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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Sérgio Mendes Botrel Coutinho O DIREITO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS E A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PROPOSTA DE LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO SOCIETÁRIO Belo Horizonte 2008

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS … · FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil da escola da Exegese às teorias da argumentação. In: FIUZA, César

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Sérgio Mendes Botrel Coutinho

O DIREITO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS E A TEORIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS: UMA PROPOSTA DE LEITURA CONSTITUCIONAL DO

DIREITO SOCIETÁRIO

Belo Horizonte

2008

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Sérgio Mendes Botrel Coutinho

O DIREITO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS E A TEORIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS: UMA PROPOSTA DE LEITURA CONSTITUCIONAL DO

DIREITO SOCIETÁRIO

Tese apresentada como requisito parcial

para a obtenção do título de Doutor em

Direito, área de concentração Direito

Privado, junto à Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais.

Orientador: Prof. Dr. César Augusto de

Castro Fiuza

Belo Horizonte

2008

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C871d

Coutinho, Sérgio Mendes Botrel. O direito das sociedades anônimas e a teoria dos direitos

fundamentais : uma proposta de leitura constitucional do direito societário / Sérgio Mendes Botrel Coutinho. - Belo Horizonte, 2008.

176 f. Orientador: Professor Dr. César Augusto de Castro

Fiúza. Tese (doutorado), Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. 1. Direito Societário. 2. Direitos humanos. 3. Sociedades

por ações. I. Título. II. Fiúza, César Augusto de Castro III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

CDU: 347.72:342.7

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Alessandro de Olieira Rezende CRB Provisório 2887

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Sérgio Mendes Botrel Coutinho

Tese intitulada “O Direito das Sociedades Anônimas e a Teoria dos Direitos Fundamentais: Uma Proposta de Leitura Constitucional do Direito Societário”, apresentada à Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

__________________________________________ Professor Doutor César Augusto de Castro Fiuza

Orientador

__________________________________________ Prof. Dr. Vinícius José Marques Gontijo

___________________________________________ Prof. Dra. Taisa Maria Macena de Lima

___________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Goulart Pimenta

___________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Almeida Magalhães

Belo Horizonte, 19 de fevereiro de 2009.

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Dedico este trabalho à Isa, minha esposa, companheira,

amiga e eterna namorada.

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas contribuíram para a elaboração deste trabalho, seja direta ou

indiretamente. Ficam registrados, assim, meus agradecimentos a todas elas. Algumas,

porém, eu não poderia deixar de mencionar pontualmente.

A Deus, por ter me iluminado em mais um trabalho.

A Isa, pelo amor e carinho de sempre, pela compreensão e pela constante

torcida para que tudo desse certo. Sem a paz e tranqüilidade que você me passou, este

trabalho certamente não teria sido concluído.

A meus pais, cuja contribuição para este trabalho e para a minha vida são

incomensuráveis.

Ao Professor Doutor César Augusto de Castro Fiuza, pelo apoio

incondicional na minha caminhada acadêmica, em especial em relação a este trabalho.

Aos amigos Dierle José Coelho Nunes, Frederico de Andrade Gabrich, e João

Paulo Fernandes da Silva, pelas importantes contribuições para este trabalho.

À Universidade FUMEC, por ter subsidiado a pesquisa que fundamenta este

trabalho.

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RESUMO

A legitimidade do Direito advém do processo democrático de legiferação, do

mesmo modo que um sistema jurídico legítimo pressupõe a contemplação de direitos

fundamentais.

Os direitos fundamentais são incorporados e interpretados em ordens jurídicas

concretas por intermédio do Direito Constitucional, o que demonstra a necessidade de uma

leitura constitucional de todos os ramos do Direito se se pretende produzir e aplicar um

Direito legítimo.

A rigor, o Direito Empresarial não pode ser concebido como uma exceção a esta

regra, de modo que a sua produção, aplicação e interpretação devem passar pelo “filtro

constitucional”, proposta esta que o liberta das amarras do Positivismo clássico, conferindo-

lhe uma nova direção em todas as suas disciplinas, dentre as quais o Direito Societário,

escolhido como objeto de análise deste trabalho.

Por intermédio de uma perspectiva constitucional, o Direito Societário deixa de

ser compreendido somente como um ramo do Direito Privado, destinado a regular os

interesses dos agentes econômicos, numa concepção liberal de laissez-faire, para ser

entendido também como verdadeiro instrumento de concretização e conciliação dos direitos

fundamentais que gravitam em torno da empresa explorada coletivamente.

De fato, a tarefa de concretização e conciliação dos direitos fundamentais

compete, primeiramente, ao legislador, sendo certo que toda interpretação das normas

infraconstitucionais deverá almejar a maior realização possível dos direitos fundamentais

envolvidos.

Contudo, se a regulamentação infraconstitucional mostrar-se insuficiente ou

inadequada para a conciliação e tutela dos direitos fundamentais envolvidos, a invocação

direta dos direitos fundamentais, como verdadeiros direitos subjetivos, torna-se medida

cogente para que, pela argumentação jurídica, seja dada uma solução interpretativa ao conflito

dos direitos fundamentais.

Neste contexto, as idéias desenvolvidas nesta tese têm como objetivo contribuir

para uma reconstrução do Direito Empresarial, sugerindo-se o início de uma mudança do

modo de produzi-lo, aplicá-lo, e interpretá-lo.

Palavras-chave: Direito Societário, Sociedades Anônimas, Legitimidade, Teoria

dos Direitos Fundamentais.

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ABSTRACT

The Law’s legitimacy arises from the democratic legislating process, as well

as a legitimate legal system presupposes the contemplation of fundamental rights.

The fundamental rights are incorporated and interpreted in concrete legal

orders through the Constitutional Law, what shows the need of a constitutional lecture

(view) of all branches of Law in order to produce and apply a legitimate Law.

Indeed, Commercial Law can not be viewed as an exception of this rule, so

that its production, application and interpretation must be submitted to a “constitutional

filter”. This suggestion detaches Commercial Law of the “anchor cable” of classic

Positivism, grating it a new direction in all its disciplines, among which Corporate Law

was chosen as the object of research.

Through a constitutional perspective, Corporate Law is not considered only

as a branch of Private Law, addressed to regulate the interests of the economic agents, in

a “laissez-faire” liberal conception. In the aforesaid perspective Corporate Law is also

conceived as a real instrument of implementation and conciliation of the fundamental

rights that gravitate around the firm developed collectively.

In fact, the task of implementation and conciliation of fundamental rights belongs,

at first, to the lawmaker, although every interpretation of infra-constitutional norms must

reach the largest implementation of the involved fundamental rights.

However, if the infra-constitutional regulation is found insufficient or inadequate

to conciliate and protect the involved fundamental rights, the direct invocation of fundamental

rights, as effective rights, becomes a binding measure in order to, by legal argumentation, an

interpretative solution of the fundamental rights’ conflict be given .

In this context, the suggestions presented in this thesis aim to contribute to the

reconstruction of Commercial Law, in order to launch a change in the way it is produced,

applied, and interpreted.

Key-words: Corporate Law, Corporations, Legitimacy, Theory of Fundamental

Rights.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10

1 Os desafios do Direito Privado contemporâneo ................................................................. 10

2 Delimitação do tema ......................................................................................................... 20

1 TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ................................................... 23

1.1 Notas introdutórias......................................................................................................... 23

1.2 A relação entre Constituição, direito privado e direitos fundamentais ............................. 24

1.3 Gerações ou dimensões dos direitos fundamentais.......................................................... 28

1.4 Função dos direitos fundamentais e do direito infraconstitucional .................................. 30

1.5 Titulares de direitos fundamentais .................................................................................. 32

1.6 Construções teóricas acerca da eficácia dos direitos fundamentais.................................. 34

1,6.1 Teoria negativista (doutrina do “state action”) ............................................................. 35

1.6.2 Teoria da eficácia mediata (indireta) nas relações privadas .......................................... 35

1.6.3 A teoria da eficácia direta (imediata) nas relações privadas ......................................... 37

1.6.4 Poderes privados e eficácia direta dos direitos fundamentais ....................................... 40

1.7 Critérios de conciliação e limitação dos direitos fundamentais........................................ 42

1.7.1 Colisão de direitos fundamentais ................................................................................. 46

1.8 Técnicas de tutela dos direitos fundamentais .................................................................. 48

1,9 Modelo constitucional de processo ................................................................................. 52

2 PERFIL CONSTITUCIONAL DA EMPRESA E ANÁLISE (ESTRUTURAL E

FUNCIONAL) DA SOCIEDADE ANÔNIMA ........................................................... 54

2.1 O suporte constitucional da empresa............................................................................... 54

2.2 Os direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa.......................................... 58

2.2.1 Os trabalhadores.......................................................................................................... 61

2.2.2 Os colaboradores......................................................................................................... 62

2.2.3 Os financiadores.......................................................................................................... 63

2.2.4 Os consumidores ......................................................................................................... 64

2.2.5 Os concorrentes........................................................................................................... 64

2.2.6 Os sócios..................................................................................................................... 65

2.2.7 O meio ambiente ......................................................................................................... 66

2.3 As restrições/limitações constitucionais ao exercício da empresa.................................... 67

2.3.1 Princípio da função social da propriedade.................................................................... 68

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2.3.2 Princípio da livre concorrência .................................................................................... 72

2.3.3 Princípio da defesa do consumidor .............................................................................. 74

2.3.3 Princípio da defesa do meio ambiente.......................................................................... 75

2.4 A sociedade anônima como instrumento de exercício coletivo da empresa: análise

estrutural ..................................................................................................................... 77

2.5 Breve análise funcional da sociedade anônima ............................................................... 83

3 O PODER PRIVADO NA SOCIEDADE ANÔNIMA ...................................................... 86

3.1 Importância da identificação da relação de poder............................................................ 86

3.2 A natureza do controle ................................................................................................... 87

3.3 Modalidades de poder de controle .................................................................................. 91

3.3.1 Controle interno .......................................................................................................... 92

3.3.2 Controle externo.......................................................................................................... 97

3.3.2.1 Técnicas de responsabilização do titular do controle externo .................................. 100

3.4 O controle na Lei Acionária brasileira .......................................................................... 103

3.5 Leitura constitucional do controle acionário ................................................................. 107

4 LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS ...... 114

4.1 Notas introdutórias....................................................................................................... 114

4.2 Releitura das técnicas de tutela dos direitos fundamentais na Lei das Sociedades

Anônimas.................................................................................................................. 114

4.2.1 O direito de recesso ................................................................................................... 115

4.2.1.1 O recesso e a teoria dos direitos fundamentais ........................................................ 121

4.2.2 A exclusão de acionista ............................................................................................. 123

4.2.2.1 A exclusão do acionista e a teoria dos direitos fundamentais................................... 128

4.3 Releitura do interesse social ......................................................................................... 130

4.3.1 Contratualismo.......................................................................................................... 131

4.3.1.1 Contrato-organização ............................................................................................. 132

4.3.2 Institucionalismo....................................................................................................... 133

4.3.2.1. Stakeholder theory (“teoria das partes relacionadas”) ............................................ 135

4.3.3 O interesse social e a teoria dos direitos fundamentais ............................................... 138

4.4 Liberdade estatutária .................................................................................................... 143

4.4.1 Alteração dos quoruns legais de deliberação.............................................................. 145

4.4.2 Exibição dos livros e ação social derivada ................................................................. 146

4.4.3 Cláusula de interdição de participação de concorrente ............................................... 150

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4.4.4 Cláusula de interdição de concorrência de cedente da totalidade da participação

acionária e de ex-membros da administração da companhia....................................... 152

4.4.5 Cláusula que proíbe os acionistas sem direito de voto de comparecerem e

discutirem as matérias submetidas à deliberação das assembléias gerais .................... 154

4.4.6 Cláusula de imposição de critérios para a eleição (e permanência) da administração

social......................................................................................................................... 155

4.4.7 A previsão estatutária do resgate em caso de algum evento da vida privada

do acionista ............................................................................................................... 157

4.5 Dissolução da companhia ............................................................................................. 158

4.5.1 Hipóteses de dissolução da companhia ...................................................................... 160

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 164

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 167

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo propor uma leitura constitucionalizada do

Direito Societário, tendo sido escolhida a Sociedade Anônima como objeto de análise em

decorrência de sua maior complexidade em relação aos demais modelos jurídicos de

exploração da atividade empresarial.

Mas, antes de delimitar e justificar o tema, revelar a tese e esclarecer o caminho a

ser percorrido para a comprovação da hipótese, parece adequado promover uma

contextualização do Direito Privado contemporâneo.

1 OS DESAFIOS DO DIREITO PRIVADO CONTEMPORÂNEO

A complexidade da sociedade contemporânea, fortemente caracterizada pelo

pluralismo, desafia as teorias, os dogmas e os sistemas jurídicos. A ortodoxia jurídica mostra-

se verdadeiramente inócua para fazer frente às necessidades advindas do coevo modus

vivendi. A globalização, a mercantilização do poder político, o surgimento de novas

tecnologias, dentre outros fenômenos econômico-sociais, forçam o Direito a se adaptar a esta

nova realidade, o que se revela uma tarefa extremante árdua, em especial pelo fato de que o

momento atual “é de rompimento, de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não

identificado”.1

Com efeito, a época presente caracteriza-se para o Direito como uma época de

crise2. Fala-se em crise das (i) instituições, (ii) da sistematização, e (iii) da interpretação.

(i) Crise das instituições3

1 LORENZETTI, Ricardo Luis. A descodificação e a possibilidade de ressistematização do Direito Civil. In: FIUZA, César et al (Coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 230. 2 A palavra crise é aqui utilizada, como sugerido por César Fiuza, em sua concepção positiva, no sentido de superação, turning point. Cf. FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil da escola da Exegese às teorias da argumentação. In: FIUZA, César et al (Coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 23. 3 Em que pese a variedade de significados que o vocábulo ‘instituição’ possa assumir, adota-se, aqui, aquele considerado por De Plácido e Silva como o principal, de modo a identificar o “conjunto de regras, que se mostram as bases ou os fundamentos da organização ou da entidade formada. E indica a própria organização. Neste sentido, as instituições se dizem públicas ou privadas, segundo a origem da vontade que as formou e o

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11

Contemporaneamente, a propriedade, o contrato e a família – verdadeiros pilares

do Direito Privado – abandonam a rigidez dos dogmas do Direito Romano e as idéias liberais

burguesas, para serem compreendidos como instrumentos necessários à realização da

dignidade de pessoas inseridas em uma determinada coletividade.

A título de exemplo, verifica-se que propriedade deixa de ser compreendida

simplesmente como o direito de usar, fruir, dispor e reivindicar, para impor ao seu titular

deveres perante a coletividade, de modo que a propriedade passa a vista como “situação

jurídica, consistente em relação entre o titular e a coletividade (não-titulares), da qual nascem

para aquele direitos (usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na função social da

propriedade)”.4

Também o contrato sofre verdadeira revolução com o reconhecimento e a

imposição de cumprimento de sua função social, da qual são extraídos, por sua vez, os efeitos

obrigacionais, interno e externo do contrato. Enquanto o primeiro impõe aos contratantes,

além de avaliarem seus próprios interesses, respeitarem, também, a esfera jurídica coletiva,5 o

segundo tem como conseqüência o fato de o contrato criar uma situação jurídica que vincula

não só as partes, mas também terceiros que tenham conhecimento da relação negocial,

ampliando, portanto, sua oponibilidade.6 De fato, ainda que os terceiros não tenham,

necessariamente, que cumprir aquilo que foi convencionado, o respeito à relação jurídica

criada pelo contrato é dever que advém da ordem jurídica.

Some-se a isso o fato de que a boa-fé objetiva, que impõe os chamados deveres

colaterais7 aos contratantes, conduz à superação do entendimento da obrigação contratual

objeto para que se instituíram”. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 751. 4 FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 28. 5 Consoante observação de Gustavo Tepedino, do efeito obrigacional interno advindo da função social dos contratos decorre “o dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos”. TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Código Civil: Estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. XXXII. 6 É de se observar que o efeito em comento (externo) tem como principal objetivo possibilitar que os resultados esperados pelas partes contratantes sejam alcançados. Afinal, consoante advertência de Jacques Ghestin e Christophe Jamin, se os terceiros estivessem autorizados a desconhecer a contratação, esta dificilmente atenderia a eficácia esperada pelas partes, razão pela qual os juristas franceses concluem ser possível afirmar que a oponibilidade é um instrumento complementar da força obrigatória dos contratos. GHESTIN, Jacques et JAMIN, Christophe. Le juste et l’utile dan les effets du contrat. In: MONTEIRO, Antônio Pinto (coord.). Contratos: Actualidade e Evolução. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1997. p. 156-157. 7 Os deveres colaterais, também chamados de instrumentais, são aqueles implícitos em toda contratação, e cuja observância é indispensável para que os objetivos do programa contratual sejam atingidos. Trata-se de deveres como o dever de informação na fase pré-contratual, o dever de cooperação na execução da contratação, o dever

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como instituto estático, conferindo-lhe caráter dinâmico. A obrigação deixa de possuir aquela

estrutura clássica (consubstanciada na existência de um vínculo jurídico em que uma pessoa

fica adstrita a realizar uma prestação em favor de outra) para ser concebida como um conjunto

de atos correlacionados, os quais se desenvolvem para que seja alcançado o adimplemento, de

maneira a conceber-se a obrigação como um verdadeiro processo.8

A família, por sua vez, tem sua estrutura padrão flexibilizada diante das seqüelas

decorrentes da Revolução Industrial, dentre as quais se destaca a condução da mulher para o

mercado de trabalho, o que ocasionou, por sua vez, seu sentimento de independência e a

redução do espaço de coabitação familiar.9

Em consonância com esses e outros eventos socioeconômicos, o Direito brasileiro

admitiu o divórcio, a Constituição Federal de 1988 declarou a igualdade entre o homem e a

mulher, e a doutrina e a jurisprudência passaram a sugerir o reconhecimento de modelos

pluralistas de família, admitindo-se, inclusive, a existência de instituição familiar nas uniões

entre pessoas do mesmo sexo.

No campo do Direito Empresarial a instituição paradigma deixa de ser o

comércio, vindo a empresa ocupar seu lugar. Sendo a empresa compreendida como a

atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços,

constata-se a indissociável influência que as novas concepções de propriedade e contrato

exercem sobre a atividade desenvolvida pelo empresário. Afinal, a empresa é explorada

mediante a realização de contratos e por intermédio do exercício da propriedade sobre os bens

de produção.

Não se pode cometer o equívoco, porém, de afirmar a subordinação pura e

simples da empresa, e do próprio Direito Empresarial, às regras e fundamentos das

de auxílio da fase pós-contratual, cujo adimplemento possibilita o equilíbrio da relação contratual. Sobre o princípio da boa-fé objetiva, seus fundamentos e suas funções, conferir: CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes de. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984; MARTINS COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica Filosófica e Direito – O exemplo privilegiado da boa fé objetiva no Direito Contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 8 Esta concepção encontrou em Clóvis do Couto e Silva um de seus maiores incentivadores. Consoante o autor, “com a expressão “obrigação como processo” tenciona-se sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência. (...) Os atos praticados pelo devedor, bem assim os realizados pelo credor, repercutem no mundo jurídico, nele ingressam e são dispostos e classificados segundo uma ordem, atendendo-se aos conceitos elaborados pela teoria do direito. Esses atos, evidentemente, tendem a um fim. E é precisamente a finalidade que determina a concepção da obrigação como processo”. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushantsty Editor, 1976. p. 10. 9 FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 29.

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instituições que, uma vez conjugadas (contrato e propriedade), possibilitam a exploração da

atividade econômica.

A rigor, como adverte Jean-Jacques Daigre, a atividade econômica não pode ser

considerada como uma simples adição de atos isolados;10 ela constitui uma série de atos

coordenados entre si em relação à atividade comum, tendo como princípios orientadores a

efetividade – caracterizadora do fato de que a atividade só pode ser considerada existente se

exercida realmente –, e o resultado (ou finalidade) – a atividade deve sempre tender para um

resultado.11

Estas constatações conduziram a doutrina a considerar que a atividade pode ser

lícita ou ilícita, regular ou irregular; mas não nula, de maneira a demonstrar sua autonomia em

relação aos atos que a compõem. Dessa autonomia decorre a afirmação de que as normas

sobre a invalidade dos atos não podem ser aplicadas à atividade econômica.12

Deveras, a atividade constitui uma verdadeira rede de relações jurídicas (ou “rede

contratual”, como preferem os estudiosos da análise econômica do Direito)13, tendo como

característica a concatenação dos atos desenvolvidos. E nesta ordem de idéias sobressai a co-

dependência dos atos que compõem a atividade,14 o que tem como conseqüência o fato de que

a invalidação de um ato poderá contaminar outros, de modo a demonstrar a existência de um

efeito de contágio. Daí não ser possível avaliar a juridicidade dos atos que compõem a

atividade do mesmo modo como se examina a legalidade de atos isoladamente considerados.15

Esta ordem de idéias evidencia a exigência de revisão das categorias jurídicas

tradicionais para adaptá-las à atividade empresarial. E como ainda não foi elaborado um

modelo que satisfaça as mudanças sucintamente noticiadas, e às necessidades da

especialidade da atividade empresarial, a fase de superação e rompimento mostra-se ainda

10 Consoante observação do professor da Université Panthéon-Sorbonne: “Les échanges commerciaux ne sont pas une simple addition d’actes isolés, mais une chaîne, qui repose sur la confiance nécessaire des uns dans les autres”. Daigre, Jean-Jacques. De l’existence et de l’avenir du droit commercial. In: Mélanges en l´honneur de Jean Paillusseau – Aspects organisationneles du droit des affaires. Paris: Dalloz, 2003. p. 267. 11 BULGARELLI, Waldírio. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 184-185. 12 ASCARELLI, Tullio. Iniciación al estudio del derecho mercantil. Trad. Evelio Verdera y Tuells. Barcelona: Bosch, 1964. p. 142. 13 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Atlas, 2004. 14 Essa co-dependência dos atos que compõem a atividade implica sua unidade, a qual decorre “de serem eles [os atos] funcionalmente necessários para atingir o fim visado”. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Atlas, 2004. p. 99. 15 Nesse sentido, Tullio Ascarelli esclarece que a atividade deve ser valorada autonomamente, isto é, independentemente da valoração dos atos individuais, singularmente considerados. Em suma, a valoração da atividade se apóia em sua finalidade, a qual se reflete na coordenação dos diversos atos no exercício da atividade, mas que permanece alheia à causa dos atos isolados. In: Iniciación al estudio del derecho mercantil (...), ob. cit., p. 142.

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inacabada, sendo certo que este “estado de coisas” atingiu, também, a sistematização do

Direito.

(ii) Crise da sistematização

A concepção do Direito como um conjunto de normas jurídicas, pronto e acabado,

capaz de ordenar de maneira exaustiva as relações sociais corresponde à visão do Direito

como um sistema, o qual caracteriza, por sua vez, o positivismo jurídico.

Como já observara Norberto Bobbio, o que caracteriza o ordenamento jurídico,

isto é, o Direito Positivo, é a sua unidade, coerência, e completitude.16 Esta ordem de idéias

encontrou nas grandes codificações o instrumento ideal para fazer difundir o positivismo

jurídico.

A influência que a doutrina positivista exerceu sobre o Direito brasileiro é

inquestionável. Afinal, seguindo os passos da codificação bipartida do Direito Privado

francês, o legislador pátrio também adotou dois códigos de Direito Privado: o Código

Comercial (1850) e o Código Civil (1916).

Ocorre que o dinamismo do Direito Comercial contribuiu, desde logo, para o

início de um processo de verdadeira “descodificação”,17 destacando-se o Decreto republicano

nº 917, de 24 de outubro de 1890 (que disciplinou a falência), a Lei nº 2.024, de 17 de

dezembro de 1908 (que aperfeiçoou e consolidou o sistema falimentar então vigente18), o

Decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908 (que disciplinou as letras de câmbio e notas

promissórias), o Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919 (que regulou a constituição de

sociedades por quotas de responsabilidade limitada), o Decreto-lei nº 2.627, de 26 de

setembro de 1940 (que estabeleceu novel regramento para as sociedades por ações), e o

Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (o qual disciplinou as falências e as concordatas

até 2005).

Estes diplomas legais foram seguidos de outros, que ab-rogando ou derrogando-os

(como é o caso da legislação cambiária) disciplinaram, de maneira exaustiva, alguns sub-

ramos do Direito Comercial, constituindo verdadeiros “microssistemas”, os quais foram se

16 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 198. 17 A “descodificação” deve ser compreendida, como anota César Fiuza, como o “processo de abertura e quebra do monopólio dos códigos”. No âmbito do Direito Civil o jurista mineiro noticia que a harmonia interna do Código Civil foi logo quebrada, isto é, “mal o sistema civilístico se codificou, teve início o processo de sua descodificação”. FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 30. 18 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1948. p. 17.

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15

expandindo para outras áreas do Direito e ganhando contornos de interdisciplinariedade, a

exemplo do que ocorre com o microssistema consumerista.

Note-se, contudo, que a expansão desses microssistemas não teve o condão de

retirar a posição central das codificações, de modo que o Código Civil continuou a ocupar o

centro do sistema civilístico,19 enquanto que esta tarefa, no sistema comercialista, manteve-se

(apesar de sua menor intensidade) afeta ao Código Comercial.

Todavia, na última década do século XX, o Direito brasileiro passou a sofrer

significativa influência do “novo constitucionalismo”, que propôs o abandono da

compreensão da Constituição como o “estatuto” do Estado, para enxergá-la, também, como a

fonte de direitos (os chamados fundamentais), cuja concretização e implementação competem

ao Direito infraconstitucional. Daí afirmar-se que no centro do sistema jurídico encontra-se a

Constituição. Deveras, este conjunto de idéias confere ao Direito Privado uma nova direção,

haja vista a inserção de um novo fundamento de validade de suas normas.

Outrossim, juntamente com a noticiada difusão dos microssistemas e da tendência

constitucionalizante do Direito Privado, o legislador pátrio passou a utilizar com maior

freqüência a técnica das cláusulas gerais, com o nítido objetivo de conferir maior

flexibilidade ao ordenamento jurídico, possibilitando, via de conseqüência, maior adequação

dos textos normativos a uma sociedade pluralista como aquela que se desenvolveu no Brasil

na época citada.

Com efeito, estas transformações colocaram em xeque a idealização do Direito

como um sistema rígido e fechado, o que não significa a impossibilidade de se compreender o

ordenamento jurídico como um sistema, devendo-se, contudo, admitir a sua abertura. Uma

vez admitida a abertura do sistema jurídico, conclusão lógica é a admissão de seu estado

constante de construção (ou reconstrução, como preferem alguns). Esta empreitada, por sua

vez, só se viabiliza quando se alteram, mediante um processo de superação, os métodos de

interpretação do Direito.

(iii) Crise da interpretação

Como observa César Fiuza, a idéia do Direito como um sistema rígido e fechado

serviu de base para o desenvolvimento dos métodos de interpretação da Escola da Exegese, da

Escola Histórica, e do Positivismo Jurídico.20

19 FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 30-31. 20 FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 35.

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A Escola da Exegese surgiu com o advento do Código Civil francês (1804),

caracterizando-se pela concepção rigidamente estatal do Direito (jurídicas são apenas as

normas postas pelo Estado), sugerindo que a interpretação da lei fosse fundada na intenção do

legislador, o que demonstra o culto ao texto da lei e o respeito ao princípio da autoridade.21

Em síntese, o postulado fundamental desta linha doutrinária é que o Direito se revela nos

textos das leis escritas, emanadas pelo Estado, “gerando direitos e obrigações, podendo tudo

prever e tudo prover, não apresentando, senão, lacunas aparentes”.22

Foi também no início do século XIX que teve origem a Escola Histórica, fundada

por Savigny. Segundo essa corrente de pensamento, a experiência histórica de um povo

deveria ser a verdadeira fonte de inspiração para sua prática jurídica,23 de maneira que

competiria ao intérprete “pesquisar a vontade histórica do legislador, para, adequando-a ao

momento presente, solucionar a controvérsia que lhe é apresentada”.24

Com efeito, o historicismo é considerado por alguns autores25 como o movimento

que preparou o contexto de surgimento do Positivismo Jurídico, haja vista a sua crítica radical

empreendida contra as premissas do Direito Natural.

A primeira característica da doutrina juspositivista diz respeito ao modo de

encarar o Direito, considerando-o como um fato e não como um valor, de maneira que seu

conteúdo é desconsiderado, havendo enfoque tão-somente na validade do Direito, a qual se

funda, por sua vez, em critérios de estrutura formal. Como sintetizou Hans Kelsen, uma

norma é considerada válida em razão da validade de outra, de nível superior, até se chegar à

“norma fundamental”, a qual é uma norma pressuposta, que confere validade a todo o

ordenamento jurídico.26

O reconhecimento da norma jurídica, posta pelo Estado, como o único tipo de

comando genericamente obrigatório, e a concepção do Direito como um conjunto (completo e

coerente) de normas jurídicas vigentes em uma determinada sociedade também consistem em

apanágios do Positivismo Jurídico.

21 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico (...), ob. cit., p. 83-89. 22 PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 22. 23 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 198-199. 24 FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil (...), ob. cit., p. 38. 25 Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico (...), ob. cit., p. 45-47. 26 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito – versão condensada pelo próprio autor. Tradução: J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 95-112.

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Já a interpretação jurídica sustentada por esta vertente teórica é aquela

mecanicista, segundo a qual “na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo

sobre o produtivo ou criativo do direito”.27

Apesar de o juspositivismo ter-se firmado nos países de origem romano-

germânica, várias outras vertentes teóricas surgiram ao longo do século XX, a maioria delas

enquadrando-se no que se convencionou de Pós-Positivismo, movimento que critica as

insuficiências do paradigma positivista e sugere um método de interpretação do Direito que

tenha como ponto de partida não mais a norma abstratamente considerada, mas o problema,28

isto é, o caso concreto, que deverá ser resolvido mediante a argumentação das partes

envolvidas no conflito regulado pelo Direito.29

Note-se que as propostas do Pós-Positivismo não remontam à época de admissão

de elementos metafísicos para sustentar pretensões jurídicas.30 É necessário que no

desenvolvimento da argumentação jurídica as partes envolvidas façam uso de normas

jurídicas, as quais passam a ser compreendidas como gênero, do qual são espécies as regras e

os princípios.31

Juntamente com as propostas do Pós-Positivismo, insta registrar o

desenvolvimento de uma vertente teórica que tem despertado grande interesse no meio

jurídico brasileiro. Trata-se da chamada análise econômica do direito ou law&economics.

27 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico (...), ob. cit., p. 133. 28 O método interpretativo que tem o problema como ponto de partida é a Tópica, a qual encontra em Theodor Viehweg um de seus grandes expoentes. Em linhas gerais, o que esta vertente teórica sugere é que, de fato, todo pensamento surge a partir de problemas e dá lugar a algum tipo de sistema, mas a ênfase pode recair em um ou em outro elemento. Mas “se a ênfase é posta no sistema, então este realiza a seleção dos problemas e, assim, os que não recaem sob ele são afastados e ficam simplesmente sem ser resolvidos. Se, pelo contrário, a ênfase é posta no problema, então se trata de buscar um sistema que ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de sistemas e em geral a uma pluralidade de sistemas; aqui se trataria, portanto, de algo assim como um sistema aberto no qual o ponto de vista não é adotado de antemão”. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2006. p. 50. 29 Consoante observação de Luis Roberto Barroso, “o problema concreto a ser resolvido passou a disputar com o sistema normativo a primazia na formulação da solução adequada, solução que deve fundar-se em uma linha de argumentação apta a conquistar racionalmente os interlocutores, sendo certo que o processo interpretativo não tem como personagens apenas os juristas, mas a comunidade como um todo”. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 332. 30 Luis Roberto Barroso esclarece que “o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade”. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação (…), ob. cit., p. 326. 31 A natureza deôntica dos princípios jurídicos encontrou em Ronald Dworkin seu grande incentivador, o qual fez consignar lição que tem sido acolhida de maneira predominante no Direito contemporâneo: “We might treat legal principles the way we treat legal rules and say that some principles are binding as law and must be taken into account by judges and lawyers who make decisions of legal obligation. If we took this tack, we should say that in the United States, at least, the ‘law’ includes principles as well as rules”. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. p. 95.

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Com efeito, a economia forneceu uma teoria científica para prever os efeitos das

sanções jurídicas no comportamento dos membros de uma comunidade. Para os economistas,

sanções jurídicas são como preços, e presumivelmente, as pessoas respondem a essas sanções

de modo bastante parecido como elas reagem aos preços. Assim, as pessoas respondem a

preços altos consumindo menos as mercadorias mais caras, de maneira que presumivelmente

reagirão a sanções jurídicas mais pesadas respeitando as condutas sancionáveis. Em suma, a

economia fornece uma teoria comportamental para prever como as pessoas reagem às

mudanças jurídicas.32

Juntamente à teoria comportamental, a economia oferece um padrão normativo

útil para avaliar o Direito. As leis, como observam Cooter e Ulen, são instrumentos para a

realização de objetivos sociais importantes. Deste modo, para descobrir os efeitos das leis

nesses objetivos, juízes e legisladores devem ter um método de avaliação dos efeitos legais

exercidos sobre valores sociais importantes. Ademais, a economia prevê os efeitos das

diretrizes normativas com base na eficiência,33 a qual se mostra relevante na criação de

diretrizes normativas porque é sempre melhor atingi-las a custos mais reduzidos.34

A rigor, a análise econômica do direito enxerga a norma jurídica como

instrumento de incentivo de comportamentos e propõe que a eficiência seja o critério para a

criação e aplicação das normas jurídicas, a fim de que se atinja a maximização de riquezas.

Como bem sintetiza Vicenzo Florenzano, a premissa básica do método de

interpretação e aplicação do Direito sob análise é “empreender uma análise das conseqüências

do ordenamento jurídico vigente num dado momento histórico, incluindo normas

constitucionais, infraconstitucionais e decisões judiciais (jurisprudência) sobre a economia,

notadamente em relação à alocação de recursos escassos, para, então, proceder à adequação

32 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. New York: Addison Wesley, Longman, 2005. p. 3-4. 33 Apesar de existirem várias sugestões para conceituar a eficiência, uma das mais citadas pelos estudiosos da análise econômica do direito é a chamada eficiência de Pareto. Uma situação é dita “Pareto eficiente” se for impossível alterá-la para colocar uma pessoa em situação mais benéfica sem colocar uma outra pessoa em situação pior. Este critério de eficiência é criticado por ter pouca aplicabilidade no mundo real, haja vista que a maioria das transações gera efeitos em relação a terceiros, ainda que para alterar os preços de outros bens (POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. New York: Aspen Publishers, 2003. p. 13). O critério “Kaldor-Hicks” tem sido considerado como a melhor sugestão sobre o tema sob exame. Partindo de modelos utilitaristas este critério de eficiência sugere que as normas devem ser instituídas e aplicadas de maneira a gerarem o máximo bem-estar para o maior número de pessoas (SZTAJN, Rachel. Law&Economics. In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. Direito & Economia – análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 76). 34 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics (…), ob. cit., p. 3-4.

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dos institutos jurídicos aos critérios da racionalidade econômica, sobretudo no que se refere á

eficiência e à maximização da riqueza”.35

Com efeito, apesar da inegável interpenetração do Direito e da Economia, e das

interessantes contribuições trazidas pela doutrina alienígena e pátria, a proposta de natureza

eminentemente utilitarista advinda da law&economics não parece se coadunar com a ordem

constitucional brasileira, a qual coloca os direitos fundamentais como fins em si mesmos e

como fundamentos da República Federativa brasileira.36

A rigor, como observa Daniel Sarmento, nem sempre a proteção e promoção dos

direitos fundamentais leva à maximização dos interesses da maioria (como pretendem os

utilitaristas). Na verdade,

[...] muitas vezes os direitos fundamentais representam obstáculos impostos contra as preferências manifestadas pela maior parte dos integrantes de uma sociedade política. E este é, aliás, um dos papéis mais importantes dos direitos fundamentais, que acaba sendo esvaziado pela teoria utilitarista37.

De fato, a partir do momento em que se admite, ainda nesta fase de transição e

superação, que o papel do Direito infraconstitucional é concretizar e conciliar direitos

fundamentais, compete aos criadores e aplicadores das normas jurídicas perseguir a realização

desses direitos constitucionalmente garantidos.38

Em assim sendo, deve-se concluir pela instrumentalidade do Direito Empresarial,

no sentido de que ele (juntamente com os demais ramos do Direito Privado) consiste em meio

de realização e concretização dos direitos fundamentais.

35 FLORENZANO, Vicenzo D. Teoria Pura do Direito versus Análise Econômica do Direito: Uma breve análise das supostas incompatibilidades. Revista da Faculdade Mineira de Direito. V. 1, n. 1 (jan.-jun. 1998). Belo Horizonte: PUC Minas, 2005. p. 258. 36 Acrescente-se, ainda, que, consoante a observação de Roy Goode, “economic theories result from the construction of sophisticated models designed to predict outcomes of legislative or judicial lawmaking. But it is necessary remember that these are only models and that they rest on certain hypotheses which do not necessarily correspond with external facts (…) Moreover, the law cannot be concerned solely with economic efficiency as the yardstick by which to measure the success of social goals. There are other factors at work – moral, political and psychological – which have to be considered”. GOODE, Roy. Commercial law in the next millenium. London: Sweet&Maxwell, 1998. p. 28-29. 37 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos versus Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.63. 38 De fato, esta concepção implica a “constitucionalização” do sistema jurídico como um todo, compreendendo-se por “constitucionalização” o “phénomène affectant le droit objectif, par lequel se manifeste l’influence de la Constitution ou du Conseil constitutionnel sur une ou plusieurs branches du droit. C’est dire par là que le contrôle de constitutionnalité de la loi à la Constitution oriente le droit positif et conduit à faire du respect des droits constitutionnels le fondements des diverses règles de droit”. MOLFESSIS, Nicolas. La dimension constitutionnelle des libertés et droits fondamentaux. In: CABRILLAC, Rémy et al (direction). Libertés et droits fondamentaux. Paris: Dalloz, 2005. p. 77.

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2 Delimitação do tema

Desde a última década do século passado a doutrina civilista pátria39 vem

promovendo leituras constitucionalizadas dos diversos sub-ramos do Direito Civil, com o

objetivo de contribuir para a produção e aplicação de um Direito legítimo, que encontre

amparo no sistema constitucional vigente.

No âmbito do Direito Empresarial, “fundamentalização” (fondamentalisation) tem

sido a expressão utilizada pela doutrina francesa40 para se referir à leitura constitucional do

Direito Empresarial, análise esta que tem sido realizada levando-se em consideração as

particularidades da vida empresarial.41

Esta linha doutrinária enxerga nos direitos fundamentais dos agentes econômicos

e daqueles que com eles se relacionam verdadeiros direitos subjetivos,42 de maneira que a

fundamentalização do Direito Empresarial poderia assumir basicamente duas dimensões: (i) o

preenchimento de lacunas legislativas que inviabilizam a realização de direitos fundamentais;

(ii) a correção e/ou reformulação de interpretação das regras do Direito Empresarial que

atentem contra os direitos fundamentais.43

No Brasil, todavia, a doutrina se mostra tímida quanto ao desenvolvimento de

trabalhos que investiguem as conseqüências de uma leitura constitucionalizada dos institutos

do Direito Empresarial,44 o que talvez se justifique pelo pragmatismo dos empresarialistas de

uma maneira geral.

Mas em que pese o pragmatismo da doutrina empresarialista contribuir para

soluções jurídicas das necessidades econômicas daqueles que exploram a empresa, a verdade

39 Cf. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 118-121; MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional, Revista Direito, Estado e Sociedade, Rio Janeiro, PUC-Rio, nº 1, p. 59-73, jul-dez. 1991; NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 40 DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires. Paris: L’Harmattan, 2008. 41 Como registra Romain Dumas, “on conçoit assez aisément que l’introduction des droits fondamentaux en droit des affaires ne pourra s’effectuer au détriment des particularismes de la matière, de ses sujets, ainsi que des principes directeurs qui la structurent déjá”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (...), ob. cit., p. 34. 42 DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (...), ob. cit., p. 265. 43 DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (...), ob. cit., p. 94. 44 Importa registrar a obra de Ana Frazão de Azevedo Lopes (Empresa e propriedade – função social e abuso de poder econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006) que, apesar de não se referir diretamente à leitura constitucionalizada do Direito Empresarial, promove a análise de legitimidade do exercício da empresa no Estado Democrático de Direito.

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é que, amiúde, o déficit de legitimidade das soluções propostas é patente, colocando em xeque

a própria ordem constitucional.

Tome-se como exemplo a intenção publicamente manifestada pela Comissão de

Valores Mobiliários (CVM) no final de 2008.45 Pretende o órgão regulador do mercado de

capitais tornar regra a divulgação individual da remuneração dos diretores e membros do

conselho de administração das companhias cujos títulos sejam negociados no mercado aberto.

Mas será legítimo perseguir a transparência do mercado mediante a violação direta e

desproporcional do direito fundamental à privacidade dos administradores das companhias

abertas?

Questões como esta encontram na exegese constitucional do Direito Empresarial

resposta adequada e legítima, o que demonstra a importância e a necessidade de se imprimir

um estudo que examine a repercussão da leitura constitucional do referido ramo do Direito.

Neste contexto, o objetivo deste trabalho é servir de ponto de partida para o

desenvolvimento de leituras constitucionalizadas dos diversos ramos e instituições do Direito

Empresarial, tendo sido escolhida a sociedade anônima como objeto de investigação, o que se

justifica por serem as companhias os modelos jurídicos mais complexos de exploração da

atividade empresarial. Enfim, o que se propõe é demonstrar a necessidade e as repercussões

de uma análise constitucionalizada do Direito das sociedades anônimas, o que é viabilizado

por meio da aplicação da teoria dos direitos fundamentais.

Ressalte-se, ademais, que referida proposta objetiva conferir subsídios para a

legitimidade do Direito das sociedades anônimas, de modo que a tese desenvolvida é a de que

a legitimidade deste ramo do Direito (e de todos os demais) tem como pressuposto uma

leitura constitucional, alicerçada na teoria dos direitos fundamentais, restando demonstrado,

outrossim, que a adesão a estas premissas tem o condão de conferir uma nova direção para a

produção, aplicação e interpretação do Direito Empresarial , mais especificamente do Direito

das companhias.

Para que sejam alcançados os objetivos propostos, insta pesquisar e compreender

a evolução do papel dos direitos fundamentais, bem como investigar as contribuições

doutrinárias em torno de sua aplicação. Neste ponto, é preciso esclarecer que as “teorias dos

direitos fundamentais” consistem no marco teórico deste trabalho. Deveras, parece adequado

extrair de cada uma das contribuições doutrinárias aquilo que elas têm de melhor, sem

preconceitos quanto a supostas incompatibilidades de pontos de vista defendidos por alguns

45 Informação publicada pela mídia impressa, e obtida diretamente do site www.debenture.com.br. Acesso em 29 de dezembro de 2008.

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autores. Como adverte Julien Raynaud, se se pretende contribuir para a evolução do Direito,

deve-se evitar radicalismos, e perseguir a complementaridade e/ou conciliação das variadas

contribuições,46 o que deve ser realizado com responsabilidade.

Observada esta ordem de idéias, as teorizações acerca dos direitos fundamentais

serão abordadas no Capítulo 1, esclarecendo-se, no entanto, que as contribuições de Konrad

Hesse47 e Claus-Wilhelm Canaris48 consistem, em grande medida, mas com algumas

ressalvas, no alicerce sobre o qual serão desenvolvidas as principais conclusões desta tese.

Num segundo momento, será necessário demonstrar o status constitucional da

atividade empresarial, bem como averiguar que em torno da empresa gravitam direitos

fundamentais cuja realização está subordinada àquele que coordena a atividade empresarial, a

qual, por sua vez, encontra também no sistema constitucional delineamentos para a sua

legítima exploração.

Também no Capítulo 2 será promovida uma análise estrutural e funcional das

sociedades anônimas, de modo a demonstrar sua complexidade e a necessidade de se alterar o

enfoque quanto ao papel atribuído à estrutura das companhias.

O fenômeno do poder nas sociedades anônimas será objeto de investigação no

Capítulo 3. Após a abordagem dogmática deste fenômeno, serão elaboradas algumas

propostas advindas de uma leitura constitucionalizada do controle.

Por fim, no Capítulo 4 serão demonstradas as conseqüências de uma análise

constitucionalizada de temas pontuais das sociedades anônimas, a saber: (i) o recesso; (ii) a

expulsão; (iii) o interesse social; (iv) a liberdade estatutária; e (v) a dissolução.

46 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamentaux dans les actes juridiques privés. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003. p. 161. 47 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991; HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995. 48 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003.

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1 TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 Notas introdutórias

Qual é o papel desempenhado pelos direitos fundamentais na atualidade? Eles

prescrevem condutas aos particulares? Qual é a sua origem e qual sua relação com os demais

direitos instituídos pelo processo de legiferação?

A rigor, as construções teóricas acerca dos direitos fundamentais demonstram que

respostas a questionamentos desta ordem ainda não atingiram um nível de concordância

desejável junto aos estudiosos e aplicadores do Direito.

No entanto, a discordância sobre questões pontuais envolvendo as teorias

referentes aos direitos fundamentais não impede o esforço de transposição dessas construções

teóricas para os mais diversos ramos do Direito, porquanto o que se procura por meio da

importação das teorias dos direitos fundamentais é contribuir para o processo de reconstrução

e de releitura de um Direito Privado legítimo. Afinal, como adverte Jürgen Habermas, um

sistema de Direito que pretenda regular a convivência de cidadãos por meios legítimos deve

contemplar os direitos fundamentais.1

Mas o que se deve entender por direitos fundamentais? Direitos fundamentais e

direitos humanos são expressões equivalentes?

A doutrina noticia que, apesar de não haver consenso quanto à utilização das

referidas expressões, a compreensão que prevalece (e que se mostra a mais adequada) é a de

que o termo direitos fundamentais se aplica aos direitos do ser humano reconhecidos e

positivados na esfera do Direito Constitucional positivo de determinado Estado, enquanto que

a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de Direito Internacional,

haja vista referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal,

independentemente de sua vinculação a uma ordem constitucional determinada.2

1 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 154. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 35-36.

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Deste modo, considerando que o presente trabalho tem por objetivo analisar a

ordem jurídica brasileira, deve-se compreender por direitos fundamentais aqueles direitos que

foram assegurados e reconhecidos, democraticamente, na ordem constitucional.3

Neste contexto, e feitas estas breves considerações, a seguir serão abordadas as

principais construções teóricas envolvendo os direitos fundamentais para que sejam reunidos

os elementos necessários à leitura constitucional do Direito das sociedades anônimas.

1.2 A relação entre Constituição, Direito Privado e direitos fundamentais

A concepção moderna da Constituição e seu papel no ordenamento jurídico

conferem uma nova direção para todo o Direito. Inicialmente concebida como “Estatuto do

Estado”, servindo como instrumento de organização dos poderes públicos e de garantia dos

cidadãos contra o arbítrio e intervenção do Poder político, a Constituição assume, na

atualidade, atribuições as mais diferenciadas,4 dentre elas destacando-se com mais intensidade

aquela relacionada ao seu caráter normativo e centralizador.

Com efeito, a força normativa das normas constitucionais encontra em Konrad

Hesse seu grande incentivador, o qual reconhece que a interação entre o sistema social e o

sistema normativo pressupõem a “vontade de Constituição”. Segundo o catedrático emérito da

Universidade de Friburgo:

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os

3 Consoante o esclarecimento de Daniel Sarmento, direitos fundamentais são “interesses especialmente relevantes, relacionados à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, que, pela sua elevada significação, foram postos pela Constituição acima do poder das instâncias ordinárias”. SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.110. 4 Como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as Constituições podem assumir, pelo menos, dez funções diferentes, a saber: função de garantia; função organizativa ou estruturante; função limitativa; função procedimental; função instrumental; função conformadora da ordem sociopolítica; função legitimadora; função legalizadora; função simbólica; e função prospectiva. In: Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 63-75.

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questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.5

De fato, o reconhecimento da força normativa da Constituição é premissa

elementar para se materializar uma ordem jurídica legítima, que é, por sua vez, pressuposto

básico para se alcançar uma ordem socioeconômica. Por isso, impõe-se aos aplicadores e

estudiosos do Direito incentivar a concretização da ordem constitucional.

Relativamente à natureza centralizadora do texto constitucional Pietro Perlingeri

assevera que o papel outrora desempenhado pelo Código Civil junto ao Direito Privado é

contemporaneamente levado a efeito pela Constituição, o que revela sua função unificadora

do sistema.6

Deveras, o reconhecimento de que no centro do sistema jurídico se encontra a

Constituição, e que a esse centro normativo devem se subordinar não só os Poderes Públicos,

mas também os particulares torna imperativa uma releitura do Direito Privado, o qual era

considerado, no tempo das grandes codificações, como “auto-suficiente”,7 haja vista a

compreensão, à época, de que suas fontes normativas se encontravam, única e diretamente,

nas “constituições do Direito Privado” (os códigos privados).8

É de se notar que é com amparo no reconhecimento da força normativa e

centralizadora do texto constitucional que se desenvolveram linhas teóricas que têm por

objeto o exame da chamada “constitucionalização do Direito Privado”. Essas teorias têm

adotado basicamente dois diferentes enfoques:9 no primeiro, descreve-se o fenômeno de

transposição de institutos cuja regulamentação era realizada unicamente pelos códigos

privados (propriedade, família, contrato etc.) para as constituições contemporâneas. Na

segunda vertente, por sua vez, o que se propõem a fazer os teóricos da constitucionalização do

Direito Privado é demonstrar a repercussão da incidência imediata dos direitos fundamentais 5 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 19. 6 Segundo as próprias palavras do jurista italiano, “o Código Civil perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional”. In: Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 6. 7 Como noticia Konrad Hesse, o Direito Privado regulava a as relações dos particulares desde o ponto de vista da liberdade individual até as relações políticas e constitucionais, razão pela qual este Direito chegou a ser considerado como o direito constitutivo da sociedade burguesa, junto à qual o Direito Constitucional assumia uma importância secundária, haja vista a primazia do Direito Privado. In: Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995. p. 38. 8 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 35-37. 9 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas (...), ob. cit., p. 37.

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nas relações entre particulares e proceder a uma interpretação das normas infraconstitucionais

em conformidade com a Constituição.

De fato, enquanto alguns autores, como César Fiuza, adotam a linha de que o

Direito Privado deve ser lido/interpretado à luz das normas constitucionais,10 outros vão um

pouco além, para considerar que os princípios e regras constitucionais devem ser

compreendidos como verdadeiras normas de comportamento, idôneas, a incidirem sobre o

conteúdo das relações jurídico-particulares.11

Parece que a perspectiva mais adequada acerca da leitura constitucional do Direito

Privado baseia-se nas seguintes premissas, que serão explicitadas de maneira mais

pormenorizada no curso do presente Capítulo: (i) o centro dogmático do Direito Privado situa-

se no âmbito de interpretação da legislação infraconstitucional e dos institutos por ela

regulados. É na legislação infraconstitucional, portanto, onde devem ser buscadas, de início,

respostas para eventais conflitos entre os particulares. E uma vez encontrada na legislação

infraconstitucional uma resposta regulatória que se mostre adequada ao caso concreto, a sua

leitura em conformidade com a Constituição é medida cogente para que se promova uma

exegese legítima.

Todavia, (ii) se a regulamentação infraconstitucional mostrar-se omissa,

insuficiente ou inadequada para a conciliação e tutela dos direitos fundamentais envolvidos, a

invocação direta das normas constitucionais que abarcam os direitos fundamentais torna-se

necessária para que, pela argumentação jurídica, dê-se uma solução interpretativa ao conflito

dos direitos fundamentais.

