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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Beatriz Ferrara Carunchio
Busca de sentido para a existência
em peregrinos a Santiago de Compostela
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
São Paulo
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Beatriz Ferrara Carunchio
Busca de sentido para a existência
em peregrinos a Santiago de Compostela
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção
do título de MESTRE em Ciências da
Religião, sob a orientação do Prof. Dr.
João Edênio Reis Valle.
São Paulo
2011
Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Dedico este trabalho a todo aquele que
tem a coragem de peregrinar por sua
vida, com a ousadia necessária para
construir e trilhar seu próprio Caminho.
Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família. É por vocês
que tudo faz sentido!
Aos meus pais, Raffaele e Laura, pela torcida, incentivo e pelo interesse
em conversar sobre minha dissertação.
Ao meu irmão André pela ajuda vital com os gráficos (valeu, Dedo!) e à
minha irmã Claudia por sempre me ouvir e ter as palavras certas nos
momentos necessários (irmã, você sabe que é uma das minhas pessoas
preferidas!).
Ao Julio, Angelo e Rosa, amigos muito especiais, pela compreensão e
paciência com as minhas ausências e angústias, e pela certeza de que no final
as coisas iriam terminar bem.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Edênio Valle, por guiar-me com sabedoria e
competência ao longo deste Caminho de pesquisa.
Aos professores do Programa de Ciências da Religião, em especial ao
Prof. Dr. Enio Brito e Prof. Dr. Edin Abumanssur, pelas contribuições em minha
banca de qualificação.
À Andréia, sempre solícita e simpática com todos.
Aos meus colegas da PUC-SP, por percorrerem comigo este Caminho,
com bom humor e risadas entre uma leitura e uma discussão.
Aos peregrinos que generosamente dividiram comigo aquilo que têm de
mais valioso: suas histórias. Nada teria sido possível sem isso!
A todos os meus amigos. Temo citar nomes e esquecer alguém
importante neste momento tão especial para mim. Sei como às vezes é difícil e
chatinho agüentar uma mestranda cheia de leituras para fazer e coisas para
escrever. Muito obrigada por todo o apoio, incentivo e paciência que tiveram
comigo (e depois que a defesa passar, não percam por esperar!!).
À Maria José, pelas conversas atentas e pelas trocas de experiências,
das quais sempre saio transformada.
À Franci, sempre minha mestra, por me apoiar e por acreditar em mim
em todos os momentos em que eu mesma não acreditei.
À Bete, por ter visto sempre o melhor que havia em mim, ainda que às
vezes precisasse cavar bastante...
Aos professores Ricardo, Marisa, Ciampa e Heloani. Vocês sempre
terão meu profundo respeito e admiração!
Aos meus pacientes, peregrinos pela vida, exemplos vivos da coragem
para enfrentar desafios e da persistência necessária a todo peregrino.
À CAPES, por haver financiado esta pesquisa.
RESUMO
A presente dissertação de mestrado teve por objetivo pesquisar a busca por
sentido para a própria existência em pessoas que tenham feito uma
peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela. Para isso, além da
pesquisa bibliográfica, recorremos à pesquisa empírica. Desenvolvemos um
questionário com base nas entrevistas e depoimentos recolhidos por nós, e o
aplicamos a 20 peregrinos. Posteriormente os questionários foram tabulados e
analisados. Concluímos que o Caminho de Santiago já não é uma rota apenas
católica, nem uma rota apenas religiosa; engloba inúmeros discursos e valores
religiosos e laicos. Isso permite que o peregrino entre em contato consigo
mesmo, possibilitando reflexões e questionamentos acerca de si mesmo, de
sua vida e da realidade da qual faz parte, o que permite que construa um novo
sentido para sua vida.
Palavras-chave: busca de sentido, peregrinação, Caminho de Santiago.
ABSTRACT
This master study aimed to investigate the search for meaning in people who
had made a pilgrimage on the Way of St. James. For this, beside literature
research, we also made an empiric research. We developed a questionnaire
based on interviews and testimonies collected by us. Subsequently, the
questionnaires were tabulated and analyzed. We concluded that the Way of St.
James is not only a Catholic route, not just a religious route. It includes
numerous speeches and values, religious and secular. This allows the pilgrim to
contact himself, enabling considerations and questions about himself, his life
and the reality which the pilgrim belongs to. So it makes possible the
construction of a new meaning for his own life.
Key-words: search for meaning, pilgrimage, Way of St. James.
Sumário
Introdução..........................................................................................................11
PARTE 1
Capítulo I: Antes de partir, cheque o seu mapa.................................................21
1.1- Peregrinos de ontem: significados e dados históricos..................21
1.2- Peregrinos de hoje: entre a espiritualidade e consumo................27
Capítulo II: O Caminho de Santiago de Compostela.........................................42
2.1- A história do Caminho e a história de Tiago....................................44
2.2- Caminho físico ou caminho espiritual?............................................52
Capítulo III: Busca de sentido: o que se encontra no percurso vai além do
caminho em si....................................................................................................66
PARTE 2
Capítulo IV: Todo caminho começa com um passo..........................................82
4.1- Método: o caminho da pesquisa......................................................82
4.1.1- Procedimentos....................................................................82
4.1.2- Amostragem.......................................................................83
4.2- Análise dos dados coletados...........................................................85
4.2.1- Os dados............................................................................85
4.2.2- Leitura dos dados...............................................................99
Considerações Finais: a chegada....................................................................111
Referências......................................................................................................115
Anexos: dados coletados.................................................................................120
Caso 1- R.M. ........................................................................................121
Caso 2 – V.S. .......................................................................................124
Caso 3 – L.B.G. ....................................................................................127
Questionários respondidos....................................................................165
Tabelas e gráficos referentes aos questionários...................................223
Apêndice..........................................................................................................235
Modelo de questionário.........................................................................236
1
Introdução
“Cada pessoa deve seguir seu próprio caminho com
coragem, pois ninguém jamais escapará impunemente
se não atravessá-lo. Ao mesmo tempo que ninguém
jamais sairá ileso de sua caminhada pela vida.” (M.L.F.)
Esta dissertação de mestrado tem por objetivo pesquisar a busca por
sentido para a própria existência em pessoas que tenham feito uma
peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela.
A busca humana por sentido é uma motivação primária, afirma Frankl1.
Quem não encontra sentido para a própria existência perde a dimensão
histórica de seu passado, cujas vivências são reduzidas a acasos. Assim,
torna-se difícil que alguém nessa situação estruture planos para o futuro,
restando-lhe apenas um presente vazio e ameaçador. Além de inúmeras
patologias (depressão, síndrome do pânico doenças psicossomáticas, etc.), a
ausência de sentido pode se refletir socialmente na forma de individualismo,
consumismo, grupos que não se unem em prol de objetivos comuns,
dificuldade de perceber a dimensão social de certas situações. Essas
decorrências da falta de sentido tornam o tema de sua busca não apenas
relevante, mas também necessário, pois no mundo contemporâneo, como
afirma Bauman2, essa é uma busca cada vez mais complexa e essencial para
que o sujeito esteja saudável e saiba lidar com esta realidade. E a figura do
peregrino, em suas viagens, parece ser a de alguém que empreende
(literalmente) esse tipo de busca.
Dentre as diversas rotas de peregrinação, optamos por Santiago de
Compostela, pois como afirma Steil3, esta é uma das rotas que mais atrai
pessoas atualmente, depois que celebridades da mídia a percorreram e
1 Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 2009,
p. 92. 2 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
3 Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e
interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 32.
2
divulgaram suas experiências. Além disso, afirma Carneiro4, o Brasil é o
terceiro país mais presente nessa rota, atrás apenas da França e Alemanha. A
autora menciona que apenas entre 1990 e o início da década de 2000, cerca
de 10 mil brasileiros fizeram o Caminho de Santiago de Compostela. Isso se
deve à visibilidade do Caminho de Santiago na mídia, mas também à sua
capacidade de absorver múltiplos discursos e universos simbólicos, como
lembra Carneiro5. Isso é crucial no mundo contemporâneo, pois para Bauman6,
vivemos o “multiculturalismo”, ou seja, a sociedade é formada por múltiplos
discursos e culturas, porém estes não dialogam, o que gera certa cacofonia.
Isso transmite ao ser humano muita ansiedade e insegurança. Tudo que seja
diferente é visto como ameaçador, o que aumenta ainda mais a insegurança,
ansiedade, o isolamento (e com ele, o individualismo), etc. Vivemos um tempo
que clama por sentido!
Com isso em mente, percebemos que a figura do peregrino é bastante
simbólica no contexto da busca de sentido para a existência. Vilhena7 lembra
que é muito freqüente que as pessoas se refiram à vida em termos de uma
caminhada ou um caminho a ser trilhado. Da mesma forma, acontecimentos
relevantes são referidos como “um grande passo”. É interessante lembrar que,
para Berger e Luckmann8, a linguagem é o veículo da cultura, o que nos
mostra a relevância da utilização dos termos citados por Vilhena9, bem como a
relevância da delimitação formal do objeto ser baseada na busca de sentido
para a existência ao se estudar peregrinos. Fechando essa linha de
pensamento, Carneiro10 afirma que a peregrinação implica em que a pessoa se
insira num novo universo discursivo, o que lhe permite testar seus antigos
valores, crenças e discursos, possibilitando confirmá-los ou transformá-los.
4 Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso,
identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 5 Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso,
identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 280. 6 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. pp. 112-113.
7 Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin
Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 12. 8 Cf. BERGER, Peter. L. e LUCKMANN, Thomas, A construção social da realidade, passim.
9 Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin
Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 12. 10
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 272.
3
Refletindo sobre o sentido de ser peregrino hoje, Steil e Carneiro11
definem como ponto crucial a popular metáfora de percorrer um caminho
interno e individual em busca do “verdadeiro eu”. Diferentemente da
modernidade, quando a relação entre religião e mercado, bem como colocar a
religião como uma questão particular eram vistas de forma problemática, no
mundo contemporâneo isso cada vez mais passa a ser visto como um direito.
Devido a tais fatores, Steil e Carneiro12 defendem que atualmente a
peregrinação é uma prática típica de movimentos Nova Era. Os caminhos
unem valores tradicionais e contemporâneos, religiosos e turísticos. Outro
ponto que levam os autores a esta conclusão são certas características da
Nova Era muito presentes nos peregrinos: busca espiritual contínua, que se
expressa em um estilo de vida no qual predomina uma visão holística, mística,
ética e estética da realidade e da vida. Outro aspecto bastante freqüente é o
desejo de uma nova consciência religiosa e a busca por desenvolver uma
espiritualidade livre e criativa. As peregrinações respondem a estes anseios
contemporâneos, pois podem proporcionar experiências religiosas individuais,
incentivando a busca por um ideal de si mesmo e o culto à subjetividade, tão
freqüente no mundo contemporâneo e em manifestações da religiosidade
associada à Nova Era.
Para compreender o peregrino contemporâneo e as implicações de suas
experiências de peregrinação na forma como ele atribui sentido à sua
existência, é imprescindível refletir sobre as transformações trazidas pela
modernidade, como a crescente industrialização, o individualismo (e, com ele,
o afastamento das relações), a velocidade da informação e o pluralismo de
discursos. De acordo com Hervieu-Léger13 as transformações trazidas pela
modernidade se deram de forma rápida demais, além de terem sido drásticas,
mudando radicalmente o mundo tradicional, o que deixou nos sujeitos e nos
grupos um sentimento de vazio, que se busca preencher. A autora14 prossegue
11
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28
(1), 2008, p. 112. 12
Ibidem, p. 121. 13
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, pp. 40 – 41. 14
Ibidem, pp. 60 – 61.
4
afirmando que deixar de ter uma identidade religiosa herdada e passar a ter de
escolher a própria identidade é um processo viável apenas quando existe a
“modernidade psicológica”, isto é, quando o sujeito passa a ser capaz de
pensar a si mesmo como individualidade e, aí sim, a buscar para si uma
identidade que transcenda as identidades herdadas ou pré-determinadas. Em
decorrência destas transformações na sociedade e nos próprios sujeitos,
entram em evidência os novos movimentos religiosos, as correntes
carismáticas, a literatura que busca inspiração no esoterismo e o retorno das
peregrinações.
Um aspecto digno de destaque quanto à peregrinação contemporânea à
Santiago de Compostela, mencionado por Carneiro15, é que esta não envolve
apenas elementos católicos, e nem se mantém dentro dos limites da Igreja.
Quem vai até lá não visa agradecer a um milagre, nem alcançar uma graça
específica, nem mesmo (apenas) prestar homenagens ao apóstolo de Jesus. O
objetivo não é o fim, mas o caminho em si. Ao nosso entender, este pode ser
um dos fatores cruciais para que o Caminho de Santiago fosse adotado tão
facilmente por pessoas que não seguem o catolicismo.
Isso abre uma discussão relevante no mundo contemporâneo, a respeito
do pluralismo religioso. Carneiro16 afirma que a peregrinação envolve questões
que transcendem a linguagem do catolicismo, por isso atrai pessoas de
diversas religiões ao resgatar valores associados ao sentimento de pertencer a
uma comunidade (solidariedade, respeito, companheirismo e crítica à violência
e ao consumismo das sociedades contemporâneas). Com isso, diz a autora, a
pessoa passa a se guiar por valores que lhe dão referências para sobreviver no
mundo contemporâneo, onde parece predominar uma crise dos sistemas,
agencias e instituições tradicionalmente produtoras de sentido. Assim, conclui
Carneiro17, o ser humano, ao guiar-se por novos valores (decorrentes de uma
experiência com fortes implicações emocionais, como a peregrinação),
encontra novo sentido para sua existência.
15
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 265. 16
Ibidem, pp. 265-266. 17
Ibidem, p. 280.
5
A questão principal que norteia esta pesquisa é a seguinte: como ocorre
a busca por sentido em pessoas que tenham feito uma peregrinação a
Santiago de Compostela?
Para isso, é preciso investigar que tipos de transformações ocorrem com
os peregrinos (nos valores, na identidade, na visão de mundo, etc.), e com isso
será possível identificar como se processou a busca da pessoa em questão por
sentido para sua existência. Frankl considera que a busca por sentido é a
maior busca que o ser humano pode empreender. Desta maneira, é presumível
que as vivências e reflexões de cada um sejam muito relevantes neste
processo. Assim, continua o autor, o sentido é algo diferente para cada pessoa,
e sofre influência dos ideais e valores do sujeito, que funcionam como a base
que permitirá a existência de algum sentido.
Observamos que a experiência da peregrinação permite sair da rotina
usual do sujeito, afastando-se das vivências e relacionamentos interpessoais
costumeiros. Isso permite que o sujeito possa olhar a si e a sua vida de fora de
sua posição usual, a partir de outro ângulo. Com isso é possível refletir sobre si
e sobre a própria existência com mais facilidade do que estando envolvido
pelas situações sobre as quais se está refletindo.
Logo, voltamos a questionar: o que se passa ao longo do Caminho,
fazendo com que as pessoas voltem mudadas? Isto é: como ocorre a busca
por sentido em pessoas que tenham feito uma peregrinação a Santiago de
Compostela?
A primeira hipótese que temos, sem a qual não haveria motivação
alguma para realização desta pesquisa, é que as peregrinações propiciam um
tempo e um contexto favoráveis para refletir sobre si mesmo e sobre a
realidade da qual o sujeito faz parte. Outra hipótese, e que pode ser
considerada a continuação desta, é que apenas através da reflexão e do auto-
questionamento (e para isso é necessário ver-se de fora, ver-se como outro)
que se pode transformar e ter consciência dos valores e ideais, para, com base
neles, atribuir algum sentido à própria vida.
Outra hipótese, que surgiu enquanto escrevíamos os esboços dos
capítulos teóricos da dissertação é que o sentido que se atribui à vida é uma
construção. Não basta atribuir algum sentido à vida, essa busca deve ser ativa
6
e intensa, para que o sentido não seja meramente atribuído, e sim construído
pelo sujeito. A construção de um sentido permitiria uma vida mais autônoma do
que a mera atribuição de algum sentido “pronto para o consumo”.
Assim, o objetivo desta pesquisa é verificar de que maneira se processa
a busca por sentido em pessoas que realizaram a peregrinação a Santiago de
Compostela, acompanhando através do discurso dos participantes a forma
como se deu a motivação para a peregrinação, as reflexões ao longo do
percurso e a “aplicação” do novo sentido com o retorno.
Como já mencionamos anteriormente, pessoas que não conseguem
atribuir sentido para a própria existência tendem a apresentar maiores
dificuldades em localizar-se no tempo (por exemplo, em apropriar-se da história
de vida ou em estabelecer planos para o futuro), além de apresentarem
maiores probabilidades de desenvolver patologias como depressão e síndrome
do pânico, bem como patologias de ordem psicossomática. Assim, este nos
parece ser um tema de pesquisa relevante para a área da psicologia.
Steil18 considera, como já afirmamos anteriormente, que Santiago de
Compostela é um dos principais centros de peregrinação dos dias de hoje.
Além disso, como também já mencionamos anteriormente, o Caminho de
Santiago de Compostela, por estar constantemente na mídia, é uma das rotas
de peregrinação que mais vem atraindo pessoas atualmente, sendo que o
Brasil é o terceiro país em número de peregrinos no Caminho. Esses dados
mostram a importância da delimitação desta dissertação a peregrinos dessa
rota específica.
Não bastando ser uma das rotas mais escolhidas pelos peregrinos, o
Caminho de Santiago de Compostela é marcado e reconhecido pelo pluralismo
de religiões e discursos formadores de sentido, pois não recebe apenas
pessoas de origem católica, o que o leva a inserir-se no campo da Nova Era e,
com isso, a englobar as características, desafios e anseios da
contemporaneidade.
Afinal, por que tantas pessoas saem de suas casas e cruzam o Atlântico
para caminhar em média durante um mês numa antiga rota de peregrinação
18
Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo.
7
católica? E o que acontece ao longo do percurso que faz com que esses
peregrinos retornem transformados?
Além da pesquisa teórica abrangendo o fenômeno das peregrinações e,
mais especificamente, informações a respeito do Caminho de Santiago de
Compostela, esta dissertação de mestrado se propõe a analisar dados
empíricos de pessoas que fizeram a peregrinação a Santiago de Compostela.
Os dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada e
depoimentos, a partir dos quais formulamos um questionário abordando temas
como a motivação e expectativas sobre a peregrinação; a razão da escolha por
Santiago de Compostela; como foi afastar-se da rotina usual durante o período
da peregrinação (trabalho, família, amigos, tempo livre, etc.); os principais
conflitos, pensamentos, sentimentos e lembranças que a pessoa teve no
decorrer do caminho; e uma breve narrativa da história de vida que deixasse
claro como era a vida do participante antes da peregrinação e como ele
percebe sua vida após o retorno (valores, comportamentos, forma como vê/dá
sentido à vida e a si mesmo). Os participantes foram contatados através de
comunidades da rede social Orkut, e os dados foram coletados através de
depoimentos, trocas de e-mails e entrevistas. Deixamos claro que a identidade
dos participantes não seria divulgada e que a participação na pesquisa seria
voluntária.
Na exploração inicial do perfil dos peregrinos, chamou nossa atenção o
fato de muitos deles, não sendo católicos, optarem por esta rota de
peregrinação. Ainda assim, independente da religião, normalmente os
peregrinos afirmam que, para eles, a religião institucionalizada (independente
de qual seja) é um fator secundário. Afirmam ter crenças que percebemos
como típicas do movimento Nova Era, tais como o poder do pensamento,
“energias”, a natureza, etc.
A seguir, os dados coletados serão analisados à luz das teorias
utilizadas, visando explicitar como se formou sua identidade para, a partir daí,
poder pensar a forma como atribuem sentido às suas existências.
A dissertação se organiza em duas partes, sendo na primeira
apresentado o cenário das peregrinações e na segunda os peregrinos
participantes desta pesquisa, os dados coletados e a análise.
8
O primeiro capítulo terá por função abordar a questão das
peregrinações, situando o leitor no contexto mais amplo da pesquisa, ou seja,
pretendemos que ele atue como um mapa que auxiliará o leitor na
compreensão do fenômeno das peregrinações. No primeiro subcapítulo
abordaremos definições e passagens históricas sobre as peregrinações, com
dados sobre a origem de termos mais utilizados e a diferenciação entre termos
como “romeiro” e “peregrino”. O texto seguinte tratará do fenômeno das
peregrinações nos dias atuais, discutindo inclusive a questão do turismo
religioso, do consumo e da peregrinação enquanto um caminho interior de
autoconhecimento.
O segundo capítulo fechará mais o foco de nossa pesquisa numa rota de
peregrinação específica: o Caminho de Santiago de Compostela. Inicialmente
faremos uma breve apresentação desta rota e dos vários caminhos de
Santiago. A seguir, abordamos quem foi Tiago, contaremos como se formou a
cidade de Santiago de Compostela e esta rota de peregrinação, chegando aos
dias de hoje, quando nos concentramos especialmente nos peregrinos
brasileiros, já que a pesquisa é sobre eles. No que se refere aos brasileiros no
Caminho de Santiago, abordaremos a influência de Paulo Coelho, a forma
como o estrangeiro vê o peregrino brasileiro e algumas estatísticas da ACACS
(Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago) colhidas entre o
ano 2000 e 2010 quanto ao perfil dos peregrinos. No item seguinte, abordamos
a questão da espiritualidade relativa ao Caminho de Santiago, o que envolve
temas como Nova Era, pluralismo religioso, e a formação da identidade
religiosa no mundo contemporâneo.
No terceiro capítulo abordamos a questão do sentido, inicialmente
procurando explicar o termo e, posteriormente, abordando a importância da
busca por sentido. Nesta passagem do texto, acrescentamos detalhes sobre a
forma como isso se dá no mundo contemporâneo (e que é bastante diferente
da maneira como ocorria na modernidade e na pré-modernidade).
A seguir, começaremos a segunda parte desta dissertação. No capítulo
4, referente ao método, abordaremos o caminho feito para a realização desta
pesquisa de mestrado. Inicialmente, descreveremos os procedimentos
seguidos, a saber, pesquisa bibliográfica e coleta de dados empíricos por meio
9
de entrevistas, depoimentos e trocas de e-mails com pessoas que tenham feito
a peregrinação a Santiago de Compostela, dados a partir dos quais
elaboramos um breve questionário, aplicado em 20 peregrinos. No item
seguinte, os participantes da pesquisa são apresentados ao leitor. Por fim,
apresentaremos os dados coletados e os analisaremos a luz das teorias
apresentadas nos capítulos teóricos. Faremos isso com três divisões principais
de análise. A primeira representaria o passado, e se refere às motivações e à
preparação para a peregrinação. A segunda, que identificamos como o
presente, está relacionada à peregrinação em si, ao percurso. Este sempre foi
o trecho narrado com mais detalhes pelos participantes, e pensamos que é a
parte do discurso em que se poderá observar o momento da mudança dos
valores, das identificações (ao tornar-se “peregrino”) e, portanto do início da
construção de um novo sentido para a vida (idéia que explicamos com maiores
detalhes ao longo da análise). Por fim, a última parte, referente ao futuro, é o
retorno, que geralmente é narrado em tom esperançoso de expectativa e de
planos para o futuro, destacando como aquilo que eles se tornaram
(identidade), os novos valores e o sentido encontrado mudou/mudará a forma
como eles percebem a vida e a si mesmos, bem como suas ações.
Por fim, constam as considerações finais da pesquisa. Este item trará o
fechamento da dissertação, com as conclusões acerca da parte teórica exposta
nos capítulos e da análise realizada a partir dos dados coletados
empiricamente.
10
PARTE I
11
Capítulo I:
Antes de partir, cheque o seu mapa
“Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui
buscar alguma coisa que eu nem saberia, e acho que
ainda não sei, explicar o que.” (B.D.T.)
Este capítulo inicial tem a pretensão de atuar como uma base para
aqueles que o seguirão. Da mesma forma que todo peregrino precisa de um
bom mapa, o presente capítulo é nosso “mapa” para a compreensão do
fenômeno pesquisado. Um pressuposto básico de toda ciência é que nada
pode surgir do nada. E, portanto, fenômeno algum é da forma que é a toa.
Segue um processo em que se constrói e se transforma ao longo de sua
história, até que se torne o que é no presente. Portanto, ao pensarmos no
fenômeno das peregrinações, devemos percebê-lo como algo que tem uma
história e um contexto sócio-cultural específicos, que o tornaram da maneira
como é hoje. Este capítulo nos guiará através desse processo de
transformação.
Visando explorar com maior eficiência o tema a que se propõe este
capítulo, optamos por dividi-lo em dois subcapítulos, sendo que o primeiro
abordará o significado de termos como “peregrinação”, “peregrino”, “romaria”,
etc., bem como a contextualização social e histórica desse fenômeno religioso.
Já no segundo subcapítulo, traçamos um panorama geral das peregrinações
no mundo contemporâneo, com destaque para suas relações com o turismo (e,
portanto, com o mercado e o consumo).
1.1- Peregrinos de ontem: significados e dados históricos:
Começaremos este texto com uma questão: por que unir significado e
história no mesmo texto? A idéia inicial era escrever dois textos: uma breve
introdução a respeito do significado e da diferenciação de termos como
“peregrino”, “romeiro”, etc., seguido de um segundo texto que abordasse a
história das peregrinações para, por fim, fecharmos este primeiro capítulo com
um texto abordando o fenômeno da peregrinação na contemporaneidade.
12
Entretanto, ao iniciar o processo de pesquisa dos termos, notamos que
significado e história são inseparáveis, e este é um exemplo bastante concreto
disso, pois muitas vezes a explicação etimológica de um termo traz consigo
dados históricos cruciais.
Iniciamos então estas explicações histórico-lingüísticas pelo termo
“peregrino”, já que esta é a personagem central de nossa pesquisa. Steil19
explica que o termo “peregrino” vem do latim peregrinus que significa
estrangeiro. Pereira20 afirma que “peregrinar” deriva dos termos latinos per, que
significa através, e ager, que significa campo, território, país. Assim, num
contexto romano, o peregrino é associado ao estrangeiro, isto é, aquele que
não é cidadão, não tendo os direitos deste. No Império Romano, contexto
social, histórico e lingüístico em que o termo surgiu, os peregrinos eram as
pessoas que estavam de passagem pelo território romano, não visando fixar-se
a ele, apenas viajando com o objetivo de chegar a algum outro lugar (com ou
sem conotações religiosas), qualquer que fosse a razão dessa jornada.
