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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Mary Helen Sathler Silva METÁFORAS QUE FAZEM RIR: uma construção discursiva do humor na obra de Millôr Fernandes Belo Horizonte 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

Mary Helen Sathler Silva

METÁFORAS QUE FAZEM RIR: uma construção discursiva do humor na obra de Millô r Fernandes

Belo Horizonte 2014

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Mary Helen Sathler Silva

METÁFORAS QUE FAZEM RIR: uma construção discursiva do humor na obra de Millô r Fernandes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Orientador: Hugo Mari

Belo Horizonte 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Mary Helen Sathler

S586m Metáforas que fazem rir: uma construção discursiva do humor na obra de

Millôr Fernandes / Mary Helen Sathler Silva, Belo Horizonte, 2014.

78 f.: il.

Orientador: Hugo Mari

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Fernandes, Millôr, 1924-2012 - Crítica e interpretação. 2. Humorismo. 3.

Metáfora. 4. Análise do discurso. 5. Cognição. I. Mari, Hugo. II. Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

III. Título.

CDU: 869.0(81)-7

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Mary Helen Sathler Silva

METÁFORAS QUE FAZEM RIR: uma construção discursiva do humor na obra de Millô r Fernandes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa.

_________________________________________________ Prof. Dr. Hugo Mari – PUC Minas – Orientador

_________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Priscilla Chantal Duarte Silva – UNIFEI

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Anita Maria Ferreira Silva – UFV

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lilian Aparecida Arão – CEFET/MG – Suplente

Belo Horizonte, 07 de novembro de 2014

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Para Jean, meu norte, minha primavera,

meu sonhar e meu realizar.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos pais, Sileni e Vandir, pelo apoio, torcida e incentivo

incondicionais e por tudo que já fizeram e ainda fazem por mim.

Ao meu irmão, Daniel, pela amizade e pelo companheirismo.

Ao meu afilhado, Lucas, pelo terno amor e carinho.

Aos meus familiares que estiveram presentes durante a trajetória.

Aos meus amigos, pelo convívio e pela alegria constante.

Ao meu orientador e mestre, Hugo Mari, pela sua sagaz e atenciosa

orientação, por compartilhar o seu conhecimento e por acreditar em mim desde os

meus primeiros passos na vida acadêmica.

Aos estimados professores da Graduação e da Pós-Graduação em Letras,

pela sabedoria e experiência compartilhada.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras e aos funcionários da Secretaria,

pela atenção e dedicação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),

pelo importante apoio à pesquisa e por tornar possível a realização deste trabalho.

Ao Millôr Fernandes, in memoriam, pela sua extensa, extraordinária e

definitiva obra.

Por fim, ainda que de forma generalizada, o meu carinhoso obrigada a todos

que, de alguma maneira, direta ou indiretamente, contribuíram para a concretização

deste sonho.

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O fogo da paixão, como qualquer outro fogo, não vive sem oxigênio.

Agora vocês me digam o que significa oxigênio aí nessa parábola

que acabo de inventar. (Millôr Fernandes, 2007, p. 308)

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RESUMO

O humor, como fato sociocultural, permeia o cotidiano, ocorre que nem sempre é

levado a sério o suficiente de modo a ser estudado de maneira profunda. A metáfora

também é um fato sociocultural que permeia o cotidiano, no entanto, por sua vez, é

incessantemente debatida e teorizada, principalmente a partir do século XX, o que

lhe confere um estágio mais avançado em seus estudos. Esse trabalho tem como

objetivo o avanço na discussão teórica acerca do humor e, para isso, opta por

estabelecer as bases teóricas da metáfora, principalmente a Teoria Cognitiva da

Metáfora de Lakoff e Johnson e a Teoria da Metáfora em uma Perspectiva

Associada ao Ato de Fala de Searle, com o intuito de analisar sua adequação com o

humor. Para a discussão não se resumir ao plano teórico, foi utilizado, como corpus

de análise, a obra Millôr definitivo: a bíblia do caos de Millôr Fernandes. Essa obra é

composta por diversos enunciados, dentre os quais foram analisados aqueles que

tiveram a ocorrência tanto do humor, quanto da metáfora.

Palavras-chave : Humor. Metáfora. Millôr. Cognição. Análise do discurso.

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ABSTRACT

The humor, as sociocultural fact, is present in everyday life, but it is not always taken

seriously enough to be studied deeply. The metaphor is also a sociocultural fact that

is present in everyday life, however, on the other hand, it is quite often debated and

theorized, mainly from the twentieth century, giving it a more advanced stage in its

studies. This paper aims to advance in the theoretical discussion about the humor

and, for this, chooses to establish the theoretical foundations of metaphor, especially

the Lakoff and Johnson's Cognitive Metaphor Theory and Searle's Metaphor from a

Speech-Act Perspectiva, in order to analyze its adequation to the humor. To not

summarize the discussion in the theoretical level, it was used the work Millôr

definitivo: a bíblia do caos from Millôr Fernandes as corpus of analysis. This work is

composed of several statements, among which were analyzed those who had the

occurrence of humor and metaphor.

Keywords : Humor. Metaphor. Millôr. Cognition. Discourse Analysis.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10

2 O HUMOR E A METÁFORA ............................ ............................................ 12

2.1 O Humor ....................................... ............................................................ 12

2.2 A Metáfora .................................... ............................................................ 14

2.2.1 Teoria da Comparação ......................................................................... 14

2.2.2 Teoria Interacionista ............................................................................. 16

2.2.3 Teoria da Metáfora em uma Perspectiva Associada ao Ato de Fala 19

2.2.4 Teoria Cognitiva da Metáfora .............................................................. 23

2.3 A Relação entre o Humor e a Metáfora .......... ........................................ 27

3 ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DE ENUNCIADOS HUMO RÍSTICO- METAFÓRICOS .............................................................................................. 30

3.1 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora do Canal .......... 30

3.1.1 Ponderações Iniciais ............................................................................ 30

3.1.2 Análises ................................................................................................. 32

3.1.3 Ponderações Finais .............................................................................. 40

3.2 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora “Discussão é Guerra” ........................................... ................................................................ 41

3.2.1 Ponderações Iniciais ............................................................................ 41

3.2.2 Análises ................................................................................................. 42

3.2.3 Ponderações Finais .............................................................................. 45

3.3 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora “Tempo é Dinheiro” ......................................... ............................................................... 47

3.3.1 Ponderações Iniciais ............................................................................ 47

3.3.2 Análises ................................................................................................. 48

3.3.3 Ponderações Finais .............................................................................. 50

3.4 Enunciados Humorísticos compostos por Metáforas relacionadas ao Dinheiro .......................................... ................................................................ 51

3.4.1 Ponderações Iniciais ............................................................................ 51

3.4.2 Análises ................................................................................................. 53

3.4.2.1 A Atribuição da Ação de Falar ao Dinheiro . .................................... 53 3.4.2.2 A Atribuição da Ação de Transportar ao Dinh eiro ......................... 56 3.4.2.3 A Personificação do Dinheiro .............. ............................................ 59 3.4.3 Ponderações Finais .............................................................................. 60

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3.5 Enunciados Humorísticos compostos por Metáforas relacionadas à Morte ............................................. .................................................................. 62

3.5.1 Ponderações Iniciais ............................................................................ 62

3.5.2 Análises ................................................................................................. 62

3.5.2.1 A Personificação da Morte ................. .............................................. 62 3.5.2.2 A Atribuição da Condição de Viagem à Morte ................................ 69 3.5.2.3 A Atribuição da Condição de Descanso à Mort e ............................ 70 3.5.3 Ponderações Finais .............................................................................. 72

4 CONCLUSÃO ....................................... ........................................................ 74

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 77

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1 INTRODUÇÃO

Há inúmeros estudos que analisam as produções humorísticas apenas

considerando fatores psicológicos, sociológicos, culturais, entre outros. Apesar de a

metáfora ser uma das estratégias possíveis para a produção do humor, existem

poucos estudos que analisam tais elementos através desta perspectiva. O estudo da

metáfora, ao longo do tempo, inclusive, revelou uma certa importância no campo da

cognição, de forma que a aproximação entre o humor e a metáfora propiciaria a

análise do humor também sob essa perspectiva.

Dessa maneira, neste trabalho, destaca-se a análise de enunciados em que

há a ocorrência tanto de humor, quanto de metáfora, na obra Millôr Definitivo: a

bíblia do caos, de Millôr Fernandes, já que propicia uma melhor compreensão das

bases teóricas da metáfora, assim como a sua relação com o humor. O mecanismo

a que se dará enfoque no presente trabalho será a metáfora e o humor, sem eliminar

a importância de uma análise dos demais.

No capítulo denominado O Humor e a Metáfora, foram abordadas,

primeiramente, as teorias do humor, sua dificuldade de definição e a importância do

seu reconhecimento como um campo distinto. Logo após, trata-se da evolução das

teorias da metáfora, iniciada pela metáfora na antiguidade e concluída com o debate

entre as diversas teorias da metáfora apresentadas ao longo do século XX. Ao final

do capítulo, é estabelecida uma relação entre o humor e a metáfora e as formas

pelas quais esses elementos se relacionam.

No capítulo denominado Análise Linguístico-Discursiva de Enunciados

Humorístico-Metafóricos, há a análise dos enunciados retirados da obra de Millôr

Fernandes sob a luz das teorias abordadas no primeiro capítulo. A análise é dividida

em cinco grupos compostos de diferentes metáforas: Enunciados Humorísticos

compostos pela Metáfora do Canal; pela Metáfora “Discussão é Guerra”; pela

Metáfora “Tempo é Dinheiro”, por Metáforas relacionadas a Dinheiro; e por

Metáforas relacionadas à Morte. Ao final de cada grupo analisado são feitas

abordagens gerais acerca de aspectos teóricos, o que reforça o diálogo entre a

teoria e o corpus analisado.

Na conclusão, com a aproximação da teoria do humor e a teoria da metáfora,

situa-se o humor no sistema conceitual como um mapeamento específico que tem,

como característica principal, a quebra de expectativa. O uso da metáfora e do

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humor no mesmo enunciado possibilita que Millôr Fernandes construa enunciados

com o intuito de enfatizar, manipular o senso comum, zombar de questões humanas,

provocar a reflexão, dentre outros. Por fim, reconhece que o estudo do humor em

uma perspectiva cognitiva está apenas em seu início e muito ainda tem de ser feito

para que seja consolidada.

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2 O HUMOR E A METÁFORA

2.1 O Humor

Apesar de estarem presentes em nossa cultura, o humor e o riso são

conceitos pouco estudados em uma perspectiva linguístico-discursiva. Entretanto,

antes de analisá-los sob essa perspectiva, é importante a compreensão de tais

conceitos.

De acordo com Koestler (1964), o riso pode ser compreendido como:

A bissociação repentina de uma ideia ou de um evento com duas matrizes habitualmente incompatíveis irá produzir um efeito cômico, desde que a narrativa, o gasoduto semântico, carregue o tipo certo de tensão emocional. Quando o tubo é perfurado, e as nossas expectativas são enganadas, a tensão, agora redundante, jorra no riso, ou seja, derramado na forma mais suave do sorrir. (KOESTLER, 1964, p. 51, tradução nossa)1

Ou seja, o riso decorre da interação entre ideias de matrizes distintas, cujo

laço é construído a partir de uma quebra de expectativa.

Por sua vez, Raskin (1985) complementa que o riso demanda duas

proposições distintas: uma que faz emergir o papel do gatilho (trigger), responsável

pela ligação entre duas situações distintas; a outra por invocar uma interpretação

diferente da prevista que provoque o riso.

Não apenas dessa forma se dá o funcionamento do humor e, por isso,

convém distinguir o humor e o risismo. De acordo com Ziraldo:

Quem somente faz rir não está defendendo teses ou ideias e o Humor é quase uma defesa de tese. Ninguém faz Humor em cima de uma coisa que ele crê como verdadeira e ninguém ri de uma coisa humorística se ela vai de encontro a uma verdade que ele respeita. (PINTO, 1988, p. 202)

Segundo o autor, rir apresenta um teor mais espontâneo que não exige uma

elaboração sobre os fatos relatados, já o humor nem sempre implica o riso, mas

requer uma reflexão sobre aquilo que é relatado. Esta reflexão conduz a uma

1 The sudden bisociation of an idea or event with two habitually incompatible matrices will produce a comic effect, provided that the narrative, the semantic pipeline, carries the right kind of emotional tension. When the pipe is punctured, and our expectations are fooled, the now redundant tension gushes out in laughter, or is spilled in the gentler form of the sourire.

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avaliação crítica de fatores políticos, sociais, culturais, existenciais, emocionais,

entre outros. Porém, se o humor nem sempre é risível, o que o torna engraçado?

Conceituar humor consiste em uma atividade permeada por dificuldades que

decorrem da origem da própria palavra, das variadas conotações que adquiriu ao

longo do tempo e do fato de confundir-se com o riso e o cômico. O escritor e

humorista francês Daninos (1958) considera a definição de humor como um calvário,

sendo que essa expressão representa o martírio para revelar e compreender o

sentido de humor.

Destaca-se a primeira dificuldade para conceituar humor: sua origem

etimológica. Essa mesma dificuldade foi apontada por Ziraldo (PINTO, 1988, p. 190).

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa indica que a palavra deriva do latim

humor, óris e tem como primeira acepção: “líquido secretado pelo corpo e que era

tido como determinante das condições físicas e mentais do indivíduo” (2009). Essa

acepção é compatível com o utilizado por setores especializados, como a Medicina.

O humor, na História da Medicina, era tido como fator determinante das

condições físicas e mentais do indivíduo. Ou seja, “Eles acreditavam que o

organismo do homem era regido por humores (fluidos orgânicos) que percorriam –

ou apenas existiam – em maior ou menor intensidade em nosso corpo” (PINTO,

1988, p. 190). Existiam quatro humores: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile

negra. Sendo que a personalidade do indivíduo varia conforme a intensidade de

cada fluido orgânico em seu organismo. A predominância do fluido sanguíneo, por

exemplo, resulta em um indivíduo malvado. O fluido fleumático, quando

predominante, causa a apatia. A bile amarela ocasiona a cólera. Enquanto, a bile

negra motiva a melancolia.

As diversas conotações que o humor adquiriu ao longo do tempo são

denominadas por Ziraldo como “transformações semânticas” (PINTO, 1988, p. 190).

Na literatura inglesa do século XVI, Ben Jonson, a partir deste vocábulo, criou uma

nova acepção. Humor passou a significar “disposição geral do caráter”, conforme o

prólogo da peça Every Man Out Of His Humour. O humor, a partir de Jonson,

ultrapassou as fronteiras da Escola de Medicina, aparecendo pela primeira vez na

História como uma preocupação literária. Sendo assim, Ben Jonson pode ser

considerado como o precursor do que atualmente é conceituado como humor.

Dessa maneira, pode-se entender o humor como “uma idiossincrasia

ocasionada por uma compleição natural, porém fora do comum; ou, em vez de

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genuína, uma excentricidade simulada e, portanto, falsa.” (MAGALHÃES, 2008, p.

5). Para Possenti (2010, p. 171), há estudos acerca de uma análise envolvendo

textos humorísticos (por exemplo, a sua função, o seu alvo, a sua origem, as suas

técnicas etc.), mas uma análise de sua língua é rara. Para isso, entende ser

necessária a sua caracterização como um campo (da mesma forma que ocorre na

literatura, na filosofia, dentre outros). Consequentemente, o humor passaria a ser

regido por regras específicas.

Para compreender algumas regras específicas constantes nesse campo,

convém, a partir da metáfora, analisar o humor. A metáfora pode ser considerada

como um elemento com perspectiva linguística semelhante a do humor e pode ser

descrita como: “[...] quando usamos uma metáfora temos dois pensamentos de

coisas diferentes ativos em conjunto e suportados por uma única palavra ou frase,

cujo significado é uma resultante de sua interação.” (RICHARDS, 1936, p. 93,

tradução nossa).2 Por isso, na tentativa de justificar o humor como um campo, será

feita uma abordagem naquilo que mais se aproxima da metáfora, ou seja, a

produção do humor através da metáfora.

2.2 A Metáfora

Antes de abordar a interação humor-metáfora, convém tratar sobre a

metáfora, cujo debate se estende ao longo da história e suas teorias se encontram

em um estágio de maior debate e desenvolvimento. Dentre as teorias da metáfora,

situam-se quatro: a teoria da comparação; a teoria da interação; a teoria da metáfora

em uma perspectiva associada ao ato de fala; e a teoria da metáfora cognitiva. As

teorias da metáfora pretendem compreender o seu funcionamento e, abaixo, serão

analisadas em tópicos distintos.

2.2.1 Teoria da Comparação

A teoria da comparação é semelhante à teoria da similaridade, à teoria da

símile e à teoria da substituição, de modo a serem tratadas apenas como uma teoria

2 [...] when we use a metaphor we have two thoughts of different things active together and supported by a single word, or phrase, whose meaning is a resultant of their interaction.

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no presente estudo. Essa teoria tem sua matriz filosófica em Aristóteles, sendo

conceituada da seguinte forma em sua Poética:

128. A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia. (ARISTÓTELES, 1991)

Ao comentar a teoria, Johnson (1981, p. 6) expõe que Aristóteles se baseia

nas similaridades entre as coisas, pois sempre haverá uma característica específica

compartilhada que possibilitará a transferência de significado. De modo a ilustrar sua

teoria, nos parágrafos 129-130 de sua Poética, Aristóteles (1991) exemplifica as

metáforas elencadas no trecho anterior:

a) Gênero-Espécie: “Aqui minha nave se deteve” – Em que deter-se é gênero da

espécie estar ancorado.

b) Espécie-Gênero: “Na verdade, milhares e milhares de gloriosos feitos Ulisses

levou a cabo” – Em que milhares e milhares é espécie do gênero muitos.

c) Espécie-Espécie: “Tendo-lhe esgotado a vida com seu bronze” e “cortando

com o duro bronze” – Em que esgotar e cortar são usados um no lugar do

outro, mas significam tirar a vida.

d) Analogia: “A velhice é a tarde da vida” – Em que a velhice está para a vida,

assim como a tarde está para o dia.