Insta advertir, entrementes, que a invocação direta dos direitos fundamentais deve

ser vista como exceção, haja vista a presunção de constitucionalidade da regulamentação

promovida pelo legislador infraconstitucional, competindo a quem alega o ônus

argumentativo de que o afastamento da regra infraconstitiucional consiste em medida

indispensável para a devida tutela e conciliação dos direitos fundamentais envolvidos.12

Deve-se rechaçar, assim, os exageros incentivados por parte da doutrina e em

certa medida acolhidos pelos tribunais, sob pena de se propiciar uma verdadeira “ditadura do

Judiciário”. Não se pode admtir que a dignidade da pessoa humana e outros direitos

fundamentais sejam utilizados como verdadeiros “coringas”, tornando letra morta a

10 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 118. 11 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil (...), ob. cit., p. 12. 12 Os critérios de afastamento da regra infraconstitucional e da conciliação dos direitos fundamentais serão abordados ainda neste Capítulo.

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regulamentação infraconstitucional que não satisfaça aos interesses de quem maliciosamente

os invoca.

Nesta ordem de idéias, é de se insistir que, quando se faz alusão à leitura

constitucional do Direito Privado, com o objetivo de conferir legitimidade à produção e

aplicação do Direito, são os direitos fundamentais positivados no texto constitucional que

desempenham esta tarefa de legitimação13 (observadas as limitações sucintamente expostas

acima). Na atualidade, juntamente com a função de assegurar a liberdade individual, os

direitos fundamentais atuam como “fundamento material de todo o ordenamento jurídico”,14

merecendo registrar, ademais, que “o ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio

majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais”.15

De se observar, outrossim, que a tarefa do Direito Privado, por sua vez, é

possibilitar a conciliação e concretização desses direitos.16 Daí a relação de instrumentalidade

do Direito Privado perante a Constituição. Esta ordem de idéias corrobora a observação de

que a legislação “tem que ser vista como concretização de um sistema de direitos que se

configurou numa constituição”.17

Note-se, no entanto, que o sistema de direitos fundamentais positivado na

Constituição não pode ser compreendido como um sistema rígido e fechado, mas sim como

um sistema aberto e flexível, “receptivo a novos conteúdos e desenvolvimentos, integrado ao

restante da ordem constitucional, além de sujeito aos influxos do mundo circundante”.18 Na

ordem constitucional brasileira, a abertura do sistema dos direitos fundamentais é confirmada

pelas verba legis do §2º, do art. 5º.19

Por outro lado, importa revelar que a natureza aberta do sistema de direitos

fundamentais instituído pela Constituição não extrai a co-dependência entre eles (direitos

fundamentais e Constituição) existente. Afinal, esta relação de co-dependência entre os

13 Como observa Julien Raynaud, falar da constitucionalização de um ramo do Direito é afirmar sua conformação aos direitos fundamentais. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamentaux dans les actes juridiques privés. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003. p. 361. 14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 70. 15 BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 45, t. II. 16 Canotilho esclarece que as normas legais (dentre elas aquelas referentes ao Direito Privado) podem ser restritivas ou conformadoras. As normas legais restritivas são aquelas que limitam ou restringem posições que se incluem no domínio de proteção dos direitos fundamentais, enquanto que as normas legais conformadoras completam, conferem precisão, concretizam ou definem o conteúdo de proteção de um direito fundamental. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina. p. 1.223. 17 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia (...), ob. cit., p. 194. 18 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 83. 19 “§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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direitos fundamentais e a Constituição advém da própria atribuição inicialmente conferida a

esta última, qual seja garantir aqueles direitos por meio do estabelecimento de uma

organização limitativa do poder estatal, assegurando a prevenção de abusos dos governantes.20

Como já estabelecera a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de

agosto de 1789, no art. 16, “toda sociedade na qual a garantia dos direitos [fundamentais] não

é assegurada, nem a separação dos poderes determinadas não possui Constituição”.21

Com efeito, a garantia de liberdade perante o Estado deu início à evolução daquilo

que se convencionou denominar “gerações” ou “dimensões” dos direitos fundamentais.

1.3 Gerações ou dimensões dos direitos fundamentais22

A classificação dos direitos fundamentais em função das gerações ou dimensões

tem mais um sentido histórico do que normativo,23 devendo-se compreender que as gerações

dos direitos fundamentais são cumulativas, de maneira que os direitos de uma nova geração

não excluem ou se alternam àqueles de uma geração anterior, mas a eles se somam, em um

processo de verdadeira complementaridade.

Originariamente os direitos fundamentais se associaram à liberdade dos

indivíduos perante o Estado, consistindo na Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão,24 de 1789, marco histórico do reconhecimento dos direitos à liberdade e à igualdade

perante a lei. Estes direitos, relacionados à autonomia dos indivíduos, inserem-se na categoria

dos direitos de primeira geração, os quais correspondem, como bem sintetiza Paulo

Bonavides,25 a direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

20 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional (...), ob. cit., p. 280. 21 No original, consta do art. 16, da Declaration des Droits de l’homme et du citoyen: “Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée ni la séparation des pouvoirs déterminée n’a pas de constitution”. 22 Estas categorias de classificação (gerações ou dimensões) são equivalentes e objetivam examinar o processo cumulativo de evolução dos direitos fundamentais. Some-se a isto que esta classificação tem como finalidade afirmar a unidade e indivisibilidade dos direitos fundamentais no contexto do Direito Constitucional, como observa Ingo Wolfgang Sarlet. In: A eficácia dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 53. 23 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 291. 24 Insta lembrar que a Declaration des Droits de l’homme et du citoyen é fruto da revolução que ocasionou a queda do antigo regime e a instauração da ordem burguesa na França, colocando fim às distinções sociais decorrentes da nascença ou da filiação a determinadas “ordens”. Cf. DIDIER, Paul; DIDIER, Philippe. Droit Commercial. Paris: Economica, 2005. p. 70-74. 25 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 517.

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A Revolução Industrial e as conseqüências dela decorrentes (massificação das

relações econômicas, abuso do poder econômico, exploração nas relações de emprego, dentre

outras), juntamente com os pós-guerras, fizeram com que o Estado deixasse de ser visto como

um rival dos particulares, para que nele (Estado) estes encontrassem o verdadeiro “provedor”

de seus direitos.

Esta nova compreensão do papel a ser desempenhado pelo Poder Público

reconhece aos indivíduos direitos cuja nota distintiva é a sua dimensão positiva (obrigações de

fazer impostas ao Estado), haja vista que não se cuida mais, conforme observação de Ingo

Wolfgang Sarlet, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do

Estado.26 Tais direitos, classificados como de segunda geração, constituem a base do Welfare

State, e compreendem o direito ao trabalho, a uma habitação digna, à saúde, dentre outros

desta espécie, competindo ao Estado, insista-se, prover e concretizar esses direitos.

Os avanços tecnológicos, o consumismo e a preocupação com o meio ambiente

constituem os alicerces dos direitos de terceira geração. Também denominados de direitos de

fraternidade ou solidariedade, possuem como particularidade a questão referente à sua

titularidade,27 haja vista serem direitos conferidos à proteção de grupos humanos, não

existindo titularidade individual determinada. São direitos de titularidade difusa, tais como o

direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural e o

direito de comunicação.28

Em que pese não haver consenso quanto à existência de outras dimensões de

direitos fundamentais, há quem vislumbre no direito à democracia, no direito à informação e

no direito ao pluralismo uma quarta geração de direitos fundamentais.29

Esse processo de evolução dos direitos fundamentais demonstra que o seu

reconhecimento e a ampliação de sua tutela têm acompanhado a evolução social, suas

necessidades e desafios postos pela vida contemporânea. Mas de nada adianta a ampliação do

rol de direitos fundamentais se não se compreender qual é, na atualidade, a função por eles

desempenhada.

26 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 55. 27 Neste sentido, SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 293-297; LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos (...), ob. cit., p. 154; e SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 56. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional (...), ob. cit., p. 523. 29 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional (...), ob. cit., p. 525.

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1.4 Função dos direitos fundamentais e do Direito infraconstitucional

O papel desempenhado pelos direitos fundamentais evoluiu na mesma proporção

que a complexidade da vida em sociedade.30 Inicialmente concebidos como instrumentos de

proteção contra a intervenção estatal, os direitos fundamentais exercem, na atualidade, a

função de legitimação do próprio Direito,31 integrando, ademais, a “ordem objetiva”.32 Como

preceitua Jürgen Habermas, um Direito Positivo legítimo pressupõe que os cidadãos se

atribuam, mutuamente, direitos fundamentais, os quais seriam, em resumo, “(...) o direito a

iguais liberdades subjetivas de ação, bem como os correlatos dos direitos à associação e das

garantias do caminho do direito (...).”33

Ao mesmo tempo que legitimam o Direito produzido (legislado) e o Direito

aplicado, os direitos fundamentais acabam servindo de pressuposto para o exercício da

autonomia pública e privada,34 balizando, ainda, o exercício de liberdades subjetivas.

Em princípio, o exercício de uma liberdade subjetiva não poderá atentar contra

outros direitos fundamentais. A ressalva se faz presente porque nas relações privadas é

freqüente o conflito de direitos fundamentais quando do exercício de uma liberdade

30 Consoante observação de Juan María Bilbao Ubillos, “pocas categorías se muestran tan permeables a la evolución de los estándares cultulares como la de los derechos fundamentales”. En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 302. 31 Como preleciona Ingo Wolfgang Sarlet, “os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito à participação (com liberdade e igualdade), na conformação da comunidade e do processo político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo exercício de direitos políticos (no sentido de direitos de participação e conformação do status político) podem ser considerados o fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, parâmetro de sua legitimidade”. In: A eficácia dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 70-71. 32 A afirmação de serem os direitos fundamentais elementos integrantes da ordem objetiva confirma o que a doutrina identifica como “caráter duplo dos direitos fundamentais”. Como revela Konrad Hesse acerca dos direitos fundamentais, “por um lado, eles são direitos subjetivos, direitos do particular (...) Por outro, eles são elementos fundamentais integrantes da ordem objetiva da coletividade” HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federativa da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. 228. 33 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia (...), ob. cit., p. 162. 34 Como observa Habermas, “os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política como cidadãos do Estado”. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 301-302. Esclareça-se que a autonomia pública se resume à liberdade de os sujeitos de direito participarem do processo de formação da ordem jurídica.

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subjetiva.35 Daí a necessidade de conciliação dos direitos fundamentais envolvidos nas

relações entre particulares.

Essa conciliação fica a cargo do Direito Privado, cuja tarefa consiste, neste

diapasão, em possibilitar, mediante o reconhecimento de direitos e imposição de deveres,36 a

liberdade do maior número possível de liberdades subjetivas.37 Em suma: a conciliação dos

direitos fundamentais ficará, em princípio, a cargo do legislador, consistindo a realização e

concretização dos direitos fundamentais em verdadeiro fim a ser alcançado quando da

aplicação do direito.

Obviamente, a tarefa do legislador será desempenhada de acordo com os

contornos fixados pela Constituição. Aliás, o próprio texto constitucional estabelece algumas

restrições ou limitações dos direitos fundamentais38 (restrições diretas), bem como autoriza

expressamente o legislador a promover restrições39 (restrições legais),40 sendo certo que em

determinadas situações a intervenção do legislador será necessária para que sejam conciliados

direitos fundamentais em conflito. Nessas situações-limite, a conciliação insatisfatória do

legislador, ou a sua omissão,41 tornarão cogente a invocação direta dos direitos fundamentais

para que, pela argumentação jurídica, seja dada uma solução interpretativa ao conflito dos

direitos fundamentais.42

Neste diapasão, conclui-se que a aplicação do direito infraconstitucional almejará

a realização e a conciliação dos direitos fundamentais, insistindo-se que os direitos

fundamentais não só desempenham papel conformador na exegese, como também conferem

35 Cf. neste sentido, CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003. p. 38. 36 Konrad Hesse já observara que os “direitos fundamentais não podem existir sem deveres”. HESSE, Konrad. A força normativa (...), ob. cit., p. 21. 37 Também para Daniel Sarmento, “o legislador assume o encargo de promover os direitos fundamentais”. In: Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 107. 38 Um exemplo desta modalidade de restrição está contido no art. 5º, inc. XVI, da CF, segundo o qual “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público”. No que interessa ao tema principal do presente estudo, chamam a atenção as restrições diretas ao exercício da livre iniciativa, contidas no art. 170. Tais restrições serão objeto de análise no Capítulo seguinte. 39 O art. 5º, inc. XII, da CF, traz modalidade de restrição a ser implementada pelo legislador. 40 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 723. 41 A rigor a omissão do legislador em concretizar e/ou conciliar a realização de direitos fundamentais evidencia-se verdadeiramente inconstitucional, independentemente de haver prescrição constitucional expressa para que haja atuação do legislador. Como leciona Canotilho, a atualização de direitos econômicos, sociais e culturais é, independentemente de imposições legiferantes expressas, uma imposição permanente, o que, uma vez não observado, poderá importar inconstitucionalidade por omissão (omissão violadora de direitos fundamentais). In: Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 379-380. 42 É esta a observação de Julien Raynaud, para quem a “interpretação-correção” consiste em poderosa técnica para salvaguardar o direito fundamental. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 60.

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aos particulares uma posição jurídica de direito subjetivo,43 de modo que o direito

fundamental poderá ser invocado para sustentar uma pretensão de seu titular. Resta saber

quem pode ser titular de direitos fundamentais, e contra quem a pretensão baseada nesses

direitos poderá ser exercitada: se somente em face do Estado, ou se também diretamente a

particulares.

1.5 Titulares de direitos fundamentais

A Constituição brasileira confere, de maneira expressa, titularidade de direitos

fundamentais tanto aos brasileiros como aos estrangeiros residentes no País. É o que se extrai

do caput do art. 5º. A ausência de disposição expressa não autoriza, contudo, afirmar que os

estrangeiros não residentes no País não poderiam ser titulares de direitos fundamentais.44 Tal

afirmação se justifica porque a norma do art. 4º, inc. II, da CF/88, prevê a prevalência dos

direitos humanos nas relações internacionais que o Brasil tomar parte, premissa esta que

coincide com aquela adotada pelo Supremo Tribunal Federal.45

Impende anotar que determinados direitos, por sua natureza, só poderão ser

usufruídos por pessoas naturais, a exemplo do que ocorre com o direito à vida, o direito de

livre locomoção etc. Outros direitos, no entanto, não excluem, por sua natureza, uma possível

titularidade por pessoas jurídicas. A doutrina oscila quanto ao reconhecimento de direitos

fundamentais às pessoas jurídicas. Enquanto alguns autores entendem que, diante da

formulação da Constituição Federal, as pessoas jurídicas não gozam de proteção

constitucional,46 outros defendem a tese de que, havendo compatibilidade entre a natureza do

43 No âmbito do Direito Empresarial, a doutrina francesa ressalta que “le corpus de règles issues de la fondamentalisation du droit des affaires se déclinera en droit subjectifs, etant précisé qu’être titulaire d’un droit subjectif, pour un sujet de droit des affaires “ne signifie rien d’autre que d’être habilité par l’ordre juridique positif à faire jouer “l’effet juridique” d’une règle de droit”. (DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires. Paris: L’Harmattan, 2008. p. 265-266.) Sobre os direitos fundamentais como verdadeiros direitos subjetivos, ver, também, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 63. 44 Acerca dos argumentos prós e contras a titularidade de direitos fundamentais por estrangeiros não residentes no País, ver DIMOULIS, Dimitri et MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 86-90; e SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia (...), ob. cit., p. 231-233. 45 STF, Processo de Extradição nº 663, j. 28.08.1996, Rel. Ministro Celso de Mello. 46 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral (...), ob. cit., 98-99.

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direito fundamental e os fins perseguidos pela pessoa jurídica, é de se reconhecê-las como

titulares de direitos fundamentais.47

O Supremo Tribunal Federal tem adotado esta última linha teórica, reconhecendo

a titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas. É o que se vê da seguinte ementa:

BENEFÍCIO DA GRATUIDADE – PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO – POSSIBILIDADE – NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS FINANCEIROS – INEXISTÊNCIA, NO CASO, DE DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DO ESTADO DE INCAPACIDADE ECONÔMICA – CONSEQÜENTE INVIABILIDADE DE ACOLHIMENTO DESTE PLEITO – RECURSO IMPROVIDO. O benefício da gratuidade – que se qualifica como prerrogativa destinada a viabilizar, dentre outras finalidades, o acesso à tutela jurisdicional do Estado – constitui direito público subjetivo reconhecido tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica de direito privado, independentemente de esta possuir, ou não, fins lucrativos. Tratando-se de entidade de direito privado – com ou sem fins lucrativos –, impõe-se-lhe, para efeito de acesso ao benefício da gratuidade, o ônus de comprovar a sua alegada incapacidade financeira (RT 787/359 – RT 806/129 – RT 833/264 – RF 343/364), não sendo suficiente, portanto, ao contrário do que sucede com a pessoa física ou natural (RTJ 158/963-964 – RT 828/388 – RT 834/296), a mera afirmação de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários advocatícios. Precedentes.48

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o enunciado sumular de nº 22749

também acena para o reconhecimento das pessoas jurídicas como titulares de direitos

fundamentais.

Diante da inexistência de vedação constitucional expressa, e diante do

reconhecimento das pessoas jurídicas como sujeitos de direitos, não parece haver fundamento

para retirar-lhes a titularidade de direitos fundamentais,50 observada, obviamente, a

compatibilidade da natureza do direito em análise.51-52 Não se deve olvidar, contudo, que a

47 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia (...), ob. cit., p. 237. É de se registrar a observação de Ricardo Luis Lorenzetti, no sentido de que “os instrumentos de tutela civil da personalidade humana podem ser estendidos, dentro dos limites da compatibilidade, à proteção das pessoas jurídicas, mais genericamente, à de todos os entes coletivos. Assim, afirma-se que existe um direito à denominação do ente coletivo, que se reflete na proteção da marca e da razão social. Também uma tutela da intimidade, visto que se proíbe constitucionalmente a violação do domicílio, o que é passível de ser estendido à pessoa jurídica e, ainda, o sigilo da correspondência. Também um direito à integridade de sua personalidade e à ressarcibilidade do dano moral das pessoas jurídicas”. LOREZENTTI, Ricardo Luis. Fundamentos (...), ob. cit., p. 302. 48 STF, RE nº 192.715, j. 21.11.2006, Rel. Ministro Celso de Mello. 49 “227. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. 50 Como noticia Rodrigo Ferraz Pimenta da Cunha, nos EUA as garantias constitucionais foram ampliadas para abranger, além das pessoas físicas, também as companhias. CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nas sociedades anônimas: hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 90. 51 Esta proposição se aproxima bastante daquilo que vem sendo praticado no Canadá, conforme noticiam Maurice Martel e Paul Martel: “La compagnie, nous l’avons vu, est une “personne” à part entière, et bénéficie de prime abord des mêmes droits fondamentaux qu’une personne physique. Toutefois, cette affirmation est sujette à

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atribuição de titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas tem por finalidade

proteger as pessoas naturais que integram o corpo associativo, sendo certo que “em muitos

casos é mediante a tutela da pessoa jurídica que se alcança uma melhor proteção dos

indivíduos”.53

1.6 Construções teóricas acerca da eficácia dos direitos fundamentais

As relações jurídicas entre o Estado e os particulares revestem-se de uma

dimensão vertical, haja vista a patente situação de desigualdade entre as partes. Em

contrapartida, nas relações privadas a dimensão horizontal decorre da situação de igualdade

(formal) reconhecida pelo ordenamento aos membros de uma determinada comunidade

jurídica. Esta última afirmação cede espaço, no entanto, consoante advertência de Luiz

Guilherme Marinoni, toda vez que a situação de desigualdade entre os particulares envolvidos

for manifesta, hipótese em que se considera a relação como de natureza vertical.54

A rigor, estas premissas adquirem grande importância na aplicação dos direitos

fundamentais. Tal constatação se verifica porque, apesar de na atualidade ser inquestionável a

eficácia dos direitos fundamentais em face do Estado (eficácia vertical), o reconhecimento dos

efeitos diretos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares (eficácia horizontal) é,

ainda, objeto de dissidência, tornando necessário o exame das construções teóricas acerca da

eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.

deux exceptions. En premier lieu, le législateur a expressément reservé certaines libertés et garanties aux personnes physiques, en utilisant les mots “êtres humains”, “personne humaine” ou “personne physique”. En second lieu, les tribunaux ont interprété certaines autres libertés et garanties, visant selon le texte “chacun”, “tous”, “nul” ou “toute personne”, comme ne s’appliquant pas aux personnes morales, lorsque de par leur nature de personnes intangibles et fictives, ces personnes morales sont tout simplement incapables d’en bénéficier de façon concrete ou d’en faire un usage conforme à leur objet”. MARTEL, Maurice; MARTEL, Paul. La compagnie au Québec: les aspects juridiques. Montreal: Éditions Wilson&Lafleur, 2007. p. 21. 52 Também neste sentido, Konrad Hesse noticia a possibilidade de titularidade de direitos fundamentais por pessoas jurídicas, observada, contudo a sua natureza. Consoante as palavras do autor, “direitos fundamentais valem, segundo o art. 19, alínea 3, da Lei Fundamental, também para as pessoas jurídicas nacionais, quando eles, conforme sua natureza, são aplicáveis a estas”. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional (...), ob. cit., p. 234. 53 LOREZENTTI, Ricardo Luis. Fundamentos (...), ob. cit., p. 302. 54 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 74.

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1.6.1 Teoria negativista (doutrina do “state action”)

Há países em que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é

praticamente repelida. Exemplo clássico de ordenamento que não reconhece a vinculação dos

particulares aos direitos fundamentais é o Direito norte-americano. Neste país, de ideologia

eminentemente liberal, é quase unanimemente aceito que os direitos fundamentais, previstos

no Bill of Rights, impõem limitações somente para os Poderes Públicos, isto é, às ações

estatais (State Actions), sendo inviável aos particulares invocarem tais direitos nas relações

privadas.55

As exceções à regra da inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações

privadas referem-se às situações em que os particulares agem no exercício de uma atividade

tipicamente estatal, hipóteses em que estes estarão sujeitos às limitações de ordem

constitucional. Esta orientação da Corte Suprema dos Estados Unidos se sustenta, como

registra Daniel Sarmento, na chamada public function theory.56

Com efeito, é patente que a linha de tutela dos direitos fundamentais adotada pelo

direito norte-americano mostra-se insuficiente às necessidades da vida contemporânea, em

especial quando se constata que o “poder privado” na sociedade capitalista é uma realidade

irrefutável, que impede, amiúde, a fruição de direitos fundamentais. E como nem sempre o

legislador consegue conferir resposta adequada às ofensas perpetradas pelos detentores de

uma posição econômica privilegiada, as garantias constitucionais acabam tornando-se

verdadeiras promessas não cumpridas. Por essas razões, esta linha teórica não deve servir de

orientação para os problemas envolvendo as liberdades subjetivas reconhecidas

constitucionalmente.

1.6.2 Teoria da eficácia mediata (indireta) nas relações privadas

No Direito alemão predomina o entendimento de que a concretização dos direitos

fundamentais nas relações privadas está subordinada a uma atuação do Estado, seja pela via

executiva, legislativa ou jurisdicional. A rigor, não bastassem as construções teóricas que 55 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p.189. 56 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 196.

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negam a possibilidade de os direitos fundamentais serem diretamente invocados nos conflitos

entre particulares, o texto da Lei Fundamental alemã dificulta o reconhecimento de uma

eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Afinal, preceitua o art. 1º,

n. 3, da Lei Fundamental alemã que “os direitos fundamentais que se seguem vinculam a

legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito imediatamente vigente”.57

Com efeito, os teóricos da eficácia mediata negam que os direitos fundamentais

possam ser invocados diretamente da Constituição e ingressar na esfera privada como direitos

subjetivos,58 sendo necessária a regulamentação de seu conteúdo e das condições de seu

exercício pelo legislador, de modo a se preservar a segurança jurídica e a própria identidade

do Direito Privado. É neste sentido a observação de Konrad Hesse, que sustenta:

[...] mediante o recurso imediato aos direitos fundamentais ameaça-se perder a identidade do Direito Privado, protegida pela larga história sobre a qual repousa, em prejuízo da adequação à sua própria matéria de regulação e de seu desenvolvimento ulterior, para o qual depende de especiais circunstâncias materiais que não cabe processar senão com critérios de direitos fundamentais. Além disso, correria perigo o princípio fundamental de nosso Direito Privado, a autonomia privada, se as pessoas em suas relações recíprocas não pudessem renunciar a normas de direitos fundamentais que são indisponíveis para a ação estatal.59 (tradução nossa)

Note-se, contudo, que os adeptos desta corrente não afastam a possibilidade de o

juiz, diante de uma omissão ou indiferença do legislador, interpretar o Direito à luz dos

direitos fundamentais, exercendo o dever de proteção que se impõe ao Estado.60

De fato, conforme revela Claus-Wilhelm Canaris, a proibição de insuficiência de

proteção (tutela) por parte do legislador justifica a atuação jurisdicional fundamentada

diretamente nos direitos constitucionalmente garantidos, sem a invocação da mediação

legislativa,61 o que só se admite em caráter excepcional. Esta exceção, no sentido de admitir a

invocação direta de um direito fundamental para tutelar as relações privadas, objetiva o

cumprimento da finalidade do dever de proteção no âmbito dos conflitos entre particulares,

57 Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e Direito Privado (...), p. 22. 58 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 198. 59 HESSE, Konrad. Derecho Constitucional (...), ob. Cit., p. 60-61. No original: “(...) mediante el recurso inmediato a los derechos fundamentales amenaza con perderse la identidad del Derecho Privado, acuñada por la larga historia sobre la que descansa, en perjuicio de la adecuación a su propria materia de la regulación y de su desarrollo ulterior, para lo cual depende de especiales circunstancias materiales que no cabe procesar sin más con criterios de derechos fundamentales. Aparte de ello, correría peligro el principio fundamental de nuestro Derecho Privado, la autonomía privada, si las personas em sus relaciones recíprocas no pudieran renunciar a las normas de derechos fundamentales que son indisponibles para la acción estatal”. 60 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 128. 61 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 124.

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qual seja tutelar os direitos fundamentais perante intervenções fáticas por parte de outros

sujeitos de direito privado.62

Impende notar, nesta ordem de idéias, que, em que pese Canaris afirmar a eficácia

indireta dos direitos fundamentais, a tese por ele sustentada acaba por reconhecer, ainda que

em situações de exceção, os efeitos imediatos dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Daí a adequação das orientações do catedrático da Universidade de Munique.

Afinal, a mercantilização do poder político (que dificulta a regulação de situações

que não são do interesse dos grupos econômicos) e a dinamicidade com que novos problemas

surgem na sociedade contemporânea são argumentos que depõem contra a tese da eficácia

mediata pura. De fato, a subordinação da eficácia dos direitos fundamentais a decisões

legislativas retira dos direitos fundamentais o que eles têm de mais precioso: a sua

indisponibilidade por parte do Estado.

Neste contexto, parece correta a colocação de Juan María Bilbao Ubillos, no

sentido de que aqueles que defendem a imperatividade da mediação legislativa estão, na

realidade, negando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.63

1.6.3 A teoria da eficácia direta (imediata) nas relações privadas

O reconhecimento da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações

privadas significa admitir a possibilidade de os particulares serem sujeitos passivos dos

direitos reconhecidos constitucionalmente, independentemente de uma mediação legislativa,

ou seja, ainda que inexista regulamentação do exercício do direito ou mesmo delimitação do

seu conteúdo. Em suma, os direitos fundamentais adquirem “a aptidão de poderem ser

invocados diretamente diante dos tribunais”.64

Deste modo, uma vez acolhida a eficácia direta desses direitos, eles poderão, de

maneira autônoma, sustentar a pretensão de seu titular. Ademais, resta possibilitado o controle

dos atos privados que ofendem direitos fundamentais que não foram objeto de

regulamentação pelo legislador.

62 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 107. 63 UBILLOS, Juan María Bilbao. En qué medida vinculan a los particulares (...), ob. cit., p. 315. 64 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 66.

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Advirta-se, no entanto, que admitir a eficácia imediata dos direitos fundamentais

nas relações privadas não significa, consoante Juan María Bilbao Ubillos, negar ou subestimar

o efeito desses direitos através da lei. É de se compreender, na verdade, a compatibilidade

entre as modalidades de concretização dos direitos fundamentais:

[...] o normal (e o mais conveniente também) é que seja o legislador que venha concretizar o alcance dos diferentes direitos nas relações de Direito privado, mas quando essa mediação não existe, na ausência de lei, as normas constitucionais podem aplicar-se diretamente.65 (tradução nossa)

A aplicação direta dessas normas fundamentais mediante a prestação jurisdicional,

que há de ser vista como exceção, deve ser compreendida, conforme destaca Romain Dumas,

como uma atitude de cooperação das funções do Estado na realização dos direitos

fundamentais dos cidadãos.66

É de se consignar que o reconhecimento dos efeitos diretos dos direitos

fundamentais em relações privadas já foi objeto de apreciação de tribunais alienígenas e do

próprio STF.

Em 1947, por exemplo, foi submetida a um tribunal francês a seguinte situação:

uma senhora havia legado seus bens para sua filha, constando do testamento que, se esta se

casasse com um judeu, o ato testamentário estaria revogado, e seus bens deveriam ser

entregues a um orfanato. O tribunal julgou esta condição ilícita, sob o fundamento de ser

ofensiva aos direitos fundamentais previstos na alínea 1ª, do Preâmbulo da Constituição

francesa de 1946, que proibia qualquer tipo de discriminação relacionada à raça, à religião, ou

a crenças.67

Entre nós, o Supremo Tribunal Federal concluiu ser diretamente aplicável a uma

relação entre particulares o direito (garantia) fundamental do contraditório, verbis:

Sociedade civil sem fins lucrativos. União brasileira de compositores. Exclusão de sócio sem garantia da ampla defesa e do contraditório. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Recurso desprovido.

65 UBILLOS, Juan María Bilbao. En qué medida vinculan a los particulares (...), ob. Cit., p. 319. No original: “[...] lo normal (y lo más conveniente también) es que sea el legislador el que concrete el alcance de los diferentes derechos en las relaciones de Derecho privado, pero cuando esa mediación no existe, en ausencia de ley, las normas constitucionales pueden aplicarse directamente”. 66 Como destaca o jurista francês, “plutôt que des collaborations ponctuelles, il appartient d’elaborer une véritable politique de travail commun et complémentaire entre la jurisprudence et le législateur. En noutre matière, cette coopération doit être établie autour d’un objectif identifiable e précis: l’introduction de la fondamentalité en droit des affaires”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (…), ob. cit., p. 135. 67 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 113.

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I – Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II. Os princípios constitucionais como limites à autonomia privada das associações [...].68

A rigor, a regra do art. 5º, §1º,69 da Constituição Federal, possibilita concluir pela

aplicabilidade da teoria sob exame, haja vista o reconhecimento de que as normas de direitos

fundamentais têm aplicação imediata. É verdade que, diferentemente do que ocorre com a

Constituição portuguesa,70 a Lei Fundamental brasileira não identifica quem pode ser o

destinatário da norma de direito de fundamental cuja aplicação imediata restou positivada, o

que certamente contribui para o dissenso doutrinário sobre a matéria.

Enquanto alguns entendem que no ordenamento pátrio os particulares devem

respeitar os direitos fundamentais na exata medida em que forem concretizados por leis

infraconstitucionais, desenvolvendo um efeito de irradiação na interpretação da legislação,71 e

outros que a eficácia do direito fundamental nas relações privadas deve ser mediada por lei,

possibilitando-se a aplicação direta quando da omissão legislativa,72 há aqueles que sustentam

a aplicação direta da Constituição, inclusive em relações interprivadas, ao menos sempre que

o conflito não possa ser resolvido com base na lei, seja por ser a lei lacunosa, seja porque o

ato legislativo oferece uma solução aparentemente injusta,73 e ainda, aqueloutros que se

inclinam em prol de uma necessária vinculação direta (imediata) dos particulares aos direitos

fundamentais, reconhecendo, todavia, que o modo pelo qual se opera a aplicação desses

direitos nestas situações não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas, levando em

consideração a existência ou não de uma relação de desigualdade.74

Na verdade, o que se deve ter em mente é que, em princípio, compete ao

legislador estabelecer o conteúdo dos direitos fundamentais, conciliar e regulamentar seu

exercício mediante leis que gozam de presunção de constitucionalidade, e que a invocação

direta dos direitos positivados na Constituição na solução de conflitos privados deve ficar 68 STF, RE 201.819/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.05, DJU 27.10.06, p. 64. 69 “§1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. 70 A Constituição portuguesa estabelece, no art. 18, I, que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades, e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. 71 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral (...), ob. cit, p. 114. 72 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral (...), ob. cit., p. 81. 73 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas (...), ob. cit., p. 47. 74 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia (...), ob. cit., p. 403.

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reservada para situações de exceção, nas quais fique demonstrada a incompatibilidade da

norma infraconstitucional com os preceitos constitucionais, ou a inadequação ou insuficiência

da proteção conferida pelo legislador ao direito fundamental ameaçado ou violado.75

Outrossim, impende registrar que a constatação de que nas relações privadas as

situações de subordinação tornaram-se habituais serviu de fundamento para uma vertente

especial de aplicação direta dos direitos fundamentais nos conflitos entre particulares.

1.6.4 Poderes privados e eficácia direta dos direitos fundamentais

A igualdade presumida pelo legislador às vezes desconsidera uma situação de

inegável poderio, do mesmo modo que nem sempre a tutela conferida à parte vulnerável nas

situações de desnível de poder é adequada. Estas premissas conduziram a doutrina a

desenvolver construções teóricas especiais envolvendo a incidência direta dos direitos

fundamentais nas relações em que se verifica a existência de um poder privado.

Consoante advertência de Jürgen Habermas, nas sociedades complexas, com

sistemas parciais diferenciados horizontalmente e interligados, “o efeito protetor dos direitos

fundamentais não atinge apenas o poder administrativo, mas também o poder social de

organizações superiores”,76 motivo pelo qual:

[...] a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada também é ameaçada através de posições de poder econômicas e sociais [...]77

Com efeito, as situações em que uma das partes se encontra em posição que lhe

permita influenciar ou determinar o comportamento alheio, seja em razão de uma ascendência

75 Esta posição se assimila àquela sustentada por Daniel Sarmento, para quem “a prioridade na concretização dos direitos fundamentais é, de fato, do legislador, razão pela qual as normas jurídicas, inclusive as do Direito Privado, gozam de presunção de constitucionalidade. Assim os juízes devem aplicar tais normas na resolução dos casos concretos que envolvam direitos fundamentais, e só podem afastar-se delas se lograrem demonstrar a sua inconstitucionalidade. Neste caso, pesará sobre eles o ônus da argumentação. Todavia, isto não obsta a aplicação direta da Constituição aos casos concretos, quando inexistir regra ordinária específica tratando da matéria, ou quando a aplicação da mesma revelar-se em descompasso com as normas e valores constitucionais”. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais (...), ob. cit., p. 241. 76 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia (...), ob. cit., p. 307. 77 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia (...), ob. cit., p. 326.

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política, ideológica, ou econômica78 consistem, por si sós, em ameaças a direitos

fundamentais daqueles que se encontram na situação de subordinação. Afinal, o titular do

poder tem a capacidade, em razão de sua posição privilegiada, de impedir a realização de

direitos fundamentais que estão sob sua coordenação, seja por meio de uma omissão, ou

através de uma conduta atentatória e irresistível.

Estas observações foram feitas, também, por Vieira de Andrade, que comenta que

em determinados casos as entidades privadas dispõem de um poder econômico susceptível de

conformar aspectos relevantes da vida dos indivíduos, chegando a dispor de poderes

normativos.79

É de se notar que, ao constatar o fenômeno do poder privado, compete ao

legislador regulamentar, de maneira especial, o exercício destas posições privilegiadas,

impondo aos titulares do poder privado determinados deveres e conferindo determinadas

prerrogativas à parte vulnerável. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Código de

Defesa do Consumidor (CDC) são exemplos clássicos de intervenção legislativa em razão do

fenômeno do poder privado.

Não se deve olvidar, ademais, a existência de poder privado nas sociedades

anônimas. Os deveres impostos ao controlador são, sem dúvida, respostas legislativas à

situação de subordinação constatada nas sociedades anônimas. Isso não significa, contudo,

que o legislador esteja autorizado a estabelecer uma hierarquia dos direitos fundamentais

envolvidos nas relações internas da sociedade. Compete-lhe, como é salutar, estabelecer um

equilíbrio. O poder exercido pelo controlador e a repercussão de uma leitura constitucional de

sua posição jurídica serão objeto de estudo em capítulo à parte (Capítulo 3).

Mas em que pese existir regulação para determinadas situações de desigualdade,

de maneira a viabilizar a realização dos direitos fundamentais da parte vulnerável, a verdade é

que nem sempre o legislador obtém êxito em definir, eficientemente, a tutela do direito

fundamental. Em situações como esta, a invocação direta dos direitos reconhecidos

constitucionalmente consiste na única forma de afastar a ameaça ou a violação do direito

fundamental.

Consoante o entendimento de Konrad Hesse, na situação de exercício de poder

econômico ou social em que o legislador promove uma regulação inadequada, há que se

78 Para uma análise do fenômeno do poder, conferir DOCKÈS, Emmanuel. Valeurs de la democratie – huit notions fondamentales. Paris: Dalloz, 2005. p. 63-106. 79 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 287.

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realizar uma interpretação das normas aplicáveis à espécie à luz dos direitos fundamentais. E

se não for possível concretizar os direitos fundamentais por esse caminho, ou se não houver

regulamentação especial, “então devem os tribunais a proteção desses direitos – no exercício

do dever de proteção estatal – garantir”.80

Pelo fato de as situações de poder privado serem diferenciadas, a doutrina sustenta

que o grau e a medida da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sofrerão variações

que só em concreto podem ser determinadas.81 Neste sentido, Dimitri Dimoulis e Leonardo

Martins entendem que o critério decisivo para a aplicação direta dos direitos fundamentais

não é uma desigualdade geral e de cunho material (ricos vs. pobres, empregados vs.

empregadores, empresas vs. consumidores), mas uma desigualdade de posições no interior da

relação jurídica, que deve ser avaliada e comprovada concretamente em cada caso.82

Nesta ordem de idéias, conclui-se que, mesmo que não se admita a eficácia dos

direitos fundamentais de maneira indiscriminada, a sua aplicação nas situações de

desigualdade material é medida de inegável legitimidade, sob pena de se coadunar com a

intervenção irresistível do titular do poder na esfera jurídica constitucionalmente protegida da

parte vulnerável. E é de se observar que, toda vez que um direito fundamental é violado, ou

sua realização é obstada, é a própria Constituição que está sendo ofendida.

1.7 Critérios de conciliação e limitação dos direitos fundamentais

A imposição de restrições ou limitações a um direito fundamental advém da

necessidade de conciliá-lo com a tutela ou realização de outros direitos de natureza

constitucional.

Como afirmado anteriormente, o texto constitucional às vezes estabelece

restrições ou limitações dos direitos fundamentais (restrições diretas), bem como autoriza

expressamente, em determinadas circunstâncias, que o legislador promova restrições

(restrições legais), sendo certo que existem situações em que mesmo no silêncio

80 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional (...), ob. cit., p. 286. 81 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades (...), ob. cit., p. 287. 82 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral (...), ob. cit., p. 110.

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constitucional a intervenção do legislador será necessária para que sejam conciliados direitos

fundamentais em conflito.83

Recorde-se que a omissão do legislador, ou mesmo sua atuação insatisfatória na

tutela do direito fundamental, poderão ser objeto de controle pela jurisdição. Afinal, como

bem observa Claus-Wilhelm Canaris, “os órgãos jurisdicionais se encontram submetidos, no

domínio do direito privado, à vinculação imediata aos direitos fundamentais”,84 sendo certo

que a proibição de insuficiência da tutela do direito fundamental não é aplicável “apenas no

(explícito) controlo jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente,

nos correspondentes problemas no quadro de aplicação e desenvolvimento judiciais do

direito”.85 Nestas situações, insta ser invocado diretamente da Constituição o direito

fundamental ameaçado ou violado para que, diante do caso concreto, o julgador possa conferir

a devida tutela ao jurisdicionado.86

O que interessa constatar, no entanto, é quais são os critérios que devem nortear a

atuação estatal (legislativa e jurisdicional) na proteção dos direitos fundamentais nas relações

privadas.

Consoante observação de Daniel Sarmento, a fixação de limites para a incidência

dos direitos fundamentais nas relações entre particulares envolve um problema de ponderação

com a autonomia privada. E um dos fatores primordiais a ser considerado nesta ponderação é

a existência e o grau de desigualdade fática entre os envolvidos. Desse modo, quanto maior

for a desigualdade, mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a

tutela da autonomia privada, o que se justifica em razão de a assimetria de poder prejudicar o

exercício da autonomia privada das partes mais débeis.87

Esta sugestão coincide com a tese sustentada por Canaris, para quem:

[...] quanto maior o nível do direito fundamental afectado, quando mais severa a intervenção que se ameaça, quanto mais intenso o perigo, quanto

83 É neste sentido o esclarecimento de Canaris, quando afirma, apoiado na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, que “também os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente sem reserva podem ser restringidos, desde que, e na medida em que, tal seja necessário para a proteção de outros direitos fundamentais”. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais (...), ob. cit., p. 126. 84 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais (...), ob. cit., p. 41. 85 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais (...), ob. cit., p. 124. 86 Conforme registro de Luiz Guilherme Marinoni, “o que realmente importa, porém, é que as definições de eficácia horizontal mediatizada pela jurisdição e de eficácia vertical com repercussão lateral permitem que se compreenda a possibilidade de a jurisdição suprir a omissão do legislador em proteger um direito fundamental material e em dar ao juiz os instrumentos – ou as técnicas processuais – capazes de conferir efetividade à proteção jurisdicional dos direitos – sejam fundamentais ou não –, sem que com isso se retire da parte atingida pela atuação jurisdicional o direito de fazer com que os seus direitos sejam considerados diante do caso concreto”. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral (...), ob. cit., p. 85. 87 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 261-262.

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menores as possibilidades do seu titular para uma eficiente auto-protecção, e quanto menor o peso dos direitos fundamentais e interesses contrapostos, tanto mais será de reconhecer um dever jurídico-constitucional de protecção.88

A doutrina francesa, por sua vez, noticia a técnica utilizada pelo Conselho

Constitucional daquele país para a conciliação de direitos fundamentais, a qual é composta

por basicamente três etapas, em que se examina: a) se a limitação ou restrição ao direito

fundamental tem justificativa legítima (proteção de outro direito fundamental); b) se a

restrição ou limitação é proporcional (proporcionalidade dos meios utilizados para a tutela do

direito fundamental); c) se a restrição ou limitação não esvazia, por completo, o conteúdo do

direito fundamental.89

Nesta ordem de idéias, a prevalecer a orientação francesa sobre a conciliação dos

direitos fundamentais, que também tem sido sugerida no âmbito do Direito Privado, é de se

avaliar se na relação entre particulares a ofensa ou ameaça a um direito fundamental: a)

encontra justificativa na realização de um outro direito de ordem constitucional; b) se é

indispensável e, nesta hipótese, se foram adotados os meios menos gravosos

(proporcionalidade – rejeição ao excesso); c) se o núcleo existencial do direito fundamental

resta preservado (ofensa ou ameaça de caráter não substancial).90

Esta proposta se assemelha, outrossim, àquilo que é levado a efeito pelo Tribunal

Constitucional alemão, como noticia Leite Sampaio. Segundo o professor mineiro, o princípio

da proporcionalidade91 aparece como verdadeiro “aferidor da violação do direito”, sendo certo

que este princípio se desdobra em três máximas: a) adequação, que se consubstancia na

idoneidade, abstrata, do ato à persecução do fim desejado ou escolhido; b) necessidade, no

sentido de que o fim não poder ser atingido de outra maneira que afete menos o indivíduo; c)

proporcionalidade em sentido estrito, que exige a ponderação dos direitos envolvidos,

levando-se em consideração o balanceamento das outras máximas.92

88 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais (...), ob. cit., p. 114. 89 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 169-172; DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (…), ob. cit., p. 318-341. 90 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 309. 91 Há entendimento de que a proporcionalidade não consiste em um princípio, “mas consubstancia uma condição mesma da realização do Direito, já que não entra em conflito com outras normas-princípio, não é concretizado em vários graus ou aplicado mediante criação de regras de prevalência diante do caso concreto, e em virtude das quais ganharia, em alguns casos, a prevalência”. ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos x Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 192. 92 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada (...), ob. cit., p. 740. Estas premissas encontram respaldo, ademais, na doutrina de Konrad Hesse, para quem “a limitação de direitos fundamentais deve, por conseguinte, ser adequada para produzir a proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela deve ser

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Considerando as propostas apresentadas, parece adequado afirmar o seguinte: nas

relações privadas deve-se partir do pressuposto de que a conciliação entre os direitos

fundamentais realizada pelo legislador encontra respaldo na ordem constitucional, face à

presunção de constitucionalidade das leis. Não raro, o legislador estabelece conceitos abertos

para estabelecer o conteúdo de um direito fundamental ou mesmo para regulamentar o seu

exercício, o que torna imprescindível identificar os direitos constitucionais envolvidos para

que, partindo-se do texto e das restrições e conciliações constitucionais, e mediante verdadeira

interpretação sistemática,93 os conceitos abertos inseridos pelo legislador sejam preenchidos

legitimamente.94

No entanto, considerando a falibilidade do legislador, é de se reconhecer que há

situações em que o regramento infraconstitucional estabelecido é falho, tornando imperativa a

invocação direta do direito fundamental ofendido ou ameaçado para, no exame do caso

concreto, avaliar, cumulativamente, (i) se a sua ofensa ou ameaça se justifica na realização de

outro direito fundamental e (ii) se o ato impugnado observou a exigência da

proporcionalidade.

Como nas relações entre particulares estão em jogo direitos fundamentais de

ambos os lados, a situação conflituosa de direitos desta natureza é identificada como

conflito/colisão de direitos fundamentais, a qual encontra na doutrina e nos tribunais pátrios e

alienígenas, sugestões para a sua solução.

necessária para isso, o que não é o caso, quando um meio mais ameno bastaria. Ela deve, finalmente, ser proporcional no sentido restrito, isto é, guardar relação adequada com o peso e o significado do direito fundamental”. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional (...), ob. cit., p. 256. 93 Consoante observação de Luís Roberto Barroso, a Constituição há de ser interpretada como um todo harmônico, onde nenhum dispositivo deve ser interpretado isoladamente, haja vista a unidade do ordenamento jurídico. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 136-137. No mesmo sentido, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins advertem que a interpretação sistemática da Constituição consiste em ferramenta essencial a uma exegese legítima, devendo-se interpretar a Constituição “enquanto conjunto que permite levar em consideração todas as disposições relacionadas com o caso concreto e entender quais são os parâmetros que o constituinte mesmo estabeleceu”. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral (...), ob. cit., p. 171-172. 94 Em orientação próxima à que está sendo desenvolvida, Konrad Hesse adverte que, quando o legislador emprega conceitos indeterminados ou cláusulas gerais, a sua interpretação à luz dos direitos fundamentais é significativa, sendo certo que diante da falta de concretização legal, “é tarefa do juiz satisfazer a influência dos direitos fundamentais na diferenciação necessária”. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional (...), ob. cit., p. 285.

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1.7.1 Colisão de direitos fundamentais

Uma das contribuições mais citadas pela doutrina pátria é aquela desenvolvida por

Robert Alexy.95 O ponto central da proposta do professor da Universidade de Kiel

(Alemanha) é que os direitos fundamentais têm a natureza de princípios e são mandamentos

de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas.

Deste modo, havendo antagonismo entre direitos fundamentais (princípios) deve-

se promover o seu “sopesamento” (ou “ponderação”), a ser realizado mediante a aplicação das

máximas da proporcionalidade em sentido estrito, da necessidade e da adequação.

Ressalte-se que só se pode conceber o sopesamento como solução de problemas

envolvendo os direitos fundamentais em ordenações flexíveis, as quais podem surgir, segundo

o autor, de duas formas: (1) por meio de preferências prima facie em favor de um

determinado princípio ou valor; (2) por meio de uma rede de decisões concretas sobre

preferências. Segundo Robert Alexy:

[...] uma rede de ordenação flexível dos valores constitucionalmente relevantes por meio de preferências prima facie é obtida, por exemplo, quando se pressupõe carga argumentativa em favor da liberdade individual, ou da igualdade, ou de interesses coletivos.96

Note-se que, quando Alexy fala do estabelecimento de preferências prima facie,

fica clara a sugestão de que se deve estabelecer uma hierarquia (ainda que no caso concreto)

entre os direitos fundamentais. Mas o déficit democrático desta proposta é patente, haja vista

não haver fundamento jurídico para se promover um escalonamento relacionando a maior ou

menor importância dos direitos reconhecidos constitucionalmente.97 O próprio modelo de

95 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 96 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 163. 97 Para Habermas, a sugestão de Alexy peca quando considera os direitos fundamentais como mandamentos de otimização, assimilando-os a valores. Isso porque esta assimilação não encontraria fundamento, haja vista que “normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através da obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. Por se distinguirem segundo estas qualidades lógicas, eles não podem ser aplicados da mesma maneira”. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia (...), ob. cit., p. 317.

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sociedade pluralista em que vivemos colocaria em xeque a aceitabilidade da hierarquização

sugerida por Alexy.98

Por isso, ainda que se admita a aplicação das máximas da proporcionalidade em

sentido estrito, da necessidade e da adequação, impende excluir a possibilidade de se

estabelecer uma hierarquia entre os direitos fundamentais.

Outrossim, juntamente com a contribuição de Alexy para a solução de conflitos de

direitos fundamentais, é de se registrar a vertente teórica liderada por Jürgen Habermas e

Klaus Günther, segundo a qual as normas de direito fundamental (muitas vezes referidas

como princípios) devem encontrar circunstâncias adequadas de aplicação.

Deste modo, um direito fundamental, em um caso concreto, pode excepcionar a

aplicação de outro. O critério da adequabilidade, utilizado por Günther, significa, como

explica Marcelo Campos Galuppo, que o juiz, quando excepciona concretamente a aplicação

de princípios concorrentes (direitos fundamentais) em um determinado caso, apenas

reconhece que eles são ou não adequados para realizar a exigência de justiça naquela

situação.99

Acrescenta Habermas que a decisão de afastamento de um direito fundamental,

com a aplicação de outro, por mostrar-se mais adequado ao caso concreto, exige, para ser

legítima, estejam satisfeitas, simultaneamente, as condições de aceitabilidade racional e

consistência.100

As contribuições de ambas as correntes é de inegável importância, sendo certo que

um consenso sobre os critérios para solução de conflitos de direitos fundamentais está longe

de ser alcançado. No entanto, é possível identificar a prevalência, até o momento, de

propostas que seguem a linha de Robert Alexy. Como revela Daniel Sarmento, tem obtido

maior adesão não só na doutrina, mas também na jurisdição constitucional brasileira e

estrangeira, a chamada “teoria externa”, que tende a tratar os direitos fundamentais como

princípios, admitindo restrições a eles com base no método da ponderação de interesses.

98 Também Romain Dumas registra que “il y a lieu de conclure qu’aucune tentative de hiérarchisation des droits fondamentaux n’apparâit satisfasante, voire possible. En définitive, la seule manière acceptable de resóudre le conflit généré par la friction entre deux prérogatives primordiales, après avoir matérialisé son existence, est d’essayer d’articuler celles-ci entre elles”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (…), ob. cit., p. 333. 99 GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36, n. 143, 1999. p. 203. 100 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia (...), ob. cit., p. 246. Elucidando os critérios de aceitabilidade racional e consistência, Habermas registra que o princípio da segurança jurídica exige decisões tomadas consistentemente, no quadro da ordem jurídica estabelecida, do mesmo modo que a pretensão à legitimidade da ordem jurídica implica decisões as quais não podem limitar-se a concordar como tratamento de casos semelhantes no passado e com o sistema jurídico vigente, pois devem ser fundamentadas racionalmente, a fim de que possam ser aceitas como decisões racionais pelos membros do direito (idem).

