001) e,

portanto, não se ajustava às exigências do discurso científico moderno.

A fim de se desvincular da referência à percepção humana da passagem do tempo, ou

de se despojar das matrizes metafísicas da filosofia antiga, os físicos passaram a investigar o

tempo como um fenômeno da natureza passível de ser descrito em realidades numéricas. A

partir da constatação de que os eventos do mundo natural sucedem uns aos outros e que o

intervalo entre eles pode ser medido objetivamente, a Física concluiu existir um fluxo

temporal cuja ‘ontologia’ se situa na própria natureza. À Física não caberia avançar em

especulações sobre a finalidade ou o papel desse fluxo, mas apenas aperfeiçoar a descrição

desse fenômeno a ponto de fazê-la corresponder de modo mais exato possível à realidade

constatada nos experimentos realizados. O resultado foi, então, a construção da imagem do

tempo como um ‘quadro’ ou ‘plano’ temporal. Nesse plano, os eventos do mundo físico são

representados por coordenadas passíveis de mensuração objetiva e expressão em linguagem

matemática10 (PATY, 1996).

No tópico que se inicia pretende-se apresentar a formação dessa imagem do tempo

pela Física moderna e sua continuidade na Física contemporânea. A exposição será dividida

em duas partes, segundo as contribuições dos dois grandes ramos da Física que se dedicam a

estudar o movimento e, com ele, o fenômeno do tempo: a mecânica clássica e a mecânica

quântica. A primeira tem a importância de ter consolidado a imagem do tempo na era

moderna e de ter lançado as bases desse conceito para todas as construções posteriores que

não se dedicaram a uma reflexão especializada sobre o tempo – como ocorreu no caso do

Direito. A segunda apresenta a grande virtude de realizar um questionamento incisivo ao

9 Para uma monografia em língua portuguesa sobre os diversos sentidos do conceito de tempo em Aristóteles e

seu modo de integração na metafísica aristotélica, recomenda-se a leitura de Rey Puente (2001). 10 Essa perspectiva diverge radicalmente da abordagem qualitativa recebida pelo tempo no pensamento antigo,

como se verifica em Aristóteles, por exemplo, para quem o tempo possuía múltiplos significados.

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conceito clássico de tempo da era moderna e, portanto, permitir que a ciência avance em

busca de uma compreensão mais profunda desse conceito.

2.1.1 O tempo absoluto da mecânica clássica de matriz newtoniana

Qualquer tempo é tempo. A hora mesma da morte

é hora de nascer Qualquer Tempo – Carlos Drummond de Andrade

Um dos principais fundadores da Física moderna foi Galileu Galilei. Sua grande

contribuição à ciência foi a de desvincular o pensamento científico das sínteses metafísicas

totalizantes – notadamente a Física aristotélica – para reuni-lo com o método experimental11

(KOYRÉ, 1973). Ao contestar o saber dogmático tradicional por meio de resultados

alcançados pela observação direta e pela medição dos fenômenos naturais em experimentos

controlados, Galileu se mostrou um ardente defensor da ‘Nova Ciência’ como modelo de

explicação do mundo físico (BANFI, 1983).

Essa física nascente de caráter experimental12 tornou-se a base do método científico da

ciência moderna13. Seu propósito era o de “substituir o problema da essência da realidade, do

seu fim absoluto, do seu significado último pelo problema da sua estrutura fenoménica, o

problema do ‘porquê’ pelo do ‘como’ dos factos.” (BANFI, 1983, p. 37). Dentro dessa

11 “Ce que les fondateurs de la science moderne, et parmi eux Galilée, devaient donc faire, ce n’était pas de

critiquer et de combattre certaines théories erronées, pour les corriger ou les remplacer par de meuilleres. Ils devaient faires tout autre chose. Ils devaient détruire un monde et le remplacer par un autre. Ils devaient réformer la structure de notre intelligence elle-même, formuler à nouveau et réviser ses concepts, envisager l’Être d’une nouvelle manière, élaborer un nouveau concept de la connaiscence, élaborer un nouveau concept de la science.” (KOYRÉ, 1973, p. 171). (Tradução nossa: “O que os fundadores da ciência moderna, dentre eles Galileu, tiveram que fazer não era criticar e combater certas teorias errôneas, para lhes corrigir ou substituir por outras melhores. Eles tiveram que fazer uma outra coisa completamente diferente. Eles tiveram que destruir um mundo e substituí-lo por um outro. Eles tiveram que reformar a estrutura de nossa inteligência ela própria, a fim de reformular e revisar seus conceitos, vislumbrar o Ser de uma nova maneira, elaborando um novo conceito do conhecimento, elaborando um novo conceito da ciência.”).

12 Schmitt (1969) debate a origem das noções de ‘experiência’ e ‘experimento’ no período pré-renascentista como uma forma de tentar compreender esse giro em direção a um novo método científico.

13 Banfi (1983, p. 39) descreve em que consiste o método experimental desenvolvido por Galileu para a ‘Nova Ciência’:“ A indução científica consiste, pois, na transformação do facto num sistema de relações matematicamente exprimíveis. A empiricidade daquele facto dá assim lugar a uma lei que determina invariavelmente a sua estrutura e as suas variações, o saber físico atinge a necessidade e a universalidade do saber matemático. O processo heurístico da ciência desenvolve-se para Galileu segundo esse ciclo. Com base na observação experimental, vai-se formulando hipoteticamente uma lei geral exprimindo relações matemáticas tais que possam representar a estrutura do fenómeno. Em seguida, deduzida da hipótese de uma série de conclusões, estas são confrontadas com os dados da experiência, conduzida com base no próprio fenómeno considerado na correlação quantitativa interna dos seus elementos. Análise (método resolutivo) e síntese (método compositivo) harmonizam-se neste processo. E a observação, dirigida essencialmente no sentido de uma análise quantitativa, desenvolve-se apenas com base numa hipótese matemática geral; mas esta, por sua vez, confirma-se e universaliza-se enriquecendo-se apenas por meio da observação experimental.” .

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perspectiva, o cientista assumiu a posição de observador passivo dos fenômenos naturais e o

conhecimento produzido nos experimentos não passava de um teste que o cientista submetia à

natureza com vistas a descrever os seus resultados (SCHMITT, 1969).

Galileu propôs, assim, uma leitura matemático-geométrica dos fenômenos da natureza

(BUTTS, 2000). A partir da medição do tempo em experimentos voltados à explicação de

fenômenos naturais – como a queda livre, os projéteis e o movimento uniforme – o tempo se

tornou a variável objetiva do cálculo da duração do movimento. A fim de encontrar a

velocidade precisa de um objeto, o cientista recorria à variável ‘t’, ou ∆ t, que serve para

medir a quantidade de tempo transcorrido entre dois determinados eventos. Com isso, o

tempo se tornou ‘espacializado’, assumindo a forma de uma dimensão ou plano temporal: o

plano da sucessão de momentos que compõem o movimento. Não há aqui nenhum elemento

metafísico ou sobrenatural na análise do tempo, mas apenas a constatação de que entre dois

eventos sucessivos há uma ‘distância’ temporal que pode ser expressa em unidades de tempo.

A estrutura da Mecânica moderna foi posteriormente concluída pela ‘filosofia

experimental’ de Isaac Newton. Newton, à semelhança de Galileu, advogou uma radical

separação entre metafísica e ciência, defendendo que questões pertinentes aos elementos do

mundo físico fossem respondidas exclusivamente por meio de pesquisas e experimentos

científicos (COHEN; SMITH, 2002).

A investigação sobre o problema do espaço e do tempo nasceu da investigação sobre a

‘estrutura do mundo físico’ exigida para uma teoria sobre o movimento. Newton queria

eliminar os conceitos metafísicos na montagem dessa estrutura. Sua intenção era definir a

estrutura do mundo físico de tal maneira que as conexões causais existentes na mecânica do

mundo concreto pudessem vir à tona por sua própria conta, unicamente a partir da observação

empírica (DISALLE, 2002).

Em seus Principia Mathematica (1687), Newton cunhou o conceito de ‘tempo

absoluto’14 exigido por essa ‘estrutura do mundo físico’ e em conformidade com o novo

14 Newton sofreu muitas críticas pelo fato de seu conceito de tempo estar associado à expressão ‘absoluto’.

Desde os interlocutores de seu próprio tempo (Leibniz, p. ex.) aos físicos contemporâneos que desenvolveram a teoria da relatividade (Einstein e seus sucessores), todos contestam o caráter ‘absoluto’ do tempo e da simultaneidade de dois eventos. Disalle (2002, p. 34-35) apresenta uma síntese dessas críticas, afirmando que a grande maioria delas nasce de uma compreensão equivocada do que Newton quis mencionar com a expressão ‘absoluto’. O autor demonstra que, em verdade, o conceito de tempo absoluto de Newton não diverge de modo radical, como se tem afirmado, da concepção de tempo defendida pela teoria da relatividade: “In the 1960s and 1970s, however, many scientists and philosophers began to recognize what a few had known all along: that general relativity does not make space, time, and motion “generally relative,” as Einstein had thought. Instead, the theory postulates a spatio-temporal structure that is, in an obvious sense, just as “absolute” as the structures postulated by Newton. On the one hand, Einstein’s field equation relates the geometry of space-time to the distribution of matter and energy. Thus, if “absolute” means “fixed and

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método científico que se amparava unicamente na experiência para análise dos assuntos

relacionados ao mundo físico: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual

por si mesmo e por sua natureza, sem relação com qualquer coisa externa, chamando-se com

outro nome: ‘duração’.” (NEWTON, 1974, p. 14). Arthur (1995) explica que a origem dessa

caracterização do tempo a partir do fluir igual por si mesmo e constante deriva da propriedade

observável nos ‘fluentes’ (fluents). Toda e qualquer matéria que flui pressupõe um fluxo

temporal para o seu fluir, pois uma quantidade fluida não pode continuamente aumentar ou

diminuir o seu volume sem que o tempo, ele próprio, não sofra um contínuo acréscimo. O

índice ou taxa de fluir dos ‘fluentes’ – suas respectivas ‘marchas’ ou ‘velocidades’ –, por sua

vez, fornece uma base de comparação para o seu o fluxo, assim como serve de medida para o

próprio fluir do tempo – este observado como uma marcha constante. Daí porque Newton

consegue construir a noção de tempo absoluto, de fluir constante, igual e ‘sem relação com

qualquer coisa externa’ (ARTHUR, 1995).

O tempo absoluto é, portanto, uma tentativa de se atribuir uma explicação física para o

fenômeno da simultaneidade absoluta, isto é, para o fato de que dois intervalos de tempo,

uniform,” or “unaffected by material circumstances,” then we can say that spacetime in general relativity is not “absolute,” but “dynamical.” On the other hand, spacetime in general relativity remains “absolute” in at least one philosophically decisive sense: it is not an abstraction from relations among material things, but a “physically objective” structure open to objective empirical investigation. Moreover, the theory does indeed make “absolute” distinctions among states of motion; it draws these distinctions in a way that departs dramatically from Newton’s theory, but they remain physically objective distinctions that do not depend on the arbitrary choice of a reference-frame. It became clear, then, that Newton’s theory and Einstein’s special and general theories all make essentially similar claims about the world: each specifies a certain “absolute” spatio-temporal structure, along with physical assumptions – primarily about the nature of force and inertia – that enable us to connect that structure with experience. In other words, conceptions of space and time are not arbitrary metaphysical hypotheses appended to otherwise empirical physics; they are assumptions implicit in the laws of physics. Defenders of Newton began to argue that “absolute” space-time structures are not so very different from other unobservable “theoretical entities” introduced into physics, such as fundamental particles and fields.”. (Tradução nossa: “Nos anos 1960 e 1970, contudo, muitos cientistas e filósofos começaram a reconhecer o que alguns poucos já sabiam ao longo de muito tempo: que a relatividade geral não faz o espaço, o tempo e o movimento ‘geralmente relativos’, como Einstein havia pensado. Ao invés, a teoria postula uma estrutura espaço temporal que é, em um sentido óbvio, tão ‘absoluta’ como as estruturas postuladas por Newton. De um lado, a equação de campo de Einstein relaciona a geometria do espaço-tempo à distribuição de matéria e energia. Então, se ‘absoluto’ significa ‘fixo e uniforme’, ou ‘não afetado por circunstâncias materiais’, então nós podemos dizer que o espaço-tempo na relatividade geral permanece ‘absoluto’ ao menos em um e decisivo sentido filosófico: ele não é uma abstração de relações entre coisas materiais, mas uma estrutura ‘fisicamente objetiva’ aberta à investigação empírica objetiva. Mais ainda, a teoria faz, de fato, distinções ‘absolutas’ entre estados de movimento: ela desenha essas distinções de um modo que diverge dramaticamente da teoria de Newton, mas elas permanecem distinções fisicamente objetivas que não dependem da escolha arbitrária de uma estrutura de referência. Torna-se claro, então, que a teoria de Newton e as teorias geral e especial de Einstein ambas fazem pretensões essencialmente similares sobre o mundo: cada uma especifica uma certa estrutura espaço-temporal ‘absoluta’, juntamente com assunções físicas – primordialmente sobre a natureza da força e da inércia – que nos permite conectar essa estrutura com a experiência. Em outras palavras, concepções de espaço e tempo não são hipótese metafísicas apensadas a, em outro sentido, física empírica; elas são assunções implícitas nas leis da física. Defensores de Newton começaram a argumentar que estruturas ‘absolutas’ espaço-temporais não são tão diferentes de outras entidades teoréticas não observáveis introduzidas na física, tais como partículas fundamentais e campos.”)

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medidos simultaneamente e pelo mesmo relógio, são iguais15. Isso comprova, por exemplo, a

lei da inércia, segundo a qual movimentos submetidos a uma mesma força atravessam o

mesmo espaço em um mesmo lapso de tempo (DISALLE, 2002).

Uma vez que é da essência do tempo absoluto possuir um fluir constante e igual, ele

pode ser medido por instrumentos de precisão, o que lhe confere também um status objetivo.

Ceteris paribus, eventos similares não apresentaram variação em sua duração: “O tempo

absoluto é um fluxo independente do observador contra o qual o relógio pode ser ajustado (da

perspectiva de um olhar divino) para sua precisão (uma espécie de condutor transcendente

contra o qual o ritmo do relativo pode ser medido).” (KAIL, 2002, p. 14, tradução nossa). 16

A posterior redução do ‘segundo’ – unidade temporal de referência – à

correspondência com um evento do mundo físico completou o processo de ‘objetivação’ do

tempo na física e comprovou a tese da simultaneidade absoluta. Afinal, o intervalo de um

segundo teria sempre a duração de um segundo17, desde que medido com instrumentos

adequadamente calibrados, independentemente do sujeito que percebe o transcorrer do tempo

ou do lugar em que ocorreu a experiência (ARTHUR, 1995).

Hawking (2000) afirma que os estudos sobre termodinâmica18 consistem no ponto

culminante da explicação da Física moderna para o conceito e a natureza do tempo. Pois,

segundo o autor, a partir do postulado da segunda lei da termodinâmica, ter-se-ia uma

comprovação física da percepção psicológica de que o tempo corre segundo uma flecha

unidirecional e irreversível. De acordo com a segunda Lei da Termodinâmica, em todo

15 “Newtonian time is absolute in the sense that the simultaneity of two events e1 and e2 requires only a two-

place relation of simultaneous with between e1 and e2, rather than a three-place relation among e1, e2, and a reference frame (or a three-dimensional hypersurface of space-time), namely, e1’s being simultaneous with e2 relative to a reference frame F. Newtonian space is similarly absolute in the sense that length is a monadic property of physical objects, rather than a relational property of physical objects that includes a relation to a reference frame or hypersurface.” (CRAIG; SMITH, 2008, p. 1-2). (Tradução nossa: “O tempo newtoniano é absoluto no sentido de que a simultaneidade de dois eventos ‘e1’ e ‘e2’ exige apenas uma relação de dois lugares simultâneos entre ‘e1’ e ‘e2’, ao invés de uma relação de três lugares entre ‘e1’, ‘e2’ e uma estrutura de referência (ou a hipersuperfície do espaço-tempo de três dimensões), a saber, os eventos de tipo ‘e1’ sendo simultâneos aos eventos ‘e2’ relativamente a uma estrutura de referência F. O espaço newtoniano é absoluto de maneira similar, no sentido de que a sua extensão é uma propriedade monádica dos objetos físicos ao invés de uma propriedade relacional dos objetos físicos, que incluiria uma relação a uma estrutura de referência ou hipersuperfície.”).

16 Absolute time is an observer-independent ‘flow’ against which the clocks can be assessed (from a God’s eye point of view) for accuracy (a kind of transcendent conductor against which tempo of the relative can be measured).

17 Segundo a definição do Bureau Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), “O segundo é a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133.” (CCU; CIPM, 2006, p.2).

18 As leis da termodinâmica nasceram dos estudos de Carnot e foram sintetizadas posteriormente por Lorde Kelvin e Rudolf Clausius e se prestam a descrever matematicamente os processos de troca de calor (transformações) entre corpos relacionados entre si em um sistema.

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sistema fechado, a entropia19 aumenta com o passar do tempo, liberando calor (REALE;

ANTISERI, 1991). No fluxo dos acontecimentos do sistema constituído pelo universo natural,

também se percebe a constante passagem de um estado mais ordenado para um estado menos

ordenado. Desse modo, pela segunda Lei da Termodinâmica, a entropia do universo tende a

um grau máximo. Como os processos de troca de calor geradores de maior entropia no

sistema ocorrem no tempo, este somente poderia ter um fluxo unidirecional e irreversível20. O

tempo somente poderia fluir do passado em direção ao futuro, posições que se definiram pelo

estado ‘menos entrópico’ em relação ao estado ‘mais entrópico’. Espontaneamente não seria

possível nenhuma reversão nesse processo, a não ser que houvesse a intervenção de um

elemento externo ao sistema21 (HAWKING, 2000).

A noção de tempo legada pela Física moderna foi a de um fluxo contínuo, invariável e

permanente, que situa os eventos já ocorridos no passado e permite que os eventos vindouros

tenham um lugar no futuro. O caráter absoluto do tempo conferiu-lhe ainda o status de um

‘dado’ inflexível no qual a experiência é medida por unidades socialmente padronizadas de

contagem do tempo (segundos, minutos, horas, dias, anos, séculos, etc...). Essa noção

‘objetiva’ e ‘natural’ do tempo da Física culminou em um processo de determinação temporal

extremamente dependente das marcações dos relógios e calendários. Com isso, os eventos

puderam ser distribuídos e avaliados segundo a sua ordem temporal e a sua duração objetiva.

Elias (1998) argumenta que essa é uma concepção ‘fria’22 de tempo, que somente permite o

estabelecimento de relações entre o tempo e a experiência cultural por meio de uma

cronologia imparcial e neutra dos acontecimentos.

19 Entropia pode ser definida como a “grandeza que expressa a desordem que, em um sistema fechado, cresce

irreversivelmente a cada transformação” (REALE; ANTISERI, 1991, p. 382). 20 Prigogine (2002) afirma que o princípio da irreversibilidade do tempo estabelecido pela segunda lei da

termodinâmica é um produto da cultura científica de uma época e que os fenômenos de não-equilíbrio conferem ao transcurso do tempo um papel construtivo e não de simples acréscimo entrópico.

21 Hawking (2000, p. 200) ilustra essa afirmação com o exemplo da xícara de água sobre a mesa: “De fato, existe uma grande diferença entre as direções para frente e para trás do tempo real na vida comum. Imagine-se uma xícara de água caindo de uma mesa e se quebrando em muitos pedaços no chão. Se filmamos este evento, pode-se facilmente dizer se o filme está sendo projetado para frente ou para trás. Se o projetarmos para trás, ver-se-ão os cacos subitamente se reunindo sobre o chão e pulando para cima a fim de formar uma xícara inteira sobre a mesa. Pode-se dizer que o filme está sendo projetado para trás porque este tipo de comportamento não é nunca observado na vida cotidiana. Caso contrário, as fábricas de louça abririam falência. A explicação que usualmente se dá para o porquê de não se ver rotineiramente xícaras quebradas reunindo seus cacos no chão para saltar sobre a mesa é que isto contradiz a segunda lei da termodinâmica, que afirma que, em qualquer sistema fechado, a desordem ou entropia, sempre aumenta com o tempo. Em outras palavras, é uma forma da lei de Murphy: as coisas sempre tendem a ser malsucedidas. Uma xícara intacta sobre a mesa representa um estado de alta organização, mas uma xícara quebrada no chão encontra-se em estado desordenado. Pode-se ir da xícara sobre a mesa no passado para a xícara quebrada no chão no futuro, mas não na direção inversa.”.

22 Na mesma esteira, Prigogine (2002, p. 13) afirma que a noção clássica de tempo é, de certo modo, pobre: “A introdução do tempo no esquema conceitual da ciência clássica significou um enorme progresso. E, no entanto, ele empobreceu a noção de tempo, pois nele não se faz distinção entre o passado e o futuro.”.

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Essa imagem tradicional e naturalizada do tempo foi incorporada pelo direito em seu

cotidiano. Nos diversos ramos do direito positivo, é possível identificar uma série de institutos

que atribuem efeitos jurídicos ao fato do transcurso do tempo. Pense-se, por exemplo, nos

institutos da prescrição e da decadência, do usucapião, do vencimento das obrigações

contratuais e comerciais, dos prazos23 processuais e administrativos, da duração das jornadas

de trabalho e dos períodos de descanso, da fixação e do cumprimento das sentenças penais

condenatórias à privação da liberdade. Em todas as situações, a imagem que o direito formula

do tempo é justamente a de um plano temporal no qual é possível pontuar a ocorrência de

eventos e acontecimentos a partir de unidades de tempo socialmente padronizadas.

Os efeitos da passagem do tempo também obrigam a legislação a criar regras sobre o

fato de o direito se situar ‘no tempo’. No direito brasileiro a Lei de Introdução às normas do

Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42) traz um conjunto de prescrições denominado

‘direito intertemporal’, que trata da mudança legislativa no tempo e a harmonização do

sistema jurídico. Como o postulado da coerência do ordenamento jurídico impede que duas

diferentes leis sobre o mesmo tema, contraditórias entre si, coexistam no sistema (BOBBIO,

1997), o direito precisa definir com exatidão o momento que uma lei entre em vigor e exclui a

vigência da outra ou ainda quais situações jurídicas já consolidadas estão albergadas em

relação à mudança legislativa.

Quando se analisa o trabalho da construção doutrinária dos ramos específicos do

direito sobre a questão do direito no tempo, o que se verifica é uma série de esquemas e

princípios com a finalidade de harmonizar a aplicação do direito em face da sucessão contínua

de eventos e acontecimentos. Dentro da proposta dogmática24 da ciência jurídica tradicional, o

jurista busca lidar com o problema da sucessão temporal25, abstendo de se lançar em uma

reflexão mais aprofundada sobre o tema.

Essa falta de perspectiva crítica dos juristas sobre a questão da sincronia do direito em

relação ao seu tempo é fruto da imagem do tempo legada pela ciência moderna. No entanto,

compreender o tempo sob essa perspectiva não é motivo de embaraço ou vergonha para os

23 A importância dos efeitos jurídicos atribuídos pela legislação processual à não observância dos prazos é um

indicativo de como a vida jurídica encontra-se disciplinada pelo tempo objetivo. A legislação processual chega até mesmo a determinar às partes do processo como deve ser feita a contagem do tempo em que transcorre o prazo.

24 Por ‘compreensão dogmática do direito’ entende-se a tarefa empreendida pela ciência do direito voltada à análise e descrição das normas jurídicas como proposições vinculantes de comportamento, com o fito de servir à decidibilidade dos conflitos. Por consequência, a compreensão dogmática reduz e simplifica o direito a seu aspecto normativo, criando tanto uma blindagem epistemológica contra eventuais questionamentos valorativos, quanto uma indiferença em relação aos efeitos sociais da prática jurídica (FERRAZ JÚNIOR, 2010).

25 É o que se verifica em construções doutrinárias como a teoria da imprevisão do direito contratual.

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juristas ou mesmo para o próprio legislador. Afinal, as regras jurídicas que disciplinam o

comportamento das pessoas de fato se prestam a resolver questões concretas do cotidiano e

necessariamente envolvem o problema da passagem do tempo. Questiona-se, contudo, que no

campo da reflexão a que se propõe a teoria e a filosofia do direito, limitar a relação entre

tempo e direito a essa perspectiva é permanecer obtuso em relação a um objeto de análise

extremamente rico e revelador da experiência jurídica.

Até mesmo porque nem a própria Física referenda mais essa concepção objetiva do

tempo. O próximo tópico será dedicado a explorar como o tempo absoluto newtoniano deixou

de ser aceito como verdadeiro nos círculos do conhecimento científico pelos avanços da teoria

da relatividade e da mecânica quântica. A superação da abordagem clássica do conceito físico

de tempo foi responsável pela abertura de novas possibilidades epistemológicas nas teorias

científicas em geral. Consequentemente, as ciências sociais também não ficaram imunes a

essa nova abordagem.

2.1.2 O espaço-tempo da física quântica

Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia,

mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia Fragmentos de um Evangelho Apócrifo – Jorge Luís Borges

A concepção de tempo elaborada pela Física moderna gozou de hegemonia no

imaginário do senso comum e também das disciplinas especializadas do conhecimento

científico. A razão desse sucesso está em sua correspondência à compreensão ordinária que se

tem da imagem da ‘linha do tempo’ fornecida por calendários e relógios (ELIAS, 1998).

Contudo, o tempo absoluto – unidirecional, de fluir constante e independente da matéria que

lhe é externa – foi colocado à prova pelo avanço de experimentos e teorias desenvolvidas no

campo da própria Física. Esse tópico irá abordar os questionamentos à tese newtoniana do

tempo absoluto a partir da teoria da relatividade de Albert Einstein e do seu posterior

desenvolvimento pela Física quântica.

O advento da teoria da relatividade de Albert Einstein colocou em xeque a visão

tradicional do tempo defendida pela mecânica clássica. A teoria ou princípio da relatividade é

a expressão genérica dada ao ““[...] princípio geral de que uma estrutura em movimento

translativo uniforme, relativo à estrutura inercial, não pode ser distinguida daquela da

estrutura inercial por nenhum experimento físico de qualquer natureza [...]” (BOI, 2004, p.

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431, tradução nossa).26 A teoria da relatividade se subdivide em teoria da relatividade especial

e teoria da relatividade geral. A primeira demonstrou que a simultaneidade verificada por

Newton estaria condicionada ao referencial dos observadores, isto é, à maneira como se

movem no espaço-tempo27. Já a segunda sustenta que espaço e tempo possuem propriedades

geométricas reciprocamente intrínsecas, isto é, o modo como a matéria se comporta depende

da curvatura do espaço-tempo, assim como a geometria do espaço-tempo não é um dado, mas

está condicionada à matéria e ao seu movimento (BOI, 2004).

A partir de uma epistemologia positivista de matriz machiana28, Einstein negou o

caráter absoluto do tempo e do espaço ao argumento de que essa ideia não seria observável29,

26 [...] general principle that a frame in uniform translatory motion relative to a inertial frame cannot be

distinguished from that inertial frame by any physical experiment whatsoever [...]. 27 Espaço-tempo é um conceito que foi primeiramente desenvolvido por Minkowsi em 1908 para descrever

matematicamente os eventos que ocorrem no mundo físico e que ganhou destaque com Einstein por permitir uma melhor descrição das Leis da Teoria da Relatividade Geral (BOI, 2004). Para uma completa análise do conceito de espaço-tempo e suas repercussões nos principais debates referentes à filosofia da ciência recomenda-se a leitura do artigo de Callender e Hoefer (2002). Ao longo desse tópico o conceito será retomado para uma explicação mais detalhada.

28 Ernst Mach (1938-1916) defendia um conceito biológico de conhecimento, por meio do qual somente se conhece aquilo que efetivamente é acessível ao homem através das sensações, de tal forma que a realidade é composta justamente pelo conjunto das sensações na mente humana. O conhecimento científico se edificaria, portanto, sobre aquilo que as experiências permitem ao homem conhecer por meio de sua sensibilidade. E ao cientista seria reservado o papel de descrever de modo fidedigno as sensações constatadas, sem cair na tentação de deixar os conceitos intelectuais guiarem o conhecimento. Sua filosofia da ciência serviu de base e é uma das principais referências para o neopositivismo da Escola de Viena (REALE; ANTISERI, 1991).

29 “Most historians of science now recognize that Einstein’s rejection of Newtonian absolute time and space was predicated upon a positivist philosophy of science. It is now widely acknowledged that at the philosophical roots of Einstein’s theory lay an epistemological positivism of Machian provenance which issued in a verificationist analysis of the concepts of time and space. The introductory sections of Einstein’s 1905 paper are predicated squarely upon verificationist assumptions. Einstein takes it for granted that all our judgments in which time plays a role must have a ‘physical meaning,’ where physical meaning is given by operational definitions. Operationalism is already a strong form of verificationism, but there is more. Einstein goes on to say that ‘a mathematical description of this kind has no physical meaning unless we are quite clear as to what we will understand by ‘time’.’ The meaning of ‘time’ is made to depend upon the meaning of ‘simultaneity,’ which is defined locally in terms of occurrence at the same local clock reading. When it comes to judgments concerning the simultaneity of distant events, the concern is to find a ‘practical arrangement’ to compare clock times. In order to ‘define’ a common time for spatially separated clocks, we adopt the convention that the time which light takes to travel between two relatively stationary observers A and B is the same from A to B as from B to A in a round trip journey – a definition which presupposes that absolute space does not exist. For that definition presupposes that A and B are not at relative rest but both moving in tandem absolutely, or in other words that neither absolute space nor a privileged rest frame exists. The only justification for that assumption is that it is observationally or sensibly impossible to distinguish uniform motion from rest relative to such a frame, and if absolute space and absolute motion or rest cannot be sensibly observed, they therefore do not exist (and may even be said to be meaningless). Such an inference is clearly verificationist and amounts to a variation on Berkeley: ‘To be is to be perceivable’.” (CRAIG; SMITH, 2008, p. 3-4). (Tradução nossa: “A maioria dos historiadores da ciência agora reconhece que a rejeição de Einstein ao tempo e ao espaço absoluto newtonianos estava baseada em uma filosofia da ciência positivista. Hoje é amplamente reconhecido que nas raízes filosóficas da teoria de Einstein encontrava-se um positivismo epistemológico de origem machiana, o que introduziu uma análise verificacionista dos conceitos de espaço e tempo. As seções introdutórias do trabalho de 1905 de Einstein estão diretamente baseadas em suposições verificacionistas. Einstein toma como certo que todos os nossos julgamentos em que o tempo desempenha um papel devem possuir um significado físico, em que ‘significado físico’ é dado por definições operacionais. O operacionalismo é uma versão forte do verificacionismo, mas vai além. Einstein chega a

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isto é, não possuiria um significado físico por não contar com uma comprovação

experimental. Apenas o espaço e o tempo medidos por instrumentos de precisão gozariam

dessa condição. Assim, Einstein negou existência ao conceito ‘não-sensível’ newtoniano e

conferiu realidade concreta apenas ao tempo registrado nos instrumentos de precisão

(CRAIG; SMITH, 2008).

O fim da ideia de tempo absoluto implicaria também a derrubada da tese da

simultaneidade absoluta. Como visto acima, Newton afirmou que a medição do intervalo de

tempo de dois eventos distintos, com iguais características, teria resultado igual desde que os

relógios utilizados pelos observadores estivessem bem calibrados. A partir da teoria da

relatividade especial de Einstein esse postulado basilar da mecânica newtoniana somente seria

verdadeiro para experimentos situados no plano da experiência ordinária do homem, mas não

para eventos que ocorrem em velocidades próximas ou equivalentes à da luz. Sob tais

condições, Einstein constatou que, para dois eventos com idênticas características, cada

observador poderia encontrar uma diferente medida de tempo em razão da posição que

ocupa30 (HAWKING, 2000). Portanto, a simultaneidade somente poderia ser relativa à

posição dos observadores31.

dizer que uma descrição matemática dessa natureza não tem significado físico a não ser que estejamos bem claros em relação ao que entendemos por ‘tempo’. O significado do ‘tempo’ depende do significado de ‘simultaneidade’, que é definido em termos da ocorrência da mesma leitura de um relógio local. Quando se chega aos julgamentos referentes à simultaneidade de eventos distantes, a preocupação é achar um ‘arranjo prático’ para se comparar os tempos dos relógios. A fim de ‘definir’ um tempo comum para relógios separados no espaço, nós adotamos uma convenção de que o tempo que a luz leva para viajar entre dois observadores relativamente estacionários A e B é o mesmo de A para B, assim como de B para A em uma viagem de ida e volta – uma definição que pressupõe que o espaço absoluto não existe. Para essa definição pressupõe-se que A e B não estão em repouso relativo, mas ambos movendo conjuntamente de modo absoluto, ou, em outras palavras, que nem o espaço absoluto, nem uma estrutura de repouso privilegiado existem. A única justificativa para essa presunção é que ela é observacionalmente ou sensivelmente impossível de distinguir movimento uniforme do repouso relativo a tal estrutura. E se o espaço absoluto e o tempo absoluto ou o repouso não podem ser sensivelmente observados, eles, portanto, não existem (e pode-se mesmo ser dito que não possuem sentido). Tal inferência é claramente verificacionista e poderia ser uma variação da colocação de Berkley: ‘Ser é ser percebido’.”).

30 A explicação para esse fenômeno é a seguinte: em primeiro lugar, tem-se que a velocidade de luz é uma constante, sendo que todos os observadores estão em acordo quanto a essa premissa; dessa maneira, se cada observador ocupa uma posição diferente, cada um irá registrar uma respectiva distância percorrida pelo mesmo evento luminoso; ora, como a velocidade é uma grandeza encontrada a partir da divisão da distância percorrida pelo tempo gasto e como a velocidade da luz é uma constante, as variações encontradas por cada observador na distância de um mesmo evento luminoso implicam que há também uma variação necessária no tempo transcorrido para cada um deles. Como sintetiza Hawking (2000, p. 44), “Em outras palavras, a teoria da relatividade sela o fim do conceito de tempo absoluto! Viu-se que cada observador pode obter sua própria medida de tempo, tal como registrada pelo seu relógio, e com a qual relógios idênticos, com diferentes observadores, não concordam necessariamente.”.

31 Lucas (2008) aponta os limites da teoria da relatividade especial a partir das divergências sobre o conceito de espaço-tempo em Manikowski e Lorentz para concluir que a tese de Einstein sobre a simultaneidade relativa não pode ser considerada em ‘absoluto’, a ponto de justificar a adoção de uma visão completamente ‘não flexionada’ (tenseless) do tempo.

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Contudo, a noção de tempo absoluto viria a sofrer um questionamento ainda mais

radical. A teoria da relatividade especial havia apenas derrubado a tese da simultaneidade

absoluta. A teoria da relatividade geral, por sua vez, jogou por terra a ideia de fluir constante e

igual do tempo, sem relação qualquer com a matéria.

Para se compreender a teoria da relatividade geral, no entanto, é preciso pensar o

tempo e o espaço de uma maneira distinta daquele concebida por Newton em sua descrição da

estrutura fundamental do universo. Enquanto para Newton tempo e espaço seriam estruturas

absolutas, fixas, imutáveis e não relacionadas entre si (CALLENDER; HOEFER, 2002),

Einstein irá fundi-los no conceito de ‘espaço-tempo’ que utiliza para descrever a geometria do

universo. O espaço-tempo é uma estrutura geométrica hiperbólica (a famosa curvatura do

espaço) quadridimensional32 que não distingue as coordenadas espaciais da coordenada

temporal33, transmitindo a ideia de que o universo é um ‘bloco’ (BOI, 2004). Essa estrutura é

composta de diversos pontos espaço-temporais, sendo que cada um deles corresponde a um

evento representativo de uma localização no espaço e de um momento singular no tempo

(CALLENDER; HOEFER, 2002). Sua principal característica, diz Hawking (2000), é que

tanto espaço, como tempo são quantidades dinâmicas e, portanto, afetam e são afetadas pelos

corpos em movimento e forças atuantes no universo.

Especialmente, o transcorrer do tempo é influenciado conforme a proximidade ou a

distância em relação à massa dos corpos. Isso ocorre em razão da relação inversamente

proporcional entre a massa dos corpos e a energia da luz: quanto mais próximo a um corpo de

massa significativa, menor se torna a energia da luz. Sendo menor a sua energia, por

conseguinte sua frequência diminuirá, pois o período, isto é, o tempo necessário para a onda ir

de uma crista a outra, aumentará. Logo, o tempo transcorreria mais lentamente nas

proximidades de objetos com maior massa do que em locais distantes desses corpos34

(HAWKING, 2000).

32 Hawking (2000) entende que o espaço-tempo não seria formado por quatro dimensões, mas apenas por duas. 33 O espaço-tempo de Manikowski sugere um abandono da noção de tempo dada pela experiência comum em

favor de uma concepção abstrata e ‘matemática’ do tempo, na qual ele constitui uma quarta dimensão que se assemelha às outras três espaciais e, por essa razão, assume o futuro como já existente, apenas no aguardo de seu porvir (LUCAS, 2008). Essa noção será aproveitada pela mecânica quântica, como se verá adiante.

34 Essa conclusão abriu espaço para uma série de exemplos contra-intuitivos, como o paradoxo dos gêmeos, que diz que dois gêmeos teriam idades diferentes caso um viajasse em velocidades próximas às da luz enquanto outro permanecesse em condições ‘normais’. Hawking (2000) salienta, contudo, que tais ideias são construídas a partir do referencial newtoniano do tempo absoluto e que para a teoria da relatividade geral cada indivíduo possui sua medida pessoal de tempo, medida esta que depende de como está e como se move.

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Se as teorias de Einstein consistem em objeções radicais à noção newtoniana de tempo

absoluto, os posteriores avanços nesse campo feitos pela Física quântica significaram uma

verdadeira revolução no conceito de tempo.

Dada as limitações da mecânica clássica para explicar o caráter dual da luz – o fato de

que a luz é onda e partícula ao mesmo tempo –, desde o início do Século XX a Física

contemporânea desenvolveu um conjunto de teoremas que substituiu a mecânica newtoniana

como modelo de explicação dos fenômenos físicos. As teorias construídas a partir do

resultado de experimentos ligados à medição do espectro da radiação do corpo negro, ao

efeito fotoelétrico, ao espectro do hidrogênio, ao decaimento radioativo originaram o que se

convencionou denominar de Física quântica35. Os princípios desse novo esquema de

compreensão do mundo físico inspiraram modelos teóricos que explicariam tanto o big bang e

o princípio do universo, como os acontecimentos do mundo das partículas subatômicas.

Um dos mais importantes postulados da mecânica quântica é o princípio da incerteza

de Heinseberg. Segundo esse princípio, é impossível especificar com precisão e de modo

simultâneo os valores de ambos os pares das variáveis que descrevem o comportamento de

uma partícula dentro de um sistema atômico. Tais variáveis seriam a sua posição e o seu

momentum – sua quantidade de movimento, que é obtida por meio da multiplicação da massa

da partícula por sua velocidade. Isso se deve ao fato de que extrair a medida da posição da

partícula perturba a medição do seu momentum e vice-versa (POHL, 1971).

Todavia, mesmo o conhecimento individualizado de cada uma das variáveis não

obedece à lógica própria da mecânica clássica, na qual é sempre possível estabelecer uma

informação precisa de posição, velocidade, massa ou energia para os objetos em movimento.

É preciso esclarecer inicialmente que a Física quântica lida com partículas cujo movimento é

de natureza ondulatória. A descrição do comportamento de uma partícula é sempre feito de

maneira probabilística, através de equações matemáticas que produzem funções de onda

correspondentes às trajetórias da partícula36. Contudo, tais funções se limitam a traçar as

35 A expressão ‘quântica’ se origina da palavra quanta, utilizada por Max Planck para explicar as quantidades de

emissão e absorção de radiação eletromagnética no espectro de um corpo negro, as quais seriam unidades ou pacotes de energia. Para Planck, a Energia seria equivalente à frequência da radiação multiplicada por uma constante ‘h’, denominada constante de Planck (SCHIFF, 1968). Posteriormente, o quantum ganhou destaque na equação de Einstein que explica a energia cinética do elétron no efeito fotoelétrico. Essas pesquisas sobre a radiação e o efeito fotoelétrico constituem o ponto de partida da física quântica (POHL, 1971).

36 A mais importante dessas equações é a denominada Equação de Schrödinger e suas principais características são: a) a equação deve ser linear, de modo que seus resultados possam ser superpostos, a fim de produzir um ‘efeito de interferência’ e permitir a construção de ‘pacotes de onda’; b) os coeficientes da equação devem ser apenas constantes, tais como a constante de Planck, ou a massa e a carga da partícula. Parâmetros de um tipo particular de movimento da partícula, como seu momentum, sua energia, seu número de propagação ou sua frequência devem ser evitados para se deixar em aberto a possibilidade de obter resultados superpostos

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chances probabilísticas das trajetórias possíveis para a partícula, dada a limitação imposta

pelo princípio da incerteza:

Por meio de uma função de onda num determinado momento de tempo, é possível inferir estritamente o valor dessa função de onda em qualquer instante anterior ou posterior. A equação descreve um comportamento que é totalmente reversível no tempo. Imagine uma dada função de onda que represente matematicamente o comportamento de um elétron não-observado. A função armazena todos os destinos que o elétron pode vir a ter num instante de tempo, desde que observemos com um dispositivo de medida, como, por exemplo, uma tela fosforescente. (COVENEY HIGHFIELD, 1993, p. 115).

Ao invés de conceber o tempo a partir da noção tradicional de sequência linear de

acontecimentos, a mecânica quântica postula que a sucessão de eventos de uma partícula

subatômica deriva de uma descrição probabilística do seu comportamento – sua posição e

momentum37. Cada uma das prováveis trajetórias da partícula constitui uma ‘história possível’

para essa partícula. Essa história está associada a um par de números matemáticos, em que um

deles representa o tamanho de sua onda, isto é, seu momentum, e o outro sua posição no

ciclo38.

Para que os cálculos que descrevem probabilisticamente o comportamento da onda

sejam possíveis, a Física quântica precisa recorrer à noção de tempo imaginário (HAWKING,

2000). O tempo imaginário é um conceito que deriva da utilização dos números matemáticos

que apresentam diferentes valores a esses parâmetros. Trata-se, portanto, de uma equação de resultados probabilísticos, que deve ser interpretada de um ponto de vista estatístico (SCHIFF, 1968).

37 “De modo geral, a mecânica quântica não prevê um único resultado definido para uma observação, mas um número de diferentes e possíveis resultados; e nos diz, além disso, como se comporta cada um deles. Ou seja, se processamos a mesma medição num grande número de sistemas semelhantes, cada um dos quais iniciado da mesma maneira, pode-se verificar que o resultado da medição será A num certo número de casos, B num número diferente, e assim por diante. Pode-se prever o número aproximado de vezes que o resultado será A ou B, mas não o resultado específico de uma determinada medição. A mecânica quântica, portanto, introduz um inevitável elemento de imprevisibilidade ou causalidade na ciência.” (HAWKING, 2000, p. 88).

38 Uma das consequências interessantes da superposição de estados possíveis para as histórias das partículas nos resultados da Equação de Schrödinger é o paradoxo do gato. Schrödinger formula o seguinte experimento imaginário: um gato se encontra lacrado em uma caixa conjuntamente com material radioativo, um contador Geiger, um martelo e um frasco de veneno, sendo que a probabilidade do material radioativo decair é de 50%. Na hipótese de o átomo decair, o contador Geiger ativa um dispositivo mecânico que imediatamente lança o martelo contra o frasco, liberando veneno capaz de matar o gato. O fato de a mecânica quântica se valer de descrições probabilísticas e superpostas do comportamento das partículas atômicas conduz ao resultado de que o gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo (BRECHA, 2002). Lewis (2000) argumenta, contudo, que somente se conclui pela existência de um ‘paradoxo’ quando se parte do referencial newtoniano de tempo e espaço. Na verdade, não haveria um observador constatando, ao mesmo tempo, dois estados diferentes – o gato vivo e o gato morto –, mas sim dois diferentes observadores. O ser que observa o gato vivo não é o mesmo que observa o gato morto. O decaimento (ou não) do átomo é um evento que ramificou história do observador, cingindo-o em dois diferentes observadores: aquele que viu o gato vivo não é o mesmo que viu o gato morto.

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chamados imaginários39 (‘i’) nas equações que produzem as funções de onda descritiva do

comportamento das partículas. Segundo Hawking (2000), o tempo imaginário da mecânica

quântica produziria uma verdadeira indistinção entre espaço e tempo, eliminando, por

conseguinte, a noção de linearidade do tempo. No espaço-tempo, o tempo da Física quântica

caminha em qualquer direção. Contudo, é importante ressalvar uma questão metodológica

antes de se realizar qualquer inferência da conclusão acima.

A Física quântica lida com o comportamento de partículas de dimensões subatômicas.

Portanto, as descrições que ela se propõe a fazer se limitam aos fatos efetivamente observados

e registrados nos experimentos nos laboratórios de pesquisa (POHL, 1971). Logo, Davies

alerta que é preciso restringir o alcance da expressão ‘tempo’ e de seu cálculo nesse ramo do

saber:

Na física quântica, você tem que ser claro quanto ao que está sendo medido ou observado e se ater a isso. Não há muito o que dizer sobre fenômenos que não estão sendo observados. No caso do tempo, o problema é duplo, porque nunca chegamos a medir o tempo como tal (em qualquer sentido objetivo). Não aferimos uma duração comparando-a misticamente com alguma entidade separada – o ‘tempo’ – que paira sobre todas as atividades com ‘escalas’ gravadas que sirvam de parâmetro. Caso queira medir o tempo, você tem que especificar algum tipo de relógio que fará a medição e, depois, observar o relógio. Mas um relógio é um objeto físico mutável, e medimos o tempo observando a posição espacial de alguma variável do relógio, como o ponteiro. (...) Não existe algo como um relógio quântico perfeito. Todos os relógios reais, compostos de matéria real, sofrem da mesma incerteza, da mesma imprecisão quântica, de todo o resto. (DAVIES, 1999, p. 223)

Por outro lado, a ideia de um tempo não-linear e sem direção é colocada à prova pela

noção de seta do tempo40, que impõe ao universo uma direção temporal única. De fato, como

visto, o conceito de tempo imaginário para a Física quântica é um conceito mais matemático

do que real. Ele é introduzido apenas para resolver equações matemáticas que determinam as

funções de onda do comportamento dos elétrons. Não significa, contudo, que o tempo anda

39 Números imaginários são criações que datam do séc. XVI para expressar o resultado de números que,

multiplicados por si próprios, têm por resultado um número negativo. Consequentemente, eles se prestam também e principalmente a expressar o resultado da raiz quadrada de um número negativo, fato corriqueiro nas equações que calculam intervalos de posição no espaço-tempo. O emprego dos números imaginários serve para distinguir se os intervalos de posições no espaço-tempo são temporais ou espaciais. Se houver a presença de ‘i’ no resultado – isto é, se o resultado da equação for expresso em número imaginário – o intervalo no espaço-tempo será temporal. Se expresso em números concretos, o intervalo será de natureza espacial (DAVIES, 1999).

40 ‘Seta’ ou ‘flecha’ do tempo é a expressão que traduz o fato de que o tempo corre em uma única direção, do passado em direção ao futuro (HAWKING, 2000; DAVIES, 1999). A seta do tempo é formada pela conjunção de três ‘setas’, a saber: a) a seta termodinâmica, derivada da segunda lei da termodinâmica, que exige o transcurso do tempo para a passagem de um estado menos entrópico para um estado mais entrópico; b) a seta psicológica, que impõe aos seres dotados de memória a percepção do fluir do tempo do passado em direção ao futuro; e c) a seta cosmológica, oriunda do fato de que o processo de expansão do universo exige uma direção temporal como condição da vida inteligente.

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para frente e para trás indiscriminadamente, como alguém poderia pensar41. A função do

tempo na Física quântica é meramente descritiva do comportamento de uma partícula42

(HAWKING, 2000).

As descobertas da Física contemporânea permitiram a concepção do mundo natural

em bases não-newtonianas. Com isso, emergiram novos paradigmas epistemológicos que

assumiram uma postura ‘não-totalizante’ em suas pretensões e resultados. Por produzirem um

discurso científico menos objetivo e mais atento à complexidade e imprevisibilidade dos

fenômenos do mundo social, esse paradigma43 foi prontamente adotado pelas ciências

humanas e sociais (BERTEN, 2004). Uma vertente desse novo paradigma é a crítica cultural

proveniente do movimento auto-intitulado pós-modernidade, que se caracteriza pela “tentativa

de construir positivamente um mundo múltiplo, plural, fluido, nos quais os indivíduos ou as

comunidades se constituem ao sabor dos fluxos de comunicação.” (BERTEN, 2004, p. 106).

A influência do discurso pós-moderno na ciência jurídica não encontrou respaldo

suficiente na comunidade jurídica a ponto de conseguir modificar a imagem tradicional que

vincula o direito ao Estado moderno. Contudo, foi responsável, por exemplo, por denunciar as

tradições marginalizadas pelo racionalismo moderno (SANTOS, 2002), bem como as falácias

dos discursos universalizantes produzidos sob a influência do iluminismo (CARTY, 1990).

A grande contribuição que a Física contemporânea proporcionou à relação entre o

tempo e o direito foi a de fornecer uma imagem do tempo permeável aos elementos externos

que o cercam. A partir da teoria da relatividade, o tempo se tornou uma variável dependente

do universo exterior e do homem que percebe o seu fluir. Abandona-se, com isso, a ideia

newtoniana de que tempo e espaço seriam meros receptáculos naturais vazios onde se

desenrola a experiência. Analogicamente, vislumbra-se a possibilidade de deixar de enxergar

o tempo social como um fluxo contínuo e constante em que se sucedem os eventos, para fazê-

lo derivar das condições sócio-culturais de seu entorno. Está aberta, então, a porta

epistemológica para se analisar a influência recíproca que tempo e direito produzem entre si.

41 Davies (1999) apresenta, contudo, uma evolução histórica das teorias e experimentos físicos que contestam a

noção de ‘seta’ do tempo. Em especial, Davies relata a descoberta dos ‘káons’, partículas subatômicas que desafiam o princípio da reversibilidade dos processos físicos. Os processos de integração e desintegração dos káons não seguem uma simetria temporal. Ou seja, visto a partir de uma direção eles não seriam idênticos se observados a partir da sua imagem espelhada. As experiências com os ‘káons’ serviram de fundamento para o debate entre Hawking e Penrose para explicar o início e o término do universo.

42 “Em qualquer caso, até onde a mecânica quântica cotidiana alcança, pode-se considerar o uso do tempo imaginário e do espaço-tempo euclidiano meramente como um artifício matemático (ou truque) para calcular respostas sobre o espaço-tempo real.” (HAWKING, 2000, p. 189).

43 As características desse paradigma são o da irreversibilidade dos fenômenos, o recurso à descrição estatística e probabilística dos movimentos e, por fim, a tendência à auto-organização e ao equilíbrio dinâmico dos sistemas complexos (BERTEN, 2004).

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Mas o tempo não foi objeto de reflexão apenas pela Física. A experiência da inserção

do homem na temporalidade levou também a Filosofia a produzir uma longa tradição de

análises sobre a questão do tempo. No entanto, para perspectiva filosófica o tempo é parte

integrante da estrutura cognitiva humana. No tópico seguinte será apresentada uma seleção de

contribuições do pensamento filosófico ao debate sobre a natureza do tempo. Nessa

retrospectiva, verificar-se-á de que maneira foi construída uma alternativa à abordagem

‘objetiva’ e ‘naturalista’ do tempo feita pela Física. Com base nela, ter-se-á mais elementos

para aprofundar a relação entre tempo e direito tal como proposta no início do presente

trabalho.

2.2 A matriz filosófica: o tempo como uma propriedade da estrutura cognitiva humana

As primeiras investigações levadas a cabo pelo pensamento filosófico para

compreender a natureza do tempo remontam às origens da filosofia. Desde o período pré-

socrático, a filosofia grega buscou substituir a visão mitológica do tempo, representada pela

figura do titã Chronos que devorava seus filhos, por uma explicação racional desse

fenômeno44. O denominador comum que perpassa as concepções de tempo formuladas nesse

período é o fato de que os pensadores antigos estavam condicionados a um paradigma de

compreensão da realidade que sustentava que o tempo seria uma entidade física do universo

natural (ELIAS, 1998).

A investigação sobre a natureza do tempo somente passou a caminhar em direção

distinta a partir de Santo Agostinho. Pela primeira vez na história da filosofia o tempo foi

encarado a partir de seu aspecto psicológico45, sendo deslocado do movimento dos corpos

celestes para se situar no interior da alma humana (CALLAHAN, 1958). A partir de então

teve início uma profícua tradição de reflexões sobre o papel do tempo na estrutura cognitiva

humana. A importância dessa análise está em revelar como o direito pode se beneficiar das

44 O debate sobre a essência e a natureza do tempo foi extremamente rico na filosofia da antiguidade clássica e

helenística. Destacam-se aqui alguns dos pensadores e suas respectivas contribuições: o caráter cíclico e ordenador do tempo na filosofia de Anaximandro (MCKIRAHAN, 2003); a não-temporalidade do Ser em Parmênides; o devir heraclitiano (REALE, 2002); o paradoxo de Zenão sobre a ilusão do movimento; a conclusão de Platão de que o tempo seria uma imagem movente da eternidade (WHITROW, 1993) e o problema da sucessividade em Aristóteles (REY PUENTE, 2001). Como já salientado, por uma opção metodológica, esse trabalho não irá abordar o problema do tempo na filosofia da antiguidade clássica, uma vez que o conceito de tempo herdado e utilizado pela ciência do direito tradicional foi formulado sob o paradigma da modernidade.

45 Rufino (2003) faz uma distinção entre ‘tempo exterior’ e ‘tempo interior’ no pensamento de Agostinho. O primeiro se refere ao fenômeno da sucessividade e o segundo se refere à percepção psicológica do tempo, o fato da permanência de passado, presente e futuro estarem dentro da mente humana. Ambos serão abordados no presente tópico.

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possibilidades teóricas abertas por essas tradições filosóficas, em substituição à concepção

objetiva e natural do tempo acima apresentada.

2.2.1 Santo Agostinho e a distentio animi

O problema do tempo em Santo Agostinho (2006) nasce com o questionamento sobre

a inserção de Deus na temporalidade. Os maniqueístas46 estabeleceram o paradoxo do

princípio do tempo com a indagação sobre “O que fazia Deus antes da criação do mundo?”.

Como o mundo havia sido criado por Deus e, com ele, também o tempo, nos círculos

teológico-filosóficos debatia-se a relação entre Deus e o tempo. Tratava-se de um debate

infindável, já que toda explicação terminava em um regresso ao infinito. O fato da criação

inevitavelmente levanta uma indagação sobre o momento anterior a ele (KNUUTTILA,

2005).

A resposta agostiniana nega ao tempo o atributo de ser infinito. Seu princípio é

justamente a própria criação do universo por Deus47. Como o mundo foi criado por Deus,

tudo quanto há de mundano também foi gerado pelo Ser Divino, incluindo-se aí o próprio

tempo. Tempo e mundo são, portanto, co-originários, já que a criação do mundo é o início do

tempo e o mundo somente existe na condição de estar no tempo (RUFINO, 2003).

Dessa maneira, não há que se falar, portanto, na existência do tempo antes da criação,

pois o devir do tempo somente se aplica às coisas mundanas. O próprio tempo, sendo ele

‘criatura’, não retrocederia para impor a temporalidade a Deus. Logo, indagar sobre um

‘antes’ da criação, como fizeram os maniqueístas, não faria sentido e tal pergunta somente

nasceria de uma incompreensão sobre a natureza divina.

Knuuttila (2005) destaca que a resposta de Agostinho à pergunta maniqueísta é

construída a partir de elementos da Física aristotélica. Para Aristóteles, a condição da

existência do tempo seria o movimento e, portanto, somente haveria tempo onde houvesse

movimento. Todo movimento nasceria do sopro criador e seria próprio aos elementos

corpóreos da criação. Deus, por sua vez, seria absolutamente imóvel e se encontraria,

46 O maniqueísmo é uma doutrina religiosa que se formou no período helênico e que funde elementos da religião

persa e do platonismo gnóstico do final do mundo antigo. Sua principal característica é a leitura do mundo sob o princípio do dualismo entre o bem e o mal, entre a salvação e o pecado. Durante a Idade Média, havia várias seitas religiosas sob influência do maniqueísmo. O próprio Agostinho foi atraído pelo maniqueísmo no início de sua vida (TILLICH, 1988).

47 Nesse aspecto, a resposta de Agostinho é ‘original’, uma vez que a filosofia grega concebia o tempo como infinito (TILLICH, 1988)

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portanto, assentado sobre sua eternidade48. Sendo eterno e imutável, a passagem do tempo não

se aplicaria a Deus.

Em sequência, Agostinho (2006) passa a refletir sobre a natureza do tempo e debate a

sua equiparação ao movimento dos astros e corpos celestes. Essa questão lhe remete ao

problema da medição do tempo. Agostinho (2006) reconhece que o homem é capaz de medir

o tempo, já que promove a sua contagem por meio da referência a certos fenômenos da

natureza. Contudo, o tempo não se identificaria com o movimento dos corpos celestes. Esses

eventos apenas revelariam a existência do tempo a partir de uma alusão ou de uma

comparação. Tanto é assim que, para Agostinho (2006), o tempo continuaria a existir mesmo

que o Sol permanecesse imóvel ou que as estrelas acelerassem ou retardassem o seu

movimento. A passagem do tempo permaneceria como um fato para a mente humana, o que

leva Agostinho a concluir que o tempo somente existiria no interior da alma (KNUUTTILA,

2005).

Agostinho enfrenta, então, um novo paradoxo: o homem reconhece a existência do

tempo pela capacidade de sua mente medi-lo, porém não consegue explicar a existência das

categorias temporais do passado e do futuro (CALLAHAN, 1958). O passado é composto de

tudo aquilo que já aconteceu. O futuro, por sua vez, ainda não ocorreu. Como afirmar,

portanto, que o passado e o futuro existem? Das categorias temporais, resta, então, somente o

presente como uma aparente realidade. Pode-se dizer que o presente possui existência, pois o

instante presente é sempre percebido pelo homem. Aliás, a existência do homem é composta

de uma sucessão de instantes presentes – ou, como se refere o próprio Agostinho (2006), de

‘partículas fugitivas’. Portanto, como o passado e o futuro não são reais, Agostinho trilhará a

resposta ao paradoxo do tempo a partir do presente.

Apesar de toda a existência humana consistir em uma sucessão de ‘presentes’, não é

possível determinar a extensão de um instante, pois sua duração é ínfima49. Curiosamente,

mesmo de duração ínfima e sem extensão, cada uma dessas ‘partículas fugitivas’ poderia

48 No sentido teológico, segundo Boécio, a ‘eternidade é a posse perfeita, simultânea e total da vida

interminável’ (RUFINO, 2003) 49 “O dia e a noite compõem-se de vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como

futuras, e a última tem a todas como passadas. E em relação a qualquer hora intermediária, algumas são passadas, outras são futuras. Essa mesma hora é composta de fugitivos instantes: o que se foi é passado, o que ainda resta é futuro. Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser dividido em minúsculas partes de momentos, só a este podemos chamar de tempo presente. Esse, porém, passa tão velozmente do futuro ao passado que não tem nenhuma duração. Se tivesse alguma duração, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem extensão alguma.” (AGOSTINHO, 2006, p.340-341). Em outra passagem, Agostinho explora a questão do instante da morte. Segundo Agostinho, não seria possível precisar esse exato momento em que a alma se parte do corpo e, com isso, estabelecer o limite entre o instante em que uma pessoa está morrendo e já morreu, pois a passagem do futuro ao passado ocorreria sem intervalos (KNUUTTILA, 2005).

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revelar ao homem a experiência mais próxima à eternidade divina. A concepção teológica de

eternidade se caracteriza não apenas pelo fato de não possuir um começo, nem um fim, mas

também por conferir onipresença a Deus. Ao verificar o que se passa na alma humana diante

da experiência do tempo, Agostinho (2006) afirma que no instante presente o homem

consegue viver a plenitude do passado e do futuro por meio da lembrança (passado) e da

expectativa (futuro) (KNUUTTILA, 2005). O presente teria a forma de um ‘quase vestígio da

eternidade’ (quase vestigium aeternitatis): pelo recurso à memória e à antecipação, nessa

‘partícula fugitiva’ do presente o homem seria capaz de descortinar uma visão conjunta e

simultânea de imutabilidade e onipresença, próprias da eternidade (RUFINO, 2003).

Passado e futuro, então, somente existiriam na condição de ‘presente do passado’ e

‘presente do futuro’: evocação de imagens vividas ou antecipação de imagem vindouras.

Essas categorias temporais estariam confinadas ao interior do espírito humano e a sua

percepção ocorreria por meio do processo denominado por Santo Agostinho de distensão da

alma50(KNUUTTILA, 2005). A distensão da alma inverteria de maneira intrigante a lógica do

curso temporal. Do modo como é processado pela mente humana, o tempo correria de trás

para frente, já que o futuro teria precedência lógica sob o passado. Afinal, primeiro a mente

antecipa um eventual acontecimento; depois há o presente em que os acontecimentos têm

lugar; e somente por fim há a lembrança, que só é possível ao final desse processo, enquanto

acontecimento já ocorrido.

A grande importância da reflexão sobre o tempo em Santo Agostinho está em sua

originalidade. Agostinho foi o primeiro a deslocar o problema do tempo da natureza para o

espírito. A partir de então, a filosofia seguiu um caminho distinto das ciências naturais no que

diz respeito ao problema do tempo. Ao se desvincular do mundo natural, a questão do tempo

somente teria sentido se encarada a partir de sua experiência pelo homem.

2.2.2 O tempo como condição de possibilidade da experiência em Immanuel Kant

50 “Augustine argues that the practice of the measurement of time is based on the fact that human consciousness

functions by anticipating the future, remembering the past, and being aware of the present through perception. Through this distension of the soul (distentio animi) we have in our memory images of things which were present and which we expect to be present. Therefore we have in the soul a present of past which is memory and a present of future which is anticipation or expectation. In this sense time exists as a distension of the soul.” (KNUUTTILA, 2006, p.112). (Tradução nossa: “Agostinho argumenta que a prática de se mensurar o tempo é baseada no fato de que a consciência humana funciona por meio da antecipação do tempo, da lembrança do passado e da consciência do presente por meio da percepção. Por meio dessa distensão da alma (distentio animi) nós temos na nossa memória imagens de coisas que foram presentes e que esperamos ser presentes. Portanto, nós temos na alma um presente do passado que é memória e um presente do futuro que é antecipação ou expectativa. Nesse sentido, o tempo existe como uma distensão da alma.”).

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50

A questão da natureza do tempo se apresenta para Kant em meio ao debate

estabelecido entre Leibniz e Newton51 sobre o tema. Enquanto o primeiro sustentava que o

tempo seria fruto de um conjunto de associações promovidas pelo intelecto humano ao

perceber o movimento em objetos que lhe são exteriores, o segundo, como visto acima,

defendia que o tempo seria uma propriedade do mundo natural não relacionada a qualquer

outra coisa que lhe fosse externa (HATFIELD, 2006).

Apesar da divergência, Kant (1974) identificou que ambas as concepções guardavam

em comum o fato de se filiarem a uma visão filosófica denominada realismo transcendental.

O realismo transcendental é um ponto de vista metaepistemológico abrangente que considera

que a essência dos objetos pode ser encontrada nos elementos que se apresentam aos sentidos

do homem. Essa perspectiva era um pressuposto comum tanto ao empirismo, quanto ao

racionalismo em voga no tempo de Kant, pois seja pela razão, seja pela experiência, ambas

acreditavam poder conhecer a realidade em sua essência52 (ALISSON, 2006). Desse modo, os

partidários do realismo transcendental acreditavam que a essência do tempo estaria sempre

associada a e condicionada por um objeto da realidade que iria conferir conteúdo ao seu

conceito. A divergência entre eles se devia ao fato de que os empiristas acreditavam que esse

objeto seria algo integrante do mundo físico (Newton), enquanto os racionalistas o faziam

derivar das relações processadas no interior da mente humana (Leibniz) (HATFIELD, 2006).

Na Crítica à Razão Pura, Kant (1974) buscará demonstrar que essas duas concepções

de tempo estão equivocadas. Para ele, isto se dá porque o realismo transcendental que lhes

fundamenta também estaria equivocado. Em seu lugar, Kant (1974) irá definir a natureza do

tempo a partir das premissas de outro método filosófico, por ele designado de idealismo

transcendental. O idealismo transcendental se caracteriza pelo fato de que todo conhecimento

se submete a certas ‘condições de possibilidade’ que limitam aquilo que é possível ser

conhecido pelo homem (ALLISON, 1983). Tais condições epistêmicas se encontram na

própria estrutura cognitiva humana e não em uma natureza pré-concebida das coisas. Para

Kant (1974), portanto, o homem não poderia ter acesso à essência das coisas – por Kant

denominada de coisa-em-si. A mente humana apenas poderia representar aquilo que, de fato,

ela pode conhecer, dado que está constrangida por certas condições necessárias para a

representação dos objetos do conhecimento (ALISSON, 2006).

51 Para uma completa caracterização do contexto filosófico em que emerge a concepção kantiana de tempo

recomenda-se a leitura do artigo de Hatfield (2006). 52 Tal ocorre porque, segundo Kant (1974), o realismo transcendental ignoraria a distinção entre as coisas como

elas aparentam aos sentidos (phenomena) e as coisas como elas são em si mesmas (noumenon).

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51

O tempo será uma dessas ‘condições de possibilidade’ do conhecimento.

Especificamente, o tempo se tornará um dos pré-requisitos para a experiência sensível (BIRD,

2006). Contudo, antes de adentrar nos detalhes do conceito de tempo para Kant, é preciso

delinear um importante pressuposto que orienta a sua filosofia epistemológica.

Kant (1974) pretendia descobrir de que maneira o homem seria capaz de produzir

conhecimento formulando juízos que não fossem apenas verdadeiros, mas também

necessários e universais. Essa preocupação nasceu do desafio lançado pelo ceticismo radical

proveniente da filosofia empirista de David Hume à existência da metafísica como

conhecimento. Segundo Hume, todo conhecimento derivaria exclusivamente da experiência

sensível e seria, portanto, particular. Nem mesmo as denominadas leis causais elaboradas pela

mente humana, como as leis da Física ou da Geometria pura, seriam universais e necessárias.

Tais construções do intelecto não passariam de inferências formuladas a partir da repetição

reiterada da experiência pretérita, que formariam no homem uma crença de que a experiência

futura será semelhante. A validade da tese da inferência causal de Hume excluiria, portanto, a

possibilidade de um conhecimento necessário e universal almejada por Kant. Como todo

conhecimento verdadeiro dependeria de uma experiência empírica a lhe sustentar esse

atributo, ele acabaria por ser apenas particular e não necessário (KITCHER, 2006).

Para contestar a tese humeana, Kant (1974) precisou demonstrar a existência dos

chamados juízos sintéticos a priori, isto é, juízos com a capacidade de acrescentar predicados

ao sujeito da expressão, mas que não derivam da experiência sensível – daí a denominação a

priori (BIRD, 2006). Porque se originam exclusivamente na razão, os juízos ‘a priori’ são

necessários e universais e, dessa maneira, permitem o conhecimento metafísico sob forma de

‘verdades da razão pura’ (KITCHER, 2006). Como Kant pretendia apresentar uma definição

de tempo em oposição ao realismo transcendental, o seu conceito deveria assumir a forma de

um juízo sintético a priori, isto é, que não estivesse lastreado no conteúdo de uma experiência

sensível. O êxito nessa tarefa implicaria uma superação do realismo transcendental e, com ele,

das concepções de tempo de Leibniz e Newton.

A razão pura é composta de dois princípios ou faculdades, a saber, a sensibilidade e o

entendimento. A primeira é a faculdade de receber passivamente as sensações externas que

chegam ao homem através dos sentidos. Já a segunda é capacidade ativa de pensar e

raciocinar, processando o conhecimento obtido pela sensibilidade por meio de conceitos.

(ALISSON, 2006). O problema do tempo se encontra, para Kant, na estrutura cognitiva da

sensibilidade, na seção denominada de estética transcendental.

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52

Na estética transcendental, Kant (1974) propõe a construção de ‘uma ciência de todos

os princípios da sensibilidade a priori’. Ele pretende investigar a estrutura do aparelho

cognitivo humano que antecede a experiência sensível do mundo empírico e que seja uma

condição de possibilidade dessa própria experiência. O raciocínio kantiano segue um processo

de depuração: primeiro Kant remove da sensibilidade todo e qualquer conteúdo que lhe possa

ser dado pelo intelecto. Em seguida, Kant isola, ainda, o conteúdo das sensações, já que estas

exigem a experiência e são, portanto, particulares. Ao final desse processo, Kant irá se

deparar com o fato de que o tempo e o espaço são os princípios a priori do conhecimento

sensível intuídos pelo homem:

Na estética transcendental, por conseguinte, isolaremos, em primeiro lugar, a sensibilidade pela separação de tudo o que o entendimento pensar nela por meio dos seus conceitos para que não reste senão a intuição empírica. Em segundo lugar, separaremos ainda desta, tudo o que pertence à sensação, para que nada mais reste a não ser a intuição pura e a simples forma dos fenômenos, e isto é o único que a sensibilidade pode fornecer a priori. Ver-se-á, no decurso desta investigação, que há como princípios do conhecimento a priori duas formas puras da intuição sensível, a saber, espaço e tempo, com o exame das quais nos ocuparemos agora (KANT, 1974, p. 40)

Na dinâmica da estética transcendental, o tempo adquire a condição de ‘forma pura da

intuição sensível’. ‘Forma’, na terminologia kantiana, é todo sistema de organização da

matéria (BUROKER, 2006). Kant dirá que o tempo é uma ‘forma’ porque a ‘matéria’ que ele

se presta a organizar são as sensações provenientes da experiência e depositadas na mente

humana. Desse modo, a estrutura cognitiva humana possui a capacidade de dispor as

sensações empíricas em uma ordem cronológico-temporal, da mesma forma como relacioná-

las entre si (HATFIELD, 2006).

Sendo o tempo a própria capacidade de organizar a experiência temporal, ele não é

uma sensação. Daí porque o seu modo de conhecimento não é discursivo53, isto é mediatizado

pelo entendimento. O acesso à experiência do tempo é imediato, razão pela qual Kant a

denomina de ‘intuição’54. O tempo seria uma intuição pura, pois prescinde de toda e qualquer

sensação prévia para ser elaborado. As intuições puras se contrapõem às propriamente

empíricas, que dependem da experiência para formarem alguma forma de conhecimento

(FALKENSTEIN, 2006).

53 Tem-se aqui uma primeira distinção entre a concepção kantiana do tempo em relação às concepções de

Leibniz e Newton. Falkenstein (2006) mostra que os conceitos de tempo de Leibniz e Newton são discursivos, isto é, dependem de uma operação do intelecto.

54 As intuições consistem em representações que se relacionam a um objeto singular. Elas se opõem aos conceitos, que relacionam elementos comuns entre si às coisas que representam (PARSONS, 1992).

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Como consequência dessa abordagem inicial sobre a natureza do tempo, o primeiro

corolário defendido por Kant (1974) é o de que o tempo não deriva da experiência empírica,

porque é anterior a ela. Nesse sentido, o tempo seria experimentado como um fato da razão.

Seu argumento é o de que a ideia de duração depende das noções de sucessão e

simultaneidade. Tais noções são prévias à própria experiência da passagem do tempo.

Portanto, da análise da experiência de dois eventos simultâneos ou sucessivos no tempo não é

possível extrair nenhuma informação sobre o fluxo temporal, nem descobrir em cada um deles

uma característica que lhes seja comum a esse respeito (FALKENSTEIN, 2006).

Mas o tempo não é independente da experiência empírica apenas em razão de sua

anterioridade a ela. Na estrutura cognitiva humana, o tempo se torna também uma

representação necessária à sensibilidade humana, como condição universal de sua

possibilidade (HATFIELD, 2006). Uma vez que todas as intuições empíricas se processam

dentro do próprio tempo, não há como pensar na sensibilidade humana fora dele. Kant

delimita, portanto, que o tempo é uma condição epistêmica da representação dos fenômenos

sensíveis pelo homem. Muito embora seja possível pensar em algo fora do tempo ou em um

‘vazio de tempo’, não há como a sensibilidade humana perceber um fenômeno fora dele. Ou

seja, ao se falar em uma sensação experimentada pelo homem, ela necessariamente deverá ter

ocorrido no tempo (ALLISON, 1983; FALKENSTEIN, 2006).

Por fim, dada a origem intuitiva do tempo, Kant conclui pela unidade e singularidade

do tempo, já que os diversos fenômenos que se sucedem no tempo não indicam a existência

de diversos ‘tempos’. Como o homem intui o tempo a partir da organização temporal da

experiência, os eventos consistiriam em frações de um único e unitário tempo (HATFIELD,

2006).

A ênfase no aspecto formal e apriorístico eliminou do conceito kantiano de tempo a

possibilidade de relacioná-lo à ideia de duração. Como o sentimento de duração é um conceito

derivado da experiência empírica, o produto da vivência individual ou cultural em nada

influenciaria a concepção formal do tempo. Essa perspectiva formal fez do tempo um mero

receptáculo passivo da experiência sensível (ELIAS, 1998).

O conceito kantiano de tempo se tornou a expressão filosófica da visão moderna sobre

a natureza do tempo, pois nele fica claramente expressa a objetividade exigida pelo paradigma

desse período. Afinal, o tempo kantiano assume a condição de um dado não modificável da

natureza humana (ELIAS, 1998).

Sob a perspectiva kantiana, as possibilidades de se traçar uma relação entre tempo e

direito se tornaram tão pobres e limitadas como no conceito de tempo absoluto newtoniano

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54

visto acima. Ainda que divergentes quanto à natureza do tempo, Newton e Kant estão de

acordo com o fato de que o tempo não passa de um ‘plano’ ou ‘dimensão’ na qual é possível

ordenar cronologicamente a sucessão dos eventos (ELIAS, 1998).

A coerência e a organicidade da filosofia kantiana impediram que, de um modo geral,

a filosofia moderna se dedicasse a uma reflexão mais aprofundada do conceito de tempo. Esse

tema somente voltou à baila na filosofia quando Henri Bergson e, posteriormente, Edmund

Husserl e Martin Heidegger, renovaram o debate trazendo uma nova compreensão sobre o seu

significado. Ao deslocar o tempo da razão para a consciência, elas operaram uma verdadeira

revolução na compreensão sobre a natureza do tempo em sua relação com o homem.

Enquanto a filosofia da primeira metade do século XIX foi marcada pela influência

dos grandes sistemas produzidos pelo idealismo germânico, a característica da produção

filosófica da segunda metade do século foi a sua guinada em direção ao materialismo de

matriz naturalista-evolucionista (REALE; ANTISERI, 1991).

Nesse período, houve grande predomínio do discurso cientificista face ao sucesso das

ciências experimentais e do método filosófico positivista. Proliferaram também investigações

sobre as conexões entre a constituição biológica do ser humano e a sua capacidade cognitiva,

o que deu origem às primeiras abordagens psicológicas e psicanalíticas do processo de

conhecimento humano55.

A Filosofia, por sua vez, passou a dar menos ênfase à estrutura racional do

pensamento para buscar compreender a organização da consciência a partir do indivíduo

existente no mundo real, com seus dramas, angústias e vicissitudes. Essa abordagem iniciou-

se com Friederich Nietzsche, Soren Kierkegaard e Herbert Spencer e culminou nas correntes

fenomenológicas e existencialistas que marcaram a filosofia do início do século XX.

Esse giro em direção a uma filosofia que parte do indivíduo inserido no mundo

espaço-temporal revelou uma forte ligação entre a experiência do tempo e a consciência de si.

O tempo – que em Kant estava relegado a uma mera condição formal do conhecimento

sensível – passou a assumir o papel de condição de possibilidade da própria existência

concreta do indivíduo: a vivência ‘do’ tempo, ‘no’ tempo, foi identificada como um fato

constituinte da consciência humana. (VIEILLARD-BARON, 2007; DOSTAL, 1993).

Nos próximos tópicos serão abordados o intuicionismo de Henri Bergson e a

fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger, correntes filosóficas que partiram

dessa premissa. Os dois métodos, cada um ao seu modo, deram um novo sentido à noção de

55 Refere-se aqui, a título de exemplo, às contribuições de Willian James (1842-1910), Ernst Weber (1795-1888),

Wilhelm Wundt (1832-1920) e Jean-Marie Charcot (1825-1893) (REALE; ANTISERI, 1991).

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55

tempo a partir da articulação entre a vivência e a experiência do tempo pela consciência

humana.

2.2.3 A compreensão do tempo a partir do intuicionismo de Henri Bergson

Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem

Marcel Proust

A marca da proposta filosófica de Bergson (2001) é a exortação à simplificação da

filosofia. Bergson pede que o filósofo assuma uma postura de não distanciamento em relação

ao seu tema de investigação (LE ROY, 1932). Segundo ele, a filosofia deveria deixar de lado

as abordagens tanto exclusivamente teóricas, como exclusivamente experimentais, pois, as

sínteses conceituais e os processos analíticos não seriam capazes de captar o imediatismo da

experiência vivida (LE ROY, 1932; DELEUZE, 1999).

Ao contrário, Bergson (2001) propõe um método filosófico que tem como ponto de

partida a intuição. Na tradição filosófica que lhe antecedeu, o termo intuição designava apenas

uma forma imediata de conhecimento – pense-se em Kant, por exemplo. Na filosofia

bergsoniana a intuição ganha mais complexidade: refere-se tanto ao produto de uma

experiência vivida, quanto a uma capacidade criadora própria do espírito, que supera e

vivifica a inteligência racional através do instinto (VIEILLARD-BARON, 2007).

Bergson (1979) constrói o conceito de intuição em contraste à noção de análise. Na

operação analítica, o objeto de investigação é decomposto em diversas ‘partes’ por meio da

referência a símbolos, qualidades e atributos. A análise é uma atividade intelectual própria da

faculdade racional do homem e que tenta explicar um determinado objeto de conhecimento

por algo que ele não é. Desse modo, ela seria uma espécie de ‘tradução’ que apreende as

coisas de modo relativo e imperfeito, pois os símbolos, qualidades e atributos identificados no

processo analítico reduzem o objeto de conhecimento a frações que não correspondem ao que

ele realmente é. Da mesma forma a síntese conceitual, que reúne as características do objeto

identificadas no processo analítico, também não seria capaz de capturar a plenitude da

experiência vivida pelo homem. No caso da síntese, a soma das partes não corresponderia à

totalidade:

a análise é a operação que reduz o objeto a elementos já conhecidos, isto é, comuns a este objeto e a outros. Analisar consiste, pois, em exprimir uma coisa em função do que não é ela. Toda análise é, assim, uma tradução, um desenvolvimento em símbolos, uma representação a partir de pontos de vista sucessivos, em que notamos

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outros tantos contatos entre o objeto novo, que estudamos, e outros, que cremos já conhecer. Em seu desejo eternamente insatisfeito de abarcar o objeto em torno do qual ela está condenada a dar voltas, a análise multiplica sem fim os pontos de vista para completar a representação sempre incompleta, varia sem cessar os símbolos para perfazer a tradução sempre imperfeita. (BERGSON, 1979, p. 14-15).

A intuição, por sua vez, permite que o homem tenha acesso direto à experiência por

ele vivenciada, com todos os seus contornos e nuances. Como a intuição assume a forma de

uma ‘simpatia’ ou de uma ‘afeição’, o processo de conhecimento envolve de maneira

indissociável os sentimentos e emoções vividas pelo homem em sua experiência. A riqueza

dessa experiência pode ser apreendida pelo homem, porém dificilmente se exprime em termos

analíticos ou discursivos56.

Dentro de sua proposta, Bergson (2001) eleva, portanto, a intuição à condição de

método filosófico. Para tanto, Bergson elabora as seguintes regras de trabalho: a) colocar e

criar problemas verdadeiramente filosóficos; b) lutar contra as ilusões que obstruem o

reencontro com as verdadeiras articulações do real; c) refletir os problemas filosóficos a partir

de uma perspectiva antes temporal do que espacial (DELEUZE, 1999).

A terceira regra do método intuicionista bergsoniano pressupõe uma conexão entre a

apreensão da experiência por meio da intuição e a noção de ‘duração’ (durée). Segundo

Bergson, o fluxo temporal não pode se dissociar da experiência, sob pena de cingi-la como faz

o método analítico57. A duração é a intuição do fluxo temporal em que toda vivência se insere.

Ela assume diferentes formas, conforme a natureza da síntese mental processada pelo

indivíduo: a duração interior ou pura, percebida pela consciência; a duração orgânica, própria

do ciclo da vida biológica; e a duração material ou real, própria da matéria e objetos exteriores

ao homem (VIEILLARD-BARON, 2007).

Deleuze (1999) ressalta que a duração é um elemento intrínseco a toda espécie de

experiência, pois ela nasce de uma ‘mistura’ entre a sucessão temporal, própria da duração

pura ou interior, e as formas exteriores e descontínuas do espaço. Ou seja, no espaço

encontram-se dispersos diversos ‘estados instantâneos’ de coisas. A experiência irá alinhá-los

e justapô-los na duração interior. Contudo, nesse processo a consciência também introduz as

suas próprias ‘marcações’ da experiência temporal, de forma a produzir uma marcha temporal

particular. Dessa forma, Bergson (2001) consegue passar de uma perspectiva quantitativa da

56 É interessante notar que, de forma coerente com seu método, o próprio Bergson declina a utilização de um

vocabulário analítico em suas obras, preferindo sempre pela forma narrativa ou mesmo metafórica para ilustrar as categorias utilizadas em seu pensamento.

57 “Pensar a duração é a primeira tarefa da filosofia, visto que o fluxo do vivido tem necessidade de ser refletido para que o compreendamos como duração.” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 18).

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57

experiência do tempo – marcada pela mensurabilidade dos instantes temporais – para

apreender a dimensão qualitativa de sua vivência.

A predominância de uma compreensão quantitativa do tempo decorreu de um

paralelismo equivocado entre o tempo e o espaço (LE ROY, 1932). A mensurabilidade do

espaço permitiu que a distância fosse calculada por meio da justaposição de unidades de

medida. É o caso da geometria, por exemplo. Os planos espaciais acolhem as coordenadas e a

distância entre uma e outra nasce da medição entre elas, expressa em alguma unidade de

medida. Bergson (1979) denunciou que o tempo foi espacializado à semelhança do espaço.

Ao ressaltar exclusivamente a característica da mensurabilidade, a ciência e filosofia

modernas enxergaram o tempo como uma quarta dimensão do espaço.

A leitura quantitativa do tempo exclui toda e qualquer experiência que não pode ser

traduzida em números ou unidades de tempo. Por outro lado, como a duração é uma intuição,

ela apreende a experiência temporal de forma direta, sem a intermediação do intelecto. Dessa

maneira, a experiência é inscrita no fluxo da consciência em sua plenitude, fazendo emergir

também e principalmente o seu aspecto qualitativo (VIEILLARD-BARON, 2007). Dessa

forma, diferentemente da sucessão temporal pura e simples, a duração não é um continuum

linear. A duração é um devir constante, marcado ao mesmo tempo pela continuidade e pela

heterogeneidade (DELEUZE, 1999). Edouard Le Roy descreve tais características da duração

da seguinte maneira:

De outra maneira se mostra a duração verdadeira, a duração vivida. É a heterogeneidade pura. Suporta mil graus diferentes de tensão ou de relaxamento, e seu ritmo varia sem cessar. O silêncio mágico das noites tranquilas ou a desordem colocada por uma tempestade, a alegria imóvel do êxtase ou a confusão de uma cólera desenfreada, uma ascensão árdua em direção a uma verdade difícil ou uma descida de um princípio luminoso a consequências que se desenvolvem sem dificuldades, uma crise moral ou uma dor aguda, evocam intuições de todo incomparáveis entre si. E não há aqui instantes que se alinham, mas fases que se prolongam e interpenetram, cuja sucessão não tem nada de uma substituição ponto por ponto e sim, ao contrário, se assemelha a uma resolução musical de acordes por acordes. E nesta melodia sempre nova que constitui nossa vida interior, cada momento contém como que uma ressonância ou um eco dos momentos passados. (...) De modo que nossa duração é irreversível, de modo que sua novidade perpetua, já que cada um dos estados que atravessa envolve a recordação de todos os estados anteriores. (LE ROY, 1932, p. 76, tradução nossa) 58.

58Muy otra se muestra la duración verdadera, la duración vivida. Es la heterogeneidad pura. Soporta mil grados

diversos de tensión o de relajación, y su ritmo varía sin cesar. El silencio mágico de las noches tranquilas o el desorden alocado de una tempestad, la alegría inmóvil del éxtasis o la confusión de una cólera desencadenada, una ascensión ardua hacia una verdad difícil o un descenso ligero de un principio luminoso a consecuencias que se desarrollan sin dificultad, una crisis moral o un dolor lancinante evocan intuiciones del todo incomparables entre si. Y no hay aquí instantes que se alinean, sino fases que se prolongan y se compenetran, cuya sucesión no tiene nada de una sustitución punto por punto, sino que, por el contrario, se parece a una resolución musical de acordes por acordes. Y en esta melodía siempre nueva que constituye

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Sob essa perspectiva qualitativa de compreensão do tempo pela consciência subjetiva,

Bergson é capaz de formular uma definição do tempo que não destrincha as categorias

temporais do passado, presente e futuro em unidades autônomas e distintas entre si. O tempo

da consciência subjetiva adquire, pois, uma unidade:

Seria inútil, com efeito, tentarmos caracterizar a lembrança de um estado passado se não começássemos por definir a marca concreta, aceita pela consciência, da realidade presente. O que é, para mim, o momento presente? É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. Onde portanto se situa essa duração? Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e o que chamo ‘meu presente’ estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobre meu passado em primeiro lugar, pois o ‘momento em que falo já está distante de mim’; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixar esse indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do futuro que ele mostraria. É preciso portanto que o estado psicológico que chamo ‘meu presente’ seja ao mesmo tempo uma percepção do passado imediato e uma determinação do futuro imediato. Ora, o passado imediato, enquanto percebido, é como veremos, sensação, já que toda sensação traduz uma sucessão muito longa de estímulos elementares; e o futuro imediato, enquanto determinando-se, é ação ou movimento. Meu presente portanto é sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo indiviso, esse movimento deve estar ligado a essa sensação, deve prolongá-la em ação. Donde concluo que meu presente consiste num sistema combinado de sensações e movimentos. Meu presente é, por essência, sensório-motor. (BERGSON, 2001, p. 280-281, tradução nossa).59

nuestra vida interior, cada momento contiene como una resonancia o un eco de los momentos pasados (...) De ahí que nuestra duración es irreversible, de ahí su novedad perpetua, ya que cada uno de los estados que atraviesa envuelve el recuerdo de todos los estados anteriores.

59 On chercherait vainement, en effet, à caractériser le souvenir d’un état passé si l’on ne commençait par définir la marque concrète, acceptée par la conscience, de la réalité présente. Qu’est-ce pour moi, que le moment présent? Le propre du temps est de s’écouler; le temps déjà écoulé est, et nous appelons présent l’instant où il s’écoule. Mais il ne peut être question ici d’un instant mathématique. Sans doute il y a un présent idéal, purement conçu, limite indivisible qui séparerait le passer de l’avenir. Mais le présent réel, concret, vécu, celui dont je parle quand je parle de ma percepcion présente, celui-là occupe nécessairement une durée. Où est donc située cette durée? Est-ce en deçà, est-ce au delà du point mathématique que je détermine idéalement quand je pense à l’instant présent? Il est trop évident qu’elle est en deçà et au delà tout à la fois, et que ce que j’apelle ‘mon présent’ empiète tout à la fois sur mon passé et sur mon avenir. Sur mon passé d’abord, car ‘le moment où je parle est déjà loin de moi’ ; sur mon avenir ensuite, car c’est sur l’avenir que ce moment est penché, c’est à l’avenir que je tends, et si je pouvais fixer cet indivisible présent, cet élément infinitésimal de la courbe du temps, c’est la direcion de l’avenir qu’il montrerait. Il faut donc que l’état psychologique que j’appelle ‘mon présent’ soit tout à la fois une perception du passé immédiat et une detérmination de l’avenir immédiat. Or le passé immédiat, en tant que perçu, est, comme nous verrons, sensation, puisque tout sensation traduit une très longue succession d’ébranlements élémentaires ; et l’avenir immédiat, en tant que se déterminant, est action ou mouvement. Mon présent est donc à la fois sensation et mouvement ; et puisque mon présent forme un tout indivisé, ce mouvement doit tenir à cette sensation, la prolonger en action. D’où je conclus que mon présent consiste dans un système combiné de sensation et de mouvements. Mon présent est, par essence, sensori-moteur.

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Bergson (2006) radica a experiência do tempo na subjetividade da consciência humana

e, com isso, retira-lhe seu caráter objetivo. Ao associar-se à duração, o tempo adquire a

propriedade de contração e expansão segundo a resultante dos vetores sensoriais (passado) e

de movimento (futuro) presentes na consciência humana. Sendo assim, essa característica do

tempo subjetivo bergsoniano indica uma abertura para se pensar a relação entre a experiência

do tempo e as demais vivências do homem sob a forma de uma unidade, o que consiste em

uma ruptura em relação à compreensão moderna desse conceito. Ao introduzir a capacidade

de distensão do tempo em conformidade com as respectivas vivências do homem, Bergson

quebra a invariabilidade do ritmo temporal do tempo absoluto newtoniano, assim como a

condição de mero receptáculo da sensibilidade dada por Kant.

Dentro da proposta de investigação da relação entre tempo e direito, o tempo

bergsoniano foi de grande valia para denunciar a negligência do direito em relação aos efeitos

do transcurso do tempo no indivíduo. Com Bergson, abriu-se a perspectiva para se enxergar o

‘outro’ do sistema jurídico, que é o indivíduo concreto que sofre a coerção estatal. É esse

indivíduo que sente o ‘tempo do processo’, que reclama da ‘lentidão da Justiça’, que cumpre

as penas e que lida com a burocracia60. Ou ainda o indivíduo que está na vertigem das

transações instantâneas das bolsas e mercados on line, no ambiente laboral em constantes

transformações pelo contínuo avanço tecnológico. Definitivamente, a vivência não se exprime

em números e é aí que reside o mérito da contribuição de Bergson61.

Contudo, a duração é um conceito relacionado à experiência existencial do indivíduo e

de sua consciência. Com a fenomenologia de Edmund Husserl e, posteriormente, da

hermenêutica filosófica de Martin Heidegger haverá um aprofundamento da relação

ontológica entre o tempo e a consciência. Em ambas as escolas o tempo deixa de se relacionar

a um conteúdo específico vivido pela consciência (VIEILLARD-BARON, 2007) para se

tornar o elemento formal e apriorístico que estabelece o horizonte de compreensão do sujeito

cognoscente.

60 Uma imagem do que se pretende aqui descrever pode ser encontrada nos personagem de Kafka, em ‘O

Processo’ ou de Orwell em ‘1984’, que simplesmente se vêem diante de uma paralisia temporal diante das estruturas burocráticas estatais intangíveis ao cidadão comum.

61 Um importante aspecto da filosofia bergsoniana a ser explorado na sequência desse trabalho é o modo como o seu conceito de duração é o que permite a elaboração da noção de ‘memória coletiva’, por Maurice Halbwachs. Apesar de radicar o problema de memória na experiência grupal do passado, é somente a partir da compreensão do tempo como uma vivência que a memória coletiva pode ser concebida.

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2.2.4 A temporalidade como condição de possibilidade da ontologia na fenomenologia de Edmund Husserl e de Martin Heidegger

A filosofia do século XX foi muito influenciada por Edmund Husserl62 e seu método

fenomenológico. Em sua filosofia, o termo ‘Fenomenologia’63 significa o estudo dos

phenomena, entendidos como os modos segundo os quais as coisas se apresentam para o

homem nas diferentes formas de experiência de sua consciência. A fenomenologia almeja a

descrição e a análise estrutural da consciência e pretende que esta seja estudada da maneira

como experimentada. Da mesma forma, os objetos da consciência devem ser caracterizados

precisamente como se apresentam à consciência, sem o recurso a qualquer tipo de

reinterpretação metafísica (SMITH; SMITH, 1995). A contribuição de Husserl à questão do

tempo, e que importa para o presente trabalho, se deve ao fato de que a análise dos objetos da

consciência feita por Husserl levou a descoberta de que o tempo é a forma básica de toda

experiência (DOSTAL, 1993).

Para levar adiante sua empreitada, Husserl recorre a um processo de ‘redução

fenomenológica’ denominado epoché. Nesse processo o homem deve colocar entre parêntesis

o fato da existência do mundo natural que o cerca, a fim de estar em condições de descrever a

consciência em seu estado puro. Com isso, o filósofo abandona o ponto de vista naturalista

que o leva a raciocinar a partir do mundo em que vive para abraçar uma perspectiva

transcendental. Nela, irá investigar o que há de imanente na consciência, visando traçar as

condições de possibilidade do conhecimento dessa consciência pura (SMITH; SMITH, 1995).

O processo de redução fenomenológica revela que a consciência é sempre intencional.

Isso significa que ela está sempre se dirigindo rumo a um objeto, de tal maneira que toda

consciência acaba sendo sempre consciência de algo. A intencionalidade da consciência faz

com que todo objeto que se torna presente a ela sempre possuirá um sentido que excede

àquele do momento vivido, uma vez que se unifica em uma significação ideal dada pela

consciência. Com isso, a consciência sempre presume e pretende mais do que tem à sua

disposição em cada momento vivido (JÍMENEZ, 1995).

62 É prudente salientar que a filosofia de E. Husserl se desenvolve em três distintas fases ou etapas ao longo de

sua obra. Inicialmente, Husserl empreende esforços no sentido de encontrar fundamentos anti-psicologizantes e objetivos para a lógica e para a matemática. Em seguida, sua filosofia dá uma guinada em direção à recém fundada ‘fenomenologia’ a partir do método por ele denominado de idealismo transcendental. Por fim, Husserl incorpora as críticas de que seu idealismo transcendental culminaria em um solipsismo metodológico para construir uma fenomenologia da intersubjetividade a partir do conceito de ‘mundo da vida’ (Lebenswelt), do qual se falará adiante (SMITH; SMITH, 1995).

63 O termo fenomenologia não nasceu com a filosofia de Husserl, mas certamente adquiriu um significado próprio a partir dele e que será herdado por uma longa tradição que conta com pensadores como Heiddeger, Sartre, Merleau-Ponty e Ricoeur.

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61

O processo de unificação da vivência do objeto na consciência, que parte da

intencionalidade desta e culmina na atribuição de uma significação ideal, pressupõe a

consciência interna do tempo64. Afinal, não obstante sempre se referir a um único objeto, toda

experiência é marcada pela mudança constante e pela multiplicidade de aspectos. Como as

experiências se desenrolam em um fluxo no qual a cada instante um objeto se faz presente,

esse fluxo carrega consigo as experiências passadas e as antecipações das experiências

futuras. Dessa maneira, todos os objetos permanentes que se apresentam à consciência são

estabelecidos e configurados no curso de uma duração (JÍMENEZ, 1995).

Sendo assim, o tempo, para Husserl, obviamente não assume a forma do tempo da

experiência ordinária ou mesmo da conceituação científica. Ele derivará exclusivamente da

experiência vivida do tempo. Aqui, opera-se uma redução fenomenológica pela qual o tempo

objetivo é colocado em suspenso para se verificar de que maneira a experiência do tempo é

constituída de forma imanente na experiência65 (DOSTAL, 1993).

A primeira constatação da redução fenomenológica da experiência do tempo é o fato

de que a sua vivência se dá por meio do ‘agora’ que se faz presente. Todavia, Husserl rechaça

de plano a imagem de que o tempo consistiria simplesmente de uma sucessão de ‘agoras’ ou

um somatório de instantes pontuais que forma uma linha infinita do passado ao futuro. Muito

pelo contrário, trata-se de um presente denso (thick), que reúne as três dimensões nesse

‘agora’: um presente que é experimentado como presente pela consciência; um passado que é

vivido no presente, por meio de um processo de retenção da experiência na consciência; e um

futuro que é vivido no presente por meio da protensão66 da experiência pela consciência67

(KÄUFER, 2003). Apesar de o homem efetuar essas operações de modo não refletido, elas

são constitutivas da experiência do tempo vivido pelo homem e estão presentes em qualquer

instante de sua consciência. Sendo assim, da forma como caracterizado, o tempo

64 “Consciousness is co-constituted by retention and protention, intentions that are directed at the past and the

future without being located in the past or future. A unified consciousness can thus be intentionally directed at an object that is spread out over time, and hence cognize the temporally distended object.” (KÄUFER, 2003, p. 88) (Tradução nossa: “A consciência é co-constituída pela retenção e pela protensão, intenções que são direcionadas ao passado e ao futuro sem serem localizadas no passado ou no futuro. Uma consciência unificada pode, assim, ser intencionalmente direcionada a um objeto que se espalha ao longo do tempo e, portanto, reconhece o caráter temporal do objeto distendido.”).

65 Husserl não nega a existência do tempo objetivo ou científico, mas apenas o coloca em segundo plano uma vez que o tempo fenomenológico ou subjetivo tem precedência metodológica. Afinal, a preocupação que guia o pensamento husserliano é a do tempo como um objeto da consciência humana (JÍMENEZ, 1995).

66 Cf. definição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o verbete ‘protender’ significa ‘estender (algo) para adiante’.

67 A ‘retenção’ a que se refere Husserl não se confunde com a memória, já que esta é a vivência do passado, da mesma maneira que a protensão não se confunde com a esperança. Nesse sentido há uma simetria nos elementos que constituem a experiência vivida do tempo (DOSTAL, 1993). Como se verá no quinto capítulo, contudo, a protensão produz uma lembrança da experiência duradoura (RICOEUR, 2007).

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fenomenológico unifica todo conjunto da experiência vivida no interior de um único fluxo

dessa mesma experiência vivida.

Os mecanismos que descrevem a experiência do tempo vivido pela consciência

humana levam Husserl a constatar que o fluxo do tempo é unidirecional e irreversível. Afinal,

uma vez que a experiência do tempo sempre se apresenta ao homem em um determinado

instante (‘agora’ presente) sob a forma de uma retenção em sua consciência, ela

inevitavelmente não adquirirá mais a forma de uma protensão. Da mesma forma, o instante do

‘agora’ caminha em direção às experiências protendidas e não àquelas retidas, o que

significaria para a consciência que o tempo possui um fluxo temporal unidirecional

(DOSTAL 1993).

Assim, o tempo não é apenas mais um objeto da consciência, mas se confunde com a

própria subjetividade. Afinal, tudo aquilo que pode ser experimentado pela consciência não

pode escapar da unidade do fluxo temporal do vivido. É na consciência que se dá o fluir desse

curso de experiências que engloba a retenção do passado e a protensão do futuro. Com isso, a

consciência dos objetos somente poderia ser concebida dentro de um horizonte dado pela

temporalidade, conforme explica Jímenez:

Graças a isto, Husserl ampliou a teoria da intencionalidade em uma direção decisiva, pois advertiu que não se pode falar da consciência de objetos sem se ter em conta ao mesmo a consciência dos horizontes dos mesmos, do contexto em que necessariamente se faz situado todo objeto de que se tem experiência e por referência ao qual é possível seguir tendo experiência dele. O conceito de horizontes implicava de maneira fundamental o tempo, já que o contexto de um objeto é também um contexto temporal, formado pelas experiências passadas retidas e pelas futuras experiências possíveis, antecipadas. (JÍMENEZ, 1995, p. 28, tradução nossa). 68

Mais adiante, o citado autor prossegue explicitando de que maneira o tempo

condiciona o horizonte e contribui para construir o mundo da vida (Lebenswelt)69 em que se

insere o sujeito:

68 Gracias a esto, Husserl ya amplió la teoría de la intencionalidad en una dirección decisiva, pues advirtió que

no puede hablarse de la conciencia de objetos sin tener en cuenta al mismo tiempo la conciencia de los horizontes de los mismos, del contexto en el que necesariamente se halla situado todo objeto del que se tiene experiencia, y por referencia al cual es posible seguir teniendo experiencia de él. El concepto de los horizontes implicaba muy fundamentalmente el tiempo, ya que el contexto de un objeto es también un contexto temporal, formado por las experiencias pasadas retenidas y las futuras experiencias posibles, anticipadas.

69 Esse horizonte temporal que condiciona a percepção da realidade pela consciência é expressa no conceito de ‘mundo da vida’ (Lebenswelt): “el mundo de la experiencia sensible que viene dado siempre de antemano como evidencia incuestionada, y toda la vida mental que se alimenta de ella, tanto la acientífica como, finalmente, también la científica.” (HUSSERL, 1991, p. 77 apud JÌMENEZ, 1995, p. 96) (Tradução nossa: “o mundo da experiência sensível que vem dado sempre de antemão como evidência inquestionável, e toda vida

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Isto ocorre porque nossa experiência do mundo circundante transcorre somente como experiência dos objetos; junto a ela temos experiência do campo global nos quais os objetos se mostram em cada momento. Só percebemos, por exemplo, um objeto percebendo também o contexto em que ele aparece. Sem este contexto, careceria de sentido que tem para nós como um objeto espacial, que se encontra em um determinado lugar com respeito a outros e a nós mesmo, e que podemos seguir percebendo desde outros lados. Este tipo de experiência é distinto da experiência atual. Mas não se compreende uma sem a outra. A ela e o que se compreende Husserl se refere com o nome de horizonte. Agora bem, um objeto percebido tem como horizonte o campo perceptivo atual do sujeito. Mas este campo tem lugar igualmente em um horizonte mais amplo, formado pelo espaço que está fora do alcance perceptivo momentâneo do sujeito mesmo, mas com o que este conta. Também conta com o tempo passado, na medida em que, sem necessidade de recordar explicitamente, retém dele diversos sentidos de sua experiência anterior; e do mesmo modo conta com o futuro, como o conjunto indefinido de possibilidades de sua experiência e de sua atividade, possibilidades que já se fazem sugeridas de certa maneira na experiência presente. O tempo assim considerado – o tempo vivido – é também um horizonte. Se, por último, ampliamos essas considerações até o máximo possível, o horizonte maior e, em definitivo, universal, o horizonte do horizonte é o mundo. (JÍMENEZ, 1995, p. 98-99, tradução nossa) 70.

A constatação feita por Husserl de que a temporalidade é uma pré-condição da

consciência abriu caminho para Martin Heidegger71 estabelecer em Sein und Zeit (1927) uma

íntima relação entre o fundamento de possibilidade de tudo aquilo que é – a pergunta pelo Ser

que atravessa toda a história da metafísica – e o tempo.

Heidegger rompeu com uma tradição até então consolidada na metafísica tradicional

de que o ‘Ser’ seria algo intemporal, enclausurado nas ideias ou nas essências (STEINER,

mental que se alimenta dela, tanto a não científica, como a científica”.). A expressão foi posteriormente apropriada por diversos autores, notadamente Jürgen Habermas em sua Teoria da Ação Comunicativa.

70 Esto ocurre porque nuestra experiencia del mundo circundante transcurre no sólo como experiencia de objetos; junto a ella tenemos experiencia del campo global en el que los objetos se nos muestran en cada momento. Sólo percibimos, por ejemplo, un objeto, percibiendo también el contexto en el que aparece. Sin este contexto, carecería de sentido que tiene para nosotros como un objeto espacial, que se encuentra en un determinado lugar con respecto a otros y a nosotros mismos, y que podemos seguir percibiendo desde otros lados. Este tipo de experiencia es distinto de la experiencia actual de objetos. Pero no se comprende una sin la otra. A ella y a lo que comprende se refiere Husserl con el nombre de ‘horizonte’. Ahora bien, un objeto percibido tiene como horizonte el campo perceptivo actual del sujeto. Pero este campo tiene lugar igualmente en un horizonte más amplio, formado por el espacio que está fuera del alcance perceptivo momentáneo del mismo sujeto, pero con el que este cuenta. También cuenta con él tiempo pasado, en la medida en que, sin necesidad de recordar explícitamente, retiene de él diversos sentidos de su experiencia anterior; y del mismo modo cuenta con el futuro, como el conjunto indefinido de posibilidades de su experiencia y de su actividad, posibilidades que ya se hallan sugeridas en cierta manera en la experiencia presente. El tiempo así considerado – el tiempo vivido – es también un horizonte. Si, por último, ampliamos estas consideraciones hasta el máximo posible, el horizonte mayor y, en definitiva, universal, el horizonte del horizonte, es el mundo.

71 A análise do problema da temporalidade em Martin Heidegger ficará restrita a sua exposição em Ser e Tempo. Ainda que o projeto de Ser e Tempo seja considerado ‘inacabado’ e que Heidegger tenha retomado o problema da temporalidade em textos como Tempo e Ser, o Conceito de Tempo e Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, é na segunda parte de Ser e Tempo que a temporalidade é tratada de modo mais sistemático por Heidegger.

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1982). A sua originalidade consiste em fundir a investigação ontológica com o fato da

temporalidade:

O problema ontológico fundamental, da exegese do ser enquanto tal abarca, ao final, o por em manifesto a temporalidade do ser. Na exposição dos problemas da temporalidade se dá pela primeira vez a resposta concreta à pergunta que interroga pelo sentido do ser. (HEIDEGGER, 2000, p. 29, tradução nossa) 72.

Para compreender a revolucionária pergunta pelo Ser empreendida por Martin

Heidegger, é preciso inicialmente explicar a figura do Dasein73 ou ‘ser-aí’. Dasein é o termo

empregado por Heidegger (2000) para designar a unidade entre o ser e o homem que possui

existência no mundo74 (MICHELAZZO, 1999, p. 128). Apenas os seres humanos estão

inextrincavelmente inseridos em um mundo dotado de significação, no qual entidades e

atividades lhe são reveladas na medida em que se tornam disponíveis. A partir de sua

manifestação existencial, o Dasein pode formular uma pergunta sobre o que está envolvido na

estrutura de seu mundo e em sua dinâmica. O Dasein assume, portanto, a condição de ente

privilegiado que conduz a investigação pelo Ser (HEIDEGGER, 2000).

72 El problema ontológico fundamental, de la exégesis del ser en cuanto tal, abarca, por ende el poner de

manifiesto la ‘temporalidad’ del ser. En la exposición de los problemas de la temporalidad se da por primera vez la respuesta concreta a la pregunta que interroga por el sentido del ser.

73 “An ontological inquiry into human being, then, will not look at the properties possessed by humans, but rather at the structures which make it possible to be human. One of Heidegger’s most innovative and important insights is that the essence of the human mode of existence is found in our always already existing in a world. He thus named the human mode of existence ‘Dasein’, literally, being-there. Dasein means existence in colloquial German, but Heidegger uses it as a term of art to refer to the peculiarly human way of existing (without, of course, deciding in advance whether only humans exist in this way).” (DREYFUS; WRATHALL, 2005, p. 3-4). (Tradução nossa: “Uma investigação ontológica do ser humano, então, não irá olhar para as propriedades que os seres humanos possuem, mas, ao invés, para as estruturas que tornam possível ser humano. Uma das mais inovadoras e importantes intuições de Heidegger é que a essência do modo humano de existência é encontrado no nosso modo de já existir no mundo Ele então deu o nome de ‘Dasein’ a esse modo humano de existência, significando, literalmente, ser-aí. ‘Dasein’ significa existência em alemão coloquial, mas Heidegger usa-o como um termo da arte para se referir ao modo humanamente peculiar de existir (sem, é claro, decidir, de início, se apenas seres humanos existem dessa maneira).”).

74 É importante salientar que a expressão ‘mundo’ adquire um significado peculiar na filosofia heideggeriana: “As Heidegger defines its structure and function, a world is both (a) the “place wherein” human beings live out their interests and purposes, and (b) the “relations whereby” things within that realm get their meaning. A world is the range of human possibilities in terms of which anything within that context can have significance. All such possibilities are ultimately (i.e. teleologically) ordered to human being, by way of fulfilling human purposes. The world, therefore, is what-constitutes-meaning (to aletheuein) insofar as it is the relational context, ordered to the final cause of human fulfillment, that lets things make sense.” (SHEEHAN, 2005, p. 199-200). (Tradução nossa: “Como Heidegger define sua estrutura e função, um mundo é ao mesmo tempo: (a) um lugar em que seres humanos vivem seus interesses e propósitos. E (b) as ‘relações onde’ as coisas no interior desse universo obtêm seu significado. Um mundo é o limite de alcance das possibilidades humanas nos termos de que tudo no interior desse contexto pode ter significação. Todas essas possibilidades são, ultimamente (i.e. teleologicamente) ordenadas ao ser humano, de maneira a preencher propósitos humanos. O mundo, portanto, é aquilo-que-constitui-sentido (to aletheuein), ao mesmo tempo em que é o seu contexto relacional, ordenado para a causa final do preenchimento humano, que é fazer com que as coisas façam sentido.”).

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Todavia, o Dasein não se confunde com o sujeito da metafísica tradicional, que

possuiu uma determinada estrutura cognitiva e se defronta com o mundo objetivo que lhe é

externo e independente por meio da experiência. Porque o Dasein está inserido no mundo, a

experiência da ‘mundanidade’ do Dasein e das coisas do mundo não pode ser reduzida aos

seus aspectos físico-sensoriais, como propõe a abordagem científica. Para Heidegger, há algo

mais. Como as coisas do mundo estão em relação umas com as outras, elas são constituídas de

significado para o Dasein – fato que lhe impõe uma postura hermenêutica na busca pelo Ser

(DREYFUS; WRATHALL, 2005).

Segundo Heidegger (2000), a estrutura básica do Dasein é a temporalidade.

Heidegger, contudo, faz questão de frisar que a temporalidade própria do Dasein não se

confunde nem com a concepção vulgar que entende o tempo como um puro recipiente de

eventos, nem com o ‘tempo mundano’ em que os acontecimentos portadores de sentido se

apresentam ao homem que vive ‘no tempo’.

O tempo vulgar, às vezes denominado de natural, significa o mero fluir dos relógios e

calendários. Ele consiste em pura sucessão e é um produto da capacidade de abstração e

racionalização do homem. Por essa razão, o tempo vulgar não guarda nenhum tipo de relação

específica com o homem, o que lhe retira qualquer significação. Por sua vez, o tempo

mundano é o meio temporal em que ocorrem os eventos do mundo humano. No tempo

mundano, os assuntos relacionados ao homem adquirem a forma de um ‘curso’. Por isso, o

tempo mundano permite que os eventos e acontecimentos sejam medidos, ordenados e

relacionados entre si. Uma vez que pertencem à própria estrutura ‘do mundo’ e acontecem ‘no

mundo’, os eventos e acontecimentos se medem por meio de um ‘quando’ e de um ‘por

quanto tempo’. Todavia, estas perguntas não são respondidas de uma perspectiva puramente

cronológica. Pelo contrário, interessa ao homem saber de que modo tais eventos e

acontecimentos se inserem em uma sequência que possui conteúdo e significado em sua vida

(BLATTNER, 2005).

Nem o tempo vulgar, nem o tempo mundano expressam o fenômeno da temporalidade

originária. Esta é assim denominada porque constitutiva do próprio Dasein (BLATTNER,

2005). O Dasein possui uma ‘estrutura ontológica’75 que lhe confere as seguintes

75 Estas características são expostas na primeira parte de Ser e Tempo e não cabe aqui fazer um maior

aprofundamento sobre o tema, já que não interessa diretamente ao escopo do presente trabalho. Para um comentário com maior detalhamento sobre a estrutura ontológica do Dasein sugere-se a leitura de Hall (1993)

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características: existência76, facticidade77 e queda78. Heidegger relaciona cada uma dessas

características a uma das respectivas dimensões temporais: futuro, passado e presente79.

A ‘existência’ é o aspecto do ser do Dasein que indica como ele entende a si próprio

em seu ser. Assim, tem-se que é uma característica do Dasein o fato de que ele sempre se

projeta em direção a uma forma de ser. É o que Heidegger denomina de ‘ser-à-frente-de-si-

mesmo’ e que liga a existência humana à ideia de futuro. Na condição de projeção, o Dasein

será sempre uma possibilidade de ser que nasce a partir das condições concretas que o Dasein

tem ao seu dispor.

Já a ‘facticidade’ é a característica do Dasein que lhe impõe a condição de se

encontrar sempre ‘já’ lançado no mundo e em sua própria vida. O Dasein sempre está em

sintonia com uma determinada forma de vida que lhe é significativa e que lhe constitui desde

o primeiro momento de sua existência. A facticidade não se confunde com os episódios da

vida de alguém. Estes são passageiros, portanto não exercem influência na existência do

Dasein. Já aqueles são constitutivos do próprio Ser do Dasein e condicionam integralmente a

sua existência. É o caso, por exemplo, da condição sócio-econômica, cultural, religiosa,

espaço-temporal, familiar, etc... São os elementos que, reunidos, fazem com que o Dasein seja

um ‘ser-já-no-mundo’ e que o liga inexoravelmente a um passado.

Blattner (2005) chama atenção para o fato de que não se pode conceber, contudo, as

dimensões temporais simplesmente como uma linha temporal em que os eventos do passado 76“Existence is that aspect of Dasein’s being that it always is what it understands itself to be. Dasein understands

itself by projecting itself forward into some way of life, or as Heidegger puts it, possibility of being.” (BLATTNER, 2005, p. 312). (Tradução nossa: “Existência é aquele aspecto do ser do Dasein em que ele sempre é o que ele se entende ser. O Dasein se entende projetando a si mesmo adiante em alguma forma de vida, ou como Heidegger coloca, em uma possibilidade de ser.”).

77“Facticity is that aspect of Dasein’s being that it is concrete or determinate. Facticity is Dasein’s distinctive form of factuality. This determinateness discloses itself to Dasein through affectivity, which is the way things matter to Dasein. Everything Dasein encounters, from the most significant and oppressive events of one’s life, to the most trivial and irrelevant, matter to it.” (BLATTNER, 2005, p. 313). (Tradução nossa: “Faticidade é aquele aspecto do ser do Dasein em que ele é concreto ou determinado. Faticidade é a forma de factualidade distintiva do Dasein. Essa capacidade de determinação revela a si mesmo para o Dasein por meio da afetividade, que é o modo por meio do qual as coisas importam para o Dasein. Tudo que o Dasein encontra, dos mais significativos aos mais opressivos eventos da vida de alguém, ao mais trivial e irrelevante, importam a ele.”).

78 “On the one hand, falling refers to Dasein’s tendency to fall away from authenticity and onto the world of its mundane concerns in fleeing from the anxiety of a confrontation with death. On the other hand, it names Dasein’s essential encounter with and absorption in non-human things in the course of pursuing its possibilities.” (BLATTNER, 2005, p. 313). (Tradução nossa: “De um lado, a queda se refere à tendência do Dasein em cair para longe de sua autenticidade e em direção ao mundo de preocupações mundanas relacionadas a fugir da ansiedade da confrontação com a morte. De outro lado, ela nomeia o encontro essencial do Dasein com e a absorção em coisas não humanas no curso da perseguição de suas possibilidades.”).

79 Heidegger (2000), em verdade, nega que passado, presente e futuro, tal como vulgarmente concebidos, pudessem se relacionar à temporalidade originária, uma vez que essas noções brotam da concepção vulgar de tempo. O brotar da temporalidade – a sua temporalização – se dá por meio de três ‘êxtases’ ou horizontes: o ‘a-vir’ do futuro, o ‘hei-sido’ do passado e o ‘presentificar’ do presente.

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um dia foram presente e os eventos do futuro um dia se tornarão presente80. O passado nunca

foi um ‘fato’ para o Dasein, mas apenas a ‘carga’ que ele carrega consigo e condiciona a sua

existência. Da mesma maneira, o futuro é apenas uma projeção cuja razão de ser não é se

concretizar, mas tão somente mostrar-se ao Dasein como uma possibilidade do seu ser.

Por fim, a queda marca a absorção do Dasein em coisas não-humanas que surgem no

curso da perseguição de seus projetos e possibilidades. De um modo geral, a queda torna o

tempo do Dasein ‘não-autêntico’, uma vez que ele está ‘fora de si’, assoberbado com as

tarefas de seu cotidiano. Todavia, o que ‘está-à-mão’ e ‘diante-dos-olhos’ do Dasein se

‘presentifica’81 em um horizonte. O Dasein olha as coisas ao seu redor e elas adquirem um

significado, pois elas existem ‘em função de algo’. A funcionalidade das coisas deriva do

contexto de seu uso, pois nesse momento reúne-se o passado (‘hei-sido’) e o futuro (‘a-vir’).

No presente, os três horizontes da temporalidade originária do Dasein se entrecruzam e se

unificam (REIS, 2005).

Contudo, o ‘presentificar’ das coisas não faz brotar somente o significado delas

mesmas. Tal compreensão somente é possível porque o Dasein que as têm à mão e diante dos

olhos também se autocompreende a si próprio inserido nesse contexto (BLATTNER, 2005).

Dessa maneira, como explica Frede, Heidegger promove uma conexão visceral entre a

temporalidade originária e o Dasein:

Por temporalidade ele [Heidegger] não quer dizer que nós somos, como todas as outras coisas, confinados ao tempo, nem que nós temos um senso de tempo, mas sim que nós existimos nas três dimensões temporais de uma só vez: isso significa estar à frente de nós mesmos no futuro, baseados em nosso passado, enquanto preocupados com o presente que constitui o nosso ser. O modo como nós nos projetamos em direção ao futuro (à frente de nós mesmos), enquanto trazendo conosco nosso passado (sendo já inseridos) em nossa imersão em direção ao presente (estar em casa com) é o que Heidegger designa por ‘ekstases’ de temporalidade. Não há nada de ‘estático’ nisso. Tudo o que significa é que desde já nos estendemos em dimensões temporais e, portanto, não estamos nunca contidos em um aqui e agora pontual. Uma vez que não somos nem pontos estáticos em um universo preexistente indiferente, nem confinados a um segmento ou seta infinita do tempo, mas somos, ao invés, entidades cujo entendimento mesmo produz as dimensões temporais de nossa

80 “Existence or projection is not futural by aiming itself at a possible future state of the self, and facticity or

attunement is not past by revealing historical episodes or states. They are futural and past, rather, in a non-successive sense. They make sense in terms of a future that never will come to be present and a past that never was present.” (BLATTNER, 2005, p. 315). (Tradução nossa: “A existência ou projeção não é relacionada ao futuro por mirar a si mesmo em direção a um possível estado futuro do ser e a faticidade ou sintonia não é o passado apenas por revelar episódios ou estados históricos. Eles são relacionados ao passado e ao futuro, ao invés, em um sentido não sucessivo. Eles adquirem sentido em termos de um futuro que nunca virá a ser presente e de um passado que nunca foi presente.”)

81 A expressão original alemã é Gegenwärtigen – traduzida para a língua inglesa por enpresenting e para a língua espanhola por ‘presentar’ – e na terminologia heideggeriana significa “deixar o que é presente vir ao nosso encontro no presente” (INWOOD, 1999, p. 173).

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existência, essa temporalidade é a condição transcendental de o Dasein ter um universo de seres portadores de sentido. (FREDE, 1993, p. 64, tradução nossa). 82

É dessa maneira que a temporalidade assume, para Heidegger, a condição de uma

estrutura ontológica constitutiva do Dasein. Sob esse aspecto, a temporalidade não é uma

entidade, como concebe a noção vulgar de tempo. Daí a famosa conclusão de Heidegger que

‘a temporalidade temporaliza’ e possibilita a criação de um ‘horizonte de significado’ às

realidades ônticas e ao próprio Ser (STEINER, 1982).

A ideia de que a apreensão do significado dos entes e do próprio Ser se encontra

condicionado pelo horizonte temporal é o passo necessário para que, posteriormente, Hans-

Georg Gadamer pudesse traçar a tarefa do conhecimento hermenêutico como um processo de

‘fusão de horizontes’. Desse modo, a pergunta pela compreensão do que é a hermenêutica,

qual o seu propósito e finalidade, iniciada com Schleiermacher e depois desenvolvida por

Dilthey, atinge seu ponto culminante com o giro hermenêutico.

A ciência do direito vem buscando se aproveitar desses avanços no campo da

hermenêutica para atualizar a sua própria concepção metodológica acerca dos processos

interpretativos utilizados na compreensão do direito e das normas jurídicas83. O giro

hermenêutico foi de grande importância pelo crescente despertar de interesse da relação entre

tempo e direito. A partir da concepção de ‘fusão de horizontes’ e da ideia heideggeriana de

que não há significado fora do tempo, a interpretação deixou de ser simplesmente atribuição

de significado por parte de um sujeito cognoscente (jurista) a um objeto de conhecimento

(texto normativo) com vistas à determinação dos possíveis sentidos normativos desse objeto84.

Na metódica jurídica de Müller (2000), por exemplo, a investigação pelo significado da

norma jurídica aparece sempre dentro de um campo de possibilidade criado pelo texto da

norma, mas é, sobretudo, condicionado pelo âmbito da norma, isto é, as condições concretas

de sua aplicação. A fenomenologia do tempo de Husserl e Heidegger abriu espaço também 82 By temporality he [Heidegger] does not mean that we are, as are all other things, confined to time, nor that we

have a sense of time, but rather that we exist as three temporal dimensions at once: it is being ahead of ourselves in the future, drawing on our past, while being concerned with the present that constitutes our being. The way we project ourselves into the future (ahead of ourselves) while taking with us our past (being already in) in our immersion into the present (being at home with) is what Heidegger designates as the "ekstases" of temporality. There is nothing "ecstatic" about this. All it means is that we are already "extended" outward in temporal dimensions and so are never contained in a "punctual" here and now. Since we are neither static points in a preexisting indifferent universe nor confined to a segment of an infinite arrow of time, but are instead entities whose very understanding makes up the temporal dimensions of our existence, this temporality is the transcendental condition of Dasein's having a universe of meaningful beings.