Quanto à diferenciação dos termos “peregrino” e “romeiro”, Valle21 afirma
que apesar de existirem ambas no idioma português e espanhol, no inglês e
francês só se usa o termo “peregrino”. Peregrino também é um termo usado
para se referir a quem se encontra com um outro após ter percorrido um
caminho, associando a idéia de caminho ao encontro com o outro (físico ou
espiritual). A partir desse encontro, o peregrino sairia profundamente
transformado.
De todo modo, voltando aos termos “peregrino” e “romeiro”, Valle22
explica que enquanto o termo “peregrinação” se refere ao estrangeiro, a quem
percorre terras desconhecidas enfrentando o desconhecido, “romaria” refere-se
a caminhos mais curtos, com características festivas e participação comunitária
marcante.
19
Cf. STEIL, Carlos Alberto. Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 30. 20
Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 34. 21
Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte –
Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 39. 22
Ibidem, pp. 39-40.
13
De acordo com Pereira23 apenas no século XI é que o termo
“peregrinação” passa a se referir a uma viagem de cunho sagrado, e é essa
conotação sagrada que a diferencia de outros tipos de viagem. Diferenciando
peregrinação de procissão, Vilhena24 afirma que na procissão, o sagrado sai
pelas ruas da cidade ou povoado, encontrando-se com o povo, sacralizando as
ruas e casas por onde passa, bem como o povo. Já na peregrinação, que
acontece fora dos limites da cidade, é o povo que vai a busca do sagrado.
Talvez por isso Steil25 afirme que a peregrinação se diferencia de outros rituais
religiosos por não ter a comunidade como referência. O autor também
diferencia peregrinação de romaria, sendo a peregrinação uma viagem mais
longa, rumo aos santuários mais importantes. Por outro lado, a romaria envolve
deslocamentos mais curtos, participação comunitária e aspectos festivos e
devocionais. Por fim, o autor sugere que ambos diferem do turismo religioso
porque, para o peregrino e o romeiro, a viagem tem conotação sagrada, já o
turismo está mais associado ao espetáculo.
De todo modo, independente dos termos utilizados, afirma Westwood26,
sempre está presente no fenômeno das peregrinações a idéia de movimento
rumo a algum lugar considerado sagrado, o que cria uma “coreografia
sagrada”. Portanto, antes prosseguirmos na abordagem das peregrinações, é
viável discutir como se constrói culturalmente um local sagrado.
De acordo com Rosendhal27, para o religioso, o mundo e a vida são
vistos de maneira sagrada. Esta visão permite viver numa realidade plena de
valores religiosos, e assim identificar locais qualitativamente diferentes uns dos
outros de acordo com esses valores e essa visão de mundo. Um lugar é
sagrado na medida em que lhe é atribuída a capacidade de colocar o ser
humano em contato com o transcendente, tendo símbolos, mitos e ritos como
mediadores desse contato. Assim, a construção do espaço sagrado é a
23
Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 34. 24
Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 21. 25
Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 33-35. 26
Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 66. 27
Cf. ROSENDHAL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica, p. 30.
14
reprodução da obra divina, tendo grande valor existencial para os membros do
grupo em questão, pois é sua referência.
A autora28 menciona ainda que os espaços sagrados e profanos estão
sempre sujeitos ao espaço social, sendo que na organização espacial, é o
sagrado que delimita e viabiliza o profano. Para que se passe de um plano para
o outro (do profano ao sagrado), é necessário um sacrifício, termo vindo do
latim sacra facere, isto é, tornar sagrado, o que demanda ritos em que o sujeito
ou o objeto se submetem a um ser superior. Os caminhos que levam aos
lugares sagrados (por exemplo, as rotas de peregrinação) são plenos de
sacrifícios. Por isso o caminho em si é visto como um rito de passagem. Uma
vez no espaço sagrado, o mundo profano é transcendido, possibilitando que o
ser humano se comunique com realidades que considera sagradas. Logo,
construir o espaço sagrado é uma forma de ordenar o mundo e, assim,
preenchê-lo de significados.
Para Vilhena29, o local para onde ruma o peregrino pode ser sagrado
(devido a acontecimentos históricos ligados à religião ou devido a
manifestações sobrenaturais) ou pode até mesmo ser a terra natal do
peregrino, o local de suas origens e que, por isso, é tornado sagrado para ele,
pois lá encontra suas raízes, reafirma suas pertenças, reforça laços, ou seja,
confirma a própria identidade.
O retorno ao local de origem, também marcado pelo encontro com Deus
e por uma nova visão de si mesmo (uma nova identidade) e da própria vida,
afirma Valle30, este é um aspecto muito relevante nas romarias e
peregrinações.
Dias considera que a peregrinação é a antecessora do turismo. De
acordo com o autor, séculos antes de Cristo, já havia entre os gregos
peregrinações a templos conhecidos, como o Oráculo de Delfos, vindas de
todo o mundo helênico.
28
Ibidem, pp. 32-34. 29
Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 19-20. 30
Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte – Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 33.
15
Na Idade Média, prossegue Dias31, houve uma grande alta nas viagens
de motivação religiosa, sendo que no ocidente cristão os principais destinos
eram Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela. Assim, de acordo com o
autor:
A popularização dessas viagens, principalmente no
Ocidente, fez com que se estabelecessem rotas e caminhos,
nos quais se dispunha de toda uma ampla infra-estrutura
com pousadas e hospedarias e inclusive hospitais para
oferecer refúgio e cuidados aos peregrinos, ao mesmo
tempo em que as ordens militares, particularmente os
templários, tinham suas casas ao longo das rotas para
defendê-los.
Alem disso, Gazoni32 acrescenta que durante a Idade Média as
peregrinações eram estratégias políticas para ocupar e defender territórios
distantes. Para o autor33, “as peregrinações e as cruzadas foram os principais
motivos das viagens medievais”. Com isso, o culto a diferentes santos foi
ampliado.
No século XVI, com a Reforma Protestante, muitas das rotas medievais
de peregrinação tiveram seu fluxo diminuído e terminaram inativadas, conforme
Westwood34, especialmente no norte da Europa. Isso provavelmente se deu,
pois na visão protestante, destaca Turner35, as peregrinações desperdiçariam o
tempo e a energia que poderiam ser colocados a serviço da divindade através
da adoção de um estilo de vida produtivo e “puro”.
31
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 19. 32
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 100. 33
Ibidem, p. 101. 34
Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 77. 35
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, 1975, p. 188.
16
Nesse mesmo século e no seguinte, informa Gazoni36, o aumento de
áreas urbanas acabou por criar um ambiente que favorecia comportamentos
inadequados ao cristianismo. Com isso, passaram a ser incentivadas
peregrinações a locais sagrados fora de cidades maiores.
Posteriormente, no século XIX, a falta de tempo decorrente da
reestruturação do trabalho levou as pessoas a usarem o período de férias não
apenas para o lazer, mas também para atividades religiosas. Com isso, até
hoje as peregrinações atraem as pessoas, afirma Gazoni37, porem agora
unindo à espiritualidade aspectos do lazer (diversão, recreação) e cultura. Hoje,
diz o autor38, a religião sai dos templos e se torna mais uma entre tantas as
opções de lazer, cultura e diversão. Dias39 vai mais além ao afirmar que se o
tempo gasto com a peregrinação é o tempo do lazer (em oposição ao tempo de
trabalho), então esta seria uma atividade de lazer, termo compreendido pelo
autor40 como “bem estar físico, intelectual e espiritual dos indivíduos”. Assim,
existem hoje em dia duas tendências: a de que aumente o tempo livre, bem
como a transferência das práticas espirituais cada vez mais para os momentos
de lazer. Com isso, conclui o autor41, cada vez mais o ser humano terá
possibilidade de dedicar-se às horas de lazer e bem estar, incluindo a
espiritualidade. Logo, para este Dias42, “os limites entre peregrinação e turismo
não são muito claros.
Entretanto, Steil e Carneiro43 definem que turista, peregrino e viajante
são categorias diferentes, pois vivenciam de maneiras diversas um mesmo tipo
de experiência, evento ou local, já que têm percepções diferentes dos mesmos
fenômenos. Assim, podemos pensar que o sentido atribuído aos fenômenos
por cada um a dessas personagens também será muito diferente. Significados
36
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 100. 37
Ibidem, pp. 100-101. 38
Ibidem, p. 124. 39
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 25. 40
Ibidem, p. 26. 41
Ibidem, p. 34. 42
Ibidem, p. 21. 43
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28
(1), 2008. Pp. 105-107.
17
históricos, religiosos e turísticos dialogam e se cruzam, viabilizando a
construção dessas peregrinações contemporâneas, como discutiremos no texto
que segue a este.
1.2- Peregrinos de hoje: entre a espiritualidade e o consumo:
Hoje a peregrinação se tornou um produto oferecido pelo mercado,
conforme Steil e Carneiro44. As transformações nas peregrinações começam a
acontecer quando pessoas religiosas passam a incorporar o turismo enquanto
experiência religiosa, colocando no campo do sagrado experiências relativas
ao lazer, ao consumo e ao marketing.
Steil e Carneiro45 também afirmam que desde o ano 2000, aumentou
drasticamente o número de pessoas que se deslocam para fazer
peregrinações, atraídos pelas idéias de transformação interior e de
aperfeiçoamento pessoal comumente atribuído a elas. Nesse contexto,
significados religiosos e turísticos dialogam e se cruzam, viabilizando a
construção desse modelo contemporâneo de peregrinação.
A fim de contextualizar o leitor nas transformações pelas quais as
peregrinações passaram no mundo contemporâneo, discutiremos agora
questões referentes à peregrinação relacionada ao turismo, ao mercado e ao
consumo.
Para Steil e Carneiro46, se antes o peregrino assumia os sacrifícios
ligados à peregrinação, enquanto a instituição religiosa o reforçava; atualmente
o peregrino confia na mediação da agência turística, pois é, antes de tudo, um
consumidor. Cabe apenas aos novos mediadores garantir recursos simbólicos
para que cada um percorra seu próprio caminho, concluem os autores.
Silveira47 afirma que a relação entre turismo e religião intensificou-se nas
últimas décadas do século XX e início do XXI. As fronteiras entre os dois
44
Ibidem, pp. 113-115. 45
Ibidem, pp. 106-107. 46
Ibidem, p. 116. 47
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 39.
18
conceitos são tão tênues que o termo “turismo religioso” transcendeu a esfera
do marketing, onde se originou, e passou a permear os discursos teóricos.
De acordo com Dias48, “turismo religioso” é o termo usado quando
pessoas se deslocam no espaço com motivações religiosas. Isso inclui
peregrinações, romarias, visitas a locais sagrados, festas, ou qualquer outro
tipo de atividade religiosa. Entretanto, o turismo religioso está sempre ligado a
outras formas de turismo, sobretudo o cultural.
Ainda assim, Dias49 prossegue em seu texto dizendo que “o peregrino (o
romeiro) não se sente como um turista e, embora utilize as instalações
turísticas, na realidade não apresenta o mesmo comportamento”. O autor50
explica que para o turista religioso, a motivação religiosa é um pretexto para
realizar a viagem, em que também se aproveita para visitar lugares de cultura e
recreação. Já a peregrinação está profundamente ligada a experiência
individual, vivências comunitárias e reflexões acerca da identidade.
Dias51 sugere ainda que haverá um grande crescimento do turismo
religioso, pois o ser humano sente cada vez mais a necessidade de ampliar
seus conhecimentos sobre o mundo e sobre si mesmo em sua condição
existencial.
Também Oliveira52 prevê que o turismo religioso estará cada vez mais
em evidência, destacando algumas características contemporâneas que
incentivam seu crescimento. O primeiro fator é a concepção holística de Deus,
ou seja, a noção de que Deus é um só e assim se pode usar qualquer nome e
imagem para se referir à divindade sem que isso configure uma heresia (com
isso, o turismo religioso poderia ser uma das faces desse encontro com a
divindade). O segundo fator é o destaque dado às práticas terapêuticas, o que
o autor compara a uma busca pelo “elixir da longa vida”, valendo-se disso para
sua divulgação. Por fim, é mencionada a religiosidade voltada para o feminino,
o que enfatiza a uma deusa e não a um deus, o que traz a “valorização da
48
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 17-18. 49
Ibidem, p. 22. 50
Ibidem, pp. 22-23. 51
Ibidem, p. 34. 52
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, pp. 75-77.
19
natureza, da terra, das festas e das identidades culturais dos povos”53. O
autor54 cita alguns fatores globais da contemporaneidade que evocam a deusa:
(...) a crise ecológica, a luta pela paz e pela tolerância, a
aliança de Estados em blocos internacionais e,
principalmente, a crescente presença da mulher nos
diferentes setores da economia e da política.
Ao mesmo tempo em que o ser humano é aparentemente colocado em
evidência pelas características que acabamos de citar, vivemos uma época em
que o mercado parece vir antes dos seres humanos. E, como afirma Gazoni55,
o turismo é um dos fenômenos mais expressivos de sociedades pós-industriais.
Em decorrência disso, afirma Dias56, locais de grande afluxo de turismo
religioso “apresentam dimensões motivadas pela propaganda e marketing, que
superam as manifestações de fé e as próprias motivações religiosas”.
Com isso, explica Silveira57, a religião e os lugares são transformados
em imagens (que são veiculadas em diferentes mídias) e, com isso, tornam-se
produtos que podem ser consumidos. Além disso, quando a religião passa a
ser imagem, é oferecida como um espetáculo, que pode ser visto/consumido,
sem que a pessoa precise se comprometer com seu conteúdo, consome sem
envolvimento.
Silveira58 prossegue afirmando que no turismo religioso os símbolos
sagrados são resignificados pelo mercado e pelo consumo. O turista é externo
à experiência religiosa, a vivencia como um fator cultural; enquanto o peregrino
é interno a essas experiências, vivenciando-as como fenômenos religiosos.
53
Ibidem, p. 77. 54
Ibidem, p. 77. 55
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 95. 56
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 35. 57
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 46-47. 58
Ibidem, p. 58.
20
Logo, peregrinos tradicionais e peregrinos turistas diferem, de acordo
com Germiniani59, não apenas na motivação, mas na mediação do sagrado por
elementos mercadológicos. E quando o mercado se torna mediador do
sagrado, continua a autora60, passa a selecionar através das condições
financeiras quem pode ou não ter acesso à determinada experiência religiosa.
Germiniani ressalta que a forma de exercer a fé entra cada vez mais em
sintonia com as ideologias individualistas que permeiam o mundo
contemporâneo.
Silveira61 explica que antes da Revolução industrial, viajar era distanciar-
se das relações estáveis da vida cotidiana e lançar-se ao desconhecido. O
próprio viajante organizava o roteiro e os procedimentos de sua viagem. Com a
industrialização e urbanização, o viajante perdeu essas funções, agora ele
apenas viaja. A organização ficou a cargo das agências turísticas, que
oferecem pacotes com rotas padronizadas aos viajantes (agora consumidores).
Pensando nisso, não podemos deixar de mencionar os roteiros de fé,
definidos por Dias62 como “caminhadas de cunho espiritual, pré-organizadas
num itinerário turístico-religioso”. A seguir, apresentaremos alguns desses
roteiros mais conhecidos no Brasil.
Steil e Carneiro63 destacam que:
Desde a virada do ano 2000, podemos perceber um número
significativo de pessoas que têm se deslocado de diferentes
pontos do país para realizar as peregrinações conhecidas
como Caminho da Luz (Minas Gerais), do Sol (São Paulo),
da Fé (São Paulo), das Missões (Rio Grande do Sul) e
Passos de Anchieta (Espírito Santo), atraídos, entre outros
59
Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 127. 60
Ibidem, p. 132. 61
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 46-47. 61
Ibidem, p. 63. 62
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 33. 63
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 107.
21
motivos, pelo ideário de transformação interior e
aperfeiçoamento pessoal que normalmente é atribuído a
esse tipo de peregrinação, assim como pela possibilidade de
refazer, em terras brasileiras, a experiência vivida por muitos
de seus idealizadores ao fazerem a peregrinação a Santiago
de Compostela, na Espanha, ou como um treinamento para
sua posterior realização.
O Caminho do Sol, que vai de Santana do Parnaíba a Águas de São
Pedro, no interior paulista, foi abertamente inspirado no Caminho de Santiago
de Compostela. Dias64 afirma que o caminho, que tem o apoio da Igreja
Católica, termina em um altar a Santiago de Compostela, o primeiro feito fora
da Espanha. Steil e Carneiro65 explicam que, de acordo com os idealizadores
do caminho, o altar se justifica porque a cidade de Águas de São Pedro foi
fundada no dia 25 de julho, mesmo dia em que se comemora o nascimento de
Santiago. A imagem de Santiago foi doada por um hospitaleiro emblemático de
um dos albergues do Caminho de Santiago em 2001, quando o Caminho do
Sol foi iniciado.
De acordo com o site Caminho do Sol66, para percorrer o caminho, que
possui cerca de 240 quilômetros, leva-se em torno de 12 dias a pé ou 3,5 dias
de bicicleta. É preciso antes assistir a uma palestra de orientação, e então
efetuar a inscrição, que inclui pernoites e refeições. Na maioria dos casos, o
caminho é realizado em grupos. Existe ainda a opção de realizar o Caminho do
Sol apenas aos finais de semana, de modo que durante a semana a pessoa
pode retornar ao seu local de moradia e ter suas atividades cotidianas,
retornando no início do final de semana ao ponto onde o caminho fora
interrompido na semana anterior. Assim como no Caminho de Santiago de
Compostela, as direções do percurso são indicadas por setas amarelas e o
64
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS,
Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 33. 65
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 114. 66
Cf. Caminho do Sol. Disponível em: (http://www.caminhodosol.org).
22
peregrino tem uma credencial que é carimbada ao longo do Caminho e que lhe
possibilita receber, ao final, um certificado da peregrinação.
Também o Caminho da Fé, que percorre cerca de 497 quilômetros entre
Tambaú e Aparecida do Norte, foi inspirado no Caminho de Santiago, de
acordo com o site67 que faz sua divulgação. Este caminho, que também conta
com o apoio da Igreja Católica, foi criado não apenas como tentativa de
reproduzir no Brasil algo semelhante ao Caminho de Santiago, mas também
com a finalidade de dar alguma estrutura à caminhada das pessoas que já
peregrinavam a Aparecida. O certificado da peregrinação pode ser recebido
mediante a apresentação da credencial com os carimbos recebidos ao longo
do percurso. A sinalização também é feita por setas amarelas. As partidas são
diárias, e os peregrinos são livres para caminhar como quiserem (sozinhos ou
em grupos). A pé, o caminho leva entre 17 e 20 dias, e de bicicleta, entre 8 e
10.
O Caminho da Luz, localizado em Minas Gerais, tem como início a
cidade de Tombos e termina no Pico da Bandeira, atravessando
aproximadamente 200 quilômetros, de acordo com o site Caminho da Luz68. A
caminhada leva em torno de 7 dias. O tempo diminui se o percurso for feito de
bicicleta (4 dias) ou a cavalo (4 ou 5 dias). O discurso relativo a Nova Era é
bastante evidente nos ideais do Caminho da Luz, como se pode observar no
mesmo site:
A rota é carregada de um magnetismo que fascina a todos
aqueles que têm uma sensibilidade aguçada, pois sua força
telúrica abre inúmeros portais energéticos, os quais atiram
os caminhantes numa viagem que ultrapassa a barreira do
tempo.
No início do Caminho da Luz o peregrino também recebe uma credencial
a ser carimbada nos locais de pernoite. A credencial lhe garante passe livre
pelas propriedades privadas cortadas pelo caminho, bem como o certificado ao
fim da peregrinação. Também esta rota é sinalizada por setas amarelas. Para
67
Cf. Caminho da Fé. Disponível em: (http://www.caminhodafe.com.br) 68
Cf. Caminho da Luz. Disponível em: (http://www.caminhodaluz.org.br)
23
percorrê-lo, é necessário efetuar a inscrição e pagar a uma taxa (como nas
outras rotas brasileiras anteriormente abordadas). Pode ser percorrido sozinho
ou em grupos. O Caminho da Luz foi declarado Patrimônio Cultural do Estado
de Minas Gerais em 2009.
O caminho conhecido como Passos de Anchieta, que vai de Vitória a
Anchieta percorrendo 100 quilômetros começou a ser utilizado como rota de
peregrinação em 1998 (ano em que se comemorou o quarto centenário da
morte de Anchieta), ao ser idealizado por um empresário e um jornalista após
haverem percorrido o Caminho de Santiago. Especulações sobre a possível
canonização do Padre José de Anchieta contribuíram para que esse projeto
fosse concretizado, de acordo com Gazoni69.
De acordo com o site da Associação Brasileira dos Amigos dos Passos
de Anchieta70 (ABAPA), a trilha compreende o percurso de 100 quilômetros que
o jesuíta percorria quinzenalmente. Pode ser percorrida em qualquer época do
ano, entretanto, os idealizadores a conceberam como uma caminhada anual, a
ser percorrida no feriado de Corpus Christi, compreendendo que, sendo um
feriado nacional de 4 dias (tempo gasto no percurso), haveria maior demanda
para percorrê-lo.
De acordo com o mesmo site, a peregrinação pode ser feita a pé, de
bicicleta, a cavalo ou navegando (margeando a orla de caiaque, Wind surf,
barco a vela ou a remo, entre outras embarcações). A própria orla serve de
sinalização ao caminho, que também conta com placas de sinalização. É
necessário fazer inscrição para percorrer os Passos de Anchieta, e a ABAPA
vende pacotes turísticos com a finalidade de “resguardar o conceito do projeto”,
bem como por razões de segurança aos peregrinos.
Quanto ao Caminho das Missões, de acordo com Steil e Carneiro71, o
trajeto é feito através de antigas estradas que conectavam as missões
jesuíticas. Ao longo do trajeto encontram-se três patrimônios culturais (sítios
69
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 97-98. 70
Cf. Associação Brasileira dos Amigos dos Passos de Anchieta (ABAPA). Disponível em: (http://www.abapa.org.br) 71
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 115.
24
arqueológicos de São Nicolau, São Lourenço e São João Batista) e um
patrimônio da humanidade (São Miguel Arcanjo). Esses lugares são com muita
freqüência descritos como “sagrados” e “cheios de energia”, sendo que o guia
geralmente convida as pessoas a colocarem as mãos nas ruínas para receber
bons fluídos. A peregrinação é realizada conforme a pessoa adquire um pacote
turístico.
De acordo com o site Caminho das Missões72, as estradas conectam 30
antigas missões, e existe o projeto de ampliar o caminho para que englobe a
todos eles, passando pelo Brasil, Argentina e Paraguai. Atualmente, o caminho
engloba 7 missões, e podem ser feitos trajetos de 3, 7 ou 13 dias a pé,
percorrendo respectivamente 72, 170 ou 325 quilômetros. Há também opções
para realizar o percurso de bicicleta. Cada peregrino recebe uma credencial
onde são colados adesivos que confirmam a passagem pelos locais de
pernoite, quem passar pelo menos pelos três últimos locais tem direito ao
certificado, em português e guarani.
Como demonstramos, próximo ao ano 2000 surgiram inúmeros
caminhos pelo país (além dos citados, existem outros, como o a rota do
imigrante e a estrada real), bastando que cada peregrino escolha e percorra o
seu caminho.
Afirma Oliveira73 que a escolha de um caminho, literal ou discursivo, “é
absolutamente mediada pela eficiência simbólica dos meios de comunicação, e
não pela liberdade ou pela autonomia de consumidor”.
Steil e Carneiro74 ainda chamam a atenção para o fato de que a
peregrinação é também física, e não apenas espiritual. Desta maneira, o
pacote turístico, a infra-estruturara e os grupos que atendem os peregrinos ao
longo do caminho são elementos que trazem segurança ao sujeito
contemporâneo, o qual notamos ser acostumado a agir no mundo como um
consumidor, e não como alguém que precisa se sacrificar em prol da elevação
espiritual, da maneira como acreditava o ser humano pré-moderno. Entre os
72
Cf. Caminho das Missões. Disponível em: (http://www.caminhodasmissoes.com.br) 73
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 72. 74
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era: Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, pp. 116-117.
25
peregrinos, o que legitima a peregrinação é o grau de imersão na experiência,
desprezando o que possa se associar ao mercado e vendo a peregrinação
como uma experiência de despojamento.
Ainda assim, os autores consideram a peregrinação e o turismo não
como opostos, mas como modalidades de movimento que proporcionam aos
sujeitos contemporâneos um momento de reflexão sobre suas experiências e a
construção de sentido para a existência.
Gostaríamos de interromper a crítica na qual vínhamos trabalhando para
fazer uma breve reflexão. O sentido não é meramente atribuído, antes, deve
ser construído (pelo próprio sujeito) para que seja algo realmente duradouro,
para que possa ser encarnado, “vestido” pelo sujeito em questão. E ainda, o
ser humano só se tornaria um sujeito a partir do momento em que houvesse a
ação primordial de construir sentidos (para o mundo, para si mesmo e para sua
existência).
Quanto ao sentido de ser peregrino hoje, Steil e Carneiro75 definem
como ponto crucial a popular metáfora de percorrer um caminho interno e
individual em busca do “verdadeiro eu”. Além disso, afirmam os mesmos
autores76 as motivações dos peregrinos contemporâneos unem interesses
turísticos, místicos, culturais, históricos e ecológicos. Isso não é visto com
estranheza pelos peregrinos, pois as fronteiras desses campos são, na
contemporaneidade, bastante tênues. Se na modernidade a relação entre
religião e mercado, bem como colocar a religião como uma questão particular
eram vistas de forma problemática, hoje isso cada vez mais passa a ser visto
como um direito.
Assim, como afirma Silveira77, só existe turismo religioso porque o ser
humano, enquanto ser religioso, tornou-se um turista a passear por diferentes
religiões e movimentos de expressão espiritual.