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Existe, no entanto, “[...] uma crescente preocupação em criar parâmetros para a realização

destas ponderações, no afã de reduzir as margens de incerteza e de arbítrio judicial na sua

realização, e evitar a fragilização dos direitos fundamentais”.101

Tendo como foco a exigência de se realizar, na maior medida possível, os direitos

fundamentais de todas as partes envolvidas, os critérios que se destacam para a escolha

casuística de prevalência dos direitos fundamentais em conflito são, cumulativamente: (i) a

proporcionalidade; (ii) a necessidade; e (iii) a adequação, esclarecendo-se, com as

observações de Humberto Ávila, que uma medida é adequada se o meio escolhido está apto

para alcançar o resultado desejado; é necessária se, dentre todas as disponíveis e igualmente

eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos direitos dos sujeitos

envolvidos; e é proporcional se, relativamente ao fim perseguido, não restringir

excessivamente os direitos envolvidos.102

Feitas estas considerações, insta consignar que, uma vez promovida a análise de

prevalência do direito fundamental no caso concreto, a ameaça ou violação à sua realização

colocará em funcionamento as técnicas de proteção dos direitos fundamentais.

1.8 Técnicas de tutela dos direitos fundamentais

Com efeito, a legislação infraconstitucional institui, em determinadas ocasiões,

sanções específicas para atos que não se enquadram às condutas prescritas. Dentre essas

sanções o legislador estabelece a nulidade ou anulabilidade de determinados atos,103 ao

mesmo tempo que prescreve a ineficácia de alguns negócios jurídicos que não atendem às

prescrições legais.104

Outrossim, o ordenamento reconhece o direito de a vítima do ato antijurídico ser

indenizada pelos prejuízos sofridos, bem como confere ao lesado pelo inadimplemento

101 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos x Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 80. 102 ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 194. 103 Vide arts. 166-184 do Código Civil, que dispõem sobre a invalidade dos negócios jurídicos. 104 No âmbito do Direito Empresarial, o instituto da eficácia pode ser verificado no regramento do contrato de trespasse. Estabelecem os arts. 1.144 e 1.145 requisitos de eficácia para a venda do estabelecimento.

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contratual o direito à resolução. Some-se a estas sanções a previsão de revisão de negócios

jurídicos lesivos.

No que tange às violações dos direitos fundamentais é de se registrar que de

maneira geral estes atos ilegítimos não recebem, diretamente, sanções específicas do

legislador, o que confere ao intérprete a liberdade de buscar as técnicas jurídicas que melhor

protejam os direitos individuais constitucionalmente garantidos, competindo ao Estado, por

meio da jurisdição, prestar a tutela adequada ao titular do direito fundamental ofendido.105

Neste diapasão, é necessário concordar apenas parcialmente com Julien

Raynaud,106 no sentido de que não existe grande especificidade na aplicação de sanções

relacionadas a ofensas ilegítimas de direitos fundamentais. Realmente, a partir do momento

em que se atribui o status de direito subjetivo a um direito fundamental, sua violação faz

surgir para seu titular uma pretensão em face do ofensor. Se o conteúdo do direito

fundamental foi estabelecido pelo legislador e a norma diretamente violada for de ordem

infraconstitucional, com sanção específica prevista para a sua violação, a hipótese não oferece

maiores dificuldades caso a sanção prevista proteja de forma adequada o direito fundamental

cujo conteúdo foi mediado pelo legislador.

Todavia, se a proteção do direito fundamental for insatisfatória ou se não houver

violação direta a nenhuma norma infraconstitucional especificamente considerada, a solução

deverá ser encontrada por meio da avaliação da técnica mais adequada para a tutela do direito

fundamental ofendido.

As técnicas de proteção dos direitos fundamentais, que nem sempre

corresponderão a sanções ao ofensor, se resumem, basicamente, às seguintes: a) anulação; b)

correção.107

A técnica da anulação mostra-se instrumento eficiente para a proteção do direito

fundamental. Afinal, o ato de ofensa ou ameaça que não satisfaça o controle de legitimidade

simplesmente não gerará efeitos no mundo jurídico, devendo-se restituir as partes ao status

quo ante.

Resta confirmar se a técnica da anulação conduz à nulidade ou anulabilidade do

ato.108 No Direito Positivo brasileiro a primeira alternativa mostra-se mais adequada face à

105 Como acentua Luiz Guilherme Marinoni, “diante da falta de ação do legislador, cabe ao juiz, também ele incumbido de cumprir o dever de proteção, assegurar o grau adequado de tutela do direito fundamental”. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral (...), ob. cit., p. 81. 106 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 313. 107 Cf. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 311-358.

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regra instituída pelo inc. VII, do art. 166, do Código Civil, segundo a qual será nulo o negócio

jurídico quando a lei proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Atente-se, contudo, ao fato de que no Direito Empresarial a técnica da anulação

deverá ser avaliada com cuidados especiais. Isto porque, como já foi afirmado, a atividade

empresarial não pode ser examinada como uma simples adição de atos autônomos e

isolados;109 ela constitui uma série de atos coordenados entre si em relação à atividade

comum, tendo como princípios orientadores a efetividade – caracterizadora do fato de que a

atividade só pode ser considerada existente se exercida realmente –, e o resultado (ou

finalidade) – a atividade deve sempre tender para um resultado.110

Estas constatações conduziram a doutrina a considerar que a atividade pode ser

lícita ou ilícita, regular ou irregular, mas não nula, de maneira a demonstrar sua autonomia em

relação aos atos que a compõem. Dessa autonomia decorre a afirmação de que as normas

sobre a invalidade dos atos não podem ser aplicadas à atividade.111

É certo que a atividade empresarial constitui uma verdadeira rede de relações

jurídicas, tendo como característica a concatenação dos atos desenvolvidos. E nesta ordem de

idéias sobressai a co-dependência dos atos que compõem a atividade,112 o que tem como

conseqüência o fato de que a invalidação de um ato poderá contaminar outros, de modo a

demonstrar a existência de um efeito de contágio. Daí não ser possível avaliar a juridicidade

dos atos que compõem a atividade do mesmo modo que se examina a legalidade de atos

isoladamente considerados.113

Imagine-se, por exemplo, um contrato de distribuição exclusiva cujas cláusulas

sejam extremamente lesivas ao distribuidor e venham, direta ou indiretamente, a ofender de

maneira ilegítima seus direitos fundamentais. Constatada a ilegitimidade da ofensa, se o

contrato for invalidado, a conseqüência será a extinção da atividade explorada pelo

108 A doutrina e a jurisprudência francesas inclinam-se a favor da nulidade do ato de ofensa aos direitos fundamentais, por entenderem que estes advêm de normas de ordem pública e interesse social. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 329. 109 Daigre, Jean-Jacques. De l’existence et de l’avenir du droit commercial. In: Mélanges en l´honneur de Jean Paillusseau – Aspects organisationneles du droit des affaires. Paris: Dalloz, 2003. 110 BULGARELLI, Waldírio. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 184-185. 111 ASCARELLI, Tullio. Iniciación al estudio del derecho mercantil. Trad. Evelio Verdera y Tuells. Barcelona: Bosch, 1964. p. 142. 112 Esta co-dependência dos atos que compõem a atividade implica em sua unidade, a qual decorre “de serem eles [os atos] funcionalmente necessários para atingir o fim visado”. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Atlas, 2004. p. 99. 113 Neste sentido, Tullio Ascarelli esclarece que a atividade deve ser valorada autonomamente, isto é, independentemente da valoração dos atos individuais, singularmente considerados. Em suma, a valoração da atividade se apóia em sua finalidade, a qual se reflete na coordenação dos diversos atos no exercício da atividade, mas que permanece alheia à causa dos atos isolados. In: Iniciación al estudio del derecho mercantil (...), ob. cit., p. 142.

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distribuidor, o que pode colocar o distribuidor em situação ainda pior do que aquela existente

quando da vigência do contrato lesivo.114

Neste contexto, confirmado o efeito de contágio que a nulidade do ato ilegítimo

ocasionará, melhor se afigura a utilização da técnica de correção.115 A técnica da correção é

dividida pela doutrina francesa116 em duas espécies: (i) indenização; (ii) redução da ofensa.

A indenização objetiva, como é salutar, recompor as perdas patrimoniais (dano

material) e “aliviar”, mediante recompensa pecuniária, o sofrimento de natureza moral

decorrentes do ato ilegítimo que ofende um direito fundamental.

A redução da ofensa, por sua vez, poderá ser concretizada por meio da revisão do

negócio jurídico que se mostra ilegítimo, a exemplo do que já foi decidido pela Corte de

Cassação francesa, que, ao examinar a legitimidade de uma cláusula de não-concorrência

considerada “ampla demais”, reduziu o prazo da não-concorrência, e diminuiu seu campo de

aplicação.117

No Direito Societário a técnica de correção pode ser encontrada, ainda, nos

institutos do recesso e da exclusão.

O recesso, como é consabido, consiste no direito de o sócio se desvincular da

sociedade, recebendo seus haveres de acordo com o que preceitua o ato constitutivo (contrato

social ou estatuto social), eventual acordo de sócios, ou, no silêncio destes instrumentos,

segundo o que estabelece a legislação aplicável ao caso. Uma vez ofendido ou ameaçado um

direito constitucional de um sócio, o recesso pode se mostrar como a técnica mais adequada, o

que possibilita sua invocação pelo titular do direito fundamental ainda que a pretendida saída

da sociedade não se enquadre nas hipóteses previstas em lei. O fundamento desta sugestão,

que será abordada de maneira mais aprofundada em capítulo próprio (Capítulo 4), é a

proibição de insuficiência de proteção do direito fundamental.118

114 Em uma situação como esta, há de se concordar com Romain Dumas, no sentido de que “il semble préférable d’operer une conciliation entre le respect des droits fondamentaux et l’exigence d’équilibre en droit des affaires, en maintenant si possible le contrat, mais expurgé de ses éléments trop liberticides”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (…), ob. cit., p. 35. 115 De fato, nada impede que sejam cumuladas as técnicas de proteção, decretando-se a nulidade do negócio jurídico, e outorgando-se à vítima indenização pelos danos sofridos. 116 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 320-321. 117 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits (...), ob. cit., p. 322. 118 Consoante colocação de Canaris, “a proibição de insuficiência não é aplicável apenas no (explícito) controlo jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente, nos correspondentes problemas no quadro da aplicação e do desenvolvimento judiciais do direito. Pois, uma vez que a função de imperativo de tutela de direitos fundamentais não tem, de forma alguma, alcance mais amplo no caso de uma realização pela jurisprudência do que pelo legislador, o juiz apenas está autorizado a cumprir esta tarefa porque, e na medida em que, a não o fazer, se verificaria um inconstitucional défice de proteção, e, portanto, uma violação da proibição da insuficiência”. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais (...), ob. cit., p. 124, (grifos nossos).

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Já a exclusão, cujos fundamentos variam consideravelmente,119 consiste, em

linhas gerais, em medida que busca afastar o sócio que esteja colocando em risco as

atividades da sociedade. Ao colocar em risco as atividades sociais, o sócio pode estar

atentando contra direitos fundamentais os mais diversos, dentre os quais podem ser afetados,

diretamente, os direitos fundamentais dos demais sócios e da própria sociedade. Daí a

possibilidade de esta medida mostrar-se a mais apropriada para proteger os direitos

constitucionalmente garantidos.

A rigor, as condições para a exclusão de sócios encontram-se previstas na

legislação de regência de cada um dos tipos societários, podendo os atos constitutivos e/ou

acordos de sócios estabelecer procedimentos e condições específicas para a exclusão,

observadas, contudo, as exigências legais. Há que se noticiar, ademais, que hodiernamente

defende-se a possibilidade de exclusão de sócios nas sociedades anônimas, quando sua

conduta afigurar-se atentatória à preservação da empresa explorada pela companhia.120 Em

capítulo próprio (Capítulo 4), a utilização da exclusão como técnica de tutela de direitos

fundamentais no Direito Societário será estudada com maior profundidade.

Juntamente com as premissas até aqui exploradas, é importante revelar que a

implementação das técnicas de tutela dos direitos fundamentais fará necessária, na maioria

das vezes, a intervenção jurisdicional, a qual também só encontrará legitimidade se for

prestada à luz da Constituição.

1.9 Modelo constitucional de processo

Com efeito, é de se insistir que a implementação da releitura do Direito Privado

ante o reconhecimento da força normativa dos direitos fundamentais normalmente é levada a

efeito por intermédio da prestação jurisdicional, haja vista que a violação de um direito

fundamental dificilmente será resolvida de forma amigável pelas partes envolvidas, em

especial pela natureza dos direitos fundamentais, cujo preenchimento do conteúdo demanda o

119 Sobre as teorias que procuram conferir fundamento jurídico para a exclusão do sócio, conferir RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 134-160; e VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 144-158. 120 Ver, por todos, RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios (...), ob. cit.

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exercício de uma argumentação que dificilmente será desenvolvida em um ambiente

consensual.121 Daí a necessidade de um processo122 legítimo.

Afinal, seria um verdadeiro contra-senso perseguir a legitimidade de aplicação do

direito ao caso concreto, para a concretização de um direito fundamental, se o exercício da

argumentação jurídica, realizada no processo, deixasse de lado as balizas procedimentais

contidas na Constituição.

De fato, o acesso à jurisdição constitui verdadeiro direito fundamental, o qual há

que ser exercido em conformidade com o modelo constitucional de processo,

consubstanciado, conforme observação de Dierle José Coelho Nunes, nos princípios do

contraditório, da ampla defesa, do direito à prova (CF/88, art. 5º, inc. LV), da isonomia

(CF/88, art. 5º, caput), do devido processo legal (CF/88, art. 5º, inc. LIV), da fundamentação

racional das decisões (CF/88, art. 93, inc. IX), do juízo natural (CF/88, art. 5º, inc. LIII), da

inafastabilidade da tutela jurisdicional (CF/88, art. 5º, inc. XXXV), da celeridade (CF/88, art.

5º, inc. LXXVIII) e do direito ao advogado (CF/88, art. 133).123

A rigor, a breve ordem de idéias desenvolvida neste item tem como objetivo

esclarecer que a tutela dos direitos fundamentais nas relações privadas, que ocorre pela via

legislativa e/ou jurisdicional, encontra no “processo constitucionalizado” um instrumento

legítimo de sua realização, merecendo lembrar, ademais, que a proteção em voga encontra no

sistema difuso de controle constitucional um elemento de elevada eficiência para a proteção

das liberdades subjetivas reconhecidas constitucionalmente.

121 Como pondera a doutrina francesa, seria desejável que a implementação dos direitos fundamentais nas relações particulares ocorresse sem a intervenção estatal. Mas uma visão realista conduz à conclusão de que “l’Etat ou ses représentants devront agir et faire en sorte de créer des conditions pour que les opérateurs respectent les droits fondamentaux de leurs semblables”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires (…), ob. cit., p. 37. 122 O processo é aqui identificado segundo a vertente fazallariana, consistindo no procedimento em contraditório. Consoante elucidação de Rosemiro Pereira Leal, “o ilustre processualista explicitou que o processo não se define pela mera seqüência, direção ou finalidade dos atos praticados pelas partes ou pelo juiz, mas pela presença do atendimento do direito ao contraditório entre as partes, em simétrica paridade, no procedimento que, longe de ser uma seqüência de atos exteriorizadores do processo, equivalia a uma estrutura técnica construída pelas partes, sob o comando do modelo normativo processual”. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo – primeiros estudos. Porto Alegre: Síntese, 1999. p. 80. 123 NUNES, Dierle José Coelho. Direito constitucional ao recurso: da teoria geral dos recursos, das reformas processuais e da comparticipação nas decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 143.

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2 PERFIL CONSTITUCIONAL DA EMPRESA E ANÁLISE (ESTRUTURAL E

FUNCIONAL) DA SOCIEDADE ANÔNIMA

2.1 O suporte constitucional da empresa1

O reconhecimento do direito de empresariar consiste em uma das concretizações

do direito fundamental à liberdade.2 Em sede constitucional, esta modalidade de liberdade é

referida como livre iniciativa,3 a qual se resume ao reconhecimento de que os particulares

poderão explorar qualquer atividade sem a necessidade de prévia autorização estatal (salvo os

casos dispostos em lei), escolhendo o ramo da atividade, o lugar e a modalidade de exploração

da empresa.

Importa observar que a conquista da livre iniciativa se deve à Revolução Francesa,

responsável pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, na qual foram reconhecidos,

dentre outros, os direitos à liberdade e à igualdade. Foi com fundamento neste documento

histórico, aliás, que restaram extintas, por meio de leis especiais, as corporações de ofício4 e

tendo sido proibido o seu restabelecimento,5 bem como foi reconhecida, expressamente, a

liberdade a todas as pessoas de explorar o comércio e exercer a profissão, arte ou ofício que

escolherem.6

1 A empresa é aqui designada no sentido de identificar a atividade econômica organizada e explorada pelo empresário (CC, art. 966). Por uma análise dos vários “perfis” da empresa, ver ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. n. 104, p. 109 e ss. 2 Neste sentido, a doutrina francesa assevera que “les principes relatifs à l’égalité et à la liberté, orientent l’activité économique dans le sens de la libre entreprise et lui assurent des garanties constitutionnelles”. DRAGO, Guillaume.De Quelques Apports du Droit Constitutionnel à Une Définition de L’Entreprise. In: Le Droit de L’Entreprise Dans Ses Relations Externes À La Fin du XX Siècle. Mélanges en l’honneur de Claude Champaud. Paris: Dalloz, 1997. p. 303. 3 A livre iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, inc. IV). 4 Com efeito, a existência das corporações de ofício era um empecilho à liberdade geral do comércio. Afinal, era praticamente inviável exercer o comércio sem a filiação a alguma corporação. 5 A extinção das corporações de ofício na França se deu pela conhecida Lei Chapelier, de 14 de junho de 1791. 6 O reconhecimento expresso desta liberdade, que os franceses chamam de liberté du commerce et de l’industrie, foi formulado pelo denominado decret d’Allarde de 17 de março de 1791, com a seguinte redação: “il sera libre à toute personne de faire tel négoce ou d’exercer telle profession, art ou métier qu’elle trouve bon”.

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A doutrina francesa7 costuma cindir o conteúdo deste direito nas seguintes

espécies de liberdade: a liberdade de empreender, a liberdade de explorar a empresa e a

liberdade de concorrência.

A liberdade de empreender consiste no livre acesso a qualquer atividade desejada,

de maneira que as pessoas podem escolher a empresa que irão explorar; enquanto que a

liberdade de explorar a empresa relaciona-se com o direito de o titular da atividade escolher a

forma pela qual esta será conduzida, escolhendo seus parceiros, fornecedores, e estratégia

para conquistar a clientela.8

A livre concorrência, por sua vez, acaba assumindo basicamente três vertentes: ela

importa no direito de o empresário utilizar de todos os meios (leais) para conquistar a clientela

(i), garante ao titular da empresa a proteção contra qualquer perturbação do livre jogo da

oferta e da demanda (ii), e confere a liberdade de fixação dos preços dos produtos e serviços

ofertados no mercado (iii).9

A rigor, a compreensão do conteúdo da livre iniciativa mostra-se salutar para que

este direito fundamental10 possa ser invocado por seus titulares, seja para demonstrar o

excesso, a omissão, ou a ineficiência de sua regulamentação pelo legislador, de maneira a

possibilitar a sua utilização direta para sustentar pretensões jurídicas.

Assevere-se que a livre iniciativa, como os demais direitos fundamentais, não

detém caráter absoluto, sendo não só possível como necessária a sua limitação pelo legislador.

Advirta-se que a limitação pela via convencional (contratual) também há de ser admitida,

desde que não reste extinta a liberdade do titular do direito.11

Na ordem constitucional brasileira, juntamente com o reconhecimento expresso

do direito à livre iniciativa, vários outros direitos fundamentais são reconhecidos para que a

empresa possa ser explorada pelos particulares. 7 FERRIER, Didier. La liberté du commerce et de l’industrie. In: CABRILLAC, Rémy et al. Libertés et Droits Fondamentaux. Paris: Dalloz, 2005. p. 679-692; DIDIER, Paul. Droit Commercial. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. p. 237-248. 8 Há autores, ainda, que identificam na liberdade de explorar a empresa dois aspectos essenciais: (a) um interno; e outro (b) externo. Enquanto o aspecto interno (a) da liberdade de explorar a empresa consiste na liberdade de fazer escolhas sobre a política de gestão empresarial, o aspecto externo (b) se verifica na liberdade de contratar e escolher os parceiros contratuais. PÉDAMON, Michel. Droit Commercial. Paris: Dalloz, 1994. p. 369-373. 9 FERRIER, Didier. La liberté du commerce (…), ob. cit., p. 682-685. 10 Cumpre anotar que, como revela Paul Didier, o Conselho Constitucional francês teve a oportunidade de se manifestar quanto à natureza constitucional da liberté du commerce et de l’industrie, esclarecendo, na espécie, que esta liberdade é corolário do direito de propriedade. DIDIER, Paul. Droit Commercial (...), ob. cit., p. 238. Registre-se, ademais, que esta liberdade foi consagrada, expressamente, na Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, de 18 de dezembro de 2000, que preceitua, no art. 16: “la liberté d’entreprise est reconnue conformément au droit communautaire et aux législations et pratiques nationales”. 11 Exemplos de limitação da livre iniciativa pela via convencional são as cláusulas de não-restabelecimento quando da alienação de estabelecimento empresarial e as cláusulas de exclusividade contratadas entre empresários.

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Tome-se como ponto de partida o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta

norma garante o livre desenvolvimento da personalidade dos cidadãos, dentro do que se

inserem escolhas não só existencialistas, mas também econômicas e patrimoniais.

Com efeito, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,

prevista no inc. XIII, do art. 5º, da CF/88, confirma a natureza constitucional do exercício da

empresa.

Some-se a isto a liberdade de associação,12 consagrada no inc. XVII, do art. 5º, de

maneira a possibilitar que pessoas interessadas no desenvolvimento de alguma atividade

possam explorá-la conjuntamente, sendo assegurado, também como direito fundamental, o

direito de não ser compelido a associar-se ou a permanecer associado (inc. XX).

Observadas as particularidades da vida empresarial,13 a liberdade de expressão,

prevista no inc. IX, do art. 5º, consiste em direito essencial ao exercício da empresa, haja vista

possibilitar a expansão dos negócios do empresário por intermédio da publicidade.

O direito de propriedade, por sua vez, que no caso do desenvolvimento da

empresa será exercido sobre os bens de produção,14 encontra-se disposto no inc. XXII, do art.

5º, destacando-se a restrição constitucional a este direito, prevista no inc. XXIII do mesmo

artigo, no sentido de que seja atendida sua função social.

O reconhecimento da livre locomoção e da livre circulação de bens no território

nacional, previsto art. 5º, inc. XV, é também essencial para que a empresa possa ser

explorada; afinal ela consiste na atividade organizada para a produção ou circulação de bens

ou de serviços.

12 Adota-se, aqui, o entendimento de que liberdade associação prevista no texto constitucional brasileiro refere-se a qualquer modalidade de agrupamento de pessoas para o desenvolvimento de atividades lícitas (sociedades, associações, fundações). O direito fundamental mencionado parece adequar-se àquilo que Konrad Hesse denomina de garantia constitucional de formação de grupos sociais livre. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. p. 316. 13 Sobre as particularidades da aplicação da liberdade de expressão no âmbito do Direito Empresarial, merecem transcrição as palavras de Romain Dumas: “la liberté d’expression devant être protégée par la fondamentalisation du droit des affaires apparaîtra juste comme une prerrogative analogue à celle énoncée par la théorie générale des droits de l’homme, sans en être l’exacte replique. Plus précisément, la fondamentalisation du droit des affaires ne s’attachera qu’à ses aspects patrimoniaux. En effet, si la liberté d’expression permet d’une part, d’émettre librement une opinion, elle garantit d’autre part l’échange d’informations. Cette faculté d’échanger des informations prend une dimension éconimique en droit des affaires. En effet, elle va induire une relation entre deux pôles: un émetteur disposant de la faculté de diffuser celles-ci et un récepteur jouissant de la possibilité de les receivoir. Dans cette perspective, le pôle émetteur sera un professionnel de la vie des affaires alors que le récepteur constituera le public ou l’ensemble des consummateurs, l’émetteur cherchant à tirer un profit direct ou indirect de la diffusion”. DUMAS, Romain. Essai sur la fondamentalisation du droit des affaires. Paris: L’Harmattan, 2008. p. 253. 14 Sobre a função social da propriedade dos bens de produção, ver COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, vol. 63, p. 76, 1983.

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A CF/88 confere, ademais, o status de direito fundamental ao direito de utilização

exclusiva dos inventos industriais, bem como à proteção à criações industriais, às marcas, aos

nomes empresariais e a outros signos distintivos utilizados pelo empresário (art. 5, inc.

XXIX).

Também não se pode deixar de mencionar o direito fundamental à igualdade, o

qual confere a garantia de que, ressalvadas as restrições de ordem constitucional, as condições

para o exercício da empresa devem ser únicas dentro do território brasileiro, o que importa na

denominada unidade do mercado no território nacional.15

Com efeito, o reconhecimento desses direitos como fundamentais é de imensa

importância para o desenvolvimento da atividade econômica pelos particulares, haja vista

estarem protegidos contra eventuais intervenções estatais abusivas.16

Neste contexto, resta constatado que o exercício da atividade empresarial goza de

status constitucional, e que o titular da empresa acumula direitos fundamentais de várias

espécies, os quais poderão sustentar pretensões do empresário em razão do reconhecimento de

serem direitos subjetivos.17

Mas juntamente com o reconhecimento de direitos fundamentais daqueles que

exploram a atividade econômica, é importante consignar que a Constituição Federal

reconhece direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa, e cuja titularidade varia

consideravelmente, motivo pelo qual são impostas, pelo texto constitucional,

restrições/limitações ao direito de empresariar, o que possibilita afirmar que o Direito

Constitucional “assimila todos os aspectos da empresa para conferir uma dimensão de defesa

dos direitos fundamentais”.18

Cumpre, assim, examinar quais são os direitos fundamentais que gravitam em

torno da empresa para, então, avaliar as restrições constitucionais ao exercício da atividade

econômica organizada.

15 Como bem sintetiza a doutrina espanhola, a unidade do mercado no território nacional se baseia, de um lado, na igualdade de todos os membros de uma comunidade, e de outro, na liberdade de locomoção e estabelecimento das pessoas, e na livre circulação de bens em todo o território nacional. RODRÍGUEZ-CANO, Alberto Bercovitz. Apuntes de Derecho Mercantil. Cizur Menor : Thomson Aranzadi, 2006. p. 102. 16 É neste sentido a opinião de Rodríguez-Cano, que, ao comentar os direitos fundamentais previstos na Constituição espanhola que se relacionam com a exploração da atividade econômica, assevera: “el reconocimiento de esos derechos fundamentales en la propia Constitución tiene la importante consecuencia de que sólo por ley puede regularse el ejercicio de esos derechos y libertades, existiendo además un límite al contenido de la ley que regule esas materias, puesto que “en todo caso deberá respetar su contenido esencial” (art. 53.1 CE)”. RODRÍGUEZ-CANO, Alberto Bercovitz. Apuntes de Derecho Mercantil (...), ob. cit., p. 101. 17 Sobre o reconhecimento dos direitos fundamentais como direitos subjetivos, ver HESSE, Konrad. Elementos (...), ob. cit., p. 228; e DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 63. 18 DRAGO, Guillaume.De Quelques Apports du Droit Constitutionnel (...), ob. cit., p. 300.

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2.2 Os direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa

A análise dos direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa e que em

relação a ela se encontram em situação de subordinação e dependência deve partir da

compreensão do caráter dinâmico da empresa.

Note-se, de início, que a empresa consiste no fenômeno econômico-social que

sucedeu o comércio. Enquanto este consiste na “atividade humana destinada a promover e

facilitar a troca”,19 mediante a aproximação de produtores e consumidores; a empresa

compreende a organização dos fatores de produção para o exercício de uma atividade de

produção ou circulação de bens ou de serviços. Consoante observação de Eduardo Goulart

Pimenta, os economistas enxergam na empresa:

[...] a soma de recursos naturais (fator terra), mão-de-obra (fator trabalho), dinheiro (fator capital) e conhecimentos técnicos (fator tecnologia), para que, devidamente organizados por uma pessoa física ou jurídica (o empresário), gerem bens ou serviços.20

Verifica-se que a complexidade da empresa e a imprecisão terminológica do

legislador (pátrio e alienígena) acabaram impossibilitando que a doutrina chegasse a um

consenso sobre o seu conceito e natureza, em especial pelo fato de a empresa apresentar, sob

o ponto de vista jurídico, mais de um perfil, como observara Alberto Asquini. Segundo o

entendimento do jurista italiano, a empresa pode ser compreendida de acordo com os

seguintes perfis:

a) Perfil subjetivo: a empresa como empresário, ou seja, o sujeito de direito

(pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado) que exerce profissionalmente uma

atividade de produção ou troca de bens ou serviços para o mercado;

b) Perfil funcional: a empresa como atividade empresarial. Compreende-se como

atividade empresarial a série de operações (fatos materiais e atos jurídicos) que se sucedem no

tempo, ligadas entre si com o objetivo de recolher e organizar a força de trabalho e o capital

necessários para a produção ou distribuição dos determinados bens ou serviços;

19 ROCCO, Alfredo. Princípios de Direito Comercial. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. p. 53. 20 PIMENTA, Eduardo Goulart. Eficiência econômica e autonomia privada como fundamentos da recuperação de empresas no direito brasileiro. In: FIUZA, César et al (coord.). Direito Civil: Atualidades II. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 294.

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c) Perfil patrimonial e objetivo: a empresa como patrimônio “aziendal” ou como

estabelecimento. A empresa se identifica com o complexo de bens (materiais e imateriais,

móveis e imóveis) que são utilizados pelo empresário no exercício de sua atividade;

d) Perfil corporativo: a empresa como instituição. A empresa é uma organização

especial de pessoas que é formada pelo empresário e pelos empregados, seus colaboradores.

Estes formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual

se fundem os fins individuais do empresário e dos singulares colaboradores: a obtenção do

melhor resultado econômico na produção.21

É de se consignar, ademais, a compreensão da doutrina francesa, que, apesar de

reconhecer a inexistência de um consenso, enxerga a empresa como “unidade econômica de

produção, um conjunto de bens e pessoas afetadas a um objetivo comum de produção”;22 ou

define a empresa simplesmente como “uma unidade de produção comercial”,23 considerando-

se como “comercial” a produção24 em que os bens ou serviços são fornecidos aos seus

destinatários contra o pagamento de um preço.25

Os estudiosos do law&economics (análise econômica do direito), por sua vez,

classificam a empresa em relação ao seu perfil estático (conjunto de fatores produtivos

organizados), ou dinâmico (conjunto de contratos estabelecidos pelo empresário).26

Registre-se que, apesar da proximidade da sugestão do perfil dinâmico desta

corrente com o perfil funcional de Asquini, importa destacar a diferença de enfoque que se dá

ao conjunto de contratos organizados pelo empresário. O que confere à análise do

law&economics uma característica única é vislumbrar na empresa, sob seu perfil dinâmico,

um instrumento de minimização dos “custos de produção” e dos “custos de transação”.27 É o

que se extrai das observações de Ronald Coase, no sentido de que:

21 ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro.São Paulo, ano, n. 104, p. 114-124, mês e ano de publicação. 22 LYON-CAEN, Gérard; LYON-CAEN, Antoine. La “doctrine” de l’entreprise. In: Dix ans de droit de l’entreprise. Paris: Librairies Techniques, ano. p. 604-605. 23 DIDIER, Paul; DIDIER, Philippe. Droit Commercial. Tome I. Paris: Economica, 2005. p. 208. 24 O termo produção é concebido, para esta vertente doutrinária, como toda a criação de valor para bens ou serviços. 25 DIDIER, Paul; DIDIER, Philippe. Droit Commercial (...), ob. cit., p. 208. 26 PIMENTA, Eduardo Goulart. Eficiência econômica (...), ob. cit., p. 296. 27 Eduardo Goulart Pimenta adverte que o termo “custos de transação” pode assumir inúmeros sentidos. E adota um deles (custos de transação como aquilo que se precisa pagar ou de que se deve abrir mão para constituir, manter, proteger ou transferir os direitos e deveres decorrentes de uma relação contratual) para concluir que a empresa traz consigo estes custos (de transação), e aqueles de produção. In: Eficiência econômica (...), ob. cit., p. 298-299.

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[...] apesar de a produção poder ser implementada de maneira totalmente descentralizada por meio de contratos celebrados entre indivíduos, o fato de que existe um custo para participar destas transações significa que as empresas surgem para organizar o que de outra maneira seriam transações de mercado toda vez que seus custos forem menores que os custos de realizá-las através do mercado.28 (tradução nossa)

É de se ressaltar, no entanto, que, para os fins deste estudo, mais importante do

que averiguar o que impulsiona o empresário a organizar os fatores de produção para explorar

a atividade econômica é constatar que os contratos por ele organizados envolvem direitos

fundamentais de terceiros.

A rigor, a compreensão de que os direitos que gravitam em torno da empresa são

também direitos fundamentais, e que entre eles não há uma hierarquia, é de importância ímpar

para solucionar os freqüentes conflitos decorrentes da exploração empresarial.

De fato, o antagonismo de interesses daqueles envolvidos direta ou indiretamente

com a atividade empresarial é algo natural, sendo certo que esta constatação deu ensejo ao

surgimento da utilização do “interesse da empresa”29 como técnica de conciliação dos

interesses em conflito, impondo limites à coordenação da empresa pelo empresário,30 em

especial por enxergar no exercício da empresa não só um direito subjetivo, mas um verdadeiro

poder. E o que diferencia este daquele é que o detentor do poder deve respeitar e, em certa

medida, contribuir para a concretização de outros interesses (direitos) quando da busca de

realização dos seus. Por isso, há desvio do poder do empresário quando ele desconsidera o

“interesse da empresa”.31

Impende esclarecer que, não sendo a empresa detentora de direitos e obrigações,

obviamente não se poderia admitir um interesse de sua titularidade. É importante insistir que,

quando se faz menção ao “interesse da empresa”, o objetivo é estabelecer um instrumento de

28 COASE, Ronald H. The firm, the market, and the law. Chicago: University of Chicago, 1988. p. 7. No original: “(…) although production could be carried out in a completely decentralized way by means of contracts between individuals, the fact that it costs something to enter into these transactions means that firms will emerge to organize what would otherwise be market transactions whenever their costs were less than the costs of carrying it out through the market”. 29 Registre-se que, uma vez compreendida a empresa como atividade econômica organizada, obviamente ela não pode ser titular de interesses ou direitos. Deste modo, a referência ao “interesse da empresa” não identifica nesta última um centro de direitos e obrigações autônomos, consistindo, na verdade, em técnica para a solução dos direitos e interesses antagônicos envolvidos na atividade econômica organizada pelo empresário (a empresa). 30 Como relata Gérard Couturier, “l’intérêt de l’entreprise, on l’a dit, est d’abord évoqué comme fondament et limite des pouvoirs reconnus au chef d’entreprise en tant que tel”. COUTURIER, Gérard. L’intérêt de l’entreprise. In: Les orientations sociales du droit contemporain – écrits en l’honneur du Professeur Jean Savatier. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. p. 151. 31 É neste sentido o escólio de Gérard Couturier, para quem “la logique du pouvoir commande le contrôle de son détournement. Il s’agit ici du détournement de pouvoir que commettrait le chef d’entreprise qui prétendrait user de ses pouvoirs sans que ce soit dans l’intérêt de l’entreprise”. COUTURIER, Gérard. L’intérêt de l’entreprise, ob. cit., p. 151.

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controle do poder do empresário, ou melhor, e como já foi dito, uma técnica de conciliação

dos interesses antagônicos que giram em torno da atividade coordenada pelo empresário. O

“interesse da empresa” é, como observa Gerard Couturier, uma noção muito mais funcional

do que conceitual.32

Insista-se que esta conciliação de “interesses” se torna não só desejável, mas

cogente, quando se conclui que o que está em jogo são verdadeiros direitos fundamentais, em

relação aos quais não se pode admitir qualquer tipo de prevalência prima facie.

Neste diapasão, é de se consignar ser atribuição do legislador compatibilizar e

harmonizar a concretização desses direitos concorrentes. E como já foi dito, se diante de um

caso concreto restar demonstrada a omissão ou ineficiência de tutela de algum direito

fundamental, sua invocação como direito subjetivo a fundamentar a pretensão de seu titular

torna-se medida de inegável legitimidade.

2.2.1 Os trabalhadores

Com efeito, o primeiro centro de direitos fundamentais que depende do exercício

da empresa diz respeito aos trabalhadores. A partir do momento em que se averigua que a

exploração da empresa consiste na coordenação e organização de capital e mão-de-obra, fica

nítida a relação de co-dependência existente entre esta (mão-de-obra) e a atividade

desenvolvida pelo empresário.

Porém essa co-dependência não tem o condão de ocultar a situação de inegável

subordinação em que se encontram os empregados. A exploração do trabalho pelo capital já

foi objeto de inúmeras investigações científicas, destacando-se, dentre elas, os textos que

adotam uma linha marxista e revelam o efeito ilusório provocado pela liberdade burguesa, no

sentido de que o contrato de trabalho seria fruto da liberdade (formal) e da igualdade (formal)

outorgadas a todos os membros de uma determinada comunidade.33

32 COUTURIER, Gérard. L’intérêt de l’entreprise (...), ob. cit., p. 149. 33 Consoante observação de Márcio Brilharinho Naves, “as categorias de direito impedem que as determinações do capital sejam visíveis. O trabalhador não identifica, não reconhece a exploração do capital, justamente porque ele vive imerso no campo imaginário da sua liberdade, da liberdade e da igualdade burguesas. A exploração capitalista é encoberta pelo efeito ilusório do direito: a extração da mais-valia, no processo de produção capitalista é encoberta pela relação jurídica de compra e venda a que se submetem, por sua livre vontade, dois sujeitos de direito formalmente iguais. Quando o trabalhador celebra o contrato com o capitalista não é possível perceber aí qualquer desigualdade na relação entre esses agentes, pois, aparentemente, o trabalhador recebe pelo

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Em razão do reconhecimento desta vulnerabilidade em relação ao empresário é

que foram outorgados inúmeros direitos fundamentais aos trabalhadores (arts. 7º a 11, da

CF/88), os quais variam desde a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, até

a liberdade de associação profissional ou sindical, e a garantia do direito de greve.

Some-se a isso o fato de que a valorização do trabalho figura como um dos

fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. IV, da CF/88), assim como o

trabalho consiste na base sobre a qual se funda a ordem social prescrita constitucionalmente

(art. 193).

Estas normas diretamente incidentes sobre as relações sob exame não excluem

outras também a elas diretamente aplicáveis, em especial aquela que trata do direito à

igualdade, que interdita, por exemplo, remunerações diferenciadas, única e exclusivamente,

com base na raça, cor, idade etc.

No âmbito do direito das sociedades anônimas, o legislador pátrio reconheceu

àqueles que entregam sua força de trabalho à empresa direitos como a participação nos

lucros34 e a possibilidade de terem representação no Conselho de Administração.35

2.2.2 Os colaboradores

A descentralização das etapas que compõem o ciclo de produção e distribuição

para o mercado36 tem como conseqüência o surgimento de verdadeiros “centros de

cooperação empresarial”.37 Esses “centros de cooperação” podem surgir pela ordem natural

trabalho dispendido um equivalente – o salário. Não há, portanto, aparentemente, nenhuma exploração e nenhuma dominação entre os agentes envolvidos na troca”. NAVES, Márcio Brilharinho. Direito, circulação mercantil e luta social. ALVES, Alaôr Caffé et al. In: Direito, sociedade e economia. Barueri: Manole, 2005. p. 30-31. 34 A participação dos empregados nos lucros encontra previsão expressa em norma constitucional (art. 7º, inc. XI), e na legislação infraconstitucional (LSA, art. 190, e Lei 10.101/2000 – que regula a matéria). 35 É o que estabelece o parágrafo único, do art. 140, da LSA, verbis: “O estatuto poderá prever a participação no conselho de representantes dos empregados, escolhidos pelo voto destes, em eleição direta, organizada pela empresa, em conjunto com as entidades sindicais que os representem”. 36 Segundo Ronald Coase, “markets are institutions that exist to facilitate exchange, that is, they exist in order to reduce the cost of carrying out exchange transactions”. COASE, Ronald. The firm, the market (…), ob. cit., p. 7. 37 Em outra oportunidade tentamos descrever algumas das razões que conduzem à formação dos “centros de cooperação”, verbis: “As modificações abruptas e cada vez mais velozes do ambiente econômico, o aparecimento de novas tecnologias, que num piscar de olhos tornam a mercadoria ou o serviço oferecido pelo empresário verdadeiramente obsoleto, são algumas das externalidades que exigem do agente econômico a formação de verdadeiros “centros de cooperação”, concretizados por meio de contratações das mais diversas naturezas, algumas delas desprovidas de regulamentação especial (como sói ocorrer com o factoring) e outras

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do mercado, ou por iniciativa e comando de um determinado agente econômico. Nestes tipos

de formatação empresarial cada uma das etapas que compõem o ciclo de produção ou

distribuição corresponde a uma empresa (atividade econômica organizada), a qual, como já se

registrou, consiste no exercício de um direito fundamental.

Nota-se, portanto, que, diante da existência de direitos fundamentais de todos

aqueles que compõem os “centros de cooperação”, a concretização desses direitos acaba

consistindo em um fim a ser alcançado e respeitado por cada um e por todos eles.

2.2.3 Os financiadores

É pouco comum o empresário explorar a empresa mediante a conjugação de

capital e mão-de-obra próprios. Aliás, sob o ponto de vista econômico, o exercício da empresa

com o emprego de capital de terceiros revela-se, em algumas situações, mais aconselhável do

que a aplicação de recursos próprios.

A rigor, a entrega de recursos ao empresário poderá ocorrer mediante um contrato

isolado de um agente econômico superavitário, ou por meio de um contrato de concessão de

crédito que se insira na empresa daquele que explora a atividade de concessão de crédito

(instituições financeiras).38 Nestes casos, a devolução da quantia objeto do financiamento

consiste em medida necessária para que seja preservada a empresa daquele que explora a

concessão de crédito, sobressaindo, via de conseqüência, a natureza constitucional dos

direitos dos financiadores das atividades econômicas.

com dedicação legislatória exclusiva (é o caso da representação comercial)”. BOTREL, Sérgio. Reflexos da teoria contratual contemporânea na resilição unilateral da representação comercial. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,.São Paulo, ano, vol. 140, p. 39, mês e ano de publicação. 38 Ex vi do art. 17, da Lei nº4.595/64, “consideram-se instituições financeiras, para efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”. Importa esclarecer que não é o simples empréstimo de dinheiro que caracteriza a atividade típica das instituições financeiras, mas a intermediação e mobilização do crédito, por meio do recebimento de valores dos agentes econômicos superavitários, e da mobilização do capital inerte em favor daquelas pessoas que dele necessitam. Trata-se do que se convencionou chamar de “binômio bancário”, no sentido de que os bancos tomam dinheiro emprestado a crédito, e dão também por empréstimo, importando revelar que este expediente (o qual constitui, portanto, a atividade principal das instituições bancárias) pressupõe a realização de pelo menos dois contratos: o contrato de depósito (operação bancária passiva, por figurar a instituição financeira como devedora) e o contrato de mútuo (operação bancária ativa, por figurar a instituição financeira como credora). Sobre o tema, conferir: PAULIN, Luiz Alfredo. Das instituições financeiras de fato ou irregulares – análise com base na Lei N. 4.595/64. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, v. 36, n. 110, p. 199 e SS., abr.-jun. 1998; BARRETO, Lauro Muniz. Direito Bancário, São Paulo: Universitária de Direito, 1975; e SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. São Paulo: Atlas, 2005. p. 12-30.

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Nesta ordem de idéias, conclui-se que em torno da empresa poderão gravitar,

também, direitos fundamentais dos seus financiadores.

2.2.4 Os consumidores

O reconhecimento dos direitos do consumidor como direitos fundamentais

confere nova direção ao desenvolvimento da atividade econômica. Isto porque fica imposto ao

empresário um dever de resultado, no sentido de colocar no mercado de consumo produtos ou

serviços seguros, e que atendam as legítimas expectativas do destinatário final daquilo que é

oferecido pelo empresário.

Estas premissas genéricas são extraídas não só da exegese da cláusula geral de

proteção do consumidor (CF/88, art. 5º, inc. XXXII) e da dignidade da pessoa humana, como

do próprio sistema consumerista instaurado pela Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor),39 o qual regulamenta a limitação constitucional do art. 170, inc. V.

2.2.5 Os concorrentes

Se a legitimidade do exercício da liberdade constitucionalmente garantida está

subordinada à manutenção da liberdade de todos40, obviamente não se pode conceber o

exploração da empresa com o objetivo de eliminar ou diminuir a competição por meios

desleais. Afinal, é importante lembrar que o direito de estar no mercado consiste em um

direito fundamental.41

39 Sobre os fundamentos e evolução da tutela do consumidor, conferir: DE LUCCA, Newton. Direito do consumidor: teoria geral da relação de consumo. São Paulo: Quartier Latin, 2003. 40 É esta a conclusão a que se chega por meio das palavras de Habermas, verbis: “Uma ordem jurídica não pode limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de modo que ‘a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos”. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneicheler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 52. 41 Neste sentido, Lafayete Josué Petter argumenta que o “princípio da liberdade de iniciativa há de compreender a liberdade de acesso ao mercado e a liberdade de permanência neste mercado”. In: Princípios constitucionais da

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Por isso, o exercício da liberdade do empresário deve respeitar o mesmo direito

daqueles que concomitantemente pretendam desenvolver a mesma atividade, seja em

proporções menores, maiores, ou equivalentes.

2.2.6 Os sócios

É sabido que a empresa pode ser desenvolvida individual ou coletivamente. Nesta

segunda hipótese, a atividade econômica será explorada por uma sociedade, que adquirirá

autonomia patrimonial com o ato do registro no órgão próprio.42

A rigor, uma vez personificada, a sociedade passa a ser titular de direitos e

obrigações próprios, competindo aos administradores43 conduzir os negócios de acordo com

os deveres de lealdade, diligência, e informação,44 respeitando, obviamente, os direitos

fundamentais que gravitam em torno da atividade, dentre os quais se encontram, também, os

direitos fundamentais dos sócios.

Os direitos fundamentais dos sócios se resumem, basicamente, ao direito da

liberdade de se associar (e de não permanecer associado), ao direito de propriedade (que

incide não sobre o patrimônio social, mas sobre as quotas ou ações em que se divide o capital

social), e ao direito de informação. A compreensão de que estes direitos devem ser

ordem econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 185. 42 Importante lembrar que nada impede o exercício da atividade empresarial por uma sociedade não personificada, como é o caso da sociedade em comum. Neste caso a sociedade não adquire autonomia patrimonial, nem titularidade negocial, mostrando-se, relevante, contudo, registrar que o Código Civil criou a figura do “patrimônio especial”, constituído pelos bens e dívidas relacionados à atividade (art. 988). Como pondera Gonçalves Neto, tal patrimônio especial é destacado do patrimônio individual dos sócios, pertencendo, em regime de compropriedade, a todos eles, o que implica a impossibilidade de qualquer dos sócios exercer isoladamente os poderes inerentes ao domínio, salvo para fins de transferência de sua quota-parte ideal, porquanto este patrimônio fica submetido às disposições legais referentes ao condomínio voluntário. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 138. 43 Em que pese a condução dos negócios sociais ser empreendida por intermédio dos administradores, a coordenação da atividade é exercida, em última instância, por quem detém o controle. Este (o controle), contudo, pode assumir inúmeras modalidades, estudadas no capítulo seguinte. 44 Ao dever de informação imposto aos administradores corresponde o direito à informação dos sócios, o qual é um direito fundamental. (CF, art. 5º, inc. XIV). Acerca do princípio da informação no Direito Empresarial, seus fundamentos e aplicação, ver GABRICH, Frederico de Andrade. O princípio da informação. 2007. 197 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de de Direito, Belo Horizonte, 2007.

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qualificados como fundamentais45 é necessário para que se possa promover a sua conciliação

com os demais direitos que gravitam em torno da empresa.

2.2.7 O meio ambiente

A conscientização de que os recursos naturais não renováveis, e também os

renováveis (como produtos agrícolas), podem tornar-se insuficientes para responder às

necessidades de todos conduziu ao reconhecimento do direito ao meio ambiente como um

direito fundamental de titularidade difusa.

O custo social do desenvolvimento da atividade econômica de acordo com o

modelo de produção em massa46 deu ensejo a investigações que propõem a exigibilidade de

um desenvolvimento sustentável, o qual corresponde a um desenvolvimento que responda às

necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem

as suas (necessidades).

A rigor, a proteção ao meio ambiente consiste em um dos três pilares sob os quais

se apóia a idéia de desenvolvimento sustentável, a saber: a) desenvolvimento econômico; b)

desenvolvimento social; c) proteção ao meio ambiente.47

Nesta ordem de idéias, fica patente que o direito a um meio ambiente sadio

constitui um direito fundamental que deve servir de limites ao exercício da empresa, como

expressamente estatui o art. 170, inc. VI, da Constituição Federal.

45 É preciso não confundir os direitos ditos fundamentais, por assim serem qualificados pela ordem constitucional, com os direitos dos sócios que a doutrina costuma qualificar como fundamentais ou essenciais, e que em tema de Sociedade Anônima resumem-se àqueles elencados no art. 109 da LSA. 46 Sobre o modelo econômico vigente e seus perigos, importa registrar as palavras de Camacho, Fernández e Miralles, no sentido de que “implica un alto nivel de consumo de recurso naturales, por exigencia no sólo de la producción, sino también del consumo. Es un modelo que considera un valor de nuestro tiempo la capacidad del ser humano para dominar la naturaleza, sin reparar en los posibles daños irreparables que ésta puede sufrir; y es un modelo, además, que, para mantener el ritmo de crecimiento económico, precisa de un alto nivel de consumo por parte de la sociedad. Si a esto se añade la aspiración, lícita y comprensible, de los países más pobres a alcanzar niveles de bienestar equivalentes a los de los países industrializados, no es superfluo preguntarse si el planeta resistirá a esta presión sobre sus recursos”. CAMACHO, Ildefonso; FERNÁNDEZ, José L.; MIRALLES, Josep. Ética de la empresa. Bilbao: Desclée, 2002. p. 238-239. 47 TROCHON, Jean-Yves; VINCKE, François. L’entreprise face à la mondialisation: opportunités et risques. Bruxelles: Bruylant, 2006. p. 92. Consoante esclarecimento destes autores, em termos mais concretos o desenvolvimento sustentável significa uma preocupação que visa a garantir “un développment économique équilibré et équitable; des hauts niveaux d’emploi, de cohésion sociale et d’intégration; un niveau élevé de protection de l’environnement et une utilisation responsable des ressources naturelles; des décision cohérentes dans un systéme politique ouvert, transparent et responsable; une coopération internationale efficace afin de promouvoir un développment durable au niveau mondial”.

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2.3 As restrições/limitações constitucionais ao exercício da empresa

Diante da constatação de uma verdadeira rede de direitos fundamentais que giram

em torno da atividade desenvolvida pelo empresário, coube ao constituinte instituir restrições

ao exercício da empresa, com o nítido objetivo de evitar que a liberdade atribuída ao

empresário corresponda à eliminação dos direitos fundamentais daqueles que com ele se

relacionam direta ou indiretamente.

Com efeito, as restrições em comento encontram-se distribuídas ao longo do texto

constitucional, muito embora seja possível afirmar que o art. 170 constitui não só a

confirmação do direito constitucional de empresariar, mas o centro das limitações a esta

liberdade.

A primeira observação de relevo relacionada ao art. 170 da Constituição brasileira

diz respeito à natureza promocional e não finalística conferida à livre iniciativa. A liberdade

outorgada aos particulares por eles mesmos e para eles mesmos, na qualidade de co-autores e

destinatários do ordenamento,48 não constitui em um fim em sim mesma.