83 São exemplos da invasão da atitude hermenêutica na metodologia jurídica as propostas metodológicas de Peter Häberle, Friederich Muller, J.J. Canotilho e Castanheira Neves.

84 Esse tema será trabalhado no capítulo seguinte quando se abordar a relação entre tempo e direito a partir da perspectiva do direito.

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para uma investigação ainda mais profunda da relação entre tempo e direito. Kirste (2003)

demonstra, por exemplo, de que modo as Constituições temporalizam o Direito. Os

preâmbulos e introduções que justificam o exercício do poder constituinte originário

conteriam uma presentificação na qual o passado rememorado e o futuro projetado se

reuniriam em uma unidade temporal que atribui significado à prática jurídica e confere

legitimidade normativa ao direito.

A última matriz de abordagem do problema do tempo a ser analisada nesse primeiro

capítulo parte da premissa de que o tempo é um conceito socialmente determinado. Portanto,

a discussão empreendida nos tópicos precedentes seria apenas a expressão de uma visão

peculiar do tempo, a saber, a visão que as sociedades industriais e desenvolvidas do mundo

ocidental construíram para o tempo. Os estudos das sociedades primitivas mostrariam que o

tempo e o processo de determinação temporal ganhariam outra leitura nesses grupos sociais.

Com isso, cairia por terra toda e qualquer pretensão de universalização de um conceito sobre a

essência do tempo ou sua natureza, já que essa noção estaria condicionada a circunstâncias

culturais e históricas. Ao final, o tempo somente poderia ser compreendido a partir de sua

finalidade, isto é, como referência para a orientação social.

2.3 A matriz sociológica: o tempo social como produto da vivência coletiva do homem

Existe um tempo certo para cada coisa, momento oportuno para cada propósito debaixo do sol:

Tempo de nascer, tempo de morrer; tempo de plantar, tempo de colher

(Eclesiastes, cap.3, v. 1-2)

Diante do fato de que as discussões sobre o conceito de tempo se limitaram ao embate

entre a matriz física e a filosófica, no início do século XX as ciências sociais buscaram

construir a sua própria concepção de tempo de modo a atender as necessidades metodológicas

de investigação do problema da mudança social que se opera no tempo e também de como os

grupamentos humanos se relacionam com o fenômeno da temporalidade.

Pinto (2002) relata que um marco importante nessa guinada de direção das ciências

sociais em busca de sua própria definição de tempo se deu com o artigo Social Time: A

Methodological and Functional Analysis (1937) de Merton e Sorokin. Nesse texto, os autores

apontam a imprestabilidade das noções físicas e filosófico-psicológicas das definições de

tempo até então desenvolvidas como categorias capazes de auxiliar o estudo do fenômeno da

passagem do tempo nos grupos sociais. Em especial, apontam que a determinação do tempo é

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sempre associada a atividades sociais e que, portanto, não haveria um tempo único e objetivo

derivado da análise dos movimentos astronômicos:

As expressões temporais, ambas de duração e indicação, são em referência a atividades sociais e aquisições grupais. Aqueles períodos que são esvaziados de qualquer atividade social significante passam sem nenhuma expressão para os denotarem. O tempo aqui não é contínuo – o hiato é encontrado onde quer que um período específico seja ausente de interesse ou importância social. A vida social do grupo se reflete nas expressões temporais. O nome dos dias, dos meses, das estações e mesmo os anos são fixados pelo ritmo da vida coletiva. Uma homogeneidade de batidas sociais e de pulsações de atividade torna desnecessárias as estruturas astronômicas de referência. Cada grupo, com seu íntimo nexo de entendimento mútuo e comum sobre o ritmo das atividades sociais, define seu tempo a fim de se ajustar ao seu comportamento. Nenhum cálculo altamente complexo baseado na precisão matemática, nem a beleza das observações astronômicas são necessárias para coordenar e sincronizar o comportamento societal. (MERTON; SOROKIN, 1937, p. 619-620, tradução nossa). 85.

A partir do postulado sustentado por Merton e Sorokin (1937), de que se fazia

necessária a reformulação do estatuto epistemológico do tempo a partir das preocupações e

questionamentos próprios das próprias ciências sociais, dois sociólogos construíram teorias

sobre o tempo tendo por referência a compreensão de que esse conceito seria o produto

inevitável da vida social do homem. De um lado, Norbert Elias (1998) apontou que o tempo

social seria decorrência da atividade de sincronização temporal exigida para a determinação

temporal de acontecimentos que possuem alta significação e relevância social. Essa

determinação temporal nasceria de uma síntese por meio da qual cada sociedade constrói a

temporalidade de um acontecimento tomando por base algum outro evento temporal que serve

de referência para a marcação desse primeiro. De outro, Niklas Luhmann (1986, 2006)

apontou que o tempo é decorrência necessária das operações recursivas de comunicação

social necessárias à constituição do sistema social. No presente tópico a pesquisa se propõe a

investigar o pensamento desses dois autores, já que a partir dessa concepção sociológica de

tempo é que se aprofundará a relação entre tempo e direito que se pretende investigar.

2.3.1 O tempo como uma construção social

85 The time expressions, both of duration and indication, are in reference to social activities or group

achievements. Those periods which are devoid of any significant social activity are passed over without any term to denote them. Time here is not continuous – the hiatus is found whenever a specific period is lacking in social interest or importance. The social life of the group is reflected in the time expressions. The name of days, months, seasons, and even of years are fixed by the rhythm of collective life. A homogeneity of social beat and pulsations of activity makes unnecessary astronomical frames of reference. Each group with its intimate nexus of a common and mutually understood rhythm of social activities, sets its time to fit the round of its behavior. No highly complex calculations based on mathematical precision and nicety of astronomical observation are necessary to synchronize and co-ordinate the societal behavior.

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O ponto de partida para a reflexão do sociólogo Norbert Elias (1998) sobre a natureza

do tempo é a constatação de que este é um meio de orientação no universo social com a

função de regular a coexistência entre os indivíduos. Contudo, na era moderna, como visto

acima, essa visão do tempo como um elemento que promove a sincronização da sociedade foi

abandonada em prol de uma visão naturalista do tempo. Elias (1998) afirma que essa

perspectiva naturalista do tempo – comum tanto à perspectiva filosófica que enxerga o tempo

como um componente da estrutura psíquica responsável por ligar acontecimentos e dar

origem às sequências temporais, como à Física, que o concebe como um dado objetivo do

mundo físico-natural – é fruto de um determinado estágio de desenvolvimento cultural e

cognitivo da humanidade. Em função de seu alto grau de diferenciação, capacidade de

abstração e poder de síntese, as ciências e a filosofia modernas passaram a tratar a dimensão

objetiva do tempo a partir de seu aspecto conceitual, o que fez com que o tempo objetivo

fosse artificialmente separado do tempo social.

Segundo Elias (1998), os processos físicos de medição do tempo – dos mais

complexos, como instrumentos de precisão, aos mais rudimentares, como os ciclos vitais e

naturais – não se dissociam dos processos de determinação do tempo instituídos no interior de

um grupo social. Logo, o conceito de tempo não se ‘forja’ a partir de uma definição

conceitual86, mas já se encontra pré-determinado pelas instituições sociais que impõem ao

indivíduo uma forma específica de vivenciar culturalmente o tempo87.

Em toda sociedade existem símbolos que servem para a orientação social dos

membros que a compõem. O processo de integração social que o grupo exerce sobre o

indivíduo reforça a importância de tais símbolos por meio da instituição de certos habitus

sociais que acabam se tornando parte integrante da estrutura da própria personalidade dos

membros da sociedade. O tempo seria um desses importantes símbolos de organização e

orientação social que serve para coordenar e integrar os atores sociais. Portanto, para cada

estágio de desenvolvimento cultural e cognitivo do grupo social existe uma respectiva

imagem pré-concebida do tempo. Por essa razão, a definição moderna de tempo, seja a da

86 “Ressalta disso tudo que o conceito de tempo não remete nem ao ‘decalque’ conceitual de um fluxo objetivo

existente nem a uma forma de experiência comum à totalidade dos homens, e anterior a qualquer contato com o mundo. O tempo não se deixa guardar comodamente numa dessas gavetas conceituais onde ainda hoje se classificam, com toda a naturalidade, objetos desse tipo.” (ELIAS, 1998, p.11).

87 “Ora, o tempo não se reduz a uma ideia que surja do nada, por assim dizer, na cabeça dos indivíduos. Ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades. O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a representação do tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o indivíduo tem delas desde a mais tenra idade.” (ELIAS, 1998, p. 15).

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Filosofia, seja a da Física, não diz o que ‘é’ o tempo, mas apenas expressa um certo modo

daquela sociedade lidar com o tempo (ELIAS, 1998).

A primeira condição necessária para que a sociedade moderna pudesse produzir uma

representação objetiva do tempo foi alcançar um grau de desenvolvimento tecnológico em

que os instrumentos de precisão fossem mais acurados, como os relógios (engenharia) e os

calendários (astronomia)88. De posse de instrumentos mais precisos de medição, os processos

de integração social instituídos a partir do mercantilismo e da industrialização criaram uma

necessidade social cada vez mais obsessiva pela exatidão na medição do tempo. A rígida

disciplina do trabalho nas fábricas e a importância dada ao tempo no ambiente de negócios

despertaram: a) uma maior sensibilidade em relação à passagem do tempo nos indivíduos; b)

uma preocupação cada vez mais consciente da necessidade de determinação do tempo. Dessa

maneira, cada vez mais e mais as pessoas passaram a se autorregular e autodisciplinar em

função do tempo89.

Mas Elias (1998) afirma que o elemento determinante para o processo de dissociação

do tempo social do tempo físico foi o individualismo metodológico90 próprio do

conhecimento científico da era moderna. Uma longa tradição filosófica que vai de Descartes

aos existencialistas do século XX construiu a imagem de que o sujeito que está na posição

central do processo de conhecimento é um ser a-social e a-cósmico, cuja existência é

independente do universo que o circunda. Desse modo, a representação conceitual do tempo

88 Elias (1998) afirma que um dos elementos que contribui para a identificação do tempo físico com a própria

‘definição’ do tempo se deve ao fato de que o alto grau de adequação à realidade dos instrumentos de medição do tempo na era moderna produziu o efeito de, num primeiro momento, não se conseguir distingui-los da própria realidade do tempo.

89 A prática processual do direito, aliás, é altamente tributária dessa visão do tempo, já que se constrói a partir do fetiche pela observância dos prazos, sob pena da temida preclusão temporal. O jurista prático, de um modo geral, é visto como um ‘escravo do prazo’ e o não atendimento a esse seu senhorio pode representar a sua ruína social e profissional. Mas esse fetichismo do tempo é presente em todas as áreas do direito, como já abordado acima. O direito é altamente implacável com aqueles que não se encontram integrados nesse processo de auto-regulação da conduta individual em relação ao tempo – como já dito acima, pense-se nos institutos do horário de trabalho, das multas e penalidades que acompanham o vencimento de obrigações civis e comerciais, da prescrição e da decadência, etc...

90 “Aqui aparece, mais uma vez, uma concepção do homem que coloca o ‘indivíduo’ no centro e faz da ‘multiplicidade’ uma coisa da ordem do adicional. Através do conceito de socialização, formamos uma imagem da vida coletiva e de suas restrições como algo que viria somar-se ao indivíduo, de fora para dentro. O ponto de vista individualista assume aqui uma forma ainda bastante moderada e parcialmente aceitável. Às vezes, porém, isso já não acontece, como é o caso das teorias da ação que remontam a Max Weber. Como em relação às teorias geocêntricas, é compreensível que o sujeito possa, sem maiores considerações, confiar em sua própria experiência e generalizá-la a ponto de encarar o ‘indivíduo’ como ponto de partida de qualquer reflexão referente ao vasto mundo. Nessa perspectiva, o indivíduo constitui a realidade inicial a partir da qual o pensamento procura então tornar inteligível, para si mesmo, a vida coletiva dos homens no seio das sociedades. Essa maneira de construir teorias sociológicas, partindo do indivíduo, ganha uma acentuação particular quando, ainda mais, o pensamento reduz a realidade do indivíduo à ação individual. A sociedade afigura-se então um mosaico de atos individuais, praticados por seres individuais.” (ELIAS, 1998, p. 18).

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foi contaminada pelo egocentrismo do conhecimento moderno91, o que eliminou qualquer

vestígio comunitário que o tempo pudesse guardar.

Esse processo de objetivação do tempo obscureceu a sua verdadeira caracterização de

elemento de orientação social. Norbert Elias (1998, p. 39-40) afirma que para se compreender

o tempo é preciso inicialmente apreendê-lo sob a forma de uma relação:

a palavra tempo, diríamos, designa simbolicamente a relação que um grupo humano, ou qualquer grupo de seres vivos dotados de uma capacidade biológica de memória e de síntese, estabelece entre dois ou mais processos, um dos quais é padronizado para servir aos outros como quadro de referência e padrão de medida.

A relação que constitui a imagem do tempo é composta de, pelo menos, três

elementos: de um lado os seres humanos, que estabelecem a relação entre eventos no tempo,

e, de outro, dois processos, acontecimentos ou eventos distintos, sendo que um deles forma

um quadro padrão de referência para a medição do segundo. A relação que promove a

determinação do tempo tem a finalidade de coordenar e integrar o grupo social, já que serve

tanto para se determinar o momento apropriado para a prática de uma ação socialmente

relevante (função reguladora), como também para padronizar ‘quando’ o grupo social deverá

realizá-la (função integradora). Desse modo, o tempo se converte em uma instituição social

capaz de impor comportamentos socialmente coercitivos aos indivíduos.

Contudo, o modo como se constrói a relação entre esses três elementos pode variar de

complexidade e de nível em função do grau de desenvolvimento cultural do grupo social no

qual se insere o sujeito que promove a determinação temporal. Daí porque cada grupo social

possui a sua própria imagem do tempo:

Portanto, o que chamamos ‘tempo’ significa, antes de mais nada, um quadro de referência do qual um grupo humano – mais tarde, a humanidade inteira – se serve para erigir, em meio a uma sequência contínua de mudanças, limites reconhecidos pelo grupo, ou então para comparar uma certa frase, num dado fluxo de acontecimentos, com fases pertencentes a outros fluxos, ou ainda para muitas coisas. (ELIAS, 1998, p.60)

91 É curioso notar que o individualismo metodológico do conhecimento científico é fruto de um acúmulo de

saber cultural que permitiu que o homem moderno tivesse uma maior capacidade de representar a sua própria identidade pessoal como uma individualidade que passa por um processo de crescimento e declínio, o que não existia nos povos mais primitivos: “Muitos indicadores mostram que a imagem de si mesmo, o sentimento de identidade pessoal, era muito mais impreciso e menos fortemente organizado em estágios anteriores da evolução da humanidade. Ao sair de um rito de iniciação, ou após a aquisição de uma nova posição social, o homem podia ter a impressão de ser uma outra pessoa, dotada de outro nome, e de ser assim percebido pelos demais. Tanto por seu próprio ponto de vista quanto na percepção de outrem, ele podia tornar-se idêntico a seu pai, metamorfosear-se num animal, ou deter o poder de estar, ao mesmo tempo, em dois lugares diferentes”. (ELIAS, 1998, p. 56).

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Esse processo de sincronização ou temporalização92 terá por resultado a ordenação dos

eventos em adjetivos temporais como ‘antes’, ‘depois’, ‘mais cedo’, ‘mais tarde’, ‘breve’,

‘longo’93, etc... Essa ordenação temporal se alia a uma capacidade de síntese própria do

raciocínio e da cognição humana94 para dar origem às categorias temporais do ‘passado’, do

‘presente’ e do ‘futuro’. Desse modo, o calendário, por si só, não é o elemento decisivo para

formação das categorias temporais, pois ele depende da experiência individual ou grupal que

o homem tem da sucessão dos eventos95:

O que são ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ depende das gerações vivas do momento. E, como estas se ligam constantemente, era após era, o sentido ligado a ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ não para de evoluir. Aqui, assim como nos conceitos temporais mais simples, de caráter serial, tais como ano ou mês, expressa-se a capacidade humana de efetuar sínteses – no caso, de experimentar como simultaneidades aquilo que não se produz na simultaneidade. Mas os conceitos do tipo ‘ano, ‘mês’ ou ‘hora’ não integram essa capacidade, ainda que a pressuponham em seu sentido. Eles simplesmente representam sequências contínuas de acontecimentos de duração variada. Os conceitos de ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro, ao contrário, expressam a relação que se estabelece entre a série de mudanças e a experiência que uma pessoa (ou um grupo) tem dela. Um determinado instante no interior de um fluxo contínuo só adquire um aspecto de presente em relação a um ser humano que o esteja vivendo, enquanto outros assumem um aspecto de passado ou de futuro. Em sua qualidade de simbolizações de períodos vividos, essas três expressões representam não apenas uma sucessão, como ‘ano’ ou o par ‘causa-efeito’, mas também a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana. Poderíamos dizer que ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ constituem, embora se trate de três palavras diferentes, um único e mesmo conceito. (ELIAS, 1998, p.63).

Desse modo, tem-se que a operação de determinação temporal é socialmente

adquirida, já que depende do habitus social que imprime uma forma de consciência do

tempo96.

Essa abordagem do conceito de tempo traz uma importante consequência para a

presente investigação. Como a prática jurídica é também uma experiência social, ela imprime 92 A expressão original do alemão é Zeiten, forma verbal do substantivo Zeit, que significa tempo. 93 Segundo Elias (1998), a partir de uma visão de conjunto sobre o que não se produz em um único momento, a

memória exerce um importante papel no trabalho de representação da ordenação temporal. Esse dado será importante para o desenvolvimento desse trabalho quando se estiver caracterizando a memória jurídica e seus efeitos temporais.

94 Elias (1998) denomina esse processo de ‘síntese do sucessivo’, que é capacidade de o homem representar para si, simbolicamente, uma sequência de acontecimentos como tal, ou simplesmente perceber essa sequência como um fluxo contínuo de acontecimentos que se produzem uns após outros.

95 Esse aspecto simbólico das categorias temporais será de suma importância para a relação que se pretende traçar no final do próximo capítulo, acerca da possibilidade de uma forma da prática e do raciocínio jurídico contribuírem para o curso da marcha temporal.

96 Elias (1998) relata que certos povos de poder de síntese mais baixo e menor capacidade de abstração conceitual, como os indígenas da América do Norte, não possuem qualquer referência em seu vocabulário a expressões como ‘atraso’ ou ‘demora’. Em algumas tribos africanas a determinação do tempo para momentos de colheita dependia muito mais de uma autoridade mística sacerdotal do que do início das estações propriamente. Para uma apresentação da evolução das formas de determinação no tempo na humanidade, sugere-se a leitura de G.J. Whitrow (1993).

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diferentes tipos de marcações temporais no grupo social, conforme o raciocínio jurídico

implícito nas concepções do direito. Distintos modos de se vivenciar a prática jurídica no

grupo social criariam diferentes linhas de demarcação entre passado, presente e futuro. Cada

uma dessas dimensões temporais poderia ser enfatizada ou preterida pela prática jurídica,

originando um tempo social anacrônico.

Ronald Dworkin (2003) e François Ost (2005a) têm desenvolvido esforços teóricos no

sentido de identificar de que maneira a prática jurídica se relaciona com o tempo social.

Todos eles concordam que a interdependência entre a prática jurídica e o tempo social é muito

mais profunda do que a relação possível para tempo e direito até então estabelecida sob o

predomínio do positivismo jurídico. Como se verá no quarto capítulo, a contribuição desses

dois autores para superar o distanciamento entre o tempo e o direito estará diretamente ligada

a uma abordagem do problema do tempo a partir da perspectiva sociológica acima exposta.

2.3.2 O tempo como distinção entre passado e futuro na teoria dos sistemas sociais

A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann (2006) consiste em um ambicioso projeto no

campo das ciências sociais que pretende romper com o modelo clássico de investigação

sociológica que lhe antecedeu. Desde Marx e Durkheim, passando por Weber, até as

abordagens mais recentes da teoria da ação comunicativa de Habermas, o objeto de

investigação da sociologia clássica tem se concentrado ora no fato social, ora na ação social,

privilegiando antes os indivíduos que compõem a sociedade do que a sociedade como um ente

autônomo97. Assim, como a preocupação do pensamento sociológico tradicional nasceu da

distinção entre indivíduo e sociedade e da consequente explicação do comportamento

individual na sociedade, segundo a análise de Luhmann (2006) a sociologia clássica ficou a

dever uma descrição completa do funcionamento social como uma totalidade, que não

tomasse como referência suas partes constitutivas, isto é, os indivíduos e grupos sociais. Essa

tentativa de explicar a sociedade a partir das partes que a integram fez com que, durante toda

97 A única exceção a essa tendência seria, segundo Luhmann (2006), a teoria da estrutura dos sistemas de ação

social de Talcott Parsons, a qual ele próprio toma como ponto de partida para a teoria dos sistemas. Por enfatizar a dimensão sistêmica ou estrutural da sociedade, Parsons teria intuído esse redirecionamento de enfoque necessário à investigação das ciências sociais como teoria da sociedade. Todavia, mesmo colocando em relevo a dimensão estrutural da sociedade (seus elementos culturais, psicológicos, sociais e orgânicos), sua análise ainda partiria do problema da ação social e das variáveis que levariam a seu acontecimento. Desse modo, ao serem apropriados por Luhmann, os conceitos da sociologia parsoniana adquiriram um novo significado na abordagem sistêmica por ele proposta.

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sua recente existência, a sociologia – que se propunha como um estudo ‘da’ sociedade –

paradoxalmente se visse impossibilitada de construir uma teoria sobre ‘a’ sociedade98

Segundo Luhmann (1986), para que a sociologia possa então realmente se assumir

como uma teoria destinada à explicação do fenômeno da sociedade, ela precisaria romper com

a lógica do pensamento sociológico tradicional: abandonar o referencial do problema da

relação social entre as ‘partes fracionárias’ que compõem a sociedade e se concentrar na

descrição da sociedade como uma unidade. Para tanto, segundo Luhmann (2006), a teoria dos

sistemas autopoiéticos, originária dos estudos em imunologia de Maturana e Varela, poderia

proporcionar o instrumental teórico necessário a essa abordagem. Luhmann, em referência ao

próprio Maturana, assim define e apresenta a teoria dos sistemas:

Para dizer ipsissima verba, sistemas autopoiéticos são ‘sistemas que são definidos como unidades, como redes de produção de componentes que, recursivamente através de suas interações, geram e realizam a rede que as produz e as constitui, no espaço no qual eles existem, as fronteiras da rede como componentes que participam na realização da rede. Sistemas autopoiéticos não são eles próprios sistemas organizados. Não apenas eles produzem e eventualmente mudam a sua própria estrutura, mas sua auto-referência se aplica também à produção de outros componentes. Ela turbina o já potente motor das máquinas autoreferenciais. Mesmo elementos, isto é, componentes últimos (indivíduos) que não são, ao menos para o sistema, passíveis de decomposição, são produzidos pelo sistema ele próprio. Isso se aplica a processos, elementos, fronteiras e outras estruturas e, por último, mas não menos importante, para a unidade do sistema ele próprio. Sistemas autopoiéticos, é claro, existem no interior de um ambiente. Eles não podem existir por conta própria. Mas não há entrada, nem saída na unidade. (LUHMANN, 1986, p. 173, tradução nossa). 99

A teoria dos sistemas se constrói, assim, a partir da distinção entre o sistema e seu

‘outro’, o denominado ‘entorno’ ou ‘ambiente’. Essa distinção ignora o problema do 98 Segundo Luhmann (2006), haveria quatro obstáculos epistemológicos à sociologia clássica, interrelacionados

entre si, que lhe impediriam de compreender e descrever corretamente a sociedade: 1) a premissa de que a sociedade é composta por indivíduos concretos e que ela nasceria da relação que esses indivíduos travam entre si – a chamada relação social; 2) que há um processo de ‘integração social’ formador da sociedade condicionado pela existência de um consenso básico acerca de opiniões e objetivos sociais comuns verificados nos indivíduos; 3) que as sociedades seriam unidades regionais que se distinguem territorialmente em razão das fronteiras políticas ou, quando muito, étnicas; 4) que o comportamento social poderia ser descrito a partir do ponto de vista de um observador externo a elas. Soma-se a esses obstáculos o fato de que as categorias utilizadas pela sociologia clássica para descrever o comportamento humano estariam ainda contaminadas por conceitos desgastados dos séculos XVIII e XIX, como razão, vontade e entendimento.

99 To use ipsissima verba, autopoietic systems are ‘systems that are defined as unities, as networks of productions of components, that recursively through their interactions, generate and realize the network that produces them and constitute, in the space in which they exist, the boundaries of the network as components that participate in the realization of the network’. Autopoietic systems are not themselves organizing systems. Not only do they produce and eventually change their own structures but their self-reference applies to the production of other components as well. It adds a turbo charger to the already powerful engine of self-referential machines. Even elements, that is, last components (individuals), which are, at least for the system itself, undecomposable, are produced for the system itself. This applies to elements, process, boundaries and other structures, and at last but not least to the unity of the system itself. Autopoietic systems of course, exist within an environment. They cannot exist on their own. But there is no input or output on unity.

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indivíduo e de seu comportamento no interior da sociedade, seja sozinho ou em grupos. Ao

contrário, enfatiza a sociedade como um sistema autônomo que possui sua própria lógica de

reprodução e funcionamento.

Da perspectiva da teoria dos sistemas, todo sistema se caracteriza por ser

autorreferente ou autopoiético, isto é, por identificar-se a si próprio por meio de ‘unidades

elementares’ indivisíveis que o próprio sistema produz e reproduz em seu interior. Essa

unidade elementar identifica e caracteriza o sistema, criando as fronteiras que produzem sua

identidade, tornando-o, ao mesmo tempo, distinto de seu entorno ou ambiente. Desse modo, o

sistema não sofre a ingerência do ambiente (input) no que diz respeito à produção e à

reprodução de sua unidade elementar constitutiva de sua identidade, ao mesmo tempo em que

não as envia para o ambiente (output), uma vez que as unidades elementares somente fazem

sentido para o sistema como partes que lhe são integrantes100.

No caso dos sistemas sociais, as ‘unidades elementares’ consistem na produção

recursiva101 de comunicação social102. Para utilizar uma imagem figurativa, pode-se dizer que

o sistema social é uma ‘teia de comunicações’ que se reproduz a partir da contínua produção

de comunicações. Todavia, essa comunicação que produz e reproduz o sistema social não é

uma comunicação desconexa ou aleatória. Pelo contrário, ela é portadora de ‘sentido’103

100 Pense-se, por exemplo, em um ser vivo. O sistema biológico tem as suas células como unidades elementares,

as quais o próprio sistema produz e reproduz em seu interior. O ambiente não ‘cria’ células para o indivíduo, ao mesmo tempo em que as células somente sobrevivem dentro do organismo. Fora do organismo, uma célula deixaria de fazer parte do sistema e se converte em seu ambiente.

101 O caráter recursivo da comunicação social deriva do fato de que, para configurar o sistema social, ela se processa infinitas vezes e que, a seu final, logo lhe sucede uma nova comunicação. É nesse sentido que se pode afirmar que a produção de comunicação no interior dos sistemas sociais é autopoiética: “La comunicación es la unidad más pequeña posible de un sistema social; es decir, es aquella unidad a la cual la comunicación todavía reacciona con comunicación. Ella es – y ésta es otra versión del mismo argumento – autopoiética en la medida en que sólo se produce en relación recursiva con otras comunicaciones y, por tanto, sólo en un entramado a cuya reproducción concurre cada una de las comunicaciones.” (LUHMANN, 2006, p. 58). (Tradução nossa: “A comunicação é a menor unidade possível de um sistema social; a dizer, é aquela unidade a qual a comunicação, todavia reage com comunicação. Ela é – e esta é outra versão do mesmo argumento – autopoiética na medida em que só se produz em relação recursiva com outras comunicações e, portanto, só em uma trama a cuja reprodução concorre cada uma das comunicações.”).

102 “Social systems use communication as their particular mode of autopoietic reproduction. Their elements are communications which are recursively produced and reproduced by a network of communications and which cannot exist outside of such a network. Communications are not living units, they are not conscious units, they are not actions. Their unity requires a synthesis of three selections: namely information, utterance and understanding (including misunderstanding). This synthesis is produced by the network of communication, not by some kind of inherent power of consciousness, or by inherent quality of information.” (LUHMANN, 1986, p.175). (Tradução nossa: “Sistemas sociais usam comunicação como seu modo particular de reprodução autopoiética. Seus elementos são comunicações que são recursivamente produzidas e reproduzidas por uma rede de comunicações e que não pode existir fora dessa rede. Sua unidade requer uma síntese de três seleções: nomeadamente informação, relevância e entendimento (incluindo desentendimento). Ess síntese é produzida pela rede de comunicações, não por alguma espécie de poder inerente da consciência ou por uma qualidadeda informação.”).

103 “Sentido significa que en todo lo que se señala como actual queda además co-expresada y co-aprehendida la remisión a otras posibilidades. Todo sentido determinado alude a sí mismo y a lo otro distinto. Si no,

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(meaning), no sentido de que o produto das comunicações recursivas dá origem a uma trama

consistente de operações entrelaçadas.

É dentro desse contexto de constituição e evolução dos sistemas sociais que Luhmann

(1986) constrói a sua concepção de tempo social. Do esquema acima exposto, conclui-se que

os sistemas sociais necessitam produzir recursivamente comunicação social a fim de que

possam sobreviver. Pois bem, cada comunicação social é um evento. Esse evento é percebido

pelo sistema a partir de uma relação temporal, já que o evento cria uma distinção entre um

‘antes’ e um ‘depois’ do seu acontecimento104. Assim, nota-se que a temporalidade não nasce

como uma propriedade natural do tempo, mas como uma construção do próprio sistema ao se

observar em sua reprodução autopoiética no tempo. Diferentemente do tempo natural, que se

assenta na noção de continuidade, o ponto de partida para a investigação do fenômeno do

tempo será a descontinuidade temporal produzida pelo evento.

No entanto, a existência de um sistema social não pára de acontecer no tempo, como

se fosse possível ao sistema fotografar-se a si mesmo e pretender que aquela imagem fosse o

retrato fiel e perene de sua condição. Qualquer observação que o sistema produz sobre si

próprio já não será idêntica à observação feita no instante seguinte. Logo, em todo olhar auto-

reflexivo, o sistema precisa reconstruir a sua temporalidade a partir da colocação de eventos

que se sucedem no tempo, estabelecendo, assim o ponto de partida para a criação da distinção

entre o passado e o futuro.

entonces – contradiciendo la experiencia que tenemos de las cosas – tendría que aceptarse que las cosas al salir de nuestra vista desaparecen cuando ponemos la atención en otras; nadie si arriesgaría en tal caso a abandonarlas. El sentido – remetiendo al mundo – se hace co-presente (es más: apresente en actualidad) en todo lo que se actualiza. Esto incluye también la remisión dentro del mundo a las condiciones de nuestra propia capacidad, de nuestro proprio poder de consecución y de sus límites.” (LUHMANN, 2006, p. 31) (Tradução nossa: “Sentido significa que em tudo o que se assinala como atual permanece ademais co-expressada e co-apreendida a remissão a outras posibilidades. Todo sentido determinado alude a si mesmo e ao outro distinto. Se não, então – contradizendo a experiência que temos das coisas – teria que se aceitar que as coisas ao sair de nossa vista desaparecem quando repousamos a atenção em outras; ninguém se arriscaria em tal caso a abandoná-las. O sentido – remetendo ao mundo – se faz co-presente (é mais: apresenta em atualidade) em tudo o que se atualiza. Isto inclui também a remissão dentro do mundo às condições de nossa própria capacidade, de nsso próprio pode de consecução e de seus limites.”).

104 A distinção temporal entre o antes e o depois somente é possível porque o sistema se enxerga como uma unidade que possui uma identidade duradoura no tempo. Portanto, a diferença temporal é constitutiva da identidade do sistema no tempo: “Systems based on events need a more complex pattern of time. For them, time cannot be given as an irreversibility alone. Events are happenings which make a difference between a 'before' and a 'thereafter'. They can be identified and observed, anticipated and remembered only as such a difference. Their identity is their difference. Their presence is a co-presence of the before and the thereafter.” (LUHMANN, 1986, p.9). (Tradução nossa: “Sistemas baseados em eventos necessitam de um padrão mais complexo de tempo. Para eles, o tempo não pode ser dado como uma irreversibilidade sozinha. Eventos são acontecimentos que produzem a diferença entre um ‘antes’ e um ‘depois’. Eles podem ser identificados e observados, antecipados e lembrados apenas como tal diferença. Sua identidade é sua diferença. Sua presença é uma co-presença do antes e do depois.”).

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Todavia, além de se reproduzirem, os sistemas sociais também evoluem. Para o autor,

evolução não consiste, contudo, em um aprimoramento ou em um desenvolvimento do

sistema social. Trata-se apenas de ‘una ampliación del numero de presupuestos sobre los que

se puede apoyar um cierto orden’ (LUHMANN, 2006, p. 328). A evolução significa, apenas,

que o sistema se torna mais complexo e que, portanto, o seu equilíbrio depende um conjunto

maior de fatores em sincronia.

O aumento de complexidade de um sistema social permite que ele se compreenda

como distinto em relação aos momentos temporais anteriores. Ao reconstruir sua

temporalidade, o sistema perceberá, portanto, as mudanças estruturais pelas quais passou ao

longo de sua existência. O sistema aprofunda a distinção entre o ‘antes’ o ‘depois’ do evento

para interpretar a sua própria realidade e reconhecer momentos sociais distintos em sua

história evolutiva. Quanto maior for o grau de diferenciação do sistema, maior será a distinção

entre passado e futuro e maior será a capacidade do sistema de conhecer reflexivamente sobre

o próprio fenômeno do tempo. Essa capacidade que o sistema tem de interpretar a realidade e,

com isso, criar as distinções entre passado e futuro é justamente em que consiste o tempo.

Encerrada a revisão de literatura sobre as concepções de tempo na ciência e na

filosofia, no capítulo seguinte o debate sobre a relação entre tempo e direito será analisada sob

o ponto de vista da teoria jurídica. Buscar-se-á apresentar de que modo as diferentes teorias

sobre o direito culminaram em formas de raciocínio e de práticas jurídicas blindadas contra

uma relação mais profunda com o tempo social. Essa discussão também servirá para, no

quarto capítulo, empreender-se uma análise dos dois autores acima citados e sua proposta de

superar esse distanciamento. O intuito é reunir elementos para identificar como a teoria

jurídica pode levar em consideração tanto o importante papel que o direito possui no processo

de institucionalização do tempo, como o fato de que o direito não está alheio ao tempo social.

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3 SOBRE A IMAGEM DO TEMPO NAS TEORIAS JURÍDICAS MOD ERNAS

A superficialidade ou o aprofundamento da relação entre tempo e direito não depende

apenas de variações na conceituação do ‘tempo’. Diferentes concepções sobre a natureza do

direito e sobre o seu método de conhecimento e interpretação também influenciaram no grau

de estreitamento dessa relação105. Contudo, enquanto o conceito de tempo paulatinamente

buscou se desvencilhar da objetividade e da autonomia em relação ao homem e ao mundo

exterior, o direito, até meados do séc. XX, cada vez mais se enclausurou em fronteiras

metodológicas que o tornaram reticente em aceitar qualquer relação com o tempo social. Ao

enfatizarem exclusivamente a expressão normativa da experiência jurídica, as principais

concepções teóricas sobre o direito produzidas na modernidade ressaltaram a questão da

validade da norma e do método interpretativo. Com isso, as teorias jurídicas deixaram lado o

problema da sincronia do direito em relação ao tempo, bem como de como essa sincronia

exerce um importante papel na regulação social.

O presente capítulo abordará o problema da relação entre o tempo e o direito à luz da

teoria jurídica. Pretende-se destacar os principais aspectos da evolução do pensamento

jurídico moderno a fim de demonstrar de que maneira a expressão do conhecimento jurídico

segundo os cânones da ciência moderna conferiu ao direito o status de saber lógico-formal,

em detrimento de sua condição de ciência social aplicada. Ao final da exposição apontar-se-

ão os caminhos que levaram o direito moderno a se fechar em relação à sua dimensão

temporal e fizeram dele uma prática interpretativa106 ‘sem memória’.

Essa recapitulação será importante para que, no capítulo seguinte, se trabalhe as

teorias que pretendem superar essa imagem atemporal que o direito moderno assumiu por

meio de um aprofundamento da relação entre o tempo e o direito. Da mesma forma, a análise

105 Tal fenômeno se verifica, também, em outras disciplinas das humanidades, como é o caso da História, por

exemplo. Starr (1966) sugere que diferentes formas da prática da historiografia produzem diferentes efeitos na experiência do tempo.

106 Comunga-se aqui do ponto de vista defendido por Dworkin (2003, p. 109-110) de que o direito é um conceito interpretativo que se revela por meio das premissas gerais adotadas por juízes e advogados como fundamento de sua prática judicial: “O direito é um conceito interpretativo (...). Em geral, os juízes reconhecem o dever de continuar o desempenho da profissão à qual aderiram ao invés de descartá-la. Então desenvolvem, em resposta a suas próprias convicções e tendências, teorias operacionais sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades nesse desempenho (...) As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas próprias convicções sobre o ‘sentido’ – o propósito, objeto ou princípio justificativo – da prática do direito como um todo, e essas convicções serão inevitavelmente diferentes, pelo menos quanto aos detalhes daquelas dos outros juízes.”.

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dos efeitos da amnésia da prática jurídica enfatizará a importância de se refletir sobre a uma

compreensão temporal que, assume-se, a memória jurídica visa proporcionar.

3.1 Contextualização histórica da formação do direito moderno

A pouca importância dada pelos juristas modernos ao problema do tempo não

decorreu apenas de uma compreensão estreita ou limitada do conceito moderno de tempo,

mas também do modo como o direito foi concebido pelas teorias jurídicas produzidas até

meados do século XX. A imagem que o direito construiu de si próprio ao longo da história

moderna obscureceu a percepção de seu relacionamento com o fenômeno da temporalidade:

do jusnaturalismo às várias versões do positivismo jurídico, a concepção de direito formulada

por essas teorias jurídicas transmitiu a noção de que o direito possui uma autonomia em

relação ao tempo. Em razão da autocompreensão do direito sobre a sua origem e natureza e,

principalmente, em função dos métodos de conhecimento e interpretação do direito propostos

pelas teorias jurídicas modernas, o direito assumiu a feição de um saber atemporal.

O contexto cultural do nascimento das teorias jurídicas do início da modernidade é

marcado por uma grande mescla de referências históricas e filosóficas oriundas do pluralismo

jurídico e político vigente no período do final da idade média (HESPANHA, 2005). Do ponto

de vista político-normativo, o direito medieval não possuía um único centro de produção,

encontrando-se disperso em uma pluralidade de ordens jurídicas sem harmonia, nem

hierarquia entre si107. Entretanto, os movimentos absolutistas deram início a um processo de

crescente centralização do poder político. Juntamente com esse processo soma-se o suporte

militar e logístico às estratégias comerciais mercantilistas por parte dos reinos. Reunidos,

esses fatores levaram a uma crescente profissionalização das estruturas burocráticas da

107 Direito comum, direito canônico, direito clássico romano, direito civil ou ordenações reais e costumes eram

as principais fontes do direito medieval e concorriam pela solução das disputas e querelas jurídicas ligadas à aplicação do direito. Exigia-se do jurista um alto grau de flexibilidade e retórica argumentativa a fim de harmonizar e sistematizar essas diversas fontes. Da mesma forma, a influência cristã permitia o recurso a critérios gerais e abstratos para solucionar conflitos, como a graça divina e o juízo de equidade. Um exemplo marcante dessa incerteza trazida pelo pluralismo jurídico é retratado no filme “As Cruzadas” (2000). O personagem principal do filme comete o assassinato de um clérigo em uma pequena vila. Porém, o rapaz era filho de um nobre, que, ao ficar sabendo do ocorrido, resolve levar o filho consigo para lutar na guerra religiosa que ocorria no oriente. Enquanto viajavam, a tropa é abordada por dois membros da Igreja que pretendem processar e julgar o rapaz pelo crime cometido. Segundo o direito canônico, ele deveria ser julgado por uma corte clerical. O pai do rapaz argumenta, por sua vez, que sendo ele filho de nobre – portanto também parte da nobreza – os costumes rezam que o seu julgamento deveria se dar entre os seus pares. Obviamente a falta de harmonização e entendimento entre as duas ‘instituições’ ali representadas culminou em uma disputa não mais jurídica ou argumentativa, mas na base do conflito físico e da força bruta.

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administração pública. Aos poucos, os nascentes Estados Nacionais passaram a concentrar

poder e direito em uma única fonte de produção e aplicação normativa.

Da perspectiva do imaginário filosófico da época, o pensamento medieval foi

amplamente influenciado pela filosofia produzida pelos filósofos cristãos. Como a Igreja era

detentora de praticamente todo o saber cultural especializado do período medieval, o

conhecimento jurídico da época também fazia parte dos ciclos de estudos desenvolvidos nos

mosteiros e universidades católicas108. No entanto, o movimento cultural renascentista

infundiu uma perspectiva antropocêntrica e humanista na filosofia, anunciando valores morais

opostos aos valores cristãos. Essa visão de mundo refletia o sentimento das classes

emergentes do processo mercantilista, que ganhavam cada vez mais destaque no cenário

político e econômico do início da idade moderna. De certo modo, o Renascentismo preparou

o terreno cultural para o advento do grande movimento cultural burguês que foi o Iluminismo

(VAZ, 2002).

Por fim, o estudo do direito nunca deixou de ter como referência a rica herança

cultural romana. Na idade média o direito romano foi recepcionado pelos tribunais das

grandes cidades dos reinos bárbaros, originando o chamado direito romano ‘vulgar’. O direito

comum medieval também deve sua origem em parte ao direito romano, juntamente com o

direito canônico cristão. Ademais, o Corpus Juris Civilis permaneceu sendo largamente

utilizado no comércio internacional com os povos do oriente médio, em especial após as

Cruzadas (CAENEGEM, 2000).

Com a redescoberta do pensamento clássico no período do renascimento, o valor da

cultura romana, de um modo geral, e, especificamente da cultura jurídica, ganhou ainda mais

destaque. Os juristas europeus buscaram compreender a origem do seu direito a partir de uma

verdadeira imersão histórica na tradição jurídica romana, dando origem a um grande número

de estudos romanísticos. Esses estudos foram conduzidos por juristas italianos, franceses e

germânicos e, cada um a seu modo, originaram as bases do direito e da legislação que se

formou no nascimento dos Estados Nacionais (HESPANHA, 2005). Na Itália, as

universidades laicas promoveram importantes estudos do direito romano por meio das glosas

e comentários ao Corpus Juris Civilis. Na França, a escola humanista tentou resgatar a pureza

de sentido do direito romano, por meio de uma combinação de estudos jurídicos com estudos

históricos e filológicos. Entre os germânicos o ‘usus modernum Pandectarum’ buscava

108 O direito não era uma disciplina autônoma, mas fazia parte dos ciclos de estudos das artes liberais: o trivium,

composto de gramática, retórica e dialética e o quadrivium, composto de aritimética, geometria, música e astronomia (LOPES, 2009).

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compreender o processo de recepção do direito romano pelas tradições locais dos povos e

reinos bárbaros do período medieval.

Dentro desse contexto de crescente secularização, racionalização e profissionalização

do direito, as teorias sobre o direito construídas ao longo da modernidade sempre disputaram

o status de ‘conceito’ ou ‘essência’ do direito, inexistindo uma que gozasse de unanimidade

entre os filósofos e juristas. Não obstante, todas elas guardaram em comum o fato de

enfatizarem o aspecto normativo do direito. Por essa razão a preocupação essencial da teoria

jurídica foi muito mais a de fundamentar a obrigação jurídica do que explorar a relação entre

tempo e direito. Isso se refletiu nos métodos cognitivos e de estudo do direito, que

enfatizaram o aspecto lógico-sistemático da estruturação das regras e institutos jurídicos do

que sua dimensão social.

O presente capítulo abordará o mosaico de concepções sobre o direito formulado na

era moderna com a finalidade de apontar de que maneira cada uma delas contribuiu para a

visão atemporal que o direito construiu de si próprio. Essa investigação será realizada a partir

da análise da proposta metodológica de conhecimento e interpretação do direito elaborada por

cada uma dessas concepções, pois o traço comum que perpassa os métodos interpretativos da

época é justamente a tentativa de construir para o direito a condição de um ramo autônomo do

conhecimento, isolando-o dos demais saberes sociais e humanos.

3.2 O jusnaturalismo e o Direito Natural

Sob a denominação “Direito Natural” albergam-se duas distintas e independentes

teorias ligadas respectivamente ao campo da moral e do direito. A teoria moral do Direito

Natural concebe que o homem, por meio de sua razão, é capaz de acessar um universo

normativo ideal – denominado de ‘Lei Natural’ – que expressa a essência de sua moralidade.

A Lei Natural conteria um conjunto de deveres morais gerais e abstratos de comportamento

que o homem não poderia deixar de observar por força de sua auto-evidência racional. A

partir da atividade intelectual humana, esses deveres gerais se desdobrariam em regras de

ação específicas e concretas que confeririam objetividade à norma moral (HIMMA, 2005).

Historicamente, a teoria moral do Direito Natural fundamentou uma outra teoria do

Direito Natural, de cunho jurídico109. Na transição para a modernidade o direito foi aos

109 No presente trabalho pretende-se apenas debater a teoria jurídica do Direito Natural, muito embora na

exposição sobre a origem do jusnaturalismo na antiguidade helenística abordará, em grande parte, a teoria moral.

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poucos se especializando em relação à moral, aos costumes e à religião enquanto mecanismo

de controle social. Isto se deu em razão de as regras jurídicas cada vez mais passarem a se

identificar com a expressão política do soberano. Amparada na teoria moral do Direito

Natural, a filosofia política do início da modernidade buscou evitar essa completa separação

entre o Direito e a Moral e sustentou que o critério último e superior de fundamentação das

regras jurídicas estaria nos deveres morais objetivos contidos na Lei Natural110. Por

conseguinte, a teoria jurídica do Direito Natural moderno vinculou a validade das normas

jurídicas à sua não contrariedade ao teor moral mínimo estatuído na Lei Natural (BOBBIO,

1998). Para o jusnaturalismo jurídico moderno, essa ordem material metafísica, produto da

razão e não da vontade política, funcionaria como marco regulador da produção e aplicação

do direito positivo111.

Em regra, a doutrina jusnaturalista moderna defendeu que os padrões morais da Lei

Natural seriam imutáveis e universalmente válidos em todos os povos e culturas. Como ela se

revela por meio da cognição racional humana, o teor de suas regras não se alteraria em razão

de contingências históricas, políticas ou culturais, sob pena de se alterar a própria essência

racional do homem112 (ADEODATO, 2002). A partir do método demonstrativo da geometria,

o jusnaturalismo construiu um ordenamento racional e sistemático de normas morais

interligadas com a finalidade de refleti-las no direito. Dessa maneira seria possível sintetizar,

de maneira pronta e acabada, a totalidade das prescrições jurídicas necessárias ao convívio do

homem em sociedade a partir de regras racionais de conduta. Uma vez construído o edifício

racional da Lei Natural pouco restaria ao homem a não ser morar nesse palácio normativo.

Esse aspecto do jusnaturalismo contribuiu de modo decisivo para a eliminação do

problema da temporalidade do campo de reflexão dos juristas modernos113. Uma vez

110 A força do apelo da teoria jusnaturalista encontra-se no fato de que a autoevidência e a objetividade dos

mandamentos da Lei Natural consistem em um padrão racional de conduta que os homens têm razões fortes e decisivas para obedecer. Desse modo, contrariá-los implicaria uma renúncia à própria condição humana, o que conferiria ao Direito Natural uma forte carga moral (MURPHY, 2004). Nesse sentido, o Direito Natural proporia uma submissão do direito positivo a uma moral mínima, fazendo da observância de suas premissas condição material de validade para o direito positivo. Segundo a teoria jusnaturalista, a validade da lei positiva dependeria da não contrariedade ao teor material dessa ordem metafísica que lhe é hierarquicamente superior. Logo, por essa razão o conteúdo material das prescrições do Direito Natural teria autoridade para prevalecer inclusive sobre o direito positivo ou qualquer outra forma de manifestação do poder que se origina da organização política quando esta lhe for radicalmente contrária.

111 Adeodato (2002) descreve essa situação dizendo que a ordem positiva seria hetero-referente, isto é, retiraria suas condições materiais de validade do conjunto das prescrições do direito natural, razão pela qual esta se torna o critério externo de aferição daquela.

112 As teorias jusnaturalistas contemporâneas admitem a variação do conteúdo da Lei Natural a fim de adaptá-lo à evolução cultural e à alteração das contingências históricas em que vive o homem (ADEODATO, 2002)

113Ainda que Wieacker (1993) relacione as diferentes fases do Direito Natural – antigo e moderno – a efeitos temporais específicos, a imagem que o jusnaturalismo construiu para o direito é a indiferença ao ‘tempo’. Para Wieacker (1993), a teoria jusnaturalista antiga foi elaborada com a finalidade de conservar o status quo

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materializados em tratados de filosofia jurídica ou em códigos e declarações políticas, os

direitos subjetivos ali estabelecidos esgotariam o rol dos direitos necessários à vida social

humana e serviriam de critério moral para julgamento do direito positivo de ontem, hoje e

amanhã.

O presente tópico abordará a origem e a caracterização do Direito Natural na era

moderna com a finalidade de apontar de que maneira o jusnaturalismo construiu essa imagem

atemporal do direito. Seus traços já estavam presentes, como se verá, na origem estóica do

Direito Natural. Contudo, é com a ênfase dada ao método lógico-sistemático de construção e

derivação de suas regras na sua versão moderna que o Direito Natural converteu-se em uma

espécie de “geometria moral”. Ao se assemelhar a um conhecimento matemático, o

jusnaturalismo moderno pretendeu isolar o direito dos demais saberes sociais e humanos e

torná-lo uma ciência exata e objetiva que não está sujeita à mudança dos tempos.

3.2.1 Principais traços da configuração do Direito Natural na antiguidade

Unger (1977) afirma que as teorias jusnaturalistas são próprias das culturas ocidentais

e remonta sua origem tanto à capacidade de abstração e universalização que os gregos

alcançaram com o desenvolvimento da filosofia, quanto às religiões de transcendência – como

o cristianismo, o judaísmo e o islamismo – em que a figura divina responsável pela criação do

universo confere um senso de ordem e perfeição à natureza que serve de espelho para a

organização social. As manifestações culturais mais remotas desse conflito entre a ordem

positiva, que é fruto da organização do poder político pelo homem, e a ordem ‘natural’

oriunda dos costumes e das revelações divinas são encontradas na poesia de Hesíodo, em Os

trabalhos e os dias (ROSS, 2000), e na Antígona de Sófocles114 (ADEODATO, 2002). Ambas

as peças retratam situações em que o direito criado pela política humana choca-se com uma

ordem normativa revelada por costumes ancestrais. O que esses exemplos artísticos indicam é

que desde os primórdios da cultura ocidental o homem já se preocupava com a necessidade de

conferido pela tradição religiosa ou moral, enquanto o jusnaturalismo moderno teria a proposta justamente contrária, isto é, utilizar o potencial da razão para ‘revolucionar’ o establishment social e político.

114 Há uma célebre passagem no § 166 dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel (1976) em que o episódio de Antígona é identificado com o conflito entre a ordem jurídica positiva, representada pelo desejo de Creonte de fazer cumprir as leis, e a ordem jurídica natural, representada pelo desejo de Antígona de enterrar seu irmão Polinice segundo os rituais funerais da época. No entanto, Galuppo (2006), citando Knox, esclarece que esta seria uma leitura com olhos ‘modernos’ da tragédia grega, que não expressaria as reais questões tratadas pela peça. Na verdade, Creonte e Antígona, representam ordens e valores divinos antagônicos em seus pontos de vista: Creonte defende os valores dos deuses olímpicos, que privilegiam a organização da polis e do nomos em detrimento do caos e da desordem, enquanto Antígona defende os valores da tradição e da família consagrados pelos deuses infernais.

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um critério material ou valorativo de ‘controle’ ou ‘referência’ para a mutabilidade da vontade

política criadora do direito positivo.

No entanto, é Aristóteles quem, pela primeira vez115, cunha o termo justo natural116

(dikaion physikón) como expressão de uma ordem ‘jurídica’117 que contém o núcleo das

prescrições imprescindíveis à justiça política (dikaion politikon). A justiça política seria o

modo de organizar os homens no meio social com vistas a construir uma comunidade

autárquica cujo fim é o desenvolvimento das potencialidades humanas e a realização da

eudaimonia118. Para tanto, os homens precisariam chegar a uma situação de convivência

estável e racional na vida social. A partir de uma autopercepção acerca das inclinações

naturais119 que permitem alcançar esses objetivos, o homem formularia princípios gerais para

o comportamento prático120 que proporcionariam o amálgama necessário para garantir a

sociabilidade na convivência comunitária:

A justiça natural é a parte da justiça política que visa permitir a realização plena do ser humano inserido na estrutura social do convívio. Sendo naturalmente um ser político, a plena realização do animal racional está condicionada à própria natureza que o engendra, o que equivale a dizer, que à sociabilidade, à politicidade, à autoridade, ao relacionamento, à reciprocidade está o homem intestinamente ligado. Reger-se sob o signo da natureza para o homem significa estar sob o governo da razão, o que se traduz a nível social como estar sob o governo das leis, que são a razão sem paixão (BITTAR, 2000, p. 58-59).

115 A filosofia já havia se expressado anteriormente em referência à ideia de um Direito Natural, como em

Heráclito ou em várias passagens do próprio Platão. Não obstante, é com Aristóteles que o Direito Natural será primeiramente sistematizado e conceituado.

116 “Da justiça política, uma parte é natural e outra parte legal: natural, aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida.” (ARISTÓTELES, 1991, p. 91).

117É sempre válido frisar que ‘jurídico’ aqui deve ser compreendido em seu sentido antigo: um nomos que deriva da própria constituição do cosmos (BORGES, 1999).

118 Eudaimonia é uma expressão grega frequentemente traduzida por ‘felicidade’, mas que na filosofia aristotélica adquire o significado de um sentimento de satisfação pela participação na pujança e na autossuficiência da polis (REALE, 2002).

119 “Cuando habla de ‘naturaleza’ a propósito de la sociedad y del Estado (y también, implícitamente, del Derecho), Aristóteles se refiere al comportamiento normal del individuo y a la estructura normal de la sociedad, empírica y sociológicamente constatadas. Es por naturaleza como se forma la familia, es por naturaleza como surgen la tribu y el Estado, es por naturaleza que el hombre es un animal social. Es por naturaleza lo que sucede de hecho, no lo que debería suceder según una consideración valorativa.” (FASSÓ, 1982, p. 70). (Tradução nossa: “Quando fala de natureza a propósito da sociedade e do Estado (e também, implícitamente, do Direito), Aristóteles se refere ao comportamento normal do indivíduo e à estrutura normal da sociedade, empírica e sociologicamente constatadas. É por natureza que o homem é um animal social. É por natureza o que sucede de fato, não o que deveria suceder segundo uma consideração valorativa.”).

120 Borges (1999, p. 59) frisa, no entanto, que o justo natural aristotélico em nada se confunde com o Direito Natural elaborado pelos juristas modernos de inspiração estóica: “Para Aristóteles, o direito natural é aquele que tem ‘em todas as partes a mesma força, independentemente de que pareça ou não’. Isto significa que há um justo como produto espontâneo das relações comumente praticadas em certo lugar e em certa época, a despeito de haver lei ou não sobre ele. Não se trata de um direito decorrente de princípios ditados pela razão ou por um Deus, válidos em todas as partes e tempos.”.

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Desse modo, o justo natural consiste no conjunto dos princípios primeiros da

racionalidade prática que permitiria a vida em sociedade. Essas prescrições normativas se

tornariam fonte de inspiração para a dedução do justo legal (dikaion nomikón). O justo legal

nasceria das convenções humanas e colocaria em sério risco a estabilidade e a estrutura do

justo político caso viesse a deixar de observar a justiça natural121 (FARAGO, 2000).

No entanto, coube aos estóicos dar um acabamento mais refinado à teoria do Direito

Natural. Sob o formato dado por essa doutrina filosófica, o jusnaturalismo foi incorporado à

jurisprudência romana e posteriormente legado à tradição medieval e moderna (BORGES,

1999). O estoicismo foi um duradouro movimento intelectual do período helenístico e que se

estendeu durante toda a dominação romana sobre o mundo antigo. Em linhas gerais, a

filosofia moral do estoicismo se assenta na ideia de que a eudaimonia não seria decorrente de

um sentimento de participação na pujança e na prosperidade coletiva da polis, mas de um

estado individual de imperturbabilidade da alma e serenidade dos sentidos face aos

acontecimentos do destino. Esse sentimento nasceria da compreensão do papel do indivíduo e

de sua inserção na estrutura racional do universo: na condição de microcosmo, o homem se

enxergaria como parte de um macrocosmo que consiste no universo natural (MORRISON,

2006).

Os estóicos concebiam a existência de um princípio (arché) divino denominado ‘razão

universal’122 que impulsionaria a natureza e governaria o universo por meio de leis. O

homem, como ser natural, também seria parte integrante do universo e, por essa razão, estaria

sujeito a essa mesma lei123. Daí decorre que o homem possuiria certos deveres relacionados à

satisfação dessa condição natural, como ter saúde, segurança, conforto material e tudo mais

121 Desde Aristóteles, portanto, o Direito Natural já era concebido como um padrão racional deduzido pelo

intelecto humano para servir de referência para a atividade política. 122 Borges (1999, p. 64-65) esclarece, contudo, que é preciso entender o termo razão no contexto da filosofia

estóica: “Essa filosofia [o estoicismo] representa uma descontinuidade do pensamento grego, e por isso precisamos ter algum cuidado ao tratar com ela, porque ela implica em uma nova significação da linguagem filosófica com a qual vimos trabalhando. Para os estóicos, o logos e a physis denotam coisas muito diversas daquelas a que os gregos estavam habituados. (...) Enquanto na tradição filosófica antiga, sobretudo em Aristóteles, o logos era um organon, um instrumento para compreender o mundo, observá-lo, descobrir suas leis, a sua origem e equilíbrio, para os estóicos o logos é o que está no próprio mundo, ele, o mundo, é que é o próprio logos, pois foi criado por Deus e com ele se confunde. Assim, razão e Deus são a mesma coisa.”.

123 “Mas o que é mais divino, não direi apenas no homem, mas sim em todo o céu e a terra do que a razão? E a razão, quando é madura e perfeita, é corretamente chamada de sabedoria. Por conseguinte, como não existe nada melhor do que a razão, e como ela existe tanto no homem como em Deus, a primeira posse comum do homem e de Deus é a razão. Mas aqueles que possuem a razão em comum também devem possuir a razão correta em comum. E como a razão correta é a Lei, devemos acreditar que os homens têm a Lei em comum com os deuses. Além disso, aqueles que compartilham a lei também devem compartilhar a Justiça; e aqueles que compartilham isso devem ser considerados membros da mesma comunidade. Se de fato obedecem às mesmas autoridades e poderes, isso é verdade num grau muito maior; mas na verdade obedecem a esse sistema celestial, à mente divina, e ao Deus de transcendente poder.” (CÍCERO, 2002, p. 37).

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quanto seja necessário para perpetuar a sua existência124 (IRVIN, 2003). Todavia,

diferentemente dos animais, o homem é um ser racional. Por isso ele conta com a faculdade

do discernimento na busca desses bens exteriores que satisfazem as suas necessidades

naturais. Logo, os estóicos vislumbraram que a racionalização do agir com vistas a atender

apenas as necessidades naturais se tornou um critério moral para julgamento da ação humana:

quando o homem age tendo em mira a satisfação das necessidades naturais, ele exerce sua

racionalidade e, portanto, é virtuoso; quando se inclina em direção às necessidades artificiais

que atendem somente aos prazeres dos sentidos, sua ação é qualificada de irracional ou

viciada125 (IRVIN, 2003). Agir virtuosamente implica, portanto, agir segundo uma razão que

os estóicos convencionaram chamar ‘reta’ (ordos). Em síntese, a partir da percepção racional

que o homem tem de certos sentimentos verificados em seu comportamento natural, a Reta

Razão ditaria ao homem uma ‘lei natural’126 cujas prescrições expressariam a forma correta de

agir segundo a virtude estóica.

124 Como se verá adiante, esse princípio será denominado pelo jusnaturalismo moderno de princípio da auto-

conservação. 125 Miller (2003, p. 117-118) salienta que o ponto de partida do raciocínio estóico poderia indicar que a razão

prática humana assumiria um caráter instrumental, dirigindo o homem exclusivamente à satisfação de fins naturais. Contudo, o estoicismo trata logo de desfazer essa imagem na medida em que confere maior valor ao agir racional, em si mesmo, do que aos bens exteriores obtidos pela ação do homem. O homem virtuoso não é tanto o possuidor de saúde, bem-estar, riqueza e segurança, mas o sábio que vislumbra na racionalidade a capacidade de impor uma ordem às paixões que lhe são inerentes e lhe impulsionam em direção aos bens exteriores: “The Stoic universe is rational, and it is One. Everything is unified and structured by omnipresent Logos or Reason, which has providentially arranged things for the good of all, especially those things that share in its logos or rationality. Although we are not born into logos, we have the potential to become rational, and if we develop naturally and healthfully, we will realize this potential. Once we are rational, we attain new ends for ourselves; whereas before our end was mere self-preservation, now we are to seek cultivation of our rationality. Nature provides this end for us, which we are lucky to have, because by virtue of it we are able to seek a good immeasurably more valuable than other so-called goods – virtue – and with it, true happiness. Nature does something else for us besides: it provides us with the means to realize this end. It does this by giving us the natural law, which can be conceived as a set of directions provided by Logos for human beings about how to be good, and hence happy. Because we are rational, we are subject to the natural law’s strictures; if we ought to be happy, we ought to obey it”. (Tradução nossa: “O universo estóico é racional e ele é Uno. Tudo é unificado e estruturado pela onipresença do Logos ou Razão, que providencialmente arranjava as coisas para o bem de todos, especialmente aquelas coisas que participam de seu logos ou de sua racionalidade. Apesar de não sermos nascidos no logos, nós temos o potencial de nos tornarmos racionais e, se nós nos desenvolvermos naturalmente e de maneira saudável, realizaremos esse potencial. Uma vez que somos racionais, nós atribuímos novos fins para nós mesmos; onde antes nossos fins eram a mera autopreservação, agora nós buscamos o cultivo de nossa racionalidade. A natureza providencia esse fim para nós, que nós temos sorte em possuir, pois por causa de sua virtude nós somos capazes de procurar um bem imensuravelmente mais valioso do que os outros assim chamados bens – a virtude – e com ela, a verdadeira felicidade. Além disso, a natureza faz algo mais para nós: ela nos providencia com os meios para realizar esse fim. Ela faz isso nos dando a lei natural, que pode ser concebida como um conjunto de diretrizes providenciadas pelo Logos para os seres humanos sobre como ser bom e, assim, feliz. Porque somos racionais, nós estamos sujeitos às prescrições da lei natural; Se desejarmos ser felizes, devemos obedecê-la.”).

126 Borges (1999, p. 66) salienta que o pensamento estóico foi original no que diz respeito ao emprego da expressão lei natural: “Tudo isso irá contribuir para o aparecimento de uma das noções mais famosas na filosofia do direito que é a de lei natural. Ela é a criação mais bem cuidada do estoicismo e não encontra nenhuma sustentação no pensamento grego a ele anterior, a não ser em Heráclito. Vimos que desde os poetas

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Com Cícero127, as regras morais da Lei Natural estóica se tornaram o fundamento

universal do direito e da justiça (COLEMAN, 2000). Ele concebia ser um erro imaginar que

as leis políticas pudessem servir de critério para se definir o justo e o injusto, pois a vontade

humana não teria o poder de transformar a natureza de uma coisa em outra128. Assim, a lei não

conseguiria transformar o justo no injusto e vice-versa.

Após o pensamento estóico, a imagem do Direito Natural construída ao longo do

pensamento antigo se completou com a introdução de uma fundamentação religiosa para a sua

origem. A hegemonia do cristianismo na era medieval, somada às condições materiais e

culturais da vida humana no período, acarretaram uma nova feição à filosofia no mundo

ocidental (BITTAR, 2000). Em razão do dogmatismo peculiar a essa doutrina religiosa, com

os filósofos da idade média também o Direito Natural se submeteu às premissas da

cosmovisão cristã e de sua doutrina da criação divina.

do século VIII até Platão e Aristóteles, os gregos procuravam fundar o nomos no ser do mundo, na ordem do cosmos. Eles buscavam integrar a lei humana numa lei maior que com ela deveria guardar consonância. Nomos e physis sempre estiveram de certo modo ligadas, fazendo um todo que era o cosmos. A única exceção a este modo de sentir foram os sofistas. A lei humana era parte desta lei maior e não algo arbitrário, meramente convencional. A lei natural dos estóicos era diferente disso tudo. Enquanto Platão e Aristóteles concebiam um fundamento ontológico para as leis humanas, os estóicos confundem a lei com a própria razão, que está no mundo, na natureza, em Deus. A lei natural, por ser racional e divina é universal, válida em todos os lugares, para todos os homens, e em todas as épocas. Esta lei universal nada tem em comum com a lei natural de Aristóteles, que sabia distinguir um justo por natureza de um justo legal. Também não se trata, em relação aos estóicos, da oposição pura e simples da lei humana à natureza, como nos sofistas. Para os seguidores do Pórtico, a lei natural é a lei racional do universo, é a razão universal, divina, que é, também, a própria natureza.”.

127 A obra de Cícero faz parte da formulação tardia do estoicismo, já no período romano. Com base na premissa estóica da radical igualdade natural entre os homens, Cícero enfatizou a universalização do Direito Natural a toda humanidade. Ainda que separados por critérios de nascimento – nobres ou plebeus – ou por seu status jurídico – livres, escravos ou libertos –, na condição de seres naturais todos os homens seriam iguais, porque dotados das mesmas faculdades racionais e sensitivas. Todos possuiriam a mesma capacidade de apreender o teor da Reta Razão e conduzir a sua vida segundo os preceitos da justiça natural: “Porque as mesmas coisas são invariavelmente percebidas pelos sentidos, e aquelas coisas que estimulam os sentidos, os estimulam da mesma maneira em todos os homens; e aqueles princípios rudimentares de inteligência aos quais me referi, que estão gravados em nossas mentes, estão gravados da mesma maneira em todas as mentes; e a fala, intérprete da mente, embora diferindo na escolha das palavras, concorda nos sentimentos expressos. De fato, não existe nenhum ser humano de qualquer raça que, encontrando um guia, não possa alcançar a virtude.” (CÍCERO, 2002, p. 37).

128 Trata-se de uma posição tipicamente realista, segundo a qual a natureza de algo depende um objeto correspondente no mundo: “Mas, se os princípios da Justiça fossem baseados em decretos de pessoas, éditos de príncipes ou decisões de juízes, então a Justiça sancionaria o roubo, o adultério e a falsificação de documentos, no caso desses atos serem aprovados por votos ou decretos do populacho. Ao se atribuir poder tão grande às decisões e decretos dos tolos, de modo que as leis da Natureza possam ser mudadas por seus votos, então porque eles não ordenam que aquilo que é mau e pernicioso deve ser considerado bom e salutar? Ou se uma lei pode fazer Justiça a partir da Injustiça, também não pode fazer o bem a partir do mal? No entanto, percebemos a diferença entre leis boas e más submetendo-as exclusivamente ao padrão da Natureza, mas também e sem exceção as coisas honrosas e desonrosas. Porque como uma inteligência comum a todos nós torna as coisas conhecidas para nós e as formula em nossas mentes, as ações honrosas são atribuídas por nós à virtude, e as ações desonrosas o vício; e apenas um louco concluiria que esses julgamentos são questão de opinião, e não determinadas pela Natureza.” (CÍCERO, 2002, p. 41).

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Um importante passo para a cristianização do Direito Natural se deu com Santo

Agostinho129. O bispo de Hipona introduziu um novo elemento no processo de revelação do

Direito Natural ao submeter a razão à fé no processo de conhecimento humano. Agostinho

(1995) reconhece que o homem é capaz de conhecer muitos elementos que comprovam a

existência de Deus por meio das suas faculdades racionais. É o caso, por exemplo, da palavra

revelada e de outros sinais da perfeição da criação deixados impressos na natureza. No

entanto, nem todos os mistérios que circundam a existência de Deus são acessíveis à

compreensão racional do homem. Questões como a ressurreição, o dia do julgamento final ou

os milagres simplesmente não podem ser explicadas pela razão130 (RIST, 2005).

Assim, o homem estaria diante de um paradoxo, já que a presença de Deus se encontra

impressa em sua alma e, não obstante, ele não consegue compreendê-la por completo

(TILLICH, 1988). Para Agostinho o problema estaria no julgamento equivocado de que os

mistérios divinos podem ser racionalizados como teoremas matemáticos. Os mistérios de

Deus não podem ser apreendidos pelo homem. Eles devem simplesmente ser aceitos como

parte de um mundo que não é acessível pela razão131. Nesse ponto, o homem deve apenas

recorrer a sua fé e acreditar que as experiências inexplicáveis da vida religiosa possuem uma

‘lógica’ que se unifica e ganha sentido no universo concebido pelo Criador132.

129 Por não interessar aos propósitos desta exposição, não se adentrará na concepção do Direito Natural, nem na

relação entre o Direito Natural e o direito positivo para Santo Agostinho. Concentrar-se-á apenas no modo como a filosofia, a partir de Agostinho, tomou uma nova direção sob os auspícios do pensamento cristão. Para uma apresentação do tratamento dado por Santo Agostinho ao Direito Natural recomenda-se a leitura de Morrisson (2006) e Bittar (2000).

130 Nesse sentido são as palavras do próprio Agostinho (1995, p. 220-221): “Pois é em vista de compreender com piedade e discrição a Trindade que se aplica toda a vigilância cristã, e a esse fim é que tendem todos os seus progressos. Entretanto, quanto a tratarmos da unidade e da igualdade das Pessoas dessa Trindade, e do que nela é próprio a cada uma das pessoas divinas, não é este o lugar de fazê-lo. Com facilidade, poderíamos apresentar outras considerações sobre o Senhor nosso Deus, autor, formador e ordenador de todas as coisas e sobre certas verdades que pertencem a nossa fé muito salutar. É com elas que se nutre como de leite aquele que começa a se elevar das coisas da terra para as do céu, encontrando um apoio muito útil nesse intento. Seria, na verdade, muito fácil fazer essas considerações e muitos já o realizaram. Não por completo, e desenvolver de tal modo que toda a inteligência humana, o quanto é possível nessa vida, fique conquistada pela evidência da argumentação, quer se trate de realizá-lo com palavras ou simplesmente pelo pensamento, sem dúvida é um empreendimento muito difícil e pouco acessível, seja para qualquer homem, seja certamente para mim. Logo, conforme nosso propósito, cheguemos a termo, na medida em que para isso temos força e o quanto formos ajudados por Deus. Primeiramente, sem sombra de dúvida, creiamos tudo o que nos é proposto em relação aos seres criados, seja a respeito das coisas do passado, seja como predição do futuro, para nos servir a melhor estimar a nossa religião, em sua pureza, incitando-nos a um amor muito sincero para com Deus e o próximo. Por outro lado, é preciso nos precaver contra os incrédulos, o suficiente para esmagarmos a sua infidelidade ao peso da autoridade divina. Ou então, para lhes demonstrar, o quanto possível, em primeiro lugar, que não há insensatez alguma em crer em tais afirmações. Em seguida, que, pelo contrário, existe grande loucura em não crer nelas.”.

131 “Tem coragem e conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de porque isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade.” (AGOSTINHO, 1995, p. 29).

132 Assemelhando-se a Adão, que desobedeceu à ordem de Deus e pecou por não resistir à tentação do fruto proibido, o homem que tentar compreender o universo em bases exclusivamente racionais pratica a soberba,

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Com isso, a curiosidade infinita da razão humana estaria confinada aos limites que a

doutrina religiosa lhe impõe. Seu papel agora é servir de instrumento para auxiliar o homem a

se aproximar de Deus, seja interpretando a revelação divina, seja desmistificando os falsos

equívocos que levam ao afastamento de Deus e à soberba. A razão tornou-se mediadora entre

o homem e Deus (RIST, 2005). Portanto, diferentemente das versões aristotélica e estóica, nas

quais a razão humana proporciona acesso direto e incondicional ao Direito Natural, sob os

pressupostos da filosofia cristã a razão humana apenas intermediaria o processo de revelação

das prescrições morais que Deus legou ao homem quando da criação133.

Não obstante, apesar da diferença quanto ao método e à origem, o jusnaturalismo

cristão também reforçou o processo de construção de uma imagem atemporal para o Direito

Natural. Se a Lei Natural estóica representava a ‘essência moral imutável do homem’, quando

os filósofos cristãos fizeram o Direito Natural derivar da ‘lei eterna’ ou da ‘razão eterna’

divina – denominação dada à ‘lógica’ com a qual Deus rege o Universo – o que se afirmou foi

que as prescrições morais de Deus para o homem e para o universo não se sujeitariam à lógica

temporal do mundo da criação:

A doutrina do governo do mundo pela lei divina pode representar uma extrapolação para o cosmos da figura mais antiga do homem legislador governando seu povo segundo seus comandos. Mas tão logo a transição das leis humanas para as leis divinas tem lugar, a concepção de direito humano não pode mais ser a mesma. A sociedade deve agora ser vista como parte de uma ordem cósmica e a sua regra mais ou menos como imitações e conclusões do Direito produzido nos céus. Esses preceitos divinos são preexistentes a qualquer ato de vontade humano. Eles ao mesmo tempo descrevem o que acontece e estabelecem o que deve acontecer; Eles superam a distinção entre descrever e prescrever. Mais ainda, eles sustentam o bem para diferentes sociedades e eras, porque o legislador celeste se situa acima e a parte do tempo. Assim, existe uma lei superior ou natural distinta da e superior aos costumes de grupos sociais particulares e dos comandos dos soberanos terrenos. A lei positiva humana faz dos ditados abstratos da lei superior concreta ou as adapta às condições particulares de cada sociedade. A imagem da relação entre a lei natural e a lei positiva tem implicações cruciais para a autonomia e a generalidade do ordenamento jurídico. Porque a lei superior deriva de uma fonte divina e, portanto, atravessa o tempo e o espaço, ela serve como um ponto arquimediano a partir do qual todos os arranjos sociais podem ser avaliados. Ela não é nem um conjunto de ‘standards’ particulares de interações gradualmente forjadas no cotidiano nem uma série de comandos impostos por um legislador para lidar com situações mais ou menos específicas. Ao contrário, é uma ordem normativa que transcende a sociedade

isto é, a arrogância de se colocar na posição de Deus (TILLICH, 1988). Para evitar o pecado e, portanto, o afastamento de Deus, o homem deve dirigir sua vontade para os mandamentos divinos e assentir aos dogmas religiosos, bem como acreditar na presença do criador.

133 Um fator que reforça essa ideia é que enquanto no estoicismo a ‘razão universal’ estaria difusa na natureza e dela o homem faria derivar a Lei Natural, no cristianismo tem-se em Deus um autor ‘concreto’ para a Lei Natural e os vestígios de sua vontade foram transmitidos ao homem pelas sagradas escrituras.

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como um todo, da mesma maneira que Deus transcende o mundo. (UNGER, 1977, p. 78-79, tradução nossa). 134

A doutrina do Direito Natural de Santo Tomás de Aquino exposta na Summa

Theologica representa a mais completa sistematização do Direito Natural cristão e ainda hoje

serve de inspiração para pensadores que pretendem resgatar a pertinência da doutrina

jusnaturalista na era contemporânea135 (WACKS, 2006).

Tomás de Aquino (1956) ressalta que a essência de uma ‘lei’ se define por sua

racionalidade136. O realismo de sua posição filosófica exige a correspondência entre a

denominação de um ‘ser’ e a verificação de seus respectivos elementos característicos na

realidade. Isso acarreta um efeito prático importante: uma lei somente poderá ser qualificada

como tal caso reúna, em sua realidade concreta, todos os elementos próprios à essência

daquilo que se denomina ‘lei’. Portanto, não basta a uma lei que tenha recebido o status de lei

por mera convenção política humana. Sendo a racionalidade um elemento da essência da lei,

se porventura uma lei do mundo ‘real’ não consista em um padrão racional para o

comportamento humano, esse ‘ser’ não poderá receber a denominação de ‘lei’, mas apenas de

‘corrupção da lei’137.

134 The doctrine of the government of the world by divine law may represent an extrapolation to the cosmos of

the more ancient picture of the human ruler governing his people according to his commands. But once the transition from human to godly law takes place, the conception of human law can never again be the same. Society must now be seen as part of a cosmic order and its rule more or less faithful imitations and conclusions of law laid down in heaven. These divine precepts preexist any act of human will. They both describe what happens and establish what ought to be; they override the distinction between description and prescription. Moreover, they hold good for different societies and ages, because the heavenly lawmaker stands above and apart from time. Thus, there is a higher or natural law distinct from and superior to, the customs of particular social groups and the commands of earthly sovereigns. Human positive law makes the abstract dictates of the higher law concrete or adapts them to the peculiar conditions of each society. The view of the relationship between natural and positive law has crucial implications for the autonomy and the generality of the legal order. Because the higher law derives from a divine source and therefore cuts across space and time, it serves as an Archimedian point from which all social arrangements can be evaluated. It is neither a set of particularistic standards of interaction gradually forged in daily life nor a series of commands handed down by a ruler to deal with more or less specific situations. Instead, it is a normative order that transcends society altogether, just as God transcends the world.

135 O jusnaturalismo de Jacques Maritain, por exemplo, é de franca inspiração tomista. Também é possível identificar traços do tomismo na proposta jusnaturalista de John Finnis (2007).

136 “the definition of law may be gathered; and it is nothing else than an ordinance of reason for the common good, made by him who has care of the community, and promulgated.” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1328). (Tradução nossa: “A definição de lei pode ser então reunida; e não é nada mais do que uma ordenação da razão para o bem comum, feita por aquele que cuida da comunidade e a promulga.”).

137 Disso derivam as afirmações de Tomás de Aquino no sentido de que a lei cruel não chega a ser uma lei: “A tyrannical law, through not being according to reason, is not a law, absolutely speaking, but rather a perversion of law.” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1340). (Tradução: “Uma lei tirânica, por não ser segundo a razão, não é uma lei, falando de maneira absoluta, mas, ao invés, uma corrupção da lei.”). Esse é o principal argumento utilizado pelos autores que sustentam a permanência da doutrina jusnaturalista na contemporaneidade (FINNIS, 2007). Outra consequência identificada nesse conceito de lei é a de que o aforismo romano quod principi placuit, legis habet vigorem (aquilo que agrada ao Príncipe tem força de lei) não deve ser interpretado em sua literalidade: “But in order that the volition of what is commanded may have

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Com base na filosofia aristotélica, Tomás de Aquino (1956) enfatiza que a razão é

responsável por impelir a ação humana a produzir um determinado fim, que é a busca da

felicidade 138. No entanto, a felicidade do homem não se esgota no indivíduo, pois que uma

parte – o homem – é sempre ordenada em relação a seu todo – a comunidade. Logo, quando a

razão humana direciona o homem a perseguir a felicidade, isso implica em uma busca pela

promoção do bem comum139 da comunidade. E quanto maior for a capacidade de uma lei em

direcionar o homem ao bem comum, maior será, portanto, a sua racionalidade140. Para tanto, a

vida política deverá seguir as prescrições e mandamentos revelados por Deus:

Deus, diz Tomás de Aquino, é o ‘começo e o fim de todas as coisas’. As criaturas se originam de Deus (exitus), quem é, portanto, sua primeira causa eficiente (o que é responsável por fazer com que elas existam). Mas Deus é também a causa final das criaturas, para quem elas miram, tendem ou retornam (reditus), e que contém a perfeição ou a finalidade de todas as coisas criadas. De acordo com Tomás de Aquino, tudo vem de Deus e é ordenado em direção a Ele. Deus é responsável por não existir nada separado Dele próprio e Ele é mirado por qualquer coisa em seu movimento em direção à perfeição. Aristóteles diz que tudo mira para seu bem. Tomás de Aquino diz que qualquer bem criado deriva de Deus, quem contém nele mesmo todas as perfeições encontradas nas criaturas. Desse modo, à medida que uma criatura se move a sua perfeição, Tomás de Aquino prossegue o argumento, a criatura está se inclinando àquilo que é encontrado em Deus ele próprio. Como Pai,

the nature of law, it needs to be in accord with some rule of reason. And in this sense is to be understood the saying that the will of the sovereign has the force of law; otherwise the sovereign's will would savor of lawlessness rather than of law.” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1329). (Tradução nossa: “Mas para que a volição do que é comandado possa ter a natureza de lei, ela precisa estar de acordo com alguma regra da razão. E nesse sentido deve ser entendido o dito de que a vontade do soberano tem força de lei. De outra sorte, a vontade do soberano originaria uma lei deficiente em essência ao invés de uma lei.”). Dessa forma, Tomás de Aquino funda a teoria jurídica do Direito Natural, ao condicionar a validade da lei positiva ao atendimento de uma moralidade mínima (MURPHY, 2004).

138 “it belongs to the reason to direct to the end, which is the first principle in all matters of action, according to the Philosopher (Phys. ii);” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1328) (Tradução nossa: “faz parte da razão se dirigir a um fim, que é o princípio primeiro em todas as questões do agir, segundo o Filósofo.”).

139 “Now as reason is a principle of human acts, so in reason itself there is something which is the principle in respect of all the rest: wherefore to this principle chiefly and mainly law needs to be referred. Now the first principle in practical matters, which are the object of the practical reason, is the last end: and the last end of human life is bliss or happiness, as stated above (Q[2], A[7]; Q[3], A[1]). Consequently the law must regard principally the relationship to happiness. Moreover, since every part is ordained to the whole, as imperfect to perfect; and since one man is a part of the perfect community, the law must regard properly the relationship to universal happiness.” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1330). (Tradução: “Agora, como a razão é um princípio das ações humanas, então na razão mesma existe algo que é o princípio em relação a todo o resto; onde a esse princípio primária e principalmente o direito deve ser referido. Agora, o primeiro princípio em questões práticas , que são objeto da razão prática, é o último fim: e o último fim da vida humana é a benção ou a felicidade, como dito acima (Q[2], A[7]; Q[3], A[1]). Consequentemente o direito deve considerar principalmente a relação com a felicidade. Mais ainda, uma vez que toda parte é ordenada em relação ao todo, da imperfeição em direção à perfeição; e uma vez que um homem é uma parte de uma comunidade perfeita, o direito deve necessidades propriamente a respeito da felicidade universal.”).

140 A ideia de lei enquanto um ‘comando’ impositivo de um dever é uma ideia que aparece na modernidade com John Austin e posteriormente será aproveitada por Kelsen e Hart para elaboração das teorias jurídicas positivistas. Tomás de Aquino se refere à Lei apenas como uma ‘regra e medida’ para julgamento das ações humanas “Law is a rule and measure of acts, whereby man is induced to act or is restrained from acting” (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1329) (Tradução: “A lei é uma regra e uma medida de ações, onde o homem é induzido a agir ou impedido de agir.”).

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Filho e Espírito Santo, Tomás de Aquino acrescenta, Deus é a finalidade especial dos indivíduos racionais. Pois esses podem partilhar o que Deus é em sua natureza. (DAVIES, 2003, p. 644-645, tradução nossa).141

A fim de demonstrar de que maneira a vida política conseguiria alcançar o bem

comum, Tomás de Aquino (1956) elabora uma teoria descritiva da natureza e da origem das

leis. Ele concebe a existência de um ‘universo prescritivo’ que remonta à criação divina142 e

insere a Lei Natural nesse ‘cosmos’ (COLEMAN, 2000). Sua origem imediata seria a de uma

derivação da Lei Eterna. Contudo, enquanto esta rege todos os objetos da criação, aquela se

restringe aos seres dotados de racionalidade. A Lei Natural derivaria do livre-arbítrio e da

faculdade racional que a criação divina concedeu ao homem. Com a dádiva do livre-arbítrio,

Deus conferiu aos homens a liberdade para, em suas ações, buscarem-no ou dele se afastarem.

A razão, por sua vez, permitiria que o homem avaliasse e classificasse o seu comportamento

segundo o resultado de encaminhá-lo ou distanciá-lo de Deus. Com isso o homem poderia

discernir o certo do errado e lançar um olhar avaliativo sobre suas ações143. A experiência

prática reiterada do homem permitiria que ele construísse princípios gerais de ação – algo que

Tomás de Aquino denomina sinderesis (BITTAR, 2000). O saber prático acumulado pela 141 God, says Aquinas, is ‘the beginning and end of all things’. Creatures derive from God (exitus), who is

therefore their first efficient cause (that which accounts for them being there). But God is also the final cause of creatures, that to which they aim, tend, or return (reditus), that which contains the perfection or goal of all created things. According to Aquinas, everything comes from God and is geared to him. God accounts for there being anything apart from himself, and he is what is aimed at by anything moving towards its perfection. Aristotle says that everything aims for its good. Aquinas says that any created good derives from God who contains in himself all the perfections found in creatures. In so far as a creature moves to its perfection, Aquinas goes on to argue, the creature is tending to what is to be found in God himself. As Father, Son, and Spirit, Aquinas adds, God is the special goal of rational individuals. For these can share in what God is by nature.

142 A primeira lei catalogada por Tomás de Aquino (1956) é a Lei Eterna, aquela que se identifica com a divina providência e é própria de Deus. A Lei Eterna é a Divina Sabedoria com a qual Deus rege o universo e tudo o que nele foi criado. Sendo própria de Deus, a Lei Eterna é inacessível diretamente aos homens, que a conhecem apenas por meio dos vestígios ou reflexos da obra divina. Como a Lei Eterna carrega a razão suprema do Criador, todas as demais leis existentes se originariam dela. Da Lei Eterna Santo Tomás faz derivar diretamente a Lei Divina, que consiste nos mandamentos enviados por Deus para que o homem possa alcançar a felicidade. Tais ensinamentos se fizeram necessários pelo fato de que o homem carece de um guia para saber o que deve e não deve fazer para viver segundo os desígnios de Deus. A Lei Divina rege o comportamento interior do homem, prevenindo-o de se inclinar em direção ao pecado e, consequentemente, se afastar de Deus. Ela se revela aos homens por meio das sagradas escrituras e traz consigo o conjunto das prescrições ligadas à dimensão religiosa da vida humana (AQUINO, 1956).

143 “In his [Tomás de Aquino] view, natural law follows from the goal-directed agency characteristic of human beings. Natural law is present in a rational creature insofar as one shares in divine providence by exercising foresight for oneself and for others. Rational creatures share in divine reason, insofar as their own reason is naturally illuminated so that they can distinguish good from bad. This discrimination of good from bad, and this foresight for oneself and others, constitutes natural Law.” (IRWIN, 2006, p. 326). (Tradução nossa: “Em sua visão [de Tomás de Aquino], o direito natural deriva da característica de agente direcionado a fins próprios dos seres humanos. O direito natural está presente em uma criatura racional na medida em que ela participa da divina providência por exercitar a previdência para si e para os outros. Criaturas racionais participam da razão divina, na medida em que sua própria razão é naturalmente iluminada de tal modo que eles podem distinguir o bem do mal. Essa discriminação do bem do mal e essa previdência para si e para os outros, constituem a lei natural.”).

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razão a partir da experiência sinderética levaria o homem a ordenar racionalmente as suas

inclinações naturais segundo um critério moral144 e instituir um princípio geral de ação em

vista do bem comum145 próprio da ação racional. Ao final desse processo, a razão sinderética

identificaria que o princípio geral da Lei Natural é a realização do bem e a abstenção da

prática do mal:

Consequentemente, o primeiro princípio da razão prática é aquele encontrado na noção de bem, visto que ‘o bem é aquilo que todas as criaturas procuram’. Portanto, este é o primeiro preceito da lei que ‘ o bem deve ser perseguido, enquanto o mal deve ser evitado’. Todos os outros preceitos da lei natural são baseados nesse: assim, o que quer que a razão prática naturalmente apreenda como um bem (ou um mal) pertence aos preceitos da lei natural como algo a ser feito ou evitado. (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1351, tradução nossa).146

Esse princípio geral daria origem a uma série de regras secundárias que seriam

encontradas por meio de um processo dedutivo. Isso teria por fim tornar concretas e

específicas as prescrições da Lei Natural em relação às diversas situações morais que se

colocam ao homem147. Com isso, a Lei Natural elaboraria um conjunto de preceitos que

serviria de referência para a elaboração da Lei Humana148. Como a Lei Natural traz os

144 “Todo o conjunto de experiências sinderéticas, ou seja, de experiências hauridas pela prática da ação, é capaz

de formar um grupo de princípios, de conceitos... que permitem a decisão por hábitos (bons, maus; justos, injustos). Isto quer dizer que hábitos não são inatos, mas sim conquistados a partir da experiência e é esta a base das operações da razão prática.” (BITTAR, 2000, p. 128).

145 “Aquinas implies that the natural law in us is our disposition to deliberate with reference to our own ultimate end. The principle of voluntary movements is the “good in common” and the ultimate end, which corresponds to the first principles of demonstration in theoretical cases (1–2 q10 a1). All rational action, therefore, depends on the desire for the ultimate end, which is the basic principle that belongs to us through natural law. Since natural law is a rational principle, it is guided by the first principle of practical reason, which directs us toward the ultimate end. The first directing of our acts toward the end comes through natural law because that is how we exercise providence for ourselves. We are a law to ourselves, and we have natural law in ourselves because we are agents who direct our actions toward our happiness.” (IRWIN, 2006, p. 327). (Tradução: “Tomás de Aquino subentende que a lei natural em nós é nossa disposição de deliberar em referência ao nosso próprio fim último. O princípio dos movimentos voluntários é o bem em comum e o fim último, que corresponde ao primeiro princípio da demonstração em casos teoréticos (1–2 q10 a1). Toda ação racional, portanto, depende do desejo do fim último, que é o princípio básico que pertence a nós por meio da lei natural. Uma vez que a lei natural é um princípio racional, ela é guiada pelo princípio primeiro da razão prática, que nos direciona ao fim último. O primeiro direcionamento de nossos atos em direção ao fim vem por meio da lei natural porque é desse modo que nós exercitamos a providência para nós mesmo. Nós somos uma lei para nós mesmos. Nós somos uma lei para nós mesmos e nós temos a lei natural em nós mesmos porque nós somos agentes que dirigem nossas ações em direção a nossa felicidade.”).

146 Consequently the first principle of practical reason is one founded on the notion of good, viz. that "good is that which all things seek after." Hence this is the first precept of law, that "good is to be done and pursued, and evil is to be avoided." All other precepts of the natural law are based upon this: so that whatever the practical reason naturally apprehends as man's good (or evil) belongs to the precepts of the natural law as something to be done or avoided.

147 Em Tomás de Aquino, portanto, já se encontra presente o embrião do método de derivação por dedução do geral para ao específico que irá caracterizar a doutrina jusnaturalista moderna.

148 A derivação da lei humana da lei eterna não é uma inovação de Santo Tomás de Aquino. Agostinho (1995, p. 41) já havia notado que “na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna”. A inovação de Tomás de Aquino consiste, contudo, na estruturação do modo como a lei

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princípios primeiros que ordenam a razão prática, se a Lei Humana vier a contrariá-la ela se

tornará irracional e, portanto, injusta por não servir para a promoção do bem comum. Nesse

caso, a Lei Humana perderia a sua essência de lei149:

(...) donde se conclui que a força de uma lei depende da extensão de sua justiça. Agora, nos assuntos humanos, uma coisa se diz justa, no sentido de ser correta, de acordo com a regra da razão. Mas a primeira regra da razão é a lei da natureza, como fica claro a partir do que foi dito acima (Q[91], A[2], ad 2). Consequentemente, toda lei humana tem de justo muito da lei natural, uma vez que deriva dessa lei natural. Mas se em algum momento ela se afastar da lei natural, deixa de ser uma lei para se tornar uma perversão da lei.. (TOMÁS DE AQUINO, 1956, p. 1358, tradução nossa). 150

Ao condicionar a justiça da Lei Humana a sua não contrariedade à Lei Natural, a teoria

jusnaturalista de Tomás de Aquino reforçou a ideia de atemporalidade do Direito Natural.

Muito embora Tomás de Aquino (1956) admitisse a possibilidade de acrescentar novas regras

secundárias ao conjunto das Leis Naturais, como parte do processo de adaptação do homem à

evolução cultural, o núcleo prescritivo do Direito Natural tomista encontrava-se amparado na

imutabilidade lei eterna151.

Grosso modo, é nesse estado que a teoria jusnaturalista foi legada aos pensadores

modernos152. Na era moderna, a doutrina jusnaturalista ganhará, contudo, um alcance político-

jurídico muito mais profundo, a partir da ideia dos direitos subjetivos inatos ao homem.

Todavia, no tópico seguinte pretende-se demonstrar que, no que tange à relação entre tempo e

direito, o jusnaturalismo do início da modernidade não modificou as características de

universalidade e imutabilidade que definem o direito natural como indiferente ao fenômeno

do tempo. Muito pelo contrário, ao acentuar a ‘geometria moral’ como método privilegiado

humana deriva da lei eterna por meio da lei natural, bem como na explicitação e sistematização do teor da lei natural.

149 Agostinho, antes de Santo Tomás de Aquino, já havia expressado essa ideia de semelhante maneira ao afirmar que “a mim me parece que uma lei que não seja justa não é lei.” (AGOSTINHO, 1995, p. 36).

150 (…) wherefore the force of a law depends on the extent of its justice. Now in human affairs a thing is said to be just, from being right, according to the rule of reason. But the first rule of reason is the law of nature, as is clear from what has been stated above (Q[91], A[2], ad 2). Consequently every human law has just so much of the nature of law, as it is derived from the law of nature. But if in any point it deflects from the law of nature, it is no longer a law but a perversion of law.

151 No que diz respeito à caracterização do Direito Natural como uma ordem que expressa a essência moral mínima e universal do homem, as teorias jusnaturalistas de matriz teológica não representaram uma ruptura em relação à versão estóica. Em ambas o núcleo central das prescrições morais não seria afetado pelo intercâmbio de valores das diferentes culturas existentes no tempo e no espaço dado que a razão universal / eterna seria imutável.

152 Há outros pensadores que forneceram relevantes contribuições à evolução da doutrina do Direito Natural no período de transição para a era moderna, como o teólogo espanhol Francisco Suárez, por exemplo. Contudo, optar-se-á por não adentrar nas características do seu pensamento em razão de fugir ao escopo do presente trabalho.

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dessa teoria, o jusnaturalismo buscou tornar-se similar às ciências matemáticas e, com isso,

reforçar ainda mais a imagem atemporal do direito.

3.2.2 O jusnaturalismo racionalista e os efeitos da geometrização do Direito Natural na

relação entre tempo e direito

O chamado ‘mundo moderno’ foi o resultado de um complexo processo de

modificação nas estruturas e formas sociais, políticas, organizacionais, culturais, ideológicas,

éticas e religiosas das sociedades ocidentais que se iniciou a partir do século XV. Esse

processo culminou em uma forma de vida simbolicamente nova em relação ao que até então

havia se experimentado no mundo antigo e medieval. Em um sentido mais estrito, o mundo

moderno também foi responsável por produzir um modo de reflexão e de pensamento no

campo das ideias que se convencionou denominar na cultura de um modo geral como

‘modernidade’153. A característica central do imaginário moderno que se formou nessa época

foi a elevação da Razão humana à condição de instância reguladora do sistema simbólico da

sociedade (VAZ, 2002).

Com isso, a filosofia e as ciências que se desenvolveram sob esse paradigma154

nascente viram-se cada vez menos vinculadas à dependência de pressupostos religiosos e

teológicos em seus fundamentos originários. No caso específico da teoria política, a

preferência dos autores desse período foi por recorrer a matrizes filosóficas da antiguidade

que colocavam o homem menos subordinado aos dogmas da cosmovisão cristã próprios da

era medieval155. Miller (2003) identifica que uma das filosofias que mais exerceu influência

ns teorias políticas do início da modernidade foi, direta ou indiretamente, o estoicismo156. Por

153 O pensamento moderno é marcado: a) por uma abordagem objetiva do universo exterior, pela qual o homem

consegue extrair dele uma exatidão que faz sobressair a dimensão quantitativa de sua razão técnica; b) pela afirmação histórica do indivíduo nas relações intersubjetivas, que leva as teorias sociais a buscarem a realização efetiva da autonomia; c) por tornar os símbolos humanos cada vez mais imanentes na relação de transcendência que possuem, o que leva à abolição da dimensão metafísica desse universo e coloca o homem em uma posição central nessa relação (VAZ, 2002)

154 A expressão paradigma é aqui empregada no sentido atribuído por T. Kuhn (1975) e indica o conjunto de pressuposições e questionamentos que condiciona e orienta as perguntas, respostas e o método investigativo compartilhado pela comunidade científica em uma determinada época.

155 O jusnaturalismo moderno, de fato, assume uma matriz antropológica em sua fundamentação, porém não a ponto de negar ou rejeitar a presença divina na formação do universo e do homem. Em Grócio, Hobbes ou Locke, por exemplo, fica evidente a relação desses autores com a crença religiosa cristã. Contudo, o que diferencia a sua perspectiva em relação às versões antigas é que o papel de conhecimento do Direito Natural não cabe mais aos dogmas religiosos, mas à razão humana exclusivamente. Desse modo, o jusnaturalismo moderno acaba por superar a autoridade e a tradição na definição do justo e do injusto e transforma o problema moral em um problema epistemológico-cognitivo (ADEODATO, 2002).

156 Schneewind (2003) relata a presença de forte influência estóica no pensamento de autores do início da modernidade, como Baruch de Espinoza, Hugo Grócio, John Locke e Joseph Butler.

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um lado, a crença estóica na existência de uma ‘razão universal’ que explica o homem e a

natureza por meio de uma lógica apreensível pelas faculdades cognitivas se adequava à leitura

do universo a partir de uma linguagem geométrica e matemática que as ciências experimentais

estavam proporcionando desde Galileu (ROSS, 2000). Por outro, o estoicismo proporcionava

uma alternativa não-cristã à elaboração de uma teoria moral, remetendo o problema da

referência para a ação prática a uma instância em que apenas a razão humana seria soberana

do veredicto final sobre o certo e o errado157. Com isso, no século XVII a doutrina do Direito

Natural de origem estóica novamente emergiu com destacada proeminência entre os teóricos

morais, políticos e jurídicos como a ‘fábula didática’158 mais apropriada para descrever,

explicar e justificar os arranjos políticos não tributários da cosmovisão religiosa própria do

mundo antigo (SIMMONDS, 2002).

A derivação direta do estoicismo conferiu ao jusnaturalismo moderno uma destacada

sistematicidade, o que alinhava a teoria jurídica ao contexto geral de produção de saber no

início da modernidade. A Física moderna já investigava a dinâmica da natureza a partir de

postulados gerais, ou ‘leis’, que permitiam a explicação dos diversos fenômenos do universo a

partir de deduções matemáticas logicamente integradas. De forma semelhante, o esquema

estóico de construção de prescrições morais gerais assentadas na cognição da ‘natureza

humana’ possibilitou o recurso à mesma lógica dedutiva para encontrar as máximas morais da

ação prática concreta159. Desse modo, a teoria moral poderia contar com a exatidão e a

objetividade próprias do raciocínio geométrico utilizado na ciência moderna e, portanto,

erigir-se como um conhecimento digno de valor (MILLER, 2003). Wieacker sintetiza o

processo que culminou no giro metodológico empreendido pelo jusnaturalismo em direção à

perspectiva matemática e geométrica:

Com o sistema do jusnaturalismo, a ciência jurídica adoptou também a sua construção conceitual. Numa teoria que tinha de se comprovar perante o fórum da razão através da exactidão matemática das suas premissas, o conceito geral adquiriu uma nova dignidade metodológica. Agora, ele não era já apenas um apoio tópico, um artifício na exegese e harmonização dos textos, mas o símbolo central que

157 A necessidade de um recurso à razão como referência moral de comportamento para os homens se deu em

razão do fato de que a religião deixou de fornecer um critério moral único de comportamento para comunidade, especialmente com o advento da Reforma religiosa.

158 Essa metáfora descritiva do contrato social foi extraída de Wieacker (1993). 159 Com isso, será possível identificar uma mesma lógica comum aos sistemas mais maduros do jusnaturalismo

moderno, como Hobbes, Locke e Rousseau: a) em primeiro lugar, a caracterizar o homem no ‘estado de natureza’; b) dessa condição natural do homem, fazer derivar os seus ‘direitos naturais’ outorgados pela natureza e constitutivos de sua essência; c) identificar os riscos e ameaças que a permanência na vida natural traria a tais direitos e concluir pela necessidade lógica da vida civil; d) a formatar de um arranjo político que institui o governo civil por meio de um ‘contrato social’ capaz de definir a sorte dos direitos naturais na nova vida em sociedade.

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exprimia a pretensão de ordenação lógica da ciência jurídica. As últimas fases do jusracionalismo, sobretudo, consideravam que a sua missão consistia numa demonstração das normas jurídicas que aspirasse à evidência lógica da prova matemática, e que consistisse, portanto, numa ininterrupta progressão dos conceitos mais gerais para os conceitos mais especiais: uma demonstratio more geometrico, a que corresponde, como precisamente se exprime no título e na forma expositiva da sua Ethica more geometrico demonstrata, a metafísica de Espinosa. (WIEACKER, 1993, p. 310).

Entretanto, a característica que mais acentua a distinção do jusnaturalismo moderno

em relação a suas versões antigas é o fato de que seus teóricos enxergavam o Direito Natural

como responsável por atribuir ‘direitos subjetivos’ aos seus titulares, isto é, a toda

humanidade. No ideário político-jurídico da antiguidade, o Direito Natural seria tão somente

um critério previamente estabelecido pela natureza do cosmos ou pela vontade divina para a

justa distribuição de bens e direitos160. Na condição de ‘regra’ ou ‘medida’ da justiça, o

Direito Natural antigo não conferia poderes ou prerrogativa aos indivíduos, mas apenas

indicava os deveres morais que o homem deveria observar se quisesse agir segundo a natureza

humana. Com as teorias jusnaturalistas da era moderna, passou-se a compartilhar uma forte

crença de que os direitos naturais seriam propriedades inatas dos indivíduos, compartilhadas

por todos em razão de sua simples condição racional161. Quando o jusnaturalismo moderno

160 “To this exercise of judgment belongs moreover the rational allotment to each man, or to each social group,

of those things which are properly theirs, in such a way as to give the preference now to him who is more wise over the less wise, now to a kinsman rather than to a stranger, now to a poor man rather than to a man of means, as the conduct of each or the nature of the things suggests. Long ago the view came to be held by many, that this discriminating allotment is a part of law, properly and strictly so called; nevertheless law, properly defined, has a far different nature, because its essence lies in leaving to another that which belongs to him, or in fulfilling our obligations to him.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução nossa: “Para esse exercício do julgamento pertence, além disso, a distribuição racional a cada homem, ou a cada grupo social, daquelas coisas que são propriamente deles, de tal maneira a dar preferência a aquele que é mais sábio sobre o menos sábio, a aquele que é um parente ao invés de um estranho, a um homem pobre ao invés de a um homem de posses, como a conduta de cada um ou a natureza das coisas sugere. Há muito tempo atrás essa visão passou a ser sustentada por muitos, que essa atribuição discriminatória é uma parte da lei, própria e estritamente falando; Não obstante o direito, propriamente definido, tem uma natureza bem diferente, porque sua essência reside em dar para outro aquilo que pertence a ele, ou em preencher nossas obrigações em relação a ele.”) .

161 Simmonds (2002) ressalta que essa característica da doutrina jusnaturalista moderna rompeu com a justiça distributiva aristotélica ao substituir a ‘lógica das aptidões’, pela ‘lógica da propriedade’. Esse rompimento consistiu em um dos principais marcos da matriz liberal de justiça. Em passagem em que se refere especificamente à teoria de Hugo Grócio, e que pode ser generalizada para toda teoria política do início da modernidade, Simmonds (2002, p. 215) destaca o seguinte: “The central point underlying this distinction between ‘rights and ‘aptitudes’ is the implicit denial of any juridical rights or duties following directly from the requirements of the common good. The role that our social nature plays in Grotius’s theory is in this way restricted in its substantive implications: a distinction is established between the broader concerns of ethics or politics and the specifically juridical realm of negative duties to forebear from encroachment upon the domain of others. For Grotius, rights were essentially domains of liberty within which one might pursue one’s self-interest: they were not simply the consequences for the individual of the requirements of common good. Thus, the concept of a right was closely linked to a concept of one’s own domain of moral inviolability: the ‘suum’. The suum encompassed one’s body and liberty, and could be by convention extended into property in external things. One had a right to that which was within one’s suum, and a right against those who encroached upon or invaded one’s suum.”. (Tradução nossa: “O ponto central subjacente a essa distinção entre direitos e aptidões é a negação implícita de quaisquer direitos ou deveres jurídicos

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ressaltou a dimensão subjetiva dos direitos conferidos pela Lei Natural e elaborou um

‘catálogo’ de direitos intrínsecos e inalienáveis a todos os homens, a teoria jurídica ganhou

uma forte carga moral162. Afinal, os direitos naturais deveriam ser respeitados como o núcleo

essencial da justiça humana, e contrariá-los equivaleria a agir de modo injusto ou incorreto.

Essa doutrina posteriormente ramificou-se no liberalismo iluminista que, juntamente com

Locke, entendia que os direitos naturais básicos conservados na vida civil seriam oponíveis

contra todos, inclusive e principalmente contra o próprio poder político que institui o direito

positivo163 (MASCARO, 2002).

A combinação entre o método geométrico-demonstrativo e a perspectiva subjetiva de

expressão da linguagem dos direitos naturais foi ressaltada pela primeira vez na exposição da

derivados diretamente das exigências do bem comum. O papel que nossa natureza social joga na teoria de Grócio é, nesse sentido, restrita em suas implicações substantivas: uma distinção é estabelecida entre as amplas preocupações da ética ou da política e o específico universo jurídico de deveres negativos de proibir a invasão no domínio de outros. Para Grócio, direitos seriam essencialmente domínios da liberdade dentro dos quais alguém poderia perseguir seu próprio interesse: eles não seriam simplesmente as consequências para o indivíduo das exigências do bem comum. Assim, o conceito de um direito estava intimamente ligado ao conceito do domínio de uma moral inviolável de alguém: o ‘suum’. O suum englobava o corpo e a liberdade de alguém e poderia ser, por convenção, estendida para a propriedade das coisas externas. Alguém teria um direito a aquilo que estaria no interior do seu suum e um direito contra aqueles que invadem o suum de alguém.”).

162 Guilherme de Ockham foi o primeiro a realçar que quando a linguagem jurídica passou a se exprimir a partir da perspectiva dos direitos subjetivos, ela os assumiu como fatos morais. Em consequência da disputa entre Duns Scot e a ordem dominicana sobre a questão da pobreza apostólica, Ockham defendeu que a expressão linguística referencial ao direito objetivo culmina em uma proposição descritiva de um fato real ou possível, como por exemplo, “É direito que fulano faça isto” ou “É justo que beltrano faça aquilo”. Ela serve apenas para expressar um estado de coisas. Logo, da perspectiva do direito objetivo, uma avaliação moral em sentido amplo da prescrição jurídica consistiria tão somente de uma análise global quanto ao teor da afirmação em si, ou seja, se a prescrição é legal ou ilegal, justa ou injusta. No mais, uma afirmação somente pode ser avaliada quanto a sua veracidade ou inveracidade em relação ao estado de coisas. Por outro lado, quando a linguagem jurídica se expressa a partir da perspectiva do direito subjetivo, ela estabelece uma relação entre uma pessoa e um estado de coisas. Com isso, introduz-se uma relação de pertencimento entre um direito e um sujeito que lhe é titular, criando, por conta disso, um fato moral na assertiva. “João tem direito a fazer isto” ou “É justo que Francisco tenha aquilo” são afirmações que conferem aos respectivos sujeitos um direito a algo e que, se elas deixarem de corresponder à realidade, serão moralmente incorretas, caso consideradas verdadeiras as premissas das quais elas são derivadas (EDMUNDSON, 2006).

163 “A razão pela qual os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade; e o fim para o qual elegem e autorizam um legislativo é a formulação de leis e o estabelecimento de regras como salvaguarda e defesa da propriedade de todos os membros da sociedade, para limitar o poder e moderar o domínio de cada parte ou membro desta. Pois, como não se pode jamais supor ser a vontade da sociedade que o legislativo tenha o poder de destruir aquilo que todos têm o propósito de proteger ao entrar em sociedade e, em nome de que o povo se submete aos legisladores por ele próprio instituídos, sempre que tais legisladores tentarem violar ou destruir a propriedade do povo ou reduzi-lo à escravidão sob um poder arbitrário, colocar-se-ão em estado de guerra com o povo, que fica, a partir de então, desobrigado de toda obediência e deixado ao refúgio comum concedido por Deus a todos os homens contra a força e a violência. Logo, sempre que o legislativo transgrida essa regra fundamental da sociedade e, seja por ambição, seja por medo, insanidade ou corrupção, busque tomar para si ou colocar nas mãos de qualquer outro um poder absoluto sobre a vida, as liberdades e as propriedades do povo, por uma tal transgressão ao encargo confiado ele perde o direito ao poder que o povo lhe depôs em mãos para fins totalmente opostos, revertendo este ao povo, que tem o direito de resgatar sua liberdade original e, pelo estabelecimento de um novo legislativo (tal como julgar adequado), de prover à própria segurança e garantia, que é o fim pelo qual vive em sociedade.” (LOCKE, 2001 p. 579-580).

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doutrina jusnaturalista de Hugo Grócio164. Sua teoria do Direito Natural nasceu em um

contexto de instabilidade política e militar do cenário internacional europeu. Em razão da

função que exercia165, a abordagem de Grócio do problema da justiça natural não teve um

enfoque acadêmico ou meramente especulativo. Pelo contrário, ele construiu um discurso de

ordem prática com uma finalidade política precisa na comunidade internacional: justificar a

possibilidade de coexistência pacífica entre as nações europeias beligerantes por meio de uma

‘Lei das Gentes’ – hoje amplamente reconhecida como Direito Internacional.

A segregação religiosa que se fundou entre as nações europeias após a Reforma

Protestante obrigou Grócio a abandonar a religião como fundamento para a sociabilidade

entre os povos. A partir da influência estóica presente em sua filosofia (MILLER, 2003),

Grócio acreditava que a razão humana pudesse transcender as divergências culturais e

religiosas e proporcionar o fundamento para um convívio pacífico entre os homens. O Direito

Natural, deduzido da Reta Razão como um conjunto de prescrições igualmente válidas para

todos os homens, serviu de sucedâneo para essa árdua empreitada.

Miller (2003) mostra como o argumento de Grócio para justificar a existência e a

origem do Direito Natural se inicia com um combate à posição cética de que não existiria nem

o Direito Natural, nem algo que se pudesse comparar a uma justiça universal. Ao demonstrar

o equívoco da posição cética, Grócio poderia estabelecer os alicerces que comprovariam

racionalmente a existência do Direito Natural e sua consequente aptidão para fazer derivar

uma Lei das Gentes que pudesse reger as nações no âmbito internacional166.

164 Simmonds (2002) aponta que a opinião dos especialistas não forma um consenso sobre quão inovadora seria a

proposta de Grócio em relação à tradição antiga. Todavia, mesmo aqueles que discordam que Grócio teria sido o precursor do jusnaturalismo moderno – Finnis (2007), por exemplo, atribui esse mérito ao jurista teólogo Francisco Suárez – reconhecem a originalidade e a importância de seu argumento de apresentação e justificação do Direito Natural.

165 “Grócio é principalmente conhecido por seu tratado De Iure Belli Ac Pacis (O direito da guerra e da paz), publicado em 1625, durante a Guerra dos Trinta Anos, a qual envolveu todas as potências europeias e se caracterizou, além disso, como um importante conflito religioso entre católicos luteranos e calvinistas. A economia holandesa era, como ainda é hoje, muito dependente do comércio marítimo. E Grócio, um advogado holandês, tinha interesses tanto profissionais como filosóficos na consolidação do direito internacional e do direito da guerra. Os Países Baixos, como nação comercial, tinham que fazer frente à supremacia marítima da Espanha e de Portugal. Não é de admirar, portanto, que um representante de uma potência mais fraca invocasse a justiça como forma de resolver a disputa com os mais fortes.” (EDMUNDSON, 2006, p. 25).

166 “Of all the types of moral laws his readers were apt to doubt, the Law among nations must top the list. If it is anywhere, it is between nations that moral anarchy exists: at best, might makes right; at worst, there is no right, and one nation can do what it will to another. Now, it may have been possible for Grotius to address this kind of skepticism (that is, skepticism about a Law among nations) without dealing with the other (that is, skepticism about a Natural Law). If it can be proven that no Natural Law exists, however, then on the assumption that the Law among nations is parasitic upon Natural Law, it would follow that there is no Law of that kind, either. By addressing deep skepticism about the general Natural Law, Grotius is taking on more than is strictly necessary for his purposes. But he will have achieved so much more if he succeeds in refuting it.” (MILLER, 2003, p. 121). (Tradução nossa: “De todos os tipos de leis morais que seus leitores estavam

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O argumento dos céticos é expresso pela figura do filósofo Carneádes. Grócio (2005)

debate algumas passagens da obra de Carneades em que o filósofo cético nega a existência do

Direito Natural por ser contrário à constituição biológico-natural do homem. Segundo

Carneádes, o impulso natural da autoconservação167 impresso nos homens faria com que suas

ações fossem governadas tão somente pelo desejo de satisfação dos próprios interesses. Como

os homens são programados pela natureza a buscar sua própria sobrevivência, a natureza

desconheceria a distinção entre justo e injusto. A justiça seria uma construção própria da

cultura e, consequentemente, direitos e deveres nasceriam apenas da utilidade social dessa

criação. Disso derivaria que somente as convenções humanas poderiam criar o direito e que,

portanto, seria algo sem sentido imaginar uma Lei Natural que pudesse assumir a condição de

padrão universal de comportamento moral entre os homens. Assim, a ideia de auto-sacrifício

seria incompatível com o princípio natural da autoconservação168. O ponto crucial da posição

cética consiste em negar à justiça um conteúdo material imutável. Segundo os céticos a

experiência humana indicaria que o teor da justiça varia conforme a evolução dos tempos.

aptos a questionar, a Lei entre as nações deve encabeçar a lista. Se é em algum lugar, é justamente entre as nações que a anarquia moral existe: na melhor hipótese, pode fazer o correto; na pior, não há direito, e uma nação pode fazer o que quiser com a outra. Agora, poderia ter sido possível para Grócio endereçar esse tipo de ceticismo (isto é, ceticismo sobre uma Lei entre as nações) sem lidar com um outro (isto é, o ceticismo sobre a Lei Natural). Se puder ser provado que nenhum direito natural existe, contudo, então, na presunção de que a Lei entre as nações é parasita da Lei Natural, seguir-se-ia que não existe nenhuma lei desse tipo também. Ao ser alvo de uma profunda crítica sobre a Lei Natural, Grócio está recebendo mais do que é estritamente necessário para seu propósito. Mas ele terá conquistado muito mais se ele suceder em refutar isso.”).

167 O princípio da auto-conservação ou auto-preservação é aquele pelo qual todo ser vivo orienta sua conduta visando o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção de seu organismo natural por meio da preservação de sua integridade e da aquisição de bens exteriores necessários para tanto. Foi formulado inicialmente na filosofia estóica e serviu de base para a elaboração de todo o Direito Natural moderno. Em referência a Cícero, Grócio o descreve da seguinte maneira: “He [Cícero] calls first principles of nature those in accordance with which every animal from the moment of its birth has regard for itself and is impelled to preserve itself, to have zealous consideration for its own condition and for those things which tends to preserve it, and also shrinks from destruction and things which appear likely to cause destruction.”. (GRÓCIO, 2005). (Tradução: “Ele [Cícero] denomina primeiros princípios da natureza aqueles de acordo com os quais todo animal, do instante de seu nascimento, tem um cuidado consigo próprio e é impelido a se preservar, a ter zelosa consideração com sua própria condição e em relação àquelas coisas que tendem a preservá-la, e também eliminar as coisas que aparentemente causam destruição.”).

168 “Carneades, then, having undertaken to hold a brief against justice, in particular against that phase of justice with which we are concerned, was able to muster no argument stronger than this, that, for reason of expediency, men imposed upon themselves laws, which vary according to customs, and among the same peoples often undergo changes as times change; moreover, that there is no law of nature, because all creatures, men as well as animals, are impelled by nature toward ends advantageous to themselves; that, consequently, there is no justice, or, if such there, be, it is supreme folly, since one does violence to his own interests if he consults the advantages of others.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução nossa: “Carneádes, então, tendo empreendido uma exposição contra a justiça, em particular contra aquela fase da justiça com a qual estamos preocupados, reuniu argumentos não mais fortes do que isso, de que os homens, por razão de conveniência, impuseram a si mesmos leis que variam de acordo com os costumes e, entre as mesmas pessoas, sempre sofrem mudanças a medida que os tempos mudam; mais ainda, que não há lei natural, porque todas as criaturas, homens ou animais, são impelidas pela natureza em direção a um fim vantajoso a elas próprias; que consequentemente, não existe justiça ou, se tal existe, é sua suprema loucura, uma vez que alguém faria violência a seus próprios interesses se ele consultasse as vantagens dos outros.”).

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Ao se contrapor à posição cética, Grócio (2005) pretendia elaborar uma Lei Natural

que fosse blindada contra o fluxo temporal, à semelhança das operações matemáticas que

também permanecem válidas mesmo com o passar do tempo. Em seu argumento, Grócio não

negava que o princípio da autoconservação detivesse a primazia enquanto guia supremo do

agir prático. Seu ponto consistiu em contestar que o princípio da autoconservação fosse

incompatível com a possibilidade de altruísmo no comportamento humano e que, portanto,

todas as ações humanas fossem originadas de uma perspectiva egoísta e utilitarista.

Curiosamente, segundo Grócio seria justamente por tomar como verdadeira a premissa do

princípio natural da autoconservação é que haveria fundamento para a existência da Lei

Natural (MILLER, 2003).

Grócio (2005) dirá que há duas peculiaridades que distinguiriam a espécie humana dos

demais animais. Em primeiro lugar, o homem seria dotado de uma faculdade intelectual de

agir a partir de conceitos gerais. Em segundo lugar o homem possuiria uma disposição inata

para fazer o bem aos seus próximos, o que, somada a sua habilidade de uso da fala, lhe

conferiria uma inclinação natural para viver em sociedade – algo que os gregos denominaram

de oikeiôsis 169 (EDMUNDSON, 2006). Desse modo o princípio da autoconservação

originaria a primeira e mais geral Lei Natural que rege a humanidade: manter a paz na ordem

social, organizando-a de modo racional170 (MILLER, 2003). Em razão da generalidade desse

primeiro mandamento natural, Grócio desdobra-o em dois deveres específicos que lhe são

diretamente conexos: a) “Que ninguém cometa uma ofensa contra a integridade física do

próximo”; b) “Que ninguém se aproprie dos bens que foram anteriormente apropriados por

169 “In children, even before their training has begun, some disposition to do good to others appears, as Plutarch

sagely observed; thus sympathy for others comes out spontaneously at that age. The mature man in fact has knowledge which prompts him to similar actions under similar conditions, together with an impelling desire for society, for the gratification of which he alone among animals possesses a special instrument, speech. He has also been endowed with the faculty of knowing and of acting in accordance with general principles. Whatever accords with that faculty is not common to all animals, but peculiar to the nature of man.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução: “Na infância, mesmo antes que sua instrução tenha se iniciado, alguma disposição para fazer o bem aos outros aparece, como Plutarco sabiamente observara. Assim, uma simpatia em relação aos outros aparece espontaneamente nessa idade. O homem maduro, na verdade, dispõe de um conhecimento que exige dele que execute ações similares sob condições similares, juntamente com um forte desejo por viver em sociedade, o que se dá por meio da benção que ele, unicamente dentre os animais, possui, a saber, o instrumento especial da fala. Ele também foi dotado com a faculdade de saber e de agir de acordo com princípios gerais. O que quer que esteja de acordo com esta faculdade não é comum a todos os animais, mas peculiar à natureza do homem.”).

170 “Since human nature is such that humans naturally require human companionship, humans are obliged to treat each other in certain ways; in particular, humans must treat each other in ways conducive to the maintenance of society.” (MILLER, 2003). (Tradução nossa: “Uma vez que a natureza humana é tal que os homens exigem companhia, os homens são obrigados a tratar os demais de certas maneiras; em particular, os homens devem tratar uns aos outros de maneira condizente com a manutenção da sociedade.”).