Na contemporaneidade, há autores, como Paul Henle, que defendem a

metáfora como comparação. O autor parte de uma distinção feita por Peirce entre

símbolo, cujo significado se dá por convenção, e ícone, cujo significado se dá por

similaridade; valendo-se a metáfora de uma relação icônica entre os elementos.

(JOHNSON, 1981, p. 25).

No entanto, a teoria da comparação sofre diversas críticas. Seu maior crítico é

Searle, que levanta diversos argumentos:

Poder-se-ia dizer que o vício endêmico das teorias da comparação é não fazer distinção entre a tese de que o enunciado da comparação é parte do

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significado e, portanto, das condições de verdade do enunciado metafórico, e a tese de que o enunciado da semelhança é o princípio da inferência, ou uma etapa, do processo de compreensão, com base no qual o falante produz e o ouvinte compreende a metáfora. (SEARLE, 2002, p. 136)

De acordo com a teoria da comparação, sempre haverá um enunciado de

semelhança para um enunciado metafórico. Se o falante vale-se de uma expressão

metafórica, não importa em dizer que seu desejo seja o de alterar o significado de

um dos elementos de sua emissão, mas na verdade o que o enunciado metafórico

significa é: “[...] diferente do significado das palavras e sentenças, mas não porque

tenham mudados os significados dos elementos lexicais, e sim porque o falante quer

significar, com elas, outra coisa;” (SEARLE, 2002, p. 137).

A outra crítica de Searle baseia-se no fato de que mesmo que o fundamento

da inferência do significado metafórico seja falso, isso não reputa à metáfora a

condição de falsa. Searle ilustra a crítica com o exemplo de “Richard é um gorila”,

cujo enunciado de semelhança seria “Richard é grosseiro, desagradável, propenso à

violência”. Entretanto, afirmar que “Richard é um gorila” não importa em dizer que os

gorilas são grosseiros, mas apenas que Richard possui essa característica.

Por outro viés, Black critica a teoria da comparação com o argumento de que

ao se traçar um paralelo entre dois elementos serão revelados alguns aspectos

similares. Desse modo, a teoria não explica como são eleitas as similaridades

relevantes em cada instância para que seja dado significado às metáforas.

(JOHNSON, 1981, p. 26).

2.2.2 Teoria Interacionista

A insustentabilidade da teoria da comparação diante de suas críticas abriu

caminho a outras teorias. Por isso, Black tenta suprir a lacuna constante na teoria da

comparação, conforme relatado no tópico anterior.

A teoria de Black foi denominada pelo autor como interacionista e

condensada em cinco proposições básicas (BLACK, 1998, p. 27-8). Essas

proposições estão elencadas a seguir e serão discutidas a partir do exemplo

“Richard é um gorila”:

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a) Uma afirmação metafórica contém dois assuntos distintos, identificados como

assunto primário e assunto secundário. No exemplo, o assunto primário é

Richard e o assunto secundário é gorila.

b) O assunto secundário deve ser considerado como um sistema, não como

algo individual. No exemplo, uma vez destacado o assunto secundário gorila,

pensando-o como um sistema, por mais que seja cientificamente comprovado

que gorilas não são grosseiros, desagradáveis e propensos à violência.

Algumas outras ideias ainda podem ser consideradas como, por exemplo, as

que remetem às suas características físicas: o excesso de pelos no corpo ou

a força física.

c) A enunciação metafórica funciona com “projeção sobre” o assunto primário de

um conjunto de “implicações associadas”, composta no complexo implicativo,

pressuposto do assunto secundário. No exemplo, o sistema de implicações

associadas do assunto secundário gorila é projetado sobre o assunto primário

Richard.

d) O produtor de uma afirmação metafórica seleciona, enfatiza, suprime e

organiza recursos do assunto primário, aplicando-lhes declarações

isomórficas com os membros do complexo implicativo do assunto secundário.

No exemplo, ao proferir a sentença “Richard é um gorila”, o falante seleciona

características do assunto primário Richard que estão relacionadas com o

sistema de implicações associadas do assunto secundário gorila.

e) No contexto de uma afirmação metafórica particular, os dois assuntos

“interagem” das seguintes formas: a presença do assunto primário incita o

ouvinte a selecionar algumas das propriedades do assunto secundário; o

assunto primário convida o ouvinte para a construção de um complexo

implicativo paralelo que pode caber o assunto primário; e, reciprocamente, o

assunto primário induz mudanças paralelas no assunto secundário. No

exemplo, a partir da fixação do assunto primário, o ouvinte é convidado a

relacionar características desse assunto com o sistema de implicações

associadas do assunto secundário gorila. Por esse motivo, se o ouvinte

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possui conhecimento de que Richard é uma pessoa grosseira e rude, ele irá,

dentro do sistema, eleger a característica do gorila que está apropriada a ser

relacionada a Richard.

A chave para a teoria de Black que supera a teoria da comparação é a ideia

da relação promovida através do complexo implicativo. Em uma metáfora não há

uma mera comparação entre dois assuntos, mas um sistema de lugares comuns

(ideias convencionais) de um assunto que se relaciona com o sistema de lugares

comuns de outro assunto. No exemplo, as ideias convencionais de rudeza e

grosseria são lugares comuns acerca do assunto gorila. Se fossem comparados

gorila e Richard não haveria nenhuma semelhança (já que não está em questão

uma discussão anatômica sobre os dois seres). No entanto, são comparadas ideias

acerca de gorila e características acerca do Richard, o que implica no

estabelecimento de uma semelhança.

Na sentença “Richard é um gorila” poderiam ter sido ressaltadas outras

características no momento da comparação, como, por exemplo, o excesso de

pelos. No entanto, a comparação entre Richard e gorila com base na característica

que envolve o excesso de pelos seria compatível com a teoria da comparação,

enquanto a rudeza e a grosseria não são características compatíveis com a teoria da

comparação pelo fato de o gorila não ser dotado dessas características. Dessa

forma, vê-se que a teoria interacionista é mais abrangente que a teoria da

comparação.

A teoria interacionista também foi criticada por Searle, apontando que seu

erro é:

[...] não fazer intervir a distinção entre o significado da sentença ou da palavra, que nunca é metafórico, e o significado do falante ou da emissão, que pode ser metafórico. Elas geralmente tentam localizar o significado metafórico na sentença ou em algum conjunto de associações com a sentença. (SEARLE, 2002, p. 136)

Aplicando-se a crítica para o exemplo em questão, Richard é um nome

próprio (assunto primário) que não possui um significado da mesma maneira que

gorila possui. Dessa forma, o termo gorila poderia ser utilizado em outros contextos

para produzir a mesma predicação metafórica. (SEARLE, 2002, p. 145-6).

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19

2.2.3 Teoria da Metáfora em uma Perspectiva Associa da ao Ato de Fala

Após as críticas às outras teorias, Searle fundamenta a sua teoria da

metáfora em uma perspectiva associada ao ato de fala. O autor analisa a metáfora a

partir do ouvinte e as estratégias para sua compreensão (SEARLE, 2002, p. 165-7).

Essas estratégias estão elencadas a seguir e, assim como foi feito anteriormente,

serão discutidas a partir do exemplo “Richard é um gorila”:

a) Para a emissão defectiva, quando tomada literalmente, deve ser buscado um

significado de emissão diferente do significado da sentença. No exemplo,

quando o ouvinte se depara com a sentença “Richard é um gorila”, ele tem

ciência de que essa sentença não deve ser interpretada de maneira literal e,

por isso, deve buscar um novo significado (ou seja, um significado de

emissão diferente do significado da sentença).

b) Ao se ouvir uma sentença “S é P”, para se encontrar os possíveis valores de

R, devem ser buscadas maneiras pelas quais S possa se parecer com P.

Para suprir o aspecto sob o qual S possa se parecer com P, devem ser

buscados traços salientes, bem conhecidos e distintivos das coisas que são

P. No exemplo, S é um valor que corresponde a Richard, P corresponde a

gorila e R, rude e grosseiro. Para encontrar o valor que corresponde a R, o

ouvinte deve comparar o sistema de características de S e P e ressaltar as

características comuns de maior evidência, ou seja, os possíveis valores de R

(por exemplo, se Richard, além de ser rude e grosseiro, for um indivíduo com

excesso de pelos).

c) Posteriormente, o ouvinte deverá retornar ao termo S e ver quais das

possibilidades ao posto de valor de R são prováveis – ou mesmo possíveis –

propriedades de S. No exemplo, o ouvinte realiza uma análise de S sob o

enfoque dos possíveis valores de R e elege a mais adequada para a

compreensão da sentença. Nesse processo de eleição, o ouvinte vale-se de

diversos princípios, cuja exposição e análise serão feitas logo adiante.

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20

Uma vez expostas as estratégias, Searle identifica as teorias da comparação

e da interação em sua teoria, com suas ressalvas (2002, p. 167-8). A teoria da

comparação está situada no item B, ou seja, como S pode se parecer com P para se

revelar o valor R. A teoria da interação está situada nos itens B e C, porém não se

trata de uma interação, mas de como a relação entre S e P determina o valor de R.

Sendo assim, o autor elenca um rol exemplificativo de princípios para determinar R.

Tais princípios serão apresentados abaixo:

a) Princípio 1: “Coisas que são P são, por definição, R”. (SEARLE, 2002, p.

168)

Exemplo: “O homem é o câncer da natureza.” (FERNANDES, 2007, p.

228, grifo nosso). Nesse exemplo, a metáfora é compreendida com base

no fato de a nocividade (R) ser uma característica definitória saliente de

câncer (P). Se o homem é um câncer da natureza, logo o homem é nocivo

à natureza.

b) Princípio 2: “Coisas que são P são contingentemente R.” (SEARLE, 2002,

p. 168)

Exemplo: “A opinião é uma ideia aposentada.” (FERNANDES, 2007, p.

339, grifo nosso). O aposentado (P) não possui nenhuma característica

definitória saliente, mas possui diversas propriedades salientes ou bem

conhecidas, tais como: a inatividade3, a velhice e a obsolescência. Dessa

maneira, o termo aposentado (P) comporta diversos valores (R), mas

considerando o enunciado contingentemente, o valor (R) é a inatividade,

ou seja, a opinião é uma ideia que parou no tempo.

c) Princípio 3: “Coisas que são P frequentemente se diz ou se crê que sejam

R, ainda que o falante e o ouvinte possam saber que R é falsa de P”.

(SEARLE, 2002, p. 169)

3 O fato de ser uma propriedade saliente não imputa à inatividade uma condição necessária para que alguém seja reconhecido como aposentado. O que faz da inatividade uma propriedade contingente é o fato de não haver nenhuma contradição em frases como ‘ele é aposentado, mas trabalha’.

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Exemplo: “Quando a gente está nos Estados Unidos e fala inglês é que

percebe como os americanos são burros. Tem dificuldade em entender a

própria língua.” (FERNANDES, 2007, p. 60, grifo nosso). No exemplo, o

burro é P, enquanto a falta de inteligência é R. Ao classificar alguém como

burro, atribui-se a esse indivíduo características relativas à falta de

inteligência. No entanto, afirmar que o animal burro não é inteligente é

uma asserção falsa, já que o burro, por se tratar de um animal, age

conforme os seus instintos. Dessa maneira, não é possível atribuir a

característica de inteligência ou de falta de inteligência para tal animal.

d) Princípio 4: “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas

que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa

sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que efetivamente

percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes,

às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170)

Exemplo: “Espantoso mesmo é ver sexagenários falando em matar o

tempo.” (FERNANDES, 2007, p. 465, grifo nosso). No exemplo, o tempo é

P, enquanto ser vivo é R. A expressão matar o tempo significa desperdiçar

o tempo fazendo algo insignificante para se distrair. Entretanto, a morte é

uma condição atribuível apenas aos seres vivos. O tempo não é um ser

vivo e, por isso, não pode ser matado. Ocorre que, por um fato de nossa

sensibilidade, associamos – mentalmente – atributos de seres vivos ao

tempo e conferimos sentido a essa expressão.

e) Princípio 5: “As coisas P não se parecem com as coisas R, e não se crê

que se pareçam com as coisas R; entretanto, a condição de ser P parece-

se com a condição de ser R”. (SEARLE, 2002, p. 171)

Exemplo: “Mal comparando, Platão era o Pelé da filosofia.” (FERNANDES,

2007, p. 465, grifo nosso). No exemplo, Platão é P e Pelé é R. Quando se

fala que Platão era o Pelé da filosofia, isso não significa que Platão pareça

com o Pelé. No entanto, sabe-se que Pelé é o maior futebolista de todos

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os tempos e a condição de ser caracterizado como Pelé significa ser o

melhor em determinada coisa, área ou ofício. Posto isso, Platão pode ser

considerado como o maior e o melhor filósofo.

f) Princípio 6: “Há casos em que P e R são idênticos ou têm significados

semelhantes, mas um deles, usualmente P, tem aplicação restrita e não se

aplica literalmente a S.” (SEARLE, 2002, p. 171)

Exemplo: “A análise grupal é o prêt-à-porter da psicanálise.”

(FERNANDES, 2007, p. 22). O termo prêt-à-porter (P) é de aplicação

restrita à linguagem do mundo da moda e está relacionada àquelas roupas

que são produzidas por estilistas em escala industrial e que possuem boa

qualidade. Dessa maneira, no exemplo, o termo R representa uma

maneira mais simples e efetiva de realizar uma atividade complexa (no

caso do exemplo, o exercício da psiquiatria). Apesar de prêt-à-porter (P)

não se aplicar literalmente à análise grupal (S), é possível a utilização de

P através de seu sentido metafórico.

g) Princípio 7: “Este não é um princípio distinto, mas um modo de aplicar os

princípios 1-6 a casos simples que não sejam da forma “S é P”, e sim

metáforas relacionais e metáforas de outras formas sintáticas, como as

que envolvem verbos e predicados adjetivos.” (SEARLE, 2002, p. 171-2)

Exemplo: “‘A inveja matou Caim!’ Besteira – a inveja matou Abel.”

(FERNANDES, 2007, p. 262, grifo nosso). Nesse caso, não há uma

construção “S é P”, uma vez que S é a inveja e P está implícito e deriva do

verbo matar. Trata-se, portanto, de uma metáfora construída a partir de

um verbo, a qual pode ser atribuída também os princípios de 1 a 6. Por

esse motivo, o princípio 7 é apenas um princípio complementar aos

demais.

h) Princípio 8: “Quando alguém diz “S é P” e quer significar “S é R”, P e R

podem estar associadas por relações como a relação parte-todo, a relação

continente-conteúdo ou mesmo a relação vestimenta-pessoa vestida. Em

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cada caso, como na metáfora propriamente dita, o conteúdo semântico do

termo P veicula o conteúdo semântico do termo R por meio de algum

princípio de associação.” (SEARLE, 2002, p. 173)

Exemplo: “Estranho é que o cérebro, feito essencialmente pra produzir

ideias, exulte quando tem uma.” (FERNANDES, 2007, p. 238, grifo nosso).

Nesse exemplo, há uma expressão que o cérebro produz ideias,

enquanto, na verdade, quem produz é o indivíduo. Dessa maneira, trata-

se de uma sinédoque, cuja parte (cérebro) representa o todo (indivíduo).

Johnson (2008, p. 45-6) entende que essa teoria não explica como as

metáforas trabalham e a sua crítica é estabelecida principalmente em torno da figura

da sensibilidade exposta no Princípio 4 de Searle. Johnson entende que quando um

literalista (alcunha dada por Johnson à teoria de Searle):

[...] é forçado a admitir que certas metáforas não são baseadas em qualquer similaridade e entre os domínios da fonte e do alvo, então o seu literalismo é deixado sem recursos para explicar de onde o significado vem ou como isso é possível. (JOHNSON, 2008, p. 46, tradução nossa)4

A partir dessa crítica, Johnson estabelece a importância de uma teoria

cognitiva da metáfora, que será abordada no tópico seguinte. No entanto, apesar

das críticas, entende-se que a teoria de Searle exerce um importante papel na

explicação das metáforas, conforme será exposto adiante.

2.2.4 Teoria Cognitiva da Metáfora

Essa teoria tem como base Reddy (1998) e sua metáfora do canal (conduit

metaphor). Para Reddy, de certa forma, a linguagem é capaz de transferir

pensamentos e sentimentos humanos. Em síntese: “O falante coloca ideias (objetos)

dentro de palavras (recipientes) e as envia (através de um canal) para um ouvinte

que retira as ideias-objetos das palavras recipientes.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.

4 [...] is forced to admit that certain metaphors are not based on any literal similarities between the source and target domains, then his literalism leaves him without resources to explain where the meaning comes from or how it is possible.

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54). O autor ainda dá 141 exemplos para sustentar seu ponto de vista (REDDY,

1998, p. 189-97).

Com base na metáfora do canal, Lakoff e Johnson afirmam: “A essência da

metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra.” (LAKOFF;

JOHNSON, 2002, p. 47-8). A metáfora não é uma questão de linguagem, mas do

pensamento. Sendo assim, os autores abandonam a ideia de que as metáforas

sejam baseadas em similaridades, entendendo-as como fruto de um processamento

sócio-cognitivo.

Essa hipótese é trabalhada a partir de exemplos de metáforas que permeiam

o cotidiano como, por exemplo, a discussão é uma guerra, tempo é dinheiro, dentre

outras. Inclusive, os autores dão exemplos a partir da metáfora do canal de Reddy,

como: Expressões linguísticas são recipientes de significados, Significados são

objetos e Comunicação é enviar.

Johnson contrasta a teoria cognitiva da metáfora com as teorias da

similaridade, a partir de Grady: “Considere, por exemplo, a metáfora primária Afeto é

Calor. Grady supõe que essa metáfora é baseada não nas similaridades entre calor

e afeto, mas em nossas experiências de infância, de ser segurado afetivamente e

sentindo calor.” (JOHNSON, 2008, p. 46, tradução nossa)5. Com base na teoria

cognitiva, é possível afirmar que a metáfora é produzida e compreendida pelo fato

de falante e ouvinte compartilharem desses conceitos cotidianos.