O objetivo de se instituir a livre iniciativa é possibilitar a promoção do

desenvolvimento da personalidade humana, chamando a atenção o fato de que o caput do

artigo em exame não deixa dúvidas quanto à visão solidarista em que se apóia o texto

normativo. Afinal, ao prescrever que a livre iniciativa “tem por fim assegurar a todos

existência digna”, fica patente o abandono da noção de “sujeito isolado” para enxergar a

pessoa humana como um “sujeito situado”, merecendo registro as lições de Ricardo Luis

Lorenzetti,49 no sentido de que situar o sujeito importa estabelecer um modo de relação com

os demais indivíduos e com os bens públicos.50

Esclareça-se que o modo de interação entre os indivíduos e destes com os bens

públicos (como o meio ambiente) encontra na Constituição algumas balizas que certamente

não podem ser consideradas como imposições de modo de vida. O que parece consistir na

exegese mais adequada do texto constitucional é compreender que as balizas para o exercício

da liberdade não impõem ao empresário qualquer tipo de dever assistencialista. Não é dever

daqueles que desenvolvem a livre iniciativa promover a busca ao pleno emprego ou reduzir as

desigualdades regionais e sociais. Estes deveres competem ao Estado.

48 Esta abordagem, que foi desenvolvida no capítulo anterior, consiste na relação de complementaridade da autonomia privada e da autonomia pública, sustentada por Jürgen Habermas. 49 LOREZENTTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 83. 50 O solidarismo é extraído, ademais, do art. 3º, inc. I, da Constituição.

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Àqueles que se dispõem a explorar a empresa, o art. 170 da Constituição impõe

observância aos princípios da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa

do consumidor e da defesa ao meio ambiente, com a finalidade de possibilitar a convivência

dos direitos fundamentais do empresário e daqueles que direta ou indiretamente sentem e/ou

sofrem os efeitos da empresa.

2.3.1 Princípio da função social da propriedade

Enquanto o inc. II, do art. 170, da Constituição, reconhece a propriedade privada

como um dos princípios gerais da atividade econômica, o inciso subseqüente estabelece a

“funcionalização” social da propriedade.

A técnica da funcionalização dos institutos jurídicos quebra a hegemonia da sua

concepção estrutural. A teoria funcional analisa o papel e os efeitos de um instituto ou norma

jurídica dentro de um sistema ou estrutura,51 sendo certo que é por meio da análise funcional

que se deve promover a crítica a um determinado instituto, pela consideração de sua eventual

função negativa, conforme advertência de Norberto Bobbio.52

De fato, quando se tem em mente que a lógica da análise funcional consiste “na

lógica da relação meio-fim, para a qual um fim, uma vez alcançado, torna-se meio para a

realização de outro fim, e assim por diante, até se fixar em um fim proposto ou aceito como

último”,53 resta patente a dificuldade de estabelecer uma função para os institutos jurídicos.

Afinal, a propriedade, o contrato, a família, a empresa, dentre outros, podem servir a fins os

mais variados. E a dificuldade se expande quando resta imposta a observância a um fim

social.

E mais: em se tratando de propriedade, é de se concordar que sua divisão em

categorias, decorrente da natureza dos bens que constituem o objeto da relação jurídica, é

imprescindível para que se possa analisar as diferentes funções desempenhadas por bens que

compõem cada uma das categorias.

51 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 363. 52 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007. p. 92. 53 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função (...), ob. cit., p. 105-106.

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A divisão proposta por Adolf Berle tem sido bastante divulgada pela doutrina

pátria. Segundo o professor da Universidade de Columbia, a propriedade comporta duas

categorias: a propriedade de consumo e a propriedade produtiva. A singularidade desta

segunda modalidade de propriedade consiste em sua vinculação à produção, manufaturas,

serviços ou comércio, com a finalidade de oferecer, por certo preço, bens ou serviços ao

público, com os quais seu titular espera obter um lucro54.

Fazendo uso desta classificação, sustenta-se que há uma propriedade que recai

sobre bens de consumo – compreendidos como bens utilizados imediatamente para dele se

extrair apenas a vantagem funcional que ele mesmo permite –, enquanto existe a propriedade

que recai sobre bens de produção – em que se obtém do bem não uma vantagem que lhe é

natural, mas a produção de mercadoria.55

Esclareça-se, no entanto, que não é somente a natureza do bem que define a

inserção da propriedade em alguma das categorias propostas, mas também o destino que lhes

é conferido.

Outrossim, no âmbito das atividades econômicas, dissocia-se a propriedade

passiva da ativa. Como registra Moema Augusta Soares de Castro:

Nos dias atuais, podemos dizer que encontramos a empresa na fase do capitalismo de grupos, caracterizada pela dissociação entre propriedade passiva e ativa (gestão). Isso não quer dizer que não co-existam pacificamente os dois modelos: o antigo, em cuja base encontra-se o empreendedor inteiramente identificado com o próprio empreendimento. Vale dizer, a micro ou a empresa de pequeno porte, em que o empresário, pessoa física, dirige e praticmente executa ao mesmo tempo todas as atividades inerentes ao negócio. Ou seja, ele faz tudo sozinho. No seu negócio as propriedades passiva e ativa estão associadas. O novo modelo relativo a grandes empresas e a grupos de empresas reflete a dissociação entre a propriedade passiva e ativa. Isto é, os acionistas, os donos do capital nem sempre são os dirigentes do empreendimento. Nos grandes negócios, na atividade econômica de vulto, formou-se uma classe de categorizados profissionais ciosos e orgulhosos de sua posição, os managers, os executivos. A esses homens, com a dissociação existente e crescente entre propriedade e o controle dos bens, tem sido entregue o controle dos negócios [...]56

54 BERLE, Adolf A. Propriedade, produção e revolução. Prefácio edição revista de BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 6. 55 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito civil e direito do consumidor: princípios. In: Pfeiffer, Roberto Augusto Castellanos; PASQUALOTTO, Adalberto (coord.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 – convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 116. 56 CASTRO, Moema Augusta Soares de. Manual de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 31.

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Juntamente com estas classificações, a doutrina tem manifestado o entendimento

de que o reconhecimento e a imposição da função social da propriedade imputam ao

proprietário deveres junto à coletividade,57 consistindo a propriedade, portanto, em um

verdadeiro poder-dever.58

Na opinião de Fábio Konder Comparato, em se tratando de propriedade sobre

bens de produção, o poder-dever do proprietário consiste em explorar a empresa, por meio da

utilização dos bens de produção, para a realização dos interesses coletivos.59 Restaria saber o

que se deve compreender por interesses coletivos ou públicos, classicamente associados ao

interesse comum da sociedade, ou ao interesse do Estado.

Na contemporaneidade parece que a questão merece outro enfoque. Isso porque,

de acordo com as modernas proposições teórico-constitucionais, o interesse público não se

resume à busca de um “bem comum”. A partir do momento em que se reconhece a liberdade

de projetos de vida em uma sociedade pluralista, o interesse da sociedade e de todos os seus

membros passa a ser a existência digna de cada pessoa, respeitadas sua individualidade,

anseios, necessidades e limitações.

De fato, “para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo

constitucional, a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia

destes direitos torna-se também um autêntico interesse público”,60 sendo certo que:

[...] muitas vezes os direitos fundamentais representam obstáculos impostos contra as preferências manifestadas pela maior parte dos integrantes de uma sociedade política. E este é, aliás, um dos papéis mais importantes dos direitos fundamentais, que acaba sendo esvaziado pela teoria utilitarista.61

Neste contexto revela-se importante descartar a idéia de que um direito

fundamental (como é o caso da propriedade) deva servir de instrumento para a realização de 57 Neste sentido, César Fiuza, para quem “dizer que a propriedade é o direito de exercer com exclusividade o uso, a fruição, a disposição e a reivindicação de um bem, é dizer muito pouco. É esquecer os deveres do dono e os direitos da coletividade. Ao esquecer os direitos da coletividade, ou seja, do outro, do próximo, estamos excluindo-o. É esquecer, ademais, o caráter dinâmico da propriedade, que consiste em relações que se movimentam, que se transformam no tempo e no espaço. Sem essa visão da propriedade como fenômeno dinâmico, é impossível se falar em função social e, muito menos, em função econômica”. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 746. 58 Esta leitura doutrinária da função social da propriedade parece ser influenciada pelo texto do art. 14º, da Lei Fundamental alemã, segundo o qual “a propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir para o bem-estar geral”. 59 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, vol. 63, p. 76, 1983. 60 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.83. 61 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados (...), ob. cit., p.63.

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um “interesse maior” ou comum a todos. À sociedade interessa que o direito fundamental

contribua para a dignidade de seu titular (este o fim a ser alcançado pela propriedade),

sujeitando-se o exercício dessa liberdade, contudo, à preservação da liberdade dos demais

membros da comunidade jurídica (este o limite decorrente da função social imposta à

propriedade), o que deve ser realizado por meio das técnicas de conciliação dos direitos

fundamentais estudadas no capítulo anterior.

No que interessa ao presente trabalho, cabe insistir que a peculiaridade da

propriedade sobre os bens de produção decorre do fato de que ela importará na exploração da

empresa, em torno da qual gravitam direitos fundamentais os mais diversos. É a dependência

e subordinação destes direitos fundamentais à atividade explorada pelo empresário que acaba

por colocá-lo em uma posição de grande potencial lesivo a direitos alheios. Daí a importância

da compreensão dos deveres do titular da empresa. Mas a imposição de respeito a direitos

alheios não é uma particularidade do empresário ou daquele que detém qualquer tipo de

poder. Trata-se de premissa elementar. A peculiaridade da posição do empresário é se

encontrar em situação de maior complexidade, dada a elevada gama de direitos fundamentais

subordinados à atividade por ele explorada.

Ressalte-se que esta subordinação não está relacionada, necessariamente, ao

exercício da propriedade sobre os bens de produção. Afinal, a exploração da empresa pelo

empresário pode ocorrer ainda que ele não seja o proprietário dos bens que integram o

estabelecimento.62 Estes podem ser utilizados pelo empresário em regime de usufruto,

locação, comodato etc. Esta constatação é importante para que se identifique quem, de fato,

explora a propriedade dos bens de produção e, via de conseqüência, assume a

responsabilidade de não atentar contra os direitos fundamentais que gravitam em torno da

atividade explorada.

Neste contexto, pode-se afirmar que a função social da propriedade consiste em

contribuir para a dignidade de seu titular (tanto no âmbito existencial como no âmbito

patrimonial, isto é, seja mediante a utilização natural do objeto da propriedade, seja por meio

da extração de frutos da exploração do objeto), sujeitando-se o exercício desta liberdade,

contudo, à preservação da liberdade e dignidade dos demais membros da sociedade.

Note-se, nesta ordem de idéias, que o empresário que exerce a propriedade sobre

os bens de produção cumprirá a função social mediante a observância dos parâmetros e

62 O estabelecimento (empresarial) é aqui referido no seu sentido técnico-jurídico, de modo a identificar o conjunto de bens corpóreos e incorpóreos organizados pelo empresário para o exercício da atividade econômica (empresa).

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limitações constitucionais, que objetivam, por sua vez, contribuir para a preservação e

harmonização das liberdades de todos aqueles que direta ou indiretamente sentem os efeitos

da empresa. E como a empresa exerce, naturalmente, uma função de relevo junto à sociedade,

mediante a produção de empregos, oferta de bens e serviços necessários à dignidade dos

consumidores, recolhimento de tributos etc., é adequado afirmar que o exercício legítimo da

empresa (o que ocorre quando a atividade se conforma com a normativa constitucional)

coincide com a função social da propriedade sobre os bens de produção.

2.3.2 Princípio da livre concorrência

A livre concorrência consiste, ao mesmo tempo, na confirmação da livre iniciativa

e em limitação ao seu exercício. Ao adotar a livre concorrência como princípio integrante da

ordem econômica, a Constituição afirma uma opção pelo regime de economia de mercado,

como observa João Bosco Leopoldino da Fonseca, sendo certo que “garante-se a liberdade de

concorrência como forma de alcançar o equilíbrio, não mais aquele atomístico do liberalismo

tradicional, mas um equilíbrio entre os grandes grupos e um direito de estar no mercado

também para as pequenas empresas”.63

Cumpre esclarecer que o sistema de economia de mercado implica (a) no livre

acesso ao mercado, de modo a não se admitirem barreiras que impeçam a aparição de novos

agentes dedicados a uma atividade econômica, assim como (b) na exigência de que todos os

agentes estejam sujeitos às mesmas regras e atuem independentemente entre si.64

Insista-se, ademais, que, como consignado alhures, o princípio da livre

concorrência outorga ao empresário o direito de utilizar de todos os meios (leais) para

conquistar a clientela (i), garante ao titular da empresa a proteção contra qualquer perturbação

do livre jogo da oferta e da demanda (ii), e confere a liberdade de fixação dos preços dos

produtos e serviços ofertados no mercado (iii).65

O conteúdo da livre concorrência proíbe, outrossim, as práticas restritivas de

concorrência, efetivadas por variadas formas. Dentre elas, destacam-se os acordos anti-

concorrenciais (realizados entre os próprios competidores, com o objetivo de diminuir ou

63 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 129. 64 RODRÍGUEZ-CANO, Alberto Bercovitz. Apuntes de Derecho Mercantil (...), ob. cit., p. 290. 65 FERRIER, Didier. La liberté du commerce (…), ob. cit., p. 682-685.

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eliminar a concorrência) e o abuso de posição dominante.66 Destaca-se, assim, que o enfoque

do princípio sob análise deixa de se situar na intencionalidade dirigida contra um concorrente,

para localizar-se na perseguição de manutenção da competitividade no mercado.67

Com efeito, as práticas restritivas da concorrência atentam não só contra o direito

de livre acesso ao mercado, como também reduzem (podendo até mesmo eliminar) o direito

de escolha dos consumidores. Daí ser possível afirmar que o princípio da livre concorrência

constitui instrumento indispensável à realização de direitos fundamentais daqueles que

pretendem exercer o direito de empreender68 e daqueles que encontram no mercado os

produtos e serviços necessários à sua existência digna.69

Não se pode olvidar, ainda, que a livre concorrência consiste em norma que

encontra também no Estado um dos seus destinatários, no sentido de que a intervenção estatal

no mercado deverá encontrar respaldo constitucional, sendo certo que, ressalvados os casos

previstos na própria Constituição,70 a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só

será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante

interesse coletivo (CF/88, art. 173).

66 A repressão às práticas anti-concorrenciais é regulada pela Lei nº8.884, de 11 de junho de 1994. 67 Neste sentido, ver SCHUARTZ, Luís Fernando. Poder econômico e abuso de poder econômico no direito de defesa da concorrência brasileiro. Revista de Direito Mercantil. São Paulo, n. 94, abr. – jun. 1994, p. 13-27. 68 Neste sentido, Rodríguez-Cano sustenta que “es indudable que las normas protectoras de la libre competencia son fundamentales para garantizar la igualdad de todos los españoles en el ejercicio del derecho de libre empresa en el marco de la economía de mercado”. RODRÍGUEZ-CANO, Alberto Bercovitz. Apuntes de Derecho Mercantil (...), ob. cit., p. 294. 69 Consoante observação de Calero e Guilarte, ao estabelecer a livre concorrência “el Derecho desea tutelar los interesses de los competidores que participan o desean participar en esa lucha y los de quienes se benefician de ella, o sea, los consumidores o el público en general. Porque la libertad de competencia (y su antecedente, la de iniciativa económica) se concede a los particulares no simplemente en beneficio del individuo que ejercita la actividad para que pueda desarrollar su personalidad siendo empresario (como creía el liberalismo individualista), sino más bien porque la libre competencia se considera beneficiosa para la sociedad, aun cuando esa libertad no pueda llevar a la competencia más allá de la que los economistas han llamado “practicable”, en el sentido de posible. Se piensa que la libre competencia, aun dentro de estos límites, es un medio de organizar la vida económica en la forma más conveniente posible para la comunidad en general. Por este motivo se pretende, mediante normas jurídicas, defender la competencia, tanto cuando se intenta limitar como cuando se desarrolla una competencia que, de consentirse, permita que los consumidores se vean atraídos no por el mejor empresario, sino por el que utiliza medios ilícitos que perjudican a los interesses generales y tambíen a sus competidores”. CALERO, Fernando Sánchez; GUILARTE, Juan Sánchez-Calero. Instituciones de Derecho Mercantil. Vol. I. Thomson, 2006. p. 171-172. 70 O art. 177 da CF/88 traz a atuação do Estado como agente econômico em regime de monopólio.

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2.3.3 Princípio da defesa do consumidor

A inserção da proteção do consumidor como princípio delimitador da livre

iniciativa encontra na tutela geral da pessoa humana sua justificativa,71 possibilitando a

concretização da igualdade material nas relações privadas. Afinal, na sociedade

contemporânea a produção em massa, a concentração do poder econômico, a técnica dos

contratos de adesão, o surgimento de produtos cujo modus operandi e conteúdo são do total

desconhecimento da grande maioria da população, e a utilização das técnicas de

convencimento de contratação (marketing)72 colocam o consumidor em situação

extremamente delicada e desfavorável,73 evidenciando a legitimidade da limitação

constitucional imposta àqueles que exercem o direito constitucional de empreender.

Com efeito, a defesa do consumidor significa, em última instância, recuperar a

autonomia da pessoa humana frente a um grupo de agentes econômicos que querem usá-la

como instrumento para o lucro.74 A defesa do consumidor prescreve a observância à regra

elementar de que a economia deve estar a serviço do homem, e não o contrário. Por isso, a

tutela do consumidor desemboca na “educação para o consumo”,75 a qual é imposta, no

ordenamento pátrio, por norma constitucional, encontrando, atualmente, vasta regulamentação

na legislação infraconstitucional.

É importante esclarecer, também, que o princípio sob exame se direciona não só

àqueles que oferecem bens ou serviços aos consumidores, mas também ao Estado. De fato, é

71 Consoante Eros Roberto Grau, o princípio da defesa do consumidor cumpre dupla função, “como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo a ser alcançado”. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 216. 72 Como observa Newton De Lucca, “a utilização de produtos ou serviços passou a decorrer muito mais da influência sedutora dos comerciais de televisão, do status conferido pelas grifes, da publicidade envolvente e irresistível que transporta as pessoas a uma espécie de “reino da fantasia”, do que das necessidades fundamentais do indivíduo e de sua família, como deveria ser”. DE LUCCA, Newton. Direito do consumidor (...), ob. cit., p. 52. 73 Esta descrição se assemelha àquela desenvolvida por Yves Guyon, verbis: “Le consommateur ne peut plus connaître la qualité d’un produit qui lui est offert tout “conditionné” et qui est de plus en plus complexe. Il n’a pas non plus toujours le temp de choisir de manière sereine. Il ne peut évidemment pas discuter les prix ou les conditions de la vente. Il risque d’être victime de tous les pièges du “marketing”. Il n’est pas devenu plus ignorant ou plus négligent que par le passé. Simplement les conditions du marché lui sont devenues plus défavorable (…). Une protection spécifique s’impose pour remplacer celle que les conditions du marché n’offrent plus”. GUYON, Yves. Droit des affaires. Tome I. Paris: Economica, 2003. p. 985 74 Com efeito, a utilização do consumidor como instrumento de lucro não constitui, por si só, conduta reprovável. Afinal, uma atividade econômica só se justifica se for superavitária. O que se almeja com a defesa do consumidor é evitar abusos e agressões à dignidade da pessoa humana. 75 CAMACHO, Ildefonso; FERNÁNDEZ, José L;.MIRALLES, Josep. Ética de la empresa (...), ob. cit., p. 185-186.

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de se atentar para as verba legis do texto constitucional do art. 5º, inc. XXXII,76 do art. 150,

§5º,77 e da determinação prevista no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT).78

Com efeito, a determinação constitucional de promoção, pelo Estado, da defesa do

consumidor, concretizou-se na Lei nº 8.078/90, a qual institui um sistema que objetiva

conferir ao consumidor segurança (estabelecendo a responsabilidade de natureza objetiva aos

fornecedores e proibindo a comercialização de produtos e serviços que coloquem em risco a

saúde ou segurança do consumidor), liberdade de escolha (exigindo a observância do dever de

informação e proibindo e sancionando a publicidade enganosa) e equilíbrio nas relações

travadas com os fornecedores (considerando nulas as cláusulas abusivas e possibilitando a

revisão dos contratos).

Conclui-se, pois, que as normas que concretizam a defesa do consumidor

conferem verdadeiro “direcionamento” à livre iniciativa, não se limitando a estabelecer

proibições.

Neste contexto, percebe-se que a tutela do consumidor possui duas facetas:

“protege-se ao consumidor dentro de uma perspectiva microeconômica e microjurídica”, ao

mesmo tempo que “ao Estado interessa, também como uma das formas de preservar e garantir

a livre concorrência, proteger o consumidor através da adoção de políticas econômicas

adequadas”.79

2.3.3 Princípio da defesa do meio ambiente

A proteção do meio ambiente consiste em princípio que objetiva garantir às

gerações presentes e às gerações futuras o direito à vida.80 A própria Constituição esclarece,

no art. 225, que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos,

esclarecendo que o meio ambiente é um “bem de uso comum do povo e essencial à sadia 76 “XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.” 77 “§5º A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.” 78 “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.” 79 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico (...), ob. cit., p. 129. 80 Neste sentido, José Afonso da Silva esclarece que, quando se discute o meio ambiente, está-se discutindo, em verdade, o direito à vida, o que revela a natureza instrumental daquela tutela. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 773.

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qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade defendê-lo e preservá-lo

para presentes e futuras gerações”.

Ao inserir a defesa do meio ambiente como princípio que limita a livre iniciativa,

as medidas de exploração da empresa que possam lesar o “bem de uso comum do povo”

passam a ter sua legitimidade questionada, sendo certo que por determinação constitucional as

condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas

físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de

reparar os danos causados (art. 225, §3º).

Juntamente a essas premissas genéricas, a Constituição determina que aquele que

explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo

com solução técnica exigida pelo órgão público competente (art. 225, §2º), ao mesmo tempo

que prescreve que as usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização

definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas (art. 225, §6º).

Não obstante essas prescrições constitucionais terem verdadeira natureza deôntica,

cumpre lembrar que a emissão de gases, a fabricação, utilização e venda de produtos que

ameaçam o meio ambiente são condutas praticamente indissociáveis do exercício da atividade

econômica. Entretanto, ao mesmo tempo que ocasionam este custo social/ambiental, as

empresas contribuem para a geração de riqueza, de emprego, de investimento, bem como

possibilitam que os membros de uma comunidade tenham acesso a bens e serviços essenciais

ao desenvolvimento de sua personalidade, consistindo em grande fonte arrecadadora de

tributos.

Por isso, o que se pode exigir daqueles que se dispõem a explorar alguma

atividade econômica é adotar uma “política ecologicamente adequada”, evitando lesões

desnecessárias ao meio ambiente. Este padrão de conduta, aliás, tem ganhado corpo não só no

Brasil,81 como em todo o mundo.82 A conscientização da população sobre a importância de

defesa do meio ambiente tem levado os agentes econômicos a investir em condutas

ecologicamente corretas, que otimizam seus resultados.

81 Como foi noticiado pela mídia, “segundo o presidente da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), Raymundo Magliano, os investidores estão cada vez mais preocupados com questões de sustentabilidade”. Valor Econômico, C4, 27 de março de 2007. E a preocupação com o desenvolvimento sustentável e o meio ambiente já chegou às atividades de menor porte, que começaram a adotar o conceito de ecoeficiência, ou seja, produzir mais com menor impacto ambiental. É o que se extrai do Valor Econômico, F1, de 27 de abril de 2007. 82 É o que noticiam Jean-Yves Trochon e François Vincke, verbis: “Il faut reconnaître cependant qu’un nombre croissant d’entreprise et d’associations d’entreprises prennent des engagements fermes en matière de protection de l’environnement et adoptent des mesures concrètes afin de préserver celui-ci”. TROCHON, Jean-Yves; VINCKE, François. L’entreprise face à la mondialisation (...), ob. cit., p. 97.

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Diante das considerações expendidas neste item, fica patente a dificuldade de se

promover a conciliação dos direitos fundamentais relacionados à empresa, os quais

constituem limites à livre iniciativa. A tarefa de conciliação dos direitos fundamentais e

concretização dos limites constitucionais à livre iniciativa constitui a principal função

desempenhada pela legislação infraconstitucional, como foi observado no capítulo anterior.

Mas é de se insistir que, na omissão ou ineficiência do legislador quanto à concretização ou

tutela dos direitos fundamentais, a sua invocação direta como direitos subjetivos para

sustentar pretensões de seu titular é medida necessária à realização da própria ordem

constitucional.

2.4 A sociedade anônima como instrumento de exercício coletivo da empresa: análise

estrutural

A escolha da exploração coletiva da empresa é precedida de uma análise do tipo

societário que melhor atenda aos interesses dos empreendedores/fundadores.83 Quando estes

sentem a necessidade de captar recursos de terceiros, a escolha do tipo societário

normalmente recai sobre a sociedade anônima.84

Com efeito, a escolha deste tipo societário se baseia nas características essenciais

das companhias,85 e nos instrumentos disciplinados pelo ordenamento jurídico.

83 Insta consignar a existência de determinadas atividades que só poderão ser exercidas por meio de uma sociedade anônima. É o que ocorre com as atividades típicas de instituições financeiras, de sociedades seguradoras, e com as entidades abertas de previdência complementar. 84 Deveras, Georges Ripert já identificara na sociedade anônima o instrumento ideal para a captação de recursos para a exploração da empresa, verbis: “La société anonyme est un merveilleux instrument créé par le capitalisme moderne pour collecter l’épargne en vue de la fondation et de l’exploitation des entreprises”. RIPERT, Georges. Aspects juridiques du capitalisme moderne. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1951. p. 109. 85 Em observação aplicável à realidade brasileira, a doutrina norte-americana identifica como características fundamentais das sociedades anônimas a sua personalidade jurídica (i), o limite de responsabilidade de seus membros (ii), a livre transferência de participação societária (iii), e a concentração da administração. É o que se observa das palavras de Robert Clark: “Briefly, what accounts for the corporation’s success as a form of organization are its characteristics and a social environment that makes these characteristics useful. For convenience, I will identify four such characteristics: (1) limited liability for investors; (2) free transferability of investor interests; (3) legal personality (entity-attributable powers, life span, and purpose); and (4) centralized management”. CLARK, Robert C. Corporate Law. Aspen Law&Business, 1986. p. 2.

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A rigor, a outorga de personalidade jurídica às sociedades anônimas86 é o primeiro

fator que incentiva os titulares da liberdade de empreender a constituir uma companhia.

Afinal, a personificação da sociedade consiste, conforme lição de Georges Ripert, em técnica

jurídica que objetiva garantir a exploração empresarial dos bens entregues pelos sócios. Como

pondera o jurista francês, a outorga de personalidade jurídica às sociedades foi o meio de

manter a identidade entre a propriedade e a exploração empresarial.87 Realmente, a autonomia

patrimonial e a vinculação dos bens à exploração da atividade escolhida conferem a segurança

de que empresa não será (pelo menos em princípio) afetada por atos praticados por seus

sócios no desenvolvimento de suas vidas particulares.

Isso porque os acionistas não são titulares do patrimônio da companhia.88 A

propriedade daqueles recai sobre bens incorpóreos89 que lhes outorgam os direitos e deveres

prescritos por lei. Ou como prefere Tullio Ascarelli, as ações90 outorgam a seus titulares o

status de sócio, do qual decorrem deveres (em relação à integralização das ações), direitos de

caráter patrimonial (por exemplo, o direito ao dividendo, o direito à quota de liquidação) e

não patrimonial (como o direito de informação, o direito de participar da assembléia), e

poderes (como o de votar na assembléia).91

A limitação da responsabilidade dos sócios é, outrossim, grande incentivador para

que a empresa seja explorada por meio de uma sociedade anônima. Como decorrência, em

princípio natural,92 da personificação da companhia, esta e seus acionistas constituem sujeitos

86 A rigor, a teoria da realidade jurídica (que propõe que a personalidade deve ser vista como um fenômeno jurídico, preceitua que as pessoas jurídicas são criações do ordenamento jurídico, que lhes confere personalidade jurídica, assim como concede aos seres humanos) tem sido acolhida tanto pela doutrina alienígena, como pela doutrina pátria. Como revela Gustavo Visentini “la società come persona giuridica oggi risponde ai caratteri della dottrina della realtà (...)”. VISENTINI, Gustavo. Principi di diritto commerciale. Padova: Cedam, 2006. p. 195. No mesmo sentido, Rodrigo Ferraz Pimenta da Cunha conclui que “em nossos dias é pacificamente aceita a concepção de que as sociedades anônimas são criação da lei (...)”. CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nas sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 107. 87 RIPERT, Georges. Aspects juridiques (...), ob. cit., p. 269. 88 Daí a advertência de Tullio Ascarelli, no sentido de que é “inexato encarar os acionistas como condôminos do patrimônio social”. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p. 503. 89 Estes, sim, os bens que integram o patrimônio dos sócios e que poderão ser afetados por dívidas ou atos de sua exclusiva responsabilidade. 90 Insta não confundir a “ação” com a “quota”, conforme advertência de Vinícius José Marques Gontijo, sendo certo que “a principal diferença entre a “ação” e a “cota” consiste no fato de que a ação tem existência desprendida do instrumento de constituição da sociedade, sendo que a sua cessão não implicará na modificação da estrutura daquele instrumento, enquanto isso não se verifica na cota, cuja cessão gerará modoficação da estrutura do instrumento de constituição da sociedade, sem, no entanto, implicar em modificação do efeito jurídico “sociedade” que tem o instrumento”. GONTIJO, Vinícius José Marques. A Regulamentação das Sociedades Limitadas. In: VIANA, Frederico Rodrigues (org.). Direito de empresa no Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 194. 91 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 491. 92 Esta ressalva se faz necessária porque há sociedades personificadas em que os sócios respondem pelas dívidas sociais, a exemplo do que ocorre com a sociedade em nome coletivo.

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jurídicos distintos,93 a estes não atribuindo a lei a responsabilidade por atos praticados por

aqueloutra, exceto quando há abuso da separação patrimonial. É o que se vê das verba legis

do art. 1º, da LSA, no sentido de que “a companhia ou sociedade anônima terá o seu capital

dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada au preço de

emissão das ações subscritas ou adquiridas”.

Integralizado o capital subscrito, o acionista cumpre seu dever de cunho

patrimonial,94 nada mais podendo ser-lhe exigido sob o ponto de vista econômico. O risco a

que está exposto é o de perder o investimento realizado na subscrição ou aquisição da

participação societária,95 não respondendo pelo inadimplemento de outros acionistas, haja

vista inexistir nas sociedades anônimas solidariedade quanto à integralização do capital social

(diferentemente do que ocorre nas sociedades limitadas).96

A livre transferência das participações societárias (representadas pelas ações em

que se divide o capital social) é outra peculiaridade das sociedades anônimas.97 A

impessoalidade da relação entre os sócios (ainda que em tese) é o que justifica a possibilidade

de alienação das ações a terceiros, sem a anuência dos demais, consistindo esta prerrogativa

no elemento que confere maior liquidez às participações societárias e, via de conseqüência,

93 Neste sentido, Tullio Ascarelli confirma que “a responsabilidade limitada coaduna-se, pois, com a personalidade jurídica da sociedade e com a rigorosa distinção entre o patrimônio do acionista e o da sociedade”. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 461. 94 Juntamente com este dever de cunho patrimonial, é importante lembrar aquele de natureza pessoal, no sentido de que “todo acionista deve abster-se do abuso do direito de voto e de interferir nas decisões em que tenha conflito de interesses com a sociedade”. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º Vol. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 6. 95 Tecnicamente, a utilização do termo “aquisição” deve ser reservada às situações de compra de ações de alguém que já seja acionista, enquanto que a “subscrição” corresponde à compra originária de ações na constituição da sociedade, ou em futuros aumentos de capital social. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 115. 96 Esta solidariedade advém do disposto no art. 1.052 do Código Civil, verbis: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”. A solidariedade da responsabilidade dos sócios da limitada se estende, ainda, à exata estimação de bens conferidos ao capital social, ex vi do art. 1.055, §1º, do Código Civil, diferentemente do que ocorre com as companhias, em que a exata estimação dos bens entregues para a formação do capital social é de responsabilidade dos avaliadores e do subscritor (LSA, art. 8º, §6º). 97 Com efeito, é de se registrar que a livre cessibilidade das ações tornou-se característica relativa nas companhias. Na atualidade a existência de sociedades anônimas intuitu personae é inegável, sendo certo que o principal fundamento para esta afirmação se encontra na permissão de o estatuto impor limitações à circulação das ações da companhia, contanto que não impeçam a negociação da participação acionária, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas, a teor do que dispõe o art. 36 da LSA. Nas companhias abertas a limitação da circulação das participações acionárias poderá ocorrer via acordo de acionistas, o qual obviamente só terá eficácia em relação aos seus signatários. Sobre as restrições da circulação das ações, cf. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 70-75. Não se pode deixar de mencionar, ademais, a liberdade conferida pelo legislador pátrio para que nas sociedades limitadas seja instituída no contrato social a livre circulação das participações societárias (CC, art. 1.057).

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facilita a captação de recursos, seja para a constituição ou para a continuação da exploração

da empresa.

Com efeito, a possibilidade de o capital social da companhia ser dividido em

ações ordinárias e preferenciais98 confirma, também, a premissa inicialmente sugerida, no

sentido de que a sociedade anônima consiste em instrumento eficiente para o exercício

coletivo da empresa. A possibilidade de se outorgar a um interessado em participar da

sociedade ações sem direito de voto constitui grande vantagem para aquele que não quer

dividir a gestão da companhia, mas está disposto a partilhar os ganhos com aqueles que

contribuam no financiamento das atividades, outorgando-lhe, inclusive, determinadas

prerrogativas.99

De maneira a evitar que os acionistas “sem voz ativa” na sociedade sejam

prejudicados por uma política de gestão de autofinanciamento da companhia, o legislador

pátrio prescreve a figura dos dividendos obrigatórios, impondo-se a distribuição dos lucros na

forma do estatuto ou, na sua omissão, de acordo com o disposto no art. 202.

A previsão legal do capital autorizado (LSA, art. 168) e da emissão de bônus de

subscrição (LSA, art. 75) nas sociedades anônimas100 é, também, instrumento de grande

eficiência para a captação de recursos e para a facilitação de aumento do capital social, fatores

de grande relevo no desenvolvimento da empresa. Afinal, estes dois institutos possibilitam

que a companhia aumente o capital sem a necessidade de reformar o estatuto, bem como

permite que sejam captados recursos duas vezes com a mesma parcela do capital social. Isto 98 Conforme o disposto no art. 15, §2º, da LSA, o número de ações preferenciais sem direito a voto, ou sujeitas a restrições no exercício desse direito, não pode ultrapassar 50% do total das ações emitidas. 99 As prerrogativas que poderão ser atribuídas às ações preferenciais consistem em: I – prioridade na distribuição de dividendos, fixo ou mínimo; II – prioridade no reembolso do capital, com prêmio ou sem ele; ou III – na acumulação das preferências e vantagens de que tratam as hipóteses anteriores (LSA, art. 17). Em se tratando de companhia aberta, há de serem observadas as exigências contidas no §1º, do art. 17, da LSA. 100 Há quem sustente a possibilidade de a sociedade limitada adotar, ainda que parcialmente, o regime de capital autorizado. É o caso de Otávio Vieira Barbi, para quem o objetivo do regime de capital autorizado é tão-somente simplificar a operação de aumento de capital, razão pela qual conclui ser o regime sob exame, à exceção da possibilidade de exclusão do direito de preferência, aplicável às sociedades limitadas que adotarem a regência supletiva da LSA. BARBI, Otávio Vieira. Pode a sociedade limitada ter capital autorizado? In: RODRIGUES, Frederico Viana (coord.). Direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 249-267. Este posicionamento é criticado por Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, que entende que sistema de capital autorizado é incompatível com a estrutura da sociedade limitada. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 118. A rigor, mostra-se adequado comentar os posicionamentos referidos. De início, parece inadequada a observação do autor mineiro, no sentido de que a única função do capital autorizado é simplificar a operação de aumento do capital. Isso porque a utilização da técnica do capital autorizado, com a emissão de bônus de subscrição, viabiliza captação de recursos de maneira mais eficiente do que mediante a simples emissão de novas ações. Afinal, possibilita-se a “dupla” captação de recursos com a mesma parcela do capital social. Conclui-se, deste modo, que o regime de capital autorizado tem mais de um objetivo. Sobre a possibilidade de aplicação desta técnica às sociedades limitadas regidas supletivamente pela LSA, a ausência de impedimento parece conduzir à conclusão de que, observadas a nuances da natureza da sociedade limitada, é de se admitir a utilização do regime de capital autorizado neste tipo societário.

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porque num primeiro momento a sociedade negociará (captando recursos, portanto) os títulos

que conferem a seus proprietários o direito de subscrever ações, dentro do limite do capital

autorizado (bônus de subscrição). Uma vez deliberado o aumento do capital,101 as ações

representativas desse aumento serão adquiridas pelos titulares dos bônus de subscrição,102 nas

condições constantes dos certificados, medida que conclui o procedimento de aumento de

capital e captação de recursos utilizando-se da técnica regulada pela LSA.

O regime jurídico das debêntures consiste, igualmente, em elemento que

influencia a escolha da companhia como modelo de exploração da empresa. Instrumentos

típicos de financiamento da sociedade anônima, as debêntures contêm como incentivo para a

outorga de crédito um sistema diferenciado de remuneração e de garantia de seus titulares.103

Se não, veja-se: as debêntures podem assegurar (i) juros, fixos ou variáveis; participação nos

lucros da companhia (ii); e prêmio de reembolso (iii).

A possibilidade de se estabelecer a conversibilidade das debêntures em ações

consiste, também, em vantagem sobre os demais modos de concessão de crédito. E some-se a

isso a existência de debêntures com garantia real ou flutuante,104 bem como a figura do agente

fiduciário dos debenturistas, a quem compete zelar pelos interesses daqueles que outorgam

crédito à companhia.

A rigor, a possibilidade de a administração da sociedade ser distribuída entre dois

órgãos também corrobora para que o exercício coletivo da empresa seja desenvolvido via

sociedade anônima. Como se sabe, enquanto o conselho de administração é o órgão

deliberativo de orientação geral dos negócios sociais,105 a diretoria é o órgão de execução e

representação da companhia, merecendo registrar, ainda, a atribuição de aquele órgão

colegiado promover a fiscalização deste órgão executivo. De fato, a co-existência desses

órgãos tem o condão de conferir maior profissionalismo e confiabilidade à gestão da

101 A deliberação do aumento autorizado partirá da Assembléia Geral ou do Conselho de Administração, conforme o disposto na cláusula do Estatuto Social. 102 Não havendo emissão de bônus de subscrição, o aumento do capital será subscrito, preferencialmente, pelos próprios acionistas. Registre-se, outrossim, que os acionistas têm direito de preferência na aquisição dos bônus de subscrição. 103 A preferência pelas debêntures como instrumentos de captação de investimentos encontra respaldo na pesquisa levantada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Enquanto as debêntures foram utilizadas para captar, no período de 1994 a 2008, mais de R$287 bilhões, as ações (segundo instrumento mais utilizado para a capitalização das companhias) foram utilizadas para captar pouco mais de R$114 bilhões. Fonte: Disponível em <http//www.debentures.com.br>. Acesso em: 31 out. 2008. 104 A debênture com garantia flutuante assegura ao seu titular privilégio geral sobre o ativo da companhia, muito embora não impeça a negociação dos bens que compõem esse ativo (LSA, art. 58, §1º). 105 As atribuições do conselho de administração constam do art. 142 da LSA.

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sociedade, sobre possibilitar que representantes dos minoritários influenciem, ainda que

timidamente, a orientação geral dos negócios da companhia.106

Registre-se, ainda, a existência do conselho fiscal nas sociedades anônimas, órgão

que poderá ter funcionamento permanente ou nos exercícios sociais em que for instalado a

pedido de acionistas.107 Composto de, no mínimo 3 (três) membros e, no máximo, 5 (cinco), e

suplentes em igual número, acionistas ou não, eleitos pela assembléia-geral, este órgão serve

de instrumento para que os acionistas exerçam o direito de fiscalização (LSA, art. 109, inc.

III),108 possibilitando o controle da legalidade e legitimidade (abuso e desvio de poder) dos

atos dos gestores.109

Por fim, insta revelar que a assembléia-geral consiste no órgão deliberativo em

que se forma a “vontade social”,110 a qual representa uma manifestação unilateral de vontade,

haja vista representar a vontade de um único sujeito: a companhia. Mas a formação desta

vontade, como bem observa Tullio Ascarelli, “resulta do concurso de outras tantas vontades

(votos) diversas”,111 as quais se manifestam em um procedimento que encontra na lei os

pressupostos de formação válida da vontade social, tais como as regras de convocação, o

quorum de instalação, e o quorum de aprovação da matéria deliberada.

106 De modo a possibilitar a participação de representantes dos minoritários no conselho de administração, a LSA estabelece alguns parâmetros. Os acionistas que representem, pelo menos, 10% (dez por cento) do capital social com direito a voto poderão requerer a adoção do processo de voto múltiplo, atribuindo-se a cada ação tantos votos quantos sejam os membros do conselho, e reconhecido ao acionista o direito de cumular os votos num só candidato ou distribuí-lo entre vários (art. 141). Some-se a esta hipótese a regra contida no §4º, do art. 141, segundo a qual “terão direito de eleger e destituir um membro e seu suplente do conselho de administração, em votação separada na assembléia geral, excluído o acionista controlador, a maioria dos titulares, respectivamente: I – de ações de emissão de companhia aberta com direito a voto, que representem, pelo menos, 15% (quinze por cento) do total das ações com direito de voto; e II – de ações preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito de emissão de companhia aberta, que representem, no mínimo, 10% (dez por cento) do capital social, que não houverem exercido o direito previsto no estatuto, em conformidade com o art. 18”. 107 O conselho fiscal, quando o funcionamento não for permanente, será instalado pela assembléia geral a pedido de acionistas que representem, no mínimo, um décimo das ações com direito de voto, ou 5% (cinco por cento) das ações sem direito a voto, conforme preceitua ao art. 161, §2º, da LSA. 108 Como descreve Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, a maneira regular de fiscalização da gestão dos negócios sociais ocorre quando da realização da AGO, oportunidade em que os acionistas com direito de voto tomarão as contas dos administradores, examinando, discutindo e votando as demonstrações financeiras, colocadas à disposição, juntamente com os demais documentos enumerados no art. 133, da LSA. Esta fiscalização terá como suporte o parecer do conselho fiscal, se em funcionamento, e da auditoria independente (se for o caso), sendo certo que em determinadas situações os acionistas que detenham uma determinada participação no capital social poderão exercer diretamente o direito de fiscalização, a exemplo do que ocorre com a exigência de exibição dos livros da companhia (LSA, art. 105). VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 248. 109 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Vol. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 415. 110 Não se pode deixar de registrar que na vida empresarial é bastante comum que a assembléia geral seja mera formalidade para a “homologação” de decisões tomadas pelo grupo de controle. 111 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 507.

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Com efeito, a estrutura legal das sociedades anônimas torna possível a sua

utilização para fins os mais diversos, o que demonstra que a companhia pode desempenhar

inúmeras funções. Resta investigar qual seria a função jurídica das sociedades anônimas.

2.5 Breve análise funcional da sociedade anônima

Em passagem muito conhecida, Georges Ripert identifica na sociedade anônima o

“instrumento maravilhoso criado pelo capitalismo moderno para captar recursos com vistas à

fundação e à exploração da empresa”.112

Esta concepção se aproxima daquela desenvolvida por Tullio Ascarelli, para quem

a sociedade anônima apresentou-se como o instrumento típico da grande empresa capitalista,

tendo surgido e se desenvolvido com este sistema econômico e, em relação às suas

exigências, servindo de meio para a mobilização das economias de vastas camadas da

população, facilitando o espírito de empreendimento.113

A sociedade anônima também é referida por Claude Champaud, que a considera o

principal instrumento jurídico da concentração empresarial, concentração esta que exige duas

concentrações prévias: a de capitais e a de poder econômico.

A concentração de capitais ocorre de duas maneiras. Primeiramente, a sociedade

anônima consegue mobilizar a poupança (mediante a captação de recursos dos interessados

em participar do empreendimento) a serviço da atividade empresarial. Em seguida, a

companhia favorece a acumulação de lucros, haja vista que nem todo o superávit do exercício

é distribuído entre os sócios, destinando-se parte para as reservas e/ou para outras operações

da própria companhia.

Por outro lado, o controle da companhia possibilita a concentração do poder

econômico nas mãos daqueles que irão ditar o destino do patrimônio da companhia.114

Tavares Guerreiro, apoiando-se nas lições de Paillusseau, enfatiza a

impossibilidade de se enxergar a sociedade anônima estaticamente, como um modo de

112 RIPERT, Georges. Aspects juridiques (...), ob. cit., p. 109 113 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 459-462. 114 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration de la société par actions. Paris: Librairie Sirey, 1962. p. 10.

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organização (e separação) patrimonial, devendo-se concebê-la como um “instrumento de

realização da atividade econômica dirigida para o mercado”.115

Verifica-se que a estrutura da sociedade anônima permite a superação da

tecnocracia, haja vista o domínio do capital sobre a técnica nas companhias. O

desenvolvimento das mais variadas atividades econômicas pode ter como incentivador e/ou

controlador alguém que não tenha conhecimentos técnicos referentes à atividade, mas que

detenha o capital e o interesse em explorar uma determinada empresa. As questões técnicas

serão entregues, nestas situações, aos administradores – eleitos por quem detém o controle –,

ou a empregados e/ou colaboradores da companhia.

A estrutura das companhias possibilita, ademais, que pessoas que não teriam o

capital ou o conhecimento técnico necessário ao desenvolvimento de uma determinada

atividade venham a participar, na qualidade de sócios, de empreendimentos empresariais das

mais diversas naturezas. De fato, a inserção e a integração da coletividade na vida

empresarial, através das sociedades anônimas, possibilitam a democratização de acesso da

população ao mercado, não apenas na qualidade de consumidores, mas de investidores e/ou

empreendedores,116 o que contribui para o desenvolvimento de suas personalidades,

evidenciando o caráter promocional da dignidade da pessoa humana desempenhado pela

sociedade anônima.

Com efeito, apesar das inúmeras funções desempenhadas pela sociedade anônima,

é de se reconhecer que, a partir do momento em que se leva os direitos a sério, os institutos e

técnicas criados pelo legislador infraconstitucional devem ser identificados como

instrumentos de realização, concretização e conciliação de direitos fundamentais. A rigor, a

sociedade anônima não foge a esta regra. Tanto nas relações intra-societárias,117 como nas

relações externas da companhia,118 há que se interpretar a sociedade anônima como um

núcleo de realização e conciliação dos direitos fundamentais daqueles que direta ou

indiretamente sentem os efeitos da empresa “explorada coletivamente”.

115 TAVARES GUERREIRO, José Alexandre. Direito das minorias na sociedade anônima. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, v. 1, n. 63, p. 107, 1986. 116 Com efeito, é de se advertir que esta sugestão não desconsidera que, em um país em que a maioria da população não tem condições de ter acesso ao mercado sequer na condição de consumidor, esta afirmação poderia ser compreendida como irrealista e fora do contexto pátrio. Mas o que se pretende demonstrar é o potencial ínsito na estrutura legal das sociedades anônimas para a expansão do empreendedorismo. 117 Estão inseridos nas relações intra-societárias, direitos fundamentais de titularidade dos acionistas e dos membros que compõem os órgãos sociais (administradores e membros do conselho fiscal). 118 Nas relações externas da companhia, os direitos fundamentais que devem ser conciliados são aqueles já estudados nos itens 2.1, 2.5 e 2.7.

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É de se advertir, no entanto, que a idéia de “exploração coletiva” da empresa, no

sentido de exercício da livre iniciativa em coletividade, não se mostra realista. Primeiro

porque o reconhecimento, pelo ordenamento, de que as sociedades anônimas são centros de

direitos e deveres autônomos, impede que a companhia seja compreendida como a soma de

direitos dos seus sócios. Segundo, porque a exploração da atividade social será orientada e

coordenada por quem detém o controle,119 sendo praticamente nula a participação dos

minoritários na orientação dos negócios da companhia.120 E nesta ordem de idéias, a cisão do

conteúdo da livre iniciativa em liberdade de empreender, a liberdade de explorar a empresa e

a liberdade de concorrência121 se mostra adequada para identificar que os acionistas

minoritários não exercem, de fato, nem a liberdade de exploração da empresa nem a liberdade

de concorrência. Estas são exercidas tão-somente pelo controlador.122

Por isso, se a constituição da sociedade anônima pode ser considerada como o

exercício do direito fundamental de associação e da liberdade de empreender dos

fundadores/empreendedores, a exploração da empresa por meio de uma companhia revela

que essa liberdade é exercida, efetivamente, pelo controlador, junto a quem estão

subordinados todos os direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa, incluídos os

direitos fundamentais dos demais acionistas.

Esta constatação evidencia que o direito fundamental do controlador converte-se

em verdadeiro poder, de modo a impor-lhe maior atenção e cuidado no exercício de sua

liberdade, haja vista a dificuldade e, em determinadas situações, a impossibilidade, de os

titulares dos direitos fundamentais a ele subordinados defenderem seus próprios interesses,

sendo vedado ao titular do poder fazer uso de sua situação de superioridade para eliminar os

direitos fundamentais que dele dependem.

Neste contexto, empreender um enfoque constitucionalizado do controle acionário

significa investigar os elementos necessários ao seu legítimo exercício, tarefa esta que

consiste objeto do capítulo seguinte.

119 A definição de controle, suas modalidades e repercussões será objeto de estudo no capítulo seguinte. 120 É neste sentido a constatação de Tullio Ascarelli, quando afirma que “os acionistas alheios ao grupo que controla a sociedade, aplicadores de capital ou “especuladores”, mais do que empreendedores (conseqüência natural da difusão das ações entre o público), carecem e até descuidam, às vezes, da possibilidade de acompanhar realmente, o desenvolvimento da empresa. ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 498-499. 121 FERRIER, Didier. La liberté du commerce et de l’industrie (…), ob. cit., p. 237-248. Esta divisão foi trabalhada no item 2.1 deste capítulo. 122 Como acentua Comparato, o controlador é, a par da assembléia geral e dos órgãos administrativos, a “instância decisória suprema da sociedade anônima”. COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 50, p. 68.

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3 O PODER PRIVADO NA SOCIEDADE ANÔNIMA

3.1 Importância da identificação da relação de poder

No Capítulo 1 registrou-se que, na situação em que uma das partes se encontra em

posição que lhe permita influenciar ou determinar o comportamento alheio, ou de alguma

maneira afetar a esfera jurídica de outrem, seja em razão de uma ascendência política,

ideológica, ou econômica; identifica-se o fenômeno do poder.

Com efeito, a existência de poder nas relações que compõem a empresa resta

evidenciada quando se averigua a existência de direitos fundamentais subordinados à

atividade organizada pelo empresário, o qual, mediante omissão ou ação irresistível

(decorrente de sua posição privilegiada), encontra-se em posição de impedir a realização ou

promover a violação dos direitos fundamentais sob sua coordenação.

Daí a importância da identificação daquele que está à frente da empresa, tendo em

vista que é contra ele que poderão ser exercidas pretensões decorrentes da violação ou ameaça

aos direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa, desde que estas condutas sejam-

lhe imputáveis em razão do exercício abusivo de sua posição jurídica.

Em se tratando de empresa explorada por uma sociedade anônima, é importante

alertar para a regra básica de que empresária é a companhia, não seus sócios ou

administradores. É contra a pessoa jurídica, portanto, que deverão ser exercidas, via de regra,

eventuais pretensões fundadas na violação de direitos fundamentais subordinados à empresa

explorada pela sociedade anônima.

A exceção consignada justifica-se, como será demonstrado, pela imposição de

responsabilidades àquele que detém o controle da companhia (LSA, art. 116, parágrafo

único).

Por outro lado, a relação de poder no âmbito interno da sociedade anônima

encontra nos minoritários1 e nos membros da administração os titulares de direitos

fundamentais subordinados não à companhia em si, mas àquele que por sua posição

1 Entenda-se por minoritário todo acionista que não se enquadre na categoria “controlador”. Aliás, cabe registrar que há quem repudie a utilização do termo minoritário, sugerindo em seu lugar a expressão “não controlador”. Cf. CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. O acionista minoritário no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 1995. p. 12.

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privilegiada exerce a gestão e coordenação do patrimônio social, enfim, àquele que detém o

poder dentro da sociedade anônima.