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outrem”171; Por meio desses guias, o homem poderia efetivamente concretizar o princípio da

auto-conservação, já que seria capaz de se proteger melhor contras as ameaças à sua vida e

integridade física, além de ter a tranquilidade necessária para a obtenção do conjunto de bens

materiais necessários à reprodução da vida biológica (MILLER, 2003).

Para proporcionar a efetiva convivência sociopolítica pacífica entre os homens, seria

preciso um elo obrigacional geral garantidor do cumprimento dos ditames da Lei Natural.

Para tanto, far-se-ia necessária uma primeira máxima de ação capaz de vincular o

comportamento dos homens enquanto membros de uma sociedade. Grócio (2005) enxergou

no brocardo latino pacta sund servanda172 o ponto de partida para a justificação da lei positiva

e o estabelecimento de um compromisso político de convivência pacífica entre homens, ainda

que não integrados em um mesmo projeto comunitário173.

Com isso, o fundamento do Direito Natural se assentaria exclusivamente na

autoevidência racional de suas premissas gerais. E a validade das premissas derivadas

decorreria da verificação da pertinência de seu teor dentro do encadeamento lógico-dedutivo

entre os princípios gerais e as regras específicas174. Portanto, Grócio (2005) construiu um

escalonamento hierárquico material das normas do Direito Natural em que as regras

171 Miller (2003) explica que esses dois princípios servirão de alicerce para Grócio construir o argumento para o

uso justo da violência e, a partir daí, construir sua distinção entre guerra justa e injusta. 172 “Again, since it is a rule of the law of nature to abide by pacts (for it was necessary that among men there be

some method of obligating themselves one to another, and no other natural method can be imagined), out of this source the bodies of municipal law have arisen. For those who have associated themselves with some group, or had subjected themselves to a man or to men, had either expressly promised, or from the nature of the transaction must be understood impliedly to have promised, that they would conform to that which should have been determined, in the one case by the majority, in the other by those upon whom authority had been conferred.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução nossa: “Novamente, uma vez que é uma regra da lei natural o vínculo pelos pactos (para o que é necessário que entre os homens exista algum método de obrigarem uns aos outros, para o que nenhum outro método natural possa ser imaginado), fora dessa fonte, o corpo das leis municipais emergiu. Para aqueles que se associaram com algum grupo, ou se sujeitaram a um homem ou alguns homens, ou expressamente prometeram, ou, pela natureza da transação, deve-se entender terem implicitamente prometido, que eles se conformariam a aquilo que deveria ter sido determinado, em um único caso pela maioria, em outro por aqueles a quem a autoridade lhes foi conferida.”).

173 Nesse ponto o argumento de Grócio alcança o ápice do seu secularismo e de sua transcendência religiosa, pois a validade do raciocínio moral-prático que leva ao reconhecimento de validade do princípio do pacta sund servanda decorreria exclusivamente de sua auto-evidência racional. Para agir moralmente, os homens prescindiriam até mesmo da existência de Deus ou de sua intervenção nos desígnios humanos: “What we have been saying would have a degree of validity even if we should concede that which cannot be concede without the utmost wickedness, that there is no God, or that the affairs of men are of no concern to Him.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução: “O que nós temos dito teria um grau de validade mesmo se pudéssemos conceber aquilo que não pode ser concebido sem a maior perversidade, que não existe Deus, ou que os assuntos dos homens não lhe dizem respeito.”).

174 Wieacker (1993) faz uma apresentação das contribuições de Grócio para a formação do Direito Civil moderno a partir das leis naturais secundárias ou derivadas, que nasceriam na medida em que o raciocínio geométrico conferisse mais especificidade à Lei Natural. O direito de propriedade, de liberdade contratual, de capacidade civil e das relações matrimoniais estariam todos regulamentados pela Lei Natural, pois a Razão revelaria as prescrições racionalmente adequadas para esses institutos. Posteriormente, essas premissas fundamentaram a elaboração dos grandes códigos que emblematizaram o sucesso das revoluções burguesas.

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específicas (hierarquicamente inferiores) retirariam sua validade da concordância / derivação

dedutiva em relação às regras gerais (hierarquicamente superiores)175. Grócio é o ponto de

partida da proposta jusnaturalista moderna de priorizar o raciocínio matemático como método

privilegiado de descobrimento do Direito Natural176 em substituição à especulação teológica

antes utilizada177 (EDMUNDSON, 2006). Assim, Grócio completou seu argumento de que

seria possível estabelecer princípios gerais de justiça natural que não fossem transitórios e de

validade temporal condicionada (MILLER, 2003).

Também com Grócio (2005) encontra-se o germe da ideia liberal de que os direitos

naturais seriam inerentes a todos os seres humanos. Eles assumiriam a forma de um ‘direito

subjetivo’ que confere uma ‘prerrogativa’ oponível erga omnes (EDMUNDSON, 2006).

Grócio retomou a ideia de direito subjetivo como uma facultas agendi dos romanos e

universalizou esse núcleo de direitos conferido pela Lei Natural a todas as pessoas. Como o

Direito Natural seria intrínseco a todos os homens, qualquer medida que viesse a privá-los

dessa faculdade sofreria uma avaliação moral negativa e seria rotulada de injusta ou

incorreta178. Portanto, a Lei Natural adquiriu o status de critério moral para as condutas

175“It may be the case that any particular moral agent who wishes to consult these laws would find them removed

from the situation in which he is placed. If so, he would be obliged to conduct a more-or-less elaborate series of deductions, beginning with the universal laws and proceeding slowly to laws with increasingly smaller scope.” (MILLER, 2003, p. 125). (Tradução nossa: “Deve ser o caso que algum agente privado que deseje consultar essas leis as encontraria removidas da situação em que foram colocadas. Se assim o for, ele seria obrigado a conduzir uma mais ou menos elaborada série de deduções, começando com as leis universais e procedendo lentamente às leis de escopo menos abrangente.”).

176 Simmonds (2002) destaca que a proposta de empregar a lógica dedutiva no direito teve grande impacto na metodologia jurídica, já que se apresentava como uma alternativa à falta de sistematicidade tanto da dialética medieval, quanto das glosas das escolas italianas. Contudo, afirma que se essa realmente fosse a proposta de Grócio, seria impossível, a partir de seus escritos, dizer que a sua teoria gozava de uma objetividade e exatidão que a assemelhasse ao raciocínio matemático. Essa tarefa, segundo Simmonds (2002), teria sido efetivamente levada a cabo somente depois, por autores como Spinoza ou Leibniz. Isto se deve ao fato de que o estilo filosófico de Grócio se filiaria a uma tradição mais ligada ao aristotelismo do que ao platonismo ou ao próprio estoicismo, essas duas últimas de cunho mais dedutivo-racionalista do que a primeira.

177 O próprio Grócio, contudo, não quis fazer dessa assertiva uma apologia da secularização da Moral. Mais adiante na sequência de seu texto, ele mitiga o alcance dessa afirmação, reconhecendo a participação indireta da vontade de Deus na criação do Direito Natural: “Herein, then, is another source in nature, that is, the free will of God, to which beyond all cavil our reason tells us we must render obedience. But the law of nature of which we had spoken, comprising alike that which relates to the social life of man and that which is so called in a larger sense, proceeding as it does from the essential traits implanted in man, can nevertheless rightly be attributed to God, because of His having willed that such traits exists in us.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução: “Aqui, então, é uma outra fonte da natureza, ou seja, a vontade livre de Deus, que, para além de todo sofisma da nossa razão, nos diz que devemos prestar obediência. Mas a lei da natureza, da qual falávamos, que compreende aquilo que se refere à vida social do homem, e que é assim é chamada em um sentido mais amplo por proceder a partir dos traços essenciais implantados no homem, possa certamente ser atribuída a Deus, porque vem do Seu desejo que tais traços existam em nós.”). Portanto, a sua diferença em relação ao pensamento medieval não está na origem do Direito Natural, mas no método empregado.

178 “There is another meaning of law viewed as a body of rights, different from the one just defined but growing out of it, which has reference to the person. In this sense a right becomes a moral quality of a person, making it possible to have or to do something lawfully.” (GRÓCIO, 2005). (Tradução: “Existe um outro significado de lei ao invés de um corpo de direitos, diferentemente daquela que se define for a dela e que se refere à

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pessoais e políticas, de tal maneira que passou a orientar e constranger a criação e a validade

do direito positivo.

Dentro do espírito racionalista do início da modernidade, Grócio construiu uma teoria

jusnaturalista que idealizou o Direito em uma imagem atemporal e estática e contribuiu de

modo decisivo para a caracterização da relação entre o tempo e o direito. A fim de ir além do

argumento teológico sobre a imutabilidade da Lei Natural, Grócio enfatizou o aspecto lógico-

sistemático no método de descobrimento do Direito Natural, assemelhando o raciocínio

jurídico ao saber matemático. Com isso, a força de seu argumento passou a se assentar no

caráter inquestionável das evidências descobertas pela razão179:

A lei da natureza, novamente, é imutável – mesmo no sentido de que não pode ser modificada por Deus. Imensurável como é o poder de Deus, ainda assim pode ser dito que existem certas coisas sobre as quais esse poder não se estende; para aquelas sobre o que isso é dito são apenas faladas, não fazendo sentido em sua correspondência com a realidade, sendo mutuamente contraditórias. Assim como mesmo Deus, então, não pode fazer com que dois vezes dois sejam quatro, então Ele não pode fazer com que aquilo que é intrinsecamente mau não seja mau. (GRÓCIO, 2005, tradução nossa). 180.

Após Grócio, a teoria jusnaturalista ganhou acentuado destaque na filosofia política

enquanto elemento integrante das teorias justificadoras do Governo Civil, notadamente o

contratualismo do século XVII e XVIII. Esse emprego generalizado do Direito Natural na

teoria política moderna refinou cada vez mais sua caracterização (STRAUSS, 2009). A

finalidade do exercício do poder político passou a ser a realização de um ou vários direitos

naturais essenciais que não poderiam ser vilipendiados pela autoridade do Governo Civil. É o

que se verifica, por exemplo, nas formulações de Hobbes181, Spinoza, Locke182 ou

pessoa. Nesse sentido, um direito se torna uma qualidade moral de uma pessoa, que lhe permite ter ou fazer algo licitamente.”).

179 Miller (2003) chama atenção para o fato de que a Lei Natural concebida por Grócio não aceitaria a derrogação de seus preceitos em razão de exceções casuísticas. As deliberações morais sobre como alguém deve agir deveriam ser feitas em abstrato e exclusivamente em referência ao teor da Lei Natural. E com isso, dada a generalidade e o encadeamento lógico da Lei Natural, um agente dotado de uma grande capacidade de efetuar cálculos matemáticos sempre saberia como agir corretamente em uma determinada situação. Esse ponto merece destaque, uma vez que, como se verá adiante, as teorias positivistas do séc. XIX herdaram essa característica metodológica por comungarem da ideia de uma ‘objetividade’ na interpretação. Somente as teorias positivistas do século XX, que enfatizaram o aspecto semântico da linguagem, como é o caso de Kelsen e Hart, foram responsáveis por introduzir o relativismo metodológico no que tange à interpretação.

180 The law of nature, again, is unchangeable – even in the sense it cannot be changed by God. Measureless as is the power of God, nevertheless it can be said that there are certain things over which that power does not extend; for things of which this is said are spoken only, having no sense corresponding with reality an being mutually contradictory. Just as even God, then, cannot cause that two times two should not make four, so He cannot cause that which is intrinsically evil be not evil.

181 “Desta lei fundamental da natureza, pela qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar ao seu direito a todas as coisas; e contentar-

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Rousseau183 sobre a passagem do estado de natureza para a sociedade civil por meio do

contrato social. Nas construções desses autores, o raciocínio matemático próprio do início da

modernidade aliou-se ao movimento iluminista para conferir aos direitos naturais a condição

de alicerce dos movimentos revolucionários burgueses. Ao final, a conclusão a que chegaram

tais teorias é que os direitos naturais consistiam em um núcleo de prerrogativas inalienáveis

que deveriam se converter em garantias individuais e direitos fundamentais

constitucionalmente protegidos.

Todavia, a preocupação dessa abordagem ‘política’ do Direito Natural foi relacionada

ao problema da incorporação material dos direitos naturais às constituições e declarações

políticas e da consequente limitação, ou não, do poder civil. A teoria jusnaturalista foi,

portanto, sendo abandonada enquanto método de cognição do direito e fundamento de

validade das normas jurídicas para se tornar um problema da teoria constitucional184. Uma vez

positivados nos códigos, declarações e constituições, o Direito Natural se converteria em

direito positivo e, nas teorias liberais mais radicais, poderia, no limite, autorizar a

desobediência civil em relação ao Governo.

Apesar dessa ramificação da teoria jusnaturalista, no meio jurídico ela continuou

sendo reverenciada por autores que seguiam acreditando que a Razão humana seria capaz de

traçar preceitos prescritivos para o homem. Essa vertente civilista aprofundou a proposta de

Grócio de expressar o direito em uma linguagem cada vez mais geométrica, reforçando a

se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.” (HOBBES, 2005, p. 79).

182 “O estado de natureza tem, para governá-lo, uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados ao mundo para cumprir Seus desígnios, são propriedade de seu artífice, feitos para durar enquanto a Ele aprouver, e não a outrem. E tendo todos as mesmas faculdades, compartilhando todos uma mesma comunidade de natureza, não se pode presumir subordinação alguma entre nós que nos possa autorizar a destruir-nos uns aos outros, côo se fôssemos feitos para o uso uns dos outros, assim como as classes inferiores de criaturas são para o nosso uso. Cada um está obrigado a preservar-se, não abandonar sua posição por vontade própria; logo, pela mesma razão, quando sua própria preservação não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto puder, preservar o resto da humanidade, e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde, integridade ou bem de outrem.” (LOCKE, 2001. p.384-385).

183 “O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para compreender bem estas compensações é necessário distinguir a liberdade natural, que não tem ouros limites a não ser as forças individuais, da liberdade civil, limitada esta pela vontade geral, e a posse, consequência unicamente da força ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode fundamentar-se num título positivo.” (ROUSSEAU, 1971, p. 54).

184 Aliás, uma vez positivados os direitos naturais se converteriam inclusive em direitos fundamentais ou garantias individuais, expressão frequentemente empregada no direito constitucional para se referir aos direitos essenciais que a ordem jurídica positiva consagra como de importância capital.

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imagem atemporal do direito jusnaturalista185. Para o jusracionalismo, denominação dada a

essa vertente tardia do jusnaturalismo moderno (FASSÓ, 1982), quanto maior fosse a

coerência do sistema normativo, maior a sua racionalidade e veracidade. Wieacker (1993)

destaca Pufendorf186, Thomasius e Wolff187 como importantes expoentes dessa corrente

jusracionalista.

Contudo, é com Immanuel Kant que o jusracionalismo encontrou seu ápice e, ao

mesmo tempo, seu declínio188. Por um lado, Kant (2003) fez do Direito Natural189 um

imperativo a priori da razão, responsável por fundamentar a autoridade do legislador positivo

(FASSÓ, 1982). Por outro, rechaçou a ideia de que o direito positivo devesse guardar uma

relação necessária de conteúdo com o Direito Natural, uma vez que aquele se caracterizaria

185 “No seu ocaso, o racionalismo iluminista parece ter atraiçoado numa tal crispação o seu próprio núcleo mais

característico. No seu apogeu, ele tinha acabado com uma tradição de injustiça, tinha desmascarado a superstição das bruxas, abolido a tortura, acabado com as formas cruéis de execução, posto de parte as penas cruéis e infamantes e, com a reforma do direito penal e do processo penal, erguido bem alto o estandarte da humanidade. Menos notórios e inequívocos foram os méritos do direito privado jusracionalista. Aqui, um racionalismo menos atento e superficial não só socavou frequentemente uma consciência jurídica afeiçoada pela tradição – mas viva – e a racionalidade do existente, mas bloqueou ainda o desenvolvimento futuro do jusnaturalismo através de uma espécie de monopólio estadual do direito natural. A anti-historicidade deste racionalismo comprometeu também a história futura, ou seja, o futuro destes povos.” (WIEACKER, 1993, p. 399).

186 “Através desta combinação de dedução e observação, Pufendorf ensaiou o primeiro sistema de uma teoria geral do direito que, no que diz respeito aos seus pormenores (às conclusões) não se limitou a transfegar o vinho dos princípios morais tradicionais para novas pipas, mas antes determinou o próprio conteúdo do direito natural, o tornou mais aberto e o enriqueceu. Em certa medida este sistema é o correspondente, embora num grau menos elevado, dos sistemas contemporâneos da Ethica de Espinosa e da Philosophia naturalis principia mathematica de Newton.” (WIEACKER, 1993, p. 349).

187 “A exposição sistemática de Wolff através de uma dedução exaustiva dos princípios de direito natural a partir de axiomas superiores até os mínimos detalhes, exclui todos os elementos indutivos ou impressionistas e aspira ao rigor da prova geométrica resultante do princípio do terceiro excluído. O único fundamento do valor dos princípios é constituído, aparentemente, pela ausência de contradição das expressões lógicas; mas este sistema tornar-se ia totalmente vazio se ele não tivesse sido trabalhado íntima e inconscientemente pela ética material do jusnaturalismo anterior. Relacionando-o com o direito natural do ocidente, Wolff representa ainda uma vez o intelectualismo e idealismo da tradição aristotélico-tomista contrário ao voluntarismo e nominalismo da revolução espiritual de Occam e Hobbes.” (WIEAKCER, 1993, p. 362).

188 Não se pretende aqui apresentar uma exposição aprofundada sobre a doutrina do direito de Kant, dada a sua complexidade e extensão. Apenas será dado destaque ao tratamento de Kant ao Direito Natural e sua relação com a evolução da doutrina jusnaturalista em direção ao positivismo jurídico.

189 Para Kant (2003, p. 83-84), na condição natural somente haveria um direito, a saber, o direito inato à liberdade. Todos os demais ‘direitos naturais’ seriam decorrência da liberdade humana: “A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia) na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes. Este princípio de liberdade inata implica as seguintes competências, que não são realmente distintas dela (como se fossem integrantes da divisão de algum conceito superior de direito): igualdade inata, isto é, independência de ser obrigado por outros a mais do que se pode, por sua vez obrigá-los; daí uma qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem como ser um ser humano irrepreensível (iusti), visto que, antes de realizar qualquer ato que afete direitos, não causou dano algum a ninguém; e, finalmente, está autorizado a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles, enquanto não quiserem aceitá-la – coisas como meramente comunicar suas ideias a eles, dizendo-lhes ou prometendo-lhes algo, quer o que diga seja verdadeiro e sincero ou falso e insincero (veriloquium aut falsiloquium), pois lhe cabe inteiramente se disporem a nele acreditar ou não.” (KANT, 2003, p. 83-84).

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pela forma190 segundo a qual os diversos arbítrios seriam harmonizados segundo uma lei

universal. Ao submeter a doutrina do Direito Natural ao crivo de sua Crítica, Kant eliminou a

crença na existência de uma ordem metafísica de conteúdo moral capaz de conferir direitos

subjetivos e limitar o conteúdo do direito positivo (WIEACKER, 1993). Na teoria kantiana do

direito, os deveres jurídicos careceriam da figura do Estado legislador para impô-los191. Com

isso o direito somente seria apreendido a partir da legislação positiva emanada da autoridade

do Estado. Essa leitura formal do fenômeno jurídico feita por Kant foi um dos mais

importantes passos para o reconhecimento de como a doutrina positivista cada vez mais

ocupava espaço na comunidade jurídica como teoria responsável por melhor descrever a

prática jurídica e o fenômeno do direito. Esse será o tema do tópico seguinte.

3.3 O positivismo jurídico e suas vertentes

O declínio do prestígio da teoria jusnaturalista entre os filósofos do direito que se

seguiram a Kant não levou necessariamente a uma radical mudança de perspectiva da teoria

jurídica em sua relação com o tempo. Muito embora o positivismo jurídico tenha abraçado o

relativismo cultural e permitido uma abertura à contingência em relação ao conteúdo do

direito, fatores como: a) a permanência da ênfase no raciocínio lógico-sistemático endossada

190 Fassó (1982) destaca que, para Kant, o direito é, em sua essência, formal e prescinde de qualquer conteúdo

veiculado pelas leis, já que o direito não prescreve o que se deve fazer, mas sim o modo pelo qual uma ação deve ser realizada. Isso fica expresso na diferença entre o caráter externo do direito e no caráter interno da ética “A ética também possui seus deveres especiais (por exemplo, deveres para consigo mesmo), mas igualmente possui deveres em comum com o direito; o que não possui em comum com o direito é somente o tipo de obrigação, pois o que é distintivo na legislação ética é dever alguém realizar ações simplesmente porque são deveres e tornar o princípio do dever ele mesmo, não importa de onde provenha o dever, o motivo suficiente para a escolha.” (KANT, 2003, p. 73).

191 “Quando declaro (por palavras ou atos) que é minha vontade que alguma coisa externa deve ser minha declaro com isso que todos os demais estão obrigados a se absterem do uso daquele objeto de minha escolha, uma obrigação que ninguém teria se não fora por este meu ato de estabelecer um direito. Esta pretensão, entretanto, envolve o reconhecimento de que eu, por minha vez, estou obrigado em relação a todo outro a me abster de usar o que é externamente seu, pois a obrigação aqui surge de uma regra universal que tem a ver com relações jurídicas externas. Não estou, por conseguinte, obrigado a deixar intocáveis objetos externos pertencentes a outros, a menos que todos os demais me proporcionem garantia de que se comportarão segundo o mesmo princípio com respeito ao que é meu. Essa segurança não requer um ato especial para estabelecer um direito, mas já está encerrada no conceito de obrigação correspondente a um direito externo, uma vez que a universalidade, e com esta a reciprocidade, da obrigação surge de uma regra universal. Ora, uma vontade unilateral não pode servir como uma lei coercitiva para todos no que toca à posse que é externa e, portanto, contingente, já que isso violaria a liberdade de acordo com leis universais. Assim, é somente uma vontade submetendo todos à obrigação, consequentemente somente uma vontade coletiva geral (comum) e poderosa é capaz de suprir a todos tal garantia. Contudo, a condição de estar submetido a uma legislação externa geral (isto é, pública) acompanhada de poder é a condição civil. Conclui-se que apenas numa condição civil pode alguma coisa externa ser minha ou tua.” (KANT, 2003 p. 101).

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pelas principais vertentes da teoria positivista; b) o legalismo hermenêutico192 exacerbado; e

c) a pretensão de cientificidade almejada pelo positivismo jurídico, impediram a teoria

jurídica de refletir de modo mais profundo sobre o problema de sua sincronia em relação ao

tempo social. Pelo contrário, sob os auspícios do positivismo jurídico, o direito se tornou

ainda mais autônomo em relação às figuras temporais. O principal efeito dessa indiferença em

relação à sincronia temporal foi a adoção de uma concepção instantaneísta do direito (OST,

2005a), cujo principal efeito é o presentismo (KIRSTE, 2007). O instantaneísmo, segundo Ost

(2005), seria a propriedade que norma jurídica possui de se inscrever ao abrigo do transcurso

do tempo e, por tal razão, adquirir um sentido de dever ser imutável e eterno dentro do quadro

normativo de um determinado ordenamento jurídico. Isto se daria porque a cada instante de

interpretação e aplicação da norma jurídica, o sentido original da norma surgiria com tamanho

vigor que produziria o efeito concreto de se impedir qualquer atualização em relação ao

momento histórico atual – e, portanto, ao tempo social –, eternizando o sentido verificado na

época de sua criação193. O presentismo, por sua vez, seria o efeito temporal decorrente do

instantaneísmo: em razão de um apego excessivo ao teor imutável da legislação, produzir-se-

ia uma perpetuação do instante presente sem uma referência ao passado ou ao futuro

(KIRSTE, 2007)194.

O tópico se iniciará com uma apresentação das origens e das características gerais da

teoria positivista para, em seguida, se analisar como o raciocínio jurídico sustentado por

algumas das principais vertentes produz os efeitos temporais acima descritos.

3.3.1 Origem e características gerais do positivismo jurídico

O positivismo jurídico consiste em uma teoria abrangente sobre o direito que reúne

sob esta nomenclatura uma ampla gama de concepções sobre a natureza da atividade jurídica

e seu respectivo método interpretativo – as chamadas ‘escolas’ de pensamento. Essas

concepções têm em comum o fato de que atribuem exclusivamente às normas instituídas pelo

poder político instituído (o Estado Moderno) a qualidade de ‘válidas’, isto é coercitivamente

vinculantes para as pessoas. Para os juspositivistas, portanto, somente as normas que provêm 192 Denomina-se aqui legalismo hermenêutico a postura interpretativa segundo a qual o alcance e o significado

de uma norma jurídica se limitam aos sentidos imediatos, sejam eles vulgares ou técnicos, encontrados nos textos legislativos.

193 Essa concepção teria por corolário a ideia difundida na comunidade jurídica de que as questões de injustiça da norma são questões de política legislativa, isto é, o direito somente alteraria o seu teor por meio de uma alteração no conteúdo literal de sua expressão legislativa.

194 Esses dois conceitos – instantaneísmo e presentismo – serão abordados de modo mais aprofundado no próximo capítulo.

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das ‘fontes’195 do direito estatal seriam capazes de obrigar juridicamente as pessoas por meio

de uma ameaça coativa. As demais normas que não compartilham essa condição, como as

normas morais ou do convívio social, serviriam para impor deveres de outra natureza que não

‘jurídicos’ propriamente ditos.

Essa premissa inicial tem por consequência o fato de que os juspositivistas sustentam

que o meio privilegiado para a cognição das normas jurídicas está no quadro de fontes

emanado ou reconhecido pelo Estado como apto a valer juridicamente – as denominadas

fontes formais de criação do direito. Desse modo, o campo de atuação dos juristas teóricos e

práticos que se dedicam à interpretação do direito ficaria circunscrito aos estritos limites do

direito positivo, sob pena de se emitir um juízo incorreto ou errôneo sobre como algo poderia

valer ‘como’ direito. A teoria positivista nega, portanto, as bases do jusnaturalismo, uma vez

que não admite que a validade do direito positivo esteja condicionada ao teor de regras não

previstas no próprio direito legislado. Padrões normativos racionalmente superiores

encontrados nas ordens metafísicas de uma lei natural ou nos costumes normativos arraigados

na tradição religiosa e social não seriam, por seu conteúdo apenas, parte integrante do direito.

Faltar-lhes-ia o atributo da ‘validade’ que, pela teoria positivista, somente poderia ser

estabelecido por critérios estipulados pelo próprio ordenamento jurídico vigente196.

Por consequência, os positivistas negam haver um conjunto de prescrições jurídicas de

conteúdo universal e atemporal que conferiria direitos subjetivos a toda a humanidade. Pelo

contrário, o positivismo jurídico abraça o relativismo cultural da humanidade, uma vez que

confina a justiça a sua respectiva conformação dentro do universo político-cultural de sua

aplicação: os diversos Estados Nacionais existentes. Nesse sentido, um dos principais

aspectos do direito na teoria positivista é a sua contingência, isto é, o fato de que o teor da

justiça poderá variar de conteúdo dentro de cada um dos diferentes ordenamentos jurídicos

existentes no tempo e no espaço. Desde que possua um conteúdo minimamente lógico dentro

do sistema de normas que forma o ordenamento jurídico, qualquer norma poderá valer, em

tese, como direito. Afinal, para os positivistas a distinção entre uma norma ‘jurídica’ e ‘não-

jurídica’ depende apenas de critérios formais e materiais estabelecidos pelo próprio direito.

195 ‘Fonte’ do direito é um termo empregado na propedêutica jurídica cuja finalidade é ensinar ao estudante de

direito a origem e o manancial das normas jurídicas. 196 Nesse sentido, uma das principais características do positivismo jurídico é o formalismo, isto é, qualquer

conteúdo pode ser, em tese, objeto de norma jurídica, desde que atenda às exigências formais do ordenamento jurídico localizado espacial e temporalmente. A teoria juspositivista abandona, assim, a exigência de um conteúdo material pré-determinado para o direito positivo. Por tal característica, Adeodato (2002) dirá que o direito positivo, sob os auspícios do juspositivismo, se torna auto-referente.

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Parte das bases da ideologia positivista – em especial o ‘convencionalismo’197 quanto

à ontologia do direito – já se encontrava presente no pensamento antigo. Inicialmente com os

sofistas198 e, posteriormente, com os céticos do período helenístico199, nesses círculos de

pensamento compartilhava-se uma forte crença de que a justiça e a lei se assentavam na

utilidade e na força dos governantes (POSNER, 2007). Contudo, seja por sua manifesta

incompatibilidade com os dogmas ortodoxos do pensamento cristão, seja pela própria

organização político-jurídica do mundo feudal, a teoria positivista foi abandonada do ideário

político medieval. O positivismo jurídico somente voltou a ocupar o centro do debate político

na baixa Idade Média. Uma das mais importantes contribuições para o florescimento da teoria

197 O convencionalismo é uma posição filosófica abrangente e é definida como: “The view that human

conventions rather than independent realities or necessities shape our basic concepts of the world, scientific theories, ethical principles, and the like. On this view, scientific laws and theories are conventions or postulates, rather than absolute and independent. They depend on our choices from among alternative ways of organizing and explaining experience. Human arrangements are the measure and final source of their authority.” (BUNNIN; YU, 2004, p. 142-143). (Tradução nossa: “A concepção de que teorias científicas, princípios éticos, e mais são convenções humanas, e não realidades independentes ou formas necessárias de nossos conceitos básicos sobre o mundo. Desse ponto de vista, leis científicas e teorias são convenções ou postulados, mais do que absolutos e independentes. Eles dependem de nossas escolhas dentre modos alternativos de organização e explicação da experiência. Arranjos humanos são a medida e a fonte final de sua autoridade.”). Desse modo, princípios morais e de justiça somente existiriam a partir de convenções humanas explícitas ou tácitas em uma determinada cultura ou sociedade. A moral – da mesma maneira que o direito – nasceria de um acordo social que estipula uma utilidade para certos comportamentos dentro da sociedade. Ter-se-ia, desse modo, um padrão objetivo para o posterior julgamento do comportamento das pessoas, que somente poderia ser feito em referência à convenção. O convencionalismo jurídico endossa, pois, a premissa de que não existiria direito sem uma prévia convenção humana que o estabeleça (DWORKIN, 2003).

198 “A oposição radical entre physis e nomos quebra toda a tradição do pensamento grego até à época dos sofistas. É, como diz Jaeger, uma concepção orgânica que os antigos gregos tinham da physis. A natureza não era algo acidental, o mundo e suas coisas tinham uma certa ordem, cada coisa tinha lugar nesse cosmos. Havia aí um certo equilíbrio presidido pela diké. A lei se inseria nesse todo. Com os sofistas, essa concepção harmônica do mundo, ou orgânica, está abandonada. Uma coisa é o mundo dos fenômenos naturais, outra, bem distinta, é o da convivência social, do humano. As leis dos homens são completamente destituídas de qualquer validade intrínseca, (Hipias) pois não guardam nenhuma relação com a natureza, que em toda parte é a mesma. Se devemos obedecer às leis da cidade é tão somente para evitarmos os castigos; dessa forma, sempre que for possível, devemos desobedecê-las em nosso próprio proveito. Instaura-se o utilitarismo na filosofia do direito. Desgarrados do próprio ser do mundo, a lei e o direito são agora joguetes nas mãos dos mais fortes. A lei não guarda mais relação com o cosmos, e o direito – diké – já não é uma repartição natural daquilo que pertence a cada um, pois não há uma harmonia na cidade e, sim, regras ou normas puramente convencionais.” (BORGES, 1999, p. 40).

199 “Pirrón niega que existan valores por naturaleza, es decir, existentes por si mismos. No hay nada ni honesto ni deshonesto, ni justo ni injusto. Los hombres actúan siempre en virtud de la ley o de la costumbre ‘Lo que para algunos es justo, para otros es injusto’: los persas consideran lícito cohabitar con las hijas, los massagetos tienen las mujeres en común, los silicenses consideran lícito el bandolerismo. No existe, por tanto, bien o mal por naturaleza, por lo que tanto en relación a la verdad como en relación a los valores morales, al sabio no le es posible sino la abstracción del juicio (epoché)” (FASSÓ, 1982, p.84-85) (Tradução: “Pirro nega que existam valores por natureza, a saber, existentes por si mesmos. Não há nada nem honesto, nem desonesto, nem justo, nem injusto. Os homens atuam sempre em virtude da lei ou do costume. ‘O que para alguns é justo para outros é injusto’: os persas consideram lícito dormir com as filhas, os massagetos compatrilham as mulheres, os silicenses consideram lícito o bandoleirismo . Não existe, portanto, bem ou mal por naturaza, tanto em relação à verdade, como em relação aos valores morais, e ao sábio não é possível senão a abstração do juízo.”).

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positivista na era moderna veio nesse período, com o desenvolvimento do voluntarismo200 por

Duns Scot e, posteriormente, Guilherme de Ockham. A importância das teorias voluntaristas

para o desenvolvimento do positivismo jurídico se deve ao fato de que, em primeiro lugar,

elas negam a ideia de que as questões morais do comportamento humano sejam meramente

cognitivas e que as faculdades morais do homem se aprimorariam com o exercício do

intelecto. Outra importante contribuição do voluntarismo foi transferir o problema da justiça

para o teor do direito positivo, exigindo do direito o seu respaldo no poder político terreno.

Duns Scot ilustra essa ideia ao considerar imprescindível à lei positiva a sua origem na

vontade do soberano:

Mas decorre ainda uma quarta conclusão, ou seja, a de que a lei positiva pressupõe prudência e autoridade por parte do legislador. Prudência, para que possa definir o que é necessário fazer para a comunidade, baseado na justa razão. Autoridade, porque a lei deve unir: contudo, não é qualquer sentença de um homem prudente que liga a comunidade, ou qualquer um de seus membros, se esse mesmo homem prudente não a preside. (SCOT, In : GRZEGORCZYK ; MICHAUT ; TROPER, 1993 p. 286-287, tradução nossa). 201

200 “Voluntarism is the theory that God or the ultimate nature of reality is to be conceived as some form of will

(or conation). This theory is contrasted to intellectualism, which gives primacy to God's reason. The voluntarism/intellectualism distinction was intimately tied to medieval and modern theories of natural law; if we grant that moral or physical laws issue from God, it next needs to answered whether they issue from God's will or God's reason. In medieval philosophy, voluntarism was championed by Avicebron, Duns Scotus, and William of Ockham. Intellectualism, on the other hand, is found in Averroes, Aquinas, and Eckhart. The opposing theories were applied to the human psychology, the nature of God, ethics, and the heaven. According to intellectualism, choices of the will result from that which the intellect recognizes as good; the will itself is determined. For voluntarism, by contrast, it is the will which determines which objects are good, and the will itself is indetermined. Concerning the nature of heaven, intellectualists followed Aristotle's lead by seeing the final state of happiness as a state of contemplation. Voluntarism, by contrast, maintains that final happiness is an activity, specifically that of love. The conceptions of theology itself were polarized between these two views. According to intellectualism, theology should be an essential speculative science; according to voluntarism, it is a practical science aimed at controlling life, but not necessarily aimed at comprehending philosophic truth.” (FIESER; DOWDEN, 1998). (Tradução nossa: “Voluntarismo é a teoria de que Deus ou a última natureza da realidade deve ser concebida como alguma forma de vontade (ou conato). Essa teoria se contrasta ao intelectualismo, que dá primazia à razão de Deus. A distinção voluntarismo / intelectualismo estava intimamente atrelada às teorias medievais e modernas do direito natural; se tomamos por certo que leis morais ou físicas são emanadas de Deus, o que em seguida precisa ser respondido é se elas emanam da razão de Deus ou da vontade de Deus. Na filosofia medieval , o voluntarismo foi encampado por Avicebron, Duns Scot e Guilherme de Ockham. Intelectualismo, por outro lado, é encontrado em Averróis, Tomás de Aquino e Eckhart. As teorias opostas foram aplicadas à psicologia humana, à natureza de Deus, à ética e aos céus. De acordo com o intelectualismo, escolhas da vontade são resultado daquilo que o intelecto reconhece como bom; a vontade, ela mesma, é determinada. Para o voluntarismo, em contraste, é a vontade que determina que objetos são bons e a vontade ela mesma é indeterminada. Segundo a natureza do céu, os intelectualistas seguiram o caminho de Aristóteles por verem o estado último da felicidade como um estado de contemplação. O voluntarismo, ao contrário, sustenta que a felicidade última é uma atividade, especificamente aquela do amor. As concepções da teologia elas próprias ficaram polarizadas entre essas duas visões. De acordo com o intelectualismo, a teologia deveria ser uma ciência especulativa; de acordo com o voluntarismo, é uma ciência prática voltada para controlar a vida, mas não necessariamente destinada à compreensão da verdade filosófica.”).

201 Il y a donc une quatriène conclusion, à savoir: que la loi positive requiert dans le législateur prudence et autorité. Prudence afin qu’il dicte ce qu’il faut faire pour la communauté selon la droite raison. Autorité, car

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A influência do voluntarismo de Scot e Ockham levou Marsílio de Pádua a defender

uma posição radicalmente antagônica em relação a seu confrade Santo Tomás de Aquino

quanto à origem, natureza e validade do direito. A partir de uma radical distinção entre as

questões teológicas e humanas, Marsílio sustentou a independência do direito positivo em

relação a qualquer outra ordem metafísica que lhe impusesse um conteúdo determinado:

O Estado já não é para Marsílio o império universal, mas sim o reino nacional e o Município ou o Principado, como se vinham constituindo além dos Alpes e na Itália meridional os primeiros e na Itália do Norte e do Centro os segundos. Para ele o Estado está completamente desvinculado de qualquer pressuposto teológico, já que é uma obra humana e com fins unicamente humanos. Marsílio não se preocupa com os fins sobrenaturais, uma vez que a vida mundana não é suscetível de tratamento filosófico. Ademais a postura geral de Marsílio na filosofia é muito distinta da de Santo Tomás, apesar de sua base comum aristotélica. Pois enquanto Santo Tomás havia se esforçado em conciliar fé e razão, fazendo de ambas um único sistema de verdade e, ainda, reconhecendo um plano próprio de autonomia à razão – assim como em nosso âmbito, ao Direito e ao Estado – ele havia ainda situado em um plano sempre mais elevado a fé, as virtudes teologais e a Igreja mesma. Marsílio, averroísta, não hesitou em separar a fé da razão, e fez com que esta não devesse estar relacionada à religião e à Igreja, postergando, inclusive, a esta última, uma vez que que se refere à vida mundana, o Estado. (FASSÓ, 1982, Vol. II, p. 210, tradução nossa). 202

Seguindo os passos de Scot, Marsílio também atribuiu à lei a condição de preceito ou

ordem coativa, em substituição à concepção tomista de que a lei seria apenas uma medida de

referência para a conduta humana203. Em sua filosofia já era possível identificar o fundamento

la loi vient de lier : mais ce n’est pas n’importe quelle sentence d’un prudent qui lie la communauté, ni quelqu’un de ses membres, si ce prudent ne la préside pas.

202 El Estado ya no es para Marsilio el imperio universal, aunque sí el regnum nacional y el Municipio o la Señoría, como se habían venido constituyendo, transalpino y en la Italia meridional el primero, y en la Italia del Norte y del Centro los segundos. Para él, el Estado está completamente desvinculado de cualquier presupuesto teológico, ya que es una obra humana con unos fines únicamente humanos. Marsilio no se preocupa de los fines sobrenaturales, puesto que la vida no mundana no es susceptible de tratamiento filosófico. Por lo demás, la postura general de Marsilio, en filosofía, es muy distinta de la de Santo Tomás, a pesar de su común base aristotélica. Pues mientras Santo Tomás se había esforzado en conciliar fe y razón, haciendo de ambas un único sistema de verdad, y aun reconociendo un plano propio de autonomía a la razón – asé como en nuestro ámbito, al Derecho y al Estado –, había situado en un plano siempre más elevado a la fe, a las virtudes teologales y a la misma Iglesia. Marsilio, averroísta, no duda en separar la fe de la razón, no teniendo nada en consideración a la religión y a la Iglesia, e incluso postergando a ésta última, por lo que se refiere a la vida del mundo, al Estado.

203 “Pero, además, y más que un criterio lógico para distinguir lo justo de lo injusto, para Marsilio la ley es un mandato. En definitiva, propiamente hablando, la ley es lo que impone, a través de un precepto coactivo, una pena o un premio que se han de realizar en este mundo. En esta definición se notará que falta toda referencia al contenido ético de la ley. La ley positiva humana no sólo no tiene ningún nexo con la ley divina, sino tampoco con él Derecho natural o racional, del cual, por cierto, Marsilio no nos habla aquí. Del mismo modo que no pueden considerarse como leyes, propiamente dichas, las nociones acerca de lo justo y de lo útil que no vayan acompañadas de preceptos coactivos, igualmente puedan llegar a ser leyes, también, nociones falsas de lo justo y útil que asumen la forma de un precepto coactivo (si bien no pueden llamarse leyes perfectas)” (FASSÓ, 1982, Vol. II, p. 211) (Tradução nossa: “Mas, além disso, e mais do que um critério lógico para distinguir o justo do injusto, para Marsílio a lei é uma ordem. Em definitivo, propriamente falando, a lei é o

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da teoria dos comandos imperativos, posteriormente utilizada pela jurisprudência inglesa para

fundar o positivismo analítico e contribuir enormemente para o desenvolvimento do

positivismo jurídico nos países da Common Law.

Contudo, o positivismo jurídico, enquanto teoria sobre o direito, somente pôde

florescer a partir de condições históricas específicas que se reuniram no início da era

moderna. O fator que mais se destacou como imprescindível para o desenvolvimento do

juspositivismo foi a centralização do poder político nos Estados Nacionais. Na sociedade

medieval havia uma pluralidade de centros de poder difusos na sociedade que impedia a

organização de uma estrutura legiferante homogênea e vinculante a toda sociedade

(HESPANHA, 2005). Por essa razão, não havia hierarquia, nem harmonia entre as fontes do

direito e os juristas se viam forçados a recorrer ao raciocínio retórico como elemento de

integração das diversas fontes normativas. Com isso, a concepção que os juristas medievais

tinham do direito permitia uma ampla abertura à introdução de elementos normativos ‘não-

legislados’ no processo de integração e argumentação jurídica, como é o caso do direito

natural, dos costumes, dos mandamentos religiosos e da própria moral. Por essa razão,

somente os teóricos políticos do início da modernidade poderiam ter dado os primeiros passos

em direção à elaboração de uma teoria positivista sobre o direito. Afinal, eles precisavam

explicar o status do direito nesse novo arranjo político em que o poder político passou a ser

monopolizado por uma estrutura profissional de organização social (BOBBIO, 1995).

Outra condição importante para o desenvolvimento do positivismo jurídico foi a

percepção de que o exercício do poder político cada vez menos se vinculava a uma

moralidade derivada de uma visão de mundo religiosa. Isso tornou o direito paulatinamente

autônomo e indiferente em relação a prescrições morais de origem religiosas que pudessem

ser vistas como comportamentos superiores que, por essa razão, viessem a limitar o conteúdo

da lei positiva. Marsílio de Pádua desenvolveu esse tópico e argumentou que a Igreja consistia

em uma instituição de crucial importância na formação educacional e na organização da vida

civil comunitária em torno da fé cristã. Entretanto, ela não teria o poder de coagir fisicamente

as pessoas a se comportarem de uma determinada maneira, já que as prescrições religiosas

apenas vinculariam o homem em seu interior. A regulamentação da conduta externa do

que se impõe por meio de um precepto coativo, uma pena ou um prêmio que devem se realizar neste mundo. Nesta definição se notará que falta toda referência ao conteúdo ético da lei. A lei positiva humana não só não tem nenhum nexo com a lei divina, como tampouco com o Direito Natural ou Racional, do qual, por certo, Marsílio não nos fala aquí. Do mesmo modo que não podem ser consideradas como leis, propriamente ditas, as noções acerca do justo e do injusto e do útil que não venham acompanhadas de preceptos coativos, igualmente podem chegar a serem leis, também noções falsas do justo e do útil que assumem a forma de um precepto coativo (se bem que não podem chamar-se de leis perfeitas).”).

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homem caberia ao Estado, cuja autoridade decorreria do poder secular conferido pelos

cidadãos. A legislação civil somente prestaria contas, portanto, em respeito a eles, não sendo

necessário que ela se vinculasse a um determinado conteúdo religioso204(COLEMAN, 2000).

De modo semelhante, Nicolau Maquiavel, ainda no início da modernidade, descreveu de

maneira bastante realista a condição do poder político nesse período. Seus conselhos sobre as

melhores formas de se alcançar e de perpetuar o poder político dispensavam o soberano do

pagamento de qualquer tributo a uma moralidade religiosa no desempenho de suas funções205.

Essa percepção de que o direito não se prestaria à realização de nenhum fim superior

específico permitiu que Thomas Hobbes resgatasse uma ideia já desenvolvida entre os

romanos e que se tornaria o corolário lógico da ausência de vinculação do direito a qualquer

espécie de moral: quod principi placuit, legis habet vigorem206. Ao identificar a lei com a

vontade do soberano, Hobbes sublinhou duas características essenciais da teoria positivista

sobre o direito que são o imperativismo207 e o formalismo. O imperativismo sustenta que o

direito se caracteriza pelo fato de suas regras se apresentarem sob a forma de comandos que

expressam a vontade do soberano representante do povo. Já o formalismo sustenta que o

direito não se define por um fim ou por um conteúdo específico, mas apenas por um elemento

formal que é a sua origem na vontade do soberano (BOBBIO, 1995).

204 Esse argumento foi utilizado por Marsílio para sustentar que as leis canônicas somente tivessem validade no

interior da Igreja, não sendo concebível que as mesmas fossem vinculantes como as leis civis. 205 “Certamente O Príncipe é sobre o poder – a sua aquisição, manutenção e utilização – isso não se pode negar;

e esse enfoque do poder leva Maquiavel a romper com a moralidade tradicional. Maquiavel não faz a apologia do fato de que a posse do poder exige atos que não são congruentes com a moralidade cristã, mas não gasta tempo lamentando que o príncipe algumas vezes, talvez a maior parte do tempo, terá de agir de um modo não cristão. Ele não se tortura pelo mal que é necessário para um governante eficaz, nem oferece ao suposto governante cristão um manto de virtudes cristãs que oculte a traição, o assassinato, a dissimulação e outros atos condenados pela moral do cristianismo; em vez disso, ele argumenta que os atos necessários para os fins políticos exigem um rompimento com as ideias tradicionais de virtude e moralidade.” (CHISHOLM, 1998, p. 54).

206 O que agrada ao príncipe, tem força de lei. 207 “Hobbes’s account of civil law in Leviathan seems simple enough. He adopts what is sometimes referred to

as command theory of law. According to this theory laws arise as commands: ‘it is manifest that law in general is not counsel [i.e. advice], but command’. The identity works both ways, so that anything which counts as law must have been commanded by the sovereign, while whatever the sovereign commands thereby counts as law. The central contrast here is between law, which commands us to do or to refrain from doing things, and advice or ‘counsel’. (…) Commands, unlike advice, must be obeyed. If the person who receives advice ignores it, he or she does so at his or her own risk; for this reason, advice (or ‘counsel’) cannot be punished.” (NEWEY, 2008, p. 125). (Tradução: “A descrição de Hobbes da Lei civil no Leviatã parece muito simples. Ele adota o que às vezes se refere como teoria do comando legal. De acordo com essa teoria as leis se apresentam como comandos: ‘é manifesto que a lei em geral não é um conselho, mas um comando’. A identidade funciona para ambos os lados, de tal modo que qualquer coisa que conte como lei precise ser comandada pelo soberano, enquanto qualquer coisa que o soberano comande conte como lei. O contraste central aqui é entre lei, que nos comanda a fazer ou estar impedidos de fazer coisas e os conselhos. Comando, à diferença de conselhos, devem ser obedecidos. Se a pessoa que recebe conselhos os ignora, ele ou ela o faz por sua conta e risco; por essa razão, o conselho não pode ser punido”.) A teoria do direito como um comando seguiu uma longa tradição na jurisprudência inglesa, de Bentham, passando por Austin até Hart, e constituiu o fundamento do positivismo analítico.

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Não menos importante, um terceiro fator crucial para a ascensão da teoria positivista

foi a doutrina da separação dos poderes desenvolvida no seio do movimento iluminista.

Elaborada inicialmente pelo Barão de Montesquieu, a teoria da separação dos poderes do

Estado rapidamente se difundiu nas constituições burguesas formadas após as revoluções

políticas que colocavam fim aos regimes absolutistas. Com ela, a organização do poder

político ganhou maior profissionalismo, já que substituía a figura do rei absolutista que

concentrava as competências de legislador, administrador e juiz supremo por órgãos

especializados no desenvolvimento de cada uma dessas funções estatais. Ademais, os

respectivos poderes passaram a ser desenvolvidos com relativa independência e soberania uns

em relação aos outros208. Com a implementação efetiva da doutrina da separação dos poderes

enquanto axioma fundamental da organização constitucional moderna, a legislação ganhou

forte destaque enquanto expressão política do Estado moderno. Afinal, a lei foi identificada

com a vontade geral (Rousseau) e representava a autonomia da soberania popular. Com isso,

o material jurídico à disposição dos juízes para a aplicação do direito foi drasticamente

reduzido ao direito legislado, já que, ao poder judiciário, seria vedado questionar ou

descumprir os mandamentos legais dele emanados, sob pena de ferir a vontade popular e

romper o equilíbrio entre os poderes estatais209. Com isso a teoria da separação dos poderes

consolidou ainda mais o dogma do legalismo, uma característica essencial à teoria positivista

segundo a qual a legislação positiva escrita seria a fonte suprema e hierarquicamente mais

elevada do ordenamento jurídico. Para os juristas, as leis passaram a ser vistas como‘dogmas’

na interpretação e na aplicação do direito pelo jurista.

Consequência imediata do legalismo foi o emprego do silogismo como forma

privilegiada de raciocínio jurídico. O direito deveria assumir ao máximo o formato de um

208 “Fue de este marco de confianza en la en la constitución inglesa, quizá un poco idealizado ‘como la que tiene

por fin directo la libertad’, donde deriva Montesquieu el modelo al que se referirán los teóricos y políticos liberales de finales de los siglos XVIII y XIX, inspirando las cartas constitucionales de los Estados que vendrían a poner término e sustituir al absolutismo; y donde el principio de la división de poderes, versión moderna y jurídicamente precisada de la antigua teoría del Estado mixto, la cual miraba igualmente lograr el equilibrio entre los distintos elementos del Estado para evitar el predominio de uno de ellos, fue asumido, a veces con una confianza excesiva acerca de la posibilidad efectiva de actuación, como el principio esencial del Estado constitucional.” (FASSÓ, 1982, Vol. II, p. 201). (Tradução: “Foi deste marco de confiança na constituição inglesa, talvez um pouco idealizado ‘como a que tem por fim direto a liberdade’, de onde Montesquieu deriva o modelo a que se referem os teóricos e políticos liberais dos séculos XVIII e XIX, inspirando as cartas constitucionais dos Estados que vieram a por fim e substituir o absolutismo; e de onde o princípio da divisão dos poderes, versão moderna e jurídicamente acabada da antiga teoria do Estado misto, o qual mirava igualmente alcançar o equilíbrio entre os distintos elementos do Estado para evitar o predomínio de um deles, foi assumido, às vezes, com uma confiança excessiva acerca da possibilidade efetiva de atuação como o princípio essencial do Estado Constitucional.”).

209 A conjunção entre a teoria da separação dos poderes e o desenvolvimento da ideia de que a democracia seria a forma mais adequada de governo no mundo moderno aprofundou ainda mais a visão de que a lei expressaria a vontade popular e que, portanto, os juízes estariam proibidos de julgar em contrariedade a ela.

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discurso lógico-dedutivo em que as soluções para os casos concretos derivariam diretamente

das premissas legais que se prestariam a orientar o enquadramento a ser feito pelo

intérprete210. Cesare Beccaria (1959, p. 37-38) ilustrou essas duas características da

interpretação jurídica ao alertar para os efeitos da ampla liberdade do magistrado na

interpretação das leis penais:

Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções; essas velhas convenções são nulas, pois não puderam ligar vontades que não existiam. Não se pode sem injustiça exigir sua execução; seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei. Qual será, pois o legítimo intérprete das leis? O soberano, isto é, o depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis. O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro. Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões (BECCARIA, 1959, p. 37-38).

O que se percebe, portanto, é que, apesar do antagonismo existente entre

jusnaturalismo e positivismo, ambas as teorias comungavam do mesmo recurso ao raciocínio

geométrico de matriz lógico-dedutiva como o método apropriado de interpretação e aplicação

do direito. Em ambas se verifica a tentativa de transferir para o direito a objetividade e a

sistematicidade da matemática, pretendendo-lhe atribuir o status de um conhecimento digno

de relevância científica. Essa proposta acabou trazendo ao direito um efeito temporal que é o

de sua fixação a um determinado ‘momento’ estabelecido seja pela premissa legal, seja por

seu sentido cristalizado em conceitos construídos pela doutrina. Consequentemente, o

resultado foi a impossibilidade da evolução interpretativa dentro de um mesmo marco

legislativo. Com isso, apesar de aberto ao relativismo cultural e de contingente e mutável em

relação ao conteúdo do direito, o positivismo jurídico acabaria padecendo da mesma

característica verificada no jusnaturalismo: construiu para o direito uma imagem atemporal e

ignorou qualquer esforço no sentido de sincronizá-lo com o tempo social.

210 O desenvolvimento dessa característica do positivismo levou a jurisprudência alemã a desenvolver a teoria do

Tatbestand, traduzida para a língua portuguesa como teoria do tipo. Por tal teoria, a linguagem jurídica se expressaria por meio de fatos típicos aos quais, uma vez realizados no mundo concreto, despertariam uma determinada consequência jurídica, também prevista pelo próprio direito. Somente os comportamentos que exaurissem a descrição prevista no tipo legal poderiam levar a efeito a consequência jurídica a eles atrelada, o que ressalta a primazia da lei como esquema de interpretação da realidade.

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O último elemento responsável pela consolidação da hegemonia da teoria positivista

na comunidade jurídica foi o advento do discurso cientificista que se verificou durante toda a

era moderna. Seu ápice foi o positivismo filosófico211 de Augusto Comte212. Essa doutrina

nasceu de uma proposta epistemológica segundo a qual a evolução do conhecimento

científico culminaria em uma prática científica que se limitaria a qualificar de ‘ciência’ apenas

aqueles saberes que pudessem ser corroborados por uma realidade empírica, isto é, positiva.

Desse modo, o positivismo científico descartaria do discurso científico toda e qualquer forma

de saber proveniente da especulação metafísica. Da perspectiva do positivismo filosófico, a

doutrina do Direito Natural era vista como ‘mística’ ou ‘sobrenatural’ por sua impossibilidade

de mensuração ou comprovação no mundo real. Sob o prisma do positivismo filosófico,

apenas a teoria juspositivista seria a expressão de um conhecimento lastreado em objetos com

211 O positivismo jurídico não se confunde com o positivismo filosófico nem possui raízes neste. A expressão

‘positivo’, no positivismo jurídico, está relacionada ao direito ‘posto’, estatuído por meio de uma organização política vigente em um determinado grupo social. Já a expressão ‘positivo’, no positivismo filosófico, está relacionada à ideia de ‘ciências positivas’, que se contrapõem às ‘ciências metafísicas’ por estudarem objetos que podem ser mensurados e comprovados por meio de dados observáveis na realidade. Nesse sentido, as teses do positivismo jurídico são bem anteriores às do positivismo filosófico.

212 “En su sentido más estricto y de acuerdo con su significado más propiamente histórico, positivismo designa, por lo pronto, la doctrina y la escuela fundadas por Auguste Comte. Esta doctrina comprende no sólo una teoría de la ciencia, sino también, y muy especialmente, una reforma de la sociedad y una religión. Precisamente la acentuación de uno u otro de tales factores fue lo que decidió el ulterior destino de la escuela: para algunos, el positivismo era una doctrina del saber; para otros, era una norma para la sociedad y una regla de vida para el hombre. En general, ambos rasgos del positivismo permanecieron mezclados a lo largo del siglo XIX. Sin embargo, desde el punto de vista estrictamente filosófico ha sido la consideración positivista del saber lo que ha predominado y lo que se ha extendido hasta nuestros días. De ahí que muchas veces se designe como positivismo todo un conjunto de tendencias que surgieron en parte como reacción frente a la filosofía romántica especulativa (idealismo alemán postkantiano, teísmo especulativo, etc.) y que se reafirmaron en cada uno de los instantes en que se quiso revalorizar el saber filosófico sin recurrir a ninguna de las corrientes metafísicas ya tradicionales. Desde este ángulo se han considerado como positivistas muchas doctrinas diversas: no sólo, naturalmente, el comtismo, sino también buena parte de las corrientes filosóficas características de la segunda mitad del siglo XIX: utilitarismo, sensualismo, materialismo, economismo, naturalismo, biologismo, pragmatismo, etc. En cierto modo, todas estas tendencias participan de un común supuesto positivista.” (FERRATER MORA, 1965, p. 455-456). (Tradução nossa: “Em seu sentido mais estrito e de acordo com seu significado mais propriamente histórico, positivismo designa, de pronto, a doctrina e a escola fundadas por Augusto Comte. Esta doutrina compreende não só uma teoria da ciência, como também, e muito especialmente, uma reforma da sociedade e uma religião. Precisamente, o acento em um ou outro de tais fatores foi o que decidiu o ulterior destino da escola: para alguns, o positivismo era uma doutrina do saber; para outros, era uma norma para a sociedade e uma regra de vida para o homem. Em geral, ambos os traços do positivismo permaneceram mesclados ao largo do século XIX. Não obstante, do ponto de vista estritamente filosófico tem sido a consideração positivista do saber o que tem predominado e o que se tem estendido até nossos dias. Daí que muitas vezes se designe como positivismo todo um conjunto de tendências que surgiram em parte como reação frente a filosofia romântica especulativa (idealismo alemão pós-kantiano, teísmo especulativo, etc…) e que se reafirmaram em cada um dos instantes em que se quis revalorizar o saber filosófico sem recorrer a nenhuma das correntes metafísicas já tradicionais. Deste ângulo se tem considerado como positivistas muitas doutrinas diversas: não apenas, naturalmente, o comtismo, mas também boa parte das correntes filosóficas características da segunda metade do séc. XIX: utilitarismo, sensualismo, materialismo, economismo, naturalismo, biologismo, pragmatismo, etc… De certa maneira, todas essas tendências compartilham de um pressuposto comum positivista.”).

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correspondência na realidade213. Afinal, os ordenamentos jurídicos emanados do poder

político estatal se apresentariam como dados objetivos brutos e fariam das leis e decisões

judiciais um objeto de estudo sobre o qual o jurista poderia construir um saber descritivo e

neutro da realidade normativa a partir de um método de investigação de natureza lógico-

matemática. Visto sob esta perspectiva, o direito poderia contar com a objetividade necessária

ao discurso científico e, assim, assumir o status de ciência.

Essas quatro características deram a tônica da teoria juspositivista ao longo dos

séculos XIX e XX. No tópico seguinte apresentar-se-á uma breve evolução das principais

escolas que contribuíram para a consolidação do discurso positivista na teoria jurídica e sua

proposta de fazer do direito um saber científico. Paralelamente, buscar-se-á demonstrar de que

maneira a hermenêutica jurídica adotada por cada uma das escolas do pensamento jurídico

contribuiu para a consolidação da concepção instantaneísta do direito da qual padece o

positivismo.

3.3.2 Os métodos interpretativos desenvolvidos pela hermenêutica jurídica como elementos

responsáveis pela blindagem do direito em relação ao tempo

Muito embora as condições que levaram à predominância do discurso positivista na

comunidade jurídica tenham sido responsáveis por produzir uma concepção instantaneísta do

direito, no presente tópico pretende-se demonstrar que essa autonomia do direito em relação

ao tempo social também foi reforçada pelas propostas metodológicas para a hermenêutica

jurídica defendidas pelas principais escolas que surgiram durante o auge do positivismo

jurídico nos séculos XIX e XX. Verificar-se-á que elas partem de um mesmo ponto de vista

sobre a tarefa da interpretação jurídica e esse traço comum foi responsável por eliminar o

problema temporal do campo de visão dos juristas teóricos e práticos. Seguindo a pista

deixada por Dworkin (2003), pretende-se demonstrar que a hermenêutica jurídica elegeu o

modelo conversacional como modus operandi do processo interpretativo das normas

jurídicas214 e que essa abordagem deixou o processo interpretativo atrelado à fonte emissora

de uma ‘ordem’ ou ‘comando’, impedindo, assim a evolução interpretativa do direito.

213 Não obstante, para o próprio Comte o Direito não se incluiria no rol dos ramos do saber considerados como

‘positivos’. Para Comte, a única ciência social válida seria a ‘Física Social’, que consistiria no estudo dos padrões do comportamento humano verificados na observação do grupo social.

214 O modelo conversacional seria uma atitude interpretativa em que o intérprete assume o papel de receptor de uma mensagem emitida pelo objeto de interpretação e sua tarefa consistiria em descobrir a intenção do emissor/falante nesse processo (DWORKIN, 2003).

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3.3.2.1 A hermenêutica romântica e a consolidação do modelo conversacional de

interpretação na tradição romano-germânica

O pensamento filosófico passou a se ocupar de maneira mais profunda do problema da

hermenêutica no início do séc. XIX. Com o movimento cultural do romantismo alemão, as

hermenêuticas bíblica e literária se viram libertadas das técnicas interpretativas dogmáticas

empregadas no período iluminista. Isso tornou a interpretação mais ‘livre’ e mais apegada à

literalidade do texto escrito e a sua inserção em um contexto histórico215 (GADAMER, 2004).

Assim, na abordagem hermenêutica teve cada vez mais destaque a ideia de que haveria um

elo entre o autor da obra (gênio), sua produção escrita (texto) e a unidade desses elementos

em um universo cultural (espírito). Um autor importante para o delineamento das bases desse

‘novo’ saber hermenêutico que estava em consolidação no século XIX foi Friederich

Schleiermacher. A partir dele, a hermenêutica deixou de ser um saber especializado de certas

disciplinas como a teologia ou a filologia e se tornou a ciência da compreensão em geral.

Em Schleiermacher (2003), a interpretação assumiria a forma de um diálogo entre o

autor de um texto e o seu ouvinte. A tarefa hermenêutica convidaria o intérprete a participar

de um trabalho de adivinhação em que deveria re-experimentar os processos mentais do autor

do texto. Para tanto, o intérprete precisaria seguir uma direção inversa daquela da criação da

obra.

O método advinhatório desenvolvido por Schleiermacher exigiria que o intérprete

adentrasse os meandros do texto e seguisse as pistas que reconstituiriam o estado mental ou

psíquico do autor. Com isso, permitir-se-ia capturar a sua intenção e, por meio dela, a revelar

o verdadeiro significado da obra de arte (PALMER, 1989). Segundo Schleiermacher (2003),

em todo texto haveria duas diferentes esferas: a esfera da linguagem e a esfera do pensamento

do autor. A tarefa hermenêutica se iniciaria, assim, com o desbravamento dessas duas esferas

por meio de respectivos momentos interpretativos, a saber, a interpretação gramatical e a

interpretação psicológica ou técnica (GRONDIN, 1999).

215 “A hermenêutica teve que começar a desvencilhar-se de todas as limitações dogmáticas e libertar-se para

alcançar o significado universal de um organon histórico. Isto ocorreu no século XVIII, quando homens como Semler e Ernesti reconheceram que, para compreender adequadamente a Escritura, pressupunha-se conhecer a diversidade de seus autores, e abandonar, por consequência, a unidade dogmática do cânon. Com essa ‘emancipação da interpretação do dogma’ (Dilthey), a reunião das Escrituras Sagradas da cristandade assume o papel de reunir fontes históricas que, na qualidade de obras escritas, devem se submeter a uma interpretação não somente gramatical, mas também histórica. A compreensão a partir do contexto do todo requer agora, necessariamente, também a restauração histórica do contexto de vida a que pertencem os documentos.” (GADAMER, 2004, p. 244-245),

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A interpretação gramatical consistiria no momento negativo e restritivo da

interpretação. Nele, o texto seria visto como um fato bruto, isto é, um dado à disposição do

intérprete. A principal função do texto seria delimitar o campo da interpretação possível

(PALMER, 1989), definindo, assim, o objeto da interpretação a partir do discurso expresso

por meio da linguagem. A primeira tarefa do intérprete seria, portanto, apreender de que modo

as regras gramaticais dariam constituição à língua, a fim de se inteirar de suas possibilidades

sintáticas e semânticas. Ao final, o intérprete seria capaz de capturar de que maneira a vontade

do autor teria se objetivado no texto216. Nesse empreendimento, o intérprete deverá lançar-se

no mundo em que viveu o autor para inteirar-se do ‘espírito’ (Geist) da língua no momento

em que o texto foi escrito. De posse desse contexto, o intérprete colocar-se-ia no lugar do

autor e intuiria um significado pressuposto às palavras e expressões. Com isso seria possível

apreender corretamente o significado sintático-semântico das expressões textuais encontradas.

Assim, diante da multiplicidade de usos possíveis para uma determinada expressão, o

intérprete conseguiria encontrar aquela singularidade própria pretendida pelo autor, definindo,

assim o exato sentido de uma expressão no texto interpretado217.

Enquanto a interpretação gramatical seria uma abordagem estritamente objetiva do

texto, que desconsideraria a singularidade do autor, o segundo momento interpretativo,

denominado de ‘técnico’ ou ‘psicológico’ completaria a interpretação por meio de um

procedimento inverso. Nessa etapa, o intérprete deveria se afastar da objetividade do texto e

identificar os elementos que recuperariam a subjetividade própria do discurso. Isso somente

seria possível por meio de uma investigação das características do autor e do momento

histórico em que viveu. Como toda expressão da linguagem traz consigo a marca impressa da

particularidade do seu autor, a apreensão integral do sentido de um texto somente se faria por

meio do conhecimento de sua individualidade. Portanto, far-se-ia necessário um resgate do

elo existente entre o pensamento do autor e sua obra de modo a revelar a sua originalidade.

Por meio da apreensão do estilo do autor, da comparação entre sua intuição geral sobre o tema

e suas apresentações específicas em cada parte, ou ainda por uma análise dos destaques e das

216“Ela [a interpretação gramatical] é, portanto, a arte de encontrar o sentido determinado pela linguagem e com

o auxílio da linguagem, de um determinado discurso. A primeira regra é: construir a partir do inteiro valor prévio da língua, comum ao escritor e ao leitor, e procurar somente neste a possibilidade de interpretação. (SCHLEIERMACHER, 2003, p.70)

217 “A principal tarefa da interpretação gramatical é, então, conforme o pressuposto conhecimento do significado, encontrar para cada caso dado o verdadeiro uso que o autor tinha em mente, evitando tanto os falsos, como também o muito e o pouco. Relembrar o princípio geral da relação da multiplicidade individual com a unidade, a saber, que não é alargamento ou derivação, mas apenas restrição do domínio do todo. Disto (segue-se) a regra geral para a interpretação gramatical, a saber, que a restrição é determinada pelo contexto.” (SCHLEIERMACHER, 2003, p.79).

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ênfases dadas em sua abordagem, seria possível tanto uma visão panorâmica do conjunto de

seu pensamento, quanto a identificação de uma unidade interna no tratamento dado ao tema

da obra (PALMER, 1989). Em seguida, a interpretação técnica deveria buscar a originalidade

na composição, isto é, o fato de que cada obra seria marcada por circunstâncias temporais,

culturais e pessoais que tornariam único o seu autor. Uma vez que cada obra é fruto de uma

subjetividade, caberia ao intérprete analisar a vida e o passado individual de cada autor, bem

como estudar as características do contexto cultural em que viveu a fim de reunir os

elementos responsáveis por tornar o autor e sua obra um episódio único e original na história

da literatura.

Reunidas, a interpretação gramatical e técnica se completariam para formar o método

‘divinatório’, pelo qual o intérprete consegue reconstruir o estado mental que guiou o autor na

elaboração de sua obra. O êxito nessa tarefa permitiria ao intérprete encontrar o significado

interpretativo da obra de arte na intenção criadora do autor. Desse modo, percebe-se como o

pensamento de Schleiermacher é a expressão de como o modelo de interpretação

conversacional se consolidou na hermenêutica do século XIX218, uma vez que a apreensão do

significado da obra de arte estaria diretamente relacionada à descoberta da intenção do autor

deduzida de seus elementos objetivos e subjetivos.

Em um dos primeiros estudos sistemáticos sobre a interpretação jurídica do direito

moderno – a Metodologia Jurídica de F. K. von Savigny – percebe-se a influência das

premissas do romantismo e, principalmente, do método interpretativo de Schleiermacher219.

Nesse pequeno texto, Savigny (2001) lançou as bases da interpretação do direito moderno e,

da mesma forma, deixou patentes os pressupostos do modelo conversacional na interpretação

jurídica220.

O ponto de partida de Savigny (2001) é o fato de que a lei é um instrumento à

disposição do Estado para pacificar as relações sociais entre os indivíduos. Se o Estado

permitisse que a arbitrariedade e a força privada fossem empregadas pelos particulares para

solucionar suas controvérsias, reinaria, por óbvio, a mais completa injustiça. Portanto, para

218 É certo que, com Dilthey, Gadamer e outros, a hermenêutica posteriormente veio a enfatizar cada vez mais o

papel e a importância do intérprete no processo interpretativo, mitigando o modelo conversacional e inclinando-se em direção ao modelo criativo de interpretação (DWORKIN, 2003).

219 Wieacker (1993) afirma que a hermenêutica de Schleiermacher, juntamente com a filosofia do romantismo alemão, exerceu grande influência sobre a filosofia de Savigny.

220 Mesmo após terem sido abandonados pelo próprio Savigny em sua ‘virada organicista’, os cânones interpretativos lançados na Metodologia Jurídica permaneceram como a expressão mais fiel da interpretação jurídica do direito de inspiração positivista-legalista. Essa obra foi ainda responsável por inaugurar o debate entre as teorias subjetivistas e objetivistas da interpretação jurídica, que durante muito tempo dominou a cena acadêmica no século XIX, assim como em boa parte do século XX (WIEACKER, 1993).

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que Estado viesse a intervir nas relações conflituosas com o propósito de restabelecer a paz

social, ele necessitaria eliminar a arbitrariedade da vingança privada. Isso não seria possível

caso o Estado atribuísse ao juiz poderes amplos e livres na decisão dos casos, já que a

arbitrariedade seria novamente introduzida no direito. Somente a literalidade do comando

legal conferiria um critério objetivo para que o juiz pudesse dar soluções neutras, imparciais

e, principalmente, pré-definidas aos conflitos entre os particulares. Por essa razão, o juiz

deveria estar integralmente vinculado e submisso ao império da lei.

Desse modo, sempre que o intérprete do direito quisesse descobrir o sentido de uma

norma, sua tarefa seria a de buscar o seu verdadeiro e preciso significado expresso no texto

legal221. Logo, o trabalho do intérprete seria reconstruir o estado mental do legislador. Para

alcançar esse objetivo, Savigny (2001) propôs como método de trabalho um cotejo entre a

parte objetiva do texto legal e as circunstâncias históricas de seu aparecimento222. Assim, a

tarefa interpretativa se dividira em três partes: uma parte lógica, que apresentaria o conteúdo

da lei segundo o modo como a linguagem se ordena logicamente; uma parte gramatical, que

analisaria o sentido sintático-semântico das expressões; e uma parte histórica, que investigaria

o conteúdo da lei dentro do contexto histórico em que ela existe. Savigny (2001) ressaltou

também que o objeto de interpretação da ciência do direito não seria a intenção empírica do

legislador, como defendido pela Escola da Exegese223. A interpretação visaria desvelar a

vontade do legislador tal como objetivada no texto legal224 – inaugurando-se, pois, o dogma

do legalismo na interpretação jurídica de matriz positivista: o texto legal seria o limite das

interpretações possíveis da norma jurídica.

A obra de Savigny originou duas posições radicalmente distintas que, por longa data,

se digladiaram no que diz respeito ao método correto de interpretação jurídica: as teorias

subjetivistas e as teorias objetivistas. A corrente subjetivista, ainda fortemente influenciada

221 “Toda lei deve expressar um pensamento de tal maneira que seja válido como norma. Então, quem interpretar

uma lei deve analisar o pensamento contido na lei, deve pesquisar o conteúdo da lei. Primeiro é a interpretação: reconstrução do conteúdo da lei. O intérprete deve se localizar do ponto de vista do legislador e, assim, produzir artificialmente seu pensamento.” (SAVIGNY, 2001, p.9).

222 Daí porque para Savigny (2001), a ciência jurídica seria, ao mesmo tempo, filológica e histórica. 223 A Escola da Exegese foi um movimento jurídico que teve lugar na França pós-revolucionária e que sustentava

a primazia do método gramatical no processo de interpretação jurídica. A Escola da Exegese identificava o direito com sua expressão legal e limitava a introdução de qualquer elemento não legislado ao produto da tarefa interpretativa. Por essa razão, eventuais disputas interpretativas ou lacunas no ordenamento jurídico deveriam ser solucionadas por meio da análise da vontade histórica do legislador. Para tanto, o intérprete deveria se valer dos trabalhos preparatórios das câmaras legislativas, exposições de motivos e manifestações dos parlamentares envolvidos no processo de elaboração das leis (CAMARGO, 2003).

224 “A interpretação torna-se fácil se o intérprete se coloca no ponto de vista da lei, mas apenas se for possível conhecer esse ponto de vista por meio da própria lei. Fala-se geralmente, que, na interpretação, tudo depende da intenção do legislador. Mas isso é meia verdade, porque depende da intenção do legislador desde que apareça na lei.” (SAVIGNY, 2001, p.10).

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pelo psicologismo próprio do romantismo alemão, teve em Bernhard Windscheid seu mais

renomado adepto. Conforme expõe Larenz (1997), Windscheid defendia que a vontade do

legislador seria a chave de acesso ao conteúdo da lei. Contudo, diferentemente da Escola da

Exegese, Windscheid não restringiu a investigação interpretativa a uma simples busca pela

vontade empírica do legislador. Ele acreditava que toda lei dispõe de uma racionalidade que

lhe é imanente225. Por isso, a interpretação deveria perseguir tanto a vontade fática, quanto a

vontade racional do legislador. A investigação desta partiria da análise dos vestígios de

racionalidade que o legislador teria deixado impresso no texto legal. Com isso, as teorias

subjetivistas recorreriam ao método da reconstrução psicológica do estado mental do

legislador de Savigny para sustentar sua proposta interpretativa para a prática jurídica. Por

meio da reconstrução psicológica seria possível articular o elemento histórico e racional

presentes no fenômeno jurídico:

Tal como SAVIGNY, WINDSCHEID exige que o intérprete se coloque no lugar do legislador e execute o seu pensamento, para o que deve tomar em consideração quer as circunstâncias jurídicas que foram presentes no seu espírito quando ditou a lei, quer os fins perseguidos pelo mesmo legislador. Embora a interpretação se revele assim como uma pura investigação histórico-empírica da vontade, alguma margem abre WINDSCHEID a uma interpretação de acordo com o que é objectivamente adequado, quando observa que é ‘de atender, por último, ao valor do resultado, pelo menos na medida em que será de admitir que o legislador preferiu dizer algo de significativo, de adequado, ao invés de algo de vazio, de inadequado’. Como se isso não bastasse, adverte-se que a interpretação tem também a missão de ‘extrair, por detrás do sentido a que o legislador quis dar expressão o seu verdadeiro pensamento’: deve não apenas ajustar à expressão insuficiente da lei o sentido realmente pensado pelo legislador, mas ainda ‘imaginar’ o pensamento que o legislador não pensou até o fim, ou seja, deve não manter-se simplesmente no plano da vontade empírica do legislador, mas conhecer a vontade racional desse legislador (LARENZ, 1997, p.36).

Verifica-se, assim, que as teorias subjetivistas endossaram os postulados do

positivismo jurídico ao atribuir ao texto legal a fonte privilegiada para a descoberta da

vontade do legislador. Da mesma forma, o modelo conversacional se evidenciaria pela

afirmação de que o sentido da norma jurídica estaria presente na intenção desse legislador

(autor) e que a tarefa interpretativa se resumiria a descobri-la.

225 Essa racionalidade do direito se expressa através dos conceitos jurídicos: “A distinção entre vontade fáctica,

consciente, do legislador, e a sua vontade ‘verdadeira’, que repousa na coerência racional do seu pensamento, é também o que estabelece a ponte entre a teoria da interpretação de WINDSCHEID e a sua ideia de sistema. O ‘verdadeiro’ pensamento de uma proposição jurídica – afirma – ele revela-se nos conceitos jurídicos, ‘ou seja, em súmulas de elementos de pensamento’. Só partindo da apreensão plena dos conceitos jurídicos, decompostos nos seus elementos de pensamento e de novo articulados a partir deles, é que se alcança a ‘conexão intrínseca’ das proposições jurídicas – o sistema jurídico.” (LARENZ, 1997, p. 37).

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Em oposição às teorias subjetivistas, ganhou força uma corrente de pensamento que

exigia da interpretação jurídica uma atitude mais ‘científica’. Ela pretendia que o direito

tivesse um estatuto epistemológico próprio e autônomo, desvinculado de estudos de cunho

histórico, filosófico, psicológico ou sociológico. Essa corrente foi denominada de objetivista e

seus defensores compreendiam que a lei possuía uma autonomia em relação à vontade do

legislador histórico ou empírico. Por isso, a interpretação jurídica deveria se concentrar em

descobrir a vontade da lei, já que esta seria portadora de um significado próprio que não

dependeria daquilo que pretendeu o legislador. Ao se desvincular do legislador histórico, o

intérprete poderia apreender o significado da lei a partir de uma análise objetiva de suas

próprias expressões, inaugurando, assim, um método propriamente jurídico de interpretação.

A corrente objetivista foi responsável por conferir uma maior independência à

interpretação jurídica em relação a outros saberes, já que prescindia de conceitos metafísicos

como o de ‘vontade racional’, ou de conceitos derivados de outras disciplinas das ciências

humanas (LARENZ, 1997). Todavia, não é porque a teoria objetivista desvinculou o texto

legislativo da vontade do legislador histórico ou racional que ela abandonou o modelo

conversacional de interpretação. Na teoria objetivista, o falante apenas deixou de ser o

legislador (empírico ou racional) para se tornar o próprio texto da legislação. As disposições

escritas da lei seriam portadoras de intenções que o intérprete deveria decifrar por meio das

diversas técnicas que lhe são disponíveis:

A teoria ‘objectivista’ da interpretação afirma não apenas que a lei, uma vez promulgada, pode, como qualquer palavra dita ou escrita, ter para outros uma significação em que não pensava o seu autor – o que seria um truísmo –, mas ainda que o juridicamente decisivo é, em lugar do que pensou o autor da lei, uma significação ‘objectiva’, independente dele e imanente à própria lei. Com o que se sustenta, antes de tudo, que há uma oposição fundamental entre a interpretação jurídica e a histórico-filológica. Enquanto esta procura descobrir nas palavras o sentido que o autor lhes ligou, o fim da interpretação jurídica será patentear o sentido racional da lei olhada como um todo do ponto de vista da significação – olhada como um ‘organismo espiritual’, no dizer de KOHLER. As opiniões e intenções subjectivas do legislador, dos redactores da lei ou das pessoas singulares que intervieram na legislação não têm relevo: a lei é ‘mais racional’ do que o seu autor e, uma vez vigente, vale por si só. Por isso é a partir dela apenas, do seu próprio contexto significativo, que deve ser interpretada. Todos os três representantes da teoria objectivista da interpretação [Binding, Wach e Kohler] arrancam da ideia de que o Direito, ainda que por tal se entenda sempre o Direito ´positivo’, é por essência, uma ordem racional (LARENZ, 1997, p.41).

Com o debate que se estabeleceu entre os partidários das teorias subjetivistas e

objetivistas, a teoria da interpretação jurídica adentrou em uma eterna e estéril disputa sobre o

objeto da interpretação jurídica: se esta deve buscar a mens legislatoris – a intenção do

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legislador – ou a mens legis – intenção da lei, como se disso dependesse o acesso à verdadeira

essência do direito (STRECK, 1999). O que estaria em jogo seria apenas a busca pelo real

doador de significado das expressões jurídicas, elemento necessário para completar a relação

entre falante e ouvinte exigida pelo modelo conversacional. Qualquer que fosse a opção

teórica da comunidade jurídica, o produto final da tarefa interpretativa continuaria sendo uma

verdade ‘absoluta’ sobre o sentido da norma jurídica. Com isso, o seu significado se

cristalizaria em uma única e ‘verdadeira’ interpretação que não se sujeitaria a qualquer outra

possibilidade de atualização.

3.3.2.2 O apogeu do modelo conversacional no positivismo semântico – Do positivismo

analítico inglês ao normativismo de Hans Kelsen

Dada a primazia da legislação escrita no sistema jurídico romano-germânico, a

jurisprudência europeia continental enfatizou uma metodologia ligada à hermenêutica do

texto escrito para descobrir o sentido das normas jurídicas no processo de aplicação do direito.

Segundo os cânones da teoria positivista, o intérprete não poderia se imiscuir na função

criadora de normas, que seria privativa do poder legislativo. A sua tarefa se limitaria a

desvelar o sentido normativo da legislação pré-definida pelo Estado. Nem mesmo o juiz,

intérprete oficial do direito, faria mais do que descobrir os significados normativos

previamente impressos nos textos legais, pois a existência de um objeto interpretativo

concreto que fixava a vontade estatal (a lei) e a crença na capacidade do intelecto humano em

desvelar a mensagem contida na legislação (seu significado) reforçaram a ideia de que a lei

seria portadora da integralidade do significado normativo da vontade estatal.

Na jurisprudência inglesa, contudo, o positivismo jurídico ganhou contornos

diferenciados em relação à tradição do direito continental. Como a origem da Common Law226

remonta a um costume e a uma prática judiciária que são anteriores à própria formação do

corpo legislativo inglês, até o século XVIII a teoria jurídica não relacionava a criação

jurisprudencial do direito nos tribunais ao poder de instituição do direito derivado da

226 A Common Law é o sistema jurídico peculiar aos países que integram a Commonwealth ou que foram

colonizados pela Inglaterra e se caracteriza por atribuir maior destaque aos precedentes judiciais construídos por meio das decisões das Cortes e Tribunais sobre a lei escrita como fonte primária do direito. Historicamente, a estrutura desse sistema jurídico e dos ramos do direito que lhe são peculiares teve origem nos costumes judiciários sedimentados pelos Tribunais Reais ingleses da Idade Média (DAVID, 1986).

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soberania estatal227. A reflexão sobre o papel e a importância da lei escrita228 somente veio

com o desenvolvimento de uma tradição filosófica crítica229 à origem costumeira da Common

Law. Essa tradição se iniciou em Hobbes (2004) e foi posteriormente desenvolvida pelo

utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Sua característica comum era enxergar o

direito como fruto de um comando do soberano aos súditos e conceder à lei escrita a condição

de melhor expressão da vontade política estatal.

John Austin (1911) desenvolveu uma teoria jurídica de matriz positivista a partir da

teoria dos comandos que a filosofia política antecedente lhe legou. O resultado foi um

trabalho analítico de compreensão do direito a partir dos elementos formais que lhe são

inerentes em sua realidade fática, o que culminou em uma teoria de natureza descritiva sobre

o direito230. Segundo Austin (1911), seria possível identificar em todo sistema jurídico uma

227 William Blacksonte, por exemplo, atribuiu a autoridade da Common Law a sua origem no direito natural, o

que a isentaria de submissão ao domínio da soberania política estatal, tornando-a autônoma em relação a esta (WOLKMER, 2006).

228 A importância dos precedentes judiciais na Common Law faz com que o raciocínio jurídico empregado na prática judiciária dessa tradição seja diferente daquela verificada no direito de tradição romano-germânica. David (1986) mostra como a ‘técnica das distinções’, empregada na aplicação da regra do precedente, é de natureza analógica e se assenta na busca da ratio decidendi dos casos passados como argumento de persuasão para vincular os casos futuros. Por essa razão, as técnicas interpretativas e a hermenêutica jurídica não floresceram na Common Law tanto como na jurisprudência dos direitos de tradição romano-germânica.

229 Desde Hobbes, a filosofia política inglesa vem enfatizando o papel do soberano como critério último do estabelecimento das diretrizes políticas do Estado. Essa característica destacada por Hobbes impediria que o Estado estivesse submisso ou condicionado por um direito de origem costumeira. Para Hobbes, a Common Law não teria validade por seu valor intrínseco, mas tão somente pela anuência daqueles que foram incumbidos pelo soberano de aplicar o direito: “Custom of itself maketh no law. Nevertheless when a sentence hath been once given, by them that judge by their natural reason; whether the same be right or wrong, it may attain to the vigour of a law; not because the like sentence hath of custom been given in the like case; but because the sovereign power is supposed tacitly to have approved such sentence for right; and thereby it cometh to be a law, and numbered amongst the written laws of the commonwealth. For if custom were sufficient to introduce a law, then it would be in the power of every one that is deputed to hear a cause, to make his errors laws. In like manner, those laws that go under the title of responsa prudentum, that is to say, the opinions of lawyers, are not therefore laws, because responsa prudentum, but because they are admitted by the sovereign. And from this may be collected, that when there is a case of private contract between the sovereign and the subject, a precedent against reason shall not prejudice the cause of the sovereign; no precedent being made a law, but upon supposition that the same was reasonable from the beginning.” (HOBBES, 2004, p. 92-93). (Tradução: “O costume ele próprio não cria o direito. Não obstante, quando uma sentença é proferida segundo ele, julga-se segundo a razão natural; seja ela certa ou errada ela deve se ater ao direito vigente; não porque a referida sentença tem no costume o seu fundamento para resolver esse caso; mas porque se supõe que o poder soberano tenha aprovado tacitamente tal sentença como correta; e por essa razão ela se torna direito, e pode ser arrolada entre as leis escritas do Commonwealth. Pois se o costume fosse suficiente para criar o direito, então estaria ao poder de qualquer um que disputa uma causa, encontrar erros no direito. Dessa maneira, aquele direito que aparece sob o título de responsa prudentum, que significa as opiniões dos juristas, não é, portanto, direito, apenas por causa da responsa prudentum, mas sim porque elas são admitidas pelo soberano. E disso se conclui que quando existe um contrato privado entre o soberano e um sujeito privado, um precedente contra a razão não pode prejudicar a causa do soberano; nenhum precedente se torna direito, apenas sobre a suposição de que o mesmo era razoável desde seu princípio.”).

230 “Now general jurisprudence, or the philosophy of positive law, is not concerned directly with the science of legislation. It is concerned directly with principles and distinctions which are common to various systems of particular and positive law; and which each of those various system inevitably involves, let it be worthy or

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relação de sujeição entre um soberano e seus súditos231. Portanto, a lei, em sentido amplo, se

caracterizaria por assumir a forma de um comando imperativo com força obrigatória, que

partiria de um ente de hierarquia superior e com autoridade suficiente para tanto. A relação de

subordinação232 estabelecida entre o ente superior e os comandados colocaria aquele em uma

posição de exigir destes o cumprimento de sua vontade:

As leis propriamente denominadas são espécies de comandos. Mas, sendo um comando, toda lei propriamente denominada flui de uma fonte determinada; ou emana de um autor determinado. Em outras palavras, o autor de quem ela procede é um ser racional determinado ou um determinado corpo ou agregado de seres racionais. Pois sempre que um comando é expresso ou emitido, um ente dá a entender um desejo que a outra deve cumprir ou deixar de o fazê-lo. (AUSTIN, 1911, p.178, tradução nossa). 233

Desse modo, na teoria jurídica de Austin, a obrigação jurídica seria identificada com o

teor do comando emitido pelo soberano. Portanto, se um jurista tivesse a pretensão de saber

qual é o direito vigente em um determinado ordenamento jurídico, deveria se perguntar qual

teria sido a ordem emitida pelo soberano para os seus súditos em um determinado momento

no tempo e no espaço. Verifica-se, pois, que a teoria dos comandos desenvolvida por Austin

praise or to blame, or let it accord or not with an assumed measured or test. Or (changing the phrase), general jurisprudence, or the philosophy of positive law, is concerned with law as it necessarily is, rather than with law as it ought to be; with law as it must be, be it good or bad, rather than with law as it must be, if it be good.” (AUSTIN, 1911, p. 32). (Tradução nossa: “Agora a teoria geral do direito ou a filosofia do direito positivo não está preocupada diretamente com a ciência da legislação. Ela está relacionada diretamente com os princípios e as distinções que são comuns aos vários sistemas do direito positivo particular, e com o que cada um desses vários sistemas envolve inevitavelmente, sendo ele digno de elogio ou valor ou de reprovação, ou segundo um critério. Ou (mudando a frase), a teoria geral do direito ou a filosofia do direito positivo está preocupada com o direito como ele necessariamente o é, ao invés de o ser com o direito como ele deveria ser; com o direito como ele deve ser, seja ele, bom ou ruim, ao invés de com o direito como ele deve ser, sendo ele bom.”).

231 “Subject to slight correctives, the essential difference of a positive law (or the difference that severs it from a law which is not a positive law) may be put in the following manner. Every positive law, or every law simply and strictly so called, is set by a sovereign individual or a sovereign body of individuals, to a person or persons in a state of subjection to its authors.” (AUSTIN, 1911, p. 34). (Tradução nossa: “Sujeita a leves correções, a diferença essencial de um direito positivo (ou a diferença que separa-o de um direito que não é um direito positivo) pode ser colocada da seguinte maneira. Todo direito positivo, ou todo direito simplesmente e assim estritamente denominado, é estabelecido por um soberano individual ou por um corpo soberano de indivíduos, para uma pessoa ou pessoas em um estado de sujeição aos seus autores.”).

232 A noção de comando de Austin nasceria justamente da relação de desigualdade decorrente da hierarquia criada com a superioridade do súdito em relação aos soberanos “For superiority is the power of enforcing compliance with a wish: and the expression or intimation of a wish, with the power and the purpose of enforcing it, are the constituent elements of a command.” (AUSTIN, 1911, p. 97) (Tradução nossa: “Superiodade é o poder de reforçar obrigatoriamente o cumprimento de um desejo: e a expressão ou emissão de um desejo, com o poder e o propósito de ser reforçado obrigatoriamente, são os elementos constituintes de um comando.”).

233 Laws properly so called are a species of commands. But, being a command, every law properly so called flows from a determinate source, or emanates from a determinate author. In other words, the author from whom it proceeds is a determinate rational being, or a determinate body or aggregate of rational beings. For whenever a command is expressed or intimated, one party signifies a wish that another shall do or forbear.

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explicitou o modelo conversacional no processo de interpretação do sentido das normas

jurídicas. Se toda manifestação do direito se faria por meio da expressão de um comando

normativo emitido pelo soberano, a tarefa do jurista consistiria em descobrir essa intenção.

Todavia, dadas as nuances do sistema jurídico britânico, a vontade do soberano não

estaria cristalizada apenas no objeto pronto e acabado que é a legislação escrita. No caso da

Judiciary Law234 essa vontade do soberano estaria difusa no corpo de decisões da magistratura

com a incumbência de aplicar o direito à medida que as controvérsias fossem levadas aos

tribunais. O raciocínio desenvolvido por Austin, em oposição a Blackstone, é que também a

autoridade da Common Law decorreria da soberania estatal. No entanto, essa soberania se

manifestaria indiretamente, por meio de uma autorização para que os juízes empregassem as

regras e institutos que são inerentes ao processo de construção e aplicação da lei civil de um

modo geral.

Para descobrir a vontade do soberano, contudo, o intérprete não teria a sua disposição

um objeto concreto, como é do texto legislativo. Ele deverá recorrer ao conjunto dos

precedentes judiciais que formam o corpo do direito do Common Law. Por essa razão a

importância da ‘técnica das distinções’ utilizada na prática judiciária da Common Law. Por

ela, o jurista é chamado a demonstrar a semelhança existente entre o caso presente e os casos

semelhantes já decididos no passado por meio de um raciocínio analógico cuja finalidade

seria a de encontrar a ratio decidendi235 comum entre as decisões passadas e as atuais:

Ratio decidendi é ela própria direito: ou ao menos é o fundamento ou princípio geral de uma decisão ou conjunto de decisões. Pelo querer do direito estatutário ela desempenha a função de uma regra geral ou de um guia de conduta. Apesar de não ser uma regra em sua forma, ela se assemelha a um comando geral procedente do soberano ou do Estado ou de alguns de seus subordinados autorizados. Pois, uma vez que seja conhecido que a razão geral de uma decisão em um caso particular deve governar decisões futuras semelhantes, os casos recebidos pelo Estado (na ocasião daquela decisão) são uma expressão ou emissão do desejo do soberano e eles devem moldar suas condutas segundo a razão ou princípio ali estabelecido. (AUSTIN, 1911, p.627-628, tradução nossa).236

234 Judiciary Law seria o direito construído jurisprudencialmente pelos Tribunais a partir da regra do precedente

judicial. A regra do precedente consiste na mais importante fonte do direito do sistema do Common Law. A base da regra do precedente está na regra costumeira do stare decisis, que é, de um modo geral, a obrigação de as cortes inferiores respeitarem como vinculantes os precedentes elaborados pelas cortes superiores, salvo a existência de algum destacado interesse da justiça em sentido contrário (DAVID, 1986).

235 A ratio decidendi consiste nos fundamentos gerais ou princípios que orientam a produção de uma decisão judicial. Por não se vincular às peculiaridades do caso, ela pode ser abstraída e servir de fundamento para casos semelhantes futuros (AUSTIN, 1911).

236 Ratio decidendi is itself a law: or, at least, it is the general ground or principle of a judicial decision or decisions. For want of a statute law, it performs the function of a general rule or of a guide of conduct. Though not a rule in form, it is tantamount to a general command proceeding from the sovereign or state, or from any of its authorized subordinates. For, since it is its known will that the general reason of a decision on a particular or specific case shall govern decisions on future resembling cases the subjects receive from the

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Austin (1911) reconhece, no entanto que, no que toca ao Statute Law237, a vontade do

soberano estaria contida, inicialmente, nas disposições do texto legal. Nesse caso, o intérprete

realizaria um trabalho de reconstrução do processo comunicativo que levou à emissão do

comando pelo soberano, a fim de perquirir pela vontade do legislador expressa no texto legal.

A interpretação do Statute Law começaria, portanto, pela análise dos elementos gramaticais e

lógicos do teor literal das disposições legais238. Dados os contornos do papel do Statute Law

no direito anglo-americano, essa tradição jurídica exigiria um maior apego à literalidade do

preceito escrito. Tanto é assim que a técnica legislativa dos Acts recomenda uma redação com

riqueza de detalhamento e previsão expressa de todas as nuances e exceções no corpo do texto

legal, a fim de não deixar ao intérprete nenhum tipo de abertura para a introdução de

elementos normativos não expressos na lei. Logo, se o intérprete vier a se deparar com um

resultado inequívoco quanto ao sentido do comando do soberano, ele não deverá perquirir por

outro significado além ou por detrás do texto239.

Entretanto, como a proposta de Austin é a de produzir uma teoria descritiva do direito,

ele constata o fato de que o juiz poderia se deparar com situações em que ou o texto legal não

reúne elementos suficientes para sua inequívoca compreensão, ou está dentro do âmbito do

seu poder optar por estender ou restringir a aplicação de um dispositivo escrito a fim de

state (on the occasion of such a decision) an expression or intimation of its sovereign will, that they shall shape their conduct to the reason or principle thereof.

237 O Statute Law consiste no corpo da legislação escrita promulgada pelo corpo legislativo. No sistema do Common Law, a legislação escrita – os statutes ou Acts of Parliament – possui uma função subsidiária ou complementar ao direito jurisprudencial e seu papel é o de excepcionar situações tratadas genericamente pelos precedentes judiciais. Em razão dessa característica, a lei escrita sempre foi interpretada de modo literal (exceptio est strictissimae interpretationes), o que culminou em uma técnica legislativa que conferiu alto grau de detalhamento e concretude às disposições legais (DAVID, 1986).

238 “The literal meaning of the words in which the statute is expressed (or their grammatical, customary, or obvious meaning) is the primary index to the sense which the author of the statute annexed to them: Or (changing the phrase), it is the primary index to the intention with which the statute was made, or the primary index to the law which the legislature intended to establish (…) if he be able to discover in the literal meaning of the words, any such definite and possible purpose, he commonly ought to abide by the literal meaning of the words, though it vary from the other indices to the actual intention of the legislature.” (AUSTIN, 1911, p. 624). (Tradução: “O significado literal das palavras em que o estatuto é expresso (ou seu sentido gramatical, costumeiro ou óbvio) é o elemento primário para se encontrar o sentido que o autor do estatuto anexou a elas: ou (mudando a frase) o elemento primário para se encontrar a intenção com a qual o estatuto foi criado, ou o elemento primário atribuído ao direito que a legislatura teve a intenção de estabelecer (...) se ele for capaz de descobrir no sentido literal das palavras qualquer propósito definido e possível, ele deve naturalmente se vincular ao sentido literal das palavras, apesar de poder variar para outros elementos, como, por exemplo, a atual intenção da legislatura.”).

239 Segundo Austin (1911), a interpretação genuína da legislação seria aquela feita a partir de seu texto legal (lex ipsa) e não aquele que busca por sua ratio legis. Não se discutiria, como na jurisprudência continental, qual seria a intenção da lei ou do legislador para se determinar o sentido de um texto normativo.

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preservar a ratio legis240 da lei. Nessas hipóteses, Austin entendia que os juízes não estariam

exercendo uma tarefa puramente interpretativa, mas sim teriam assumido a condição de

‘legisladores’ (lawgiver), como se fossem o próprio soberano emitindo um comando

jurídico241 – nesse caso, um comando indireto, por delegação, à semelhança do que ocorreria

no Judiciary Law. Austin (1911) não se preocupou, portanto, em definir um método ‘correto’

para que a interpretação jurídica contasse com um caminho preciso para descobrir o

verdadeiro sentido da norma jurídica. A ‘liberdade’ criativa outorgada ao juiz pelo soberano

seria incompatível com a pretensão de se atribuir um sentido verdadeiro à norma jurídica. Em

sua tarefa descritiva do direito positivo, Austin se limitou a verificar a estrutura formal

inerente ao vínculo jurídico existente entre o soberano e os súditos: a ideia que a obrigação

jurídica nasce de um comando emitido por aquele para ser observado por estes. Ao jurista

caberia apenas identificar qual teria sido a vontade final do soberano expressa na lei ou na sua

aplicação concreta feita pelo juiz.

O positivismo analítico de Austin foi uma das importantes referências para Hans

Kelsen construir uma teoria jurídica compatível com os padrões do conhecimento científico

em vigor no final do séc. XIX e início do séc. XX. Aprofundando as intuições contidas na

obra de Austin – em especial a proposta analítico-descritiva do direito – Kelsen fundou um

240 “Ratio legis is, as I have said, the scope or determining cause, of a statute law: that is to say, the end or

purpose which determines the lawgiver to make it, as distinguished from the intention or purpose with which he actually makes it. For the intention which is present to his mind when he is constructing the statute, may chance to differ from the end which moves him to establish the statute.” (AUSTIN, 1911, p. 629). (Tradução: “Ratio legis é, como eu havia dito, o propósito ou a causa determinante do direito estatutário: isso significa, o fim ou o propósito que determina o legislador a criá-la, distinta da intenção ou propósito com o qual ele atualmente faz a lei. Para a intenção que é presente a sua mente quando ele está construindo o estatuto, deve poder diferir do fim que o move a estabelecer o estatuto.”).

241 Vale destacar que esse processo de intromissão do juiz nas funções legislativas não é isento de críticas por Austin (1911, p. 629). Seu argumento é o de que a interpretação das leis escritas se tornaria arbitrária caso cada juiz viesse a aplicar a lei escrita segundo sua própria compreensão de qual seria ratio legis de um dispositivo legal: “By such extensive or restrictive interpretations the judge may depart from the manifest sense of a statute, in order that he may carry into effect its ratio or scope. But, in these cases, he is not a judge properly interpreting the law, but a subordinate legislator correcting its errors or defects. He supposes the expressions which the lawgiver would have used (or he supposes the provisions which the lawgiver would have made), if the latter had expressed his intention in appropriate terms (or had pursued the scope of the statute in a consistent manner): And those supposed expressions, or those supposed provisions, he substitutes for the clear expressions which the lawgiver has actually used, or for the provisions which the lawgiver has indisputably made. This, however, is not interpretation but a process of legislative amendment, or a process of legislative correction, which lays all statute law at the arbitrary disposition of the tribunals”. (Tradução: “Por tais interpretações extensivas ou restritivas o juiz pode partir do sentido manifesto de um estatuto de modo que ele possa levar a efeito sua razão ou propósito. Mas, nesses casos, ele não é um juiz propriamente interpretando uma lei, mas um legislador subordinado corrigindo os seus erros ou defeitos. Ele supõe as expressões que o legislador teria utilizado (ou ele supõe as cláusulas que o legislador teria incluído), se o último tivesse expressado sua intenção em termos apropriados (ou tivesse perseguido o propósito do estatuto de um modo consistente): e aquelas supostas expressões, ou aquelas cláusulas supostas, ele substitui por claras expressões que o legislador tem utilizado recentemente, ou por cláusulas que o legislador tem feito indubitavelmente. Essa, contudo, não é uma interpretação, mas um processo de emenda legislativa, ou um processo de correção legislativa, o que deixa todo direito estatutário à disposição arbitrária dos tribunais.”).

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estatuto epistemológico próprio para a ciência jurídica a partir do delineamento de um objeto

autônomo em relação a outros campos do saber humanístico242. Influenciado pela filosofia

kantiana243, Kelsen destacou a relação obrigacional criada pelo direito como seu elemento

nuclear e concentrou sua teoria na explicação do aspecto normativo do fenômeno jurídico

responsável por impor deveres de comportamento aos indivíduos. Na terminologia kelseniana,

a expressão ‘dever’ teria um significado amplo, de modo a abranger não apenas as ordens,

proibições e permissões, mas também as autorizações conferidas na estrutura hierárquica do

ordenamento jurídico. Ao colocar em foco a dimensão normativa do direito, a ciência jurídica

poderia se dedicar exclusivamente à análise da cadeia de normas que compõem o

ordenamento jurídico e, com isso, abandonar o recurso a outras disciplinas do conhecimento

no estudo do direito. Consequentemente, Kelsen (1998) alcançaria seu objetivo de estabelecer

uma ‘pureza metodológica’ para a ciência do direito ao limitar o objeto do direito às normas

produzidas pelo Estado e seus órgãos oficiais.

Para Kelsen, o direito consistiria em uma ordem normativa que recebe a qualificação

especial de ‘jurídica’ em razão de possuir um sentido objetivo específico, decorrente de um

determinado contexto comunicativo: a relação do Estado político com os cidadãos que lhe são

subordinados (CAMARGO, 2003). Portanto, o ponto de partida e objeto da ciência do direito

seria o estudo da norma jurídica válida. Para se compreender o significado da expressão

norma jurídica na teoria de Kelsen, é preciso fazer referência ao que ele denomina de

‘norma’:

‘Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa diferente do ato de

242 Ferraz Júnior sintetiza o contexto em que surge a produção teórica kelseniana: “O grande objetivo da obra [A

Teoria Pura do Direito] foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica. Suas preocupações, neste sentido, se inseriam no contexto específico dos debates metodológicos oriundos do final do século XIX e que repercutiam intensamente no início do século XX. A presença avassaladora do positivismo de várias tendências, somada à reação dos teóricos da livre interpretação do direito, punha em questão a própria autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a liberação da ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto autônomo próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica.” (FERRAZ JÚNIOR, 2001, p. XV).

243 Matos esclarece a referência ao pensamento kantiano da seguinte maneira: “ Os comentadores têm enfatizado especialmente sua ligação com a obra de Kant, o que deve ser feito com o devido cuidado. Nota-se, antes de tudo, que além da ideia de norma fundamental como hipótese lógico-transcendental – que se deve tanto a Kant quanto à leitura de Kant efetuada por Cohen –, Kelsen lança mão, como vimos, da clássica distinção kantiana dos mundos do ser e do dever-ser.” (MATOS, 2005, p. 61).

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vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. (KELSEN, 1998, p. 6).

As normas nasceriam, portanto, de uma derivação semântica do teor linguístico de um

ato de vontade que pretende estabelecer uma obrigação a um sujeito ou conjunto de sujeitos.

Enquanto o ato de vontade pertence ao plano fático do ‘ser’, as normas consistiriam o sentido

objetivo de dever-ser extraído desse ato de vontade. Ao lado do sentido subjetivo existente na

ordem ou comando que alguém exprime a outrem – uma expressão do desejo do emissor para

que o destinatário se comporte como ele pretende – o sentido de um ato de vontade pode vir a

se tornar objetivo244 em um contexto posto por um ‘terceiro desinteressado’. Com isso, o

dever-ser se tornaria ‘obrigatório’ dentro desse contexto e não apenas seria uma expressão

particular do indivíduo que exprime o ato de vontade. Diz-se então que, nesse caso, haveria

uma norma tida como ‘obrigatória’ dentro desse contexto, isto é, válida. A validade de uma

norma decorreria de uma relação de pertinência a um conjunto de normas em que algumas

delas teriam a competência para lhe atribui tal prerrogativa245. No caso do direito a validade

seria determinada pela pertinência da norma jurídica a uma a cadeia de autorizações que seria

encabeçada pelas Constituições246 promulgadas pelos Estados Nacionais.

O sentido objetivo do dever estabelecido na norma jurídica faz com que a ordem nela

contida se torne um padrão de referência para o comportamento. A norma jurídica criaria,

portanto, um esquema de interpretação para a conduta dos indivíduos, permitindo uma

avaliação global de seu comportamento ‘conforme a’ ou ‘em contrariedade a’ norma.

Todavia, dado o sentido objetivo da norma, ela se tornaria um valor absoluto dentro do

244 Com a distinção entre sentido subjetivo e objetivo do dever, Kelsen supera a tanto a jurisprudência analítica

de Austin, quanto as teorias subjetivistas do pandectismo germânico que identificavam a existência de uma vontade real presente na lei: “É errôneo caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como ‘vontade’ ou ‘comando’ – do legislador ou do Estado -, quando por ‘vontade’ ou ‘comando’ se entenda o ato de vontade psíquica.” (KELSEN, 1998, p. 11).

245 Kelsen (1998, p. 9) exemplifica essa situação fazendo referência a normas de comportamento de uma prática religiosa que são avaliadas como pertinentes ou não em relação a uma revelação que lhes é superior e possui ‘competência’ para lhes atribuiu validade: “Se um homem que se encontra em estado de necessidade exige de um outro que lhe preste auxílio, o sentido subjetivo da sua pretensão é o que o outro lhe deve prestar auxílio. Porém, uma norma objetivamente válida que vincule ou obrigue o outro só existe, nesta hipótese, se vale a norma geral do amor próximo, eventualmente estabelecida pelo fundador de uma religião.” (KELSEN, 1998, p.9). No caso do direito, essa relação de pertinência seria mais complexa. Ela teria um aspecto material, já que a lei inferior não pode contradizer a lei superior, mas também formal, pois necessitaria observar certos requisitos referentes à forma observada em sua criação (presentes no processo legislativo, p. ex.), como também à competência daquele que a emanou.

246 A constituição, por sua vez, retiraria sua validade da denominada ‘norma fundamental’ um pressuposto lógico-transcendental ‘fundante da validade objetiva’ das normas jurídicas. O recurso à norma fundamental por Kelsen teria a finalidade de ‘iniciar’ a cadeia de autorizações do ordenamento jurídico. Por ser meramente pressuposta como condição formal do ordenamento jurídico, a norma fundamental careceria de conteúdo, razão pela qual não haveria qualquer limitação material para o conteúdo do direito positivo (CHAMON JÚNIOR, 2005).

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contexto que a institui, o que a colocaria isenta de qualquer avaliação dentro do próprio

contexto247. Assim, ao jurista concerniria tão somente indagar pela validade ou não da norma

jurídica no conjunto das normas vigentes no ordenamento e, portanto, sua aptidão a produzir

deveres objetivos de comportamento aos cidadãos.

As normas jurídicas estabeleceriam, portanto, relações obrigacionais por meio da

imputação de um dever de comportamento aos indivíduos. Para Kelsen (1998), a tarefa da

ciência jurídica seria a de explicitar por meio de juízos hipotéticos de natureza descritiva –

denominados de proposições jurídicas – em que consiste o teor dessa relação248. Para tanto, o

jurista assumiria a mesma perspectiva do observador-cientista que se mantém externo e neutro

em relação a seu objeto de conhecimento (ENGELMANN, 2001). Somente dessa maneira o

cientista do direito conseguiria se despojar de suas pré-concepções e crenças pessoais para

produzir um discurso científico objetivo:

Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas jurídicas e, portanto, os valores jurídicos através delas constituídos, as suas proposições são, no entanto – tal como as leis naturais da ciência da natureza – uma descrição do seu objeto alheia aos valores (wertfreie). Quer dizer: esta descrição realiza-se sem qualquer referência a um valor metajurídico e sem qualquer aprovação ou desaprovação emocional.

247 Para Kelsen somente seria possível uma avaliação da norma jurídica a partir de um padrão externo ao direito,

como a moral ou a religião. Contudo, essa análise seria irrelevante e sem sentido para a ciência jurídica, pois aquelas duas ordens de valor seriam meramente relativas. Portanto, qualquer juízo avaliativo nesse sentido seria de natureza subjetiva de valor, incapaz, portanto, de alterar a validade da norma jurídica: “Quando uma teoria do Direito positivo se propõe a distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para os não confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da moral por excelência, de a Moral. Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo deve corresponder a um determinado sistema de moral entre os vários sistemas morais possíveis. Mas com isto não fica excluída a possibilidade da pretensão que exija que o Direito positivo deve harmonizar-se com um outro sistema moral e com ele venha eventualmente a concordar de fato, contradizendo um sistema moral diferente deste (...) A pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas da Moral, e não a relação entre aquela e ‘a’ Moral. Desta forma, é enunciado um juízo de valor relativo e não um juízo de valor absoluto. Ora, isto significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral.” (KELSEN, 1998, p. 75).

248 Para Kelsen é muito importante a distinção entre as normas jurídicas, que são produzidas pelos órgãos com competência para produção do direito, das proposições jurídicas, que são juízos hipotéticos cognitivos com a finalidade de descrever as relações criadas por uma norma jurídica: “Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas consequências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo caso, não são – como, por vezes, identificando Direito com ciência jurídica, se afirma – instruções (ensinamentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou competência – não ‘ensina’ nada.” (KELSEN, 1998, p. 80).

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Quem, do ponto de vista da ciência jurídica, afirma, na sua descrição de uma ordem jurídica positiva, que, sob um pressuposto nessa ordem jurídica determinado, deve ser posto um ato de coação pela mesma ordem jurídica fixado, exprime isto mesmo, ainda que tenha por injustiça e desaprove a imputação do ato coercitivo ao seu pressuposto. As normas constitutivas do valor jurídico devem ser distinguidas das normas segundo as quais é valorada a constituição do Direito. Na medida em que a ciência jurídica em geral tem que dar resposta à questão de saber se uma conduta concreta é conforme ou contrária ao Direito, a sua resposta apenas pode ser uma afirmação sobre se essa conduta é prescrita ou proibida, cabe ou não na competência de quem a realiza, é ou não permitida, independentemente do fato de o autor da afirmação considerar tal conduta como boa ou má moralmente, independentemente de ela merecer a sua aprovação ou desaprovação (KELSEN, 1998, p. 89).

Sendo assim, as proposições jurídicas – produto final da ciência jurídica – seriam

julgadas conforme sua ‘verdade’ ou ‘falsidade’ em relação à tarefa de descrever verazmente

as relações obrigacionais da ordem jurídica vigente. Nesse ponto fica manifesto de que modo

Kelsen parte de uma concepção semântica de verdade. Sua preocupação em relação à ciência

jurídica era a de saber se as palavras utilizadas para descrever o direito (proposições jurídicas)

corresponderiam fielmente aos respectivos objetos descritos (normas jurídicas) e se, por sua

vez, tais objetos estariam lastreados em uma realidade objetiva do mundo ‘empírico’ (as

fontes do direito positivo). A condição de sentido do direito estaria ligada apenas e tão

somente à verdade dessa cadeia de associações (STRECK, 1999).

A abordagem semântica do direito repercutiu diretamente na concepção kelseniana

sobre a atividade interpretativa. Ao discorrer sobre o ponto, a primeira distinção feita por

Kelsen está ligada à qualidade do intérprete. Para Kelsen (1998), haveria uma radical

diferença entre a interpretação produzida pelos órgãos responsáveis pela criação de direito –

órgãos legislativos, administrativos e com função judicante – daquela efetuada pelos

particulares que conduzem sua vida em conformidade com os comandos abstratos do direito

ou pelos juristas em sua atividade científica. Na primeira, denominada de interpretação

autêntica, o intérprete realizaria tanto uma operação mental de cognição – pois necessitaria

identificar nas normas que compõem o escalão superior qual o limite possível para a

interpretação que lhe foi autorizada –, como também e, sobretudo, um ato de vontade ao

‘criar’ uma norma jurídica nova. As normas superiores estabeleceriam um quadro prévio de

significações possíveis – a denominada ‘moldura’ – para ser posteriormente preenchido pelo

órgão aplicador do direito em seu ato de criação normativa249. Segundo Kelsen, o ato de

249 “A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do

qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir,

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criação do direito somente estaria limitado pela moldura interpretativa, inexistindo qualquer

critério que pudesse classificar hierarquicamente a qualidade ou a correção das interpretações

possíveis. Todas elas seriam igualmente válidas e, portanto, indiferentes entre si quanto a seu

valor intrínseco:

Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal especialmente. (KELSEN, 1998, p. 390).

Já a interpretação não-autêntica seria caracterizada por uma atividade puramente

cognoscitiva. De um ponto de vista estritamente normativo, sua relevância seria meramente

secundária para a ciência do direito, uma vez que não resultaria em uma produção normativa.

Tratar-se-ia apenas da expressão de uma opinião sobre um sentido possível da norma jurídica.

Sua finalidade seria, portanto, meramente a de convencer, por meio de sua qualidade e da

profundidade da argumentação empregada, o órgão aplicador do direito a adotar o ponto de

vista defendido pelo jurista-cientista na aplicação do direito. Nada mais. Ademais, o caráter

descritivo reservado para o processo de cognição do direito fulminou qualquer

empreendimento no sentido de atribuir uma unidade de sentido à tarefa interpretativa.

Assim, ora vista como exercício de poder discricionário (a interpretação autêntica

realizada pelos órgãos de aplicação do direito), ora como mero trabalho de política do direito

(interpretação não-autêntica realizada pela ciência do direito), a interpretação em Kelsen

perdeu o status de atividade primordial do jurista, por tornar neutra e valorativamente

indiferente o resultado final da interpretação jurídica250.

segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever.” (KELSEN, 1998, p. 388). Esta passagem indica ainda que o ato de preenchimento da moldura estaria em parte condicionado pelo direito pré-definido nas regras superiores, em parte deixado ao livre poder discricionário do órgão criador do Direito.

250 Isso fica patente no modo como Kelsen desmerece a importância da tarefa interpretativa em um e outro caso. Na interpretação autêntica, Kelsen banaliza a tarefa interpretativa por atribuir ao intérprete o poder discricionário de criar o direito de qualquer maneira, desde que circunscrita aos limites da moldura, negando valor às técnicas interpretativas que atribuiriam um sentido correto à interpretação do direito: “Todos os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. Fixar-se na vontade presumida do legislador desprezando o teor verbal ou observar estritamente o teor verbal sem se importar com a vontade – quase sempre problemática – do legislador tem – do ponto de vista do Direito positivo – valor absolutamente igual. Se é o caso de duas normas da mesma lei se contradizerem, então as possibilidades lógicas de aplicação jurídica já referidas

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De outro giro, a perspectiva semântica adotada por Kelsen para a ciência jurídica deu

novos contornos ao modelo conversacional de interpretação. Ao radicalizar a autonomia do

objeto da ciência jurídica na norma jurídica extraída das fontes do direito positivo estatal,

Kelsen atribuiu às fontes textuais o caráter de significantes plenos do sentido da norma,

transformando a ordem normativa jurídica em um objeto estático e sem conexão com sua

dimensão cultural. A perspectiva semântica também foi responsável por limitar a atividade

cognoscitiva do direito a uma mera descrição da realidade normativa, avaliada apenas sob o

prisma de sua verdade ou falsidade quanto à correspondência com esse objeto. Assim, a teoria

de Kelsen nega a dimensão temporal do direito não tanto por tornar absoluto e definitivo o

resultado de uma interpretação, mas por hipostasiar a dimensão semântica no processo

interpretativo. Ao reduzir o processo interpretativo à estrita tarefa de descrição do sentido

normativo objetivo encontrado nas fontes jurídicas, negando qualquer valor ou hierarquia

entre os diferentes resultados possíveis das interpretações, o direito se converteu no eterno

presente das convenções linguísticas, sem uma história (passado) ou um propósito (futuro)251.

O modelo do positivismo semântico também foi adotado pelo jurista inglês Herbert

Hart. A partir de críticas tanto aos defeitos do imperativismo empírico de John Austin quanto

a certos aspectos do normativismo de Kelsen, Hart (2001) desenvolveu uma teoria jurídica de

matriz analítica voltada à compreensão da prática jurídica a partir de sua estrutura linguística.

De início, Hart (2001) concordou com Kelsen e sustentou ser um erro do positivismo

analítico de Austin a crença de que o direito se explicaria pela ideia de um comando do

soberano aos seus súditos. No entanto, Hart reconheceu como legítimo o empreendimento

encontram-se, do ponto de vista do Direito positivo, sobre um e o mesmo plano. É um esforço inútil querer fundamentar ‘juridicamente’ uma com exclusão da outra.” (KELSEN, 1998, p. 392). Por outro lado, ao tratar da interpretação não-autêntica, feita pela ciência do direito, Kelsen mitiga a importante tarefa da ciência jurídica em tentar refinar e aprimorar o conhecimento do direito ao argumento de que, ao fim e ao cabo, a atividade judicial poderia exercer o poder discricionário igualmente em favor de qualquer dos sentidos possíveis para a norma jurídica: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximadamente.” (KELSEN, 1998, p. 396). Essa descrição da atividade jurídico-científica é, todavia completamente discrepante da atividade desempenhada pelos professores e comentadores em seus artigos e trabalhos acadêmicos, pois quando o jurista expõe a sua opinião sobre um determinado tema do direito, sua argumentação é sempre no sentido de trazer a melhor interpretação possível para o instituto em análise. Seria curiosa, para não dizer absurda, uma ciência jurídica praticada nos moldes descritivos previstos por Kelsen. Imagine-se qual seria o valor de um artigo científico com a seguinte conclusão: “Portanto, segundo a legislação X, a moldura das interpretações possíveis deixaria para o intérprete as possibilidades interpretá-la nos sentidos A, B e C, sendo que qualquer uma delas seria igualmente válida no ordenamento vigente por enquadrar-se na moldura.”. Esse é um dos principais argumentos utilizado por Dworkin (2003) em defesa da prática jurídica como uma atividade argumentativa – e não descritiva – o que conduziria, necessariamente, ao resultado de uma resposta correta ao final do empreendimento interpretativo.

251 Esse tema será retomado no capítulo seguinte.

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lançado por Austin com vistas a encontrar um elemento central que definiria o fenômeno

jurídico – a denominada ‘chave para a ciência do direito’. Assim, por meio de correções às

deficiências da teoria imperativa, Hart construiu sua versão do positivismo analítico. A

primeira crítica a Austin vem de sua leitura equivocada de que o direito consistiria em ordens

ou comandos baseados em ameaças emitidos pelo soberano. Segundo Hart (2001) a distinção

entre as locuções ‘estar obrigado’ e ‘ter uma obrigação’ indicaria que a relação jurídica entre

o Estado e seus súditos não se explicaria por meio da subordinação criada pela temeridade da

ameaça – o chamado ‘hábito geral de obediência’. No caso das obrigações jurídicas, o dever

de comportamento que recai sobre o indivíduo permaneceria existente ainda que ele não

estivesse factualmente ameaçado pela coação estatal. Assim, a estrutura da linguagem do

direito não permitiria afirmar que as regras jurídicas consistiriam apenas em comandos

imperativos de comportamento.

Por outro lado, Hart identificou que em todo ordenamento jurídico é possível verificar,

ao lado das regras que impõem comportamento, a existência de regras que têm a finalidade de

autorizar pessoas a criarem, extinguirem ou modificarem outras regras. Nesse caso, o

ordenamento jurídico não impõe um dever de comportamento ao indivíduo, mas

simplesmente confere-lhe uma autorização para criação de outras regras. Assim, além de

impor comportamentos, as regras jurídicas serviriam também para atribuírem poderes no seio

da estrutura jurídica:

Uma taxonomia pormenorizada das variedades de leis compreendidas num moderno sistema jurídico, liberta do preconceito de que todas devem ser redutíveis a um tipo único simples, está ainda por fazer. Ao distinguirmos certas leis, sob a denominação muito grosseira de leis que conferem poderes, das que impõem deveres e são análogas a ordens baseadas em ameaças, não passamos de um começo. Mas talvez se tenha feito o suficiente para mostrar que algumas das características distintivas de um sistema jurídico residem na disponibilidade que ele cria, através de regras deste tipo, para o exercício de poderes jurídicos privados ou públicos. Se as regras deste tipo específico não existissem, estaríamos privados de alguns dos conceitos ais familiares da vida social, visto estes pressuporem logicamente a existência de tais regras. Tal como não poderia haver crimes nem delitos e, portanto, nem homicídios, nem furtos, se não houvesse leis criminais do tipo imperativo que realmente se assemelham a ordens baseadas em ameaças, também não poderia haver nem compras e vendas, nem doações, nem testamentos ou casamentos, se não existissem regras que conferem poderes; porque estes actos, tal como as decisões dos tribunais ou as estatuições dos corpos legislativos, consistem justamente no exercício válido de poderes jurídicos. (HART, 2001, p. 39-40).