Devido a tais fatores, Steil e Carneiro78 defendem que atualmente a
peregrinação é uma prática típica de movimentos Nova Era. Os caminhos são
75
Ibidem, p. 112. 76
Ibidem, p. 116. 77
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 85.
26
marcados por características ecológicas, históricas, religiosas e culturais, unem
valores tradicionais e contemporâneos, religiosos e turísticos. Outro ponto que
levam os autores a esta conclusão são certas características da Nova Era
muito presentes nos peregrinos: busca espiritual contínua, que se expressa em
um estilo de vida no qual predomina uma visão holística, mística, ética e
estética da realidade e da vida. Há também o desejo de uma nova consciência
religiosa e a busca por desenvolver uma espiritualidade livre e criativa, um
espaço sagrado subjetivo (ou, podemos questionar, seria esta a sacralização
da subjetividade?). As peregrinações podem proporcionar experiências
religiosas individuais, incentivando a busca por um ideal de si mesmo e o culto
à subjetividade, tão freqüente no mundo contemporâneo e em manifestações
da religiosidade associada à Nova Era.
Hoje, independente da crença ou pertença religiosa, os caminhos em si
(e não o local de chegada ou os objetos de culto) são preenchidos pelos
peregrinos de sentido mágico, sobrenatural e transcendente, e que, ao mesmo
tempo, permitiriam um encontro consigo mesmo. O sagrado está no caminho,
no movimento, na ação. Além disso, no contexto atual, a religião é comumente
vista como uma experiência mística particular, assim, seus elementos
mediadores não são necessariamente preenchidos pelo sagrado institucional
adquirido numa comunidade de crenças e valores partilhados.
Ainda assim, Steil e Carneiro79 dizem que:
(...) a presença da Igreja Católica, com seus padres
abençoando os peregrinos no início ou no fim do caminho, é
um ponto de referência sólido.
Outro tópico que precisa ser abordado ao discutir as peregrinações é o
da mobilidade, o que discutiremos com base em Bauman80. Entretanto, a
noção de mobilidade no mundo contemporâneo só pode fazer sentido quando
78
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era: Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 121. 79
Ibidem, p. 116. 80
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade. In: Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 110.
27
se compreende o que torna possível o movimento. A resposta, para o autor,
está no tempo. Atualmente ocorre a destemporalização do espaço social, ou
seja, não existe tempo algum além de um longuíssimo presente. Na
modernidade, o espaço foi projetado no tempo, que ganhou direção, tornando-
se um itinerário. O tempo ganhou, assim, a noção de progresso, corre do
obsoleto ao atual, rumo ao desenvolvimento. Hoje, entretanto, o tempo vem
cada vez mais perdendo suas características de espaço, e para Bauman81 isso
faz com que a mobilidade entre em evidência. Portanto, o desafio do sujeito
contemporâneo deixa de ser formar uma identidade (desafio do sujeito
moderno), mas sim impedir que a identidade se fixe, não permitir a ela aderir
ao corpo depressa demais. “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é
fazer a identidade deter-se, mas evitar que ela se fixe”, afirma o autor82.
Após essa explicação sobre a noção de tempo e a mobilidade no mundo
contemporâneo, Bauman83 se dedica a explicar as formas de mover-se por
este cenário, isto é, as personagens emblemáticas deste contexto social.
Assim, o autor estabelece o turista e o vagabundo como metáfora das posturas
contemporâneas.
Turistas e vagabundos são as metáforas da vida
contemporânea. Uma pessoa pode ser (e freqüentemente o
é) um turista ou um vagabundo sem jamais viajar
fisicamente para longe. (...) sugiro-lhes que a oposição entre
turistas e vagabundos é maior, a principal divisão da
sociedade pós-moderna.
Para Bauman84, o turista é o sujeito pós-moderno idealizado: nunca se
fixa a nada, sua mobilidade o protege das dificuldades de estar fixo a um lugar,
pois não é preciso que ele se engaje ou se envolva com nada, está fora e
dentro ao mesmo tempo (presente). Para o turista, o mundo é dócil e flexível,
sem traços permanentes. O tempo se torna uma sucessão de presentes,
muitas vezes desvinculados uns dos outros, e que trazem consigo suas
81
Ibidem, pp. 113-114. 82
Ibidem, p. 114. 83
Ibidem, p. 118. 84
Ibidem, pp. 114-117.
28
próprias chaves de interpretação. Ele está sempre em movimento e sua viagem
não tem um rumo certo ou um ponto de chegada: o turista muda de lugar
sempre que há desejo ou necessidade de fazer isso. Assim, nenhuma
configuração se mantém por muito tempo, o que lhe dá um sentimento se
segurança, de estar no controle, identificada (na opinião deles!) como liberdade
e autonomia. Entretanto, diz o autor, ao deixar as incertezas de uma vida fixa
para trás, o turista acaba criando ainda mais incertezas. Quando trancada pelo
lado de fora, a casa é um sonho (ter um lugar acolhedor para retornar), porém
quando trancada por dentro, aos olhos do turista, a casa se transforma numa
prisão.
A outra postura metafórica do sujeito contemporâneo é o vagabundo,
oposto ao turista. De acordo com Bauman85, o vagabundo não gosta de vagar
e não desejava isso para si, o faz apenas por falta de opções. Assim, se para o
turista o mundo é atraente, para o vagabundo é um local inóspito. Para ele, a
liberdade significa não precisar viajar, ter um lar e poder estar nele, pois ser
turista e viajar é uma escolha, já ser um vagabundo é a ausência de poder de
escolha, um acaso quase que imposto. Bauman86 explica que:
(...) pode-se viver com as ambigüidades da incerteza que
satura a vida do turista só porque a certezas da
vagabundagem são tão inequivocamente asquerosas e
repugnantes.
Além disso, é preciso acrescentar que o peregrino e o vagabundo são de
mundos diferentes, pois o peregrino tende a se remeter ao mundo moderno,
enquanto o vagabundo é a outra face do turista. Para Bauman, na
contemporaneidade, todos estão em algum lugar entre o turista e o vagabundo,
sendo que nosso lugar no mundo é dado pelo grau de liberdade do qual
gozamos (ou não) para escolher nossos caminhos. A mobilidade é, hoje, uma
realidade que afeta a vida das pessoas de forma drástica e permanente.
85
Ibidem, pp. 117-118. 86
Ibidem, p. 119.
29
Apenas com esta compreensão ela pode ser interpretada como metáfora da
vida.
Vilhena87 compara o peregrino ao imigrante, ambos motivam sua
caminhada em fatores como problemas no local de origem (conflitos, falta de
trabalho, disputas por poder, epidemias, perseguições, etc.), desejo de
aventura e busca pelo novo, curiosidade pelo desconhecido, sonhos e
esperanças de uma vida melhor. Tanto as peregrinações quanto as migrações
trazem ao caminho por onde passam e ao lugar aonde chegam influencias
culturais, lingüísticas, tradições e miscigenação.
Steil88 diz algo semelhante ao comparar as peregrinações ao texto
bíblico do Êxodo, que narra a experiência da saída dos hebreus do Egito rumo
à Terra Prometida.
Valle89 explica que as peregrinações estão presentes em todas as
religiões. No catolicismo latino americano, elas se tornaram junto com as festas
uma das maiores expressões da religiosidade popular. Já as igrejas
protestantes se adaptaram às sociedades urbanas contemporâneas
organizando peregrinações à Terra Santa e marchas com imensas
concentrações de pessoas, afirma o mesmo autor90. Isso demonstra a grande
importância desse tipo de manifestação para a consolidação da fé, mesmo no
contexto atual.
Vilhena91 destaca três fases da peregrinação/migração: a saída
(preparação, o início da peregrinação se dá bem antes da partida propriamente
dita, em seu anúncio, preparo e planejamento), o deslocamento (ação,
comparada pela autora a uma grande e arriscada busca, pois embora a meta
seja desejável, o caminho até ela é cheio de perigos e conflitos – fome,
cansaço, solidão, perigos da natureza, demônios...) e a chegada (alcance da
87
Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 13-17. 88
Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 48. 89
Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte –
Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 38. 90
Ibidem, p. 32. 91
Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 16-17.
30
meta, superação). Também Valle92 afirma que o planejamento da peregrinação
deve começar antes da saída, prolongando-se ao longo do percurso, para que
o local de chegada seja também um novo local de partida em direção ao
aprofundamento na comunidade de origem.
O peregrino experimenta três tempos: situa-se no presente, mas revive o
passado e mantém seu foco no porvir (futuro). Para Vilhena93, o peregrino, ao ir
ao encontro do sagrado, vive em constante mudança temporal, espacial e
mesmo mudanças em seu interior, resultando em algo que “confere e comunica
sentido à vida” (p. 26).
Steil e Carneiro94 afirmam que rituais como as peregrinações entram em
conflito constante com o cotidiano dos grupos sociais, construindo “valores que
dão algum sentido às práticas mundanas e sistemas estabelecidos” (p.118)
Steil95 afirma que a peregrinação é uma experiência com grande
capacidade de gerar transformações (pessoais e sociais). De forma
semelhante, Carneiro96 equipara a peregrinação a uma jornada que é
simultaneamente interior e exterior, um rito que envolve comportamento,
sentimento e o discurso da pessoa, promovendo transformações. Também
Germiniani97 afirma que a peregrinação leva o sujeito a, através do encontro
com o outro, refletir sobre os valores, idéias e instituições que direcionam sua
vida.
Steil98 cita Eade e Sallnow, para quem a peregrinação pressupõe um
“vácuo religioso”, que pode envolver diferentes sentidos, práticas, discursos
92
Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte – Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 44. 93
Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 26. 94
Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28
(1), 2008. P. 118. 95
Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 30. 96
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 97
Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 125. 98
Cf. EADE, John e SALLNOW, Michael J, Contesting the sacred: the anthropology of Christian pilgrimage, apud STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes
31
religiosos e políticos, preenchendo a demanda por sentido do peregrino. Além
disso, de acordo com esses autores, a peregrinação é uma prática religiosa
que tem facilidade em incorporar a diversidade de cultos e discursos
acomodando práticas e perspectivas diferentes, sentidos diferentes, podemos
dizer, num mesmo símbolo/espaço.
De acordo com Germiniani99, quando feita à maneira tradicional, a
peregrinação pode ser interpretada como uma crítica ao modo de vida
contemporâneo, não pelos dogmas religiosos ou morais que talvez estejam
presentes, mas sim pela performance dos corpos, emoções e afetos. Já o
turismo, ao contrário, sutilmente busca reintegrar a pessoa ao modo de vida
contemporâneo, através de valores como higiene, “bom comportamento”,
condições materiais, consumo, etc.
Citaremos Oliveira100 para concluir este capítulo. Ele menciona que
quando o devoto se torna um viajante, o que só é percebido quando o viajante
se torna um turista, “os caminhos tornam-se tão fundamentais quanto os
destinos”. Este breve trecho descreve bem o que discutiremos nos capítulos
que seguem.
etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 34. 99
Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 126. 100
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 21.
32
Capítulo II
O Caminho de Santiago de Compostela
“E assim, o Caminho é um mar de encontros e
desencontros, reencontros...” (L.)
O ato de peregrinar, como já dissemos anteriormente, é uma forma
muito antiga de expressão religiosa, e está presente nas mais diversas culturas
e religiões. Após tratar das peregrinações de maneira generalizada no capítulo
anterior, neste será focado especificamente a peregrinação a Santiago de
Compostela.
De acordo com Carneiro101 cristianismo possui três rotas principais de
peregrinação: o Caminho de Roma, percorrido por romeiros e que leva até o
mausoléu de São Pedro; o Caminho de Jerusalém, percorrido por palmeiros e
que leva a locais considerados sagrados por terem uma participação
importante na história de Jesus; e o Caminho de Santiago de Compostela,
percorrido por concheiros ou peregrinos, e que leva ao túmulo de São Tiago, o
Maior, apóstolo de Jesus, primeiro a levar o cristianismo à Europa e padroeiro
da Espanha. De acordo com Westwood102, os peregrinos eram também
chamados de concheiros por terem uma concha como símbolo, devido aos
primeiros peregrinos se desviarem do Caminho pelo litoral da Espanha, pleno
de conchas, a fim de escaparem de bandidos e ladrões.
É interessante destacar que o Caminho de Santiago de Compostela não
é uma rota única, mas sim uma malha de caminhos. Alguns, por serem mais
famosos e receberem maior número de peregrinos, oferecem melhor estrutura
(por exemplo, albergues), enquanto outros, menos conhecidos, são mais
pobres de recursos. Em certos pontos do trajeto, os caminhos se unem uns aos
outros, até que na cidade de Puente La Reina, o que é sinalizado por uma
placa e uma estátua de bronze representando um peregrino. Com base em
Nogueira103, podemos descrever os diversos caminhos:
101
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 261. 102
Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 69. 103
Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. pp. 24-29.
33
Caminho Francês: também conhecido como Caminho Real. Esta é a rota
em que a maioria das pessoas pensa ao ser mencionado o Caminho de
Santiago de Compostela, já que é o mais divulgado na mídia. É formado
pela união de três rotas que se unem a 50 quilômetros da fronteira com
a Espanha, e que dão acesso a peregrinos de diversas partes da
Europa. Entretanto, geralmente os peregrinos iniciam esta rota na
fronteira entre os dois países, seja do lado espanhol, em Roncesvalles,
seja do lado francês, em San Jean Pied Du Port, o que dá ao peregrino
um dia extra de caminhada através dos Pirineus. Além de ser o caminho
mais conhecido, este também é o mais movimentado e o com maiores
estruturas para os peregrinos.
Caminho Aragonês: recebe este nome porque os peregrinos que
seguem este caminho chegam à Espanha pela província de Aragon,
fronteiriça com a França. Parte de Arles, cidade do sul da França, e se
une aos demais caminhos em Puente La Reina. Ao todo, de Arles a
Santiago de Compostela, percorre-se mais de 800 quilômetros.
Caminho do Norte: este caminho só passou a ser utilizado no século
XIII, e até hoje é pouco conhecido. Sua infra-estrutura é precária e o
terreno é extremamente montanhoso, tornando o caminho muito difícil.
Este caminho acompanha o Mar Cantábrico, no norte da Espanha. Tem
por volta de 765 quilômetros contando a partir de San Sebastián, onde
entra em território espanhol; e se une ao Caminho Francês em Palas de
Rei.
Via da Prata: é o caminho que vem do sul da Espanha, partindo de
Sevilha e percorrendo em torno de 1000 quilômetros até Santiago de
Compostela. Este caminho vem sendo muito procurado por pessoas que
preferem evitar o Caminho Francês, já saturado de peregrinos. O
peregrino pode optar por encontrar o Caminho Francês em Astorga ou
caminhar em direção ao oeste, rumo a Ourense.
Caminho Português: atravessa Portugal de um extremo a outro. É mais
usado por peregrinos portugueses do que pelos de outras
nacionalidades. Uma peculiaridade é que na cidade de Porto, o caminho
se ramifica em dois: um segue pelo interior e outro pelo litoral, tornando-
34
se um só novamente na fronteira com a Espanha. Da fronteira entre os
dois países até Santiago de Compostela, o Caminho Português percorre
pouco mais de 100 quilômetros.
Por fim, tendo sido apresentada a malha viária que forma o Caminho de
Santiago (ou os Caminhos de Santiago), passaremos a abordar sua história,
pois compreendemos que não se pode ter uma percepção clara de um
fenômeno social (no caso, as peregrinações a Santiago de Compostela) sem
que se conheça o contexto em que tal fenômeno surgiu e se desenvolveu.
2.1- A história do Caminho e a história de Tiago:
Steil104 considera, como já afirmamos anteriormente, que Santiago de
Compostela é um dos principais centros de peregrinação dos dias de hoje.
Quanto a sua importância histórica, Franco Junior105 menciona que a Península
Ibérica esteve isolada do contato com o restante da Europa pelos Pirineus,
cadeia montanhosa que separa a Espanha da França. Assim, complementa
Pereira106, a trilha de peregrinação a Santiago de Compostela foi uma
importante forma de contato com outros povos, contribuindo com o intercâmbio
de conhecimentos, técnicas e bens.
Apesar de se saber pouco sobre a história dos apóstolos após a
crucificação de Jesus, Carneiro107 cita tradições orais da Alta Idade Média,
segundo as quais Tiago, o Maior, teria desembarcado na Galícia e seguido
através de estradas romanas até Zaragosa. Sete anos depois, não tendo
conseguido converter muitas pessoas ao cristianismo, voltou à Terra Santa em
companhia de dois discípulos: Teodoro e Atanásio. De acordo com o site da
Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela
104
Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo. 105
Cf. FRANCO JUNIOR, Hilário, Peregrinos, monges e guerreiros: feudo-clericalismo e religiosidade em Castela medieval, passim. 106
Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 42. 107
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 261 – 262.
35
(ACACS)108, ao chegar à Terra Santa, o apóstolo Tiago foi preso e condenado
à morte por decapitação a mando do rei Herodes Agripa, após um curto
período de pregação. Cumprida a sentença, seu corpo foi jogado fora dos
limites da cidade, e então Teodoro e Atanásio conseguiram resgatá-lo e o
levaram a um bosque próximo a Finisterra (local mais ocidental da Península
Ibérica, onde, na época, se acreditava ser o fim do mundo, daí o nome), pois
naquela região não havia perseguição aos cristãos, e lá o enterraram.
Carneiro109 conta que na década de 820, um eremita chamado Pelayo
encontrou o sepulcro de Tiago. Ele relatou ter visto uma intensa “chuva de
estrelas” por diversas noites seguidas, guiando-o até lá. Isso já havia sido
profetizado por um clérigo inglês do século VIII. Quando Afonso II, rei de
Astúrias soube do achado de Pelayo, imediatamente foi até lá, ordenando que
naquele local se construísse uma capela de pedras e um mosteiro que
abrigasse doze monges agostinos. O nome Compostela vem daí, e significa
“campo de estrelas”, em alusão ao que viu Pelayo. De acordo com o site da
ACACS110, quando a notícia chegou ao rei Afonso II, este mandou que
construíssem no local uma capela e um mosteiro, e logo se tornou o primeiro
peregrino a ir até lá.
Neste ponto, cabe abordar a questão do surgimento das cidades, para
que o leitor compreenda melhor o que vínhamos dizendo a respeito da
construção da cidade de Santiago de Compostela. Neste aspecto, nos
valeremos do texto de Rosendahl111, que defende que o templo é um dos mais
poderosos elementos que une cidade e religião, tanto que, em núcleos de
povoamento mais antigos, ocupava o lugar central.
Rosendahl112 afirma que o surgimento das cidades viabilizou que
diversas funções até então dispersas se concentrassem num espaço
delimitado, no interior de muralhas. Logo, as cidades não eram apenas um
108
Cf. O Caminho de Santiago: a história. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/historia.htm). 109
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 262. 110
Cf. O Caminho de Santiago: a história. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/historia.htm). 111
Cf. ROSENDAHL, Zeny. O sagrado e o urbano: gênese e função das cidades. In: Espaço e cultura, Rio de Janeiro, UERJ, n. 2, 1996. p. 26. 112
Ibidem, pp.28 – 29.
36
meio de expressar a ampliação do poder religioso e laico (as cidades eram
erguidas pela vontade divina de do rei/sacerdote, seus representantes oficiais),
mas também expressava a ampliação de todas as dimensões da vida, que se
tornava cada vez mais complexa. Além disso, a função das muralhas não era
apenas de defender de ataques de povos inimigos, mas também dos demônios
e dos espíritos dos mortos, que trariam consigo pragas e doenças, tanto que a
altura e a espessura das muralhas eram muito mais poderosas do que a
tecnologia de ataque de quaisquer povos da época. Na Idade Média essa
crença era muito forte, visto que os sacerdotes consagravam as muralhas para
que afastassem o que a autora chama como “os perigos do caos”, ou seja, os
demônios, as doenças e a morte, tornando a cidade por trás da muralha um
local sagrado.
Há diferentes tipos de cidades, como explica a autora113. Desde cidades
centrais, de distribuição de produtos ou voltadas para a prestação de serviços
até cidades especializadas, como as cidades portuárias, cidades universitárias,
cidades de recreação, cidades religiosas, etc. As cidades religiosas são
aquelas nas quais predomina a ordem espiritual, e geralmente são centros de
peregrinação ou de romaria.
A autora114 também afirma que em cidades-santuário, como é o caso de
Santiago de Compostela, muitos seres humanos são atraídos para lá não
motivados para estabelecer residência, mas por razões espirituais. Isso é o que
define as cidades-santuário, diferenciando-as das demais. Também é usual
que este tipo de cidade se torne foco de peregrinações, o que faz com que toda
a vida urbana se organize e se planeje visando promover funções relacionadas
aos peregrinos (templo, hospedagem, alimentação, etc.).
Rosendahl115 conclui o artigo afirmando que a religião tem um papel
fundamental no surgimento, desenvolvimento, transformação e declínio de
cidades.
Retornando à temática central desta dissertação, após a construção da
capela e do mosteiro, vieram os primeiros peregrinos, que chegaram a
113
Ibidem, p. 32. 114
Ibidem, p. 27. 115
Ibidem, p. 39.
37
Santiago de Compostela em 845, e em 862 o fluxo de peregrinos já era tão
intenso que o local já não comportava tantas pessoas.
Carneiro116 explica ainda que a descoberta do túmulo de São Tiago
também teve implicações políticas. No século IX, época da descoberta,
Astúrias era o último reino cristão da Península Ibérica. O sepulcro logo foi
transformado num símbolo de resistência e de luta contra os muçulmanos. No
mesmo período, surgiram inúmeras lendas a respeito disso, como na batalha
entre Astúrias e Córdoba (tomada pelos árabes), em que uma notícia
inesperada fez com que os cristãos recuperassem o ânimo: o próprio Santiago,
trajado como um cavaleiro medieval, estaria nas frentes de batalha lutando ao
lado dos cristãos. A partir daí criou-se a imagem de Santiago Matamoros,
venerada nas igrejas católicas e padroeiro da Espanha, passando a ser um
símbolo de resistência católica e defensor de seu povo contra os inimigos
(fossem os árabes na Idade Média ou os protestantes europeus no século XVI).
Com isso, o mito espalhou-se por todo o ocidente, atraindo devotos e
peregrinos de diversas regiões.
Coleman e Elsner117 relatam algo semelhante. De acordo com os
autores, Santiago de Compostela foi um dos principais centros de peregrinação
cristã da Idade Média. O fato de se localizar numa área de difícil acesso e do
caminho ser cheio de perigos apenas aumentava a atenção dada a esta rota,
bem como os méritos daqueles que a percorriam. Entretanto, a importância
atribuída ao Caminho de Santiago teve implicações políticas e militares.
Segundo os autores, a impressão que se tem é que a jornada dos restos
mortais de Tiago da Terra Santa a Compostela transformou sua imagem. O
gentil pescador se torna Santiago Matamoros, que é símbolo nacional espanhol
da oposição e resistência cristã à expansão islâmica. Enquanto na maior parte
do mundo cristão Tiago é representado pela imagem de um humilde peregrino
trazendo um cajado e uma concha, na Espanha ele é um bravo cavaleiro
medieval, com a espada numa mão e a cruz na outra. E isso certamente dava
coesão e confiança aos soldados cristãos que acreditavam que Tiago estaria
116
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 262 – 263. 117
Cf. COLEMAN, Simon e ELSNER, John. Pilgrimage: past and present in the world religion, p. 106.
38
lutando as mesmas batalhas que eles, ao lado deles, investido do poder de
Deus.
De fato, Oliveira118 afirma algo semelhante: “a presença mística do
apóstolo Tiago Maior na região teria dado a força decisiva para evitar a
conquista muçulmana em toda a península”.
Essa alteração na imagem de Tiago certamente não foi obra do acaso.
Imaginamos que certamente uma grande demanda por segurança seja uma
das mais prováveis razoes para que um pescador tranqüilo se transforme num
soldado. Dias119 confirma essa necessidade de segurança ao explicar que na
Idade Média as viagens eram dificultadas, pois se vivia uma realidade plena de
riscos (tantos riscos que, no século XII foi fundada a Ordem Militar de Santiago,
a fim de defender os peregrinos). Também Westwood120 afirma que esta era a
peregrinação mais árdua de toda a Europa e, para garantir sua segurança, os
peregrinos viajavam em grupos. Assim, pensamos que os perigos potenciais
colocavam o viajante numa condição de vulnerabilidade, em que ele precisaria
gerenciar satisfatoriamente os riscos aos quais estaria sujeito para que
pudesse resistir a eles. E, para isso, toda ajuda (divina e terrena) seria bem
vinda. Entre outras coisas, começaram a surgir guias sobre o Caminho. O
primeiro guia para o Caminho de Santiago de Compostela foi redigido em 1135,
pelo padre francês Aymeric Picaud, o que atraiu ainda mais peregrinos, relata
Carneiro121. Logo, em 1075 iniciou-se a construção da catedral que existe lá
até o presente.
Nessa mesma época, século XI e XII, afirma Gazoni122, se deu o auge
das peregrinações a Santiago de Compostela, que começou a declinas nos
séculos XIV e XV, devido à epidemia de peste negra, e guerras religiosas.
Assim, o túmulo de Tiago foi escondido e ficou perdido por 300 anos, entre os
séculos XVI e XVIII. No século XIX, quase não houve trânsito de peregrinos.
118
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 22. 119
Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 19-20. 120
Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 69. 121
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 263. 122
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 101-102.
39
Apenas em 1884 o Papa Leão XIII reconheceu os restos do apóstolo como
legítimos, após quatro anos de pesquisas científicas. Entretanto, foi a partir da
década de 1980 que as peregrinações a Santiago de Compostela voltaram com
grande força, devido ao contexto sócio-histórico que se vive, bem como à
grande divulgação do Caminho em diversas mídias.
Hoje em dia, afirma Oliveira123, Santiago de Compostela pode ser
considerado o mais famoso “complexo turístico-religioso do mundo cristão”. O
autor124 prossegue dizendo que este é um caso exemplar de turismo religioso,
pois possui uma grande infra-estrutura envolvendo hospedagem e a rede de
informações vai da Catalunha à costa atlântica, no norte, integrando
(...) diferentes culturas em um mesmo propósito simbólico:
saudar o santo responsável pela maior cruzada do ocidente.