Posto isso, a análise de um exemplo é de fundamental importância para a

melhor compreensão da teoria cognitiva da metáfora. A análise será feita a partir do

seguinte enunciado de Millôr: “Nascimento e morte. A mais perfeita forma de

renovação de estoque.” (FERNANDES, 2007, p. 324).

O ciclo da vida é um conceito cuja explicação exige o emprego de outros

conceitos possíveis de serem compreendidos de maneira mais clara. A relação não

é estabelecida no âmbito dos conceitos, mas através dos domínios de experiência

em torno desses conceitos. Dessa forma, é necessário questionar como a vida é

experienciada.

As metáforas não são aplicáveis apenas aos conceitos de difícil

compreensão. É possível a sua utilização também em conceitos de fácil

5 Consider, for example, the primary metaphor Affection is Warmth. Grady hypothesizes that this metaphor is based, not on similarities between warmth and affection, but rather on our experience from infancy, of being held affectionately and feeling warmth.

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compreensão. Para Lakoff e Johnson: “Nosso sistema conceptual ordinário, em

termos do qual não só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente

metafórico por natureza” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 45).

A orientação espacial é uma das formas mais recorrentes de compreender

conceitos e decorre da nossa experiência física e cultural (metáforas orientacionais,

conforme designação proposta por Lakoff e Johnson, 2002, p. 59). Essa orientação

pode ser feita de maneira linear, com um ponto inicial (nascimento) e um ponto final

(morte). Geralmente, o movimento de um indivíduo dá-se na mesma direção dos

seus olhos (experiência física), de forma que o que está diante dos seus olhos é a

frente e o que está em suas costas é atrás. Há diversas expressões metafóricas

cotidianas que demonstra bem essa orientação linear sobre a vida, como: tinha

muita vida pela frente; e, deixou a vida para trás.

A orientação espacial também pode ser feita de maneira cíclica, em que a

morte dá lugar a nova vida e que a vida é caracterizada por uma repetição de fatos.

A questão de a morte dar lugar à vida é uma manifestação decorrente de nossa

experiência cultural. É fato que um nascimento não depende de uma morte e vice-

versa, no entanto, por nossa cultura, compreendemos que a vida possui maior

importância que a morte. Esse entendimento ocasiona expressões metafóricas como

ciclo da vida. Já a questão de a vida ser caracterizada por uma repetição de fatos

decorre da nossa experiência física. O movimento circular feito de maneira contínua,

acaba por resultar na repetição dos locais pelos quais se passa. Esse entendimento

revela expressões metafóricas como a vida dá voltas.

Outra forma de compreender os conceitos é através de experiências que

temos com objetos e substâncias (metáforas ontológicas, conforme designação

proposta por Lakoff e Johnson, 2002, p. 75). Compreender a vida como um objeto,

uma substância ou uma entidade possibilita a atribuição de ações, de

características, de vontades, dentre outros. A personificação, a metonímia e as

metáforas de recipiente também são espécies de metáforas ontológicas.

Na atribuição de características, ressalta-se que o ser humano é dotado de

sentidos, dentre os quais, destacam-se, na presente análise, o paladar e o tato. No

que tange ao paladar, há expressões metafóricas como a vida é doce, a vida é

amarga, a vida é salgada e a vida é azeda. A vida não é nenhum alimento que

possa ser degustado, entretanto as experiências vivenciadas trazem sensações

semelhantes que sentimos ao experimentar esses sabores. No que tange ao tato, há

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expressões metafóricas como vida mole, vida dura e a vida é frágil. A experiência

tátil da moleza/dureza traz a moleza como algo macio que se molda conforme é

manipulado, enquanto a dureza é algo rígido de difícil modelação. A partir dessa

experiência, a vida mole é a vida fácil que se adapta a qualquer condição ou

adversidade, por sua vez a vida dura é a vida repleta de dificuldades que decorrem

de adversidades. Por fim, a experiência tátil da fragilidade traz a delicadeza como

principal característica. Ao manusear um objeto frágil, percebe-se que ele demanda

um manuseio cauteloso. A atribuição da fragilidade à vida demonstra que um ato ou

causa, aparentemente inofensivos, pode ocasionar a morte.

Conforme exposto acima, o entendimento da vida como entidade também

permite a atribuição de ações (como agente ou como paciente da ação). Como

agente, cita-se como exemplo a expressão a vida engana. A experiência de enganar

corresponde a dar uma impressão falsa sobre alguma coisa, por isso, na expressão,

a vida é quem dá essa impressão falsa. Essa expressão é utilizada quando um

indivíduo pensa ter tomado uma decisão correta, para depois perceber que falhou

em sua decisão. Como paciente, cita-se como exemplo a expressão acabar com a

vida. A experiência de acabar com algo importa em seu término. Ao aplicar-se essa

experiência à expressão, são possíveis duas interpretações: o acabar com a vida

pode ser a morte; e, o acabar com a vida pode ser a constatação da ausência de

objetivos que justifiquem a continuação da vida, o que não necessariamente importa

em morrer.

Além da metáfora orientacional e da metáfora ontológica, ainda há as

metáforas estruturais, conforme afirmam Lakoff e Johnson:

As metáforas estruturais permitem-nos fazer mais do que simplesmente orientar conceitos, referirmo-nos a eles, quantificá-los etc., como fazemos com simples metáforas ontológicas e orientacionais; somado a tudo isso, elas nos permitem usar um conceito detalhadamente estruturado e delineado de maneira clara para estruturar um outro conceito. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 133-4)

A metáfora estrutural não é uma forma conceitual alheia às metáforas

ontológicas ou orientacionais e, por isso, pode valer-se delas para a sua elaboração.

A partir da metáfora estrutural, é possível analisar o enunciado de Millôr dado como

exemplo anteriormente.

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No enunciado, o autor estabelece um primeiro conceito ciclo da vida, a partir

da utilização da construção nascimento e morte. Esse conceito é estruturado com

base em outro conceito de origem na Administração e Logística, qual seja, a

renovação de estoque. O estoque é o conjunto de mercadorias armazenadas. No

controle de estoque, há entrada e saída de mercadorias. A renovação de estoque

importa em retirar (saída) as mercadorias armazenadas com o objetivo de dar lugar

(entrada) a novas. Assim, é estabelecido um conceito, nas palavras de Lakoff e

Johnson, “[...] detalhadamente estruturado e delineado de maneira clara [...]”

(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 134). Dessa forma, a renovação de estoque aplicada

ao ciclo da vida significa que a entrada de mercadorias corresponde ao nascimento

e a saída de mercadorias corresponde à morte.

Por fim, os tipos de conceitos metafóricos, conforme a teoria cognitiva da

metáfora, podem ser esquematizados da seguinte maneira:

Metáforas Cognitivas

Metáforas

Ontológicas

Metáforas

Orientacionais

Metáforas

Estruturais

Baseadas em

experiências com

entidades

(humanas e não-

humanas), objetos

e substâncias

Baseadas em

experiências físicas e

culturais

Baseadas em

experiências com

conceitos

detalhadamente

estruturados e

delineados

2.3 A Relação entre o Humor e a Metáfora

A teoria sobre o humor ainda não atingiu as raias da cognição como ocorreu

com a metáfora. O humor é estudado através do seu processamento no campo

linguístico. Posto isso, a relação entre humor e metáfora pode, de certa forma,

possuir papel fundamental em rediscutir a teoria do humor.

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Neste estudo, será analisada a relação entre o humor e a metáfora de três

formas:

a) Metáfora como um componente acessório para a produção do humor: o

humor se apropria dos conceitos cotidianos compartilhados (metafóricos) para

que seja produzido, mas o elemento de subversão (quebra de expectativa)

não recai sobre a metáfora.

b) Metáfora como um componente essencial para a produção do humor: a

metáfora é o elemento sobre o qual recai o gatilho (trigger), ocasionando a

quebra de expectativa; esse ato invoca um elemento novo responsável por

subverter o conceito compartilhado.

c) Construção de novas metáforas para a produção do humor: o humor lida com

conceitos ainda não externados, apesar de compartilhados. Dessa maneira,

favorece o entendimento do conceito metafórico.

A teoria cognitiva da metáfora é capaz de explicar como produzimos e como

compreendemos a metáfora. Lakoff e Johnson ressaltam que “A metáfora é

primordialmente uma questão de pensamento e ação e somente secundariamente

uma questão de linguagem.” (2002, p. 253). Apesar de a linguagem ser uma questão

secundária, a explicação do enunciado metafórico e a identificação dos conceitos

compartilhados demandam uma análise linguística que será fundada na teoria de

Searle. Da mesma forma, entende Glucksberg e Keysar (1998, p. 424, tradução

nossa)6:

Nossa explicação de metáforas como categorizações que criam novos, relevantes e úteis agrupamentos simplesmente reformula o problema de como as pessoas fazem para entender metáforas. Não resolve o problema, mas descreve como um modelo psicológico adequado deve parecer. Tal modelo de compreensão metafórico terá de incluir princípios gerais, como o princípio cooperativo de Grice e a convenção do dado novo, bem como os

6 Our account of metaphors as categorizations that create new, relevant, and useful groupings simply recasts the problem of how people come to understand metaphors. It does not solve the problem, but does outline what an adequate psychological model might look like. Such a model of metaphor comprehension will have to include general principles, such as Grice's cooperative principle and the given-new convention, as well as the more specific principles of conversational interactional and inference discussed by Searle [...].

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princípios mais específicos de conversação interativa e inferência discutido por Searle [...].

Em síntese, a proposta é de conciliar a teoria cognitiva da metáfora e a teoria

de Searle na explicação do humor e da metáfora em todos os seus aspectos. Para

isso, será utilizada a obra Millôr Definitivo: a bíblia do caos de Millôr Fernandes de

modo a ilustrar toda a discussão ora apresentada.

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3 ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DE ENUNCIADOS HUMO RÍSTICO-

METAFÓRICOS

Conforme a teoria cognitiva da metáfora proposta por Lakoff e Johnson (2002,

p. 45):

[...] a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza.

As metáforas cotidianas serão analisadas através de exemplos retirados do

livro Millôr definitivo: a bíblia do caos. A obra é um compilado de mais de cinco mil

enunciados de Millôr Fernandes ao longo de mais de meio século. De acordo com o

próprio Millôr, a bíblia do caos “foi um livro difícil. Tomou exatamente cinquenta anos

para ser feito”. (FERNANDES, 2007, p. 7).

Os enunciados contidos na obra estão organizados através de grandes temas

e palavras-chaves. Para facilitar a consulta, tais temas e palavras-chaves

encontram-se em ordem alfabética. À guisa de explicação, entenda-se enunciado

como os textos apresentados no livro Millôr definitivo: a bíblia do caos, que podem

ser constituídos por uma ou mais frases.

A seleção dos enunciados para a composição deste corpus foi baseada na

ocorrência da utilização de metáforas para a produção do humor. Os enunciados

foram divididos conforme o assunto da metáfora (metáfora do canal, discussão é

guerra, tempo é dinheiro, entre outros) para serem analisados em conjunto.

Importante ainda ressaltar que alguns enunciados foram analisados em

subconjuntos por possuírem construções semelhantes.

3.1 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora do Canal

3.1.1 Ponderações Iniciais

Por se tratar da metáfora precursora da teoria cognitiva da metáfora, a

metáfora do canal (conduit metaphor) será a primeira metáfora analisada. É uma

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metáfora que versa sobre a linguagem e é estruturada da seguinte forma (LAKOFF;

JOHNSON, 2002, p. 54):

IDEIAS (OU SIGNIFICADOS) SÃO OBJETOS EXPRESSÕES LINGUÍSTICAS SÃO RECIPIENTES COMUNICAÇÃO É ENVIAR

Para justificar a metáfora do canal, Reddy vale-se de 141 expressões

metafóricas distintas. As seguintes expressões podem ser utilizadas: Você sabe

muito bem que eu lhe dei aquela ideia (1998, p. 189, tradução nossa)7 e Se você

não conseguir colocar mais ideias em menos palavras, não passará no teste de

concisão (1998, p. 190, tradução nossa)8. Nos exemplos acima, Reddy vale-se de

expressões como dar ideia e colocar ideias em palavras que sintetizam muito bem a

metáfora do canal.

O ato de dar significa alguém ceder sua posse a outrem, a ideia de posse é

essencialmente material. Sendo assim, a ideia seria uma matéria (objeto) que seria

dado (enviado) a alguém. O ato de colocar também invoca a materialidade das

ideias, no entanto, nesse caso, as ideias são colocadas em palavras, o que revela o

significado de recipiente das palavras. Em síntese: “O falante coloca ideias (objetos)

dentro de palavras (recipientes) e as envia (através de um canal) para um ouvinte

que retira as ideias-objetos das palavras recipientes.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.

54).

A metáfora do canal demanda uma interpretação ampla. Por exemplo, ao

tratar a ideia como objeto, objeto engloba qualquer coisa, inclusive um animal. Os

recipientes vão além das expressões linguísticas e contém até pensamentos. Por

sua vez, a comunicação que pode ser enviada, também pode ser guardada. O que

importa é o uso de expressões relativas a objetos materiais para conceitos/ações

imateriais.

No tópico seguinte, serão analisados exemplos de como funciona a metáfora

do canal na dimensão do humor na obra de Millôr Fernandes.

7 You know very well that I gave you that idea. 8 If you can´t pack more thought into fewer words, or will never pass the conciseness test.

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32

3.1.2 Análises

(1) Conselho útil: traga sempre suas opiniões na coleira. (FERNANDES, 2007, p.

338, grifo nosso)

A expressão trazer na coleira demonstra a metáfora do canal. Já que o fato

de as opiniões poderem ser transportadas (expressada pelo verbo trazer) evidencia

que as opiniões (ideias, significados) sejam objetos materiais (nesse caso, entende-

se objeto em sentido amplo). A locução adverbial na coleira tem a função de reforçar

a metáfora do canal, pois somente um objeto material pode ser transportado em

uma coleira.

Essa mesma locução adverbial também confere o tom humorístico ao

enunciado, nesse caso a metáfora é um componente essencial para a produção do

humor. Haveria outras maneiras de dizer que as opiniões devem ser contidas e

resguardadas, assim como conota o enunciado, porém por se tratar de uma

produção humorística, Millôr traz um elemento subversivo que confere um caráter de

selvageria e de indisciplina às opiniões e, por isso, devem ser controladas e

dominadas.

Ao analisar o enunciado a partir da teoria da metáfora em uma perspectiva

associada ao ato de fala, há três princípios aplicáveis. A construção do enunciado

metafórico não se dá na forma tradicional “S é P” e “S é R”, mas se dá por meio de

uma metáfora que envolve um verbo e uma locução adverbial. A metáfora Opiniões

são objetos é expressa como Opiniões podem ser trazidas, isso demanda do ouvinte

que encontre propriedades no verbo trazer para relacionar opiniões a um objeto.

Essa demanda de propriedades na metáfora para encontrar relações entre P e R é a

base do Princípio 7 de Searle.9

Ao estabelecer a relação entre opiniões e objeto decorrente do verbo trazer,

não significa que opiniões são objetos, nem que se parecem com objetos, porém há

um fato de nossa sensibilidade que associa, em nossa mente, opiniões a objetos.

Esse fato da sensibilidade é o centro do Princípio 4 de Searle10 (sendo que esse

9 Princípio 7: “Este não é um princípio distinto, mas um modo de aplicar os princípios 1-6 a casos simples que não sejam da forma “S é P”, e sim metáforas relacionais e metáforas de outras formas sintáticas, como as que envolvem verbos e predicados adjetivos.” (SEARLE, 2002, p. 171-2) 10 Princípio 4: “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que

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princípio é criticado por Johnson que explica a questão da sensibilidade por meio da

teoria cognitiva da metáfora).

Com a locução adverbial na coleira, a relação entre opiniões e objeto dá-se

de outra forma. A relação metafórica é construída a partir do fato de a condição de

ser opinião parecer-se com a condição de ser objeto, dado ao seu caráter de

selvageria e de indisciplina. Essa relação é a essência do Princípio 5 de Searle.11

(2) Ter uma ideia12 / É pôr a mão / Numa colmeia. (FERNANDES, 2007, p. 238, grifo

nosso)

(3) A única maneira de jamais ter ideias ultrapassadas é não ter ideia nenhuma.

(FERNANDES, 2007, p. 238, grifo nosso)

(4) Volta e meia a gente descobre ideias em grandes pensadores e fica triste porque

já teve essas mesmas ideias e não deu a mínima, sabe por quê?, porque eram

nossas. (FERNANDES, 2007, p. 239, grifo nosso)

A metáfora do canal decorre da noção de posse que se dá à ideia. A posse

está expressa através dos vocábulos ter (enunciados 2, 3 e 4) e nosso (enunciado

4).

No enunciado 2, o humor é estabelecido na construção de uma nova

metáfora. A metáfora do canal tem papel acessório na produção do humor, pois

apenas define um dos elementos da nova metáfora. A nova metáfora é construída

da forma tradicional “S é P” e “S é R”, cujo valor de S é Ter uma ideia e o valor de P

é Pôr a mão numa colmeia.

A segunda etapa da compreensão metafórica demanda de Searle a procura

de maneiras pelas quais S pode se parecer com P, na procura de possíveis valores

para R. Conforme visto na análise do enunciado 1, as ideias são selvagens a tal

efetivamente percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes, às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170) 11 Princípio 5: “As coisas P não se parecem com as coisas R, e não se crê que se pareçam com as coisas R; entretanto, a condição de ser P parece-se com a condição de ser R”. (SEARLE, 2002, p. 171) 12 A obra consultada é anterior ao Novo Acordo Ortográfico, mas optou-se por considerá-lo na transcrição dos enunciados.

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ponto que devem ser trazidas em uma coleira. No enunciado 2, Millôr retoma esse

conceito de selvageria com um elemento ainda mais complexo.