Hart (2001) identificou, portanto, uma distinção de natureza qualitativa entre as regras

jurídicas, que o levou a classificar essas duas espécies em regras primárias e secundárias. As

regras primárias teriam a finalidade de estabelecer diretrizes de comportamento imperativas

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aos cidadãos, enquanto as regras secundárias consistiriam em regras que atribuem

competências para o exercício de poderes públicos ou privados pelas autoridades e cidadãos,

respectivamente252. Assim, para Hart seria na união integrada entre essas duas espécies de

regras – e não na ideia de comando do soberano, como sustentou Austin – que residiria a

chave para a ciência do direito.

Como as regras primárias nasceriam de autorizações conferidas pelas regras

secundárias aos poderes públicos e privados para a criação de regras de comportamento, Hart

identificou que estas, por sua vez, também careceriam de um fundamento de validade capaz

de enquadrá-las como regras jurídicas e não de outro tipo. Mais uma vez Hart recorreu a uma

análise da estrutura linguística da prática jurídica e verificou o fato de que as pessoas

atribuiriam a um determinado poder político instituído a autoridade originária para a

estipulação das demais regras secundárias, sendo que elas, de um modo geral, estariam de

acordo quanto essa fonte normativa. Esse fato253 criaria uma ‘regra de reconhecimento’, isto

é, uma regra primordial para distinguir as regras jurídicas em relação às não-jurídicas. A

apenas as regras que passam no teste da regra de reconhecimento é que poderiam receber a

qualificação de regras válidas no ordenamento jurídico. Assim, a regra de reconhecimento

252 “Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos

é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas ações, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são, em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras; porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. As regras do primeiro tipo impões deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a acções que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis actos que conduzem não só a movimento ou mudanças físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações.” (HART, 2001, p. 91).

253 Diferentemente da norma fundamental, que se assenta em uma hipótese lógico-transcendental condicionante da validade do ordenamento jurídico, a regra de reconhecimento de Hart é uma constatação sociológica da eficácia global de um poder político em ser capaz de criar normas que as pessoas qualificam de ‘jurídicas’. Assim, enquanto a norma fundamental nasce de uma pressuposição do cientista do direito para explicar o encadeamento normativo, a regra de reconhecimento é um fato constatável do mundo real: “Uma vez estabelecida a sua existência [da regra de reconhecimento] como um facto, apenas confundiríamos questões ao afirmarmos ou negarmos que elas eram válidas ou ao dizermos que ‘supusemos’ mas não pudemos demonstrar a sua validade. Por outro lado, onde, como num sistema jurídico amadurecido, temos um sistema de regras que inclui uma regra de reconhecimento, de forma que o estatuto de uma regra como elemento do sistema depende agora do facto de ela satisfazer certos critérios facultados pela regra de reconhecimento, tal arrasta consigo uma nova aplicação da palavra ‘existir’. A afirmação de que uma regra existe pode agora já não ser o que era no caso simples de regras consuetudinárias – uma afirmação externa do facto de que um certo modo de comportamento era geralmente aceite na prática padrão como padrão. Pode ser agora, uma afirmação interna aplicando uma regra de reconhecimento aceite mas não expressa e significando (grosseiramente) nada mais do que ‘válida, dados os critérios de validade do sistema’. A este respeito, porém, como noutros aspectos, a regra de reconhecimento é diferente das outras regras do sistema. A asserção de que existe só pode ser uma afirmação externa de facto. Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido, ‘existir’, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de facto.” (HART, 2001, p. 121).

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seria fruto da constatação de que, do ponto de vista de um observador externo, a prática social

do direito estabeleceria um crivo distintivo entre as regras que criam obrigações jurídicas

daquelas que simplesmente colocariam as pessoas em uma posição de ter uma obrigação em

razão de uma ordem acompanhada de uma ameaça.

Hart também reconheceu que a prática social do direito, por ser intermediada por

regras, é, em última análise, uma experiência comunicativa. Com o intuito de exercer o

controle social que lhe é próprio, o direito necessitaria estabelecer padrões gerais de

comportamento. Para tanto, empregaria uma linguagem que se expressa por meio de

categorias genéricas nas palavras utilizadas. Elas serviriam para os destinatários

reconhecerem e interpretarem o teor das regras jurídicas a fim de que pudessem orientar as

suas condutas. De um modo geral essa relação comunicativa entre as regras e seus

destinatários possuiria um alto grau de eficácia, em razão da orientação que a linguagem em

geral pode oferecer. Todavia, em situações limítrofes, haveria um grau inevitável de incerteza

decorrente da ‘textura aberta do direito’254 que impediria a fixação de um sentido correto e

inequívoco às regras jurídicas. Para minimizar os efeitos dessa indeterminação das regras

jurídicas, as teorias jurídicas modernas teriam desenvolvido cânones interpretativos que

auxiliariam o intérprete a obter certa medida de certeza ou previsibilidade na aplicação do

direito. Contudo, os avanços obtidos nesse campo levaram a teoria jurídica a desenvolver a

falsa crença na possibilidade da eliminação da incerteza do seio do direito e a ignorar a

condição de textura aberta que lhe é inerente. Segundo Hart, a conclusão de que seria possível

eliminar a textura aberta do direito seria um tour de force obtido ‘de forma cega e

preconceituada’ em relação à dinâmica da prática jurídica, pois seu resultado seria o

engessamento do direito a uma padronização de termos e conceitos definidos pela doutrina

jurídica. Uma melhor descrição da prática jurídica abraçaria a indeterminação das regras

jurídicas e reconheceria que a autoridade responsável pela aplicação do direito exerceria um

poder discricionário ao se deparar com uma situação de incerteza quanto ao sentido de uma

expressão:

254 “Em todos os campos de experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem,

quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer. Haverá, na verdade casos simples que estão sempre a ocorrer em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis (‘Se existir algo qualificado como um veículo, um automóvel é-o certamente’) mas haverá também casos em que não é claro se se aplicam ou não (‘A expressão ‘veículo’ usada aqui inclui bicicletas, aviões e patins?’) Estes últimos são situações de fato, continuamente lançadas pela natureza ou pela invenção humana, que possuem apenas alguns dos aspectos dos casos simples, mas a que lhes faltam outros. Os cânones de interpretação não podem eliminar essas incertezas, embora possam diminuí-las.” (HART, 2001, p.)

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A textura aberta significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. Este facto saliente da vida social continua a ser verdadeiro, mesmo que possam surgir incertezas relativamente à aplicabilidade de qualquer regra (quer escrita, quer comunicada por precedente) a um caso concreto. Aqui, na franja das regras e no campo deixado em aberto pela teoria dos precedentes, os tribunais preenchem uma função criadora de regras que os organismos administrativos executam de forma centralizada na elaboração de padrões variáveis. Num sistema em que o stare decisis é firmemente reconhecido, esta função dos tribunais é muito semelhante ao exercício de poderes delegados de elaboração de regulamentos por um organismo administrativo. Em Inglaterra, este facto é muitas vezes obscurecido pelas aparências: porque os tribunais frequentemente negam qualquer função criadora desse tipo e insistem em que a tarefa apropriada da interpretação da lei e do uso do precedente é, respectivamente, procurar a ‘intenção do legislador’ e o direito que já existe (HART, 2001, p. 148-149).

Dworkin (2003) criticou o positivismo analítico de Hart por ser uma teoria que

enxergava nas controvérsias jurídicas que se processam no cotidiano da prática jurídica uma

mera divergência quanto ao sentido das palavras, fato que eliminaria a atitude interpretativa

quanto ao propósito do que seria a finalidade da própria prática jurídica. Para Hart, a única

‘atividade interpretativa’ possível aos juristas seria a mesma busca semântica de atribuição de

significado aos termos contidos nas fontes já vista em Kelsen e que referenda o modelo

conversacional de interpretação. Desse modo, o direito, da mesma forma restaria aprisionado

às convenções linguísticas que definem o sentido de certas expressões na prática jurídica255.

No entanto, o refinamento e as correções dadas por Hart ao positivismo semântico

vieram quando a teoria jurídica já lançava um olhar de desconfiança a essa matriz teórica, por

entendê-la como incapaz de descrever corretamente a natureza do direito e da prática jurídica.

Desde 1945 começou a se desenvolver nas margens do pensamento jurídico uma série de

questionamentos ao método científico e aos efeitos práticos de uma leitura positivista do

direito. Ainda que sem formar um todo coerente, esses questionamentos das mais diferentes

espécies foram reunidos sob denominação de ‘pós-positivismo’ e consistem em uma tentativa

de superar os limites e as deficiências do positivismo sem propor, necessariamente, uma

completa rejeição ao direito positivo como elemento central de referência para a prática

255 Hart (2001) pondera que dois fatores seriam responsáveis por estabilizar a prática jurídica, mesmo diante da

incerteza de expressões tidas como de manifesto grau de incerteza: a) o emprego de padrões médios de referência diante de situações extremadas segundo uma lógica da razoabilidade levaria a um equilíbrio de posicionamentos responsável por produzir um meio termo comum entre as interpretações possíveis; b) a situação de incerteza quando ao sentido da norma levaria as pessoas a anteciparem um padrão interpretativo de comportamento comum, como é o caso da diligência exigida pelo homem médio (em inglês, due care), muito embora esses padrões estejam sujeitos a posterior controle pelos tribunais.

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jurídica. Essas correntes trazem, contudo, uma leitura menos ‘científica’ e ‘formalista’ do

direito em prol de uma abordagem mais compromissada com o caráter argumentativo e

hermenêutico do direito.

E com essas propostas de uma abordagem pós-positivista do direito, a teoria jurídica

passou a identificar os efeitos temporais decorrentes da prática positivista, como visto ao

longo do tópico. E somado a uma renovada compreensão do tempo como também visto

acima, autores como François Ost e Ronald Dworkin dedicaram análises importantes sobre a

relação entre tempo e direito e apontaram que, sob o positivismo jurídico, a teoria e a prática

jurídicas se tornariam um saber sem ‘memória’. No capítulo seguinte, verificar-se-á, então,

como esse efeito temporal foi proporcionado ao direito para que, em seguida, possa-se dar

sequência ao propósito inicial do trabalho de identificar de que modo se pode falar em uma

memória ao direito.

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4 O RESGATE DA COMPREENSÃO TEMPORAL DO DIREITO NA T EORIA

JURÍDICA PÓS-POSITIVISTA

A revisão de literatura efetuada no capítulo anterior demonstrou que a hegemonia do

paradigma positivista na comunidade jurídica reduziu o campo de relações simbólicas entre

tempo e direito à abordagem cronológica ‘objetiva’ da História do Direito tradicional256. Isso

se deu, como visto, em razão de uma leitura ‘normativa’ do direito presente nas duas

principais vertentes do positivismo jurídico. De um lado, a proposta metodológica para o

conhecimento jurídico feita pela jurisprudência germânica do século XIX fez do texto legal a

manifestação exterior de uma essência normativa do direito. Isso teria o efeito temporal de

cristalizar o conteúdo do direito na lei e levar os intérpretes a desenvolverem técnicas

interpretativas reveladoras dessa essência – inaugurando o interminável debate entre a

vontade da lei e a vontade do legislador que, por muito tempo, dominou a literatura jurídica

especializada. De outro, a leitura semântica contida na proposta ‘científica’ de Kelsen e Hart

enfatizou o problema da descoberta das convenções linguísticas que definiriam o significado

textual das expressões contidas nas fontes do direito. Com isso, a interpretação jurídica

converteu-se na descrição do conteúdo desses códigos de linguagem e, assim, fez do direito

uma variável independente em relação ao mundo histórico-cultural em que se insere. Em

ambos os casos, o apego à dimensão normativa do direito teve o efeito de limitar a relação

entre direito e tempo social aos processos de mudança legislativa, conclamando o jurista a se

prender ao presente da norma vigente em sua tarefa interpretativa.

Quando se deu a débâcle do positivismo no seio na comunidade jurídica, os juristas

depararam-se não apenas com a incapacidade dessa teoria em descrever e explicar

corretamente a prática jurídica, mas também com diversos efeitos negativos que a hegemonia

desse modo de compreensão do direito lhe teria acarretado. Um desses efeitos negativos

destacado em recentes trabalhos de autores do pós-positivismo foi a ausência de sensibilidade

da teoria positivista em promover uma leitura do direito a partir de sua relação com a

temporalidade257. Inicia-se, assim, o capítulo fazendo uma caracterização geral do pós-

256 Abordagem que se limita a apresentar a evolução do pensamento jurídico e a fazer uma cronologia das

principais legislações e fatos políticos relevantes para o direito. 257 Como já mencionado, remete-se o leitor, aqui, a título de exemplo, aos trabalhos de Bretone (1999), Carty

(1990), De Giorgi (2006), Derrida (2007), Dworkin (2003), Husserl (1955), Kirste (2003), Luhmann (2006), Ost (2005a), Posner (2007), Santos (2000).

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positivismo com a finalidade de apresentar as premissas gerais que permitiram que essa

corrente pudesse aprofundar a análise da relação entre tempo e direito.

Em seguida, especificamente, pretende-se colocar em evidência o trabalho de dois

juristas que reintroduziram o problema do tempo na teoria jurídica por meio de uma

investigação sobre os efeitos temporais próprios dos diferentes modos de se conceber a prática

jurídica. Com François Ost e Ronald Dworkin, propõe-se explorar a crítica ao

empobrecimento trazido pela teoria positivista à relação do direito com a temporalidade. Nos

meandros dessa análise, adentrar-se-á, ainda, em um dos objetivos específicos da presente

investigação: demonstrar como a teoria positivista construiu uma compreensão teórica do

direito – e que acabou por se refletir também na prática jurídica – marcada pelo signo da

‘amnésia’, isto é, pela falta de ligação com uma memória social ‘saudável’258. Essa

constatação consistirá no ponto de partida para a investigação do capítulo seguinte, que visará

elaborar uma teoria geral da memória a fim de traçar os elementos caracterizadores dessa

categoria.

4.1 A renovação metodológica do pós-positivismo e a abertura teórica para uma

compreensão temporal do direito

Os filósofos políticos examinaram os problemas relativos à força do direito, e os acadêmicos e os doutrinadores se dedicam aos problemas

de seus fundamentos. Em consequência, as filosofias do direito são em geral teorias desequilibradas do direito:

tratam basicamente dos fundamentos e praticamente se silenciam sobre a força do direito.

Ronald Dworkin – O império do direito

Galuppo (2005) relata que a expressão ‘pós-positivismo’ tem sido utilizada para

designar o conjunto de formulações teóricas que surgiram a partir de meados do século XX

como reação à hegemonia dos cânones positivistas na ciência jurídica. Mesmo rejeitando

algumas das teses centrais que caracterizam a metodologia positivista, a crítica pós-positivista

não recaiu na abordagem jusnaturalista tradicional que lastreia a essência do direito em uma

ordem metafísica de prescrições capaz de se sobrepor a um direito positivo irracional, como

258 A adjetivação se faz necessária, pois, como se verá adiante, é possível falar na existência de uma ‘memória’

que se caracteriza tão somente pela ‘função memorial’ gerenciamento da realidade, mas que padece de uma incapacidade de formar e conservar memórias declarativas ou de conteúdo. Nesse sentido, essa seria uma memória sem ligação com passado.

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se fosse seu critério corretivo. Pelo contrário, o pós-positivismo endossa a constatação de que

o direito produzido historicamente, como objeto da cultura de uma sociedade, consiste no

ponto de partida de sua cognição. Todavia, o pós-positivismo não comunga de algumas das

teses centrais do positivismo jurídico construído nos séculos XIX e XX, como, por exemplo, a

definição do direito válido por critérios exclusivamente formais e a visão de que o direito se

resume a sua expressão contida nas fontes produzidas pelos órgãos do Estado responsáveis

pela criação normativa. Assim, mais do que substituir a doutrina positivista, o pós-positivismo

buscou corrigir as premissas teóricas que implicaram em uma leitura incorreta do fenômeno

do direito.

Ainda segundo Galuppo (2005), as características comuns ao conjunto das teorias pós-

positivistas seriam: a) Atribuir menor ênfase ao aspecto lógico da tarefa de integração das

normas jurídicas no ordenamento jurídico e confiar que as soluções para os casos concretos

possam brotar do interior de um processo argumentativo inerente à própria prática jurídica.

Isso exigira do jurista substituir a tradicional leitura sistemática do ordenamento jurídico

defendida pelo positivismo pelo emprego de um raciocínio problematizante259; b) substituir o

conceito de verdade pelo de correção normativa como critério epistemológico de análise das

normas jurídicas. Vendo o direito como uma realidade do mundo objetivo, o positivismo

buscava, nas ciências naturais, a noção de ‘verdade’ para descrever a relação entre uma

proposição e sua correspondência na realidade. No entanto, o pós-positivismo parte da

premissa de que o direito não faz parte do mundo objetivo, mas é uma realidade construída

intersubjetivamente por meio do consenso social e linguístico. Desse modo, a correção

normativa avaliaria a pertinência das normas jurídicas em cada caso, segundo a aceitabilidade

racional das razões que as fundamentam. Por conseguinte, as teorias pós-positivistas

abandonariam a pretensão de que a tarefa da ciência jurídica seria a de emitir enunciados

descritivos de uma realidade objetiva encontrada no material jurídico produzido pelos órgãos

políticos estatais. Ao invés, sua proposta será a de apresentar enunciados prescritivos

adequados – isto é, normativamente corretos – para solucionar as controvérsias jurídicas dos

casos concretos260; c) por fim, ao rejeitar o propósito de um conhecimento jurídico assentado

259 Como exemplos de autores que adotam a abordagem problemática em suas teorias, citam-se: Theodor

Viehweg e sua tópica; a lógica retórica de Chaïm Perelman; a teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick, Robert Alexy e Aulis Aarnio; o direito como integridade de Ronald Dworkin; a metódica de Friederich Muller; e o pragmatismo jurídico de Richard Posner.

260 No mesmo sentido, Gustin e Dias (2002, p. 30) asseveram: “Novas condições de concepção da Ciência do Direito foram constituídas a partir da noção da complexidade das relações sociais, que não podem ser compreendidas em sua plenitude a partir do aumento da eficiência dos procedimentos. A Ciência Jurídica contemporânea apela à razoabilidade, ao conhecimento crítico e à reconceituação do ato justo. Suas formas de produção do conhecimento são discursivas e seu conjunto de complexos argumentativos trabalha com a

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na descrição do direito, o pós-positivismo abriria mão da pretensão de erigir um saber

‘científico’ – se por ‘ciência’ se compreender aquele saber que atende aos padrões construídos

pelas ciências experimentais ao longo da modernidade. Ao contrário, o direito encamparia a

proposta de produzir um conhecimento de natureza hermenêutica, voltado antes a dar

concretude às normas jurídicas na solução dos casos do que em produzir descrições genéricas

sobre o sentido dos textos legislativos. O pós-positivismo retomaria, assim, a intuição romana

de que o direito é um saber prudencial, isto é, circunstancial.

Ao encarar o direito a partir das características acima enumeradas, o jurista ampliaria o

foco da lente pela qual percebe e analisa o fenômeno do direito, de tal forma a se permitir

fazer interconexões entre o saber jurídico e outros ramos do conhecimento humanístico. Na

medida em que a proposta pós-positivista abdicou da pretensão de conferir autonomia

científica ao direito – e, portanto, de encontrar um ‘objeto’ que lhe conferisse pureza

metodológica distintiva em relação a outros saberes relacionados – o sincretismo teórico

passou a ser visto com bons olhos pela comunidade jurídica, como explicam Gustin e Dias

(2002, p. 25):

Até muito recentemente (segunda metade do século XX), predominaram a unidisciplinaridade e a metodologia monográfica, que não pretendiam uma visão de totalidade. No pós-guerra, ocorre uma mudança de rumos. A realidade cada vez mais complexa é problematizada e experimenta-se a institucionalização da pesquisa. O enfoque metodológico deixa de ser monológico e, no primeiro momento, assume uma vertente da pluridisciplinaridade, ou seja, de cooperação teórica entre campos do conhecimento antes distanciados. Passa-se, daí, não mais somente para a cooperação, mas para a coordenação de disciplinas conexas ou para a interdisciplinaridade. Atualmente, a transdiciplinaridade ou a produção de uma teoria única a partir de campos de conhecimento antes compreendidos como autônomos é a tendência metodológica que emerge com maior força. Os dois últimos enfoques exigem uma nova linguagem, dialógica e interativa. Do paradigma da consciência, que antecedeu a esses novos enfoques, passa-se para o paradigma da inter e da transcompreensão, período conhecido como da emergência de um novo paradigma. Da antiga razão centrada no sujeito e na metodologia monográfica surge a razão metodológica comunicacional. Inserem-se, aqui, as ‘novas’ vertentes metodológicas da Ciência do Direito e da Sociologia Jurídica. O objeto do Direito passa a ser uma variável dependente e a relação jurídica, um fenômeno social.

Nessa esteira, como já mencionado, juristas filiados a diferentes concepções teóricas

apropriaram-se de referências teóricas da filosofia e das ciências sociais para se dedicar ao

estudo dos efeitos temporais da prática jurídica. A premissa geral que orienta essa

investigação seria, assim, o fato de que o direito não é indiferente à passagem do tempo. Essa

validade dos argumentos por sua relevância prática e sua capacidade de emancipação dos grupos sociais e indivíduos. Só podem ser considerados emancipados aqueles grupamentos que, a partir dos conhecimentos científicos, convencem-se da validade dos argumentos e do saber produzido e, por isso, adquirem a capacidade de julgá-los e justificá-los perante si mesmos e os demais grupos sociais e indivíduos.”.

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premissa se desdobra, no entanto, em duas teses amplamente exploradas pelo pós-positivismo,

a saber: a) as formas teóricas e práticas da vivência cultural do direito afetariam diretamente a

forma de apreensão do tempo pelo grupo social; b) a legitimidade do direito se veria reforçada

caso o tempo social em curso fosse capaz de promover uma maior integração social.

Na sequência do presente capítulo, destacar-se-á, como já mencionado, a contribuição

de dois autores que enfrentaram a relação entre tempo e direito a partir das teses acima

mencionadas. Em primeiro lugar, pretende-se abordar a investigação de François Ost (2005a)

sobre a dialética entre tempo e direito e o papel do positivismo no processo de

destemporalização do direito. Já o tópico seguinte apresentará o giro interpretativo proposto

por Ronald Dworkin (2003) a fim de compreender de que modo sua concepção de direito

como integridade resgataria uma prática jurídica temporalmente equilibrada em oposição ao

positivismo e ao pragmatismo jurídico.

4.2 François Ost e a influência do positivismo jurídico na relação dialética entre tempo e

direito

4.2.1 Sobre a relação dialética entre tempo e direito

A investigação sobre a relação entre tempo e direito feita por François Ost (2005a) tem

seu ponto de partida nos avanços epistemológicos promovidos pelas ciências sociais em

direção a uma noção sociológica de tempo. Para tanto, sua primeira tarefa é rejeitar as

imagens tradicionais do tempo – seja como tempo físico, seja como experiência psíquica –

para abraçar um conceito sócio-histórico de tempo radicado na análise da experiência

cultural261. O tempo sócio-histórico nasce de um processo coletivo denominado

temporalização e que se refere à vivência pelo grupo social da determinação temporal da

experiência coletiva temporal no interior de sua cultura. Como explica Elias (1998, p. 60-61):

Apreenderemos isso com mais clareza ao voltarmos à forma verbal da palavra ‘tempo’, à atividade humana de sincronização ou ‘temporalização’. É possível determinar posições e intervalos numa corrida de cavalos, numa reação química, numa visita ou numa guerra. Em todos os estágios universo, físico, biológico, social ou pessoal, as sucessões de acontecimentos dão margem à sincronização. É isso que temos em vista ao declarar que o conceito de tempo pode ser aplicado a sequências de qualquer espécie, independentemente de seu caráter específico. Na totalidade dos casos, a única coisa necessária é a padronização social de uma certa sequência de

261 O conceito de tempo social utilizado por Ost (2005a) é extraído de Elias (1998) e já apresentado no primeiro

capítulo do presente trabalho.

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acontecimentos que sirva de escala de medida, e pouco importa que ela seja de ordem física ou sócio-histórica.

Tendo em vista que as determinações temporais são socialmente construídas a partir

de uma experiência da vivência do tempo pela sociedade, o tempo sócio-histórico possuiria

uma materialidade que se relaciona ao produto dessa vivência262. O conteúdo desse tempo

sócio-histórico nasceria da conjunção entre as técnicas disponíveis na sociedade para registro

e medição do tempo e as forças sociais capazes de impor sua construção social263. Logo, o

tempo social assumiria o status de uma instituição social264 com a importante função de

auxiliar a preservação do elo que mantém os indivíduos unidos no grupo social.

Para que o tempo sócio-histórico possa desempenhar a função de agregação social

acima descrita, ele precisa fluir de maneira ‘equilibrada’. Essa metáfora se explica pela

presença de uma harmonia entre as relações de poder em cena no jogo das forças sociais e as

técnicas que se relacionam diretamente com a percepção social do tempo. Caso contrário, o

tempo perderia sua força instituinte, levando ao fenômeno da destemporalização. A

destemporalização se caracterizaria pela ausência de uma ‘justa medida’ na marcha do tempo

social, acarretando-lhe uma diminuição em sua condição de símbolo social portador de valor

para a sociedade. Uma vez presente, a destemporalização levaria a um modo de caminhar do

tempo em formas socialmente indesejadas e perniciosas para o grupo social.

A destemporalização se dá sob quatro diferentes formas de distúrbio na relação entre

as forças sociais e as técnicas de determinação temporal: a) a nostalgia da eternidade,

responsável por recusar a natureza do tempo como mudança; b) a vertigem da entropia, que

seria o abandono do curso do tempo a sua dimensão puramente física; c) a tentação do

determinismo, responsável por produzir uma representação homogênea e uniforme do tempo

que impediria a introdução de descontinuidades e mudanças sociais e; d) o risco da discronia,

que não permitiria que as marchas temporais dos diferentes grupos sociais estivessem

sincronizadas entre si (OST, 2005a).

262 Ost (2005a) exemplifica essa construção social do tempo por meio da figura dos calendários. Todo calendário

consiste em um sistema social de medida do tempo elaborado tanto com base em dados fornecidos por fenômenos cósmicos e pela astronomia, como também a partir de acontecimentos fundadores que conferem início e sentido à história de um grupo social. Pense-se, por exemplo, na divisão cristã do calendário em antes e depois do nascimento de Cristo como referência para a contagem dos anos.

263 Outra característica do tempo-histórico diretamente relacionada a esse seu caráter ‘construído’ seria o fato de o processo de maturação e desenvolvimento do tempo ser diferente de sociedade para sociedade e mesmo entre diferentes grupos sociais de uma mesma sociedade (OST, 2005a).

264 O termo ‘instituição’ deve ser entendido aqui no sentido durkheimiano de uma ordem moral que impõe regras de comportamento compartilhadas e aceitas pelo grupo social e que são responsáveis por proporcionar o funcionamento normal e coeso da sociedade (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002).

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A nostalgia da eternidade seria o fenômeno típico de culturas marcadas por um projeto

comunitário forte, cuja característica seria o elogio de uma forma ideal de vida social que

viesse a negar o caráter dinâmico e cíclico do tempo. As diretrizes políticas que orientariam

esse projeto comunitário empreenderiam esforços no sentido de integrar o grupo social em

torno de uma identidade coletiva tão forte que o efeito temporal produzido seria o de retirar

do grupo social a percepção do curso da história. Isso se daria por meio de uma negação do

caráter dinâmico e contingente da experiência temporal, pois o sucesso do projeto comunitário

dependeria de uma direção unitária e inequívoca para o sentido social do tempo265. O combate

a essa forma de destemporalização e seus respectivos efeitos se faria por meio da instituição

de um tempo social capaz de reconhecer o caráter finito da condição humana, tornando-se,

assim, aberto às possibilidades de mudanças e incertezas.

A vertigem da entropia, por sua vez, seria o efeito contrário à nostalgia da eternidade.

Nessa situação, a sociedade estaria tão imersa nas mudanças temporais proporcionadas pelo

transcorrer do tempo físico que perderia a capacidade de se albergar do turbilhão do fluxo

histórico. Ao assumir a mudança permanente como modus operandi social, produzir-se-ia o

efeito temporal de uma ‘pane de historicidade’. Por consequência, o grupo social não seria

capaz de se inscrever na chamada ‘longa duração’266 em razão da incapacidade de se vincular

às bases estruturais de sua origem antepassada (língua, tradições, rituais, monumentos,

condições geográficas, hábitos, etc...). Assim, a imagem do tempo em sua representação

coletiva impediria a formulação de um resgate histórico ou de uma projeção futura no

imaginário social267. A ‘crise da cultura’ imposta pela vertigem das mudanças teria levado a

uma perda de interesse social pelo passado. Ao reabilitá-lo como espaço da experiência, a

sociedade imediatamente conferiria ao futuro a condição de horizonte da expectativa em razão

da ligação existente entre essas duas figuras temporais. A alternativa da construção social de 265 “Podemos pensar que é característico de todos os fundamentalistas projetarem-se neste fora do tempo

fabuloso: quer se tratasse de regressar ao tempo sagrado das origens (como pretendiam as grandes cosmocratias antigas) ou de se projetar nos amanhãs radiosos da escatologia (como o fizeram alguns totalitarismos dos tempos modernos), quer se tratasse de anunciar um ‘Reich de mil anos’ ou de prometer a ‘grande noite’, é sempre de ‘final dos tempos’ que se trata; saltar fora da história e de suas incertezas para mergulhar, sem mais delongas, na ordem plena da comunidade identitária, a que alimenta o fantasma do ‘povo único’ e gera o integrismo, a filosofia da totalidade.” (OST, 2005a, p. 26).

266 A ‘longa duração’ foi uma expressão cunhada pela metodologia histórica da escola dos Annales e se refere à investigação histórica que enfatiza a apresentação das estruturas sócio-culturais e das mentalidades a fim de expor as condições sociais em que se processam os movimentos históricos. O traço característico que lhe opõe à história dos acontecimentos (événementiel) é justamente a ênfase na permanência da estrutura em relação à perenidade dos fatos históricos e políticos (VOVELLE, 1998). Retomar-se-á esse ponto no capítulo seguinte.

267 “Privadas de um elo vivo com o presente, as tradições se ressecam e alimentam apenas na melhor das hipóteses um discurso erudito e na pior, uma nostalgia reacionária; amputadas das aspirações do próprio presente, as projeções do futuro procedem apenas da ficção científica ou de utopias incapazes de concretização.” (OST, 2005a, p. 28).

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um tempo neguentrópico – isto é, um tempo social que nega a vertigem da entropia – exigiria

esforço ativo da sociedade no sentido de produzir o efeito temporal da duração real268.

Segundo Ost (2005a), a hermenêutica seria indispensável a essa tarefa de ligação

intertemporal. Por meio da fusão de horizontes que lhe é típica, a hermenêutica colocaria em

diálogo mundos culturalmente separados pela distância temporal, construindo um tempo

histórico portador de sentido.

A terceira forma da destemporalização seria a tentação de retorno ao determinismo,

pela qual o sentido social do tempo se cristalizaria em uma única imagem que se repetiria

indefinidamente. Com isso, a sociedade se fecharia à pluralidade de caminhos e possibilidades

própria do curso temporal. O determinismo seria decorrente da prisão excessiva da sociedade

a uma forma específica de duração real. Ele nasceria do fechamento do grupo social para a

ação política criadora e inovadora em nome da incorporação do ritmo programado e sempre

repetitivo da ação técnica269. Sua consequência seria a de produzir um efeito temporal em que

o futuro é deslocado para um ponto longínquo do horizonte, paralisando a representação

social do movimento histórico e prolongando o instante presente em uma eternidade móvel.

Sem ter as rédeas de sua autocondução no tempo, por carecer de uma ideologia de

mobilização da mudança, a sociedade ficaria à mercê das lógicas temporais imperativas do

mercado e da política imediatista. A reabilitação do futuro como uma possibilidade concreta

de emancipação social somente viria com o restabelecimento do espaço político, o que

demandaria um reforço de confiança nas instituições capazes de garantir as regras do jogo

democrático participativo. Afinal somente essa forma política é capaz de instituir uma arena

pública em que as forças sociais têm oportunidade de apresentar suas diferentes propostas

para o futuro da sociedade. Diferentemente do radicalismo presente nos programas políticos

unilaterais, a contingência e a descontinuidade no processo de evolução da sociedade seriam

vistas como elemento natural do desenrolar histórico.

Por último, é possível que o tempo venha a assumir diferentes ritmos de marcha nos

grupos sociais que integram a sociedade local, nacional e mundial, fato que acarreta a

268 Duração real é uma noção proveniente da filosofia bergsoniana e significa a percepção da realidade do ponto

de vista das coisas mesmas. Decorre do olhar consciente para o mundo exterior que leva à percepção dos objetos da realidade justapostos e reunidos em uma imagem espacial homogênea que perdura no tempo (AVELLAR, 1982).

269 “É essencial, portanto, a esse respeito, não impor á vida social (praxis) o ritmo programado que convém á fabricação das coisas (poiesis): uma vez que a primeira deriva de uma temporalidade aberta que se ajusta à lógica plural e interativa da razão prática, a segunda procede da razão técnica e de seu tempo homogêneo e contínuo. Se insistimos nesse ponto, é porque substituir o ‘agir’ (político) pelo ‘fazer’ (técnico), assimilar a história dos homens a um artefato, e reduzir a nada o espaço do kairós: é o desejo secreto de todos os pensamentos anti-democráticos.” (OST, 2005a, p. 32).

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chamada discronia social. Seja em escala local – como no espaço das grandes metrópoles –

seja em escala global, a sociedade moderna é marcada por uma radical diversidade econômica

e cultural. Daí que o processo de determinação temporal no interior desses grupos não é

uniforme, o que levaria à existência de diferentes ritmos da marcha temporal em cada um

deles – apesar de coexistirem em um mesmo espaço e de se relacionarem entre si. Ter-se-ia,

assim, uma fragmentação do tempo social nas classes, seitas, tribos e guetos que compõem a

sociedade multicultural contemporânea. A falta de um mecanismo de integração social

temporal, que permita a coordenação dessa marcha temporal desconcertada entre os diversos

grupos sociais, despertaria um processo de desagregação social intergrupal, face à ausência de

uma ligação coletiva que os uniria em um tempo portador de um sentido coletivamente

compartilhado270. Para evitar o risco da discronia, Ost (2005a) dirá que a sociedade necessita

recorrer à imagem de uma ‘embreagem temporal’, cuja finalidade seria a de articular a

aceleração e o retardamento da marcha dos diversos tempos sociais, a fim de fazê-los

caminhar em harmonia. Isso permitiria que os indivíduos e grupos sociais tivessem uma maior

liberdade na escolha de seu próprio tempo, não se sujeitando às imposições temporais da luta

darwinista pela sobrevivência.

Segundo Ost (2005a), o direito teria um papel decisivo no processo de instituição

social do tempo e, portanto, nessa tarefa de combate à ameaça de destemporalização. Sua

dupla função de regulador social por excelência e de criador e definidor de valores sociais o

colocaria em uma posição privilegiada para combater os quatro processos acima descritos. No

entanto, para se atribuir ao direito tal papel, Ost (2005a, p. 13) é forçado a ampliar as

fronteiras de sua compreensão sobre o que é o direito e qual é sua função na sociedade. Sua

alternativa é partir de uma leitura ‘performática’271 de sua natureza:

A segunda tese subentendida nessa obra diz respeito ao direito. Ela afirma que a função principal do jurídico é contribuir para a instituição do social: mais que proibições e sanções como se pensava anteriormente; ou cálculo e gestão como se crê muito frequentemente na atualidade, o direito é um discurso performativo, um tecido de ficções operatórias que redizem o sentido e o valor da vida em sociedade.

270 “Ora, é forçoso constatar, a esse respeito, as crescentes tensões que se estabelecem entre os diferentes tempos

sociais: tempo do trabalho e tempo do não-trabalho (o primeiro torna-nos ‘indisponíveis ao mundo’, o segundo, ‘excluídos do mundo’), tempo familiar e tempo profissional (e, porque a família está em crise, há tensão entre tempo conjugal reversível e tempo parental irreversível), tempo da inovação e tempo da tradição, tempo dos ganhadores e tempo dos excluídos, tempo da comunicação e tempo da reflexão... Enquanto determinadas esferas se embalam e seu ritmo se acelera loucamente, outras, ao contrário, parecem diminuir seu ritmo e mesmo parar: que sociedade poderia conformar-se duradouramente com tais extorsões?”. (OST, 2005a, p. 35).

271 Em outro texto, Ost (2005b) esclarece que o caráter performático do direito se deve ao fato de que o dizer do direito consiste também em um fazer, isto é, “um estado de coisas visado adquire uma forma social consistente”.

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Instituir significa, aqui, atar o laço social e oferecer aos indivíduos as marcas necessárias para sua identidade e sua autonomia. É sob o ângulo de sua contribuição para a extração do estado natural e sua violência sempre ameaçadora, sob o ângulo de sua capacidade de instituição, que o direito será, então, interrogado. (OST, 2005a, p. 13).

Uma vez que o tempo social é uma instituição com a finalidade de contribuir para o

incremento do amálgama social e que a natureza e a finalidade do direito são mais

abrangentes do que a simples prescrição normativa, Ost (2005a) vislumbra a existência de

uma relação dialética de implicações recíprocas entre o tempo social e o direito:

(...) o direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito. Ainda, mais precisamente: o direito temporaliza, ao passo que o tempo institui. Trata-se, então, de uma dialética profunda e não de relações superficiais que se ligam entre o direito e o tempo. O tempo não permanece exterior à matéria jurídica, como um simples quadro cronológico em cujo seio desenrolaria sua ação; do mesmo modo, o direito não se limita a impor ao calendário alguns prazos normativos, deixando para o restante que o tempo desenrole seu fio. Antes, é muito mais desde o interior que o direito e o tempo se trabalham mutuamente. Contra a visão positivista que não fez mais que exteriorizar o tempo, nós mostraremos que não é possível ‘dizer o direito’ senão ‘dando o tempo’; longe de se voltar à medida formal de seu desenrolar cronológico, o tempo é um dos maiores desafios da capacidade instituinte do direito. (OST, 2005a, p. 13-14).

Assim, o direito contribui para a instituição social do tempo ao refrear os processos

que promoveriam a destemporalização por meio da imposição de valores que consagram uma

ética social, da regulamentação do comportamento dos atores sociais que contribuem

negativamente para o desequilíbrio da marcha temporal e da concessão de tutelas e garantias

aos grupos menos favorecidos no contexto desse conflito entre as forças políticas sociais. No

sentido inverso dessa relação dialética, o direito dependeria da coesão social proporcionada

pelo tempo social que flui de maneira equilibrada. Isso porque a disseminação e a

incorporação de valores socialmente compartilhados pelo grupo aumentariam o grau de

aceitação das diretrizes normativas do direito, reforçando, assim, a legitimidade perante os

olhos do grupo social272.

Segundo Ost (2005a), a instituição do tempo social pelo direito se faria por meio do

recurso a quatro figuras que são, ao mesmo tempo, normativas e temporais: a memória, o

perdão, a promessa e o questionamento. Tais figuras criariam esquemas para uma leitura

temporal do direito. Elas seriam responsáveis por promover, cada uma a seu modo, o

272 Note-se que essa é uma relação dialética que se retroalimenta: quanto maior a capacidade do direito para

instituir o tempo social, maior sua legitimidade, o que, por sua vez, incrementa ainda mais sua capacidade de instituir, levando a um aumento de legitimidade e assim sucessivamente.

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ligamento e o desligamento do direito em relação ao passado e ao futuro. Cada uma dessas

figuras temporais apresentaria ao direito os caminhos para a construção de um discurso de

natureza performativa caso pretenda levar a sério seu papel de fundador de um tempo social

portador de sentido. Elas indicariam ao direito um compromisso de fazer existir o teor de

enunciados de um discurso normativo-temporal que apontaria para formas juridicossociais

responsáveis por proporcionar o equilíbrio temporal da sociedade.

Dentro dessa perspectiva geral da proposta de Ost (2005a), ele identifica que a teoria e

a prática jurídica de inspiração positivista foram responsáveis por promover um déficit de

inscrição do direito na temporalidade. Segundo Ost, esse modo de abordagem do direito foi

responsável por contribuir para os processos de destemporalização acima mencionados por

impedir que o direito colocasse em perspectiva a possibilidade de um vínculo tanto com o

passado, quanto com o futuro. Ao perder de vista essas duas dimensões temporais, o direito ao

mesmo tempo ignorou a sua ‘memória’273 e abdicou da esperança quanto a um futuro melhor.

4.2.2 Da relação entre a compreensão do direito sob o paradigma do positivismo e a

destemporalização

Ao longo da apresentação dos discursos performativos das figuras normativo-

temporais da memória e da promessa, necessários à ligação do direito com o passado e com o

futuro, respectivamente, Ost (2005a) dedicou parte da análise a demonstrar como

determinados aspectos da leitura positivista do direito contribuiriam para reforçar os

processos de destemporalização. São três aspectos que, como se verá adiante, colocariam o

direito em uma condição de indiferença em relação a sua dimensão temporal e, por isso,

fariam com que ele deixasse de promover um ligamento com o passado – no caso dos dois

aspectos relacionados à memória – e com o futuro – no caso do aspecto relacionado à

promessa.

Um primeiro aspecto levantado por Ost (2005a) sobre o problema temporal da prática

positivista deriva da tese de Derrida (2007) sobre o fundamento do direito como um ato

performativo puro. Na construção de seu argumento em Força de Lei, Derrida (2007, p. 24)

teria atribuído ao direito a prerrogativa de colocar a força de sua validade normativa à

margem do curso histórico, ao fundar sua autoridade unicamente na violência274:

273 No capítulo 6 retomar-se-á a obra de Ost no que diz respeito à caracterização da memória jurídica. 274 Para Derrida (2007), isso não seria necessariamente ruim ou negativo, pois atribuiria ao direito a marca da

desconstrutibilidade, permitindo-lhe uma abertura para a justiça.

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A justiça – no sentido do direito (right or law) – não estaria simplesmente a serviço de uma força ou de um poder social, por exemplo, econômico, político, ideológico, que existiria fora dela ou antes dela, e ao qual ela deveria se submeter ou se ajustar, segundo a utilidade. Seu momento de fundação ou mesmo de instituição jamais é, aliás, um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, pois ele o rasga por uma decisão. Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta e que nenhuma injustiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente , por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.

Ost (2005a, p. 70) destaca que o formalismo inerente ao positivismo jurídico levaria à

fundamentação do direito exclusivamente no poder político que o institui. De uma perspectiva

puramente formal, o teor do direito criado pela vontade estatal não estaria, portanto,

condicionado ou atrelado a nenhum conteúdo prévio da tradição ou da herança cultural do

passado da sociedade. Ao contrário, a lei positiva poderia nascer do vazio, como puro ato de

vontade política, como se todo o edifício legislativo dos códigos de conduta social pudesse ser

construído sob o alicerce da pena do legislador e esta fosse sua exclusiva referência temporal.

Assim, quando a teoria positivista defende que a natureza do direito deriva do

exercício do monopólio institucional da violência pelo Estado moderno275, ela pretende poder

justificar a imposição de certos padrões de comportamento social unicamente a partir do

recurso à ameaça de uso da violência. Em princípio, o direito não careceria de um lastro nos

hábitos sociais formados por tradições culturais presentes no grupo social, pois a simples

ameaça de emprego da violência seria razão suficiente para que o direito viesse a ser

cumprido.

Desde que o fundamento desaparece, poderíamos então pensar que qualquer gesto de fundação é, literalmente, um gesto revolucionário de ruptura em relação ao antigo, um ato de rejeição de qualquer anterioridade e de pura afirmação de si. Uma nova distinção entre o legal e o ilegal, então, se imporia, que não se sustentaria

275 Bobbio (1998, p. 351) faz uma análise de Direito e Estado como sendo duas faces de um mesmo fenômeno a

partir do pensamento de Kelsen e Weber: “Weber e Kelsen interpretam no fundo o mesmo fenômeno da convergência do Estado e do Direito, embora olhando-o de dois pontos de vista diferentes. Weber, a partir de um ponto de vista da juridificação do Estado, ou seja do poder estatal, que se racionaliza através de uma complexa estrutura normativa articulada e hierárquica; Kelsen, a partir da estatização do Direito, ou seja do sistema normativo que se realiza através do exercício do máximo poder, que é o poder que se utiliza da força monopolizada. Weber considera o Direito ou a estrutura normativa em função do poder; Kelsen considera o poder em função do Direito. A racionalização do poder através do Direito é a outra face da realização do Direito através do poder. O Direito é a política vista através de seu processo de racionalização, assim como o poder é o Direito visto em seu processo de realização. Mas como não pode existir poder sem Direito, para que o poder do Estado moderno possa ser legal, assim também não pode haver Direito sem poder, na medida em que o Direito é ordenamento que se realiza apenas através da força.”. Aliás, a tipologia de Weber (2004) das formas de dominação mostra justamente que a dominação racional-legal que se assenta na impessoalidade do aparelho burocrático exigiria apenas o respeito ao procedimento como condição de imposição de seu domínio, descartando qualquer referência à autoridade tradicional na constituição do poder.

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senão pela violência nua de sua própria afirmação. Seria dado um golpe de força que se apresentaria em seguida como um golpe de direito. Tal é a análise proposta por Derrida dos momentos instituintes de novas ordens jurídicas. No instante revolucionário iria afirmar-se um direito novo que por si só se autorizaria; armado unicamente com sua violência fundadora, produto de um ato performativo puro (que realiza o que ele afirma através unicamente daquilo que afirma); suspensas no vazio do não-direito, esta pretensão não teria contas a prestar com ninguém.

Desse modo, o direito não careceria de um vínculo com o passado para fazer valer sua

força normativa perante os cidadãos, pois sempre contaria com a possibilidade do recurso à

violência como forma de garantir o cumprimento de suas prescrições. Isso acarretaria o efeito

temporal de um sentimento generalizado de esquecimento das tradições culturais não

consagradas no discurso oficial do direito276. Aqui, a destemporalização se daria por meio da

tentativa da instituição de uma forma temporal que se assenta na figura do presente imóvel,

responsável por afastar de seu horizonte o passado como guia temporal. A ausência de

fundamentação do direito em formas temporais já instituídas na tradição do corpo social teria

o efeito inverso de desatar ainda mais o laço que une o grupo social: o déficit de legitimidade

que esse direito encontraria no seio do grupo social, por faltar-lhe uma base compartilhada de

valores socialmente aceitos para compreensão da norma jurídica, converteria o direito em um

exercício de pura violência, retirando, assim, sua capacidade vinculante277.

Em segundo lugar, Ost (2005a) destacou que uma das características do positivismo

jurídico seria a de enxergar o direito como mero diretor de condutas e regulamentador de

conflitos. Ao concentrar o teor da legislação e das decisões judiciais em tarefas de execução

imediata, o direito instituiria uma temporalidade de curta duração, já que presa ao

276 As características do imperativismo e do formalismo da teoria jurídica positivista, que associam o direito à

expressão do poder político estatal, estariam inseridas na lógica de dominação do mundo inerente à era moderna (GALUPPO, 2005). Por isso, acabaria por se valer da mesma lógica utilitarista da racionalidade instrumental da técnica e do ‘fazer’ e contribuiria para a alienação da sociedade em relação a sua história, conforme processo descrito por Arendt (2005, p. 125-126): “A época moderna, com sua crescente alienação do mundo, conduziu a uma situação em que o homem, onde quer que vá, encontra apenas a si mesmo. Todos os processos da terra e do universo se revelaram como sendo feitos por ele. Esses processos, após como que devoraram a sólida objetividade do dado, terminaram por destituir de significado o único processo geral que originalmente fora concebido com o fito de lhes dar significado, e para agir, por assim dizer, como o espaço-tempo eterno no qual todos eles poderiam fluir, libertando-se, assim, de seus conflitos e exclusividades mútuos. Foi o que aconteceu com o nosso conceito de história, como foi o que sucedeu ao nosso conceito de natureza. Na situação de radical alienação do mundo, nem a história, nem a natureza são em absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da obra humana no senso mais lato, que incluiria toda história – deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem um mundo como que a um só tempo os relacione e separe, ou vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles.”.

277 Ost (2005) posteriormente reabilita o próprio texto de Derrida e, contrapondo-o a Ricouer, conclui que o momento da fundação da lei é, na verdade, um discurso de legitimação sobre um futuro que já se encontra presente nas instituições sociais. Com isso, o direito exigiria um tempo instituinte como condição para o estabelecimento das formas jurídicas instituídas.

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atendimento das demandas provenientes das necessidades econômicas e políticas da

sociedade. Com isso, o direito assumiria uma feição muito mais gerencial do que

propriamente ‘jurídica’, aqui entendida como de proteção dos laços e instituições sociais:

Relacionar o direito, como o faz a distinção clássica positivista, a um conjunto de regras de conduta, impostas sob a forma de comandos e garantias pela coerção (normas gerais ou regulamentares ou normas individuais editadas pelo juiz no quadro do litígio), quase não permite que se faça a distinção entre a ordem jurídica propriamente e a ordem de caráter gerencial ou administrativo, como aquele da estratégia num campo de batalha ou do financista no jogo do mercado das bolsas ao nos atermos a essa primeira resposta, nada permite, de fato, separar a norma jurídica da injunção gerencial, cujo ideal, poderíamos pensar, consiste em seguir, tão perto quanto possível, a diversidade e a variabilidade da conjuntura, adaptando a regra ao decorrer dos acontecimentos. Pensar o direito exclusivamente em termos positivistas de comando é, portanto, privar-se de qualquer meio de resistir ao desvio que consistiria em dissolver o jurídico na nebulosa da regulamentação, submetida, a exemplo da regulamentação econômica, às leis da eficácia e da aceleração. (OST, 2005a, p. 85).

O extremo dessa forma de abordagem gerencial do direito seria o pragmatismo

jurídico, uma corrente que tem suas raízes no realismo norte-americano e na filosofia moral

utilitarista. Baseado em um empirismo radical, o pragmatismo jurídico abraçaria

integralmente o fato de que o direito deve assumir seu papel de ‘gestor da sociedade’. A tese

central do pragmatismo jurídico seria a de que o direito é um instrumento de controle social e

que, portanto, suas normas e diretrizes se justificariam somente em razão dos efeitos que

produzem na sociedade (POSNER, 2004). A referência para se mensurar a eficiência do

direito na sociedade seria sua capacidade em realizar os objetivos sociais globais expressos

em suas políticas públicas. Assim, o pragmatismo jurídico advogaria uma leitura

radicalmente política do direito, no sentido de que os princípios ou as convenções jurídicas

não teriam força autônoma para se imporem por si próprios, mas apenas quando viessem a

consagrar algum desses objetivos. Assim, o cumprimento do direito presente no material

legislativo e jurisprudencial produzido no passado não se justificaria por um imperativo ético

de respeito às regras do jogo social, mas pela simples conveniência de que abandonar a ideia

de que as pessoas são ‘titulares’ de direito e que, portanto, razões de ordem prática pudessem

suplantá-los, acarretaria enorme instabilidade social.

Visando despertar a vocação gerencial do direito, o pragmatismo jurídico defende o

abandono de toda e qualquer referência à lógica jurídica de natureza formal e dedutiva para

enfatizar o emprego de um raciocínio orientado ‘por consequências’278. Assim, as

278 Posner (2004) faz uma distinção entre o raciocínio consequencialista puro das doutrinas utilitaristas do

raciocínio pragmático orientado pelas consequências. O primeiro seria mental e de natureza pré-experimental

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especificidades do caso e seus efeitos sistêmicos na estrutura social é que orientariam os

juristas na escolha da decisão mais adequada para a sociedade. Isso permitiria que as

convenções políticas que instituem a lei e os precedentes judiciais pudessem ser preteridos em

prol de uma decisão em sintonia com as diretrizes de uma política pública mais vantajosa para

a sociedade, como o aumento de sua riqueza global ou a proteção contra a ameaça externa,

por exemplo. Seu vínculo com as convenções políticas produzidas no passado se daria muito

mais pela conveniência da estabilidade social que elas proporcionam, do que por um apego

ético ou moral de igual respeito às regras do jogo. Nas palavras de Posner (2004, p. 151-152,

tradução nossa):

O pragmatismo jurídico é voltado para o futuro, compreendendo a aderência às decisões passadas como uma necessidade (qualificada), mais do que um dever ético. Em um sistema jurídico casuístico, como o dos Estados Unidos, algum grau de aderência ao precedente serve ao importante valor social de estabilização do direito. Em acréscimo, decisões prévias são frequentmente fontes de informações valiosas referentes às considerações que devem informar a decisão de um novo caso. Mas, em última instância, o precedente é um instrumento antes de ser um guia e a importância do estudo da história para o pragmatista é menos a de direcionar o julgamento (o que significaria um olhar para trás) do que a de identificar regras que não possuem nada que as validem, mas apenas um pedigree histórico; essas regras são candidatas a um reexame crítico que pode levar a sua eventual rejeição ou supressão. Juízes pragmatistas são então historicistas no específico sentido de estarem alertas à possibilidade de que uma doutrina legal atual possa ser um mero vestígio histórico das circunstâncias.279

e, por tal razão, não estaria constrangido pelas circunstâncias concretas da aplicação do direito; a decisão que se afigura como capaz de produzir, em tese, a melhor consequência seria moralmente superior ou correta em relação às demais e deve ser aplicada. Já o raciocínio pragmático, de início, não assume sua tarefa como a de encontrar a melhor ou a mais correta decisão possível. Ele pretende apenas encontrar aquela mais razoável para o caso. Por isso, o pragmatismo não abandonaria a estrutura geral da linguagem jurídica – já que a ideia de que as pessoas estão inseridas em uma prática jurídica e não puramente política é um importante efeito sistêmico de estabilidade social. Nesse sentido, o juiz não teria a possibilidade de escolher de forma livre a melhor decisão em termos de consequências dentre todas aquelas disponíveis. Ademais, o raciocínio pragmático evitaria também posturas extremamente ousadas de ativismo judicial com base em especulações quanto aos efeitos de uma lei ou de um programa de governo, uma vez que suas premissas demandariam a comprovação empírica de que a ação estatal é prejudicial à sociedade. É curioso como o pragmatismo, apesar de se auto-intitular forward thinking endossa, muitas vezes, um extremado conservadorismo judicial como o que hoje se verifica na Suprema Corte norte-americana (DWORKIN, 2008).

279 Legal pragmatism is forward looking, regarding adherence to past decisions as a (qualified) necessity rather than as an ethical duty. In a case-law system such as that of the United States, some degree of adherence to precedent serves the important social value of stabilizing the law. In addition, previous decisions are often source of valuable information concerning the considerations that ought to inform the decision of a new case. But ultimately precedent to the pragmatist is a tool rather than a master, and the importance of the study of history to the pragmatist is less in directing judgment (that would be backward looking) than in identifying rules that have nothing to validate them but a historical pedigree; those rules are candidates for critical reexamination that may lead to their eventual rejection or suppression. Pragmatic judges thus are historicist in the specific sense of being alert to the possibility that a current legal doctrine may be a mere vestige of historical circumstances.

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Uma das teorias que consagrou essa função gerencial do direito proposta pelo

pragmatismo jurídico é a análise econômica do direito, cujos princípios basilares foram

lançados pelo teorema dos custos sociais do direito de Ronald Coase. Segundo Coase (2003),

a busca por uma situação ótima dos custos de transação envolvidos em uma relação jurídica

consistiria no arranjo ideal para a sociedade do ponto de vista de uma perspectiva econômica

do direito. Esse teorema nasce da análise de uma situação jurídica hipotética em que um

agente A está em condição de causar um dano ao agente B. Nessa hipótese, o operador

jurídico deveria mensurar em termos econômicos: a) o valor produzido pela atividade de A e

de B; b) o valor do potencial dano sofrido por B pela ação de A; c) o valor que A deixaria de

produzir por ser limitado em sua atividade em razão do direito de B. Em seguida, o próximo

passo seria um levantamento dos ‘custos de transação’ envolvidos na situação, isto é,

investimentos – e seus respectivos valores – que tanto A poderia realizar para evitar ou

mitigar o dano em B, quanto B poderia ter feito para que a ação de A não lhe trouxesse

prejuízo. Ao final, o operador do direito teria em mãos uma gama de informações que lhe

permitira chegar ao arranjo socialmente mais adequado em termos dos custos totais de

transação a fim de encontrar a solução mais eficiente para aquela controvérsia do ponto de

vista da sociedade.

Encarado sob essa perspectiva, o direito despertaria o processo de destemporalização

denominado por Ost (2005a) de vertigem da entropia. Como o jurista estaria preso ao

casuísmo das análises pontuais de cada transação jurídica tomada isoladamente, ele deixaria

de ter em perspectiva uma visão histórica e abrangente do projeto ético que o direito tem para

a sociedade – como aquele que se verifica no preâmbulo das constituições, por exemplo

(KIRSTE, 2003). Com isso, o transcurso do tempo estaria à deriva do controle do direito, uma

vez que este seria incapaz de instituir uma regulamentação de caráter duradouro. Suas normas

e decisões seriam apenas guias-limites para o comportamento dos agentes-cidadãos, dentro

dos quais os atores sociais estariam livres para agir estrategicamente segundo seus interesses

egoísticos. Afinal, a lógica dos interesses econômicos e políticos própria do pragmatismo

jurídico ignoraria qualquer preocupação em produzir um valor ético que resistisse aos

imperativos casuísticos. A ausência de um momento fundador retiraria do direito sua

capacidade de se inscrever na temporalidade, conferindo-lhe uma condição de eterna

perenidade. Essa postura deixaria de lado também o fato de que historicamente a tarefa do

direito sempre foi a de guardião da memória social280. Com isso, o direito não atuaria contra o

280 O conceito de memória social ou cultural será trabalhado com maior detalhamento no próximo capítulo. Por

hora, pode-se entender, com Kirste (2007), que ela se refere aos mecanismos de armazenamento sobre a

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risco do esquecimento inerente à passagem do tempo e deixaria de tomar as rédeas da

instituição temporal na sociedade por meio da produção de um tempo neguentrópico, como

diz Ost (2005a).

Por fim, Ost (2005a) afirma que uma das características do positivismo jurídico que

contribuiu de modo decisivo para o processo de destemporalização é a hipóstase da validade

como condição exclusiva e suficiente para a força obrigatória da norma jurídica281. O autor

afirma que essa premissa adotada pelo positivismo jurídico levaria a uma perspectiva

decisionista do direito, segundo a qual a única referência para a qualificação de uma norma

como ‘jurídica’ seria sua origem política em um ato formal de vontade do soberano em

conformidade com os demais atos de vontade anteriormente produzidos. A criação do direito

– que, como visto, nasceria de um ato performativo puro do legislador – não se ligaria a um

passado que não fosse aquele positivado nas normas vigentes282. Isto se daria porque o teor do

direito não estaria adstrito a nenhuma amarra com as figuras normativas que fomentam a

existência de uma normatividade espontânea na sociedade – como é o caso dos costumes, dos

precedentes, da moral e dos princípios. Essas categorias normativas ‘metajurídicas’, segundo

os positivistas, seriam incapazes de se sustentar apenas em razão de seu conteúdo contra a

soberania da norma válida imposta pelo ato de vontade do poder político. E assim o direito

dependeria única e exclusivamente das forças políticas do jogo legislativo, inexistindo um

critério interno ao próprio direito que permitisse identificar o surgimento e o desaparecimento

normativo:

história e a cultural da sociedade, tais como tradições, livros, monumentos, instituições, filmes, rituais, festas, etc... Essa memória cultural seria o elemento objetivo responsável por inscrever a sociedade na longa duração.

281 A característica da teoria positivista que concede à validade o status definitivo na qualificação de uma ordem como ‘jurídica’ decorre da tese da neutralidade do direito em relação ao seu conteúdo. Hoerster (2000, p. 19-20) assim a define: “Ella afirma que el concepto de derecho tiene que ser definido de forma tal que el uso de este concepto no presuponga ninguna valoración. Por lo tanto, también normas extremadamente injustas o inmorales son en una sociedad derecho vigente siempre que satisfagan los criterios internos de validez del derecho, es decir, especialmente la constitución de esta sociedad. El concepto de derecho no impone ninguna limitación a aquello que sustancialmente puede ser ordenado o prohibido por el derecho. El contenido del derecho depende exclusivamente del respectivo orden jurídico concreto.”. (Tradução nossa: “Ela afirma que o conceito de direito tem que ser definido de tal forma que o uso deste conceito não pressuponha nenhuma valoração. Portanto, também normas extremamente injustas ou imorais são direito vigente em uma sociedade sempre que satisfaçam os critério internos de validade do direito, a saber, especialmente a constituição desta sociedade. O conceito de direito não impõe nenhuma limitação àquilo que substancialmente pode ser ordenado ou proibido pelo direito. O conteúdo do direito depende exclusivamente do respectivo ordenamento jurídico concreto.”).

282 Algumas constituições fazem questão de frisar o momento temporal de sua criação em seus preâmbulos e partes iniciais, como elemento de temporalização do direito (KIRSTE, 2003). Contudo esse registro feito pelo legislador não deixa de ser uma expressão decisionista de qual história o poder político deseja registrar como a memória da sociedade, apagando as tradições ditas ‘vencidas’ do imaginário social. Sobre as memórias subterrâneas que se veem apagadas pelo discurso oficial, confira-se Pollak (1989).

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Que se tratasse de valorizar a perenidade ou a mudança, a ausência total de consideração das transições normativas reduz a análise a registrar o aparecimento e o desaparecimento das normas, sem poder nem explicá-las, nem pensar em sua regulamentação. Separado de qualquer perspectiva diacrônica, o direito pressupõe-se renascer de suas cinzas, íntegro e soberano, a cada nova edição – com a pretensão, cada vez, de valer eternamente. (OST, 2005a, p. 223).

Assim, a criação legislativa seria o único fato temporal relevante para o direito. Sem

uma história de longa duração – já que nascido de lugar nenhum – o direito vigente se

apresentaria com um conteúdo eterno para o jurista até que outra decisão política viesse a por

fim a sua existência283. Essa característica teria o efeito de colocar o direito ao abrigo da

mudança temporal, já que perpetuaria no imaginário social a ideia de um sentido fixo e

imutável para as normas jurídicas:

à margem do tempo físico e das múltiplas coerções que ele acarreta, a norma imporia um dever-ser cujo sentido e validade são extra temporais e fixos. Longe de prestar-se complacentemente a quaisquer espécies de interpretações (manipulações) atualizantes, a norma apresentaria desde então um sentido fixo e iterativo ao qual o jurista deveria fazer justiça. Resistindo às alterações temporais, a norma se inscreveria num tempo simultaneamente descontínuo e indivisível – em nossa linguagem: um tempo instantâneo e virtualmente perpétuo. Este tempo imóvel da norma pode, então, pretender conter simultaneamente todo o passado (do qual recapitula as normas anteriores) e todo o futuro, porque tem como vocação reger (em princípio), indefinidamente; (OST, 2005a, p. 223).

Ost (2005a) identifica que essa impossibilidade de atualização do sentido das normas

jurídicas – cuja finalidade seria a de permitir que o direito acompanhasse a evolução da

sociedade – produziria uma concepção ‘instantaneísta’ do direito. O instantaneísmo se

caracterizaria pelo efeito temporal de eternização do momento presente da criação do direito

no imaginário jurídico, com o consequente fechamento do direito às dimensões temporais do

passado e do futuro. Essa forma temporal decorrente da prática jurídica positivista estaria em

conformidade com a proposta teórica que o positivismo desenhou para a atividade do cientista

do direito, a saber, limitar a ciência jurídica a uma descrição dos sentidos da norma jurídica,

tornando a atividade do intérprete ‘plana’ (flat). Em sua tarefa, o jurista deveria ignorar o

passado do direito, ao mesmo tempo em que não deveria tomar em consideração sua inserção

em uma temporalidade que a projetasse para o futuro, pois para o projeto descritivista do

283 Os recursos previstos pela própria estrutura formal do direito para integração das normas jurídicas sucessivas

– como o lex posterior derogat lex anterior – não seriam capazes de promover essa integração temporal entre a lei velha e a lei nova. Muito pelo contrário, cria entre elas um abismo de comunicação em que o direito novo parece como que surgido do nada. O efeito temporal dessa falta de comunicação entre as normas é que nem mesmo a mudança normativa é vista como uma referência ao futuro, justamente por sua falta de ligação com o passado.

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positivismo jurídico importaria apenas o sentido imediato adquirido pela norma válida dentro

do contexto linguístico empregado pela comunidade jurídica.

O efeito do positivismo jurídico na relação entre tempo e direito seria imposição de

um determinismo temporal segundo o qual o direito se tornaria uma vertente autônoma da

sociedade. Assim, as normas jurídicas contariam com uma temporalidade própria e que não

necessariamente estaria em sincronia com o tempo social, uma vez que ao direito bastaria a

coerência interna do sistema jurídico:

Da vida do direito, esta teoria instantaneísta deixa, então, uma visão sincopada, feita de uma sucessão de imagens sem elo aparente e inteligível. Do sistema jurídico tomaremos, então, apenas um conhecimento sincrônico, por cortes sucessivos, em que a única coação de racionalidade reside na exigência de coerência momentânea das diferentes normas pertencentes a esta estrutura síncrona. (OST, 2005a, p. 227).

Tem-se, assim, que o efeito temporal do instantaneísmo seria uma consequência

inerente à compreensão positivista do direito uma vez que ela é decorrente de um de seus

pilares centrais, a saber, o formalismo jurídico e a consequente separação entre o direito e a

moral. Por essa razão, a busca de uma teoria jurídica responsável por promover um tempo

social em equilíbrio dependeria de uma compreensão do direito em bases distintas daquelas

consagradas pelos cânones do positivismo jurídico. Em especial, a teoria jurídica precisaria

conceber um esquema de apresentação da prática jurídica que não fizesse da tarefa do jurista

uma atividade meramente descritiva do direito, pois, como visto, essa postura contribuiria

para proporcionar o efeito de ‘eternização’ do presente acima descrito.

No tópico seguinte, explorar-se-á como a teoria do direito como integridade de Ronald

Dworkin foi responsável por construir uma leitura alternativa ao positivismo descritivista do

formalismo jurídico. Mostrar-se-á de que maneira sua teoria jurídica foi capaz de apresentar

uma concepção do direito compatível com a instituição de um tempo social em equilíbrio a

partir da introdução da perspectiva narrativa para a atividade interpretativa.

4.3 A busca do equilíbrio temporal no modelo de princípios de Ronald Dworkin

Em seu início, o pensamento de Ronald Dworkin foi construído por meio de artigos

esparsos publicados ao longo da década de 1970 e 1980 e posteriormente reunidos nas

coletâneas Levando os direitos a sério (2002) e Uma questão de princípio (2001). Nesses

estudos, Dworkin vinha apontando várias críticas às teorias jurídicas que se destacavam como

modelos de compreensão da prática jurídica na comunidade jurídica, especialmente o

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positivismo jurídico e a análise econômica do direito284. Somente em O Império do Direito

Dworkin (2003) apresentou de forma sistemática sua tese de que a prática jurídica seria uma

prática argumentativa, em contraposição à visão predominante na comunidade jurídica de

inspiração positivista de que o direito se assemelharia a um dado da realidade e a tarefa do

jurista seria a de descrevê-lo.

Ao expor as incongruências da abordagem semântica do positivismo jurídico,

Dworkin (2003) substituiu o modelo analítico de descrição do significado normativo das

regras jurídicas como esquema de compreensão da atividade de juízes e juristas por um

modelo interpretativo da prática jurídica a partir dos princípios. Para tanto, ele precisou antes

demonstrar que outras concepções de direito concorrentes, como o convencionalismo e o

pragmatismo, que também compreendiam o direito a partir de uma atitude interpretativa, não

explicavam adequadamente a prática jurídica tal como seu modelo de princípios. Nesse

itinerário que se segue em O Império do Direito, Dworkin (2003) construiu uma concepção de

direito temporalmente equilibrada, em oposição às outras duas concepções acima

mencionadas, que privilegiariam unilateralmente apenas uma dimensão temporal285. No

presente tópico, apresentar-se-á primeiramente o giro interpretativo que levou Dworkin

(2003) a abandonar o modelo semântico em prol de uma compreensão interpretativa do

direito, pois essa seria uma condição indispensável para se neutralizar os efeitos temporais da

abordagem positivista do direito. Em seguida, demonstrar-se-á de que modo sua teoria do

direito como integridade se colocaria como uma concepção interpretativa do direito que

colocou em harmonia as dimensões temporais do passado, do presente e do futuro, trazendo,

assim equilíbrio para a relação entre tempo e direito.

284 As críticas ao positivismo jurídico analítico estão nos artigos O modelo de regras I, O modelo de regras II e

Casos Difíceis, todos de Levando os direitos a sério (2002). Já as críticas à análise econômica do direito e outras formas de utilitarismo ou de ceticismo na teoria jurídica estão em Princípio, política, processo, Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos?, A riqueza é um valor? e Por que a eficiência? Todos presentes na coletânea Uma questão de princípio (2001).

285 Como se verá abaixo, o convencionalismo seria uma concepção de direito que retira seu fundamento e sua força normativa do excessivo apego às decisões políticas do passado. Já o pragmatismo enfatizaria a dimensão do futuro por entender que a força do direito decorre da capacidade de os juristas encontrarem as melhores regras para melhorar a sociedade em algum aspecto.

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4.3.1 A atitude interpretativa

As interpretações lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

O Império do Direito - Ronald Dworkin

Para defender a tese de que o direito é um conceito interpretativo, Dworkin (2003)

começa seu argumento desmistificando o ponto de vista semântico defendido pelas correntes

normativistas do positivismo jurídico, especialmente aquelas de Kelsen e Hart. Segundo essa

forma de abordagem do positivismo, o direito deveria ser encarado pelo jurista como um

‘puro fato histórico’286: em cada sociedade haveria instituições políticas responsáveis pela

edição de regras com certas características que as qualificariam de ‘jurídicas’ e, em sua

prática, a tarefa dos juízes começaria pela identificação de quais dessas regras se aplicariam

aos casos que se apresentam aos tribunais287. Em um modelo ideal, o positivismo semântico

pretenderia ser possível identificar apenas uma regra que se encaixasse exatamente em cada

situação do mundo dos fatos. Contudo, como esse não é o caso, as divergências que se

verificam no cotidiano dos tribunais seriam explicadas pelo positivismo semântico como

sendo controvérsias sobre o significado da palavra ‘direito’ 288 ou, nas teorias mais recentes,

sobre situações fronteiriças ou nebulosas entre o direito e o não-direito289. Ou seja, quando

286 Dworkin faz uma distinção entre ‘questões de fato’ e ‘questões teóricas’ no direito. Uma questão de fato seria,

por exemplo, saber se, de fato, um motorista estaria trafegando acima do limite de velocidade permitido ou se, de fato, a lei que impõe o limite de velocidade de 60 km/h existe em um determinado ordenamento jurídico. Já uma questão teórica seria a de saber se a expressão constitucional ‘igualdade de oportunidades’ tutelaria ou não um programa social de ações afirmativas como o sistema de cotas nas universidades, por exemplo. Um dos principais defeitos do positivismo semântico seria justamente o de transformar as questões teóricas em simples questões de fato (GUEST, 2010).

287 A referência de Dworkin para a construção de sua crítica ao positivismo analítico é a teoria de Herbert Hart exposta em O Conceito de Direito já debatida no capítulo anterior do presente trabalho.

288 “As teorias semânticas pressupõem que os advogados e juízes usam basicamente os mesmos critérios (embora estes sejam ocultos e passem desapercebidos) para decidir quando as proposições jurídicas são falsas ou verdadeiras; elas pressupõem que os advogados realmente estejam de acordo quanto aos fundamentos do direito. Essas teorias divergem sobre quais critérios os advogados de fato compartilham e sobre os fundamentos que esses critérios na verdade estipulam. (...) As teorias semânticas mais influentes sustentam que os critérios comuns levam a verdade das proposições jurídicas a depender de certos eventos históricos específicos. Essas teorias positivistas, como são chamadas, sustentam o ponto de vista do direito como simples questão de fato, aquele segundo o qual a verdadeira divergência sobre a natureza do direito deve ser uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas.” (DWORKIN, 2003, p. 41).

289 “Esse novo argumento enfatiza a importância de se estabelecer uma distinção entre os usos padrão ou os usos intrínsecos da palavra ‘direito’ e os usos limítrofes e nebulosos dessa mesma palavra. Pretende esse argumento que todos os advogados e juízes seguem aquilo que é basicamente a mesma regra para o uso da palavra ‘direito’, e que, portanto, todos concordam com o limite de velocidade oficial da Califórnia e o índice básico de tributação na Grã-Bretanha. Mas, como as regras para o uso de palavras não são precisas e exatas, elas permitem a existência de casos nebulosos ou limítrofes nos quais as pessoas falam de maneira um tanto diferente entre si. Assim, os juristas podem usar a palavra ‘direito’ de modo diferente nos casos excepcionais em que alguns – mas nem todos – fundamentos especificados pela regra principal são respeitados. Isso explica, segundo o presente argumento, porque eles discordam em casos difíceis, como esses que nos

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juízes e advogados debatem sobre a aplicabilidade ou não de uma determinada regra a um

caso, sua disputa se resumiria a qual critério define a pertinência ou não de uma regra ao

conjunto daquelas que podem ser denominadas de ‘jurídicas’.

A teoria do direito como simples fato seria consequência da pretensão nascida nos

círculos do positivismo científico de conferir clareza e objetividade ao conhecimento

científico. Encarado sob essa perspectiva, o direito poderia ser compreendido, organizado e

devidamente classificado à semelhança do modo como as ciências naturais fizeram progredir

a ciência moderna290 (GUEST, 2010). No entanto, esse modo de conceber a prática jurídica

faria dela algo extremamente simplório, pois reduziria a complexidade das disputas jurídicas

às divergências sobre as premissas da linguagem que os juristas utilizam nos tribunais e nos

escritos acadêmicos (DWORKIN, 2003). Além do mais, esse modelo não descreveria

corretamente a atitude dos juristas quando se colocam diante de controvérsias jurídicas sérias.

Se, por um lado, parte do raciocínio jurídico de fato envolveria a atribuição de sentido a

determinadas expressões contidas no material jurídico, não se pode afirmar que ele se

resumiria a apenas isso. Pois, afinal, quando um juiz profere uma decisão, ou quando um

acadêmico discorre sobre um determinado tema jurídico em um texto científico, ele não

estaria unicamente a descobrir significados de palavras conforme um determinado uso

linguístico. Na verdade, o jurista emprega argumentos para defender uma determinada forma

de interpretação do material jurídico que integra a prática jurídica na qual ele se insere, com

vistas a solucionar questões práticas do mundo social291. Assim, a descrição fornecida pelas

serviram de exemplos. Cada um utiliza uma versão ligeiramente diferente da regra principal, e as diferenças tornam-se manifestas nesses casos específicos.” (DWORKIN, 2003, p. 48).

290 Para Dworkin (2003, p. 18), essa redução do fenômeno jurídico seria efeito de uma tentativa forçada da comunidade jurídica positivista em querer tratar o direito sob o mesmo paradigma e com a mesma linguagem das ciências naturais. Ele ironiza o resultado dessa proposta com a alusão a um contrasenso epistemológico: “Portanto, serão perversas as teorias que, em nome de questões supostamente mais amplas de história e sociedade, ignorarem a estrutura do argumento jurídico. Por ignorarem as questões sobre a natureza interna do argumento no direito, suas explicações são pobres e incompletas, como as histórias da matemática se escritas na linguagem de Hegel ou Skinner.”.

291 E como esse fato colocaria o jurista em uma perspectiva ‘interna’ ou de ‘participante’ desse mundo, seria impossível ignorar que a todo instante os juristas levantam pretensões morais nas afirmações que fazem na busca dessas soluções. Portanto, a postura do cientista que ‘descreve’ imparcialmente e avalorativamente o direito seria completamente descabida na prática jurídica de caráter argumentativo (DWORKIN, 2003). Moore (2000, p. 42-43) discorda, contudo, da impossibilidade de um projeto ‘descritivo’ na teoria jurídica – tal como feito por Herbert Hart e, posteriormente, por seu discípulo Joseph Raz. Seu argumento é o de que empreendimentos dessa natureza, na verdade, atribuiriam atitudes proposicionais a um objeto, ainda que dotado de uma intenção. Para Moore essa atitude permaneceria sendo eminentemente descritiva, pois relataria o conteúdo ou a natureza desse objeto ou de sua respectiva intenção: “É verdade que uma doutrina jurídica geral descritiva visa descrever o Direito oferecendo uma teoria sobre a natureza do Direito, e que, como qualquer descrição, tal descrição do direito deve corresponder ao que descreve, ou seja, ao Direito. Não obstante, isso não faz do gênero, Direito, um texto que os teóricos jurídicos devam interpretar – não mais do que verdades similares a respeito da química e descrições do ouro fazem dos químicos intérpretes da tabela periódica. Descrever alguma coisa que tem uma natureza não se converte em interpretação apenas porque a

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teorias semânticas para o ‘conceito’ de direito levaria a uma caracterização da prática jurídica

incongruente com o que se verifica quando juristas estão diante de uma controvérsia teórica

em uma disputa jurídica:

Infelizmente para essas teorias [semânticas], a imagem do que torna a divergência possível ajusta-se mal aos tipos de divergência que os advogados realmente têm. Ela é coerente quando advogados e juízes divergem sobre fatos históricos ou sociais, sobre que palavras devem ser encontradas no texto de uma lei, ou quais eram os fatos em uma decisão judicial anterior. Em direito, porém, grande parte das divergências é teórica, não empírica. Os filósofos do direito em cuja opinião devem existir regras comuns tentam subestimar a divergência teórica por meio de explicações. Dizem que os advogados e juízes apenas fingem, ou que só divergem porque o caso que têm em mãos se situa numa zona cinzenta ou periférica das regras comuns. Em ambos os casos (dizem eles), o melhor a fazer é ignorar os termos usados pelos juízes e tratá-los como se divergissem quanto à fidelidade ou reforma do direito, e não quanto ao direito. Aí está o aguilhão: estamos marcados como seu alvo por uma imagem demasiado tosca do que deve ser a divergência (DWORKIN, 2003, p. 56).

Em substituição à apresentação da prática jurídica feita pela abordagem semântica,

Dworkin (2003) sugere que, na verdade, os juristas teriam uma atitude interpretativa face ao

direito. Isso significa que os juristas não apenas se preocupam em constatar e definir os

limites da prática jurídica, mas também que reconhecem que a prática jurídica tem um valor,

que serve a um propósito ou interesse, ou, ainda, que reforça um princípio geral em voga na

sociedade. Portanto, Dworkin (2003) destaca, inicialmente, que afirmações dessa natureza não

poderiam ser elaboradas da perspectiva descritiva de um observador externo, uma vez que sua

finalidade seria a de permitir uma posterior análise – e eventual reestruturação – do direito à

luz do significado atribuído à prática jurídica por esses juízos avaliativos. Como a atribuição

de um significado ao direito somente poderia ser feita por juristas que se posicionam a partir

do interior da própria prática jurídica (ainda que em um exercício imaginário), sua postura

epistemológica seria a de um participante que invariavelmente irá aderir a ela. Assim,

Dworkin (2003) remove um dos principais alicerces metodológicos que sustenta a proposta

teórica do positivismo semântico, a saber, o fato de que descrever o conteúdo das normas

jurídicas do ponto de vista de um observador externo seria um modo correto de se apresentar

teoricamente em que consiste a prática jurídica. Esse seria um passo importante em direção ao

descrição deve descrever essa natureza para ser precisa. Tudo isso permanece verdadeiro no caso dos jurisconsultos gerais que buscam não a coisa, o Direito, mas um conceito compartilhado de Direito. Quando Herbert Hart e Joseph Raz escreveram seus livros – merecidamente celebrados, aliás – sobre esse tópico, não estavam interpretando coisa alguma. Como essencialistas do Direito, tal como Aquino, estavam na verdade tentando descrever algo com uma natureza. Em seu caso, esse algo era aquele conjunto de atitudes proposicionais que chamamos de conceito, isto é, crenças comuns a respeito do Direito. Como vimos, tais atribuições de atitudes proposicionais não são interpretações, quer as atitudes proposicionais sejam sobre o Direito, quer sejam sobre qualquer coisa.”.

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reconhecimento do valor e da pertinência, para a teoria jurídica, do recurso a uma abordagem

interpretativa do direito. Isso porque a perspectiva do participante anularia a postura

descritivista sustentada pelo positivismo semântico e, ato contínuo, colocaria o intérprete em

uma situação em que ele se veria inevitavelmente às voltas com a tarefa de atribuir um sentido

a seu objeto de interpretação.

Antes de adentrar na caracterização do conceito interpretativo do direito, Dworkin

(2003) frisa a necessidade de se inventariar os tipos de interpretação existentes no

conhecimento em geral para encontrar aquele que melhor descreve a atividade realizada pelos

juristas ao interpretarem o direito292. Para tanto, ele relaciona três modelos gerais de

interpretação cujo emprego já se encontra consagrado em certas formas de saber: a

interpretação conversacional, que em linhas gerais se caracterizaria pela atividade de

compreender o sentido das comunicações linguísticas que um falante emite a um ouvinte; a

interpretação científica, que se dedicaria a relacionar as informações obtidas em dados

constatados pela experiência empírica – seja na observação direta ou em experimentos

laboratoriais – a suas respectivas causas; e a interpretação artística, que consiste em descobrir

o sentido de um objeto que é fruto de um processo criativo, mas que se destaca e é

independente em relação a seu criador. Esta última, segundo Dworkin (2003), poderia ser

vista de uma perspectiva mais abrangente, envolvendo não somente a interpretação de objetos

artísticos, mas também a interpretação de práticas sociais, como os costumes ou o direito.

Assim como a arte, as práticas sociais também seriam fruto de um processo criativo que

ocorre dentro da sociedade. Por esse motivo, Dworkin (2003) opta por denominar a

interpretação artística com a expressão mais genérica de ‘interpretação criativa’293.

Além de se diferenciarem entre si em razão do objeto que interpretam, cada uma

dessas três espécies de interpretação também apresentaria distintas tarefas para o intérprete.

Na interpretação conversacional, a tarefa do intérprete seria a de atribuir significados às

expressões do falante, a partir da identificação de seus motivos e preocupações. Para tanto, o

292 Segundo Dworkin, o próprio conceito de interpretação também seria um conceito interpretativo, pois não há

um consenso na comunidade artística, humanística e científica sobre qual seria a tarefa e o propósito da interpretação, razão pela qual se justificaria o inventário prévio que ora se analisará (GUEST, 2010).

293 “A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma prática social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica. Vou concentrar-me nessa semelhança entre a interpretação artística e a interpretação de uma prática social; atribuirei a ambas a designação de formas de interpretação ‘criativa’, distinguindo-as, assim, da interpretação da conversação e da interpretação científica.” (DWORKIN, 2003, p. 61). Assim como Dworkin o faz em seu texto, seguir-se-á no presente trabalho utilizando apenas a denominação interpretação criativa para designar esse tipo de interpretação que engloba tanto interpretação artística como a interpretação de práticas sociais.

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intérprete deverá investigar elementos do contexto em que se deu a conversação, a fim de

descobrir as intenções que motivaram o falante a emitir a mensagem interpretada. Esse

elemento da ‘intenção do falante’ consistira no caminho privilegiado para o deslinde da

interpretação conversacional, uma vez que permitiria a compreensão do significado de seu

objeto, a saber a comunicação proferida pelo emissor de um ato de fala294.

Já a interpretação científica colocaria uma tarefa de natureza ‘explicativa’ ao

intérprete. A partir de informações constatadas em um objeto-efeito constatado na realidade –

que pode ser um dado da observação direta, o resultado de um experimento laboratorial, ou

ainda os dados de uma pesquisa de campo –, o intérprete deverá traçar uma cadeia de relações

causais que explicam e justificam a ocorrência das consequências verificadas295.

Por fim, haveria ainda a interpretação criativa, que se assemelharia em parte à

interpretação conversacional, em parte à interpretação científica. Sua similitude com a

interpretação científica se evidencia na medida em que o intérprete também tem a tarefa de

compreender o significado de um objeto do mundo real que é autônomo em relação a seu

criador – como diz Dworkin (2003) ser o caso de uma obra de arte ou de uma prática social

como o direito296. Assim, à diferença da interpretação conversacional, a interpretação criativa

não se debruçaria sobre uma mensagem emitida por um falante – e que deriva diretamente

deste e a ele está intrinsecamente associada.

Contudo, em distinção à interpretação científica, a interpretação criativa não exigiria

que o intérprete encontrasse explicações causais para descrever certas propriedades ou

características de seu objeto. O objeto da interpretação científica é um dado bruto, que não

294 No capítulo anterior fez-se referência ao modo como o modelo conversacional de interpretação dominou o

imaginário jurídico enquanto o modo de ser da interpretação jurídica de matriz positivista: desde a busca pela mens legislatoris, passando pelas ‘ordens baseadas em ameaças’ de Austin até o ‘sentido objetivo de um dever ser’ de Kelsen, o direito era visto como um ‘comunicação normativa’ e a interpretação jurídica uma tarefa de tradução / decifração da mensagem emitida pelo Estado-falante.

295 A interpretação científica em si não se relaciona diretamente à atividade do intérprete do direito pelo fato de que as relações jurídicas não são regidas pelo princípio da causalidade – Se A é, B é –, mas pelo princípio da imputação – Se A é, B deve ser. Contudo, a interpretação científica comungaria do mesmo individualismo metodológico que possui a interpretação conversacional, segundo a qual ambas colocariam o intérprete como alguém que é externo ao objeto de interpretação.

296 Raz (2000, p. 250) nega que o direito possa ser interpretado à semelhança das obras de arte por atribuir ao legislador a autoridade da criação do direito. Com isso o direito não teria a autonomia em relação a seu criador que a obra de arte possui: “Vemos nisso a diferença entre a arte e o Direito. No Direito, prima facie, o fato de que o texto é interpretado contrariamente às intenções do legislador nega a sua legitimidade. Sua legimitidade deriva da autoridade do legislador para fazer a lei que julgou certo fazer. A aplicação desse argumento é limitada e indireta. Mas está sempre presente no pano de fundo de qualquer interpretação da legislação. Não é assim com a interpretação das artes. A autonomia das obras de arte significa que a intenção do autor pode ser considerada como irrelevante para a interpretação dessa obra, exceto onde há considerações especiais para que seja levada em conta.”. A resposta de Dworkin (2003) à objeção de Raz, como se verá adiante, é que nessa afirmação ele teria confundido um aspecto da prática do direito – o fato de que há um órgão político que cria as leis ou os precedentes – com a própria prática social do direito existente na comunidade.

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possui uma intenção ou propósito. Aqui se destaca a semelhança entre a interpretação criativa

e a interpretação conversacional, uma vez que a mensagem, objeto de interpretação desta,

nasceu de um processo de criação do falante, da mesma maneira que a obra de arte e as

práticas sociais, objetos daquela, também são produto de uma atividade criadora desenvolvida

no seio do grupo social. Por essa razão é possível identificar em ambas uma ‘intenção’,

elemento que ambas as formas de interpretação utilizariam como o caminho privilegiado para

se encontrar o significado de cada um de seus respectivos objetos. Assim, a interpretação

criativa seria, em certo sentido, intencional à semelhança da interpretação conversacional.

Explorando e aprofundando o significado da metáfora de que as obras de arte e as

práticas sociais ‘falam’ com seus intérpretes, Dworkin (2003) irá construir o caminho de sua

interpretação construtiva, figura de maior inovação e contribuição de seu pensamento para a

teoria jurídica297. É justamente a originalidade da interpretação construtiva em relação às

proposições da hermenêutica jurídica tradicional que permitiram que Dworkin construísse

uma teoria jurídica que libertaria o direito do efeito temporal de aprisionamento ao presente

acima tratado, como se verá na sequência.

A hermenêutica jurídica tradicional sempre ignorou a ideia de que o jurista

interpretaria a própria prática social do direito. Pelo contrário, identificou os atos produzidos

por um participante privilegiado dessa prática – as regras provenientes das autoridades

políticas – com a própria prática social do Direito e fez delas seu objeto de interpretação.

Desse modo, para a hermenêutica jurídica tradicional, a interpretação criativa, própria do

direito, sempre se apresentou como um caso especial da interpretação conversacional298, já

que a tarefa do jurista seria a de interpretar as intenções que fundamentaram o processo de

criação da norma jurídica299. Nesse sentido, o modelo conversacional seria comum tanto à

297 Muito embora os comentadores e críticos do pensamento de Dworkin deem maior destaque em suas análises à

tese da resposta correta a partir da figura do Juiz Hércules ou à distinção entre regras e princípios, a tese verdadeiramente intrigante e revolucionária no modelo teórico de Dworkin está na atribuição de maior ênfase ao papel do intérprete na tarefa de definição do significado do direito e da norma jurídica, como se falará adiante.

298 “Há uma solução muito conhecida. Ela descarta a metáfora de poemas e imagens que nos falam, ao insistir em que a interpretação criativa é apenas um caso especial de interpretação conversacional. Ouvimos não as obras de arte em si, como sugere a metáfora, mas sim os seres humanos que são os seus autores. A interpretação criativa pretende decifrar os propósitos ou intenções do autor ao escrever determinado romance ou conservar uma tradição social específica, do mesmo modo que, na conversação, pretendemos perceber as intenções de um amigo ao falar como fala.” (DWORKIN, 2003, p.62).

299 Veja como esse modelo conversacional ainda se encontra presente na compreensão tradicional da hermenêutica jurídica: “Se, como frequentemente acontece, o sentido literal resultante do uso linguístico geral ou de um uso linguístico especial por parte da lei, assim como o contexto significativo da lei e a sistemática conceptual que lhe é subjacente deixam sempre em aberto diferentes possibilidades de interpretação, é natural que se pergunte sobre qual a interpretação que melhor corresponde à intenção reguladora do legislador ou à sua ideia normativa. Com isto chegamos ao elemento ‘histórico’ da interpretação, o qual, como expusemos ao princípio, há-de ter-se em conta, também, ao averiguar do sentido

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teoria objetivista, que pretende encontrar algo como a ‘vontade do povo’ como elemento

doador de sentido para as normas jurídicas, quanto à teoria subjetivista que via na vontade do

legislador a chave para se compreender o sentido da legislação.

O reconhecimento de que o jurista interpreta a prática social do direito e não um

objeto dessa prática chama atenção para uma primeira dificuldade de se aceitar a interpretação

conversacional como modelo para a proposta de fundar uma atitude interpretativa no direito

capaz de se contrapor ao modelo descritivo do positivismo semântico. Se o objeto da

interpretação jurídica realmente se resumisse aos textos das fontes normativas, então a

interpretação conversacional faria sentido como forma de interpretação empregada na prática

jurídica. De fora do estado mental do autor / Estado, o intérprete tentaria desvendar suas

intenções nas proposições / fontes textuais normativas por ele emitidas. Ter-se-ia, aqui, o

mesmo tipo de atividade realizada por um ouvinte que procura decifrar a mensagem de um

falante, pois as normas jurídicas não seriam nada mais do que a ‘vontade’ da sociedade

traduzida em texto: A ‘sociedade’ ou o ‘povo’ seriam os autores mediatos do direito, enquanto

os parlamentares seriam seus autores imediatos. Essa imagem justificaria o recurso à

interpretação conversacional para a interpretação das normas jurídicas e teria sido a grande

responsável pela controvérsia entre a busca pela mens legis e a mens legislatoris que dominou

a teoria jurídica nos séculos XIX e XX. Se assim o fosse, seria perfeitamente aceitável a

postura do intérprete como alguém externo e diferente do falante, da mesma maneira que se

verifica na interpretação conversacional. Essa crença, aliás, foi o que levou a hermenêutica

jurídica tradicional a adotar o cânone positivista de que o jurista-cientista observaria a

realidade normativa de modo imparcial e externo a ela. Dworkin (2003, p. 76-77) alerta,

contudo, que isso implicaria confundir a interpretação da prática do direito com a

interpretação dos atos da prática que fazem parte dessa prática. Em referência ao exemplo da

prática da cortesia, o autor explica a questão da seguinte maneira:

Existem duas possibilidades. Alguém poderia dizer que interpretar uma prática social significa descobrir os propósitos ou intenções dos outros participantes da prática, os cidadãos da hipotética comunidade, por exemplo. Ou que significa descobrir os propósitos da comunidade que abriga essa prática, concebida como tendo, ela mesma, alguma forma de vida mental ou de consciência de grupo. A primeira dessas sugestões parece mais atraente, por ser a menos misteriosa. Mas é

da lei normativamente determinante. Sobretudo a intenção reguladora do legislador e as decisões valorativamente por ele encontradas para alcançar manifestamente esse desiderato continuam a ser arrimo obrigatório para o juiz, mesmo quando acomoda a lei – por via da interpretação teleológica ou do desenvolvimento do Direito – novas circunstâncias, não previstas pelo legislador, ou quando a complementa. Aqui surge, abertamente e de imediato, a questão de saber de que pessoas se trata, quando perguntamos pela vontade ou pela ideia normativa do legislador.” (LARENZ, 1997, p. 462-463).

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excluída pela estrutura interna de uma prática social argumentativa, pois é uma característica de tais práticas que uma afirmação interpretativa não seja apenas uma afirmação sobre aquilo que outros intérpretes pensam. As práticas sociais são compostas, sem dúvida, por atos individuais. Muitos desses atos têm por objetivo a comunicação e, portanto, convidam à seguinte pergunta: ‘O que ele quis dizer com isso?’, ou ‘Por que ele disse isso exatamente naquele momento?’ Se um membro da comunidade hipotética diz a outro que a instituição exige que se tire o chapéu diante dos superiores, torna-se perfeitamente sensato fazer tais perguntas, e respondê-las seria tentar compreender tal pessoa da maneira que é usual na interpretação conversacional. Mas uma prática social cria e pressupõe uma distinção crucial entre interpretar os atos e pensamentos dos participantes um a um, daquela maneira, e interpretar a prática em si, isto é, interpretar aquilo que fazem coletivamente. Ela pressupõe essa distinção porque as afirmações e os argumentos que os participantes apresentam, autorizados e estimulados pela prática, dizem respeito ao que ela quer dizer, e não ao que eles querem dizer.

Assim, a interpretação conversacional não seria adequada como ponto de partida para

a hermenêutica jurídica, seja porque seu enfoque não recairia exatamente sobre a prática

jurídica como um todo, mas apenas sobre um determinado elemento dessa prática, seja porque

– e principalmente – a interpretação conversacional colocaria o intérprete como alguém que se

posiciona externamente à prática jurídica. Ao final, a interpretação conversacional endossaria

justamente a postura do direito como simples questão de fato defendida pela abordagem

semântica, o que a tornaria imprestável como modelo para se fundar a atitude interpretativa

pretendida por Dworkin. Logo, para fazer do direito um conceito interpretativo, Dworkin

(2003) necessitaria encontrar uma outra espécie de tarefa interpretativa para a interpretação

criativa.

Para que a interpretação criativa possa, de fato, explicar a prática jurídica a partir de

uma atitude interpretativa, ela deve assumir uma configuração tal que o intérprete, como visto

acima, possa aderir à prática de seu interior. Em referência a Jürgen Habermas300, Dworkin

300 Nas palavras do próprio Habermas (1989, p. 42-43): “Se compararmos a atitude da terceira pessoa, adotada

por aqueles que dizem simplesmente as coisas como se passam (tal é, entre outras, a atitude dos cientistas) com a atitude performativa daqueles que procuram compreender o que lhes é dito (tal é, entre outras, a atitude dos intérpretes), então virão à luz as consequências metodológicas de uma dimensão hermenêutica da investigação. Permitam-me assinalar três das implicações mais importantes dos procedimentos hermenêuticos. Em primeiro lugar, os intérpretes renunciam à superioridade da posição privilegiada do observador, porque eles próprios se vêem envolvidos nas negociações sobre o sentido e a validez dos proferimentos. Ao tomarem parte em suas ações comunicativas, aceitam por princípio o mesmo status daqueles cujos proferimentos querem compreender. Eles não estão mais imunes às tomadas de posição sim / não dos sujeitos de experiência ou dos leigos, mas empenham-se num processo de crítica recíproca. No quadro de um processo de entendimento mútuo – virtual ou actual – não há nada que permita decidir a priori quem tem de aprender de quem. Em segundo lugar, ao assumir uma atitude performativa os intérpretes não apenas renunciam à posição de superioridade em face de seu domínio de objetos, mas confrontam-se além disso com a questão de como superar a dependência de sua interpretação relativamente ao contexto. Eles não podem estar seguros de antemão de que eles próprios e seus sujeitos de experiência partem do mesmo fundo de suposições práticas. A pré-compreensão global da situação hermenêutica por parte do intérprete só pode ser examinada fragmentariamente e não pode ser colocada em questão como um todo. Tão problemático quanto o desengajamento do intérprete em questões de validez e da descontextualização de suas interpretações é o fato de que a linguagem cotidiana se estende a proferimentos não-descritivos e a pretensões

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(2003) irá afirmar que as ciências sociais diferem das ciências naturais justamente por

encontrarem seus dados pré-interpretados pelo modo como seu objeto de conhecimento é

compreendido pelas pessoas que fazem parte do grupo social. Isso colocaria as pessoas – e,

consequentemente, os intérpretes – em uma posição não apenas de poder relatar e descrever o

teor de seu objeto, mas também de poder julgá-lo à luz de suas próprias convicções. Essa

característica é, inclusive, indispensável para que o cientista social possa formar uma

compreensão global de seu objeto, especialmente em se tratando de uma prática social

argumentativa como é o caso do direito. Ainda que ‘virtualmente’, o cientista social torna-se

um participante do espírito dos praticantes de uma determinada prática social, como é o caso

do direito. Com isso, à diferença da interpretação conversacional, na interpretação de uma

prática social o intérprete já não mais conseguiria se colocar na posição do intérprete neutro:

Portanto, cada um dos adeptos de uma prática social deve estabelecer uma distinção entre tentar decidir o que outros membros de sua comunidade pensam que a prática exige, e tentar decidir, para si mesmo, o que ela realmente requer. Uma vez que se trata de questões diferentes, os métodos interpretativos que ele usa para responder a esta última questão não podem ser os métodos da interpretação conversacional, dirigida a indivíduos um a um, que usaria para responder à primeira. Um cientista social que se oferece para interpretar a prática deve estabelecer a mesma distinção. Se assim o desejar, ele pode dedicar-se apenas a reportar as diversas opiniões que diferentes membros têm a respeito daquilo que a prática exige. Mas isso não configuraria uma interpretação da prática em si; se ele se dedicar a esse outro projeto, deve abrir mão do individualismo metodológico e empregar os métodos que os que estão submetidos a sua análise usam para formar suas próprias opiniões sobre aquilo que a cortesia realmente exige. Ele deve, portanto, aderir à prática que se propõe compreender; assim, suas conclusões não serão relatos neutros sobre o que pensam os membros da comunidade, mas afirmações sobre a cortesia que competem com as deles. (DWORKIN, 2003, p. 77-78).

Assim, Dworkin (2003) afirmará que a ênfase da tarefa interpretativa na interpretação

criativa não seria a descoberta de uma causa ou intenção nas obras de arte e nas práticas

sociais, seu objeto da interpretação. Ao contrário, essa tarefa consistiria em atribuir um

propósito ao objeto de interpretação por meio do qual esse objeto seria visto como o melhor

exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que ele pertença. Encarada a

tarefa interpretativa sob essa perspectiva, a interpretação criativa não seria um caso especial

de validez não cognitivas. Na vida cotidiana, estamos com muito mais frequência de acordo (ou em desacordo) sobre a correção de ações e normas, sobre a adequação de avaliações e padrões e sobre a autenticidade ou a sinceridade de uma auto-representação do que sobre a verdade de proposições. Por isso, o saber que empregamos quando dizemos algo a alguém é mais abrangente do que o saber estritamente proposicional ou relativo à verdade. Para compreender o que lhes é dito, os intérpretes têm que alcançar um saber que se apóia em pretensões de validez adicionais. Por isso uma interpretação correta não é simplesmente verdadeira, como é o caso de uma proposição relatando uma interpretação correta; poder-se-ia antes dizer que uma interpretação correta convém a, é adequada a ou explicita o significado do interpretandum que os intérpretes devem alcançar.”.

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da interpretação conversacional. Ter-se-ia um gênero autônomo de interpretação denominado

de interpretação construtiva, que impõe ao intérprete o papel de ele próprio atribuir um

propósito ao objeto de interpretação segundo suas convicções sobre a melhor leitura desse

objeto, ao invés de pedir que ele indague por uma intenção do autor que é sua causa301.

A interpretação construtiva se desenvolveria por meio de um processo composto de

três etapas, em que cada uma requereria, progressivamente, maiores exigências para se obter

um consenso geral acerca dos elementos interpretativos. Ou, dito de outra forma, a cada etapa

de desenvolvimento do processo interpretativo, o grau de detalhamento dos elementos

interpretativos aumentaria e a chance de se chegar a um consenso amplo entre os participantes

da interpretação diminuiria.

No primeiro nível haveria a etapa pré-interpretativa, na qual o intérprete identificaria,

em linhas gerais, os elementos que distinguem o objeto interpretativo de outros similares. No

caso da arte, essa etapa seria aquela em que o intérprete delimitaria aspectos gerais da obra

que se propõe a interpretar – a distinção entre um tipo de arte e outro, entre um determinado

gênero de uma arte e outro dessa mesma arte ou ainda entre uma obra que se pretende

interpretar e outras obras do mesmo gênero ou autor. No caso do direito, a etapa pré-

interpretativa consistiria no procedimento em que o intérprete faz um reconhecimento prévio

daquilo que uma sociedade entende como sua prática jurídica e não uma outra prática social,

como a cortesia, a religiosidade, a moral ou a política. Apesar de não haver uma atividade

interpretativa propriamente dita, na etapa pré-interpretativa o próprio objeto imporia certas

regras e padrões reconhecidos pela comunidade interpretativa como capazes de enquadrá-lo

em uma singularidade. A importância da etapa pré-interpretativa consistiria, então, no fato de

que essas regras e padrões exerceriam uma ‘coerção’ sobre o intérprete para que ele se atenha

àquilo que as pessoas reconhecem, de um modo geral, como sendo o objeto de interpretação e

301 A tese da interpretação construtiva de Dworkin enfrenta a objeção de que o intérprete de uma obra de arte ou

de uma prática social somente poderia encontrar o significado de seu objeto a partir das intenções de um autor e nunca derivar essa intenção a partir de propósitos atribuídos por ele próprio ao objeto. Isso porque como o resultado de uma interpretação seria mostrar com a maior exatidão possível o sentido da obra de arte ou da prática social, a interpretação construtiva não seria interpretação propriamente dita, mas criação, já que deformaria o objeto de interpretação naquilo que o intérprete criou a seu modo. Afinal, ao se falar em interpretação, o que se quer é mostrar o objeto interpretado tal como ele é, e não como o intérprete pretende que ele seja. Dworkin (2003) dirá, contudo, que na verdade toda interpretação acaba por ser o relato de um propósito feito pelo intérprete e que a perspectiva da interpretação conversacional de buscar pela integridade da intenção do autor se deve apenas ao fato de que esse tipo de empreendimento interpretativo exige que assim o seja. No entanto, para outras formas de interpretação, como a interpretação criativa, essa proposta soaria inadequada.

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não outra coisa. Isso permite que a comunidade interpretativa tenha um consenso mínimo

sobre o objeto que está a interpretar e não fale de uma coisa como se fosse outra302.

A etapa interpretativa propriamente dita seria aquela em que se apresenta uma defesa

daquilo que se entende por ser a melhor maneira de se enxergar o objeto de interpretação. Ela

nasce, portanto, de um processo argumentativo que tem por finalidade encontrar razões e

fundamentos para caracterizar a interpretação realizada como a melhor justificativa para a

posição defendida pelo intérprete. Assim, a interpretação pressupõe e incorpora a

possibilidade da divergência interpretativa entre participantes da prática social em que se

insere o objeto de interpretação. Cada um deles pode ter diferentes pontos de vista

interpretativos sobre qual significado ou propósito melhor explica a natureza desse objeto.

Especificamente no caso do direito, a etapa interpretativa se evidencia nas situações em que a

aplicação do direito torna-se controversa – o denominado nível das questões a respeito dos

problemas profissionais do direito. Com frequência, juristas experientes e familiarizados com

a prática jurídica não chegam a um denominador comum quanto àquilo em que consiste a

natureza do direito ou, em um nível mais concreto, quanto ao propósito de leis específicas do

ordenamento ou até mesmo do sistema como um todo. A partir de suas convicções morais e

respectivas visões de mundo, cada um desses intérpretes pode vir a defender uma posição

interpretativa que, segundo seu ponto de vista, proporcionaria a melhor leitura para o direito

ou, como diz Dworkin (2003), o colocaria ‘em sua melhor luz’303.

Por fim, a interpretação construtiva exigiria uma etapa pós-interpretativa, na qual o

intérprete submeteria sua interpretação à prova visando averiguar se a leitura inicial da etapa

interpretativa, de fato, coloca o objeto de interpretação em sua melhor perspectiva. Para tanto,

o intérprete precisaria submeter sua interpretação a ‘testes’ de consistência e coerência, além

de confrontá-la com convicções mais substantivas sobre o que de fato seria a melhor leitura

daquele objeto interpretativo304. Dworkin (2003, p. 83) faz uma descrição analítica desse

processo da seguinte maneira:

302 Guest (2010) pontua que o modelo de regras derivado da regra de reconhecimento elaborado por Hart poderia

ser um bom relato da etapa pré-interpretativa, já que faz referência àquilo que as pessoas reconhecem e aceitam como sendo o direito em sua comunidade linguística. No entanto, sua proposta interpretativa de colocar o direito em sua melhor luz a partir da identificação das regras como fatos empíricos e da atribuição ao jurista da tarefa de descrevê-lo é que seria inadequada.

303 “Diríamos, então, que toda interpretação tenta tornar um objeto o melhor possível como exemplo de algum suposto empreendimento, e que a interpretação só assume formas diferentes em diferentes contextos porque empreendimentos diferentes envolvem diferentes critérios de valor ou sucesso.” (DWORKIN, 2003, p. 65).

304 Dworkin se apropria da metodologia do equilíbrio reflexivo utilizada por Rawls (2002, p. 22-23) na descrição de sua Teoria da Justiça a fim de construir um resultado que possa ser racionalmente coerente ao mesmo tempo que compatível com as convicções e opiniões que as pessoas possuem em sua vida concreta: “Na procura da descrição mais adequada dessa situação inicial trabalhamos a partir de dois extremos. Começamos

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Podemos agora retomar nossa exposição analítica para compor um inventário do tipo de convicções, crenças ou suposições de que uma pessoa necessita para interpretar alguma coisa. Ela precisa de hipóteses ou convicções sobre aquilo que é válido, enquanto parte da prática, a fim de definir os dados brutos de sua interpretação na etapa pré-interpretativa; a atitude interpretativa não pode sobreviver a menos que membros da mesma comunidade interpretativa compartilhem, ao menos de maneira aproximada, as mesmas hipóteses a propósito disso. Ela também precisará de convicções sobre até que ponto a justificativa que propõe na etapa interpretativa deve ajustar-se às características habituais da prática, para ter valor como uma interpretação dela e não como invenção de algo novo. (...) Uma vez mais, não pode haver uma disparidade muito grande entre as convicções de diferentes pessoas sobre tal adequação; só a história, porém, pode nos ensinar o que deve ser visto como excesso de discrepância. Finalmente, essa pessoa vai precisar de convicções mais substantivas sobre os tipos de justificativa que, de fato, mostrariam a prática sob sua melhor luz (...) Essas convicções mais substantivas devem ser independentes das convicções sobre adequação que descrevemos há pouco; do contrário, estas últimas não poderiam exercer coerção sobre as primeiras, e, ao final, a pessoa não poderia distinguir entre interpretação e invenção. Mas, para que a atitude interpretativa floresça, essas convicções não precisam ser tão compartilhadas pela comunidade quanto a noção do intérprete acerca dos limites da pré-interpretação, ou mesmo quanto a suas convicções sobre o devido grau de adequação.

Desse modo, a pretensão de produzir um conceito de direito puramente descritivo,

nascido de um relato exterior e neutro do cientista social se mostraria incompatível com a

natureza argumentativa da prática jurídica. Pelo contrário, devido ao fato de que análises

sobre o direito são produzidas por participantes internos à prática jurídica, qualquer

por descrevê-la de modo que represente condições geralmente partilhadas e preferivelmente genéricas. Observamos então se essas condições têm força suficiente para produzir um conjunto significativo de princípios. Em caso negativo, procuramos outras premissas igualmente razoáveis. Mas em caso afirmativo, e se esses princípios correspondem às nossas ponderadas convicções sobre a justiça, então até esse ponto tudo está correto. Deve-se, porém, supor que haverá discrepâncias. Nesse caso temos uma escolha. Podemos modificar a avaliação da situação inicial ou revisar nossos juízos atuais, pois até mesmo os julgamentos que provisoriamente tomamos como pontos fixos estão sujeitos a revisão. Por meio desses avanços e retrocessos, às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e conformando-os com os novos princípios, suponho que acabaremos encontrando a configuração da situação inicial que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas eu me refiro como equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos princípios e opiniões coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais derivam. Neste momento tudo está em ordem. Mas este equilíbrio não é necessariamente estável. Está sujeito a ser perturbado por outro exame das condições que se pode impor à situação contratual e por casos particulares que podem nos levar a revisar nossos julgamentos. Mas por enquanto fizemos o possível para tornar coerente e justificar nossas convicções sobre justiça social.”. A melhor forma de se compreender a metáfora do ‘Juiz Hércules’, utilizada por Dworkin para explicar como se dá a busca por soluções para os casos difíceis, é por meio da metodologia do equilíbrio reflexivo. As críticas que consideram que a figura de Hércules traria uma tarefa impossível para o intérprete realizá-la sozinho não levam em consideração o caráter metafórico da referência a Hércules. Ele não é um juiz que, exercendo um raciocínio monológico, encerrado em seu gabinete, descobriria a ‘resposta correta’ aos casos difíceis. Hércules representa o esforço coletivo de toda a comunidade jurídica que se propõe a buscar soluções aos casos controversos e, ponderando reflexivamente, as diversas posições, ao final da argumentação, seria capaz de produzir uma solução cujas razões se sobreporiam em relação às demais com seu peso para decidir a questão.

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proposição genérica sobre o significado geral do direito – seu conceito – teria uma natureza

interpretativa, e não semântica como pretendido pela teoria positivista.

Viu-se que a interpretação construtiva transfere aos participantes da prática jurídica a

missão de interpretá-la a partir de um propósito ou um sentido que eles viriam a lhe atribuir.

No entanto, viu-se também que, a partir da etapa interpretativa, mas principalmente no nível

pós-interpretativo, a discussão sobre as melhores formas de se interpretar a prática jurídica se

aprofundaria e as chances de se alcançar um consenso amplo seriam cada vez mais raras.

Logo, intérpretes experientes e já familiarizados com essa prática poderiam, em níveis mais

concretos, discordar entre si sobre aspectos relevantes acerca da caracterização ou das

exigências da prática jurídica. Assim, a compreensão do direito como um conceito

interpretativo permitiria o desenvolvimento da atitude interpretativa305, levando, por

conseguinte, ao surgimento de diferentes concepções que disputam entre si a melhor

explicação acerca da natureza e das exigências da prática jurídica. Em diferença à abordagem

semântica, tais concepções não seriam afirmações descritivas sobre o que é o direito, mas

305 Antes de chegar a essa conclusão sobre a postura dos intérpretes na atitude interpretativa, Dworkin (2003, p.

98) enfrentou a objeção do ceticismo externo à atitude interpretativa, que anularia qualquer empreendimento interpretativo. O ceticismo externo afirmaria, de antemão, inexistir uma afirmação moral ‘objetiva’ em um empreendimento interpretativo, pois proposições interpretativas não passariam da expressão subjetiva dos intérpretes: “O ceticismo exterior é uma teoria metafísica, e não uma posição interpretativa ou moral. O cético exterior não contesta nenhuma afirmação moral ou interpretativa específica. Ele não diz que é um equívoco, de certa maneira, pensar que Hamlet versa sobre a protelação ou que a cortesia é uma questão de respeito, ou que a escravidão é iníqua. Sua teoria é, na verdade, uma teoria em segundo grau sobre a posição ou a classificação filosófica dessas afirmações. Ele insiste em que elas não são descrições que possam ser comprovadas ou testadas, como na física: nega que os valores estéticos ou morais possam ser parte daquilo que chama (em uma das metáforas de seus pontos de vista) de ‘fundamentos’ do universo. Seu ceticismo é exterior por não ser engajado: afirma deixar o verdadeiro procedimento da interpretação à margem de suas conclusões. O cético exterior tem suas opiniões sobre Hamlet e a escravidão e pode apresentar razões pelas quais prefere essas opiniões àquelas que rejeita. Insiste, apenas, em dizer que todas essas opiniões são projetadas na realidade, e não descobertas nela.”. O equívoco do ceticismo externo consistiria em achar que é possível distinguir uma afirmação moral feita por uma pessoa de uma descrição de segundo grau dessa mesma assertiva que (re)afirma sua objetividade face ao mundo moral. Na verdade ambas seriam expressões morais interpretativas e esse reforço serviria apenas para fazer uma distinção entre crenças morais profundas e simples opiniões ou afirmações não generalizantes: “A verdadeira relação entre minha opinião inicial sobre a escravidão e meus comentários ‘objetivos’ posteriores é muito diferente. Usamos a linguagem da objetividade não para dar a nossas afirmações morais ou interpretativas habituais um fundamento metafísico bizarro, mas para repeti-las, talvez de um modo mais preciso, para enfatizar ou qualificar seu conteúdo. Usamos essa linguagem, por exemplo, para estabelecer uma distinção entre as verdadeiras afirmações morais (ou interpretativas , ou estéticas) e o que seriam meras exposições de nossos gostos (...) Também usamos a linguagem da objetividade para distinguir entre as afirmações que só devem valer para pessoas que têm crenças, relações, necessidades ou interesses particulares (talvez apenas para o orador) e aquelas que devem valer impessoalmente para todos (...) Combinei esses dois usos da linguagem objetiva no diálogo que há pouco imaginei sobre a escravidão. Afirmei que a escravidão era ‘realmente’ iníqua, e o restante para deixar claro que eu considerava a escravidão iníqua em toda parte, não apenas nas comunidades cujas tradições a condenam. Portanto, se uma pessoa disser que estou errado em meu julgamento, e nossa divergência for genuína, ela deve querer dizer que a escravidão não é iníqua em toda parte ou, talvez, que não é iníqua em parte alguma. Essa é uma versão do ceticismo interior; só poderia ser defendida por argumentos morais de algum tipo, por exemplo ao se recorrer a uma forma de relativismo moral que sustenta que a verdadeira consiste apenas em respeitar as tradições da comunidade à qual se pertença.”.

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fruto de uma compreensão do intérprete sobre qual seria a melhor maneira de apresentar a

natureza e o propósito do direito:

O direito é um conceito interpretativo como a cortesia em meu exemplo imaginário. Em geral, os juízes reconhecem o dever de continuar o desempenho da profissão à qual aderiram, em vez de descartá-la. Então desenvolvem, em resposta a suas próprias convicções e tendências, teorias operacionais sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades nesse desempenho. Quando divergem sobre aquilo que chamei de modalidade teórica, suas divergências são interpretativas. Divergem, em grande parte ou em detalhes sutis, sobre a melhor interpretação de algum aspecto pertinente do exercício da jurisdição (...) As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas próprias convicções sobre o ‘sentido’ – o propósito, o objetivo ou princípio justificativo – da prática do direito como um todo, e essas convicções serão inevitavelmente diferentes, pelo menos quanto aos detalhes, daquelas de outros juízes (DWORKIN, 2003, p. 109).

Apesar dessa tendência natural à divergência entre os juristas sobre o sentido que

atribuem ao direito, Dworkin (2003) identifica a existência de paradigmas306 construídos no

interior da comunidade jurídica – que são reforçados tanto pela prática judicial, como pelo

ensino jurídico – que promoveriam uma convergência de visões sobre as diferentes soluções

interpretativas. Dworkin (2003) sugere ainda que, sob a coerção desses paradigmas jurídicos,

as divergências interpretativas sobre o direito em um sentido mais abrangente girariam em

torno do escopo mais abstrato e fundamental de sua aplicação. Em referência aos debates da

filosofia política, Dworkin dirá que esse escopo consistiria no emprego ou no refreamento do

uso da força pelo poder político307. A interpretação do direito dentro dessas condições

epistêmicas reduziria ainda mais o espectro das concepções de direito consideradas como

pertinentes no seio da comunidade jurídica. Os paradigmas e a presença de um fio condutor

306 O emprego da expressão ‘paradigma’ por Dworkin (2003, p. 89) tem o seguinte significado: “O papel que

esses paradigmas desempenham no raciocínio e na argumentação será ainda mais crucial do que qualquer acordo abstrato a propósito de um conceito. Pois os paradigmas serão tratados como exemplos concretos aos quais qualquer interpretação plausível deve ajustar-se, e os argumentos contra uma interpretação consistirão, sempre que possível, em demonstrar que ela é incapaz de incluir ou explicar um caso paradigmático.”.

307 “De modo geral, nossa discussão sobre o direito assume – é o que sugiro – que o escopo mais abstrato e fundamental da aplicação do direito consiste em guiar a restringir o poder do governo da maneira apresentada a seguir. O direito insiste em que a força não deve ser usada ou refreada, não importa quão útil seria isso para os fins em vista, quaisquer que sejam as vantagens ou a nobreza de tais fins, a menos que permitida ou exigida pelos direitos e responsabilidades individuais que decorrem de decisões políticas anteriores, relativas aos momentos em que se justifica o uso da força pública. Nessa perspectiva, o direito de uma comunidade é o sistema de direitos e responsabilidades que respondem a esse complexo padrão: autorizam a coerção porque decorre de decisões anteriores de tipo adequado. São, portanto, direitos e responsabilidades ‘jurídicas’. Essa caracterização do conceito de direito estabelece, de maneira apropriadamente vaga, aquilo que às vezes é chamado de ‘regra’ do direito.” (DWORKIN, 2003, p. 116). Essa referência à compreensão do direito a partir dos limites da prática jurídica é a principal razão pela qual Dworkin rechaça, de plano, as teorias que pretendem explicar o direito à luz da política, como é o caso do movimento da Critical Legal Studies.

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do debate sobre a finalidade do direito seriam responsáveis, portanto, por padronizar a

discussão em torno de posições mais ou menos consolidadas na comunidade jurídica.

Assim, verifica-se que as concepções que alguém poderia formular acerca do direito

não são tanto individuais, mas sim coletivas. Elas se adequariam a um padrão de discussão

publicamente reconhecido no seio dessa comunidade, sob pena de serem rechaçadas como

impertinentes ou sem sentido. Dworkin (2003) identifica que três concepções interpretativas

antagônicas disputam a melhor forma de se atribuir sentido à prática jurídica. Cada uma delas

sustentaria uma afirmação interpretativa sobre o fundamento e força normativa do direito308: o

convencionalismo, o pragmatismo jurídico e o direito como integridade. Chamando atenção

para aquilo que interessa ao presente trabalho, cada uma dessas concepções privilegiaria uma

determinada forma de relação do direito com a temporalidade. Assim, a análise309 dessas

concepções interpretativas, que se fará no próximo tópico, consistirá em um importante

elemento para revelar de que maneira Dworkin (2003) pôde conceber uma teoria jurídica

capaz de reabilitar uma leitura temporalmente equilibrada do direito.

4.3.2 Apresentação das concepções interpretativas do direito e de sua respectiva relação

com a temporalidade

4.3.2.1 O convencionalismo

O convencionalismo é uma concepção interpretativa sobre a natureza do que

consistem o direito e a prática jurídica construída a partir da constatação de que há, em toda

308 O fato de as concepções em disputa sobre o propósito do direito serem levadas a se referir a seu fundamento e

a sua força interpretativa em suas exposições decorre do fato de que a atitude interpretativa não exclui as convicções morais e políticas do intérprete na construção de sua teoria. Assim, uma teoria jurídica não é ‘apenas’ jurídica, mas teria uma carga política que lhe é inerente: “Portanto, uma teoria política do direito completa inclui pelo menos duas partes principais: reporta-se tanto aos fundamentos do direito – circunstâncias nas quais proposições jurídicas específicas devem ser aceitas como verdadeiras – quanto à força do direito – o relativo poder que tem toda e qualquer verdadeira proposição jurídica de justificar a coerção em vários tipos de circunstâncias excepcionais. Essas duas partes devem apoiar-se mutuamente. A atitude assumida por uma teoria integral sobre a questão de até que ponto o direito é dominante, e quando pode ou deve ser posto de lado, deve estar a altura da justificativa geral que o direito oferece para o uso da coerção, que por sua vez, provém de seus pontos de vista sobre os polêmicos fundamentos do direito. Portanto, uma teoria geral do direito propõe uma solução a um complexo conjunto de equações simultâneas. Quando comparamos duas teorias, devemos levar em consideração as duas partes de cada uma delas para decidir até que ponto diferem em suas consequências práticas gerais.” (DWORKIN, 2003, p. 136).