Além disso, mobiliza um marketing internacional capaz de
promover este destino turístico em todas as frentes de
motivações possíveis: cultural, ecológica, mística, étnica,
etc.
Quanto aos peregrinos brasileiros, Nogueira125 afirma que Paulo Coelho,
com seu livro O diário de um mago, publicado em 1987, foi um dos primeiros a
divulgar o Caminho de Santiago de Compostela no país. Até então, a presença
de brasileiros era muito rara, causando estranheza aos espanhóis. Até então,
praticamente apenas europeus percorriam esses caminhos, os brasileiros
foram os primeiros a cruzar um oceano para fazer uma peregrinação.
Nogueira não tem dúvidas ao afirmar que algo muito forte deve motivar a
peregrinação dos brasileiros, visto que os custos, as distâncias, e a própria
burocracia de uma viagem internacional é maior. O autor pensa que as
experiências narradas por Paulo Coelho poderiam estar por trás dessa
motivação. A nós, parece que as experiências narradas por Paulo Coelho
poderiam agir como uma representação simbólica daquilo que muitos desses
123
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 21. 124
Ibidem, p. 23. 125
Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p. 57.
40
peregrinos esperam encontrar ao longo do Caminho: a magia. Ou melhor, a
solução mágica que mude suas vidas e os torne pessoas confiantes, dando-
lhes recursos simbólicos para lidar com os desafios e situações limite de suas
vidas, tornando-os capazes de preencher essas situações com sentido e
assim, superá-las ou legitimá-las.
Nogueira126 ressalta que a maioria dos leitores de Paulo Coelho
interpreta suas obras de maneira literal. Ainda assim, diz o autor, mesmo que
se questione o valor literário das obras de Paulo Coelho, não se pode negar a
grande contribuição para divulgar o Caminho entre brasileiros e estrangeiros, o
que foi reconhecido pelo governo da Galícia127, que em 25 de julho de 1997
ofereceu uma medalha ao escritor numa cerimônia em Santiago de
Compostela. Quatro anos após a publicação do livro, o número anual de
peregrinos brasileiros subiu de 12 para 900.
Apesar disso, continua Nogueira128, os peregrinos brasileiros ainda são
muito criticados na Espanha, pois são vistos sob o estereótipo da pessoa que
foi ao Caminho de Santiago unicamente motivado pelo livro de Paulo Coelho.
Seriam, nesta concepção, pessoas que associam o Caminho e a peregrinação
ao universo místico/esotérico, consumidores ávidos destas ofertas. Outro
motivo para as críticas é a popularização da imagem de Paulo Coelho como
mago. Porém isso não abala a busca pelo Caminho entre brasileiros e
estrangeiros, é bom ressaltar que as críticas não se referem ao Caminho de
Santiago de Compostela, nem às peregrinações de forma geral, mas sim ao
sentido que os peregrinos brasileiros dariam a esta peregrinação (no ponto de
vista espanhol, cabe destacar). A influência de Paulo Coelho é percebida no
discurso dos peregrinos mesmo quando ele não é mencionado (vários dos
participantes desta pesquisa, inclusive foram bastante categóricos ao afirmar
não haverem lido O diário de um mago), em termos como “ir atrás dos meus
sonhos”, “minha lenda pessoal” ou “buscar minha espada”.
126
Ibidem, p. 61. 127
Província espanhola onde se localiza a cidade de Santiago de Compostela. 128
Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p.64.
41
De toda maneira, hoje o Caminho de Santiago de Compostela está
saturado de peregrinos e de praticantes de esportes como o trekking, tal como
uma rota turística.
Carneiro129 afirma que em 1993, a UNESCO declarou Santiago de
Compostela patrimônio da humanidade. Isso foi parte do projeto de
revitalização da Galícia através do incentivo do turismo e da peregrinação a
Santiago de Compostela. Com isso, diz a autora, o número de peregrinos
aumentou de 4918 no ano de 1990 para 61418 no ano de 2001.
Quanto ao perfil desses peregrinos contemporâneos, o site da ACACS130
divulgou recentemente algumas estatísticas que apresentaremos agora,
baseadas nos peregrinos que retiraram suas credenciais nesta associação do
período entre os anos 2000 e 2010, num total de 7323 peregrinos. É importante
ressaltar que este não é o número total de peregrinos brasileiros nesse
período, visto que muitos outros tiraram suas credenciais em outros estados ou
mesmo na Espanha.
Quanto ao gênero, 42,8% eram mulheres e 57,2% homens.
Quanto ao meio de peregrinação, a maioria optou por fazer o percurso a
pé (87,2%). As credenciais são concedidas apenas a peregrinos que fazem o
Caminho a pé, de bicicleta ou a cavalo. Nesse período, nenhum dos peregrinos
computados nas estatísticas optou por realizar a peregrinação a cavalo.
Quanto à idade, 75% estão entre os 30 e os 60 anos, sendo que, dentro
dessa faixa etária, o grupo entre 41 e 50 anos é majoritário. Não pudemos
deixar de notar que o grupo com mais de 60 anos representa apenas 09% dos
peregrinos, o que nos chamou a atenção, visto que segundo uma das
participantes desta dissertação, é muito freqüente ver pessoas deste grupo
etário ao longo do Caminho, que, fora do Brasil, é conhecido por este aspecto.
O grupo com menos de 30 anos, do qual fazem parte os participantes desta
dissertação, somam 16,1%, sendo que os com menos de 20 anos não chegam
a somar 2%.
129
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 263. 130
Cf. Estatísticas. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/a-associacao-estatisticas.asp).
42
Ao contabilizar a rota percorrida, não foi surpresa constatar que 85%
fizeram o Caminho Francês, o mais divulgado na mídia e, portanto, o mais
famoso. O segundo mais percorrido foi o Caminho Português, com 08% dos
peregrinos. O Caminho Aragonês teve 03%, e os Caminhos do Norte e da
Prata contabilizaram 01% cada um. Os 02% restantes dos peregrinos
percorreram outras rotas não especificadas pela ACACS.
Por fim, a última estatística se refere ao fluxo de peregrinos por mês. Os
meses de maior movimento são os de primavera na Europa: abril (16,3%),
seguido por março (14,4%) e maio (13,3%). A seguir vêm agosto (12,7%), julho
(11,7%), setembro (9,9%) e junho (9,1%). Por fim, os meses menos escolhidos
pelos peregrinos que retiraram suas credenciais na ACACS foram fevereiro
(5,2%), outubro (2,6%), janeiro (2,8%), novembro (1,3%) e dezembro (1,1%),
os meses mais frios.
Outro aspecto interessante, ressaltado por Nogueira131 é quanto a
separação do cotidiano, da família, dos amigos, etc. ser muito marcante,
especialmente para os brasileiros. Termos como “abandonar” ou “largar tudo”
revelam o quanto essa separação foi penosa, bem como dá aos relatos certo
tom de aventura heróica. Frente a isso, podemos pensar que o “abandono” se
refere a deixar para trás uma vida conhecida e estável para deparar-se com
outra realidade, em que os medos, as inseguranças e o desconhecido
precisará ser o tempo todo enfrentado e domado.
2.2- Caminho físico ou caminho espiritual?
Nesta parte da presente dissertação, nos propomos a discursar não
apenas sobre o pluralismo religioso no Caminho de Santiago de Compostela,
no sentido de refletir sobre a mistura entre componentes (motivações,
emoções, experiências, etc.) laicas e espirituais.
131
Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. pp.95 – 97.
43
Rosendahl132 explica que algumas religiões, como o catolicismo, o
budismo e o islamismo incentivam as peregrinações como parte da prática
religiosa. Já outras, entre elas o protestantismo, as peregrinações não fazem
parte da vida religiosa. Logo, Carneiro133 questiona o que leva tantos
brasileiros, não necessariamente católicos (e, acrescentamos, não
necessariamente membros de alguma religião), a realizar esta antiga
peregrinação. O momento em que a peregrinação a Santiago de Compostela
retorna à cena, por volta da década de 1980, é marcado por outros dois
acontecimentos: a Nova Era e a formação da Nova Europa. A Nova Era foi a
responsável por inserir no Caminho a conotação de “um percurso literal e
metafórico (enquanto processo de „transformação pessoal e social‟), de „busca‟
de um novo sentido para a vida”, esclarece a autora134.
Assim, ao contrário dos principais locais de peregrinação católica, que
têm como centro a devoção às aparições de Maria, o culto à virgem e os
milagres, a peregrinação contemporânea à Santiago de Compostela além de
não ter tais pilares, não envolvem apenas elementos católicos, e nem se
mantém dentro dos limites da Igreja. Quem vai até lá não visa agradecer a um
milagre, nem alcançar uma graça específica, nem mesmo (apenas) prestar
homenagens ao apóstolo de Jesus. O objetivo não é o fim, mas o caminho em
si. Ao nosso entender, este pode ser um dos fatores cruciais para que o
Caminho de Santiago fosse adotado tão facilmente por pessoas que não
seguem o catolicismo.
Nogueira135 afirma algo semelhante no trecho que segue:
(...) nem todos os peregrinos possuem uma ligação religiosa
com a peregrinação jacobea, mas isso não indica que suas
experiências estejam isentas de uma atitude espiritual.
132
Cf. ROSENDAHL, Zeny. O sagrado e o urbano: gênese e função das cidades. In: Espaço e cultura, Rio de Janeiro, UERJ, n. 2, 1996. p. 33. 133
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 134
Ibidem, p. 265. 135
Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p.95.
44
Tais aspectos são muito bem descritos e explicados por Hervieu-
Léger136, que em seu texto visa esclarecer a recomposição do universo
religioso num mundo em que as instituições tradicionais estão em crise. Assim,
diz a autora137:
(...) o que caracteriza o tempo atual não é a mera
indiferença com relação à crença, mas a perda de sua
„regulamentação‟ por parte das instituições tradicionais
produtoras de sentido.
Com isso, a identidade religiosa já não é mais herdada, transmitida de
geração em geração, é uma questão de escolha individual. Tal situação
favorece que as pessoas façam uma bricolagem de crenças.
Ao abordar questões relativas a sociedades contemporâneas, Hervieu-
Léger disserta sobre sociedades tradicionais, o que ao nosso entender tornou
possível compreender como a história se desenrolou trazendo à tona as
situações sobre as quais estamos discutindo. Julgamos conveniente fazer o
mesmo. A autora138 conta que na pré-modernidade as igrejas eram os centros
de referência de uma comunidade. Não apenas um local voltado para o culto,
mas para tudo o que se referisse à comunidade, de maneira prática ou
simbólica. Portanto, as identidades religiosas eram herdadas. Hervieu-Léger139
destaca que esse movimento de transmissão de uma geração à seguinte faz
com que as crenças se fixem ao tempo, o que cria tradições. Hoje, isso
acontece cada vez menos, o que é um dos principais fatores que contribuem
para o enfraquecimento das instituições tradicionais. Ainda assim, a autora140
chama a atenção para o fato de que toda sociedade de alguma maneira tem
suas tradições, por mais adiantado que seja o processo de modernização, caso
contrário o tempo e a história não teriam um sentido de continuidade, seriam
apenas um grande e obscuro vazio. Além disso, mais a frente a autora141
136
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 08. 137
Ibidem, p. 09. 138
Ibidem, p. 15. 139
Ibidem, pp. 09 – 10. 140
Ibidem, p. 27. 141
Ibidem, pp. 38 – 40.
45
afirma que certas características das sociedades tradicionais se mantêm no
mundo contemporâneo num contexto não religioso. O exemplo citado é o da
esperança trazida pelo reino de Deus, que hoje é bastante forte na esperança
de uma sociedade igualitária. Com isso surgem as religiões seculares, sejam
elas a política, a ciência, a técnica, a arte, etc.
Outra transformação que se deu com a modernidade é a mudança nas
personagens referentes às identidades religiosas. Hervieu-Léger142 menciona
que a figura pré-moderna do praticante, que no cristianismo tradicional ocupava
um local de destaque, foi substituída por outras duas, sempre considerando a
questão da mobilidade: o peregrino e o convertido. Entretanto, segundo a
autora143, essas novas formas de identidade religiosa de maneira alguma
implicam necessariamente no desaparecimento, nem mesmo no
enfraquecimento de formas comunitárias da vida religiosa.
O mundo contemporâneo tal como o mundo tradicional, também tem
utopias e ideais. Só que hoje, o ideal é “um mundo inteiramente racionalizado
pela ação humana”, afirma Hervieu-Léger144, em que cada um cria a própria
realidade e as significações que darão sentido a si e à existência. A quebra
com a tradição e o advento da modernidade ocorre justamente com a
afirmação de que a vida de cada um é uma escolha individual. Ainda assim,
apesar de toda a racionalidade que permeia a condição moderna, no início da
década de 1970 fica claro que a modernidade secular era, na realidade, “uma
nuvem de crenças”145. Ou seja, com isso a autora146 quer dizer que a
modernidade não apenas não é desencantada, como a religião retorna à cena
pública nas sociedades ocidentais sob a forma da mobilização política e social
de crentes, movimentos sociais, aumento de formas de espiritualidades
paralelas e de novos movimentos religiosos. Isso é algo bastante significativo
frente ao panorama de racionalidade que a modernidade trouxe, pois as
crenças, ao contrário de teorias, não implicam em verificação e
142
Ibidem, p. 10. 143
Ibidem, p. 28. 144
Ibidem, p. 32. 145
Ibidem, p. 17. 146
Ibidem, pp. 21 – 22.
46
experimentação, elas são aceitas e mantidas de acordo com sua capacidade
de dar sentido à vida e às vivencias do sujeito que crê.
Hervieu-Léger147 afirma ainda que transformações drásticas deixam nos
sujeitos e nos grupos um sentimento de vazio, que se busca preencher. Com
isso entram em evidência os novos movimentos religiosos, as correntes
carismáticas, a literatura que busca inspiração no esoterismo e o retorno das
peregrinações. Outro aspecto moderno que contribui para isso, de acordo com
a autora148, é o individualismo, que paradoxalmente, produz pequenas
comunidades em que os membros se unem por afinidades sociais, culturais,
espirituais, etc.
Ao explicar esse processo de intensa transformação pela qual passou a
sociedade, Hervieu-Léger149 deixa claro que continuidade não é o mesmo que
imutabilidade. Ou seja, ao serem transmitidas de uma geração a outra, as
crenças e tradições podem ser questionadas e reinterpretadas, o que gera
mudanças na religião e, podemos acrescentar, na própria sociedade e nas
formas de vida dos sujeitos. Entretanto, hoje as lacunas entre uma geração e
outra já não são apenas decorrentes de tais ajustamentos feitos pela geração
mais nova. São rupturas culturais, que podem afetar a identidade, as relações
entre sujeitos e com o mundo. A autora150 prossegue afirmando que deixar de
ter uma identidade religiosa herdada e passar a ter de escolher a própria
identidade é um processo que só pode se concretizar quando há o que a
autora chama de “modernidade psicológica”, isto é, o sujeito passa a ser capaz
de pensar a si mesmo como individualidade e, aí sim, a buscar para si uma
identidade que transcenda as identidades herdadas ou pré-determinadas.
Feitas essas reflexões acerca das sociedades tradicionais e modernas,
Hervieu-Léger passa a apresentar três figuras representantes das identidades
religiosas, sendo a do praticante a forma tradicional e as do peregrino e do
convertido, modernas. Antes de apresentá-las, porém, acreditamos ser crucial
mencionar aquilo que a autora151 compreende por “identidade religiosa”.
147
Ibidem, pp. 40 – 41. 148
Ibidem, p. 51. 149
Ibidem, pp. 57 – 58. 150
Ibidem, pp. 60 – 61. 151
Ibidem, p. 89.
47
Identidade religiosa é aquilo que acontece no momento em que a subjetividade
se encontra com a objetividade de uma crença que faz parte de uma
comunidade na qual a pessoa se reconhece, se “identifica”. Isso não implica
necessariamente na adesão total a uma doutrina, ou em estar sob uma
instituição. Aliás, na condição moderna, geralmente a identidade religiosa está
vinculada à bricolagem, que permite que cada um molde as crenças a si
mesmo, da forma como achar mais conveniente.
Oliveira152 explica essa bricolagem de crenças feita hoje em dia
comparando-a a “religião do indivíduo”. Se na modernidade havia religiões
enquanto sistemas aos quais a pessoa aderia, hoje ocorre o oposto: são os
sistemas que se curvam às pessoas. A religião do indivíduo é um sistema
aberto, sempre em construção e em transformação, formulado e reformulado
de acordo com as escolhas e preferências de cada um. Silveira153 explica que
isso é possível pois no mundo contemporâneo as identidades são
desvinculadas da origem territorial ou cultural. Para o autor154 as religiões
produzem um espaço simbólico que com a globalização, vai muito além da
comunidade de origem, unindo-se a outras religiões e a outros fenômenos não
religiosos. Assim, para que se compreenda como é formada a identidade
religiosa no mundo contemporâneo, é preciso ter em mente esse contexto
social e ter a consciência de que nele, como afirma Germiniani155, passar por
diversas religiões, bem como sincretizá-las, são caminhos legítimos e
habituais.
Hervieu-Léger156 explica primeiramente a identidade religiosa à qual
chama de praticante. O praticante é por excelência a figura da pessoa religiosa,
conforme. Ainda é para muitos (e para as próprias instituições religiosas,
ressalta a autora157), o modelo de participação na religião através do qual os
152
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 75. 153
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 43. 154
Ibidem, p. 71. 155
Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 122. 156
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 81. 157
Ibidem, p. 85.
48
fiéis podem ser identificados. Neste modelo identitário, afirma a autora158, as
práticas são vistas como obrigatórias, fixas, rígidas, regidas pela instituição e
repetida com freqüência regular. Além disso, a comunidade desempenha um
papel muito relevante, e as práticas são territorializadas (templos e paróquias,
por exemplo, são fundamentais nesta forma de viver a espiritualidade).
Quanto às identidades religiosas modernas, o primeiro modelo
apresentado por Hervieu-Léger é o peregrino. Este é o “substituto” moderno do
praticante e, ao mesmo tempo, se opõe a ele. Sendo a peregrinação mais
antiga que a visão cristã de praticante, este termo sugere a idéia de uma forma
antiga e perene de perceber e viver a espiritualidade159. Valendo-se deste
termo, a autora160 quer dar a entender que na condição moderna, cabe apenas
ao individuo construir as significações para sua existência, o que o peregrino
faz acumulando o máximo possível de experiências diversificadas (e, algumas
vezes, contraditórias), interpretando-as como parte de um “caminho”, que tem
algum sentido, nem sempre muito claro. Logo, as características do peregrino
descritas pela autora161 são opostas às do praticante: a prática é vista e vivida
como algo voluntário, variável, autônoma (não pressupõe a presença de
alguma instituição), individual (quando há uma comunidade envolvida, não é no
mesmo sentido de pertença do praticante), móvel (percorrer um “caminho”
metafórico, traçado por si mesmo) e excepcional (a prática não pressupõe
necessariamente uma rotina, não se insere no tempo da vida diária).
Com isso, afirma Oliveira162, cada vez mais a religião tende a ser vista
como uma escolha que varia ao longo da vida. O fiel pode ser transformado em
consumidor e, assim, é disputado entre as religiões que, por sua vez, buscam
aprender estratégias com o marketing para lidar com este novo fenômeno,
conseguindo o máximo possível de adeptos e fazendo com que seu discurso
vá mais longe. De acordo com Silveira163, a religião é transformada em produto
quando se torna um espetáculo, e quando isso ocorre, os ritos são
158
Ibidem, p. 98. 159
Ibidem, p. 87. 160
Ibidem, p. 89. 161
Ibidem, p. 98. 162
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 73. 163
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 68.
49
“desterritorializados”, reinseridos em novos conjuntos de valores e significados,
o que mescla sentidos tradicionais e novos. Logo, afirma o mesmo autor164,
vivemos uma época de nomadismo espiritual, em que não há fixação nem
identidades estáveis. Cabe apenas a cada um construir sua própria religião,
sempre em movimento.
Este contexto contemporâneo é muito bem explicado por Bauman165
quanto o autor afirma que hoje, seja por preferência ou por necessidade, o ser
humano tende a se comportar como um selecionador. Selecionar é quase uma
arte, uma ação em torno de evitar perigos (e não de gerenciá-los, podemos
acrescentar, o que faz com que hoje se tenha poucos recursos para tolerar
frustrações comuns na vida), sobretudo o maior dos perigos: perder
oportunidades (sejam elas quais forem)! Logo a maior preparação que o sujeito
recebe na vida é a de assumir o papel de alguém que busca prazeres bem
como coleciona sensações. É alguém que adere a religiões, modos de vida,
cargos, etc. apenas de maneira muito superficial, pois ao menor sinal de uma
nova experiência, lá estará ele a persegui-la, antes que perca essa
oportunidade.
Por fim, a última forma de identidade religiosa descrita por Hervieu-
Léger166 é a do convertido. Diferente do peregrino, esta figura permite
acompanhar o processo de formação das identidades religiosas no contexto
moderno de mobilidade. O fim do século XX foi marcado pelo enfraquecimento
de instituições religiosas e, ao mesmo tempo, por uma grande onda de
conversões. Isso não é tão paradoxal quanto parece, pois ao mesmo tempo em
que as identidades religiosas herdadas entram em crise, a mobilidade pela
busca de uma identidade religiosa que o indivíduo julgue adequada para si é
motivada pelo contexto. Outros fatores que motivam as conversões são: o
anonimato urbano, o encolhimento das comunidades “naturais” de pertença e o
aumento crescente do individualismo nas relações.
164
Ibidem, p. 69. 165
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Religião pós-moderna? In: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, pp. 221-222. 166
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, pp. 107 – 108.
50
Uma peculiaridade do convertido é o fato de ser plural. Hervieu-Léger167
estabelece três tipos de convertidos, curiosamente definidos por sua história de
vida pré-conversão.
O primeiro tipo é a pessoa que “muda de religião”. Geralmente este tipo
afirma que a antiga religião não supria os problemas enfrentados pelo sujeito
de hoje, não respondia às suas questões e nem lhe dava o apoio de uma
comunidade.
O segundo tipo de convertido representa as pessoas sem religião que,
em dado momento de sua “peregrinação” encontra uma crença em que se
sente acolhido e acaba por converter-se. Este tipo é cada vez mais freqüente
hoje, pois a transmissão de identidade religiosa entre gerações é precária (o
que faz com que aumente o número de pessoas sem religião e, em
decorrência, a porcentagem de convertidos deste tipo em relação aos demais).
Neste caso especificamente, a conversão marca não só o ingresso numa nova
religião, e sim no mundo religioso, ao qual até então a pessoa era alheia.
Por fim, o terceiro tipo de convertido é o “convertido de dentro”, aquele
que redescobre uma identidade religiosa dentro da sua própria religião, que até
então era vivida apenas de maneira formal, sem envolvimento. Entre católicos
e protestantes, este terceiro tipo de conversão é freqüente nos movimentos
carismáticos e neopentecostais, que oferecem ao crente a presença marcante
de uma comunidade e experiências religiosas de forte cunho emocional.
Entretanto, esta forma de conversão também é freqüente no islamismo e no
judaísmo, na forma de um “retorno à religião”, sobretudo entre jovens (muitas
vezes acabando por envolver o restante da família), que até então viviam a
religião apenas no plano ético e então passam a vivê-la de maneira mais
próxima às tradições.
Refletindo sobre o processo de formação da identidade religiosa do
convertido, Hervieu-Léger168 afirma que o convertido segue à risca a ideologia
moderna segundo a qual para uma identidade religiosa ser autêntica, ela deve
ser fruto de uma escolha individual. Ou seja, podemos pensar que é o ato da
escolha, e não mais o reconhecimento do outro, que legitima a identidade.
167
Ibidem, pp. 109 – 112. 168
Ibidem, p. 116.
51
Sendo uma escolha, continua a autora169, a conversão é freqüentemente
associada a um engajamento religioso intenso e autêntico. Isso remete ao que
afirma Silveira170. Se no mundo contemporâneo o indivíduo tem a autonomia ou
o poder de optar pelas idéias, valores e comportamentos que preferir, ele
mesmo passa a ser o critério de adesão. Isto é, suas emoções é que legitimam
as experiências pelas quais passa. Assim, para o autor171, “o mundo segue
uma lógica de consumo que cria colecionadores de sensações/atrações”.
Além disso, Hervieu-Léger172 ressalta que a conversão reorganiza
totalmente a vida do indivíduo de acordo com as normas da nova comunidade
da qual ele participa. A conversão também forma (ou transforma?) o indivíduo,
que até então vivia em um contexto no qual não existia um valor central que
organizasse suas experiências e sua identidade. Alem, disso, afirma Hervieu-
Léger173, o desejo de uma vida organizada muitas vezes está por trás das
conversões, bem como um protesto contra a desordem do mundo. Esse
protesto expressa uma utopia de participar de uma comunidade ideal e oposta
à sociedade mais ampla.
Carneiro174 diz algo semelhante ao abordar novos movimentos
religiosos, explicando que a noção de transformação pessoal e social da Nova
Era transcende a ela mesma, tornando-se um recurso simbólico
freqüentemente adotado para enfrentar os desafios da modernidade,
especialmente os relacionados à crise de sistemas, instituições e agências
tradicionais produtoras de sentido.
Germiniani175 sugere que, em reação a essa crise, hoje se faz presente
uma lógica religiosa que tende a ritualizar a vida cotidiana e suas diferentes
esferas, abrangendo inclusive áreas como o lazer e o consumo.
Tradicionalmente, o consumo é visto como algo profano/secular, o que leva a
169
Ibidem, p. 131. 170
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 44. 171
Ibidem, p. 45. 172
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 116. 173
Ibidem, p. 125. 174
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 266. 175
Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 123.
52
autora a questionar se ele poderia ter a função de produzir e transmitir
significados espirituais e, se assim for, seria o fim do monopólio de tais funções
por parte das religiões. Com essa expansão da religiosidade para além da
religião, a ética religiosa (seus valores) tendem a se fazer presentes em boa
parte das esferas sociais.