O ato literal de pôr a mão numa colmeia pode trazer três resultados: um

resultado negativo, por ocasionar um ataque de abelhas; um resultado positivo, por

ser uma fonte de mel; e, um resultado intermediário, no caso de se obter mel e ter

um ataque de abelhas. Da mesma forma, as ideias podem trazer três resultados:

negativo, por criar um problema; positivo, por ser uma solução; e, intermediário, por

ser uma solução que cria novos problemas ou pela criação de novos problemas que

gera uma solução. Com isso, pode afirmar que os valores de R são construídos na

medida em que S se parece com P.

Com base no Princípio 4 de Searle13, há um fato de nossa sensibilidade que

associa em nossa mente P a esses valores de R. A expressão pôr a mão numa

colmeia quebra a expectativa de tal forma, que dá um tom humorístico ao enunciado

No enunciado 3, a introdução com a expressão a única maneira de gera certa

expectativa para a apresentação de uma solução definitiva e determinante para

certo problema. No caso, o problema é ter ideias ultrapassadas. Nesse enunciado,

nota-se um tom instrucional para que um indivíduo não tenha tais ideias

ultrapassadas. Entretanto, ao invés de ensinar uma maneira efetiva para que isso,

de fato, ocorra, Millôr, através de uma quebra de expectativa, sugere que o indivíduo

não tenha nenhuma ideia. A quebra de expectativa se dá, também, pois a solução

para tal problema é extremamente óbvia e vale-se da utilização de dois advérbios de

negação: a maneira de jamais ter é não ter. E, assim como no enunciado 2, a

metáfora do canal tem papel acessório na produção do humor.

No enunciado 4, de maneira geral, demonstra um sentido semelhante ao

ditado popular a grama do vizinho é sempre mais verde. O ser humano possui a

tendência de menosprezar as coisas que são feitas por si mesmo e costuma

valorizar as coisas que são produzidas pelo outro. Ocorre que Millôr reduz a

abrangência dessa assertiva somente para o campo das ideias. E, assim como nos

enunciados 2 e 3, a metáfora do canal desempenha um papel acessório na

produção do humor, já que o humor se apropria dos conceitos cotidianos

compartilhados (relacionados à metáfora do canal) para que seja produzido, mas o

13 Princípio 4: “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que efetivamente percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes, às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170)

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elemento de subversão (quebra de expectativa) não depende exclusivamente da

metáfora.

(5) Estranho é que o cérebro, feito essencialmente pra produzir ideias, exulte

quando tem uma. (FERNANDES, 2007, p. 238, grifo nosso)

Uma análise metafórica demanda entender o motivo pelo qual Millôr utiliza o

verbo produzir para algo que se trata de uma representação mental e abstrata (no

caso, produzir uma ideia), embora o efeito humorístico não esteja relacionado ao

uso desse verbo, sendo a metáfora apenas um acessório. Assim como ocorre no

enunciado 5, Lakoff e Johnson explicam a difícil percepção da metáfora do canal em

determinados enunciados:

Essa é a maneira tão convencionalizada de se pensar sobre a linguagem que fica difícil imaginar que esse modo de pensar possa não corresponder à realidade. Mas, se olharmos as implicações da metáfora do canal, poderemos compreender algumas das formas por meio das quais ela mascara aspectos do processo comunicativo. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 55)

O cérebro tem diversas funções – como promover o equilíbrio, o controle do

corpo, responder a estímulos, dentre outras –, mas sua função mais evidente é o

processo de produção de ideias. Inclusive, há outras palavras metafóricas que

demonstram a relevância dessa função cerebral, tais como processar e construir

ideias.

O efeito humorístico nesse enunciado se dá pelo fato de ficarmos

extremamente felizes quando temos uma ideia. Considerando que o cérebro tem

como função principal produzir ideias, a produção de ideias seria nada além do que

o cumprimento da sua função. Dessa forma, a exultação para essa ação seria

descabida.

Por fim, há uma ocorrência do Princípio 8 de Searle14, pois Millôr expressa

que o cérebro exulta, enquanto, na verdade, quem exulta é o indivíduo. Trata-se,

então, de uma sinédoque, cuja parte (cérebro) representa o todo (indivíduo).

14 Princípio 8: “Quando alguém diz “S é P” e quer significar “S é R”, P e R podem estar associadas por relações como a relação parte-todo, a relação continente-conteúdo ou mesmo a relação vestimenta-pessoa vestida. Em cada caso, como na metáfora propriamente dita, o conteúdo semântico do termo

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Importante ressaltar que, geralmente, relacionamos o fato de termos uma

ideia como algo positivo e favorável e, por esse motivo, Millôr utiliza o verbo exultar

para descrever a sensação de quando temos uma ideia.

(6) Em matéria de ideias raramente vejo uma pessoa bem-alimentada. Ou está com

excesso de alimentação ou morrendo de inanição. (FERNANDES, 2007, p. 238, grifo

nosso)

Nesse enunciado, Millôr constrói uma nova metáfora que decorre da metáfora

do canal. As ideias já não são só objetos, mas alimentos. A produção do humor

ocorre através dessa metáfora em que o autor se vale para conseguir manifestar

quantitativamente a proporção de ideias que um indivíduo possa vir a possuir. Para

expressar essa quantidade, Millôr utiliza três estágios que estão relacionados à

alimentação de um indivíduo: bem-alimentado, excesso de alimentação ou inanição.

Essa é uma aplicação do Princípio 4 de Searle15, na relação P (ideias) e R

(alimentos), sabe-se que ideias não são alimentos, nem se parecem com alimentos

(ou seja, P não é R, nem se parece com R). Entretanto, dado o estabelecimento da

metáfora do canal em nossa cultura, é possível fazermos uma conexão mental entre

ideias e alimentos.

Os três estágios de alimentação apresentados por Millôr ainda representam a

tríade virtude-excesso-deficiência. Essa tríade é apresentada por Aristóteles em sua

teoria de vícios e virtudes proposta na Ética a Nicômaco. (ARISTÓTELES, 1991). O

bem-alimentado de ideias é o virtuoso, enquanto os outros dois estágios de

alimentação vêm com palavras que denotam o vício: excesso e morrendo. O

excesso representa o exagero, algo que é mais que necessário; a morte, por sua

vez, representa a falta e a carência.

P veicula o conteúdo semântico do termo R por meio de algum princípio de associação.” (SEARLE, 2002, p. 173) 15 Princípio 4: “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que efetivamente percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes, às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170)

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(7) Só no dia em que começaram a pagar bem pelo que eu escrevia comecei a

aceitar que era rico de ideias. Bem, rico não, remediado de ideias. (FERNANDES,

2007, p. 12, grifo nosso)

A expressão rico de (algo) pode ser considerada como uma metáfora morta.

Para Searle, as metáforas mortas são aquelas em que: “O significado original da

sentença sai de circuito e a sentença adquire um novo significado literal, idêntico ao

antigo significado metafórico de emissão”. (SEARLE, 2002, p. 179).

A princípio, rico é aquele que é bem provido de bens materiais. No entanto,

com o tempo, essa palavra passou a ser utilizada para designar aquele que contém

determinada coisa (material ou imaterial) em abundância. Apesar do novo

significado, se a palavra rico for utilizada isoladamente, sem qualquer elemento que

a contextualize, a sua interpretação tende ao significado principal da palavra.

Conforme definido no parágrafo anterior, a expressão rico de ideias serviria

para designar o indivíduo que contém ideias em abundância. Nesse sentido, ideias

não seriam consideradas como um bem valioso ou material. Ocorre que Millôr traz

elementos como pagar bem (por suas ideias) para retomar o significado principal da

palavra rico, qual seja, provido de bens materiais. Posto isso, a subversão da

metáfora morta rico de ideias é o aspecto central que dita o tom humorístico do

enunciado.

Em um segundo momento, Millôr cria uma nova metáfora a partir de rico de

ideias por meio de um processo de diminuição do valor que recebe pela produção de

suas ideias. Esse processo de diminuição se dá pela substituição do termo rico de

para remediado de. É importante ressaltar que o adjetivo ou substantivo masculino

remediado tem significado restrito à situação financeira e significa: “que ou quem

tem situação financeira mediana, modesta, mas suficiente para atender suas

necessidades” (HOUAISS, 2009).

(8) Tivemos uma troca de palavras / Mesquinhas / Agora eu guardo as dela / E ela

guarda as minhas. (FERNANDES, 2007, p. 144, grifo nosso)

A metáfora do canal está expressa na noção de comunicação é enviar e na

noção de posse que se dá a ideias/palavras.

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A noção de comunicação é enviar manifesta-se através da expressão troca de

palavras. A troca, de maneira geral, demanda não apenas um enviar, mas também

um receber. O ato de trocar importa em uma transferência mútua de posse. No caso,

as palavras têm a sua posse transferida de um indivíduo para outro e vice-versa. A

expressão troca de palavras demonstra o caráter inter-relacional entre as metáforas

principais que compõem a metáfora do canal, tendo em vista que se trata de uma

representação de comunicação é enviar e necessita da ideia como objeto para a sua

explicação.

No enunciado, ainda, há outro vocábulo que remete à noção de ideia como

posse, qual seja, o verbo guardar (palavras/ideias). O verbo guardar significa

preservar a posse. A princípio, as palavras são de uso comum e não são passíveis

de serem submetidas a ações como: troca, guarda, acondicionamento, entre outras.

A metáfora do canal viabiliza o uso dessas ações relativas a objetos para o plano

das palavras e das ideias.

O tom humorístico se dá pela subversão (quebra de expectativa) da

expressão troca de palavras. Já que os indivíduos envolvidos nessa troca de

palavras não dialogam, mas, na verdade, se ofendem. E, por isso, guardam as

palavras trocadas como uma forma de manifestar a sua mágoa e o seu rancor.

(9) Tem poucas ideias, mas em compensação ruins, e aliás nem são dele. E quando

discursa de improviso me dá a impressão de que procura essas ideias

desesperadamente, como um cachorro que escondeu o osso e esqueceu onde.

(FERNANDES, 2007, p. 357, grifo nosso)

A metáfora do canal decorre da noção de posse e de procurar algo que está

relacionado às ideias. A noção de posse está expressa através do verbo ter (tem) e

a contração dele. Já a noção de procurar algo está manifestada através do verbo

procurar.

Nesse enunciado, o tom humorístico é construído em dois momentos

distintos. Em um primeiro momento, há uma descrição das ideias de um indivíduo.

Apesar de essa descrição apontar problemas de ordem quantitativa, qualitativa e

autoral, Millôr também vale-se de alguns recursos linguísticos que induzem o ouvinte

a acreditar que seria apresentada uma virtude, no entanto expõe um outro defeito.

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O problema quantitativo é apresentado da seguinte forma: tem poucas ideias.

Há uma exposição direta do problema com o uso da metáfora do canal ter ideias.

Por sua vez, o problema qualitativo não é exposto de maneira direta, sendo

precedido pela expressão mas em compensação. O vocábulo compensar é utilizado

com o objetivo de revelar um equilíbrio, ou seja, como foi exposto um defeito, a

virtude equilibraria esse defeito. No entanto, apesar de utilizar uma expressão que

remeteria a uma virtude, Millôr opta por enunciar um novo defeito, quebrando, assim,

a expectativa. Por fim, na exposição do problema autoral, o autor o introduz com o

elemento enfático aliás.

Em um segundo momento, após a descrição de um indivíduo que tem poucas

ideias (e, como foi dito, além de escassas, as ideias são ruins e não pertencem a

ele), Millôr apresenta outra construção de teor humorístico. Ele se dá pela descrição

do momento em que esse indivíduo discursa de maneira improvisada, pois Millôr

descreve de forma inusitada, ao comparar o indivíduo com um cachorro que não

sabe o local em que o osso foi escondido. Essa descrição do indivíduo pode ser

formulada como uma analogia composta por duas proposições: (a) indivíduo de

poucas ideias (e ruins) com dificuldade de concatená-las ao discursar de improviso;

e, (b) cachorro que enterra o osso e não sabe o local que foi escondido.

(10) Pensamento irrefletido é um pensamento que a pessoa faz longe do espelho.

(FERNANDES, 2007, p. 358, grifo nosso)

A metáfora do canal decorre da noção de produzir algo que se dá ao

pensamento. Nesse enunciado, essa noção está expressa através do verbo fazer.

Dessa maneira, a metáfora do canal desempenha um papel acessório na produção

do humor.

O tom humorístico se dá pela subversão do adjetivo irrefletido, composto

etimologicamente pelo prefixo de negação ir- e o particípio passado do verbo refletir.

O verbo refletir possui dois sentidos diferentes: o primeiro sentido refere-se a pensar

muito; já o segundo sentido está relacionado com o reflexo provocado pelo espelho.

Dessa forma, irrefletido é um adjetivo que possui dois significados: primeiro, algo

que não foi precedido de reflexão e de ponderação; segundo, algo que não faz

reflexo. Nesse enunciado, Millôr atribui a característica de irrefletido ao pensamento.

Considerando que o pensamento é uma faculdade mental relacionada à reflexão,

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consequentemente, por decorrência lógica, o significado de irrefletido seria aquele

também situado no campo da reflexão.

A quebra de expectativa ocorre quando o autor relaciona o pensamento à

acepção de irrefletido que está situada no campo do reflexo de espelho. Dessa

maneira, a ambiguidade de sentido para o vocábulo irrefletido produz o humor nesse

enunciado.

(11) Coisa que não entendo é como é que certas ideias maravilhosas escapam da

cabeça dos pensadores e conseguem viver por aí, anos a fio, soltas e efetivas, até

serem abatidas pelos ideólogos. (FERNANDES, 2007, p. 240, grifo nosso)

A metáfora do canal decorre da noção de vida que se dá à ideia. A vida está

expressa através do percurso verbal escapar, viver e ser abatido. Dessa maneira, a

metáfora do canal desempenha um papel essencial na produção do humor. A

princípio, a vida é orgânica, portanto, de caráter exclusivo dos seres vivos. A ideia é

inorgânica e imaterial, características incompatíveis com a vida, mas a metáfora do

canal torna possível a atribuição dessa qualidade.

O ciclo da vida consiste em três etapas: o nascer, o viver e o morrer. Millôr, ao

invés de utilizar esses verbos para o ciclo de vida das ideias, vale-se das

expressões: escapar da cabeça (nascer), viver (viver) e ser abatido (morrer).

O tom humorístico se dá pelo reconhecimento do algoz das ideias, no caso,

os ideólogos. Uma vez que as ideias têm vida, o ciclo da vida é terminado pela

morte. Millôr atribui a condição de carrasco aos ideólogos, justamente a quem se

propõe a estudá-las. Seu entendimento é de que as ideias devem viver soltas para

cumprirem o seu propósito, o cativeiro (ocasionado pelos ideólogos) impõe seu fim.

3.1.3 Ponderações Finais

Ao estudar e analisar exemplos da metáfora do canal, é notória a dificuldade

para identificá-los e compreendê-los, pois são tão comuns na linguagem utilizada no

dia a dia que se tende a não considerá-los como metáfora. Sobre essa dificuldade,

Lakoff e Johnson afirmam que:

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Em exemplos como esses16, é bem mais difícil ver que há algo encoberto pela metáfora, ou até mesmo perceber a própria existência da metáfora. Essa é a maneira tão convencionalizada de se pensar sobre a linguagem que fica difícil imaginar que esse modo de pensar possa não corresponder à realidade. Mas, se olharmos as implicações da metáfora do canal, poderemos compreender algumas das formas por meio das quais ela mascara aspectos do processo comunicativo. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 55)

Posto isso, os enunciados humorísticos compostos pela metáfora do canal

analisados anteriormente revelaram ser mais claros de visualizar a metáfora (como,

por exemplo, a atribuição do ciclo da vida à ideia, como foi visto na análise do

enunciado 11) e mais difíceis (como, por exemplo, a atribuição da ação de procurar

às ideias, como foi visto na análise do enunciado 9). Essa dificuldade de

visualização decorre, principalmente, do uso de expressões que já estão

internalizadas em nossa cultura e em nossa linguagem.

3.2 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora “Discussão é Guerra”

3.2.1 Ponderações Iniciais

O ato de discutir envolve a apresentação de argumentos que fundamentam

opiniões distintas sobre o mesmo tema. O objetivo da discussão é o estabelecimento

de uma proposição comum ou o convencimento do discutidor e/ou terceiros sobre

uma determinada opinião.

A forma que se dá a discussão (contraposição de ideias) e o seu objetivo

interferem naquilo que pensamos e falamos sobre esse ato, apropriando-se de

vocábulos de guerra como atacar argumento, defender ponto de vista, vencer o

debate, dentre outros. Lakoff e Johnson abordam sobre essa metáfora:

O fato de que, pelo menos em parte, conceptualizamos sistematicamente discussões em termos de batalha influencia tanto a forma que as discussões tomam, quanto a maneira como falamos sobre o que fazemos quando discutimos. Porque o conceito metafórico é sistemático, a

16 Os exemplos que os autores se referem são: É difícil passar aquela ideia para ele. / Eu lhe dei aquela ideia. / Suas razões chegaram até nós. / É difícil pôr minhas ideias em palavras. / Quando você tiver uma boa ideia, tente capturá-la imediatamente em palavras. / Tente colocar mais ideias em menos palavras. / Você simplesmente não pode rechear uma frase com ideias de qualquer maneira. / O significado está bem ali nas palavras. / Não force suas ideias em palavras erradas. / Suas palavras trazem pouco significado. / A introdução contém muitas ideias. / Suas palavras parecem vazias. / A frase está sem sentido. / A ideia está enterrada em parágrafos terrivelmente densos.

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linguagem usada para falarmos sobre aquele aspecto do conceito é sistemática. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 49)

Millôr vale-se de muitas metáforas relativas a discussão é guerra, por suas

diversas manifestações políticas e seu interesse por argumentação e retórica. No

tópico a seguir, algumas dessas metáforas serão analisadas.

3.2.2 Análises

(12) ARGUMENTOS – indícios com que se procura provar (defender) alguma coisa.