309 No presente trabalho, a exposição das três concepções de direito que disputam entre si o status de apresentação mais atraente da prática jurídica se limitará a sua caracterização e a seus elementos intrínsecos que repercutem na relação entre tempo e direito. Em razão de fins metodológicos, optou-se por não se aprofundar em todos os debates subjacentes a cada uma das concepções, tal como pontuados por Dworkin ao longo de sua análise. Para tanto, remete-se o leitor ao texto original de O império do direito (2003) e aos debates que daí surgiram, reunidos em A justiça de toga (2010).

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sociedade, uma convenção política abrangente – explícita ou implícita – que atribui a certas

instituições a prerrogativa exclusiva de criação e aplicação do direito310. Como essas

instituições políticas teriam a incumbência de traçar diretrizes gerais de comportamento e de

solucionar litígios que demandam a aplicação do direito em casos concretos, existiriam

‘convenções jurídicas’ que, reunidas, formariam um registro das regras de comportamento

vigentes como obrigatórias nessa sociedade. As convenções jurídicas produzidas ao longo da

história da sociedade adquirem capital importância nessa concepção, pois é delas que se irá

retirar o fundamento e a força que sustentam o convencionalismo.

Em primeiro lugar porque a leitura convencionalista do direito enxergaria nas

‘convenções jurídicas’ o único elemento aceito pela prática jurídica como responsável pela

fundamentação de proposições jurídicas verdadeiras acerca do direito311. Somente a partir de

um raciocínio dedutivo formal, em que a premissa maior consistiria no conteúdo explícito de

uma convenção, é que alguém poderia formular uma proposição jurídica válida na prática

jurídica. Para o convencionalismo, portanto, o fundamento do direito está invariavelmente

associado ao teor dessas convenções jurídicas312.

Por outro lado, esse modo de conceber a prática jurídica possuiria o atrativo de fazer o

direito derivar exclusivamente de um consenso político mais abrangente em voga na

sociedade, que elegeu instituições competentes para a criação e a aplicação do direito. O

direito teria em mira, assim, um compromisso político de assegurar um ideal de

expectativas313 em relação ao comportamento a ser observado pelos indivíduos nas relações

310 As convenções a que se refere Dworkin (2003, p. 142) são todas aquelas instituições políticas a que as

sociedades modernas atribuíram a função de criação e aplicação do direito: “Toda comunidade política complexa, insiste o convencionalismo, possui tais convenções. Nos Estados Unidos, é determinado por convenção que o direito é constituído pelas leis promulgadas pelo Congresso, ou pelas legislaturas do Estado, segundo o modo prescrito pela Constituição, e , na Inglaterra, que as decisões da Câmara dos Lordes são válidas para os tribunais inferiores.”.

311 À primeira vista, o convencionalismo guardaria forte semelhança com o positivismo em sentido amplo pelo modo como enfatiza a leitura do direito através de seu elemento normativo. Contudo, Dworkin (2003) salienta que o ‘positivismo’ da concepção convencionalista decorre de uma atitude interpretativa. Do interior da prática jurídica, o intérprete sustentaria que o apego às convenções jurídicas explícitas produzidas pelas instituições políticas seria a melhor forma de apresentar essa prática. O intérprete enxergaria um valor e um sentido em conceber o direito a essa maneira, como se exporá na sequência. Isso seria bem diferente da postura sustentada pelo positivismo semântico, que afirma que o conceito de direito pode ser apreendido a partir da descrição analítica do uso linguístico da sociedade em sua referência àquilo que ela assume como sua prática jurídica.

312 “a força coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando alguma decisão política do passado assim o autorizou explicitamente, de tal modo que advogados e juízes competentes estarão todos de acordo sobre qual foi a decisão, não importa quais sejam as suas divergências em moral e política.” (DWORKIN, 2003, p. 141).

313 “as distinções que uma concepção estabelece entre direitos e outras formas de pretensão desprovidas de juridicidade, e entre os argumentos jurídicos e outras formas de argumento, assinalam a natureza e os limites da justificativa que, segundo acredita, as decisões políticas oferecem à coerção de Estado. O convencionalismo oferece uma resposta aparentemente atraente a essa questão. As decisões políticas do passado justificam a coerção porque, e portanto apenas quando, fazem uma advertência justa ao

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sociais e pelos tribunais na solução dos litígios. Esse ideal de expectativas asseguradas seria o

principal argumento convencionalista em relação à força do direito: uma vez que o direito se

originaria de uma convenção jurídica socialmente compartilhada, ela seria igualmente

reconhecida e aceita por todos, assim como observada pelas instâncias responsáveis pela

aplicação do direito314.

O convencionalismo retiraria a força de suas proposições também do fato de que nessa

concepção endossa-se outro importante valor político das sociedades modernas: a democracia

e o princípio da vontade da maioria. Nas sociedades modernas, as instituições políticas com a

atribuição de criar as regras mais importantes da vida jurídica são os parlamentos e as

assembleias legislativas. Esses colegiados são compostos por representantes eleitos pela

população politicamente ativa – os cidadãos – com a finalidade de representar, ainda que

indiretamente, sua vontade política. As leis que produzem são, portanto, em última instância,

a expressão da autonomia política da sociedade em definir os rumos e regras que deseja para

si própria. Portanto, a obediência à convenção produzida por essas instituições políticas

significaria o respeito à regra democrática presente no jogo político das sociedades modernas.

Assim, a postura defendida pelo convencionalismo exigiria do jurista um apego à

literalidade do teor das convenções jurídicas. Com isso, o jurista se isentaria de ter a

responsabilidade, ele próprio, de buscar uma moralidade ideal na aplicação do direito. A

moralidade do direito seria aquela intrínseca ao teor explícito das convenções, não cabendo ao

intérprete querer melhorar a qualidade moral da norma – ou mesmo adequá-la – a fim de

subordinarem as ocasiões de coerção a fatos simples e acessíveis a todos, e não a apreciações recentes da moralidade política, que juízes diferentes poderiam fazer de modo diverso. Esse é o ideal das expectativas asseguradas.” (DWORKIN, 2003, p. 145). Na tradição continental, a expressão correspondente é o ideal da ‘segurança jurídica’, salientado, por exemplo, por Kelsen (1998, p. 41) como a principal virtude das teorias positivistas: “A segurança coletiva atinge o seu grau máximo quando a ordem jurídica, para tal fim, estabelece tribunais dotados de competência obrigatória e órgãos executivos centrais tendo à sua disposição meios de coerção de tal ordem que a resistência normalmente não tem quaisquer perspectivas de resultar. (...) Determinando os pressupostos sob os quais deve recorrer-se ao emprego da força e os indivíduos pelos quais tal emprego deve ser efetivado, instituindo um monopólio da coerção por parte da comunidade, a ordem jurídica estabelece a paz nessa comunidade por ela mesma constituída.”.

314 A partir da constatação de que, em maior ou menor grau, as convenções não trazem com exatidão e concretude a regra de comportamento que as pessoas devem observar, mas, pelo contrário, necessitam de uma ‘extensão’ para serem aplicadas, Dworkin (2003) faz uma distinção entre duas diferentes formas de abordagem da concepção convencionalista, a estrita e a moderada. O convencionalismo estrito exigiria que as convenções a serem aplicadas pelos juristas seriam apenas aquelas cuja extensão é explícita, isto é, aquelas que todos concordariam sobre qual é o teor de sua extensão. Já o convencionalismo moderado modificaria essa regra para admitir também as convenções implícitas, isto é, aquelas que decorreriam da interpretação mais bem fundada da convenção, ainda que não necessariamente idêntica a sua extensão explícita. Dworkin argumentará que o convencionalismo moderado não se ajustaria às características principais da concepção convencionalista. Por permitir que o juiz recorra a convenções mais abstratas do que aquelas explicitadas no material jurídico produzido pelas instituições políticas, o convencionalismo moderado fugiria do ideal das expectativas asseguradas que confere legitimidade à concepção convencionalista. Por essa razão sua análise se concentrará no convencionalismo estrito.

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produzir uma situação mais justa do que aquela proporcionada pela aplicação da convenção

em conformidade com sua literalidade. Consequência disso é o fato de que o

convencionalismo imporia limites àquelas decisões que podem ser tomadas sob a qualificação

de ‘jurídicas’. Como a aplicação do direito ao caso concreto necessita estar lastreada em uma

convenção previamente existente no direito, não seria possível argumentar em favor de uma

aplicação mais adequada ou mais justa para a hipótese de a convenção encontrar-se

ultrapassada ou em desacordo com seu tempo. O direito prevaleceria ao custo da evolução

moral da sociedade, pois o ganho marginal que esta teria em razão do respeito geral à prática

jurídica seria maior, sustentam os convencionalistas. De outra sorte, a sociedade sempre

poderia recorrer à pressão política em prol de uma mudança legislativa, fato que, inclusive,

estaria em conformidade com as regras do jogo democrático. Admitir que o poder judiciário

viesse a aplicar um direito não lastreado na convenção seria incompatível com as crenças do

convencionalismo quanto ao fundamento e à força do direito.

Nas situações em que a aplicação do direito apresenta um maior grau de complexidade

ou de incerteza – os chamados ‘casos difíceis’315 – o convencionalismo se depararia com a

situação de não encontrar uma resposta ‘pronta’ e ‘exata’ nas convenções jurídicas para

dirimir a controvérsia. Nessas situações excepcionalíssimas, o convencionalismo afirmaria

que as convenções políticas teriam ‘liberado’ o juiz de decidir com base em alguma

convenção explícita do passado, para assumir uma postura legiferante316 a partir de um poder

discricionário. O poder discricionário seria a prerrogativa conferida ao juiz para decidir os

casos difíceis por meio de um juízo subjetivo, isto é, livre de coerções, acerca da conveniência

de uma dentre as alternativas possíveis para a solução da controvérsia não pacífica nos

tribunais e na comunidade jurídica. Assim, o poder discricionário romperia com a lógica do

convencionalismo, por permitir que o juiz se valha de padrões extrajurídicos – isto é, não

explicitados nas convenções – para dirimir os casos difíceis. Essa seria a versão forte do poder

315 A expressão ‘casos difíceis’ (hard cases) se refere àquelas situações de aplicação do direito em que duas ou

mais soluções para o caso poderiam ser defendidas com bons argumentos e igualmente aceitas pela comunidade jurídica como, em princípio, hábeis a dirimir a controvérsia (DWORKIN, 2002).

316 “O direito por convenção nunca é completo, pois constantemente surgem novos problemas que ainda não haviam sido resolvidos de nenhuma maneira pelas instituições que dispõem da autoridade convencional para resolvê-los. Assim, os convencionalistas acrescentam essa condição a sua descrição da prática jurídica. ‘Os juízes devem decidir esses casos novos da melhor maneira possível, mas por definição nenhuma parte tem nenhum direito a obter ganho de causa em virtude de decisões coletivas precedentes – nenhuma parte tem a pretensão juridicamente tutelada de vencer –, pois que os únicos direitos dessa natureza são aqueles estabelecidos por convenção. Portanto, a decisão que um juiz deve tomar nos casos difíceis é discricionária no sentido forte do termo; é deixada em aberto, via correto entendimento de decisões passadas. O juiz deve encontrar algum outro tipo de justificativa além da garantia de direito, além de qualquer exigência de consistência com decisões tomadas no passado, que venha apoiar o que fará em seguida.” (DWORKIN, 2003, p. 142-143).

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discricionário. Ela não se confunde com a versão fraca do poder discricionário, que consiste

em atribuir ao juiz a liberdade de escolher, subjetivamente, uma dentre as várias possíveis

interpretações que a convenção lhe impõe como alternativas possíveis (DWORKIN, 2002).

Assim, o convencionalismo seria uma concepção interpretativa do direito que

privilegia a dimensão temporal do passado em detrimento do presente ou mesmo do futuro.

Ele faz uma opção por privilegiar as convenções produzidas no passado pelas instituições

políticas como as regras com melhores condições de reger a sociedade, ainda que o intérprete

não as enxergue como as mais justas de um ponto de vista moral. O convencionalismo visa

garantir que a sociedade continue se comportando como sempre se comportou até que ela

própria decida, em suas instâncias políticas, mudar o curso de suas diretrizes normativas –

esse é o principal trunfo de seu argumento. Assim, o convencionalismo radicaria, portanto, o

fundamento e a força do direito na dimensão temporal do passado:

O convencionalismo defende a autoridade da convenção ao insistir em que as práticas convencionais estabelecem tanto o fim quanto o princípio do poder do passado sobre o presente. Insiste em que o passado não concede nenhum direito sustentável diante de um tribunal, salvo quando forem incontestavelmente aquilo que todos sabem e esperam. Se a convenção for omissa, não existe direito, e a força dessa afirmação negativa está exatamente no fato de que os juízes não devem, então, fingir que suas decisões decorrem, de algum modo, daquilo que já foi decidido. Devemos proteger a convenção dessa maneira, segundo o convencionalismo, mesmo achando que às vezes os juízes devem, em circunstâncias extremas, ignorar a convenção (DWORKIN, 2003, p. 147).

A descrição inicial da prática jurídica feita pelo convencionalismo se ajustaria, em

princípio, à imagem geral que o senso comum, e também a maioria dos juízes e advogados,

têm sobre o direito. Contudo, uma análise mais detida sobre certos aspectos do

convencionalismo apontaria para o fato de que nem sempre o ideal das expectativas

asseguradas seria realizado. Se isso de fato se verificar na realidade, a pretensão de se atribuir

ao passado a força instituinte do direito – elemento que torna o convencionalismo uma

concepção atraente – cairia por terra e a veneração ao passado se tornaria, além de sem

sentido, perniciosa para a legitimidade do direito.

De um lado, o modo como o convencionalismo explica a solução dos casos difíceis –

especialmente os casos lacunosos – por meio do recurso ao poder discricionário forte

transmitiria a imagem que o juiz possui uma grande margem para a livre criação do direito

nos tribunais. Converter o juiz em uma autoridade ‘legisladora’ significaria atribuir-lhe um

poder demasiadamente amplo na solução das controvérsias judiciais, especialmente pelo fato

de não lhe vincular às convenções jurídicas produzidas no passado como a concepção

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convencionalista exige para o restante da prática jurídica. Também transmitiria aos cidadãos a

ideia de que em questões relevantes, como as dos casos difíceis, eles não poderiam contar

com uma base segura e prévia sobre como os tribunais iriam se comportar na aplicação do

direito. O poder discricionário forte faria o ideal das expectativas asseguradas ruir justamente

quando os cidadãos mais esperavam que ele atuasse317.

Por outro lado, Dworkin (2003) demonstra ainda que as convenções jurídicas não

seriam autoaplicáveis. Elas sempre careceriam de uma ‘extensão’, a fim de se chegar à regra

individual que soluciona o caso concreto, mesmo naquelas hipóteses em que fazem uma

referência imediata à situação que pretendem regulamentar. Essa ‘extensão’ seria decorrência

necessária da atividade de concretização do direito no momento de sua aplicação pelos

tribunais. Quando a comunidade jurídica está de acordo em relação ao teor da convenção, ela

seria de tipo ‘explícita’ e seu emprego não seria contraditório com as premissas do

convencionalismo. Se todos estão de acordo quanto ao teor da ‘extensão’ da convenção, ela

deverá ser indubitavelmente empregada na regra que concretiza a aplicação do direito.

Contudo, se juízes competentes podem vir a divergir quanto ao teor da extensão que culmina

na regra individual, a convenção é apenas implícita e não há um critério em referência direta

ao teor das convenções jurídicas previamente existentes que defina como complementá-la.

Dentro dos limites estabelecidos pela convenção jurídica, o juiz disporia de um poder

discricionário em sentido fraco, que lhe confere liberdade para escolher, segundo sua própria

subjetividade, aquela ‘extensão’ que entende mais apropriada para solucionar a

controvérsia318. E como o convencionalismo enxerga nas convenções jurídicas criadas pelas

317 A diferença do direito como integridade para o convencionalismo estará justamente no fato de que o direito

como integridade abraçaria a dimensão política do direito na dimensão judicial da prática jurídica, afastando a noção simplória de que o direito seria um ‘Manual de Regras’ em que o intérprete deverá, de modo neutro, encontrar aquela que, com exatidão, fornece a resposta ao caso concreto: “In hard cases, in which no explicit rule applies, the rights conception requires that judges make political judgements, not in the party political sense, but in the sense that they give ‘a coherent general interpretation of the legal and political culture of the community’ (ibid., p. 2). The political judgements involve moral and political arguments. The approach is therefore different to that of the rulebook conception, which recommends various types of historical enquiries in hard cases to discover the intention or will of the lawmakers who have been authorized by the community to decide what rules should apply.” (TEN, 2007, p. 501). (Tradução nossa: “Nos casos difíceis, aos quais nenhuma regra explícita se aplica, a concepção dos direitos exige que o juiz faça julgamentos políticos, não no sentido político partidário, mas no sentido de que eles dão uma intepretação geral coerente da cultura jurídica e política da comunidade. Os julgamentos políticos envolvem argumentos morais e políticos. A abordagem é, portanto, diferente daquela da concepção do livro de regras, que recomenda vários tipos de investigações históricas nos casos difíceis para descobrir a intenção ou a vontade do legislador que foi autorizado pela comunidade para decidir quais regras deveriam ser aplicadas.”).

318 Como já visto, essa é a conclusão formulada por Kelsen (1998) ao sustentar que a interpretação judicial é autêntica, no sentido de ser criadora de normas jurídicas e que o juiz não teria nenhuma obrigação em encontrar uma interpretação que fosse a mais correta ou adequada para a solução do caso. O direito se contenta que ela simplesmente se encontre autorizada pela norma superior, nos termos da chamada moldura interpretativa.

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instituições políticas o fundamento do direito, o juiz sequer estaria constrangido a procurar

uma ‘extensão’ que estivesse em conformidade com um propósito ou um princípio encontrado

no conjunto das decisões do passado. Tais padrões normativos seriam extrajurídicos e,

portanto, não vinculariam o juiz.

Reunidos, esses dois aspectos do convencionalismo retirar-lhe-iam justamente seu

principal apelo, que é o de assentar a força instituinte do direito nas decisões produzidas no

passado:

O convencionalismo estrito afirma que os juízes são liberados da legislação e do precedente nos casos difíceis porque a extensão explícita dessas convenções jurídicas não é suficientemente densa para decidir tais casos. Precisamos perguntar em que medida essa afirmação interpretativa se ajusta aos casos que usamos como exemplos. Mas pelo menos devemos notar de que modo a nova ênfase no aspecto negativo do convencionalismo esvazia a hipótese que mencionei anteriormente, de que o aspecto negativo sustenta o ideal político das expectativas asseguradas ao selecionar os casos em que esse ideal não pode ser satisfeito. Do mesmo modo que o aspecto positivo do convencionalismo perde sua importância prática no tribunal, pois são muito poucas as ocasiões em que os juízes podem apoiar-se no direito do modo como o convencionalismo o interpreta, essa defesa específica do aspecto negativo torna-se mais fraca, pois as exceções invariavelmente se sobrepõem à regra. Se todos os casos que chamam a atenção, por serem debatidos em importantes tribunais de apelação diante da avaliação da sociedade, são ocasiões nas quais os juízes têm o escrúpulo de negar que estejam servindo ao objetivo das expectativas asseguradas através de suas decisões, isso pode fazer muito pouco para reforçar a confiança pública nesse ideal. (DWORKIN, 2003, p. 158-159).

Assim, o convencionalismo fracassaria em garantir o ideal das expectativas

asseguradas em situações de crucial importância para a prática jurídica – ou pelo menos

naquelas em que a opinião pública está atenta sobre como e por quais fundamentos os

tribunais irão decidir casos importantes da sociedade. Nesse sentido, o convencionalismo

admitiria uma prática jurídica que contrariaria justamente aquele elemento que lhe

proporciona força normativa. Se as decisões do passado são tão importantes para garantir a

legitimidade do direito nos casos normais, por que o convencionalismo abdica delas nos casos

controversos? O que se infere da resposta convencionalista é que ou o passado não deveria

possuir tanta relevância para a solução das questões presentes e futuras, ou o convencionalista

não foi hábil em construir uma teoria jurídica que reabilite o real valor dessa dimensão

temporal.

Optando pela primeira das alternativas acima referidas, o pragmatismo jurídico seria

uma das concepções interpretativas a contestar o convencionalismo jurídico. Contra a

pretensão de fundamentar o direito nas decisões do passado, o pragmatismo abraçaria o fato

de que a realidade é intercambiável e atribuiria ao direito a flexibilidade necessária para

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conduzir a sociedade estrategicamente a seus fins mais elevados. Ao contrário, o direito como

integridade se posicionaria ao lado da segunda crítica e sugerirá algumas correções a essa

concepção visando atribuir às decisões do passado um real papel na teoria jurídica. É o que se

tratará nos dois tópicos seguintes.

4.3.2.2 O pragmatismo jurídico

Quando Oliver Wendell Holmes era juiz da Suprema Corte, certa vez ele deu carona

ao jovem Learned Hand quando ia para o trabalho. Ao chegar a seu destino, Hand saltou, acenou para a carruagem que se

afastava e gritou alegremente: “Faça justiça, juiz!” Holmes pediu ao condutor que parasse e voltasse, para surpresa de

Hand. “Não é esse o meu trabalho!” A Justiça de Toga – Ronald Dworkin

Uma das críticas mais contundentes ao convencionalismo – e a toda forma de

positivismo normativista de um modo geral – se dirige ao fato de que sem a interpretação

judicial e a respectiva concretização da norma jurídica pelos tribunais na solução das

controvérsias, o direito em abstrato – seja ele expresso na legislação ou condensado nos

precedentes – não passaria de uma mera diretriz de comportamento aos cidadãos. Se,

efetivamente, os juízes vierem a rejeitar ou a modificar essas diretrizes na concretização do

direito nos tribunais, o direito de facto – aquele que obrigará os cidadãos a adotarem um

comportamento sob o risco da sanção jurídica – consistirá tão somente na ordem exarada da

pena dos magistrados. De posse dessa informação, o pragmatismo defende que a melhor

leitura sobre em que consistem o direito e a prática jurídica seria aquela que dá menor

relevância às convenções políticas do passado e enfatiza o poder de criação normativa que os

juízes possuem em sua atividade cotidiana de solucionar as controvérsias. Eis aí o fundamento

do direito e o ponto de partida dessa concepção interpretativa que se denomina pragmatismo

jurídico319.

319 A inspiração do pragmatismo jurídico deriva – como o leitor familiarizado com a teoria jurídica já deve ter

percebido – do realismo jurídico. Oliver Wendell Holmes (1991, p. 6) já havia afirmado que “a legal duty is nothing but a prediction that if a man does or omits certain things he will be made to suffer in this or that way by a judgment of the court.”. (Tradução nossa: “um dever legal não é nada mais do que uma previsão de que se um homem fizer ou omitir certas coisas, far-se-á com que ele sofra isso ou aquilo por meio de um julgamento dos tribunais.”). Contudo, Dworkin (2003) salienta que há uma diferença de perspectiva entre ambas as concepções: enquanto o realismo jurídico apresentar-se-ia como uma concepção semântica do direito, ao sustentar que o direito é aquilo que os juízes dizem que é o direito, o pragmatismo seria uma concepção interpretativa do direito. O pragmatismo jurídico entende que a melhor leitura da prática jurídica seria aquela que atribui às decisões proferidas nos tribunais o fundamento do direito, por entender que isso

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A fim de enfatizar o papel criador dos tribunais, o pragmatismo clama ao raciocínio

jurídico que assuma explicitamente o fato de que a lógica que orienta a atividade judicial não

é de tipo silogística – em que regras individuais são derivadas de premissas maiores presentes

na lei ou nos precedentes –, mas sim material320. Segundo o pragmatismo, a lógica judiciária

apelaria para o sentimento do julgador, o que produziria um raciocínio de tipo

consequencialista: um raciocínio que adota que o critério para se apurar a correção normativa

de uma decisão não é tanto o encadeamento formal presente na estrutura interna do

argumento, mas, principalmente, a possibilidade de se produzir um efeito prático positivo ou

útil para a sociedade321.

Por conseguinte, segundo a leitura que o pragmatismo tem da prática jurídica, o juiz

não estaria obrigado a decidir as controvérsias estritamente em conformidade com as

convenções jurídicas produzidas no passado. Pelo contrário, ele teria uma relativa liberdade

de criação normativa para que possa vir a tomar decisões que atendam mais aos imperativos

das circunstâncias do que a uma solução prevista abstratamente no direito do passado322.

Além do mais, ao assumir que é o juiz quem cria o direito efetivo com suas decisões nos

tribunais, o pragmatismo incorporaria à teoria jurídica o importante papel político que os

magistrados exercem na sociedade. Ao atuar como um definidor de questões importantes

atinentes ao rumo da sociedade, o juiz contribuiria para o progresso – ou o regresso – social

com o teor de suas decisões. Nesse sentido, o pragmatismo jurídico faria a afirmação

interpretativa sobre o direito de que a justificativa para o emprego da coerção pelo Estado

promove uma melhor consequência para o direito e por justificar de modo mais convincente o uso da força física pelo Estado.

320 Um defensor do pragmatismo como Richard Posner (2007) afirma tanto ser um fato que os juízes julgam a partir de uma lógica intuitiva, como também que eles devem julgar dessa maneira uma vez que agindo assim contribuiriam na produção de uma sociedade mais útil ou melhor.

321 Nesse sentido, o raciocínio jurídico assumiria uma feição de natureza mais intuitiva do que analítica (POSNER, 2007).

322 Um teórico do pragmatismo como Richard Posner (2007, p. 59), por exemplo, sustenta que a lógica material faria com que os juízes não julgassem em referência às regras, mas sim a padrões de tipo princípios (principles) ou políticas públicas (policies), uma vez que estes confeririam maior liberdade para o julgador considerar todos os elementos da realidade potencialmente envolvidos na solução dos casos: “Uma regra suprime circunstâncias potencialmente relevantes à controvérsia (o autor do delito poderia ter evitado o acidente a um custo razoável?), enquanto um padrão confere mais discricionariedade a quem examina os fatos – o juiz ou o júri –, pois há mais fatos a serem determinados, avaliados, comparados. A regra gera tensão com as políticas sociais que a fundamentam, e que só podem ser imperfeitamente alcançadas quando a regra for aplicada sem se levar em conta as circunstâncias específicas da disputa. O padrão resolve aquele problema – o problema de chegar à justiça material, e não apenas à justiça tão-somente formal –, mas, ao conferir uma ampla discricionariedade às autoridades que a aplicam, deixa o caminho aberto para os abusos (A solução pode ser, portanto, ilusória). Quanto mais flexíveis forem os critérios, mais difícil será, para um observador, determinar quando as autoridades os aplicaram com inteligência e imparcialidade. As regras criam pressão por exceções ad hoc, mas os padrões podem ser vistos como a própria institucionalização da exceção ad hoc. Em um regime de padrões, os princípios ou políticas que, em um regime de regras, determinariam o conteúdo das regras são usados para se determinar o resultado dos casos particulares.”.

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encontra-se no potencial das decisões judiciais em proporcionar um melhor estado de coisas à

sociedade no nível prático.

Com isso, o pragmatismo entende não existir nenhum tipo de compromisso moral ou

político entre os juízes e juristas do presente e as convenções jurídicas produzidas ao longo da

história da sociedade – se bem que estas continuariam a servir de referência, em princípio,

para a função de organização da vida social em geral, como se verá adiante. Baseado em um

ceticismo323 quanto à possibilidade de se encontrar decisões que sejam moralmente superiores

em relação a outras, o pragmatismo concebe que o direito não seria melhor ou mais correto

por se referir às decisões tomadas pelos órgãos legislativos ou pela jurisprudência reiterada

dos tribunais324. Pelo contrário, o pragmatismo elegeria algum princípio instrumental

‘objetivo’ para guiar o raciocínio jurídico, a fim de mensurar de que maneira as decisões dos

tribunais possam promover uma consequência ‘mais positiva’ para a sociedade de um modo

geral segundo esse critério. O pragmatismo pode vir a divergir internamente, contudo, sobre

qual seria esse princípio, oscilando, por exemplo, entre a efetivação de uma justiça social,

como defende o utilitarismo, ou a maximização da riqueza coletiva, como defende a análise

econômica do direito.

323 O ceticismo assumido pelo pragmatismo jurídico seria interno ao direito. Ele reconhece que as afirmações

jurídicas são julgamentos morais, mas defende que a prática jurídica seria por demais contraditória para se permitir a afirmação da superioridade moral de um julgamento em relação aos demais. Por essa razão ele recorreria a posições de caráter instrumentalista supostamente não vinculadas a nenhuma posição moral que antecipe o resultado da decisão judicial sem uma referência aos fatos empíricos, como seria o caso do utilitarismo ou da análise econômica do direito (DWORKIN, 2003). Richard Posner (1998), em seu artigo Problematics of moral and legal theory, radicalizaria essa posição ao afirmar que as questões ligadas ao raciocínio jurídico não envolveriam afirmações morais. Dworkin (2010, p. 130) refuta, contudo, essa possibilidade de uma completa amoralidade no direito: “Os pragmatistas afirmam que qualquer princípio moral prático deve ser avaliado em contraposição a um critério prático: adotar este ou aquele princípio ajuda a tornar as coisas melhores? Porém, se eles estipularam qualquer objetivo social específico – qualquer concepção acerca de quando as coisas são melhores –, estarão destruindo sua afirmação, pois esse objetivo social não poderia ele próprio ser justificado do ponto de vista instrumental sem que se proceda a uma argumentação em círculos. Assim, eles normalmente se recusam a dizer o que significa tornar as coisas melhores: Richard Rorty e outros líderes do exército anti-teórico de Posner parecem pressupor, contrariando toda a experiência política, que para todos eles é óbvia a constatação de que uma situação está melhorando ou, para usar um termo que lhes é muito caro, de que determinada estratégia ‘funciona’. Contudo, as divergências morais necessariamente incluem a divergência sobre aquilo que se entende por ‘funcionamento’.”.

324 “O pragmático adota uma atitude cética com relação ao pressuposto que acreditamos estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado. Ele encontra a justificativa necessária à coerção na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva, como e quando ela é tomada por juízes, e acrescenta que a coerência com qualquer decisão legislativa ou judicial anterior não contribui, em princípio, para a justiça ou virtude de qualquer decisão atual. Se os juízes se deixarem guiar por esse conselho, acredita ele, então a menos que cometam grandes erros, a coerção que impõem tornará o futuro da comunidade mais promissor, liberado da mão morta do passado e do fetiche da coerência pela coerência.” (DWORKIN, 2003, p. 185).

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Como já salientado, para levar adiante essa empreitada, o pragmatismo prega uma

maior flexibilidade interpretativa quanto aos limites impostos pelas convenções jurídicas do

passado. Isso se justificaria pelo fato de que nem sempre a legislação ou os precedentes

trazem a decisão que seja mais útil ou melhor para o futuro da sociedade. Assim, se o juiz se

deparar com a situação de que uma decisão judicial em conformidade com as convenções

jurídicas importará em um resultado objetivamente pior para a sociedade segundo seu critério

avaliativo, essa alternativa deve ser simplesmente descartada. Logo, dessa premissa

interpretativa deriva-se a importante consequência de que o pragmatismo não endossa a ideia

de que existem direitos juridicamente tutelados, em abstrato, aos cidadãos. As pessoas

somente possuiriam ‘direitos’ a partir do momento em que há uma tutela judicial conferida

pelos juízes nos tribunais325 que reconhecem, afirmam ou chancelam tais direitos326.

No entanto, o pragmatismo não faz tabula rasa do conjunto global das convenções do

sistema jurídico, como se o que importasse para o juiz fosse apenas o resultado imediato e

‘local’ de sua decisão. Isso levaria a um casuísmo generalizado que comprometeria tanto a

confiança geral dos cidadãos no sistema jurídico, como, principalmente, a função das

convenções jurídicas de promover a estabilização do comportamento social. O pragmatismo

reconhece que a estabilidade é um valor importante para a sociedade e que sem ela reinaria o

caos social. Por isso, o pragmatismo recomenda que o juiz seja cauteloso e comedido ao

selecionar quando deixar de aplicar as convenções do passado. Antes, é preciso que se faça

uma análise sistêmica dos efeitos gerais de sua decisão a fim de verificar se o ganho total

futuro de uma decisão que foge aos limites estritos da convenção jurídica justifica essa

tomada de atitude. Sendo esse caso, o juiz deverá adotar uma retórica da decisão judicial que

minimize as impressões negativas do emprego desse recurso. Ele deve argumentar como se

estivesse decidindo em conformidade com a autoridade das convenções jurídicas existentes, a

325 “Pragmatists, according to Dworkin, adopt a skeptical attitude towards the view that past political decisions

justify state coercion. Instead, they find such justification in the justice or efficiency or other virtue of the exercise of such coercion by a judge. This approach fails to take rights seriously because it treats rights instrumentally – they have no independent existence: rights are simply a means by which to make life better. Pragmatism rests on the claim that judges do – and should – make whatever decisions seem to them best for the community’s future, rejecting consistency with the past as valuable for its own sake.” (WACKS, 2006, p. 45). (Tradução nossa: “Os pragmatistas, de acordo com Dworkin, adotam uma atitude cética em relação à visão que as decisões políticas passadas justificam a coerção estatal. Ao contrário eles encontrariam tal justificação ou na justiça, ou na eficiência, ou em outra virtude do exercício de tal coerção pelo juiz. Essa abordagem falha em levar os direitos a sério porque trata os direitos instrumentalmente – que eles não têm existência independente: direitos são simplesmente um meio pelo qual se faz a vida melhor.”).

326 Na verdade, a melhor expressão para o que se pretende afirmar aqui é o verbo em língua inglesa ‘to enforce’, que significa forçar ou obrigar o cumprimento do direito. Ou seja, o direito somente existiria a partir do momento em que o juiz obriga a parte a se comportar em conformidade com sua decisão judicial proferida no caso concreto. Antes disso inexistiria qualquer obrigação real para os cidadãos, mas apenas uma expectativa de assim agirem sob pena de serem compelidas a tal pelos tribunais.

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fim de comprometer ao mínimo a confiança geral no sistema jurídico. Na prática jurídica vista

sob o olhar do pragmatismo, o discurso jurídico empregado pelos juízes poderia perfeitamente

transmitir de maneira enganosa a ideia de que as pessoas têm direitos e deveres aos olhos do

Estado e que as decisões dos tribunais são tomadas com lastro nas convenções jurídicas que a

sociedade reconhece como capazes de produzir direito. Contudo, o pragmatismo sabe que

esses ‘direitos’ estariam condicionados ao fato de não colocarem a sociedade em uma situação

indesejável327. Na expressão utilizada por Dworkin (2003), o pragmatismo adotaria a

estratégia de organizar a sociedade ‘como se’ as pessoas tivessem direitos. O defensor do

pragmatismo sabe, contudo, que essa é uma afirmativa retórica e que, na verdade, são os

juízes quem anunciam a palavra final sobre quais direitos as pessoas de fato possuem. Como

esses direitos estariam submetidos a algum critério instrumental de melhoria da sociedade, o

pragmatismo rompe com uma noção tradicionalmente aceita de que os direitos seriam trunfos

com os quais os cidadãos podem contar em sua relação com o Estado e com seus pares328.

Assim, o pragmatismo conceberia o direito como um instrumento de controle social

cuja finalidade é conduzir a sociedade em direção a uma melhor situação do que aquela em

que se encontra. O intérprete reconheceria que o valor do direito está em sua capacidade de

proporcionar um futuro melhor para a sociedade por meio das decisões dos magistrados que

conduzem-na politicamente em prol da realização de seus objetivos globais, justificando,

assim, sua atitude estratégica perante o direito:

327 “O pragmatismo, ao contrário, nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de que

elas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque alguma legislação assim o estabeleceu, ou porque uma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tinham tal direito.” (DWORKIN, 2003, p. 186).

328 Dworkin (2003, p. 187) minimiza o impacto prático dessa postura do pragmatismo porque, de um modo geral os juízes têm a consciência que precisam atribuir a um órgão político central a tarefa de elaborar o grosso das regras de convivência que permitem a organização da sociedade e deixar que cada juiz decida de modo diferente sobre assuntos triviais e corriqueiros ocasionaria o caos na sociedade. Assim, por postura estratégica, o pragmatismo endossaria o discurso oficial de que as pessoas têm direitos: “Os direitos e os deveres jurídicos constituem uma parte familiar de nossa cena jurídica; o leitor, portanto, poderia surpreender-se com o fato de alguém propor o pragmatismo como interpretação possível de nossa prática atual. Os pragmáticos, contudo, têm uma explicação sobre por que a linguagem dos direitos e deveres figura no discurso jurídico. Afirmam, com fundamentação pragmática, que os juízes devem às vezes agir como se as pessoas tivessem direitos, porque a longo prazo esse modo de agir servirá melhor à sociedade. O argumento em favor dessa estratégia do como se é bastante direto: a civilização é impossível a menos que as decisões de uma pessoa ou grupo bem definido sejam aceitas por todos como instauradoras de normas públicas que, se necessário, serão aplicadas pelo poder de polícia. Só a legislação pode estabelecer taxas de tributação, estruturar mercados, determinar códigos e sistemas de trânsito, estipular taxas de juros aceitáveis ou decidir quais construções em estilo gregoriano devem ser preservadas da modernização. Se os juízes fizessem uma seleção na legislação, fazendo cumprir apenas as leis que aprovariam, isso levaria ao fracasso do objetivo pragmático pois, em vez de melhorar as coisas, acabariam por torná-las muito piores. Assim, o pragmatismo pode ser uma interpretação possível de nossas práticas jurídicas se se verificar que nossos juízes declaram que as pessoas têm direito apenas, ou principalmente quando um juiz conscientemente pragmático pretender que elas os têm. O pragmatismo poderia ser menos radical na prática do que parece sê-lo em teoria.”.

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O pragmatismo é uma concepção cética do direito porque rejeita a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas, não estratégicas. Não rejeita a moral, nem mesmo as pretensões morais e políticas. Afirma que, para decidir os casos, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser a melhor comunidade futura, e ainda que alguns juristas pragmáticos pudessem pensar que isso significa uma comunidade mais rica, mais feliz ou mais poderosa, outros escolheriam uma comunidade com menos injustiças, com uma melhor tradição cultural e com aquilo que chamamos de alta qualidade de vida. O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade melhor. Mas também não leva a sério as pretensões juridicamente tuteladas. Rejeita aquilo que outras concepções do direito aceitam: que as pessoas podem claramente ter direitos, que prevalecem sobre aquilo que, de outra forma, asseguraria o melhor futuro à sociedade. Segundo o pragmatismo, aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro: são instrumentos que construímos para esse fim, e não possuem força ou fundamento independentes. (DWORKIN, 2003, p. 195).

Essa caracterização da prática jurídica feita pelo pragmatismo soaria estranho em

relação ao modo como o senso comum sempre percebeu o funcionamento do direito dentro da

dinâmica política da sociedade. De um modo geral, as pessoas não conceberiam que o modelo

político da rule of law seria uma grande farsa e que as pessoas estariam à deriva em relação

aos direitos que creem que o Estado lhes garante329. No entanto, o apelo racional do

pragmatismo é extremamente forte, pois pressiona a prática jurídica em direção à produção de

decisões jurídicas úteis para a sociedade, sem comprometer sua estabilidade e seu equilíbrio.

Seus argumentos contra o convencionalismo também são bastante pertinentes. Afinal, por que

se deveria endossar uma prática jurídica que torna a sociedade pior em razão de um simples

fetiche obsessivo em relação ao passado330? Desse modo, Dworkin (2003) passa a investigar

os efeitos da prática jurídica sob o cânone pragmatista, com o intuito de verificar se as

consequências decorrentes da adoção dessa posição interpretativa ressaltariam alguma

característica que a desqualifique ou lhe retire o valor enquanto modelo de concepção do

direito.

A primeira objeção levantada contra o pragmatismo decorreria do fato de que a

postura estratégica por ele defendida produz uma imagem negativa da prática jurídica aos

olhos dos juristas e, principalmente, dos cidadãos. Enquanto a imagem pública que a

sociedade tem do direito seria uma, apenas juízes – e alguns poucos acadêmicos –

compartilhariam a secreta natureza da atividade que se desenvolve nos gabinetes dos

329 Apesar de o dito popular “De cabeça de juiz e bumbum de neném, ninguém sabe o que vem” ser uma clara

referência à ampla liberdade real dos magistrados para tomar decisões segundo suas intuições ou sentimentos, e, posteriormente, encontrar os fundamentos jurídicos que as justifiquem.

330 Dworkin (2003) afirma que o pragmatismo representaria um desafio muito maior à concepção de direito como integridade que ele defende em razão desse apelo racional que lhe é intrínseco.

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tribunais. Para manter a ‘confiança geral no sistema jurídico’, os juízes respeitariam as

convenções do passado nas situações corriqueiras. Contudo, nos casos difíceis, recorreriam

estrategicamente a seu poder de decidir fora dos parâmetros criados pela convenção jurídica

quando a conveniência das circunstâncias assim o exigir. Ao final, ver-se-iam obrigados,

ainda, a não revelar o real fundamento de suas decisões à população em geral, pois em sua

retórica incluiriam referências às convenções do passado apenas para não despertar reações

contundentes da opinião pública. Todo esse esquema faria da prática jurídica uma grande

farsa pública331, que se justificaria tão somente pelo resultado final que proporciona.

Essa não seria uma caracterização atraente do direito, pois reduziria o prestígio que ele

goza na sociedade. E é possível imaginar, ainda, que, com o passar do tempo, mais e mais

pessoas acabariam percebendo a ‘lógica’ geral de funcionamento da prática jurídica, o que

levaria um número cada vez maior de cidadãos a desmerecê-la. Isso resultaria em uma patente

redução da força normativa do direito enquanto justificativa para que as pessoas venham a

aderir a suas determinações.

No entanto, poder-se-ia pensar que a pertinência do pragmatismo deveria ser testada à

luz de seus argumentos intrínsecos, abstraindo-se da questão periférica acerca da imagem do

direito perante a sociedade. A principal força do argumento do pragmatismo está no fato de

que a prática jurídica conferiria ao magistrado maior flexibilidade em relação à

obrigatoriedade de decidir segundo as convenções do passado, permitindo que ele possa

adotar uma postura estratégica em suas decisões e, assim, produzir uma melhor sociedade por

meio delas. O que haveria de errado ou injusto, então, com esse ponto de vista interpretativo

que ignora os direitos juridicamente tutelados apenas a fim de proporcionar melhores decisões

de uma perspectiva social?

Segundo Dworkin (2003), a resposta a esse desafio do pragmatismo passaria pelo ideal

político da integridade. Tanto a teoria quanto a prática política compartilham ideais para a

estrutura política da sociedade. Os ideais políticos que proporcionaram maior apelo no

imaginário político da modernidade são a imparcialidade, a distribuição equitativa de recursos

e oportunidades e a observância das regras que regem os processos legislativos, judiciais e

administrativos. Respectivamente, esses ideais receberiam a denominação de equidade, justiça

e devido processo legal adjetivo332. No entanto, Dworkin (2003, p. 203) afirma que, ao lado

331 Alguns pragmatistas afirmam que existiria uma convenção social implícita que teria atribuído aos juízes esse

poder de decidir os casos estrategicamente conforme o que é melhor para os interesses da sociedade. No entanto, esse argumento faria do pragmatismo uma espécie híbrida de convencionalismo.

332 “Em política, a equidade é uma questão de encontrar os procedimentos políticos – métodos para eleger dirigentes e tornar suas decisões sensíveis ao eleitorado – que distribuem o poder político da maneira

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deles, haveria outro ideal político menos propalado pela teoria política denominado virtude da

integridade333. E esse ideal consistiria justamente na chave para se compreender o defeito

intrínseco à leitura que o pragmatismo faz do direito.

A virtude da integridade exige que o Estado paute sua conduta pela coerência em

relação a um conjunto único de princípios de ação, traçado e publicamente expresso perante

seus cidadãos – ainda quando eles estejam divididos quanto à natureza exata dos princípios de

justiça e equidade considerados corretos334. Isso imporia que as ações do Estado tivessem por

referência a pauta de conduta que ele, inicial e publicamente, propôs a si próprio. Por

conseguinte, também impediria que o governo viesse a tratar de maneira distinta situações que

guardam semelhança entre si. A virtude da integridade não admitiria, portanto, distinções

discriminatórias entre os cidadãos sem que houvesse uma justificativa especial para tanto.

Com isso, a integridade imporia um princípio de comportamento moral ao Estado, pois lhe

atribuiria uma forma correta de agir em determinados contextos da ação prática335. Assim, a

adequada. Em termos gerais, isso atualmente remete – ao menos nos Estados Unidos e na Inglaterra – a procedimentos e práticas que atribuem a todos os cidadãos mais ou menos a mesma influência sobre as decisões que os governam. A justiça, pelo contrário, se preocupa com as decisões que as instituições políticas consagradas devem tomar, tenham ou não sido escolhidas com equidade. Se aceitamos a justiça como uma virtude política, queremos que nossos legisladores e outras autoridades distribuam recursos materiais e protejam as liberdades civis de modo a garantir um resultado moralmente justificável. O devido processo legal adjetivo diz respeito a procedimentos corretos para julgar se algum cidadão infringiu as leis estabelecidas pelos procedimentos políticos; se o aceitarmos como virtude, queremos que os tribunais e instituições análogas usem procedimentos de prova, de descoberta e de revisão que proporcionem um justo grau de exatidão, e que, por outro lado, tratem as pessoas acusadas de violação como devem ser tratadas as pessoas e tal situação.”. Sobre esta última virtude política do ideal do devido processo legislativo adjetivo, conferir o interessante artigo de Dworkin (2001) Princípio, política e processo em Uma questão de princípio.

333 A denominação ‘integridade’ a essa virtude política nasce da referência de Dworkin (2003, p. 202) ao atributo moral homônimo que se utiliza para uma determinada forma de comportamento das pessoas: “Escolhi esse nome para mostrar sua ligação com um ideal paralelo de moral pessoal. No trato cotidiano conosco, queremos que nossos vizinhos se comportem de modo que consideramos correto. Mas sabemos que as pessoas até certo ponto divergem quanto aos princípios corretos de comportamento, e assim fazemos uma distinção entre essa exigência e a exigência distinta (e mais frágil) de que ajam com integridade nas questões importantes, isto é, segundo as convicções que permeiam e configuram suas vidas como um todo, e não de modo caprichoso ou excêntrico.”.

334 Essa divergência é justamente o que justificaria o ideal da integridade, pois a coerência em relação a um princípio previamente fixado e publicamente compartilhado impediria que as decisões políticas ora se valessem de um valor, ora de outro, conforme o imperativo das circunstâncias.

335 Günther (2004 p. 407) descreve a integridade como um ‘conceito de relacionamento’: “A comunidade política deve agir de modo íntegro, tal como o esperamos de uma alteridade concretamente pessoal em relação a nós, mesmo quando não concordamos com as suas respectivas opiniões a respeito do conteúdo da justiça ou da equidade. Com isso, esperamos um tratamento segundo um conjunto de princípios simples e coerentes, por meio do qual o outro conduza a sua vida, e excluímos, de caso em caso, decisões arbitrárias ou caprichos. Assim como o indivíduo se esforça para viver de modo coerente, a comunidade política está obrigada a justificar coerentemente cada uma das suas decisões, à luz dos princípios aceitos por ela, e de não agir em casos iguais segundo princípios diferentes. Este ideal de integrity, portanto, não diz respeito aos direitos individuais, nem aos argumentos principiológicos que representam, contudo refere-se ao modo como uma comunidade política lida com eles na legislação e na jurisprudência. Porque direitos não podem ser aplicados isoladamente, tampouco podem ser restritos a um círculo de pessoas privilegiadas, eles exigem, em cada decisão a respeito de normas jurídicas um exame coerente. A obrigação interna que o princípio de coerência desenvolve faz com que todas as pessoas de uma comunidade política sejam tratadas como portadoras de

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virtude da integridade exigiria do Estado uma postura moral em relação a seus cidadãos,

impondo-lhe tratá-los com um mínimo de respeito e decência que o atual estágio evolutivo da

civilização requer336. Essa forma moral de agir do Estado passaria pela coerência no modo

como o Estado trata de maneira semelhante situações que são semelhantes.

A presença do ideal político da integridade na ação estatal afetaria, portanto, o modo

de se enxergar as exigências dos outros três ideais políticos acima referidos – a justiça, a

equidade e o devido processo legal –, pois seu teor passaria a estar limitado pela coerência

imposta pela integridade. Com isso, toda espécie de ação estratégica seria repudiada:

Se aceitarmos a integridade como uma virtude política distinta ao lado da justiça e da equidade, então teremos um argumento geral, não estratégico para reconhecer tais direitos. A integridade da concepção de equidade de uma comunidade exige que os princípios políticos necessários para justificar a suposta autoridade da legislatura sejam plenamente aplicados ao se decidir o que significa uma lei por ela sancionada. A integridade da concepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões de seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito. A integridade de sua concepção de devido processo legal adjetivo insiste em que sejam totalmente obedecidos os procedimentos previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar o correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de algum aspecto do direito, levando-se em conta as diferenças de tipo e grau de danos morais que impõe um falso veredito. Essas diferentes exigências justificam o compromisso com a coerência de princípios valorizada por si mesma. Sugerem aquilo que sustentarei: que a integridade, mais que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal qual o conhecemos. (DWORKIN, 2003, p. 203).

Trazida para a prática judicial337, a coerência imposta pelo princípio da integridade

exige que os juízes estejam vinculados às decisões do passado e que, portanto, não sejam

livres para decidir os casos difíceis apenas pela referência a uma melhor comunidade. Como

visto acima, os ideais da justiça, da equidade e do devido processo legal adjetivo encontrar-se-

iam constrangidos em seu teor pelas exigências da integridade. Portanto, não seria permitido

que a realização de um ideal de justiça autorizasse o Estado a se portar com duas faces perante

direitos iguais, isto é, com igual consideração e respeito, consequentemente isto não impede que o Direito ocupe seu lugar no coerente sistema de consideração.”.

336 Em seu mais recente trabalho Justice for Hedgehogs (2011), Dworkin irá argumentar em favor de uma unidade dos valores éticos e morais e que, portanto, seria impossível conceber um desses valores sem se ter em mente a concepção do outro. Nesse sentido, a busca pelo ideal da integridade na política seria a forma da moralidade política apropriada para se construir o valor ético da dignidade.

337 Dworkin (2003) mostra que a virtude da integridade se desdobra em dois princípios práticos de ação: a integridade na legislação, que condenaria as soluções conciliatórias ou as distinções arbitrárias na produção legislativa – ainda que promovam uma maior eficiência da sociedade; e a integridade no julgamento que exige que os juízes decidam de modo coerente com um conjunto de princípios encontrado no material jurídico do passado. A análise se limitará à integridade no julgamento, já que interessa diretamente ao objeto do presente trabalho.

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seus cidadãos. Como o Estado assumiria uma postura moral perante a comunidade338,

soluções discriminatórias transmitiram a imagem que esse ente político não seria digno de

confiança pelos cidadãos. Desse modo, o recurso à pura eficiência como finalidade da prática

jurídica não sustentaria a força normativa que o pragmatismo afirma que sua concepção

possui. Se, por um lado, a sociedade até poderia ver com bons olhos decisões que promovem

uma melhora social, por outro, não aceitaria uma atuação estatal que faz distinções arbitrárias

entre os cidadãos.

Assim, a fixação do olhar do direito em direção a um futuro melhor para a sociedade,

por si só, não seria suficiente para justificar a interpretação da prática jurídica segundo

concebe o pragmatismo. O ideal da integridade, acompanhado de sua respectiva exigência de

coerência, ataria o direito produzido nos tribunais ao passado de uma maneira inexorável:

O segundo é o princípio de integridade no julgamento: pede aos responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e façam cumprir como sendo coerente nesse sentido. O segundo princípio explica como e porque se deve atribuir ao passado um poder especial próprio no tribunal, contrariando o que diz o pragmatismo, isto é, que não se deve conferir tal poder. Explica por que os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada além de um interesse estratégico pelo restante. (DWORKIN, 2003, p. 203).

O pragmatismo falha, portanto, justamente no ponto em que se amparam seus

principais argumentos. Afinal, essa concepção interpretativa defende que a força do direito

está na produção de decisões judiciais em sintonia com um futuro melhor para a sociedade.

Contudo, ao eleger como fundamento do direito justamente as decisões estratégicas tomadas

pelos juízes, ignorando um dever de coerência em relação ao material jurídico339 do passado,

o pragmatismo produziria um direito cada vez mais carecedor de legitimidade, pois a

338 A ideia de que o Estado agiria como um ‘ente moral’ está relacionada ao fato de que o ideal de integridade

personifica a comunidade política, atribuindo-lhe deveres e responsabilidades. Com isso, esses valores seriam distintos daqueles de seus cidadãos ou do que pensa a maioria deles, mas sim uma criação das práticas de pensamento e de linguagem da vida em comunidade. Também não se identificariam com os valores dos indivíduos eleitos como autoridades responsáveis pela condução política da comunidade – não obstante eles possam ser responsabilizados individualmente por seus atos. Essa personificação leva Dworkin (2003, p. 212) a afirmar que há um sentimento de que toda a comunidade é moralmente responsável pelas ações injustas que o Estado pratica: “Ao aceitarmos que nossas autoridades agem em nome de uma comunidade da qual somos todos membros, tendo uma responsabilidade que portanto compartilhamos, isso reforça e sustenta o caráter de culpa coletiva, o sentimento de que devemos sentir vergonha e ultraje quando eles agem de modo injusto.”.

339 ‘Material jurídico’ é uma expressão utilizada por Dworkin (2003) para se referir ao conjunto de elementos normativos decorrentes das decisões tomadas pelas instituições políticas e jurídicas responsáveis pela criação do direito. São as regras contidas nas constituições, leis, precedentes judiciais, atos e decisões administrativas, mas também os princípios que se podem inferir de uma análise de conjunto dessas regras. Os princípios seriam considerados parte do material jurídico produzido no passado por possuírem ‘suporte institucional’ nas decisões já tomadas (DWORKIN, 2002).

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ambiguidade das decisões judiciais e das instituições jurídicas como um todo retiraria seu

crédito junto à sociedade.

Assim, como o ideal da integridade mostra por que razão o pragmatismo produz uma

leitura depreciativa da prática jurídica, Dworkin (2003) vê nele o caminho para se conceber

um direito mais justificável e digno de valor aos olhos da sociedade. A partir do ideal da

integridade, Dworkin crê ser possível restabelecer a força e o fundamento do direito nas

decisões jurídico-políticas do passado, sem, contudo se descurar da construção de um futuro

melhor para a sociedade. Equilibrando essas duas dimensões temporais, Dworkin (2003)

acredita que o direito como integridade se afigurará, portanto, como a interpretação mais

atraente da prática jurídica.

4.3.2.3 O direito como integridade: entre a história e a estória

O direito como integridade é uma teoria interpretativa sobre o direito construída a

partir das críticas apontadas às duas concepções anteriormente vistas. A importância de seu

estudo se deve ao fato de que, a partir das correções promovidas, a leitura do direito a partir

do ideal político da integridade acabaria por instituir um equilíbrio entre as dimensões

temporais do passado e do futuro que tanto o convencionalismo, quanto o pragmatismo

insistiram, respectivamente, em privilegiar de modo unilateral340.

Para tanto, o direito como integridade pretende, inicialmente, revigorar a ideia de que

as decisões jurídicas proferidas no passado da história institucional das instâncias políticas

criadoras do direito possuem capital importância na fundamentação do direito. No entanto, à

diferença do convencionalismo, o direito como integridade expande o limitado espectro das

‘fontes do direito’ defendido pelo convencionalismo jurídico. Para o direito como integridade,

o que torna as proposições jurídicas verdadeiras não seria tanto sua correspondência ao teor

explícito dessas convenções jurídicas, mas sua derivação de princípios de justiça, equidade e

devido processo legal inferidos do conjunto das decisões político-jurídicas da comunidade.

Como se verá adiante, essa interpretação mais abrangente do fundamento do direito

proporcionará um corretivo ao subjetivismo do recurso ao poder discricionário. A referência

aos princípios na argumentação jurídica faz das decisões judiciais sobre os casos difíceis não

340 “O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo,

voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento.” (DWORKIN, 2003, p. 271).

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apenas a expressão da opinião ou da vontade subjetiva do magistrado, mas o resultado de uma

interpretação que visa apresentar uma solução correta para o caso. Isso faz com que as

decisões judiciais sejam valorizadas aos olhos da opinião pública e contribuam para a

edificação de uma prática jurídica mais nobre e mais compatível com aquilo que a sociedade

dela espera.

Assim, o direito como integridade exigiria do intérprete uma atitude interpretativa

permanente341, pois concebe que a força do direito está no esforço contínuo dos tribunais –

auxiliados por advogados e acadêmicos – em produzir decisões que venham a valorizar a

prática jurídica. Por essa razão, o direito como integridade também seria uma concepção

interpretativa que se volta para o futuro, já que comungaria com o pragmatismo a

preocupação de que o direito tem a incumbência de promover uma comunidade cada vez

melhor por meio de suas decisões. Contudo, à diferença deste, o direito como integridade não

admite que os direitos possam ser colocados em segundo plano em função de imperativos de

ordem política. Ele não justificaria, por exemplo, a adoção de um comportamento estratégico

por parte dos juízes, uma vez que ao se estruturar dessa maneira a prática jurídica estaria a

ferir a comunidade de princípios que pretende instaurar. Sua proposta de melhorar a

comunidade passa pela evolução da própria prática jurídica – no sentido de que um direito

cada vez melhor para a comunidade seria produzido – e não de algum aspecto econômico ou

material da sociedade. Portanto, ao invés de desmerecer a atividade de juízes e advogados, o

direito como integridade irá exaltá-la.

Para explicar em que consiste a prática jurídica sob a perspectiva do direito como

integridade, Dworkin (2003) recorre à metáfora do ‘romance em cadeia’ para apresentar de

que maneira o princípio da integridade seria observado no processo de tomada de decisões

nos tribunais. Como visto, a interpretação construtiva propõe ao intérprete que se coloque na

condição tanto de crítico, como de autor, quando está diante da tarefa de interpretar o direito a

fim de solucionar uma controvérsia judicial. Assim, da mesma forma que esse intérprete

precisa assimilar de maneira crítica o conjunto da tradição jurídica que lhe antecede, ele

341 “O direito como integridade é, portanto, mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo ou o

pragmatismo. Essas últimas teorias se oferecem como interpretações. São concepções de direito que pretendem mostrar nossas práticas jurídicas sob sua melhor luz, e recomendam, em suas conclusões pós-interpretativas, estilos ou programas diferentes de deliberação judicial. Mas os programas que recomendam não são, em si, programas de interpretação; não pedem aos juízes encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos exames, essencialmente interpretativos, da doutrina jurídica (...) O direito como integridade é diferente: é tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que decidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contingentemente, interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso.” (DWORKIN, 2003, p. 272-273).

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também contribuirá, com seu poder criativo, com um novo olhar para a prática jurídica por ele

vivenciada em sua comunidade. Por essa razão, Dworkin (2003) enxerga que o exercício

literário do ‘romance em cadeia’ forneceria a imagem adequada de sua tarefa interpretativa.

O romance em cadeia é um experimento literário que consiste na elaboração de uma

estória a partir da seguinte proposta: vários autores são convidados a compor um único

romance; um deles inicia o primeiro capítulo, definindo a estrutura geral do romance – seu

gênero literário, tema, trama, enredo, personagens e a época, circunstâncias e contexto em que

se dão os acontecimentos; findo o primeiro capítulo, outro autor é chamado a dar sequência ao

capítulo seguinte no ponto em que o anterior se encerrou. O sucessor deverá, portanto,

observar a estrutura geral delineada para a estória no primeiro capítulo na construção da

sequência; mas contará com toda a liberdade criativa do romancista para dar prosseguimento à

história da maneira que ele próprio interpreta ser sua melhor continuidade possível; em

seguida, um terceiro autor assumiria a tarefa de produzir um novo capítulo, constrangido pelas

mesmas regras desse experimento literário e assim sucessivamente342.

A figura do romance em cadeia estabeleceria dois planos distintos para os romancistas

que aderem a esse exercício. Esses planos funcionariam como ‘filtros’ cuja finalidade seria a

de testar a aptidão e a consistência das possíveis continuidades à estória, a fim de extrair,

dentre as alternativas que vão se apresentando como plausíveis para o autor, aquela que traz a

melhor sequência dentre elas.

O primeiro plano seria o da adequação (fit), que impõe aos autores o dever de dar

sequência à história a partir dos limites colocados pela estrutura geral do romance e da estória

que já se encontra até então escrita pelos antecessores. Ignorar ou desconsiderar, no todo ou

em parte, o conteúdo prévio da estória comprometeria a coerência e a fluência do texto343,

assim como descaracterizaria a estória e arruinaria o exercício (DWORKIN, 2003).

O segundo plano seria o da justificação (justification) e seu emprego se faz necessário

quando mais de uma continuidade para a estória é bem sucedida no teste de adequação acima

342 Dworkin (2003) nota que o sucesso desse empreendimento literário estaria condicionado a um compromisso

dos participantes que se engajarem em produzir a melhor continuidade para a história, ainda que eles possam razoavelmente discordar sobre qual seja ela.

343 No que tange à dimensão da adequação, Dworkin (2003, p. 277) fala da necessidade de a continuidade da estória poder contar com um ‘poder explicativo geral’ que a permite ser confrontada com o restante do texto: “A primeira é a que até aqui chamamos de dimensão da adequação. Ele não pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que seja, se acredita que nenhum autor se põe a escrever um romance com as diferentes leituras de personagem, trama, tema e objetivo que essa interpretação descreve, poderia ter escrito, de maneira substancial, o texto que lhe foi entregue (...) a interpretação que adotar deve fluir ao longo de todo o texto; deve possuir um poder explicativo geral, e será mal sucedida se deixar sem explicação algum importante aspecto estrutural do texto, uma trama secundária tratada como se tivesse grande importância dramática, ou uma metáfora dominante ou recorrente.”.

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referido344. Se esse for o caso, o autor se verá diante da tarefa de avaliar qual dentre as

interpretações adequadas forneceria a melhor continuidade para a estória. Entretanto essa

seleção não nasceria de uma mera questão de gosto ou preferência do autor por uma das

continuidades da estória. Se o autor estiver mesmo comprometido com o exercício, ele deve

ser capaz de aduzir razões que justificam a escolha de uma sequência em detrimento das

demais. Para tanto, irá pesar questões substantivas relativas ao propósito de sua interpretação,

produzindo juízos estéticos de natureza diversa, seja sobre a beleza de certas formas de

expressão, seja sobre a relevância de questões tratadas nos temas centrais e secundários da

estória. De posse do resultado dessa avaliação, o autor poderá formular e reformular a

interpretação que se candidata a proporcionar a melhor continuidade à estória345, fazendo de

seu texto o melhor exemplar daquele gênero que se propôs a escrever.

Transportada para a prática jurídica, a metáfora do romance em cadeia explicaria

como os juristas se portam diante da solução das controvérsias em geral e, especialmente, dos

casos difíceis346. Viu-se acima que as propostas tanto do convencionalismo, como do

344 Dworkin (2003, p. 278) salienta, contudo, que não haveria uma precedência temporal de um teste em relação

ao outro, mas expõe o procedimento da interpretação construtiva dessa maneira analítica a fim de distinguí-las claramente entre si: “Mas as considerações formais e estruturais que dominam a primeira dimensão também estão presentes na segunda, pois mesmo quando nenhuma das duas interpretações é desqualificada por explicar muito pouco, pode-se mostrar o texto sob uma melhor luz, pois se ajusta a uma parte maior do texto ou permite uma integração mais interessante de estilo e conteúdo. Assim, a distinção entre as duas dimensões é menos crucial ou profunda do que poderia parecer. É um procedimento analítico útil que nos ajuda a dar estrutura à teoria funcional ou ao estilo de qualquer intérprete. Ele perceberá quando uma interpretação se ajusta tão mal que se torna desnecessário levar em conta seu apelo essencial, pois sabe que isso não poderá superar seus problemas de adequação ao decidir se ela torna o romance melhor do que o fariam as outras interpretações, levando-se tudo em conta.”.

345 Note-se que Dworkin não fala que a interpretação deve ser objetivamente a melhor interpretação disponível para a história, como se houvesse uma realidade ‘lá fora’ e o romancista fosse obrigado a desvendá-la, sob pena de não ser bem sucedido em seu empreendimento. O que ele deve é se entregar à tarefa de avaliar, dentre as continuidades possíveis para a história, aquela que melhor se justifica aos olhos do romance como um todo. Essa consideração é de crucial relevância para que Dworkin possa, posteriormente, defender a tese da possibilidade de uma resposta correta para os casos difíceis em direito. Ao longo de sua obra, Dworkin foi duramente criticado por supostamente pretender uma objetividade nas questões morais. Chama-se especial atenção para o fértil debate com Stanley Fish que culminou no artigo Objectivity and Truth: You’d Better Believe It (1996), parcialmente reproduzido no capítulo Pragmatismo e direito de A justiça de toga (2010). O tema foi novamente tratado no recém-lançado Justice for hedgehogs (2011). Em resumo, Dworkin combate a postura que se verifica em versões anti-teoréticas do pragmatismo acadêmico, de que seria possível fazer uma distinção entre afirmações morais de primeiro grau do tipo ‘A tortura de bebês é perversa’ e afirmações de segundo grau ou meta-éticas do tipo ‘A tortura de bebês é objetivamente perversa’. Para essa corrente, apenas a primeira afirmativa conteria a expressão de um juízo moral, enquanto a segunda dependeria de um ponto arquimediano que sustentasse essa afirmação. E diante da impossibilidade de encontrá-lo ‘lá fora’ o pragmatismo seria moralmente neutro quanto a afirmações dessa natureza. Dworkin (1996; 2010) rebate esse argumento dizendo que a objetividade dos julgamentos morais decorre da possibilidade de se aduzir, em um processo argumentativo, razões com as quais é possível sustentar a superioridade de um juízo em relação a outro. Isso conferiria objetividade aos juízos morais, fazendo com que sejam verdadeiros ou falsos sem estarem condicionados a circunstâncias culturais ou mesmo a uma correspondência empírica.

346 Ricoeur (1995, p. 146) vê na liberdade proporcionada ao intérprete judicial uma possibilidade para o recurso ao modelo narrativo: “a disjunção operada em crítica literária entre a significação imanente ao texto e a intenção do autor encontra um paralelo, em teoria jurídica, na disjunção operada entre o sentido da lei e a

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pragmatismo para a solução dos casos controversos são o calcanhar de Aquiles dessas teorias.

Cada uma delas desenvolve uma explicação diferenciada sobre o que se passa na prática

jurídica quando o intérprete se encontra na tarefa de decidir um caso excepcional. Contudo,

esses ‘recursos’ acabariam por contradizer os valores e as premissas que as respectivas

concepções interpretativas defendem como descrição geral da prática jurídica. De maneira

diversa, o direito como integridade apresenta o modo como juízes solucionam os casos

difíceis sem recorrer a uma forma de raciocínio distinta ou excepcional daquela prevista para

os casos corriqueiros. Fiel a sua proposta de trazer coerência à prática jurídica, o modelo do

‘romance em cadeia’ empregado pelo direito como integridade se aplicaria indistintamente

tanto aos casos fáceis como aos casos difíceis347.

Para auxiliar na tarefa de apresentar o modelo teórico a partir do qual o direito como

integridade descreve o que se passa na prática jurídica, Dworkin (2003) recorre à figura de um

personagem imaginário: um juiz denominado Hércules, que dispõe de inteligência, sabedoria,

capacidade e paciência sobrehumanas para investigar e analisar todas as nuances que gravitam

em torno de um caso controverso que é chamado a solucionar348.

O primeiro trabalho de Hércules é elaborar um inventário das soluções imagináveis

para a questão de uma perspectiva a mais abrangente possível, sem pré-juízos sobre quais

delas seriam inadequadas ou incorretas juridicamente falando. Em seguida, Hércules

submeteria essas soluções aos testes de adequação e justificação – sucessivamente nesta

ordem – acima aludidos.

instância de decisão que o positivismo jurídico coloca na origem do direito. A iniciativa literária reveste um caráter canônico para a teoria jurídica, a partir do momento em que a interpretação se apóia nos consentimentos do texto, tal como ele se oferece à cadeia de leitores. O que chamamos, com arrependimento, o fluxo ou vaga do texto literário, já não aparece como fraqueza, mas como força em relação ao que poderemos denominar simetricamente a ‘iniciativa judiciária’. O modelo narrativo toma então um relevo particular, na medida em que a interpretação faz, de modo visível apelo na reconstrução do sentido do texto a relações de convivência, de justeza ou de ajustamento, entre a interpretação proposta sobre uma passagem difícil e a interpretação do conjunto da obra. Reconhece-se, neste ‘fit’ o famoso princípio hermenêutico da interpretação mútua da parte e do todo.”.

347 Sobre a crítica de que o direito como integridade seria uma teoria que se aplicaria apenas aos casos difíceis e não aos casos chamados fáceis, Dworkin (2003, p. 317) argumenta: “O direito como integridade explica e justifica tanto os casos fáceis quanto os difíceis; também mostra porque são fáceis. É evidente que o limite de velocidade na Califórnia é de 90 quilômetros por hora, pois é óbvio que qualquer interpretação competente do código de trânsito desse Estado leva a essa conclusão. Assim, para o direito como integridade os casos fáceis são apenas os casos especiais dos casos difíceis, e a reclamação do crítico é apenas aquilo que o próprio Hércules se daria por satisfeito em reconhecer: não precisamos fazer perguntas quando já conhecemos as respostas.”.

348 A figura de ‘Hércules’ acompanha a teoria jurídica de Dworkin e suscita diferentes reações entre os críticos e comentaristas. Aarnio (1987) sugere que a referência a Hércules pressuporia a existência de valores morais absolutos. MacCormick (2006), por sua vez, entende que o recurso a Hércules faria a teoria jurídica ultrarracionalista, eliminando, assim, os elementos retóricos que lhe são inerentes. Ost (1993) sustenta que a referência a um juiz como Hércules tornaria a teoria jurídica de Dworkin indiferente à complexidade própria da circulação de sentido existente na sociedade (apelando assim, para um juiz modelo de juiz mais inspirado em Hermes).

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Assim, por meio do primeiro teste, Hércules verificará quais das interpretações

inventariadas como plausíveis para o caso seriam aceitáveis segundo os aspectos formais da

estrutura argumentativa da prática jurídica. Aquelas soluções que não obtivessem sucesso

nesse teste seriam, de plano, rejeitadas. Nessa etapa entraria em cena o já mencionado filtro

pré-interpretativo da interpretação construtiva. Esse filtro seria capaz de discernir entre

quando uma solução para o caso é aceitável aos olhos da prática jurídica em voga na

comunidade e quando é dada por outro sistema de normas de comportamento como os

costumes, a religiosidade, a moralidade pessoal, a moralidade política ou as recomendações

de um ponto de vista econômico. Decisões que não possam ser qualificadas de ‘jurídicas’, por

lhes faltar o suporte na história institucional do direito, seriam simplesmente descartadas, já

que não proporcionam a coerência exigida pelo princípio da integridade.

Assim, o teste seguinte – da justificação – se destinaria apenas às soluções

remanescentes. Isso permite que Hércules, em sua busca da solução mais consistente com o

princípio da integridade, torne mais denso o filtro das exigências com as quais irá avaliar as

alternativas em aberto. Dada a natureza política do direito349, cada uma das soluções realizaria

um valor político substantivo que lhe é imanente350, seja ele um princípio ou uma política

pública (policies)351. Portanto, a tarefa de Hércules nessa segunda etapa seria a de investigar

349 “O direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço

social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre elas e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas. (Essa caracterização é, ela própria, uma interpretação, é claro, mas permissível agora por ser relativamente neutra.) Assim, uma interpretação de qualquer ramo do Direito, como o dos acidentes, deve demonstrar seu valor, em termos políticos, demonstrando o melhor princípio ou política a que serve.” (DWORKIN, 2001, p. 239).

350 “Dworkin’s approach is intertextual, and although formal and procedural, it is not purely abstract. The substantive values of the community of legal actors do not directly figure in legal decisions, but they are not simply severed from the process of legal interpretation. Traces of these substantive values are embedded in the legal precedents that confront the legal interpreter and must therefore be implicitly taken into account by the latter in his or her formulation of an interpretation that is compatible with precedent while preserving the integrity of the legal process.” (ROSENFELD, 1998, p. 16). (Tradução nossa: “A abordagem de Dworkin é intertextual, e não obstante formal e procedimental, não é puramente abstrata. Os valores substantivos da comunidade dos atores jurídicos não figuram diretamente nas decisões jurídicas, mas elas não são simplesmente separadas do processo de interpretação jurídica. Traços desses valores substantivos estão presentes nos precedentes jurídicos que confrontam o intérprete jurídico e devem, portanto, ser implicitamente considerados por este em sua formulação de uma interpretação que é compatível com o precedente, enquanto preserva a integridade do processo judicial.”).

351 A distinção entre princípios e políticas feita por Dworkin (2002, p. 36) é a que se segue: “Com muita frequência, utilizarei o termo ‘princípio’ de maneira genérica, para indicar todo esse conjunto de padrões que não são regras; eventualmente, porém, serei mais preciso e estabelecerei uma distinção entre princípios e políticas. Ainda que o presente argumento nada vá depender dessa distinção, devo expor como cheguei a ela. Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade política.”.

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os princípios substantivos de moralidade política que cada uma das soluções remanescentes

consagra. Hércules deve ter em mente, no entanto, que a integridade exige que a decisão

possua coerência apenas em relação a princípios que possuam suporte institucional nas

decisões do passado. Soluções que meramente se coadunam com políticas públicas da

sociedade e que, portanto, não estão amparadas por algum princípio de justiça, equidade ou

qualquer outro de moralidade pública também deverão ser descartadas352. Assim, Hércules irá

sopesar o peso ou a importância de cada um dos princípios que fundamenta as alternativas

remanescentes e irá indagar qual delas proporcionaria uma melhor justificativa para o uso do

poder político pelo direito353 naquele caso. Aqui ele se valerá de suas próprias convicções

pessoais em matéria de moral e política a fim de atender essa exigência354, sabendo que

colegas competentes poderão divergir quanto ao princípio que define o resultado final do

352 “Uma interpretação tem por finalidade mostrar o que é interpretado em sua melhor luz possível, e uma

interpretação de qualquer parte de nosso direito deve, portanto, levar em consideração não somente a substância das decisões tomadas por autoridades anteriores, mas também o modo como essas decisões foram tomadas: por quais autoridades e em que circunstâncias (...) Uma legislatura pode justificar suas decisões de criar novos direitos para o futuro ao mostrar de que modo estes vão contribuir, como boa política, para o bem-estar do conjunto da comunidade. (...) O direito como integridade pressupõe, contudo, que os juízes se encontram em situação muito diversa daquela dos legisladores. (...) Os juízes devem tomar suas decisões sobre o ‘common law’ com base em princípios, não em política: devem apresentar argumentos que digam por que as partes realmente teriam direitos e deveres legais ‘novos’ que eles aplicaram na época que essas partes agiram, ou em algum outro momento do passado.” (DWORKIN, 2003 p. 292-293). Essa exigência eliminaria eventuais soluções que se baseiam na estratégia do pragmatismo de apenas fazer referência ao conteúdo formal do direito para fundamentar decisões que foram tomadas por meio do compromisso com alguma política pública da sociedade.

353 Dada a sua natureza peculiar, o ordenamento pode acomodar dentro de si princípios com orientações distintas sem que isso implique uma falta de coerência já que eles não se sujeitam à lógica do ‘ou-tudo-ou-nada’ como as regras. Como os princípios seriam apenas razões que inclinam o argumento em uma direção, Dworkin (2002, p. 42-43) salienta que as controvérsias entre os princípios se colocam na dimensão de seu peso ou importância: “Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.”. MacCormick (2006) salienta que a identificação dos princípios no ordenamento jurídico implica uma racionalização de segunda ordem de suas regras compulsórias.

354 Ao fim e ao cabo, toda proposição jurídica seria fruto de uma interpretação e toda interpretação partiria de uma avaliação de moralidade política, jogando por terra a tese positivista da separação entre direito e moral: “Dworkin advanced a more radical thesis that law was essentially an interpretive phenomenon. This view rests on two main premises. The first maintains that determining what the law requires in a particular case necessarily involves a form of interpretative reasoning. Thus, for example, to claim that the law protects my right of privacy against the Daily Rumour constitutes a conclusion of a certain interpretation. The second premise is that interpretation always entails evaluation. If correct, this would all but sound the death knell for legal postivists’ separation thesis.” (WACKS, 2006, p. 43). (Tradução nossa: “Dworkin adianta uma tese mais radical, de que o direito é um fenômeno eminentemente interpretativo. Essa visão repousa em duas premissas principais. A primeira sustenta que ao determinar o que o direito exige em um caso particular necessariamente envolve uma forma de raciocínio interpretativo. Então, por exemplo, pretender que o direito protege meu direito de privacidade contra o Diário da Fofoca constitui uma conclusão de uma certa interpretação. A segunda premisa é que a interpretação sempre envolve uma valoração. Se corretas, essas teses significariam a pena de morte para a tese da separação defendida pelo positivismo jurídico.”).

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empreendimento interpretativo355. Não se trata, contudo de uma escolha subjetiva, uma vez

que Hércules poderá ser capaz de justificar a adoção de uma decisão em preferência às demais

em razão de sua superioridade racional. É por tal razão que, considerados todos os elementos

em questão, Dworkin (2003) afirma que Hércules encontrará a resposta correta à solução do

caso difícil que foi chamado a resolver. Não uma resposta objetiva ou metafisicamente

correta, mas aquela que, dentro do empreendimento argumentativo que é a prática jurídica,

Hércules foi capaz de alcançar. Ao agir dessa maneira, Hércules – e todos os juristas teóricos

e práticos que ele representa – poderá ser capaz de se lançar em uma tarefa de interpretação

do direito cujo resultado conferirá à prática jurídica a melhor imagem que ela pode adquirir

junto à sociedade, uma vez que fruto de um esforço sério em consagrar um princípio de

moralidade política razoável na solução dos casos difíceis.

A leitura da prática jurídica a partir do modelo do romance em cadeia fornecido pelo

direito como integridade seria capaz, portanto, de restabelecer às dimensões temporais o

equilíbrio perdido pelas concepções do convencionalismo e do pragmatismo. Primeiramente,

porque a exigência do teste de adequação obriga o intérprete a observar a estrutura formal do

argumento jurídico e, portanto, vincula-o ao material jurídico produzido no passado como

fundamento de suas decisões. Isso impede que suas interpretações fujam da expectativa dos

cidadãos em relação à prática jurídica, ainda que outras pudessem ser melhores de alguma

perspectiva instrumentalista. Em segundo lugar, o direito como integridade coloca o intérprete

na dimensão do presente, eximindo-o de decidir em referência a algum ponto ideal do

passado, mas, pelo contrário, chamando-o a solucionar questões atuais que o direito precisa

enfrentar356. Por fim, a estrutura do romance em cadeia conectaria a prática jurídica com o

355 “Os casos difíceis se apresentam, para qualquer juiz, quando sua análise preliminar não fizer prevalecer uma

entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de um julgado. Ele então deve fazer uma escolha entre as interpretações aceitáveis, perguntando-se qual delas apresenta em sua melhor luz, do ponto de vista da moral política, a estrutura das instituições e decisões da comunidade – suas normas públicas como um todo. Suas próprias convicções morais e políticas agora diretamente engajadas. Mas o julgamento político que ele deve fazer é em si mesmo complexo e, às vezes, vai opor uma parte de sua moral política a outra: sua decisão vai refletir não apenas suas opiniões sobre a justiça e a equidade, mas suas convicções de ordem superior sobre a possibilidade de acordo entre esses ideais quando competem entre si. As questões de adequação também surgem nessa etapa da interpretação, pois mesmo quando uma interpretação sobrevive à exigência preliminar, qualquer inadequação irá voltar-se contra ela, como já assinalamos aqui, no equilíbrio geral das virtudes políticas. Diferentes juízes vão divergir sobre cada uma dessas questões e, consequentemente, adotarão pontos de vista diferentes sobre aquilo que realmente é, devidamente compreendido, o direito de sua comunidade.” (DWORKIN, 2003, p. 306).

356 Esse ponto é particularmente importante no que tange à interpretação da legislação escrita e às leituras ditas ‘originalistas’ do ordenamento jurídico. Essa posição atribuiria ao legislador histórico o doador original de sentido do texto legislativo, prevenindo o intérprete de ampliar seu alcance a fim de adequá-lo à realidade presente. Para Dworkin (2010), essa postura não passaria de um argumento conservador para, em nome de uma suposta neutralidade, minar toda forma de ativismo judicial que controle abusos da política governamental por meio do controle de constitucionalidade exercido pelas cortes superiores.

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futuro, uma vez que o plano da justificação obrigaria que as soluções dos casos difíceis

fizessem uma avaliação do conteúdo de moral política que as decisões jurídicas ostentariam, a

fim de fazer o direito o melhor exemplo possível de seu gênero na comunidade:

A história é importante no direito como integridade: muito, mas apenas em certo sentido. A integridade não exige coerência de princípio em todas as etapas históricas do direito de uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma comunidade de princípio com o direito de um século atrás, já em desuso, ou mesmo de uma geração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas que a comunidade agora faz vigorar. Insiste em que o direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito dessas decisões, mas também, num sentido vasto, o sistema de princípios necessários a sua justificativa. A história é importante porque esse sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores. (...) O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado (DWORKIN, 2003, p. 273-274).

Esse equilíbrio temporal que o direito como integridade proporciona é fruto

principalmente da substituição do modelo analítico-descritivo defendido pelo positivismo

jurídico pela proposta de se compreender narrativamente a história da evolução institucional

da interpretação jurídica. Esse processo é destacado por Ricoeur (1995, p. 147-148) da

seguinte maneira:

Levando mais longe a exploração do modelo literário sob sua forma mais especificamente narrativa, em que contexto é necessário colocarmo-nos para ver a pesquisa do ‘fit ’ interpretativo verificada pelo que Dworkin chama os ‘factos de coerência narrativa’? É necessário sair-se do caso isolado e pontual e de um juízo determinado e colocarmo-nos na perspectiva da história duma ‘empresa judiciária’, portanto, é preciso tomar em consideração a dimensão temporal dessa empresa. Foi por esta altura que Dworkin recorreu à fábula duma cadeia de narradores, acrescentando cada um o seu capítulo à redacção duma história, sem que nenhum narrador determine por si só o sentido global, mas em que cada um o deve presumir, se adopta como a procura da coerência máxima. Esta antecipação da coerência narrativa, conjugada com a compreensão dos capítulos precedentes duma história em que cada narrador encontra já começada, dá à procura do ‘fit’ uma dupla segurança, por um lado, a dos precedentes, por outro, a intenção presumida do conjunto jurídico em curso de elaboração; dito de outro modo, por um lado o já julgado, por outro, o perfil antecipado da iniciativa jurídica considerada na sua historicidade. Assim, o modelo do texto – e mais particularmente do texto narrativo – fornece uma alternativa aceitável à resposta no answer dada aos hard cases, e num mesmo golpe, à concepção positivista de direito.

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Para chegar à resposta correta, Hércules se vê diante da tarefa de proporcionar uma

continuidade a uma estória já iniciada e que depende dele para sua sequência. Ele precisa

olhar para o passado e fazer recortes seletivos de lembrança e esquecimento a fim de construir

um enredo cuja continuidade se justifica por possuir uma unidade de sentido dentro de uma

estória. Nesse sentido, o direito como integridade se valeria de uma memória para funcionar e

justamente esse elemento seria responsável pela atribuição de um equilíbrio temporal ao

direito.

4.4 Conclusão do capítulo

A análise das contribuições de Ost e de Dworkin à teoria jurídica demonstrou que a

teoria positivista foi incapaz de proporcionar uma compreensão do direito que viesse a

proporcionar uma relação equilibrada com o tempo. Na análise de Ost (2005a), viu-se que o

processo de destemporalização levado a efeito pela teoria positivista decorreria de três

características inerentes a essa concepção: a) fundamentando-se exclusivamente na força do

poder político o direito se arrogaria a capacidade de se desprender da história e, assim, erigir

suas prescrições em completo alheamento à tradição histórica e cultural do grupo social; b) ao

se conceber como um regulamentador de condutas sociais, o direito encurtaria seu campo de

visão à dimensão temporal do presente imediato, uma vez que tomaria como ponto de partida

a lógica da eficiência e dos cálculos pragmáticos de interesse no gerenciamento social,

ignorando sua função de produzir valores éticos de longa duração; c) a ênfase na dimensão

normativa do direito levaria a uma hipóstase da validade como critério de atribuição de força

vinculante ao direito, trazendo para a norma vigente a condição de único horizonte

interpretativo possível para o jurista e eternizando seu sentido até uma próxima mudança

legislativa. Essas três características apontariam para uma autonomia do direito em relação ao

tempo social e fariam dele um objeto cultural não relacionado ao passado e ao futuro – aquilo

que Ost (2005a) convencionou chamar de instantaneísmo.

Por outro lado, a análise de Dworkin (2003) indicou que o primeiro passo para a

superação da perspectiva descritivista e temporalmente indiferente do positivismo seria o

abandono da abordagem semântica do direito e sua substituição por um conceito

interpretativo do direito. Sob o prisma da interpretação construtiva, toda interpretação jurídica

teria como pano de fundo uma compreensão da própria natureza e finalidade da prática social

do direito como um todo. Isso ampliaria a perspectiva do jurista em relação ao fenômeno do

direito, por enxergá-lo interrelacionado à política, à moral e à cultura de um modo geral.

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Todavia, apesar de proporcionar uma leitura temporal do direito, não necessariamente todas

as concepções de direito formuladas a partir da atitude interpretativa construiriam uma relação

equilibrada entre tempo e direito. Viu-se que o convencionalismo e o pragmatismo jurídico

priorizaram uma dimensão temporal em detrimento das demais, comprometendo a harmonia

da marcha do tempo e sua relação com o papel do direito. Esse equilíbrio somente foi

recuperado na concepção do direito como integridade, uma vez que o modelo de princípios ao

mesmo tempo traz uma exigência de coerência com o material jurídico produzido no passado,

mas, por outro lado, vê no resultado da prática jurídica realizada a partir da metáfora do

romance em cadeia uma preocupação em construir um direito mais digno para o futuro da

sociedade. Esse equilíbrio nasceria às custas da inserção da prática jurídica em uma

perspectiva narrativa, que chama o intérprete a lançar, a partir do presente, um olhar

rememorativo ao passado a fim de estruturar sua ação futura.

Assim, tanto a reversão do processo de destemporalização, quanto o equilíbrio

temporal do direito estariam relacionados à presença de uma ‘memória’ no direito, objeto de

investigação da presente pesquisa. Esse conceito de memória jurídica, como se verá no sexto

capítulo, já foi objeto de investigações isoladas por alguns teóricos do pós-positivismo.

Contudo, nenhuma delas parte de uma caracterização sistemática e abrangente desse conceito

em sua relação com a memória em geral. No próximo capítulo, a pesquisa passará, portanto, a

investigar o conceito de memória nos diversos ramos do saber científico e filosófico em que

essa categoria foi trabalhada, a fim de se formar uma imagem abrangente dos elementos que o

caracterizam. Essa etapa se fará importante no sexto e último capítulo quando se pretende

construir e caracterizar o conceito de memória jurídica e suas respectivas características.

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5 FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA UMA TEORIA GERAL DA MEM ÓRIA

O tópico anterior revelou que a caracterização do direito e da prática jurídica segundo

a teoria positivista produziu um desequilíbrio na relação entre o direito e a temporalidade.

Esse efeito decorreu de uma leitura sobre o direito que privilegiou a instituição de uma das

dimensões temporais – passado, presente ou futuro – em detrimento das demais.

Viu-se com Ost (2005a) que o enfoque normativista do positivismo jurídico produziu

uma hipóstase do conceito de validade e, com isso, as situações de mudança e evolução do

direito ficaram limitadas à ocorrência de mudanças legislativas. Nessa perspectiva de se

encarar a prática jurídica, o conteúdo do direito se eternizaria no presente, dando origem ao

que Ost (2005a) denominou de concepção instantaneísta do direito. O efeito temporal dessa

forma de compreensão do direito seria o de cristalizar o teor do direito em uma determinada

configuração que lhe é dada no presente, impossibilitando-o de evoluir segundo o desenrolar

da marcha temporal e do próprio progresso cultural da sociedade.

Dworkin (2003), por sua vez, apontou que nem mesmo a transição de uma leitura

semântica do direito para uma abordagem interpretativa seria suficiente para restabelecer o

equilíbrio na relação entre o direito e a temporalidade. O convencionalismo – concepção

interpretativa sobre o direito nascida de uma justificação da prática jurídica a partir dos

cânones do positivismo jurídico – assumiria que o fundamento e a força normativa do direito

estariam na referência às decisões político-jurídicas explícitas tomadas pela sociedade ao

longo de sua história institucional. Com isso, o convencionalismo conferiria à dimensão

temporal do passado a prerrogativa de determinar os rumos do presente e do futuro.

Tampouco a reação oposta ao convencionalismo resolveu o problema do equilíbrio temporal

na teoria jurídica. A contundente crítica trazida pelo pragmatismo aos defeitos do

convencionalismo foi feita a partir da defesa de um raciocínio jurídico de natureza

instrumental para as decisões judiciais, voltado para o aperfeiçoamento de algum objetivo

social. Com isso, o pragmatismo alinhou o direito com a dimensão temporal do futuro,

ignorando o passado e o presente do direito em nome da construção de uma sociedade melhor.

Por outro lado, o mesmo Dworkin (2003) apresentou uma concepção interpretativa da

teoria jurídica capaz de restabelecer a inserção do direito na temporalidade de uma maneira

equilibrada em relação às três dimensões temporais. Como visto, o direito como integridade

defende que a prática jurídica começa sempre por um olhar retrospectivo para o passado, que

se dá, contudo, a partir dos problemas do presente e tem em vista uma projeção para o futuro.

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Essa forma de interpretar o direito exposta pela teoria de Dworkin revelaria, a um primeiro

olhar, uma semelhança entre a dinâmica da prática jurídica e a estrutura geral da noção de

memória.

Assim, como é justamente sob essa configuração que o direito obteria o desejado

equilíbrio temporal que se acusa a teoria jurídica positivista de não possuir e considerando

também os efeitos positivos para a relação entre tempo e direito de uma compreensão do

direito e da prática jurídica a partir do recurso à estrutura da memória, faz-se necessário

aprofundar a investigação quanto a essa possibilidade. Para tanto, no presente tópico, dar-se-á

o primeiro passo nessa direção com a reunião dos elementos teóricos que caracterizam a

noção de memória nos diversos campos do saber científico e filosófico que tradicionalmente a

investigam. A finalidade desse catálogo será identificar quais são os elementos peculiares ao

conceito de memória. O passo seguinte se dará no derradeiro capítulo em que, de posse desses

elementos, discutir-se-á em que medida é possível falar de uma memória jurídica e quais

seriam seus respectivos modos de ser.

O desafio encontra um obstáculo inicial no fato de que não existe algo como uma

apresentação sistemática da memória sob a forma de uma teoria geral. Essa noção não se

encontra padronizada em um conceito científico abrangente que reúne suas principais

características e distingue do emprego comum desse termo (LUHMANN, 2006). Há, contudo,

uma grande variedade de disciplinas convencionais das ciências que fazem uso da noção de

memória e cada ramo do saber acaba tendo sua própria teorização local, sem pretender

universalizar o seu conceito para outros campos do conhecimento. Isso leva a formulações do

conceito de memória que não são coincidentes e, às vezes, nem mesmo congruentes. Desse

modo, opta-se no presente capítulo por reconstruir o alicerce do edifício conceitual da

memória desde sua fundação: indicar como se dá o emprego da expressão ‘memória’ nos

diversos ramos do saber que se valem desse conceito a fim de vislumbrar quais são os pontos

de contato – se é que há algum – que justificam o uso comum do termo memória nas

teorizações dessas disciplinas. Esse material permitirá, ao final do capítulo, elaborar uma

apresentação geral que sintetiza os elementos característicos da memória. Essa proposta se

concretizará por meio da exposição de um resumo do saber teórico já consolidado nas

neurociências, na história, nas ciências sociais e na filosofia e sobre o uso e o emprego da

expressão memória e seu destaque em cada um dos respectivos ramos do saber

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mencionados357. De posse dessa informação, será possível dar continuidade à proposta do

trabalho e transportar essas marcas distintivas da noção de memória para o estudo das

características da memória jurídica.

5.1 A memória enquanto função biológica

Somos aquilo que recordamos ... e também o que resolvemos esquecer

Iván Izquierdo - Memória

5.1.1 Conceituação e caracterização da memória enquanto propriedade dos organismos

biológicos

Izquierdo (2002) afirma que o primeiro elemento que define o conceito de memória

enquanto propriedade biológica é fato de que ela consiste no processo pelo qual os animais,

incluindo-se aí os seres humanos, promovem a aprendizagem de informações sobre o

ambiente externo que os circunda e sobre o modo como irão lidar com esse ambiente. Por

meio da memória, os homens são, assim, capazes de adquirir, formar, conservar e evocar– e,

em certo sentido, também de rejeitar e esquecer – informações, imagens, sentimentos e

habilidades que lhes serão úteis ou relevantes ao longo de sua existência. Sem o registro dos

dados que chegam ao homem por meio dos sentidos, ele não seria capaz de registrar as

experiências com as quais se deparou no curso de sua vida358. A memória biológica consiste,

portanto, em um processo ativo de aprendizagem, consolidação e seleção de informações. No

caso especial dos seres humanos, a memória se desenvolve de maneira peculiar em razão da

capacidade de representação dessa experiência por meio da linguagem.

O segundo traço característico da memória é o fato de que ela consiste em uma espécie

de autobiografia do ser humano. Cada indivíduo forma sua personalidade, sua história, seus

hábitos e suas capacidades a partir do conjunto de experiências que vivenciou e registrou para

si a fim de torná-lo disponível para sua ação prática presente (IZQUIERDO, 2002). É a

memória, pois, que atualiza a experiência individual do passado. Isso se dá por meio da

evocação de informações que permanecem armazenadas – vívidas ou de modo latente – no

357 Vale salientar que a abordagem que se pretende fazer não adentrará em detalhes técnicos ou controversos em

relação a disputas existentes nesses respectivos ramos do saber, por não interessar diretamente ao desenvolvimento do trabalho. A exposição limitar-se-á a conhecimentos já consolidados nessas disciplinas.

358 Nesse sentido, a memória biológica se difere da ‘memória’ de um sistema de arquivos como um computador ou uma biblioteca, já que estes possuem a função de mero estoque ou depósito de dados, sem a propriedade ‘ativa’ de formar conhecimento.

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sistema nervoso de cada ser. Da mesma forma, são todos aqueles hábitos e modos de agir de

um indivíduo que se constituem como reação aos desafios do cotidiano e que definem a

grande maioria dos aspectos de sua personalidade. Assim, é a memória que confere ao homem

os traços que o distinguem em relação aos demais seres de sua espécie359.

Por fim, é por meio da memória que o homem se inscreve na temporalidade. A

memória torna disponível para o indivíduo o conjunto das informações úteis que aprendeu no

passado para sua relação com o ambiente no momento presente. Com isso, a memória

condiciona também os futuros possíveis para o homem, já que limita e pré-determina as

possibilidades de sua ação. Afinal, aquilo que jamais se aprendeu ou que já se encontra

esquecido não estará à disposição do homem para servir de referência para seu

comportamento presente e futuro (IZQUIERDO, 2002). Portanto, mais do que apenas

vincular o homem ao seu passado, a memória biológica é a ponte que promove a conexão

entre o seu passado, presente e futuro360.

O início do processo de aprendizado em que consiste a memória ocorre com a captura

das informações apreendidas nos órgãos dos sentidos pelos neurônios361. Esses dados são

convertidos em estímulos elétricos e imediatamente transmitidos a outros neurônios em

pontos denominados sinapses nervosas362. Seu destino final é chegar às partes do cérebro

responsáveis pelo processamento da memória. Biologicamente falando, as memórias não são

idênticas e cada um dos tipos se alojará em uma diferente parte do cérebro responsável por

seu processamento e eventual conservação.

No processo de transmissão dos estímulos elétricos nas sinapses entram em cena dois

tipos de substâncias químicas responsáveis por inibir ou estimular o fluxo de comunicação

entre os neurônios. São os denominados neurotransmissores e receptores. A produção dessas

substâncias – e, portanto, sua quantidade presente na intermediação das sinapses – está

diretamente relacionada ao estado emocional ou fisiológico do organismo. Uma maior carga

359 É justamente porque cada indivíduo possui sua própria memória que, por exemplo, gêmeos univitelinos –

indivíduos geneticamente idênticos – são capazes de divergir em relação a como reagir face a acontecimentos semelhantes do mundo.

360 Esse ponto chama atenção para o fato de que como é possível identificar a estrutura da memória na teoria do direito como integridade de Dworkin (2003), uma vez que o modo como essa concepção sobre o direito se organiza visa promover a integração entre as dimensões temporais do passado do presente e do futuro, do mesmo modo como a memória o faz para os organismo biológicos.

361 Os neurônios são as células que compõem o tecido do sistema nervoso e se encontram interligados em uma rede que envolve toda a extensão do corpo humano, gerenciados por órgãos centrais como o cérebro, o cerebelo e a medula espinhal.

362 As sinapses se localizam nas conexões entre as extremidades das ramificações dos axônios e os dendritos das células nervosas. Esses pontos são de extrema importância para a formação da memória, pois atualmente crê-se que a formação de uma memória nada mais é do que uma configuração especial de um conjunto de sinapses (IZQUIERDO, 2002).

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de neurotransmissores ou receptores363 de um tipo ou outro influencia diretamente no

processo de conservação ou esquecimento de uma determinada memória. Logo, a qualidade

da memória estaria diretamente associada ao equilíbrio emocional e fisiológico do organismo

(IZQUIERDO, 2002).

Izquierdo (2002) afirma ainda que a memória consiste em um processo de dupla

tradução: primeiro, o sistema nervoso converte estímulos sensoriais, que inicialmente se

apresentaram ao organismo como sensações, em impulsos elétricos, que são armazenados por

maior ou menor tempo em distintas áreas do cérebro; em seguida, o mesmo cérebro reverte

essa tradução inicial de impulsos elétricos em sensações e imagens que se assemelham à

estrutura da realidade. Como em toda tradução, esse processo está sempre sujeito a perdas de

conteúdo. Todavia, também como em toda tradução, é esperado que ocorram transformações

criativas364 em razão do caráter associativo inerente a esse processo365.

5.1.2 Classificação dos tipos de memória segundo sua função, conteúdo e duração

A complexidade da função biológica da memória nos seres humanos permite que ela

seja classificada de diferentes modos, conforme o ângulo pelo qual se analisa esse fenômeno.

Uma primeira distinção que se pode fazer acerca dos tipos de memória verificados no homem

é aquela que se refere a sua função para o organismo. Quanto a esse ponto, uma primeira

diferenciação existente é entre as chamadas memórias de trabalho e as memórias de conteúdo.

As memórias de trabalho se prestam a gerenciar a realidade em que o indivíduo se

insere. Elas se caracterizam pela retenção temporária de informações e elementos da realidade

por uma duração apenas necessária para que o indivíduo possa (re)agir em um determinado

contexto366. A marca distintiva da memória de trabalho é o fato de que a informação subsiste

363 Os principais neurotransmissores envolvidos no processo de memória são o glutamato, o ácido gama amino

butírico (GABA), a dopamina, a noradrenalina, a serotonina e a acetilcolina. Já os receptores são em número bastante elevado – há, pelo menos, mais de dois mil receptores conhecidos – e eles se agrupam em subtipos conforme se relacionem a um neurotransmissor específico (glutamatérgicos, GABAérgicos, dopaminérgicos, noradrenérgicos, serotoninérgicos e colinérgicos) (IZQUIERDO, 2002).

364 “Porque, afinal, traduzir quer dizer não só verter a outro código ou trair, mas também transformar. Há algo de prestidigitação nessa arte que o cérebro tem de fazer memórias, de transformar realidades, conservá-las, às vezes modificá-las e revertê-las ao mundo real.” (IZQUIERDO, 2002, p. 18).

365 Esse tema será de crucial importância para o problema da fenomenologia da memória, como se verá abaixo na exposição sobre o trabalho de Ricoeur (2007). O debate sobre o caráter veritativo da memória e a constante ameaça de confusão entre memória e imaginação possui, portanto, um fundo biológico que se explica por meio do processamento dessa dupla tradução acima referida.

366 O processo biológico da memória de trabalho é descrito da seguinte maneira: “A memória de trabalho é acompanhada de poucas alterações bioquímicas. Seu breve e fugaz processamento parece fazer depender fundamentalmente da atividade elétrica dos neurônios do córtex pré-frontal. No entanto, como vimos, essa atividade elétrica neuronal, ao viajar pelos axônios e atingir a extremidade destes, libera neurotransmissores

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apenas pelo tempo suficiente para o processamento de uma atividade pelo indivíduo. Sua

duração no sistema nervoso é de poucos segundos ou, no máximo, de alguns minutos. Após

tornar-se inútil para essa finalidade, a memória de trabalho é imediatamente descartada. Logo,

a memória de trabalho é uma memória que não produz arquivos ou registros367, da mesma

maneira que não deixa traços neuroquímicos ou comportamentais no indivíduo

(IZQUIERDO, 2002).

No entanto, a memória de trabalho é a porta de entrada para as chamadas memórias de

conteúdo. No breve período de tempo em que as informações vindas do exterior se encontram

disponíveis na consciência, a memória de trabalho faz uma rápida checagem sobre a novidade

ou a utilidade dessa informação para o organismo. Assim, a memória de trabalho ‘dialoga’

com as demais memórias para verificar se a informação já é conhecida do sistema e, portanto,

se há necessidade de seu aprendizado. Se o conteúdo for considerado relevante ou digno de

registro, o sistema nervoso inicia o processo de formação ou de consolidação da memória de

conteúdo. Contudo, se a informação for necessária apenas para o gerenciamento da ação

presente, não chegará a ser transformada em memória de conteúdo, sendo logo em seguida

descartada para o esquecimento368.

As memórias de conteúdo, ao contrário, são aquelas que produzem alguma forma de

registro duradouro de informações no sistema nervoso. Em termos biológicos, as memórias de

conteúdo se diferenciam das memórias de trabalho por produzirem alterações neuroquímicas

nas sinapses369 (IZQUIERDO, 2002). Essas modificações permitem que o indivíduo possa,

posteriormente, selecionar e evocar o conteúdo dessas memórias de maneira consciente

(explícita) ou até mesmo inconsciente (implícita).

Essa distinção referente ao estado de consciência do indivíduo no processo de seleção

e evocação da memória dá origem à primeira subclassificação entre as memórias de conteúdo.

sobre proteínas receptoras dos neurônios seguintes, comunicando, assim, a estes, traduções bioquímicas da informação processada. O córtex pré-frontal recebe axônios procedentes de regiões cerebrais vinculadas à regulação dos estados de ânimo, dos níveis de consciência e das emoções. Os neurotransmissores liberados por esses axônios modulam intensamente as células do lobo frontal que se encarregam da memória de trabalho.” (IZQUIERDO, 2002, p. 20) Essa explicação do processo de funcionamento da memória de trabalho justifica por que os indivíduos afetados emocionalmente ou por substâncias entorpecentes têm maiores dificuldades de compreensão, orientação e reação aos estímulos do ambiente externo: os neurotransmissores presentes no lobo frontal dificultam o processamento de sua memória de trabalho.

367 Izquierdo (2002) relata que, por essa razão, sequer seria possível denominar a memória de trabalho como uma memória propriamente dita, mas apenas qualificá-la de sistema gerenciador central.

368 Essa função de mero ‘gerenciamento da realidade’ efetuado pela memória de trabalho, sem produzir uma memória de longa duração que permite a conexão do organismo com sua experiência pregressa se assemelharia ao tipo de memória que o sistema jurídico adquiriria sob a influência de uma prática jurídica inspirada no pragmatismo jurídico. Ao se prender unicamente aos imperativos das questões políticas e econômicas do presente, o pragmatismo jurídico instituiria um casuísmo nas decisões judiciais em que uma experiência passada não serviria de referência e critério para se decidir um caso semelhante futuro.

369 A descrição desses processos será feita abaixo, na apresentação de cada um dos tipos de memória.

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Enquanto as memórias explícitas ou conscientes são chamadas declarativas, as implícitas ou

inconscientes são as de tipo procedurais ou de procedimento.

As memórias declarativas são responsáveis pelo registro dos fatos, eventos e

conteúdos gerais de conhecimento que um indivíduo aprende e conserva durante sua vida e, a

cada instante, é capaz de rememorar de maneira consciente. Tanto a formação, quanto a

evocação das memórias declarativas370 estão diretamente relacionadas a um bom

funcionamento da memória de trabalho. Quanto melhor for o processo de ‘troca de

informações’ entre a memória de trabalho e o arquivo das memórias de conteúdo371 – isto é, o

fluxo de comunicação entre as respectivas áreas de processamento de cada um desses tipos de

memória372 – mais capaz o organismo será de reconhecer que necessita formar / consolidar

uma memória declarativa ou de evocar uma lembrança disponível.

Quanto a seu conteúdo, as memórias declarativas se subdividem ainda em memórias

episódicas e memórias semânticas. As primeiras são aquelas cujo conteúdo decorre de um

fato ou um evento específico que pode ser localizado no tempo e no espaço, isto é, na

autobiografia do indivíduo. Já as memórias semânticas são aquelas que se originam do

processo de abstração do teor de uma ou mais experiências e acabam por formar uma

imagem, um sentimento ou uma informação de índole geral, tal como um conceito. Assim,

enquanto uma memória episódica seria a lembrança de um evento específico em que alguém

experimentou o perfume de uma rosa – como na primeira ocasião em que sentiu o cheiro de

uma rosa ou em uma ocasião significativa em que foi presenteado com um buquê de rosas –, a

memória semântica seria a própria ‘imagem-olfativa’ do aroma da rosa, sem referência a

nenhum episódio específico (IZQUIERDO, 2002).

Por sua vez, as memórias ‘procedurais’ ou de procedimento são aquelas que registram

a aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades motoras ou sensoriais pelo organismo.

Sua consolidação se dá por meio do treinamento e do aperfeiçoamento pela repetição

370 As principais estruturas cerebrais responsáveis pelas memórias declarativas são duas áreas interconectadas do

lobo temporal: o hipocampo e o córtex entorrinal. Elas se relacionam, contudo, a outras regiões do córtex, como o córtex singulado e o córtex parietal (IZQUIERDO, 2002).

371 E da mesma maneira que nas memórias de trabalho, os estados de ânimo e fisiológicos do organismo estão diretamente relacionados à formação das memórias declarativas em razão da atuação dos neurotransmissores nas sinapses nervosas que excitam ou inibem os estímulos: “As principais regiões moduladoras da formação de memórias declarativas são a área basolateral do núcleo amigdalino ou amígdala, localizado também no lobo temporal (nas suas fases iniciais) e as grandes regiões reguladoras dos estados de ânimo, alerta, ansiedade e emoções, localizadas à distância: substância negra, o locus ceruleus, os núcleos da rafe e o núcleo basal de Meynert (...) A amígdala basolateral recebe, na hora da formação das memórias, o impacto inicial de hormônios periféricos (corticóides, adrenalina) liberados no sangue pelo estresse ou pela emoção excessiva. É o núcleo por meio do qual estas substâncias modulam as memórias; sua ativação faz com que estas se gravem, em geral, melhor do que outras.” (IZQUIERDO, 2002, p. 23-24).

372 No caso, a região do córtex pré-frontal para as memórias de trabalho e a região do córtex entorrinal e o hipocampo para as memórias declarativas.

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continuada de uma determinada experiência. Diferentemente das memórias declarativas, elas

não possuem a forma de uma representação dos sentidos. Por essa razão, as memórias de

procedimento não podem ser evocadas ou demonstradas sem que o indivíduo já esteja

desempenhando a respectiva habilidade, o que, via de regra, se faz de maneira inconsciente. É

o que se dá quando alguém pratica um esporte, dirige um automóvel, escreve, fala e assim por

diante. Excepcionando-se as primeiras ocasiões em que o indivíduo está aprendendo a

habilidade, as memórias de procedimento são executadas de modo irrefletido, pelo que

também são denominadas de memórias implícitas.

As memórias de procedimento se localizam em estruturas cerebrais distintas das

memórias declarativas373. Por essa razão, tendem a se consolidar de maneira definitiva e estão

menos sujeitas ao processo de esquecimento. Também por esse motivo, diferentemente da

memória de trabalho e das memórias declarativas, as memórias de procedimento não sofrem

significativa modulação de sua intensidade em razão dos estados emocionais do indivíduo374.

No que diz respeito a sua duração, a neurociência classifica as memórias

declarativas375 em memórias de curta duração376, de longa duração e memórias remotas

(IZQUEIRDO, 2002). As memórias de curta duração ficam registradas e disponíveis na

consciência por um intervalo de três a seis horas no cérebro. Já as memórias de longa duração

têm uma permanência mais duradoura, podendo vir a ser evocadas pelo indivíduo depois de

meses ou mesmo anos após o evento que as originou. Por fim as memórias remotas são

aquelas que acompanharão o indivíduo por toda sua vida.

O processo que define o tempo que uma memória fica disponível para o organismo

denomina-se consolidação. Como já mencionado, a via de entrada de uma informação que se

candidata a se tornar uma memória declarativa é a memória de trabalho. Viu-se também que,

no curto período de tempo em que a informação está disponível na memória de trabalho, o

373 As partes do cérebro responsáveis pelas memórias de procedimento são o núcleo caudato, a substância negra

e o cerebelo. 374 “Os circuitos responsáveis pelas memórias de procedimento ou implícitas envolvem o núcleo caudato

(inervado pela substância nigra ou negra) e o cerebelo. Algumas delas também utilizam circuitos do lobo temporal (hipocampo, córtex entorrinal) nos primeiros dias depois de sua aquisição. Só são observadas falhas notórias da memória procedural nas fases mais avançadas da doença de Alzheimer ou de Parkinson, em que há lesões da substância negra e disfunção de sua conexão com o núcleo caudato, que se encarrega do controle motor. As memórias de procedimento ou implícitas sofrem pouca modulação pelas emoções ou pelos estados de ânimo.” (IZQUIERDO, 2002, p. 24).

375 Como já visto, as memórias de procedimento tendem a durar por toda a vida, enquanto as memórias de trabalho possuem duração de apenas poucos segundos ou minutos

376 As memórias de curta duração não se confundem com as memórias de trabalho. Em primeiro lugar porque as memórias de curta duração permanecem disponíveis na consciência por um período de tempo de três a seis horas, enquanto as memórias de trabalho duram no máximo alguns minutos. Em segundo lugar, como já mencionado, as memórias de trabalho não deixam traços neuroquímicos no sistema nervoso, enquanto as de curta duração, sim.

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sistema nervoso checa se ela já se encontra disponível na memória e ainda se é útil ou

relevante para o organismo. Em caso de resposta negativa à primeira checagem e positiva à

segunda, dá-se início a um processo bioquímico377 no qual essas informações ficam

disponíveis no cérebro por algumas horas e que consiste na chamada memória de curta

duração. A finalidade da memória de curta duração é a de promover um alojamento

temporário de memórias que poderão ser transformadas em memória definitiva ou de longa

duração. Enquanto subsistem sob a forma de memórias de curta duração, as memórias ficam

sujeitas à ação de substâncias entorpecentes ou de estados de ânimo que podem tanto destruir

o registro da memória, como potencializar sua consolidação. A capacidade de constituição da

memória de curta duração é limitada também, em maior ou menor grau, pela quantidade de

informação que se armazena em um curto período de tempo. Se o sistema nervoso vier a ser

estimulado de maneira excessiva, os sistemas metabólicos ficarão saturados, o que impedirá o

armazenamento de novas informações. Ao final do processo, as memórias de curta duração

promoverão modificações nas sinapses nervosas das áreas do cérebro em que se situam378,

permitindo sua posterior evocação pela consciência.

Durante o período em que a memória de curta duração se encontra ‘ativa’ no cérebro,

novos processos metabólicos379 – distintos daqueles que produziram a memória de curta

duração – criarão condições para que as sinapses nervosas possam efetuar a consolidação da

chamada memória de longa duração380. Assim, apesar de possuírem o mesmo ‘conteúdo’ e os

mesmos processos de input no sistema nervoso, o processo bioquímico dessas duas espécies

de memória é distinto: a memória de curta duração é um ‘modelo’ provisório para a

construção da memória definitiva. As memórias de longa duração produzem modificações

estruturais nas sinapses por meio do alargamento das superfícies pré-sinápticas (ramificações

dos axônios e dos dendritos), o que não se verifica nas memórias de curta duração. Quanto

maior a complexidade da memória, maior o número de sinapses envolvidas.

Assim, pode-se concluir que existem duas grandes famílias de memórias, que se

distinguem conforme sua capacidade de produzir ou não registros no organismo: as memórias

de trabalho e as memórias de conteúdo. Estas últimas se subdividem em dois grandes gêneros,

as memórias de procedimento e as memórias declarativas. Enquanto as primeiras nascem de 377 Trata-se de um processo bioquímico complexo, que envolve um número grande de etapas e a atuação de

vários neurotransmissores e receptores, pelo que não se justifica descrevê-lo neste trabalho. Para o leitor interessado, remete-se ao trabalho de Izquierdo (2002).

378 Tanto as memórias de curta duração, como as de longa duração se processam na região CA1 do hipocampo, no córtex entorrinal e no córtex parietal. O que as distingue é o processo bioquímico de cada uma delas.

379 Como explicado acima, para uma descrição completa desse processo remete-se o leitor a Izquierdo (2002). 380 Por essa razão, uma das patologias da memória é a perda da capacidade de produzir a memória de curta

duração, sem prejuízo das memórias de longa duração e remotas armazenadas.

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um processo de evocação inconsciente, as segundas podem ser conscientemente evocadas. As

memórias declarativas, por sua vez, podem ser novamente subdivididas em memórias de curta

duração e memórias de longa duração, duas espécies de memória biologicamente distintas não

só em relação ao tempo em que a memória permanece disponível no sistema nervoso, mas

também em relação ao processo bioquímico e ao resultado que deixam impresso no sistema

nervoso.

5.1.3 Evocação e extinção das memórias

Para que uma memória seja efetiva é preciso primordialmente que possa ser evocada

pelo indivíduo. A evocação é o processo pelo qual uma imagem, informação, sentimento ou

habilidade torna-se imediatamente disponível para a consciência no momento em que o

organismo assim o deseja. O processo de evocação não é uma simples ‘reversão idêntica’ do

processo que levou à consolidação da memória: trata-se, antes, de uma reconstrução. Segundo

mostra Izquierdo (2002), os processos moleculares bioquímicos envolvidos no processo de

consolidação da memória são distintos daqueles verificados no processo de evocação. Com

isso, é possível afirmar que a memória evocada não é simplesmente uma reiteração ou

repetição da memória consolidada, mas algo distinto dela. A evocação é a segunda parte do já

mencionado processo de dupla tradução em que consiste a memória: é a etapa em que o

estímulo elétrico converte-se na representação de um objeto da realidade. Esse processo está

sujeito a perdas e pode também ser permeado por associações com outras memórias, levando

ao fenômeno denominado de ‘mistura de memórias’. A fidedignidade do processo de

evocação dependerá da quantidade e da intensidade das modificações sinápticas conservadas

intactas no sistema nervoso, já que a evocação consiste em nada mais que uma reativação das

redes em que essas memórias se encontram. O processo será tanto melhor quanto maior forem

os ‘estímulos condicionados’ relacionados a essa memória. Izquierdo (2002, p. 28) descreve o

que são os estímulos condicionados da seguinte maneira:

Pavlov estabeleceu que, nos aprendizados associativos, se um estímulo novo é pareado com outro ‘biologicamente significante’ (doloroso, prazenteiro) que produz invariavelmente uma resposta (fuga, salivação, por exemplo), a resposta ao primeiro muda; fica condicionada ao pareamento. Assim, os estímulos neutros cuja resposta muda por associação com outros passaram a ser chamados estímulos condicionados, e a resposta nova a esse estímulo, resposta condicionada.

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Uma memória que não pode ser evocada não origina uma lembrança. Contudo, a

ausência de lembrança não significa necessariamente esquecimento, pois há uma distinção

entre memória extinta e memória esquecida. O processo de evocação de uma memória

declarativa – episódica ou semântica – está associado a uma maior ou menor presença dos

estímulos condicionados. Cada estímulo condicionado, via de regra, se associa a um estímulo

incondicionado, como quando, por exemplo, alguém se queima (estímulo incondicionado) ao

colocar a mão sobre uma chapa quente (estímulo condicionado). Contudo quando um

estímulo condicionado – que evocaria uma memória associada a um estímulo incondicionado

– se depara com a situação de não verificar esse estímulo incondicionado a que estava

inicialmente associado, dá-se início ao processo de extinção da memória. Alguém que coloca

a mão sobre uma chapa quente aprende por meio de uma experiência – portanto, forma uma

memória – que tocar naquela superfície lhe causará dor. Se, contudo, ocorrer de tocar a chapa

novamente e não se queimar – porque a chapa está desligada, por exemplo – a memória

formada anteriormente tenderá a se extinguir. Isso não significa que ela foi esquecida: o

sentimento de dor ao contato com a chapa deu lugar a uma indiferença ao mesmo movimento.

Houve, contudo, um aprendizado com a extinção da memória anterior e sua substituição por

outra.

Todavia, como dito, uma memória extinta não é necessariamente uma memória

esquecida, pois ela pode permanecer latente no sistema. Ela se restabelecerá caso o estímulo

incondicionado volte a estar presente – se, por exemplo, é o caso de a pessoa se queimar

novamente com a chapa. Assim, uma memória extinta pode ser ‘trazida à tona’,

diferentemente da memória esquecida, que não deixa mais traços neuroquímicos no sistema

nervoso. A função biológica de manutenção de uma memória em estado de latência é a de

auxiliar o gerenciamento da realidade pela memória de trabalho, sem sobrecarregar o sistema

nervoso com um conjunto muito grande de informações para acumular.

O esquecimento, por sua vez, pulveriza a memória do sistema nervoso. É o que ocorre,

por exemplo, quando a memória de trabalho rejeita as informações retidas no sistema para

decidir um determinado comportamento; ou quando as informações armazenadas pela

memória de curta duração não são convertidas em memórias de longa duração; também se dá

o esquecimento quando as sinapses se desfazem por falta de exercício da memória; e, por fim,

quando as células nervosas morrem com a própria degeneração do sistema nervoso. Esse

último processo dá origem às chamadas patologias da memória e seu estudo é importante

porque indica a origem dos processos amnésicos. No item seguinte, far-se-á uma breve

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apresentação dessa questão para que se possa contrapor a memória sadia à memória

debilitada.

5.1.4 Amnésias e patologias da memória

Por amnésia refere-se genericamente a todo quadro que envolve a perda de conteúdo

de memória. Alguns desses quadros são naturais, seja porque decorrentes do envelhecimento,

seja porque certos hábitos de comportamento ocasionam o desfazimento das modificações nas

sinapses nervosas responsáveis pela conservação dos conteúdos da memória. Outros quadros

amnésicos são de origem patológica, pois se originam ou de doenças degenerativas do sistema

nervoso ou de lesões traumáticas / vasculares que danificam o tecido nervoso cerebral. No

presente tópico, apresentam-se alguns dos quadros associados à perda de memória e suas

respectivas origens, a fim de se traçar uma visão geral sobre as deficiências da memória e a

possibilidade de seu emprego metafórico quando da abordagem da questão sobre a amnésia da

memória jurídica.

O principal fator responsável pela perda da memória entre indivíduos sadios é a

inatividade da função da memória. Exercitar constantemente a memória – por meio do

aprendizado ou da evocação dos saberes armazenados – estimula o sistema nervoso a

conservar intactas por um maior tempo as modificações na estrutura sináptica responsável

pela memória. O exercício permite que as memórias se consolidem com maior facilidade, uma

vez que o sistema estaria mais propenso a promover as adaptações sinápticas que levam à

consolidação e à evocação das memórias (IZQUIERDO, 2002).

A doença degenerativa mais associada à perda da capacidade de memória é o mal de

Alzheimer. Manifesta-se com a produção desmedida de uma proteína orgânica denominada

substância β-amilóide. As células nervosas afetadas pelo Alzheimer produzem uma secreção

derivada dessa substância que mata os neurônios que se encontram a seu redor. Com a

destruição do tecido do córtex entorrinal e do hipocampo – áreas do cérebro responsáveis pelo

processamento da memória –, paulatinamente a memória do indivíduo vai se esvaindo na

medida em que a doença progride (IZQUIERDO, 2002).

As demências provocadas pela interferência de agentes externos como os

traumatismos físicos – de impacto ou continuados – ou as substâncias entorpecentes, como o

álcool e as drogas de abuso, também são responsáveis por levarem a quadros de amnésia

aguda. Aqui a razão da perda da memória é a eliminação maciça de neurônios do indivíduo

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por meio da atuação do agente externo, que causa a destruição direta de células sadias do

tecido nervoso.