O poder na sociedade anônima pode estabelecer-se em três níveis, consoante

observação de Fábio Konder Comparato: o da participação no capital, ou investimento

acionário; o da direção; e o do controle. Como esclarece o autor, “o controle pode provir da

participação no capital, mas não se confunde com ela (...)”, sendo certo que “se os diretores de

uma companhia não precisam ser acionistas, é escusado dizer que o controlador nem sempre

assume as funções diretivas”.2

A identificação do detentor do poder na sociedade anônima é medida

indispensável para atribuir-lhe a responsabilidade pela ameaça ou lesão aos direitos

fundamentais que lhe estão subordinados. E como o poder na sociedade anônima se revela por

intermédio do controle,3 a investigação da sua natureza parece ser o ponto de partida

adequado para que sejam reunidos subsídios suficientes para uma leitura constitucional dos

direitos fundamentais dependentes da atuação do titular do controle.

3.2 A natureza do controle

O controle nas sociedades anônimas já foi objeto de investigações de relevo,

destacando-se as obras de Adolf Berle e Gardiner Means,4 Claude Champaud5 e Fábio Konder

Comparato.6

A primeira observação relacionada à natureza do controle diz respeito à

impossibilidade de confundi-lo com a propriedade.7 Afinal, a separação patrimonial é

corolário da outorga de personalidade jurídica à sociedade anônima,8 estando a exploração

2 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 22-23. 3 Como observa Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa “de acordo com os termos utilizados pela própria LSA, o controle é uma modalidade de poder”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 272. 4 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 5 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration de la société par actions. Paris: Librairie Sirey, 1962. 6 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit. 7 Some-se a esta premissa o fato de que o controle, como se verá, não advém, necessariamente, da propriedade acionária. 8 É importante lembrar que a personalidade jurídica da sociedade anônima conduz à dissociação entre a propriedade e a administração de seus bens.

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dos bens sociais subordinada à consecução do objeto social.9 Neste sentido, as palavras de

Claude Champaud, verbis:

Juridicamente os sócios não são proprietários do ativo social. Sobretudo, os acionistas pertencem, eles mesmos, a duas categorias: aqueles que extraem unicamente um benefício material da sua qualidade e aqueles que exercem o poder econômico advindo de sua posição. Assim, ao lado do direito de propriedade, um “direito” novo surgiu, uma “quase-propriedade” que recebeu o nome de “controle”. Juntamente com os proprietários tradicionais, existem os “beneficiários” e os “controladores”.10 (tradução nossa)

Reconhecendo a ambigüidade do termo controle,11 e o fato de este surgir de

formas variadas e díspares, o jurista francês sugere, a título provisório, que o controle seja “o

poder efetivo de direção dos negócios sociais”,12 ressaltando que o titular do controle exerce

seu poder sobre bens que não são de sua posse ou propriedade.13

Advirta-se, no entanto, que a afirmação de que o controle na sociedade anônima é

exercido sobre os bens sociais não pode ocultar a conseqüência natural deste fato, qual seja a

relação de subordinação dos minoritários e membros que compõem os órgãos sociais em

relação ao controlador, o que demonstra que o poder é exercido, ainda que indiretamente,

sobre pessoas (titulares de direitos fundamentais que devem ser respeitados por quem se

encontra em situação de exercer ascendência sobre eles).

Na pesquisa sobre a natureza jurídica do controle, Claude Champaud demonstra a

inviabilidade de enquadrá-lo em categorias jurídicas tradicionais como a posse e a detenção.

Este jurista afasta a inserção do controle como posse afirmando que o possuidor manifesta sua

vontade de considerar e fazer considerar a coisa sobre a qual recai a posse como fazendo parte

de seu patrimônio, com o que não se deve confundir a manifestação de vontade do titular do

9 Consoante advertência de Claude Champaud, “la domination par contrôle n’est pas la propriété. Il en resulte que l’exercice du contrôle ne doit pas aboutir au détournement des biens sociaux dans le patrimoine personnel des actionnaires de contrôle”, haja vista que “le législateur entend que les biens formant l’actif soient exclusivement utilisés en vue de la réalisation de l’objet social”. CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 145 e 148. 10 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. Cit., p. 8. No original: “Juridiquement les associés ne sont pas propriétaires de l’actif social. Surtout, les actionnaires appartiennent eux-mêmes à deux catégories: ceux qui tirent uniquement un benéfice matériel de leur qualité et ceux qui exercent la puissance économique qui en découle. Ansi, à côté du droit de propriété, un “droit” nouveau est né, une “quase-propriété” qui a reçu le nom de “contrôle”. A côté des proprietaires traditionnels, il existe des “bénéficiaires” et les “contrôlaires””. 11 “L’usage du mot contrôle n’est pas dépourvu d’ambigüité. Comme l’a remarqué M. Michel, ce terme possède au moins deux sens dans la langue juridique française. Dans un sens general, le pouvoir de contrôle est un pouvoir de surveillance et de réforme d’actes de gestion patrimoniale. Dans un sens particulier aux sociétés anonymes, bien qu’il ait tendance à s’étendre à d’autres institutions, le contrôle est le pouvoir de diriger l’activité social”. CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 105. 12 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 107. 13 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 156.

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controle, a quem a lei veda a intenção de “apropriação” da coisa.14 E conclui que a posse é um

estado de fato e que existe independentemente de qualquer tipo de contratação, ao passo que o

controle se funda, contrariamente, sobre estruturas jurídicas precisas, tratando-se não de um

estado de fato, mas de um estado de direito.15

Em que pese ser possível concordar que o controle não coincide com a posse, a

última premissa citada parece merecer uma crítica parcial. Isso porque a afirmação de que o

controle é um estado de direito, e não de fato, desconsidera a possibilidade de a companhia

estar subordinada a um controle externo,16 o qual pode decorrer de bases estranhas à

legislação societária, e decorre muito mais de situações fáticas, do que de estruturas jurídicas

expressamente previstas por lei. E mais do que isso: mesmo quando o controle tem origem na

estrutura interna da companhia, o poder de controle não é poder jurídico17 contido no

complexo de direitos da ação, haja vista que “o poder de controle nasce do fato da reunião na

mesma pessoa (ou grupo de pessoas) da quantidade de ações cujos direitos de voto, quando

exercidos no mesmo sentido, formam a maioria nas deliberações da Assembléia Geral”,18

direcionados para a eleição da maioria dos administradores e para a definição dos rumos dos

negócios sociais.

A suposta aproximação do controle à detenção também não permite a confusão

entre essas categorias jurídicas. Segundo o professor emérito da Faculdade de Direito de

Rennes, o que impede a assimilação sugerida é a impossibilidade de o detentor dispor da

coisa, poder que é atribuído ao controlador.19 Esclareça-se, entretanto, que a disposição da

coisa, pelo controlador, ocorrerá de acordo com os mecanismos organizacionais da

companhia, isto é, em que pese ser sua a decisão de alienação, oneração etc., o centro de

imputação de direitos e deveres junto a terceiros é a própria sociedade anônima, que

14 No direito brasileiro a exploração dos bens sociais com objetivos estranhos ao objeto social constitui modalidade de abuso de poder, ex vi do art. 117, §1º, “a”, da LSA. 15 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 159. 16 O controle externo será estudo ainda neste capítulo. 17 Como observa José Luiz Bulhões Pedreira, “o poder jurídico é conferido ou assegurado por sistemas jurídicos, e seu titular pode obter a tutela do Estado para fazer com que o outro sujeito da relação de poder a ele se submeta. Exemplo típico de poder jurídico é o direito subjetivo, que é poder que o sistema jurídico reconhece à pessoa para que o exerça no seu interesse”. BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. In: LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A lei das S.A. Vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 619. 18 BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. In: LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A lei das S.A. Vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 620. E de modo a confirmar a natureza fática do poder de controle, o autor justifica: “a) não há norma legal que confira ou assegure poder de controle: esse poder nasce do fato da formação do bloco de controle e deixa de existir com o fato da sua dissolução; b) poder de controle não é direito subjetivo: o acionista controlador não pode pedir a tutela do Estado para obter esse poder seja respeitado, a não ser quando se manifesta através do exercício regular do direito (ou poder jurídico) de voto nas deliberações da Assembléia Geral; e c) o poder de controle não é objeto de direito: não pode ser adquirido nem transferido independentemente do bloco de controle, que é sua fonte”. 19 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 160.

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exterioriza sua vontade por meio de seus diretores. Interessa acrescentar a esta premissa

básica o fato de que o ato impulsionado pelo detentor do poder deverá observar os interesses

da sociedade, haja vista a vedação de o controlador agir no interesse exclusivo próprio, como

se fosse proprietário dos bens sociais.

Com efeito, após promover a investigação, até aqui singelamente noticiada,

Claude Champaud conclui que a situação de controle muito se aproxima daquela do

empresário individual, visto seu titular possuir o conhecido jus abutendi. Tal premissa o

conduz a sugerir que o controle é o direito de dispor de bens alheios como proprietário,

enquanto que controlar uma empresa é deter o controle dos bens que lhe estão afetados de tal

maneira que se possa coordenar a atividade econômica. E controlar uma sociedade, é, por

fim, possuir o controle dos bens sociais, de maneira a assumir a direção da atividade

econômica da empresa social.20

As lições deste jurista francês conduzem à conclusão de que o controle se

enquadraria na categoria jurídica direito subjetivo. Mas o enquadramento do controle como

direito subjetivo não se apresenta como o mais adequado.21 Isso porque, quando se associa o

controle ao poder, e se constata que ambos têm em comum uma situação em que existe a

possibilidade, decorrente de razões as mais variadas, de uma pessoa (física ou jurídica)

influenciar o comportamento de outra; a conduta daquele que se encontra na posição

privilegiada nem sempre consistirá no exercício de um direito subjetivo. Basta imaginar o

exercício do controle, pela via oblíqua (por meio de interposta pessoa), por quem esteja

proibido de fazê-lo.22 Nesta hipótese, a conduta daquele que pratica atos de controle configura

ato ilícito.

Assim sendo, excluído o controle da categoria direito subjetivo, cabe enquadrá-lo

em outra categoria jurídica. Antes, porém, é de se concordar com Eduardo Goulart Pimenta,

no sentido de que o poder de controle e o controle não se confundem. Como observa o

professor mineiro, “poder de controle é o controle em potência. Quem tem o poder de controle

20 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 161. 21 É neste sentido a opinião de José Luiz Bulhões Pedreira: “(...) poder de controle não é direito subjetivo: o acionista controlador não pode pedir a tutela do Estado para obter esse poder seja respeitado, a não ser quando se manifesta através do exercício regular do direito (ou poder jurídico) de voto nas deliberações da Assembléia Geral”. BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. In: LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A lei das S.A. Vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 620. 22 Tome-se como exemplo a proibição decorrente da cláusula de não-concorrência em contrato de trespasse ou em alienação de controle, ou mesmo a vedação resultante da ordem jurídica pátria, como ocorre, por exemplo, com os deputados e senadores, que por força do disposto no art. 54, inc. II, “a”, da CF/88, não podem, desde a posse, “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”.

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sobre algo ou alguém tem a faculdade de impor sua vontade à conduta deste último”,

enquanto que controle é um fato, consistente no exercício daquela faculdade.23

Neste diapasão, é possível inserir o poder de controle na categoria situação

jurídica, compreendida como “a disposição de sujeitos em relação a um objeto. Disposição

aqui há de ser entendida como posição, posicionamento, ou mesmo atuação”.24 Afinal, aquele

que detém o poder de controle está em posição de ascendência em relação a outras pessoas ou

a bens alheios. Por isso, o poder de controle deve ser compreendido como a situação jurídica

em que o sujeito (titular do controle) tem condições, por razões as mais variadas, de

influenciar condutas alheias, ou de coordenar bens de outrem (no caso do controle societário,

os bens que compõem o patrimônio social).

Já o controle, que no âmbito societário consiste no exercício da posição

privilegiada de seu titular, a qual lhe permite coordenar as atividades sociais, enquadra-se na

categoria fato jurídico, mas com algumas nuances, haja vista a impossibilidade de se enxergar

o controle como um fato isolado, ou como um instituto estático. O controle consiste, enfim,

no conjunto de atos orientados por quem seja detentor de uma posição privilegiada que lhe

permita coordenar ou influenciar a esfera jurídica alheia.25

Como já se afirmou, na sociedade anônima, a posição privilegiada do titular do

controle pode advir de causas diversas, as quais correspondem àquilo que a doutrina

convencionou chamar de modalidades ou tipos de poder controle.

3.3 Modalidades de poder de controle

A dominação da sociedade anônima pode advir de dentro, ou de fora da estrutura

societária. Essa constatação conduz à conclusão da possibilidade de existência de um controle

interno ou externo. “No primeiro caso, o titular do controle atua no interior da sociedade (ab 23 PIMENTA, Eduardo Goulart. Joint Ventures: contratos de parceria empresarial no direito brasileiro. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005. p. 90-91. 24 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 259. 25 Registre-se a peculiaridade do entendimento de Rubens Requião, para quem o controle é um bem imaterial, equiparável ao aviamento, apropriável por ocupação, de modo que “o acionista, detendo suas ações, graças a elas adquire o poder de deliberar pela sociedade, e assegura, com isso, um sobrevalor, mensurável em termos econômicos, do qual se apropria”. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 2º Vol. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 148. A rigor, a crítica de Fábio Konder Comparato a este entendimento apresenta-se adequada, haja vista que “o controle não é um bem da empresa e, sim, um poder sobre ela. Do seu exercício pode decorrer que a empresa tenha bom ou mau aviamento, mas o controle não confunde com esse seu efeito”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 84.

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intus), lançando mão dos mecanismos de poder próprios da estrutura societária, notadamente

a deliberação em assembléia”, enquanto que o controle externo “pertence a uma ou mais

pessoas, físicas ou jurídicas, que não compõem qualquer órgão da sociedade, mas agem de

fora (ab extra)”.26

3.3.1 Controle interno

A obra de Adolf Berle e Gardiner Means27 costuma ser a fonte em que se apóia a

doutrina28 para descrever as modalidades de poder de controle interno, o que se justifica em

razão do pioneirismo do trabalho, bem como de sua qualidade e utilidade.

Segundo os referidos autores,29 a tipologia do poder de controle é composta por:

(i) controle através da propriedade quase total; (ii) controle majoritário; (iii) controle através

de dispositivo legal sem propriedade majoritária; (iv) controle minoritário; e (v) controle

administrativo.

Em apertada síntese, a primeira modalidade de poder de controle (controle através

da propriedade quase total) é encontrada na sociedade anônima onde um único indivíduo ou

um pequeno grupo de sócios possui todas ou quase todas as ações, o que, segundo Berle e

Means, conduziria à conclusão de que a propriedade e o controle estão ambos nas mesmas

mãos.

Esta conclusão mereceu críticas, com as quais se deve concordar, de Fábio

Konder Comparato, haja vista que na sociedade unipessoal30 não há nenhum outro interesse

interno a ser levado em consideração, na aplicação do ordenamento jurídico, além do interesse

do titular único do capital. No entanto, como ressalta o jurista brasileiro, basta que “exista um

26 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 30. 27 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit. 28 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit.; MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário – poder de controle e grupos de sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002; LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A lei das S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1997; GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 29 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 85-98. 30 Recorde-se que no direito brasileiro a única modalidade de sociedade unipessoal é a subsidiária integral, regulada pelos arts. 251-253 da LSA. A subsidiária integral, que deverá adotar o tipo societário sociedade anônima, poderá ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira, ou poderá ser fruto da incorporação de todas as ações do capital social ao patrimônio de outra companhia brasileira. Sobre a subsidiária integral, cf. FIGUEIREDO, Paulo Roberto Costa. Subsidiária Integral – a sociedade unipessoal no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1984.

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só outro acionista, titular de uma única ação, ainda que sem direito de voto, para que se

dissipe o caráter totalitário do controle e reapareça a possibilidade de conflitos de interesse”,

verificando-se que, não obstante no direito brasileiro seja adotado o princípio majoritário, há

hipóteses em que se exige a unanimidade (como ocorre com a transformação do tipo

societário).31

O controle majoritário, por sua vez, está presente quando a propriedade da

maioria das ações (com direito de voto), estando nas mãos de um único indivíduo ou grupo,

confere-lhes os poderes legais de controle, em particular o poder de selecionar os

administradores.

Esta modalidade de poder de controle pode sofrer restrições tanto na alteração dos

atos constitutivos, como em razão de uma minoria organizada, apta a questionar a política e os

atos da maioria, seja diretamente, nas assembléias, ou no judiciário.32

A legislação brasileira outorga aos minoritários instrumentos hábeis a viabilizar

uma conduta ativa e organizada,33 o que permite falar “em controle majoritário simples e

majoritário absoluto, conforme exista ou não uma minoria qualificada, segundo os termos da

lei”.34

Já o controle por meio de mecanismo legal se opera, segundo os autores norte-

americanos, de acordo com estruturas diferenciadas, as quais consistem, basicamente, no

seguinte: o primeiro e mais importante mecanismo entre as grandes companhias é o

“piramidal”. Este modelo envolve a titularidade da maioria das ações de uma sociedade que,

por sua vez, detém a maioria das ações de outra, em um processo que pode se repetir

sucessivamente. Pela introdução de duas ou três companhias intermediárias, todas elas

legalmente controladas pela companhia no topo da série por meio da titularidade da maioria

das ações, pode-se manter o controle legal de uma grande companhia com uma participação

equivalente a uma fração de 1% da propriedade controlada.35

31 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 35. 32 BERLE, Adolf Augustus;t MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 86. 33 Examinando a arcabouço normativo-societário brasileiro Fábio Konder Comparto identifica na LSA dispositivos que demonstram a existência de mecanismos para uma minoria ativa, a saber: art. 123, parágrafo único, “b”; art. 126, §3º; art. 239; art. 105; art. 159, §4º; art. 163, §6º; art. 206, inc. II; art. 246, §1º, “a”; art. 161, §2º, art. 123, parágrafo único, “c”; art. 141; art. 161, §4º, “a”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 41-43. 34 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 43. 35 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 87. Os autores descrevem, na página 88 desta obra, este mecanismo utilizando-se um organograma, de modo a facilitar a sua compreensão.

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As sociedades integrantes dessa estrutura “piramidal” formam organizações

referidas por Claude Champaud como “participações em escala” ou “participações em

cascata”, o qual as descreve nos seguintes moldes:

As sociedades assim agrupadas figuram exatamente como uma pirâmide quando a estrutura de participações atinge a perfeição, ao menos teoricamente, neste esquema. A sociedade-mãe ocupa o topo do edifício e, se as participações são bem calculadas, ela controla facilmente os patrimônios de todas as sociedades do grupo dentro do qual ela realiza a unidade de direção econômica.36 (tradução nossa)

Este sistema possui inúmeras vantagens, porquanto possibilita a distribuição de

esforço financeiro por mais de uma sociedade para a aquisição e manutenção do controle, de

modo que a contribuição da controladora mostra-se modesta se comparada com os ativos das

demais sociedades do grupo.37

Outrossim, Berle e Means consignam que a emissão de ações sem direito de voto

é mais um mecanismo legal para a manutenção do poder de controle. Deveras, ao dispor que a

maioria das ações perde seus privilégios, em especial o de eleger a administração, basta ser

titular da maioria das ações que mantêm o direito de votar para manter o controle da

companhia38.

Uma variação desse mecanismo consiste em o grupo que detém o controle emitir

um número elevado de ações em que o direito de voto é desproporcional ao capital investido.

Esta sugestão parece se enquadrar na figura do voto plural,39 que encontra vedação expressa

na legislação brasileira (LSA, art. 110, §2º).

Como último mecanismo legal que identificaria a modalidade de poder de

controle sob exame, Berle e Means fazem referência ao voting trust. O voting trust consiste,

como observa Modesto Carvalhosa, na cessão fiduciária da propriedade das ações, em que “o

trustee assume obrigações para com o acionista, o qual, em contrapartida, recebe deste os

trust certificates, que são títulos negociáveis”.40 Por meio desse mecanismo os trustees que

36 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. Cit., p. 214. No original: “Les sociétés ansi groupés figurent exactement une pyramide lorsque la structure des participations atteint la perfection, au demeurant théorique, de ce schéma. La société-mère occupe le sommet de l’edificie et, si les participations sont bien calculées, elle contrôle aisément les patrimoines de toutes les sociétés du groupe au sein duquel elle réalise l’unité de direction économique”. 37 CHAMPAUD, Claude. Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 215. 38 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 89. 39 Como preleciona Modesto Carvalhosa, “voto plural é o privilégio atribuído a determinadas ações, representado por um maior número de votos em relação às demais emitidas pela companhia”. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. 2º. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 401. 40 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 393.

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recebem a maioria das ações têm um controle quase total sobre as atividades sociais, sem que

disponham, necessariamente, de parcela da propriedade.41

Com efeito, insta concordar com Fábio Konder Comparato quando afirma que

somente este mecanismo poderia ser diferenciado das demais espécies de controle sugeridas

pelos autores norte-americanos,42 porquanto a estrutura piramidal, a emissão de ações sem

direito de voto e a emissão de ações com voto plural podem se inserir em alguma das outras

modalidades de controle que compõem a classificação adotada por Berle e Means (quase

totalitário, majoritário, minoritário e administrativo).43

O controle minoritário se faz presente quando, mesmo sem deter a titularidade da

maioria do capital votante, um acionista (ou grupo de acionistas) possui participação que lhe

permita conduzir o destino da companhia. No direito norte-americano, consoante

esclarecimento de Berle e Means, esse controle se baseia em sua capacidade de atrair

procurações dos acionistas dispersos que, quando combinadas à participação minoritária

substancial, são suficientes para controlar a maioria dos votos nas eleições anuais. Isso

significa, mutatis mutandis, que “nenhum outro volume de ações é suficientemente grande

para funcionar como um núcleo em torno do qual seja possível reunir a maioria dos votos”.44

De fato, a instabilidade desta modalidade de controle é patente,45 haja vista

depender não só da dispersão acionária, mas também do absenteísmo dos demais acionistas.46

Entretanto quanto mais dispersa a participação acionária, mais estável se torna o controle

minoritário.

Entre nós o absenteísmo acionário é fator que contribui para a existência de um

controle minoritário, em que pese este ser exceção (decorrente da quase inexistente dispersão

41 Consoante lição de Fábio Konder Comparato, “o trustee não pode ser assimilado a um proprietário (owner), e nesse sentido exerce o controle sem propriedade, mas fundado, de qualquer modo, em direito próprio”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 44. 42 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 44. 43 Neste sentido, cf. GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 40. 44 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 92. 45 Como relatam Berle e Means, “há uma séria limitação ao controle minoritário. É a possibilidade de oposição por parte dos administradores. Enquanto os negócios da empresa vão bem, o controle minoritário pode ser tranquilamente mantido durante anos. Mas, em tempos de crise, quando surge um conflito de interesses entre o controle e a administração, a questão pode ser levantada e uma luta eleitoral pelo poder pode mostrar como o grupo que dispõe do controle tornou-se dependente dos diretores nomeados”. De fato, a briga pelo controle travada entre a administração e o detentor do controle minoritário se consubstancia, como relatam os autores, na luta pelas procurações. BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 92-93. 46 A cumulação destas premissas mostra-se imprescindível, razão pela qual merece crítica o registro de Claude Champaud, no sentido de que “le contrôle exerce par un actionnaire, ou un groupe d’actionnaires détenant moins de 50% des actions de la société, est fondé sur la division ou la passivité des autres actionnaires”. CHAMPAUD, Le pouvoir de concentration (...), ob. cit., p. 115, grifo nosso.

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acionária).47 Juntamente com esta constatação de ordem fática, a LSA estabelece uma

estrutura que permite a instalação de um controle minoritário. É o que se vê da conjugação do

art. 125 com o art. 129. De acordo com esta composição normativa, observadas as

formalidades de convocação, a assembléia geral será instalada, em primeira convocação, com

a presença de acionistas que representem, no mínimo, um quarto do capital social votante, e

em segunda convocação com qualquer número.48 Já o quorum geral49 de deliberação é o da

maioria absoluta dos votos, não se computando os votos em branco. Daí a possibilidade de ser

efetivada a condução dos negócios sociais mesmo por quem não seja titular da maioria do

capital votante.

Além disso, é de se revelar uma modalidade peculiar de controle autorizada pela

legislação das companhias, e que se associa ao controle minoritário,50 consubstanciada na

possibilidade de o capital social ser representado por até 50% de ações preferenciais sem

direito de voto (LSA, art. 15, §2º).

Retornando à classificação proposta por Berle e Means, a última modalidade de

poder de controle sugerida é o controle administrativo (ou gerencial)51 52, o qual se verifica

47 Recentemente a dispersão acionária tem-se intensificado. Segundo informações da BOVESPA, a dispersão da participação acionária em algumas companhias encontra-se nos seguintes moldes: Cremer S/A tem 57,29% de seu capital disperso; Perdigão tem 56,52% de dispersão acionária; Lojas Renner possui 83,31% de seu capital disperso; e a Odontoprev possui uma dispersão de 62,12%. 48 É de se atentar para o quorum especial de instalação previsto no art. 135 da LSA, para a assembléia geral extraordinária que tiver por objeto a reforma do estatuto social. 49 A referência à generalidade deste quorum se justifica em razão do quorum qualificado, que tem nítido caráter excepcional, previsto no art. 136, da LSA, em que a aprovação das matérias ali elencadas exige a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, das ações votantes, se maior quorum não for exigido pelo estatuto das companhias de capital fechado. Referindo-se ao dispositivo legal em epígrafe, Calixto Salomão Filho corrobora que “o último dispositivo [art. 136 da LSA], ao prever a obrigatoriedade da aquiescência da maioria dos acionistas com direito a voto para as deliberações nele enumeradas, deixa claro, a contrario sensu, que as deliberações que ali não estejam enumeradas poderão ser aprovadas por acionistas representando a minoria do capital com direito a voto”. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 123. 50 Na opinião Calixto Salomão Filho esta estruturação legal representa a consagração do controle minoritário. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 122. Na verdade, ao promover a classificação das modalidades do poder de controle, há de se esclarecer se por controle majoritário se está a designar a maioria do capital votante, ou simplesmente a maioria do capital social. Nesta segunda hipótese, certamente que a detenção de 25% do capital social votante, mais uma ação, configuraria verdadeiro controle minoritário. 51 Calixto Salomão Filho faz menção a outra modalidade de poder de controle, por ele denominada de controle gerencial de direito, que se efetiva por meio de golden share, e que se funda no art. 18 da LSA. E esclarecendo a forma de estabelecimento deste tipo de poder de controle, registra: “Basta prever em estatuto, além da composição da diretoria e do Conselho de Administração, virtualmente todas as matérias relevantes para os negócios sociais, atribuindo, além disso, via estatuto social, substanciais poderes de direção dos negócios sociais aos órgãos de administração. Assim, com o poder de veto das alterações estatutárias e com o poder de eleger a maioria dos membros do Conselho pode-se controlar a sociedade”. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 125. 52 Alguns autores enxergam no controle gerencial uma modalidade de controle externo. Cf. PIMENTA, Eduardo Goulart. Joint ventures (...), ob. cit., p. 142-145. Mas esta divergência se situa na compreensão daquilo que se considera como controle interno e externo. De fato, na hipótese de se considerar como controle interno aquele

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quando “a propriedade acionária está tão dispersa, que nenhum indivíduo ou pequeno grupo

tem sequer um interesse minoritário grande para dominar os negócios da empresa”.53 A

instituição e manutenção deste tipo de controle se consolida, também, por meio da utilização

do mecanismo de votos por procuração54, afigurando-se, ademais, como a modalidade de

controle em que a dissociação entre a propriedade (acionária) e controle se mostra de maneira

mais intensa.

Entre nós esta modalidade de controle até hoje não se revelou aplicável devido ao

alto grau de concentração no mercado acionário brasileiro. Em pesquisa empírica realizada no

final da década de 80, Nelson Eizirik concluiu pela inexistência do controle gerencial no

Brasil, haja vista “um perfil de poder empresarial das companhias abertas pouco ou nada

“democratizado”, o que constitui apenas mais um dos reflexos da excessiva concentração de

riqueza em nosso país”.55

Com efeito, consoante advertência realizada no início deste item, nem sempre a

condução dos negócios sociais será orientada por quem componha a estrutura interna da

companhia, variando consideravelmente a origem do que se convencionou chamar de controle

externo.

3.3.2 Controle externo

Como afirmado no capítulo anterior, a estratégia empresarial muitas vezes conduz

o titular da empresa a descentralizar algumas etapas do processo de produção ou distribuição,

outorgando a terceiros a tarefa de “integrar” a atividade empresarial, mediante a criação de

uma verdadeira rede de cooperação. Quando alguma etapa desse processo de produção ou

detido por quem é titular de participação acionária, o controle gerencial certamente não se enquadra nesta classificação. A situação se inverte, no entanto, quando se compreende o controle interno como aquele exercido dentro da estrutura organizacional da sociedade anônima. 53 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 94. 54 Este mecanismo pressupõe a análise das condições subjacentes à eleição do conselho de diretores. “Nessa eleição, o acionista costuma ter três alternativas. Pode abster-se de votar, pode comparecer à assembléia anual e votar pessoalmente ou pode assinar uma procuração transferindo seu poder de voto a certos indivíduos selecionados pela administração da empresa que formam o comitê de procuradores”. Deste modo, “o controle tenderá a estar em mãos daqueles que selecionam o comitê de procuradores que, por sua vez, pode eleger os diretores para o período seguinte. Como o comitê de procuradores é designado pela administração vigente, esta pode virtualmente determinar seus sucessores”. BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima (...), ob. cit., p. 97. 55 EIZIRIK, Nelson. O mito do “controle gerencial” – alguns dados empíricos. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, v. 36, p. 106, abr-jun. 1987.

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distribuição é delegada a alguma companhia, a relação existente entre as partes pode

apresentar-se como situação de verdadeiro controle externo, haja vista que a estratégia de

integração noticiada “dá surgimento a um fenômeno de dependência econômica que é

possível de se caracterizar pela subordinação total da atividade integrada à empresa

integradora”.56 A rigor, esta modalidade de controle apresenta-se como espécie de controle

externo dinâmico.57

O controle externo estático, caracterizado pelo fato de que a relação de dominação

não se desenvolve paralelamente às atividade da controlada, “mas permanece estagnado,

adstrito à proteção do vínculo ou elemento de ligação quando do seu surgimento entre as

partes”,58 encontra na situação de endividamento sua primeira hipótese de incidência. A

possibilidade de a execução de um crédito levar a companhia à falência provoca uma situação

de subordinação desta em relação ao detentor do crédito, o qual poderá passar a coordenar a

exploração da empresa.59

A emissão de debêntures constitui, conforme esclarece Fábio Konder Comparato,

uma situação clássica de controle externo, que corresponde a uma situação mais de fato do

que de direito, visto o direito pátrio não consagre nenhum direito de interferência dos

portadores de debêntures sobre a condução nos negócios sociais,60 exceto quanto à

deliberação sobre a incorporação, fusão ou cisão da companhia emissora, que estará

subordinada a prévia aprovação dos debenturistas, reunidos em assembléia especialmente

convocada com esse fim (LSA, art. 231). Acrescente-se a isso que, se as debêntures puderem

ser convertidas em ações, enquanto exercitável esta prerrogativa, dependerá de prévia

aprovação dos debenturistas, em assembléia especial, ou de seu agente fiduciário, a alteração

do estatuto social para (i) mudar o objeto da companhia, ou (ii) criar ações preferenciais ou

modificar as vantagens das existentes, em prejuízo das ações em que são conversíveis as

debêntures (LSA, art. 57, §2º).

A existência de uma sociedade em conta de participação (SCP) consiste, também,

em uma relação passível de originar controle externo. Afinal, pode ser convencionado entre os

sócios que competirá ao sócio participante entregar os recursos necessários à aquisição e/ou

manutenção do controle de uma companhia, o qual será exercido pelo sócio ostensivo,

56 BOÜARD, Fabrice de. La dépendence économique née d’un contrat. Paris: L.G.D.J, 2007. p. 439. 57 O que caracteriza o controle externo dinâmico é o fato de a sociedade controlada encontrar-se envolvida em atividade intimamente ligadas à do detentor do controle. Cf. GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 135. 58 GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 135. 59 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 64. 60 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 65.

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detentor formal da participação acionária. Se restar convencionado que os atos de controle da

companhia seguirão as orientações do sócio participante, a existência de controle externo

ficará configurada de maneira inexorável.

Situação análoga ocorre quando as ações componentes do bloco de controle

integram um condomínio (LSA, art. 28). Neste caso, é importante lembrar que os condôminos

são co-proprietários de cada uma das ações que integram o condomínio, figurando o

condômino representante como detentor, perante a sociedade e terceiros, da participação

societária.61-62 O condômino representante, porém, pode não ser titular da maior quota-parte

das ações, de maneira que a sua conduta, como controlador formal da companhia, estará

subordinada àquilo que for deliberado na assembléia do condomínio. Daí não ser possível

enquadrar esta modalidade de controle como interno.

Em acréscimo aos exemplos até aqui verificados, inúmeras situações podem

conduzir à aquisição e/ou manutenção do controle por quem não integre algum órgão da

companhia ou nela detenha participação, haja vista que o elemento de ligação entre os sujeitos

dominante e dominado pode ser representado por “créditos, investimentos, garantias, know-

how, marcas, patentes, tecnologias, segredos comerciais acerca de processos ou produtos ou,

ainda, fornecimento de insumos das mais variadas espécies”,63 enumeração esta de ordem

meramente ilustrativa.

Mas independentemente da natureza da relação que origina o poder de controle

externo, cumpre revelar que sua existência há que se caracterizar por certa estabilidade

(excluídos fatos isolados de ascendência), além de a influência dominante64 ser exercida sobre

61 Aqui se está a conjecturar a situação em que somente um dos condôminos consta do registro da companhia, sendo formalizado o condomínio em instrumento à parte. 62 Na opinião de Fábio Konder Comparato, a instituição de condomínio de ações para a formação do controle societário gera, em si mesma, uma sociedade mercantil (em comum ou irregular). COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 111. Este entendimento não parece, todavia, o mais adequado. Afinal, sociedade empresária é aquela que tem por objeto a exploração da empresa. A aquisição e manutenção de ações suficientes para o exercício do controle da companhia não se enquadra no conceito de atividade econômica organizada (CC, art. 966), sendo certo que admitir o controle como sinônimo de atividade empresarial é tornar regra a exceção consistente na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A atividade econômica organizada é exercida pela companhia, centro de imputação de direitos e obrigações com o qual não se confunde a pessoa dos sócios, ainda que se trate do controlador. 63 GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 79. 64 A expressão “influência dominante” é utilizada, em alguns ordenamentos alienígenas (como o alemão e o italiano), para reconhecer o controle sobre uma sociedade sem a detenção de participação societária com direito a voto (GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 60-61). Mas como observa Fábio Konder Comparato, “a noção de “influência dominante” é amplíssima e parece corresponder à própria noção de poder de controle, em sua mais vasta generalidade, abarcando, portanto, não só o controle interno (em todas as suas modalidades), como o externo. Mas a expressão, mais alusiva que descritiva, carece de precisão, constituindo simples diretriz ou indicação para o intérprete, na análise dos elementos de fato”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima (...), ob. cit., p. 57.

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toda a atividade.65 Esclareça-se, no entanto, que a dominação sobre toda a atividade não

significa a substituição pura e simples do poder decisório interno. Afinal, a ascendência

exercida ab extra “não significa que controle externo suprime as instâncias decisórias internas

(órgãos societários), mas que envolve o poder de dirigir o funcionamento destas”.66 A

dominação de toda a atividade não importa na influência sobre todos os elementos que

compõem a empresa. O que se deve investigar é se a orientação dos negócios sociais, como

um todo, segue determinações que vêm de fora da sociedade.

3.3.2.1 Técnicas de responsabilização do titular do controle externo

De fato, ao exercício do poder de controle corresponde à responsabilidade de seu

titular. Em se tratando de controle interno, a responsabilização do controlador encontra

fundamento no art. 117 da LSA.67

O que se pretende, neste item, é encontrar a técnica jurídica necessária à

imposição do dever de ressarcir ao titular do controle externo que, mediante conduta

reprovável, causa prejuízos à companhia, infringe direitos dos minoritários, ou lesa direito de

terceiros.

Inicialmente, há que separar as vítimas de ato antijurídico coordenado pelo

controlador em razão da natureza da relação existente entre as partes, porque em geral o ato

lesivo não é praticado diretamente por ele, mas por interposta pessoa, subordinada à

influência dominante. Basta imaginar um ato lesivo ordenado pelo titular do controle externo,

mas praticado pela companhia. Em princípio, a vítima deverá exercer sua pretensão

ressarcitória contra a sociedade anônima. Da mesma maneira, se por determinação do

controlador externo for aprovada, em assembléia, alguma operação prejudicial à companhia,

ou aos sócios, é o detentor do controle formal quem, teoricamente, responderá pelo ilícito.

65 Guilherme Döring Cunha Pereira, sintetizando a análise realizada por Pasteris, acerca dos elementos caracterizadores do controle externo, consigna a necessidade de que “a) a influência seja de ordem econômica; b) que a influência se estenda a toda a atividade desenvolvida pela empresa controlada; c) que se trate de um estado de subordinação permanente ou, pelo menos, duradouro; e d) que haja impossibilidade para a controlada de subtrair-se à influência, sem séria ameaça de sofrer grave prejuízo econômico”. PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Alienação do poder de controle acionário. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 14. 66 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário (...), ob. cit., p. 227. 67 Os parâmetros de legitimação da conduta daquele que exerce a dominação sobre a companhia serão objeto de estudo à frente.

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Afinal, o direito pátrio acolhe, como regra, a responsabilidade por fato próprio ou

responsabilidade direta.68

Inobstante, a responsabilidade por fato de outrem ou responsabilidade indireta

surge como resposta a situações em que, apesar de o ato lesivo ter sido praticado por um

intermediário – agente direto do dano –, a censurabilidade da conduta de um terceiro que com

ele tem algum vínculo é considerada mais decisiva para a prática do ilícito do que a simples

conclusão do ato pelo agente intermediário. Observe-se que a conduta do terceiro pode ser

não só comissiva, mas também omissiva. Lembre-se, por exemplo, da responsabilidade dos

pais pelos atos dos filhos menores (CC, art. 932, inc. I).69

A coordenação do ato lesivo pelo titular do controle externo não se enquadra,

diretamente, em nenhuma das hipóteses previstas no art. 932 do CC, que tratam da

responsabilidade indireta. Contudo, é inegável que mediante interpretação teleológica (ou

mesmo analógica) conclui-se que o controlador ab extra responderá diretamente perante a

vítima do ato antijurídico. É que consoante a advertência de Caio Mário da Silva Pereira, em

qualquer dos casos previstos em lei, milita uma idéia que é comum a todos: “o terceiro é

responsável quando dispõe de uma autoridade de direito ou de fato sobre outros”.70

Note-se que o que se sugere encontra respaldo nas propostas doutrinárias surgidas

na França, onde também não há um dispositivo legal que autorize, expressamente, a

imposição do dever de indenizar àquele que exerce a influência dominante sobre o agente do

dano. Como esclarecem Geneviève Viney e Patrice Jourdain:

A empreitada, a franquia, o contrato de agência comercial, as redes de distribuição, exclusiva ou seletiva, os grupos de sociedades nos quais as filiais são frequentemente privadas de sua liberdade de decisão em proveito da sociedade-mãe são algumas ilustrações de relações de dominação. Ora o Código civil não contém nenhuma disposição impondo à empresa dominante uma responsabilidade qualquer por atos danosos eventualmente praticados por aqueles junto aos quais ela controla a atividade. Entretanto, muito frequentemente, uma tal responsabilidade mostrar-se-ia eqüitativa, tanto para as vítimas como para as empresas economicamente dependentes que somente dispõem de uma liberdade teórica na definição de objetivos de sua atividade e na escolha de meios dos quais elas dispõem.71 (tradução nossa)

68 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 85. 69 O Código Civil de 2002 consolidou a regra de que as pessoas a quem a lei impõe a responsabilidade por fatos de outrem respondem pelos atos por estes praticados independentemente de culpa de sua parte (art. 933). 70 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil (...), ob. cit., p. 86. 71 VINEY, Geneviève et JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. Paris: L.G.D.J, 2006, p. 963. No original: “La sous-traitance, la franchise, le contrat d’agence commerciale, les réseaux de distribuition, exclusive ou sélective, les groupes de sociétés dans lesquelles les filiales sont souvent privées de

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No mesmo sentido, Fabrice de Boüard sugere que:

A proteção do empreendedor economicamente dependente, fundada sobre as exigências de equilíbrio e de lealdade contratuais, poderia repousar sobre os mecanismos, da responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa, enquanto que aquela de terceiros, vítimas de um dano advindo da atividade integrada, poderia encontrar um fundamento da teoria do risco-proveito e justificar a criação de um novo regime de responsabilidade delitual de fato de outrem pesando sobre o empresário-integrador.72 (tradução nossa)

Assim sendo, conclui-se pela viabilidade da utilização da técnica da

responsabilidade por fato de outrem para imputar ao controlador externo o dever de indenizar

os prejuízos sofridos em decorrência dos atos lesivos intermediados por terceiros a ele

subordinados.

Ainda que não se admita a referida exegese, a regra do 942, in fine, do CC,

confere à vítima do ato ordenado pelo titular do controle externo, e praticado por quem se

encontra em situação dependência em relação a este último, suporte jurídico para exigir do

coordenador externo da companhia indenização pelos prejuízos decorrentes da conduta ilícita.

Na realidade, a contribuição decisiva do titular do controle para a prática do ilícito

por quem sofre a dominação constitui elemento preponderante para a efetivação do dano, de

maneira a evidenciar que este não é fruto de um ato isolado e, via de conseqüência, não tem

uma única e singular causa. Daí ser possível identificar a concausa, cuja conseqüência é,

como se afirmou, a responsabilidade solidária daqueles que contribuem para efetivação do

dano.

leur liberté de décision au profit de la société-mère sont autant d’illustrations de ces relations de domination. Or le Code civil ne contient aucune disposition imposant à l’entreprise dominante une responsabilité quelconque pour les actes dommageables éventuellement commis par celles dont elle contrôle l’activité. Pourtant, bien souvent, une telle responsabilité semblerait équitable, aussi bien pour les victimes que pour les entreprises économiquement dépendantes qui ne disposent que d’une liberté théorique dans la définition des objectifs de leur activité et dans le choix de moyens dont elles disposent”. 72 BOÜARD, Fabrice de. La dépendence économique née d’un contrat (...), ob. cit., p. 440. No original: “La protection de l’entrepreneur économiquement dépendant, fondée sur les exigences d’équilibre et de loyauté contractuels, pourrait reposer sur les mécanismes, de la responsabilité civile et de l’enrichissement sans cause, tandis que celle des tiers, victimes d’un dommage né de l’activité integre, pourrait trouver un fondement dans la théorie du risque-profit et justifier la création d’un nouveau regime de responsabilité délictuelle du fait d’autrui pesant sur l’intégrateur”.

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3.4 O controle na Lei Acionária brasileira

A doutrina73 costuma afirmar que, diferentemente do que ocorre com a legislação

de países como a Itália e a Alemanha, a Lei nº 6.404/76 teria se limitado a regular o controle

interno da sociedade anônima. De fato, conforme disposição do art. 116 da LSA:

[...] entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

A compreensão adequada desta definição legal é de extrema importância para que

se possa direcionar “a quem de direito” os deveres impostos pela legislação acionária.

O primeiro comentário que se cumpre fazer diz respeito ao reconhecimento da

legitimidade da utilização de técnicas contratuais de aquisição e manutenção do controle, que

se instrumentalizam nos acordos de acionistas,74 regulados pelo art. 118 da LSA.

Formalizado o instrumento de controle comum, os acordantes/controladores

assumem a responsabilidade de conduzir os negócios e promover a realização do interesse

social, de modo que, verificado o abuso do controle, cada um dos acordantes responderá pelos

prejuízos decorrentes da conduta antijurídica.

No entanto, a existência de solidariedade dos acordantes/controladores quanto aos

prejuízos causados em razão do exercício abusivo do direito de voto é questão melindrosa, em

face da omissão legislativa a respeito do tema. Ademais, restaria saber se o sócio que na

reunião prévia75 registrou sua dissidência pode eximir-se da responsabilidade pelos danos

causados.

73 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 488; GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 54. 74 Sobre o acordo de acionistas, cf. BARBI FILHO, Celso. Acordo de acionistas. Belo Horizonte: Del Rey, 1993; CARVALHOSA, Modesto. Acordo de acionistas. São Paulo: Saraiva, 1984; BERTOLDI, Marcelo M. Acordo de acionistas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 75 A reunião prévia, como esclarece Carvalhosa, “tem como fundamento formar a vontade da comunhão de controle que daí resulta, a partir do confronto das vontades individuais traduzidas, eventualmente, em interesses ou posicionamentos diversos manifestados nessa mesma reunião prévia. A partir dessas discussões, em que se

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A investigação da natureza jurídica do acordo de acionistas possibilita responder a

ambos os questionamentos. Assim, a partir do momento em que se admite, em concordância

com a doutrina dominante,76 que o acordo de acionistas que tem como objeto o exercício

conjunto do direito de voto para o exercício do poder de controle da companhia é um contrato

plurilateral; parece possível ir um pouco além para enxergar neste tipo de negócio jurídico a

formação de uma sociedade em comum.

Nesta ordem de idéias, a responsabilidade dos acordantes/controladores seria

solidária (CC, art. 990), podendo eventual acordante dissidente exercer tão-somente eventual

regresso contra os demais que aprovaram a medida lesiva à companhia.77

Atente-se, também, para a possibilidade de anulação da deliberação contrária aos

interesses da companhia quando presente o conflito de interesses (art. 115, §4º, da LSA).

Com efeito, há entendimento doutrinário78 de que o exercício abusivo do direito

de voto pode assumir duas espécies: (i) voto abusivo; (ii) voto conflitante.

A primeira espécie envolve a intenção deliberada do acionista de causar dano à

companhia, ou a outros acionistas, ou de obter vantagem indevida para si, ou para terceiros,

em detrimento da companhia ou outros acionistas.

Já o voto conflitante se faz presente quando o acionista tem interesse pessoal

diverso do da companhia. Segundo esta vertente doutrinária, esta compreensão assumiria

importância em razão da sanção imposta pelo legislador quanto às diferentes modalidades de

exercício abusivo do direito de voto. A rigor, ambos atribuem ao acionista infrator o dever de

indenizar, enquanto que a anulação da deliberação encontra previsão tão somente para os

casos de voto conflitante.

No entanto, a distinção sugerida parece despropositada, porquanto as hipóteses

normativas descritas no caput do art. 115 consubstanciam, à evidência, situações em que a

existência de conflito de interesses, seja formal ou material, é inevitável, de modo a concluir-

se que a conseqüência do exercício abusivo do direito de voto será a sua anulabilidade

(ressalvada, obviamente, a hipótese de o voto abusivo não prevalecer) e a sujeição do

acionista infrator às perdas e danos apurados.

Neste sentido, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França assevera que: manifestam os signatários do acordo presentes, será a deliberação da reunião prévia tomada por maioria no mínimo absoluta de votos presentes, obedecido o regime de quorum pactuado (...) Assim, a reunião prévia, regularmente instalada, representa a universalidade dos signatários do acordo.” CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 2º Vol. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 526. 76 Cf., por todos, BERTOLDI, Marcelo M. Acordo de acionistas (...), ob. cit., p. 45-52. 77 A impossibilidade de o acordante dissidente eximir-se de responsabilidade pelo exercício abusivo do direito de voto do “grupo de controle”, do qual faz parte, encontra-se, também, na regra do art. §2º, do art. 118, da LSA. 78 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 329-331.

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[...] na medida em que o caput do art. 115 determina que o acionista vote no interesse da companhia, considerando abusivo o voto proferido com outra finalidade, a lei está afirmando – não há como negá-lo – que o voto abusivo pressupõe um interesse conflitante com o da companhia (...) A sanção estabelecida pela lei, portanto, é a anulação da deliberação tomada em decorrência do voto abusivo ou conflitante, além da reparação dos prejuízos causados e da transferência das vantagens auferidas para a companhia. Se o voto não prevalecer na deliberação, então sim, até por uma questão de lógica, a sanção consistirá apenas na reparação dos prejuízos causados.79

Outra premissa que se extrai do conceito do art. 116 da LSA, e que não coincide

com o entendimento doutrinário antes mencionado,80 é o reconhecimento, ainda que

indiretamente, da possibilidade de existência de um controle externo. Afinal, quando o texto

legal considera controlador o grupo de pessoas que, sob controle comum, direciona as

atividades sociais, está-se reconhecendo que é o detentor do controle das pessoas

subordinadas (titulares de participação acionária) quem, de fato, exerce a condução das

atividades da companhia. É esta a conclusão a que se chega ao constatar que o controle

comum é o elo que conduz o legislador a afirmar que as sociedades controladas detêm, juntas,

o controle da companhia. A esta situação a doutrina denomina controle em cascata.81

Também merece registro, sobre o dispositivo legal sob exame, o texto da alínea

“a”. Quando o legislador faz menção à titularidade de direitos de sócios que assegurem, de

modo permanente, a maioria dos votos na deliberação da assembléia geral e o poder de eleger

a maioria dos administradores da companhia; fica visível a desnecessidade, ainda que teórica,

de se possuir ações para que seja possível o enquadramento no conceito de controlador de

uma sociedade anônima. Isso porque, como adverte Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, em

caso de usufruto das ações, o direito de voto pode se desmembrar da propriedade da

participação societária, de maneira a possibilitar que o usufrutuário das ações possa ser

considerado titular do controle da companhia.82

79 NOVAES FRANÇA, Erasmo Valladão e. Conflito de interesses nas assembléias de S.A. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 99-100. No Direito francês a sanção do exercício abusivo do controle também “peut être double. Elle peut consister tant en l’annulation de la décision abusive qu’en la condamnation complémentaire des majoritaires fautifs à des dommages et intérêts (Com., 6 juin 1990, préc.). Ces actions peuvent être intentées alternativement ou cumulativement (...)”. SALOMON, Renaud. Précis de droit commercial. Paris: Presses Universitaires de France, 2005. p. 196. 80 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 488; GUIDUGLI, João Henrique. Controle externo contratual (...), ob. cit., p. 54. 81 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 268. 82 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 268.

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Efetivamente, a legislação acionária confere liberdade ao nu-proprietário e ao

usufrutuário para que definam seus respectivos direitos, merecendo destaque as disposições

legais da LSA que regulam o usufruto, quais sejam: (i) o art. 40, que determina a averbação

do usufruto de ações; (ii) o art. 114, que atribui ao usufrutuário e ao nu-proprietário o poder

de decisão quanto ao exercício de voto em relação às ações gravadas; (iii) o art. 169, §2º, que

estende às ações decorrentes do aumento de capital, mediante capitalização dos lucros ou de

reservas, o usufruto que onera as ações das quais elas forem derivadas, salvo convenção em

contrário; e (iv) o art. 171, §5º, que trata do direito de preferência para subscrição do aumento

de capital, esclarecendo que este poderá ser exercido pelo nu-proprietário até dez dias antes

do vencimento do prazo, após o que poderá sê-lo exercido pelo usufrutuário.

Ressalte-se ademais que, uma vez convencionado que o direito de voto compete

ao usufrutuário, caso ele se insira na condição de controlador, nenhuma responsabilidade por

atos decorrentes do controle pode ser imputada ao nu-proprietário, como adverte Arnoldo

Wald.83

Some-se às constatações até aqui promovidas para interpretar a definição legal de

controlador, a necessidade de se verificar se a prevalência nas deliberações assembleares

apresenta estabilidade, de modo a estar excluída a preponderância nas deliberações que se dê

de forma casual ou fortuita. Esta análise, portanto, deve ser casuística no que respeita às

companhias fechadas, dada a inexistência de um critério líquido e certo, como ocorre com as

sociedades anônimas de capital aberto,84 muito embora se sustente a possibilidade de

aplicação analógica do critério adotado por estas últimas, às companhias fechadas.85

Chama a atenção, ainda, o fato de o legislador pátrio não exigir a titularidade da

maioria do capital votante para que se alcance a titularidade do controle, o que confere

condições à existência de um controle minoritário.