(FERNANDES, 2007, p. 520, grifo nosso)

A metáfora discussão é guerra é construída pela asserção de que o

argumento é um instrumento de defesa. Millôr vincula o verbo provar ao verbo

defender, o que dá à prova um caráter de defesa. O tom humorístico decorre do

contraste entre as palavras indícios e provar, uma vez que o indício não se confunde

com a prova. Indício é “o que indica, com probabilidade, a existência de (algo);

indicação, sinal, traço” (HOUAISS, 2009), enquanto prova é “aquilo que demonstra

que uma afirmação ou um fato são verdadeiros; evidência, comprovação”

(HOUAISS, 2009). Enquanto o indício indica uma possibilidade, a prova é uma

afirmação. A expressão indícios para provar confere ao indício um tom de prova. Por

ser uma guerra, a discussão demanda o uso de diversos artifícios retóricos para que

se obtenha êxito. Dessa maneira, a defesa de alguma coisa seria baseada na

atribuição de verdade a uma mera possibilidade.

(13) Tudo somado achei que Collor ganhou o debate com Lula. A Datafolha acha

que foi o Lula. Mas a dúvida é: quem ganha um debate medíocre é melhor ou pior

do que quem perde? (1989) (FERNANDES, 2007, p. 118, grifo nosso)

Em 1989, o segundo turno da eleição para a Presidência da República foi

disputado pelos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello. Os

debates presidenciais dessa eleição foram os primeiros a serem exibidos em cadeia

nacional pela televisão, uma vez que a última eleição direta havia ocorrido em 1960,

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época em que a televisão ainda estava em seus primórdios. Por esse motivo, havia

grande interesse e expectativa em relação aos debates.

Como a metáfora discussão é guerra nos remete a ideia de que há um

vencedor e um perdedor em uma batalha, isso não é diferente nos debates

presidenciais. Dessa forma, após a realização do debate presidencial, aqueles que

se interessavam por política de maneira geral, assim como os veículos de imprensa,

tendem a avaliar o desempenho dos candidatos à presidência.

A metáfora discussão é guerra está expressa nos verbos ganhar e perder,

que exercem um papel essencial na produção do humor, uma vez que o tom

humorístico está na expressão ganhar um debate medíocre. Millôr manifesta a sua

opinião sobre o debate e, apesar de o autor eleger um vencedor e a Datafolha outro,

como o debate foi aquém das expectativas, a vitória não importaria em uma

asserção de que o vencedor seja um candidato melhor que o perdedor. Dessa

forma, o debate medíocre não teria ganhador, nem perdedor, o que tornaria toda

discussão em torno do debate inócua.

(14) Discussão se ganha pelo tom de voz, não pelo significado do que se diz.

(FERNANDES, 2007, p. 144, grifo nosso)

A metáfora discussão é guerra decorre através do verbo ganhar e, como foi

mencionado na análise dos enunciados 12 e 13, é proveniente do vocabulário de

guerra.

Nesse enunciado, Millôr apresenta como o indivíduo deve proceder para

ganhar uma discussão. Popularmente, espera-se que um indivíduo saia vitorioso de

uma discussão ao apresentar argumentos fortes e consistentes em defesa de um

ponto de vista. Entretanto, o autor subverte essa expectativa e dita o tom

humorístico, por recomendar que, para ganhar uma discussão, o indivíduo precisa

recorrer ao tom de voz, ou seja, é necessário elevá-lo e falar com firmeza e

convicção.

Ao apelar para o tom de voz, Millôr recupera, em parte, a expressão popular

ganhar no grito. Essa expressão não se aplica somente pela elevação do tom de

voz, mas também remete à ideia de teimosia para ganhar qualquer coisa (não

somente uma discussão).

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Dessa forma, diferentemente do que se espera em uma discussão, não

importa a veemência dos argumentos que são utilizados e, sim, a insistência, a

altura da voz e a maneira que se fala.

(15) Discussões exaustivas de métodos, informações exaustivas de processos,

opiniões sobre tudo, eis a única forma possível de esclarecer teorias e melhorar o

nível de prática. A discussão não traz a luz, mas liquida muita ideia idiota.

(FERNANDES, 2007, p. 138, grifo nosso)

(16) A discussão pode não trazer a luz, mas liquida com muita ideia imbecil.

(FERNANDES, 2007, p. 144, grifo nosso)

Os enunciados 15 e 16 são bem semelhantes. Tal semelhança pode ser

notada ao final dos dois enunciados, pois a construção de ambas é extremamente

parecida com a utilização de expressões e verbos semelhantes. Entretanto, nota-se

que o enunciado 15 possui uma maior riqueza de detalhamento para chegar à

conclusão que é apresentada ao final dos dois enunciados.

A metáfora discussão é guerra decorre através do verbo liquidar. Entre outras,

uma das definições do verbo liquidar é provocar o fim. Esse sentido figurado do

verbo liquidar é proveniente do vocabulário de guerra e é utilizado para descrever a

situação em que dada discussão se encontra.

O tom humorístico se dá pela maneira como Millôr apresenta a finalidade de

uma discussão. O ato de discutir está relacionado a um exame minucioso (de um

assunto, problema etc.), levantando-se os prós e os contras. Ao final desse exame

minucioso, existe a expectativa de apresentar uma saída (ou seja, trazer a luz) para

o assunto e para o problema exposto durante a discussão.

Ocorre que Millôr não restringe a finalidade de uma discussão apenas para a

apresentação de uma alternativa para determinado problema. Caso a apresentação

de uma possível solução não ocorra durante uma discussão, pelo menos as ideias

idiotas e imbecis serão liquidadas. Assim, de qualquer maneira, o ato de discutir

será vantajoso, seja pela resolução de um problema, seja pela aniquilação de ideias

imbecis.

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Dessa forma, a quebra de expectativa se dá pelo fato de o autor apresentar

uma nova finalidade à discussão. É certo que o objetivo principal de uma discussão

é a solução de um problema (trazer a luz), no entanto, mesmo que essa discussão

não tenha atingindo seu principal objetivo, ela pode ser útil para alcançar a nova

finalidade proposta por Millôr, qual seja a aniquilação de ideias ruins.

(17) Quando os argumentos de seu adversário forem irresistíveis resta sempre a

possibilidade dialética de uma cacetada na cabeça. (FERNANDES, 2007, p. 144,

grifo nosso)

A metáfora discussão é guerra decorre através da expressão cacetada na

cabeça. Dessa forma, percebe-se que a metáfora não deriva, necessariamente, de

um vocabulário de guerra. Mas, pelo fato de uma cacetada na cabeça se tratar de

um ato violento, consequentemente, remete ao conflito e à luta presentes em uma

guerra.

O tom humorístico se dá pela maneira como Millôr sugere que o indivíduo se

comporte em uma situação em que os argumentos do seu adversário sejam mais

interessantes e convincentes. Ao invés de sugerir que haja uma contra-

argumentação pautada na razão a fim de suprimir tal argumento irresistível, o autor

propõe o ato de dar uma cacetada na cabeça de seu adversário. E, mais do que

sugerir dar uma cacetada, Millôr define essa ação como uma possibilidade dialética.

A dialética, em sentido bastante abrangente, é a oposição de argumentos – tese e

antítese – que visam a construção racional de uma síntese. Assim, a cacetada na

cabeça do adversário seria um contra-argumento pautado na força física. Nesse

enunciado, o riso é ocasionado pelo fato de a força física sobrepor ao intelecto.

Por fim, é importante ressaltar que a escolha do local para dar-se a cacetada

não é aleatória, já que a cabeça – valendo-se de uma metáfora do canal – pode ser

considerada uma fábrica de argumentos.

3.2.3 Ponderações Finais

A metáfora discussão é guerra remete a uma discussão feita por Lakoff e

Johnson com o intuito de compreender metáfora e subcategorização.

Primeiramente, é importante situar essa discussão em Searle, ao fundamentar o

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Princípio 817 que trata de sinédoque e metonímia (algumas formas de uso da

subcategorização), o autor afirma que, nesses casos:

[...] o conteúdo semântico do termo P veicula o conteúdo semântico do termo R por meio de algum princípio de associação. Sendo os princípios da metáfora, de qualquer modo, muito variados, inclino-me a tratar a metonímia e a sinédoque como casos especiais de metáfora e a acrescentar os princípios que as governam à minha lista de princípios metafóricos. [...] Entretanto, como já disse, a tese de que se trata de casos especiais de metáfora parece-me ser puramente uma questão de terminologia; se os puristas insistirem que os princípios da metáfora sejam mantidos à parte dos da metonímia e da sinédoque, não farei nenhuma objeção não taxonômica. (SEARLE, 2002, p. 173-4)

Searle trata a metonímia e a sinédoque como casos especiais de metáfora,

pelo fato de os princípios de associação metafóricos poderem se basear na relação

parte-todo, continente-conteúdo, dentre outros. Apesar de considerá-las como

metáfora, o autor não exclui a possibilidade de serem consideradas como tropos

independentes.

Conforme conceituado anteriormente, a essência da metáfora é experienciar

uma coisa em termos de outra (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 47-8). Dessa forma,

ocorre na metáfora, a interação entre dois elementos de categorias distintas, o que

não ocorre na metonímia e na sinédoque, em que a interação ocorre entre

elementos de mesma categoria. O fato de estar em categorias distintas não significa

que as estruturas dos elementos não têm semelhanças, já que a metáfora é

compreendida a partir da relação dos componentes comuns entre estruturas de

categorias distintas.

A distinção entre estrutura metafórica e subcategorização é muito clara

quando se trata de elementos cuja distinção ou semelhança de categorias é

evidente, por exemplo, discussão é guerra é metáfora, enquanto discussão é

conversa e guerra é luta é subcategorização. No entanto, não é possível fazer uma

afirmação categórica quando essa distinção ou semelhança é duvidosa, por

exemplo, na proposição discussão é luta:

17 Princípio 8: “Quando alguém diz “S é P” e quer significar “S é R”, P e R podem estar associadas por relações como a relação parte-todo, a relação continente-conteúdo ou mesmo a relação vestimenta-pessoa vestida. Em cada caso, como na metáfora propriamente dita, o conteúdo semântico do termo P veicula o conteúdo semântico do termo R por meio de algum princípio de associação.” (SEARLE, 2002, p. 173)

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Lutar é uma tentativa de conseguir domínio que normalmente envolve ferir, inflingir dor, machucar etc. Mas existe tanto dor física quanto o que se denomina dor psicológica; há domínio físico e domínio psicológico. Se seu conceito de LUTA envolve tanto dor e domínio psicológicos quanto dor e domínios físicos, então você pode considerar DISCUSSÃO É LUTA como subcategorização e não metáfora, uma vez que ambas envolveriam domínio psicológico. [...] Se, por outro lado, você concebe LUTA como puramente física e se você considera dor psicológica apenas como dor no sentido metafórico, então você pode considerar DISCUSSÃO É LUTA como metáfora. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 162)

Posto isso, a subcategorização não é uma espécie de metáfora e também

não são termos binários. Na verdade, trata-se de polos opostos de um mesmo eixo

cuja compreensão comporta um termo intermediário.

3.3 Enunciados Humorísticos compostos pela Metáfora “Tempo é Dinheiro”

3.3.1 Ponderações Iniciais

Tempo e dinheiro são dois elementos que se relacionam a todo momento no

mundo capitalista. Ao utilizar-se um telefone, a cobrança é feita conforme o tempo

de uso. Em um hotel, a diária cobrada possui horário de entrada e horário de saída,

previamente estabelecidos. Ao estacionar um carro, o valor cobrado varia conforme

o tempo parado. O aluguel de um imóvel tem seu preço estabelecido com base em

períodos, sendo que o período mais comum é o mês. O salário de um trabalhador

pode ser pago por hora, por dia, por semana, por quinzena, por mês etc. Os bancos

emprestam dinheiro e cobram juros que variam conforme o prazo do empréstimo.

Dada a importância da relação tempo-dinheiro, entende-se o tempo como um

recurso escasso que deve ser aproveitado ao máximo, para que não se tenha

prejuízo. Com isso, cria-se um sistema de conceitos metafóricos e Lakoff e Johnson

elencam algumas das expressões metafóricas de tempo:

[...] algumas se referem especificamente a dinheiro (gastar, investir, orçar, lucrar, custar), outras a recursos limitados (usar, esgotar, ter suficiente de, usar tudo), e outras ainda a bens valiosos (ter, dar, perder, agradecer (o bem recebido). (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 52)

Millôr fala muito sobre dinheiro, dada a proximidade desse elemento ao

tempo, acaba por utilizar diversas metáforas tempo é dinheiro. Algumas dessas

metáforas serão analisadas no tópico a seguir.

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3.3.2 Análises

(18) Foram os suíços, donos da maior indústria relojoeira do mundo, que

concretizaram a ideia de que tempo é dinheiro. (FERNANDES, 2007, p. 465, grifo

nosso)

A metáfora tempo é dinheiro é apresentada de maneira explícita ao final do

enunciado. O tom humorístico se dá pela maneira como Millôr subverte a explicação

da metáfora (o autor chama de ideia) de que tempo é dinheiro. Para explicar essa

metáfora, Millôr recorre a fatos popularmente conhecidos.

Atualmente, o homem preocupa-se muito com o tempo (tanto que hoje em dia

encontramos relógio em geladeira, no fogão, no micro-ondas, no celular, na

televisão etc.). Os suíços observaram essa preocupação do homem com o tempo e

desenvolveram uma profícua indústria relojoeira e, consequentemente, faturam

muito dinheiro através dessa produção. Por faturarem muito dinheiro, Millôr imputa

aos suíços a responsabilidade pela metáfora tempo é dinheiro, sendo que, nesse

contexto, tempo não está relacionado com a duração relativa das coisas, mas sim

com a produção intensa de relógios que ocorre no País. Ou seja, tempo (produção

intensa de relógios) é (gera) dinheiro. Além disso, o tempo (preocupação do

indivíduo com as horas, os compromissos, a pontualidade etc.) é dinheiro

(proveniente das fábricas de relógio que vendem produtos para esse indivíduo

preocupado com o tempo).

(19) O tempo é uma medida arbitrária inventada pelos suíços e transformada em

relógios. Só me ajuda a cobrar o atraso dos meus amigos. (FERNANDES, 2007, p.

466, grifo nosso)

Esse enunciado é uma variação do enunciado 18 com uma construção ainda

mais explícita da metáfora tempo é dinheiro. Para Millôr, o tempo foi inventado pelos

suíços para propiciar a produção de relógios.

Há um outro elemento que evidencia a metáfora tempo é dinheiro e está

presente na segunda frase do enunciado expresso através do verbo cobrar.

Entende-se que o verbo cobrar é receber pagamento do que nos é devido ou nos

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pertence e, costumeiramente, é relacionado com o recebimento de algo que tenha

valor financeiro, como, por exemplo, cobrar uma dívida, cobrar uma indenização,

cobrar dinheiro, cobrar um valor caro etc.

Outra acepção do verbo cobrar é a exigência do cumprimento de um

compromisso. Se a expressão cobrar o atraso fosse exposta de maneira isolada,

essa acepção seria a mais apropriada. No entanto, diante do contexto apresentado

no enunciado, por ter relacionado o tempo a dinheiro na primeira frase, o verbo

cobrar passa a ter seu significado principal. Dessa maneira, há uma relação

silogística em que a premissa maior é a metáfora tempo é dinheiro, a premissa

menor é dinheiro pode ser cobrado, logo, como conclusão, tempo pode ser cobrado.

Essa quebra de expectativa é responsável pelo tom humorístico.

Por fim, Millôr afirma que o tempo ajuda a cobrar o atraso. Dessa maneira, o

tempo (medida arbitrária inventada pelos suíços transformada em relógio) ajuda a

cobrar (reclamar o pagamento de algo) o atraso (lapso temporal desperdiçado que

acarretou prejuízo).

(20) Dinheiro é tempo de vida transformado em moeda. (FERNANDES, 2007, p.

140, grifo nosso)

Nesse enunciado, o tom humorístico estabelece-se através de uma crítica ao

dinheiro. Essa crítica se dá pela subversão da metáfora matriz (tempo é dinheiro)

para uma metáfora mais específica (tempo de vida é moeda) e que, por isso, possui

implicações diferentes.

Mais do que utilizar o termo tempo, Millôr especifica qual tipo de tempo é

importante considerar (no caso, tempo de vida). Além disso, ao utilizar o termo

moeda, o autor especifica o tipo de dinheiro, entretanto, nesse caso, a sua intenção

é metonímica, ou seja, a parte (moeda) representa o todo (dinheiro).

O tempo de vida pode ser utilizado para diversos fins como cultivar relações,

render-se a prazeres e descobrir novas coisas. Ocorre que, por precisarmos de

dinheiro para a subsistência, consome-se tempo de vida para consegui-lo. Dessa

maneira, o dinheiro, consequentemente, subtrai tempo de vida.

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(21) Quem escolhe o momento exato economiza muito tempo. (FERNANDES, 2007,

p. 466, grifo nosso)

Nesse enunciado, a metáfora tempo é dinheiro está expressa através do

emprego do verbo economizar. Geralmente, esse verbo está relacionado ao controle

financeiro de gastos e de despesas, mas, nesse caso, foi utilizado para referir-se ao

tempo.

O tom humorístico se dá pela maneira como Millôr sugere que o indivíduo

economize o tempo. Esse tom emerge da relação entre momento e tempo, sendo

que momento é um ponto específico dentro do tempo. Dessa forma, saber identificar

o momento (ponto específico) no tempo, evita o desperdício do tempo (interessante,

apenas, ressaltar o uso do substantivo desperdício para referir-se à utilização do

tempo de maneira indevida e sem proveito, já que está diretamente relacionado com

as expressões economizar tempo, poupar tempo, entre outras).

3.3.3 Ponderações Finais

Em sua teoria, Searle elenca um rol de princípios para determinar os valores

de R em um enunciado metafórico. Além de esse rol ser exemplificativo, o que

possibilita a inserção de outros princípios, pode ser necessário a interação entre

mais de um princípio para determinar os valores de R. Nas metáforas tempo é

dinheiro ocorre essa interação entre mais de um princípio.