Os quadros depressivos de origem emocional também são comumente acompanhados

de quadros amnésicos. Isso se dá justamente porque as depressões têm origem na

insuficiência de neurotransmissores responsáveis pela modulação e consolidação das

memórias no sistema nervoso. A memória mais comprometida nesse caso é a de curta

duração, já que os neurotransmissores são substâncias indispensáveis para o fluxo da memória

de trabalho à memória de curta duração e a permanência desta no sistema nervoso até sua

eventual conversão em memória de longa duração.

De modo inverso, os quadros de mania levam a um excesso de certos

neurotransmissores no córtex pré-frontal que produzem um comprometimento da memória de

trabalho. Com isso, o indivíduo passa a agir sem o filtro de ação que a consciência

normalmente lhe imporia, levando-o a ter comportamentos obsessivos em relação a um objeto

ou a um tipo de comportamento.

Outro quadro patológico da natureza curiosa em relação à memória é a doença

denominada hipermnésia, que incide em alguns casos de indivíduos acometidos de autismo.

Essa patologia leva o indivíduo a desenvolver uma enorme capacidade de formar e evocar

memórias complexas, muito acima da média de uma pessoa normal.

Por fim, a esquizofrenia seria um distúrbio mental responsável por inundar a

consciência do indivíduo com informações de toda espécie, impedindo o funcionamento

adequado da memória de trabalho. O esquizofrênico tem eliminada sua capacidade de filtrar a

realidade e separá-la da fantasia. Isso faz com que vivencie quadros psicóticos de ameaça ou

de perseguição diante da enxurrada de informações que lhe é posta pela consciência. Da

mesma forma, o esquizofrênico tem dificuldades para lidar com suas memórias episódicas,

ora hipervalorizando as sensações que acompanham essas imagens, ora não conseguindo

distinguir a lembrança de uma experiência passada da realidade do presente atual.

5.2 A memória como objeto e como método da História

A história sempre manteve uma relação ambígua no que diz respeito ao recurso à

memória como forma de saber capaz de contribuir para seu progresso enquanto disciplina

que se dedica ao estudo do passado381 (NORA, 1997). Nos primórdios da civilização, a

381 Ao contrário de que a imagem do senso comum poderia indicar, o fato de que tanto a memória como a

história se referem ao passado não faz delas conhecimentos similares. Vale destacar o depoimento de Nora

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memória consistia na forma privilegiada de preservação da história dos povos sem escrita (LE

GOFF, 2003). De um modo geral, era uma característica comum às sociedades primitivas o

fato de que elas instituíram uma atividade social mnésica de natureza oral com a finalidade de

conservar a tradição cultural desenvolvida no interior de cada um desses povos. Por meio de

rituais públicos e da referência a mitologias de cunho religioso, os povos antigos

desenvolveram mecanismos sociais de acumulação e perpetuação de sua cultura. Esse tipo de

memória foi denominado por Le Goff (2003) de memória étnica. A memória étnica estava

intimamente associada à rememoração e à transmissão da origem das famílias e dos clãs

tribais dos povos primitivos, via de regra em referência aos mitos fundacionais. Essa atividade

era desempenhada pelos chamados homens-memória: poetas, sacerdotes e chefes tribais que

cumpriam o papel social de guardiões da memória étnica. Ao exercer essa função, a atividade

dos homens-memória acabava também por registrar a história factual desses povos. No

entanto, quando o historiador moderno lança à memória étnica seu olhar inquisitório sobre o

passado, atribui-lhe um duplo caráter no que diz respeito a sua capacidade de contribuir para o

relato da história. De um lado, é possível identificar uma dimensão objetiva na memória

(1997, p. 24-25) sobre a questão: “Mémoire, histoire: loin d’être synonymes, nous prenons conscience que tout les oppose. La mémoire est la vie, toujours portée par des groupes vivants et à ce titre, elle est en évolution permanente, ouverte à la dialectique du souevnir et de l’amnésie, inconsciente de ses déformations successives, vulnérable à toutes les utilisations et manipulations, susceptible de longues latences et de soudaines revitalisations. L’histoire est la reconstruction toujours problématique et incomplète de ce qui n’est plus. La mémoire est un phénomène toujours actuel, un lien vécu au présent éternel ; l’histoire, une représentation du passé. Parce qu’elle est affective et magique, la mémoire ne s’accommode que des détails qui la confortent ; elle se nourrit de souvenirs flous, télescopants, globaux ou flottants, particuliers ou symboliques, sensible à tout les transferts, écrans, censures ou projections. L’histoire, parce que opération intellectuelle et laïcisante, appelle analyse et discours critique. La mémoire installe le souvenir dans le sacré, l’histoire l’en débusque, elle prosaïse toujours. La mémoire sourde d’un groupe qu’elle soude, ce qui revient à dire, comme Halbwachs à fait, qu’il y a autant de mémoires que de groupes ; qu’elle est, par nature, multiple et démultipliée, collective, plurielle et individualisée. L’histoire, au contraire, appartient à tous et à personne, ce qui lui donne vocation à l’universel. La mémoire s’enracine dans le concret, dans l’espace, le geste, l’image et l’objet. L’histoire ne s’attache qu’aux continuités temporelles, aux évolutions et aux rapports des choses. La mémoire est un absolu et l’histoire ne connaît que le relatif”. (Tradução nossa: ‘Memória, história: longe de serem sinônimos, nós temos clareza de que tudo as opõe. A memória é a vida sempre transportada por grupos vivos e, deste ponto de vista, continua em evolução permanente, aberta para a dialética da lembrança, da amnésia, inconsciente de suas deformações sucessivas, permeável a qualquer utilização e manipulação, capaz de longas latências e de inesperadas revitalizações. A história é a reconstituição sempre problemática e incompleta do que já não mais existe. A memória é fenômeno sempre atual, um elo vivenciado com o eterno presente; a história, uma representação do passado. A memória, sendo afetiva e mágica, não se acomoda a não ser aos detalhes que a confortam, se alimentando de lembranças débeis, etéreas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas e sensível a quaisquer transferências, panos de fundo, censuras ou projeções. A história, por ser operação intelectual e laicizante, exige análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história o decompõe e o torna sempre prosaico. A memória é fato inexorável para o grupo que ela une, o que equivaleria dizer como o fez Halbwachs, que existem tantas memórias quantos são os grupos; que ela é por natureza múltipla e multiplicável, coletiva plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, fato que lhe confere vocação universal. A memória se enraiza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. A história só se referencia às continuidades temporais, às evoluções er às relações entre os fatos. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.”).

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étnica. Ela conteria o testemunho de homens-memória que se propuseram a relatar a história

de um determinado povo a partir de relações de sucessão cronológica entre fatos ocorridos no

tempo. Portanto, ainda que imprecisa e imperfeita, a memória étnica seria uma importante

fonte de acesso à história dos povos sem escrita382. Todavia, por outro lado, a memória étnica

guardaria uma faceta ideológica, no sentido que seria uma visão distorcida da história factual,

já que permanentemente entrecortada – e contaminada – pelo mito383. Assim, a memória

étnica não se comprometeria com a verdade da realidade histórica e, portanto, seria

imprestável para o estudo da história (LE GOFF, 2003). Finley (1965, p. 286) salienta essa

diferença ao comparar como Heródoto e Hesíodo deram tratamento à questão da cronologia

em suas respectivas obras:

A colagem e a costura são a regra no mito e não há nada de errado em relação a isso. Só a mente historicamente orientada vê as ásperas pontadas e as articulações defeituosas e é incomodada por elas, como é abundantemente evidente em Heródoto. Mas Hesíodo não era historicamente orientado. Aqui, de um lado, eram as quatro raças e aqui, de outro lado, era a raça dos heróis. Elas eram informações e sua tarefa era montá-las. Ele o fez da maneira mais simples, possivelmente graças à total ausência do elemento do tempo. Não havia problemas cronológicos, nenhuma data a ser sincronizada, nenhum desenvolvimento para traçar ou explicar. (Tradução nossa).384.

Assim, a memória étnica seria marcada por uma narrativa acentuadamente imaginativa

cujo resultado seria a exacerbação da dimensão regenerativa do passado. Em seu processo de

reconstrução da história, essa narrativa depuraria os eventos históricos a fim de produzir uma

visão idealizada ou mesmo mística dos acontecimentos. Como a transmissão da tradição por

382 Essa dimensão objetiva não se assemelha, contudo, ao trabalho histórico por faltar-lhe a preocupação com a

exatidão no elemento cronológico dos eventos. 383 E, nesse sentido, o mito seria ‘timeless’, isto é, se inscreveria fora do tempo. “In this first phase, then, when

oral tradition was built up and kept alive, the product was a mythical past created out of disparate elements, differing in their character and their (factual) accuracy, and having their (factual) origin in widely scattered periods of time. ‘Tradition’ did not merely transmit the past, it created it. In a shape which sometimes looks like history, and has been widely accepted as history both by Greeks and (with qualifications) by many modern students, the bards fashioned a timeless mythology.” (FINLEY, 1965, p. 295). (Tradução: “Em sua primeira fase, então, quando a tradição oral foi construída e mantida viva, o produto era o passado mítico criado de elementos disparates entre si, diferindo em suas características e em sua precisão (factual) e tendo sua origem (factual) em amplos e espalhados períodos de tempo. ‘Tradição’ não meramente transmitia o passado, ela o criava. Em uma forma que às vezes parece com a história e tem sido amplamente aceita como história por ambos os Gregos e (com reservas) por muitos estudantes modernos, os bardos desenvolverem uma mitologia atemporal.”).

384 “Patchwork is the rule in myth, and it gives no trouble. Only the historically-minded see the rough stitches and the faulty joints and are bothered by them, as is abundantly evident in Herodotus. But Hesiod was not historically minded. Here on the one hand were the four races and here on the other hand was the race of heroes. They were data, and his task was to assemble them. He did it in the easiest way possible thanks to the total absence of time element. There were no chronological problems, no dates to be synchronized, no development to trace or explain”.

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meio da memória narrativa adquiria maior destaque social no mundo antigo385, os

historiadores da antiguidade sequer encararam a memória como aquele conjunto de técnicas

que produz a memorização ‘palavra por palavra’, isto é, uma lembrança com a pretensão de

exatidão sobre algo da realidade (LE GOFF, 2003).

Ainda, a forte presença do mito na memória étnica seria responsável por fundar uma

concepção reversível de tempo. Essa forma de temporalidade não se ajustaria à proposta que o

saber histórico tinha de oferecer uma cronologia linear e precisa dos acontecimentos do

passado do grupo social. Bosi (1992, p. 27) explica em que consiste a temporalidade

reversível e de que maneira a memória étnica atuaria na composição dessa forma temporal:

O tempo em que se dizem os mitos e o tempo em que se cultuam os mortos também se caracterizam por ser uma com-posição de recorrências e analogias. A sua nota principal é a reversibilidade. Reversibilidade, que é estrutural, pois abraça retornos inteiros. E reversibilidade que é histórica, pois as suas formas voltam e se transmitem de geração em geração. É uma lógica que parece reproduzir os movimentos cíclicos do corpo e da natureza. A reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz com que este perceba que o que foi pode voltar: com essa percepção e com o sentimento da simultaneidade que a memória produz (recordo agora a imagem que vi outrora) nasce a ideia do tempo reversível. O tempo reversível é, portanto, uma construção da percepção e da memória: supõe o tempo como sequência, mas o suprime enquanto o sujeito vive a simultaneidade. O mito e a música, que trabalham a fundo a reversibilidade, são ‘máquinas de abolir o tempo’, na feliz expressão de Lévi-Strauss. Ora, a condição de possibilidade do mito e da música é a memória, aquela memória que se dilata e se recompõe, e à qual Vico chama fantasia. A memória vive do tempo que passou e, dialeticamente, o supera. (BOSI, 1992, p. 27).

Portanto, a primeira imagem formulada pela história em relação à memória realçaria o

contraste entre a pretensão de verdade existente na primeira – que se arvoraria em disciplina

do conhecimento humano – e o domínio da ideologia em que se encontraria a consciência

mítica da memória étnica (FINLEY, 1965). Essa oposição despertou um preconceito do

historiador convencional em relação à memória. Enquanto a história se distinguiria por

inquirir a realidade a fim de buscar a exatidão e a fundamentação em suas narrativas, a

memória seria o âmbito da imaginação fantasiosa, marcada pela imprecisão quanto à

apresentação da sequência temporal dos eventos que tiveram curso no passado do grupo

social.

Todavia, o advento da historiografia também remodelou a relação entre história e

memória, colocando-a em outro nível. O registro escrito do passado produziu o efeito de

‘eternizar’ os acontecimentos pretéritos, tornando cada vez menos necessária a conservação

385 Por esse motivo Arendt (2005) destaca que Aristóteles classificou historiadores e poetas na mesma categoria

dos narradores.

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do passado pela memória étnica. Com isso, a história substituiu a memória étnica por uma

memória escrita que se produziria por meio de documentos e arquivos. A memória registrada

no papel tornou-se duradoura e também mais fiel à história dos grupos sociais, especialmente

no que diz respeito ao relato dos acontecimentos políticos.

Se o advento da escrita paulatinamente promoveu o desaparecimento da memória

étnica, esse processo não levou, contudo, à supressão da estrutura própria da memória social.

Na verdade, a historiografia veio inaugurar um novo modo de se produzir a memória social.

Assim, os elementos que caracterizam o relato memorial – em especial seu caráter narrativo –

permaneceram os mesmos na história escrita. Arendt (2005) enfatiza esse aspecto da história

ao afirmar que o que caracteriza essa prática social não é sua forma escrita, mas o fato de que

há, no relato historiográfico, uma preocupação em destacar os fatos considerados relevantes

para a sociedade e, assim, produzir-se uma catarse que leva a sua reconciliação com a

realidade. Tem-se assim que a narrativa seria um elemento inerente à história, justamente pelo

fato de que todo relato historiográfico é a produção de uma espécie de memória social. Logo,

para produzir uma memória ainda mais relevante que a memória oral, a história escrita

inaugurada na antiguidade tardia guardava em comum com a memória aquela a função de

recordação ou rememoração que era própria da memória étnica386. Como consequência, a

historiografia da antiguidade tardia não se desvencilhou da forma da narrativa mitológica.

Pelo contrário, abraçou-a como condição de produzir uma história digna de imortalizar seus

personagens. Desse modo, o relato dos grandes feitos dos povos e dos homens – produzido

por historiadores como Heródoto, Tucídides e Políbio – guardava semelhança com o registro

e a rememoração próprios da memória humana, uma vez que apresentava os acontecimentos

que necessitavam ser guardados e lembrados por meio de sua seleção e ordenação em uma

sequência narrativa (ARENDT, 2005). A importância da forma narrativa387 para esse

386 “Com Heródoto, as palavras, os feitos e os eventos – isto é, as coisas que devem sua existência

exclusivamente aos homens – tornaram-se o conteúdo da História. De todas as coisas feitas pelo homem, estas são as mais fúteis. As obras das mãos humanas devem parte de sua existência à matéria fornecida pela natureza, portando assim dentro de si, em alguma medida, permanência emprestada do ser-para-sempre da natureza. Mas o que se passa diretamente entre mortais, a palavra falada e todas as ações e feitos que os gregos chamaram de prákseis ou prágmata, em oposição a poíesis, fabricação, não pode nunca deixar de sobreviver ao momento de sua realização e jamais deixaria qualquer vestígio sem o auxílio da recordação. A tarefa do poeta e historiador (postos por Aristóteles na mesma categoria, por seu tem comum práksis) consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e fala, nesta espécie de poíesis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita.” (ARENDT, 2005, p. 73-74).

387 A relação entre a historiografia e a narratividade foi objeto de uma longa e minuciosa análise de Ricoeur (1994) em Tempo e Narrativa. Segundo Ricoeur, a história assumiria um caráter eminentemente narrativo devido a certas características que lhe seriam inerentes. Ricoeur adverte, contudo, que o laço existente entre a explicação histórica e a compreensão narrativa não se deve ao caráter episódico da histórica, mas a sua natureza configurante. Desse modo, mesmo o modelo nomológico da historiografia – que depreciou a narrativa, como se verá adiante – assumiria essa perspectiva narrativa em razão de alguns elementos que lhe

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empreendimento estaria no fato de que ela introduz o ‘motivo humano’ na historiografia,

presente na memória étnica e conservado na memória escrita. Ao dramatizar a realidade sob a

forma de uma mimesis – à semelhança do que se processa com a memória – o historiador

produziria a valorização do gênero humano (FÉLIX, 1998) e, com isso, conferiria o status de

imortalidade àqueles eventos e personagens capazes de irromperem no fluxo indiferente dos

acontecimentos naturais. Por esse ângulo, portanto, a história não se oporia à memória, mas

seria um instrumento desta, já que registraria os acontecimentos dignos de recordação pelas

gerações futuras388.

O modo antigo de se fazer história – e a respectiva relação com a memória – somente

veio a se modificar de maneira substancial com o advento do paradigma científico da

modernidade389. Arendt (2005) afirma que as exigências impostas pelos padrões

metodológicos das ciências experimentais demandaram que a história eliminasse o caráter

valorativo que até então existia no modelo da historiografia antiga. A fim de atingir a

objetividade exigida pela ciência moderna, o cientista da história aniquilou o seu ‘eu’ e

pretendeu retratar os acontecimentos políticos de forma impessoal e neutra. O novo método

da história científica passou a exigir que o historiador deixasse os documentos falarem por si

mesmos390. Logo, em sua formulação inicial, a história moderna abandonou sua ligação com

a memória, uma vez que deixou de exercer a função memorial de recordação seletiva e

valorativa dos episódios pretéritos.

são intrínsecos, a saber, a verificação de enunciados narrativos na explicação histórica, a presença do princípio estrutural da narrativa denominado followability ou capacidade de seguir uma história, o fato de a explicação histórica consistir em um ato configurante e, por fim, o fato de o discurso histórico se organizar a partir da armação de uma intriga (enplotment). É interessante notar que esses elementos que atribuem ao discurso histórico um traço narrativo também se encontram presentes no discurso jurídico. Voltar-se-á a esse ponto no próximo capítulo.

388 “Através da História os homens se tornam quase iguais à natureza, e unicamente os acontecimentos, feitos ou palavras que se ergueram por si mesmos ao contínuo desafio do universo natural eram os que chamaríamos de históricos (...) A conexão entre História e natureza, pois, de maneira alguma é uma oposição. A História acolhe em sua memória aqueles mortais que, através de feitos e palavras, se provaram dignos da natureza, e sua fama eterna significa que eles, em que pese sua mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para sempre.” (ARENDT, 2005, p. 77).

389 Le Goff (2003) mostra que um fator responsável pela dissociação entre história e memória é o fato de que a partir da idade média o conceito de memória passou a ser identificado cada vez mais com mnemotécnica ao invés de recordação regenerativa. Isso criou uma dificuldade ainda maior para se enxergar a memória como elemento pertinente à história.

390 “O moderno historiador, via de regra, ainda não é consciente do fato de os cientistas naturais, contra os quais ele teve de defender seus próprios ‘padrões científicos’ por tantas décadas, se encontrarem na mesma posição, e muito provavelmente reafirmará, em termos novos e aparentemente científicos, a velha distinção entre Ciência da Natureza e Ciência da História. A razão está em que o problema da objetividade nas Ciências Históricas é mais que uma mera perplexidade técnica e científica. Objetividade, a ‘extinção do eu’ como condição de ‘visão pura’ (das reine sehen der Dinge – Ranke), significava a abstenção, de parte do historiador, a outorgar louvor ou opróbrio, ao lado de uma atitude de perfeita distância com a qual ele deveria seguir o curso dos eventos conforme foram revelados em suas fontes documentais.” (ARENDT, 2005, p. 79).

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No entanto, esse processo de cientificização da história é dividido, segundo Stone

(1979), em três etapas. Como se verá adiante, nem todas elas foram marcadas por um

distanciamento da memória em relação à história. Pelo contrário, apenas na primeira delas a

influência dos cânones do cientificismo foi responsável por uma ruptura na relação entre

história e memória.

A primeira etapa da evolução da história moderna coincide com a produção

historiográfica do século XIX. Nessa época, a produção historiográfica encontrava-se sob

forte influência da filosofia da história de matriz hegeliana. Por essa razão, a historiografia

ainda almejava desenvolver uma história que pudesse ser unificada por algum princípio

racional que conferisse um sentido universal ao desenrolar histórico (CHARTIER, 1990). De

outra sorte, o método científico exigia que o historiador reproduzisse de maneira fidedigna o

teor dos arquivos estatais que continham o registro documentado da história política dos

povos (STONE, 1979).

Nesse contexto, o relato historiográfico de um autor como Leopold Von Ranke se

destacou como uma proposta híbrida em relação a essas duas matrizes filosóficas. De um

lado, Ranke pretendia apresentar a história ‘tal como ela ocorreu’, isto é, conclamava o

historiador a não julgar ou avaliar o passado, mas simplesmente apresentar os fatos da

maneira como eram encontrados em documentos caracterizados como fontes válidas de

produção do conhecimento histórico – documentos e relatórios contidos nos arquivos oficiais.

Nesse sentido, com Ranke a história deixou de ser literatura e se tornou o relatório de uma

pesquisa científica, guiado por métodos precisos de coleta e análise das fontes históricas.

Rüsen (1990, p. 192) explica em que consistiu esse processo:

O trabalho de Ranke marca um ponto de virada no desenvolvimento da historiografia: ela mudou de literatura para ciência. Tradicionalmente, a habilidade dos historiadores era sua capacidade de atingir a mente de sua audiência pela força persuasiva de suas formas linguísticas, nas quais o passado se torna vivo, falando a linguagem do senso comum, ensinando competências práticas para o domínio de problemas tópicos da vida cotidiana do presente. A historiografia era orientada para as necessidades práticas de sua audiência. Ela era guiada pelo princípio e se dirigir a uma audiência, e falando com alguém, ela era, na verdade, retórica. Agora a historiografia se tornou orientada em direção à pesquisa; ela ganhou uma nova qualidade de evidências empíricas. Ela pretendeu falar a verdade, independentemente das expectativas e preconceitos da audiência. Ela não mais ensinava competências práticas, mas proporcionava conhecimento empírico. Ela simplesmente dizia como as coisas aconteceram. (Tradução nossa). 391

391 “Ranke’s work mark a turning point in the development of historiography: it changed to literature to science.

Traditionally the skill of the historians was their ability to reach the mind of their audience by the persuasive force of their linguistic forms, in which the past becomes alive, speaking the language of the common sense, teaching practical competence in mastering topical problems of present-day life. Historiography was oriented to the practical needs of its audience. It was guided by the principle of addressing an audience, by speaking to

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Por outro lado, ainda que rejeitasse a proposta hegeliana de confinar a história ao

desenvolvimento de uma ideia, Ranke acreditava na existência de um imperceptível, porém

inexorável, progresso histórico subjacente ao desenrolar dos acontecimentos. A história se

processaria por meio de uma marcha de eventos ditada pelas condições culturais da Europa

moderna e que teria sido responsável pela formação das constelações políticas dos Estados de

seu tempo (RÜSEN, 1990). Assim, a historiografia de Ranke acabou mantendo a narrativa

como forma de apresentação da história. Tratava-se, contudo, de uma narrativa que se

assemelhava à prosa realista e que nada tinha em comum com a narrativa da história feita

pelos historiadores antigos. Ranke apresentou os fatos históricos de maneira objetiva e

impessoal. Não havia aquele propósito de realizar uma seleção dos fatos memoráveis, dignos

de serem recordados pelas gerações futuras, dentro da massa amorfa de acontecimentos392

(ARENDT, 2005). Ranke não estava preocupado em ensinar o público do presente exemplos

de virtude política extraídos de personagens ou acontecimentos do passado. Como já dito, sua

preocupação era simplesmente mostrar a história tal como aconteceu. Assim, apesar de

narrativa, nessa primeira fase do processo de ‘cientificização’, a história deixou de guardar

aquela ligação que possuía com a forma da memória étnica herdada pelos historiadores da

antiguidade. Isso porque a narrativa realista da primeira fase da história moderna não mais se

propunha a fazer uma seleção e um recorte dos eventos históricos – misturando, assim,

lembrança e esquecimento – segundo uma trama responsável por destacar os episódios dignos

de recordação pelo grupo social. Pelo contrário, sua marca era a indiferença do historiador

quanto à qualidade ou ao valor da história.

Esse modelo da narrativa realista foi pejorativamente denominado de événementiel,

em referência a sua redução da historiografia ao registro dos eventos políticos que marcaram a

história dos povos. Também foi duramente criticado pela historiografia marxista tradicional e

someone; it was indeed rhetorical. Now historiography became oriented towards research; it gained a new quality of empirical evidence. It claimed to speak the truth irrespective of all expectations and prejudices of its audience. It no longer taught practical competence, but gave empirical knowledge. It simply said how it really had been.

392 Mozaré (1970, p. 64) revela de que maneira o acontecimento extraordinário adquire essa propriedade de se converter em fato ou acontecimento memorável: “o acontecimento só se torna memorável devido a uma certa maneira de ser excepcional, de suscitar além de seu desenrolar efêmero uma realidade durável, inscrita nos mapas e monumentos, introduzida nas leis e nos hábitos, feita também de comentários e glosas. Após ter tido a espontaneidade do gesto, adiciona alguma coisa às instituições expressivas e protetoras de comportamentos médios, ele tende a constituir uma experiência exemplar, a tornar-se, enfim, objeto de cômputos e cálculos. Está, em suma, entre todas as explorações do possível e além das que permanecem inumeravelmente vãs, um sucesso que abre um caminho talvez curto, eventualmente horroroso, mas novo e sobre o qual muitos homens se empenharam da mesma maneira.”.

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pela chamada Escola dos Annales393 (LACERDA, 1994). No cerne dessa crítica estaria o fato

de que a história teria negado a pretensão de proporcionar uma explicação científica para os

acontecimentos históricos – suas causas, origens e condições de possibilidade. Assim, a

historiografia marxista tradicional e a abordagem estruturalista da primeira geração da Escola

dos Annales aboliram por completo o modelo narrativo da historiografia. Em seu lugar,

deram preferência a abordagens de caráter explicativo, seja amparadas no modelo teórico da

luta de classes (marxismo), seja em referência a dados quantitativos de origem demográfica e

geográfica (Annales) (STONE, 1979). Especialmente no caso da primeira geração da Escola

dos Annales, produziu-se um modelo historiográfico determinista cuja pretensão seria a

instituição de uma temporalidade marcada pela chamada ‘longa duração’394. Portanto, a

narrativa estruturada sob a sequência episódica de acontecimentos não tinha espaço nesse

modelo:

Esse inebriante otimismo, que era tão aparente os anos 1930 aos anos 1960 era reforçado entre os primeiros dois grupos de historiadores cientistas pela crença que condições materiais tais como as mudanças na relação entre população e suprimento de alimentação, mudanças nos meios de produção e conflitos de classe, eram as forças condutoras da história. Muitos, mas não todos, consideraram desenvolvimentos intelectuais, culturais, religiosos, psicológicos, jurídicos e mesmo políticos como meros epifenômenos. Uma vez que o determinismo econômico e / ou demográfico ditaria largamente o conteúdo do novo gênero da pesquisa histórica, o modo analítico ao invés do narrativo era mais apropriado para organizar e apresentar a informação e a informação ela própria teria, o máximo quanto possível, ser quantitativa em sua natureza. (STONE, 1979, p. 7, tradução nossa). 395

393 A Escola dos Annales, também denominada de movimento da ‘História Nova’, foi um movimento acadêmico

no seio da historiografia que se iniciou nos anos 1920 e se estendeu, passando por mutações em suas referências e pressupostos teóricos, até os anos 1970. Em síntese, a Escola dos Annales se caracteriza pelo combate à chamada história dos acontecimentos e pela crítica à noção de fato histórico. Em seu lugar, propõe uma historiografia marcada pela investigação da ‘longa duração’, isto é, elementos estruturais que condicionariam a realidade histórica, independentemente das filigranas dos fatos políticos (LE GOFF, 1998).

394 “Os Annales, das três gerações, se mostrariam sensíveis a essa argumentação das ciências sociais sobre o tempo histórico e empreenderiam a reconstrução desse conceito. Sob a influência das ciências sociais, a história, antes estudo exclusivo da sucessão de eventos, da mudança, da passagem do passado ao futuro, da diferença temporal sucessiva, e que sempre privilegiou o evento e quis ser uma descrição da mudança, seria obrigada a incluir em seu conceito de tempo a simultaneidade. Os Annales, e Braudel em particular, construíram o conceito de ‘longa duração’, que ao mesmo tempo incorpora e se diferencia do conceito de estrutura social das ciências sociais. A longa duração é a tradução, para a linguagem temporal dos historiadores, da estrutura atemporal dos sociólogos, antropólogos e linguistas.” (REIS, 2005, p. 198).

395 “This heady optimism, which was so apparent from the 1930s to the 1960s, was buttressed among the first two groups of "scientific historians" by the belief that material conditions such as changes in the relationship between population and food supply, changes in the means of production and class conflict, were the driving forces in history. Many, but not all, regarded intellectual, cultural, religious, psychological, legal, even political, developments as mere epiphenomena. Since economic and/or demographic determinism largely dictated the content of the new genre of historical research, the analytic rather than the narrative mode was best suited to organize and present the data, and the data themselves had as far as possible to be quantitative in nature”.

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Assim, a Escola dos Annales fez do combate à história-acontecimento seu mote. Sua

intenção era a de construir um método historiográfico problematizante que a simples

apresentação de uma cronologia das instituições político-jurídicas não era capaz de

proporcionar (LE GOFF, 1998). A renúncia ao modelo narrativo não significou, contudo, que

a história viesse a ignorar o tema da memória enquanto modo privilegiado de investigação do

passado. Se é fato que a Escola dos Annales depreciou a estrutura narrativa própria da

memória – e, com isso, colocou uma pá de cal temporária no modelo regenerativo da

antiguidade396 – por outro lado, promoveu um relacionamento mais refinado entre a história e

a memória. Ao associar-se às ciências sociais – sobretudo à noção de memória coletiva

desenvolvida por Maurice Halbwachs397 – por meio do conceito de mentalités, a segunda

geração da Escola dos Annales defendeu que a história fosse explicada por meio da memória.

Segundo Ariès (1998), a palavra ‘mentalidade’ significaria o imaginário coletivo ou o

universo mental verificado no seio de um grupo social em uma determinada época histórica.

As mentalidades apontariam para o modo como o grupo social compreenderia uma questão ou

um tema relevante em voga na sociedade. A importância do estudo das mentalidades para a

ciência da história seria a de que essa noção permitiria a compreensão sobre o modo como

pensavam as gerações antepassadas por meio da comparação entre a mentalidade presente e a

pretérita. Nesse sentido, o aprendizado das mentalidades revelaria a memória coletiva

arraigada no inconsciente coletivo popular e apontaria para a evolução das ideias e dos

valores vigentes na atualidade. Nesse sentido, a investigação das mentalidades seria uma

forma de rememoração do passado, a fim de trazê-lo para mais perto do presente. Ademais, o

estudo das mentalidades permitiu que o historiador incorporasse a dimensão sentimental da

memória em suas investigações sobre a história: muito mais do que fatos ou acontecimentos

registrados nos documentos históricos, a história das mentalidades revelaria o modo de sentir

ou de pensar de um povo sobre um tema em destaque (CHARTIER, 1990).

Contudo, foi o desfazimento da crença no paradigma científico da modernidade que

reaproximou ainda mais a memória da história. O primeiro elemento indicativo desse fato foi

a reabilitação do modelo narrativo na historiografia. A historiografia marxista e a proposta da

Escola dos Annales de elaborar uma história a partir da longa duração produziriam uma 396 Ricoeur (1994, p. 145) denomina esse período de ‘eclipse da narrativa’ na historiografia: “Marc Bloch

percebeu perfeitamente que a explicação histórica consistia essencialmente na constituição de cadeias de fenômenos semelhantes e no estabelecimento de suas interações. Esse primado da análise sobre a síntese permitiu ao autor estabelecer o fenômeno da decalagem entre os aspectos assim distinguidos no fenômeno histórico global: político, econômico, artístico.”. A decalagem seria justamente a possibilidade do deslocamento temporal das partes que compõem o fenômeno histórico global a fim de produzir a análise causal histórica, capaz de suplantar a narrativa-síntese dos acontecimentos.

397 O conceito de memória coletiva será trabalhado no próximo tópico.

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historiografia voltada para análises de natureza lógicoexplicativas (REIS, 2005). No entanto,

face à impossibilidade de apresentar explicações causais verdadeiras para o encadeamento dos

acontecimentos históricos, a história viu-se diante da necessidade de repensar sua pretensão

científica de fornecer assertivas absolutas sobre a apresentação do passado398. Desse modo, a

história passou a se ver como uma forma particular de representação do passado, que se

construiria como uma das narrativas possíveis para o passado (FÉLIX, 1998). Essa narrativa

histórica não seria um modo qualquer ou aleatório de apresentar o passado, mas sim aquela

interpretação sobre o passado que buscaria colocá-lo em sua melhor luz a partir do

presente399:

A função social da representação histórica, que pretende ser realista, para Michel de Certeau, é reparar as rupturas entre o passado e o presente, assegurar um sentido que supere as violências e divisões do tempo, criar referências e valores comuns que garantam ao grupo uma unidade e uma comunicabilidade simbólica. Para ele, a história é o trabalho dos vivos para acalmar os mortos. Ela é uma imitação da presença. É um discurso que luta contra a corrupção do tempo. Essa tarefa social obriga a inclusão do presente, lugar do sujeito. A história cria a habitabilidade do presente. Ela é uma técnica particular entre várias que têm o mesmo objetivo; produzir narrativas que explicam o que se passa. Se privilegia os acidentes, é para reconstruir as rupturas com uma linguagem de sentido. A história cria uma referência comum entre separados. Diz em nome do real o que é preciso dizer, crer, fazer. Pretendendo dizer o real, ela o fabrica. Torna crível o que diz. E faz agir. Essas narrativas fabricadas produzem a história efetiva. Os poderes econômicos e políticos esforçam-se para pô-la do seu lado, para adulá-la, pagar, orientar, controlar ou manter (REIS, 2005, p. 106).

O retorno ao modelo narrativo se fez acompanhado também de uma revalorização do

tema político na historiografia400. Não se trata, contudo, do restabelecimento da narrativa

398 “A explicação causal acha-se sob duas formas principais: a explicação em termos de condições suficientes

(por que tal tipo de estado aconteceu necessariamente?); a explicação em termos de condições necessárias (como foi possível...?). A subordinação dessas duas formas de explicação causal aos outros tipos de explicação pode ser demonstrada do seguinte modo. Sejam as ruínas de uma cidade. Qual foi a causa da sua destruição: uma inundação ou uma invasão? Temos uma causa humeana – um acontecimento físico –, e um efeito humeano – outro acontecimento físico (a conquista considerada como agente físico). Mas esse fragmento de explicação causal não é, como tal, da alçada da história. Refere-se só indiretamente à história, na medida em que, por trás da causa material, esboça-se um bastidor de rivalidades políticas entre cidades e onde, além do efeito material, desenvolvem-se as consequências políticas, econômicas e culturais do desastre. É essa causa não humeana e este efeito não humeano que a explicação histórica pretende ligar.” (RICOEUR, 1994, p. 201).

399 Nota-se aqui que esse giro narrativo na história adquire o mesmo caráter interpretativo que a metodologia jurídica passou a experimentar com a abordagem de Ronald Dworkin.

400 “L’étude des lieux de mémoire se trouve ainsi à la croisée de deux mouvements qui lui donnent, en France et aujourd’hui, sa place et son sens : d’une part un mouvement purement historiographique, le moment d’un retour réflexif de l’histoire sur elle-même ; d’autre part un mouvement proprement historique, la fin d’une tradition de mémoire. Le temps des lieux, c’est ce moment précis où un immense capital que nous vivions dans l’intimité d’une mémoire disparaît pour ne plus vivre que sous le regard d’une histoire reconstituée. Approfondissement décisif du travail de l’histoire, d’un côté, avènement d’un heritage consolidé, de l’autre. Dynamique interne du principe critique, épuisement de notre cadre historique politique et mental, assez puissant encore pour que nous n’y soyons pas indifférents, assez évanescent pour ne plus s’imposer que par

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realista própria da metodologia positivista401, de caráter descritivo e avalorativo. Pelo

contrário, a retomada do modelo narrativo na historiografia se fez acompanhada da ideia de

que existe uma correlação necessária entre a atividade lógica de narrar uma história e o caráter

temporal da experiência humana (RICOEUR, 1994). Ela visa restituir, assim, o propósito da

historiografia antiga de produzir uma temporalidade propriamente humana por meio da

recordação (RIBEIRO, 1994). É o que se verifica, por exemplo, em Les Lieux de Mémoire

(1997), obra coletiva produzida sob a direção de Pierre Nora. Esse trabalho se constrói sob a

premissa de que a história dependeria da memória para exaltar e glorificar seu passado:

No âmago da história medra um criticismo destruidor da memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é a de destruí-la e reprimi-la. A história é a deslegitimização do passado vivido. No horizonte das sociedades sob história, nos limites de um mundo totalmente historicizado, haveria uma dessacralização última e definitiva. O movimento da história, a ambição histórica não são a exaltação do que é em verdade o passado, mas sim a sua negação. Sem dúvida um criticismo generalizado conservaria os museus, as medalhas, os monumentos, ou seja, o arsenal necessário a seu próprio trabalho, mas em lhes retirando aos nossos olhos, os lugares das memórias. Uma sociedade que vive integralmente sob o signo da história não conheceria, no final das contas, mais do que qualquer sociedade tradicional, os lugares em que poderia ancorar sua memória. (NORA, 1997, p. 25, tradução nossa) 402.

un retour sur les plus éclatants de ses symboles. Les deux mouvements se combinent pour nous renvoyer à la fois, et du même élan, aux instruments de base du travail historique et aux objets les plus symboliques de notre mémoire : les Archives au même titre que les Trois Couleurs, les bibliothèques, les dictionnaires et les musées au même titre que les commémorations, les fêtes, le Panthéon ou l’Arc de Triomphe ; le dictionnaire Larousse et le mur des Fédérés .” (NORA, 1997, p. 28). (Tradução nossa: “O estudo de lugares de memória se acha assim no cruzamento de dois movimentos que lhe dão, hoje e aqui em França, seu espaço e seu sentido: de um lado, um movimento puramente historiográfico, o momento de um retorno reflexivo da história siobre ele mesma: de outro, um movimento mais propriamente histórico, o fim de uma tradição de memória. O tempo dos lugares configura este momento preciso em que um imenso capital pelo qual vivíamos na intimidade de uma memória, desaparece, para se viver unicamente sob o olhar de uma história reconstituida. Aprofundamento decisivo do trabalho da história por um lado e o surgimento de uma herança consolidada, de outro. Dinâmica interna do princípio crítico, esgotamento de nosso quadro histórico, político e mental, tão potente ainda de modo a não lhe ficarmos indiferente, e tão evanescente que apenas se impõe pelo retorno sobre os mais fulgurantes de seus símbolos. Os dois movimentos se combinam para nos remeter ao mesmo tempo e no mesmo impulso, aos instrumentos de base do trabalho histórico e aos objetos os mais simbólicos de nossa memória: os Arquivos ao mesmo título que as Três Cores, as bibliotecas, dicionários e museus ao mesmo título que as comemorações, as festas, o Panteão ou o Arco do Triunfo; o dicionário Larousse e o Muro dos Federados.”).

401 “Convém assinalar que tantos retornos não implicam a restauração da escrita da história tal como a mesma se processava no século passado. Não, o positivismo não está de roupa nova. A história política que está de volta não é a mesma do século XIX, que o grupo dos Annales estigmatizou como événementielle. A história política que está de volta, ao aproximar-se da antropologia simbólica, penetra no imaginário político, procurando desvendar mitos, ritos, símbolos que a sociedade resgata e a política coloca em ação. Objetos antes ignorados são oferecidos ao historiador: cerimônias as mais variadas – posses, desfiles, funerais, celebrações, etc. A nova forma da história política estuda o uso que o presente faz do passado, evidenciando as relações entre memória e história, na trilha aberta pela escola sociológica de Emile Durkheim, tão bem absorvida por Maurice Halbwachs.” (RIBEIRO, 1994, p. 102).

402 “Au coeur de l’histoire, travaille un criticisme destructeur de mémoire spontanée. La mémoire est toujours suspecte à l’histoire, dont la mission vraie est de la détruire et de la refouler. L’histoire est délégitimation du passé vécu. À l’horizon des sociétés d’histoire, aux limites d’un monde complètement historisé, il y aurait désacralisation ultime et définitive. Le mouvement de l’histoire, l’ambition historienne ne sont pas

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Por fim, a memória se reconciliou com a história ao se tornar seu objeto de estudo. A

chamada história oral403 aprofundou a investigação da memória coletiva ao fazer da análise

dos relatos orais e das chamadas ‘histórias de vida’ uma nova forma da prática da

historiografia (LE GOFF, 2003). Na história oral, o historiador assume a tarefa de produzir

seu próprio ‘documento’: sua tarefa consiste em conduzir entrevistas com o fito de colher

relatos mnemônicos de testemunhas que presenciaram uma determinada época ou forma de

vida404. Desse modo, a história oral promove uma verdadeira revolução na historiografia

tradicional, razão pela qual Le Goff (2003) constata que, em sua origem, ela se desenvolveu

em departamentos acadêmicos separados no interior das Faculdades de História (LE GOFF,

2003).

O primeiro aspecto que se pode destacar sobre a história oral é o fato já mencionado

de que ela consiste mais numa atividade de produção de registros históricos do que na

apresentação ou explicação da história. O historiador até pode se valer do produto da história

oral para embasar ou complementar a apresentação de um determinado período histórico, mas

sua finalidade primordial seria a de constituir um ‘arquivo da memória’. Em segundo lugar, a

história oral seria um método de pesquisa que assume a subjetividade do historiador na

produção de seu objeto científico. Da pesquisa e seleção dos entrevistados, passando pela

elaboração dos roteiros, até a condução das entrevistas, a história oral não se vale da postura

metodológica que impõe o aniquilamento da subjetividade do pesquisador e defende um

radical distanciamento entre sujeito e objeto. Pelo contrário, a interferência da subjetividade

do pesquisador é assumida como inevitável e consiste em uma dificuldade encarada como um

desafio metodológico a ser controlado. Verifica-se também que a história oral é um saber com

forte inclinação para a interdisciplinariedade. Em razão da natureza de seu objeto de estudo, a

história oral com frequência recorre aos conceitos e métodos da antropologia, da psicologia

l’exaltation de ce qui s’est véritablement passé, mais sa néantisation. Sans doute un criticisme généralisé conserverait-il des musées, des médailles et des monuments, c’est-à-dire l’arsenal nécessaire à son propre travail, mais en les vidant de ce qui, à nos yeux, en fait des lieux des mémoires. Une societé qui se vivrait intégralement sous le signe de l’histoire ne connaîtrait en fin de compte, pas plus qu’une societé traditionelle, des lieux où ancrer sa mémoire”.

403 “A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas, sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida.” (DELGADO, 2010).

404 Por certo esses relatos não consistem ‘na’ história, mas são registros de testemunhos guardados na memória social sobre um determinado momento histórico (DELGADO, 2010).

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social, da sociologia, das artes e da iconografia, a fim de produzir, caracterizar e compreender

corretamente o relato memorial (DELGADO, 2010).

Entretanto, a mais importante contribuição da história oral para a relação entre história

e memória consiste em romper com a lógica ‘generalizante’ da historiografia tradicional e sua

pretensão de produzir ‘a’ história. Alternativamente, a história oral dá enfoque às leituras

particulares dos eventos e momentos da história, produzindo temporalidades múltiplas que se

formam segundo as impressões dos participantes do empreendimento de produção do registro

memoriográfico. A narrativa memorial desempenha um importante papel nesse processo, já

que permeada de esquecimentos, silêncios e ênfases. Do mesmo modo, os sentimentos e as

referências afetivas e simbólicas contribuem para a produção de percepções individualizadas

dos processos históricos coletivos:

História, tempo e memória são processos interligados. Todavia, o tempo da memória ultrapassa o tempo da vida individual e encontra-se com o tempo da História, visto que se nutre, por exemplo, de lembranças de família, música, filmes, tradições, histórias escutadas e registradas. A memória ativa é um recurso importante para transmissão de experiências consolidadas ao longo de diferentes temporalidades (DELGADO, 2010, p. 17).

Verifica-se, assim, que a leitura feita pela história do conceito de memória é marcada

pela presença dos seguintes elementos: a narratividade, o olhar seletivo e particular do

passado, a influência dos sentimentos e das afeições na reconstrução dos eventos pretéritos.

Por outro lado, a força da relação entre história e memória ficou sujeita a uma maior

permeabilidade daquela em relação a esta. Da história antiga, que conservou da memória o

modelo narrativo valorizador do tempo humano, passando pela perspectiva positivista

contrária a toda espécie de sincretismo na historiografia – e, assim, negadora da ligação

afetiva que a memória tem com o passado –, até as metodologias mais recentes da história

nova que restabeleceram o devido papel da memória e da narratividade na historiografia,

verifica-se que a relação entre história e memória é marcada por aproximações e

distanciamentos. Há que se destacar, contudo, que o reencontro da história com a memória

esteve intimamente ligado à incorporação das metodologias das ciências sociais à história. Em

especial, foi de grande valia para a história a elaboração do conceito de memória coletiva pelo

sociólogo francês Maurice Halbwachs. Na sequência da investigação proposta sobre uma

teoria geral da memória, passar-se-á a destacar como a noção de memória foi trabalhada no

interior das ciências sociais.

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5.3 A memória como objeto de investigação das ciências sociais

No interior das ciências sociais, é possível identificar duas distintas tradições de

pensamento que se dedicaram ao estudo do problema da memória social. De um lado, ter-se-

ia a corrente que identificou a memória social ou cultural com o produto simbólico da

experiência cultural da convivência do homem em grupos sociais. Para essa corrente, a

memória social teria um conteúdo, composto das lembranças-imagem socialmente

compartilhadas pelos indivíduos enquanto membros de sua coletividade. Esse quadro social

da memória figuraria como pré-condição para as lembranças individuais e determinaria o

passado digno de relevância para o grupo social, condenando ao esquecimento toda aquela

experiência que não fosse digna de uma rememoração coletiva.

De outro, a renovação metodológica das ciências sociais trazida pela teoria dos

sistemas investigou o problema da memória estritamente sob uma perspectiva funcional. Ao

invés de destacar o conteúdo da memória, a teoria dos sistemas salientaria e investigaria a

memória apenas a partir de sua função, a saber, a capacidade de inserir o sistema social na

temporalidade. Da perspectiva da teoria dos sistemas, o problema da memória não seria tanto

o da influência do passado na formação dos atos dos atores sociais que se encontram no

presente, mas o modo como o próprio sistema social administraria sua passagem do passado

em direção ao futuro.

No presente tópico, propõe-se investigar essas duas vertentes a fim de apontar em que

medida as ciências sociais foram capazes de transpor o fenômeno da memória de uma

perspectiva estritamente individual para uma abordagem social ou coletiva. Essa análise é de

grande valia para a caracterização da memória jurídica no próximo capítulo, pois se o direito,

como produto sócio-cultural, realmente possui e almeja uma memória, seu teor estará

diretamente ligado aos desdobramentos do que apontam essas duas correntes.

5.3.1 A memória como produto da experiência coletiva e cultural

A obra do sociólogo Maurice Halbwachs (1952) construiu um uso radicalmente novo

do conceito de memória nas ciências sociais e que rapidamente se incorporou aos debates da

história, da filosofia e de outros ramos das ciências humanas e sociais: trata-se do conceito de

memória coletiva, elaborado a partir da tese de que toda memória individual se construiria

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dentro de quadros socialmente definidos pelo grupo em que se insere 405. Afiliado

originariamente à Escola sociológica francesa fundada por Émile Durkheim, Halbwachs

(1952) radicalizou o conceito de consciência coletiva406 de seu mestre: ampliou a ideia de que

haveria uma forma de sentir e pensar comum à coletividade até o ponto de incluir nesse

processo social a tarefa ativa de determinar a evocação das reminiscências individuais

(DUVIGNAUD, 1990).

Halbwachs (1952) começa seu argumento em favor das bases sociais da memória

destacando o fato de que a evocação de uma lembrança nunca seria relacionada

exclusivamente aos aspectos da experiência individual de alguém. Pelo contrário, toda

lembrança seria permeada por referências a impressões e depoimentos de terceiros sobre uma

determinada experiência e que lhe foram transmitidos ao longo de sua existência. Desse

modo, a imagem que alguém forma de uma lembrança seria uma fusão indistinta entre as

memórias próprias e as de outras pessoas. Isso se daria independentemente de a pessoa estar

sozinha ou em grupo no instante da experiência rememorada, pois as impressões vindas da

coletividade chegam até os indivíduos de diversas maneiras: seja por meio das pessoas que

fazem ou fizeram parte de seus círculos sociais, seja ainda por meio das diversas mídias de

405 Apesar de inaugurada por Halbwachs e de ter rapidamente sido absorvida pelos historiadores da Escola dos

Annales, o conceito de memória coletiva ainda não goza de uma bem acabada caracterização, como se verifica na crítica de Kansteiner (2002, p. 180): “Students of collective memory are indeed pursuing a slippery phenomenon. Collective memory is not history, though it is sometimes made from similar material It is a collective phenomenon but it only manifests itself in the actions and statements of individuals. It can take hold of historically and socially remote events but it often gives privileges the interests of the contemporary. It is as much as a result of conscious manipulation and unconscious absorption and it is always mediated. And it can only be observed in roundabout ways, more through its effects than its characteristics. In essence, collective memory studies represent a new approach to that most elusive of phenomena, popular consciousness.”. (Tradução nossa: “Estudantes de memória coletiva estão, na verdade, perseguindo um fenômeno escorregadio. Memória coletiva não é história, apesar de ela ser às vezes feita de material similar. É um fenômeno coletivo, mas ela somente se manifesta nas ações e declarações de indivíduos. Ela pode fazer uso de eventos historicamente e socialmente remotos, mas ela sempre privilegia os interesses do contemporâneo. Ela é tanto quanto um resultado da manipulação consciente e absorção inconsciente e é sempre mediada. E ela somente pode ser observada de modos desviados, mais por meio de seus efeitos do que de suas características. Em essência, estudos em memória coletiva representam uma nova abordagem ao mais elusivo dos fenômenos, a consciência popular.”).

406 Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2003, p. 78) definem a consciência coletiva de Durkheim da seguinte maneira “As almas individuais agregadas geram um fenômeno sui generis, uma ‘vida psíquica de um novo gênero’. Os sentimentos que caracterizam este ser têm uma força e uma peculiaridade que aqueles puramente individuais não possuem. (...) O grupo possui, portanto, uma mentalidade que não é idêntica à dos indivíduos, e os estados de consciência coletiva são distintos dos estados de consciência individual. (...) Essa consciência comum ou coletiva corresponde ao conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma um sistema determinado que tem vida própria. Ela produz um mundo de sentimentos, de ideias, de imagens e independe das maneiras pelas quais cada um dos membros dessa sociedade venha a manifestá-la porque tem uma realidade própria e de outra natureza.”.

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conservação do passado da sociedade em que vive (literatura, pintura, música, imprensa,

cinema, etc...)407.

A impossibilidade da plena individualização da experiência da rememoração levou

Halbwachs (1952) a constatar que as bases da memória estariam no conjunto da experiência

sobre uma determinada imagem-lembrança do grupo social em que ele se insere . Sem a

presença de um vínculo coletivo – seja ele formado pela família, pelas amizades, pela

comunidade ou pela nação – que exerça a constante tarefa de alimentar o influxo de

lembranças de um determinado episódio, uma memória estaria fadada ao esquecimento.

Assim, seria condição para que uma lembrança permanecesse viva na experiência de alguém

o contato contínuo do indivíduo com o respectivo grupo social que fornece suporte para a

memória. Como visto acima, essa interação poderia se dar tanto com as pessoas físicas que

fazem parte do grupo como também com os elementos culturais que fazem parte do passado

do grupo social e que lhe são peculiares e distintivos. O importante é que o passado do

indivíduo venha a se confundir com o passado do próprio grupo408 e, dessa maneira, possa

alimentar a sobrevivência da memória em ambos. Isso ocorreria porque a ligação com as

pessoas ou com os elementos culturais que remetem o indivíduo a seu grupo social criaria um

fluxo comunicativo capaz de promover uma espécie de ‘culto da lembrança’. No trecho

abaixo, Halbwachs (1990, p. 34) explica de que modo esse culto coletivo seria responsável

por manter acesa a chama da memória no indivíduo e no grupo:

407 “Suponhamos que eu passeie só. Diremos que desse passeio eu não possa guardar senão lembranças

individuais, que não sejam senão minhas? Não obstante, passeei só somente na aparência. Passando por Westminster, pensei no que me havia sido dito por um amigo historiador (ou, o que dá no mesmo, no que havia lido sobre ela em uma história). Atravessando uma ponte, considerei o efeito de perspectiva que meu amigo pintor havia assinalado (ou que me havia surpreendido num quadro, numa gravura). Eu me dirigi, orientado pelo pensamento de meu plano. A primeira vez que fui a Londres, diante de Saint-Paul ou Mansion-House, sobre o Strand, nos arredores dos Court’s of Law, muitas impressões lembravam-me os romances de Dickens lidos em minha infância: eu passeava então com Dickens. Em todos esses momentos, em todas essas circunstâncias, não posso dizer que estava só, que refletia sozinho, já que em pensamento eu me deslocava de um tal grupo para outro, aquele que eu compunha com esse arquiteto, além deste, com aqueles, dos quais ele era o intérprete junto a mim, ou aquele pintor (e seu grupo), com o geômetra que havia desenhado esse plano, ou com um romancista. Outros homens tiveram essas lembranças em comum comigo. Muito mais, eles me ajudaram a lembrá-las: para melhor me recordar, eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das ideias e modos de pensar a que não teria chegado sozinho, e através dos quais permaneço em contato com eles.” (HALBWACHS, 1990, p. 26-27).

408 “Quando dizemos que um depoimento não nos lembrará nada se não permanecer em nosso espírito algum traço do acontecimento passado que se trata de evocar, não queremos dizer todavia que a lembrança ou que uma de suas partes devesse subsistir tal e qual em nós, mas somente que, desde o momento em que nós e as testemunhas fazíamos parte de um mesmo grupo e pensávamos em comum sob alguns aspectos, permanecemos em contato com esse grupo, e continuamos capazes de nos identificar com ele e de confundir nosso passado com o seu. Poderíamos dizer, também: é preciso que desde esse momento não tenhamos perdido o hábito nem o poder de pensar e de nos lembrar como membro do grupo do qual essa testemunha e nós mesmos fazíamos parte, isto é, colocando-se no seu ponto de vista, e usando todas as noções que são comuns a seus membros.” (HALBWACHS, 1990, p. 28-29).

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Resulta disso que a memória individual, enquanto se opõe à memória coletiva, é uma condição necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento das lembranças? De modo algum. Porque se essa primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais parte do grupo em cuja memória ela se conservava. Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam seja reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 1990, p. 34).

Além do constante influxo de informações e indicações das pessoas e elementos que

integram o grupo social, é necessário ainda que haja uma relação afetiva entre indivíduo,

impressão e coletividade a fim de que uma lembrança encontre solo fértil para prosperar no

tempo. Isso porque todo sentimento experimentado pelo indivíduo diante de uma lembrança

seria filtrado por pré-concepções de origem social responsáveis por modular a intensidade das

memórias quando de seu resgate no momento da evocação:

É assim que, quando se entra pela primeira vez em um quarto na boca da noite, quando vemos as paredes, móveis e todos os objetos mergulhados dentro de uma semi-obscuridade, essas formas fantásticas ou misteriosas permanecem nas nossas memórias como o quadro apenas real do sentimento de inquietude, de surpresa ou de tristeza que nos acompanhava no momento em que elas feriam nossos olhares. Não seria suficiente rever o quarto em pleno dia para recordá-las: seria necessário que imaginássemos ao mesmo tempo a nossa tristeza, nossa surpresa ou nossa inquietude. Era então nossa reação pessoal em presença dessas coisas que as transfigurava para nós até esse ponto? Sim, se o quisermos, mas com a condição de não esquecer que nossos sentimentos e nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais definidas; e que o efeito de contraste provinha sobretudo daquilo que procurávamos nesses objetos, não do que ali viam aqueles para quem eram familiares, mas o que se ligava às preocupações de outros homens, cujo pensamento se aplicava pela primeira vez a esse quadro conosco. (HALBWACHS, 1990, p. 35-36).

Essas constatações levaram Halbwachs (1990) a afirmar que a capacidade de

recordação somente é possível quando os indivíduos se colocam do ponto de vista dos grupos

sociais a que pertencem ou quando são capazes de se situar nas correntes do pensamento

coletivo409. Nesse sentido, toda lembrança individual estaria arraigada em uma memória

409 “É para o lado das representações coletivas que devemos nos voltar para dar conta das lógicas de coerência

que presidem a percepção do mundo. Reencontramos de modo inesperado o argumento kantiano usado em favor das estruturas da sociedade. E recaímos na noção de quadro: é nos quadros do pensamento coletivo que

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coletiva que produz sua percepção410. Na base dessa apresentação da memória coletiva de

Halbwachs (1990) estaria uma concepção ‘construtiva’ da memória segundo a qual as

impressões originárias em nada se assemelhariam ao conteúdo da evocação. A memória seria

sempre reconstruída pelo indivíduo a partir do presente e, como visto acima, em um processo

inteiramente permeado tanto pela interferência da experiência de terceiros, como também

pelos sentimentos em voga no instante da rememoração. A chamada ‘lembrança individual’

somente seria adjetivada dessa maneira em razão de uma aparência ou ilusão de que ela tem

origem no indivíduo, pois, em essência, todos seus atos recordativos se explicariam em razão

de seus vínculos com o contexto social411 (RICOEUR, 2007). Na metáfora utilizada por

Halbwachs (1990), as lembranças da memória coletiva cobririam as evocações individuais

como se aquelas fossem uma tela que dá contexto e conteúdo a estas, ainda que o indivíduo

não se aperceba desse processo.

O conceito de memória coletiva de Halbwachs foi posteriormente refinado pelo

historiador Jan Assmann (1995) de modo a ampliar a base da memória grupal para além dos

fluxos comunicativos que permitem a circulação de informações que levam à conservação da

memória. Segundo Assmann (1995), também os elementos que de algum modo consistem em

formas objetivadas de uma cultura – como é o caso de monumentos, rituais, textos e outras

mídias – possuiriam uma energia mnemônica responsável pela manutenção e conservação da

memória de um grupo social. Essa versão ampliada da memória coletiva seria a denominada

‘memória cultural’.

Segundo Assmann (1995), o defeito verificado na memória coletiva, tal como

caracterizada por Halbwachs, seria o fato de ela trazer uma perspectiva limitada do fenômeno

da memória grupal. Isso se daria pelo fato de a memória coletiva depender estritamente dos

fluxos comunicativos para sua sobrevivência, uma vez que se assentaria fundamentalmente na

encontramos os meios de evocar a sequência e o encadeamento dos objetos. Somente o pensamento coletivo consegue realizar essa operação.” (RICOEUR, 2007, p. 133).

410 “Conceder-nos-ão, talvez, que um grande número de lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outros homens; conceder-nos-ão mesmo que, quando esses homens estão materialmente presentes, se possa falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que teve lugar na vida do nosso grupo e que considerávamos; e que consideramos ainda agora, no momento em que lembramos, do ponto de vista desse grupo. Temos o direito de perguntar quem nos concede esse segundo ponto, posto que uma tal atitude mental não é possível senão junto a um homem que faz ou fez parte de uma sociedade e porque, à distância pelo menos, sofre ainda o seu impulso. Basta que não possamos pensar em tal objeto para que nos comportemos como membro de um grupo, para que a condição desse pensamento seja evidentemente a existência do grupo. É por isto que, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida durante algum tempo ‘esteve só’, segundo a linguagem comum. Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela natureza de ser social, e que em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade.” (HALBWACHS, 1990, p. 36-37).

411 “Esse defeito de percepção é a principal fonte de ilusão. Quando influências sociais se opõem e essa oposição permanece, por sua vez, desapercebida, imaginamos que nosso ato é independente de todas essas influências uma vez que não está sob a dependência exclusiva de nenhuma delas.” (RICOEUR, 2007, p. 133).

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continuidade da circulação de comunicação acerca de uma determinada lembrança. Desse

modo, sua origem estaria ligada aos modos e formas de expressão linguísticas sobre aquela

lembrança, tal como se verifica, por exemplo, nos hábitos de fala verificados no cotidiano dos

indivíduos. Assim, a memória coletiva seria adequada tão somente para investigações no

campo da história oral. Porém não se ajustaria bem a uma apresentação mais objetiva –

‘profissional’ dirá Assmann (1995) – da relação entre a memória grupal e sua história. Com

isso, a memória cultural eliminaria os elementos da falta de especialização, da desorganização

e, principalmente, da fluidez e da instabilidade que caracterizariam a memória coletiva.

Assmann (1995) identifica que a primeira causa responsável por proporcionar esses

atributos negativos à memória coletiva seria sua natureza reconstrutiva. Soma-se a isso o fato

de que, ao pertencer a diferentes grupos sociais ao mesmo tempo (familiar, comunitário,

associativo, municipal, regional, nacional), o indivíduo formaria fluxos de comunicação

concomitantemente com todos eles: reunidos, esse elementos acarretariam uma grande

interpolação entre as memórias. Outro aspecto ressaltado por Assmann (1995) que deporia

contra a viabilidade do emprego da noção de memória coletiva para o estudo da relação entre

memória grupal e história está no fato de que sua natureza comunicativa limitaria a duração

da memória coletiva no tempo. A necessidade de se reavivar a memória por influxos vindos

do grupo social colocaria em risco a permanência da lembrança por períodos superiores ao de

uma ou, no máximo, duas gerações. Tanto é assim que a história oral se concentraria nas

chamadas histórias de vida. Estas relatam apenas as impressões de uma determinada época ou

período efetivamente vivenciado pela testemunha. Daí que a memória coletiva não se

prestaria a amparar um estudo historiográfico sobre a memória grupal de gerações situadas em

um passado remoto.

Desse modo, Assmann (1995) encontrou nos estudos sobre a memória pictórica de

Aby Warburg um contraponto à memória comunicativa de Halbwachs. Aquele autor

identificou que elementos cristalizados da experiência coletiva, tais como as imagens e as

obras de arte, teriam o condão de fazer seu significado atravessar séculos. Assim, o contato

com uma obra de arte permitiria uma experiência reconstrutiva do passado para aqueles que

estão temporalmente separados da vivência originária. Tais objetivações da cultura

carregariam uma energia mnemônica responsável por esse efeito.

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A partir desse contraponto entre a memória coletiva e a memória pictórica, Assmann

(1995) funde os elementos comunicativos e objetivos de cada uma delas a fim de originar o

conceito que ele denomina de memória cultural412:

O conceito de memória cultural compreende aquele corpo de textos, imagens e rituais específicos reutilizáveis para cada sociedade específica em cada época específica, cujo cultivo serve para estabilizar e transmitir aquela auto-imagem da sociedade. Sobre tal conhecimento coletivo, de grande parte (mas não exclusivamente) proveniente do passado, cada grupo fundamenta sua consciência de unidade e particularidade. (ASSMANN, 1995, p. 132, tradução nossa). 413

Ao tomar por referência as formas objetivadas da cultura como ponto de partida para

retratar o universo da memória social de um grupo, a memória cultural teria a propriedade de

transcender a proximidade temporal própria da memória comunicativa, podendo fixar seu

horizonte em um ponto do passado mais distante em relação ao presente atual. Isso porque as

denominadas ‘figuras da memória’ cristalizariam a experiência coletiva pretérita de tal

maneira que seriam portadoras dos dados culturais de sua época. Com isso, permitiriam o

acesso a essa experiência por aqueles que as vivenciam a partir do presente. Contudo, o

caráter extraordinário dessas formas objetivadas da cultura – sejam rituais, textos, obras de

arte ou sítios geográficos – faria com que fossem perpetuadas também por meio da formação

cultural dos indivíduos que integram o grupo social e da comunicação institucional que

reforça seu valor simbólico no grupo. Com isso, essas figuras da memória formariam ilhas de

tempo – no sentido de que consistem em temporalidades suspensas do fluxo corrente do

tempo – que se expandiriam em espaços ou lugares da memória grupal, proporcionando um

elemento de retrospecção contemplativa.

Assmann (1995) identifica seis características que sintetizam o conceito de memória

cultural por ele construído: 1) a memória cultural é constitutiva da identidade do grupo social,

pois suas formas objetivas estabelecem um horizonte comum simbólico que somente adquire

412 “Yet just as Halbwachs in his treatment of the mnemonic functions of objectivized culture, Warburg does not

develop the sociological aspects of his pictorial memory. Halbwachs thematizes the nexus between memory and group, Warburg the one between memory and the language of cultural forms. Our theory of cultural memory attempts to relate all three poles - memory (the contemporized past), culture, and the group (society) - to each other.” (ASSMANN, 1995, p. 129) (Tradução: “Da mesma forma como Halbwachs, em seu tratamento das funções mnemônicas da cultura objetivada, Warburg não desenvolve os aspectos sociológicos de sua memória pictórica. Halbwachs tematiza o nexo entre memória e grupo, Warburg o nexo entre a memória e a linguagem das formas culturais. Nossa teoria da memória cultural tenta relacionar todos os três pólos – memória (o passado contemporizado), cultura e o grupo (a sociedade) – uns com os outros.”).

413 “The concept of cultural memory comprises that body of reusable texts, images, and rituals specific to each society in each epoch, whose "cultivation" serves to stabilize and convey that society's self-image. Upon such collective knowledge, for the most part (but not exclusively) of the past, each group bases its awareness of unity and particularity.”.

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sentido no seio de um determinado grupo. Assim, a memória cultural seria responsável por

criar uma relação de pertença entre o grupo e seus respectivos membros; 2) a memória

cultural é inerentemente reconstrutiva. Seus elementos objetivos consistem em uma estrutura

de referências simbólicas e de valores que permitem uma reconstrução a partir do presente. A

memória cultural será sempre uma leitura contemporânea da experiência coletiva do passado

e, nesse sentido, promoverá uma atualização desse passado; 3) a memória cultural serve à

finalidade de promover a formação cultural das gerações presentes, uma vez que transmite a

herança cultural do passado por meio de formas institucionais de educação e integração

social. Com isso, o conteúdo da memória cultural torna-se estável no seio do grupo social em

razão do culto institucional que lhe é prestado pelo grupo; 4) a memória cultural passa por um

processo de centralização ou organização no grupo social, uma vez que ou se submeteu a

alguma espécie de formalização – pode-se pensar aqui nos rituais, nas cerimônias, nas festas –

ou encontra suporte em cultores especializados – como é o caso da religião, das artes, das

práticas sociais. Ao contrário da memória coletiva, a memória cultural, portanto, não se

lastreia na informalidade da linguagem cotidiana, nem se encontra difusa na sociedade.

Depende de um reconhecimento público que lhe dá destaque em relação às percepções

informais contidas nas histórias de vida ou nos relatos testemunhais do cotidiano; 5) como a

memória cultural produz uma autoimagem normativa do grupo social, ela cria e difunde um

sistema de valores hierarquicamente escalonado em diferentes graus de importância para o

grupo social. Nesse sentido, a memória cultural seria responsável por reforçar os laços de

solidariedade interna do grupo social por meio de um apelo à identidade coletiva que une seus

indivíduos; 6) por fim, a memória cultural seria reflexiva, pois refletiria uma autoimagem que

o grupo tem de se próprio a partir de seu próprio sistema social. Essa capacidade reflexiva se

faz ainda mais importante pelo fato de que a atualização do passado é um processo em

contínuo desenvolvimento, o que promove ainda mais o autoconhecimento das características

do grupo social em relação a si próprio.

Enquanto a memória coletiva de Halbwachs – ou ainda sua posterior correção feita por

Assmann com a denominada memória cultural – enfatizou a dimensão do conteúdo da

memória que se constrói nas relações sociais para, então, derivar-lhe uma função na

sociedade, a abordagem do problema da memória social feita pela teoria dos sistemas de

Niklas Luhmann adota postura inversa. A partir da ideia de que a sociedade é uma teia de

comunicações sociais em constante evolução, Luhmann (2006) enfatiza a importância da

função da memória enquanto instrumento de inscrição do sistema social na temporalidade.

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Nessa perspectiva, a memória social seria antes uma propriedade do sistema social do que um

conteúdo do ‘passado’ da sociedade guardado na lembrança dos indivíduos que a compõem.

5.3.2 A memória como propriedade dos sistemas sociais

No segundo capítulo, fez-se uma breve introdução sobre a teoria dos sistemas de

Niklas Luhmann a fim de apontar de que maneira o tempo seria uma construção feita pelo

próprio sistema social como consequência intrínseca de sua constituição autopoiética e

recursiva. Por tal propriedade, o sistema seria chamado a uma produção constante de

comunicação. Logo, a estabilidade de um sistema social se assentaria no equilíbrio dinâmico

do sistema, por meio do qual ele permanece idêntico apesar do fervilhante e contínuo

processo de mudança que se processa em seu interior (DALLMANN, 1998).

Para tanto, o sistema não pode armazenar todas as comunicações produzidas ao longo

de sua história. Muito pelo contrário, em razão da necessidade de manutenção de um nível

operacional de sobrevivência, o sistema deve descartar a grande maioria delas a fim de

permitir que novas comunicações sejam produzidas no futuro. Essa seria uma condição de

sobrevivência do sistema:

Sistemas conscientes e sistemas sociais devem produzir sua própria decaída. Eles produzem seus elementos básicos, ou seja, pensamentos e comunicações, não como estados de curta duração, mas como eventos que desaparecem tão logo que aparecem. Eventos, também, ocupam um mínimo intervalo de tempo, um presente ínfimo, mas sua duração é uma questão de definição e tem de ser regulada pelo sistema autopoiético ele próprio: eventos não podem ser acumulados. Um sistema consciente não consiste de uma coleção de todos os seus pensamentos passados e presentes, nem um sistema social armazena todas as suas comunicações. Após um curto período de tempo, a massa de elementos se tornaria intoleravelmente larga e sua complexidade seria tão grande que o sistema seria inábil a selecionar um padrão de coordenação e produziria o caos. A solução é renunciar a toda estabilidade no nível operativo dos elementos e usar eventos apenas. Assim, a contínua dissolução do sistema torna-se uma causa necessária de sua reprodução autopoiética. O sistema se torna dinâmico em um sentido mais elementar. Ele se torna inerentemente incansável. A instabilidade dos seus elementos é a condição da sua duração (LUHMANN, 1986, p. 178, tradução nossa).414

414 “Conscious systems and social systems have to produce their own decay. They produce their basic elements,

that is, thoughts and communications, not as short-term states but as events which vanish as soon as they appear. Events, too, occupy a minimal span of time, a specious present, but their duration is a matter of definition and has to be regulated by the autopoietic system itself: events cannot be accumulated. A conscious system does not consist of a collection of all its past and present thoughts, nor does a social system stockpile all its communications. After a very short of time the mass of elements would be intolerably large and its complexity would be so great that the system would be unable to select a pattern of coordination and would produce chaos. The solution is to renounce all stability at operative level of elements and to use events only. Thereby, the continuing dissolution of the system becomes a necessary cause of its autopoietic reproduction. The system becomes dynamic in a very basic sense. It becomes inherently restless. The instability of its elements is a condition of its duration.”.

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Aqui entra em cena o papel da memória social como uma propriedade indispensável

para a permanência dos sistemas sociais. A teoria dos sistemas concebe que a cognição é uma

propriedade que não se restringe apenas aos seres humanos, mas que pode ser atribuída

também aos sistemas de um modo geral. Ela consiste na capacidade de enlaçar as novas

operações a outras produzidas anteriormente e que resultaram em uma forma de adaptação

bem sucedida do sistema a seu ambiente. Como a produção de comunicação sempre opera a

partir do presente, o sistema necessita criar uma distinção temporal entre seus próprios

estados, a partir de operações de atualização das informações autorreferentes de que dispõe.

Ele precisa checar incessantemente as operações comunicativas do passado em vista daquilo

que construiu para si como realidade, a fim de tomar decisões sobre seus próximos passos

evolutivos. Segundo Luhmann (2006, p. 457), é nisso que consiste a memória enquanto

função do sistema:

(...) a função da memória consiste em garantir os limites das possíveis provas de consistência e em liberar por sua vez capacidade de processar informação com o fim de que o sistema se abra a novas irritações. A função principal da memória reside, pois, em esquecer, em evitar que o sistema se bloqueie a si mesmo por conta de uma coagulação dos resultados das observações anteriores. (tradução nossa).415

Segundo Luhmann (1986), a memória não é, portanto, um impulso neurofisiológico ou

um estado de consciência. É a própria operação autopoiética de comunicação social, vista de

uma perspectiva temporal criada pelo sistema a partir da distinção passado / presente416. Por

meio da memória, o sistema estabeleceria uma dupla operação de recordação e de

esquecimento. De um lado, o sistema se recordaria das operações comunicativas vitais a sua

sobrevivência. Isso se dá por meio de um processo de repetição continuada da comunicação

social no interior do sistema, a fim de familiarizá-lo com essas operações – processo

denominado por Luhmann (2006) de ‘reimpregnação’ ou ‘reinforcement’. De outro,

concomitantemente, o sistema esqueceria as impressões novas, surpreendentes ou que não lhe 415 “(…) la función de la memoria consiste en garantizar los limites de las posibles pruebas de consistencia y en

liberar a la vez capacidad de procesar información con el fin de que el sistema se abra a nuevas irritaciones. La función principal de la memoria reside, pues, en olvidar, en evitar que el sistema se bloquee a sí mismo a causa de una coagulación de los resultados de observaciones anteriores”.

416 “A memória é uma função que se desenvolve quando o organismo, ou melhor, o sistema observa as relações entre os seus estados e as conecta. A memória é, então, um modus operandi que continuamente é definido e redefinido pelo modo de funcionamento do sistema e que, ao mesmo tempo, redefine este modo de funcionamento. A memória é um fenômeno coletivo que acompanha as operações do sistema. A memória permite um exame contínuo e consistente das operações do sistema. A temporalidade do sistema é produzida através da memória. Ela produz o tempo do sistema, pois, permite que ele saiba que todas as suas operações são frutos de si mesmas, ou melhor, que ele, sistema, é determinado por si mesmo.” (DE GIORGI, 2006, p. 58-59).

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são familiares a fim de não comprometer sua operacionalidade prática. Da perspectiva

sistêmica, em sua grande maioria, as comunicações existentes no sistema, se retidas, apenas

levariam a um aumento da complexidade do conjunto de informações disponíveis para o

sistema levar em consideração nos processos de tomadas de decisão417. Quanto mais

informações o sistema necessita processar, maior sua dificuldade para tomar decisões

evolutivas singulares ao longo de sua existência.

Assim, verifica-se que a memória do sistema não consiste em um ‘jogo’ com o tempo,

como se fosse possível transportar um ponto do passado ao presente. Pelo contrário, Luhmann

(2006) não contesta o fato da irreversibilidade do tempo e reconhece que as operações

comunicativas da memória ocorrem sempre na atualidade do tempo presente. Quaisquer

sejam as informações disponíveis para o sistema no presente e que o sistema construiu como

realidade de seu passado, são elas que serviram de referência para a operação comunicativa

futura. Como diz Luhmann (2006), no presente, o sistema se depara com um ‘passado

coagulado’ que lhe confere identidade suficiente a fim de promover uma comunicação bem

sucedida e, assim, ser atado a um futuro.

Assim, a memória não se refere tanto ao passado, mas à operação responsável pela

administração da distinção entre passado e futuro. Ao mesmo tempo em que a memória cria

essa distinção, ela é capaz de promover o entrelaçamento desses dois horizontes temporais

para o sistema:

O presente não é outra coisa que a distinção entre passado e futuro. Não é uma etapa territorial independente, mas tão somente aquele tempo de operação necessário para observar as distinções – seja qual for a sua perspectiva fática – nos horizontes de tempo de passado e futuro. Se a memória só pode exercitar sua função no operar atual (a dizer, unicamente no presente), isso quer dizer que tem a ver com a distinção passado / futuro, que administra dita distinção e que de nenhuma maneira opera unilateralmente com referência ao passado. Por isso pode-se dizer também: a memória controla a resistência das operações do sistema. Com suas provas de consistência fixa o que ao sistema aparece como realidade (no sentido de ‘res’) depois de haver processado essa resistência interna autoorganizada. O qual, por sua vez, quer dizer controlar a partir de que realidade o sistema mira em direção ao futuro. (LUHMANN, 2006, p. 459, tradução nossa) 418.

417 De Giorgi (2006, p. 53) se refere ao personagem Irineo Funes, do conto Funes el memorioso de Jorge Luís

Borges como metáfora para explicar em que consistiria a perda de funcionalidade operacional do sistema, caso ele fosse capaz de registrar e atualizar para o presente todas as suas experiências em sua memória: “Duas ou três vezes Ireneo reconstruíra um dia inteiro, mas, para cada reconstrução, também despendia o mesmo tempo.”.

418 “El presente no es otra cosa que la distinción entre pasado y futuro. No es una etapa territorial independiente, sino tan sólo aquel tiempo de operación necesario para observar las distinciones – sea cual fuere su perspectiva fática – en los horizontes de tiempo de pasado y futuro. Si la memoria sólo puede ejercitar su función en el operar actual (es decir, únicamente en el presente), eso quiere decir que tiene que ver con la distinción pasado / futuro; que administra dicha distinción, y que de ninguna manera opera unilateralmente con referencia al pasado. Por eso puede decir también: la memoria controla la resistencia de las operaciones

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Logo, diferentemente das abordagens vistas acima, a memória de um sistema não seria

uma fotografia do passado ou, ainda, o passado selecionado sob a forma de recordações, mas

o resultado das operações comunicativas que fazem referência à inserção do sistema na

temporalidade. Ao criar a distinção entre passado e futuro, a memória disponibiliza uma

‘realidade’ para que o sistema possa promover um entrelaçamento entre esses dois horizontes

temporais. Nesse sentido, a memória construiria a realidade temporal do sistema. Como em

toda comunicação há uma atualização de sentido para o sistema por meio da constante

reimpregnação (‘reinforcement’) de sentido comunicativamente útil (e o correspondente

esquecimento dos sentidos inúteis), a operação de comunicação social do presente seria

direcionada pelo sistema para um caminho mais adequado a sua própria adaptação em relação

ao ambiente e a sua própria sobrevivência:

Por meio da função da memória, o sistema é presente a si mesmo. Isto permite ao sistema isolar, na rede de contínuos re-envios simultâneos de modificações de estados, aquela modificação de estado que pode ser sintetizada como relevante para um novo comportamento e, consequentemente, neste momento, como estado momentaneamente capaz de conexão. Deste modo, a atemporalidade das operações é interrompida e esta interrupção constitui o tempo. Forma-se, com isto, diferença e exclusão, que serão encadeadas somente no final da interrupção. Se chamarmos esta exclusão de ‘esquecer’, veremos, então, que o tempo se forma com o ‘esquecer’, que o tempo é sempre presente e que coordenação e correlação são resultados de um processo de exclusão. Em outras palavras: a função da memória, que acompanha as operações do sistema que são relevantes para a constituição do presente, é uma função de distinção, uma função que continuamente reproduz a diferenciação entre recordar e esquecer. Recordar, todavia, não é um termo apropriado. Aquilo que o sistema recorda é o fato de que, em todas as suas operações, ele é sempre presente, é sempre presente a si mesmo, ou seja, que ele recomeça sempre de si. Neste sentido, o sistema opera como um sistema histórico, ou seja, como um sistema determinado estruturalmente, um sistema que inventa continuamente a sua própria história. Com o presente, o sistema constitui não apenas o tempo, mas também a história. Para ser mais claro: as capacidades de perceber, recordar e indicar seu fechamento não podem ser isoladas, pois constituem a totalidade do processo cognitivo, que determina a capacidade do sistema de inventar um novo comportamento. Aquilo que parece ser registro ou devolução é, na verdade, reescrito. O reescrever acontece sempre no presente. A consistência das operações é produzida caso a caso no presente. Consequentemente, o sistema está sempre adaptado às situações: o sistema inventa as situações às quais ele se adapta. (DE GIORGI, 2006, p. 59-60).

As sociedades modernas delegam à cultura esse papel de filtro responsável pela

dicotomia ‘lembrança/esquecimento’, uma vez que os registros culturais – sejam eles escritos,

artísticos, ritualísticos ou de qualquer outra espécie – formariam essa realidade do passado

del sistema. Con sus pruebas de consistencia fija lo que al sistema le aparece como ‘realidad’ (en el sentido de ‘res’) después de haber procesado esa resistencia interna autoorganizada. Lo a cual a su vez quiere decir: controlar desde que realidad el sistema mira hacia el futuro.”.

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coagulada no momento presente. A cultura levaria a cabo o processo de reimpregnação

responsável pela repetição de comunicações sociais significativamente úteis para a sociedade.

De uma perspectiva sistêmica, portanto, mudanças sociais estariam sempre relacionadas a

mudanças culturais, no sentido de que o processo de reimpregnação se direcionaria a outro

objeto ou símbolo, criando uma nova seleção da realidade para o sistema em sua operação de

memória. Quanto a esta, a cultura serviria como elemento de comparação para as decisões do

sistema, ora permitindo que a sociedade se deixe levar pelo fluxo do processo de evolução em

que se encontra, ora refreando tais mudanças.

Todavia, a evolução do sistema social levou a um processo de diferenciação funcional

interna ao próprio sistema419, responsável pela constituição de subsistemas sociais

especializados na circulação de comunicações específicas no interior da sociedade. Cada um

dos subsistemas formados no interior do sistema social consiste em um modo peculiar de

comunicação social que lhe traça identidades e, portanto, fronteiras em relação aos demais

subsistemas e ao próprio sistema total. Tal comunicação especializada consiste de códigos

simples que possuem a estrutura básica binária positivo/negativo e servem para comunicar

uma funcionalidade específica do sistema total: a religiosidade, o direito, a economia, a

política, a moral, a ciência, são apenas algumas das principais funcionalidades das sociedades

modernas. Essa especialização funcional tem por finalidade reduzir a complexidade operativa

do sistema total, aliviando-lhe o fardo de se encarregar de operações comunicativas que lhe

exigiriam muita disponibilidade. Ao permitir a formação dos códigos comunicativos que dão

origem aos subsistemas sociais, estes, por sua vez, se tornam autopoiéticos entre si e,

portanto, passam a lidar com sua própria lógica operacional fechada em relação aos demais

subsistemas. Como cada código se limita à produção de sentido específico dentro de seu

próprio subsistema, ele não produz comunicação fora de seu interior.

Dentro dessa estrutura social funcionalmente diferenciada, a cultura não conseguiria,

portanto, ser responsável por produzir, sozinha, uma memória global do sistema social. Cada

419 “La diferenciación sistémica no es, entonces, otra cosa que una construcción recursiva de un sistema, la

aplicación de la construcción sistémica a su proprio resultado. Con ésta, el sistema dentro del cual se forman otros sistemas se reconstruye a través de una ulterior distinción entre sistema-parcial y entorno. Visto desde el sistema-parcial el resto del sistema-total es ahora entorno. El sistema-total se presenta entonces ante el sistema-parcial como la unidad de la diferencia entre sistema-parcial y entorno del sistema-parcial. En otras palabras, la diferenciación sistémica genera entornos internos en el sistema.” (LUHMANN, 2006, p. 482). (Tradução: “A diferenciação sistêmica não é, então, outra coisa que uma construção recursiva de um sistema, a aplicação da construção sistêmica ao seu próprio resultado. Com esta, o sistema dentro do qual se formam outros sistemas se reconstrói através de uma distinção posterior entre sistema-parcial e entorno. Visto desde o sistema-parcial o resto do sistema-total é agora entorno. O sistema-total se apresenta então face ao sistema-parcial como a unidade da diferença entre sistema-parcial e entorno do sistema-parcial. Em outras palavras a diferenciação sistêmica gera entornos internos no sistema.”.)

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um dos subsistemas ficaria responsável por reproduzir sua própria memória, já que sua

natureza autopoiética levaria cada sistema a criar seu próprio modo de se inscrever na

temporalidade. As distinções entre passado e futuro e as operações que permitam o

entrelaçamento desses dois horizontes temporais estariam confinadas, assim, às fronteiras de

cada subsistema420.

A abordagem do problema da memória pela teoria dos sistemas abandona uma longa

tradição de estudo da memória social que enfatizou sua dimensão declarativa ou de conteúdo.

Em substituição, propôs uma análise inovadora quanto a esse tema por destacar a memória

como instrumento comportamental do indivíduo – seja ele uma pessoa humana, ou um

sistema social. E, nesse sentido, alinhou a memória social com uma noção de memória até

então apenas trabalhada pelas neurociências, mas ignorada pelas ciências humanas e sociais.

Mas entre a análise de uma e outra, o conceito de memória foi, por fim, também objeto de

reflexão pela filosofia. Acomodando os elementos de cada uma dessas disciplinas, ver-se-á,

no tópico seguinte, de que maneira a filosofia buscou dar uma explicação totalizante para esse

importante fenômeno da vida humana. Todavia, como uma análise da memória ao longo de

toda a história da filosofia exigiria um trabalho dedicado apenas a esse mister, opta-se aqui

por apresentar a análise retrospectiva de Paul Ricouer em seu A Memória, a História, o

Esquecimento como guia condutor da apresentação.

5.4 A investigação filosófica em busca de uma fenomenologia da memória

A memória sempre foi objeto de investigação e reflexão pela filosofia, desde sua

origem, com os gregos. Em linhas gerais, Paul Ricoeur (2007) sintetiza a investigação

filosófica sobre a memória como um problema relacionado à possibilidade de se representar

no presente a imagem de algo que está ausente, isto é, que não se encontra sujeito ao

imediatismo temporal das faculdades sensoriais. No curso da história da filosofia, as tradições

do empirismo e do racionalismo modernos situaram o fenômeno da memória no campo dos

sentimentos e das afecções. Isso fez da memória um fenômeno de natureza similar à

imaginação humana, considerando que ambas – memória e imaginação – nasceriam das

associações entre percepções outrora registradas na mente421. Segundo essa tradição, portanto,

420 Essa distinção entre a memória do sistema social e as memórias especializadas de cada subsistema será

particularmente importante posteriormente, uma vez que a existência de uma memória jurídica se processaria como uma função inerente ao subsistema jurídico.

421 David Hume (1911) descreve a natureza da memória – e também da imaginação – como uma impressão que uma vez esteve presente à mente e, e seguida, retorna sob a forma de uma ideia. A diferença entre elas seria

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a operação da memória não seria diferente da operação imaginativa e, por isso, as duas

estariam no mesmo plano das faculdades intelectuais da mente humana422.

Essa perspectiva ‘naturalista’ reduziu o fenômeno da memória a sua dimensão

estritamente biológica e colocou-a na condição de um saber de segundo plano porque situado

no pantanoso terreno da fantasia423. Também por essa razão, a tradição empirista não

concedeu à memória os atributos da racionalidade e da veracidade, excluindo por completo

tão somente no que diz respeito ao grau de vivacidade desse retorno. Se essa reaparição é algo intermediário entre uma ideia e uma impressão, está-se diante da memória. Se essa reaparição perdeu completamente a vivacidade, tem-se uma ideia pura e, portanto, o fenômeno é o da imaginação. Contudo, Hume salienta que é condição ontológica comum a ambas o fato de a impressão originária dessas ideias não mais estar presente à mente.

422 Novamente recorre-se a David Hume para exemplificar de que maneira, para a tradição empirista, não haveria diferença ontológica entre imaginação e memória, mas apenas um diferente grau de vivacidade entre as ideias evocadas (1911, p. 87) “When we search for the characteristic, which distinguishes the memory from the imagination, we must immediately perceive that it cannot lie in the simple ideas it presents to us; since both these faculties borrow their simple ideas from the impressions, and can never go beyond these original perceptions. These faculties are as little distinguished from each other by the arrangement of their complex ideas. For, though it be peculiar property of the memory to preserve the original order and position of its ideas, while the imagination transposes and changes them as it pleases; yet this difference is not sufficient to distinguish them in their operation, or make us know the one from the other; it being impossible to recall the past impressions, in order to compare them with our present ideas, and see whether their arrangement be exactly similar. Since therefore the memory is known, neither by the order of its complex ideas, nor the nature of its simple ones; it follows that the difference betwixt it and the imagination lies in its superior force and vivacity. A man may not indulge his fancy in feigning any past scene of adventures; nor would there be any possibility of distinguishing this from a remembrance of a like kind, were not the ideas of the imagination fainter and more obscure. (…) Since therefore the imagination can represent all the same objects that the memory can offer to us, and since those faculties are only distinguished by the different feeling of the ideas they present, it may be proper to consider what is the nature of that feeling. And here I believe everyone will readily agree with me, that the ideas of the memory are more strong and lively than those of the fancy.” (Tradução nossa: “Quando nós procuramos pela característica que distingue a memória da imaginação, nós devemos imediatamente perceber que ela não pode simplesmente restar na simples ideia que ela apresenta a nós; uma vez que ambas faculdades tomam emprestado suas ideias simples das impressões e não podem nunca ir além dessas impressões originais. Essas faculdades são menos distinguidas uma da outra pelo arranjo de suas ideias complexas. Por isso, apesar de ser uma propriedade peculiar da memória preservar a ordem e a posição original de suas ideias, enquanto a imaginação as transpõe e as modifica ao seu prazer; ainda assim essa diferença não é suficiente para distingui-las em suas operações, ou nos fazer saber quando é uma ou outra. Sendo impossível lembrar as impressões passadas, de modo a compará-las com nossas ideias presentes e ver se seu arranjo é exatamente similar. Uma vez, portanto, que a memória não é conhecida nem pela ordem de suas ideias complexas, nem pela natureza das simples, se segue que a diferença entre ela e a imaginação reside em sua superior força e vivacidade. Um homem não pode enganar com sua fantasia fingindo uma cena passada de aventuras; nem haveria qualquer possibilidade de distinção disso para uma lembrança de um tipo, não fossem as ideias da imaginação mais pálidas e mais obscuras. Uma vez, portanto, que a imaginação pode representar todos os mesmos objetos que a memória pode nos oferecer, e uma vez que tais faculdades se distinguem pelo sentimento diferente das ideias que apresentam, pode ser apropriado considerar qual é a natureza desse sentimento. E aqui eu acredito que todos irão prontamente concordar comigo, que as ideias da memória são mais vívidas e mais fortes do que aquelas da imaginação.”).

423 “Saindo da linguagem comum, uma longa tradição filosófica, que combina, de maneira surpreendente, a influência do empirismo de língua inglesa e o grande racionalismo de criação cartesiana, faz da memória uma província da imaginação, que há muito já era tratada com suspeição, como vemos em Montaigne e Pascal (...) É sob o signo da associação de ideias que está situada essa espécie de curto-circuito entre memória e imaginação: se essas duas afecções estão ligadas por contiguidade, evocar uma – portanto, imaginar – é evocar a outra, portanto, lembrar-se dela. Assim, a memória, reduzida à rememoração, opera na esteira da imaginação. Ora, a imaginação, considerada em si mesma, está na parte inferior da escala dos modos de conhecimento, na condição das afecções submetidas ao regime do encadeamento das coisas externas ao corpo humano.” (RICOEUR, 2007, p. 25).

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qualquer possibilidade de utilizá-la na fundamentação do conhecimento prático e científico. A

imprecisão da memória não seria compatível com o cânone da exatidão próprio do paradigma

da ciência moderna. Note-se como, no trecho abaixo transcrito, David Hume (1911, p. 18)

expressa seu desdém em relação à memória:

É evidente que a memória preserva a forma original em que os objetos foram apresentados e que onde quer que nós partamos dela, procede-se de algum defeito ou imperfeição dessa faculdade. Um historiador pode, talvez, para uma mais conveniente elaboração de sua narração relatar um evento antes do outro que era, em verdade, posterior, mas então, ele toma nota dessa desordem, se ele pretende ser exato e, por estes meios, substituiu a ideia em sua devida posição. É o mesmo caso em nossa lembrança desses lugares e pessoas com os quais nós fomos previamente acostumados. O exercício principal da memória não é o de preservar as ideias simples, mas a sua ordem e posição. De modo breve, esse princípio é suportado por um tal número de fenômenos vulgares e comuns que nós podemos poupar o trabalho de insistir mais adiante nisso. (Tradução nossa).424.

O trecho salienta ainda outro aspecto da desqualificação da memória pelo empirismo:

o fato de que a memória perderia seu status de fonte privilegiada de acesso ao passado. Isso

porque, as operações de associação comuns à memória e à imaginação operariam sempre a

partir do presente e em referência ao presente (RICOEUR, 2007).

Assim, contra essa corrente que desbancou a memória das categorias dignas de

consideração pelo saber em geral, Ricoeur (2007) pretende resgatar uma tradição alternativa

que lhe conferiu a devida veneração. Reconstruindo o problema original legado por Platão e

Aristóteles à modernidade, Ricoeur (2007) proporá, a partir de Bergson e Husserl, investigar a

possibilidade de uma fenomenologia dos elementos da memória capaz de apresentá-la a partir

da complexidade e da densidade que lhe é própria. Ao dissociar a memória da imaginação e

estabelecer um nexo entre memória e temporalidade, a investigação de Ricoeur (2007)

debaterá o problema original posto pelos gregos – a questão da representação do ausente a

partir do presente – de uma perspectiva bem mais profunda do que a da simples representação

da imagem sensorial.

Em Teeteto, Platão (1988, p. 71) esboça pela primeira vez o problema fundamental da

memória enquanto representação do ausente a partir do presente com a metáfora do bloco de

424 “It is evident, that the memory preserves the original form in which its objects were presented, and that

wherever we depart from it in recollecting anything, it proceeds from some defect or imperfection in that faculty. An historian may, perhaps, for the more convenient carrying on of his narration, relate an event before another to which it was in fact posterior; but then, he takes notice of this disorder, if he be exact; and, by that means, replaces the idea in its due position. It is the same case in our recollection of those places and persons, with which we were formerly acquainted. The chief exercise of the memory is not to preserve the simple ideas, but their order and position. In short, this principle is supported by such a number of common and vulgar phenomena, that we may spare ourselves the trouble of insisting on it any further.”.

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cera. Em certa altura do diálogo, Sócrates faz alusão ao fato de que a alma humana se

assemelharia a um bloco de cera que conserva as impressões apreendidas pelos sentidos da

mesma maneira que as marcas gravadas por um sinete que se inscreveria nesse bloco:

Suponhamos agora, só para argumentar, que na alma há um cunho de cera; numas pessoas maior; noutras menor; nalguns casos, de cera limpa; noutros, com impurezas, ou mais dura ou mais úmida, conforme o tipo, senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja. (...) Diremos, pois que se trata de uma dádiva de Mnemosine, mãe das Musas, e que sempre que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensado, calcamos a cera mole sobre nossas sensações ou pensamentos e nela os gravamos em relevo, como se dá com os sinetes dos anéis. Do que fica impresso, temos lembrança e conhecimento enquanto persiste a imagem; o que se apaga ou não pode ser impresso, esquecemos e ignoramos.

Nessa metáfora, a memória seria representada pela imagem que se formou no bloco

após a impressão pelo sinete. Enquanto a marca se conservar intacta no bloco, diz Platão, a

impressão permanecerá inscrita na alma humana sob a forma de uma memória. A metáfora

permite ainda caracterizar a memória como uma cópia fiel do modelo original que lhe

imprimiu o registro no bloco425. Esses dois elementos destacam o fato que, para Platão, a

memória teria um importante papel na estrutura cognitiva humana, pois consistiria no meio

privilegiado de acesso ao conhecimento de alguém ao longo de sua história. Mais ainda, a

rememoração seria o locus privilegiado dos juízos cognitivos, pois a memória seria o

mecanismo responsável pela distinção entre a verdadeira e a falsa experiência. Com base na

ideia de encaixe entre o sinete e a impressão deixada no bloco, Platão (1988, p. 71-72) ilustra

de que modo a memória seria capaz de discernir entre o verdadeiro e o falso na consciência:

O que se sabe por ter a lembrança impressa na alma, porém não se percebe, não é possível tomar por outra coisa que se sabe e de que se tenha a impressão, porém não se percebe; como também não o será tomar o que se sabe pelo que não se sabe nem possui a impressão, ou o que não se sabe, por algo que, do mesmo modo, não se sabe, ou, ainda, que o que não se sabe seja o que se sabe. Não é, também, possível, imaginar que o que se percebe realmente seja outra coisa também percebida, ou que o que se percebe seja o que não se percebe, ou o que não se percebe, o que se percebe; e o inverso: o que não se percebe seja o que se percebe. Há mais: o que se sabe e se percebe e possui a marca conforme a respectiva impressão, imaginar que seja outra coisa que se conhece e percebe e possui a marca de acordo com a impressão é ainda mais impossível do que os casos anteriores. Mais: não é possível confundir o que se sabe e percebe e de que se conserva a impressão fiel, com aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e possui impressão exata com o que se percebe, nem, ainda, o que não se sabe nem se percebe com o que não se sabe nem se percebe, como também o que não se sabe nem se percebe com o que não se percebe. Em todos esses casos é mais do que impossível, para quem quer que seja, formar opinião falsa. Os únicos casos de opinião falsa – a admitir-se essa possibilidade – seriam os seguintes (...) Os em que se tomam as coisas conhecidas

425 Note-se que o tratamento ao problema da memória segue a mesma estrutura da alegoria da caverna no par

original (perfeição) / cópia (imperfeição), inserindo no dualismo próprio de seu idealismo.

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por outras conhecidas e percebidas, ou por outras não conhecidas porém percebidas, ou, ainda, os casos de confusão entre as coisas conhecidas e percebidas e outras também conhecidas e percebidas.

Em razão da ênfase no aspecto cognitivo concedido à memória é preciso interpretá-la

à luz de outro importante diálogo platônico em que o problema do conhecimento verdadeiro

se coloca. Em O Sofista (1955) Platão enfrenta o problema da mimese enquanto forma de

distinção entre a falsa consciência e o conhecimento verdadeiro a partir da referência a duas

espécies de artes miméticas. De um lado, existiria a arte de copiar. Seu produto é a imagem

(eikon) consistente em uma cópia fiel da realidade. De outro, existiria a arte de simular uma

cópia, a fim de produzir um simulacro (phantasma) da realidade. A finalidade desta última

seria a de disfarçar o real, com vistas a produzir um efeito ilusório naqueles que o observam,

como se verifica no trecho abaixo transcrito:

ESTRANGEIRO: – Prosseguindo na divisão à maneira do que até aqui fizemos, creio perceber duas formas de mimética; e apenas ainda não me sinto capaz de descobrir em qual delas encontraremos o aspecto preciso que procuramos (...) A primeira arte que distingo na mimética é a arte de copiar. Ora, copia-se mais fielmente quando, para melhorar a imitação, transportam-se do modelo as suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade, revestindo cada uma das partes de cores que lhes convém. TEETETO: – Como? Não é assim que procuram fazer todos os que imitam? ESTRANGEIRO: – Menos aqueles, pelo menos, que devem modelar ou pintar uma obra de grandes dimensões. Se, na realidade, reproduzissem estas maravilhas em suas verdadeiras proporções, sabes que as partes superiores nos apareceriam exageradamente pequenas e as partes inferiores, muito grandes, pois, a umas vemos de perto, e a outras, de longe. (PLATÃO, 1955, p. 204-205).

Assim, tendo em vista que para Platão a memória se apresentaria como uma forma de

mimese da realidade, como mostra a metáfora do bloco de cera, ao se analisá-la a partir d’O

Sofista, verifica-se que a rememoração se colocaria diante de uma encruzilhada: seguir o

rumo da reprodução fiel, que a leva ao conhecimento verdadeiro, ou o caminho da

imaginação, que a conduz à falsa consciência.

A partir de um dualismo radical entre o caráter fantasioso da imaginação e o elogio da

memória como meio privilegiado de acesso ao conhecimento verdadeiro, a reflexão platônica

sobre a memória centra-se, assim, no problema da relação entre memória e imaginação como

critério de distinção entre a verdade e o engano. Enquanto na memória haveria uma mimese

do real devido ao fato de a recordação reconstruir fielmente a realidade na consciência426, a

imaginação se prestaria a distorcê-la a fim de produzir o engano.

426 Ricoeur (2007, p. 32) salienta, contudo, que o status de imitação-cópia atribuído à memória, à semelhança da

arte iconográfica, não descreveria corretamente o fenômeno da memória, uma vez que seu modo de se

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No entanto, se a análise platônica possui o mérito de promover a distinção entre

imaginação e memória a partir do emprego do par realidade/fantasia, ela deixa de lado a

relação inerente que existe entre memória e temporalidade. Em todo o debate platônico sobre

a questão da memória não há uma referência direta à questão do passado senão por meio da

alusão de que na memória se encontrariam os conhecimentos pretéritos adquiridos pelo

indivíduo427 (RICOEUR, 2007).

É Aristóteles quem aprofundará a relação intrínseca entre a memória e o passado por

meio da investigação do tempo como condição sine qua non para a formação de toda forma

de recordação. Essa constatação encontra-se presente desde as primeiras linhas de seu

pequeno tratado sobre o tema intitulado Sobre a memória e a reminiscência (2009), quando

afirma que a memória se refere ao passado428. Com essa assertiva, Aristóteles (2009) pretende

relacionar com o modelo original seria somente por meio da similitude. Esse fato lança um ponto de interrogação permanente sobre o estatuto veritativo da memória e que acompanhará a investigação sobre a fenomenologia da memória: “Outrossim, ao longo do debate em torno da sofística, o estatuto epistemológico e ontológico atribuído à falsidade pressupõe a possibilidade de arrancar o discurso verdadeiro à vertigem da falsidade e de seu real não-ser. Assim, ficam preservadas as possibilidades de um ícone verdadeiro. Mas, se o problema é reconhecido em sua especificidade, existe a questão de saber se a exigência de fidelidade, de veracidade, contida na noção de arte eicástica, encontra um quadro apropriado na noção de arte mimética. Dessa classificação, resulta que a relação com as marcas significantes só pode ser uma relação de similitude. Em Tempo e Narrativa explorei os recursos do conceito de mimesis e imitação-cópia. Contudo, resta a questão de saber se a problemática da similitude não constitui um obstáculo dirimente ao reconhecimento dos traços específicos que distinguem a memória da imaginação. Poderia a relação com o passado ser apenas uma variedade da mimesis? Essa confusão não deixará de nos acompanhar. Se nossa dúvida tem fundamento, existe o risco de a ideia de ‘semelhança fiel’, própria da arte eicástica, ter fornecido mais uma máscara do que uma escala na exploração da dimensão veritativa da memória.”.

427 “Façamos um primeiro balanço aporético de nossa travessia dos escritos platônicos relativos à memória. Podemos escalonar as dificuldades da seguinte maneira. A primeira diz respeito à ausência (observada de passagem) de referência expressa à marca distintiva da memória, isto é, à anterioridade das ‘marcas’, das semeia, nas quais se significam as afecções do corpo e da alma às quais a lembrança está ligada. É verdade que, muitas vezes, os tempos verbais do passado são distintamente enunciados; mas nenhuma reflexão distinta é dedicada a esses dêiticos incontestáveis.” (RICOEUR, 2007, p. 31).

428 “We must first form a true conception of these objects of memory, a point on which mistakes are often made. Now to remember the future is not possible, but this is an object of opinion or expectation (and indeed there might be actually a science of expectation, like that of divination, in which some believe); nor is there memory of the present, but only sense-perception. For by the latter we know not the future, nor the past, but the present only. But memory relates to the past. No one would say that he remembers the present when its present, e.g. a given white object at the moment when he is actually contemplating it, and has it full before its mind; of the former he would only say that he perceives it, of the latter only that he knows it. But when one has scientific knowledge, or perception, apart from the actualizations of the faculty concerned, he thus ‘remembers’ (that the angles of a triangle are together equal to two right angles); as to the former that he learned it, or thought it out for himself, as to the latter, that he heard, or saw it, or had some such sensible experience of it. For whenever one exercises the faculty of remembering, he must say within himself ‘I formerly heard (or otherwise perceived) this’, or ‘I formerly had this thought’.” (ARISTÓTELES, 2009, p. 1). (Tradução: “Nós devemos em primeiro lugar formar uma concepção verdadeira desses objetos da memória, um ponto em que erros são frequentemente cometidos. Agora lembrar o futuro não é possível, pois esse é um objeto de opinião ou expectativa (e, portanto, pode existir uma ciência da explicação, como aquela da advinhação, em que muitos acreditam); nem existe memória do presente, mas apenas percepção sensorial. Pela última nós não sabemos o futuro, nem o passado, mas apenas o presente. Mas a memória se refere ao passado. Ninguém diria que lembra o presente quando é presente, e.g., um dado objeto no momento em que ele está contemplando-o, e o tem plenamente diante de sua mente, do primeiro dir-se-ia apenas que ele o

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destacar que o elemento característico da memória é a distância temporal entre uma percepção

ou pensamento que se tem no presente e sua posterior evocação em um instante seguinte429.

Isso levará Aristóteles a conceber a memória, em linhas gerais, como um estado ou um

sentimento que se constrói em referência a outra percepção ou concepção já experimentadas

no passado:

A memória não é, portanto, nem percepção, nem concepção, mas um estado de afeição de um desses dois, condicionado pelo lapso do tempo. Como já observado, não existe algo como uma memória do presente enquanto presente, pois o presente somente é objeto da percepção, e o futuro da expectativa, mas o objeto da memória é o passado. Toda memória implica, portanto, a passagem do tempo. Consequentemente, apenas aqueles animais que percebem a lembrança e em cujo órgão eles percebem o tempo é capaz de lembrança. (ARISTÓTELES, 2009, p. 1, Tradução nossa). 430

Assim, seria um contrasenso falar em uma memória do presente ou do futuro, pois

essas dimensões temporais se relacionariam a outros sentimentos, como, respectivamente, a

percepção e a expectativa. Ainda, ao caracterizar a memória como sensação nessa primeira

etapa de sua exposição, Aristóteles viu-se às voltas com a mesma questão debatida por Platão

acerca da possível identidade entre memória e imaginação. Afinal, uma vez que a memória foi

definida como um sentimento, poder-se-ia argumentar que como a lembrança é a lembrança

de um sentimento, então a memória não seria a representação de algo ausente no presente,

mas uma sensação presente que ‘presentificaria’ a experiência passada. Essa condição da

memória lhe proporcionaria a mesma natureza da imaginação, já que eliminaria a ponte

temporal que se forma entre o momento da lembrança e o da experiência originária. À

semelhança da imaginação, ambas estariam situadas no tempo presente. No entanto, como

Aristóteles (2009) radicou a memória não apenas na alma, mas também – e principalmente –

no corpo, ele vislumbrou uma solução distinta daquela que Platão apresentara para essa

percebe, do último que ele o conhece. Mas quando alguém tem conhecimento científico ou percepção, à margem das atualizações referentes à faculdade, ele então lembra (que os ângulos de um triângulo são equivalentes a dois ângulos retos) para o primeiro, tem-se que ele aprendeu, ou pensou nisso para ele próprio; para o último que ele ouviu, viu ou teve alguma experiência sensível dele. Para quando um exercita a faculdade da lembrança, ele deve dizer consigo mesmo ‘Eu previamente ouvi (ou de outro modo percebi) isso’ ou ‘Eu previamente tive esse pensamento’.”).

429 Logo, tem-se que a memória só é possível porque o homem é capaz de experimentar a sensação da passagem do tempo. Isso leva Ricoeur (2007) a afirmar que, para Aristóteles, a memória seria co-fundadora do tempo e vice-versa, uma vez que a distinção entre o antes e o depois seria uma implicação direta da sensação de sucessividade presente na experiência temporal.

430 “Memory is, therefore, neither Perception nor Conception, but a state of affection of one of these, conditioned by lapse of time. As already observed, there is no such thing as memory of the present while present, for the present is only object of perception, and the future of expectation, but the object of memory is the past. All memory, therefore implies a time elapsed; consequently only those animals which perceive remember, and the organ whereby they perceive time is also whereby they remember.”.

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aporia. A partir da metáfora da pintura431, Ricoeur (2007, p. 36) mostra como Aristóteles traça

uma dupla condição para a memória e a caracteriza, ao mesmo tempo, como continente

(sentimento) e conteúdo (imagem):

A solução a essa aporia reside na introdução da categoria da alteridade, herdada da dialética platônica. A associação da noção de desenho, de inscrição, à noção de impressão, diríamos hoje (graphe), aponta para a solução. De fato, cabe à noção de inscrição comportar referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal. A ausência como outro da presença! Tomemos um exemplo, diz Aristóteles: a figura pintada de um animal. Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo quer em si mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma eikon (‘uma cópia’, dizem nossos dois tradutores). É possível, porque a inscrição consiste nas duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa (allou phantasma); aqui o vocabulário de Aristóteles é preciso: ele reserva o termo phantasma à inscrição enquanto ela mesma, e o termo eikon para a referência a outra coisa que não a inscrição.

431 “Granted that there is in us something like an impression or picture, why should the perception of the mere

impression be memory of something else, instead of being related to this impression alone? For when one actually remembers, this impression is what he contemplates, and this is what he perceives. How then does he remember what is not present? One might as well suppose it is possible also to see or hear which is not present. In reply we suggest that this very thing is quite conceivable, nay, actually occurs in experience. A picture painted on a panel is at once a picture and a likeness: that is, while one and the same, it is both of these, although the being of both is not the same, and one may contemplate it either as a picture, or as a likeness. Just in the same way we have to conceive that the mnemonic presentation within us is something which by itself is merely an object of contemplation, while, in-relation to something else, it is also a presentation of that other thing. In so far as it is regarded in itself, it is only an object of contemplation, or a presentation; but when considered as relative to something else, e.g. as its likeness, it is also a mnemonic token. Hence whenever the residual sensory implied by it is actualized in consciousness, if the soul perceives this in so far as it is something absolute, it appears to occur as a mere thought or presentation. But if the soul perceives it qua related to something else, then – just as when one contemplates the painting in the picture as being a likeness, and without having (at the moment) seen the actual Koriskos, contemplates it as a likeness of Koriskos, and in that case the experience involved in this contemplation of it (as relative) is different from what one has when he contemplates it simply as a painted figure – (so in the case of memory we have the analogous difference for), of the objects in the soul, the one (the unrelated object) presents itself simply as a thought, but the other (the related object) just because, as in the painting, it is a likeness, presents itself as a mnemonic token.” (ARISTÓTELES, 2009, p. 3). (Tradução nossa: “Por certo que há em nós algo como uma impressão ou imagem, porque deveria a percepção da mera impressão ser a memória de outra coisa, ao invés de ser relacionado com essa impressão sozinha? Para quando alguém atualmente lembra, essa impressão é o que ele contempla e isso é o que ele percebe. Como então ele lembra que não é presente? Alguém pode da mesma forma supor ser possível também ver ou ouvir o que não está presente. Em resposta nós sugerimos que essa mesma coisa é perfeitamente concebível, atualmente ocorre na experiência. Uma imagem pintada em um painel é ao mesmo tempo uma imagem e uma cópia: ou seja, enquanto uma e a mesma, ela é ambas, mas sendo ambas não são as mesmas e alguém pode contemplá-la seja como uma imagem, seja como uma cópia. Da mesma maneira nós temos que conceber que a representação mnemônica dentro de nós é algo que por si própria é meramente um objeto de contemplação, enquanto, em relação a outra coisa, é também uma apresentação dessa outra coisa. Assim, em relação consigo mesma, é apenas um objeto de contemplação, ou uma apresentação; mas quando considerada como relativa a outra coisa, e.g., como sua cópia, é também um objeto mnemônico. Assim em qualquer momento que o resíduo sensorial implicado por ela é atualizado na consciência, se a alma percebe isso até então como algo absoluto, ele parece ocorrer como um mero pensamento ou representação. Mas se a alma a percebe como relacionada a algo diferente, então – da mesma maneira quando alguém contempla a pintura como sendo uma cópia e sem ter (no momento) visto o atual Koriskos, a contempla como uma cópia do próprio Koriskos, e nesse caso, a experiência envolvida nessa contemplação (como relativa) é diferente do que alguém tem quando a contempla simplesmente como uma figura pintada – (mas no caso da memória nós temos a diferença análoga para) apresenta-se ela própria simplesmente como um pensamento, mas o outro (o objeto relacionado) apenas porque, como na pintura, é uma cópia, apresenta-se a si próprio como um objeto menmônico.”).

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Essa distinção entre memória como simples sensação e memória como a referência a

uma experiência ou pensamento do passado leva Aristóteles (2009) a empreender uma

classificação entre os tipos de memória, conforme o modo como se originam no indivíduo. Na

condição de simples sensação, a memória consistiria em um mero depósito de impressões e

sentimentos que são despertados na alma em razão da presença de estímulos externos

causadores de uma lembrança. Nesse sentido, a memória seria simples mneme. Ela se

caracterizaria por uma postura passiva do indivíduo em relação às causas externas que trazem

à tona as lembranças. Essa memória se distinguiria da recordação ou da rememoração,

denominada por Aristóteles de anamnesis. Esta consistiria em um mergulho ativo do

indivíduo na história pretérita de sua alma, a fim de reavivar sentimentos anteriormente

experimentados e que se encontram perdidos ou apagados na memória. É como explica

Ricoeur (2007, p. 37):

O contraste entre os dois capítulos do tratado de Aristóteles – mneme e anamnesis – é mais evidente do que o fato de pertencerem a uma só e mesma problemática. A distinção entre mneme e anamnesis apóia-se em duas características: de um lado, a simples lembrança sobrevém à maneira de uma afecção, enquanto a recordação consiste numa busca ativa. Por outro lado, a simples lembrança está sob império do agente da impressão, enquanto os movimentos e toda a sequência de mudanças que vamos relatar têm seu princípio em nós. Mas o elo entre os dois capítulos é assegurado pelo papel desempenhado pela distância temporal: o ato de se lembrar (mnemoneuein) produz-se quando transcorreu um tempo (prin khronisthenai). E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que a recordação percorre. Nesse sentido, o tempo continua sendo a aposta comum à memória-paixão e à recordação-ação (RICOEUR, 2007, p. 37).

Na anamnesis o indivíduo assumiria a condição de explorador de seu passado, apoiado

em uma faculdade interna de ‘poder buscar’, isto é, de iniciar uma cadeia de estímulos que o

leva à recordação desejada. Assim, o indivíduo torna-se o ponto de partida da busca da

lembrança presente em sua alma, a partir do momento em que define o conteúdo que deseja

recordar. A alma assumiria uma atitude ativa nessa investigação e os estímulos externos

seriam apenas auxiliares na tarefa de resgate do objeto ou da imagem experimentada no

passado:

Mas o ato da rememoração difere daquele da lembrança, não apenas cronologicamente, mas também nisso, que muitos dos outros animais (assim como os homens) têm memória, mas, de todos que nós estamos acostumados, nenhum, nós nos aventuramos a dizer, exceto o homem, compartilha da faculdade da rememoração. A causa disso é que a rememoração é um modo de inferência. Aquele que se aventura a rememorar infere o que anteriormente viu, ouviu ou teve tal experiência e o processo (pelo qual ele tem sucesso na rememoração) é uma espécie

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de investigação. Mas investigar nesse sentido pertence naturalmente apenas àqueles animais dotados da capacidade de deliberação; (o que prova o que foi dito anteriormente) pois a deliberação é uma forma de inferência. (ARISTÓTELES, 2009, p. 8, Tradução nossa) 432

Segundo Ricoeur (2007), essa distinção é de crucial importância para o problema da

memória, uma vez que levou a discussão sobre a presença do ausente inaugurada por Platão

para um nível mais profundo. Por um lado, Aristóteles introduziu a figura do tempo como

nota distintiva da memória, em contraposição à imaginação, que não pressupõe a distância

temporal, mas, pelo contrário, se resume ao instante presente. Por outro, o recurso à dupla

condição da memória – enquanto sentimento autônomo experimentado no presente, mas que

é, ao mesmo tempo, portador de uma referência a algo do passado – eliminou de seu campo

de investigação o problema da falsa consciência encontrado na metáfora do bloco de cera. Se

em Platão a memória assumiu a exagerada condição de fonte de todo o conhecimento

humano, a explicação aristotélica é menos pretensiosa e a situou em um plano mais

condizente com o que se verifica no funcionamento da memória cotidiana433.

Por enfatizar a dimensão corpórea e sentimental da memória, esse deslocamento

promovido por Aristóteles criou uma possibilidade interpretativa que culminou na perspectiva

associacionista própria do empirismo inglês. Contudo, Ricoeur (2007) vislumbra que a

referência constante à terminologia platônica e, principalmente, ao problema central da

memória enquanto representação do ausente no presente, permite concluir que a abordagem

aristotélica da memória deve ser interpretada em uma perspectiva diferente desta feita pelo

empirismo. A fim de proporcionar uma melhor leitura ao fenômeno da memória, Ricoeur

(2007) buscará no pensamento moderno – em especial em Bergson e Husserl – a tradição de

pensamento que deu continuidade à proposta platônica e aristotélica de compreender a

memória como uma importante dimensão de acesso e conhecimento do passado.

432 “But the act of recollecting differs from that of remembering, not only chronologically, but also in this, that

many also of the other animals (as well as man) have memory, but, of all that we have acquainted with, none, we venture to say, except man, shares in the faculty of recollection. The cause of this is that recollection is, as it were a mode of inference. For he who endeavors to recollect infers that he formerly saw, or heard, or had some such experience, and the process (by which he succeeds in recollecting) is, as it were, a sort of investigation. But to investigate in this way belongs naturally to those animals alone which are also endowed with the faculty of deliberation; (which prove what was said above), for deliberation is a form of inference.”.

433 “Platão abordara a dificuldade ao tomar como alvo o engano inerente a esse gênero de relação, e havia tentado, em O Sofista, distinguir duas artes miméticas, a arte fantasmática, enganadora por natureza, e a arte eicástica, suscetível de veracidade. Aristóteles parece ignorar os riscos de erro ou de ilusão ligados a uma concepção da eikon centrada na semelhança. Ao manter-se afastado das desgraças da imaginação e da memória, ele quis, talvez, pôr esses fenômenos a salvo das querelas fomentadas pela sofística, à qual reserva sua réplica e seus ataques no âmbito da Metafísica, principalmente por ocasião do problema da identidade consigo mesmo da ousia. Mas, por não ter levado em conta os graus de confiabilidade da memória, ele excluiu da discussão a noção de semelhança icônica.” (RICOUER, 2007, p. 38-39).

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Para combater a visão estreita que o empirismo reservou à noção de memória – a de

que a memória seria uma simples associação de ideias impressas na mente – a proposta de

Ricoeur (2007) é construir um estatuto fenomenológico da memória que reabilite sua

complexidade e profundidade. Segundo Ricoeur, essa tarefa partiria da caracterização da

memória a partir de sua efetuação ‘bem-sucedida’, isto é, a partir dos elementos verificados

no discurso da vida comum sobre a memória. Diferentemente de outras abordagens sobre a

memória, ela não a investigará sob o ângulo de suas patologias. Da mesma forma, não

pretende se deter diante da dificuldade polissêmica que o termo ‘memória’ envolve. Para

superar esse último desafio, Ricoeur (2007) propõe levar adiante seu empreendimento de

construir um estatuto fenomenológico da memória a partir de uma exposição fragmentada dos

diversos significados e empregos para esse termo. Cada significado não consiste em uma

unidade de sentido isolada e estranha em relação às demais, mas, pelo contrário, reunifica-se

no fio condutor, comum a todas elas, da relação temporal existente no fenômeno da memória.

O ponto de partida da fenomenologia da memória esboçada por Ricoeur (2007, p. 41)

é a compreensão do seu caráter objetal, isto é, o fato de que a memória se materializaria na

lembrança que produz:

A primeira expressão do caráter fragmentado dessa fenomenologia deve-se ao próprio caráter objetal da memória; lembramo-nos de alguma coisa. Neste sentido, seria preciso distinguir, na linguagem, a memória como visada e a lembrança como coisa visada. Dizemos a memória e as lembranças. Falando de maneira radical estamos tratando aqui de uma fenomenologia da lembrança. O grego e o latim usam, para isso, formas do particípio (genomenou, praeterita). É neste sentido que falo das ‘coisas’ passadas. Uma vez que, na memória-lembrança, o passado é distinto do presente, fica facultado à reflexão distinguir, no seio do ato de memória, a questão do ‘o que?’ da do ‘como?’ e da do ‘quem?’, de acordo com o ritmo de nossos três capítulos fenomenológicos. Em terminologia husserliana, essa distinção se dá entre a noese, que é a rememoração e o noema, que é a lembrança (RICOEUR, 2007, p. 41).

As lembranças não se encontram dispersas na consciência de maneira uniforme. Pelo

contrário, variam em grau de intensidade e de capacidade de distinção. Desse modo, as

margens de suas formas não são precisas e sua capacidade de vir à tona se dá quando ganham

destaque em um fundo memorial. Ao se formarem, as lembranças se identificam ora com

acontecimentos singulares, dignos de rememoração por seu caráter emblemático e relevante

na vida de alguém, ora com estados de coisas reavivados na memória pelo fato de terem sido,

no passado, reiteradamente inculcados pelo treino e pela repetição. Tais coisas se tornam

adquiridas pela memória e formam uma posse vitalícia acerca do conhecimento que o

indivíduo tem de seu passado.