Já a referência ao poder de eleger a maioria dos administradores evidencia que o

ordenamento pátrio entende que esta ascendência “é suficiente para orientar eficazmente a

sociedade”.86

Finalmente, fator primordial para que alguém seja considerado controlador é que

haja efetiva utilização do poder de direção das atividades da companhia. Esta exigência legal

83 WALD, Arnoldo. Do regime jurídico do usufruto de cotas de sociedade de responsabilidade limitada e de ações de sociedades anônimas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 29, n. 77, p. 14, jan-mar 1990. 84 A Resolução nº 401/1976 estabelece como requisito de permanência a detenção da maioria absoluta dos votos dos acionistas presentes nas três últimas assembléias-gerais. 85 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 271. 86 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 271.

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evidencia a distinção entre poder de controle e controle. Afinal, não basta estar em condições

de exercer a dominação das atividades sociais: é necessário, por meio da prática de atos

reiterados, fazer uso desta situação de ascendência.

Com efeito, conforme afirmado acima, a identificação do titular do controle é de

grande importância para que se possa imputar-lhe os deveres prescritos na lei acionária. Note-

se, contudo, que o fato de a LSA ter admitido, ainda que indiretamente, somente uma espécie

de controle externo (controle em cascata), isso não significa que o titular das demais espécies

de controle externo esteja dispensado de observar os princípios da boa-fé objetiva, da função

social da empresa, da função social dos contratos, do solidarismo etc. Esta constatação

possibilita afirmar que o titular do controle externo está adstrito basicamente às mesmas

regras de conduta que o controlador interno, haja vista que as regras da lei acionária que têm

como destinatário este último se inspiram e encontram fundamento nos princípios referidos.

Na realidade, independentemente da origem e natureza do controle, o seu titular

não poderá, em razão de sua posição privilegiada, impedir ou violar a realização dos direitos

fundamentais que a ele se encontram subordinados. Esta premissa, que encontra respaldo na

teoria dos direitos fundamentais, foi expressamente concretizada pelo legislador pátrio (LSA,

art. 116, parágrafo único).87

3.5 Leitura constitucional do controle acionário

Com efeito, não há como concordar com o entendimento de que o art. 116,

parágrafo único, da LSA, constitui mero exercício de retórica,88 porque, como esclarece

Milton Nassau Ribeiro, esta regra consiste, ao mesmo tempo, em fundamento legal e marco

87 “Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.” 88 Cf. MUNHOZ, Eduardo Secchi: “O reconhecimento de que o controlador e os administradores da sociedade devem tomar em conta os interesses dos trabalhadores e da comunidade local, sendo vedado orientar a companhia para fins lesivos ao interesse nacional, parece altamente elogiável, mas põe em destaque a ponderação de Berle, cuja atualidade é evidente, de que isso somente seria possível após a elaboração de um sistema razoável e eficaz de atribuição (I) de legitimidade aos titulares desses interesses para sua defesa e (II) de deveres e responsabilidades aos condutores da atividade empresarial. No caso da lei brasileira, é unânime o entendimento de que inexiste um sistema dessa natureza, o que transforma o art. 116, parágrafo único, e as demais normas de mesma orientação em pouco mais do que mero exercício de retórica”. Empresa contemporânea e direito societário (...), ob. cit., p. 41 (grifos nossos)..

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interpretativo da governança corporativa, objetivando compatibilizar os interesses envolvidos

na exploração da empresa pela companhia, isto é, persegue-se a “harmonização entre a

realização do objeto social mercantil da companhia, cumprimento de sua função social e

atendimento e respeito aos interesses dos acionistas e demais interessados”.89

Ademais, é inegável a contribuição do referido dispositivo legal para uma leitura

constitucional do controle acionário. A existência desta norma de direito infraconstitucional

afasta eventual discussão teórica acerca da eficácia (mediata ou imediata) dos direitos

fundamentais nas relações privadas envolvendo o fenômeno do controle.

Os “interesses” a que faz menção este dispositivo consistem, na verdade, nos

direitos fundamentais que giram em torno da atividade explorada pela companhia, o que

confirma a oponibilidade, ao controlador, de todos os direitos subordinados à sua posição

privilegiada, de maneira que a concretização da tutela dos direitos fundamentais das partes

relacionadas à empresa comandada pelo controlador ocorrerá pelo preenchimento do

conteúdo desta norma.

Isto faz com que as partes em situação de vulnerabilidade possam sustentar suas

pretensões contra o controlador com base na cláusula geral do parágrafo único, do art. 116,

cujo conteúdo será preenchido, insista-se, com os direitos fundamentais eventualmente

ameaçados ou violados ilegitimamente pelo controlador.

Desse modo, a omissão ou ineficiência da tutela legal dos direitos fundamentais

envolvidos na companhia poderão ser supridas pela invocação e “preenchimento”

constitucional do dispositivo comentado.

Note-se que nas relações externas esta sugestão conduz à responsabilidade do

controlador pelo ato ilegítimo por ele coordenado, mas formalmente praticado pela

companhia, consistindo em verdadeira hipótese normativa de responsabilidade indireta.90

Esclareça-se, a propósito, a impossibilidade de se considerar a responsabilização

direta do controlador como espécie de desconsideração da personalidade jurídica da

companhia, visto serem tecnicamente inconfundíveis o abuso da personalidade jurídica (que

fundamenta a desconsideração91) e o abuso do poder de controle (que atribui responsabilidade

ao titular do controle). Como esclarece Verçosa, enquanto o primeiro é caracterizado pelo

89 RIBEIRO, Milton Nassau. Aspectos jurídicos da governança corporativa. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 176. 90 Sobre a responsabilidade indireta, conferir item 3.2.1, acima. 91 O art. 50 do Código Civil estabelece como parâmetro para a desconsideração o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial.

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desvio de finalidade (em relação ao objeto social) ou pela confusão patrimonial; o segundo

corresponde a um desvio do direito-função atribuído ao titular do controle pelo legislador.92

Efetivamente, não há como confundir as hipóteses de responsabilização com

aqueloutras de desconsideração da personalidade jurídica, consoante advertência de Vinícius

José Marques Gontijo. Isto porque:

[...] na responsabilização o agente infrator da norma será responsável perante terceiros e a própria sociedade, que, se indenizar o dano sofrido pelo terceiro prejudicado, tem direito de regresso contra aquele que praticou o ilícito gerador do dano. Enquanto que na desconsideração da personalidade jurídica, por ser decretada a ineficácia da personalidade jurídica da sociedade no caso concreto, ela não tem como ser condenada, e, assim, não há que se falar em direito de regresso (...) Ainda estremando os institutos, a responsabilização, conforme dissemos, atinge apenas e tão-somente aquele ou aqueles agentes do ilícito passíveis de serem responsabilizados (a sanção não passa do agente infrator da norma); no entanto, a desconsideração da personalidade jurídica, por ser decorrente da decretação da ineficácia da personalidade, atinge a todos: tanto o sócio majoritário quanto o minoritário; tanto o que tem poder de gestão quanto aquele que não o tenha – em suma: todos que estavam protegidos pela personalidade da sociedade93.

Chame-se a atenção, também, para o fato de que a norma sob análise poderá

fundamentar não só pretensões de natureza indenizatória,94 mas também a imposição judicial

de obrigações de fazer ou não fazer, concretizáveis por meio da tutela específica, prevista no

art. 461 do CPC.95

A atuação preventiva, aliás, mostra-se não só possível, como desejável, haja vista

a dificuldade de a tutela ressarcitória recompor a vítima do ilícito ao exato estado em que se

encontrava antes da prática do ato lesivo, ao que se soma o antigo problema, ainda existente

92 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 294. 93 GONTIJO, Vinícius José Marques. Responsabilização no Direito Societário de Terceiro por Obrigação da Sociedade. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 44, n. 140, p. 96-97, out-dez 2005. 94 Neste sentido, Verçosa pontua: “Na medida em que o legislador estabeleceu deveres do controlador em favor destes, evidentemente eles devem estar dotados de meios jurídicos para a defesa dos seus interesses, que poderiam ser os seguintes caminhos alternativos: (i) evitar o ato ilícito de abuso de poder de controle antes que ele seja realizado; (ii) repor a situação no estado imediatamente anterior ao ato ilícito praticado pelo controlador; ou (iii) converter o prejuízo efetivo causado àqueles em perdas e danos”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 286. 95 “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.”

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em determinadas relações jurídicas,96 de se exigir a comprovação do elemento subjetivo para

a imputação da responsabilidade civil ao agente do dano.

Sendo assim, uma vez constatada a probabilidade da prática de ato contrário aos

direitos fundamentais subordinados ao controlador, a utilização da tutela inibitória consiste

em medida eficiente para a proteção dos direitos ameaçados.97 Primeiro, porque se evita a

concretização do dano, cuja reparação costuma ser penosa para as vítimas. Segundo, porque o

deferimento desta tutela jurisdicional não exige a comprovação da culpa, elemento de difícil

comprovação e, em determinadas situações, simplesmente inexistente. Realmente, ainda que

remota, existe a possibilidade de o controlador violar direitos fundamentais sem agir de

maneira culposa.

Elucidando as características e aplicabilidade do remédio processual mencionado,

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart ponderam que a ação inibitória “ainda que

pensada como uma tutela voltada contra o ilícito, acaba por impedir a prática de um dano”,

salientando que “a culpa é critério para a imputação da sanção pelo dano, sendo totalmente

descartável quando se pensa em impedir a prática, a continuação ou a repetição de ato

contrário ao direito”.98

Obviamente, a legitimidade processual para o exercício da pretensão variará de

acordo com a natureza dos direitos fundamentais ameaçados ou violados pela conduta

reprovável do controlador, destacando-se esta abordagem pela possibilidade de os direitos

fundamentais em jogo serem de titularidade difusa ou coletiva, como ocorre com os direitos

dos consumidores, com o direito de proteção ao meio ambiente, o direito de proteção dos

trabalhadores etc.

96 Em que pese a grande ampliação normativa de aplicação do regime objetivo da responsabilidade civil, o sistema de natureza subjetiva continua sendo a regra geral. Basta conjugar a regra do art. 927 com aqueloutra do art. 187 do CC para chegar a esta conclusão. 97 Após analisar a responsabilidade do controlador perante a comunidade, Comparato vai mais além para concluir: “Fundamento da legitimidade do poder de controle, no setor avançado da economia, ou seja, aquele que dita as leis do mercado, é o cumprimento dessa função social, conforme o princípio constante do art. 160, n. III da Constituição. Isto significa, em estrita lógica, que, onde o controle se exerça em sentido contrário a essa finalidade, torna-se antijurídico, por violar mandamento constitucional. A legitimidade, ou fundamento axiológico do poder, é, no caso, elemento integrante do conteúdo literal da norma. A sanção natural, por conseguinte, é a perda do direito ao controle; não, apenas, pela nacionalização da empresa, que é remédio para os casos extremos, em que estão em jogo interesses fundamentais da nação, em seu conjunto, mas também da expropriação do controle, em proveito de outro empresário”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle (...), ob. cit., p. 392. 98 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 428-429.

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A propósito, não se pode concordar com o entendimento de que:

[...] na lei acionária brasileira, a ação de responsabilidade por abuso de poder de controle fica restrita aos acionistas, o que permite concluir que a definição de novos interesses protegidos (dos trabalhadores, da comunidade local, da nação) não veio acompanhada da indispensável designação do agente legitimado para sua defesa.99

Com efeito, a identificação dos agentes legitimados para a defesa dos direitos

fundamentais (“interesses”) elencados no art. 116, parágrafo único, da LSA, pela própria lei

acionária é desnecessária, e a sua ausência certamente não impossibilita que o dever imposto

ao controlador seja levado a efeito.

Isso porque a legislação que cuida dos direitos fundamentais de titularidade

coletiva/difusa estabelece a legitimidade para a sua defesa, a exemplo do que ocorre com a

Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao

meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico

e paisagístico.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, a atribuição de legitimidade ao

Ministério Público (de ofício ou mediante solicitação da Comissão de Valores Mobiliários)

para adoção de medidas judiciais necessárias para evitar o prejuízos ou obter ressarcimento de

danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado de capitais,

ex vi da Lei nº 7.913/89.

No mesmo sentido, o CDC prevê a defesa coletiva dos direitos do consumidor

quando os interesses em discussão forem de natureza difusa, coletiva, ou individual

homogênea, outorgando legitimidade concorrente às pessoas enumeradas no art. 82.100

Observe-se, ademais, que Comparato chegou a defender, em 1977, a utilização da

ação popular como medida de implementação da responsabilidade do controlador,101 o que

não parece se adequar (à exceção da proteção ao meio ambiente) ao texto da Constituição

99 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário (...), ob. cit., p. 41. 100 “Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I – o Ministério Público; II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III – as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código; IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear.” 101 “No que concerne aos remédios jurídicos tendentes a fazer atuar as responsabilidades do controlador para com a comunidade, em geral, a sua utilização deve competir não somente ao Estado, por intermédio do Ministério Público, mas também a qualquer do povo. É preciso vencer, aí, a tradicional desconfiança do legislador em relação àqueles que litigam por interesses que não lhes são próprios. Ao lado da ação popular de natureza política (Constituição Federal, art. 153, §31), importar criar uma espécie de ação popular de índole social”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle (...), ob. cit., p. 391.

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vigente, que reserva a ação popular com a finalidade de “anular ato lesivo ao patrimônio

público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio

ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (...)”.102

No âmbito interno da companhia, a leitura constitucionalizada, empreendida

segundo os ditames da teoria dos direitos fundamentais, confere a devida proteção a

minoritários e administradores, merecendo registrar que estes encontram na lei acionária

inúmeros deveres, mas poucos direitos que concretizam seus direitos fundamentais.

Em relação aos minoritários, é preciso esclarecer o caráter instrumental dos

direitos a eles outorgados pela LSA.103 Direitos como o recesso, a preferência na subscrição

de ações em caso de aumento de capital social, o direito de fiscalizar a gestão social, o “tag

along”, e os dividendos obrigatórios, certamente não são fins em si mesmos. Todos objetivam

garantir, em certa medida, a realização dos direitos fundamentais da liberdade (livre iniciativa

e liberdade de associação/liberdade de não permanecer associado), igualdade e propriedade.

Por isso, se diante de um caso concreto restar constatada a omissão ou ineficiência

da tutela do legislador em face de um ato ilegítimo do controlador, o minoritário poderá

invocar a regra do art. 116, parágrafo único, preenchendo seu conteúdo com o direito

fundamental ameaçado ou ofendido.

Já a situação dos membros da administração é um pouco mais delicada. Isso

porque, em princípio, são os gestores da atividade social, o que justifica a imposição legal dos

deveres de diligência,104 lealdade105 e informação.106 A ressalva se justifica porque, de acordo

com a legislação acionária, são destituíveis ad nutum,107 o que evidencia sua subordinação em

relação ao controlador.

102 CF/88, art. 5º, inc. LXXIII. 103 Por uma análise dos institutos de tutela dos minoritários, cf. BULGARELLI, Waldirio. Regime jurídico de proteção às minorias nas S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. 104 “Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.”. 105 “Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: I – usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício do seu cargo; II – omitir-se no exercício ou proteção dos direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia; III – adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir.” 106 “Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular.” 107 Esclareça-se que compete à assembléia geral a eleição e destituição dos membros do conselho de administração, competindo a estes, por sua vez, eleger e destituir os membros da diretoria. Inexistindo o conselho de administração, a assembléia geral assume a prerrogativa de eleição e destituição dos membros da diretoria.

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E é exatamente a destituição ad nutum que poderá consistir em ameaça ou ofensa

a direitos fundamentais dos administradores. A rigor, o modo pelo qual a destituição é levada

a efeito não poderá violar a dignidade do administrador, a quem deve ser concedido,

outrossim, o contraditório e a ampla defesa na hipótese de a destituição ser motivada por

algum tipo de acusação.108-109

Por outro lado, não se pode deixar de registrar que a posição privilegiada do

controlador não lhe retira a condição de titular de direitos fundamentais, dentre os quais se

destacam a liberdade e a propriedade. Diante disso, não se pode exigir que o detentor do

poder na companhia simplesmente abra mão de seus direitos para a realização de direitos

alheios.

Como já dito alhures, a ameaça ou violação (com intensidades bastante variadas) a

direitos fundamentais nas relações privadas é simplesmente inevitável, em especial quando a

relação sob exame integra direta ou indiretamente a exploração da empresa.

Neste contexto, o que se pode exigir do controlador é que sua conduta de ameaça

ou violação a algum direito fundamental passe por um filtro de legitimidade, averiguando-se

(i) se a ofensa ou ameaça se justifica na realização de um outro direito fundamental e (ii) se o

ato impugnado observou a exigência da proporcionalidade.110

Com efeito, a aplicação da teoria dos direitos fundamentais no direito das

sociedades anônimas conduz a uma releitura não só do fenômeno do controle, mas de alguns

institutos e relações jurídicas estabelecidas na exploração da empresa. É este exame que será

empreendido no capítulo que se segue.

108 Como preceitua a norma constitucional do art. 5º, inc. LV, “aos litigantes, em processo judicial ou extrajudicial, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (grifos nossos) 109 Os tribunais franceses já tiveram a oportunidade de se pronunciar sobre a destituição ad nutum sem a observância ao contraditório, concluindo por sua ilegitimidade. Como relata Julien Raynaud, em 26 de abril de 1994 a Corte de Cassação francesa considerou irregular “la révocation d’un dirigeant de société anonyme intervenue sans qu’il ait été mis en mesure de présenter préalablement ses observations, consacrant ainsi un véritable droit à se faire entendre par le Conseil d’administration avant que celui-ci ne se prononce sur la révocation”. No mesmo sentido, um outro julgado, da mesma Corte, porém de 1996, registrou ser abusiva a destituição do administrador “si elle a été édictée brutalement sans respecter le principe de la contradiction”. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamenteux dan les actes juridiques privés. Press Universitaires d’Aix-Marseille, 2003. p. 327. É de se registrar, contudo, que na França a destituição ad nutum dos administradores encontra resistência na legislação. Como noticia Yves Guyon, “la loi du 24 juillet 1966 a permis la constitution de sociétés anonymes avec un directoire, composé de membres révocables seulement pour justes motifs. La loi du 15 mai 2001 (art. 106) accentue ce mouvement en supprimant la révocabilité “ad nutum” du directeur general, s’il ne préside pas de conseil d’administration. C’est admetre que la révocabilité “ad nutum” n’est pas de l’essence de la société anonyme”. GUYON, Yves. Traités des contrats – les sociétés: aménagements statutaires et conventions entre associés. Paris: LGDJ, 2002. p. 398. 110 Vide Capítulo 1, item 1.7.

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4 LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS

4.1 Notas introdutórias

Nos dois capítulos iniciais foram reunidos os elementos necessários a uma leitura

constitucional dos institutos relacionados às sociedades anônimas, apresentando-se no

Capítulo 1 as teorizações sobre os direitos fundamentais, enquanto que no Capítulo 2 foi

examinado o perfil constitucional da empresa, bem como analisadas a estrutura e funções da

sociedade anônima, destacando-se a sugestão de que as sociedades anônimas devem ser

compreendidas, sob o ponto de vista jurídico, como instrumentos de realização e conciliação

dos direitos fundamentais direta e indiretamente relacionados à atividade explorada pela

companhia.

A rigor, a concepção constitucionalizada do papel das sociedades anônimas

confere um novo enfoque ao estudo do exercício do controle, conforme demonstrado no

Capítulo anterior, influência esta que acaba se disseminando para todos os institutos

relacionados à sociedade anônima.

Nesta ordem de idéias, o presente Capítulo tem como objetivo promover uma

releitura, alicerçada na teoria dos direitos fundamentais, de alguns temas e institutos da

sociedade anônima.

4.2 Releitura das técnicas de tutela dos direitos fundamentais na Lei das Sociedades

Anônimas

No item 1.8, do Capítulo 1, foram abordadas as técnicas de proteção dos direitos

fundamentais, restando consignado que a doutrina costuma dividi-las em basicamente dois

grupos: (i) anulação e (ii) correção.

Em razão de sua especialidade, no Direito Societário são encontradas duas

técnicas específicas de tutela dos direitos fundamentais: o recesso e a expulsão.

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A LSA estabelece, contudo, restrições à utilização dessas técnicas, o que, em

princípio, justifica-se em razão das características particulares das sociedades anônimas, como

a previsibilidade de livre cessão da participação societária e a presumida impessoalidade das

relações entre os sócios e destes com a companhia.

No entanto, há situações em que a restrição legal quanto à utilização dos institutos

em tela torna insuficiente a tutela de direitos fundamentais de titularidades as mais diversas,

implicando o necessário afastamento da regra de direito infraconstitucional mediante uma

argumentação baseada na teoria dos direitos fundamentais.

4.2.1 O direito de recesso

A LSA reconhece como essencial o direito de o acionista se retirar da sociedade

nos casos previstos em lei (art. 109, inc. V), hipótese em que será reembolsado do valor de

suas ações,1 na forma do art. 45.

Introduzido na legislação acionária pátria pelo Decreto nº 21.536/32, o direito de

recesso foi mantido tanto pelo Decreto-lei nº 2.627/40 quanto pela vigente Lei nº 6.404/76,

muito embora as causas que conferem ao acionista a prerrogativa de exercê-lo tenham sido

modificadas inúmeras vezes, ora para reduzir, ora para ampliar as hipóteses de incidência

deste direito.

A doutrina costuma identificar neste direito a função de conciliar dois interesses

que a lei reconhece como merecedores de proteção: (i) o interesse da companhia; e o (ii)

interesse dos minoritários. Enquanto o primeiro consiste no reconhecimento de a maioria

modificar o estatuto social, o interesse dos minoritários (que não concordarem com a opinião

da maioria) reside no fato de não serem obrigados a sofrer restrições de seus direitos de

participação, ou de não continuarem como sócios de uma companhia essencialmente diferente

daquela cuja participação adquiriram.2

1 Para uma análise do valor do reembolso no direito brasileiro, ver COMPARATO, Fábio Konder. Valor do reembolso em recesso acionário. Revista dos Tribunais. vol. 563, p. 2 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Criação de Nova Classe de Ações Preferenciais Menos Favorecida. In: FILHO, Alfredo Lamy et PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S/A. 2º Vol. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p.339. No mesmo sentido, Robert Clark revela que os defensores do recesso sustentam suas posições em basicamente dois argumentos, “one base on a claim of defeated expectations and one base on the risk of unfair treatment in major corporate transactions”. CLARK, Robert C. Corporate Law. New York: Aspen Law&Business, 1986. p. 444.

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Desse modo, a sistemática relativa ao direito de recesso se resume no “poder da

maioria de deliberar sobre temas de excepcional relevância para a sociedade (e que exigiam

“quorum” especial) a ser contrastado pelo direito da minoria de dissentir, e retirar-se da

sociedade”.3

Como anota Modesto Carvalhosa, o recesso constitui resilição ou denúncia

unilateral parcial, extinguindo a relação jurídica entre o acionista denunciante e a companhia.

Ressalte-se que apenas com o pagamento dos haveres do acionista retirante é que ocorre a

efetiva extinção da relação, premissa esta de extrema importância, visto que, enquanto não se

findar o vínculo social, o acionista continua a ser titular de direitos patrimoniais e políticos

junto à companhia.4

Importa registrar que o recesso nas sociedades anônimas não é tratado como um

direito de se despedir imotivadamente da sociedade, porquanto, de acordo com o ordenamento

acionário, seu exercício está subordinado (a) a uma deliberação eficaz da assembléia geral

sobre uma das matérias expressamente previstas em lei5 como suscetíveis de gerar este

direito, e (b) à inexistência de consentimento do acionista à modificação6 (o que evidencia a

impossibilidade de o acionista arrepender-se da decisão tomada em assembléia). Além desses

pressupostos, compete ao acionista dissidente reclamar o reembolso de suas ações no prazo de

trinta dias, a contar da publicação da ata de assembléia geral, como preceitua o inc. IV, do art.

137, sob pena de decadência do direito.

Considerando que o direito em voga afigura-se como direito de proteção da

minoria em face de determinadas decisões da maioria,7 e também diante da inexistência de

3 FILHO, Alfredo Lamy. O Direito de Retirada e a Vigência da Lei nº7.958/89. In: FILHO, Alfredo Lamy; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S/A (...), ob. cit., p.350. 4 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2º Vol. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 891. 5 Vide arts. 136, 137, 221, 236, 252, 256 e 264, da LSA. 6 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 894. 7 Rachel Sztajn apresenta uma abordagem interessante sobre a finalidade do recesso, entendendo tratar-se de um mecanismo neutro, voltado para a realidade societária, que permite a cada membro, dentro do jogo de interesses internos, garantir sua liberdade de permanecer ou não associado sem recorrer à dissolução da sociedade. E fundamenta esta conclusão em razão das seguintes premissas: “Maioria e minoria são verificadas nas assembléias gerais, em que um acionista, isoladamente ou em composição com outros, faz, por meio do voto, prevalecer sua vontade (maioria) sobre a de outros que são vencidos (minoria). Tratando-se de maioria votante, o direito de retirada pode facilitar as deliberações pela redução do quorum, sem que os acionistas discordantes, minoritários, possam vetar os desejos da maioria. O recesso poderá, então, ser visto nem como tutela de minorias nem como vantagem para a maioria, mas como um mecanismo ou meio de o sócio ou acionista retirar-se da sociedade naquelas situações determinadas por lei”. SZTAJN, Rachel. O direito de recesso nas sociedades comerciais. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 71, p. 53, 1988. Com efeito, apesar de poder assumir uma finalidade neutra em casos isolados, a exegese histórica e teleológica do instituto do recesso acenam para a sua compreensão como instrumento de tutela dos minoritários.

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proibição legal, não parece haver justificativa para vedar a ampliação, seja pelo estatuto ou

pela assembléia geral, das hipóteses autorizadoras do recesso.8

Em contrapartida, a restrição das hipóteses previstas em lei afigura-se ilegítima,

ante a natureza das normas que concretizam a tutela dos minoritários (preceitos de ordem

pública).9

Em que pese o recesso consistir em relevante instrumento de tutela dos

minoritários, uma parte da doutrina noticia a preocupação quanto ao exercício abusivo deste

direito e quanto ao alargamento das hipóteses para o exercício do direito sob exame.10

De fato, o exercício do recesso pode comprometer a saúde financeira da

companhia se o reembolso exigido pelo acionista dissidente consistir em elevada

descapitalização. A preservação da empresa seria, nestes casos, deixada de lado para o

exercício do direito de um ou alguns acionistas dissidentes, de maneira a instaurar-se

verdadeira concorrência (ou conflito, como preferem alguns) entre os direitos fundamentais

destes últimos com os demais direitos fundamentais que gravitam em torno da empresa,

concorrência esta que deverá ser solucionada mediante os critérios estudados no item 1.7, do

Capítulo 1, caso não seja colocada em prática a alternativa prevista no §3º, do art. 137, da

LSA,11 no sentido ser reconsiderada a decisão que possibilitou o exercício do recesso.

Impende registrar que a doutrina clássica demonstra uma preocupação mais

intensa com a preservação da empresa do que com o direito de o acionista não ser obrigado a

8 Em sentido contrário, Modesto Carvalhosa entende que os pressupostos objetivos para o recesso não podem ser estendidos ou ampliados pelo estatuto ou pela assembléia geral. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 360. Também contra a extensão das hipóteses de recesso, SZTAJN, Rachel. O direito de recesso nas sociedades comerciais. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 71, p. 53, 1988. A favor da ampliação, porém no âmbito das sociedades limitadas, Celso Barbi Filho consigna: “A meu sentir, se a lei estabelece a alteração do contrato pela maioria como causa para o exercício do recesso, nada impede que as partes, dentro de sua autonomia de vontade, ampliem essa prerrogativa para nela incluir outras situações”. FILHO, Celso Barbi. Dissolução parcial de sociedades limitadas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 261. 9 Normas de ordem pública são aquelas que objetivam não só estabelecer condutas aplicáveis diante da ausência de regulação particular – supletivas, e que por isso são passíveis de alteração pela autonomia privada –, mas que asseguram direitos cujo interesse transcende a esfera jurídica de seus titulares; bem como aquelas garantidoras de direitos que não seriam livremente pactuados face à ausência de uma situação de igualdade material. 10 Conforme comentário de Waldirio Bulgarelli, “contemplou a Lei 6.404, à semelhança do que ocorria no regime do revogado Decreto-lei 2.627, de 1940, o direito de recesso, entre os direitos essenciais. Trata-se de direito amplamente aceito pelas legislações, embora se entenda descabido quando as ações estejam cotadas em Bolsa, pois que, assim, o acionista insatisfeito poderia negociá-las, sem necessidade de recorrer ao pagamento das ações da companhia”. BULGARELLI, Waldirio. Regime jurídico da proteção às minorias nas S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 101. 11 “§3º Nos 10 (dez) dias subseqüentes ao término do prazo de que tratam os incisos IV a V do caput deste artigo, conforme o caso, contado da publicação da ata da assembléia geral ou da assembléia especial que ratificar a deliberação, é facultado aos órgãos da administração convocar a assembléia geral para ratificar ou reconsiderar a deliberação, se entenderem que o pagamento do preço do reembolso das ações acionistas dissidentes que exerceram o direito de retirada porá em risco a estabilidade financeira da empresa.”

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permanecer associado contra sua vontade, propondo, inclusive, uma interpretação estrita do

instituto sob exame. É o que se extrai das ponderações de Bulhões Pedreira, segundo as quais:

[...] a lei somente prevê direito de retirada em alguns casos expressos, de deliberações que modificam de modo fundamental a organização da companhia ou os direitos de participação dos acionistas, porque o reembolso de ações põe em risco a continuidade e viabilidade do funcionamento da empresa, cuja preservação é – por motivos de interesse geral, econômico e social – um dos principais objetivos da lei. O direito de retirada é, portanto, excepcional, e por ser capaz de prejudicar o interesse geral há de ser interpretado de modo estrito.12

Adicione-se a estes argumentos o registro das críticas ao instituto do recesso nas

companhias promovidas pela doutrina norte-americana, as quais sustentam basicamente três

argumentos, classificados por Robert Clark em (i) the consistency argument; (ii) the cash

drain argument; e (iii) the stock market argument.

O primeiro argumento refere-se a uma suposta ausência de consistência nas

hipóteses de recesso previstas em lei, haja vista existirem situações de alteração da estrutura

societária ou mesmo dos negócios da companhia que não são contempladas com o recesso.

Deste modo, ou se amplia o rol para o recesso, ou se extingue este direito.13

Em que pese ser inegável a lógica desse argumento, seu pragmatismo (apanágio

do direito anglo-saxão) deve ceder espaço para uma visão constitucionalmente adequada, nos

moldes do que será proposto no item seguinte, no sentido de que a regulação

infraconstitucional que observa o devido processo legislativo presume-se legítima,

competindo à parte supostamente lesada pela intervenção falha do legislador o ônus

argumentativo de que a proteção de seus direitos fundamentais não se mostra adequada.

Por outro lado, o cash drain argument resume-se ao fato de que, se um número

considerável de minoritários exercer o recesso, a descapitalização decorrente do reembolso

poderá inviabilizar uma operação de grande eficiência para a companhia, constituindo o

recesso, portanto, uma “trava” para decisões da maioria.

Contudo, como observa o próprio professor de Harvard,

Para a própria lógica do argumento, pode-se questionar por que, se a transação da companhia é genuinamente boa e aumentará o valor das ações, os administradores serão incapazes (1) de convencer os minoritários deste fato e da atratividade de participar da transação (especialmente em razão de os acionistas buscando o recesso estarem legalmente impedidos de participar

12 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Criação de Nova Classe de Ações (...), ob. cit., p.340. 13 CLARK, Robert C. Corporate Law (...), ob. cit., p. 446.

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dos ganhos advindos da transação por eles dissentida) e/ou (2) obter financiamento para comprar as participações dos acionistas dissidentes.14

Já o stock market argument consiste na alegação de que as ações cotadas em bolsa

têm liquidez suficiente para que os acionistas dissidentes deixem a companhia mediante a

simples venda de seus valores mobiliários.15

Esse argumento, tradicionalmente utilizado por aqueles que advogam posição

contrária ao recesso, deixa de lado situações bastante corriqueiras, ao menos no Brasil, em

que o nível de liquidez das ações impossibilita a desvinculação do acionista contrário a

determinadas decisões tomadas em assembléia.

Ultrapassadas as críticas normalmente realizadas pela doutrina anglo-saxã, insta

atentar para o fato de que a sugestão da doutrina pátria, no sentido de que a preservação da

empresa seria um princípio de hierarquia superior aos direitos fundamentais dos acionistas

dissidentes não encontra respaldo na teoria constitucional, em especial no momento em que o

constitucionalismo moderno coloca em dúvida a legitimidade de se admitir a genérica e

absoluta prevalência do interesse público sobre o particular, haja vista que “para um Estado

que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional, a proteção e promoção

dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um

autêntico interesse público”,16 sendo certo que “o interesse privado e o interesse público estão

de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente

descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos

próprios fins do Estado”.17

Neste contexto, há que se concordar com a tendência de admissão da dissolução

parcial18 das sociedades anônimas, muito embora a teoria constitucional não seja diretamente

14 CLARK, Robert C. Corporate Law (...), ob. cit., p. 446. No original: “as for the logic of the argument, we may wonder why, if a corporate transaction is a genuinely good one that will increase the value of the corporation’s shares, the managers will be unable (1) to convince the minority shareholders of this fact and of the desirability of participating in the transaction (especially since the shareholders seeking appraisal are legally barred from sharing in gains arising from the transactions to which they dissent) and/or (2) to obtain financing with which to buy out the dissenting shareholders”. 15 CLARK, Robert C. Corporate Law (...), ob. cit., p. 447. 16 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos x Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos x Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 83. 17 ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos x Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 191. 18 Apesar de não haver consenso na doutrina quanto à diferenciação entre a dissolução parcial e o recesso, parece prevalecer a sugestão de que a dissolução parcial é o procedimento de saída de sócio, sem a extinção da sociedade, decorrente de um pleito imotivado, enquanto que o recesso é a prerrogativa legal do sócio de se retirar da sociedade conforme as hipóteses previstas em lei. Neste sentido, FILHO, Celso Barbi. Dissolução parcial

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utilizada na fundamentação das decisões e das propostas doutrinárias que defendem a

aplicação deste instituto às sociedades anônimas.

O que justifica a aplicação da dissolução parcial às sociedades anônimas é a

constatação de que, a despeito da previsão legal de livre transferência das ações, inúmeras

circunstâncias podem acarretar “autêntico congelamento do capital investido pelo acionista,

em face da iliquidez de suas participações societárias”, aplicando-se o instituto em voga

“dentro da construção elaborada para as sociedades limitadas”.19

Neste sentido, no Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido o entendimento

sobre a possibilidade jurídica de se admitir a dissolução parcial das sociedades anônimas em

que a natureza intuitu personae for irrefutável, sob o argumento de que a ruptura da affectio

societatis representa verdadeiro impedimento para que a companhia continue a realizar seu

fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos. No julgamento dos EREsp. n.

11.294/PR, em que foi relator o Ministro Castro Filho, restou resumida a posição hoje

dominante no STJ, verbis:

[...] III – É inquestionável que as sociedades anônimas são sociedades de capital (intuitu pecuniae), próprio às grandes empresas, em que a pessoa dos sócios não tem papel preponderante. Contudo, a realidade da economia brasileira revela a existência, em sua grande maioria, de sociedades anônimas de médio e pequeno porte, em regra, de capital fechado, que concentram na pessoa de seus sócios um de seus elementos preponderantes, como sói acontecer com as sociedades ditas familiares, cujas ações circulam entre os seus membros, e que são, por isso, constituídas intuito personae. Nelas, o fator dominante em sua formação é a afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua. Em tais circunstâncias, muitas vezes, o que se tem, na prática, é uma sociedade limitada travestida de sociedade anônima, sendo, por conseguinte, equivocado querer generalizar as sociedades anônimas em um único grupo, com características rígidas e bem definidas. Em casos tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o art. 206, II, “b”, da Lei nº6.404/76, já que dificilmente

(...), ob. cit., p. 247. Em sentido diverso, Eduardo Goulart Pimenta entende que “o recesso, disciplinado tanto na legislação que regulamenta as sociedades simples e limitadas quanto na lei das sociedades por ações, é a espécie de dissolução parcial, (entendida esta como o rompimento dos vínculos societários relativamente a determinado sócio), na qual há o abandono voluntário do organismo pelo sócio”. Para o professor mineiro, dissolução parcial é categoria genérica que engloba o recesso e a exclusão. PIMENTA, Eduardo Goulart. Exclusão e retirada de sócios. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 64 e 147. 19 FILHO, Celso Barbi. Dissolução parcial (...), ob. cit., p. 61.

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pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos. A regra da dissolução total, nestas hipóteses, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país. À luz de tais razões, o rigorismo legislativo deve ceder lugar ao princípio da preservação da empresa, preocupação, inclusive, da nova Lei de Falências – Lei nº11.101/05, que substituiu o Decreto-lei nº7.661/45, então vigente, devendo-se permitir, pois, a dissolução parcial, com a retirada dos sócios dissidentes, após a apuração de seus haveres em função do valor real do ativo e passivo. A solução é a que melhor concilia o interesse individual dos acionistas retirantes com o princípio da preservação da sociedade e sua utilidade social, para evitar a descontinuidade da empresa, que poderá prosseguir com os sócios remanescentes.20

Com efeito, a tese de aplicação da dissolução parcial às sociedades anônimas

acaba conduzindo à tutela do direito fundamental do acionista retirante, muito embora os

tribunais e a própria doutrina não tenham promovido uma leitura constitucional da situação

sob exame. Mas como será demonstrado, a teoria dos direitos fundamentais consiste em

contribuição de grande relevo para a solução das situações sob exame, porquanto fornece

subsídios sólidos e legítimos para afastar a regra restritiva do direito de recesso.

4.2.1.1 O recesso e a teoria dos direitos fundamentais

Para que se promova uma interpretação legítima do direito de recesso, há que

compreendê-lo sob a ótica constitucional, promovendo uma argumentação com base na teoria

dos direitos fundamentais.

A partir do momento em que se admite que a finalidade do Direito Privado é

concretizar e/ou conciliar a realização dos direitos fundamentais, o direito de recesso há que

ser interpretado como um mecanismo de concretização do direito fundamental de não

permanecer associado (direito da livre associação).

Nas sociedades anônimas, o exercício deste direito fundamental se viabiliza não

só pelo recesso, mas também pela previsão legal de livre transferência da participação

societária, como já comentado. Assim, o acionista exerce o direito de não permanecer

associado mediante a alienação de suas ações.

20 ERESp n. 111.294/PR, Rel. Ministro Castro Filho, por maioria, DJU de 10.09.2007.

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Não obstante, também como já observado acima, há situações, em especial nas

companhias fechadas, em que a ausência de liquidez das ações impede o exercício do direito

fundamental em voga.21 E como a LSA restringe o direito de recesso em face da companhia às

hipóteses nela exaustivamente previstas, o direito de não permanecer associado restará

inviabilizado se a situação a que está exposto o acionista não se enquadrar naquelas previstas

na legislação acionária.

Em circunstâncias como esta, o afastamento das regras restritivas da LSA

encontra na eficácia horizontal dos direitos fundamentais, e na proibição de insuficiência de

tutela destes direitos,22 o fundamento para que seja reconhecido ao acionista o direito de se

retirar da companhia, mediante o reembolso das ações liquidadas.

Entretanto não se pode afirmar que em toda e qualquer circunstância de iliquidez

das ações deverá ser deferido o recesso ao acionista que pretende exercer seu direito

fundamental quando não presente alguma das hipóteses legais que autorizam esta medida.

Afinal, o exercício desse direito fundamental poderá atentar contra outros direitos

fundamentais quando o reembolso das ações conduzir a uma situação de descapitalização tal

que a empresa tenha que ser paralisada.

Nesta situação, em que o acionista pretende o afastamento da restrição legal (cuja

constitucionalidade se presume), compete-lhe o ônus argumentativo de demonstrar que, diante

das nuances do caso concreto, a aplicação da regra restritiva mostra-se inconstitucional, por

inviabilizar a realização de seu direito fundamental, que, no caso concreto, deve prevalecer

sobre os demais direitos fundamentais que estão subordinados à empresa.

Imagine-se uma situação em que fique demonstrado que a conversão da

participação do sócio retirante em dinheiro é medida necessária para que se evite a alienação

judicial de seu bem de família (o que é possível nas hipóteses previstas no art. 3º, da Lei nº

8.009/90), ou mesmo quando os valores decorrentes de sua participação acionária tiverem

como destino a realização uma cirurgia de grande importância ou fato similar. É inegável que

21 Em que pese a iliquidez das ações ser mais comum nas companhias de capital fechado, “existem inúmeras companhias abertas cujas ações têm pouca ou nenhuma negociação em Bolsa, aproximando-se, e muito, das companhias fechadas, com capital detido exclusivamente pelo grupo controlador; o acionista, assim, permaneceria na mesma situação do sócio da sociedade fechada, com a alternativa iníqua de vender as suas ações por preço vil”. PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades: dissolução parcial. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 221. 22 Como adverte Canaris, “o legislador dispõe, em princípio, de amplas possibilidades para conformar o direito infra-constitucional, e, em especial, também para reduzir, ou, eventualmente, até mesmo eliminar um padrão de proteção já alcançado, sem, com isso, descer aquém do nível mínimo de proteção constitucionalmente imposto, e, portanto, ofender a proibição de insuficiência”. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003. p. 118 – destaques nossos.

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diante de circunstâncias como estas não só o direito de não permanecer associado está em

jogo, mas a própria dignidade do sócio, como também o direito fundamental à moradia.

Ressalte-se que não se está sugerindo uma solução pronta e acabada para uma

possível concorrência entre os direitos fundamentais daqueles direta e indiretamente

envolvidos com a saída do sócio. O que se pretende é chamar a atenção para a importância

das normas fundamentais na argumentação que conferirá subsídios para o recesso requerido

em contraposição à legislação infraconstitucional. Como já afirmado alhures, diante do

conflito entre os direitos fundamentais importa avaliar a norma que prevalecerá sobre as

demais no caso concreto, mediante os critérios expostos no item 1.7, do Capítulo 1.

4.2.2 A exclusão de acionista

Enquanto o recesso consiste em técnica de tutela do direito fundamental de não

permanecer associado contra a própria vontade, a exclusão afigura-se como instrumento de

proteção dos direitos fundamentais da companhia (livre iniciativa), e daqueles direitos que

giram em torno da empresa por ela explorada.23

A exclusão é abordada pela doutrina como uma técnica de afastamento do sócio

contra sua vontade, o que encontra justificativa, em linhas gerais, no fato de que a

permanência do sócio prejudicial gera conseqüências irreversíveis,24 podendo conduzir a

sociedade a situações como a de insolvência.25

Originariamente, no Direito brasileiro, a exclusão de sócio foi fruto de construção

doutrinária, que encontrou na parte final do texto legal do art. 339 do Código Comercial – que

se referia à despedida do sócio por justa causa26 – o fundamento para a exclusão de sócio.

23 Esta compreensão não se confunde com os vários enfoques dados pela doutrina, que se refere à exclusão de sócio como meio de sanção, defesa da empresa, de exercício de auto-tutela dos interesses sociais, de conservação da sociedade, e alternativa à dissolução por motivos relacionados a seus atos ou situação, e instrumento para melhor organização e gestão social. Cf. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 161. 24 RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios (...), ob. cit., p. 128. 25 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. Vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 144. 26 O texto do art. 339 do Código Comercial preceituava: “Art. 339. O sócio que se despedir antes de dissolvida a sociedade ficará responsável pelas obrigações contraídas e perdas havidas até o momento da despedida. No caso de haver lucros a esse tempo existentes, a sociedade tem direito de reter os fundos e interesses do sócio que se despedir, ou for despedido com causa justificada, até se liquidarem todas as negociações pendentes que houverem sido intentadas antes da despedida”. É importante registrar, no entanto, a referência expressa a uma modalidade de exclusão de sócio, qual seja a do sócio remisso, prevista no art. 289 do diploma legal em voga,

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No Direito vigente, a exclusão de sócio nas sociedades regidas pelo Código Civil

encontra neste diploma legal fundamento jurídico expresso para promover o afastamento

daquele que, mediante conduta contrária ao dever de colaboração, coloca em risco as

atividades sociais.27

Em se tratando das sociedades anônimas, no entanto, a exclusão de sócio somente

é prevista pela LSA quando trata do sócio remisso (arts. 106 e 107)28 e quando autoriza o

resgate (art. 44).29

Contudo, cumpre registrar o preceito normativo contido no art. 1.089 do CC, no

sentido de que, em casos de omissão da LSA, as disposições do Código Civil aplicam-se às

companhias.

De fato, a aplicação das disposições do Código Civil às companhias consiste em

medida de grande valia quando se busca fundamento, no direito infraconstitucional, para a

expulsão30 do acionista prejudicial.

Na seara doutrinária, as três grandes correntes que fundamentam a exclusão de

sócios são: (a) a teoria do poder corporativo disciplinar; (b) a teoria da disciplina taxativa

legal; e (c) teoria contratualista.

A teoria do poder corporativo disciplinar se funda na autonomia existencial da

corporação (equiparada à Administração Pública), cujos interesses não se confundem com os

junto ao que se faz necessário mencionar a também já revogada regra contida no art. 48 do Decreto-lei nº7.661/45, que determinava a liquidação da participação societária do falido. 27 Vide arts. 1.030 e 1.085 do Código Civil. 28 Fran Martins, com propriedade, enxerga na disposição do art. 10 da LSA hipótese correspondente ao inadimplemento do dever de contribuir para a formação do capital social. Segundo o autor, “estatuindo que a responsabilidade civil dos subscritores ou acionistas que contribuírem com bens para a formação do capital social é idêntica à do vendedor, quer a lei mostrar que respondem eles pelos vícios ocultos existentes em ditas cousas e garantem a sociedade pela evicção (...). De tal modo, é justo que haja uma reparação, que pode consistir ou no pagamento da diferença entre o valor dado aos bens conferidos e o valor real, levando-se em consideração os defeitos ou falhas encontrados, ou, até, tornando-se a cousa imprópria ao uso da sociedade, a sua substituição por outra não defeituosa ou, por último, a retirada do acionista da sociedade, com o pagamento das perdas e danos que tiverem advindo com esse conferimento”. MARTINS, Fran. Comentários à lei das sociedades anônimas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 77. 29 Em tema de resgate é preciso ressaltar que a exclusão, se compreendida como o afastamento do sócio contra sua vontade, está subordinada à regra do §6º, do art. 44, que preceitua que “salvo disposição em contrário do estatuto social, o resgate de ações de uma ou mais classes só será efetuado se, em assembléia especial convocada para deliberar essa matéria específica, for aprovado por acionistas que representem, no mínimo, a metade das ações da(s) classe(s) atingida(s)”. Como se vê, existe liberdade para que o estatuto social autorize o resgate sem a anuência dos titulares das ações resgatáveis. Em assim sendo, percebe-se que o resgate pode consistir em modalidade de exclusão de acionista. 30 Como sugere Renato Ventura Ribeiro, “por expulsão pode-se entender os casos de exclusão decorrentes de deliberação dos demais sócios ou por eles provocada (como em ação judicial). Os motivos podem ser variados, desde a falta de integralização do capital social até problemas em relação a determinado sócio. Não abrange, portanto, decisões válidas a todos os sócios, como no caso de grupamento de ações, que venham a gerar a perda da qualidade de membro de alguns”. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócio (...), ob. cit., p. 103.

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de seus membros, devendo sobre estes prevalecer.31 A exclusão seria, assim, manifestação de

um poder disciplinar, cujo mérito do ato não poderia ser objeto de apreciação jurisdicional

(em verdadeira equiparação a um ato administrativo). O cumprimento dos deveres de sócios e

o respeito ao ente coletivo deveriam ser apreciados somente por este, constituindo a exclusão

verdadeira sanção aplicável àquele que não cumpre as obrigações de membro de uma

corporação.32

Dentre as objeções a esta teoria destacam-se a inadmissão de poder de supremacia

fora do campo público, bem como a constatação de que exclusão do sócio decorre da lei,

sendo certo que as delimitações legal e estatutária implicam o não-reconhecimento da

soberania da sociedade, que possui a faculdade de excluir (ou não) o sócio.33 Some-se a isso a

existência de sociedades não personificadas, de maneira a inviabilizar a defesa de um poder

disciplinar, haja vista a inexistência de ente distinto da pessoa dos sócios.34

A teoria da disciplina taxativa legal, por sua vez, assenta o fundamento jurídico

do instituto em tela na lei, justificando-se a exclusão de sócio por sua finalidade publicística

(preservação da empresa), caracterizando-se, também, como medida de caráter sancionatório,

restritivo e excepcional, a exigir expressa previsão legal.35

Em que pese o mérito de se enxergar na atividade explorada pela sociedade

interesses que extrapolam aqueles dos sócios, esta linha teórica peca por fundar suas

premissas exclusivamente no interesse público, haja vista que, se esta fosse a única base da

exclusão de sócio, estar-se-ia diante de um verdadeiro dever, e não poder ou faculdade da

sociedade.

Outrossim, a limitação de utilização desta técnica somente às hipóteses previstas

em lei pode impedir a expulsão de sócio que prejudique a sociedade por motivo não

expressamente previsto em lei, o que impediria a finalidade do instituto, afastando a natureza

de sanção de conduta reprovável devido ao fato de que a exclusão do sócio pode ocorrer

mesmo quando baseada em fatos não culposos ou não imputáveis ao sócio.36

Já a teoria contratualista encontra na cláusula resolutória implícita aos contratos o

fundamento da exclusão de sócio, adequando a regra da resolução pelo inadimplemento do

sócio aos contratos plurilaterais, bem como utilizando o princípio da preservação da empresa

31 Cf. LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 703. 32 Cf. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócio (...), ob. cit., p. 136. 33 RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócio (...), ob. cit., p. 138. 34 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 146. 35 LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas (...), ob. cit., p. 702. 36 Cf. LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas (...), ob. cit., p. 703.

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para justificar a manutenção da sociedade sem o sócio faltoso.37 Neste contexto, compete ao

sócio cumprir seus deveres contratuais (dentre eles o dever de colaboração), sob pena de

haver resolução do contrato em relação a ele, mediante sua exclusão do quadro societário.38

Esta teoria tem obtido maior acolhida junto à doutrina por representar o meio-

termo daqueloutras,39 possibilitando a preservação da empresa, através da iniciativa dos

particulares (sócios), a quem compete, na qualidade de formadores da vontade social, avaliar

a conveniência de se excluir o sócio que deixa de cumprir alguma obrigação em relação à

sociedade.

A rigor, de maneira a evitar questionamentos sobre a existência do dever jurídico

de colaboração dos sócios nas sociedades anônimas (decorrente da presumida natureza intuitu

pecuniae da relação entre os sócios e destes com a companhia), nada obsta a inserção de

cláusula resolutória expressa no estatuto social,40 autorizando a exclusão do acionista que não

cumpra as prestações acessórias, que se resumem não só ao dever de abstenção de prática de

atos que prejudiquem a atividade explorada pela companhia,41 mas incluem, também,

obrigações de facere, por meio da prática de atos que possam contribuir para o êxito

empresarial.42

37 Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial (...), ob. cit., p. 147. 38 É nítida a influência desta linha teórica sobre o legislador do Código Civil. Afinal, conforme preceitua o art. 981 do CC, “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”, enquanto que os arts. 1.028-1.032 estão sob o título “Da Resolução da Sociedade em Relação a um Sócio”. 39 RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócio (...), ob. cit., p. 145. 40 Neste sentido, Eduardo Goulart Pimenta observa a inexistência de “obstáculo lógico em admitir a validade de cláusula estatutária, tornando expressa aos acionistas o cumprimento de obrigação (negativa, como se viu) no sentido de atender ao seu dever de colaboração e ao princípio da preservação da empresa (...) Tais cláusulas, que não encontram proibição expressa na legislação, podem perfeitamente, segundo os princípios dominantes no direito privado, constar do ato constitutivo e vincular os membros”. PIMENTA, Eduardo Goulart. Exclusão e retirada de sócios (...), ob. cit., p. 145 e 146. Registre-se, outrossim, que no direito francês a jurisprudência pacificou o entendimento de que a cláusula de exclusão de acionista é legítima, sendo ela indispensável para se promover o afastamento forçado do sócio. É o que se extrai das observações de Yves Guyon: “La jurisprudence a longtemps hésité. Elle admet aujourd’hui la validité de principe des clauses d’exclusion ou de rachat forcé. Elle écarté au contraire ces deux mesures lorsque les status n’ont rien prévu”. GUYON, Yves. Traité des contrats. Les Sociétés: Aménagement statuaires et conventions entre associés. Paris: L.G.D.J, 2002. p. 176. 41 Este dever é identificado mesmo nas grandes companhias, como observa Mário Engler Pinto Júnior, tratando-se “de uma obrigação de não fazer, ou seja, de não criar obstáculos que impeçam ou dificultem a realização dos objetivos sociais, que se equipara a um autêntico dever de fidelidade”. JÚNIOR, Mário Engler Pinto. Exclusão de acionista. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 54. p. 87. 1984, 42 De fato, é a leitura moderna da boa-fé objetiva o fundamento de uma conduta diligente e proba (CC, art. 422), sendo inadmissível exigir-se tão somente a abstenção da má-fé para qualificar uma conduta como de boa-fé. É necessária uma cooperação ativa, de maneira que as partes envolvidas em relações jurídicas contribuam, na medida do possível, para realização de direitos fundamentais próprios e alheios. Esta ordem de idéias encontra respaldo constitucional, no princípio da solidariedade. Para uma abordagem mais aprofundada de uma leitura constitucional da boa-fé objetiva, ver NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 106-154.