De maneira semelhante, Silveira176, a Nova Era está muito ligada ao
turismo, sobretudo por três características em comum: ambos são
desenraizados; são fruto da escolha pessoal, cujo critério de legitimidade
seriam as próprias emoções; e por fim, ambos pregam que as experiências e
afetos pelos quais cada um passa são os critérios mais válidos para o
desenvolvimento (pessoal, espiritual, etc.).
Carneiro177 menciona ainda um aspecto político a respeito da presença
de valores defendido pelo cristianismo, pela Nova Era e por inúmeras religiões
e formas de espiritualidade, que são constantemente associados à
peregrinação a Santiago de Compostela: a viabilização de uma identidade da
União Européia. A associação entre o Caminho de Santiago e a União
Européia baseia-se nesses valores atualmente ligados ao Caminho, como a
solidariedade, o companheirismo e a fraternidade, bem como na visão do
peregrino como um “cidadão do mundo”, que tem a “missão” de propagar tais
valores e formas de ser adquiridos na peregrinação ao retornar ao seu
cotidiano em seu país. A Igreja Católica e o governo espanhol esperam que a
propagação desses valores por parte dos peregrinos contribua para que se
forme uma nova Europa, retomando o que a autora chama de “Europa mítica”,
cuja identidade (valores morais, sociais, cultura, arte, etc.) estaria
estruturalmente atrelada ao cristianismo. Tais planos estão fortemente
relacionados ao desejo utópico de uma Europa sem grandes conflitos entre
nações. Além disso, seguir esse ethos peregrino é a condição básica para
reconhecer-se e ser reconhecido como peregrino, mais do que a religião
seguida ou os motivos que levaram cada um a realizar a peregrinação.
176
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 69. 177
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 267 – 270.
53
Na visão de Carneiro178, os peregrinos estariam aptos para essa tarefa
pois a autora equipara a peregrinação a um ritual (de transformação), como
uma linguagem que permite conhecer o entendimento de processos amplos da
vida, pois as emoções são orientadas em direção a algum propósito,
literalmente, ganhando algum sentido. Além disso, ao vivenciar uma outra
rotina muito diferente da cotidiana, os peregrinos passam a compreender
diferenças entre o natural e o cultural; entre o natural, o social e o sobrenatural;
e mesmo entre as hierarquias sociais, entre outros fatores.
Neste ponto do texto cabe uma breve discussão a respeito dos ritos de
passagem. De acordo com Van Gennep179, ritos de passagem são marcados
pela dramatização da morte e do renascimento, seja na natureza (fases da lua;
a vegetação que “morre” no inverno e “renasce” na primavera, etc.), seja entre
sujeitos (seres humanos, ou mesmo deuses). Assim, ocasiões como gravidez,
parto, puberdade, iniciações (na fase adulta, em ordens espirituais, em
profissões, etc.), casamentos, sacrifícios, funerais, etc. são marcados por ritos
de passagem, pois são ocasiões em que o sujeito passa de um estado a outro.
Durante a passagem, a pessoa momentaneamente deixa de ser quem era para
que possa ser transformado, moldando uma nova identidade com a qual será
reinserido no grupo. A peregrinação é considerada um rito de passagem, pois
nela, ao se defrontar com perigos, com o outro diferente de si (alteridade) e ao
ter contato com o transcendente, o sujeito retorna ao grupo de origem
transformado.
A maioria dos peregrinos segue o seguinte ritual: primeiramente ocorre a
decisão de fazer o Caminho, ou nas palavras deles, o “recebimento de um
chamado”. A seguir, vem uma preparação. Na Idade Média, afirma a mesma
Carneiro180, essa preparação significava confessar-se, fazer um testamento e
reconciliar-se com os inimigos, já que ninguém sabia se iria retornar. Hoje, pelo
que notamos nos discursos dos participantes da pesquisa e de depoimentos
com os quais tomamos contato, a preparação geralmente envolve praticar
caminhada para acostumar-se a percorrer a pé grandes distâncias, juntar
178
Ibidem, pp. 270 – 271. 179
Cf. VAN GENNEP, Arnold. Ritos de Passagem, pp. 154-155. 180
Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 272.
54
dinheiro, comprar itens que se julgam necessários, etc. Muito raramente, pelo
que temos observado, a preparação dos peregrinos contemporâneos envolve
aspectos religiosos ou espirituais. A seguir, continua a autora, vem a partida, e
com ela, o abandono do cotidiano e do conhecido. Por fim, vem a chegada à
catedral de Santiago de Compostela, trazendo a esperança de um
renascimento, um novo início numa etapa muito melhor da vida. A
peregrinação coloca o sujeito em contato com outro universo discursivo, o que
lhe permite testar valores e crenças, confirmando, (re)inventando e
(re)construindo sua realidade.
O percurso, conforme permite a compreensão de si mesmo, permite
também que o peregrino compreenda e se conecte ao outro e ao todo. Para
Carneiro181 isso ocorre pelo fato de que na peregrinação, todos estão passando
pelas mesmas experiências, independente do lugar de origem, classe social, e
mesmo dos motivos que as trouxeram ao Caminho. Ou seja, com isso
podemos compreender que, ao longo de toda a peregrinação, apenas um
aspecto da identidade fica em destaque: o peregrino. E perceber isso, faz com
que as pessoas se unam, criando entre si laços de solidariedade e
fraternidade.
Carneiro182 ressalta que os peregrinos deixam seu cotidiano, em que
geralmente há pouco espaço para a espiritualidade para ingressar numa
realidade em que todos os aspectos laicos da vida são dados por
determinantes sagrados. Entretanto, a autora183 também afirma que ao longo
da peregrinação ritualizada, sagrado e profano não são opostos, são categorias
diferentes, porém simultâneas. Ver a peregrinação como um ritual permite que
o sujeito experimente um sentimento de comunhão com o todo, e com a
natureza, não nas tradições em si, mas através da apropriação com crítica (e,
portanto, podemos acrescentar, com sentido) de tais tradições.
Assim, quando se dá o devido valor ao discurso dos peregrinos,
observando bem aquilo que eles afirmam haverem sentido e vivenciado, é
possível notar que eles vivenciam a peregrinação como um processo de
181
Ibidem, p. 275. 182
Ibidem, pp. 271 – 272. 183
Ibidem, pp. 277 – 278.
55
grandes transformações interiores, um ritual, como sugere Carneiro184, pois a
maior parte dos peregrinos lida com a espiritualidade ao “estilo Nova Era”,
fazem uma bricolagem, compondo elementos de diversas tradições religiosas e
culturais, algumas vezes discrepantes entre si e mesmo em relação ao
discurso da Nova Era. O Caminho de Santiago é marcado pela diversidade, em
especial a mescla do catolicismo com mitos e lendas, abundantes ao longo do
Caminho. É uma experiência que propicia aos peregrinos reconstruir símbolos,
crenças e sentidos, segundo afirma Carneiro185. A plasticidade da Nova Era
permite que se façam combinações às vezes bastante inusitadas, pios o critério
de adesão está no sentido que cada um busca para/por si mesmo.
O pluralismo de crenças, culturas, tradições e formas de expressar a
espiritualidade é, portanto, bastante valorizado pelos peregrinos. A autora186
explica que podendo vivenciar contradições, o sujeito experimenta viver de um
modo que desafia o sentido usual presente em seu cotidiano. São valorizados,
sobretudo, os intercâmbios entre o catolicismo e a magia, que por serem de
universos tão diferentes, abrem inúmeras possibilidades de combinações,
trazendo à prova diversos campos de sentido.
O que mais chama a atenção no Caminho de Santiago é a multiplicidade
de discursos e universos simbólicos, não só no sentido de ser
multidimensional, mas também de acolher, acomodar e responder a demandas
muito distintas, religiosas ou não. Carneiro187 o considera “uma excelente
metáfora de uma das novas condições de experiência espiritual” em que “se
busca sempre, ao invés de uma síntese, novos arranjos que possibilitam tornar,
a juízo do „buscador‟, „a vida digna de ser vivida‟”, conferindo-lhe sentido.
Finalizamos este capítulo com uma questão que nos ocorreu após estas
reflexões: um peregrino (literal) inicia o Caminho de Santiago como “peregrino”
e, ao encontrar algo que organize e dê algum sentido à sua vida e a ele
próprio, o finalizaria como “convertido”188?
184
Ibidem, p. 260. 185
Ibidem, pp. 278 – 279. 186
Ibidem, p. 279. 187
Ibidem, p. 280. 188
Termos “peregrino” e “convertido” utilizados segundo a concepção de Hervieu-Léger, conforme já explicamos anteriormente neste mesmo capítulo.
56
Capítulo III
Busca de sentido:
O que se encontra no percurso vai além do caminho em si
“Às vezes é melhor apenas se entregar à vida e deixar
que ela faça de nós aquilo que precisamos ser, ou
aquilo que já somos nos nossos corações.” (M.L.F.)
Antes de prosseguir com esta dissertação e poder analisar a forma como
os peregrinos participantes desta pesquisa atribuem sentido à suas vidas, é
preciso que se saiba o que compreendemos por “sentido”. Para Geertz189, esta
é uma temática presentes em discussões acerca do ser humano desde o
século XVIII, época em que começou a ser abordado em termos
científicos/empíricos peça antropologia, sociologia, etc., e não mais apenas de
maneira religiosa. Inicialmente, é preciso definir este termo para que o leitor
compreenda sobre o que dialogamos, visto que o termo “sentido” tem múltiplas
possibilidades de definição e interpretação.
Rezende190 estabeleceu três definições para o termo “sentido”:
1. Os cinco sentidos do ser humano e aquilo que pode ser percebido
através dos mesmos.
2. Interpretação de um fenômeno utilizando a cognição, através da
linguagem, o que pressupõe o estabelecimento de relações entre
diferentes idéias, fatos e conceitos.
3. União das definições anteriores: interpretamos, atribuímos sentido ao
que percebemos, ao que sentimos, utilizando para isso a linguagem e
nossas estruturas cognitivas. Este processo mostra a forma como nos
posicionamos frente à realidade.
Para Berger e Luckmann191, o sentido se forma na consciência de cada
um, sendo que para isso são relevantes os processos corporais e sociais pelos
quais a pessoa em questão passou. Os autores192 definem sentido como “uma
forma complexa de consciência: não existe em si, mas sempre possui um
189
Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, pp. 152-153. 190
Cf. REZENDE, Antonio Muniz de. Concepção fenomenológica da educação, passim. 191
Cf. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido, passim. 192
Ibidem, p. 15.
57
objeto de referência”. Além disso, é o sentido que nos dá a consciência de que
nossas experiências têm relação umas com as outras. Assim, podemos pensar
que é graças ao sentido que percebemos uma continuidade em nossa vida,
com a função (metafórica) do que, na física, seria um vetor (algo que
pressupõe uma “direção”, um sentido); mas sentido é, também, um fio de
contato entre as experiências pelas quais passamos. A partir disso é que
ocorrerá a formação da identidade de cada um, dependendo de como nos
posicionamos frente às reservas de sentido da sociedade.
A busca pela identidade é, portanto, a busca pelo que compreendemos
aqui como a representação de si mesmo. Geertz193 sugere que isso pode
incluir além do plano pessoal, também as esferas sócio-culturais e até mesmo
políticas. Como um exemplo disso, o autor ressalta que formas de identificação
religiosa (seja considerar-se membro de determinada religião ou, pensamos,
meramente considerar-se um ser religioso, ou seja, dotado de religiosidade)
vêm ganhando cada vez mais espaço não apenas nos discursos, mas em toda
a realidade dita secular. Para Gil Filho e Gil194, toda identidade religiosa é uma
construção sócio-histórica. Ou seja, é suposto que o sujeito esteja inserido em
alguma realidade, havendo um contexto espaço-temporal permeado por
alguma cultura. O contato com o transcendente expresso nas diversas formas
de religiosidade é um elemento central nas sociedades, mesmo que seculares.
Segundo os autores195, “o sistema de práticas e o discurso religioso, ao
atribuírem um princípio norteador transcendental da vida, imprimem uma nova
lógica à realidade”.
Outro aspecto sobre como ocorrem hoje as identificações, é o destaque
dado ao plano pessoal, afirma Geertz196. Com o final da Guerra Fria, as
fronteiras territoriais se modificaram muito. Com isso, se valorizaram as
identidades culturais dos povos, pois um mundo sem fronteiras viabiliza a
coexistência de múltiplos discursos, cada vez mais variados e personalizados.
193
Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, p. 156. 194
Cf. GIL FILHO, Sylvio Fausto e GIL, Ana Helena. Identidade religiosa e territorialidade do sagrado: notas para uma teoria do fato religioso. In: ROSENDHAL, Zeni e CORRÊA, Roberto Lobato. Religião, identidade e território, pp. 39-48. 195
Ibidem, pp. 40-41. 196
Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, p. 157
58
Devemos acrescentar que o discurso aplicado pelo sujeito em sua auto-
identificação é, certamente, aquele que faz sentido para ele. Logo, a busca
pela identidade e a busca por um sentido de vida são processos que caminham
atados e não devem se separar.
Frankl197 desenvolveu uma teoria que denominou “logoterapia” (do grego
logos, sentido), que se concentra na busca humana por sentido,
compreendendo-se tal busca como a maior motivadora do ser humano. Assim,
esta é uma motivação primária, e não uma racionalização secundária. O
sentido é exclusivo e específico para cada um, pois apenas desta maneira ele
será capaz de preencher o que o autor198 denomina “vontade de sentido”.
Neste processo de busca de sentido, Frankl199 destaca o papel crucial
dos ideais e valores, que são os sustentáculos dos sentidos, e não meros
mecanismos de defesa, sublimações ou formações reativas. “O ser humano é
capaz de viver e morrer por seus ideais e valores!”, afirma o autor200, coisa que,
certamente, não se faz por sublimações ou mecanismos de defesa e, muito
menos, por formações reativas. Compreendemos com isso que ideais e valores
são os fundamentos que permitem a construção de sentidos e, como em toda
construção, os fundamentos devem ser sólidos e seguros para que a
construção não apresente falhas e possa se sustentar. Isso organiza e orienta
a vida, fazendo com que ela não seja apenas um agrupamento de vivências
aleatórias.
Frankl201 destaca ainda que podem existir casos em que a busca por
sentido revele a existência de conflitos interiores ocultos, embora para o autor
tais casos sejam exceções, e os “falsos valores” logo seriam desmascarados.
Em outros casos, a vontade de sentido é frustrada, o que Frankl202 chama de
“frustração existencial”, e que resulta em neuroses noogênicas, ou seja, cuja
origem está em conflitos existenciais, e não nos processos psíquicos, tendo
grande destaque para sua origem a frustração existencial. Entretanto, nem todo
197
Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 2009, p. 91. 198
Ibidem, p. 92. 199
Ibidem, p.92. 200
Ibidem, p. 92. 201
Ibidem, p. 93. 202
Ibidem, pp. 93-96.
59
conflito é neurótico. Certa parcela de conflito é normal, e até saudável, a
angústia existencial existe sempre que há consciência de que existimos, não é
necessariamente patológica e nem patogênica. “A busca por sentido
certamente pode causar tensão interior em vez de equilíbrio interior. Entretanto,
justamente esta tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental”,
diz Frankl203, assim, a saúde mental pressupõe certa tensão entre o que somos
e o que queremos ser, entre o passado, presente e futuro. Ter um sentido é ter
uma meta de vida que vale a pena ser vivida e buscada. Uma vida com sentido
obviamente não estará livre de conflitos e de sofrimento, mas estes não são
aleatórios e nem vazios, têm um papel a desempenhar, um porquê de existirem
em certo momento da vida do sujeito.
Frankl204 aborda ainda a questão do vazio existencial, ou seja, a pessoa
sente um vazio interior, uma imensa ausência de sentido em sua vida. Para o
autor, a tendência é que esse sentimento de vazio apenas aumente cada vez
mais. Ele explica que duas perdas da humanidade contribuíram para isso. A
primeira é, talvez, tão antiga quanto a própria condição humana: a perda dos
instintos que regulavam o comportamento animal e garantiam a continuidade
da existência. “Tal segurança, assim como o paraíso, está cerrada ao ser
humano para todo o sempre. Ele precisa fazer opções”, diz o autor205. A
segunda, muito mais recente, se refere à perda das tradições, que costumavam
orientar as escolhas e o comportamento humano. Para o autor, o maior risco
dessa ausência de instintos e de tradições é que não tendo nada que oriente
suas ações e (em muitos casos) não conhecendo seus próprios anseios, a
pessoa passa a agir pelo conformismo (fazendo aquilo que lhe parece que
“todos” fazem) ou então pelo totalitarismo (obedecendo cegamente a algum
outro que, supostamente, sabe o que se deve fazer).
Continuando suas reflexões acerca do vazio existencial, Frankl206 cita
algumas de suas manifestações mais comuns: o tédio, a depressão, a
agressão, os vícios, as crises de aposentados e idosos (crises estas que,
podemos acrescentar, nos dias de hoje já não se reservam apenas a pessoas
203
Ibidem, p. 95. 204
Ibidem, pp. 96-97. 205
Ibidem, p. 97. 206
Ibidem, p. 97.
60
de idade mais avançada, manifestando-se em adultos jovens, adolescentes e
até em crianças), bem como os casos de suicídio. A tendência é que estes
problemas se agravem cada vez mais, de acordo com o autor. Em
contrapartida, Frankl ainda menciona duas máscaras comuns do vazio
existencial: a vontade de poder (freqüentemente expressa na vontade de
dinheiro e bens materiais) e a vontade de prazer (cuja compensação através da
sexualidade é bastante corriqueira).
Sobre essas manifestações e máscaras do vazio, Bauman207 menciona
algo semelhante ao descrever o mundo contemporâneo como um mundo em
que predomina “a ideologia do fim da ideologia”, que o autor denomina
“multiculturalismo”. Esta ideologia admite que múltiplos valores, sentidos e
visões de mundo, mas depende de cada pessoa encontrar e percorrer seu
caminho, bem como lidar com as conseqüências disso. O autor compara a
situação a uma cacofonia, como se cada um cantasse uma canção. Sem
uníssonos, sem garantias sobre qual é melhor e sem que se saiba o que será
cantado depois. O multiculturalismo tem duas estratégias de dominação: o
desengajamento (o que entendemos como o ato de nunca se envolver com
nada e nem com ninguém, não existem pessoas, apenas indivíduos – unidades
autônomas) e o excesso (substituto da regulação normativa, que podemos
compreender como a ausência total de limites, excesso significa dizer que algo
nunca é o suficiente e é preciso buscar mais e mais...).
Assim, Bauman208 prossegue, se no mundo pré-moderno as lealdades
eram vinculadas às tradições (por exemplo, a paróquia, a vizinhança, etc.) e no
mundo moderno tais lealdades foram gradativamente se tornando mais
complexas (lealdade de cidadão, que era muito mais complexa e abstrata que
a nação ou as leis da terra, demandando um planejamento cuidadoso, que
envolvesse a educação e a organização das massas); no mundo
contemporâneo o que se passa é que o desengajamento traz a ilusão de
liberdade. Ninguém controla os indivíduos, apenas o ambiente, de modo que,
sem se dar conta, o indivíduo por si só é levado a agir da maneira como se
espera. “Quem quiser manter o enxame na direção correta deve se ocupar das
207
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. pp. 112-113. 208
Ibidem, pp. 114-116.
61
flores, e não de uma a uma das abelhas”, exemplifica o autor209. Neste
enxame, entretanto, não há um líder claro, cada unidade “voluntariamente” age
como deve agir. Um exemplo mais prático desta situação citado pelo autor (e
que, a nosso ver, acabaria com qualquer centelha de sentido que por ventura
tenha restado) é o mundo do trabalho. Hoje o empregador já não tem a
necessidade de exercer grandes controles. Espera-se que o funcionário prove
seu valor constantemente caso tenha a intenção de manter seu emprego. A
empresa paga as horas trabalhadas, mas em troca exige toda a vida, o
pensamento e a devoção de seus funcionários.
Para Bauman210, este é um mundo em que predomina o jogo entre a
tentação e a sedução (o que nos remete outra vez ao que Frankl vinha dizendo
quanto às vontades de poder e de prazer) em lugar do controle. Tem valor
aquilo que é desejado (cujo desejo fora criado). “Na ausência da norma, o
excesso é a única esperança de vida”, afirma Bauman211 e, como já
mencionamos, nada nunca será excessivo, pois nada nunca será o suficiente.
O fim das normas não é algo formal, e só surgiu no momento do capitalismo
em que a sociedade de produtores de transforma na sociedade de
consumidores. O excesso e o desengajamento são as únicas esperanças que
restaram aos olhos da humanidade. Em decorrência disso, diz o autor212,
Se a seqüência dos passos não está predeterminada por
uma norma (...), só a experiência contínua poderá sustentar
a esperança de vir a encontrar o alvo, e essa
experimentação exige grande quantidade de caminhos
alternativos.
Entretanto, afirma Bauman213, prosseguindo com sua detalhada
descrição das sociedades contemporâneas (é fundamental que as entendamos
bem para que se compreenda a relevância da busca por sentido nestes dias),
ao mesmo tempo em que o indivíduo se orgulha da suposta liberdade que tem,
209
Ibidem, p. 115. 210
Ibidem, pp. 117-118. 211
Ibidem, p. 118. 212
Ibidem, p. 119. 213
Ibidem, p. 118.
62
sonha o tempo todo em recuperar a segurança que este novo estilo de vida já
não pode mais lhe oferecer, pois “são construídos novos caminhos e o acesso
aos antigos é bloqueado”, afirma Bauman214.
Em nossa visão, isso significa dizer que o tempo é uma variável que
caminha em apenas uma direção, o futuro, e se em outros tempos a busca
humana por sentido era menos complexa, tudo que resta deles nestes tempos
atuais é a memória – ou, quem sabe, nem isso, já que quando aliamos o
excesso ao desengajamento, ou a vontade de prazer à vontade de poder,
acaba-se os planejamentos, sonhos e utopias sobre o futuro, reduzindo o
tempo a um presente contínuo (sem futuro, mas também sem um passado
explícito que nos esclareça como chegamos ao ponto em que estamos). E
viver apenas o presente é, talvez, uma das maiores ameaças à busca por
sentido. Se não conhecemos o nosso passado ou nossas tradições, e somos
impedidos/desencorajados a planejar e sonhar com o futuro, toda e qualquer
vivência presente é reduzida à aleatoriedade. Existem inúmeros caminhos
viáveis, mas qual percorrer? Se não sabemos nem ao menos de onde partimos
ou de onde estamos vindo, o local de chegada ainda tem alguma importância?
As referências das sociedades contemporâneas, afirma Bauman215, não
são feitas para durar. Não há como saber o que apontarão a seguir. O autor
compara esta situação à idéia de Deus medieval como um ser indiferente ao
bem e ao mal. Apenas com isso em mente é possível compreender
satisfatoriamente a idéia do multiculturalismo. Neste contexto, diferentes
culturas coexistem, mas isso não significa que compartilhem suas existências
tirando algum proveito de um suposto diálogo (talvez, pensamos, porque o
diálogo aberto e respeitoso não exista, o que faz com que essas culturas ao
invés de coexistirem, apenas ocupem o mesmo lugar no espaço, ou melhor, no
contexto social).
Diante disso, o sujeito contemporâneo deixa de lutar pelo direito a
expressar-se, passando a manter seu foco de interesse no direito a indiferença,
abstendo-se de julgar, ou de ter que refletir sobre valores pouco claros e
conscientes, questionamos, pois todo julgamento se faz com base em valores.
214
Ibidem, p. 118. 215
Ibidem, pp. 121-122.
63
Com isso, pensamos, o sujeito contemporâneo estaria se defendendo de ter
que lidar com um pluralismo de discursos que lhe soa ameaçador, o que
revelaria não somente a óbvia ausência de algo que dê segurança e ajude
esses sujeitos a atribuir sentido às suas existências e vivências, mas também,
um grande pavor de deparar-se com o vazio existencial, tendo que encará-lo
sem saber ao certo de que maneira preenchê-lo.
Para Bauman216, portanto, a segurança é o fator primordial para que
haja diálogo entre diferentes culturas, pois apenas assim as comunidades se
abrem umas as outras, mantendo trocas enriquecedoras e estimulando a união
de forma humanitária. Na guerra entre nós e eles, ninguém ganha, todos se
tornam alvos fáceis para aquilo que Bauman chama “forças globalizantes”, que
seriam definidas pelo autor217 como “as únicas que se beneficiam com a
suspensão da procura por uma humanidade comum e com o controle conjunto
sobre a condição humana”. O indivíduo sente falta da comunidade porque ela
lhe dá a segurança necessária para uma vida satisfatória e feliz, coisa que o
mundo contemporâneo cada vez menos oferece e promete. Quando alguém
busca segurança, sempre esbarra na autopreservação, na integridade do corpo
e de suas extensões (a casa, o bairro, as propriedades, etc.). Daí, refletimos,
faz sentido que esteja em grande evidência os produtos e serviços destinados
a cuidar do corpo, seja no plano da estética, do bem estar e mesmo da saúde.
Em decorrência desse anseio por segurança, continua o autor, se passa a
suspeitar de tudo e de todos. Neste ponto, todos são ameaças em potencial, e
são muitas, se nos recordarmos da questão do desengajamento (se pouco me
envolvo com os outros, todos eles me são desconhecidos – e ameaçadores) e
do excesso. O outro se torna a encarnação do imprevisto e do imprevisível,
reforçando o desengajamento, a busca por segurança e, acrescentamos, toda
a ansiedade gerada (e suas decorrências, que podem ser terríveis para a
saúde mental). As ameaças são muitas e inomináveis, diz Bauman218, o que
aumenta a angústia e o desconforto que geram, pois, acrescentamos mais uma
vez, sendo inomináveis, tais ameaças não tem significado, o que impede que o
sujeito encontre nelas algum tipo de sentido ou explicação (pois significar e
216
Ibidem, pp. 128-130. 217
Ibidem, p. 128. 218
Ibidem, p. 130.
64
atribuir sentido são, antes de tudo, processos lingüísticos, já que são viáveis
apenas através da linguagem).