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A fim de detalhar ainda mais sua natureza, Ricoeur (1997) empreende uma nova

especificação dos diversos elementos que constituem o universo simbólico da lembrança a

fim de decifrar a polissemia desse termo. Para tanto, recorre a pares de noções opostas que

são identificadas com a lembrança. Cada um desses pares apresenta polos contrastantes entre

si, nos moldes dos tipos-ideais weberianos, o que permite uma caracterização dos fenômenos

da memória por meio de sua comparação.

O primeiro par de elementos derivados da lembrança consiste na oposição entre hábito

e memória. Essa oposição se expressa na distinção feita por Bergson (2006) entre memória-

hábito e memória-lembrança. Ambas seriam fenômenos mnemônicos e teriam em comum o

fato de se relacionarem com o tempo pelo fato de se originarem em uma experiência adquirida

no passado434. Contudo, é possível identificar uma marcante diferença entre elas segundo o

modo como tratam a experiência do passado tal como se consolidou. Enquanto a memória-

lembrança é aquela que conserva e valoriza a lembrança em si mesma, a partir de todas as

nuances, a memória-hábito é aquela que usa o aprendizado do passado como uma ferramenta

para o indivíduo agir no presente com vistas ao futuro. Essa distinção é explicitada nas

palavras do próprio Bergson (2006, p. 88-89):

A primeira [a memória-lembrança] registraria, sob forma de imagens-lembrança, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana, à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural. Por ela se tornaria possível o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepção já experimentada; nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada. Mas toda percepção prolonga-se em ação nascente; e, à medida que as imagens, uma vez percebidas, se fixam e se alinham nessa memória, os movimentos que as continuam modificam o organismo, criam no corpo disposições novas para agir. Assim, se forma uma experiência de uma ordem bem diferente e que se deposita no corpo, uma série de mecanismos inteiramente montados, com reações cada vez mais numerosas e variadas às excitações exteriores, com réplicas prontas a um número incessantemente maior de interpelações possíveis. Tomamos consciência desses mecanismos no momento em que eles entram em jogo, e essa consciência de todo um passado de esforços armazenado no presente é ainda uma memória, mas uma memória profundamente diferente da primeira, sempre voltada para a ação, assentada no presente e considerando apenas o futuro. Esta [a memória-hábito] só reteve do passado os movimentos inteligentemente coordenados que representam seu esforço acumulado; ela reencontra esses esforços passados, não em imagens-lembranças que os recordam, mas na ordem rigorosa e no caráter sistemático com que os movimentos atuais se efetuam. A bem da verdade, ela já não nos representa

434 “Se coloco o par hábito / memória no início de nosso esboço fenomenológico, é porque ele constitui a

primeira oportunidade de aplicar ao problema da memória aquilo que chamei, desde a introdução, de conquista da distância temporal, conquistada sob o critério que podemos qualificar de gradiente de distanciamento. A operação descritiva consiste então em classificar as experiências relativas à profundidade temporal, desde aquelas em que, de algum modo, o passado adere ao presente, até aquelas em que o passado é reconhecido em sua preteridade passada.” (RICOEUR, 2007, p. 43)

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nosso passado, ela o encena; e, se ela merece ainda o nome de memória, já não é porque conserve imagens antigas, mas porque prolonga seu efeito útil até o momento presente.

Assim, a marca distintiva entre elas é o fato de que a memória-lembrança se dirigiria

ao passado por meio de uma representação pictórica da experiência pretérita, enquanto a

memória-hábito consistiria em uma ação que se processa na dimensão do tempo presente435.

Nesta última o passado se ligaria à memória de modo meramente secundário, já que a

importância dessa dimensão temporal para a memória-hábito consistiria tão somente no fato

de que o treinamento e a preparação para o enfrentamento da atividade presente ocorreu no

passado, evitando, assim, que o indivíduo necessite reaprender tudo aquilo que já vivenciou

anteriormente.

O segundo par de elementos constitutivos da lembrança consistiria na distinção entre

busca e evocação, já salientada por Aristóteles (2009) na distinção entre mneme a anamnesis,

respectivamente. A busca se relacionaria à capacidade da memória em disponibilizar ao

indivíduo os rastros mnésicos latentes em sua consciência. Seu modus operandi tem a forma

de uma reação automática da memória face à provocação de estímulos vindos do exterior.

Portanto, na busca não se verificaria um grande esforço intelectual da consciência para se

alcançar a memória buscada. As lembranças da busca são de tipo instantâneo, por se

assemelharem às sensações corporais – auditivas, sensoriais ou visuais – que originalmente

serviram de porta de entrada para essa impressão na mente. Por não contarem com nenhum

tipo de refinamento intelectual, essas lembranças instantâneas também se interpenetrariam

umas nas outras, dado que o estado bruto em que se encontram não lhes conferiria fronteiras

claramente definidas de diferenciação umas das outras (BERGSON, 2001). Na busca

evidenciar-se-ia, assim, a capacidade cognitiva da memória em sua tarefa de processamento e

disponibilização de informações que se trocam entre o exterior e a consciência, isto é,

determinaria a capacidade de saber do indivíduo.

A evocação, por sua vez, não teria como pano de fundo o conjunto das memórias

disponíveis ao indivíduo, mas, pelo contrário, direcionaria seu enfoque a memórias pontuais

que se encontram dispersas no subterrâneo da consciência. Assim, a marca da evocação seria

o emprego de um esforço ativo por parte da consciência a fim de trazer à tona uma memória

apagada ou esvanecida. Recorrendo mais uma vez a Bergson, Ricoeur (1997) cuida de

mostrar que a evocação seria um importante contraponto à leitura que o empirismo dá à

435 Essa distinção apresentada por Bergson tem respaldo na classificação feita pelas neurociências, como já visto,

entre memórias declarativas (memória-lembrança) e memórias procedimentais (memória-hábito).

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memória – ao reduzi-la a uma simples ligação mecânica entre impressões. A partir da

distinção entre a recordação instantânea acima mencionada e outra de natureza laboriosa, é

possível enxergar na evocação uma diferenciação de natureza qualitativa em relação à busca.

Em razão da diferença de grau quanto ao esforço intelectual empregado pelo espírito em uma

e outra forma de recordação, verifica-se que, apesar de pertencerem à mesma família de fatos

psíquicos, a recordação laboriosa oriunda da evocação se colocaria em um plano de

consciência gradativamente mais elevado em relação à recordação instantânea. Ao invés de se

construir a partir de sensações corpóreas, como na lembrança instantânea, a evocação se

reportaria a imagens de cunho abstrato e que se representariam por meio de palavras e frases.

Isso permitira a ordenação lógica e a justaposição de lembranças a fim de se formar a imagem

desejada. Assim, quando comparadas entre si, a distinção entre elas se salientaria de maneira

nítida. Isso fica explícito no exemplo utilizado por Bergson (2001, p. 939-940) para

demonstrar como o esforço intelectual transcende os esquemas pré-estabelecidos e já

sedimentados da lembrança instantânea em direção à construção de uma lembrança que se

configura como uma imagem:

Considere seu esforço quando você tem dificuldades para evocar uma simples lembrança. Você parte de uma representação em que percebe que existem elementos dinâmicos bem diferentes, uns mesclados aos outros. Esta implicação recíproca, e por consequência esta complicação interior, é algo bem necessário, sendo também o essencial da representação esquemática, de tal forma que o esquema poderá, mesmo sendo simples a imagem a ser evocada, apresentar-se de modo bem menos simples do que ela mesma. Não necessito ir muito longe para achar um exemplo. Há um certo tempo, quando colocava no papel o esquema deste presente artigo e me concentrava na lista dos trabalhos a consultar, eu quis incluir o nome de Prendergast, autor de quem eu vivia citando o método intuitivo e de quem havia lido publicações dentre tantas outras, relativas à memória. Mas não conseguia rememorar tal nome, nem me lembrar da obra em que o havia visto citado. Anotei as fases do trabalho em que tentava evocar o nome recalcitrante. Parti da impressão geral que me restava. Havia uma impressão de estranhamento, mas não de um estranhamento qualquer. Havia como que uma nota dominante de barbárie, de rapina, um sentimento que poderia ser o de um pássaro predador caindo sobre sua vítima, apertando-a e a levando com ela. Eu me dizia que a palavra ‘prender’, que estava mais ou menos afigurada pelas duas primeiras sílabas do nome procurado, deveria responder em boa parte pela minha impressão, mas eu não sei se essa semelhança seria suficiente para determinar uma nuance de sentimento tão precisa, e, percebendo com qual obstinação o nome de Arbogaste vem atualmente a minha mente quando penso em Prendergast, eu me pergunto se não teria fusionado a idéia genérica de ‘prender’ e o nome de Arbogaste, tendo este último me ficado de quando estudei história romana, evocando em minha memória, vagas imagens de barbárie. No entanto não posso estar seguro disto e tudo o que posso afirmar é que a impressão deixada em meu espírito era absolutamente sui generis e que ela tendia, vencendo inúmeras dificuldades, a se transformar em nome próprio. Eram principalmente as letras d e r que chegavam, por meio dessa impressão, à minha memória. Mas não eram trazidas como imagens visuais, auditivas ou mesmo motoras, todas prontas. Elas se apresentavam em especial como que a indicar uma certa direção do esforço a seguir para chegar à articulação do nome procurado. Parecia-me, de modo indevido, aliás, que tais letras deveriam ser as primeiras da palavra procurada, pois que pareciam me

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indicar um caminho. Eu me dizia que, tentando diversas vogais com ela, uma a uma, eu chegaria à primeira sílaba e, desse modo, iniciar o impulso que me levaria à palavra completa. Esse trabalho teria sucesso? Não sei dizer, mas não havia avançado muito, quando bruscamente veio-me à mente, que o nome estava citado em nota do livro de Kay sobre a educação da memória, e onde havia tomado conhecimento dele. E ali logo o fui procurar. Talvez a ressurreição repentina da lembrança necessária tenha sido apenas obra do acaso. Mas talvez também o trabalho destinado a converter o esquema em imagem tenha ultrapassado seu objetivo, evocando então, no lugar da própria imagem, as circunstâncias que anteriormente (primitivamente) a haviam enquadrado. (Tradução nossa).436

Esse esforço da recordação laboriosa consistiria não apenas em uma luta pelo resgate

de lembranças esvanecidas na memória, mas também e principalmente, um luta contra o risco

do esquecimento. A memória criaria, portanto, um dever para si que se erige na contracorrente

do fluxo normal do esquecimento biológico que lhe é inerente.

O terceiro par da fenomenologia da lembrança consiste na distinção feita por Husserl

entre retenção e reprodução ou entre lembrança primária e lembrança secundária. Como visto

no primeiro capítulo, o ponto de partida para a noção de temporalidade em Husserl decorre da

unificação das vivências no interior da consciência. Assim, o fluxo temporal pressupõe a

experiência da duração. Essa operação da consciência que mantém viva a percepção do agora

436 Analyzez votre effort quand vouz évoquez avec peine un souvenir simple. Vouz partez d’une représentation

où vouz sentez que sont donnés l’un dans l’autre des éléments dynamiques très différents. Cette implication réciproque, et par conséquent cette complication intérieure, est chose si nécessaire, elle est si bien l’essentiel de la représentation schématique, que le schème pourra, si l’image à évoquer est simple, être beaucoup moins simple qu’elle. Je n’irai pas bien loin pour en trouver un exemple. Il y a quelque temps, jetant sur le papier le plan du présent article et arrêtant la liste des travaux à consulter, je voulus inscrire le nom de Prendergast, l’auteur dont je citais tout à l’heure la méthode intuitive et dont j’avais lu autrefois les publications parmi beaucoup d’autres sur la mémoire. Mais je ne pouvais ni retrouver ce nom, ni me rappeler l’ouvrage où je l’avais d’abord vu cité. J’ai noté les phases du travail par lequel j’essayai d’évoquer le nom récalcitrant. Je partis de l’impression générale qui m’en était restée. C’était une impression d’étrangeté, mais non pas d’étrangeté indéterminée. Il y avait comme une note dominant de barbarie, de rapine, le sentiment qu’aurait pu me laisser un oiseau de proie fondant sur sa victime, la compriment dans ses serres, l’emportant avec lui. Je me dis bien maintenant que le mot prendre, qui était à peu près figuré par les deux premières syllabes du nom cherché, devait entrer pour une large part dans mon impression ; mais je ne sais si cette ressemblance aurait suffit à déterminer une nuance de sentiment aussi précise, et en voyant avec quelle obstination le non d’‹Arbogaste436› se présente aujourd’hui à mon esprit quand je pense à ‹Prendergast›, je me demande si je n’avais pas fait fusionner ensemble l’idée générale de prendre et le nom d’Arbogaste : ce dernier nom, qui m’était resté du temps où j’apprenais l’histoire romaine, évoquait dans ma mémoire de vagues images de barbaire. Pourtant je n’en suis pas sûr, et tout ce que je puis affirmer est que l’impression laissée dans mon esprit était absolument sui generis, et qu’elle tendait, à travers milles difficultés, à se transformer en nom propre. C’étaient surtout les lettres d et r qui étaient ramenées à ma mémoire par cette impression. Mais elles n’étaient pas ramenées comme des images visuelles ou auditives, ou même comme des images motrices toutes faites. Elles se présentaient surtout comme indiquant une certaine direction d’effort à suivre pour arriver à l’articulation du nom cherché. Il me semblait, à tort d’ailleurs, que ces lettres devaient être les premières du mot, justement parce qu’elles avaient l’air de me montrer un chemin. Je me disais qu’en essayant, avec elles, des diverses voyelles tour à tour, je réussirais à prononcer la première syllabe et à prendre ainsi un élan qui me transporterait jusqu’au bout du mot. Ce travail aurait-il fini par aboutir ? Je ne sais, mais il n’était pas encore très avancé quand brusquement me revint à l’esprit que le nom était cité dans une note du livre de Kay sur l’éducation de la mémoire, et que c’est là d’ailleurs que j’avais fait connaissance avec lui. C’est là que j’allai aussitôt le chercher. Peut-être la réssurection soudaine du souvenir utile fut-elle l’effet du harsard. Mais peut-être aussi le travail destiné à convertir le schéma en image avait-il dépassé le but, évoquant alors, au lieu de l’image elle-même, les circonstances qui l’avaient encadrée primitivement.”.

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260

que se escoa em direção ao passado e confere unidade aos presentes sucessivos que aparecem

de modo encadeado na sequência da experiência duradoura é denominada por Husserl de

retenção. A retenção produziria uma lembrança de natureza primária, uma vez que seu

conteúdo nunca deixou de permanecer vivo na memória. A lembrança primária retida pela

consciência guardaria a vivacidade e a intensidade da impressão original que lhe ocasionou.

Contudo, essa lembrança primária, ainda que de natureza duradoura, tende a se enfraquecer na

medida em que se distancia de seu ponto de origem, esvaindo-se gradativamente da memória.

Ricoeur (2007, p. 50-51) destaca que Husserl utiliza a metáfora da cauda de um cometa para

indicar como ocorre o escoamento de uma lembrança primária dentro da relação começar-

continuar-cessar:

O presente muda incessantemente, mas também surge incessantemente: aquilo que chamamos de acontecer. A partir daí, todo o escoamento não passa de ‘retenção de retenções’. Mas a distinção começar / durar não deixa de significar, a tal ponto que uma continuidade pode reunir-se em um ‘ponto da atualidade que se oferece em degradês retencionais’, o que Husserl gosta de comparar a uma cauda de cometa. Falamos, então, de duração passada. Esse ponto terminal é analisado mesmo em continuidade de retenções; mas, enquanto terminal, ele se dá numa ‘apreensão de agora’, núcleo da cauda de cometa (RICOEUR, 2007, p. 52-53).

A lembrança primária proveniente da retenção se contrapõe, assim, a outra forma de

lembrança que se pode denominar de secundária, que daquela se distingue por ser fruto de

uma operação de natureza diversa. Quando a retenção se extingue, a imagem conservada pela

lembrança primária desaparece da consciência. O sentimento que lhe deu origem e mantinha

vívida sua imagem na mente já não mais influencia ou estimula a consciência. A retomada

dessa memória pela consciência passa a depender, portanto, de uma operação de reprodução,

uma vez que há um lapso temporal necessário que separa o instante da rememoração e a

extinção da lembrança primária que até então se encontrava retida na consciência. A

reprodução implica, assim, um processo de re-(a)presentação da imagem original por meio do

qual a experiência passada é reconstruída pela consciência:

A reprodução supõe que a lembrança primária de um objeto temporal como a melodia ‘desapareceu’ e voltou. A retenção ainda estava presa à percepção do momento. A lembrança secundária não é absolutamente apresentação; é re-apresentação; é a mesma melodia, mas ‘quase ouvida’. A melodia há pouco ouvida ‘em pessoa’ é agora rememorada, re-(a)presentada. A própria rememoração poderá, por sua vez, ser retida na forma do que acabou de ser rememorado, reapresentado, reproduzido (...) O essencial é que o objeto temporal reproduzido não tenha mais, por assim dizer, pé na percepção. Ele se desprendeu. É realmente passado. E, contudo, ele se encadeia, faz sequência com o presente sua cauda de cometa (RICOEUR, 2007, p. 52-53)

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Por derivar de um processo de reprodução, Ricoeur (2007) salienta que a

descontinuidade da lembrança secundária levantaria a suspeita sobre em que medida a

reprodução seria, de fato, reprodução do passado e não criação imaginativa. O próprio Husserl

haveria enfrentado essa possibilidade aduzindo que a lembrança possuiria uma dimensão

posicional que não se verifica na imaginação, isto é, ela se encontraria ancorada em um

passado que ela recobre e busca reapresentar, à diferença da imaginação que não possuiria

esse lastro na realidade.

Por fim, a última polaridade apresentada por Ricoeur (2007) visando caracterizar os

elementos fenomenológicos da memória consubstancia-se no par reflexividade /

mundanidade. Diferentemente dos outros três polos, aqui não haveria uma contraposição entre

duas espécies de lembranças, mas uma única forma de se abordar esse fenômeno a partir de

ângulos distintos. O par reflexividade / mundanidade serviria, assim, de critério explicativo

para as distinções utilizadas nas três oposições vistas anteriormente: enquanto os pares

memória-hábito, busca e retenção seriam espécies de lembranças radicadas na dimensão

corporal da memória, os polos memória-lembrança, evocação e reprodução enfatizariam o

aspecto espaço-temporal da lembrança.

A memória corporal estabeleceria uma relação entre a lembrança e o ser dotado de

memória. Desde uma possibilidade de ação contida na memória-hábito, passando pelas

lembranças instantâneas que vêm imediatamente à tona quando estimuladas pelo exterior, até

a duração temporal dos sentimentos que são retidos pela consciência, a memória corporal

volta-se para a dimensão subjetiva (reflexiva) da lembrança, como explica Ricoeur (2007, p.

57):

A memória corporal pode ser ‘agida’ como todas as outras modalidades de hábito, como a de dirigir um carro que está em meu poder. Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranheza. Mas as provações, as doenças, as feridas, os traumatismos do passado levam a memória corporal a se concentrar em incidentes precisos que recorrem principalmente à memória secundária, à relembrança, e convidam a relatá-los. Sob esse aspecto, as lembranças felizes, mais especialmente eróticas, não deixam de mencionar seu lugar singular no passado decorrido, sem que seja esquecida a promessa de repetição que elas encerravam. Assim, a memória corporal é povoada de lembranças afetadas por diferentes graus de distanciamento temporal: a própria extensão do lapso de tempo decorrido pode ser percebida, sentida, na forma da saudade, da nostalgia. O momento do despertar, tão magnificamente descrito por Proust no início da Busca..., é particularmente propício ao retorno das coisas e dos seres ao lugar que a vigília lhes atribuíra no espaço e no tempo. O momento da recordação é então o do reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus da rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta para a narração.

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Já a memória dos lugares enfatizaria o trio de polos que se relacionaria aos traços

pictóricos da lembrança (memória-lembrança, evocação e reprodução). Ela permite a

localização espaço-temporal de fatos e eventos conservados pela memória, permitindo, assim,

os fenômenos da datação e da localização – tão relevantes para o caráter veritativo da história

e da geografia. A memória dos lugares salientaria, portanto, a dimensão objetiva (mundana)

da memória:

É na superfície habitável da Terra que nos lembramos de ter viajado e visitado locais memoráveis. Assim, as ‘coisas’ lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar. É de fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos ‘lugares da memória’ antes que eles se tornem uma referência para o conhecimento histórico. Esses lugares de memória funcionam principalmente à maneira dos reminders, dos indícios de recordação, ao oferecerem alternadamente um apoio à memória que falha, uma luta na luta contra o esquecimento, até mesmo uma suplementação tácita da memória morta. Os lugares ‘permanecem’ como inscrições, monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras (RICOEUR, 2007, p. 57-58).

Todavia, Ricoeur (2007) indaga como seria possível pensar em datação e localização

como fenômenos da memória sem se recair no saber das disciplinas objetivas da geometria

euclidiana e do tempo físico de índole cronológica. Essa resposta pode ser encontrada no fato

de que a consciência da sucessão seria um dado originário da consciência. A percepção e a

consciência da sucessão – que originam o ‘antes’ e o ‘depois’ – levariam a memória a se

perguntar, de modo inevitável, pelo ‘quando’, ‘há quanto tempo’ ou ‘quanto durou’ próprios

da datação – assim como a se perguntar pelo ‘onde’ da localização. Isso permitiu a formação

de toda uma tradição de investigação filosófica – de Aristóteles a Husserl – que se dispôs a

identificar e explicitar a relação entre tempo e memória.

A partir desses quatro pares, Ricoeur (2007) apresentou as bases de uma

fenomenologia da memória que se constrói em oposição à visão reducionista do empirismo

moderno. Ela responde também ao questionamento inicial colocado a Platão e Aristóteles

sobre a possibilidade de se atribuir um estatuto veritativo ao saber proveniente da memória.

Segundo Ricoeur, toda lembrança assumiria o caráter de uma imagem. Porém, nem por isso

ela seria necessariamente uma fantasia no sentido de uma criação desvinculada da realidade.

A lembrança guardaria a especificidade de se apoiar em uma coisa que se a-presenta, isto é,

que se atualiza e traz para o presente um dado da realidade outrora vivenciado como uma

experiência do passado. A imagem derivada da fantasia se distinguiria da lembrança

justamente por não possuir esse lastro em uma coisa ou experiência da realidade. Assim,

Ricoeur (2007) pôde, ao final, afirmar que ainda que a lembrança seja uma imagem, a

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recíproca não é necessariamente verdadeira, uma vez que as imagens podem ou não assumir

esse modo de representação de uma experiência passada da realidade.

Para encerrar o capítulo e o debate sobre as características gerais da ideia de memória,

propõe-se, assim, a apresentação de uma síntese com as conclusões até então produzidas, a

fim de se extrair os elementos que imprimem o significado da memória no conhecimento

contemporâneo.

5.5 Traços gerais do conceito de memória e síntese do capítulo

Após repassar em tela os traços gerais do conceito de memória encontrados nas

disciplinas do saber humano que se valem dessa noção em suas análises e teorias, pode-se

concluir o capítulo com uma síntese das características do conceito de memória. Como já dito,

essa síntese será útil para que, no capítulo seguinte, se identique de que modo é possível se

falar em uma memória jurídica e qual a sua importância para a compreensão da teoria e da

prática jurídica.

5.5.1 A memória como elemento de conexão entre o indivíduo e a temporalidade

A primeira característica que se verifica no estudo empreendido sobre a noção de

memória é o fato de que ela consiste na propriedade ou função que promove a conexão entre o

indivíduo e a temporalidade. Muito mais do que simplesmente conservar o passado, a

memória realiza a interligação entre as dimensões do passado, presente e futuro. E justamente

por ser esse ponto de interconexão entre as três dimensões temporais, a memória promoveria

uma relação equilibrada do indivíduo com a temporalidade que se desenvolve sem privilegiar

uma dimensão em detrimento das demais. Nessa tarefa, o esquecimento tem um papel

extremamente importante: é por meio do esquecimento que se elimina o conteúdo

desnecessário ou irrelevante da experiência do passado. Assim, conserva-se na memória

apenas a informação que o indivíduo utilizará em sua caminhada em direção ao futuro.

No âmbito das neurociências verificou-se, por exemplo, que a memória biológica é

responsável por atualizar a experiência individual do passado e trazer para o presente as

lembranças e habilidades que o indivíduo registrou como relevantes em sua história. Contudo,

a memória condicionaria, ainda, o futuro vindouro pelo fato de que somente aquilo que se

encontra disponível na memória consistirá na informação que ele terá a sua mão nos

processos de ação e de tomada de decisões que ocorrem a cada instante. Em uma leitura

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similar, a teoria dos sistemas transporta essa propriedade da memória biológica para a

sociedade como um todo. Ao reconhecer a memória social como a função pela qual a

sociedade produz comunicação destinada a conservar a experiência marcante do passado,

criando, assim, a distância temporal entre o presente e o passado. Da mesma forma, o

esquecimento atua no sentido de não permitir o acúmulo de novas comunicações irrelevantes

para o sistema social. Ele as descarta a fim de reduzir a complexidade nas decisões que

operam a partir do presente. A memória formaria, assim, o campo das comunicações possíveis

enquanto realidade construída pelo sistema sobre seu passado.

5.5.2 A memória é a propriedade pela qual os indivíduos constituem sua identidade

Ao se afirmar que os indivíduos são aquilo que eles lembram, salienta-se a dimensão

da memória pela qual se verifica que é o conjunto das lembranças que produz os traços que

definem a identidade de uma individualidade. Ao se analisar essa afirmativa a partir da

premissa de que as bases da memória individual se encontram radicadas na coletividade em

que o indivíduo se insere – como afirma Halbwachs – ou na cultura objetivada desse grupo –

como afirma Assmann – tem-se que a identidade individual está intimamente ligada ao

conteúdo da memória proveniente da memória social.

Desse modo, a memória exerceria um importante papel social de aumentar a

solidariedade entre os indivíduos que vivem no mesmo grupo social. A existência de uma

memória social que insere os indivíduos em uma tradição responsável por compartilhar

valores e símbolos sociais comuns acarretaria um reforço do laço social que une os indivíduos

em sociedade. Esse efeito seria decorrente do reconhecimento da existência de uma história

comum, permeada por sentimentos, dramas, sofrimentos e glórias coletivamente vivenciados,

o que levaria a uma disposição natural de ajuda e respeito recíprocos entre os indivíduos que

pertencem a uma mesma tradição cultural conservada pela memória social.

Da mesma sorte, quando a história empreende o estudo das mentalidades, sua proposta

é a de comparar as ferramentas conceituais empregadas no presente em relação ao modo

como essa mesma coletividade compreendia um determinado conceito ou ideia no passado.

Com isso, a proposta da história seria desvendar a evolução da coletividade no tempo e

apresentar os processos de mudança social que implicaram em mudanças em sua própria

identidade.

5.5.3 A memória organiza a experiência de forma narrativa

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Ao caracterizar a memória, um dos traços salientado pelas neurociências é o fato de

que ela opera de maneira seletiva. A organização das lembranças no sistema nervoso se dá por

meio de uma seleção das imagens que serão conservadas e esquecidas conforme sua

pertinência e relevância para o organismo. Opera-se, assim, uma síntese configurante da

experiência do passado que a organiza segundo uma trama que destaca os elementos positivos

ou úteis para a experiência futura e descarta os desnecessários ou paralisantes. Tem-se assim,

que a organização da memória nos seres humanos adquire uma forma narrativa, uma vez que

é possível identificar que a constituição da memória possui um fio condutor responsável por

alinhar a experiência temporalmente em uma estória marcada por episódios e acontecimentos.

Da mesma maneira, a história herdou da memória étnica esse traço que organiza a

experiência histórica do passado em uma trama narrativa que seleciona os episódios dignos de

relevância para o grupo social, por se tratarem de exemplos de virtude política para o grupo

social. Muito embora a historiografia produzida sob os auspícios do paradigma cientificista da

modernidade tenha identificado a narrativa antiga com o subjetivismo que marcaria a

historiografia dos primeiros historiadores, a narrativa nunca abandonou a história por

completo: da narrativa realista à narrativa configurante que se processaria no interior da

História Nova, passando pela narração que acompanha as histórias de vida. Assim, a presença

– explícita ou implícita – da narratividade na historiografia indicaria a presença de um traço

memorial em seu relato do passado.

Reunidas as características da memória enquanto fenômeno e conceito geral

empregado pelo saber humano, é possível agora verificar de que maneira a noção de memória

pode ser empregada pelo saber jurídico. A proposta é, principalmente, a de avaliar os

benefícios para a teoria e para a prática do direito de se realizar uma leitura do direito a partir

dessa noção. Em especial, verificar-se-á em que medida a presença dessas três características

gerais da memória permitiriam solucionar o problema do desequilíbrio da relação entre tempo

e direito que uma leitura positivista do direito trouxe à teoria e à prática jurídica.

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6 A MEMÓRIA JURÍDICA E A SUPERAÇÃO DA AMNÉSIA DO DI REITO

No capítulo que se inicia pretende-se apresentar de que maneira as três características

gerais da memória apresentadas no capítulo anterior, demonstrar como cada um deles

influenciaram a literatura pós-positivista na construção da noção de memória jurídica. O que

se pretende demonstrar é que cada um dos conceitos de memória jurídica que serão expostos

ao longo do capítulo enfatizou um aspecto da noção geral de memória supramencionada. Com

isso, pode-se afirmar inicialmente que a memória jurídica é um conceito poliédrico, isto é, que

possui três distintas faces conforme o ângulo do observador que o analisa.

A primeira abordagem à memória jurídica a investigará enquanto uma propriedade do

subsistema social do direito, conforme se verifica na abordagem da teoria dos sistemas

delineada por Niklas Luhmann e posteriormente desenvolvida por Rafaelle De Giorgi. Trata-

se, aqui, da vertente da memória jurídica responsável por efetuar a conexão entre o direito e o

tempo por meio da construção social da temporalidade feita no interior do sistema jurídico.

Em segundo lugar, vislumbrar-se-á a memória jurídica também a consolidação dos registros

da experiência jurídica passada, enquanto dados culturais que permitem a reconstituição do

passado do direito. A memória jurídica consiste aqui no elemento de integração cultural da

sociedade sob a forma de memória coletiva ou cultural, responsável por forjar uma identidade

coletiva para o grupo social. Por fim, a memória jurídica consiste também na metanarrativa

intrínseca à interpretação jurídica que, no desenrolar de sua tarefa, inevitavelmente lança um

olhar sobre a sua própria evolução a fim de situar temporalmente o intérprete nos processos de

tomada de decisão. A partir da apresentação da interpretação jurídica feita por Ronald

Dworkin, explorar-se-á de que maneira a compreensão narrativa da evolução da interpretação

jurídica produz uma trama semelhante à organização da experiência pela memória. Para

auxiliar na demonstração do caráter narrativo da interpretação jurídica, recorrer-se-á ao

trabalho de Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa a fim de apresentar como os elementos que

compõem o discurso narrativo se encontram presentes no produto do conhecimento jurídico.

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6.1 A memória como função do subsistema social do direito

6.1.1 O direito como um subsistema da sociedade

Nos capítulos anteriores fez-se uma breve apresentação da teoria dos sistemas de

Niklas Luhmann (2006) enquanto modelo de compreensão da sociedade e de explicação de

sua dinâmica. Viu-se que essa teoria concebe a sociedade como um sistema social formado

por comunicações recursivas produzidas em seu interior que se reproduzem de maneira

autopoiética – isto é, tendo como referência unicamente as próprias operações que dão

constituição ao sistema. Viu-se ainda que a evolução do sistema da sociedade é acompanhada

de um processo de diferenciação funcional responsável por formar subsistemas ou sistema

parciais e que observariam a mesma lógica sistêmica autopoiética de reprodução da sociedade

em seu interior: os subsistemas sociais também seriam formados a partir de operações

comunicativas recursivas, porém seriam caracterizados por uma distinção especial. Nos

subsistemas sociais, as operações comunicativas tomariam a forma de códigos linguísticos

binários voltados à produção de comunicação social com finalidades específicas na sociedade.

Essas funções consistiriam em, por exemplo, definir o senso de estética, traçar recomendações

no âmbito econômico, estabelecer valores morais, informar regras de conduta etc... Cada

conjunto de operações comunicativas destinada à realização de cada uma dessas funções

sociais originaria um subsistema social que se reproduzira a partir de si próprio e

enclausurado em si mesmo. As comunicações produzidas em um subsistema não teriam

‘entrada’ (input) no interior dos demais sistemas (LUHMANN, 2006). E não sofreriam,

portanto, interferência de nenhuma forma de comunicação proveniente dos outros

subsistemas, nem da sociedade como um todo. Assim, cada subsistema também se

reproduziria de maneira autopoiética e não se relacionaria com os demais subsistemas, exceto

enxergando-os como seu ‘ambiente’, isto é, como seu entorno437.

Um desses subsistemas sociais é o direito. A teoria dos sistemas rompe com a

definição convencional feita pela teoria jurídica de que o direito seria um conjunto de normas

437 O caráter fechado, ou seja, autopoiético, do sistema jurídico não significa que ele se encontre isolado do

restante do seu entorno, isto é, os demais subsistemas parciais, mas apenas que as operações de comunicação social produzidas no interior do subsistema jurídico não são determinadas pelas comunicações dos demais subsistemas. Há, contudo, uma ‘ordem de ruído’ por meio da qual o subsistema jurídico aprende com as irritações provocadas pelo seu exterior e promove formas adaptativas de comunicação social no sentido de promover a estabilização do próprio subsistema jurídico e da sociedade como um todo (LUHMANN, 2003).

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ou regras de comportamento (LUHMANN, 2003)438. De sua perspectiva, o direito seria um

subsistema social e, por essa condição, sua constituição teria origem na teia de operações

comunicativas que permitem a constituição do significado social do que é o ‘jurídico’439.

438 “Por lo general las teorías del derecho se remiten a estructuras jurídicas (reglas, normas, textos) que pueden

ser clasificadas como derecho. Esto es válido sobre todo para la teorías del derecho positivo, por ejemplo para las "rules of recognition" en la teoría del derecho de Hart.

De aquí que la pregunta de qué es el derecho y qué no es, se plantea sólo en vistas de reglas específicas. Si se quiere, en cambio, experimentar con los estímulos contenidos en la teoría de sistemas, se debe operar una innovación y pensar en operaciones en vez de pensar en estructuras.

El punto de partida consiste, entonces, en reflexionar cómo las operaciones producen la diferencia entre sistema y entorno, y que esta diferencia requiera necesariamente de recursividad para que las operaciones puedan reconocer el tipo de operaciones que les pertenecen (y excluir las que no). Las estructuras, como enlazamientos altamente selectivos, son necesarias para que se lleven a cabo las operaciones, pero el derecho no adquiere realidad por alguna idealidad estable, sino finalmente por aquellas operaciones que producen y reproducen el sentido específico del derecho. Adicionalmente partimos de que estas operaciones deben siempre pertenecer al sistema de derecho (y naturalmente que pueden ser observadas desde fuera).” (LUHMANN, 2003, p.27). (Tradução nossa: Em geral, as teorias do direito remetem a estruturas jurídicas (regras, normas, textos) que podem ser classificadas como direito. Isto é válido, sobretudo, para as teorias do direito positivo, por exemplo, para as regras de reconhecimento na teoria do direito de Hart. Daí que a pergunta do que é e o que não é o direito, se formula só em vista de regras específicas. Se se quer, em troca, experimentar com os estímulos contidos na teoria dos sistemas, se deve operar uma inovação e pensar em operações ao invés de estruturas. O ponto de partida consiste, então, em refletir como as operações produzem a diferença entre sistema e entorno e que esta diferença requer necessariamente recursividade para que as operações possam reconhecer o tipo de operações que lhes pertencem (e excluir as que não). As estruturas, como enlaçamentos altamente seletivos, são necessárias para que se levem a cabo as operações, mas o direito não adquire realidade por alguma idealidade estável, senão finalmente por aquelas operações que produzem e reproduzem o sentido específico de direito (e naturalmente que podem ser observadas de fora).”).

439 Luhmann (2003) reconhece que as normas e regras estatais fornecem o substrato que orienta os atores sociais em relação ao conteúdo do direito. No entanto, as normas não se confundiriam com as efetivas operações de comunicação social que estabelecem a distinção entre o jurídico e o não-jurídico. Em verdade, é somente a partir de um olhar de conjunto para a totalidade das operações que se refere à produção de sentido jurídico que seria possível traçar a fronteira entre o subsistema social do direito e o seu ambiente, isto é, entre o restante da sociedade e os demais subsistemas sociais, como a economia, a religião, a moral, a arte, a política, etc..., como explica Luhmann (2003, p. 40-41): “La especificación de la función delimita aquello que entra en consideración como operación del sistema. La función se refiere a las operaciones del sistema y se le reconoce por el hecho de que las operaciones se orientan por las normas. La codificación binaria se refiere a una observación de las operaciones del sistema y se le reconoce por la circunstancia de que adjudica valores: conforme con el derecho/no conforme con el derecho. Esta diferenciación parece artificial, pero es una artificialidad que se origina dentro del sistema mismo: obsérvese la circularidad de la argumentación. Con la normatividad sólo se establece que determinadas expectativas, aunque no se cumplan, siguen siendo válidas como expectativas. En ello radica ya una directiva de diferenciación según el esquema expectativa / decepción. Hasta aquí, cada una de las operaciones del sistema jurídico es ya una observación orientada por la forma de la diferenciación. Las operaciones del sistema no aceptan lo que simplemente sucede. Con todo, únicamente la observación de esta observación, la valoración en concordancia con el esquema conforme a derecho / no conforme a derecho, es la que atribuye la intención obstinada y contrafáctica de las expectativas al derecho. Podemos decir también: lo que no se puede ordenar bajo el esquema de control conforme a derecho/no conforme a derecho, no pertenece al sistema jurídico, sino a su entorno social: interno o externo. Clausurado en su operación, presupone que el sistema opera en el nivel de la observación de segundo orden: no sólo ocasionalmente, sino siempre. Todas las operaciones, incluyendo la discriminación primaria y la discriminación de las decepciones de las expectativas, se controlan desde este nivel.”. (Tradução nossa: “A especificação da função delimita aquilo que entra em consideração como operação do sistema. A função se refere às operações do sistema e se reconhece pelo fato de que as operações se orientam pelas normas. A codificação binária se refere a uma observação das operações do sistema e se reconhece pela circunstância de que adjudica valores: conforme o direito / contrário ao direito. Esta diferenciação parece artificial, mas é uma artificialidade que se origina dentro do sistema mesmo: observe-se a circularidade da argumentação. Com a normatividade só se estabelece que determinadas expectativas, ainda que não se cumpram, seguem sendo válidas como expectativas. Nisto radica já uma diretiva de diferenciação segundo o esquema expectativa /

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Essas operações se fariam por meio do emprego de um código binário que distingue aquilo

que é ‘conforme o direito’ daquilo que ‘não é conforme o direito’ (rechtmässig /

unrechtmässig)440.

Dentro do processo de diferenciação funcional acima mencionado, a finalidade do

subsistema jurídico consiste em lidar com a crescente complexidade e contingência441

próprias de um sistema social em permanente evolução. Esses dois fatores têm a propriedade

de incrementar o risco normal existente nas interações sociais, aumentando, com isso, a

ameaça ao funcionamento global do sistema. Por essa razão, faz-se preciso a constituição de

operações comunicativas que se especializam funcionalmente para atender duas importantes

necessidades do sistema social: reduzir a complexidade social e estabilizar as expectativas de

comportamentos dos indivíduos em relação a si próprios e aos demais, reduzindo, assim os

riscos da contingência (LUHMANN, 1983).

A contingência que se verifica no convívio social é de natureza mais complexa do que

aquela que se verifica nos sistemas psíquicos, por exemplo. Trata-se de uma contingência de

decepção. Até aqui, cada uma das operações do sistema já é uma observação orientada pela forma da diferenciação. As operações do sistema não aceitam o que simplesmente se sucede. Contudo, unicamente a observação desta observação, a valoração em concordância com o esquema conforme o direito / contrário ao direito é a que atribui a intenção obstinada e contrafática das expectativas ao direito. Podemos dizer também: o que não se pode ordenar sob o esquema de controle conforme o direito / contrário ao direito, não pertence ao sistema jurídico e sim ao entorno social: interno ou externo. Fechado em sua operação, pressupõe que o sistema opera no nível da observação de segunda ordem: não só ocasionalmente, mas sim sempre. Todas as operações, incluindo a discriminação primária e a discriminação das decepções das expectativas, se controlam desde este nível.”).

440 “Si un jurista quiere reconocer si una comunicación pertenece o no al sistema jurídico, debe comprobar si dicha comunicación se ordena dentro de lo que es conforme (o discrepante) con el derecho, por consiguiente si entra en el dominio del código del derecho. Sólo estos dos logros, función y código, tomados conjuntamente, producen el efecto de que se puedan diferenciar las operaciones específicamente jurídicas y que se puedan reproducir a partir de ellas mismas, con márgenes de error marginales.” (LUHMANN, 2003, p. 40). (Tradução nossa: “Se um jurista quer reconhecer se uma comunicação pertence ou não ao sistema jurídico, deve comprovar se dita comunicação se ordena dentro do que é conforme (ou discrepante) com o direito, por conseguinte, se entra no domínio do código do direito. Só estes dois resultados, função e código, tomados conjuntamente, produzem o efeito de que se podem diferenciar as operações especificamente jurídicas e que se podem reproduzir a partir delas mesmas, com margens de erro marginais.”).

441 Para Luhmann (1983, p. 45-46), a complexidade crescente de um sistema social decorre do fato de que o processo evolutivo amplia cada vez mais a gama de possibilidades de sua auto-realização por disponibilizar ao homem um leque cada vez mais amplo de possibilidades de comportamento humano. Já a contingência para Luhmann se refere possibilidade ou não de efetivação das expectativas que a sociedade tem de ocorrerem em seu interior: “O homem vive em um mundo constituído sensorialmente, cuja relevância não é inequivocamente definida através do seu organismo. Desta forma o mundo apresenta ao homem uma multiplicidade de possíveis experiências e ações, em contraposição ao seu limitado potencial em termos de percepção, assimilação de informação, e ação atual e consciente. Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, intangível, ou algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não está mais lá. Em termos prático, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos.”.

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dupla natureza, já que se manifesta tanto no indivíduo, como no seu ‘outro’, que é o membro

da sociedade com quem ele se relaciona na interação social. De um lado, há contingência no

fato de o sujeito se perceber como parte integrante do mundo social e, portanto, possuir uma

gama de possibilidades de realização de suas próprias ações. Cada indivíduo sabe que suas

ações podem ou não ocorrer segundo as expectativas sociais e isso é um fator de incerteza

para ele próprio. Trata-se de uma contingência simples442, que pode ser contornada por meio

da construção de estruturas de expectativas decorrentes da cognição humana e de sua

capacidade de formular inferências (LUHMANN, 1983).

Contudo, o comportamento do ‘outro’ também é marcado pela contingência, isto é,

por poder ou não ocorrer conforme a expectativa social lançada sobre ele. Logo, as interações

sociais são marcadas pelo fato de cada sujeito precisar lidar tanto com a contingência do seu

comportamento, quanto com a contingência dos demais membros da sociedade. Essa dupla

contingência que surge do convívio social exige uma estrutura de estabilização de

expectativas mais complexa do que aquela necessária para estabilizar a contingência simples.

É preciso que cada indivíduo seja capaz de formular uma expectativa sobre a expectativa que

os demais têm dele próprio. É como Luhmann (1983, p. 47-48) descreve esse processo:

A vista da liberdade de comportamento dos outros homens são maiores os riscos e também a complexidade do âmbito das expectativas. Consequentemente, as estruturas de expectativas têm que ser construídas de forma mais complexa e variável. O comportamento do outro não pode ser tomado como fato determinado, ele tem que ser expectável em sua seletividade, como seleção entre outras possibilidades do outro. Essa seletividade, porém, é comandada pelas estruturas de expectativas do outro. Para encontrar soluções bem integráveis, confiáveis, é necessário que se possa ter expectativas não só sobre o comportamento, mas sobre as próprias expectativas do outro. Para o controle de uma complexão de interações sociais não é necessário que cada um experimente, mas também que cada um que cada um possa ter uma expectativa sobre uma expectativa que o outro tem dele.

442 Conhecendo-se a si próprio, Luhmann (1983, p. 46) afirma que o indivíduo constrói um ‘padrão’ de

comportamento que o ‘imuniza’ em relação em relação aos eventuais a desapontamentos fáticos: “Sobre essa situação existencial desenvolvem-se estruturas correspondentes de assimilação da experiência, que absorvem e controlam o duplo problema da complexidade e da contingência. Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo, são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se relativamente frente a desapontamentos. Elas garantem uma certa independência da experimentação com respeito a impressões momentâneas, impulsos instintivos, excitações e satisfações, facilitando assim uma seleção continuada também ao longo do tempo, tendo em vista um horizonte de possibilidades ampliado e mais rico em alternativas. As comprovações e as satisfações imediatas são em parte substituídas por técnicas de abstração de regras confirmadamente úteis, e de seleção de formas adequadas de experimentação e de auto-certificação. A esse nível do comportamento seletivo podem ser formadas e estabilizadas com relação ao mundo circundante. Seu efeito seletivo é ao mesmo tempo inevitável e vantajoso, motivando assim a retenção de tais estruturas, mesmo frente a desapontamentos: não se desiste da expectativa de um caminho sólido e viável só por se ter escorregado uma vez!”

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A normatividade e a coercitividade das regras jurídicas permitiriam ao direito assumir

a condição de estrutura social responsável por lidar de maneira eficaz com a dupla

contingência, uma vez que o direito promoveria a seleção e a fixação de possibilidades

objetivas de comportamento humano por meio de expectativas normativas. As expectativas

normativas se distinguiriam das expectativas cognitivas pelo fato de que aquelas, ao contrário

destas, não se enfraqueceriam diante do desapontamento fático:

Dessa forma, as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar os desapontamentos. O caso de desapontamento é previsto como possível – é sabido que o mundo é complexo e contingente, e que, portanto, os outros podem agir de forma inesperada – mas de antemão isso é considerado irrelevante para a expectativa. (...) Sendo assim, as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. Seu sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em que a vigência é experimentada, e portanto também institucionalizada, independentemente da satisfação fática ou não da norma. (LUHMANN, 1983, p. 56-57).

Isso reduziria a complexidade do sistema e também generalizaria de maneira

congruente as expectativas que cada indivíduo tem de sua ação e da de seu próximo. O direito

seria marcado, por fim, pelo fato de que suas expectativas normativas estariam sujeitas a um

processo de institucionalização social, isto é, encontrar-se-iam amparadas por um tertius, que

é estranho aos indivíduos que se relacionam socialmente, para lhes dar suporte. É o que

ocorre, por exemplo, com a identificação do Estado como centro de produção do direito. A

finalidade da institucionalização seria proporcionar um maior consenso social acerca das

expectativas normativas generalizadas para a sociedade e, assim, reforçar o seu papel no

corpo social443.

O meio simbólico utilizado pelo direito para efetuar o entrelaçamento de suas

operações comunicativas é validade jurídica ou simplesmente validade. A validade é um

símbolo social produzido pelo sistema jurídico que somente possui valor e significado em seu

interior. Sua finalidade é produzir a aceitação generalizada da operação comunicativa do

sistema jurídico que estatui aquilo que é conforme ou contrário ao direito. Trata-se, assim, do

443 “a função das instituições reside menos na criação e mais na economia do consenso, que é atingida,

principalmente, na medida em que o consenso é antecipado na expectativa sobre expectativas, ou seja, como pressuposto, não mais precisando, em geral, ser concretamente expresso. É essa institucionalização que permite uma comunicação rápida, precisa e seletiva entre as pessoas. Pode-se trocar fluentemente de situações e parceiros, sem perder a base de entendimento e ter que reconstituí-la repetidamente. Quando a institucionalização envolve desconhecidos, até mesmo neles pode ser presumido um consenso, e suposto que mesmo sem um entendimento prévio explícito exista uma concordância genérica quanto a um conjunto mínimo sobre expectativas de expectativas.” (LUHMANN, 1983 p. 80).

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elemento por meio do qual o sistema jurídico comunica qual é o direito vigente, bem como o

fundamento de sua origem444 (LUHMANN, 2003).

O conceito de validade possui crucial importância para o sistema jurídico, pois confere

unidade às comunicações jurídicas que se processam no interior do sistema social. Isto se dá

porque é por meio da validade que o sistema determina a forma a ser observada pelas suas

operações comunicativas. Ela consiste, assim, no critério pelo qual se afirma que uma

comunicação pertence ou não ao sistema do direito. No entanto, a própria determinação do

que consiste a validade é feita segundo um critério também produzido pelo sistema jurídico.

Logo, é o próprio sistema quem determina como estados de coisas serão avaliados enquanto

válidos ou inválidos, donde se conclui que por meio da noção de validade o sistema jurídico

possui um critério fornecido por ele próprio para controlar a sua evolução (LUHMANN,

2003).

Assim, a validade precisa aderir às expectativas normativas produzidas pelo direito a

fim de que estas sejam consideradas como elemento integrante do subsistema jurídico. Com

isso, pode se atrelar a tais expectativas os efeitos decorrentes da aquisição da condição

‘jurídica’: a expectativa normativa jurídica passa a contar, por exemplo, com a ameaça de

uma sanção estatal em caso de descumprimento ou ainda a usufruir do status simbólico que o

direito goza na sociedade. Tem-se assim que na vivência social do direito as disputas jurídicas

são frequentemente relacionadas à possibilidade ou não de enquadramento de uma norma na

condição de válida, pois isso será crucial para se definir se ela é jurídica ou não. O sistema

jurídico é levado a lançar um olhar reflexivo sobre si próprio, a fim de perquirir sobre as

condições de validade que estabeleceu para si. Aqui, a teoria dos sistemas novamente se

distancia da abordagem clássica da teoria jurídica, para a qual a validade deve ser

fundamentada normativamente. Segundo a teoria dos sistemas, a noção de validade se

construiria a partir de uma observação de segunda ordem sobre o funcionamento do próprio

sistema. Isto permitiria que a noção de validade pudesse ser construída descritivamente.

Assim, a sua marca não seria tanto a fundamentação no conjunto das normas do ordenamento,

mas o fato de que ela insere o sistema jurídico na temporalidade. Segundo a teoria dos

sistemas, a marca da validade é o fato de que ela estende as expectativas normativas no

tempo: aquilo que é válido como direito (ou que não está em conformidade com o direito) é o

444 Segundo Luhmann (2003), a validade seria o ponto de interseção entre a teoria das fontes do direito e o nível

operativo da comunicação social produzida no interior do sistema jurídico. No entanto, para a teoria dos sistemas a ênfase da análise sobre a validade recairá mais sobre o tipo de comunicação produtora da validade que circula no interior do sistema do que sobre as fontes que lhe servem de referência. A questão das fontes para a teoria dos sistemas se torna uma questão empírica de saber se o sistema de fato é coerente em fundamentar suas operações nas instâncias que previamente havia escolhido como responsáveis para tanto.

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que anteriormente se determinou pelo sistema na qualidade de vigente. Explica Luhmann

(2003, p. 75):

As teorias clássicas da hierarquia da validade pressupõem sempre uma escala duradoura, é dizer: que pode ser reutilizada em distintas ocasiões. O olhar pode ir de cima até embaixo e para trás para buscar as determinações das razões de validade. A teoria da validade temporal que aqui apresentamos omite essa premissa. A validade é um produto do sistema por isto não há necessidade estar-lhe reelaborando de momento em momento. Por conseguinte, a validade se assegura unicamente mediante a integração recursiva das operações à rede com o mínimo de esforço a respeito da informação (redundância). Isto significa também que o sistema produz sua própria individualidade, dado que o tempo é fator de individualização, pela seletividade que obriga: de 1 até 2 só se pode fazer com um movimento. (Tradução nossa). 445

Portanto, se o sistema jurídico opera a partir do conceito de validade para chancelar as

operações que lhe são próprias e rejeitar as que não são, tem-se que um dos efeitos disso

decorrentes seria fazer com que a rede de comunicações jurídicas perdure no tempo em

conformidade com suas próprias comunicações produzidas anteriormente. Essa íntima

conexão entre a validade e o sistema jurídico expõe o caráter radicalmente temporal do

direito. Na categoria da validade, o direito encontrará sua inserção na temporalidade e, assim,

a caracterização de sua memória como função de organização de acesso às informações

disponíveis para o sistema jurídico.

6.1.2 A temporalidade do direito

Ao encampar a função de produzir comunicações sociais responsáveis por estabilizar

expectativas sociais de comportamento, o sistema jurídico assumiria um caráter radicalmente

temporal446 em sua existência. Isto se dá pelo fato de que toda operação de comunicação

445 Tradução nossa: “Las teorías clásicas de la jerarquía de la validez presuponen siempre una escala duradera; es

decir: que puede ser reutilizada en distintas ocasiones. La mirada puede ir de arriba hacia abajo y de regreso, para buscar la determinación de las razones de la validez. La teoría de la validez temporal que aquí presentamos, omite esa premisa. La validez es un producto del sistema, por eso no hay necesidad de estarla reelaborando de momento a momento. Por consiguiente la validez se asegura únicamente mediante la integración recursiva de las operaciones a la red, con el mínimo de esfuerzo con respecto a la información (redundancia). Esto significa también que el sistema produce su propia individualidad, dado que el tiempo es factor de individualización, por la selectividad a la que obliga: del 1 hacia el 2 sólo se puede hacer un movimiento.”.

446 “el derecho resuelve un problema temporal que se presenta en la comunicación social, cuando la comunicación en proceso no se basta a sí misma (ya sea como expresión, ya sea como ‘práctica’) y tiene que orientarse y expresarse en expectativas de sentido que implican tiempo. La función del derecho tiene que ver con expectativas. Si además se parte de la sociedad y no de los individuos,

esta función se relaciona con la posibilidad de comunicar expectativas y de llevarlas al reconocimiento en la comunicación. Expectativa quiere aquí decir: no sólo el estado actual de conciencia de un individuo determinado, sino el aspecto temporal del sentido, en la comunicación.” (LUHMANN, 2003, p. 85-86). (Tradução nossa: “o direito

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social emprega tempo. Assim, ainda que a duração de uma comunicação seja de apenas um

instante, a sua determinação concreta implica necessariamente o recurso ao tempo, uma vez

que ela se entrelaça com comunicações já ocorridas no passado e se conecta com outras que

lhe sucederão no futuro. Logo, tem-se que toda comunicação sistêmica determina o estado

temporal do sistema no instante anterior e seguinte à próxima comunicação (LUHMANN,

2003).

Assim, cada operação comunicativa resulta em enlaces temporais de dupla natureza.

De um lado, o sistema jurídico observa-se a si próprio em sua experiência passada e aprende a

produzir comunicações exitosas em sua proposta de produzir a estabilização das expectativas

de comportamento. Haja vista esta finalidade específica – e, com ela, a ameaça de

sobrevivência do próprio sistema – o sistema precisa produzir um estado que venha a atender

a necessidade de reprodução e sobrevivência do próprio sistema. Assim, o sistema não

enxerga a experiência do passado de maneira objetiva, como aquilo que efetivamente ocorreu

na realidade dos fatos. Ao contrário, a realidade pretérita é construída a partir do modo como

o sistema organiza o acesso às informações do passado em seu interior a fim de selecionar e

esquecer experiências que produzem a sua inoperância. O sistema cria o seu passado segundo

as suas necessidades futuras (DE GIORGI, 2006).

O outro enlace temporal decorre do fato de que as expectativas normativas postas pelo

direito pretendem – pelo menos a partir do presente – perdurar no tempo a fim de assegurar

sua tarefa funcional específica de estabilizar as expectativas de comportamento. Esse efeito

seria consequência da função de normalização ou padronização que acompanha a figura da

norma, empregada pelo direito para produzir comunicações em seu interior. As normas

reduziriam a incerteza do comportamento social no futuro vindouro e, com isso, reduziriam

também o problema da complexidade que ameaça o convívio em sociedade447 (DE GIORGI,

2006).

resolve um problema temporal que se apresenta na comunicação social, quando a comunicação em processo não se basta a si mesma (seja já como expressão, seja já como ‘prática’) e tem que se orientar e se expressar em expectativas de sentido que implicam tempo. A função do direito tem a ver com expectativas. Se, ademais, se parte da sociedade e não dos indivíduos, essa função se relaciona com a possibilidade de comunicar expectativas e de levá-las ao reconhecimento na comunicação. Expectativa quer aqui dizer: não só o estado atual de consciência de um indivíduo determinado, mas sim o aspecto temporal do sentido na comunicação.”)

447 “La referencia temporal del derecho no se encuentra, pues, ni en la vigencia de las normas (que se dividen en variables e invariables), ni en la historicidad inmanente del derecho. Tampoco se encuentra en que la "materia" del derecho -la conducta humana- haga presencia en el espacio y en el tiempo. La referencia temporal del derecho se encuentra en la función de las normas: en el intento de prepararse, al menos en el nivel de la expectativas, ante un futuro incierto -genuinamente incierto. Por eso con las normas varía la medida en la que la sociedad produce un futuro acompañado de inseguridad.” (LUHMANN, 2003, p. 89-90). (Tradução nossa: “A referência temporal do direito não se encontra, pois, nem na vigência das normas (que

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Luhmann (2003) identifica, contudo, que o processo de redução das possibilidades de

comportamento social por meio da criação de expectativas normativas se converte em um

fator de tensão social. A redução da complexidade leva, como visto acima, a uma limitação

das possibilidades de ação. Afinal, o direito padroniza certos comportamentos que espera

sejam cumpridos por seus destinatários. Ao escolher, a partir do presente, quais

comportamentos deverão ser observados no futuro e quais fugirão às expectativas normativas

da sociedade, o direito toma partido de antemão em favor de alguns grupos em detrimento de

outros448. Com isso instaura-se uma situação de conflito social em razão da resistência

oferecida por aqueles que desejam agir segundo as expectativas não aprovadas pelo direito. A

falta de consenso social é o preço que o sistema jurídico paga por reduzir a insegurança e a

incerteza que a ampla liberdade de comportamento atribuída aos indivíduos acarretaria à

sociedade. Assim, o direito se situa em uma permanente tensão entre a dimensão temporal e a

dimensão social, já que no âmbito desta a pretensão de eliminar completamente a

contingência em termos contrafáticos não é algo socialmente desejado ou até mesmo

possível449. Pelo contrário, para cada tentativa de estabilização das expectativas de

comportamento, a sociedade reagiria com a produção de dissenso social.

O subsistema jurídico incorporaria essa tensão no desenrolar de sua história,

colocando-se, a cada momento, diante de uma bifurcação ou de uma encruzilhada: ora o

se dividem em variáveis e invariáveis), nem na historicidade imanente do direito. Tampouco se encontra em que a ‘matéria’ do direito – a conduta humana – faça presença no espaço e no tempo. A referência temporal do direito se encontra na função das normas: no intento de se preparar, ao menos no nível das expectativas, ante um futuro incerto – genuinamente incerto. Por isso com as normas varia a medida que a sociedade produz um futuro acompanhado de insegurança.”).

448 Para uma apresentação completa da relação entre o modo como o direito lida com a questão da temporalidade a partir da perspectiva do futuro em aberto recomenda-se a leitura do livro Modernidade, Tempo e Direito, de Cristiano Paixão Araújo Pinto (2002).

449“Sin embargo, el derecho tiene también propensión a las crisis de confianza que se transmiten simbólicamente. Cuando ya no se respeta el derecho o cuando, hasta donde es posible, ya no se impone, las consecuencias rebasan por mucho lo que de inmediato se presenta como violación de la ley. Entonces el sistema tiene que recurrir a formas más naturales para restaurar, de nuevo, la confianza. El derecho permite saber qué expectativas tienen un respaldo social (y cuáles no). Existiendo esta seguridad que confieren las expectativas, uno se puede enfrentar a los desencantos de la vida cotidiana; o por lo menos se puede estar seguro de no verse desacreditado en relación a sus expectativas. Uno se permite un mayor grado de confianza (hasta la imprudencia) o la desconfianza, cuando se puede confiar en el derecho.

Y esto significa que es posible vivir en una sociedad más compleja en la que ya no bastan los mecanismos personalizados o de interacción para obtener la seguridad de la confianza.”(LUHMANN, 2003, p. 91). (Tradução nossa: “Sem embargo, o direito tem também propensão às crises de confiança que se transmitem simbolicamente. Quando já não se respeita o direito, ou quando, até onde é possível, já não se impõe, as consequências rebaixam em muito o que de imediato se apresenta como violação da lei. Então o sistema tem que recorrer a formas mais naturais para restaurar, de novo, a confiança. O direito permite saber quais expectativas tem um respaldo social (e quais não). Existindo essa segurança que confere as expectativas, alguém pode enfrentar aos desencantos da vida cotidiana. Ou ao menos se pode estar seguro de não se ver desacreditado em relação a suas expectativas. Um se permite um maior grau de confiança (até a imprudência) ou a desconfiança, quando se pode confiar no direito. E isto significa que é possível viver em uma sociedade mais complexa na qual já não bastam os mecanismos personalizados ou de interação para obter a segurança da confiança.”).

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direito será chamado a manter-se fiel aos seus programas iniciais de normatização social, ora

a se reprogramar a fim de deixar o futuro aberto a novas possibilidades surgidas da dinâmica

social. Afinal, o nível de tensão social não pode ultrapassar o ponto em que o nível operativo

do direito é posto em questionamento. Assim, o direito precisa construir e reconstruir

permanentemente a sua história partir do presente: em cada momento em que o sistema é

obrigado a fazer escolhas quanto às operações comunicativas que deseja empregar para se

auto-reproduzir, ele constrói uma nova realidade acerca do passado, a fim de que sua

programação em relação ao futuro possa obter sucesso450. É como explica Luhmann (2003, p.

90):

(...) o direito se apresenta com uma forma relacionada com o problema da tensão entre dimensão temporal e dimensão social e é ele que permite suportá-la ainda em condições de incremento evolutivo da complexidade social. Não estão, todavia, decididos nos limites nos quais é possível suportar essa tensão, nem quanto tempo mais poderá durar. A forma do direito, sem embargo, se encontra na combinação de suas distinções: expectativas normativas / cognitivas e a distinção do código direito / não direito. Todas as adaptações sociais do direito operam neste marco e variam o sentido objetual e o conteúdo das normas jurídicas e dos programas. Os programas são os que regulam, em cada caso, a adjudicação correta dos valores direito / não direito para manter, em uma zona de compatibilidade mútua, os enlaces do tempo e a capacidade de dissenso e de consenso. (Tradução nossa).451

Essa possibilidade de construir seletivamente a sua realidade temporal a fim de

proporcionar a estabilização das expectativas de comportamento dos indivíduos em sociedade

consiste na função da memória do sistema jurídico a que alude Luhmann (2003).

450 Kirste (2003) afirma que sob a perspectiva sociológica endereçada por Luhmann o direito não teria um

princípio já que toda operação comunicativa se entrelaçaria em uma anterior, impedindo, assim, a identificação de um marco inicial. Toda referência a um começo do direito seria, portanto, mera retórica política. Kirste rejeita, contudo, essa conclusão uma vez que, de uma perspectiva jurídica, as Constituições poderiam ser vistas como o princípio do direito positivo. Afinal, elas instituiriam o tempo social por meio de compromissos político-jurídicos em seu interior responsáveis por promoverem um ato temporalmente simétrico, isto é, uma autodeterminação que não se prende nem ao passado, nem ao futuro, mas considera essas duas dimensões temporais de maneira simétrica em suas disposições.

451 “(...) el derecho se presenta como una forma relacionada con el problema de la tensión entre dimensión temporal y dimensión social y es el que permite soportarla – aun en condiciones de incremento evolutivo de la complejidad social. No están todavía decididos los límites en los que es posible soportar esa tensión, ni cuánto tiempo más podrá durar. La forma del derecho, sin embargo, se encuentra en la combinación de dos distinciones: expectativas normativas/cognitivas y la distinción del código derecho/no derecho. Todas las adaptaciones sociales del derecho operan en este marco y varían el sentido objetual y el contenido de las normas jurídicas y de los programas. Los programas son los que regulan, en cada caso, la adjudicación correcta de los valores derecho / no derecho, para mantener, en una zona de compatibilidad mutua, los enlaces del tiempo y la capacidad de disenso y de consenso.”.

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6.1.3 A memória jurídica e sua função de tornar disponível informação ao sistema jurídico

A partir do personagem do conto de Jorge Luis Borges Funes, el memorioso (2005),

Raffaele De Giorgi (2006) afirma que uma das condições da cognição – e, portanto, da

sobrevivência – é a capacidade de produzir distinções temporais. O personagem fictício de

Borges é dotado de uma capacidade extraordinária de armazenar, com riqueza de detalhes, as

informações sobre a sua experiência passada. Contudo, essa condição lhe impedia organizar

sua experiência em um fluxo temporal, já que a cada instante era bombardeado com novas

informações do exterior que lhe sobrecarregavam ainda mais a sua ‘memória’. Assim, na

verdade, Funes não possuía uma memória, mas apenas um repositório de informações – um

‘despejadouro de lixos’, nas palavras de Borges (2005). A impossibilidade de separar o

momento temporal da percepção daquele da reativação seletiva pelo sistema nervoso fazia

com que Funes não pudesse construir para si uma realidade temporal. Como ele não era capaz

de duplicar o tempo, ele não era capaz de perceber a sua experiência na forma de uma

recordação que distingue o momento presente – da atividade de recordar – do momento

passado – momento da experiência recordada452: para Funes, as lembranças eram um

amontoado indistinto de informações justapostas. Com isso, ele não conseguia se relacionar

com a temporalidade e, portanto, construir para si uma ponte de acesso a sua experiência

individual no tempo.

Segundo De Giorgi (2006), o personagem Funes ilustra como a questão da memória

deve ser encarada sob a perspectiva da organização e do acesso ao conhecimento da

experiência do passado – e não como registro ou arquivo de informações, tal como

tradicionalmente se concebia a memória453. Para a teoria dos sistemas, a atividade de

aprendizado de um sistema ao longo do tempo pode ser decomposta em infinitos momentos

que não possuem uma relação necessária entre si. Cada um dos respectivos estados de um

sistema não precisa estar ligado aos estados anteriores e posteriores. Pode-se afirmar, assim,

que da perspectiva da relação entre um estado do sistema e o ambiente, o aprendizado de uma

informação é atemporal, pois não depende dos demais estados que o sistema já possuiu

anteriormente. A temporalidade somente nasce quando o sistema passa a olhar sobre si

452 Como já visto na análise do problema da memória em Aristóteles, uma precondição da própria memória é a

passagem do tempo já que a memória é necessariamente memória do passado. 453 A referência da crítica de De Giorgi (2006) é a noção de memória coletiva ou cultural já mencionada no

capítulo anterior. De Giorgi afirma que essa literatura especializada sobre a memória haveria produzido a errônea identificação entre memória e arquivo ou depósito de informações.

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próprio e distinguir dois ou mais diferentes estados em uma sequência de comportamentos

que se sucedem no tempo. O tempo nasce somente quando o sistema pode se reconhecer a

passagem de um estado a outro, isto é, quando se encontra em transformação. E a

responsabilidade por interligar esses diferentes estados incumbe à memória:

A memória é uma função que se desenvolve quando o organismo, ou melhor, o sistema observa as relações entre seus estados e as conecta. A memória é, então, um modus operandi que continuamente é definido e redefinido pelo modo de funcionamento do sistema e que, ao mesmo tempo, redefine este modo de funcionamento. A memória é um fenômeno correlato que acompanha as operações do sistema. A memória permite um exame contínuo e consistente das operações do sistema. A temporalidade do sistema é produzida através da memória. Ela produz o tempo do sistema, pois permite que ele saiba que todas as suas operações são frutos de si mesmas, ou melhor, que ele, sistema, é determinado por si mesmo. (DE GIORGI, 2006, p. 58-59).

Logo, ao transportar essa forma de conceituação da memória enquanto propriedade

dos sistemas sociais para o estudo do direito De Giorgi (2006) descarta de plano qualquer

associação que se possa fazer entre a memória e as idéias de depósito, armazém ou revisitação

da tradição e do passado. Para o autor – e para a teoria dos sistemas em geral – a memória é

uma função que nasce do modo como o próprio sistema define e redefine o seu

funcionamento. Isso é feito por meio de um exame de consistência de suas próprias

operações. Aqui o problema do acesso à informação enquanto função da memória fica

evidente: ao se transformar, o sistema precisa tornar presente para si quais informações serão

utilizadas em sua história atual e quais foram excluídas nesse processo.

A relação que o sistema cria com a temporalidade nessa operação de checagem não

toma por referência a cronologia objetiva das unidades temporais padronizadas nos relógios e

calendários. Trata-se, antes, de uma temporalidade do próprio sistema. Afinal, com as

distinções promovidas pela memória, o sistema cria o seu próprio presente em referência ao

seu passado e ao seu futuro:

Por meio da função da memória, o sistema é presente a si mesmo. Isto permite ao sistema isolar, na rede de contínuos re-envios simultâneos de modificações de estados, aquela modificação de estado que pode ser sintetizada como relevante para um novo comportamento e, consequentemente, neste momento, como estado momentaneamente capaz de conexão. Deste modo, a atemporalidade das operações é interrompida e esta interrupção constitui o tempo. (DE GIORGI, 2006, p. 59).

Contudo, o processo de formação do tempo depende de duas operações. De um lado o

sistema precisa esquecer, isto é, excluir os estados anteriores que não serão aproveitados no

presente para a reprodução do sistema. De outro, o sistema é chamado a recordar as operações

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consideradas relevantes para a produção do seu presente por meio da constituição de um

estado que torna disponível a totalidade daquelas operações selecionadas, isto é, recordadas.

Não se trata de um reenvio ou de uma devolução do passado para o presente, mas de uma

reescrita por meio da qual o sistema reproduz, no presente, as mesmas operações que foram

consideradas pertinentes após o exame de consistência efetuado pela memória. Assim,

partindo de si próprio, a memória do sistema faz com que ele seja chamado a reescrever

continuamente a sua própria história:

Em outras palavras: a função da memória, que acompanha as operações do sistema que são relevantes para a constituição do presente, é uma função de distinção, uma função que continuamente reproduz a diferenciação entre o recordar e o esquecer. Recordar, todavia, não é um termo apropriado. Aquilo que o sistema recorda é o fato de que, em todas as suas operações, ele é sempre presente, é sempre presente a si mesmo, ou seja, que ele recomeça sempre de si. Neste sentido, o sistema opera como um sistema histórico, ou seja, como um sistema determinado estruturalmente, um sistema que continuamente inventa sua própria história. Com o presente, o sistema constitui não apenas o tempo, mas também a história. (DE GIORGI, 2006, p. 59).

Desse modo, a realidade criada pela memória será sempre compatível com a finalidade

primordial do sistema, que é a de reproduzir-se a si próprio de maneira exitosa em sua relação

com o ambiente. Assim, o sistema inventa as situações às quais ele se adapta, sendo a

memória a função responsável pelo controle dessa operação. Ao proceder dessa maneira, o

sistema garante uma estabilidade frente aos desafios adaptativos de sua sobrevivência.

Prossegue De Giorgi (2006, p. 60):

Ela [a memória] constitui, para si, uma coerência através das operações que a coligam ao exame consistente de sua evolução. Esta memória é resultado da evolução. Ela se produz como função de contínua auto-adaptação do sistema frente à infinita variedade de modificações de estado, as quais conduzem o sistema a se auto-orientar através da diferenciação dos próprios estados de excitação relevantes para a escolha dos atuais comportamentos. O sistema é forçado a seleções estáveis e a oscilações entre um estado e outro. É forçado a estabilizar, em cada caso, as modalidades de suas consistências. Estas modalidades surgem da invenção de regras transitórias, ou seja, de regras de transformação. Isto é, o sistema opera seletivamente e, portanto, esquece continuamente. Mas adequa-se continuamente a si mesmo, pois, somente deste modo, está adaptado às situações. Este é o único meio colocado à disposição do sistema. Através de sua memória, o sistema estabiliza permanentemente e torna-se continuamente imprevisível para si próprio. Ele se estabiliza, pois coordena suas operações e as torna consistentes.

A realidade que o sistema jurídico constrói para si próprio como seu passado servirá

de referência para que ele possa se conduzir em sua evolução. A observação desse passado

pelo próprio sistema permitirá que ele possa atribuir valor a certos estados do sistema e,

assim, estabelecer a sua ligação com o futuro:

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O presente pode ser observado somente quando o presente é passado. A memória, assim, é resultado da evolução e a evolução não poder observar a evolução. Aquilo que se pode observar são os próprios valores, os próprios estados os próprios conceitos, ou seja, aquelas aquisições evolutivas que constituem fósseis guias, sedimentos, que a memória trata como temas no seu contínuo oscilar entre esquecer e recordar. Deste modo, o sistema pode fazer experiência com si mesmo. Por poder tratar a experiência como experiência, o direito redefine seu passado e autoconstrói seu presente como espaço de liberdade, vale dizer, como extensão temporal que torna possível a previsão e a prospecção. (DE GIORGI, 2006, p. 62).

O presente construído pela memória enquanto realidade do sistema promove a ligação

temporal entre os diferentes estados de evolução do sistema na linha do tempo, inscrevendo o

sistema jurídico em uma temporalidade que lhe é própria. E como é a memória quem cria a

realidade do sistema, pode-se afirmar assim que a memória do sistema é o próprio sistema.

Mas o sistema é também o destinatário da memória. A partir do conceito de validade, viu-se

acima que o sistema jurídico conta com um valor intrínseco por meio do qual o direito

organiza o acesso à informação disponível para suas operações comunicativas segundo o

código ‘conforme o direito’ / ‘não conforme o direito’. Isso facilita o funcionamento do

sistema por manter, de forma ordenada, os valores do modo de produção recursiva do sistema.

Esta ordem proporcionada ao sistema pela validade:

(...) reduz a quantidade de informação necessária para o tratamento dos casos, porque torna acessíveis as invariabilidades que são produzidas nos cálculos efetuados pelo direito. Estas invariabilidades, estes próprios valores, são os pontos nodais em torno dos quais se reúnem as redundâncias. A redundância é sempre produzida na comunicação. Ela não é informação, mas facilita a elaboração de dados necessários para a produção de informação. Ela permite o esquecer, pois possibilita a formação da identidade que pode ser contestada quando o desvio se apresenta. Mais ainda, o diverso, o desvio, pode ser observado como desvio, porque se sobrepõe àquela sombra que acompanha a informação e traz à luz as diferenças. Os próprios conceitos de direito condensam redundância e esta condensação permite a elaboração de observações, ou seja, distinções sempre mais elaboradas. Esta contínua especialização no uso de distinções exonera a memória do direito da necessidade de explicação do surgimento da informação e, ao mesmo tempo, produz um contínuo aumento da organização das condições de acesso à informação. (DE GIORGI, 2006, p. 65).

Ao processar a informação já especificada pela memória do sistema jurídico – isto é,

ao checar quais operações comunicativas estão em conformidade com o valor intrínseco da

validade –, o direito é capaz de produzir decisões em eventos pontuais que reativam a

memória do sistema jurídico. Trata-se de um processo auto-referencial que acaba por

culminar na redundância a que se refere De Giorgi (2006). Isso fica explícito na argumentação

jurídica, que emprega a distinção entre o esquecer e o recordar que o conceito de validade

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proporciona ao direito: partindo dos textos legais, o intérprete produz informação que é

utilizada pelo sistema a fim de representar os seus próprios estados internos. Trata-se do modo

por meio do qual o sistema se torna presente a partir da informação produzida pela

interpretação – e nisso consiste a função da memória do direito:

Textos são depósitos, não são informações: somente interpretação produz informação. Em outras palavras, através da memória do direito se produz sentido e, portanto, comunicação e, assim, presente. (DE GIORGI, 2006, p. 66).

Ao se prender à dimensão funcional da memória, a teoria dos sistemas abandonou a

finalidade precípua da memória de promover a conexão do sujeito ao seu passado. Uma vez

que a função da memória opera sempre a partir do presente, ela não tem em perspectiva

aquela capacidade própria da memória de efetuar uma transposição temporal do indivíduo

para sua realidade pretérita, a fim de reconstituir a trajetória de sua existência – aquela que lhe

confere uma peculiaridade enquanto ser histórico. Essa dimensão objetiva da memória é o que

se pretende estudar no próximo tópico. Enquanto parte da memória coletiva ou cultural, é

possível identificar que o direito também possui uma memória objetivada em documentos que

produzem a identidade do grupo social em que se insere.

6.2 A memória do direito como elemento integração social por meio da recordação do

passado

El pasado no está escindido del presente por ninguna barrera. Y también el derecho tiene un pasado. Sus inicios se confunden con los inicios de la ciudad. El derecho dura en el tiempo, como los pórticos y el foro, como los templos y las calles, las ‘muchas cosas’ que los habitantes de una ciudad tienen en común. El jurista es su sacerdote. Éste no tiene necesidad de volverse viejo para recordar, aun cuando de viejo recuerda mucho más. Heredero de una gran tradición, custodia y renueva día a día la memoria. (BRETONE, 1999, p. 38)

Viu-se no capítulo anterior que desde os primórdios da civilização os grupamentos

humanos desenvolveram uma atividade social voltada a preservar e a recordar os episódios e

informações relevantes da experiência do passado no imaginário coletivo. Essa atividade foi

denominada de ‘memória social’ e sua finalidade seria a de conservar, de maneira

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padronizada no seio do grupo social, as impressões que giram em torno de uma vivência

coletiva. Com isso, a memória social produziria um sentimento de unidade entre os indivíduos

que fazem parte do grupo, por reforçar, em cada um deles, as marcas eminentemente sociais

de uma lembrança compartilhada coletivamente. Via de consequência, a memória social

criaria laços de identidade entre os membros de uma coletividade, já que reforçaria os valores

compartilhados socialmente no curso da vivência em comunidade.

Apesar de a teoria jurídica ter negligenciado o papel do direito em relação à memória

social454, pode-se afirmar que aquele desempenha um papel duplamente relevante no que diz

respeito a esta: por ser um elemento integrante da cultura humana, as criações do universo

jurídico – formas e fórmulas da prática jurídica, técnicas de organização e administração da

justiça, monumentos e documentos relacionados ao mundo jurídico, etc... – compõem a

memória social pelo fato de tornarem vívidos os vestígios da experiência jurídica do passado

entre os membros do grupo social no presente enquanto parte de sua cultura. Com isso, o

direito assumiria um papel ativo na tarefa de promover uma identidade cultural na sociedade.

Da mesma forma, o direito atuaria também como guardião ativo da memória social, já que,

por meio de suas prescrições e regulamentações, reforçaria a importância de se albergar as

tradições culturais do risco do esquecimento que o transcurso do tempo naturalmente impõe

(OST, 2005a).

Como visto no capítulo anterior, a memória social foi objeto de investigação pela

História e pela Sociologia a partir das noções de ‘memória coletiva’ (Halbwachs) e de

‘memória cultural’ (Assmann). No presente tópico pretende-se, inicialmente, apontar de que

maneira a memória do direito pode ser compreendida como parte da memória social a partir

dessas duas formas de se investigar esse fenômeno. Em seguida, pretende-se ainda demonstrar

de que maneira o direito contribui para a conservação da memória social. Afinal, o culto da

memória social tem a sua razão de ser não apenas em uma curiosidade quanto à origem das

tradições constitutivas dos grupos sociais. Partindo do presente, a memória social possui um

papel extremamente relevante no que diz respeito ao desenvolvimento e a conservação da

sociedade. Ela a mantém o grupo coeso em torno de formas culturais de vida comuns a toda

coletividade por meio da constituição de laços de identidade cultural. Com isso, a memória

454 “O conceito de memória cultural, especialmente, fornece uma perspectiva integrada e comparativa sobre as

técnicas de determinados sistemas sociais no seu trato com a história. Com raras exceções, o conceito não tem sido recepcionado pela teoria do direito. Essa negligência tem duas razões: de um lado os próprios estudos culturais mencionados omitem estruturas de memória do direito, embora considerem-no um fenômeno cultural; de outro, porque conceitos da teoria do direito, tais como ‘tradição’, ‘historicidade’, ‘mudança’ ou ‘continuidade’ parecem fornecer fundamentos teóricos suficientes.” (KIRSTE, 2008, p. 128).

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social teria o papel de refrear o esfacelamento e a desagregação do grupo em comportamentos

marcados pelo individualismo e pelo atomismo próprios da era moderna.

Portanto, o presente tópico se dedicará ao estudo de como o direito compõe e ao

mesmo tempo preserva a memória social. Essa exposição será conduzida por meio das

reflexões de Kirste (2008) sobre a condição do direito enquanto elemento da memória cultural

e de Ost (2005a) sobre o papel da memória jurídica na fundação do passado coletivo. Ao

final, pretende-se demonstrar de que maneira a memória jurídica contribui para o reforço dos

laços de identidade social por meio dessas duas funções e, com isso, desempenha a

consequente tarefa de instituir o passado coletivo como forma de promover um tempo social

em equilíbrio. Com isso, será possível concluir, como suposto inicialmente, que por meio da

memória do direito as instituições jurídicas promoveriam um reforço do laço social de

identidade entre os indivíduos por meio do resgate de sua experiência coletiva passada.

6.2.1 O direito como elemento integrante da memória social

6.2.1.1 A memória social como ferramenta de investigação da memória jurídica

No capítulo anterior viu-se que o estudo da memória social ganhou destaque no

âmbito da Sociologia e da História por meio de dois conceitos que capturaram de maneira

precisa em que consistiria essa atividade social de lembrança e esquecimento da experiência

coletiva: a memória coletiva e a memória cultural.

A investigação sobre a memória social foi inaugurada pelo sociólogo Maurice

Halbwachs (1952; 1990) e a sua proposição de que toda memória é construída com base em

quadros sociais produzidos coletivamente dentro da comunidade em que o indivíduo se insere.

Para Halbwachs (1990), as circulações de comunicação produzidas no interior do grupo social

sobre acontecimentos do passado originariam uma memória coletiva que condicionaria e

modularia as lembranças de um indivíduo acerca de uma determinada vivência experimentada

ao longo de sua vida. Assim, a memória coletiva teria uma natureza comunicacional, isto é,

ela se formaria e se reproduziria por meio da circulação permanente de informações

homogêneas sobre uma determinada experiência no interior do grupo social. Isso se daria de

maneira tal que a impressão coletiva do passado acabaria por determinar o modo como os

indivíduos produzem as suas próprias memórias individuais, padronizando o seu conteúdo no

interior do grupo social. Com isso, a memória coletiva seria responsável por produzir laços de

identidade altamente fortes entre os indivíduos que fazem parte do grupo.

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Contudo, segundo observa Kirste (2008), a partir das críticas feitas pelo já citado

Assmann (1995), a memória coletiva seria limitada enquanto ferramenta metodológica de

investigação de uma memória social de duração e extensão mais amplas, como aquela que se

verifica nos grandes grupamentos humanos como as sociedades, as nações e as civilizações.

Em primeiro lugar porque a duração temporal da memória coletiva estaria condicionada a

uma capacidade de circulação reiterada de comunicações homogêneas no interior do grupo

social. Como essa circulação tende à extinção no curso de poucas gerações, dado que a

distancia temporal enfraqueceria a frequência com que o grupo se refere a um episódio, a

memória coletiva tenderia a se perder no esquecimento coletivo. Com isso, os traços de uma

experiência do passado outrora relevantes se esvaneceriam com o tempo.

Em segundo lugar, como Halbwachs (1952) já havia afirmado, a memória coletiva se

constrói no interior dos grupos sociais que o indivíduo integra ao longo de sua existência.

Assim, sua formação e consolidação são mais eficazes conforme a intensidade da presença

desse grupo na existência do indivíduo. Logo, as experiências vivenciadas nos grupos mais

próximos de seu cotidiano, como a família e a comunidade, se sobrepõem àquelas vividas em

âmbitos sociais que o indivíduo se liga por laços remotos, como a sociedade, a nação e a

civilização. Assim, segundo Kirste (2008), a memória coletiva originária da vivência familiar

ou comunitária se construiria como uma narrativa de resistência, uma vez que a sua finalidade

seria forjar identidades homogêneas fortes no interior desses grupos, de modo a serem

capazes de resistir a qualquer tentativa de supressão pela memória oficial imposta pela

sociedade455.

Logo, a memória coletiva seria adequada para descrever o processo de formação da

memória social no que diz respeito à experiência familiar ou à vivência em pequenas

comunidades e grupos de interesse. Afinal, nesses espaços, o fluxo de falas e comunicações a

respeito da experiência coletiva do passado é mais intenso e, portanto, conserva viva por mais

455 “A memória coletiva é integrada negativamente por delimitação e distinção de outras memórias culturais,

criando, assim, identidades homogêneas. Exemplos são memórias nacionais, suprimindo as memórias coletivas de minorias, pondo em perigo suas identidades. Fora isso, sua integração por meio de tradições e narrativas produz outras dicotomias: memórias de vítimas e memórias de culpados, memória dos vencidos e memória dos vencedores. Antagônicas são também as atitudes que se seguem a essas discussões: perdoar ou esquecer ou memorizar e procurar vingança ou ‘justiça histórica’.” (KIRSTE, 2008, p 129). Com relação ao caráter dicotômico da memória coletiva, remete-se ao leitor ao artigo Memória, Esquecimento e Silêncio de Michel Pollak (1989) e em relação à questão da justiça histórica e da rehabilitação da memória recomenda-se as contribuições de Ricoeur (1996; 2007) para o tema. A questão, no Brasil, é particularmente polêmica no que diz respeito à Lei de Anistia e o esquecimento forçado que o direito impôs às vítimas do terrorismo político praticado durante o governo ditatorial instituído de 1964 a 1985. A questão é particularmente tratada em Costa Júnior et alli (2010).

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tempo a memória coletiva – permitindo seu posterior resgate por meio das chamadas histórias

orais ou histórias de vida456.

No entanto, a memória coletiva não seria adequada para armazenar – e, portanto, para

servir de fonte de investigação da memória – conteúdos da memória social que possuem longa

duração no tempo, como é o caso da experiência coletiva decorrente da vivência em

sociedades, nações e as civilizações. Em primeiro lugar, porque nessas grandes unidades

sociais a capacidade de circulação de comunicações sobre o passado não seria capaz de

conservar um passado de longa duração com a mesma intensidade e homogeneidade que a

memória coletiva o faz no interior das famílias e comunidades. Afinal, os sentimentos

vivenciados na condição de membro de um grupamento mais próximo do cotidiano do

homem tenderiam a se sobrepor àqueles que ele experimenta na condição de membro de uma

sociedade ou de uma nação, já que aqueles teriam um apelo sentimental mais intenso do que

estes.

Em segundo lugar, porque o potencial de integração da memória coletiva é maior no

âmbito das comunidades pequenas do que nas grandes unidades sociais. Por essa razão, a

memória coletiva tende a ser fragmentada e relacionada a experiências particulares, já que a

sua principal característica é a de pulverizar as identidades sociais nos respectivos grupos em

que elas se formam. Como consequência, dificultar-se-ia a produção – e o posterior resgate –

de uma memória social que conservasse uma experiência padronizada do passado do homem

enquanto membro de uma nação ou de uma civilização.

Para suprir essa deficiência da memória coletiva enquanto objeto de investigação da

memória social é que entra em cena a memória cultural. Afinal, para se obter uma memória

social dos grandes grupamentos humanos é necessário recorrer a uma abordagem que não

identifique a memória social apenas com o fluxo de comunicações diretas realizadas entre os

indivíduos que integram o grupo. A ferramenta metodológica necessária para tanto deve poder

abranger os objetos simbólicos que fazem a intermediação entre o indivíduo e as experiências

coletivas vivenciadas nos âmbitos mais abrangentes da vida social – novamente, as

456 No âmbito do direito, é possível identificar duas vertentes de estudo dessa natureza. Os primeiros se

relacionam à memória do poder judiciário e que ocorrem no âmbito dos programas institucionais de preservação da história organizacional dos Tribunais. Dentre as formas de preservação da memória do judiciário, inclui-se o registro feito pela história oral cuja finalidade é relatar fragmentos da história organizacional a partir da perspectiva dos membros que dela participaram. Para uma apresentação no âmbito da ciência da informação do estado em que se encontram esses programas institucionais no nosso país recomenda-se a leitura da dissertação de Marques (2007). A outra vertente de investigação é aquela que se concentra na apresentação dos relatos orais e histórias de vida dos grandes juristas que influenciaram a formação cultural e jurídica do país. A título de exemplo, aponta-se para o artigo de Alberti (1996), que apresenta uma série de entrevistas realizadas com o penalista Evandro Lins e Silva e que sintetizam a sua compreensão sobre o direito, o direito penal e a sua vivência da experiência jurídica no país.

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sociedades, as nações e as civilizações. Tais objetos midiáticos externos ao sujeito

condensariam em si uma experiência cultural comum à multidão dos indivíduos que integram

essas unidades sociais, permitindo, assim, uma reconstrução padronizada do passado coletivo.

A memória cultural consiste justamente nessa forma de abordagem da memória social que se

faz por meio de objetos culturais dotados de forte carga simbólica entre indivíduos legatários

de uma mesma tradição. Ao recorrer à memória cultural, a investigação da memória social

evita o efeito da modulação da memória formada no interior das pequenas comunidades,

assim como minimiza o risco do esquecimento das tradições e vivências que se inscrevem na

longa duração. A memória cultural permite por fim identificar de que maneira se formam os

laços de identidade entre sujeitos legatários de uma mesma tradição cultural de longa escala.

Como visto no capítulo anterior, a memória cultural consiste no conjunto de formas

objetivadas da cultura que foram produzidas, conservadas e cultuadas ao longo da história de

um grupo social. Esses objetos-documentos carregam consigo uma carga simbólica

extremamente forte para o grupo social e que é responsável por despertar uma energia

mnemômica que o leva a re-vivenciar o seu passado comum (ASSMANN, 1995). Sendo

assim, a memória coletiva se distinguiria da memória cultural no que tange a seu conteúdo e

sua natureza, conforme salientado por Kirste (2008, p. 129):

Na visão de Assmann, a memória cultural está situada ‘acima’ da memória coletiva, aparentemente referindo-se a comunidades mais amplas ou a sociedades. Contudo, pretende também diferenciá-la estruturalmente da memória coletiva, que utiliza meios externos para preencher a função memorizadora: artefatos para arquivar dados, livros, filmes e instituições. O potencial dessa memória objetiva é uma perspectiva de longo prazo e uma função mais integradora. Sobre essa base pode-se fazer a diferença entre memória de arquivo latente e memória ativa funcional.

Kirste (2008) concorda com Assmann (1995) que a análise da memória social de

comunidades heterogêneas, como as sociedades, exige uma ferramenta metodológica menos

fluida e intercambiável do que a memória coletiva. Especialmente no que diz respeito ao

estudo da relação entre o direito e a memória social, o uso da memória cultural seria

metodologicamente mais vantajoso por duas razões: a) em primeiro lugar, o âmbito em que se

desenrola a experiência do direito – a sociedade tal como politicamente definida pelo Estado –

é mais amplo do que o espaço familiar ou comunitário; b) em segundo lugar porque o direito

consiste em uma prática social que desde seus primórdios recorre a muitas formas objetivadas

da cultura para intermediar a experiência jurídica, como é o caso das leis, do processo escrito,

dos livros da Jurisprudência, e dos monumentos e edifícios relacionados à administração da

justiça – apenas para se enumerar os exemplos mais evidentes.

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Mas para que seja possível falar do direito como parte integrante da memória cultural,

é preciso fazer a distinção inicial de que esta não é apenas uma forma padronizada de

reconstituição da experiência do passado pelas memórias individuais. Segundo Kirste (2008,

p. 129), a memória individual e a memória cultural não se confundiriam entre si, como já

salientado por Halbwachs (1990). Dado que é possível distinguir e identificar qual é a função,

quem é o portador e qual é o meio em que essa memória é armazenada, pode-se afirmar que a

memória social é autônoma e independente em relação à memória individual. Portanto, pode-

se afirmar que a memória cultural tem a sua lógica própria no que diz respeito às operações de

lembrança e esquecimento:

É notável, nesse modelo, que não somente os indivíduos apareçam como portadores da memória. Ele foi criticado com base no argumento de que somente indivíduos possuem um cérebro e outras capacidades necessárias à memória. Consequentemente, admitir outras memórias pode ser meramente metafórico ou analógico. Essa objeção, contudo, não poderia explicar formas da memória que transcendem o indivíduo, como os monumentos, a linguagem e a lei.

Da mesma maneira que é possível se falar em uma memória social da sociedade como

um todo, Kirste (2008) vislumbra que essa propriedade também se estende às estruturas

sociais que a compõem, como é o caso do direito.

O traço característico da memória cultural é a sua capacidade de produzir, de maneira

ativa, lembrança e esquecimento do passado social. Por essa razão toda memória exerce um

papel decisivo no que diz respeito à formação do Eu (self), já que a unidade dessas operações

de lembrança e esquecimento singulariza o ser da memória em sua história, distinguindo-o em

relação aos demais. Logo, a memória cultural é responsável por promover a identidade entre

indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo social por meio de experiências

compartilhadas pelo grupo como um todo – tradições, rituais, lugares históricos, literatura, e

assim por diante.

Segundo Kirste (2008), a memória cultural opera a partir de ‘mídias da memória’, isto

é, objetos culturais que são portadores de um significado simbólico que permite o acesso dos

indivíduos a uma experiência comum do passado. Esses arquivos promovem uma pré-seleção

do conteúdo da memória, uma vez que é a partir deles que se tem um ponto de partida de

formação das lembranças. Contudo a memória em si não se confunde com os seus objetos de

investigação. Ela consistiria em um critério regulatório por meio do qual o grupo atribui valor

ao que deve ser lembrado – e, portanto, também ao que deve ser esquecido. Assim, a memória

cultural seria responsável por atribuir valor a objetos culturais segundo a sua capacidade ou

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não de produzir laços de identidade entre os indivíduos. Em seguida, a memória passaria por

um processo de estabilização no grupo social, que se dá por meio técnicas de temporalização

do conteúdo da memória tais como a difusão repetida e reiterada de seu conteúdo no grupo

social, o recurso a formas de exposição visual das mídias da memória e a outras formas de

mnemotécnica que enfatizam o uso dos sentidos e dos sentimentos na fixação e na formação

da memória. Segundo Kirste (2008) essas técnicas de memorização que apelam à

sentimentalidade da coletividade seriam imprescindíveis para a fixação de um conteúdo da

memória no grupo social, pois aquilo que é amorfo ou indiferente não poderia nunca ser

lembrado457.

Especificamente os textos culturais preencheriam essa dupla condição de consistirem

em mídias da memória capazes de conservar uma experiência relevante do passado do grupo

social e, ao mesmo tempo, empregar um apelo sentimental na fixação dos eventos que

relatam. Desse modo, o texto cultural produziria valores sociais comuns e promoveria a

identidade coletiva do grupo:

O objetivo é estabelecer uma situação ampliada, na qual a pluralidade de eventos pode ocorrer, todos relacionados ao ‘texto’ como a base de comunicações não presenciais. ‘Cultura’ significa a unidade global e mais genérica dessas situações ampliadas. Os ‘textos culturais’ para estabilização de memórias sociais ‘são todos articulações semânticas ou simbólicas, comunicadas em uma dada sociedade dentro da moldura de uma situação ampliada’. Assmann considera esses textos vinculantes de duas maneiras: eles contêm comandos normativos para a vida em comum de um povo e vinculam as pessoas criando identidades. (KIRSTE, 2008, p.133).

A fixação da memória cultural por meio de sua expressão textual se completa pelo

processo de canonização. Após se tornar estável, a memória de um conjunto de experiências

históricas relacionadas entre si pode ser reunida, selecionada e organizada em uma forma

cultural objetiva que possibilitará o seu uso futuro como base para a educação social de um

povo sobre sua respectiva tradição do passado. Kirste (2008, p. 133) exemplifica como, no

caso da memória jurídica, o processo de canonização ocorrido na compilação do Corpus Juris

Civilis foi importante para a fixação do direito civil na memória cultural das sociedades

ocidentais:

O imperador romano Justiniano chamou atenção para seu significado [da canonização] na Antiguidade Clássica. Na introdução de suas Instituições, começa enfatizando a classificação exaustiva e a sistematização das instituições imperiais e

457 Chama-se atenção aqui para como também na memória social, as afeições e sentimentos experimentados no

instante do evento original são responsável pela modulação da formação e da evocação da memória, à semelhança do que ocorre nos processos biológicos de formação da memória individual.

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os escritos da antiga jurisprudência. ‘Depois que isso foi conseguido com sucesso’, continua ele ‘nós comissionamos pessoas para compor essas instituições sob poder de nossa autoridade e de acordo com nossas diretivas. Dessa maneira, não se precisa aprender os ensinamentos elementares sobre o direito a partir de velhas histórias, mas se é capaz de deduzi-los de um excelente trabalho imperial, e ouvidos e intelecto não assimilarão nada inútil e errado, mas apenas aquilo que é realmente válido na vida do direito’. A canonização do direito na concepção de Justiniano tem o papel de (1.) coletar o material jurídico, (2.) selecionar o relevante e separá-lo das regras irrelevantes e (3.) colocá-lo em ordem, formando assim a base para a educação e também a prática do direito. Isso mostra bem como a canonização é um importante aspecto da memória social.

Vistos os elementos que caracterizam a memória coletiva e a memória cultural como

instrumentos de investigação da memória jurídica, na sequência do capítulo pretende-se agora

apresentar e analisar de que maneira cada uma dessas espécies de memória social foi utilizada

como modo de conservar a experiência jurídica nas diferentes etapas da evolução histórica do

direito.

6.2.1.2 A conservação da memória social nas etapas do desenvolvimento histórico do

direito

A partir da classificação da memória social em memória coletiva e memória cultural, é

possível associar a predominância de um ou outro tipo de forma de conservação da

experiência do passado a cada uma das grandes etapas da evolução do direito458. Essa

investigação será útil na medida em que irá se mostrar de que maneira a experiência do direito

na sociedade progressivamente deixou de ser conservada e lembrada por meio da oralidade da

memória coletiva e passou a se radicar nas formas objetivadas da memória cultural,

notadamente o texto dos códigos legislados.

As primeiras formas de experimentação cultural da prática jurídica que não se

encontravam diretamente vinculadas à religião foram aquelas em que o direito derivava

primordialmente dos costumes como sua fonte de produção e reprodução459. Os valores, os

458 Note-se que memória coletiva e memória cultural não são termos excludentes, mas apenas ferramentas

metodológicas distintas de investigação da memória social. Portanto, quando se correspondente uma determinada fase da evolução da história do direito a um desses tipos de memória social, não se quer afirmar, com isso que não haja produção de memória social do outro tipo, mas apenas que a investigação da memória jurídica se torna mais adequada a partir de uma ferramenta e não da outra.

459 Kirste (2008, p. 134) afirma que o direito costumeiro se distingue do direito que remonta às tradições religiosas imemoriais. Enquanto esta forma de direito se encontrava intrinsecamente presa à tradição religiosa, em razão da indistinção funcional entre direito e religião nas sociedades arcaicas, o direito costumeiro seria, por sua vez, um direito eminentemente histórico, isto é, inserido na temporalidade. Essa abertura à evolução decorreria justamente de sua derivação dos costumes sociais: na medida em que os costumes sociais se modificam com o progresso cultural, os costumes jurídicos também acompanhariam essa evolução por meio da formação de novas práticas normativas costumeiras: “Historicamente, o direito

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institutos, as prescrições normativas e a forma da prática jurídica derivavam diretamente dos

costumes (mores), das crenças populares e da jurisprudência dos tribunais que tinham a

incumbência de solucionar os casos controversos surgidos no grupo social. A capacidade

obrigatória do direito costumeiro, isto é, a sua validade, se assentava em dois requisitos

instituídos pela própria prática social: que uma determinada prática normativa, isto é, um

dever de comportamento, fosse observada no corpo social de modo generalizado e por um

longo lapso de tempo; e que, segundo a opinião dos indivíduos que compõem o grupo e,

principalmente, dos expertos do direito, a sua observância era necessária e obrigatória como

regra jurídica naquela comunidade.

Sendo assim, todo direito nascido dos costumes tinha o seu âmbito de atuação

circunscrito ao espaço local da tradição cultural o originou. Em razão dos esforços sociais

esparsos no sentido de utilizar a escrita para registrar os costumes jurídicos, a preservação dos

preceitos normativos formados ao longo da experiência cultural se deu por meio de formas

orais de conservação da tradição. Como já visto, a memorização enquanto atividade social de

preservação de uma experiência social relevante do passado era realizada por meio dos

‘homens-memória’, que recorriam a técnicas mnemônicas para fixar e difundir os conteúdos

do direito na sociedade como, por exemplo, a memória topográfica e a memória rítmica. Além

de permitir a sua transmissão de geração em geração, a técnicas de memorização social eram

também utilizadas para instruir socialmente os povos quanto aos princípios básicos que

regiam sua prática jurídica. Nessa etapa da evolução do direito os brocardos assumiram um

importante papel de sistematização dos costumes jurídicos em fórmulas que poderiam ser

transmitidas pela tradição oral. A simplicidade e a elegância de suas fórmulas permitiram a

memorização social sem o recurso à escrita460 e, consequentemente, a sua propagação no

imaginário jurídico dos grupos sociais.

costumeiro pode ser mais antigo do que o codificado, embora não seja o mais antigo. Em sua forma original, o grego agraphoi nomoi tinha a estrutura das ‘boas e velhas leis’, as quais, por sua longevidade, adquiriam caráter quase divino. Sua estrutura temporal era uma fixação quase a um passado indeterminado. Em comparação com isso, o direito costumeiro é um modelo histórico de direito: com os costumes sempre mudando, o próprio direito torna-se variável.”.

460 Noronha e Bicca (2006, p. 9-10) salientam a função mnemônica dos brocardos como elementos de facilitação do estudo e da compreensão do direito. Segundo os autores, os brocardos conferem uma leitura estética à prática jurídica em razão de sua clareza e persuasão argumentativa: “Os Brocardos são de uso antiquíssimo no mundo jurídico. Sua consagração provém de debates no Forum romano e nas Disputas medievais. Significando máxima, parêmia ou axioma, eles sintetizam um princípio de Direito e, certamente, auxiliam na apreensão doutrinária. Trata-se de uma regra de Direito expressa de uma forma enérgica e concisa. Geralmente expressa um princípio de modo elegante e mnemônico. Eis a sua importância apresentada claramente: elegância e memorização. Elegância é um atributo do espírito, mesmo da razão. Se um neófito percebe que o belo é importante até no pensar e no saber se exprimir, talvez possa sentir maior propensão ao estudo apaixonado, para além de um mero desejo de ingressar numa repartição pública e garantir o seu pão. Mas o caráter mnemônico até para essa legítima – mas estreita – aspiração é salutar.”

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Enquanto a prática jurídica elegeu o costume como referência central para a produção

do direito válido no grupo social, o direito não conseguiu se desvincular da tradição oral e,

assim, promover um diálogo com a temporalidade. Isto porque o tempo do direito costumeiro

é um tempo circular, no qual o presente não se distingue do passado, uma vez que o presente

se confundia com as próprias conquistas evolutivas proporcionadas pelos costumes e

conservadas pela memória. Assim, o direito costumeiro encontrava-se impossibilitado de se

relacionar com o futuro ou mesmo em estruturar a sociedade em direção ao futuro.

Esse tipo de memória social que se conservava pelo recurso à oralidade assumia a

forma de uma memória coletiva, já que construída a partir das circulações de comunicações

sociais sobre um determinado tema no interior do grupo social. O direito costumeiro sequer

contava com uma linguagem jurídica especializada para registrar a memória jurídica e

destacá-la da linguagem comum em que circulavam as comunicações ordinárias do cotidiano

das pessoas. Ele simplesmente permitia que o grupo social evocasse uma lembrança única

quando desejava rememorar o teor da prática jurídica. Logo, a memória do direito costumeiro

possuía a extensão que a memória coletiva poderia lhe proporcionar. Assim, enquanto essa

memória oral foi capaz de transmitir de geração em geração as tradições normativas de um

determinado grupo social, seu direito costumeiro conservou-se vivo.

Essa situação foi se modificando na medida em que o direito paulatinamente

incorporou o uso da escrita como técnica de registro de seu conteúdo. Os textos jurídicos

passaram a se tornar a fonte da memória social, ainda que a finalidade inicial dessa atividade

fosse a de simplesmente reiterar em formas fixas e estáveis o teor recolhido dos costumes

jurídicos recolhidos da tradição oral. A referência ao texto jurídico se tornou um elemento de

certificação do teor e da veracidade do costume, permitindo a identificação do direito com

uma maior clareza e certeza – como se a palavra escrita tivesse a propriedade de chancelar as

normas que consistiam no verdadeiro direito costumeiro e não em uma interpretação mal

autorizada de seu conteúdo.

Nessa nova realidade, a memória jurídica passou a exercer o seu processo de seleção e

de esquecimento do direito por meio de uma atividade social distinta da memória oral: a

preservação dos costumes jurídicos passou a dar por meio de sua entrada nos textos culturais

que conservam a tradição, o que normalmente era feito a partir de um critério de relevância

estabelecido no momento histórico do registro. Somente os costumes registrados se

convertiam em fontes jurídicas, enquanto os demais eram relegados ao esquecimento. Assim,

como a seleção feita pelo direito escrito obedecia ao conteúdo de um crivo externo ao próprio

direito – como, por exemplo, a distinção entre os costumes que verdadeiramente

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representavam a tradição do povo ou não – pode-se dizer que essa seleção assumia um caráter

normativo.

O texto escrito permitiu também que o direito ganhasse em plasticidade temporal. Isto

porque o conteúdo das normas jurídicas passou a circular de maneira livre na sociedade e com

um conteúdo mais claro e objetivo. Consequentemente, o direito se tornou cada vez mais

capaz de abstrair de questões pontuais tratadas pelos costumes e passou a fundar regras e

princípios gerais para o convívio social. Assim, os registros escritos de costumes casuísticos,

que inicialmente foram feitos por camponeses interessados em catalogar suas indagações

sobre o direito, paulatinamente deram lugar a textos de linguagem concisa, técnica e

desvinculada dos espaços locais que originaram essas tradições. Kirste (2008, p. 135) relata

como o uso do latim na era medieval auxiliou esse processo de tornar cada vez mais técnica a

linguagem do direito escrito e fazendo dele inclusive um instrumento de dominação de uma

classe sobre outra:

Em alguns casos, esses registros eram escritos em latim, numa linguagem que os agricultores não compreendiam. Dessa maneira, o senhor feudal poderia potencialmente usá-los contra eles. Aqueles que tinham sido costumes dependentes da memória individual dos agricultores foram transformados em uma nova mídia, que permitia não somente – talvez – uma lembrança mais confiável, mas também tornava possível o esquecimento. A memória jurídica tornou-se mais seletiva e específica em sua separação da memória individual.

Com o emprego generalizado da escrita no registro do direito, a etapa seguinte de sua

evolução foi o surgimento de classes de sábios que se propuseram a investigar o direito

exclusivamente a partir do caráter lógico-normativo de suas prescrições. Assim, o direito

passou a ser analisado a partir de si mesmo e não do contexto cultural em que se originou.

Isso levou a uma radical separação da memória jurídica da memória cultural geral, dado o

caráter específico que a linguagem jurídica adquiriu nos textos culturais, o que permitiu um

progressivo avanço do conhecimento do direito sobre si mesmo. Na formação do direito

moderno, os glosadores se destacaram como primeiro movimento de estudo do direito

orientado por um método próprio de investigação desse fenômeno social:

Finalmente, profissionais da Escola do Direito de Bolonha assumiram cultivar a memória jurídica. A memória jurídica separou-se da memória cultural geral porque foi capaz de estabelecer critérios próprios de seletividade para o que poderia ser lembrado e o que poderia ser esquecido, deixado a uma tradição rural que não tinha qualquer relevância jurídica. As leis escritas permitem a abstração da situação concreta, na qual os sujeitos presentes se comunicam. A origem do texto perde relevância para determinação de seu conteúdo, deixando mais espaço para a interpretação, se a forma textual não for precisa o bastante para excluir essa

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possibilidade. A liberdade, ampliada no trato com o texto legal, pode ser usada para sistematizar determinações isoladas. (KIRSTE, 2008, p. 136).

Mas a evolução do direito não parou em sua redução à forma escrita. A reflexão sobre

o modo de produção do conhecimento jurídico permitiu a formação de sínteses conceituais

cada vez mais abstratas e impessoais das prescrições normativas. O resgate da compreensão

do direito a partir da lógica do direito romano auxiliou esse processo461. Com isso, as

realidades construídas pelo saber jurídico puderam ser agrupadas em conceitos, que por sua

vez, originaram institutos interrelacionados entre si. Pouco a pouco o direito – em especial o

direito privado, seguido, posteriormente, do direito constitucional – foi se constituindo sob a

forma de sistemas de prescrições e institutos normativos que se organizavam a partir de

princípios unificadores de seu conteúdo e que permitiam uma integração não contraditória –

isto é, não antinômica – de suas normas462.

Assim, a etapa final desse processo foi a organização do direito sob a forma de

códigos. Esses textos legais traziam em poucas centenas de dispositivos a totalidade da regras

necessárias a organização da vida civil (códigos civis) e da vida política (constituições). Ao se

expressar em códigos, a relação do direito com a temporalidade se inverteu: ao invés de

derivar o direito do passado, o legislador passou a ter ao seu alcance uma ampla liberdade

para colocar o futuro a sua disposição. O direito passou, portanto, a determinar os rumos do

tempo social, uma vez que; a) o código consiste em uma prescrição altamente racional de

comportamento para a sociedade, o que faz dele um dispositivo normativo que pretende ser

temporalmente estável no que tange a sua duração; b) o direito codificado traz uma prescrição

para o futuro, uma vez que estipula as regras que a razão humana foi capaz de depurar como

aquelas que melhor regerão a sociedade. O caráter racional do código exige, portanto, que o

legislador considere o futuro como seu horizonte temporal, já que o código promove uma

antecipação do futuro desejado pela sociedade para si própria.

Com isso, a conteúdo da memória jurídica definitivamente se desloca para um âmbito

ainda mais especializado. Os objetos da memória jurídica somente são capazes de produzir

461 Os estudos romanísticos desenvolvidos pela jurisprudência germânica – notadamente o movimento do

pandectismo – teve crucial importância nesse processo de organização conceitual do direito, cf. Wieacker (1993), Larenz (1997) e Hespanha (2005).

462 A preocupação de fundo que perpassa o hercúleo trabalho da Jurisprudência dos séculos XIX e XX de sistematização do direito era a de produzir um ordenamento livre de contradições, a fim de que o direito pudesse realizar o ideal liberal da segurança jurídica. Segundo os cânones liberais de organização da vida social, o direito deveria proporcionar aos cidadãos um conjunto de regras claras e precisas de comportamento com as quais cada indivíduo poderia organizar a sua vida privada sem correr o risco de ter as suas ações revistas pelos Tribunais. Sobre a relação entre o ideal de um ordenamento livre de antinomias e o caráter sistemático do direito, remete-se o leitor a Bobbio (1997).

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evocações dotadas de significado para um corpo profissional de indivíduos treinados no

conhecimento do direito, a saber, os profissionais e os cientistas do direito:

A antecipação que o direito faz do futuro é o fundamento da conduta jurídica. O direito feito pelo juiz e a dogmática jurídica substituem a origem costumeira do direito. Aquele ‘que encontra o julgamento’ (Urteilsfinder), na condição de portador da memória jurídica no direito germânico, passou suas tarefas para um juiz profissional, treinado. A dogmática tem precisamente uma função de memória do sistema jurídico: ela desenvolve estruturas de significado, acúmulo de experiências e seleciona e mantém latentes os argumentos não escolhidos pelo sistema central, que assim são movidos para a periferia. A dogmática jurídica está em um constante trabalho de separar lembrança de esquecimento. O sucesso dessas interpretações não é dependente de um passado difuso, de uma transmissão de eventos (Überlieferungsgeschehen, Gadamer) aos quais o intérprete tem que se alinhar. O passado ao qual o trabalhador jurídico (Müller) se reporta tem um começo temporal claro e é dependente de seu momento presente. (KIRSTE, 2008, p. 137).

No que diz respeito especificamente à Constituição, Kirste (2008) constata que no

âmbito das jurisdições das cortes constitucionais a memória jurídica se reconectaria com a

memória cultural em razão da proximidade entre a política e o direito nessa esfera. Contudo,

em referência a Kahn (1992), ele observa que a crescente profissionalização da memória

jurídica fez com que o potencial mnemônico de conservação do passado na interpretação

constitucional – por meio de uma referência à origem histórica das forças constituintes – daria

lugar a uma abordagem mais preocupada com a produção do dissenso e do consenso social463.

Assim, a atitude do jurista evoluiria na medida em que modificaria sua percepção sobre a

finalidade e a função política da constituição, introduzindo-se uma tendência interpretativa de

limitar as questões que se relacionam ao passado institucional e de hipervalorizar a

importância dos problemas operacionais presentes. Kirste (2008) denomina de ‘presentismo’

essa atitude interpretativa derivada da negativa de se colocar o horizonte do passado diante do

jurista quando é chamado a decidir questões presentes. Esse tipo de memória jurídica

produzida sob o efeito do presentismo permaneceria exercendo sua tarefa funcional sem,

contudo, colocar o direito em contato com o restante da memória cultural que a tradição lhe

lega. Como consequência, a memória jurídica perderia em normatividade e, com isso, em sua

capacidade de produzir os laços de identidade que a caracterizam464:

463 Fato que tornaria a memória de natureza mais gerencial do que declarativa propriamente dita, já que mais

preocupada em dar sequências aceitáveis para os imperativos de momento do jogo político do que em conservar imagens do passsado social vivas no corpo social.

464 O abandono do presentismo, contudo, deve ser feito com cautela. É o caso, por exemplo, do movimento surgido na Jurisprudência constitucional norte-americana, denominado originalismo. Essa perspectiva teórica defende que a interpretação constitucional deve se afiar ao texto histórico da Constituição como único modo de se preservar fielmente a intenção dos founding fathers do poder constituinte. Essa leitura da interpretação constitucional se prestaria tão somente a sustentar um posicionamento político conservador nas interpretações

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O aspecto principal da visão de Kahn sobre esse desenvolvimento da teoria constitucional é a dificuldade de manter a seletividade da memória jurídica, já que os textos legais visam a enrijecê-la. Na realização social dessa tarefa, eles dependem da apresentação de seus comandos na interpretação e na decisão. Essa reapresentação tende a ficar independente, chegando a um presentismo que questiona a função mnemônica e normativa do direito. (KIRSTE, 2008, p. 139).

O processo de codificação do direito fez com que a conservação da memória jurídica

fosse realizada em formas culturais objetivas que lhe serviram de mídias da memória,

notadamente o texto dos códigos e das constituições. Esses diplomas passaram a adquirir um

valor simbólico de destaque no seio dos grupos sociais465 como elemento de produção de

identidades coletivas. Assim, ainda que no interior dos círculos profissionais de produção e

reprodução do direito a memória jurídica esteja ameaçada pelo presentismo – que reduz as

questões interpretativas ao âmbito da dimensão temporal do presente – no que diz respeito à

relação do direito com as demais esferas sociais, o direito e suas formas culturais objetivas

ainda exercem a importante tarefa de promover o laço de identidade que promove a vida em

sociedade. Nas palavras de Dworkin (2003), a sociedade moderna vive sob o império do

direito e as questões jurídicas são permeadas de valores simbólicos importantes para o grupo

social, como a distinção moral entre agir correta ou incorretamente.

Assim, no tópico seguinte, ver-se-á como a memória, como figura simultaneamente

temporal e normativa, é chamada a exercer quatro funções necessárias à tarefa de colocar o

direito em relação com o tempo. Por meio da religação do direito com o passado, a memória

permite ao direito exercer sua incumbência de laço social que proporciona a vida em

comunidade e, assim, instituir um tempo passado portador de significado social. Como

consequência, a relação entre tempo e direito se reequilibra, afastando, assim, o risco de uma

temporalidade discrônica, isto é, desequilibrada em favor de uma dimensão temporal em

detrimento de outras.

6.2.2 O direito como guardião da memória social

constitucionais relevantes dos casos controversos e em nada contribuiriam para a preservação de uma memória constitucional. Segundo Dworkin (2010), a preservação dessa memória constitucional não se daria por um apego abstrato ao texto da lei, mas pela preservação da integridade da própria constituição. Somente assim, o seu espírito se preservaria com o desenrolar da história e das consequentes mudanças sociais e culturais.

465 Canotilho (1993) emprega a expressão ‘memórias constitucionais’ para se referir ao conjunto padronizado de imagens simbólicas que o estudante de direito porta consigo a partir de sua apreensão ordinária da experiência cultural da vivência sob uma ordem constitucional.

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Segundo Ost (2005a), a relação entre o direito e a memória constitui a base e o

fundamento da vivência coletiva do homem. Construída a partir de uma dialética de

implicações recíprocas, a relação entre direito e memória tem origem no fato de que os

eventos extraordinários e relevantes que se sucedem na história de uma sociedade acabam por

se tornar episódios portadores de um significado socialmente compartilhado entre os seus

membros, o que levaria à necessidade de seu registro e conservação pela memória da

sociedade.

A lembrança coletiva dos momentos extraordinários da vida social é responsável por

construir um sentido temporal comum para os membros de um grupo social. Por meio dela, os

indivíduos se enxergam inscritos em uma mesma linha temporal composta pela sequência

desses eventos. Com isso, difunde-se a percepção coletiva de que os membros da sociedade

estão unidos por um laço de identidade comum. Esse laço deriva da experiência de serem

participantes de uma mesma vivência histórica, isto é, de estarem sujeitos a sofrimentos e

decepções, mas também a lutas e conquistas que suportaram juntos. Assim, quando as ações

sociais e políticas – e, portanto, também o direito – fazem referência ao passado social e se

apresentam como uma parte e uma continuidade dessa história, elas gozam de maior aceitação

e legitimidade no corpo social. A memória social jurídica estaria, assim, diretamente

relacionada à promoção da solidariedade social, ao passo que quando o direito se torna

amnésico ele produziria anomia e desagregação social466.

Desse modo, sempre interessou ao direito fazer com que o passado comum da

experiência histórica coletiva permanecesse vivo na memória da sociedade. Os laços de

identidade daí decorrentes reforçam a capacidade de integração social das instituições

normativas responsáveis pela manutenção da solidariedade – dentre as quais o direito é uma

delas. Assim, o direito não abandona a memória social à sorte do processo natural de

esquecimento que se segue do transcurso temporal. Pois com a extinção da memória apagar-

se-ia também o sentimento coletivo que forja os laços de identidade acima relatados. Na

verdade, o direito intervém como um verdadeiro guardião da memória social, valendo-se de

suas prescrições para instituir o passado como um valor social a ser louvado e reverenciado467.

466 “A primeira forma do tempo jurídico instituinte é a da memória. A memória que lembra existir o dado e o

instituído. Acontecimentos que importaram e ainda importam e são suscetíveis de conferir um sentido (uma direção e uma significação à existência coletiva e aos destinos individuais. Instituir o passado, certificar os fatos acontecidos, garantir a origem dos títulos, das regras, das pessoas e das coisas: eis a mais antiga e mais permanente das funções do jurídico. Na falta de tais funções, surgiria o risco da anomia, como se a sociedade construísse sobre a areia.” (OST, 2005a, p. 49).

467 “Esta missão de guardião da memória social foi, todos os tempos, confiada aos juristas. Não tanto, ou não somente, a título de arquivistas ou notários, conservadores dos atos do passado; não tanto, ou não somente, como cérebros ciumentos das portas da legalidade; não tanto, ou não somente, como servidores apressados

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A continuidade é o modus operandi temporal utilizado pelo direito para se conectar

com o passado. O efeito de duração que ela produz faz com que o direito se inscreva na

temporalidade e proporcione estabilidade às formas normativas por ele instituídas (OST,

2005a). É por meio da continuidade das leis, dos princípios e valores jurídicos e dos rituais e

formas da prática jurídica que o direito se impõe contra a ameaça do discurso performativo do

‘totalmente novo’ das chamadas ‘sociedades de mudança’ da era contemporânea468. Na

atualidade, compartilha-se a crença de que a vontade geral469 estaria autorizada a relegar ao

esquecimento as tradições que não passam no crivo de uma escolha racional. Sob a influência

desse discurso, o passado social normativo se tornaria, assim, um amontoado de formas

culturais obsoletas e disponíveis, que apenas estariam no aguardo de serem varridas da vida

coletiva a qualquer momento pelo legislador.

Todavia, o que essa leitura da temporalidade ignora é o fato de que o passado não

consiste na parte anterior de um bloco temporal único e unidirecional – aquela etapa que ‘já

ficou para trás’ – e que, portanto, pode ser descartada, ignorada ou desligada da linha do

tempo a partir do presente. Pois, com ela varrer-se-ia também o laço de identidade que torna

possível a solidariedade social, colocando em risco qualquer projeto de uma vivência coletiva

e fazendo triunfar o projeto atomista e individualista de um libertarianismo470 radical.

dos príncipes: o direito, bem o sabemos, nunca causou repugnância, nem à reescrita dos textos, nem ao deslocamento das fronteiras do proibido, nem mesmo à fabricação de novas legitimidades. Muito mais fundamentalmente, os juristas assumem seu papel de guardiães da memória, lembrando que, através mesmo de todas estas operações de deslocamento, opera alguma coisa como uma lei comum e indisponível que foi utilizada num dado momento do passado. Não uma injunção sagrada – se bem que, na história do direito ‘a lei comum e indisponível’ tenha muito frequentemente assumido essa forma religiosa –, mas antes a consciência muito clara de que só se institui o novo com base no instituído – dito de outro modo: que há sempre uma parte de indisponível, na medida mesma em que nenhuma instituição é absolutamente nova.” (OST, 2005a, p.50).