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Juntamente com a cláusula resolutória, a inclusão, no estatuto social ou em acordo

de acionistas, de cláusula penal para a hipótese de inadimplemento do dever de colaboração

apresenta-se, também, como medida de grande interesse para a companhia, haja vista a

dificuldade de em determinadas circunstâncias fazer prova efetiva do dano causado pela

conduta reprovável do acionista a ser excluído.

É de se consignar não ser correta a afirmação de que somente o controlador está

em condição de colaborar para o êxito da atividade, de maneira que o dever em comento não é

somente a ele imputável.43 Afinal, o quorum qualificado exigido para determinadas

deliberações indica que mesmo sem o controle o acionista pode interferir diretamente na

condução dos negócios sociais. Some-se a isso a lembrança de Eduardo Goulart Pimenta, no

sentido de que o acionista não controlador está habilitado a postular vaga em qualquer órgão

de administração ou fiscalização, podendo, mediante a utilização de instrumentos legais,

como o voto múltiplo (LSA, art. 110), assumir posição de relevo nos órgãos da sociedade

anônima.44

Conclui-se, deste modo, que tanto o controlador quanto os minoritários têm o

dever de cooperar (com intensidades diferenciadas) para a atividade explorada pela

companhia, estabelecendo a LSA sanções para o inadimplemento do dever geral de

colaboração, a saber: (i) anulação de deliberação lesiva à companhia (art. 115, §4º); (ii)

imposição do dever de reparação dos prejuízos causados à companhia (art. 115, §3º); e (iii)

suspensão do exercício dos direito do acionista (art. 120).

No entanto, há situações em que a tutela outorgada pela LSA contra atos lesivos

de acionistas prejudiciais poderá mostrar-se insuficiente. Isso porque, como pondera Mário

Engler Pinto Júnior, há casos em que a permanência do acionista na companhia coloca em

risco a atividade explorada, podendo tal ameaça ter “origem num comportamento ilícito, cuja

reparação não possa ser alcançada por nenhum dos mecanismos protetivos previstos na lei

societária”.45

Diante de tal contexto, a doutrina sugere a possibilidade de ser invocado o

princípio da preservação da empresa, conjugado com a regra do art. 1.089 do CC, para

43 Na França, Renaud Salomon noticia que a jurisprudência já teve a oportunidade de definir o abuso da minoria nos seguintes termos: “il y a abus de minorité lorsqu’un minoritaire interdit la réalisation d’une opération essentialle pour la société, dans le but de favoriser ses propres intérêts au detriment de l’ensemble des outres associés”. SALOMON, Renaud. Précis de droit commercial. Paris: Presses Universitaires de France, 2005. p. 197. 44 PIMENTA, Eduardo Goulart. Exclusão e retirada de sócios (...), ob. cit., p. 137. 45 JÚNIOR, Mário Engler Pinto. Exclusão de acionista (...), ob. cit., p. 88.

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permitir a exclusão do acionista que coloca em risco a atividade explorada pela companhia,

seja ele minoritário ou controlador.46

De fato, esta sugestão é de inegável pertinência, muito embora seja indicada a

leitura constitucional da exclusão do acionista prejudicial, mediante a aplicação da teoria dos

direitos fundamentais, a fim de que seja alcançado um nível satisfatório de legitimidade da

medida de exceção a ser tomada.

4.2.2.1 A exclusão do acionista e a teoria dos direitos fundamentais

Como abordado no Capítulo 2, a exploração da empresa por uma sociedade

anônima consiste no exercício de pelo menos duas espécies de direitos fundamentais: a livre

iniciativa, de titularidade da própria companhia, e o direito de livre associação, que encontra

nos sócios os seus titulares. A preservação da empresa coincide, portanto, com a conservação

e proteção desses direitos fundamentais, juntamente com a salvaguarda dos direitos

fundamentais que gravitam em torno da empresa, e cuja titularidade varia consideravelmente.

Sendo assim, condutas de acionistas que colocam em risco a continuação da

atividade empresarial merecem atenção especial, impondo-se a averiguação da adequação da

tutela conferida pelo legislador infraconstitucional.

Com efeito, se restar constatado que as técnicas de proteção previstas em lei são

insuficientes para que sejam preservados os direitos fundamentais acima referidos, a admissão

da exclusão do acionista prejudicial encontra na teoria dos direitos fundamentais alicerce de

legitimidade induvidosa. De fato, a análise da insuficiência da proteção conferida pela

legislação está subordinada à ponderação/adequação das normas relacionadas aos direitos

constitucionais das partes lesadas com aqueles que sustentam os direitos do acionista

prejudicial, titular do direito fundamental da propriedade sobre as ações representativas do

46 A possibilidade de exclusão do controlador advém do reconhecimento de que a parcela do capital do sócio a ser excluído não deve ser computada para efeito do quorum de exclusão. Neste sentido, Verçosa esclarece que “a parte do capital do sócio a ser excluído deve ser desconsiderada no momento da deliberação a respeito, dando-se por aprovada a moção favorável ou contrária que vier a alcançar a maioria do capital votante”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 153. Na realidade, considerando o patente conflito de interesses quando da deliberação de exclusão do controlador, a impossibilidade de contagem de seus votos na assembléia convocada para decidir seu afastamento forçado da companhia encontra respaldo na norma do art. 115, §1º, da LSA. Cf. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios (...), ob. cit., p. 198-201.

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capital social da companhia, devendo-se avaliar a adequação, necessidade e

proporcionalidade da medida proposta.47

Acrescente-se, ademais, que, da mesma maneira que a teoria dos direitos

fundamentais confere subsídio para a exclusão do acionista que coloca em risco a empresa, a

legitimidade subordina-se não só aos critérios propostos pela doutrina, mas também à

observância de determinados parâmetros fixados diretamente por normas constitucionais.

O direito ao contraditório e à ampla defesa, por exemplo, devem ser garantidos ao

acionista cuja exclusão se persegue,48 ainda que a exclusão ocorra pela via extrajudicial,

hipótese possível quando prevista cláusula resolutória no estatuto social.49 Desse modo, é

necessária a concessão de oportunidade ao acionista de produzir provas de que as alegações

em que se funda a pretensão de exclusão são infundadas, impondo-se a convocação de

assembléia geral especialmente para este fim,50 observada uma antecedência mínima

compatível com a complexidade das acusações, de maneira a possibilitar que o acusado possa,

efetivamente, exercer as garantias constitucionais em tela. A não-observância a estes

parâmetros constitucionais contamina a legitimidade da medida excepcional da exclusão,

possibilitando a declaração de sua nulidade.

Também em razão da incidência de normas constitucionais à situação sob análise,

a motivação da decisão da assembléia geral é elemento indissociável para que a medida da

exclusão seja considerada legítima, porquanto a ausência de motivação impossibilita ao

acionista excluído exercer o direito ao contraditório judicial e/ou extrajudicialmente.

Efetivamente, como a decisão da assembléia geral afeta a esfera jurídica do acionista excluído

do mesmo modo que uma decisão administrativa, não há razão para não se aplicar, mediante

interpretação teleológica, analógica e sistemática, a regra do art. 93, inc. X, da CF/88.

47 Como pontua Humberto Ávila, uma medida é adequada se o meio escolhido está apto para alcançar o resultado desejado; é necessária se, dentre todas as disponíveis e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos direitos dos sujeitos envolvidos; e é proporcional se, relativamente ao fim perseguido, não restringir excessivamente os direitos envolvidos. ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos x Interesses Privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 194. 48 Coadunando com esta premissa salutar, Yves Guyon registra a necessidade de que “les modalités de l’exclusion soient compatibles avec le respect des droits de la défense et du principe du contradictoire. Les status doivent par conséquent désigner l’organe chargé de prononcer la sanction et organiser la procédure suivie devant lui, en prévoyant, au minimum, que l’intéressé sera convoqué en temps utile et pourra être entendu s’il le souhaite”. GUYON, Yves. Traités des contrats (...), ob. cit., p. 177. 49 De fato, parece lícita a utilização da regra contida no art. 474 do CC, no sentido de que “a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”. 50 A competência para convocação da assembléia encontra-se fixada no art. 123 da LSA, devendo-se atentar para a importância de previsão de exclusão de acionista no próprio estatuto, de maneira a possibilitar a instauração da assembléia com esta finalidade por qualquer acionista, independentemente de sua participação no capital social (art. 123, parágrafo único, alínea “b”).

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Ademais, o fato de a exclusão mostrar-se como medida legítima no caso concreto

não afasta a necessidade de se respeitar a dignidade do acionista excluído, de maneira que a

divulgação da exclusão e seus motivos deve ser evitada, posto consistir em medida cuja

natureza gera, por si só, constrangimentos de toda a ordem para o acionista excluído.51 O fato

de ele ter errado uma vez não significa que irá errar novamente, sendo certo que a divulgação

de fatos relacionados à exclusão (ainda que verídicos) pode vir a desabonar seu caráter ou

competência, significando, em determinados casos, uma sanção perpétua no meio

empresarial. Não se pode olvidar, também, que o objetivo da exclusão certamente não é punir

o acionista prejudicial, mas conservar os direitos fundamentais dependentes da preservação da

empresa.

4.3 Releitura do interesse social

A administração da companhia e o direito de voto dos acionistas encontram no

interesse social (ou interesse da companhia) não só uma limitação de atuação, mas a

imposição de uma conduta verdadeiramente ativa, no sentido de que aqueles que se

encontram em uma posição que lhes permita influenciar as atividades da companhia devem

contribuir para a realização deste interesse.

A compreensão daquilo que vem a ser o interesse social já foi objeto de inúmeras

sugestões, muito embora, apesar de recentemente terem se aproximado bastante as propostas

doutrinárias, uma interpretação do interesse social à luz da teoria dos direitos fundamentais

ainda não tenha sido sugerida. É este o propósito deste item, que, antes de promover uma

análise constitucional do interesse social, investiga as contribuições doutrinárias acerca do

tema, as quais costumam dividir-se em duas linhas teóricas: o contratualismo e o

institucionalismo.

51 Referindo-se às conseqüências da medida sob exame, José Waldecy Lucena corrobora a idéia de que a expulsão atinge não só o patrimônio do sócio excluído, mas “macula a sua honra, como homem e cidadão, e compromete seu conceito como empresário e homem de negócios”. LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas (...), ob. cit., p. 741.

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4.3.1 Contratualismo

A inexistência de interesses contraditórios (i), o surgimento de uma pessoa

jurídica como objeto do acordo de vontades (ii), a inaplicabilidade do princípio da

impossibilidade de criação de obrigações contratuais a quem não foi parte no contrato (iii), e a

possibilidade de alteração das relações jurídicas entre duas pessoas por parte de terceiras

pessoas (iv) são as principais razões que impossibilitaram o reconhecimento da sociedade

como um contrato bilateral.52

Contudo, a compreensão da natureza contratual da sociedade anônima ganhou

maior aderência com a sugestão de que esta seria um contrato plurilateral. Como destaca

Tullio Ascarelli, esta modalidade de contrato não se confunde com os contratos bilaterais “a)

pela possibilidade da participação de mais de duas partes; b) pelo fato de que, quanto a todas

essas partes, decorrem do contrato, quer obrigações, de um lado, quer direitos, do outro”,53

sendo certo que os interesses contrastantes das várias partes devem ser unificados por meio de

uma finalidade comum. A rigor, “cada uma das partes obriga-se, de fato, para com todas as

outras, e para com todas as outras adquire direitos; é natural, portanto, coordená-los, todos,

em torno de um fim, de um escopo comum”.54 É esta comunhão de escopo, aliás, que justifica

o poder da maioria,55 e que deve servir de fio condutor do exercício do direito de voto,

merecendo lembrança que o interesse comum é considerado nesta linha teórica como o

interesse dos sócios enquanto sócios (uti socii e não uti individui), de modo que todos os

outros interesses dos sócios, que não este interesse comum, são considerados estranhos à

sociedade ou “extra-sociais”.56

Há que se registrar, ademais, que esse escopo comum decompõe-se em dois

elementos: (a) o objetivo final e o (b) modo de sua realização: o primeiro consiste na

produção de lucros, que é alcançado pelo exercício da atividade empresarial, prevista no ato

constitutivo como objeto social.57

52 SILVA, Bruno Mattos e. Direito de empresa – teoria da empresa e direito societário. São Paulo: Atlas, 2007. p. 247-248. 53 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 374. 54 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 394. 55 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 422. 56 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembléias de S.A. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 37. 57 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 290.

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Apesar das variantes da doutrina contratualista, o que interessa constatar é a

inexistência, para esta linha teórica, de divergência entre interesse social e interesse dos

sócios,58 sendo aquele (interesse social) o “interesse manifestado originariamente pela

unanimidade dos sócios e, durante a vida da sociedade, pela coletividade deles que represente

a maioria votante”, observando-se, sempre, as limitações estabelecidas pelo objeto social.59

O caráter individualista60 desta linha teórica torna necessária, quando pouco, uma

releitura de suas bases face à teoria dos direitos fundamentais. Afinal, como já se afirmou

diversas vezes, à empresa explorada pela companhia estão subordinados direitos fundamentais

de titularidade bastante variada, de maneira a impor-se àqueles que se encontram em posição

de influenciar a atividade da companhia um comportamento que não impeça ou prejudique a

realização dos referidos direitos. Esta compreensão se aproxima dos ditames modernos do

contratualismo, na linha doutrinária que se convencionou identificar por “contrato-

organização”.

4.3.1.1 Contrato-organização

A teoria do “contrato-organização” reconhece que a companhia é um instrumento

de exploração da empresa, sendo que esta última se assemelha a uma verdadeira organização.

Uma vez compreendida esta última como um sistema social que reúne recursos humanos e

materiais para a realização de uma finalidade, mediante uma adequada divisão e coordenação

do trabalho,61 o enfoque passa a ser o “sistema social” advindo da criação da sociedade.

Neste sentido, “o objetivo da compreensão da sociedade como organização é

exatamente o melhor ordenamento dos interesses nela envolvidos e a solução dos conflitos

58 Conforme ressalta Fábio Konder Comparato, “os sócios reúnem-se para a realização de um objetivo comum. O interesse social consiste, pois, no interesse dos sócios à realização desse escopo”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle (...), ob. cit., p. 290. 59 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 257. 60 O caráter individualista desta corrente doutrinária foi constatado por Eduardo Secchi Munhoz nos seguintes termos: “Depreende-se, portanto, que a visão contratualista da sociedade reconhece apenas os chamados interesses intrasocietários, não atribuindo valor, pelo menos no que respeita à disciplina das sociedades, aos interesses dos empregados, da comunidade local ou da nação”. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea (...), ob. cit., p. 38. 61 Cf. CAMACHO, Ildefonso; FERNÁNDEZ, José L.; et MIRALLES, Josep. Ética de la empresa. Bilbao: Desclée, 2002. p. 37.

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entre eles existentes”,62 de modo que o interesse social passa a identificar-se com a

estruturação e organização mais apta a solucionar os conflitos entre as relações jurídicas que

compõem o sistema social criado com a companhia, merecendo registro a advertência de que

esta teoria não impõe à companhia a internalização de interesses. Como esclarece Calixto

Salomão Filho, “ao erigir a sociedade como instrumento de resolução de conflitos [a teoria]

sugere que este ente seja capaz de tanto. Sugere que sua organização seja erigida para

tanto”.63

Em razão destas premissas, fica evidenciado que esta linha teórica conduz à

diminuição de importância da personalidade jurídica e à valorização da atividade (empresa),64

sugerindo, como pontua Calixto Salomão Filho, um caminho efetivo para a aplicação da regra

do art. 116 da LSA e de seus princípios institucionalistas.65

Com as devidas adaptações, a serem sugeridas à frente, esta teoria parece se

adequar a uma leitura constitucional do direito societário, haja vista compreender a

necessidade de se compatibilizar os direitos fundamentais da própria companhia, com a sua

instrumentalidade na realização de direitos fundamentais daqueles que direta ou indiretamente

estão envolvidos pela atividade econômica explorada. A rigor, a concretização dos direitos

fundamentais existentes no “sistema social” criado pela sociedade anônima consiste na sua

razão (jurídica) de ser.

4.3.2 Institucionalismo

Em contraposição às teorias que inserem as companhias na categoria contratual, o

institucionalismo as classifica como verdadeira instituição. Apesar de não haver consenso

sobre o pioneirismo da utilização do institucionalismo no direito privado, é de se revelar que

Maurice Hauriou, que inicialmente utilizou a instituição para desenvolver uma teoria de

direito público, considera mais adequado considerar as sociedades por ações como

instituições.66

62 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 43. 63 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 44. 64 RIBEIRO, Renato Ventura. A exclusão de sócios (...), ob. cit., p. 94. 65 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 50. 66 HAURIOU, Maurice. L’institution et le droit statutaire. Toulouse: Librairie de l’Université de Toulouse, 1906. p. 134.

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Uma instituição é, segundo o conceito do decano da Universidade de Toulouse,

“uma organização social estabelecida em relação com a ordem geral de coisas, da qual a

subsistência é garantida por um equilíbrio de forças ou por uma separação de poderes e que

constitui por ela mesma um estado de direito”.67 (tradução nossa)

Este conceito recebeu críticas em razão de sua vagueza, afirmando Georges Ripert

que no Direito Privado a sua única contribuição é servir de oposição ao contrato.68

Já Rubens Requião, após examinar de maneira mais aprofundada outras

explicações de Maurice Hauriou sobre a essência da instituição, esclarece que esta é composta

por três elementos: (i) a idéia da obra a realizar em um grupo social; (ii) o poder organizado

posto a serviço desta idéia para sua realização; (iii) as manifestações de comunhão que se

produzem no grupo social a respeito da idéia e de sua realização. E neste contexto conclui

que:

[..] as sociedades anônimas (abertas), constituídas sem atenção às pessoas componentes do grupo que pretende pôr em realização da idéia, contém e perfazem todos esses requisitos da instituição, sobretudo em termos de permanência e duração, pois constituídas apenas em atenção ao capital, desprendem-se da falibilidade humana, projetando-se duradouramente no tempo. Independem elas da vida limitada de seus sócios.69

Note-se que também o institucionalismo é composto de algumas variantes, muito

embora a idéia comum destas linhas teóricas consista na sugestão de existência de um

interesse social independente ou não totalmente identificado com o interesse dos sócios.

Assim sendo, “diante do interesse do acionista contrapõe-se outro, de ordem superior e de

natureza autônoma”.70

Dentre as várias contribuições em torno da teoria institucional, destaca-se a de

Walther Rathenau,71 economista e homem de negócios alemão, o qual, influenciado pela

grave situação econômica da Alemanha no fim da Primeira Guerra Mundial, sugeriu que cada

grande companhia deveria servir de instrumento para o renascimento econômico do país.72

67 HAURIOU, Maurice. L’institution et le droit statutaire (…), ob. cit., p. 135-136. No original: “l’institution est une organisation sociale établie en relation avec l’ordre général des choses, dont la permanence est assurée par un équilibre de forces ou par une séparation des pouvoirs et qui constitue par elle-même un état de droit”. 68 RIPERT, Georges. Aspects juridiques du capitalisme moderne. Paris: L.G.D.J., 1951. p. 96. 69 REQUIÃO, Rubens. A sociedade anônima como “instituição”. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 18, p. 27. 70 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 447. 71 Cf. RATHENAU, Walther. Do sistema acionário – uma análise negocial. Tradução de Nilson Lautenschleger Jr. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 128, p. 202-223, 2002. 72 LAUTENSCHLEGER JÚNIOR, Nilson. Relato breve sobre Wather Rathenau e sua obra: “A Teoria da Empresa em Si”. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 128, p. 199-

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Como revela Calixto Salomão Filho, a construção teórica do autor alemão

identifica na sociedade por ações uma verdadeira função pública, atribuindo-se maior

valorização do papel do órgão de administração social, visto como órgão neutro, apto à defesa

do interesse empresarial, o que conduz a uma degradação relativa da importância da

Assembléia, influenciando, via de conseqüência, os direitos dos minoritários.73

Com efeito, a adoção do institucionalismo implica uma subordinação dos direitos

e interesses privados aos fins que a companhia objetiva realizar, justificando a inexistência de

uma rigidez definitiva dos direitos dos sócios, fixados no ato constitutivo, haja vista a

possibilidade de serem modificados se a prosperidade da sociedade exigir tal modificação.

Esta orientação teórica explica, ainda, o fato de os administradores não serem considerados

meros mandatários dos acionistas, mas verdadeira autoridade a quem compete assegurar a

realização do “objetivo comum”.74

Ressalte-se que a doutrina institucionalista clássica evoluiu, conforme observação

de Milton Nassau Ribeiro, para um novo modelo, identificado como “integracionista”, “cujos

objetivos societários supra-individuais foram mais bem definidos, incluindo o interesse dos

trabalhadores e daqueles que se relacionam com a companhia, tais como consumidores,

fornecedores, concorrentes, comunidade, etc.”;75 aproximando-se muito da denominada

stakeholder theory.

4.3.2.1. Stakeholder theory (“teoria das partes relacionadas”)

Os conceitos e teorias convencionais que têm a companhia e a empresa como

objeto são considerados inadequados e eticamente inaceitáveis pela stakeholder theory. Isso

202, 2002. Elucidando as principais idéias de Rathenau, Nilson Júnior registra: “Tendo a grande empresa como base as determinantes da economia, [Rathenau] conclui pela preponderância da maioria – algo muitas vezes não compreendido – e pela importância da empresa em si (Unternehmen an sich), como centro de convergência dos interesses dos acionistas, da sociedade e do Estado. É controverso, ainda hoje, se sua concepção da empresa em si (a enfant terrible do direito societário, nos dizeres de Laux, ob. cit., infra) não seria uma pura e simples reação contra os excessos da democracia acionária pela qual se almejava a limitação dos poderes dos acionistas frente à administração, limitação esta que legitimaria com a proteção de interesses próprios da empresa, algo, à época, inadmissível”.In: Relato breve sobre Wather Rathenau (...), ob. cit., p. 201. 73 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 32. A esta elaboração peculiar do institucionalismo denomina-se teoria da “empresa em si”. 74 RIPERT, Georges et ROBLOT, René. Traité élémentaire de droit commercial. Vol. 1. Paris: L.G.D.J., 1963. p. 329. 75 RIBEIRO, Milton Nassau. Aspectos jurídicos da governança corporativa. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 117.

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porque o impacto da atividade explorada pela companhia não pode ser desconsiderado, de

maneira que esta deve assumir a responsabilidade pelo bem-estar daqueles que direta ou

indiretamente com ela se relacionam, idéia esta que associa aos conceitos recentemente

explorados entre nós de “responsabilidade social” e “desenvolvimento sustentável”.

Neste contexto, os incentivadores desta linha teórica enxergam a companhia como

uma organização:

[...] engajada na mobilização de recursos para utilizações produtivas com o objetivo de produzir riqueza e outros benefícios (e não intencionalmente destruir riqueza, aumentar riscos, ou causar prejuízo) para seus múltiplos constituintes, ou “partes relacionadas”.76 (tradução nossa)

Segundo os preceitos desta vertente teórica, a condução dos negócios sociais deve

ser analisada sob múltiplas perspectivas. Juntamente com o legítimo interesse dos acionistas

de receber dividendos,77 a companhia deve ser conduzida de modo a identificar e respeitar os

direitos e interesses dos stakeholders,78 cuja natureza da relação com a companhia varia

consideravelmente. Os investidores, empregados e clientes relacionam-se voluntariamente

com a companhia, na esperança de obterem benefícios. Outros grupos de stakeholder

possuem uma relação indireta, como aqueles que são afetados pela poluição ou

congestionamento decorrente da atividade explorada.

Como destaca Domingo García-Marzá, os grupos em que se dividem os

stakeholders e seus respectivos interesses se resumem ao seguinte:

a) os sócios/acionistas, cujos interesses consistem, basicamente, no aumento do

valor da organização empresarial; na rentabilidade e liquidez de seus investimentos; na

transparência nas operações e projetos; e participação e controle da gestão social;

b) os administradores, por sua vez, têm interesse em aumentar sua influência e

prestígio; maximizar o valor da organização empresarial; desenvolver e colocar em prática

duas idéias e capacidade; e participar dos resultados da atividade;

76 POST, James E.; PRESTON, Lee E.; SACHS, Sybille. Redefining the corporation: stakeholder management and organizational wealth. Stanford: Stanford University Press, 2002. p. 17. No original: “The corporation is an organization engaged in mobilizing resources for productive uses in order to create wealth and other benefits (and not intentionally destroy wealth, increase risk, or cause harm) for its multiple constituents, or stakeholders”. 77 É importante insistir que “la consideración de los stakeholders no excluye la responsabilidad que la empresa tiene con sus propietarios. Recompensar a aquellos que han invertido su dinero en ella (y con frecuencia no sólo su dinero, sino también su tiempo, energía y creatividad) es un deber de justicia”. CAMACHO, Ildefonso; FERNÁNDEZ, José L.; et MIRALLES, Josep. Ética de la empresa (...), ob. cit., p. 31. 78 Os teóricos da linha doutrinária em exame esclarecem que “the stakeholders in a corporation are the individuals and constituencies that contribute, either voluntarily or involuntarily, to its wealth-creating capacity and activities, and that are therefore its potential beneficiaries and/or risk bearers”. POST, James E.; PRESTON, Lee E.; SACHS, Sybille. Redefining the corporation (…), ob. cit., p.19.

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c) os empregados têm interesse no salário; nas prestações previdenciárias; na

higiene; na segurança; e na salubridade do ambiente de trabalho; na promoção profissional; e

no desenvolvimento de suas personalidades;

d) já os consumidores se interessam pela liberdade de escolha; pela qualidade e

justa relação qualidade-preço; pela informação verdadeira e clara sobre os produtos e

serviços; pela garantia de segurança dos produtos e serviços prestados; e pela assistência pós-

contratual;

e) os fornecedores têm interesse na aceitação dos princípios da livre concorrência;

na capacidade de pagamento da companhia; na informação clara sobre as possibilidades

comerciais;

f) os concorrentes se interessam pela propriedade industrial; pelas regras de livre

concorrência; pela reciprocidade das relações; pelo cumprimento dos compromissos; pela

cooperação nas diferentes políticas empresariais;

g) a comunidade, por fim, tem interesse, sob o ponto de vista legal: no

cumprimento das obrigações fiscais, e cumprimento da legislação; sob o ponto de vista social:

na contribuição positiva para o desenvolvimento local e regional; no que respeita ao meio

ambiente, na preservação dos recursos naturais renováveis e não-renováveis.79

Verifica-se que as premissas desta teoria se aproximam bastante daquelas

defendidas pela corrente do contrato-organização, evidenciando que a evolução do

institucionalismo e do contratualismo conduziu estas linhas teóricas a um ponto praticamente

comum.80

Em que pese a Exposição de Motivos da LSA acenar para uma preponderância do

institucionalismo,81 o legislador pátrio parece ter atentado para a ordem de idéias acima

79 GARCÍA-MARZÁ, Domingo. Ética empresarial – del diálogo a la confianza. Madrid: Trotta, 2004. p. 193-194. 80 Não é outra a conclusão que se extrai das observações de Waldírio Bulgarelli, para quem “essas doutrinas acabaram por perder, com o tempo, muito do seu vigor, e hoje não se exageraria afirmando que acabou por se verificar uma espécie de ajustamento, de um lado, reconhecendo-se o mérito das correntes institucionalistas quando põem em destaque o fato de as companhias constituírem um verdadeiro núcleo social sobre o qual incidem diversos tipos de interesses a que é preciso atender, e que devem sobreviver à vida dos seus membros, e por outro lado, reconhecendo-se também o postulado da tese contratualista de que é preciso atender os interesses dos acionistas na busca do lucro. As discussões sobre o chamado interesse da empresa em si, o interesse da sociedade e o interesse egoístico dos acionistas, foram superadas pela identificação de um interesse social, que certamente não é superior ou independente aos dos acionistas nem representa a mera somatória dos seus interesses egoísticos, mas que diz respeito a um interesse geral e que sem dúvida desborda para a conservação e desenvolvimento da empresa”. BULGARELLI, Waldirio. A teoria jurídica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 278. 81 A alusão ao caráter institucional da lei acionária se dá de maneira incisiva no seguinte trecho da Exposição de Motivos: “Entre a sociedade anônima de há trinta anos atrás, concebida basicamente como empresa familiar numa economia estagnada, e a moderna corporação em constante apelo ao crédito público, a diferença não é apenas quantitativa, de aumento de tamanho: é qualitativa. Há muito a S.A. deixou de ser um contrato de efeitos

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mencionada ao “mesclar” normas de origem institucionalista com outras de natureza

contratualista,82 buscando um equilíbrio entre os interesses envolvidos na atividade

desenvolvida pela companhia, interesses estes que concretizam os direitos fundamentais de

seus titulares. De fato, enquanto o parágrafo único, do art. 116, da LSA, encontra-se

impregnado pelas idéias institucionalistas, o reconhecimento do direito de participação dos

lucros da companhia como um direito essencial do acionista (art. 109, inc. I) e a imposição

dos dividendos obrigatórios (art. 202) têm forte influência da teoria contratualista.

Compreendidas a evolução e variações das teorias desenvolvidas, cabe, em

seguida, investigar a repercussão de uma leitura constitucionalizada do interesse social.

4.3.3 O interesse social e a teoria dos direitos fundamentais

A primeira (e talvez mais importante) contribuição advinda da aplicação da teoria

dos direitos fundamentais na proposta de releitura do interesse social é a constatação de que,

observadas as limitações quanto à sua natureza, as companhias são titulares de direitos

fundamentais. E, nesta qualidade, a conclusão a que se chega é que o interesse social consiste

na realização dos direitos fundamentais de titularidade da companhia,83

Deste modo, o interesse da companhia é atingido mediante a concretização de

seus direitos fundamentais, como a livre iniciativa, o direito de propriedade, o direito de livre

associação etc., evidenciando que a realização, preservação e respeito a estes direitos

consistem nas finalidades a serem alcançadas quando da condução dos negócios sociais.

Note-se, aliás, que a escolha do modelo de gestão a ser adotado – normalmente

coincidente com aquele em que são maximizados os resultados econômicos, diante da

limitados para seus poucos participantes: é uma instituição que concerne a toda a economia do País, ao crédito público, cujo funcionamento tem que estar sob o controle fiscalizador e o comando econômico das autoridades governamentais. A síntese é da exposição de motivos do projeto italiano: ‘a disciplina das sociedades por ações e sua modificação constituem, sobretudo, um elemento de política econômica e mais genericamente um fato político”. 82 É neste sentido a opinião de RIBEIRO, Milton Nassau. Aspectos jurídicos da governança corporativa (...), ob. cit., p. 167. 83 Sobre o reconhecimento da existência de interesses próprios da companhia, Verçosa pontua: “(...) o interesse da companhia não pode ser confundido com os interesses dos acionistas em geral, do acionistas controlador, dos administradores, dos trabalhadores, dos fornecedores, da comunidade em que ela atua, do Poder Público e de tantos outros àquela relacionados. Na verdade, é muito freqüente que o interesse da companhia esteja em aberto conflito com outros de natureza interna e externa. Trata-se, podemos dizer, quase, mesmo, de uma regra, e não de uma exceção”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 259-260.

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característica marcante das companhias, no sentido de se perseguir o lucro – integra a

liberdade empresarial (livre iniciativa).

Entretanto não se pode admitir que o exercício e realização dos direitos

fundamentais da companhia estejam em grau hierarquicamente superior à preservação e

concretização dos direitos fundamentais daqueles que direta e indiretamente com ela se

relacionam. Primeiro, porque como se verificou no item 1.7, do Capítulo 1, a hierarquização

de direitos fundamentais não encontra guarida na ordem constitucional pátria. Segundo,

porque, diferentemente do que ocorre com as pessoas físicas, a realização dos direitos

fundamentais das pessoas jurídicas tem caráter eminentemente instrumental. A existência e a

preservação da pessoa jurídica só se justificam enquanto realizadoras de direitos fundamentais

daquelas pessoas direta e/ou indiretamente vinculadas à atividade explorada.

Atente-se, afinal, para o fato de que a constituição e existência da companhia

consistem na realização de direitos fundamentais dos acionistas (direito de livre associação e

livre iniciativa). Uma vez colocada em prática a atividade decorrente do exercício desses

direitos, cria-se todo um “sistema” de direitos fundamentais em torno desta atividade,84 de

maneira que a busca pura e simples de realização de direitos fundamentais da companhia,

decorrente de uma interpretação literal e isolada do art. 115 da LSA, certamente deixaria de

considerar que a aplicação legítima do direito pressupõe a realização, na maior medida

possível, dos direitos fundamentais de todos os envolvidos em uma determinada situação,

devendo eventuais conflitos entre esses direitos serem resolvidos por meio dos critérios já

expostos.

Nesta ordem de idéias, recai sobre todos aqueles que possam influenciar a

atividade social (como já se afirmou, observado o grau de intensidade desta influência), em

especial o controlador, o encargo de contribuir85 para que, por meio da exploração da

empresa, sejam concretizados os direitos fundamentais das partes a ela relacionadas.

Note-se, ademais, que estas premissas encontram respaldo na constatação de que a

livre iniciativa é reconhecida como direito fundamental enquanto útil socialmente,86

84 Vide Capítulo 2. 85 Realmente, “o conceito de cooperação, tão ínsito à idéia de associação e de sociedade, claramente ainda não penetrou no espírito societário brasileiro. Forças de pressão e grupos de interesses impediram, mais uma vez qualquer concessão a esse princípio”. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiro, 2006. p. 100. Entretanto, é importante lembrar a antijuricidade de um comportamento não cooperativo, haja vista que a exigência de contribuição nas relações sociais de uma maneira geral (não havendo qualquer motivo para delas serem excluídas as relações empresariais) advém do princípio constitucional da solidariedade. 86 Neste sentido, Comparato registra que “a liberdade de iniciativa, enquanto entendida como liberdade de criação empresarial ou de livre acesso ao mercado, somente é protegida enquanto favorece o desenvolvimento nacional e a justiça social”. COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, v. n. 50, p. 59.

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compreendendo-se por utilidade social87 a realização dos direitos fundamentais daqueles que

direta e/ou indiretamente encontram-se envolvidos com a empresa.

Nesta mesma linha de pensamento, a doutrina italiana compreende que a

“liberdade de iniciativa econômica encontra seus limites para a utilidade social, que não pode

contrastar, e para a segurança, da liberdade e da dignidade humana, as quais não podem sofrer

dano”.88 (tradução nossa)

Em decorrência de tais considerações, poder-se-ia questionar se o intuito

lucrativo, inerente à exploração da atividade empresarial, e elemento que impulsiona os

empreendedores a constituírem a companhia, não estaria sendo contrariado.

A resposta a este tipo de questionamento há de ser negativa. Em momento algum

foi sugerido um modelo beneficente para as sociedades anônimas ou coisa desta natureza. A

maximização dos resultados da companhia deve ser perseguida até mesmo como medida

necessária à preservação da atividade, posto que os resultados deficitários poderiam conduzir

os acionistas a optarem pela dissolução da sociedade, a fim de evitar a falência.

Esclareça-se, ademais, que a distribuição de dividendos consiste em medida de

grande importância para a conciliação dos direitos da companhia com os direitos dos

acionistas,89 devendo-se observar, outrossim, que o pagamento dos dividendos acaba

exercendo uma função de inegável legitimidade, no sentido de contribuir para a dignidade dos

acionistas. Afinal, é com esta contraprestação do capital investido para a exploração da

empresa que os acionistas poderão colocar em prática seus livres projetos de vida, por meio

da aquisição de bens necessários à sua moradia, saúde, educação, lazer etc.

O que não se pode admitir é que a maximização dos resultados signifique a

ameaça injustificada e desproporcional à preservação e realização dos direitos fundamentais

das partes relacionadas à empresa explorada pela companhia. Além disso, cumpre questionar

o que se deve compreender como maximização dos resultados da companhia.

A concepção de maximização dos resultados da companhia varia de acordo com o

papel atribuído à sociedade anônima junto à coletividade, enquanto que a atribuição deste

87 A expressão utilidade social engloba, em nível constitucional, os conceitos contidos na LSA que a doutrina identifica como integrantes de um interesse social lato sensu, a saber: a) interesse público; b) função social; c) interesse da comunidade; d) interesse nacional. Cf. CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nas sociedades anônimas: hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 141-160. 88 VISENTINI, Gustavo. Principi di diritto commerciale. Padova: Cedam, 2006. p. 68. No original: “la libertà d’iniziativa economica trova i limiti dell’utilità sociale, che non può contrastare, e della sicurezza, della libertà e della dignità umana, alle quali non può recare danno”. 89 Com efeito, o legislador pátrio atentou para a necessidade de se compatibilizar os interesses da companhia com aqueles dos acionistas ao disciplinar a figura dos dividendos obrigatórios (LSA, art. 202).

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papel depende do ponto de vista filosófico da análise.90 Para os utilitaristas, por exemplo, a

função a ser desempenhada pelas companhias seria a maximização do bem-estar ou da

felicidade do maior número de pessoas possível.

Na doutrina norte-americana existem basicamente cinco vertentes teóricas sobre o

papel das companhias91: (i) o dualismo; (ii) o monismo; (iii) o idealismo moderado; (iv) o

idealismo elevado; e (v) o pragmatismo.

O dualismo propõe uma separação rígida entre as esferas pública e privada. Deste

modo, a condução dos negócios da companhia deve objetivar a maximização da riqueza dos

acionistas, observadas obrigações específicas relacionadas aos grupos afetados pela

exploração da empresa. Os comentadores desta vertente teórica chamam a atenção para o fato

de que a maximização dos lucros não consiste, necessariamente, na perseguição de lucros a

curto-prazo. Como esclarece Clark, “um equilíbrio da maximização de riquezas deveria ser

encontrado entre os lucros a curto e longo prazos”.92

Os monistas, por sua vez, acreditam que a “responsabilidade social” deve ser

alcançada pelas companhias como meio de criar uma cultura mais adequada para a exploração

da atividade empresarial,93 e que as companhias que se comportam nestes moldes podem ser

beneficiadas pela imagem criada junto ao público.

Já o idealismo moderado sugere que a sociedade anônima deve respeitar as

normas e regulações jurídicas mesmo quando o descumprimento for economicamente mais

eficiente, no sentido de aumentar o valor presente da companhia.

Outrossim, de acordo com a vertente do idealismo elevado, o objetivo “residual”

da companhia deveria incluir uma vasta gama de interesses ao lado daqueles dos acionistas,

competindo àqueles que estão à frente da gestão social promover a conciliação destes

interesses.

Por fim, o pragmatismo sustenta que deveria haver uma maior interação entre o

público e o privado, incentivando as unidades governamentais a usar as companhias para

90 CLARK, Robert C. Corporate law (...), ob. cit., p. 677. 91 CLARK, Robert C. Corporate law (...), ob. cit., p. 677-703. 92 CLARK, Robert C. Corporate law (...), ob. cit., p. 678. 93 É de se registrar que, em que pese o American Law Institute afirmar o objetivo de geração de lucros das companhias, idéias relacionadas à responsabilidade social são expressamente previstas nos Princípios de Governança Corporativa. Neste sentido, uma corporation é “(a) obliged, to the same extent as a natural person, to act within the boundaries set by law, (b) may take into account ethical considerations that are reasonably regarded as appropriate to the responsible conduct of business, and (c) may devote a reasonable amount of resources to public welfare, humanitarian, educational, and philanthropic purposes”. Cf. CLARK, Robert C. Corporate law (...), ob. cit., p. 683.

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implementarem políticas públicas, ao mesmo tempo em que aquelas deveriam aproveitar

oportunidades para desenvolverem serviços públicos de maneira lucrativa.

Com efeito, Robert Clark identifica falibilidades em todos os modelos propostos.

Segundo o professor de Harvard:

O ponto de vista dualista tem aspectos positivos mas pressupõe e depende de uma justa de distribuição de riquezas e arranjos institucionais aceitáveis no governo. O monismo tende a ser incriticavelmente convencional e meramente paliativo. O idealismo moderado não parece poder ser muito praticado. O idealismo moderado, se adotado, simplesmente expandiria o fracasso básico do governo, confusão de objetivos e absorção de energia em intermináveis queixas dos grupos interessados, enquanto destrói a principal virtude das companhias, a sua capacidade de atingir objetivos definitivos eficientemente. O pragmatismo é uma idéia benevolente, mas não será implementado em uma escala verdadeiramente significante a menos que o governo se organize.94 (tradução nossa)

Após tecer estas críticas às vertentes doutrinárias citadas, Clark chama a atenção

para a importância de reformar os critérios de análise das decisões da companhia de maneira

que reste facilitada a implementação de políticas públicas, registrando, ademais, a dificuldade

de se alcançar este objetivo em um mundo em que o consenso político é praticamente

impossível de ser atingido.

Não obstante, a leitura da Constituição brasileira possibilita afirmar que o

consenso não só político, mas social, é de que a realização e preservação dos direitos

fundamentais constitui tarefa básica a se alcançar na aplicação do direito, e na elaboração e

implementação de políticas públicas.

Destarte conclui-se que o exercício da empresa pela companhia deve passar por

um filtro de legitimidade constitucional, o que é viabilizado por intermédio da aplicação da

teoria dos direitos fundamentais. E a partir do momento em que se admite que o interesse da

companhia consiste na realização de seus direitos fundamentais, os quais, por sua vez, têm

nítida relação instrumental com a preservação e concretização dos direitos fundamentais

subordinados à empresa explorada, institutos como o abuso do direito de voto, e o conflito de

interesses passam a ser interpretados sob um novo enfoque. Isso porque ao intérprete

94 CLARK, Robert C. Corporate law (...), ob. cit., p. 702. No original: “the dualistic viewpoint has great strengths but presupposes and depends on a just distribution of wealth and acceptable institutional arrangements in government. Monism tends to be uncritically conventional and merely palliative. Modest idealism is not likely to be widely practiced. High idealism, if it were ever adopted, would simply spread the basic failure of government, confusion of ends and absorption of energies in the endless squabbling of interest groups, while destroying the chief virtue of business corporations, their capacity to achieve definitive goals efficiently. Pragmatism is a benevolent idea, but it will not be implemented on a truly significant scale unless government puts its house into better order”.

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competirá exercer a exegese do direito infraconstitucional com vistas a buscar a maior

realização possível dos direitos fundamentais envolvidos em eventual conflito.

4.4 Liberdade estatutária

O Código Comercial disciplinava, no art. 302,95 o conteúdo do ato constitutivo

das sociedades comerciais, enquanto que as sociedades civis encontravam no art. 120 da Lei

nº 6.015/7396 o dispositivo legal que dispunha sobre os requisitos indispensáveis ao contrato

social.

Com o advento do Código Civil atual a dicotomia dos regimes jurídicos quanto

aos requisitos essenciais ao ato constitutivo das sociedades deixou de existir, estando prescrito

no art. 99797 o conteúdo mínimo do contrato social.

No que tange às sociedades anônimas, importa registrar que o art. 83 da LSA

prevê que o projeto de estatuto a ser aprovado pela assembléia de constituição da companhia

95 “Art. 302. A escritura, ou seja pública ou particular, deve conter: 1. Os nomes, naturalidade e domicílio dos sócios. 2. Sendo sociedade com firma, a firma por que a sociedade há de ser conhecida. 3. Os nomes dos sócios que podem usar da firma social ou gerir em nome da sociedade; na falta desta declaração, entende-se que todos os sócios podem usar da firma social e gerir em nome da sociedade. 4. Designação específica do objeto da sociedade, da quota com que cada um dos sócios entra para o capital (art. 287), e da parte que há de ter nos lucros e nas perdas. 5. A forma da nomeação dos árbitros para juízes das dúvidas sociais. 6. Não sendo a sociedade por tempo indeterminado, as épocas em que há de começar e acabar, e a forma da sua liquidação e partilha (art. 344). 7. Todas as mais cláusulas e condições necessárias para se determinarem com precisão os direitos e obrigações dos sócios entre si, e para com terceiro. Toda a cláusula ou condição oculta, contrária à cláusulas ou condições contidas no instrumento ostensivo do contrato, é nula.” 96 “Art. 120. O registro das sociedades, fundações e partidos políticos consistirá na declaração, feita em livro, pelo oficial, do número de ordem, da data da apresentação e da espécie do ato constitutivo, com as seguintes indicações: I – a denominação, o fundo social, quando houver, os fins e a sede da associação ou fundação, bem como o tempo de sua duração; II – o modo por que se administra e representa a sociedade, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; III – se o estatuto, o contrato ou o compromisso é reformável, no tocante à administração, e de que modo; IV – se os membros respondem ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; V – as condições de extinção da pessoa jurídica e nesse caso o destino do seu patrimônio; VI – os nomes dos fundadores ou instituidores e dos membros da diretoria, provisória ou definitiva, com indicação da nacionalidade, estado civil e profissão de cada um, bem como o nome e residência do apresentante dos exemplares.” 97 “Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além das cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: I – o nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas; III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária; IV – a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la; V – as prestações a que se obriga o sócio, cuja contribuição consista em serviços; VI – as pessoas naturais, incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições; VII – a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; VIII – se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais.”

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(art. 87)98 deverá satisfazer a todos os requisitos exigidos para os contratos das sociedades

mercantis em geral e aos peculiares às companhias.

Com efeito, a elaboração e a aprovação do estatuto consistem em elementos

componentes do negócio jurídico complexo99 de constituição das sociedades anônimas.

Juntamente com esta função, o estatuto desempenha relevante papel na condução das

atividades sociais, constituindo “a lei interna da sociedade, funcionando como corpo

normativo da atuação social e como instrumento de polarização dos acionistas, através da

definição de seus direitos e obrigações”.100

A rigor, a complementação dos estatutos (inserção de cláusulas que extrapolem o

conteúdo mínimo legal) consiste em medida de inegável importância para as relações intra e

extra-societárias, sendo certo que o conteúdo complementar do estatuto variará de acordo com

a necessidade e criatividade dos fundadores, acionistas e administradores (normalmente

assessorados por especialistas).

Neste contexto, a previsão estatutária da exclusão de acionista por justo motivo; a

inserção de cláusula penal no estatuto para os casos de inadimplemento de determinadas

obrigações; a estipulação dos critérios para avaliação das ações objeto de reembolso e/ou

resgate; a introdução de cláusula de preempção; a previsão de suspensão de exercício do

direito de voto pelo descumprimento de obrigações legais e/ou estatutárias; e a inserção de

cláusula compromissória, são alguns exemplos de cláusulas que normalmente completam

aquelas exigidas por lei. Aplica-se, em linhas gerais, o princípio da legalidade no âmbito do

Direito Privado, no sentido de que aquilo que não é proibido é permitido.101

No entanto, é de se advertir que a limitação da liberdade estatutária nem sempre

será encontrada por meio de interpretação literal de proibição expressa do direito infra-

98 Impende lembrar que a constituição da companhia por subscrição particular do capital pode realizar-se por deliberação dos subscritores em assembléia geral ou por escritura pública, observadas as prescrições do art. 88 da LSA. 99 É de esclarecer que a “complexidade” do negócio jurídico de constituição das sociedades anônimas se resume às exigências das formalidades adicionais à fundação das companhias. Mas como adverte João Eunápio Borges, “substancialmente, todas as formalidades a cuja fiel observância a lei condiciona a fundação de uma sociedade anônima constituem um processo que, na variedade dos atos em que se desdobra, nada mais é do que a forma de manifestação daquele acordo de vontades, sempre indispensável para a constituição de qualquer sociedade: tanto na sociedade em nome coletivo, como na sociedade anônima”. BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 409-410. 100 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário (...), ob. cit., p. 190. 101 A LSA estabelece limitações cogentes no art. 109, sendo vedada a estipulação estatutária que prive o acionista dos direitos de: I – participar dos lucros sociais; II – participar do acervo da companhia, em caso de liquidação; III – fiscalizar, na forma prevista na Lei, a gestão dos negócios sociais; IV – preferência para a subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição, observado o disposto nos arts. 171 e 171; V – retirar-se da sociedade nos casos previstos na LSA. Do mesmo modo, o §2º, do mesmo art. 109, prescreve que “os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembléia geral”.

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constitucional.E como pontua Yves Guyon, dentre as limitações da liberdade estatutária

encontra-se a impossibilidade de se reduzir os direitos dos acionistas, bem como a

necessidade de as cláusulas complementares observarem o interesse social.102

Com efeito, juntamente com estas premissas básicas, é de se alertar para a

necessidade de se promover um exame de legitimidade das cláusulas inseridas no estatuto, o

que é viabilizado por intermédio da aplicação da teoria dos direitos fundamentais.

Neste contexto, importa demonstrar a contribuição da eficácia horizontal dos

direitos fundamentais no exame de legitimidade da liberdade estatutária.

4.4.1 Alteração dos quoruns legais de deliberação

Ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei, as deliberações da

assembléia geral são tomadas por maioria absoluta de votos, não se computando os votos em

branco (LSA, art. 129, caput).

Mas diferentemente do que ocorre com a regra que dispõe sobre o quorum de

instalação das assembléias103 (que só admite exceções previstas em lei), o art. 129, §1º, da

LSA, institui permissão expressa para que o estatuto da companhia fechada possa aumentar o

quorum exigido para certas deliberações, desde que especifique as matérias; enquanto que o

art. 110, §1º, da LSA, prevê a possibilidade de o estatuto estabelecer limitação ao número de

votos de cada acionista.104

Ressalte-se que o preenchimento da liberdade prevista no §1º, do art. 129, não

poderá dispensar um tratamento desigual entre os acionistas,105 sob pena violação do direito

102 GUYON, Yves. Traité de contrats (...), ob. cit., p. 165-167. 103 “Art. 125. Ressalvadas as exceções previstas em lei a assembléia geral instalar-se-á, em primeira convocação, com a presença de acionistas que representem, no mínimo, um quarto do capital social com direito de voto; em segunda convocação, instalar-se-á com qualquer número.” 104 Consoante esclarecimento de Georges Ripert, na França a alteração do quorum legal encontra resistência dos tribunais, verbis: “Avant 1966, la cour de Cassation a eu l’occasion de dècider que les règles legales sur le quorum ne pouvaient pas être modifiées par les status. Cette solution parait commandée aujourd’hui par l’art. 173 de la loi comme par l’intérèt social. Abaisser le quorum légal permetrait de modifier trop facilement les bases de la société: l’augmenter requerait d’empêcher l’adaptation du mécanisme aux circonstances économiques changeantes”. In: Traité de Droit Commercial. Tomo I. Paris: L.G.D.J, 1993. p. 927. 105 A rigor, o preenchimento da norma sob exame não se enquadra às hipóteses em que a LSA autoriza um tratamento diferenciado entre ações de classes distintas. Os limites para o tratamento desigual das ações ordinárias encontram-se elencados no art. 16, segundo o qual “as ações ordinárias de companhia fechada poderão ser de classes diversas, em função de: I – conversibilidade em ações preferenciais; II – exigência de

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fundamental da igualdade. Desse modo, a especificação das matérias objeto do quorum

qualificado pelo estatuto deve ser estabelecida de maneira objetiva, a fim de evitar-se

tratamento discriminatório entre os acionistas minoritários.