Dentre os exemplos dados, alguns não utilizam a palavra dinheiro, mas

apenas verbos relacionados a dinheiro, como cobrar (enunciado 19) e economizar

(enunciado 21). Há outras formas de manifestação da metáfora tempo é dinheiro

através do uso dos verbos desperdiçar, valorizar, gastar, emprestar, doar, entre

outros.

Há, também, atribuições de características do dinheiro ao tempo, como a

escassez. Interessante ressaltar que, a princípio, atribuir a escassez ao tempo é um

contrassenso, tendo em vista que o tempo como unidade física é um recurso

abundante. No entanto, a escassez é atribuída ao tempo pelo fato de o referencial

em relação a ele dar-se pela experiência do ser humano com o tempo, ou seja, o

tempo de vida.

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A construção do sintagma do enunciado metafórico, nesses casos, não se dá

na forma tradicional “S é P”, porém “S relação-P S´”, que de acordo com Searle

trata-se de uma:

[...] tarefa que é formalmente bem diferente da anterior, porque, por exemplo, no primeiro caso, nossos princípios de semelhança habilitarão o ouvinte a encontrar uma propriedade que as coisas S e as coisas P têm em comum, a saber, R. Mas, no segundo caso, ele não pode encontrar uma relação comum; pelo contrário, deve encontrar uma relação R diferente da relação P, mas semelhante a ela sob algum aspecto. (SEARLE, 2002, p. 172)

Desse modo, a expressão economizar tempo, por exemplo, relaciona-se ao

aproveitamento de maneira útil do tempo. A necessidade do uso de uma fórmula

distinta do “S é P” para a determinação dos valores de R é o fundamento do

Princípio 7 de Searle18.

O Princípio 7 é apenas um auxiliar que demanda a aplicação de outro

princípio para a identificação de P. Nos enunciados analisados, o outro princípio

utilizado é o Princípio 419, pois em nenhum momento acredita-se que, por exemplo,

o tempo pode ser economizado da mesma forma que se economiza dinheiro. Ocorre

que, por um fato de nossa sensibilidade, é feita a associação mental entre a

economia com o aproveitamento útil do tempo.

3.4 Enunciados Humorísticos compostos por Metáforas relacionadas ao

Dinheiro

3.4.1 Ponderações Iniciais

Conforme visto nas ponderações iniciais do tópico anterior sobre a metáfora

tempo é dinheiro, as relações do homem com o dinheiro são diversas. Em uma

economia capitalista, o dinheiro não está limitado às relações comerciais, interfere

inclusive nas relações políticas, sociais e familiares.

18 Princípio 7: “Este não é um princípio distinto, mas um modo de aplicar os princípios 1-6 a casos simples que não sejam da forma “S é P”, e sim metáforas relacionais e metáforas de outras formas sintáticas, como as que envolvem verbos e predicados adjetivos.” (SEARLE, 2002, p. 171-2) 19 Princípio 4: “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que efetivamente percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes, às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170)

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Atualmente, discute-se o financiamento público de campanhas políticas, tendo

em vista que aqueles que bancam um político, caso esse indivíduo for eleito, exigem

e esperam uma contrapartida em um momento futuro. A crítica estabelece-se por se

entender que se o financiador investiu naquela candidatura, vai exigir uma

contrapartida no futuro, nem sempre financeira, e pode ser concretizada com a

defesa pelo eleito de posições políticas do interesse do financiador. Dado esse

receio, uma das soluções apontadas seria o financiamento público de campanhas,

em que a figura do investidor direto sumiria, mas sempre remanesce a ideia de que

essa compra/venda de interesses esteja ocorrendo por fora.

Há metáforas que surgem a partir do contexto político e entendem o dinheiro

como uma pessoa, por exemplo, o dinheiro compra e o dinheiro fala.

Nas relações sociais, o antropólogo Darcy Ribeiro demonstra que a

desigualdade social traz uma diferença de tratamento entre ricos e pobres que está

permeada em nossa cultura:

Com efeito, no Brasil, as classes ricas e as pobres se separam umas das outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre povos distintos. Ao vigor físico, à longevidade, à beleza dos poucos situados no ápice ‐ como expressão do usufruto da riqueza social ‐ se contrapõe a fraqueza, a enfermidade, o envelhecimento precoce, a feiúra da imensa maioria ‐ expressão da penúria em que vivem. Ao traço refinado, à inteligência ‐ enquanto reflexo da instrução ‐, aos costumes patrícios e cosmopolitas dos dominadores, corresponde o traço rude, o saber vulgar, a ignorância e os hábitos arcaicos dos dominados. (RIBEIRO, 1995, p. 210)

As características que remetem à riqueza e à pobreza evidenciam o contraste

gerado pelo preconceito social. Há metáforas que surgem a partir do contexto social

e entendem o dinheiro como uma pessoa, por exemplo, o dinheiro hostiliza, o

dinheiro violenta, o dinheiro segrega, dentre outros.

O dinheiro ainda interfere nas relações familiares. Há dois institutos jurídicos

que estabelecem essa relação entre família e dinheiro: o casamento e a herança. O

casamento é um ato que não se resume à fundação de uma relação familiar, pois

também envolve uma relação entre o patrimônio dos noivos. Por sua vez, a herança

é a transmissão do patrimônio de uma pessoa que morreu aos familiares que o

sucedem. Há metáforas que surgem a partir do contexto familiar e entendem o

dinheiro como uma pessoa, por exemplo, o dinheiro une, o dinheiro separa, o

dinheiro seduz, dentre outros.

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Conforme ressaltado anteriormente, Millôr fala muito sobre dinheiro e, por

isso, acaba por utilizar diversas metáforas que lhe dá características de pessoas e

atribui ações de pessoas. Algumas dessas metáforas serão analisadas no tópico

abaixo.

3.4.2 Análises

3.4.2.1 A Atribuição da Ação de Falar ao Dinheiro

(22) A diferença entre o dinheiro miúdo e o dinheiro graúdo é que este,

naturalmente, fala mais alto. (FERNANDES, 2007, p. 140, grifo nosso)

Conforme visto no estudo da teoria cognitiva da metáfora, as metáforas

orientacionais têm base em nossa experiência física e cultural. O tamanho está

normalmente atrelado à força física, de modo que o graúdo é forte, enquanto o

miúdo é fraco. Com base nisso e considerando o dinheiro como moeda corrente, o

dinheiro graúdo seria a moeda corrente de maior valor (no caso brasileiro, a nota de

cem reais e outros valores próximos) e o dinheiro miúdo seria a moeda corrente de

menor valor (no caso, a moeda de cinco centavos e outros valores aproximados).

Ocorre que a atribuição das características graúdo e miúdo ao dinheiro

também permite outras formas possíveis de interpretação que variam conforme o

que se entende por dinheiro. Se for pensado o dinheiro como moeda, o dinheiro

graúdo seria a moeda forte, com solidez no mercado (como, por exemplo, o dólar),

por sua vez, o dinheiro miúdo representaria a moeda fraca, com pouco prestígio no

mercado (como, por exemplo, o peso argentino). Ainda, se for pensado o dinheiro

através de um uso metonímico, ou seja, o dinheiro corresponde àquele que o detém,

o dinheiro miúdo refere-se ao indivíduo desprovido de bens materiais, pouco

favorecidos e sem influência na sociedade, enquanto o dinheiro graúdo refere-se ao

indivíduo que possui prestígio, poder e grande influência.

Por fim, o tom humorístico está na relação estabelecida por Millôr entre

graúdo e fala mais alto, complementada pelo uso do advérbio naturalmente. A

condição de ser graúdo, consequentemente, remete à ideia de ser grande, alto,

robusto, superior, maior, melhor, dentre outros. Dessa forma, a expressão fala mais

alto tem dois elementos relacionados a graúdo, quais sejam, mais e alto. Dada essa

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semelhança, a assimilação entre dinheiro graúdo e falar mais alto denota caráter

óbvio, sendo que essa obviedade está expressa no emprego do advérbio

naturalmente como recurso retórico.

(23) O dinheiro fala. E também manda calar a boca. (FERNANDES, 2007, p. 141,

grifo nosso)

(24) O dinheiro fala. Mas bom mesmo é o dólar, que fala todas as línguas.

(FERNANDES, 2007, p. 148, grifo nosso)

Ao afirmar que o dinheiro fala, compreende-se a influência exercida pelo

dinheiro. A matriz metafórica é composta por dois elementos: dinheiro e falar. Nos

enunciados 23 e 24, Millôr traz variações decorrentes do elemento falar.

No enunciado 23, o tom humorístico se dá pela quebra de expectativa

ocasionada pela incursão da expressão mandar calar a boca. A expressão incluída

está no campo da fala e enfatiza o poder que o dinheiro exerce na sociedade atual.

A expressão o dinheiro fala, por si só, já denota a influência exercida pelo dinheiro,

porém Millôr optou por trazer a nova expressão que porta três elementos enfáticos:

a) O primeiro recurso enfático decorre do verbo calar. Bastaria o autor dizer que

o dinheiro cala, que além da influência que o dinheiro traz (expressão falar),

estaria em evidência o seu caráter repressor, contendo a ação de outrem.

b) O segundo recurso enfático decorre do pleonasmo enfático calar a boca.

Somente uma boca pode ser calada, não haveria a necessidade dessa

afirmação. No entanto, esse é um recurso retórico enfático que, além de

evidenciar a influência e o caráter repressor do dinheiro, traz uma condição

de opressor.

c) Por fim, o terceiro recurso enfático é o uso do verbo mandar. Além dos

elementos de influência, de repressão e de opressão das outras expressões

utilizadas no enunciado, esse verbo demonstra a autoridade do dinheiro em

ordenar que se cumpra algo.

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Por sua vez, no enunciado 24, o tom humorístico se dá pela revelação de

uma nova característica do dinheiro, também referente ao campo da fala, o fato de o

dólar ser poliglota. É importante ressaltar que a revelação dessa nova característica

não diz respeito ao dinheiro de maneira geral, mas Millôr especifica que apenas o

dólar é capaz de falar todas as línguas. Atribuindo essa característica ao dólar, o

autor possui a intenção de demonstrar a importância e a influência que essa moeda

exerce no mundo, por ser utilizada em diversos países e ser a moeda base para

transações internacionais, tornando-se o símbolo da globalização financeira.

(25) O dinheiro fala mais alto. E só com gente rica. (FERNANDES, 2007, p. 142,

grifo nosso)

(26) O dinheiro fala mais alto – sobretudo no Congresso, pela boca dos grandes

latifundiários. (FERNANDES, 2007, p. 97, grifo nosso)

A expressão popular falar mais alto é uma metáfora morta20 que se refere à

importância que se dá a algo em detrimento de outro. Quando se utiliza a expressão

x fala mais alto, o termo x não necessariamente precisa falar para a expressão ser

compreendida, basta que esse termo revele uma importância diante de outros.

O tom humorístico dá-se pela manipulação de um dos elementos da

expressão falar mais alto, no caso, o falar. O verbo falar é um ato humano contentor

de diversas implicações como a identificação do falante (quem fala), a identificação

do ouvinte (com quem se fala), o modo como se fala, dentre outros. Por sua vez, a

expressão falar mais alto contém apenas uma implicação, qual seja, a identificação

do sujeito relevante (quem fala mais alto). Nos enunciados, Millôr aproveita que a

expressão falar mais alto possui o verbo falar e traz à tona as implicações

decorrentes desse verbo, quebrando a expectativa relativa à expressão. Além dessa

quebra de expectativa, por atribuir ao dinheiro implicações intrínsecas relacionadas

ao falar, o autor acaba por personificá-lo.

20 Para Searle, as metáforas mortas são aquelas em que: “O significado original da sentença sai de circuito e a sentença adquire um novo significado literal, idêntico ao antigo significado metafórico de emissão”. (SEARLE, 2002, p. 179)

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No enunciado 25, Millôr especifica o interlocutor do dinheiro e o tom

humorístico se dá a partir do momento que o autor realiza essa especificação.

Apesar de o verbo falar permitir a identificação do interlocutor, pode-se afirmar que a

expressão falar mais alto assemelha-se a um verbo intransitivo e, por isso, não

comportaria esse complemento. Dessa maneira, há uma quebra de expectativa com

a inclusão do complemento com gente rica. Por fim, ao afirmar que o dinheiro fala

apenas com gente rica, Millôr realiza uma crítica social, já que deixa subentendido

que o dinheiro despreza as pessoas que são pobres e financeiramente

desfavorecidas.

No enunciado 26, o tom humorístico se dá pela identificação do meio utilizado

pelo dinheiro para falar, qual seja, a boca dos latifundiários. Conforme afirmado

acima, não há a necessidade de o elemento x falar para a expressão x falar mais

alto ter sentido. No entanto, Millôr traz um outro elemento relacionado à fala (boca),

que atribui ao elemento que fala mais alto a ação de falar.

Ademais, há uma possibilidade de interpretação metonímica em ambos

enunciados em que o possuído representa o possuidor. No enunciado 25, gente rica

é quem possui dinheiro e, por isso, gente rica é quem fala mais alto. No enunciado

26, essa possibilidade é trabalhada através de um cruzamento metonímico, pois o

dinheiro fala pela boca do latifundiário e é o latifundiário quem possui o dinheiro.

3.4.2.2 A Atribuição da Ação de Transportar ao Dinh eiro

Todos os enunciados a seguir (27 a 32) têm como base a expressão cotidiana

O dinheiro não traz felicidade e, também, uma variação A riqueza não traz felicidade.

O verbo trazer evidencia a metáfora nesses enunciados, uma vez que significa levar,

transportar (algo ou alguém) ao encontro do falante. Nem o dinheiro é capaz de

transportar nada, como também a felicidade não pode ser transportada, por não ser

um objeto. Mas, por se tratar de uma metáfora cotidiana proposta por Lakoff e

Johnson (2002) e com base no Princípio 4 de Searle21, sabemos que o dinheiro não

é capaz de transportar algo e a felicidade também não é um objeto, mas um fato de

nossa sensibilidade acaba por aceitar a atribuição dessas características.

21 “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que efetivamente percebemos uma conexão de modo que P se associa, em nossas mentes, às propriedades de R”. (SEARLE, 2002, p. 170)

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Para alcançar o tom humorístico, Millôr não manipula diretamente a

expressão O dinheiro não traz felicidade. No entanto, a afirmação dessa expressão

é a passagem para o enunciado humorístico.

Distintamente das análises anteriores, como a dimensão metafórica se repete

nos enunciados 27 a 32, não será feito um parágrafo introdutório sobre a metáfora

em cada análise. Será dada ênfase apenas à análise do tom humorístico.

(27) O dinheiro não traz felicidade. Mas pobre não tem autoridade pra afirmar isso.

(FERNANDES, 2007, p. 141, grifo nosso)

(28) O dinheiro não traz felicidade. Mas leva. (FERNANDES, 2007, p. 142, grifo

nosso)

Conforme visto, o verbo trazer significa transportar algo ao encontro do

falante. No enunciado 27, ciente desse significado, Millôr identifica os possíveis

falantes da expressão O dinheiro não traz felicidade. O tom humorístico dá-se pela

identificação do indivíduo que não pode utilizar essa expressão. Se o dinheiro é o

agente do verbo trazer, logo, o dinheiro é aquele que transporta a quem fala. Sendo

assim, o dinheiro deve estar sob o poder de quem fala, por conseguinte, quem fala

tem que possuir dinheiro. Seguindo a lógica, quem não tem dinheiro não teria

condição de dizer com autoridade sobre o que o dinheiro faz ou não faz.

No enunciado 28, o tom humorístico estabelecido na segunda frase (Mas

leva) também tem como ponto de partida o verbo trazer, no entanto, dá-se a partir

de um movimento contraposto, qual seja, levar. Enquanto o verbo trazer denota o

transporte em direção a quem fala, o verbo levar tem como uma de suas acepções

possíveis afastar (transportar para longe) algo de quem fala. Millôr vale-se, portanto,

de outra metáfora cotidiana e estabelece que O dinheiro leva a felicidade.

Há outra possibilidade interpretativa relativa ao verbo levar no enunciado 28.

Apesar de não ser um elemento explícito, se esse verbo for pensado com a

preposição a, revela-se outro tipo de movimento contraposto diferente do exposto

anteriormente (esse movimento também é responsável pelo tom humorístico). A

construção levar a tem como acepção a ideia de condução de algo a algum lugar, no

caso, o dinheiro conduziria o falante à felicidade.

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Por fim, em ambas as interpretações do enunciado 28, o movimento

contraposto do verbo levar ou levar a é enfatizado pela conjunção adversativa mas.

(29) Realmente o dinheiro não traz felicidade. Mas isso não chega a ser uma

questão financeira a ser levada a sério. (FERNANDES, 2007, p. 142, grifo nosso)

No início do enunciado 29, Millôr, através do advérbio realmente, enfatiza o

sentido que entendemos pela expressão O dinheiro não traz felicidade, ou seja, o

fato de alguém possuir muito dinheiro não significa que esse alguém seja feliz. O

tom humorístico situa-se na estratégia retórica para a depreciação dessa expressão.

A princípio, a expressão O dinheiro não traz felicidade revela valores como a

simplicidade e a felicidade, todavia, o autor a deprecia em dois níveis. No primeiro

nível, classifica a expressão como uma questão financeira. As finanças visam

apenas valores de cunho material, logo, desconsidera valores como a felicidade e a

simplicidade. No segundo nível, estabelece a expressão como ínfima dentro dessa

classificação de cunho materialista.

(30) A riqueza não traz felicidade. Pelo menos jamais aquela felicidade ampla, geral

e irrestrita que os que não têm dinheiro pensam existir. (FERNANDES, 2007, p. 425,

grifo nosso)

(31) A riqueza não traz felicidade. A pobreza muito menos. (FERNANDES, 2007, p.