468 Desde a era moderna – mas mais especificamente na contemporaneidade – a sociedade convive com o risco do desfazimento dos arranjos sociais sedimentados há longa data pela tradição em razão do fato de que cada vez mais o homem moderno se arvora capaz de agir social e politicamente prescindindo da memória social. Isto se dá em razão de dois fatores conjugados, a saber, a forte influência do ideal democrático, que atribui aos indivíduos a prerrogativa de definirem seu futuro no modo autônomo e livre, aliado à crença de que a deliberação racional produziria uma sociedade que se direciona a um futuro melhor em razão do progresso que lhe acompanha (OST, 2005a).

469 A ‘vontade geral’ aqui é empregada no sentido dado por Rousseau de que com a passagem do Estado de Natureza para a Sociedade Política, as vontades particulares se alienariam em favor de uma vontade coletiva destinada à realização do interesse público (NASCIMENTO, 1998).

470 O libertarianismo consiste em uma concepção de justiça formulada a partir de meados do século XX que atribui um radical valor à autonomia da vontade – e, portanto, à liberdade – como critério de aferição da justiça de uma organização social. Isso levaria a um radical atomismo no que diz respeito aos deveres de solidariedade entre os indivíduos que fazem parte do grupo social. Ao negara justiça das formas de redistribuição de riquezas, o libertarianismo aceitaria como justa a desigualdade social e de oportunidades produzida pelo sistema impessoal do livre mercado, ainda que esse sistema fosse responsável por proporcionar a mais profunda miséria a certos grupamentos menos favorecidos em talentos e oportunidades no grupo social (FARAGO, 2004; TAYLOR, 2000).

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Contra essa ameaça, a preservação da tradição se mostra como alternativa às

sociedades de mudança. Para tanto, a memória jurídica atuaria de maneira decisiva no sentido

de conservar a memória social e, assim, preservar os laços de identidade que reforçam a

solidariedade do grupo social.

Ost (2005a, p. 62) inicia a exposição sobre a relação entre o trabalho da memória

jurídica e a preservação da tradição pela definição desta última como sendo “um código de

sentido e de valores transmitidos de geração em geração”. Essa definição captura dois

aspectos importantes do fenômeno da tradição. Em primeiro lugar, o de que a tradição

consiste em uma herança. Ela permite que a geração seguinte herde as formas culturais,

crenças e práticas acumuladas ao longo da experiência social vivida pelas gerações

antepassadas. Mas também – e principalmente – o de que a tradição invoca uma autoridade.

Afinal, toda tradição é responsável por estabelecer um modo de ordenação da vida social que

se impõe com força normativa no grupo social471.

Assim, segundo Ost (2005a) a tradição se compõe de três elementos intrínsecos: ela

consiste, em primeiro lugar, em uma referência ao passado; em segundo lugar, ela se

caracteriza por exercer uma autoridade sobre a sociedade presente; por fim, a tradição se

funda na ideia de uma transmissão contínua – o passar de geração em geração – que a cada

instante faz reviver o passado no presente – ainda que o passado resgatado não seja

necessariamente real, mas apenas fictício (OST, 2005a).

Segundo Ost (2005a), a importância da preservação da tradição para se levar adiante

essa empreitada de reforço dos laços de identidade entre o grupo se deve ao reconhecimento

de sua utilidade como mapa de orientação para o comportamento social. Isso se manifesta em

dois planos distintos: no plano cognitivo, a tradição coloca ao homem do presente um

conjunto de soluções, noções e métodos que o passado lhe ensinou como úteis para resolver

os problemas que enfrenta em seu cotidiano. Como a tradição preserva as aquisições

evolutivas que o homem incorpora ao seu patrimônio cultural em sentido amplo – ao Geist,

para utilizar o termo empregado por Hegel para se referir ao produto da atividade cognitiva

humana em sua relação com a natureza (INWOOD, 1997) –, a tradição lhe proporciona uma

base de informações culturais com a qual pode contar para se orientar no presente. No plano

normativo, a tradição faz com que a lembrança social do passado assuma a forma de uma

471 “Dois traços caracterizam de chofre a tradição: a continuidade e a conformidade: há, por um lado, reatamento

com uma fonte de anterioridade; de outro, há alinhamento a um foco provido de autoridade. A tradição é uma anterioridade que cria autoridade; ela é um código de sentido e de valores transmitidos de geração em geração; ela constitui uma herança que define e mantém uma ordem: ‘ela ordena, em todos os sentidos da palavra’. O essencial na tradição é, pois, a autoridade reconhecida ao passado para regrar, ainda hoje, as questões do presente.” (OST, 2005a, p. 61-62).

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imposição. A tradição se impõe justamente porque ela impele o grupo social ao exercício de

sua memória, reforçando, assim, a sua identidade comunitária.

Por essa razão, desde seus primórdios, o direito vislumbrou nesse potencial de ordenar

e padronizar a vida social a partir da tradição um manancial de onde extrair o conteúdo e a

autoridade de suas prescrições de comportamento. Tanto é assim que, como já visto, os

costumes jurídicos assumiram a primeira espécie de memória jurídica, servindo por longa data

como fonte do direito ao longo de sua história. Mas nem mesmo a adoção da lei escrita como

expressão do direito estatal alterou o fato de que o direito continuou a retirar a sua autoridade

da continuidade do passado472.

Por um lado, a atividade cultural da interpretação jurídica, levada a cabo por juristas

teóricos e práticos, fundou, ela própria, uma tradição. As formas de se produzir e reproduzir

as normas jurídicas concretas acabaram por se fixar em determinadas formas padronizadas

que se ligaram ao passado e são transmitidas para as gerações futuras por meio dos manuais

de doutrina e prática jurídica e dos repositórios de jurisprudências. Assim, as tradições

interpretativas não apenas confeririam um determinado conteúdo às regras jurídicas escritas,

mas também teriam a importante função de orientar, normativamente, as futuras gerações de

juristas teóricos473 e práticos474 sobre como devem promover a continuidade da prática

jurídica. Isso faz com que o desenrolar da prática jurídica de uma determinada comunidade no

tempo cria, para ela, a sua própria história. A tradição jurídica lhe confere identidade e lhe

distingue em relação às demais tradições jurídicas. Essa memória jurídica conservaria, assim,

472 “Mais ainda que qualquer outra disciplina, o direito é tradição, ele se constitui através de sedimentações

sucessivas de soluções, e as próprias novidades que ele produz derivam de maneira genealógica de argumentos e razões autorizadas em um movimento ou outro do passado.” (OST, 2005a, p. 61).

473 Aqui a doutrina assume um papel crucial de instituir tradições interpretativas por meio dos manuais e livros de iniciação ao estudo dos diversos ramos do direito.

474O princípio do stare decisis, próprio do direito da Common Law, é um exemplo de como as decisões judiciais que se consolidam no seio de uma prática jurídica criam o direito segundo a sua interpretação nos tribunais e influenciam a sequência de julgamentos seguintes e, portanto, do próprio direito. Por força da sedimentação de um princípio ou de uma teoria debatidas em seu interior, tais decisões formam tradições que ensinam aos novos juristas um modo padronizado e estável de compreensão do tema jurídico tratado na controvérsia. A jurisprudência brasileira cada vez mais reconhece a importância normativa de se atribuir valor às tradições interpretativas que se formam com as decisões dos tribunais, a fim de produzir uma prática jurídica estável. Para tanto, reformas constitucionais e legislativas tiveram o cuidado de atribuir efeitos jurídicos ao reconhecimento de uma jurisprudência que se consolida no âmbito dos tribunais superiores, seja por meio da vedação do prosseguimento de recursos que tratam de temas contrários à jurisprudência consolidada (art. 544, §4º, inc. II, alíneas ‘b’ e ‘c’ do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei 12.322 de 2010; Art. 896, § 5º, da Consolidação das Leis do Trabalho, com redação dada pela Lei 9.756 de 1998), até a criação de Súmulas com efeitos vinculantes no âmbito do Supremo Tribunal Federal (Art. 103-A da Constituição da República, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004). Esse tributo pago pelo direito ao passado se dá em razão de seu compromisso em produzir justiça por meio do princípio básico da igualdade de tratamento presente na estrutura da argumentação. Quando a prática jurídica estipula que um importante fundamento para as soluções dos casos futuros é o modo como os casos decididos foram decididos no passado, a tradição se torna socialmente valorizada e adquire peso e relevância no imaginário social

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o modo de fazer (know-how) prático que permite difusão e a aplicação de inovações

legislativas no interior do ordenamento jurídico475. Assim, o direito não apenas deriva da

tradição, como também é responsável por produzi-la.

Por outro lado, o direito não conserva apenas a tradição jurídica selecionada no

interior de sua memória jurídica. Desde o advento dos Estados Nacionais, o direito moderno

serviu de instrumento para que o Estado assumisse a tarefa de garantir a continuidade da

comunidade histórica por meio da preservação de sua tradição476. Desse modo, os ‘lugares da

memória’ coletiva também se tornaram objeto de tutela e regulamentação por parte do direito,

uma vez que sempre interessaram diretamente à inserção e à duração histórica da sociedade.

Da escolha de datas comemorativas e feriados nacionais477, passando pela legislação de

proteção ao patrimônio histórico e cultural478, o Estado assume a tarefa de proteger a tradição

475 A questão de fundo que se chama atenção com esse ponto é o problema de até que ponto e com que eficácia

as legislações e institutos ‘transplantados’ ou ‘copiados’ de outros ordenamentos tendem a se desenvolver com sucesso. A facilitação da circulação de pessoas e mercadorias e o desenvolvimento de mercados comuns e zonas de livre comércio decorrentes do fenômeno da globalização exigiu dos ordenamentos jurídicos locais que se adaptassem a fim de não obstruir essa mobilidade social por meio da construção de modelos legislativos padronizados. De outro lado, o maior intercâmbio cultural entre os países faz com que os sucessos legislativos de um ordenamento se fizessem conhecidos pelos demais, despertando-se a tentação de adotar o modelo estrangeiro na legislação local. Essa questão não é nova na teoria jurídica e o debate se estende desde a reação da Escola Histórica à implementação de um código civil de natureza semelhante ao Código Civil de 1804 entre os alemães (WEIACKER, 1993). O debate cinge-se em torno da recepção – e da consequente aplicabilidade e legitimidade –dos novos institutos pelo chamado Espírito do Povo (Volksgeist) em torno do qual se constrói o direito. Se por um lado, este conceito soa como uma imagem idealizada de uma comunidade unida em torno de valores únicos, é inegável o fato de que cada ordenamento jurídico possui a sua própria especificidade que lhe é dada por sua tradição cultural e não necessariamente institutos que foram introduzidos com sucesso em legislações estrangeiras gozaram do mesmo efeito no ordenamento local.

476 “Por outro lado, com Éric Weil, concordamos em dizer que o Estado organiza uma ‘comunidade histórica’, será preciso notar o papel essencial do direito do Estado na institucionalização da tradição nacional, esta identidade narrativa e simbólica, este conjunto de normas e de símbolos que definem a nação na sua continuidade histórica. A primeira função do Estado é, a esse respeito, garantir a existência durável desta comunidade histórica, inscrever a sua ação numa história que lhe seja própria e contribuir, assim, para a realização da ‘ideia de direito’ de que esta nação é portadora.” (OST, 2005a, p. )

477 Cf. Leis 662/49 e 9.093/95. 478 O art. 216 da Constituição da República diz “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,

ecológico e científico; §1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro,

por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (BRASIL, 1988).

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nacional e, assim, sua identidade. Essa união em torno de valores cívicos comuns reforçaria a

coesão social e contribuiria para legitimidade do próprio direito.

Assim, o direito mantém um elo necessário com o passado, já que essa dimensão

temporal aponta para a continuidade do grupo no tempo, mesmo diante da ininterrupta

sucessão de gerações. A tradição não é, contudo, um passado morto. Ele ressurge no presente,

pois é somente no aqui e agora do cotidiano dos indivíduos que as tradições são reavivadas a

fim de organizarem a vida social. Caso contrário ela seria mera curiosidade histórica e não

serviria de referência dotada de autoridade para guiar o comportamento social:

Mas, ainda aqui, não poderemos nos contentar com registrar passivamente a ressurgência do antigo no atual: não mais que a memória era o simples receptáculo de recordações acumuladas, não mais a tradição é a soma exata de todos os passados. Uma tradição viva, como uma língua viva, é incessantemente atualizada e transformada: ‘presença do passado’, dizemos algumas vezes; não a lembrança de um vestígio esquecido, como a exumação de um achado arqueológico, mas antes, do passado tornado presente, do passado recomposto a partir do presente – a questão da veracidade ou mesmo, pura e simplesmente, de sua credibilidade sendo, uma vez mais, bastante secundária no que diz respeito aos seus lances normativos. (OST, 2005a, 61).

Mas se por um lado a memória jurídica é, ao mesmo tempo, tributária e criadora da

tradição, ela não aceita de maneira irrefletida todo o conteúdo que se lhe apresenta pelo

simples fato de que originário de uma autoridade que se impõe por sua duração temporal. A

memória jurídica – como toda memória cognitiva – não deixa de submeter as tradições ao

crivo da razão479, a fim de que sejam reconstruídas, reinterpretadas480 e, no extremo,

479 Essa questão é expressa particularmente na crítica de Habermas a Gadamer, fruto de em um longo e rico

debate que ambos estabeleceram nos anos 70 e 80 e condensado na coletânea Dialética e Hermenêutica: Para a crítica da Hermenêutica de Gadamer (1987), onde se lê: “Gadamer visa aquele tipo de processo de formação através do qual a tradição (Überlieferung) é transposta para os processos individuais de aprendizagem (Tradition). A pessoa do educador legitima aqui preconceitos que são inculcados (eingebildet) no educando com autoridade, e isto quer dizer, como quer que o encaremos: sob potencial ameaça de sanções e com perspectivas de gratificações. A identificação com o modelo produz a autoridade, só através da qual é possível uma interiorização de normas e, portanto, a sedimentação de preconceitos. Os preconceitos são, por sua vez, as condições do conhecimento possível. Este conhecimento se eleva à reflexão quando ele torna transparente o quadro de referência normativo, à medida que ele se movimenta dentro desse. Assim, a hermenêutica eleva à consciência aquilo que nos atos de compreensão sempre esteve preestruturado historicamente através de tradições inculcadas (...) Todavia o substancial do historicamente pré-dado não fica intocado ao ser assumido na reflexão. A estrutura preconceitual que se tornou transparente não pode mais funcionar à maneira de preconceito. Mas e exatamente isso que Gadamer parece supor. Que autoridade convirja com conhecimento, equivaleria a dizer que a tradição, que atua por trás do educador, legitimaria os preconceitos inculcados aos da nova geração; e que só se poderiam, então, ratificar na reflexão dos mais jovens. Ao certificar-se da estrutura preconceitual, o jovem tornado maduro transporia o reconhecimento, antes não-livre, da autoridade pessoal de preceptor, agora refletidamente, para a autoridade objetiva de um contexto da tradição. Só que a autoridade teria permanecido autoridade, pois a reflexão só poderia ter-se movido nos limites da faticidade do transmitido (Überlieferten). O ato do reconhecimento que é mediado pela reflexão, não teria alterado nada no fato de que a tradição enquanto tal permaneceu a única razão da validade do preconceito.” (HABERMAS, 1987, p. 17).

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condenadas ao esquecimento forçado se, ao invés de cumprirem o ideal de valorização do

convívio social, deplorarem-no.

O estudo da relação entre tradição e memória social revelou que o resgate daquela por

meio das operações de lembrança e esquecimento desta foram responsáveis pela produção de

uma identidade social que se forma no curso da vivência histórica. Isto ocorre porque a

memória faz com que a história coletiva possa ser narrada e, assim, os fatos históricos deixem

de ser um amontoado de acontecimentos esparsos e ganham uma unidade temporal. No tópico

seguinte, estudar-se-á se de que maneira a narrativa constrói essa unidade temporal e de

maneira ela implica uma operação de seleção e esquecimento própria da memória. Pretende-

se, com isso, demonstrar que a evolução interpretativa do direito sobre um tema ou instituto

qualquer goza dessa mesma propriedade de ser narrável e, assim, concluir que é possível se

falar na memória jurídica como uma metanarrativa da própria atividade interpretativa do

direito.

6.3 A memória jurídica como metanarrativa da interpretação jurídica

No quarto capítulo, a pesquisa investigou o pensamento de Ronald Dworkin com a

finalidade de apresentar como sua teoria incorporou o problema da relação entre o direito e a

temporalidade na interpretação jurídica. Na oportunidade, viu-se que a análise do que seria o

conceito do direito abandonou a perspectiva semântica até então adotada pela filosofia

jurídica positivista. O positivismo acreditava poder assumir a perspectiva de um observador

externo a fim de descrever o conceito de direito a partir de uma propriedade intrínseca à

prática jurídica. Em seu lugar, Dworkin (2003) abraçou a atitude interpretativa em relação à

prática jurídica e, ao invés de procurar uma definição do direito a partir do uso linguístico que

os juristas fazem da expressão direito, Dworkin (2003) sugeriu que o direito é um conceito

interpretativo e que, portanto, nasceria de uma interpretação e não de uma definição. Para ele

o direito é uma prática social interpretativa e, por essa razão, pode originar distintos modos de

480 Nesse sentido, a memória jurídica também guardaria a propriedade de ser derivada de um processo de dupla

tradução, como a memória biológica. Um primeiro filtro da memória jurídica se dá no instante de sua formação. Esse momento encontra-se condicionado pelos valores e ideiais que enfatizam a lembrança de determinados aspectos da experiência social em detrimento de outros que são temporária ou definitivamente esquecidos. O segundo filtro é aquele presente no instante da recordação e impõe uma nova transformação da imagem conservada no imagniário coletivo em um sentimento presente, vivenciado e experimentado por aqueles que fazem parte do grupo. Da mesma maneira como os seres humanos podem experimentar diferentes imagens de uma determinada memória, conforme se processa essa segunda tradução, uma mesma imagem conservada no imaginário coletivo pode resultar em distintas recordações conforme se dá esse processo de tradução da memória em sentimento.

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ser compreendida, segundo a ênfase dada a uma ou outra característica dessa prática. As

diferentes interpretações sobre o que consiste a prática jurídica originariam diferentes

concepções do direito. Mais especificamente, a divergência interpretativa entre as concepções

de direito teria origem na divergência entre convicções sobre moralidade política dos

intérpretes, que os levariam a adotar distintas justificativas para o uso do poder político pelo

Estado.

Essa guinada de Dworkin em direção a uma abordagem interpretativa da prática

jurídica permitiu que a teoria jurídica incorporasse a questão da instituição do tempo social

em seu interior. Cada leitura global da prática jurídica – isto é, cada uma de suas concepções –

enfatizou uma ou outra dimensão temporal como consequência do modo como o intérprete

define o fundamento e a força do direito nessas concepções. O convencionalismo e o

pragmatismo, por exemplo, privilegiaram as dimensões do passado e do futuro,

respectivamente, em suas leituras interpretativas sobre a força e o fundamento do direito. Já o

direito como integridade defendido pelo próprio Dworkin (2003) colocou em equilíbrio as

dimensões temporais do passado, do presente e do futuro. Ao estabelecer que a força e o

fundamento do direito se assentam na ideia de tratamento dos cidadãos pelo Estado com

‘igual respeito’ (equal concern) – o que denominou de maneira sintética com a expressão

‘integridade’ – o raciocínio jurídico teria se preocupado em observar essas duas dimensões

temporais. De um lado, o fundamento das interpretações feitas no presente seria encontrado

no melhor princípio derivado de uma análise de conjunto do material jurídico produzido no

passado; de outro, o recurso aos princípios como fundamento das interpretações garantiria que

as decisões futuras sobre questões semelhantes contariam com um standard construído pela

comunidade jurídica como a melhor leitura possível para a continuidade da história do direito.

No derradeiro tópico da presente investigação, propõe-se demonstrar que a teoria

dworkiana do direito como integridade recorre a uma descrição do raciocínio jurídico que

aponta para a existência de uma memória jurídica exercida pela comunidade jurídica em sua

atividade de interpretação do direito para a solução dos casos difíceis. Como visto no capítulo

anterior, por meio da seleção e do esquecimento, a memória organiza a experiência do

indivíduo no tempo em uma narrativa que situa temporalmente a sua ação. Assim, pretende-se

correlacionar a descrição do modus operandi do raciocínio jurídico construída por Dworkin

no seu direito como integridade – notadamente o ‘romance em cadeia’ e a metáfora da

atividade do Juiz Hércules em sua busca pela resposta correta nos casos controversos – com

os elementos que caracterizam o discurso narrativo, tal como expostos por Paul Ricoeur

(1994) em Tempo e Narrativa. Essa memória jurídica consistiria na síntese que a comunidade

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interpretativa do direito faz de sua própria atividade no tempo: a partir do presente, o jurista

ordenaria o passado de maneira narrativa a fim de construir uma continuidade coerente para a

estória do direito. Se se puder identificar a presença dos elementos que integram o discurso

narrativo – que Ricoeur (1994) reserva para a narrativa literária e para a narrativa histórica –

na metanarrativa que o jurista constrói como condição de possibilidade do raciocínio jurídico,

ter-se-á caracterizada a memória jurídica como elemento componente da interpretação

jurídica.

6.3.1 Do caráter narrável do direito

Na primeira parte de Tempo e Narrativa, Paul Ricoeur (1994) se propôs ao desafio de

estabelecer a existência de uma circularidade entre a narrativa e a experiência da

temporalidade própria do homem. Segundo Ricoeur (1994), toda vez que o mundo humano é

exibido de maneira narrativa, ele se torna um mundo temporalmente situado481. Isto porque a

narrativa organizaria a experiência temporal de modo a conferir inteligibilidade a um

emaranhado caótico e sem sentido de eventos temporais. Por essa razão, Ricoeur (1994)

desenvolve a tese de que a narrativa seria capaz de solucionar o paradoxo do tempo482 que o

homem enfrenta desde Agostinho. Recorrendo à análise dos gêneros literários da Poética de

Aristóteles e à forma como ele constrói o modelo da tessitura da intriga, Ricoeur (1994)

afirma que o discurso narrativo seria capaz de proporcionar uma concordância temporal,

quando a experiência da temporalidade apenas apontaria para uma discordância entre o

presente e as demais dimensões temporais.

O discurso narrativo se caracterizaria a partir de um par conjugado de dois elementos:

a mimese, que é a propriedade de representação ou imitação de uma ação do mundo real; e o

481 “(...) o desafio último, tanto da identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência de verdade de

toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. Ou, como será frequentemente repetido nesta obra: o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.” (RICOEUR, 1994, p. 15).

482 O paradoxo lançado por Agostinho é o de se definir como seria possível ao tempo ser, se ao se falar dele o mesmo já-teria-sido: “Mas se é verdade que falamos do tempo de modo sensato e em termo positivos (será, é, foi), a importância para explicar o como desse uso nasce precisamente dessa certeza. O dizer do tempo resiste certamente ao argumento cético, mas a própria linguagem é posta em questão pela separação entre o ‘que’ e o ‘como’. Conhecemos de cor o grito de Agostinho no limiar de sua meditação ‘O que é afinal o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se alguém me pergunta e quero explicar, não sei mais’. Assim o paradoxo ontológico opõe não somente a linguagem ao argumento cético, mas a linguagem a si mesma: como conciliar a positividade dos verbos ‘ter passado’, ‘advir’, ‘ser’, e a negatividade dos advérbios ‘não... mais’, ‘ainda não...’, ‘nem sempre’? A questão é pois circunscrita: como o tempo pode ser, se o passado não é mais, se o futuro não é ainda e se o presente nem sempre é?” (RICOEUR, 1994, p. 23). Sobre essa questão, remete-se o autor ao capítulo 2 da presente investigação.

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muthos, que consiste na capacidade poética de agenciamento dos fatos em uma sequência

ordenada483. O par mimese-muthos originaria a figura da constituição da trama ou tessitura da

intriga. Esta seria a atividade – isto é, o fazer humano – de narrar uma composição capaz de

produzir uma estória capaz de tornar inteligível uma sequência episódica de acontecimentos

que se sucedem temporalmente.

Ricouer (1994, p.63) chama atenção para o fato de que o discurso narrativo não se

caracterizaria pelo recurso à forma da narrativa literária como a que se verifica em um

romance, por exemplo – ou, em termos técnicos, que assume a forma da composição

diegética. Desde que o par mimese-muthos acima descrito possa ser apreendido do conjunto

ou do espírito da obra produzida, é possível se falar na existência do discurso narrativo, ainda

que expresso sob outro gênero:

A distinção proíbe-nos de reunir epopeia e drama sob o título de narrativa? De modo algum. Primeiro, não caracterizamos a narrativa pelo ‘modo’, isto é, pela atitude do autor, mas pelo ‘objeto’ posto que chamamos de narrativa exatamente o que Aristóteles chama de muthos, isto é, o agenciamento dos fatos.

Assim, é certo que a interpretação jurídica não se expressaria sob a forma do gênero

narrativo enquanto ‘modo’ de apresentação do discurso e do raciocínio jurídico. A

interpretação jurídica permaneceria sendo uma atividade hermenêutica e eminentemente

argumentativa cuja forma de expressão linguística e de raciocínio segue essas características.

Afinal, não se imagina, pelo menos como regra geral, que juízes e advogados apresentem seus

argumentos interpretativos nos tribunais e nos artigos acadêmicos orientados tão somente pela

busca de uma coerência narrativa nos fatos ou argumentos que expõem484. O que Dwokrin

483 “A Poética de Aristóteles só tem um conceito englobante, o de mimese. Esse conceito só é definido

contextualmente num só de seus empregos, o que nos interessa aqui, a imitação ou a representação da ação. Mais precisamente ainda: a imitação ou a representação da ação no meio da linguagem métrica, logo acompanhada de ritmos (a que se acrescentam, no caso da tragédia, exemplo princeps, o espetáculo e o canto). Mas é a imitação ou a representação própria da tragédia, da comédia e da epopéia que é a única levada em conta (...) A segunda expressão é, como se disse, o definidor que Aristóteles substitui ao definido muthos, intriga. Essa quase identificação é assegurada por uma primeira hierarquização entre as seis partes [da tragédia], que dá prioridade ao ‘que’ (objeto) da representação – intriga, caracteres, pensamento – em relação ao ‘por que’ (meio) –, a expressão e o canto –, e ao ‘como’ (modo) – o espetáculo; depois, por uma segunda hierarquização no interior do ‘que’, que coloca a ação acima dos caracteres e do pensamento (‘é que se trata antes de mais nada de uma representação da ação (mimese praxeôs) e, somente por isso, de homens que agem’. No final dessa dupla hierarquização, a ação aparece como a ‘parte principal’, o ‘fim visado’, o ‘princípio’ e, se se pode dizer, a ‘alma’ da tragédia. Essa quase identificação é assegurada pela fórmula: ‘É a intriga que é a representação da ação’.”(RICOEUR, 1994, p. 54).

484 “Sugeri, na seção anterior, que nosso sistema jurídico pode assemelhar-se a essa forma do exercício literário. Na verdade, apresentei em outra parte uma teoria da prestação jurisdicional que oferece a seguinte descrição de nossa atividade jurídica. Uma proposição de Direito, como a proposição de que o contrato de Tom é válido, é verdadeira se a melhor justificativa que se pode fornecer para o conjunto de proposições de Direito tidas como estabelecidas fornece um argumento melhor a favor dessa proposição que a favor da proposição

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(2001; 2003) pretende expor com a tese do romance em cadeia é que o intérprete enxerga a

sua atividade interpretativa inserida em uma estória da qual são personagens os membros da

comunidade jurídica que faz parte. Portanto, o jurista estaria inevitavelmente às voltas com o

seu passado a fim de encontrar os princípios jurídicos capazes de fundamentar a solução de

um determinado caso, da mesma maneira que sua decisão consistiria na busca de uma

resposta que confere a melhor continuidade para a sequência da história institucional do

direito485. Assim, a tarefa interpretativa exige que o jurista lance um olhar metanarrativo sobre

a evolução interpretativa de um determinado tema, instituto ou do próprio direito como etapa

necessária do raciocínio jurídico. Como essa reconstrução evolutiva teria por objeto o

desdobramento de ações perpetradas por homens no mundo histórico486 – ações que foram

contrária, de que o contrato de Tom não é válido, mas é falsa se essa justificativa fornece um argumento melhor a favor dessa proposição contrária. Há diferenças importantes entre a ideia de coerência empregada nessa descrição do raciocínio jurídico do raciocínio jurídico e a ideia de coerência narrativa utilizada no exercício literário. O raciocínio jurídico faz uso da ideia de coerência normativa, que é claramente mais complexa que a coerência narrativa e, pode-se considerar, introduz novos fundamentos para afirmações de subjetivismo. Não obstante, a comparação talvez ajude a explicar por que é razoável supor que possa existir uma resposta correta para a questão de se o contrato de Tom é ou não válido, mesmo que a resposta não possa ser demonstrada.” (DWORKIN, 2001, p.211).

485 Foi o fato de não perceber a distinção entre o âmbito da interpretação jurídica propriamente dita – que exige a coerência normativa própria da hermenêutica jurídica – e o âmbito dessa compreensão temporal que o jurista tem de sua atividade como resultado final de sua tarefa interpretativa – denominada por Dworkin de coerência narrativa – que levou um crítico como Castanheira Neves (2000, p. 466) a depreciar a narratividade na teoria jurídica e afirmar que a racionalidade narrativa não se lhe aplicaria: “Com efeito, não é de acontecimentos e de ações (sejam estas de ‘acteurs’ ou de ‘actants’), mas de valores, direitos e princípios que nos fala o pensamento daquele Autor [Dworkin], e por isso a intencionalidade fundamental do mesmo pensamento é normativa e não narrativa – o seu intencional problema, perante a prática social, não é o de sua inteligibilidade (seja mediante as possibilidades da experiência discursiva que a narre, seja mediante os quadros teóricos de uma analítica estrutural), mas o da validade (a validade prático normativa com que a axiológica normatividade jurídica interroga a prática social). Os dois universos são diferentes, os dois discursos também. O que se verifica é que essa validade acaba sendo pensada de um modo que convoca uma ‘coerência’, como o seu sentido e o seu fundamento últimos – e se não exatamente ‘narrativa’, é de índole também diferente da que corresponderia tão-somente a uma estrita, e já antes aludida, coerência normativa. Trata-se afinal da coerência hermenêutica – como rapidamente, se reconhecerá, e que nos interessa considerar para compreendermos, também por este lado, que a índole rigorosamente normativa (normativo-metodológica) da interpretação jurídica apenas poderá assumir para além de uma perspectiva hermenêutica. Assim como a exigência de validade, também normativa, que postula terá de pensar-se de modo diverso do que permitira a coerência hermenêutica”. O equívoco contido no posicionamento acima nasce de uma incompreensão quanto ao papel da coerência narrativa na interpretação. Dworkin (2003) não fala de uma resposta correta derivada da coerência narrativa – até porque a resposta correta não é uma resposta objetivamente correta (DWORKIN, 1996) – como se a coerência narrativa capitaneasse o resultado da interpretação jurídica. O que se dá é justamente o contrário: a coerência narrativa seria a consequência da adoção de uma reflexão argumentativa séria sobre os princípios em jogo e juristas competentes poderiam perfeitamente divergir sobre qual deles proporcionaria a resposta correta ao caso. Contudo, ainda que concluindo que interpretações diferentes seriam a correta para um determinado caso, ambos o fariam com a convicção de que sua interpretação é aquela que dá a melhor continuidade para a história institucional do direito.

486 Ricoeur (1994) distingue dois grandes campos da narrativa: a narrativa de ficção e a narrativa histórica. A metanarrativa da interpretação jurídica acima apresentada se enquadraria no segundo tipo. Afinal, nela não se verificaria o elemento da imaginação e da criação literária próprias da narrativa de ficção.

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tomadas coletivamente por aquilo que se convencionou chamar de comunidade jurídica – elas

seriam passíveis de serem narradas487.

A metanarrativa da evolução de um tema, de um instituto ou do direito como um todo

atuaria como condição de inteligibilidade do resultado da atividade interpretativa. Mas para

que seja possível identificar uma competência narrativa no discurso histórico que o direito

constrói sobre si próprio, é preciso antes estabelecer em que bases o próprio discurso histórico

é narrativo. Se a presença desses elementos do princípio estrutural da narrativa estiverem

presentes no raciocínio jurídico delineado por Dworkin (2003) em sua concepção do direito

como integridade, será possível sustentar a existência da memória jurídica como elemento que

organiza a experiência da comunidade jurídica no tempo e confere significado à atividade do

jurista.

6.3.2 Os elementos da estrutura narrativa segundo Paul Ricoeur

Segundo Ricoeur (1994), o reaparecimento do problema da narrativa na historiografia

se deu em razão da crise do modelo nomológico de explicação da história. Por força da

influência do hegelianismo-marxismo e do cientificismo, os historiadores do séc. XIX e do

início do séc. XX compartilhavam a crença de que os movimentos da história poderiam ser

explicados por meio de ‘leis’ que expressariam a sua causa ou princípio motor. A tarefa do

historiador, por sua vez, não seria apenas a de levantar e reunir fatos históricos a fim de

apresentar o passado, mas também – e principalmente – descobrir ou relevar quais seriam as

leis que explicam o movimento e a evolução histórica por meio da análise dos dados brutos

coletados do passado.

Ricoeur (1994) identifica no trabalho teórico dos historiadores William Dray e George

H. Von Wright o caminho pelo qual se tornou possível a passagem do modelo nomológico

para o modelo narrativista. Seu trabalho foi importante pelo fato de que as trilhas por eles

abertas permitiram que os historiadores que lhes sucederam pudessem reconhecer o caráter

eminentemente narrativo da historiografia e, assim, estruturar os elementos caracterizadores

da narrativa histórica.

Segundo Dray (2000), o primeiro passo para substituir o modelo nomológico seria

dissociar as noções de explicação e de lei, isto é, rejeitar a ideia de que toda explicação

histórica envolveria necessariamente a apresentação de uma lei inexorável do movimento

487 Sobre o tema, confira-se o artigo de Barbosa (2008).

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histórico488. Ricoeur (1994) aponta que, segundo o autor, a explicação causal da história

poderia assumir a forma de uma explicação por razões. O seu argumento é o de que a

subsunção da história a um modelo nomológico não seria uma condição necessária nem uma

condição suficiente para que os acontecimentos fossem explicados segundo as teses que

defendem a existência de uma lógica intrínseca ao movimento histórico. Na medida em que o

historiador amplia o detalhamento de sua coleta de dados históricos de uma determinada

época, a subsunção torna-se impossível de ser generalizada. Por outro lado, o modelo

nomológico assumiria a premissa de que o comportamento humano é orientado por um

determinismo, o que obrigaria a história a ignorar a ampla gama de ações possíveis ao homem

em razão de sua liberdade.

Assim, em lugar do modelo nomológico, o historiador deveria recorrer a um modelo

de explicação por razões (rational explanation) (DRAY, 2000). Segundo esse modelo, a

tarefa do historiador seria a de reconstruir as razões que levaram um agente a agir de um

determinado modo:

Uma vez que os historiadores, como foi notado ao considerarem a explicação racional, sempre carregam em seu trabalho, implícita ou explicitamente, uma visão da ação humana como menos do que completamente determinada, isso deveria fazer explicações ‘como-foi-possível’ um gênero de especial interesse para eles. A questão aqui (como no caso da explicação racional) não é, é claro, se essa assunção controversa será aceita. O argumento é mais que, sobre uma suposição que muitos historiadores fazem, a explicação, ao mencionar apenas as condições especialmente necessárias, pode ser o único tipo pela qual faz sentido procurar. (DRAY, 2000, p. 227, Tradução nossa). 489

O historiador deveria seguir um raciocínio que se assemelha ao do jurista. Na

explicação de um determinado movimento histórico, o historiador seria obrigado a apresentar

488 “The need for explanation arises out of the apparent unlikelihood, or even impossibility, of what occurred; the

explanation takes the form of a rebuttal of the presumption that it could not occur. The question answered is not why the thing happened, but how it could be that it happened; and the claim would be that such explanation how-possibly rather than why-necessarily (or even why-probably) is not incomplete in covering-law explanation, but explanation of a different kind—an application, once again, of a different concept of explanation.” (DRAY, 2000, p. 226). (Tradução nossa: “A necessidade de explicação nasce da aparente improbabilidade ou mesmo impossibilidade, do que ocorreu; a explicação assume a forma de uma presunção que ela não poderia ocorrer. A questão respondida não é porque a coisa aconteceu, mas como ela pôde ser de tal forma que chegou a acontecer; e a pretensão seria que tal explicação ‘como-foi-possível’ ao invés de ‘porque-necessariamente’ (ou mesmo ‘porque-provavelmente’) não é incompleta na explicação coberta pela lei, mas a explicação de um tipo diferente – uma aplicação, mais uma vez, de um conceito diferente de explicação.”).

489 “Since historians, as was noted in considering rational explanation, often carry into their work, implicitly or explicitly, a view of human action as less than fully determined, this should make how-possibly explanation a genre of special interest to them. The issue here (as in the case of rational explanation) is not, of course, whether this controversial assumption is to be accepted. The point is rather that, under an assumption which many historians make, explanation citing only especially significant necessary conditions may be the only kind it makes sense to look for.”.

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argumentos fortes para justificar as razões empregadas pelos agentes como determinantes para

seu comportamento. Com isso, a historiografia abandonaria a lógica da subsunção dos fatos à

lei histórica e situaria a atividade do historiador no campo da avaliação. Com o

reconhecimento de que: 1) há uma completa fragmentação dos episódios históricos e que cada

um deles possui a sua lógica própria, sem uma conexão necessária com os demais; e 2) que as

ações dos agentes históricos são explicadas em bases racionais, Ricoeur (1994, p. 187) afirma

que a partir da obra de Dray (2000) seria possível construir um elo narrativo que une as ações

humanas no curso da história:

W. Dray não se interrogou sobre as relações de sua análise com a da armação da intriga. O parentesco das duas abordagens é notável. Num ponto, é particularmente marcante: o autor observa que uma explicação por razões comporta um tipo de generalidade ou de universalidade que não é a de uma lei empírica: “Se y é uma boa razão para A fazer x, y seria uma boa razão para qualquer um suficientemente semelhante a A fazer x em circunstâncias suficientemente semelhantes”. Reconhecemos a probabilidade invocada por Aristóteles: “O que um homem diria ou faria necessária ou verossimilmente”. O autor está ocupado demais em polemizar contra o método nomológico e em distinguir o princípio de uma ação de uma generalização empírica para se interessar por esta intersecção da teoria da história com a teoria da narrativa, como o tinha feito antes com a teoria da ação. Mas não se pode esquecer a distinção aristotélica entre ‘um por causa do outro’ e ‘um depois do outro’, quando William Dray defende a polissemia do termo ‘porque’, contra qualquer univocidade em termos nomológicos.

Segundo Ricoeur (1994), uma segunda etapa do movimento que levou a historiografia

a se inclinar em direção à teoria narrativa foi a introdução do modelo ‘quase-causal’ de ação

de Georg H. Von Wright. Para Wright (1971), o problema da historiografia estaria ligado às

relações de condicionalidade entre estados anteriores e estados ulteriores do movimento

histórico, à semelhança do que ocorre na descrição dos sistemas físicos dinâmicos. Assim,

Wright (1971) toma como ponto de partida de sua análise, as relações lógicas que se

estabelecem para a sucessão de eventos no universo do mundo físico. Segundo a lógica

proposicional, eventos físicos são independentes entre si. Eles somente ganham unidade a

partir da constituição, por meio da linguagem, de um estado total ou de um mundo possível.

Da mesma maneira, a história também consistiria de uma sucessão de estados de coisa

autônomos entre si. A ligação entre os eventos históricos nasceria de uma construção do

historiador que, por meio de uma representação criadora, reuniria os episódios históricos

formando um estado total. É como explica Ricoeur (1994, p. 192):

Nessa etapa da análise lógica, quase não se vê que passo demos em direção à compreensão prática e histórica. Uma primeira extensão significativa concerne à adição ao sistema de um princípio de desenvolvimento. O autor [Wright] o faz do

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modo mais simples, adicionando uma ‘tense-logic’ rudimentar à sua lógica proposicional bivalente. Ao vocabulário desta, acrescentamos um novo símbolo T que se reduz a um conectivo binário. “A expressão ‘p T q’ lê-se: ‘agora o estado p ocorre, e depois, isto é, na próxima ocasião, o estado q ocorre ...’ Um interesse particular é atribuído ao caso em que se trata da descrição de estados. A expressão total enuncia, então, que o mundo está agora num certo estado total e que, na próxima ocasião, estará num certo estado total, o mesmo ou diferente, segundo o caso.” Caso se considere, ademais, que p e q, que enquadram T, podem também conter o símbolo T, constroem-se cadeias de estados marcados quanto à sucessão, que permitem designar os fragmentos da história do mundo, onde o termo history designa, ao mesmo tempo, a sucessão de estados totais do mundo e as expressões que descrevem essa situação.

A consequência dessa abordagem é o reconhecimento de que toda história é construída

pelo homem e que nessa construção há uma liberdade de movimento decorrente da

indeterminação própria do mundo. Contudo, segundo Ricoeur (1994), faltaria ao modelo de

Wright (1971) o reconhecimento de um fio condutor capaz de unir esses elementos não a

partir de uma explicação quase-causal, mas sim enquanto síntese do heterogêneo, que

produziria uma unidade inteligível à qual ele se refere como constituinte da história.

Foi por meio da constatação dessa deficiência de inteligibilidade no modelo

nomológico que a historiografia passou a investigar de que maneira a narrativa seria o

elemento ausente da teoria historiográfica, responsável por promover o elo entre os fatos

históricos que a explicação quase-causal não foi capaz de proporcionar. A partir de então,

teoria da história passou a investigar os elementos caracterizadores do princípio estrutural

narrativa, a fim de associá-los como componentes intrínsecos à prática da historiografia.

Nos itens que se seguem pretende-se apresentar os elementos constituintes do

princípio estrutural da narrativa historiográfica. A finalidade será a de verificar a presença

desses elementos na metanarrativa construída pelo raciocínio jurídico como condição de sua

atividade. Desse cotejo será possível atestar o caráter narrativo assumido pelo raciocínio

jurídico em sua tarefa de organizar a experiência interpretativa da comunidade jurídica no

tempo e situar o intérprete temporalmente em sua atividade.

6.3.2.1 A frase narrativa

Segundo Ricoeur (1994), o primeiro passo em direção a uma aproximação entre a

narrativa e a história se deu com Arthur Danto e a compreensão da historiografia a partir da

filosofia analítica. Danto (1962) identificou que toda análise histórica seria construída por

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meio de enunciados intrinsecamente narrativos490, o que contrastaria com o movimento

positivista verificado na historiografia de seu tempo.

Segundo Danto (1962) os cânones científicos do modelo positivista teriam feito a

história sucumbir ao ideal empirista de produzir um relato perceptivo-descritivo dos eventos

históricos. Como visto no capítulo anterior, a historiografia positivista pretendeu apresentar os

fatos históricos ‘tal como ocorreram’. No entanto, Danto (1962) demonstrou que essa

proposta somente poderia ser levada a cabo se o historiador assumisse dois pressupostos: 1) o

passado consistiria em um receptáculo fixo e imutável de eventos491; 2) sendo o passado fixo

e imutável, a história seria tanto mais precisa quanto mais o historiador se identificasse com a

figura de um ‘Cronista Ideal’ capaz de relatar a totalidade dos fatos históricos perceptíveis aos

seus olhos492.

490 “My thesis is that narrative sentences are so peculiarly related to our concept of history that analysis of them

must indicate what some of the main features of that concept are.” (DANTO, 1962, p. 146). (Tradução nossa: “Minha tese é que frases narrativas são tão peculiarmente relacionadas ao nosso conceito de história que a análise delas deve indicar que algumas das principais características que são desse conceito.”).

491 “Let the Past be considered a great sort of container, a bin in which are located, in the order of their occurrence, all the events which have ever happened. It is a container which grows moment by moment longer in the forward direction, and moment by moment fuller as layer upon layer of events enter its fluid, accomodating maw. The forward lengthening of the Past is irrepressible, and regular; and once within the container, a given event E and the growing edge of the Past recede away from one another at a rate which is just the rate at which Time flows. E gets buried deeper and deeper in the Past as layer after layer of other events pile up. But this constantly increasing recession away from the Present is the only change E is ever to suffer: apart from this it is utterly impervious to modification. E, moreover, will generally be but one of a set of events which enter the Past together. In this case, E and its contemporaries constitute an exclusive class, in the sense that no further event will henceforward join them as, so to speak, a new contemporary. So the Past is not to change either through any modification of E apart from its momently increasing pastness, or through the addition of some other event contemporary with E which E lacked as a contemporary upon its entry into pasthood.” (DANTO, 1962, p. 150). (Tradução nossa: “Deixe o passado ser considerado uma grande espécie de container, uma lata em que estão localizados, na ordem de sua ocorrência, todos os eventos que um dia aconteceram. É um container que se torna maior momento a momento na direção futura e momento a momento mais cheio à medida que camada após camada de acontecimentos entra em sua cavidade. A duração em direção ao futuro é irrepresável e regular e uma vez dentro desse container um dado evento E e o crescente limite do passado se distanciam um do outro em uma taxa idêntica à do fluxo do tempo. E se enterra cada vez mais profundamente no passado à medida que camadas e camadas de eventos se acumulam sobre ele. Mas esse constante afastamento de E em relação ao presente será a única mudança que E irá sofrer: exceto isso, E será impermeável a qualquer tipo de modificação. E, além disso, irá geralmente ser um de um conjunto de eventos que entra conjuntamente no passado. Nesse caso, E e seus contemporâneos constituem uma classe exclusiva, no sentido de que nenhum evento irá, portanto, se unir a eles posteriormente como um novo contemporâneo. Aqui o passado não irá se modificar por meio de nenhuma modificação de E, exceto o fato de seu momentaneamente crescente distanciamento do passado, ou por meio da adição de algum outro evento contemporâneo a E, que faltava a E como seu contemporâneo no instante de sua entrada no passado.”).

492 “We can imagine a description which really is a full description, which tells everything and stands in perfect isomorphism with an event. Such a description then will be definitive: it shows the event wie es eigentlich gewesen ist. The maps of all the events may now be supposed assembled, to constitute a (really the) map of the whole Past. This global map then changes only in the way the Past itself changes: it gets added to along the forward edge. It now hardly matters whether we talk about the Past or its full description I now want to insert an Ideal Chronicler into my picture. He knows whatever happens the moment it happens, even in other minds. And he is to have the gift of instantaneous transcription: everything that happens across the whole forward rim of the Past is set down by him, as it happens, the way it happens. The resultant running account I

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Contudo, da perspectiva desse Cronista Ideal – que representa a ambição científica da

história positivista – o objetivo da historiografia seria apenas o de proporcionar uma descrição

fidedigna dos fatos passados. Desse modo, a história se reduziria ao presente dos fatos

observados, já que esta é a dimensão temporal própria da percepção sensorial493. Assim, o

historiador real que toma o Cronista Ideal como seu modelo normativo buscará empreender a

tarefa de relatar descritivamente os fatos do passado. Em função de sua falibilidade, contudo,

ele poderá se equivocar nesse empreendimento. Mas à medida que progride em sua tarefa, o

propósito do historiador real será o de coincidir o resultado de sua atividade com o relato

produzido pelo Cronista Ideal caso ele existisse.

Danto (1962) desenvolve, assim, o exercício imaginário de proporcionar à

historiografia positivista a figura do Cronista Ideal. O propósito desse empreendimento seria

verificar quais os efeitos de uma historiografia produzida sob esse pressuposto. O autor

constata que o Cronista Ideal não seria capaz de apresentar informações sobre um

determinado evento que apenas podem ser descobertas algum tempo após a sua ocorrência,

como é o caso, por exemplo, de informações que se descobre pela relação com outros

episódios. Essa capacidade de relacionar eventos ocorridos em momentos distintos não faria

parte do arsenal de habilidades do Cronista Ideal, pois sua capacidade se restringiria à mera

descrição dos fatos que foi capaz de apreender por meio dos seus sentidos. Apenas um

historiador real seria capaz de ‘projetar’ os desdobramentos de um evento dentro de uma

sequência temporal, uma vez que ele é onisciente em relação ao conjunto da história que

relata. Mas para que o historiador real possa efetuar esse tipo de conexão entre os fatos

históricos, ele precisa abdicar da perspectiva e da pretensão do Cronista Ideal. Caso contrário,

ele não terá a capacidade de assumir uma perspectiva temporal de conjunto dos

acontecimentos históricos494.

shall term the Ideal Chronicle.” (DANTO, 1962, p. 152). (Tradução nossa: “Nós podemos imaginar uma descrição que realmente é uma descrição completa, que diz tudo e se mantém em perfeito isomorfismo com um acontecimento. Tal descrição será, então definitiva: ela mostrará o acontecimento como ele autenticamente era. Os mapas de todos os acontecimentos podem agora ser supostos como delineados, para constituir um (real) mapa de todo o passado. Esse mapa global então muda somente no sentido de que o passado ele próprio muda: ele vai se ampliando a medida que se avança para frente. Agora pouco interessa se estamos falando do passado ou de sua descrição, eu agora desejo inserir um Cronista Ideal no meu cenário. Ele sabe tudo que acontece, no momento que acontece, mesmo em outras mentes. E ele tem o dom da instantânea transcrição: tudo que acontece ao longo de todo avanço do passado é registrado por ele, assim que acontece, do modo como acontece. A resultante dessa atividade eu denomino de Cronista Ideal.”).

493 Conforme visto no capítulo 4, o paralelo entre o efeito temporal do positivismo na historiografia e na interpretação jurídica é evidente.

494 “My suggestion is: let him [o historiador] use the I.C. as he would any eye-witness account of an event in which he was interested. For it will not tell him everything he wants to know about the event. This sounds as if it contradicts what we have said. Is not the I.C. definitively complete? And haven't I said that nothing can happen to the Past to render it wrong or partial in any respect? Of course it is complete - but complete in the

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Segundo Danto (1962), para que seja possível ao texto historiográfico encadear

eventos que possuam um sentido entre si, o historiador deve ser capaz de antever o ‘futuro’ já

no instante em que as ligações entre os fatos se constroem – isto é, ele precisa conhecer os

desdobramentos do fato que relata. Na construção do relato historiográfico, o historiador já

sabe de antemão o ‘capítulo final’ de seu relato e, partindo deste, procede a um alinhamento

dos fatos a fim de que suas afirmativas produzam sentido 495. Assim, a tarefa do historiador

seria mais a de organizar temporalmente os fatos do passado em sua dinâmica de causas e

desdobramentos do que, ao invés, simplesmente descrevê-los e apresentá-los de maneira

way in which a witness might describe it, even an Ideal Witness, capable of seeing all at once everything which happens, as it happens, the way it happens. But this is not enough. For there is a class of descriptions of any event under which the event cannot be witnessed, and these descriptions are necessarily and systematically excluded from the I.C. The whole truth concerning an event can only be known after, and sometimes only long after the event itself has taken place. And this part of the story historians alone can tell. It is not something which even the best sort of witness can know. What we deliberately neglected to equip the Ideal Chronicler with was knowledge of the future.” (DANTO, 1962, p.). (Tradução nossa: “Minha sugestão é: deixe ele [o historiador] usar o Cronista Ideal como se ele tivesse observado diretamente o registro de um evento que lhe interessa. Por meio dele, ele não lhe dirá tudo o que quer saber sobre o evento. Isso soa como se contradissesse o que nós havíamos dito. O Cronista Ideal não é definitivamente completo? Mas eu não havia dito que nada pode acontecer ao passado para torná-lo errado ou parcial em algum. ponto? É claro que ele é completo – mas completo no sentido daquilo que uma testemunha pode descrevê-lo, mesmo uma testemunha ideal, capaz de ver tudo que aconteceu de uma só vez, como aconteceu, da maneira que aconteceu. Mas isso não é suficiente. Pois existe uma classe de descrições de qualquer evento sobre o qual o evento não pode ser testemunhado, e essas descrições são necessária e sistematicamente excluídas do Cronista Ideal. A grande verdade referente a um acontecimento só pode ser conhecida após, às vezes muito após, o evento mesmo tenha ocorrido. E essa parte da estória, apenas os historiadores podem contar. Não é algo que nem a melhor das testemunhas pode saber. O que nós deliberadamente negligenciamos de proporcionar ao Cronista Ideal foi o conhecimento do futuro.”).

495 “Yeats, describing in his poem the rape by Zeus of Leda, writes: "A shudder in the loins engenders there / The broken wall, the burning roof and tower / And Agamemnon dead." Waiving for the moment questions regarding the historicity of this episode, the sentence itself is of a kind which could not appear in the I.C. Even if the event happened - in contrast with "He holds her helpless breast upon his breast" which conceivably could appear there. For the latter describes what could be witnessed. But nobody could witness the act under the description "Zeus engenders the death of Agamemnon". For that king is now but a youth, and much will happen before his tragic end, as we now know. The death of Agamemnon may be witnessed, only much later. And then someone might trace it all back to the violation of Leda; could see, in historical retrospect, that action of Zeus's as laden with a kind of destiny. To all of this the Ideal Witness is blind. Without referring to the future, without going beyond what can be said of what happens, the way it happens, he could not even write, in 1618, "The Thirty Years War begins now" - if that war was so called because of it duration.” (DANTO, 1962, p. 154). (Tradução nossa: “Yeats, ao descrever o rapto de Leda por Zeus, escreve: ‘Um tremor nos quadris engendra ali / A parede quebrada, o telhado em chamas e a torre / E Agamenon morto’ Acenando para o momento das questões referentes à historicidade desse episódio, a frase, ela mesma é de um tipo que não poderia aparecer no relato do cronista ideal, mesmo se o evento aconteceu – em contraste com ‘Ele segurou seu peito indefeso sobre o seu’ o que se poderia conceber aqui. Pois a última frase descreve o que se poderia testemunhar. Mas ninguém pode testemunhar a ação sob a descrição ‘Zeus tramou a morte de Agamenon’. Pois esse rei é agora apenas um jovem e muito irá acontecer antes de seu trágico fim, como nós sabemos agora. A morte de Agamenon pode ter sido testemunhada, apenas muito tempo depois. E então alguém pode rastrear de volta à violação de Leda. Poderia ver, em uma retrospectiva histórica, que a ação de Zeus está como que carregada de um destino. Para tudo isso a testemunha ideal é cega. Sem referir-se ao futuro, sem ir além o que pode ser dito sobre o que aconteceu, do modo como aconteceu, ele não poderia ter escrito, em 1618, ‘A Guerra dos Trinta Anos começa agora’ – se essa guerra assim se chama por causa de sua duração.’).

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objetiva. Nessa tarefa, diz Danto (1962), ele deverá empregar frases narrativas (narrative

sentences).

A frase narrativa é aquela que se refere a pelo menos dois eventos que se encontram

separados no tempo. A frase narrativa descreveria apenas o primeiro dos eventos, sendo que o

segundo seria uma função em razão do qual se descreve o primeiro. Logo, para que a frase

narrativa seja possível, ela deverá suceder no tempo os dois eventos a que se refere. Assim,

uma frase narrativa implicaria necessariamente três posições temporais: a do acontecimento

descrito, a do acontecimento em função do qual o primeiro acontecimento é descrito e a do

narrador. Com isso, frase narrativa aponta para o fato de que o narrador encontra-se

temporalmente à frente dos fatos narrados, o que impediria algo como uma narração do

presente. Logo, conclui Danto (1962, p. 154), o Cronista Ideal não teria a habilidade de narrar

o passado, mas apenas de descrevê-lo, já que não poderia empregar verbos que promovem a

conjunção temporal entre dois eventos. Pelo contrário, o sentido de uma reconstrução do

passado somente se faz possível em um momento temporal posterior, de onde se coloca o

historiador-narrador:

Se descrevemos um acontecimento E-1 fazendo referência a um futuro evento E-2 antes de E-2 ocorrer ou estar previsto para ocorrer nós deveremos retirar a descrição ou considerá-la falsa se E-2 falha em ocorrer. Mas o Cronista Ideal é concebido de tal maneira a não cometer nenhum equívoco em nenhum ponto. Não poderá haver correções. O que é descrito é fixo, e não diz nada que não seja verdadeiro. Mais adiante falarei mais sobre predições e descrições, e devo, além disso, explorar algumas das consequências de se permitir ao Cronista Ideal de fazer previsões sobre o futuro. Da maneira como se encontra, todavia, ele não pode fazer tais previsões e, da mesma maneira, não pode, em conformidade, empregar frases desse tipo – daqui por diante designadas de frases narrativas – que eu acabei de caracterizar. Nesse caso, não há começos nem finais para o Cronista Ideal. ‘Se não há começos, nem finais’ escreveu Virginia Woolf em As Ondas ‘não há estórias’. ‘Desligue o futuro’ escreveu Whitehead ‘e o presente entra em colapso, vazio de seu próprio conteúdo.’ Começa a despontar que uma ‘completa descrição’ não satisfaz as necessidades dos historiadores, e então falha se sustentar como o ideal que esperávamos contar em nossas abordagens. E que não ser testemunha de um evento não é algo necessariamente ruim se os nossos interesse são históricos. (Tradução nossa).496

496 “If we describe an event E-1 by making reference to a future event E-2 before E-2 occurs or is supposed to

occur, we will have to withdraw the description, or reckon it false, if E-2 fails to happen. But the I.C. [Cronista Ideal] is so constructed as not to be mistaken at any point. There are to be no erasures. What it describes is fixed, and it says nothing which is not true. I shall later have more to say about predictions and descriptions, and I shall want, moreover, to explore some of the consequences of allowing the I.C. [Cronista Ideal] to make claims on the future. As matters now stand, however, it can make no such claims, and cannot, accordingly, employ the sorts of sentences - hereafter to be designated narrative sentences - I have just characterized. In this case there are no beginning and endings in the I.C. [Cronista Ideal] "If there are no beginnings and endings", wrote Virginia Woolf in The Waves, "there are no stories." "Cut away the future", wrote Whitehead, "and the present collapses, emptied of its proper content." It begins to dawn on one that a "full description" does not adequately meet the needs of historians, and so fails to stand as the ideal to which we hope to have our own accounts approach. And that not being witness to the event is not so bad a thing if our interests are historical.”.

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A análise da frase narrativa permite identificar que uma abordagem propriamente

narrativa se distingue da descrição ordinária da ação pelo fato de empregar verbos de projeção

(project verbs). Mais do que simplesmente descreverem uma ação particular, os verbos de

projeção promovem a reunião de episódios que se encontram separados no tempo. Tais verbos

exigem que o desdobramento antecipado na projeção narrativa seja verificado concretamente

no desenrolar da história. Caso isso não ocorra, haverá uma incongruência na história,

tornando-a falsa, tal como as afirmações feitas anteriormente497. Isto porque, como a frase

narrativa é sempre escrita do presente em relação aos fatos do passado, esse enlace entre a

projeção e o fato projetado deverá sempre por coincidir, a não ser que o historiador esteja

relatando uma história inverídica 498.

A frase narrativa se constitui, então, como o átomo lógico do discurso histórico, por

representar a caracterização mínima dessa atividade. Mas, da perspectiva de Danto (1962),

nem por isso a história se esgota na frase narrativa. A história também conta com as

descrições pontuais de eventos e acontecimentos do passado e isso consiste o seu ‘substrato

fático e conceitual’. A importância da análise da frase narrativa seria, contudo, a de salientar

que uma visão global dos acontecimentos históricos somente é possível de uma perspectiva

narrativa. Conforme reconhece Ricoeur (1994, p. 212), é por meio da frase narrativa que se

tece a intriga da história:

E nada indica que o algo a mais que a narrativa faz em relação a uma simples enumeração de acontecimentos seja diferente da estrutura de dupla referência da frase narrativa, em virtude da qual o sentido e a verdade de um acontecimento são

497 Se um historiador afirma, por exemplo, que o Tratado de Versalhes foi responsável por despertar um

sentimento de revanchismo entre França e Alemanha e que essa teria sido uma das causas determinantes para a ascensão do nazismo e, consequentemente, do advento da Segunda Guerra Mundial, cada um dos episódios narrados precisa ser verdadeiro, assim, como o encadeamento entre as causas e efeitos apontados, sob pena de se construir uma história falsa ou inverídica. Assim, no que tange à epistemologia da história, não apenas os juízos construídos a partir do relato dos fatos ocorridos podem ser qualificados como verdadeiros ou falsos, mas também, e principalmente, os juízos que o historiador constrói a partir do seu encadeamento.

498 “Now if narrative sentences refer to two time-separated events, and are predictive until the second event occurs, it would seem that after that event, persons (historians) can always cite evidence in favor of the narrative sentence which would in principle have been unavailable before the occurrence of the temporally latest event referred to by it: they can cite the event itself. And they are then in a position to know, as no one before the occurrence of that event would be, that the narrative sentence is true. Whether it was true before is a question for metaphysical logicians: I am interested here only in the epistemology of the latter.” (DANTO, 1962, p. 172). (Tradução nossa: “Agora, se frases narrativas se referem a dois eventos separados no tempo e são preditivas até o segundo evento ocorrer, pareceria que após esse evento, as pessoas (os historiadores) podem sempre citar uma evidência em favor da frase narrativa que estaria em princípio, indisponível antes da ocorrência do último evento temporalmente referenciado por ele: eles podem citar o evento ele próprio. E eles estão então em uma posição de saber, como ninguém antes da ocorrência do evento estaria, que a frase narrativa é verdadeira. Se era verdadeira antes é uma questão para os lógicos metafísicos: eu estou interessado aqui apenas na epistemologia dos primeiros.”).

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relativos ao sentido e à verdade de outro acontecimento. É por isso que a noção de intriga ou de estrutura narrativa não parece faltar à lógica da frase narrativa; é como se a descrição de um acontecimento anterior em função de um acontecimento posterior, já fosse uma intriga em miniatura.

Na construção da intriga, a estrutura narrativa se impõe aos acontecimentos. Os

eventos são organizados e agrupados entre si de modo a estabelecerem uma coerência

narrativa interna entre eles. Para tanto, o historiador-narrador operaria um seleção dos

episódios relevantes para a história, enquanto relegaria ao esquecimento aqueles considerados

impertinentes – uma operação que em nada se assemelha àquela do Cronista Ideal.

Ricoeur (1994) afirma que o estudo da frase narrativa nasceu de uma preocupação da

filosofia analítica em demonstrar o traço diferencial do conhecimento histórico em relação ao

conhecimento descritivo-causal próprio das ciências experimentais. Uma vez que a ação

humana no tempo é responsável por produzir mudanças de estado, a frase narrativa apareceria

como a única forma possível de representar essa sequência de ações. Portanto, de uma

perspectiva narrativa da atividade historiográfica, o passado deixaria de ser o receptáculo de

um amontoado objetivo, determinado e fixo de fatos, cuja ordenação não estaria sujeita a

alterações, acréscimos ou subtrações. Como a história sempre dependerá das conexões entre

eventos como condição para que possa fazer sentido numa imagem mais abrangente, ela

estará sempre sujeita à revisão e à reescrita. Com isso, a história que o historiador real pode

contar é sempre um relato parcial e provisório dos acontecimentos do passado.

Reconhecendo-se como intrinsecamente incompleto, o discurso narrativo indicaria um limite

interno às pretensões do conhecimento histórico. A história narrada estaria sempre sujeita a

uma posterior revisão pelo historiador, que sempre buscará recontá-la a fim de extrair o seu

sentido mais sensato, seja pelo fato de que novas informações sobre o passado foram

adicionadas, seja porque o historiador vislumbrou uma melhor forma de alinhar os fatos já

conhecidos.

Quando o jurista é chamado a preencher as dimensões de adequação e de justificação

segundo a metáfora do romance em cadeia, o discurso metanarrativo que ele – ou o Juiz

Hércules, como exemplo do esforço coletivo em que consiste o trabalho da comunidade

jurídica – constrói sobre a evolução da interpretação jurídica contaria com a mesma

propriedade de se estruturar a partir da frase narrativa. Segundo a descrição feita por Dworkin

(2001, p.236) ao raciocínio jurídico em sua concepção de direito como integridade, o jurista

se vê com a tarefa de dar continuidade a uma sequência de interpretações sobre um tema, um

instituto ou o próprio Direito que o antecedeu. Ao mesmo tempo, sua interpretação será

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inevitavelmente a continuidade de uma estória que vem sendo escrita pela comunidade

jurídica que integra:

Decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário [do romance em cadeia]. A similaridade é evidente quando os juízes examinam e decidem casos do Common Law, isto é, quando nenhuma lei ocupa posição central na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito ‘subjazem’ a decisões de outros juízes, no passado, sobre matéria semelhante. Cada juiz, então, é como um romancista da corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um dos nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registros de muitos casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele fez agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em uma alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito ou o tema da prática em questão.

Desse modo, todo jurista precisa reconstruir a história evolutiva da atividade

interpretativa de sua comunidade a fim de que possa situar temporalmente a sua tarefa. Essa é

uma condição necessária para que ele possa concluir por uma das interpretações possíveis

como aquela que proporciona a melhor continuidade para a história institucional do direito.

Essa conclusão somente pode ser alcançada porque ele é capaz de projetar os desdobramentos

atinentes às interpretações do passado em seu desenrolar evolutivo. Por essa razão, a

interpretação somente poderia se construir pela forma lógica de uma frase narrativa e não

como fruto de um discurso descritivo sobre a norma jurídica vigente em determinado espaço e

tempo, como sugere o positivismo.

A estória proveniente da reconstrução do passado da comunidade interpretativa

somente tem sentido porque o jurista se encontra em seu final provisório – o instante presente

– e, assim, conhece os seus desdobramentos. O jurista, tal como historiador, também é

onisciente em relação à história que reconstrói. Ao alinhar as interpretações feitas no passado

em uma estória, o jurista relaciona esses momentos ao futuro que pretende projetar com sua

interpretação. Esse encadeamento temporal do passado é apenas a justificativa para a

sequência da estória que ele propôs apresentar.

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Nesse sentido, é somente porque a compreensão que o jurista produz sobre o direito

em sua atividade interpretativa se estrutura sob a frase narrativa que o passado do direito pode

se modificar na mesma proporção em que o presente também se modifica. Certamente um

jurista instruído nos cânones do positivismo formalista do início do século XX não

reconstruiria a mesma história de um tema, instituto ou do próprio direito à semelhança de um

jurista que compreende essas mesmas questões sob o ângulo dos problemas levantados pelo

pós-positivismo, por exemplo. Uma vez que esses juristas partirão de presentes distintos, as

suas ‘projeções’ no encadeamento dos fatos pretéritos culminarão em resultados também

distintos. Ou seja, o passado do direito é intercambiável segundo a continuidade que se

pretende produzir com a interpretação presente, uma vez que a memória do jurista se modifica

a medida que sua experiência se acumula. A esse respeito, Dworkin (2003, p. 416) rejeita

qualquer forma de vinculação temporal da interpretação legislativa a um momento preciso

como o da criação da lei, por exemplo:

O método de Hércules desafia esse aspecto da teoria da intenção do locutor juntamente com todo o resto. Rejeita a hipótese de um momento canônico no qual a lei nasce e tem todo – e o único – significado que sempre terá. Hércules interpreta não só o texto, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme em lei e que se estende para muito além desse momento. Quer utilizar o melhor possível desse desenvolvimento contínuo, e por isso sua interpretação muda à medida que a história vai se transformando.

No entanto, a narrativa não se limitaria apenas ao encadeamento de fatos

temporalmente separados uma frase narrativa. Um componente crucial do princípio estrutural

da narrativa é o fato de que a narrativa organiza os eventos a fim de torná-los inteligíveis no

curso de uma estória499, isto é, de um texto narrativo. Essa propriedade da narrativa de

consistir em um texto que pode ser seguido é que se verá no tópico seguinte.

6.3.2.2 Followability ou a capacidade de seguir uma estória

Se a frase narrativa consiste em um importante elemento do princípio estrutural da

narração, esse conceito, por si só, não bastaria a uma caracterização da narrativa em sua

plenitude. Segundo Ricoeur (1994), uma narrativa não se forma apenas pelo trabalho de

499 “Se a dupla referência da frase narrativa ao acontecimento que ela descreve e a um acontecimento ulterior, à

luz do qual a descrição é feita, constitui um bom discriminador em relação a outras descrições da ação, por exemplo, em função das intenções e das razões dos próprios agentes, contudo a mera menção de uma diferença entre essas duas datas, entre duas localizações temporais, não basta para caracterizar uma narrativa como conexão entre acontecimentos. Subsiste uma separação entre a frase narrativa e o texto narrativo.” (RICOEUR, 1994, p. 214).

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localização de dois episódios distintos e separados no tempo e sua posterior reunião por meio

de uma referência sequencial entre eles. A frase narrativa seria, de fato, o ponto de partida de

toda narrativa. Todavia, ela não seria uma condição suficiente para a produção de um texto

narrativo, já que este não é constituído a partir de uma mera conexão entre eventos que se

sucedem no tempo.

Assim, a caracterização de um texto narrativo exigiria algo mais do que a frase

narrativa. Segundo Ricoeur (1994), o conceito de followability500 desenvolvido por W. B.

Gallie seria indispensável à caracterização do princípio estrutural da narrativa. Segundo Gallie

(1968) toda compreensão ou explicação historiográfica carregaria um discurso

intrinsecamente narrativo e a qualidade dessa narrativa seria justamente o critério por meio do

qual é possível avaliar o conteúdo de uma obra de história. A avaliação qualitativa de uma

produção historiográfica dependeria justamente da capacidade da história narrada poder ser

seguida, isto é, do grau de sua followability. Mas em que consistiria esse conceito?

A followability é uma propriedade verificável em toda forma de estória contada e não

apenas na história como disciplina que investiga e narra o passado501. Uma estória consiste na

representação de uma sequência de ações desempenhadas por personagens, dentro de

situações que irão se intercambiar na medida em que o tempo se desenrola. Essa dinâmica da

estória faz com que o leitor seja levado a acompanhar os seus desdobramentos por meio de

sua atividade intelectual, de tal maneira que os encadeamentos entre as partes façam sentido e

a situação final seja uma continuidade daquilo que os personagens fizeram na situação inicial.

É como explica Gallie (1958, p. 22):

Toda história descreve uma sequência de ações e experiências de um número de pessoas reais ou imaginárias. Essas pessoas são geralmente apresentadas em alguma situação caracteristicamente humana e são mostradas ou mudando ou reagindo a mudanças, o que afeta a situação de fora. E essas mudanças e as reações dos personagens a elas reunidas, elas comumente revelam de maneira certeira aspectos escondidos da situação original e dos personagens. O predicamento normalmente é sustentado e desenvolvido de várias maneiras que expõem o seu significado para os personagens principais. Se ou não os personagens principais respondem adequadamente ao predicamento, a sua resposta a ele e os feitos de sua resposta sobre as quais as pessoas estão preocupadas, trazem a estória para dentro do visão de sua conclusão.(Tradução nossa).502

500. Os adjetivos construídos com emprego da terminação ‘-ability’ são neologismos da língua inglesa que

expressam que a pessoa a quem o adjetivo se refere possui a propriedade de desempenhar o verbo com o qual o adjetivo é construído. ‘Followability’ seria, assim, a propriedade que uma narração – estória ou a história como se verá – tem de ser seguida. No presente trabalho utilizar-se-á o termo em sua língua original a fim de se evitar as distorções de significado que a tradução pode ocasionar.

501 Aqui, com mais intensidade, faz necessária a distinção entre a estória e a história pelo fato de que a exposição no texto de Gallie (1968) utilizar a distinção que a língua inglesa promove entre as expressões story e history.

502 “Every story describes a sequence of actions and experiences of a number of people, real or imaginary. These people are usually presented in some characteristic human situation, and are the shown either changing it or

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Assim, uma estória precisa preencher requisitos de ordem subjetiva impostos pelo

leitor a fim de que se torne aceitável aos seus olhos. Se os encadeamentos não permitem que a

conclusão da história seja vista pelo leitor como a consequência natural dos acontecimentos

narrados anteriormente, essa estória não é passível de ser seguida, tornando-se, assim, uma

história ruim ou defeituosa. A followability consistiria, portanto, em um critério capaz de

julgar a qualidade de uma narrativa a partir de sua aceitabilidade:

Seguir uma história é, em um nível, uma questão de entender as palavras, frases e parágrafos colocados em ordem. Mas em um nível muito mais importante, significa entender as sucessivas ações, pensamentos e sentimentos de certos personagens descritos com um peculiar direcionamento, e ser empurrado adiante por esse desenvolvimento quase contra a nossa vontade: nós comumente apreciamos, sem precisar nos articularmos, muitas das razões e motivos sobre os quais o desenvolvimento da estória em direção a seu clímax depende. É apenas quando as coisas se tornam complicadas e difíceis – quando na verdade não é mais possível segui-las – que nós precisamos de uma explicação racional explícita do que os personagens estão fazendo e porque. Mas quanto mais habilidade tiver o contador de estórias, menos raras serão as intromissões de tais explícitas explicações. Idealmente, uma estória deve ser auto-explicativa, mesmo quando seguir uma estória exige de nós corrigir (à luz dos desenvolvimentos naturais) os naturais e em certo sentido apropriadas maneiras pelas quais nós primeiramente seguimos e aceitamos seus estágios preliminares. (GALLIE, 1968, p. 22-23, Tradução nossa). 503

O trecho transcrito destaca as características que evidenciam a presença da

followability e em uma estória. Em primeiro lugar, a estória precisa contar com uma direção

particular (directedness), de tal modo que leitor possa ser capaz de compreender os

pensamentos e os sentimentos sucessivos das personagens e dos acontecimentos. Além do

mais, uma narrativa deve ser capaz de impulsionar o seu leitor ‘para frente’ do texto, por meio

do desenvolvimento de expectativas que vão se concretizando na medida em que a estória

reacting to changes which affect that situation from outside. As these changes and the characters’ reaction to them accumulate, they commonly reveal hitherto hidden aspects of the original situation and of characters. The predicament is usually sustained and developed in various ways that bring out its significance for the main characters. Whether or not the main characters respond successfully to the predicament, their response to it, and the effects of their response upon people concerned, brings the story to within sight of its conclusion.”.

503 “Following a story is, at one level, a matter of understanding words, sentences paragraphs, set out in order. But at a much more important level it means to understand the successive actions and thoughts and feelings of certain described characters with a peculiar directedness, and to be pulled forward by this development almost against our will: we commonly appreciate, without needing to articulate ourselves, many of the reasons and motives and interests upon which the story’s development up towards its climax depends. It is only when things become complicated and difficult – when in fact is no longer possible to follow them – that we require an explicit explanation of what the characters are doing and why. But the more skillful the story-teller, the rarer will be the intrusion of such explicit explanations. Ideally, a story should be self explanatory, even when following the story as a whole requires us to correct (in the light of natural developments) the natural and in a sense appropriate ways in which we first followed and accepted its earlier stages.”.

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avança. Por fim, uma narrativa precisa ser auto-explicativa, no sentido de que ela deve bastar

a si própria para que o leitor possa compreender o seu desenrolar504.

Assim, pode-se reconhecer que toda estória possui um telos que aponta

inevitavelmente para a sua conclusão. Contudo, a conclusão da narrativa não adquire a mesma

feição da conclusão de uma operação de subsunção dedutiva, em que o resultado é necessário

e obrigatório. A estória abraça a contingência do mundo e as possibilidades de ser dos seus

personagens e das situações em que se inserem. Com isso, várias conclusões são possíveis,

mas nem por isso a estória legitima qualquer uma delas como o seu desdobramento final.

Apenas aquela conclusão dotada de coerência quanto ao encadeamento dos episódios será

aceitável aos olhos do leitor como digna de uma boa estória505. Assim, quanto melhor for a

conclusão em relação ao desenvolvimento da estória, maior será a followability dessa estória

e, portanto, maior a qualidade da narrativa como um todo506. É como explica Ricoeur (1994,

p.215):

504 Como esclarece Ricoeur (1994, p. 215): “É somente na medida em que o processo é interrompido ou

bloqueado que pedimos uma explicação suplementar.” 505 Ou seja, se o final é ruim, a estória toda acaba se tornando ruim ainda que viesse sendo construída de maneira

aceitável aos olhos do leitor. 506 Sobre a importância da conclusão para a noção de followability, e da própria narrativa veja-se o trecho

seguinte da obra de Gallie (1968, p. 28-29) “Yet, there is something else to be said about the conclusion of a story. There is something special about it, distinguishing it from all other incidents, halts, outcomes, watersheds that we pass on the way to it. Without being predicted, and often without being even vaguely foreseen, the conclusion of a story nevertheless guides our interest almost from the start. Admittedly, when we are first introduced to the main characters of a story and begin, so to speak, to live in them and with them, we are willing to go with them, to follow them, in almost any direction. They interest us, and all we ask is ‘What will happen to them now?’ and ‘What will happen to them next?’ But very soon these questions are replaced by one that express a much more serious concern, namely: ‘How will things turn out for them in the end?’ Our hopes and wishes have become involved in their imaginary fortunes. We must hear whether it went well or ill for them in the end – in whatever sense of end applies to their story. Thus the conclusion of a story is the main focus of our interest before we know what that conclusion is going to be. And it is chiefly in terms of the conclusion – eagerly awaited as we read forward and accepted at the story’s end – that we feel and appreciate the unity of a story. Its other episodes and incidents will, of course, have contributed to that unity; indeed, they will have prepared for and contributed to the acceptability of the conclusion.” (Tradução nossa: “Ainda, há algo mais a ser dito sobre a conclusão de uma estória. Há algo de especial sobre ela, distinguindo-a de todos os outros incidentes, paradas, resultados, vertentes, que nós passamos no caminho em direção a ela sem ser prevista, e sempre não sendo sequer vagamente vislumbrada, a conclusão de uma estória mesmo assim guia nosso interesse praticamente desde o começo. Admitidamente, quando nós somos introduzidos de início aos personagens principais de uma estória e começamos, por assim dizer, a viver neles e com eles, nosso desejo é ir com eles, segui-los em praticamente todas as direções. Eles nos interessam e tudo o que perguntamos é: ‘O que irá acontecer com eles então?’ ‘O que irá acontecer com eles em seguida?’ Mas brevemente essas questões são substituídas por uma que expressa uma preocupação muito mais séria: ‘Como as coisas vão se desdobrar para eles no final?’ Nossas esperanças e desejos se tornam envolvidos em seus destinos imaginários. Nós devemos ouvir se deu certo ou errado para eles no final – em qualquer sentido que o fim se aplica à estória. Portanto, a conclusão de uma estória é o foco principal de nosso interesse antes de sabermos qual será esta conclusão. E é principalmente em termos de conclusão – ansiosamente esperada a medida que lemos adiante e aceitamos o final da estória – que nós sentimos e apreciamos a unidade da estória. Seus outros episódios e incidentes irão, é claro, ter contribuído para a sua unidade. Na verdade eles terão preparado para e contribuído para a aceitabilidade da conclusão.”).

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Uma história que não comportasse nem surpresas, nem coincidências, nem encontros, nem reconhecimentos, não reteria nossa atenção. É por isso que é preciso seguir a história até sua conclusão, o que é algo inteiramente diferente de seguir um argumento cuja conclusão é obrigatória. Mais que previsível, uma conclusão deve ser aceitável. Dirigindo nosso olhar para trás, da conclusão em direção aos episódios intermediários, devemos poder dizer que esse fim exigia esses acontecimentos e essa cadeia de ações. Mas esse olhar lançado para trás torna-se possível pelo movimento teleologicamente orientado de nossas expectativas quando seguimos a história. A incompatibilidade, abstratamente colocada, entre a contingência dos incidentes e a aceitabilidade das conclusões é precisamente o que a aptidão da história em ser seguida desmente. A contingência só é inaceitável para um espírito que vincula a ideia de compreensão à de domínio: seguir uma história é ‘encontrar os acontecimentos intelectualmente aceitáveis, afinal de contas’. A inteligência exercida aqui não é a que se vincula à legalidade de um processo, mas aquela que responde à coerência interna de uma história que conjuga contingência e aceitabilidade.

Ao tratar da followability como propriedade da narrativa historiográfica, Gallie (1968)

destaca inicialmente que o preconceito em relação a uma leitura co-extensiva entre a estória e

a história nasceu da ruptura epistemológica entre os domínios da ficção e da verdade. Essa

ruptura fez com que a história acentuasse seu contraste em relação à estória a partir do

elemento que as distingue, isto é, o fato de que a história depende da comprovação dos fatos

que relata, por meio de apresentação de evidências, enquanto a ficção se situa no campo da

imaginação criativa. Esse distanciamento entre as duas figuras obscureceu a similitude

existente entre ambas, a saber, o fato de que servem para despertar interesse em relação a um

conjunto de acontecimentos – reais ou imaginários – digno de ser narrado. Por essa razão,

ignora-se o fato de que a história se apresenta da perspectiva de um historiador que se situa no

presente e que promove a seleção de certos episódios do passado para serem estudados

historicamente apenas porque possuem relevância no momento atual:

Então, certos eventos do passado que, por qualquer razão, encontram-se além do alcance do estudo histórico têm certamente exercido importantes efeitos no desenvolvimento tardio da humanidade – parcialmente recordáveis, historicamente estudáveis. Os eventos que remontam à origem da linguagem, da família, do direito e do governo são exemplos óbvios. Agora esses eventos devem ser concebivelmente reconstruídos em delineamentos esquemáticos, por teóricos biólogos e psicólogos, trabalhando a partir da evidência que é apropriada para seus métodos e teorias. E tais reconstruções podem, concebivelmente, afetar profundamente nossos modos de pensar sobre todos os seres humanos e sociedades humanas. Mas consideraríamos essas teorias de história? Eu acho que não. Pois presumivelmente essas reconstruções hipotéticas lidariam com mudanças na vida humana que não estão sujeitas ao propósito e ao controle consciente. E certamente faz parte da nossa ideia de história que ela deve lidar com ações, esforços e propósitos humanos, que nós podemos reconhecer como parte de nós mesmos. Portanto, as supostas reconstruções hipotéticas biológicas ou teóricas iriam, quando muito, suprir parte do pano de fundo naturalístico da história, juntamente com muitas outras descrições biológicas, geológicas e astronômicas. A lição a ser extraída dessas considerações pode ser expressa de duas maneiras. Negativamente, eles nos forçam a reconhecer que nem todo conhecimento do passado é história. Positivamente, elas nos forçam a conceder

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que não existe uma história de seres humanos e sociedades que não podem ou não, no sentido completo da frase, falam conosco: que não participam conosco em um singular – não importa quão fragmentário – sistema comunicativo. Então, não existe um estudo ou método de estudo singular do passado per se. Para ser estudado como história, um conjunto de ações humanas do passado deve ser sentido por membros de algum grupo humano que pertence a esse passado, e para ser inteligível e ter valor compreensivo do ponto de vista dos seus interesses presentes. Isso é parte do que é significado pelo sempre citado, apesar de para minha mente singularmente infeliz ditado, de que toda história é história contemporânea. (Tradução nossa).507

Na condição de uma narrativa, toda história tem por objeto relatar o sucesso ou o

fracasso de homens e grupos sociais que tiveram uma existência social durável dentro de uma

sociedade. Nesse sentido, a história é uma saga508 que adquire unidade orgânica pelo

507 “Thus, certain past events which for whatever reason lie beyond the range of historical study, have certainly

exercised momentous effect on the later – partially recorded, historically studyable – development of mankind. The events that lie back of the origin of language, of the family of law and government are obvious examples. Now these events might conceivably be reconstructed anyhow in schematic outline, by biological or psychological theorists, working from evidence that is appropriate to their methods and theories. And such reconstructions might, conceivably, profoundly affect our ways of thinking about all human beings and human societies. But would we regard them as history? I do not think so. For presumably these hypothetical reconstructions would deal with changes in human life that were not subject to conscious purpose and control. And it is certainly part of our idea of history that it shall deal with human actions, efforts and purposes which we can recognize as akin to our own. Hence the supposed biological or psychological reconstructions would at best supply part of the naturalistic background of history, along with many other biological, geological and astronomical descriptions. The lesson to be drawn from these considerations can be expressed in two ways. Negatively, they force us to concede that not all knowledge of the human past is history. Positively, they force us to recognize that there is no history of human beings or societies that cannot and do not, in extended sense of the phrase, speak to us: that do not belong with us in a single – no matter how fragmentary – communication system. Thus there is no single study or method of study of the human past per se. To be studied as history, a set of past human actions must be felt by members of some human group to belong to its past, and to be intelligible and worth understanding from the point of view of its present interests. This is part of what is meant by the oft-quoted, though to my mind singularly infelicitous dictum, that all history is contemporary history”.

508 “Now it might be suggested that the kind of unity that we find in successful works of history shows a partial analogy both with the kind of unity which is characteristic of saga and with that which is illustrated in, e.g., the tales of Orestes and of Jacob. All history is, like saga, basically a narrative of events in which human thought and action play a predominant part. But most historical themes tend to run beyond the interest, plans, lives and works of any one group or generation of men. History, as we have remarked, seems to run past individuals, using them perhaps for a little while and dropping them without any compunction when once their usefulness is exhausted. On the other hand, we know, to quote Marx, that men make history: history is made up of human actions within the world and of nothing else. Both these aspects of life are perfectly conveyed by the great sagas. But equally all history – at least all history of the kind that interests us all – express and is in a way delimited by the influence of what Ranke quaintly called ‘the ideas’, meaning by this such dominant trends as can give shape to the aims and actions of successive generations, and which we can see mounting to some kind of culminations.” (GALLIE, 1968, p. 69-70). (Tradução nossa: “Agora deve ser sugerido que o tipo de unidade que nós encontramos em de trabalhos de história de sucesso mostram uma parcial analogia ambos com o tipo de unidade que é característico e com a qual é ilustrada, e.g, nos contos de Orestes e de Jacó. Toda história é, como a saga, basicamente uma narrativa de eventos nos quais o pensamento e as ações humanas jogam uma parte predominante. Mas a maioria dos temas históricos tende a ir além dos interesses, planos, vidas e trabalhos de qualquer grupo ou geração de homens. História, como temos destacado, parece ir além dos indivíduos, usando-os talvez por um tempo e descartando-os sem nenhuma compaixão uma vez que sua utilidade tenha se esgotado. De outro lado, nós sabemos, para citar Marx, que homens fazem a história: a história é feita de ações humanas dentro do mundo e nada mais. Ambos esses aspectos da vida são perfeitamente encadeados pelas grandes sagas. Mas igualmente toda história – pelo menos toda história do tipo que nos interessa – expressa e é, em certo sentido, delimitada pela influência do que Ranke chamou de ‘as ideias’, significando, com isso que tais tendências dominantes podem

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encadeamento em corrente (trends) dos episódios que se sucedem. Ora, um encadeamento em

corrente de episódios interligados em uma unidade orgânica só é possível se essa história

pode ser seguida, isto é, se possui followability509. Por essa razão, conclui Ricoeur (1994, p.

216):

1) A leitura dessas histórias de historiadores deriva de nossa competência em seguir histórias (stories); seguimo-las de ponta a ponta; e as seguimos à luz do desenlace prometido ou entrevisto através da sequência dos acontecimentos contingentes; 2) correlativamente, o tema dessas histórias merece ser narrado e suas narrativas merecem ser seguidas, porque esse tema impõe-se aos interesses que são os nossos, na qualidade de seres humanos, por mais afastado que esse tema possa estar dos nossos sentimentos do momento.

Assim, Gallie (1968) consegue lançar uma ponte sobre o abismo criado entre história e

estória pela abordagem tradicional. Por meio da referência ao conceito de followability, a

historiografia pode abraçar sem preconceito a narrativa em seu interior – como, aliás, o fazia

até ser tomada de assalto pelo discurso cientificista do positivismo. Como a narrativa é auto-

explicativa, ela faz com que o leitor permaneça municiado de informações sobre o conteúdo

do narrado – aquilo que de fato aconteceu – ao mesmo tempo em que apresenta as causas e

razões dos encadeamentos entre os episódios. Uma narrativa historiográfica que não observa

esses requisitos deixa de ser ‘followable’ isto é, acompanhável pelo leitor. Nesse ponto o

arsenal de dados e informações que o historiador emprega no embasamento de sua história

joga um importante papel, já que é a partir dele que o historiador irá construir os

encadeamentos que tornam uma história passível de ser seguida510.

dar forma às miras e ações das sucessivas gerações e que nós podemos ver amontoando para algum tipo de culminação.”).

509 “A trend or tendency is something that we see gradually disclosed through a succession of events; it is something that belongs to the events which we are following and no others; it is so to speak, a pattern-quality of those particular events. It would thus seem that our appreciation of any historical trend must depend upon, or be a resultant of, our following a particular narrative, a narrative of events which happen to be arranged in such a way that, roughly speaking, they move in some easily described relation to some fixed point of reference. To be sure our appreciation of any such trend is in its way a kind of intellectual feat: it requires us to stand back a little and reflect upon the progress of the narrative that we have been reading.” (GALLIE, 1968, p. 70). (Tradução nossa: “Uma corrente ou tendência é algo que nós vemos gradualmente revelado por meio de uma sucessão de eventos; é algo que pertence aos eventos que estão sendo seguidos e apenas a eles; ela é, para se assim dizer, uma qualidade padronizada daqueles eventos particulares. Pareceria então que nossa apreciação de qualquer corrente histórica deve depender de, ou ser uma resultante de, nosso seguir de uma narrativa particular, uma narrativa de eventos que acabam por ser organizados de tal modo que, falando por alto, movem-se em alguma relação facilmente descrita para algum ponto fixo de referência. Para estar certa nossa apreciação de qualquer dessas correntes é de um certo modo, um atributo intelectual: isso requer de nós um pequeno afastamento e uma reflexão sobre o progresso da narrativa que vínhamos lendo.”).

510 “Uma história, dizemos ainda, deve ser aceitável, afinal de contas; seria preciso dizer: apesar de tudo. Ora, isso, que sabemos a partir de nossa interpretação de Aristóteles, é verdade para qualquer narrativa: o ‘um por causa do outro’ nem sempre é possível de extrair do ‘um depois do outro’. A partir de então, a compreensão narrativa mais elementar já confronta nossas expectativas, regradas por nossos interesses e por nossas simpatias, às razões que, para adquirirem sentido, devem corrigir nossos preconceitos. A descontinuidade

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A metanarrativa da interpretação jurídica também conta com a propriedade da

followability, já que é uma estória que pode ser seguida. Ao invés de dados e comprovações

fáticas que justificam as ações dos personagens, os juristas recorrerem aos princípios para

justificar a escolha que darão à continuidade do empreendimento interpretativo que tem por

objetivo encontrar a melhor continuidade para a história da prática jurídica. O peso de um

princípio em relação aos demais faz com que a sua utilização como embasamento da

sequência à história interpretativa seja justificado por contar com uma maior followability.

Para encontrar tais princípios no romance em cadeia, o jurista lança um olhar

interpretativo sobre a própria história da evolução da interpretação jurídica com vistas a

justificar a continuidade que pretende apresentar a essa história com sua solução, o que só

pode ser realizado a partir do presente. Essa metanarrativa possui uma direção particular, de

modo que as próprias etapas são interconectadas a fim de construir uma ligação entre as

soluções interpretativas mais antigas até o contexto atual em se insere a atividade do

intérprete no presente. Constrói-se, assim, a narrativa em que a interpretação do jurista irá se

situar. Trata-se de uma narrativa passível de ser acompanhada pelo fato de que o seu leitor

será impulsionado ‘para frente’ em direção a sua conclusão, pois ela somente é construída

como pano de fundo para justificar a interpretação presente.

A followability é ainda o critério para se julgar se a interpretação apresentada pelo

jurista é a melhor continuidade da história institucional do direito. Ela deve ser compatível

com a reconstrução produzida pelo discurso metanarrativo sobre a interpretação jurídica, sob

pena de não se tornar aceitável aos olhos de um potencial leitor caso venha a proporcionar

uma visão de conjunto da evolução interpretativa narrada pelo jurista incongruente ou

inconsistente. Aqui, as dimensões da adequação e da justificação salientadas por Dworkin

(2003, p. 305-306) como requisito para a o sucesso da atividade interpretativa se conectam

diretamente com o conceito de followability, já que esta se torna o critério daquelas:

Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem os casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade. Tentam fazer o melhor possível essa estrutura e esse repositório complexos. Do ponto de vista analítico, é útil distinguir os diferentes aspectos ou dimensões de qualquer teoria funcional. Isto incluirá convicções sobre adequação e justificação. As convicções sobre a adequação vão estabelecer a exigência de um limiar aproximado a que a interpretação de alguma parte do direito

crítica incorpora-se, por aí mesmo, à continuidade narrativa. Percebe-se, assim, de que modo a fenomenologia aplicada a esse traço de toda história narrada, de ‘poder ser seguida’, é capaz de expansão, a ponto de incluir um momento crítico no próprio coração do ato de base de seguir uma história.” (RICOEUR, 1994, p. 218).

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deve atender para tornar-se aceitável. Qualquer teoria plausível desqualificaria uma interpretação de nosso próprio direito que negasse abertamente a competência ou a supremacia legislativa, ou que proclamasse um princípio geral de direito privado que exigisse que os ricos compartilhassem sua riqueza com os pobres. Esse limiar eliminará as interpretações que, de outro modo, alguns juízes prefeririam, de tal modo que os fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça. Diferentes juízes vão estabelecer esse limiar de maneira diversa. Mas quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral. Se não o fizer – se seu limiar de adequação derivar totalmente de suas concepções de justiça e a elas for ajustável, de tal modo que essas concepções ofereçam automaticamente uma interpretação aceitável –, não poderá dizer de boa-fé que está interpretando a prática jurídica. Como o romancista em cadeia, cujos juízos sobre a adequação se ajustavam automaticamente a suas opiniões literárias mais profundas, estará agindo de má-fé ou enganando a si próprio.

Dessa maneira, o caráter narrativo da interpretação jurídica eliminaria qualquer

possibilidade de discricionariedade do julgador em sua atividade. Estando a sua tarefa

interpretativa inserida em uma sequência histórica e tendo o intérprete a incumbência de

produzir a melhor continuidade dessa história, a followability irá constrangê-lo a encontrar a

resposta correta ao caso – não uma resposta ‘objetivamente’ correta, mas aquela que ele pode

defender com bons argumentos como a que melhor, dentre várias, atende à solução do caso

que é chamado a interpretar.

Da mesma maneira que a frase narrativa, por si só, não origina uma texto narrativo, a

simples followability não seria um conceito suficiente para fazer de um texto narrativo uma

narrativa propriamente dita. Se, por um lado, é fato que toda narrativa deve contar com a

capacidade de ‘ser seguida’ pelo leitor, o ato de narrar envolveria algo mais do que

simplesmente encadear fatos em direção a uma conclusão. Ricoeur (1994) identifica que a

narração exigiria uma refundição (recast) dos acontecimentos dispersos no tempo em uma

síntese que os torna compreensíveis para aqueles que encaram tais fatos a partir de uma

totalidade511. Portanto, a narrativa exige também a presença de um ato configurante em sua

estrutura, por meio do qual os acontecimentos recebem um tratamento pelo narrador capaz de

transformá-los em uma totalidade altamente organizada, que pode ser percebida como tal por

meio de um juízo compreensivo.

511 “É nesse trabalho de refundição (recasting) dos modos anteriores de escrever a história que o historiador

aproxima-se mais da explicação de tipo hempeliano: confrontado com um curso estranho de acontecimentos, construirá o modelo de um curso normal de ação e se perguntará o quanto o comportamento dos atores concernidos se afasta dele; toda exploração dos cursos possíveis de ação recorre a tais generalizações. O caso mais frequente e mais notável de refundição é aquele em que um historiador tenta uma explicação que não somente era acessível aos atores, mas difere das explicações oferecidas pelas histórias anteriores, tornadas, para ele, opacas e enigmáticas. Explicar, nesse caso, é justificar a reorientação da atenção histórica, que conduz a uma re-visão geral de todo um curso da história. O grande historiador é aquele que consegue tornar aceitável uma nova maneira de seguir a história.” (RICOEUR, 1994, p. 222).

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6.3.2.3 O ato configurante como elemento de organização da narrativa

Ricoeur (1994) relata que foi o historiador Louis O. Mink quem destacou a

importância do ato configurante como elemento estrutural da narrativa historiográfica. Para

esse autor, a tarefa do historiador consistiria em uma atividade de imaginação reconstrutiva.

Por meio dela, o historiador estabeleceria relações entre os fatos do passado, a fim de situá-los

dentro de um contexto histórico mais amplo em que adquirem significado. Assim, a história

seria fruto de uma narrativa interpretativa responsável por produzir um juízo sintético que

proporciona uma compreensão ‘em conjunto’ dos episódios do passado relacionados entre si.

Com isso, mais do que escrever a história, a tarefa do historiador seria a de reescrevê-la a fim

de que o passado se torne compreensível a quem deseja conhecê-lo.

Para efetuar essa síntese compreensiva, o historiador partiria de uma reflexão sobre a

experiência histórica. O resultado dessa atividade – o texto historiográfico – acabaria por se

tornar algo qualitativamente diferente da mera concatenação entre os fatos que se sucederam

no tempo. O juízo sinótico que reúne os fatos em uma totalidade – isto é, o ato configurante –

seria a condição sine qua non por meio da qual os fatos do passado se convertem em história.

É por meio dessa síntese que o passado se torna inteligível como uma unidade e, assim, se

transforma em história.

Segundo relata de Ricoeur (1994), o problema de Mink em relação ao conceito de

followability está no fato de que ele somente seria útil quando o leitor não conhece a história

e, por meio dela, vai se familiarizando com o desdobramento da trama. Contudo, o historiador

e seu leitor já conhecem a história. Eles não seguem a história segundo o telos que a direciona

para a sua conclusão. Pelo contrário, eles procedem ‘de trás para frente’ (backwards), isto é,

lançando um olhar retrospectivo aos fatos históricos que já conhecem. Desse olhar nasceria

um juízo reflexivo por parte do historiador, no sentido de produzir uma configuração

inteligível de relações aos olhos do leitor. A ênfase da historiografia estaria, portanto, mais na

atividade de organizar a história do que em acentuar o conjunto de fatos históricos que

originaram uma história:

A história advém depois que a partida terminou. Sua tarefa não é acentuar os incidentes, mas reduzi-los. O historiador não cessa de percorrer de novo as pistas de frente para trás: ‘Não há contingência na progressão regressiva. É somente quando renarramos a história que ‘nossa marcha para adiante repassa pelo caminho percorrido às avessas. Isso não quer dizer que, conhecendo o resultado, o leitor poderia predizê-lo. Segue, a fim de ‘ver’ a série dos acontecimentos ‘como

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configuração inteligível de relações’. Essa inteligibilidade retrospectiva repousa sobre uma construção que nenhuma testemunha teria podido operar quando os acontecimentos ocorreram, posto que essa marcha regressiva era-lhe então inacessível (RICOEUR, 1994, p. 225)

Essa inteligibilidade da história a partir do ato configurante se deve ao fato de que a

configuração consistiria em um dos modos de compreensão próprios do conhecimento. Ao

lado do modo teórico, que permite a compreensão de um determinado objeto por meio de sua

referência a um exemplo geral, e do modo categorial, que produz a compreensão de um objeto

em razão de sua classificação dentro de distintas categorias, o modo configurante “tem como

típico colocar elementos num complexo único e concreto de relações”. (RICOEUR, 1994, p.

227). Esse modo de compreensão configurante permitiria a apreensão do mundo em uma

totalidade, pois é apenas por meio da configuração unificadora dos elementos que cada uma

de suas partes componentes adquire sentido. A narrativa seria uma das formas em que esse

modo de compreensão se expressa, já que nesta os episódios somente se tornam inteligíveis –

isto é, adquirem um sentido específico – quando relacionados no interior da estória produzida.

Com isso, tem-se que a própria cronologia da história recuaria a um ponto em que até mesmo

a importância da datação se esvaneceria, já que a temporalidade primordial da história seria

aquela produzida pela totalidade narrada.

Segundo Dworkin (2001), o trabalho interpretativo do juiz no romance em cadeia

envolve esse olhar retrospectivo ao passado da interpretação jurídica a fim de construir uma

‘totalidade de sentido’ para esse passado. Quando o jurista recorre a uma metanarrativa como

condição para sua tarefa interpretativa, essa atividade envolverá necessariamente o recurso a

um ato configurante. Os ‘episódios’ da sequência narrativa em que a interpretação se

encaixará não são apenas encadeados ‘um após o outro’. Eles adquirem sentido apenas na

condição de história da interpretação de um determinado tema, instituto jurídico ou do próprio

direito. É por essa razão que Dworkin (2001, p. 245) rejeita a teoria da intenção do autor na

interpretação legislativa. Pois é somente a partir da narrativa proporcionada pelo ato

configurante que o intérprete pode justificar a sua escolha sobre a melhor continuidade para

história do direito. Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma avaliação que se reconhece como

eminentemente política:

Sabemos a partir do raciocínio equivalente na literatura, que essa descrição geral da interpretação no Direito não é uma licença para que cada juiz descubra na história doutrinal seja o que for que pensa que deveria estar na lei. A mesma distinção é válida entre a interpretação e o ideal. O dever de um juiz é interpretar a história jurídica que encontra, não inventar uma história melhor. As dimensões de ajuste fornecerão alguns limites. Não existe, é claro, nenhum algoritmo para decidir se uma

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determinada interpretação ajusta-se satisfatoriamente a essa história para não ser excluída. Quando uma lei, Constituição ou outro documento jurídico é parte da história doutrinal, a intenção do falante desempenhará um papel. Mas a escolha de qual dos vários sentido, fundamentalmente diferentes, da intenção do falante ou do legislador é o sentido adequado, não pode ser remetida a intenção de ninguém, devendo ser decidida, por quem quer que tome a decisão, como uma questão de teoria política.

O derradeiro elemento constituinte do princípio estrutural da narrativa historiográfica

foi desenvolvido por Hayden White por meio do conceito de armação da intriga (enplotment).

Seguindo a trilha aberta por Mink quanto à proximidade entre a narrativa de ficção e a

narrativa histórica, White (1992) aborda essa relação de uma perspectiva diversa da

epistemologia, segundo a qual o problema da história está diretamente ligado ao problema da

verdade do discurso histórico-científico. Para o autor, ficção e história pertencem a uma

mesma classe literária do fazer poético. Com isso, põe-se em relevo o fato de que a escrita da

história é constitutiva do modo de compreensão da história, pelo que, portanto, o problema do

texto histórico não seria uma mera questão de estilo, mas em elemento integrante de sua

própria essência.

6.3.2.4 A armação da intriga como a operação narrativa da metahistória

White (1992) denomina de ‘metahistória’ a perspectiva adotada pelo historiador que

acentua o caráter poético da atividade histórica, em contraponto à perspectiva tradicional

centrada na epistemologia ‘cientificista’ da história. Seu desafio é o de estabelecer de que

maneira a abordagem literária da história se sustenta sem que seu valor como conhecimento

científico seja colocado em questionamento. Esse desafio deve quebrar também a resistência

por parte da crítica literária, já que da perspectiva desta, a literatura consistiria no campo

exclusivo do imaginário, excluindo, portanto, a história de seus domínios.

Segundo White (1992), o trânsito entre o fazer poético e a história se dá por meio do

conceito de armação da intriga (emplotment). A intriga não se confunde com a estória, já que

esta consistiria tão somente no encadeamento linear de fatos, segundo a ideia de ‘fio da

história’ (story line), isto é da apresentação dos fatos históricos. Fatos históricos apresentados

em uma sequência não necessariamente contariam com uma organização interna responsável

por selecionar e arranjar um discurso narrativo. Eles até podem ser apresentados em um

‘estória’, mas não necessariamente consistem em uma narração apenas por esse fato.

É apenas a partir da armação de uma intriga que a história adquire um sentido auto-

explicativo por meio do qual se revelam não apenas os acontecimentos históricos, mas sim a

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própria história. A armação da intriga consistiria, assim, em um padrão regulador de leitura da

própria história.

A intriga também não se confunde com a noção de argumento. O argumento exige que

os desdobramentos dos fatos históricos contem com uma explicação racional e demonstrativa

das relações causais que se busca estabelecer entre acontecimentos que se sucedem no tempo.

Todavia, segundo White (1992), esse não é o modo do raciocínio e do ofício do historiador. A

explicação em história é co-originária da própria apresentação da história. Isto significa que o

historiador não justifica a sua apresentação da história em um raciocínio apartado de suas

conclusões. Pelo contrário, é na própria produção do texto histórico que suas explicações

brotam ao leitor.

Mas a armação da intriga não consiste simplesmente na junção entre estória (story

line) e argumento. Ele envolve a possibilidade de compreensão da obra histórica a partir de

uma classe em que essa narrativa se enquadra. É como explica Ricoeur (1994, p. 238):

Por armação da intriga (emplotment) o autor entende bem mais que a simples combinação entre o aspecto linear da história narrada e o aspecto argumentativo da tese sustentada; entende o tipo (kind) ao qual a história narrada pertence, logo, uma dessas categorias de configuração que aprendemos a distinguir por nossa cultura. Digamos, para esclarecer esse problema, que H. White apela para o tema que desenvolvi longamente na primeira parte, sobre o papel dos paradigmas na armação da intriga e sobre a constituição de uma tradição narrativa pelo jogo da inovação e da sedimentação. Mas enquanto eu caracterizo a tessitura da intriga pela gama inteira das permutas entre paradigmas e histórias singulares, H. White retém exclusivamente para sua noção de emplotment sua função de categorização; o que explica, em compensação, que ele relacione à noção de story o aspecto puramente linear. A tessitura da intriga assim concebida constitui um modo de explicação (...) Explicar, aqui, é fornecer um guia para identificar progressivamente a classe da tessitura da intriga.

Após construir uma tipologia dos estilos historiográficos que permite identificar os

paradigmas da armação da intriga, White (1992) reconhece que a narrativa é inerente à

tradição da atividade poética e que consiste em uma herança cultural que o seu público já

espera:

Os modos de armação da intriga, em particular, são os produtos de uma tradição de escrita que lhes transmite a configuração de que se serve o historiador. Esse aspecto de tradicionalidade é finalmente o mais importante: o historiador, na qualidade de escritor, dirige-se a um público suscetível de reconhecer as formas tradicionais da arte de narrar. As estruturas não são, pois, regras inertes. São as formas de uma herança cultural. Se é possível dizer que nenhum acontecimento é, em si, trágico e que só o historiador o faz parecer assim, codificando-o de uma certa maneira, é porque o arbitrário da codificação é limitado, não pelos acontecimentos narrados, mas pela expectativa do leitor de encontrar formas conhecidas de codificação (...) A

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codificação é, assim, regulada mais pelos efeitos de sentido esperados que pelo material a codificar (RICOEUR, 1994, p. 241).

Portanto, é possível afirmar que a armação da intriga consistiria na operação que

dinamiza todos os níveis da articulação da narrativa, e não apenas um nível entre outros.

Logo, ela seria o pivô por meio do qual se sustenta a distinção entre narrar e explicar.

É por meio da armação pela intriga que se completa o caráter narrativo da memória

jurídica. No direito como integridade, a reconstrução do passado da história de um tema, um

instituto jurídico ou do próprio direito, como atividade preparatória indispensável ao trabalho

interpretativo do jurista, permite que ele possa situar temporalmente sua atividade. O jurista se

vê inserido em uma trama cuja continuação dessa história é a sua própria interpretação. Ele

opera a seleção e o esquecimento dos acontecimentos relevantes para a construção do pano de

fundo em que sua atividade interpretativa irá se inserir e pretende que sua solução seja aquela

que promove a melhor continuidade para essa sequência. Desse modo, a compreensão

narrativa do direito é parte integrante do próprio raciocínio jurídico e, portanto, integra o

modo e o estilo de apresentação dos argumentos utilizados pelo jurista para justificar e

defender a sua interpretação. Dessa maneira, a argumentação empregada pelo jurista é

conduzida de modo a culminar na confecção daquela que seria a resposta correta à solução do

caso – ou ainda a melhor sequência para a história do direito:

O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do Direito, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem, incluirá ou implicará alguma concepção de integridade e coerência do Direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste – isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao Direito anterior, sobre qual delas, e de que maneira. Deve ser evidente, porém, que a teoria de ajuste de qualquer juiz muitas vezes não conseguirá produzir uma interpretação única. Assim como duas leituras de um poema podem encontrar apoio suficiente no texto para demonstrar sua unidade e coerência, dois princípios podem, cada um, encontrar apoio suficiente nas várias decisões do passado para satisfazer qualquer teoria plausível de adequação. Nesse caso, a teoria política substantiva desempenhará um papel decisivo. Falando sem rodeios, a interpretação do Direito de acidentes, segundo a qual um motorista descuidado é responsável perante aqueles cujo dano é substancial e previsível, só é uma interpretação melhor, provavelmente, porque enuncia um princípio mais sólido de justiça que qualquer princípio que faça distinção entre dano físico e emocional ou que vincule a compensação pelo dano emocional ao risco de dano físico. (DWORKIN, 2001, p. 241).

6.3.3 Interpretação, lembrança e narrativa no direito como integridade

Após apresentar os elementos que caracterizam a estrutura do discurso narrativo,

pode-se concluir que a descrição do raciocínio jurídico proporcionada por Dworkin (2001;

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2003) assume a forma de um discurso narrativo. Isto porque ele deriva de uma metanarrativa

sobre a própria evolução da interpretação jurídica de um tema, de um instituto ou do próprio

direito como etapa preparatória para busca da solução interpretativa mais correta para a

continuidade da história institucional do direito.

Esse discurso narrativo contaria com todas as propriedades componentes do princípio

estrutural da narrativa: sua expressão tem por unidade lógica a frase narrativa; a história

construída deve poder ser seguida como condição para que o jurista possa apontar a melhor

interpretação para o caso que é chamado a solucionar; sua unidade advém de um ato

configurante em que essa interpretação correta adquire sentido como continuidade possível da

totalidade que integra; por fim, esse raciocínio é organizado narrativamente porque orientado

pelo princípio de uma armação da intriga.

A evidenciação do caráter narrativo do raciocínio jurídico revela, assim, a memória

jurídica em toda a sua plenitude: o discurso produzido pelo jurista em sua tarefa interpretativa

seria originado de uma operação de seleção e esquecimento que organiza a experiência do

passado em uma estrutura narrativa. A metanarrativa da atividade interpretativa

proporcionaria ao jurista uma compreensão temporal do direito quanto ao atual estágio de

evolução do pensamento jurídico. Isso impediria que o jurista padecesse de uma amnésia por

meio da qual ele pudesse se trancafiar em um limbo atemporal de onde não precisa dar conta

de sua condição temporal para realizar a tarefa interpretativa.

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7 CONCLUSÃO

O itinerário da presente pesquisa se iniciou com a constatação de que a relação entre o

direito e a temporalidade não havia sido objeto de uma investigação profunda até o advento

do pós-positivismo na teoria jurídica. Isso se deu tanto pelo fato de que o conceito de tempo

construído pela ciência e pela filosofia moderna não contava com uma abertura semântica que

permitisse aos juristas explorarem a relação entre o direito e a temporalidade, como também

pelo fato de que o direito moderno se edificou como um conhecimento que prescindia da

referência a sua dimensão temporal.

No que diz respeito ao tempo, viu-se que tanto a matriz física, como a matriz filosófica

construíram conceitos autônomos e absolutos de tempo, que se viam ou como uma dimensão

do universo natural que produz um fluxo temporal objetivo, uniforme e contínuo, ou como a

condição de possibilidade de toda experiência sensível, sem qualquer relação com a ideia de

passagem do tempo. No entanto, no decorrer do segundo capítulo viu-se que mesmo no

interior dessas duas matrizes o conceito autônomo e absoluto de tempo deu lugar a um

conceito relativo e relacional do tempo, condicionado tanto pelas circunstâncias em que se

processa a passagem do tempo – como postulam os princípios da física quântica –, quanto

pela experiência subjetiva do sentimento e da consciência do homem – como no intuicionismo

de Bergson e na fenomenologia de Husserl e Heiddeger. O capítulo se encerrou, ainda, com a

apresentação de uma terceira matriz de concepção de tempo originada pela sociologia. A

partir da análise do pensamento de Elias e de Luhmann verificou-se que o tempo possui uma

dimensão social que nasce da experiência coletiva da passagem do tempo no interior dos

grupos sociais.

No entanto, outro fator contribuiu de maneira relevante para esse efeito, a saber, o fato

de que também o direito moderno se mostrou blindado a uma leitura temporal. Tal fenômeno

pôde ser verificado tanto no jusnaturalismo, que sustentava que o direito derivaria de um

conjunto de prescrições universais de comportamento ditadas pela reta razão, quanto nas

primeiras formulações do positivismo jurídico, que erigiram cânones para a interpretação

jurídica que desvincularam o direito de sua dimensão social. Direito e tempo somente se

encontravam de maneira pontual, na leitura tradicional da história do direito que se limitava a

apresentar a cronologia dos eventos político-jurídicos registrados pelos calendários – a

chamada ‘história das fontes jurídicas’.

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O ápice da negligência ao estudo da relação entre tempo e direito se deu com a

concepção de direito construída pelo positivismo semântico. Como essa forma de

compreensão do direito e do saber jurídico pretendia produzir um conhecimento sobre o

fenômeno jurídico em consonância com os parâmetros da ciência moderna, seu traço

característico era a busca pela objetividade. Nessa empreitada, o positivismo semântico

reduziu a teoria e a prática jurídica à atividade de descoberta dos significados linguísticos

presentes nas expressões contidas nos textos normativos. Assim, sob os auspícios do

positivismo semântico, a metodologia jurídica tornou o objeto de investigação da ‘ciência

jurídica’ – a norma jurídica – uma realidade totalmente desvinculada do mundo social e

cultural em que se insere o direito. O efeito temporal produzido por esse modo de

compreensão do direito foi o denominado ‘presentismo’, isto, é um confinamento da leitura

temporal do direito à sua dimensão presente. Por meio dele os significados contidos no texto

da legislação escrita se eternizariam até que sobreviessem ulteriores mudanças no direito por

meio da evolução legislativa.

A crítica que acompanhou o movimento pós-positivista propôs uma ruptura com o

rigor metodológico a que se submetia o saber jurídico no positivismo semântico.

Notadamente, essa critica se dirigiu à limitação do estudo do direito a seu plano estritamente

normativo. Isso permitiu que o conhecimento jurídico incorporasse a produção científica de

outros ramos das ciências humanas e sociais em suas análises. Essa renovação metodológica

levou o saber jurídico a reconhecer o direito como um elemento integrante da cultura e,

portanto, uma variável dependente da sociedade em que se insere. Com isso, autores do pós-

positivismo como François Ost e Ronald Dworkin se dedicaram a tecer uma crítica ao caráter

atemporal do direito na teoria positivista. O resultado dessas análises foi o reconhecimento de

que direito e tempo se encontram duplamente imbricados: da mesma maneira que o direito

joga um papel extremamente relevante na instituição do tempo social, ele retira sua força

normativa de uma condição de sincronia em relação ao tempo social instituído. Via de

consequência, o caminho que conduz a uma relação equilibrada da teoria e da prática jurídica

com a temporalidade passa, como sugerido por Dworkin, pela construção de uma concepção

interpretativa do direito – o direito como integridade – que ressalta a importância das três

dimensões temporais na cognição do direito e no raciocínio jurídico.

As análises de Ost e de Dworkin apontaram ainda para duas conclusões: a) é possível

se falar na existência de uma memória no interior do direito e do saber jurídico; b) a

compreensão do direito a partir da referência à estrutura da memória proporcionaria uma

relação equilibrada entre tempo e direito. No entanto, a investigação sobre o conceito de

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memória jurídica esbarrou na ausência de um estudo sistematizado e transdisciplinar sobre os

elementos que compõem o conceito de memória. Isto porque a falta de uma caracterização

precisa das nuances que definem o fenômeno da memória impediu a sua transposição para o

interior do saber jurídico. Assim, no quinto capítulo a pesquisa partiu para uma investigação

sobre a natureza do fenômeno da memória nos diversos ramos do saber que utilizam esse

conceito em suas análises teóricas. A finalidade desse giro foi a de construir uma

caracterização preliminar das referências semânticas à noção de memória, com o fito de

verificar a sua empregabilidade no âmbito da teoria e da prática jurídica. Ao final desse

estudo, foram constatados três aspectos que definem o fenômeno da memória, a saber: a) a

memória é a propriedade inerente a todo sistema que se relaciona com a temporalidade, uma

vez que promove a ligação entre as dimensões temporais do passado, do presente e do futuro.

Isto se deve ao fato de que por meio da memória uma individualidade atualiza a sua

experiência relevante do passado a fim de que possa tomar decisões no presente em direção ao

futuro, o que exige a atividade de seleção e de esquecimento. Assim, a memória condicionaria

as possibilidades da ação presente e, com isso, reduziria a complexidade das operações de

reprodução do próprio sistema; b) a memória é responsável por formar a identidade de um

sujeito, seja ele individual ou coletivo. A individuação é fruto da capacidade da memória de

registrar as particularidades contidas na experiência passada de alguém, sendo que esse

registro expressa a trajetória singular que torna o sujeito um exemplar único em relação aos

demais. A experiência passada registrada na memória conecta e remete o sujeito ao seu

passado por meio da fixação de marcos de referência que lhe permitem reconstruir quem ele

foi, é e para onde irá; c) a memória consiste não apenas nas funções de acesso e registro da

experiência do passado, mas também em sua organização. Para tanto, a memória emprega a

seleção e o esquecimento dos episódios pretéritos a fim de construir uma trama que enlaça os

eventos dignos de recordação e condena ao limbo da extinção ou mesmo do completo

esquecimento aqueles considerados irrelevantes ou traumáticos – isto é, capazes de gerar uma

paralisia na dinâmica evolutiva do sujeito. No desempenho dessa atividade de organização da

experiência do passado, verifica-se que a memória assume um formato essencialmente

narrativo, por situar o sujeito – singular ou coletivo – no interior de uma ‘estória’ que se arma

no interior de uma intriga cujo curso coincide com o de sua existência.

As três características verificadas nessa análise transdisciplinar da memória, somadas

ao fato de que é possível se falar em uma memória de sistemas e grupos sociais, permitiram

que se vislumbrasse a transposição desse conceito para o âmbito do saber jurídico. Com isso,

foi possível explorar as hipóteses e subhipóteses formuladas no início da presente pesquisa de

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que: a) de fato é possível se falar na existência de um conceito denominado ‘memória

jurídica’; b) esse conceito adquire uma relevância significativa para a compreensão temporal

da teoria e da prática jurídica, já que reinsere o direito em sua relação com a temporalidade; c)

a partir do conceito de memória jurídica é possível suprir a imagem atemporal legada ao saber

e à prática jurídica pelas leituras jusnaturalista e positivista.

A primeira concepção de memória jurídica se deu com a análise do direito a partir da

teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Dentro dessa concepção, a memória jurídica seria a

propriedade por meio da qual o direito se conectaria com a temporalidade a partir do conceito

de validade. A memória jurídica seria a operação do subsistema jurídico capaz de checar a

consistência das operações comunicativas do código direito / não direito ao longo da

existência temporal. Isto se dá por meio de um valor criado autopoieticamente e capaz de

produzir seleção e esquecimento das operações de sucesso e fracasso dentro do sistema

jurídico. Toda comunicação do sistema jurídico seria, assim, previamente antecedida de uma

atividade memorial que constrói a realidade temporal do sistema social.

Em segundo lugar, a memória jurídica consistiria no elemento que recolhe

normativamente a experiência cultural da sociedade com a finalidade de proporcionar um

senso de identidade ao grupo. De um lado, viu-se com Ost que a memória jurídica consistiria

nessa tarefa que o direito assume de preservar o conjunto de tradições que formam a base do

convívio social por meio de suas prescrições normativas; de outro, Kirste identificou que o

próprio direito, ao se objetivar em formas culturais que expressam o passado comum do

grupo, representaria um aspecto da memória social capaz de reforçar a identidade coletiva que

mantém vivos os laços sociais.

Por fim, a memória jurídica seria a metanarrativa que possibilita a organização da

experiência jurídica em uma estrutura narrativa que possibilita ao intérprete uma compreensão

temporal de sua atividade. Assumindo como correta a descrição do raciocínio jurídico da

forma como apresentada no romance em cadeia descrito por Dworkin, foi possível identificar

que o raciocínio jurídico se estrutura em um discurso narrativo. Tal conclusão foi extraída

após o reconhecimento da presença dos elementos que compõem o princípio estrutural da

narrativa apresentados por Ricoeur na teoria do direito como integridade de Dworkin.

Desse modo, foi possível comprovar a tese de que uma compreensão temporal do

direito – e consequentemente, a superação da leitura atemporal do direito – depende da

incorporação do conceito de memória jurídica na leitura do direito. A importância dessa

mudança de atitude consiste, sobretudo, em chamar atenção do operador do direito para o fato

de que o direito é uma realidade cultural que possui duração temporal e que, portanto, uma

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compreensão temporal desse fenômeno é capaz de revelar com muito mais riqueza os seus

detalhes do que uma leitura amnésica como aquela feita pelo positivismo proporciona.

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