Diante de tal panorama do mundo contemporâneo, o sentido da vida
varia conforme a pessoa e o momento vivido, explica Frankl219. Logo, não há
uma maneira geral de abordá-lo, só se pode pensar no sentido da vida de cada
pessoa em determinado momento. Não há sentidos gerais ou abstratos, assim,
ninguém pode ser substituído e nenhuma história de vida pode ser repetida.
Apenas o próprio sujeito pode agir por si e realizar seu sentido. Neste ponto da
discussão o autor220 levanta a questão da responsabilidade (no sentido de dar
uma resposta). Todos nós somos questionados pela vida e cada um deve
responder por si sobre o sentido de sua vida. Essa responsabilidade é a
essência da vida humana.
Partindo deste pensamento, gostaríamos de propor uma discussão. Ao
narrar sua história, o indivíduo se apropria dela e pode interiorizá-la (pois os
fatos e vivências são transformados em discurso através da linguagem). Assim,
o sujeito torna-se responsável por ela. Porém, ao mesmo tempo em que a
interioriza, enquanto narra tem a oportunidade de vê-la através de algum ponto
do espaço psíquico localizado externamente a si. Temporariamente, torna-se
outro para si mesmo, ocupando o lugar e a função de outro com relação a si (e
todo outro é parte do mundo externo). Isso nos recorda uma frase de
Bakhtin221, que diz: “eu não estou só quando me contemplo no espelho, estou
possuído por uma alma alheia”. Logo, para que seja possível a construção de
um sentido (e não a mera atribuição de algum sentido pré-existente), é
necessário ver-se a partir de fora como outro, encontrando-se “possuído por
uma alma alheia”.
Frankl222 diz algo semelhante ao abordar a “autotranscendência da
existência humana”: o sentido deve ser buscado e encontrado no mundo
externo, e não dentro de si, na psique, visto que não é algo fechado e imutável.
“A auto-realização só é possível como um efeito colateral da
219
Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. p. 98. 220
Ibidem, pp. 98-99. 221
Cf. BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. p. 31 222
Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. pp. 99-100.
65
autotranscendência”, diz o autor223. O indivíduo não pode ser uma unidade
auto-suficiente! Precisa do outro e do mundo externo (e, voltamos a
acrescentar, precisa saber ver-se como outro).
Transcender a si mesmo é ir além de si em direção ao outro ou ao
mundo em diversos sentidos: nos discursos, nas vivências, mas também no
corpo. Pensando que esta pesquisa foi realizada com peregrinos, não podemos
deixar de abordar a questão corporal, já que o corpo é um instrumento
essencial na peregrinação. Além disso, Gazoni224 explica que ao deixar o
profano para trás e rumar em direção ao sagrado, geralmente se passa por
sacrifícios, sobretudo físicos, que ganham para o peregrino um sentido de
purificação. Para Oliveira225, essa noção de martírio (sobretudo corporal) como
uma das principais formas de sacrifício (ato sagrado) cristão foi popularizada
com as Cruzadas, na Baixa Idade Média (séculos XI a XV).
Para Dahlberg226, uma característica do catolicismo no que se refere ao
corpo é que o sofrimento é visto como uma ponte que encurta a distância entre
o ser humano e o transcendente. A autora menciona que a oposição da Igreja
aos métodos contraceptivos denota o empreendimento de esforços para
dominar as forças da natureza, organizando-as de maneira racional. A
sexualidade passa a ser racionalizada, logo, a transmissão da vida deve ser
também regulada pela razão, assim como os ritmos corporais. Outro ponto
sobre a relação do catolicismo com o corpo mencionado pela autora é a hóstia
consagrada como a presença real de Cristo. O fiel consome o corpo e o
sangue de cristo na missa. Assim, conclui a autora, existe a crença de que o
divino pode ser encarnado, incorporado; e o corpo pode ser visto por
excelência como um veículo do divino na matéria.
223
Ibidem, p. 100. 224
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 104. 225
Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 22. 226
Cf. DAHLBERG, Andrea. The body as a principle of holism: three pilgrimages to Lourdes. In: EADE, John e SALLNOW, Michael J. Contesting the sacred: the anthropology of Christian pilgrimage, pp. 46-48.
66
Quanto aos movimentos religiosos do século XXI, destaca Silveira227, a
ênfase está no corpo e saúde perfeitos. Com isso, como destaca Turner228, no
mundo contemporâneo as peregrinações muitas vezes estão relacionadas à
busca por efeitos terapêuticos.
De acordo com Turner229, o peregrino anseia por transformações, sejam
elas do espírito ou do corpo. O mundo do peregrino é ampliado, afirma o
autor230, pois ao longo da peregrinação ele terá contato com o transcendente,
mas também com necessidades e perigos terrenos com os quais terá de lidar
sozinho, pois está fora da estrutura social. O autor231 explica que a estrutura
social é um conjunto composto por unidades, que seriam as relações entre
cargos, papéis e funções sociais de maneira geral.
Logo, a peregrinação é vista pelo autor232 como um período em que se
está fora da estrutura social, ou um intervalo entre duas épocas em que se faz
parte da estrutura de maneiras distintas. A peregrinação é, portanto, um rito de
passagem o que, compreendemos nós, faz com que ela tenha a capacidade de
viabilizar mudanças no sujeito.
Turner233 considera os ritos de passagem como ritos que legitimam uma
transição, em três fases: a primeira seria a separação, quando o sujeito é
afastado do grupo. A seguir, viria a liminaridade, momento em que a pessoa
vive fora da estrutura social. Por fim, ocorre a agregação, quando a passagem
é consumada e o sujeito é reintegrado à estrutura, já transformado. Para refletir
sobre a peregrinação, é necessário dar atenção ao segundo momento dos ritos
de passagem. A liminaridade, muitas vezes comparada à morte, ao estar no
útero, a um eclipse, etc., é uma fase em que a pessoa é “reduzida” a uma
condição básica, pois assim poderá ser remodelada, imbuída de novos poderes
e capacitada a enfrentar uma nova realidade. Assim, afirma Turner234, “os
227
Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 43. 228
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 227. 229
Ibidem, p. 197. 230
Ibidem, pp. 182-183. 231
Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, p. 160. 232
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 175. 233
Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, pp. 116-118. 234
Ibidem, p. 118.
67
neófitos tendem a criar entre si uma intensa camaradagem e igualitarismo”.
Isso ocorre porque “a passagem de uma situação mais baixa para outra mais
alta é feita através de um limbo de ausência de „status‟”235. Assim, prossegue
Turner236, o iniciando vive um estado de anonimato, é um ser em transição e,
portanto não tem lugar nem posição dentro da estrutura social, tudo o que lhe
cabe é o silêncio e a submissão. “A sabedoria transmitida na liminaridade
sagrada não consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças;
tem valor ontológico, remodela o ser do neófito”, explica o autor237. Turner238
ainda afirma que ser afastado da família e do grupo social durante o rito de
passagem pode ter aspectos ou funções de “punição, purificação, expiação,
cognição, instrução, terapêutica, de transformação”, entre outros.
Gazoni239 está de acordo com tais afirmações quando menciona que
“(...) muitos visitantes de Santiago de Compostela, durante um prolongado rito
de passagem, tiveram questionamentos acerca do significado espiritual do
mundo. Durante o trajeto, eles se transformaram em peregrinos”. Turner240
complementa que o local da peregrinação está “dentro e fora do tempo”, o que
viabiliza o contato direto com o transcendente, através de experiências místico-
religiosas que tendem a transformar o sujeito.
Esse tempo vivido “dentro e fora do tempo” favorece o surgimento de
relações sociais distintas daquelas que surgem na estrutura social, à qual
Turner241 denomina communitas. Enquanto a estrutura é caracterizada pelo
caráter jurídico e político das relações, a communitas é permeada pela
espontaneidade. Assim, a communitas é um modo de relacionamento entre
“indivíduos concretos, históricos e idiossincráticos”242.
235
Ibidem, p. 120. 236
Ibidem, p. 126. 237
Ibidem, p. 127. 238
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 196. 239
Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. da. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 106. 240
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 197. 241
Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, p. 161. 242
Ibidem, p. 161.
68
Para melhor compreensão do termo, Turner243 cita algumas
características da communitas, que achamos por bem mencionar antes de
prosseguir com a discussão. A communitas é permeada pela homogeneidade e
igualdade de seus membros, ausência de propriedade, mínima distinção entre
os sexos, em alguns casos se usa um “uniforme” ou vestimentas de mesmo
estilo, todos os membros passam a ser do mesmo nível/condição social. Pode
haver continência ou completa liberdade sexual, acabando com a noção
tradicional de casamento e de família. Também não há direitos ou obrigações
de parentesco, pois na communitas todos são iguais, todos são irmãos. Além
disso há ênfase na humildade, simplicidade de fala e de maneiras, descuido da
aparência pessoal, altruísmo, obediência total ao líder (quando há um líder). O
comportamento religioso é incentivado, com instrução sagrada e em alguns
casos até mesmo a “loucura sagrada” é vista com bons olhos. Também está
presente a aceitação do sofrimento e da dor. O autor244 ainda afirma que na
communitas toda ação é tomada em favor de toda a comunidade, há uma
relação mística com a terra, não há vinculo a nenhum segmento político
específico; e a paz é enfatizada, pois o conceito de conflito pressupõe que haja
uma estrutura social, ao passo que “a communitas surge onde não existe
estrutura social”245.
Por outro lado, Turner246 afirma que a communitas só surge porque
existe alguma estrutura da qual se libertar. Assim, só é possível compreender a
communitas quando se pensa em sua relação com a estrutura. A communitas
tem qualidade existencial, englobando a totalidade do ser humano e sua
relação com o outro. Essa relação entre seres totais gera símbolos e metáforas
como a arte e a religião (mais do que leis e políticas, típicas da estrutura). Já a
estrutura se apresenta como um conjunto de classificações, um modelo que
possibilita tentar compreender o mundo e ordenar a vida pública. A communitas
é sagrada, pois transcende as leis que regem as relações
estruturadas/institucionalizadas. Entretanto, o autor247 ressalta que o que se
243
Ibidem, p. 136. 244
Ibidem, pp. 146-154. 245
Ibidem, p. 154. 246
Ibidem, pp. 154-156. 247
Ibidem, p. 167.
69
busca na communitas não é a camaradagem ou a amizade que podem surgir
entre colegas de um grupo qualquer, mas sim uma experiência profundamente
transformadora. Ou seja, “a imediatidade da communitas abre caminho para a
mediação da estrutura”, afirma Turner248, pois quando num rito de passagem
alguém se liberta da estrutura e passa e fazer parte da communitas, o faz
apenas para retornar à estrutura profundamente transformado por esta
experiência. Com isso, Turner249 ressalta que a communitas nunca dura por
muito tempo, pois logo as relações livres passam a ter normas, tornando-se
estruturadas. Afirma Turner250:
(...) a estrutura social está intimamente relacionada com a
história, porque é este o modo pelo qual um grupo mantém
sua forma através dos tempos. A communitas sem estrutura
pode unir e manter as pessoas juntas apenas
momentaneamente.
Para o autor251, considera-se que aquele que vive na communitas, livre
do sistema normativo da estrutura, tem como sistema de valores a “inocência e
pureza daqueles que vivem sem o domínio de um soberano”, assemelhando-se
à bondade proposta por Rousseau daqueles que vivem em estado de natureza.
Turner252 ainda diferencia três tipos distintos de communitas:
1- Existencial/espontânea: não tem estrutura, é homogênea e totalmente
livre. Turner253 explica que este tipo pode surgir em qualquer tempo,
lugar ou situação. Entretanto, se é suposto que ela permaneça para
além de seu surgimento, seus símbolos precisam ser codificados e, com
isso, normatizados.
2- Normativa: conforme o tempo passa, surge na communitas espontânea
a necessidade de organizar os recursos para que o grupo se mantenha
de maneira funcional. Nesse momento a communitas se torna um
248
Ibidem, p. 157. 249
Ibidem, p. 161. 250
Ibidem, p. 186. 251
Ibidem, p. 166. 252
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 169. 253
Ibidem, p. 172.
70
sistema social menos rígido que a estrutura que motivou seu
surgimento. Apesar de ser um sistema social, visa manter algumas
características da communitas, preservando relações não utilitárias entre
seus membros.
3- Ideológica: communitas utópica, pautada em princípios ideológicos.
Turner254 afirma que as relações sociais entre os peregrinos têm a
qualidade de communitas, sobretudo nas peregrinações mais longas.
Inicialmente, surge a communitas espontânea, que logo se torna normativa.
Como veremos a seguir, na segunda parte desta dissertação, o impacto
transformador da vida na communitas é muito intenso e presente no discurso
dos peregrinos que participaram desta pesquisa.
254
Ibidem, pp. 166-169.
71
PARTE II
72
Capítulo IV:
Todo caminho começa com um passo
“É o caminho que importa. Chegar é chegar a um
objetivo.” (L.)
Nesta segunda parte da presente dissertação, pretendemos apresentar
e discutir os dados empíricos recolhidos por nós para a realização desta
pesquisa de mestrado.
Inicialmente, apresentaremos os procedimentos para a realização da
pesquisa e, a seguir, a amostragem dos participantes. Por fim, no
apresentaremos os dados coletados e, no texto que segue, faremos a leitura do
material coletado.
4.1 – Método: um caminho de pesquisa
4.1.1- Procedimentos:
Além da pesquisa teórica abrangendo o fenômeno das peregrinações e,
mais especificamente, informações a respeito do Caminho de Santiago de
Compostela, esta dissertação de mestrado se propõe a analisar dados
empíricos de pessoas que fizeram a peregrinação a Santiago de Compostela.
Os dados foram coletados inicialmente através de entrevistas semi-
estruturada, trocas de e-mails e de depoimentos recebidos, cujos pontos
abordados foram, sobretudo, a motivação para realizar a peregrinação e as
transformações que ocorreram na vida da pessoa e se ela atribui ao fato de
haver percorrido o Caminho de Santiago.
Para chegar aos peregrinos e realizar a coleta de dados, nos utilizamos
da rede social Orkut. Entramos em comunidades referentes ao Caminho de
Santiago de Compostela e deixamos a seguinte mensagem:
Mestrado sobre o Caminho de Santiago Olá amigos, Sou psicóloga e estou fazendo uma pesquisa de mestrado na PUC-SP. Gostaria de conversar com pessoas que já tenham feito o Caminho de Santiago e estejam dispostas a dividir essa experiência contando suas histórias, seja qual for a motivação que as levaram ao Caminho. Se alguém puder ajudar, pode deixar um recado aqui no tópico ou então no meu perfil, como
73
preferirem. Desde já, muito obrigada!!
Quando possíveis participantes entraram em contato, deixamos claro
que a participação seria voluntária e que informações que pudessem
identificar-los não seriam apresentadas.
A partir desses dados iniciais, formulamos um breve questionário (o
modelo do questionário consta no Apêndice), com questões relativas à vida do
participantes antes da peregrinação, visando verificar possíveis conflitos; às
motivações para realizar o Caminho; aos momentos de maior emoção, bem
como aos pensamentos, sentimentos ou valores adquiridos no que Caminho
ainda permanecem na vida da pessoa; como foi a partida e a volta; e por fim,
as mudanças que o participante percebe em si/em sua vida após ter feito a
peregrinação.
O questionário foi enviado por e-mail a pessoas que previamente haviam
manifestado o interesse em participar da pesquisa. Enviamos 25 questionários,
e recebemos 20 de volta, sendo que alguns dos questionários que retornaram
não foram enviados por nós. Alguns dos participantes da pesquisa, que
viajaram na companhia de outras pessoas, tomaram a iniciativa de enviar o
questionário a seus acompanhantes, que também nos enviaram suas
respostas. Todos os questionários respondidos constam no Anexo.
4.1.2 – Amostragem:
Como já mencionamos, os participantes desta pesquisa foram
contatados através da internet.
Dentre todos os interessados em participar desta pesquisa, mantivemos
um contato maior com 8 pessoas. Dentre as histórias, selecionamos 3
peregrinos que demonstraram haver tido maiores transformações nos valores e
na forma de se identificarem (e, por conseguinte, no sentido percebido na
própria existência). Destes 3 participantes, uma do sexo feminino (L.) e dois do
masculino (V. e R.) e com idades variando entre 25 e 30 anos.
Quanto à crença religiosa, dois são de origem familiar católica (V. e L.) e
um de origem luterana (R.). Entretanto, os três (tal como a maioria dos
74
peregrinos com quem mantivemos contato) deixam claro em seus relatos que
possuem crenças relativas à Nova Era, tais como “energias” que regem o
mundo e a vida, a força do pensamento, ou o poder da natureza, como pode
ser observado nos trechos que seguem:
“Quanto à religião, sou batizado em igreja luterana, mas me considero
espiritualizado acima de tudo. Acredito em Deus de uma forma que, para mim,
se encontra acima das religiões. Por isso, não gosto muito de freqüentar as
missas, nunca gostei, tenho o que imagino ser uma espiritualidade bastante
reservada (mas aberta a qualquer tipo de filosofia).” (R.)
“Vivo um dilema quanto à religião. Não pratico nenhuma, já fui católico,
porém tenho fé em Deus. Minha consciência tranqüila é minha filosofia de vida
(...)” (V.)
“Sabe que depois do Caminho eu sinto mais necessidade de encontrar
uma religião? Mas uma religião que tenha a minha cara. E eu não sei bem
ainda, vou continuar em busca, não me considero cristã, mas acredito em
muitas coisas. Acredito nas energias, nas energias que as pessoas passam,
acho isso muito importante. E acredito que tudo tem um porquê, tudo na vida
tem a hora e o motivo pra acontecer...” (L.)
Todos são de classe sócio-econômica média. Um é formado em
administração e cuida dos negócios da família (V.), um é web assistant (R.) e
uma é pedagoga e, atualmente, tem uma pequena empresa (L.).
Optamos por estes peregrinos pelo fato de que, dentre os que se
interessaram em contribuir com a pesquisa, são os que apresentaram maior
reflexão acerca das experiências que passaram ao longo do Caminho, bem
como motivações mais claras (para si mesmos) para iniciar a peregrinação.
Como já mencionamos, esses dados possibilitaram a formulação de um
questionário aplicado a outros 20 peregrinos, 10 do sexo feminino e 10 do
masculino, cujas idades variam entre 18 e 54 anos, sendo que a maioria (8)
75
tem até 29 anos, 6 tem entre 30 e 39 anos, 4 estão na faixa dos 40 aos 49 e
apenas 2 têm 50 anos ou mais.
Quanto à escolaridade, a maioria do grupo (9) possui ensino superior
completo, seguido daqueles com pós-graduação (6). 2 possuem ensino
superior incompleto ou em curso, 2 têm Ensino Médio completo e 1 fez curso
técnico.
Sobre o estado civil, o grupo se mostra equilibrado. 9 são solteiros, 9
são casados ou têm uma relação estável e 2 afirmam que são divorciados. 11
dos participantes não têm filhos e 9 têm.
Um aspecto interessante sobre esses dados iniciais é que todos os
participantes desta pesquisa, incluindo os que responderam ao questionário e
os que contribuíram com entrevistas ou depoimentos, fizeram o Caminho de
Santiago do ano 2000 em diante. Incluindo todos os participantes da pesquisa,
1 fez a peregrinação no ano 2000; 1 em 2004; 2 em 2005; 1 em 2007; 5 em
2008; 3 em 2009; 8 em 2010; e 2 em 2011.
Quanto à identificação religiosa dos peregrinos que responderam ao
questionário, 1 se diz kardecista; 2 afirmam ser convertido ou simpatizante do
budismo; 1 afirma seguir a wicca; 1 se diz pagão; 5 são católicos não
praticantes; 3 afirmam apenas crer em Deus; e 5 se dizem agnósticos ou sem
religião. Levantamos ainda a crenças em elementos típicos da Nova Era, sejam
eles especificados como religião, sejam eles mencionados ao longo do
questionário. A crença no poder do pensamento de interagir com a nossa
realidade atraindo ou repelindo situações foi mencionada por 4 pessoas. Já a
crença em energias está presente em 6 dos participantes.
Em anexo constam os gráficos referentes a esses dados. Conhecidos os
participantes, passaremos agora a apresentar e discutir os dados coletados.
4.2- Análise dos dados coletados
4.2.1- Os dados:
Nesta parte da presente dissertação, nos dedicaremos a apresentar ao
leitor os dados obtidos nas perguntas do questionário. É interessante ressaltar
que as perguntas do questionário eram abertas, a fim de possibilitar que os
76
participantes se expressassem mais livremente sobre como se sentiam e se
percebiam antes, durante e após o Caminho de Santiago, inclusive relatando
experiências mais marcantes. Logo, para apresentar estes dados
categorizamos as respostas a cada questão para que fosse possível identificar
as mais freqüentes; ou seja, a divisão que apresentamos aqui foi realizada
após os questionários serem respondidos, e não antes. A apresentação dos
dados será dividida em sete partes, uma para cada questão. A representação
gráfica dos dados aqui apresentados se encontra em anexo.
A primeira questão se refere à vida do participante antes da
peregrinação a Santiago de Compostela, em especial aos conflitos com que a
pessoa lidava em sua vida. Algumas pessoas mencionaram conflitos em mais
de uma das áreas que mencionaremos abaixo.
A maior parte dos participantes descreveu conflitos ligados à vida
familiar (5) e ao trabalho (5).
Não era bem um conflito. Eu trabalhava na diretoria de uma grande
empresa, me dedicava demais ao trabalho, e para mim estava tudo bem. Era
uma dessas pessoas viciadas em trabalho, para você entender, eu chegava a
tomar remédios para não dormir e poder trabalhar mais. Até que um dia fui
demitido. (...) De repente me vi desempregado e foi quando percebi que fora o
trabalho, eu não tinha exatamente uma vida. E é bem difícil quando você
percebe isso. (B.D.T.)
De problemas a gente tinha mais é de brigar muito na família, qualquer
coisinha que a gente não concordava já era motivo para discutir. (R.A.)
A seguir vem o grupo de pessoas (3) que relatam problemas de saúde,
sejam eles físicos ou psicológicos.
Minha vida era corrida. Eu trabalhava demais, comia errado e era um
homem muito sedentário. Eu brinco sempre que o esporte que eu praticava era
levantamento de garfo. E por conta da vida que eu vinha levando comecei a
77
ficar doente. Colesterol alto, stress e eu tinha também um problema no joelho
que eu precisei operar. Se não fosse a boa vontade da minha esposa tenho
certeza que nossa família ia ter se desmantelado, porque eu era um homem
muito ranzinza! (V.M.A.)
Algumas vezes me dava um medo muito grande que me paralisava!
Assim, sem nenhum motivo. Eu ficava muito mal, tinha crises de choro, não
dormia de jeito nenhum, sentia como se alguém me observasse. (L.N.)
Com 2 relatos em cada categoria, vêm a seguir os problemas de
relacionamento entre casal, os conflitos ligados à religiosidade e os
decorrentes da baixa autoconfiança.
(...) comecei a buscar respostas em religiões, conheci várias como o
cristianismo (...), o kardecismo, a umbanda... e nada funcionava para mim.
Conheci então o esoterismo e no começo era legal, mas também acabei me
decepcionando. Porque no fundo essas crenças todas me traziam dogmas e
não me respondiam a sério o que estava acontecendo (...) (M.L.F.)
(...) Essa parte da religião também era meio que um problema para mim.
Eu ia na igreja com a minha família desde criancinha, e sempre achava chato.
Daí fui ficando mais velha e comecei a questionar as coisas para mim mesma,
não era uma coisa que me deixava bem. (L.A.H.W.)
Uma pessoa relata conflito ligado à sexualidade.
Um conflito que eu tinha é que eu sou homossexual e era bem difícil
assumir isso até para mim mesma. Eu escondia! E mesmo quando não
consegui mais esconder de mim, escondia dos outros. Eu achava que ninguém
entenderia (...) (L.A.H.W.)
Houve um relato de problemas financeiros.
78
(...) eu tinha muitos problemas financeiros. Eu tinha um emprego e
ganhava um salário muito bom, até acima do valor do mercado (...) Mas eu era
bem impulsiva na hora de gastar e acabava me endividando. Não entrava na
minha cabeça por exemplo eu sair e não comprar nada. (...) eu fazia
malabarismos com o dinheiro pra poder pagar todos os gastos que fazia,
pegava emprestado com a família e com amigos e até já perdi amigos por isso.
(P.G.)
Uma participante relatou que vinha passando por um processo de luto
muito doloroso em decorrência da morte prematura e repentina do sobrinho.
Eu estava muito deprimida porque eu tinha perdido meu sobrinho quase
um ano atrás. Esse sobrinho era muito especial para mim, porque fui eu que
criei ele, era como um filho para mim. E ele morreu atropelado. Foi horrível, eu
não tinha força nem para sair da cama, não comia, não cuidava da casa, não
fazia nada. Foi muito de repente, eu não estava preparada. (N.L.H.)
Houve ainda um relato de conflitos decorrentes de experiências ligadas
à paranormalidade.
(...) tenho habilidades que a maioria das pessoas não tem. Eu vejo e
converso com seres espirituais e também tenho sonhos e visões sobre coisas
que vão acontecer. Por vários anos eu freqüentei um psicólogo para tentar
conviver com isso, mas ele me tratava como se essas coisas fossem sintomas
de que algo está errado comigo. (...) não tem nada de errado com a minha
mente. (M.L.F.)
Uma pessoa relatou estar frustrada com a vida que vinha levando.
Eu tinha muita dificuldade de me assumir como sou. E acho que por
causa disso, era bem insatisfeita com a minha vida, parecia que nada nunca ia
para frente! (...) o caminho que minha vida estava tomando acabava me
79
frustrando, porque era como se eu não fosse a pessoa que na verdade sou.
(L.A.H.W.)
Houve também um grupo de 3 pessoas que afirmaram terem apenas
conflitos “comuns”, “do dia a dia”, com os quais podiam lidar com relativa
tranqüilidade sem que fossem vistos como problemáticos ou disparadores de
tensão.
Por fim, 5 dos participantes mencionam que não tinham nenhum conflito
em suas vidas.