425, grifo nosso)

(32) A riqueza não traz felicidade. A burrice traz. (FERNANDES, 2007, p. 100, grifo

nosso)

Nos enunciados 30, 31 e 32, Millôr utiliza uma variação da expressão O

dinheiro não traz felicidade substituindo o vocábulo dinheiro pelo vocábulo riqueza,

apesar de serem vocábulos de significados distintos, seu uso não altera o sentido da

expressão. Essa variação trata-se de uma operação metonímica em que a causa

(dinheiro) é substituída pelo efeito (riqueza).

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No enunciado 30, o tom humorístico dá-se pela restrição da abrangência da

expressão metafórica A riqueza não traz felicidade. Essa restrição é construída a

partir da identificação de duas condições de verdade correlacionadas e inerentes ao

emitente dessa expressão: a crença em um ideal de felicidade plena e a carência de

dinheiro. A restrição é introduzida pela locução conjuncional pelo menos, que denota

uma possibilidade mínima de concretização da frase principal (A riqueza não traz

felicidade). Posto isso, não significa que os indivíduos que acreditam em uma

felicidade restrita e tenham dinheiro sejam felizes.

No enunciado 31, o tom humorístico é construído a partir de uma ideia de

metáfora orientacional. Conforme visto anteriormente, as metáforas orientacionais

têm base na nossa experiência física e cultural. A riqueza remete à ideia de

abundância e grandeza, enquanto a pobreza, escassez e pequenez. O tamanho de

algo está ligado normalmente à força, logo, o grande é mais forte do que o pequeno.

Dessa forma, se o grande (riqueza) não é capaz de trazer a felicidade, tampouco o

pequeno (pobreza) seria. Por fim, a locução adverbial muito menos modifica o verbo

trazer e enfatiza que há maiores dificuldades em conseguir a felicidade.

No enunciado 32, a expressão A burrice traz é metafórica, pois sabemos que

a burrice não é capaz de transportar algo, mas um fato de nossa sensibilidade acaba

por aceitar a atribuição dessa ação. O tom humorístico decorre da interação entre o

verbo trazer e o substantivo burrice. O vocábulo burrice é formado por ‘burro+ice’,

sendo que o burro é um notório animal de carga cuja função principal é trazer/levar

coisas. Dessa forma, a escolha do vocábulo burrice revela uma ironia, pois a raiz da

palavra remete a um animal de carga.

3.4.2.3 A Personificação do Dinheiro

(33) Não há nenhum dinheiro generoso. Todo dinheiro é perverso. (FERNANDES,

2007, p. 141, grifo nosso)

Diferente dos enunciados 22 a 32 analisados anteriormente, em que Millôr

Fernandes utiliza diversas metáforas que atribui ações de pessoas ao dinheiro (o

dinheiro fala, o dinheiro traz), nesse enunciado, o autor utiliza a metáfora para

fornecer características de pessoas ao dinheiro. O fornecimento de tais

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características é feito através do uso de dois adjetivos completamente antagônicos:

generoso e perverso.

A utilização desses dois adjetivos antagônicos é facilmente compreendida,

pois a estratégia utilizada para afirmar que o dinheiro é perverso, é afirmar

primeiramente que o dinheiro não é generoso. O tom humorístico é estabelecido

pela atribuição de características humanas ao dinheiro aliada à estratégia enfática

de negar a generosidade e afirmar a perversidade.

3.4.3 Ponderações Finais

A teoria cognitiva da metáfora sintetiza no experiencialismo tanto o

objetivismo (preocupação com a verdade, de uma visão do homem separada do seu

meio), quanto o subjetivismo (baseada na relação do homem com seu meio através

de sentimentos, intuição e valores pessoais). O experiencialismo reconhece que o

homem interage cultural e fisicamente com o meio e as outras pessoas. As

experiências decorrentes dessa interação são estruturadas em categorias e, a partir

dessas categorias, estruturam-se as experiências de outros domínios. Dessa forma:

[...] a verdade depende da compreensão que emerge da ação humana no mundo. É por meio de tal compreensão que a alternativa experiencialista satisfaz a necessidade objetivista de uma explicação da verdade. É por meio da estruturação coerente da experiência que a alternativa experiencialista satisfaz à necessidade subjetivista de sentido pessoal e significante. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 348-9)

Ocorre que por fundar-se nos domínios da experiência e da cognição, a teoria

cognitiva da metáfora pode ser taxada não como um problema linguístico, mas de

pensamento, de percepção e de representação mental. No entanto, apesar de falar

que metáforas residem em ideias não em palavras, ao falar sobre o processamento

metafórico, Lakoff expõe a importância da linguagem para a compreensão da

metáfora:

Os elementos de forma (palavras e categorias gramaticais) vinculam-se no sistema nervoso aos elementos do sistema conceitual, onde mapeamentos metafóricos vinculam-se a elementos estruturais, que vinculam-se a

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palavras ou categorias gramaticais. (LAKOFF, 2008, p. 35, tradução nossa)22

Sendo assim, todos os elementos que compõem a forma linguística estão

associados, no sistema nervoso, ao sistema conceitual, de um modo geral, e a esse

é que se vinculam mapeamentos metafóricos possíveis. Logo, pode-se compreender

que as metáforas são geradas não por meras correlações entre itens lexicais de um

sistema, mas por mapeamentos específicos que se acham estruturados no sistema

conceitual.

Justificando essa formulação de Lakoff a partir do exemplo “O dinheiro fala. E

também manda calar a boca”, é possível pensar que cada um dos componentes do

enunciado esteja vinculado ao sistema conceitual, como formas linguísticas que são

para os falantes do português; é possível, também, que essas formas se comportam

no sistema a partir de mapeamentos, isto é, de um conjunto de condições, de

relações que projetam formas de realizações aceitáveis para as expressões

linguísticas. O processamento metafórico se dá sob a forma de algum mapeamento

característico. Assim, devem existir muitos mapeamentos correlacionando dinheiro

com diversas predicações; como é possível a existência de um mapeamento

metafórico que torna falar predicável para dinheiro, entre outros.

Essa explicação acerca da compreensão metafórica pode ser sintetizada no

quadro a seguir:

SISTEMA NERVOSO

Elementos

Estruturais

Sistema Conceitual

Mapeamentos

Mapeamentos Metafóricos

Elementos

Linguísticos

22 The form elements (words and grammatical categories) are neurally linked to the elements in conceptual system, where metaphorical mappings are linked to frame elements, which are linked to words or grammatical categories.

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3.5 Enunciados Humorísticos compostos por Metáforas relacionadas à Morte

3.5.1 Ponderações Iniciais

Em sua obra, Millôr versa sobre a morte e, por isso, acaba por utilizar

diversas metáforas que atribui à morte características e ações de pessoas. Para

isso, a morte passa a ter uma representação imagética personificada que lhe

confere a possibilidade de realizar ações humanas, assim como possuir

características humanas.

Além disso, Millôr também confere – metaforicamente – à morte a condição

de uma viagem, assim como a condição de um descanso. Essas condições são

recorrentes, não apenas na obra de Millôr, já que tratam de um fato de nossa

sensibilidade culturalmente determinado.

A morte é certa e inevitável. Mas, mesmo sendo uma certeza para o homem,

a ideia sobre a morte é carregada de muitas dúvidas e incertezas, tais como: por

que morrer?; o que vem depois da morte?; por que existe o temor à morte?; entre

tantas outras. A utilização de algumas metáforas cotidianas para se referir à morte

serve para tentar explicar essas incertezas ou, pelo menos, amenizar a infinidade de

dúvidas que existem acerca da morte. Algumas dessas metáforas serão analisadas

no tópico abaixo.

3.5.2 Análises

3.5.2.1 A Personificação da Morte

Algumas questões, entidades e sentimentos humanos têm diversas formas de

serem representados. Por exemplo, o amor costuma ser representado por um

coração; a sorte por um trevo de quatro folhas ou uma ferradura; a paz por uma

pomba branca; entre outros. Essas representações são metáforas imagéticas e de

acordo com Forceville:

Metáforas imagéticas são monomodais: seu alvo e sua fonte são inteiramente construídas em termos visuais, assim como suas irmãs verbais têm o alvo e a fonte inteiramente construídos em termos de linguagem. [...]

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Em figuras, entretanto, especialmente as estáticas, não há linearidade, nem regras gramaticais para distinguir-se o alvo e a fonte, sendo assim, o alvo e a fonte devem ser identificados como tal por outros motivos. (FORCEVILLE, 2008, p. 464, tradução nossa)23

Dentre as metáforas imagéticas, ressaltam-se algumas que personificam

essas questões, entidades e sentimentos humanos. Ao se fazer uma personificação,

é necessária a composição visual de diversas características e elementos que

constroem a metáfora imagética. Por exemplo, Deus é representado através de um

senhor barbudo de aspecto agradável e amistoso vestido com uma túnica branca; o

Diabo, por sua vez, é apresentado como uma figura humana horripilante com pele

avermelhada, chifres, rabo e porta um tridente; e a Morte é representada como um

esqueleto humano que traja uma enorme veste preta com capuz que esconde todo

seu semblante e porta uma foice.

A personificação é uma derivação das metáforas ontológicas e é conceituada

por Lakoff e Johnson (2002, p. 88-9):

A personificação é, pois, uma categoria geral que cobre uma enorme gama de metáforas, cada uma selecionando aspectos diferentes de uma pessoa ou modos diferentes de considerá-la. O que todas têm em comum é o fato de serem extensões de metáforas ontológicas, permitindo-nos dar sentido a fenômenos do mundo em termos humanos, termos esses que podemos entender com base em nossas próprias motivações, objetivos, ações e características.

A morte não só tem uma representação imagética como mencionada

anteriormente, mas o fato de ser personificada lhe confere a possibilidade de realizar

ações humanas, assim como possuir características humanas. Essas ações e

características da morte são utilizadas por Millôr e serão analisadas abaixo.

(34) E só uma perguntinha final (!) à Morte: “Ô Companheira, como é que você

prefere levar o gajo aqui: inteiro e bem vestido, partido em pedaços num desastre

ferroviário, definhando aos poucos num leito indigente, ou vendendo saúde, como

sempre?” (FERNANDES, 2007, p. 433, grifo nosso)

23 Pictorial metaphors are monomodal: their target and source are entirely rendered in visual terms, just as their verbal sisters have a target and source entirely rendered in language. [...] In pictures, however, particularly static ones, there is no such linearity, nor grammatical “rules” for disambiguating target and source, so that target and source must be identified as such on other grounds.

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Para iniciar a análise desse enunciado, há um elemento cuja aplicação é

inusitada e chama a atenção para sua compreensão: o ponto de exclamação entre

parênteses. Para o uso desse ponto, há duas interpretações possíveis. Mas

importante ressaltar que não se pretende esgotar as interpretações possíveis para a

compreensão desse recurso utilizado por Millôr.

A primeira interpretação possível é que o ponto de exclamação é uma

estratégia para ressaltar um pleonasmo, já que o encontro com a morte somente

ocorrerá ao final da vida. Por isso, se o indivíduo está a interpelar a morte, a sua

pergunta não tem outra condição a não ser uma pergunta final. A segunda

interpretação possível é que esse ponto é um recurso para exaltar o absurdo que é

direcionar uma pergunta à morte.

A possibilidade de estabelecer um diálogo com a morte faz com que a morte

seja personificada. O elemento central dessa metáfora (a morte é uma pessoa)

reside no ato de perguntar à morte, no uso de vocativo (Ô Companheira) e no

pronome de tratamento (você).

Há uma outra metáfora que complementa a produção do humor. Ao final de

sua pergunta, Millôr utiliza a expressão vendendo saúde. A saúde é um estado de

boa disposição, física e mental, do organismo de um indivíduo. Portanto, a saúde

não é passível de ser vendida. A expressão vendendo saúde é uma metáfora

morta24 atribuída à pessoa saudável e vigorosa. Ou seja, o indivíduo possui tanta

saúde que pode vendê-la e, mesmo assim, não abandonará a sua condição de

saudável.

O tom humorístico nesse enunciado se dá, primeiramente, pelo caráter

inusitado de realizar uma pergunta à morte. Mas, além disso, se dá pela construção

argumentativa da pergunta realizada por Millôr, uma vez que apresenta um leque de

formas como opção de escolha para a morte com teor contraditório. Esse leque é

iniciado pelo autor com formas que se associam à ideia de morte:

a) inteiro e bem vestido: a princípio, o fato de estar inteiro e bem vestido não

está relacionado à morte. No entanto, é uma prática da nossa sociedade

utilizar, na preparação do defunto, técnicas que o faz aparentar estar vivo

24 Para Searle, as metáforas mortas são aquelas em que: “O significado original da sentença sai de circuito e a sentença adquire um novo significado literal, idêntico ao antigo significado metafórico de emissão”. (SEARLE, 2002, p. 179)

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(inteiro), além de o seu sepultamento, geralmente, ocorrer com as suas

melhores roupas (bem vestido);

b) partido em pedaços num desastre ferroviário: essa forma representa uma

morte acidental que contrasta com a figura exposta no item anterior em que

o morto está inteiro;

c) definhando aos poucos num leito indigente: essa forma representa uma

morte lenta e gradual permeada de muito sofrimento.

A última forma apresentada no leque (vendendo saúde) dita o tom

humorístico no enunciado. Primeiro, ela contrasta com a forma anterior (definhando

aos poucos) em que há sofrimento ocasionado por uma moléstia. Segundo,

contrasta com todas as outras formas (inteiro e bem vestido, partido em pedaços e

definhando aos poucos) por não se associar à ideia de morte o que acarreta uma

quebra de expectativa. Por fim, o humor também é ocasionado pelo fato de o

indivíduo, mesmo vendendo saúde, estar sujeito à morte, o que reforça, inclusive, o

caráter inexorável da morte.

(35) Dizia o velhíssimo olhando a moçada que dançava: “Às vezes eu tenho a

impressão de que a morte nos esqueceu”. Cortava a velhíssima, levando o dedo à

boca: “Tshiiiiiiu!” (FERNANDES, 2007, p. 486, grifo nosso)

Diferentemente do enunciado 34, em que o locutor direciona uma pergunta à

morte, nesse enunciado, os locutores se comportam como se a morte fosse capaz

de escutá-los. Essa capacidade auditiva da morte pode ser interpretada de duas

maneiras. A primeira interpretação está relacionada com a proximidade da morte

com os locutores, já que ambos são velhíssimos (expressão superlativa utilizada

pelo Millôr para descrever os locutores) e, inexoravelmente, mais próximos da morte.

A segunda interpretação está relacionada com a característica de onipresença que

pode ser atribuída à morte e, por esse motivo, ela é capaz de ouvir tudo.

A possibilidade de a morte ser capaz de ouvir faz com que ela seja

personificada. O elemento central dessa metáfora (a morte é uma pessoa) consiste

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na possibilidade de a morte ouvir. Esse elemento é manifestado através da

onomatopeia Tshiiiiiiu que é utilizada com o objetivo de cessar a fala do locutor.

Há outro elemento que personifica a morte, trata-se da expressão a morte nos

esqueceu. O ato de esquecer é uma ação humana, pois somente um indivíduo

dotado de razão e memória é capaz de esquecer. Inclusive, quando a velhíssima

interrompe o velhíssimo, essa é uma tentativa de impedir que a morte se lembre que

eles existem e, consequentemente, prolongar as suas vidas. Inclusive, essa

possibilidade de lembrança e o modo que a velhíssima interrompe constroem o tom

humorístico por atribuir diversas ações humanas à morte (além de esquecer,

expressa no enunciado, a morte também pode ouvir e lembrar), o que constrói uma

hipérbole da metáfora da personificação da morte.

(36) Ter bravura diante da morte nunca livrou ninguém da cova. A morte chega

igual, na covardia ou na valentia. (A mãe, em Duas tábuas e uma paixão. 1981)

(FERNANDES, 2007, p. 125, grifo nosso)

Há, no senso comum, o consenso de que a morte é inevitável e não há nada

que se possa fazer para escapar dela. Ciente desse consenso, Millôr debocha dos

indivíduos que tentam evitar a morte, igualando os valentões aos covardes, pois ela

irá atingi-los independentemente de seu comportamento. A exposição desse

deboche é responsável pelo tom humorístico do enunciado.

O elemento central da metáfora é a atribuição da ação chegar à morte. O ato

de chegar é o fim de uma movimentação em um determinado espaço, esse ato está

relacionado a entidades de cunho material. Outro termo metafórico utilizado é a

expressão diante de que também remete à ideia de relação a entidades de cunho

material, pois se trata de uma locução prepositiva que refere-se a uma posição

específica no espaço.

(37) A morte está sempre mais ou menos longe, mas ninguém sabe em que tipo de

transporte, e com que velocidade, ela viaja. (FERNANDES, 2007, p. 29, grifo nosso)

Outro fato do senso comum é o consenso de que a morte é repentina e

inesperada. Nesse enunciado, o tom humorístico se dá pela maneira em que Millôr

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apresenta essa ideia acerca da morte, o que problematiza esse senso comum.

Dessa forma, o autor ressalta, através de uma composição de elementos

metafóricos, que o indivíduo não pode exprimir com exatidão quando e o modo que

irá morrer. Por isso, por mais que a morte esteja situada em um local do futuro

indeterminado, o modo como ela se locomove até o indivíduo pode acelerar o seu

encontro, o que culminará no fim da vida. Essa locomoção (o meio de transporte e a

velocidade) é um elemento que enfatiza o fato de a morte ser repentina e

inesperada.

O elemento central da metáfora é a atribuição da ação viajar à morte. Nessa

viagem, o destino que a personificação da morte possui é o fim da vida de um

indivíduo. Nesse enunciado, já que trata-se da morte personificada, a viagem é

realizada da maneira mais humana, ou seja, através de um meio de transporte.

(38) A morte se alimenta do ato de viver. (FERNANDES, 2007, p. 317, grifo nosso)

Nesse enunciado, o elemento central da metáfora é a atribuição da ação

alimentar à morte. Entretanto, a morte não é um ser vivo e, por isso, não se

alimenta. Essa ação de alimentar somente pode ser atribuída à morte através da

metáfora de personificação.