No mesmo sentido, é também o direito fundamental da igualdade dos acionistas

que acena para a necessidade de a restrição do número de votos de cada acionista, prevista no

mencionado §1º, do art. 110, alcançar a todos os acionistas, sem restrição.106

4.4.2 Exibição dos livros e ação social derivada

A LSA estabelece limites ao direito de exigir a exibição dos livros empresariais,

bem como restringe a legitimidade para a propositura de ação de responsabilidade dos

administradores.107

Preceitua o art. 105 da LSA que a exibição integral dos livros da companhia

poderá ser ordenada judicialmente sempre que, a requerimento de acionistas que representem,

pelo menos, cinco por cento do capital social, sejam apontados atos violadores da lei ou do

estatuto, ou haja fundada suspeita de graves irregularidades praticadas por qualquer dos

órgãos da companhia.

A interpretação do texto legal deste dispositivo conduz à conclusão de que a

exibição dos livros não consiste em um direito individual, mas em um direito da minoria,

“pressupondo a titularidade de um percentual mínimo do capital social. Visa à satisfação não

nacionalidade brasileira do acionista; ou III – direito de voto em separado para o preenchimento de determinados cargos de órgãos administrativos”. 106 Como esclarece Modesto Carvalhosa, “essa restrição estatutária deve alcançar a todos os acionistas, sem exceção. Ao instituir esse regime, o estatuto deve obedecer ao sistema de voto mínimo, o que torna desproporcional o número de votos somente a partir de certo piso”. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 742. 107 Sobre as condicionantes para o exercício de alguns direitos outorgados aos minoritários, Waldirio Bulgarelli tece as seguintes considerações: “(...) é importante ressaltar que muitos dispositivos concedem direitos e faculdades à minoria somente quando esta detém uma certa porcentagem do capital ou de ações com direito (ou mesmo sem) a voto dos quais, se alguns parecem justificados, como no caso da exibição integral dos livros, outros parecem desarrazoados, como o que exige a detenção de uma certa porcentagem do capital para pedir informações aos administradores ou para propositura de ações contra a direção ou os controladores. Também as diferenças de porcentagens exigidas, 10%, 5% etc., causam espécie, não se atinando com o critério seguido pelo legislador”. BULGARELLI, Waldirio. Regime jurídico da proteção às minorias nas S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 150

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do acionista individualmente, mas da minoria, contrapondo-se ao controlador e ao interesse da

própria sociedade”.108

Em face da restrição legal é que se coloca o seguinte questionamento: poderia o

estatuto social outorgar a todos os acionistas, independentemente de sua participação no

capital da sociedade, o direito de exigir a exibição judicial (ou extrajudicial) dos livros da

companhia?

A resposta parece ser positiva. Primeiramente, por não violar, em princípio,

qualquer direito fundamental. Aliás, muito pelo contrário, haja vista que contribui para a

realização dos direitos fundamentais de todos os acionistas, fundamentalmente o direito à

igualdade. Pertinentes, a propósito, as palavras de Yves Guyon, no sentido de que “os

estatutos podem completar de diversas maneiras os direitos reconhecidos por lei aos sócios. O

único limite implícito é a obrigação de respeitar a igualdade entre os sócios”.109 (tradução

nossa)

E é exatamente a cogência de um tratamento igualitário entre os acionistas que

tornaria questionável a extensão do direito em voga a apenas alguns acionistas

(representantes, por exemplo, de 3% do capital social). Ao que parece, ou se mantém o regime

legal (de legitimidade questionável, como se apontará), ou se confere um tratamento

igualitário aos minoritários.

Esclareça-se, outrossim, que o direito de exigir a exibição dos livros é medida

essencial para que seja preservado o direito de o acionista de não permanecer associado.

Afinal, a constatação de irregularidades na gestão social não só possibilita o exercício de

pretensão ressarcitória – seja por parte da companhia, ou do próprio acionista –, como

também confere ao acionista elementos para que possa optar entre manter-se vinculado ou não

à sociedade.110

Diante destes fundamentos de ordem constitucional, parece lícito não só afirmar a

legitimidade de introdução de cláusula que outorgue a todos os acionistas o direito se exigir a

exibição dos livros, como sugerir a possibilidade de afastamento da regra restritiva do art. 105

da LSA para que os direitos fundamentais mencionados sejam preservados (igualdade e livre

associação). Registre-se, no entanto, que o afastamento da regra do art. 105 está subordinado 108 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (...), ob. cit., p. 240. 109 GUYON, Yves. Traité de contrats (...), ob. cit., p. 179. No original: “les statuts peuvent compléter de diverses manières les droits reconnus par loi aux associés. La seule limite implicite est l’obligation de respecter l’égalité entre les associés”. 110 No âmbito das companhias abertas é de se consignar a existência de um sistema institucionalizado de fiscalização social, que contribui em demasia para o exercício das escolhas dos acionistas. Este sistema é desenvolvido pela atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pelo Conselho Fiscal da companhia, e pelas auditorias independentes.

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à demonstração, pelo titular dos direitos fundamentais ameaçados, da insuficiência da tutela

legal para a preservação de seus direitos.

Situação bastante próxima à da exibição dos livros é aquela referente à

legitimidade para propositura da ação social derivada, a qual compete aos acionistas que

representem pelo menos 5% (cinco por cento) do capital social,111 nos casos em que a

assembléia houver deliberado não promover ação de responsabilidade contra os

administradores faltosos (art. 159, §4º).

Assim como ocorre com a restrição legal para o exercício do direito de exibição

dos livros da companhia, a exigência de uma participação mínima no capital social para o

ajuizamento da ação de responsabilidade dos administradores coloca em dúvida a adequação

da tutela dos direitos fundamentais dos acionistas e da própria companhia pelo legislador.112

Neste contexto, mostra-se legítima a inserção de cláusula estatutária que outorgue

a todos os acionistas a legitimidade para propositura de ação de responsabilidade contra os

administradores, mostrando-se adequado o esclarecimento de que a legitimação dos acionistas

é subsidiária, ou seja, está subordinada à inércia ou deliberação contrária à propositura em

assembléia geral.

A sugestão em exame não só encontra respaldo na teoria dos direitos

fundamentais, como se viabiliza pela regra do art. 12, inc. VI, do CPC, segundo a qual as

pessoas jurídicas serão representadas ativa e passivamente por quem seus estatutos

designarem.

Da mesma maneira como foi sugerida a possibilidade de afastamento da regra

restritiva do art. 105, o afastamento da restrição contida no §4º, do art. 159, da LSA, é

possível mediante a utilização de argumentação alicerçada na teoria dos direitos

fundamentais. E insista-se que o êxito do afastamento da restrição legal está subordinado à 111 Esta exigência mereceu críticas severas de Carvalhosa: “Ao exigir que o acionista possua 5%, ou mais, do capital da companhia para propor ação social contra administradores o anteprojeto propositadamente alinha-se no que existe de mais retrógrado em matéria de direito societário. Nunca se cogitou no sistema da common law em cercear esse direito. Também a lei francesa consagra o direito individual do acionista de propor ação derivativa contra os dirigentes da companhia, sem cogitar de percentual mínimo de capital. Nem o pretexto da ação temerária (strike litigation) muito comum nos Estados Unidos, deve servir de argumento para tal iniqüidade. Com efeito, somente quando esse direito é deferido a qualquer acionista, independente do percentual de capital, é que se pode proteger as minorias acionárias contra os abusos dos administradores, de resto, quase sempre conluiados ou mesmo a serviço dos controladores nestes casos”. CARVALHOSA, Modesto. A nova lei das sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 117-118. 112 Com o objetivo de evitar que a inadequação legal prejudique os interesses da companhia em situações como a que se conjectura (não aprovação, em assembléia geral, da propositura de ação contra os administradores), Verçosa sugere a responsabilização do próprio controlador. Consoante as palavras do professor da USP, “a par da ação contra os administradores, poderão os sócios ajuizar ação contra o abuso de poder de controle praticado pelo controlador, obrigando-o a indenizar os prejuízos que de tal maneira haja causado à sociedade. A ação em causa poderá ser proposta por qualquer número de sócios, com qualquer participação de capital”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. Vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 464.

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demonstração, pelo acionista interessado na propositura da ação, que a tutela legal dos direitos

fundamentais de sua titularidade, e de titularidade da companhia, é insuficiente.

Atente-se, aliás, para a existência de precedente relacionado à sugestão sob

epígrafe. No julgamento do Recurso Especial nº 16.410/SP, o Superior Tribunal de Justiça

reconheceu, em regime de exceção, a legitimidade ativa ad causam de acionista detentor de

menos de 5% do capital social para a propositura da ação social derivada. A ementa do

julgado dispõe o seguinte:

Direito societário. Sociedade Anônima. Ação de responsabilidade civil. Administrador. Sociedade controladora. Acionistas minoritários. Legitimidade ativa ad causam. Prescrição. Prazo. Interrupção. Arts. 116, 117, 245 e 246 da Lei 6.404/76. I – Detendo a sociedade controladora mais de 95% do capital social e das ações com direito a voto da controlada, os acionistas minoritários desta têm legitimidade ativa extraordinária para, independentemente de prévia deliberação da assembléia geral, ajuizar mediante prestação de caução, ação de responsabilidade civil contra aquela e seu administrador em figurando este simultaneamente como controlador indireto. II – Prescreve em 3 (três) anos a ação contra administradores e sociedades de comando para deles haver reparação civil por atos culposos ou dolosos (art. 287, II, B, da Lei 6.404/76). III – A interrupção da prescrição, na lacuna da lei especial quanto ao ponto, regula-se pelo Código Civil.113

Na verdade, para que haja verdadeira conciliação dos direitos fundamentais nas

relações intra-societárias, o ideal é, como pontua Waldirio Bulgarelli:

[...] dar-se sempre ao acionista interessado – portanto verdadeiramente o minoritário, – o poder de agir, quer pedindo informações, quer requerendo convocação de Assembléia, quer propondo ações etc., sem a exigência de um número determinado de ações, responsabilizando-o, em contrapartida, por eventuais excessos ou exageros.114

Estas ponderações do professor paulista parecem se adequar às observações de

Robert Alexy, no sentido de que, “se não houver razão suficiente para a permissibilidade de

um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório”.115

113 STJ, REsp. 16410/SP. Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Quarta Turma. DJ 16.05.1994. p. 11771. 114 BULGARELLI, Waldirio. Regime jurídico da proteção às minorias (...), ob. cit., p. 153. 115 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Mandamentos, 2008. p. 430.

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4.4.3 Cláusula de interdição de participação de concorrente

O conflito de interesses na sociedade anônima é algo natural e inerente à sua

própria existência e à exploração da atividade empresarial. Para solucionar este problema, a

doutrina sugere basicamente duas alternativas: (i) a solução orgânica ou estrutural; ou (ii) a

solução da regra de conflito.116

A primeira alternativa consiste em incorporar ao órgão todos os agentes que têm

interesses ou sofrem as conseqüências das decisões tomadas, ou criar órgão independente, não

passível de sofrer influência dos titulares dos interesses conflitantes.

A solução da regra de conflito, por sua vez, objetiva conciliar os interesses

conflitantes na companhia por meio da edição de normas que têm por finalidade evitar ou

minorar a concretização dos efeitos do conflito de interesses.

Objetivando o âmbito interno da companhia, a LSA traz algumas regras de

solução de conflito, a exemplo do que ocorre com os arts. 115, §1º,117 e art. 147, §3º.118

Com a pretensão de diminuir a potencialidade de conflitos internos na sociedade,

seria lícita a inserção estatutária de vedação de alienação direta ou indireta119 de ações para

concorrentes diretos e/ou indiretos (incluída a proibição de subscrição de ações em caso de

aumento de capital social)?

Em princípio, poder-se-ia argumentar que, independentemente de cláusula

estatutária, o dever de lealdade imposto aos acionistas impediria a venda de ações a

concorrentes, os quais, na eventualidade de adquirirem as ações, estariam impedidos de votar

nas deliberações sociais. É o que se extrai das ponderações de Alfredo Lamy Filho, verbis:

Nem o controlador pode alienar parte de suas ações a um comprador que vai competir com a empresa, pelo fato de ter o mesmo objeto social, nem o comprador pode pretender a aquisição, se com ela vai causar prejuízo à sociedade. Como mero investidor, o comprador estaria necessariamente

116 Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (...), ob. cit., p. 90-91. 117 “§1º O acionista não poderá votar nas deliberações da assembléia geral relativas ao lado de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.” 118 Este dispositivo elenca as condições para a eleição dos membros da administração: “§3º O conselheiro deve ter reputação ilibada, não podendo ser eleito, salvo dispensa da assembléia geral, aquele que: I – ocupar cargos em sociedades que possam ser consideradas concorrentes no mercado, em especial, em conselhos consultivos, de administração ou fiscal; e II – tiver interesse conflitante com a sociedade.” 119 O objetivo da cláusula sob exame só é alcançado se houver a restrição de alienação indireta, haja vista que mediante a utilização da técnica da “participação em cascata” a restrição da alienação direta seria facilmente evadida.

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impedido de votar nas deliberações sociais, dado o conflito de interesses: como controlador, seria responsabilizado por faltar ao seu dever de lealdade à sociedade e aos demais sócios.120

Note-se que a anulação da venda de ações a concorrente da companhia não parece

consistir em sanção juridicamente viável, haja vista a presença, pelo menos a priori,121 dos

elementos de validade dos negócios jurídicos de uma maneira geral, bem como porque o

legislador pátrio utiliza como técnica de solução de conflito de interesses (presumível em

situações como a que se conjectura) o impedimento de voto (com a conseqüente anulabilidade

da deliberação proferida em contraposição à vedação legal) e a imposição das perdas e danos

eventualmente apuradas pela conduta de acionista que age contra os interesses da companhia.

Neste contexto, a inserção da cláusula estatutária sob exame teria como objetivo

tornar uma eventual alienação de ações a concorrentes diretos e/ou indiretos ineficaz perante a

companhia, o que evidencia a utilidade da análise ora empreendida.

Não é difícil visualizar a variedade de direitos fundamentais envolvidos em tal

restrição estatutária, a começar por aqueles de titularidade dos próprios acionistas. Afinal,

uma vez admitida a cláusula estatutária sob exame, o direito de propriedade sobre as ações

sofre uma restrição cuja legitimidade há de ser investigada.

Analisando a situação abstratamente, a referida restrição ao direito de propriedade

não constitui, por si só, medida ilegítima. Isso porque a limitação da negociação das ações não

se confunde com o seu impedimento,122 merecendo lembrar que a conciliação de direitos

fundamentais pressupõe, em inúmeras situações, a flexibilização de algumas prerrogativas

conferidas pelas normas fundamentais aos seus titulares. E na hipótese sob análise o direito de

propriedade sobre as ações estaria sofrendo uma flexibilização (e não eliminação) com o

objetivo de preservação dos direitos fundamentais da companhia e, em certa medida, de seus

próprios acionistas.

120 LAMY FILHO, Alfredo. Temas de S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 436. 121 A ressalva se faz presente porque, havendo dolo do concorrente, na aquisição da participação societária, o negócio jurídico poderia ser invalidado, sendo certo que, se o motivo determinante, comum a ambas as partes, for o de prejudicar a companhia cujas ações foram adquiridas pelo concorrente, a nulidade da venda advirá do disposto no art. 166, inc. III, do CC. A rigor, não se pode admitir, abstratamente, que toda venda de ações a concorrente seja prejudicial. Afinal, ela pode compor uma estratégia necessária à própria solvência da companhia cujas ações foram vendidas a concorrente, podendo a venda consistir na primeira etapa de uma reestruturação societária que venha a atender aos interesses intra e extra-societários. 122 De fato, não havendo impedimento da negociação das ações, mas mera limitação a hipóteses minuciosamente previstas no estatuto, a exigência do art. 36 da LSA encontra-se devidamente atendida. “Art. 36. O estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a negociação, sem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas.”

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No que diz respeito aos direitos dos concorrentes, poder-se-ia vislumbrar uma

ofensa ao princípio constitucional da livre concorrência. A violação deste princípio, contudo,

é mais aparente do que real, porquanto o que a livre concorrência atribui aos agentes

econômicos é o direito de não sofrer perturbações desleais na conquista do mercado.

Certamente, a cláusula em questão não se enquadra nas condutas proibidas pelo princípio

constitucional referido. Na verdade, a interdição de venda de ações a concorrentes consiste em

medida que pode significar a própria preservação da companhia e, via de conseqüência, a

conservação e proteção dos direitos fundamentais que giram em torno da atividade explorada

pela sociedade anônima em que foi introduzida a cláusula estatutária mencionada.

Neste diapasão, conclui-se pela legitimidade da inserção de cláusulas de

interdição de alienação direta e/ou indireta a concorrentes diretos ou indiretos da companhia.

4.4.4 Cláusula de interdição de concorrência de cedente da totalidade da participação

acionária e de ex-membros da administração da companhia

A condição de acionista e de membro da administração da sociedade anônima

confere acesso a informações privilegiadas, que vão desde estratégias operacionais, banco de

dados de fornecedores e clientes, até verdadeiros “segredos de comércio” (trade secrets). Por

isso, com o intuito de preservar os interesses da companhia, os fundadores (ou acionistas,

mediante alteração estatutária) podem optar por inserir cláusula estatutária proibindo que os

acionistas retirantes (independente da modalidade da saída), e os administradores que deixam

a gestão da companhia, façam concorrência direta ou indireta à companhia.

A cláusula de interdição de concorrência nos negócios empresariais já foi objeto

de intensos debates. No caso do trespasse, por exemplo, durante um bom tempo se questionou

a existência de cláusula de não-concorrência implícita,123 debate este prejudicado com o

advento do Código Civil vigente, que no art. 1.147 prevê que, diante da inexistência de

autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao

adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência.

123 Para uma análise mais aprofundada da interdição da concorrência no trespasse, ver BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 241-256.

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A previsão estatutária de interdição de concorrência dos acionistas que cedem a

totalidade de suas participações tem sua legitimidade condicionada,124. visto estar em jogo a

restrição de uma liberdade fundamental que não se encontra em posição hierarquicamente

inferior aos direitos fundamentais da companhia. Daí porque a interdição da concorrência

deve ser delimitada no estatuto da maneira menos gravosa possível para o titular do direito

objeto da restrição, respeitando-se a proporcionalidade desta medida.

Com efeito, a estipulação de um prazo excessivo para a proibição de competição

direta ou indireta, a fixação desmedida da extensão das atividades objeto da interdição e a

vedação com abrangência territorial injustificada acabam convolando a restrição ou

flexibilização do direito de liberdade em inadmissível e ilegítimo esgotamento do direito

fundamental.

Neste contexto, conclui-se que a legitimidade da cláusula sob exame em relação

aos acionistas que se retiram da sociedade está subordinada a que “o campo das atividades

proibidas, a duração da cláusula, ou ainda seu domínio geográfico sejam proporcionais aos

interesses da defesa da empresa”.125 (tradução nossa)

Advirta-se, ademais, que juntamente com o exame da legitimidade da restrição do

direito fundamental daquele que aliena a totalidade de sua participação societária importa

avaliar, como adverte Ascarelli, se a proibição de concorrência poderá conduzir à formação de

um monopólio,126 cujos efeitos extrapolarão a esfera jurídica das partes diretamente

envolvidas.

Por outro lado, a proibição de concorrência direta ou indireta dos administradores

que se despedem da companhia parece encontrar um sério empecilho: muitas vezes a

administração de empresas de um determinado ramo é a única qualificação profissional de um

124 A rigor, em casos de cessão de ações que componham o “bloco de controle”, é comum que o próprio adquirente exija a inserção, no contrato, de cláusula de não-concorrência, a fim de evitar a perda ou a diminuição considerável do aviamento, decorrente da competição do cedente. Sobre a possibilidade de inserção deste tipo de cláusula no contrato de cessão do controle acionário, Comparato assevera: “A fortiori, é perfeitamente legítima a estipulação de cláusula de não-concorrência nos negócios de cessão de controle, máxime quando o cedente goza de grande prestígio no setor empresarial em questão e exercia, efetivamente, as funções de empresário, na companhia cujo controle cedeu”. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 222. 125 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamentaux dans les actes juridiques privés. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003. p. 268. No original: “le champ des activités interdites, la dureé de la clause, ou encore son domaine géographique devront être proportionnés aux intérêts de la defense de l’entreprise”. 126 Consoante as palavras de Ascarelli, “es la misma tutela de la libertad de cada uno la que impone la limitación del ámbito en el que puede ser cerrado el ejercicio de una actividad, pero esta delimitación (que, en otro caso, dada la fórmula alternativa del art. 2.596, puede quedar ineficaz) debe seguir el criterio de evitar no sólo excesivas restricciones a la libertad contractual, sino la formación de un monopolio de hecho a favor de una de las partes o bien a favor de todas las partes como grupo”. ASCARELLI, Tullio. Teoría de la concorrencia y de los bienes inmateriales. Barcelona: Boch, 1970. p. 83-84.

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membro da gestão social que se desvincula da companhia, de modo que o atendimento à

cláusula estatutária em voga consistiria no perecimento (e não mera restrição) do direito

fundamental do livre exercício de trabalho, ofício ou profissão (CF/88, art. 5º, inc. XIII),

atentando, ademais, contra a dignidade do administrador por privar-lhe, em determinadas

situações, da obtenção de renda para sua subsistência, além de impossibilitar-lhe a exploração

de uma profissão ou atividade para a qual se preparou durante anos, e que consiste em

elemento essencial para desenvolvimento de sua personalidade.

Sendo assim, o exame teórico da situação mencionada acena para a ilegitimidade

da cláusula de não-concorrência dos administradores que se despedem da companhia, o que

certamente não significa o reconhecimento da liberdade para revelar dados confidenciais desta

última ou abusar, de alguma maneira, da posição privilegiada que antes lhe fora outorgada.

4.4.5 Cláusula que proíbe os acionistas sem direito de voto de comparecerem e discutirem

as matérias submetidas à deliberação das assembléias gerais

O parágrafo único, do art. 125, da LSA, prevê que os acionistas sem direito de

voto poderão comparecer à assembléia geral e discutir a matéria submetida à deliberação.

Com efeito, em razão de este direito outorgado aos titulares de ações sem voto

não se enquadrar às hipóteses exaustivamente previstas no caput do art. 109 da LSA, há de se

analisar a legitimidade de cláusula estatutária que impeça aos referidos acionistas

comparecerem à assembléia geral e discutirem a matéria submetida à deliberação.

Uma interpretação sistemática e teleológica da LSA conduz à conclusão de que a

cláusula sugerida não encontra guarida no ordenamento societário, porquanto o §2º, do art.

109, prescreve a impossibilidade de o estatuto ou a assembléia geral elidir os meios, processos

ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar seus direitos.

De fato, o direito de comparecimento e discussão das matérias submetidas à

deliberação da assembléia geral constitui meio atribuído ao acionista para fazer valer o direito

de fiscalização da gestão dos negócios sociais (LSA, art. 109, inc. III).

Outrossim, insta mencionar que só se pode admitir tratamento desigual entre

acionistas nas hipóteses exaustivamente previstas em lei (as quais estão subordinadas, por sua

vez, à existência de uma razão suficiente para o deferimento do tratamento desigual) ou

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quando estes tenham expressa e livremente pactuado a restrição do direito fundamental da

igualdade.

4.4.6 Cláusula de imposição de critérios para a eleição (e permanência) da administração

social

Pode o estatuto estabelecer critérios para a eleição e destituição dos

administradores?

Teoricamente a resposta é, sem dúvida, positiva. Em especial quando os critérios

estabelecidos são objetivos, a exemplo do que ocorre com a exigência de que os

administradores comprovem uma determinada experiência no ramo da atividade explorada

pela companhia.

A situação se altera, no entanto, quando os critérios consistem em alguma forma

de discriminação, seja em razão da raça, sexo, orientação sexual, crença religiosa ou política,

cor, idade etc. Nestes casos, não havendo justificativa plausível para a restrição estatutária, a

ilegitimidade da limitação e regulação interna da sociedade é patente, por atentar, de forma

direta, contra o direito fundamental da igualdade.

Dentre os elementos “discriminatórios” para o estabelecimento de critérios para a

escolha e destituição dos administradores chama atenção a limitação quanto à “idade”, em

especial a previsão estatutária de idade limite para o exercício da administração.

Na França, a legislação outorga a liberdade estatutária de se fixar o limite de idade

dos dirigentes, determinando que no silêncio do estatuto aplicam-se as disposições legais, que

estabelecem como limite para os membros da diretoria a idade de 65 anos, enquanto que fixa

em 70 anos a idade limite para os membros do conselho de administração e do conselho

fiscal.127

127 A regulação francesa, advinda da Lei de 31 de dezembro de 1970, conduz a algumas dificuldades de interpretação, segundo constata Yves Guyon. Com efeito, “on se demande tout d’abord s’il faudrait tenir compte de status stipulant des limites d’âge manifestement exagérées, comme s’il etait par exemple prevu que les 9/10 des administrateurs ne doivent pas avoir dépassé l’âge de 99 ans. Il faudrait sans doute considérer qu’une telle stipulation est l’équivalent d’une absence de limite d’âge statutaire, de telle sorte que le régime legal s’appliquerait à titre supplétif. En second lieu, le dirigeant atteint par la limite d’âge est réputé démissionnaire d’office. La vie sociale s’en trouvera perturbée, notamment si l’organe d’administration ou de surveillance n’a plus, de ce fait, une composition régulière ou si l’intéressé, bien qu’atteint par la limite d’âge, continue de prendre part aux deliberations. Si la limite d’âge atteint le représentant légal, la société risque d’être paralysée e il peut être nécessaire d’obtenir la désignation d’un administrateur judiciaire. La règle qui présume démissionaire

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Determinadas disposições normativas do Direito pátrio, sendo algumas de ordem

constitucional,128 poderiam acenar para a legitimidade de se estabelecer um limite de idade

para o exercício da administração da companhia, argumentando-se que a limitação em voga

atenderia ao interesse social, tendo como objetivo evitar que administradores com um menor

potencial laboral, decorrente de uma idade mais avançada, possam prejudicar as atividades

sociais.

No entanto, os argumentos em favor da limitação de idade para o exercício da

administração não convencem. O que justificaria a destituição e/ou inelegibilidade de uma

pessoa com idade mais avançada seria a comprovação efetiva de sua incapacidade para o

exercício do múnus da administração. Mas essa incapacidade física pode atingir não somente

aqueles de idade mais avançada, devendo-se respeitar o direito fundamental da igualdade.

A afronta à dignidade do administrador, fundamentada de maneira abstrata no

elemento cronológico, é inadmissível, em especial em razão do avanço da ciência e da

medicina, que têm contribuído para um envelhecimento saudável.129

Ao impulso destas considerações, sobressai a ilegitimidade da inserção de

cláusula que estabeleça a idade como critério isolado de eleição e destituição dos

administradores.

l’administrateur le plus âgé étant supplétive, les status peuvent prévoir d’autres procédés de régularisation comme par exemple le tirage au sort ou la démission de l’admnistrateur le plus ancien dans ses fonctions etc”. GUYON, Yves. Traité de contrats (...), ob. cit., p. 209. 128 Tome-se como exemplo o §7º, do art. 201, da CF/88, que assegura a aposentadoria no regime geral de previdência social aos homens que completarem 65 anos de idade, e as mulheres que completarem 60 anos de idade. 129 O jornal Valor Econômico publicou pesquisa e reportagem de Tom Lowry, da Business Week, em que foi constatado que septuagenários no poder dividem espaço com os jovens CEOs. Segundo a reportagem, “se hoje os 60 anos de idade são os novos 40, então os 80 são novos 60. Ficar mais mole com a idade simplesmente não é para esses caras. Todos os dias Sumner Redstone, 85 anos e presidente dos conselhos de administração da Viacom e da CBS, levanta às 5h em sua mansão em Beverly Hills, nada, anda de bicicleta, faz esteira e lê com atenção relatórios financeiros até a abertura dos mercados. Rupert Murdoch, 77, luta alguns rounds com um técnico de boxe, antes de dirigir-se para o seu império global de mídia. O editor-chefe da revista “Playboy”, Hugh Hefner, 82, dá duro no exercício das lendárias prerrogativas de seu trabalho”. Valor Econômico. D10. 3 de setembro de 2008.

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4.4.7 A previsão estatutária do resgate em caso de algum evento da vida privada do

acionista

O caput do art. 44 da LSA prescreve que o estatuto pode autorizar a aplicação de

lucros ou reservas130 no resgate de ações, sendo necessária a previsão das condições e o modo

de proceder-se à operação.

Note-se, ademais, que a interpretação do §6º do mesmo art. 44 conduz à

conclusão de ser possível promover o resgate das ações independentemente da aprovação de

seus titulares.131 Basta haver previsão estatutária expressa, consignando de maneira

pormenorizada, insista-se, as condições e o modo do resgate.

A rigor, sob pena de violação ao direito fundamental da igualdade, a cláusula

estatutária que prevê o resgate deve estabelecer condições objetivas, aplicáveis de maneira

indiscriminada a todos os acionistas.

Considerando que o resgate envolve o direito de propriedade do acionista, bem

como seu direito de livre associação, é preciso avaliar a legitimidade das condições

estatutárias previstas para a conclusão da operação societária sob exame.

Na prática societária, não raramente são inseridas, em especial nas holdings

familiares, cláusulas estatutárias que, ao disciplinarem o resgate, prevêem como evento

condutor desta operação a prática de atos da vida privada dos acionistas, como o casamento, a

escolha da profissão ou religião, o estabelecimento do domicílio etc.

Tais cláusulas normalmente são estabelecidas pelo controlador (no caso das

holdings familiares este é o patriarca) com o nítido objetivo de interferir nas escolhas privadas

dos acionistas, o que torna questionável sua legitimidade.

Realmente, admitir que o exercício de escolhas de projetos de vida corresponda à

eliminação não desejada de direitos fundamentais do seu titular é tornar letra morta as

garantias constitucionais previstas nos incisos VIII e X, do art. 5º, da CF/88. Como

prescrevem estas normas constitucionais, ninguém será privado de seus direitos por motivo de

130 Na criação da reserva para o fim de promover resgate de ações, é preciso observar os ditames do art. 194 da LSA, a saber: “Art. 194. O estatuto poderá criar reservas desde que, para cada uma: I – indique, de modo preciso e completo, a sua finalidade; II – fixe os critérios para determinar a parcela anual dos lucros líquidos que serão destinados à sua constituição; e III – estabeleça o limite máximo da reserva”. 131 “§6º Salvo disposição em contrário do estatuto social, o resgate de ações de uma ou mais classes só será efetuado se, em assembléia especial convocada para deliberar esta matéria específica, for aprovado por acionistas que representem, no mínimo, a metade das ações da(s) classe(s) atingida(s).”

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crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, sendo certo que a intimidade e a vida

privada são invioláveis.

Em que pese não ser possível admitir o caráter absoluto destas prescrições

constitucionais (haja vista a necessidade de sua conjugação com outras de mesma natureza), é

preciso lembrar que a ofensa a um direito fundamental deve passar por um “filtro de

legitimidade”, segundo o qual se deve constatar se (i) a ofensa ou ameaça a um direito

fundamental se justifica na realização de um outro direito fundamental e (ii) se o ato

impugnado observou a exigência da proporcionalidade.

Alerte-se, ademais, para o fato de que eventual consentimento do titular do direito

da personalidade ofendido pela cláusula estatutária do resgate não deve ser considerado como

suficiente para elidir a ilegitimidade da ofensa ao direito fundamental, porquanto, consoante

dispõe art. 11 do Código Civil, os direitos da personalidade (concretizações do direito

fundamental da dignidade e da vida privada) são intransmissíveis e irrenunciáveis, não

podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária desproporcional.

Neste sentido, Julien Raynaud assevera que:

[...] tem-se, classicamente, como revogável a todo momento o consentimento dado por um pessoa a um ato relacionado a direitos que tutelam sua própria individualidade. Todo indivíduo deve poder recuperar sem ônus o domínio pleno e completo de seus atributos pessoais.132 (tradução nossa)

4.5 Dissolução da companhia

A dissolução de uma sociedade pode ser compreendida e estudada de acordo com

três diferentes vertentes: (i) a primeira delas considera a dissolução como sinônimo da

extinção da sociedade; (ii) a segunda compreende a dissolução como o evento que dá início ao

procedimento de extinção da sociedade, seguindo-se a ele, portanto, a liquidação, a partilha, e

o registro; (iii) a terceira vertente, por sua vez, considera a dissolução como o próprio

procedimento de extinção da sociedade, abrangendo todas as fases deste conjunto de atos

necessários à extinção da sociedade.

132 RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamentaux (…), ob. cit., p. 346. No original: “On retient en effet classiquement qu’est révocable à tout moment le consentement donné par une personne à un acte ayant trait à des droits protégeant son individualité propre. Tout individu doit ainsi pouvoir recouvrer sans contrainte la maîtrise pleine et entière de ses attributs personnels”.

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Entre nós a terceira vertente prevaleceu durante a vigência do Decreto-lei nº

2.627/40, tendo a LSA vigente acolhido a segunda escola doutrinária,133 que “visualiza a

dissolução como fato diverso daquele da liquidação e da partilha, constituindo etapa prévia e

necessária do termo final da extinção da companhia”.134

Nesta ordem de idéias, deve-se entender por dissolução o ato ou fato, de natureza

constitutiva,135 que dá início ao procedimento de liquidação, o qual, por sua vez, é

desenvolvido, de acordo com os pressupostos legais, para fins de extinção da sociedade

anônima como pessoa jurídica. Recorde-se que a extinção da companhia como pessoa jurídica

somente ocorre após o deferimento, pela Junta Comercial, do pedido de arquivamento da ata

da assembléia que aprovou a prestação de contas do liquidante,136 e a publicação da ata na

imprensa.

Na verdade, a conjugação do art. 210, inc. IX,137 com o art. 289, §5º,138 ambos da

LSA, com o art. 35, inc. I, da Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994,139 parece conferir

fundamento ao entendimento de que o Registro Público de Empresas Mercantis não poderá

deferir o arquivamento da ata de assembléia que aprovou a prestação de contas do liquidante

sem que seja arquivada, concomitantemente, a comprovação de publicação da ata na imprensa

oficial e em jornal de grande circulação.

133 Neste sentido, Alfredo de Assis Gonçalves Neto registra “ter a lei vigente restaurado a distinção entre dissolução (momento) e liquidação (modo de proceder a extinção), deixando claro, também, que a sociedade, enquanto se liquida, mantém sua personalidade jurídica para praticar os atos de liquidação até o final, perdendo-a quando não houver mais o que liquidar, ou seja, quando, por falta de patrimônio e por não ter mais atos a realizar, extinguir-se (arts. 206 e 207 da Lei n. 6.404, de 1976). GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário. Vol. II. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 248. 134 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 4º Vol. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 16. 135 Há quem entenda que a dissolução tem natureza declaratória, como sói ocorrer com CARVALHOSA, Modesto, para quem a dissolução consiste em “ato declaratório que abre o processo de liquidação, que, por sua vez, conduz ao ato declaratório de extinção da companhia como pessoa jurídica”. Comentários à lei de sociedades anônimas (...), ob. cit., p. 17. Todavia, a natureza constitutiva da dissolução decorre do fato de que, uma vez verificada a hipótese dissolutória, a companhia se sujeita a um novo regime jurídico, sendo-lhe vedada a continuação das atividades, sob pena de se subordinar às regras da sociedade em comum. Neste sentido, Verçosa assevera que “uma sociedade pode encontrar-se dissolvida juridicamente, mas manter efetivamente sua atividade, caracterizando-se neste período como sociedade em comum”. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 626. 136 Consoante o escólio de Rubens Requião, “é necessário, no caso de dissolução, que a ata da assembléia geral, que aprovar as contas finais do liquidante, seja por este arquivada no Registro Público de Empresas Mercantis. Pendente o registro, a pessoa jurídica legalmente ainda continua a ter existência jurídica, embora na realidade dos fatos esteja extinta. O ato formal do registro da extinção, parece-nos, pois, imprescindível”. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º Vol. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 364. 137 “Art. 210. São deveres do liquidante: (...) IX – arquivar e publicar a ata da assembléia geral que houver encerrado a liquidação.” 138 “§5º Todas as publicações ordenadas nesta Lei deverão ser arquivadas no Registro do Comércio.” 139 “Art. 35. Não podem ser arquivados: I – os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem como respectivos estatuto ou contrato não modificado anteriormente [...]”

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Deve-se atentar, ademais, para a inovação trazida pelo art. 9º, da Lei

Complementar nº 123, de 16 de dezembro de 2006, o qual dispensa a exigência de

apresentação de documentos comprobatórios de regularidade fiscal para o deferimento do

pedido de extinção,140advertindo-se que, sob pena de invalidação do registro, as fases que o

precedem devem ter sido cumpridas regularmente, a saber: a liquidação e a partilha.

A propósito, merecem transcrição as palavras de Mauro Rodrigues Penteado, para

quem:

O corolário mais importante dessa natureza peculiar do instituto [extinção societária] reside em que o ciclo formativo da extinção não se completa e portanto, nem a sociedade nem a pessoa jurídica se extinguem sem que, antes, tenham sido praticados todos os atos e negócios que a lei erige em seu suporto fático, o que vale dizer que o eventual arquivamento no Registro do Comércio e da ata da assembléia que aprovou a prestação final de contas pode ser cancelado [...]141

Nesta ordem de idéias, impende investigar as causas de dissolução das

companhias para que se possa registrar sugestão sobre a repercussão de uma leitura

constitucional do tema sob exame.

4.5.1 Hipóteses de dissolução da companhia

Consoante advertência da doutrina, a constatação da ocorrência de uma causa de

dissolução importa “na imediata transformação da companhia, de organização dinâmica de

exploração da atividade econômica em organização de liquidação”,142 de maneira que a

personalidade jurídica da companhia será conservada tão somente para o fim de se proceder à

liquidação (LSA, art. 207),143 a qual consiste, por sua vez, na realização do ativo para a

satisfação do passivo,144 de maneira a ser vedada a continuação regular das atividades,

140 Cf. CASTRO, Moema Augusta Soares de. Manual de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 254. 141 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 56-57. 142 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades (...), ob. cit.. p. 174. 143 Registre-se, outrossim, que “em todos os atos ou operações, o liquidante deverá usar a denominação social seguida das palavras “em liquidação”” (LSA, art. 212), regra esta que objetiva, nitidamente, conferir proteção àqueles que se relacionam com a companhia em estado de liquidação. 144 Dentre os efeitos da dissolução relacionados aos acionistas destaca-se a regra do §1º, do art. 213, segundo a qual “nas assembléias gerais da companhia em liquidação todas as ações gozam de igual direito de voto, tornando-se ineficazes as restrições ou limitações porventura existentes em relação às ações ordinárias ou

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competindo ao liquidante, dentre outras atribuições, “ultimar os negócios da companhia”

(LSA, art. 210, inc. IV).

A LSA disciplina a dissolução da companhia nos arts. 206-219, elencando como

hipóteses de dissolução de pleno direito (que independem, portanto, de pronunciamento

judicial): a) o término do prazo de duração; b) a ocorrência de eventos previstos no estatuto;

c) a deliberação da assembléia geral; d) a existência de um único acionista, verificada em

assembléias geral ordinária, se o mínimo de dois não for reconstituído até à do ano seguinte,

ressalvado o disposto no art. 251 (que trata da subsidiária integral); e) pela extinção, na forma

da lei, de autorização para funcionar (caso das sociedades estrangeiras, cujo início regular das

atividades está condicionada à autorização do chefe do Poder Executivo, por meio de Decreto,

e das instituições financeiras, que dependem de autorização prévia do Banco Central do Brasil

para explorarem suas atividades).

A companhia será dissolvida, por decisão judicial, por sua vez: a) quando anulada

sua constituição, em ação proposta por qualquer acionista; b) quando provado que não pode

preencher seu fim, em ação proposta por acionistas que representem cinco por cento ou mais

do capital social; c) em caso de falência, na forma prevista na respectiva lei; d) quando

exaurido o fim social.145

Por fim, a sociedade anônima será dissolvida por decisão de autoridade

administrativa competente, nos casos e na forma previstos em lei, como ocorre com as

instituições financeiras, sujeitas aos regimes especiais de intervenção que poderão ser

decretados pelo Banco Central do Brasil.146

Dentre os eventos que dão início ao procedimento de extinção da sociedade,

chama a atenção aqueles que advêm da vontade dos sócios147 (seja no ato de constituição da

preferenciais; cessando o estado de liquidação, restaura-se a eficácia das restrições ou limitações relativas ao direito de voto”. 145 Esta hipótese advém não da LSA, mas da conjugação do art. 1.089 com o art. 1.034, inc. II, do Código Civil. Advirta-se, ademais, que além das hipóteses relatadas, a liquidação será processada judicialmente: a) a pedido de qualquer acionista, se os administradores ou a maioria de acionistas deixarem de promover a liquidação, ou a ela se opuserem, nos casos de dissolução de pleno de direito; b) a requerimento do Ministério Público, à vista de comunicação da autoridade competente, se a companhia, nos trinta dias subseqüentes à dissolução, não iniciar a liquidação ou, se após iniciá-la, interrompê-la por mais de quinze dias, no caso de extinção de autorização para funcionar (LSA, art. 209). 146 Sobre os regimes especiais de intervenção a que estão submetidas as instituições financeiras, cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Responsabilidade civil especial nas instituições financeiras e nos consórcios em liquidação extrajudicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993; BOTREL, Sérgio. Insolvência bancária – responsabilidade civil do Banco Central do Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 147 Sobre as hipóteses de dissolução voluntária, Mauro Rodrigues Penteado registra: “a superveniência do término do prazo de duração (alínea a) ou a verificação de um dos eventos previstos no estatuto (alínea b) traduzem a autonomia da vontade expressa no regulamento societário, tanto ao fixar a duração da sociedade e os casos em que se dissolve quanto em não prorrogar o primeiro ou modificar os segundos antes de sua ocorrência; a dissolução por deliberação da assembléia-geral (alínea c) dispensa comentários, exemplo clássico que é da

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companhia, ou em momento posterior), quais sejam (i) o término do prazo de duração; (ii) a

ocorrência de eventos previstos no estatuto; (iii) a deliberação da assembléia geral.

O afastamento da regra do art. 206, inc. I, alíneas “a”, “b”, e “c”, da LSA, em

razão do interesse de sócio ou sócios darem continuidade à exploração da atividade

empresarial já encontra na doutrina adesão considerável, variando, contudo, os fundamentos

para o afastamento da regra legal.

A doutrina francesa, por exemplo, entende que os minoritários que se sentirem

lesados pela decisão da assembléia que deliberou promover a extinção da companhia podem

pleitear a anulação da deliberação, desde que fique comprovado o abuso do ato de aprovação,

demonstrando-se que a dissolução é contrária ao interesse social.148

Entre nós o princípio da preservação da empresa consiste no fundamento de

afastamento da regra legal que impõe a extinção da companhia, com o reconhecimento de que

a dissolução parcial consiste na solução para o impasse. Deste modo, os sócios que não se

interessarem em permanecer na sociedade podem dela se desvincular, enquanto que os demais

continuarão a explorar coletivamente a empresa. Neste sentido, cabe registrar as palavras de

Alfredo de Assis Gonçalves Neto:

Penso já ter demonstrado satisfatoriamente que todas as causas de dissolução da sociedade, que não envolvam preceitos de ordem pública, permitem a dissolução parcial, para assegurar aos sócios remanescentes manter os vínculos societários que ajustaram entre si, se o quiserem, visando preservar a existência da sociedade e a continuidade da empresa.149

Com efeito, a sugestão de afastamento da regra de dissolução, com o deferimento

do direito de os sócios descontentes receberem seus haveres, afigura-se como medida de

inegável legitimidade. Isso porque, em casos como o que se conjectura, o princípio da

preservação da empresa, que tem fundamentado esta sugestão, acaba servindo de instrumento

para a conservação e conciliação dos direitos fundamentais que gravitam em torno da

atividade explorada pela companhia.

dissolução voluntária, dita antecipada”. PENTEADO, Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades (...), ob. cit., p. 65-66. 148 Consoante registro de Edouard Richard, “la décision de dissoudre de manière anticipée la société doit être prise aux conditions de modifications des status. Les minoritaires qui s’estimeraient lésés par une telle dissolution peuvent agir sur le terrain de l’abus de majorité, ce qui suppose qu’ils démontrent que la décision de dissoudre la société est contraire à l’intérêt social et a été prise dans l’intérêt des majoritaires, au detriment des minoritaires”. In: RICHARD, Edouard (direction). Droit des affaires: questions actuelles et perspectives historiques. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005. p. 434-435. 149 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário (...), ob. cit., p. 253.

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Afinal, os sócios que não mais se interessam em explorar a atividade

coletivamente estarão exercendo seu direito fundamental de não permanecerem associados,

enquanto que os demais sócios poderão continuar a exercer a liberdade de empreender, ao

passo que os direitos fundamentais cuja realização depende da continuação da empresa

estarão, também, sendo preservados.150

Advirta-se, no entanto, que a sugestão de afastamento da regra de dissolução

deverá levar em consideração as nuances do caso concreto, a fim de se constatar se a empresa

explorada é, de fato, viável, e se está sendo desenvolvida legitimamente, ou seja, com

observância aos direitos fundamentais intra e extra-societários.

É importante recordar, aliás, que a interpretação constitucionalizada sugerida

neste trabalho não traz soluções prontas e acabadas para eventuais conflitos. O que se

pretende é incentivar a idéia de que também no âmbito do Direito Empresarial a utilização da

Constituição é indispensável para que a produção, aplicação e interpretação do Direito sejam

levadas a efeito legitimamente.

150 Mauro Rodrigues Penteado consigna a necessidade de se respeitarem as delimitações constitucionais para que a dissolução ocorra legitimamente, verbis: “Nesse sentido, frise-se que, por força de disposições constitucionais, há que se perquirir se a sociedade, civil ou comercial, pode ou não ser liquidada, levando-se em linha de consideração os interesses públicos gerais, comunitários, locais ou dos não-acionistas (v.g., trabalhadores), atingidos pela operação, em confronto com os interesses privados e muitas vezes egoísticos dos sócios”. In: Dissolução e liquidação (...), ob. cit., p. 7.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É antiga a discussão sobre o que é o Direito e qual é o papel por ele

desempenhado, sendo certo que o dissenso sobre esta matéria provavelmente terá duração até

o final dos tempos.

No entanto, a produção e aplicação de um Direito legítimo parece consistir em

objetivo comum a todos aqueles que encontram nesta ciência os seus ofícios. A fonte de

legitimidade do Direito reside, consoante foi abordado neste trabalho, no processo

democrático de legiferação, ao mesmo tempo que o sistema jurídico legítimo pressupõe a

contemplação de direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais, por sua vez, são incorporados e interpretados em ordens

jurídicas concretas por intermédio do Direito Constitucional, o que demonstra a necessidade

de uma leitura constitucional de todos os ramos do Direito se se pretende produzir e aplicar

um Direito legítimo. Deveras, como pontua a doutrina francesa, falar da

“constitucionalização” de um ramo do Direito é constatar a sua conformação aos direitos

fundamentais.1

A rigor, o Direito Empresarial não pode ser concebido como uma exceção a esta

regra, de modo que sua produção, aplicação e interpretação devem passar pelo “filtro

constitucional”, proposta esta que o liberta das amarras do Positivismo clássico, conferindo-

lhe uma nova direção em todas as suas disciplinas, dentre as quais o Direito Societário,

escolhido como objeto de análise deste trabalho.

Por intermédio de uma perspectiva constitucional, o Direito Societário deixa de

ser compreendido somente como um ramo do Direito Privado, destinado a regular os

interesses dos agentes econômicos, numa concepção liberal de laissez-faire, para ser

entendido também como verdadeiro instrumento de concretização e conciliação dos direitos

fundamentais que gravitam em torno da empresa explorada coletivamente.

De fato, a tarefa de concretização e conciliação dos direitos fundamentais

compete, primeiramente, ao legislador, sendo certo que toda interpretação das normas

infraconstitucionais deverá almejar a maior realização possível dos direitos fundamentais

envolvidos.

1 “Parler de constitutionnalisation d’une branche du droit c’est constater que cette branche est sous l’emprise des droits fondamentaux, de la protection des droits et libertés, donc du droit constitutionnel ansi entendu”. RAYNAUD, Julien. Les atteintes aux droits fondamentaux dans les actes juridiques privés. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003. p. 361.

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Contudo, se a regulamentação infraconstitucional mostrar-se insuficiente ou

inadequada para a conciliação e tutela dos direitos fundamentais envolvidos, a invocação

direta dos direitos fundamentais, como verdadeiros direitos subjetivos, torna-se medida

cogente para que, pela argumentação jurídica, se dê uma solução interpretativa ao conflito dos

direitos fundamentais.

Efetivamente, em que pese a ordem constitucional brasileira reconhecer direitos

fundamentais que servem de alicerce para a exploração da atividade econômica, o exercício

da empresa, seja individual ou coletivamente, subordina-se às balizas expressa e/ou

implicitamente impostas pelo texto constitucional, de maneira que a avaliação de legitimidade

da atividade empresarial extrapola o exame dos pressupostos de regularidade ditados pelo

legislador infraconstitucional.

Ressalte-se que o juízo a ser realizado nesta análise não é meramente econômico,

no sentido de serem maximizadas as utilidades, mas uma verdadeira busca de implementação,

por intermédio da interpretação, do projeto constitucional.

Esta ordem de idéias poderia ser considerada como despropositada para o Direito

Empresarial, cuja regulamentação deve atender às necessidades do fenômeno que regula (a

empresa). Como é consabido, este ramo do Direito deve ser flexível – para responder

adequadamente à dinamicidade da atividade empresarial –, e seguro – no sentido de conferir-

se menor atenção às formalidades do Direito Comum (Civil), evitando que a forma impeça a

produção de efeitos jurídicos dos atos que compõem a atividade do empresário.

Mas o pretendido isolamento do Direito Empresarial – decorrente de sua

especialidade – mostra-se, na contemporaneidade, inadmissível. Sua peculiaridade não lhe

retira o caráter instrumental em relação aos direitos fundamentais, os quais consistem no

próprio fundamento da ordem econômica e social dentro da qual a empresa é explorada. O

que se pode admitir e incentivar é que as particularidades do Direito Empresarial sejam

levadas em consideração na leitura constitucional sugerida neste trabalho. Isso significa, por

exemplo, que os riscos livremente assumidos por aqueles que exploram a empresa devem ser

inseridos na tarefa exegética do intérprete.

O receio de uma insegurança jurídica, advinda do reconhecimento da eficácia

horizontal dos direitos fundamentais, parece desconsiderar a própria releitura da segurança

jurídica, classicamente atrelada à previsibilidade da solução de conflitos mediante a utilização

das técnicas de subsunção.

Hodiernamente, a segurança jurídica advém das garantias constitucionais da

inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa e da obrigatoriedade de que

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as decisões judiciais sejam fundamentadas. De fato, não há “elemento surpresa” quando um

conflito é decidido de acordo com estas balizas constitucionais.

A adoção de um modelo constitucionalizado do Direito Societário mostra-se como

uma atitude construtiva, merecendo transcrição as palavras de Ronald Dworkin, no sentido de

que:

[...] embora o conteúdo do direito seja muito diferente de uma época para outra, ainda assim, num sistema legal próspero, até mesmo mudanças importantes podem ser vistas como decorrentes do direito existente, enriquecendo esse direito, mudando sua base e, assim, provocando uma mudança adicional.2

Nesta ordem de idéias, é de se reconhecer que a fase de transição para algo novo,

mencionada no início deste trabalho, consiste, ainda, em uma etapa inacabada, sendo

preponderante o papel da doutrina e das reflexões teórico-jurídicas para a reconstrução do

Direito Empresarial, reiterando, outrossim, que as sugestões desta tese têm como objetivo

contribuir para o início de uma mudança do modo de produzir, aplicar e interpretar o Direito

Empresarial.

2 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 488-489.

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