A segunda questão se destina a investigar quais as motivações que
levaram os participantes a percorrer o Caminho de Santiago. Inicialmente, um
dado interessante é que as motivações podem ser basicamente divididas entre
religiosas ou não religiosas. De todos os 20 participantes, apenas um deles
mencionou um motivo diretamente religioso (“ampliação da consciência
espiritual”) para a peregrinação.
Quanto às motivações (houve pessoas que mencionaram mais de um
motivo), constam: turismo/viagem de férias (5).
Outras 5 pessoas, por outro lado, mencionam que a maior motivação foi
algum dos conflitos citados.
Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava
vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo
mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.
O que eu sentia era uma grande insatisfação. (...) mas naquela época para
mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo caminho fossem coisas
separadas, só hoje eu consigo perceber que na vida da gente nada é
separado, tudo é parte do mesmo todo e dança conforme a harmonia da
Deusa. (L.A.H.W.)
3 pessoas mencionaram que o que mais lhes motivou foi a aventura que
envolveria a situação de liberdade do peregrino.
80
Mas não tinha nenhum motivo religioso não, ate porque naquela época
eu era ateu. A gente ia pela aventura, pelo sentimento de liberdade. (H.C.M.)
Também 3 pessoas mencionaram haverem sido atraídas pelo aspecto
cultural e/ou histórico ligado ao Caminho de Santiago.
Eu sou apaixonada por história medieval! Uma das motivações foi essa, ver
tudo aquilo de perto. (M.L.F.)
A mística do caminho foi mencionada como aspecto motivador por 2
participantes, sendo que uma pessoa mencionou haver percorrido o Caminho
de Santiago em busca de uma ampliação da consciência espiritual.
Quando eu tinha uns 16 anos ou coisa assim eu li O diário de um mago,
do Paulo Coelho. Na época eu achei que o Caminho e a história toda era uma
ficção. Mas olhando na internet eu descobri que existia mesmo e a partir daí eu
sempre ficava pensando em ir algum dia. É uma experiência muito boa e que
recomendo muito, em especial para pessoas que buscam uma ampliação da
consciência como eu sempre busquei. (A.Y.A.)
Duas pessoas mencionaram outras motivações.
Sou descendente de espanhóis e queria muito conhecer a região de
onde vieram meus avós. (D.N.)
Houve ainda um grupo de 4 participantes que afirmaram que não tiveram
um motivo para fazer a peregrinação, ou que não sabem explicar o que lhes
atraiu.
Dentre as 20 pessoas, 4 afirmam que percorrer o Caminho de Santiago
era um sonho antigo, com freqüência adiado, e que, por fim, puderam colocar
em prática.
81
A terceira questão se refere aos momentos mais marcantes ao longo da
peregrinação. Surpreendentemente para nós, 25% da amostra não conseguiu
especificar um momento de maior intensidade emocional.
4 pessoas relatam que a chegada Compostela, ao fim do Caminho, foi
um momento de muita emoção.
A seguir, 3 peregrinos mencionam a passagem pelo pueblo abandonado
de Foncebadón como uma experiência marcante, suscitando reflexões e
reações emocionais intensas.
(...) Não sei se você conhece a história de uma cidade fantasma que
existe no caminho. Foi um cigano que antes de morrer rogou uma praga e aí
desde então não tem mais ninguém que vive lá. Passar por lá me deu uma
emoção muito grande, não sei nem dizer bem o que. (...) Acho que reconheci
na cidade fantasma a vida que eu estava levando até então. (L.A.H.W.)
Outras 3 pessoas mencionam que a experiência mais marcante que
tiveram ao longo do caminho foi o encontro com o outro, seja este outro
conhecido como um filho, um desconhecido que o Caminho lhe trouxe ou um
outro espiritual.
Teve um dia, a gente já estava quase chegando no albergue e eu torci
meu pé. Fiquei bastante inseguro sobre o que fazer naquela situação em uma
estradinha no meio do nada! E então meu filho carregou minha mochila por
todos os quilômetros que faltavam. Sem ninguém pedir, foi uma atitude dele
mesmo. Foi quando eu parei de ver ele como um moleque irresponsável, ele
não era isso, ele era um homem! E merecia todo o meu respeito. (R.A.)
(...) quando paramos para comer numa vilinha que eu não lembro o
nome, acabei conversando com um cara que era espanhol e que sabia muito
dos cavaleiros templários. E ele falou pra mim que mais do que proteger o
caminho ou buscar tesouros, como eu achava, o que todo cavaleiro deveria
fazer era lutar por honra e justiça, e que só assim ele ia conquistar os maiores
tesouros, que estavam dentro dele mesmo. E eu acho que foi aí que entrei
82
mesmo na idéia da peregrinação. Lutar por justiça e honra me pareceu uma
luta que valia a pena. (G.S.A.)
Duas pessoas relataram a missa dos peregrinos como um momento
especialmente emocionante; e outras duas mencionaram que o que mais lhes
emocionou no Caminho foi a relação estabelecida com o tempo, muito distinta
com a forma como usualmente se lida com o tempo “aqui”.
Houve ainda dois peregrinos que mencionaram nesta questão a subida
do Cebreiro, uma montanha muito alta e íngreme, de difícil acesso.
(...) me emocionou subir o Cebreiro, que é uma subida muito grande e
difícil, que olhando de baixo você acha que não vai conseguir e olhando de
cima você nem acredita que conseguiu. (K.S.P.D.)
Uma pessoa relatou que o momento mais emocionante foi a partida.
Outra pessoa relatou ter uma grande comoção emocional ao passar pela
Ermida de Santa Maria de Arnotegui, palco da história de Santa Felícia.
(...) me fez pensar muito sobre a caridade, não no sentido de sair por aí
dando o peixe, mas ensinando a pescar. O mundo tem tanta gente que precisa
de ajuda e poderia ser um lugar melhor se todos tivessem boas oportunidades.
(A.Y.A.)
Houve ainda um participante que citou o momento de depositar uma
pedrinha na Cruz de Ferro como um momento muito marcante.
(...) quando coloquei uma pedrinha no pé da cruz, parece que tirei uma
tonelada das costas! Nunca mais tive aquelas crises de medo, acho que
descarreguei tudo lá. (L.N.)
Uma pessoa mencionou outro motivo:
83
Eu sempre quis emagrecer, porque sempre fui gordinha. Sempre tive
muitos problemas com meu peso e com comida, desde bem novinha. (...) E
depois de mais alguns anos você passa dos 30, tem filhos e o problema não é
mais só de estética, você começa a ter problemas de saúde. Eu tentava de
tudo para emagrecer: dieta da sopa, da salada, da lua, mas nunca funcionava.
Tentava tomar remédios e eu até emagrecia, mas logo que parava voltava tudo
outra vez. Eu sentia um vazio tão grande, sentia que precisava ter alguma
coisa dentro de mim e comia mais e mais... O caminho foi uma tentativa de
emagrecer também. Até hoje eu nunca conversei com mais ninguém que fez
para emagrecer, mas antes eu ouvia muitas pessoas falarem que andaram
muito e acabavam emagrecendo um pouco. (M.M.Z.S.)
Dentre todos os participantes que responderam ao questionário, 20%
afirmou haver vivenciado algum tipo de experiência mística ao longo do
Caminho.
Passando por Foncebadón, se não me falha o nome. Era uma cidade
abandonada. Não sei te dizer o que rolou, mas foi muito louco! Me deu uma
emoção diferente, me fez ter certeza pela primeira vez na minha vida de que
existe algo maior que nós, e que esse ser, Deus, deve ter poder sobre a gente.
E o mais engraçado é que a gente só parou para explorar essa cidade porque
ouvimos um pessoal dizendo que ela era cheia de demônios e pareceu uma
boa aventura. Não que eu acreditasse, se eu acreditasse eu nem ia, mas me
deu vontade de ficar um tempo lá, dar uma boa olhada. Eu estava lá, sozinho
em silencio e eu sentia uma presença que logo me pareceu ser muitas
presenças diferentes. Eu sei que tinha coisa lá, e eles (as presenças) eu tinha
a sensação que vinham pra cima de mim, que iam me fazer mal e eu não vou
mentir, me deu muito medo (...) eu tinha que fazer alguma coisa e não sabia o
que. Peguei a concha que eu usava na mochila, como a maioria dos peregrinos
e me concentrei em Santiago. Eu precisava de ajuda lá, e se tanta gente
acredita nele, tem que ter algum poder né. E logo as presenças sumiram e tudo
que restou era uma paz muito grande em mim. Me deu uma crise de choro
muito forte. Não sou de ficar por aí chorando, não pense isso de mim! Mas a
84
emoção foi muito grande, eu sei que era Deus. Maior adrenalina, fui procurar
demônios e encontrei deus. (H.C.M.)
(...) Teve uma noite que eu não conseguia dormir de jeito nenhum. E
deitada na cama ouvi a voz do meu sobrinho, como se ele estivesse lá do meu
lado dizendo “tia, não chora. Eu estou bem e quero que a senhora volte a
sorrir”. Chorei muito depois disso, mas de alegria, por saber que ele estava
bem onde quer que ele estava. Eu tive certeza na mesma hora que era ele.
(N.L.H.)
A quarta questão é referente aos valores, sentimentos, idéias, emoções,
etc. que a pessoa adquiriu na peregrinação e que a acompanha até o presente.
Novamente, algumas pessoas mencionaram respostas em mais de uma
categoria.
Esta é uma das questões mais relevantes do nosso questionário, pois
como já afirmamos anteriormente na presente dissertação, são os valores do
sujeito que lhe possibilitam atribuir/perceber/construir/transformar algum
sentido em suas vidas.
Seis dos participantes citam a persistência, também descrita como
superação, coragem ou “posso fazer qualquer coisa!”. Três peregrinos
descreveram algo parecido, um sentimento de sucesso, de “ser vitorioso”.
Cinco pessoas mencionam a autonomia como algo que as acompanha desde
então.
Pude me ver como uma pessoa que tem tudo nas mãos para viver a vida
que quiser. (B.D.T.)
Outras seis pessoas afirmam que se tornaram mais espiritualizados ou
mais humanizados ao longo da peregrinação.
A certeza de que Deus é bom e sabe o que faz. Que nada é por acaso e
que um dia todos vamos nos encontrar outra vez. (N.L.H.)
85
Três pessoas afirmam terem adquirido um forte sentimento de justiça, ou
um desejo intenso de lutar por um mundo melhor.
Ajudar o próximo é uma coisa muito boa, que me faz um homem melhor
e faz do mundo um lugar melhor. Eu fui para lá querendo ampliar minha
consciência num sentido espiritual, e não é que isso não aconteceu, mas
comecei a ter mais consciência da vida material. Ajudar alguém em dificuldade
a ter uma vida mais digna, sentir e respeitar as dores do outro é uma coisa que
me dá força para levar a minha vida de um jeito melhor. Percebi que para eu
estar bem, as outras pessoas precisam ficar bem também, eu seria um
hipócrita tendo uma vida legal e deixando todos a minha volta sofrendo quando
muitas vezes eu tenho o poder de dar oportunidades para essas pessoas terem
uma vida melhor. (A.Y.A.)
Quatro pessoas citam outro tipo de valores, dentre os quais destacamos:
Era uma paz muito grande como eu nunca tinha sentido. (P.G.)
Um sentimento que eu não saberia que nome dar. Algo como ter entrado
em contato com as minhas origens e me sentir protegido por causa disso, me
sinto mais forte. (D.N.)
Na quinta questão, investigamos como foi a partida. Para a maior parte
dos participantes (14), a partida foi um momento “normal”, sem maiores
conflitos ou emoções.
(...) quando parti eu estava muito seguro do que ia fazer, não foi uma
loucura, estava tudo acertado. E sentir esse apoio da minha família foi muito
bom para mim. (V.M.A.)
Quatro pessoas afirmam que partir para a peregrinação foi sentido como
um alívio, justificando que precisavam de algum tempo só consigo mesmas.
86
Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui buscar alguma
coisa que eu nem saberia, e acho que ainda não sei, explicar o que. (B.D.T.)
Cara, para ser bem sincero, tudo o que eu deixei para trás foram minhas
dúvidas. (D.B.)
No meu caso foi um grande alívio, vendo a coisa hoje. Na época fiquei
muito de saco cheio de ter que ir, mas logo que entrei no espírito da coisa,
fiquei muito grato pelos meus pais terem me levado mesmo que a força.
(G.S.A.)
Apenas uma pessoa mencionou o momento de partir como muito
conflitante, mencionando choro e reação emocional bastante intensa.
Foi muito difícil, se meu irmão não estivesse comigo eu não iria. Difícil
deixar meus pais, nossa casa, a rotina que eu tinha todos os dias... eu pensava
que o dia da viagem estava chegando e já me dava uma ansiedade muito
grande, medo do avião, de estar longe, de me machucar, de estar por tanto
tempo num lugar aberto, de não conseguir andar tanto... Chorei muito,
principalmente no aeroporto me despedindo dos meus pais. (L.N.)
Algo que não esperávamos nesta questão é que alguns dos
participantes (9) acabaram por descrever a preparação que tiveram para partir.
8 pessoas descreveram como manejaram a vida cotidiana para que pudessem
se ausentar durante em média um mês para fazer a peregrinação. Relatam
negociação de férias, como organizariam a rotina da casa e da família sem a
presença deles, quem cuidaria dos filhos, o que precisaram comprar, entre
outros. Uma pessoa relatou a preparação espiritual que fez antes da
peregrinação.
Não é como partir para uma viagem turística. A partir do momento que
eu fechei a viagem eu já comecei a me preparar. Eu tinha um bom
condicionamento físico, então não estava preocupada com a caminhada como
87
muita gente que eu encontrei me dizia que estava. Todas as noites antes de
dormir e todas as manhãs antes de tocar meus pés no chão eu meditava e
fazia uma visualização para que tudo fosse bem no caminho. (L.A.H.W.)
A sexta questão foi referente à volta para casa. De maneira geral, este
momento foi considerado mais emocionante do que a partida.
Sete pessoas afirmam que estavam com saudades de casa e da família,
ficando felizes em estar de volta.
A volta foi mais emocionante que a ida. Reencontrar meus pais, meus
avós, depois de ter visto onde eles viviam, me senti mais próximo deles e da
nossa história. Antes a história da nossa família era só algo que se passou,
hoje não, é algo concreto e que faz parte de quem eu sou. (D.N.)
Seis pessoas relatam que gostariam que o Caminho pudesse durar mais
tempo; e outras seis afirmam que, ao retornar, sentiram a necessidade de fazer
mudanças em suas rotinas.
Voltar foi bom, mas levei vários dias para me ajustar outra vez a rotina
que eu tinha aqui e percebi que não dava. Então a rotina precisou ser
modificada. (V.M.A.)
Voltar e ver meus amigos daquele jeito, iguais, do jeito que eu era antes,
né, me desanimou. Vai ver que eu me toquei de como eu era, mas eu sentia
como se o mundo fosse um lugar tão grande, com tanta coisa pra ver e pra ser,
e eu não queria mais aquela vidinha de menininho mimado, de dormir na aula,
jogar vídeo game e ir pra balada. Eu quero ser digno da vida que tenho. Quero
explorar possibilidades, lutar e me esforçar para conquistar meus tesouros.
Acho que eu meio que não voltei, continuo no espírito da coisa. (G.S.A.)
A afirmação de que houve demora ou dificuldade para ajustar-se
novamente à vida cotidiana está presente no discurso de 5 dos participantes.
88
Demorei várias semanas pra entrar nos eixos outra vez. Ou melhor,
ainda não entrei! Eu nunca mais fui o mesmo depois disso, num sentido bom.
(D.B.)
Outros 5 afirmaram que voltaram animados e com coragem de fazer
algum tipo de mudança em suas vidas.
Só quando voltei foi que eu vi quantas coisas eu tinha que mudar na
minha vida. Organizar meus gastos mas também rever minha relação com o
dinheiro e as pessoas, porque as pessoas não valem o que elas tem, elas
valem pelo que são. (P.G.)
Um grupo menor, de três pessoas, afirmam que a volta foi triste pelo fim
das férias.
Por fim, a questão final investiga as mudanças ou diferenças que o
sujeito percebe em si e/ou em sua vida após ter feito a peregrinação.
Novamente, a maioria dos participantes deu respostas que cabem em
diferentes áreas da vida, como citaremos a seguir.
E acho que tudo flui melhor por eu viver mais em paz comigo mesma.
(I.S.A.)
Hoje eu trabalho para viver, e antes eu acho que vivia para trabalhar.
(R.A.)
(...) Eu já tenho 18 anos, sei que não sou um cavaleiro medieval, mas
acredito que se eu tiver firme essas idéias, vou ser um homem melhor, ter uma
vida digna. (...) Não sei te explicar, mas eu sinto como se agora sim eu
estivesse aqui, vivendo minha vida. Antes eu só ia empurrando tudo, nem
ligava. Agora eu quero fazer minhas escolhas, lutar e conquistar meus
objetivos. Só serei digno dos meus sonhos se eu lutar por eles. Estou levando
as coisas mais a sério, acho que cresci. (G.S.A.)
89
Acho que essa experiência (a peregrinação) me fez ver que somos todos
diferentes, e está tudo bem em ser diferente, não é uma coisa ruim, porque
comecei a acreditar que são as diferenças que nos fazem ser nós mesmos.
(L.A.H.W.)
Me senti parte de alguma coisa maior do que eu, é uma sensação que
eu nunca tive antes. (M.M.Z.S.)
(...) o que importa mesmo da vida é os momentos de alegria. Porque
quando chegar no fim da vida não vou lembrar do quanto eu me esforcei pra
fazer um bom trabalho, vou lembrar muito mais dos bons momentos que tive
com minha esposa, minha família, que são as pessoas que amo. (V.M.A.)
Porque eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o que eu iria
encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu não tinha idéia de quem seria eu
quando eu voltasse. Com certeza já não sou o mesmo. (D.B.)
A seguir, discutiremos os dados que acabamos de apresentar, buscando
demonstrar que as transformações internas pelas quais os participantes
passaram ao longo da peregrinação marcam a forma como se percebe a
própria vida, modificando o sentido a ela atribuído, tal como em um rito de
passagem.
4.2.2- Leitura dos dados:
Para que se compreenda a forma como os participantes que
contribuíram com entrevistas e depoimentos atribuíram sentido às suas vidas
(ou, insistimos, o construíram?), o primeiro ponto a ser analisado deve ser a
motivação.
Notamos ao longo do processo de coleta de dados que quando
questionávamos algo como “o que o levou ao Caminho de Santiago?”,
normalmente os participantes mencionavam algum tipo de conflito. A seguir, o
que se passava na maior parte dos casos é que se punham a narrar suas vidas
90
pregressas à peregrinação, destacando conflitos e dificuldades em diversos
setores da vida (trabalho, relacionamento conjugal/familiar, saúde, etc.).
Concluíam, por fim, que a vida não estava caminhando para o rumo que eles
gostariam que caminhasse e, ao perceberem isso, decidiam que precisavam
fazer algo que transformasse essa situação. L. explica que sentiu algo
semelhante ao que dissemos:
(...) o engraçado é assim, sempre quando se chega numa conversa de
bar e tal é “por que você está fazendo o Caminho?” e é uma coisa que ninguém
nunca consegue explicar por que... “ah! Estou fazendo por este motivo!” Não,
que faz o Caminho normalmente diz que teve um chamado... não é, é porque
todo mundo tinha alguma questão pra resolver, interna...
Assim, no questionário, incluímos uma questão anterior a essa,
abordando possíveis conflitos. A maior parte dos participantes se refere a
conflitos da vida pessoal, com destaque para conflitos na família ou entre o
casal, problemas de saúde física ou psicológica, entre outros.
É digno de nota que 25% dos participantes mencionaram que não
tinham conflito algum. Para Turner255, como mencionamos anteriormente, o
conceito de conflito pressupõe que haja estrutura social. Portanto, diante dos
dados trazidos pelo questionário, podemos pensar em duas hipóteses. A
primeira seria que ao não perceber conflito algum em sua vida, nem mesmo
conflitos menores, que alguns dos participantes denominam “conflitos comuns
do cotidiano”, a pessoa não se perceba (ou não se sinta) fazendo parte da
estrutura social seja por sentir-se excluído dela de alguma forma, seja por optar
por não se envolver, postura muito freqüente e valorizada na
contemporaneidade, como destacamos em capítulos anteriores ao abordar o
pensamento de Bauman256. A segunda hipótese seria que a pessoa não
perceba conflito algum em sua vida por não perceber-se como sujeito, isto é,
como alguém autônomo o suficiente para agir por si mesmo em sua vida, de
acordo com suas próprias escolhas. 255
Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, pp. 153-154. 256
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade.
In: Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, passim.
91
Retomando a análise das motivações, quando insistíamos em saber por
que optaram pelo Caminho de Santiago e não por outra rota de peregrinação,
ou alguma outra atitude, como uma psicoterapia ou mudanças menos drásticas
na vida cotidiana (caminhadas e alimentação mais saudável se o problema era
na saúde, mudança de trabalho se este fosse o conflito, passar mais tempo
com a família, ter mais momentos de lazer, etc.), o que geralmente respondiam
é que a mística do Caminho de Santiago lhes havia encantado, que
desconheciam a existência de outras rotas de peregrinação ou mesmo que no
momento em questão encontravam-se “paralisados”, sem saber que atitude
tomar para mudar suas histórias, fazendo com que percorrer o Caminho de
Santiago lhes parecesse a melhor atitude no momento, pois lhes permitiria o
autoconhecimento e algum tempo de reflexão que os participantes julgavam
não ter em suas rotinas. Como um ótimo exemplo disso, R. afirma que:
A idéia do caminho surgiu naturalmente na minha cabeça, como uma
certeza e uma vontade. Eu não traçava planos sobre percorrê-lo, não
pesquisava, não tinha informações sobre o mesmo, e não li Paulo Coelho!
Nada. Acabei por ver no Caminho de Santiago uma beleza histórica inigualável,
uma oportunidade de experiência pessoal e também um desafio físico.
Em outros casos, a motivação é o lazer e o turismo que a viagem
proporcionará. Isso não significa que não possam ocorrer reflexões e
mudanças na vida dessas pessoas. Destacamos os seguintes relatos de
alguns questionários:
Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava
vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo
mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.
O que eu sentia era uma grande insatisfação. Conheci o Caminho de Santiago
em um documentário na TV, me pareceu uma viagem interessante e comecei a
ler sobre ele na internet, até que em alguns meses acertei tudo e fui, mas
naquela época para mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo
caminho fossem coisas separadas (...) (L.H.S.W.)
92
Sabe quando seus pais inventam o maior programa de índio e te arrastam junto
mesmo você falando que não vai? Foi tipo assim. Até a véspera eu não queria
ir nem arrastado. Falei que eles podiam ir e eu ficava em casa de boa, falei que
podia ficar na casa de algum amigo, mas nem me ouviam. Indo pro aeroporto
eu ainda tinha esperança do vôo ser cancelado, da gente pegar um avião
errado e chegar em algum lugar bem louco, tipo Nova York, que nem em filme,
sabe? Ficava imaginando essas coisas só de zuera. Daí antes de embarcar
minha mãe me deu um livrinho sobre os cavaleiros templários que guardavam
o caminho antigamente. E fiquei imaginando que já que eu estava no vôo certo,
isso podia ser uma aventura, como se eu fosse um cavaleiro desses, em busca
de algum tesouro. (G.S.A.)
Indiretamente, portanto, a questão da motivação, seja ela qual fosse,
abordou o passado dos participantes. Ainda na esfera temporal do passado,
entram as preparações e expectativas sobre a peregrinação. Notamos que,
apesar da peregrinação ser uma experiência religiosa, poucos dos
participantes menciona nenhum tipo de preparação religiosa, que não a missa
dos peregrinos ao longo do Caminho de Santiago em alguns casos. Nos
questionários, dos nove participantes que descreveram algum tipo de
preparação, e entre eles, apenas um relatou ter se preparado espiritualmente,
com visualizações e meditações para que tivesse um bom caminho.
Para os participantes, a preparação normalmente gira ao redor de
aspectos práticos da vida: conseguir tempo para ir, falar sobre a decisão com a
família, buscar informações úteis para a viagem, treinar caminhadas, etc., e
mesmo ao redor de aspectos de consumo, como comprar mochila, calçados de
caminhadas, passagens e os demais itens necessários. Este processo fica
claro no depoimento de V.:
(...) ela (a mãe de V.) começou a pesquisar, a se preparar, a adquirir
equipamentos, a estudar, a falar muito sobre o assunto (...).
93
Também nos questionários isso fica bem evidente conforme as pessoas
relatam como organizaram a vida diária em casa ou no trabalho durante suas
ausências; bem como outros tipos de preparação, geralmente ligados ao modo
de vida contemporâneo. Para exemplificar o que queremos dizer, separamos
um trecho do questionário respondido por K.L.
Eu fui fazer o caminho, mas não queria ter que arrastar aquela mochila
pesada por tantos quilômetros. Então escolhi um modelo desses próprios para
caminhadas de 1 ou 2 dias, pequeno. E antes de partir eu estudei muito bem
meu roteiro e separei mudas de roupas e barrinhas de cereais e outras coisas
que eu poderia precisar em algumas caixas. Então fui ao correio e despachei
cada caixa para uma cidade ao longo do caminho. Quando eu chegava a
alguma delas eu ia ao correio, retirava o pacote e tinha roupas limpas! Já
enchia a caixa com o que eu não fosse precisar e mandava para casa. (K.L.)
Isso levanta uma questão: ao transformar a peregrinação num produto
pronto para o consumo, a identidade de peregrino estaria também sendo
transformada em algo que “se compra”? Bauman257 afirma algo semelhante ao
dizer que atualmente o mundo é projetado a partir de produtos disponíveis para
o consumo imediato. Com isso, toda espera se torna uma demora, perdendo o
sentido. Mesmo as identidades, para o autor, dentro desse modo de vida,
seriam descartáveis e, portanto, acrescentamos, passíveis de serem
consumidas.
No nosso ponto de vista, o maior risco que isso traz é referente à forma
como essa identidade é vivenciada pelo sujeito, o que tem relação com o
sentido atribuído à própria identidade, a si mesmo. Assim, quando uma
identidade é construída ao longo da história da pessoa, sendo constantemente
marcada e transformada pelas vivências, emoções e reflexões de cada um, a
pessoa cria para si algo único, uma identidade “sob medida”, a pessoa terá
coerência entre como se percebe e como age no mundo, o que lhe conferirá
autonomia.