A metáfora ainda dita o tom humorístico do enunciado, já que quanto mais um

indivíduo vive, inevitavelmente, mais próximo está da morte. Essa ideia em relação à

morte é recorrente e foi expressa na obra do poeta português Fernando Pessoa: "O

próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não

tenhamos, nisso, um dia a menos nela." (PESSOA, 1986, p. 239-40).

A maneira que Millôr constrói essa ideia em relação à morte traz implicações

que visam provocar o humor e a reflexão sobre o tema. A partir do momento que a

morte se alimenta da vida, pode-se concluir – ainda que ironicamente – que a vida é

mantenedora da morte.

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(39) A morte mata. É sua função e ela a exerce. Ao contrário da vida. Não existe a

expressão “a vida vive”. A morte me apavora. Não só a morte final. Também, e

sempre, a morte diária, o resgate, tento a tento, do tempo que me deram de vida. A

hora que passa. O instante que flui. Ah, já falei tanto sobre isso. “Morro mas morre o

mundo comigo.” Que compensação! (1958) (FERNANDES, 2007, p. 317, grifo

nosso)

A metáfora da personificação da morte não se faz presente em todo o

enunciado. Por esse motivo, o enfoque da análise – metafórica e humorística – será

em seu excerto inicial: “A morte mata. É sua função e ela a exerce. Ao contrário da

vida. Não existe a expressão ‘a vida vive’”. Nesse trecho, nota-se um tratamento

distinto entre a morte e a vida, enquanto a morte é personificada através da

atribuição de uma ação e de uma função a ela, a vida não é dotada de tal

característica.

A metáfora a morte é uma pessoa que está exposta pela combinação do

verbo matar e o desígnio da morte para realizar tal ação. É como se a morte

possuísse o ofício de matar. Por sua vez, Millôr rechaça a possibilidade de a vida

viver, anulando, assim, a possibilidade de sua personificação. Como foi visto no

texto introdutório deste subcapítulo, a morte possui uma representação imagética

personificada, diferentemente da vida que não possui. A exposição desse contraste

entre a personificação da morte e a ausência de personificação da vida é

responsável pelo tom humorístico.

No excerto posterior (“A morte me apavora. Não só a morte final. Também, e

sempre, a morte diária, o resgate, tento a tento, do tempo que me deram de vida. A

hora que passa. O instante que flui.”), Millôr retoma a discussão proposta na análise

do enunciado 38, qual seja a ideia de que quanto mais um indivíduo vive,

inevitavelmente, mais próximo está da morte. Por fim, o autor conclui, em um tom

que se assemelha a um desabafo, que a vida é incongruente, a partir do momento

que ele afirma: “‘Morro mas morre o mundo comigo.’ Que compensação!”

Somente à guisa de curiosidade, Millôr escreveu esse enunciado em 1958,

prestes a completar 36 anos, idade que o seu pai e a sua mãe tinham quando

morreram.

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3.5.2.2 A Atribuição da Condição de Viagem à Morte

(40) É quase certo que, depois de nossa morte, a posteridade compreenda a nossa

obra. Mas aí já estaremos muito longe. (FERNANDES, 2007, p. 377)

A metáfora a morte é uma viagem é uma construção da nossa cultura que

visa explicar o que ocorre após a morte. Essa metáfora para referir-se à morte é

destacada através da utilização de diversos verbos e substantivos, tais como: partir,

partida, ir, ida, passagem, embarcar, despedir, despedida, adeus, entre outros.

Inclusive, alguns desses verbos e substantivos são utilizados em diversas

expressões cotidianas, tais como: partir dessa para melhor, ir para o beleléu, ir para

cucuia, dizer adeus ao mundo etc.

Posto isso, no enunciado, o elemento central da metáfora é a aplicação da

condição de viagem à morte. Essa condição fica evidente ao final da frase, quando

Millôr afirma que “Mas aí já estaremos muito longe.” Viagem é “o deslocamento que

se faz para se chegar de um local a outro relativamente distante” (HOUAISS, 2009).

Considerando o significado do substantivo viagem, é possível deduzir que Millôr quis

dar esse sentido através do uso dessa expressão. O tom humorístico desse

enunciado se dá pela forma como Millôr expõe a ideia que se costuma ter que o

indivíduo só possuirá reconhecimento em relação à obra produzida durante a vida

após a sua morte. Entretanto, Millôr zomba dessa compreensão tardia, considerando

que o indivíduo que produziu a obra já está morto e, por isso, de nada adianta para

ele que as pessoas comecem a compreender e admirar a sua obra.

(41) Partir é morrer um pouco. Morrer é partir demais. (FERNANDES, 2007, p. 353,

grifo nosso)

(42) Partir é morrer um pouco. Isto é, dependendo da companhia aérea.

(FERNANDES, 2007, p. 353)

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A expressão partir é morrer um pouco25 relaciona partida e morte. No entanto,

não pode ser considerada como uma metáfora a morte é uma viagem. A partir da

teoria de Searle (S é P; S é R), na metáfora a morte é uma viagem o elemento S

corresponde à morte, enquanto na expressão partir é morrer um pouco o elemento S

refere-se ao partir e, por isso, trata-se de uma metáfora relativa à partida.

Nos enunciados 41 e 42, o tom humorístico se dá pela subversão da

expressão metafórica partir é morrer um pouco. A quebra de expectativa no

enunciado 41 se dá pelo reordenamento dos elementos do enunciado, com a morte

tomando a primeira posição e a partida sendo modulada por um advérbio com

sentido oposto (enquanto em um enunciado é utilizado um pouco, no outro é

utilizado demais). Esse reordenamento invoca a metáfora a morte é uma viagem.

Por sua vez, no enunciado 4226, existe a relação entre a partida – conceito

que remete a maneiras de partir/viajar – e a morte. A quebra de expectativa

acontece ao relacionar o risco da partida com as companhias aéreas. A partida pode

ser feita por diversos meios de locomoção, desde a caminhada até o uso de uma

aeronave. Dentre os diversos meios, há alguns transportes cuja fatalidade em

eventuais acidentes é notadamente maior (como, por exemplo, em acidentes

aéreos). Como a frase partir é morrer um pouco relaciona partida e morte, Millôr

interpreta essa expressão de maneira literal e relaciona companhias aéreas (um dos

meios possíveis de serem utilizados na partida) com seus padrões de segurança (o

que propicia um maior índice de acidentes catastróficos).

3.5.2.3 A Atribuição da Condição de Descanso à Mort e

(43) Todo mundo morre mais ou menos 8 horas por dia. (FERNANDES, 2007, p.

453, grifo nosso)

(44) Você veio ao mundo pra ficar acordado. Depois você dorme. (FERNANDES,

2007, p. 490, grifo nosso)

25 Essa expressão possui registro na poesia “Rondó do Adeus” (1890) de Edmond Haraucourt e no fado “Partir é morrer um pouco” (1968) de letra de Mascarenhas Barreto e música de António dos Santos. 26 Esse enunciado não contém a metáfora a morte é uma viagem. No entanto, optou-se por analisá-la em conjunto com o enunciado 41, tendo em vista que ambos recorrem à mesma expressão partir é morrer um pouco.

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A metáfora a morte é um descanso é uma construção da nossa cultura que

pretende buscar uma compreensão para a morte. A utilização dessa metáfora

ocorre, principalmente, se a morte do indivíduo foi antecedida por doença e por

grande sofrimento.

Essa metáfora para referir-se à morte é destacada através da utilização de

diversos verbos e substantivos, tais como: descansar, dormir, repousar, sono, entre

outros. Inclusive, alguns desses verbos e substantivos são utilizados em diversas

expressões cotidianas, tais como: sono eterno, sono dos justos, sono da morte,

último sono, descanso final, descanse em paz etc.

No enunciado 43, Millôr recorre à metáfora morte é um descanso, mas ao

invés de utilizá-la em seu sentido metafórico, opta por utilizá-la em seu sentido

literal, a partir do momento que relaciona a morte com o sono (um momento de

descanso do ser humano cujo lapso temporal médio costuma ser de oito horas

diárias). A utilização dessa metáfora em seu sentido literal é responsável pelo tom

humorístico do enunciado, já que não é comum referir-se ao sono diário como um

estado de morte.

Já no enunciado 44, a partir da metáfora morte é um descanso, Millôr cria

uma espécie de ideia contrária em que vida é ficar acordado. A exposição dessas

ideias contrárias em conjunto é responsável pela produção do humor. Além disso,

assim como a expressão latina carpe diem, cuja origem está no “Ode a Leucónoe”

de Horácio27, o enunciado 44 parece um convite para que se aproveite o tempo

presente, vivendo os dias de maneira intensa e sem perder tempo com

absolutamente nada (inclusive, com o dormir). Ou seja, a vida é muito breve e

passageira e, por isso, deve-se aproveitar para ficar acordado, já que, após a morte,

será possível dormir.

27 Não pudemos, Leucónoe, saber — que não é lícito — qual o fim / que os deuses a ti ou a mim quererão dar, / nem arriscar os cálculos babilónios. Quão melhor é sofrer o que vier, / quer sejam muitos os invernos que Jove nos der, quer seja o último / este, que agora atira o Mar Tirreno contra as roídas rochas. / Sê sensata, filtra o teu vinho e amolda a curto espaço / uma longa esperança. Enquanto falamos, terá fugido o invejoso tempo. / Colhe a flor do dia, pouco fiando do que depois vier a suceder. (PEREIRA, 2010, grifo nosso).

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(45) Essa gente que, diante da morte (de outro, é claro!), murmura: “Foi melhor

assim”, “Parou de sofrer” ou “Coitado, descansou”, como é que sabe? Com que

autoridade fala? Por que não dizer a verdade: “Foi melhor pra mim”, “Parei de

sofrer”, “Que bom, descansei, já não aguentava mais esse cara”? (FERNANDES,

2007, p. 446)

Nesse enunciado, a metáfora a morte é um descanso é manifestada através

de expressões que, usualmente, são usadas diante da morte de um indivíduo e

direcionadas aos familiares e amigos que estão sofrendo pela morte do ente

querido. As expressões utilizadas por Millôr no enunciado estão inseridas entre

aspas: “Coitado, descansou” e “Parou de sofrer”.

O tom humorístico se dá pela reversão do beneficiário da metáfora morte é

um descanso da pessoa que está morta para a pessoa que está viva. Com essa

transferência pelo uso de certas expressões, a pessoa viva é quem passa a

descansar e a parar de sofrer.

3.5.3 Ponderações Finais

Foi visto que os enunciados metafóricos têm seu processamento mental

iniciado pela vinculação ao sistema conceitual e que esse sistema é um construto de

elementos estruturais, de elementos linguísticos e de mapeamentos. Os

mapeamentos são um conjunto de condições e de relações que projetam formas de

realizações aceitáveis para as expressões linguísticas, sendo que há certos

mapeamentos padrões que compõem o sistema conceitual. Por fim, com base na

teoria cognitiva da metáfora, concluiu-se que o processamento metafórico dá-se

através de um mapeamento específico.

Através da análise dos enunciados, ficou demonstrado que os enunciados

humorísticos manipulam tanto elementos estruturais, quanto elementos linguísticos.

No presente subcapítulo, por exemplo, todos os enunciados foram construídos a

partir de elementos linguísticos e a morte (presente em todos os enunciados) foi um

elemento estrutural manipulado e relacionado a outros elementos estruturais como:

pessoa (enunciados 34, 35, 36, 37, 38 e 39), viagem (enunciados 40, 41 e 42) e

descanso (enunciados 43, 44 e 45).

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Ademais, em todos os enunciados analisados ficou constatado que havia

metáfora e havia humor. A metáfora se destaca pela presença de um mapeamento

específico que compõe o sistema conceitual em conjunto com os elementos

estruturais e elementos linguísticos. O humor, da mesma forma, também compõe um

mapeamento específico (mapeamento humorístico), por isso, esses enunciados

representam algumas formas de interseção entre os mapeamentos humorísticos e

metafóricos, principalmente nos enunciados cuja metáfora é essencial na produção

do humor.

Os mapeamentos humorísticos têm características e construções próprias,

cuja essência é a quebra da expectativa dentro do sistema conceitual. Por estar

situada no sistema conceitual, essa quebra pode dar-se por diversas formas e

envolver os elementos linguísticos, os elementos estruturais e até os próprios

mapeamentos. Nos enunciados analisados, o mapeamento humorístico é

responsável por quebrar a expectativa da relação entre os elementos estruturais e

da compreensão dos elementos estruturais através da contradição (enunciado 34),

hipérbole (enunciado 35), deboche (enunciados 36 e 40), problematização

(enunciado 37), ironia (enunciado 38), contraste (enunciados 39 e 44), inversão de

elementos (enunciado 41), literalidade (enunciados 42 e 43) e inversão de condições

(enunciado 45).

Posto isso, o quadro exposto no subcapítulo 3.4.3 pode ser complementado

da seguinte maneira:

SISTEMA NERVOSO

Elementos

Estruturais

Mapeamentos

Humorísticos

Sistema Conceitual

Mapeamentos ↕ ∩

↕ Mapeamentos Metafóricos

Elementos

Linguísticos

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4 CONCLUSÃO

A obra de Millôr Fernandes, escolhida como corpus de análise, apresenta

uma extensa variedade de enunciados que contém tanto a metáfora quanto o

humor. Esse fato propiciou uma análise do humor em conjunto com a metáfora.

Como a metáfora é composta por uma fundamentação teórica que abrange o campo

da cognição, a interação entre humor e metáfora permitiu uma aproximação do

humor a esse campo.

A essência da metáfora, conforme a teoria cognitiva da metáfora, é analisar e

experienciar uma coisa em termos de outra, integrando-a ao sistema conceitual. Os

elementos que interagem na relação metafórica são denominados elementos

estruturais. Diversos elementos estruturais foram utilizados e analisados nos

enunciados escolhidos como: ideia, palavra, significado, discussão, guerra, tempo,

dinheiro, pessoa, morte, viagem, descanso, dentre outros.

Dentro do nosso sistema conceitual, na relação entre os elementos

conceituais, há diversas formas que esses elementos podem interagir entre si

(mapeamento). No entanto, para construir um enunciado metafórico, é necessária a

utilização de um mapeamento específico. Millôr Fernandes utiliza vários recursos

desse mapeamento específico para construir os enunciados metafóricos.

A estratégia utilizada por Millôr na construção dos enunciados metafóricos

será exposta a partir de alguns exemplos analisados anteriormente. O elemento

estrutural dinheiro pode interagir com o elemento estrutural poder de diversas

formas, uma vez que é um fato de nossa sensibilidade a atribuição de poder a quem

tem muito dinheiro. A partir dessa relação, o autor busca expressões linguísticas que

denotam poder. No caso, há uma expressão específica utilizada em diversos

enunciados, qual seja, falar mais alto. A expressão popular falar mais alto é uma

metáfora morta que se refere à importância que se dá a algo em detrimento de

outro. Quando se utiliza a expressão x fala mais alto, o termo x não

necessariamente precisa falar para a expressão ser compreendida, basta que esse

termo revele uma importância diante de outros.

Como a expressão falar mais alto tem como núcleo o verbo falar, Millôr

relaciona o dinheiro ao verbo falar com o intuito de enfatizar a relação dinheiro-

poder. A partir disso, o autor atribui as seguintes ações e características ao dinheiro:

a capacidade de mandar calar a boca (enunciado 23), o poliglotismo (enunciado 24),

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a apresentação dos interlocutores possíveis do dinheiro (enunciado 25), dentre

outros. Dessa forma, constrói a metáfora de que o dinheiro fala a partir de um

mapeamento específico, cuja matriz parte da relação entre os elementos estruturais

dinheiro e poder para trazer um novo elemento estrutural, qual seja, a fala.

Por sua vez, a essência do humor é a quebra de expectativa, o fora do

comum. Ao situá-lo dentro do sistema conceitual, da mesma forma que o enunciado

metafórico, o enunciado humorístico necessita de um mapeamento específico, no

caso, um mapeamento cuja característica principal é a quebra de expectativa.

Nos enunciados humorístico-metafóricos, o mapeamento humorístico permite

ser construído pela inserção de um elemento estrutural inusitado à relação

metafórica, pelo desenvolvimento de um caminho excêntrico para promover a

relação metafórica etc. Em sua construção, pode lidar com a contradição, a

hipérbole, o deboche, a ironia, o uso da literalidade, dentre outros.

A estratégia para a construção metafórica feita por Millôr exemplificada acima

também é uma estratégia para a construção humorística. A princípio, a relação

metafórica era composta apenas por dinheiro e poder, a expressão falar mais alto é

apenas uma forma de manifestação desse poder. O autor vale-se do fato de essa

expressão ter como núcleo o verbo falar, cuja literalidade remete à expressão oral, e

invoca à relação metafórica a fala como um novo elemento estrutural. Essa relação,

por sua essência, trata-se de um mapeamento não só metafórico, mas também

humorístico, por ter sido construída a partir da literalidade de um elemento

conotativo.

Millôr consegue, em um mesmo enunciado, trazer outra construção que vale-

se de outro mapeamento humorístico. Por exemplo, o enunciado 23, a princípio,

afirma que o dinheiro fala mais alto e, em seguida, complementa que o dinheiro

também manda calar a boca. O mapeamento humorístico contido na expressão

mandar calar a boca é consequência da justaposição de elementos enfáticos

relacionados à fala com o intuito de demonstrar o poder do dinheiro.

Conclui-se que, nos enunciados analisados, Millôr vale-se de estratégias

variadas de manipulação do sistema conceitual para construir enunciados que

tenham tanto a metáfora, quanto o tom humorístico. Esse recurso pode ser utilizado

com o intuito de enfatizar, de manipular o senso comum, de zombar de questões

humanas, de provocar a reflexão, dentre outros.

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A análise do humor e da metáfora em conjunto possibilitou uma aproximação

entre a teoria do humor e a teoria da metáfora, de forma que é possível situar,

nesses enunciados, o humor dentro do sistema conceitual. Trata-se de apenas um

ponto de partida da análise do humor em uma perspectiva cognitiva, mas apenas

trabalhos posteriores possibilitariam a consolidação do espaço do humor nessa

perspectiva.

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