257
Ibidem, pp. 112-113.
94
Por outro lado, ao ser meramente consumida, a identidade
provavelmente não vestirá bem na pessoa, pois é algo mais genérico, não tão
pessoal. Logo, não há tanta reflexão e autonomia para que se adote a
identidade em questão. Não é preciso ser, apenas parecer, tal como um ator a
encenar uma peça: naquele momento ele aparenta ser (e, se for um bom ator,
nos fará acreditar que de fato é!) determinada personagem. Entretanto, na
cena seguinte, ele pode ser outro, sem que haja vestígio algum daquele que
ele um dia fora. Não há envolvimento, a história de vida da pessoa não tem um
fio condutor, um sentido; fica perdida em pequenos aglomerados que não
dialogam entre si, levando a pessoa a perder-se no vazio.
A seguir, analisamos a narração sobre o Caminho em si, com ênfase
nos principais pensamentos, sentimentos e inquietações que os participantes
desta pesquisa (agora peregrinos) vivenciaram ao longo do Caminho de
Santiago. Esta é a parte que os participantes se preocuparam em contar com
mais riqueza de detalhes, e emoção. É como se o trajeto da peregrinação se
repetisse a cada dia em suas vidas e, justamente por este fato, equiparamos
esta época ao tempo presente. L. deixa isso claro ao dizer que:
O peregrino é peregrino a vida inteira. Hoje eu me sinto peregrina. Sou a
L. peregrina. Eu até brinco que se vou preencher um negócio e tem lá profissão
eu coloco “peregrina”! Então eu me sinto uma peregrina na vida. Porque vi que
minha vida esta sempre em transformação, eu estou sempre em busca de algo
melhor.
Apesar de a peregrinação estar já encerrada no momento em que todos
os participantes deram seus depoimentos para a pesquisadora, a intensidade e
presença constante de pensamentos, sentimentos e valores no discurso (e,
portanto, na mente) dos peregrinos permitem com que analisemos este tempo
como ainda presente (obviamente, não no aspecto físico, mas sim no psíquico).
Nos questionários, isso fica claro em diversos momentos, sobretudo ao
se discutir a volta, quando vários dos participantes afirmam que gostariam que
o caminho tivesse durado mais tempo, ou mesmo quando relatam que tiveram
dificuldades para se adaptar novamente à rotina diária, geralmente sentindo
95
necessidade de modificá-la (mesmo nos casos em que, anteriormente à
peregrinação, o sujeito não percebia sua vida como conflitante). O trecho que
segue demonstra bem isso:
(...) eu queria que o caminho tivesse durado mais tempo, foi uma
experiência que me permitiu entrar em contato com lados meus que eu nunca
me permitia ou quando entrava era de um jeito muito rígido, que não me fazia
bem. (M.L.F.)
O teor dos pensamentos e sentimentos ao longo da peregrinação nos
permite observar o momento exato em que se passam as transformações na
atribuição de sentido à vida, o que veio a se refletir na própria identidade dos
participantes, visto que de “alguém com muitos problemas”, os participantes
passam a identificar-se como “peregrinos” (L. deixa isso muito claro no trecho
anteriormente citado). Tal mudança, aparentemente óbvia e corriqueira revela-
se muito mais profunda do que parece: para ter sido capaz de modificar a
forma como o sujeito se identifica e se apresenta ao mundo e ao outro, ele
deve ter refletido sobre seus valores, ato este que trará mudanças
consideráveis no sentido atribuído à existência.
No discurso de V. fica claro como, na opinião do participante, as
vivências ao longo da peregrinação, as reflexões e os novos valores podem
trazer transformações para o sentido percebido na existência e para a
identidade:
(...) encarei o desafio e de ultima hora fui junto. Aproximadamente um
mês depois eu faria 15 anos, no meio da peregrinação. Posteriormente ela me
confessou que de presente de “debutante” me mostraria o quão dura é a vida,
que a partir daquele momento eu seria um homem de verdade, com valores
ainda mais aguçados e espírito mais humano. Hoje devo tudo que sou à minha
mãe, ao meu pai e, com certeza, ao Caminho de Santiago que me moldou com
uma sutileza de um elefante para a vida.
96
Também no questionário este aspecto pode ser avaliado, em diversas
questões, uma delas referente aos momentos mais marcantes da
peregrinação, outra referente aos pensamentos e valores freqüentes ao longo
do percurso, e por fim, na questão referente às mudanças que a pessoa
percebe em si e/ou em sua vida após ter feito o Caminho de Santiago. Nesta
última questão, era de nosso interesse perceber o “após”, entretanto, junto com
ele surgiram conteúdos do “durante”, mesclando diversos tempos em um.
Aprendi a viver com menos. Com menos roupas, com menos
preocupações em ter que ser que nem todo mundo, fiquei menos consumista e
já percebo que as meninas também estão ficando assim. (M.M.Z.S.)
Eu comecei carregando muito mais coisa do que podia e do que
precisava. E quando isso pesa nos seus ombros você percebe que pode
passar bem sem todas aquelas coisas e vai ser mais feliz sem elas e sem as
dores que carregar tudo aquilo traz. Também na vida a gente não tem que ficar
sempre carregando tantas coisas, dá pra ser feliz com muito menos. (P.G.)
Mudei meu jeito de ver a vida e a morte. A morte não é um fim. Comecei
a freqüentar um centro espírita e hoje sou kardecista. E tenho a certeza que
aconteça o que acontecer, Deus sabe o que faz na vida da gente. (N.L.H.)
Fiquei sendo uma pessoa mais prática, organizada e também mais
responsável e independente. Também passei a ter consciência de que as
pessoas comuns não vivem como eu vivo. Na 1ª vez que eu cheguei no
albergue pra você ter idéia, eu nem sabia lavar roupa e uma outra moça me
ensinou como era. Porque eu nunca precisei fazer essas coisas. (...) Foi uma
boa experiência para mim, passei a dar muito mais valor a vida que tenho e a
levar as coisas mais a sério. (K.S.P.D.)
Neste ponto, gostaríamos de retornar à questão da possível construção
do sentido (e não meramente atribuição de algum sentido “pré-moldado”, por
exemplo, como L. afirma que se identificava antes da peregrinação: “eu não era
97
a L., eu era a mulher do E.”). O sentido só pode ser construído pelo sujeito, ao
nosso entender, quando existe a adequada reflexão e o questionamento
maduro acerca dos valores que orientam a vida do sujeito em questão. Como
menciona Frankl258, o sentido precisa ser algo buscado e, acrescentamos,
construído ao longo dessa busca, pois apenas desta maneira o sentido que se
dá à existência será forte o bastante para sustentar o sujeito como um ser
autônomo e psiquicamente saudável. Retornando ao exemplo que citamos,
quando L. não é L., mas sim “a mulher do E.”, notamos que ela não tem
possibilidade alguma de ser um sujeito, pois não tem autonomia (aqui, o termo
sujeito deve ser entendido não como um indivíduo, mas como aquele que age
ou tem o potencial para a ação). E., seu marido, é que seria o sujeito, L. seria
apenas um complemento, o objeto, não age por si, apenas através de E.
Apenas o sentido que é construído permite a reflexão e, portanto, a
transformação.
A seguir, o passo seguinte desta análise é referente às as decorrências
da peregrinação, que podemos entender como o futuro ou como a forma que
os novos valores e o sentido supostamente transformado se acomodaram na
vida cotidiana dos participantes (ainda identificados como “peregrinos”).
Pensamos nesta parte como futuro (apesar de, tecnicamente, ela já estar no
passado e presente) porque de acordo com o discurso observado nos
participantes, este é o lugar, para eles, do retorno. L. demonstra com clareza
este processo ao contar como as pessoas conhecidas reagiam frente às
atitudes que ela gostaria de tomar em sua vida logo após retornar:
E todo mundo diz pra mim “Passa, espera! Não toma atitude nenhuma
na sua vida...”. Não passa! Eu durmo pensando no Caminho, acordo pensando
no Caminho...
De fato, muitos dos participantes que responderam ao questionário
mencionaram que a volta foi mais marcante do que a partida. Analisamos que,
ao voltar e se deparar com a vida que tinha antes da partida, a pessoa, já
transformada, tem a oportunidade de olhar para si e para sua vida de antes de
258
Cf. FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
98
maneira mais crítica do que o usual. Assim, tem a oportunidade de transformar
o que julga ser necessário. Selecionamos alguns trechos dos questionários
onde isso fica evidente.
(...) todos os dias eu acordo cedo e vou caminhar, mesmo que seja um
dia cheio de compromissos, eu faço isso. Também faço questão de ir surfar
nos finais de semana, eu não fazia isso nunca antes (...) Percebi que a carreira
não é tudo. A vida pode ser boa e feliz com isso, ou sem isso, ou ainda apesar
disso. (B.D.T.)
Eu mudei muito. Ou melhor, o jeito de encarar a vida é que mudou. Eu
rio mais, brinco mais, sei que para todo problema existe uma solução e que
tudo é possível. Hoje eu valorizo coisas que antes eu não dava importância,
estar com a minha família, com o meu netinho, e ter qualidade de vida antes de
tudo! Cuido da minha saúde, da minha alimentação e descobri que fazer
esportes me deixa mais feliz. Antes eu via essas coisas como implicância dos
meus médicos. E também parei de fumar. (V.M.A.)
Observamos um grande entusiasmo também nesta parte das narrações,
vista como o momento de colocar em prática tudo aquilo que foi vivenciado,
sentido e pensado ao longo da experiência da peregrinação. Tanto que, em
praticamente todos os casos, os peregrinos diziam rapidamente aquilo que se
passou quando voltaram e logo passam a discorrer sobre os novos valores, o
novo estilo de vida e, implicitamente, o novo sentido que encontraram para
significar suas existências.
Assim, percebemos o quanto é importante para a maior parte dos
participantes desta pesquisa reforçar a identidade de “peregrino”, pois é ela
que sustenta seu novo modo de vida, ao menos até que algo novo surja.
Talvez venha daí a vontade (ou necessidade?) que muitos dos peregrinos têm
de contar sua história, seja oralmente, seja através de livros, blogs na internet,
desenhos ou outras manifestações artísticas.
A questão da participação em grupos de discussão na internet também
foi marcante. Todos os participantes desta pesquisa foram localizados através
99
da internet. Percebemos que a internet oferece um ambiente que, ao ser
virtual, é menos rígido que o mundo “concreto”. Assim, permite que
identidades, valores e modos de vida possam ser livremente construídos e
transformados, de acordo com a vontade/necessidade do sujeito. A
participação como “peregrino” nesses grupos virtuais faz com que o tempo da
peregrinação, juntamente com os ideais e valores a ela relacionados, bem
como a identidade de “peregrino”, se mantenha por um tempo muito maior e
duradouro do que a peregrinação em si.
Vendo as peregrinações como ritos de passagem, como propõem Van
Gennep259 e Turner260, podemos interpretar que o grupo virtual continue
cumprindo as funções do grupo/do outro com quem o peregrino se deparou ao
longo de sua caminhada. Para Turner261, sendo a peregrinação um rito de
passagem, o peregrino, enquanto alguém que está passando, encontra-se fora
da estrutura social.
Destacamos a seguir, alguns trechos em que os próprios participantes
vivenciaram a peregrinação como uma passagem para uma nova vida:
Uma coisa legal é que na véspera da viagem eu juntei toda a minha
família, meus amigos e fiz uma festa de despedida para mim mesma, meio que
terminando aquela parte da minha vida e me preparando, estando livre para o
que quer que fosse surgir para mim a partir dali. (L.A.H.W.)
(...) a chegada a Compostela e a missa dos peregrinos foram muito
emocionantes. Nem sou católica nem nada, mas foi uma cerimônia muito linda,
como se viesse fechar uma fase que eu passei e daqui para frente tudo ia ser
melhor. (H.G.)
Assim, as relações sociais entre peregrinos são diferentes das que
ocorrem na estrutura, pois apresentam a qualidade de communitas, conceito
que já explicamos em maiores detalhes nos capítulos anteriores. Em especial,
259
Cf. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem, pp. 154 – 155. 260
Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, passim. 261
Ibidem, pp. 166-167.
100
isso ocorre nas peregrinações mais longas, como é o caso de Santiago de
Compostela. Turner262 menciona ainda que, inicialmente, surge entre os
peregrinos a communitas espontânea, porém, com o passar do tempo, é a
normativa que se estabelece. Destacamos a seguir um trecho de um dos
questionários aplicados em que um participante descreve com clareza as
relações na communitas:
(...) uma coisa que eu gostei muito no caminho de Santiago é que lá as
pessoas são diferentes. Tem mais cumplicidade, mesmo que ninguém se
conheça, lá estão todos juntos. Se alguma coisa acontecer, alguém vai te
ajudar, aqui não tem dessas coisas. E mesmo de dividir as coisas,
compartilhar. Lá é uma cumplicidade muito grande que aqui não tem. O certo
era ter, mas tem muita gente que nem na família tem isso. E essa amizade ou
cumplicidade, eu não sei que nome dar a ela, mas me fez sentir muito bem.
(D.K.F.)
Finalizando, o fim das narrações, mais do que propriamente um fim, tem
certo tom de início esperançoso, que os planos e sonhos para o futuro
costumam ter.
262
Ibidem, p. 169.
101
Considerações Finais: a chegada
“(...) eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o
que eu iria encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu
não tinha idéia de quem seria eu quando eu voltasse.”
(D.B.)
Esta dissertação de mestrado procurou abordar a atribuição de sentido
para a existência em peregrinos a Santiago de Compostela. Para isso, nos
valemos de pesquisa bibliográfica e de campo, englobando entrevistas e
depoimentos a partir dos quais formulamos um questionário.
Visamos no texto que segue dar uma resposta ao problema de pesquisa
proposto inicialmente: como ocorre a busca por sentido em pessoas que
tenham feito uma peregrinação a Santiago de Compostela?
Como já discutimos nos capítulos e na análise dos dados coletados,
atualmente o Caminho de Santiago de Compostela já não é uma rota apenas
cristã, visto que está cada vez mais abrigando discursos e crenças típicos da
Nova Era (e, portanto, do mundo contemporâneo).
Além disso, o Caminho tampouco é uma rota somente religiosa, se
fazem presentes elementos históricos, ecológicos, relativos a esportes como o
trekking. De fato, consta entre os participantes de nossa pesquisa uma série de
motivações laicas para percorrer esta antiga rota de peregrinação cristã:
turismo e lazer, desejo de entrar em contato com as origens familiares, de
superar algum problema pessoal ou de trabalho, ou mesmo de ter um tempo
para refletir. Enfim, esta é uma rota que transcendeu seu universo original
(religioso católico), servindo aos mais diversos interesses e objetivos ao se
tornar mais multicultural a cada dia, citando um termo de Bauman263.
Ou seja, o Caminho de Santiago é uma rota de peregrinação que
contem em si uma grande variedade de discursos e valores. Assim, ao realizar
esta peregrinação, o sujeito não estará somente passando por uma experiência
religiosa, está também abraçando uma oportunidade de refletir sobre sua vida,
sua realidade e sobre si mesmo, como se pudesse olhar para si do ponto de
vista do outro, de fora. Logo, a peregrinação se torna uma vivência plural e rica,
263
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
102
que permite a reflexão e o auto-questionamento acerca dos próprios ideais e
valores, contribuindo para que brote um novo sentido.
Quando o mediador da peregrinação deixa de ser o discurso religioso
cristão e passa a ser o mercado (seja na face do turismo e das agências de
viagem, seja o mercado de discursos disponíveis para que cada um escolha o
seu), o sentido religioso que permeava o ato de peregrinar se perde, deixando
uma lacuna, que os novos peregrinos preenchem com novos discursos, sejam
religiosos ou laicos. Com isso, o peregrino já não é alguém que faz um
sacrifício legitimado pelo discurso religioso cristão. Ele se torna uma pessoa
que confia na agência que lhe vendeu a viagem ou no novo discurso que lhe foi
vendido, afinal, é antes de tudo um consumidor!
Isso traz novamente à discussão uma questão que levantamos no final
do segundo capítulo, com base no belo texto de Hervieu- Léger264: os
peregrinos (ou ao menos os peregrinos participantes desta pesquisa)
começariam sua jornada como peregrinos e a terminariam como convertidos
(queremos deixar claro que utilizamos os termos desta questão na concepção
da autora, metaforicamente)? Se pensarmos apenas religiosamente, não.
Todos os participantes deixam claro que têm muitos conflitos e incertezas com
relação a suas crenças religiosas. Entretanto, se pudermos expandir os
conceitos da autora para as demais esferas da vida, comparando o peregrino
de Hervieu-Léger ao turista de Bauman, poderíamos dizer que sim. Como
dissemos anteriormente, ao longo da peregrinação, boa parte dos participantes
encontraram um novo sentido para suas vidas a partir das vivências e reflexões
que tiveram. Um sentido que nos parece ser forte o suficiente para que
superassem a mobilidade e o desengajamento, possibilitando que eles se
envolvessem com algo, consigo mesmos e com suas vidas. Pensamos que
envolver-se é um passo fundamental para se chegar à autonomia.
É importante destacar que a busca por sentido que o ser humano
empreende em sua vida é uma busca por transcendência, expressão da
vontade de ir além desta realidade em que vivemos. É a busca pela aventura
de conhecer novos mundos e novos discursos sendo que, ao deparar-se com o
transcendente, o sujeito terá esse contato gravado em si, nem que seja
264
Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.
103
“apenas” gravado em sua memória. Conhecer realidades além daquela em que
se vive, permite que transformemos nossa visão de mundo, pois passamos a
ter consciência de que nossa realidade não é acabada, muito menos única ou
fechada, mas é constantemente construída e reformada.
Assim, a mudança do sentido que o sujeito percebe em sua vida viabiliza
a transformação de suas atitudes e de sua postura frente aos desafios que a
vida lhe impõe. Cada um só pode agir e reagir no mundo de acordo com a
forma como o percebe e como percebe a si mesmo. Logo, ao mudar os
sentidos (e com isso, mudar/fortalecer os valores e ideais), também mudará a
percepção do mundo e, portanto, as ações e reações do sujeito em questão.
Com isso, queremos afirmar que o sentido precisa ser uma construção,
e não apenas uma atribuição. Para que o sentido que alguém percebe em sua
vida seja forte o suficiente, isto é, para que ele possa viabilizar a autonomia do
indivíduo (tornando-o um sujeito), é preciso que a própria pessoa o construa
com base em sua história, suas crenças, valores, ideais, pensamentos e
sentimentos; e não que meramente atribua um sentido aleatório a sua vida,
consumindo uma identidade pré-fabricada. Apenas um sentido totalmente
pessoal e totalmente construído pelo próprio sujeito poderia, ao nosso parecer,
sustentá-lo perante os desafios de sua vida, da sociedade e de situações de
anomia.
O sentido que alguém atribui a sua vida é encarnado nessa pessoa. É
um discurso que é constantemente reafirmado pela pessoa, é vivido por ela
nas diversas esferas de sua vida. Assim, o sentido atribuído à própria
existência é algo que não se descola de sua identidade, marcando o ser de
maneira integral: sua visão de realidade, seus valores, discursos, suas
escolhas e mesmo seu corpo. O corpo tem destaque nas peregrinações, pois
atua como mediador entre o sujeito e a realidade que o transcende. Não
pensamos no corpo apenas como um veículo da mente, nem apenas como
algo a ser sacrificado ao longo da caminhada. O corpo é, antes disso, o
símbolo de nossa identidade e do sentido atribuído à existência, pois se tudo
aquilo que fazemos o transforma, o corpo de cada um conta a história desse
sujeito.
104
Construir algum sentido para si mesmo e para a própria existência é
sempre uma tarefa desafiadora. Entretanto, no mundo contemporâneo, cujas
sociedades vêm se tornando cada vez mais complexas e permeadas por
discursos bem diferentes uns dos outros, essa é uma tarefa cada vez mais
urgente e necessária para que os sujeitos contemporâneos não fiquem presos
a um vazio do qual não possam ou não saibam como se libertar.
105
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1
ANEXOS
2
Caso 1- R. M.
Troca de e-mails realizada ao longo do mês de agosto de 2010.
Caracterização do(a) entrevistado(a):
Iniciais: R. M.
Sexo: Masculino
Idade: 27 anos
Estado civil: solteiro
Crença / religião: R. vem de uma família luterana, mas afirma não ser
praticante e apenas acreditar em Deus.
Profissão / ocupação: web assistant, atualmente trabalha em uma empresa
que oferece cursos de idiomas no exterior e intercâmbio.
Forma de contato: O contato se deu apenas através da internet. Deixei um
recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao
Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a
peregrinação gostaria de participar da pesquisa. Algum tempo depois, R.
escreveu-me por e-mail, sempre contando sobre a peregrinação e sobre as
mudanças que se passaram em sua vida após isso.
Condições da aproximação: Ao longo das correspondências trocadas, R.
enfatizou que não teria tempo para agendar uma entrevista pessoalmente por
excesso de trabalho, porém estava à disposição para troca de e-mails, pois o
tema da pesquisa lhe interessa.
3
Transcrição de trechos mais relevantes:
Beatriz – Olá! Obrigada pelo contato e pela disposição em me ajudar
com a coleta dos dados para minha pesquisa! Todas as informações que
possam te identificar serão mantidas sob sigilo.
Gostaria que você falasse um pouco sobre a experiência da
peregrinação a Santiago de Compostela, principalmente quanto à suas
motivações e aos fatos que mais te marcaram.
Muito obrigada!
R. – Olá, Beatriz!
Ok, entendi as informações.
Estou com uma agenda bastante corrida para esse semestre e não vou
poder marcar uma entrevista, mas acho que por essa boa causa eu poderei
encontrar espaço para uma troca de e-mails, sim!
Meus motivos para o caminho? O meu caminho começou de maneira
bastante inesperada, acho que o jeito como tudo começou para mim é bem
diferente da maioria dos peregrinos.
Fui desligado da empresa em que trabalhava de forma repentina e o
choque me deixou uma incógnita sobre o que fazer da vida. Nunca havia
deixado de trabalhar, nunca havia viajado para o exterior sozinho, nem sequer
havia aproveitado um período de férias.
A ideia do caminho surgiu naturalmente na minha cabeça, como uma
certeza e uma vontade. Eu não traçava planos sobre percorrê-lo, não
pesquisava, não tinha informações sobre o mesmo, e não li Paulo Coelho!
Nada.
Acabei por ver no Caminho de Santiago uma beleza histórica inigualável,
uma oportunidade de experiência pessoal e também um desafio físico. Muitos
trechos da caminhada são bem puxados e é preciso ter persistência para
superar. Sem dúvida todo esse esforço mexe com a gente, depois de um dia
inteiro caminhando por trechos difíceis, você se sente como se nada fosse
impossível para você, a confiança muda muito.
4
Embarquei para a Espanha exatamente um mês após a minha
demissão, como um legítimo marinheiro de primeira viagem... Tendo recolhido,
às pressas, as informações e os equipamentos essenciais para a viagem.
Por enquanto acho que é isso!
Beatriz – Olá, R.!
Se possível, eu gostaria de conhecer um pouco sobre seu
posicionamento religioso. Qual a sua religião? Em que você acredita?
Eu também gostaria de saber quando você fez a peregrinação e qual a
sua idade.
Outra vez, muito obrigada!
R. – Oi, Beatriz!
Tenho 27 anos e fiz o caminho com 25.
Quanto à religião, sou batizado em igreja luterana, mas me considero
espiritualizado acima de tudo. Acredito em Deus de uma forma que, para mim,
se encontra acima das religiões.
Por isso, não gosto muito de freqüentar as missas, nunca gostei, tenho o
que imagino ser uma espiritualidade bastante reservada (mas aberta a
qualquer tipo de filosofia).
5
Caso 2- V. S.
Caracterização do entrevistado:
Iniciais: V.S.
Sexo: Masculino
Idade: 25 anos
Estado civil: solteiro
Crença / religião: V. afirma já ter sido católico. Atualmente, diz não praticar
nenhuma religião, mas acreditar em Deus.
Profissão / ocupação: formado em administração de empresas, cuida dos
negócios de sua família
Forma de contato: O contato se deu inicialmente através da internet. Deixei
um recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao
Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a
peregrinação gostaria de participar da pesquisa. V. enviou-me um e-mail no
qual ofereceu-se para contribuir com a pesquisa, dizendo que nunca teve a
oportunidade de falar muito sobre a experiência da peregrinação e gostaria de
comigo.
Condições da aproximação: V. mostrou-se animado em participar, dizendo
que nunca teve a oportunidade de falar muito sobre a experiência da
peregrinação e gostaria de aproveitar meu trabalho para fazer isso.
Recentemente, enviou-me um depoimento sobre sua experiência no Caminho
de Santiago de Compostela, o qual segue na íntegra.
6
Depoimento de V. na íntegra
É uma honra poder colaborar com um trabalho tão interessante!
Relatarei uma breve história para você entender a minha passagem pelo
caminho de Caminho de Santiago.
Eu tinha 14 anos de idade, no ano 2000, quando minha mãe, que é uma
mulher um pouco desafiadora e um pouco doida, colocou na cabeça que iria
fazer o Caminho de Santiago de Compostela, e ai de quem disse que ela não
conseguiria! Que era mais uma de seus mimos e maluquices.
Ela começou a pesquisar, a se preparar, a adquirir equipamentos, a
estudar, a falar muito sobre o assunto, e eu sem entender muito bem o que
estava acontecendo, observava e participava de tudo aquilo sem grandes
pretensões.
A viagem estava marcada para junho do mesmo ano com retorno em
agosto, no meio do ano letivo e eu estava cursando o 1º ano do ensino médio o
que fazia ainda mais não passar pela minha cabeça a possibilidade de ir junto,
além da “aventura” não ter me causado interesse algum.
Um belo dia, estávamos no shopping comprando alguns materiais
necessários para o Caminho, quando não me lembro bem ao certo, minha mãe
propôs que eu fosse com ela, devia faltar umas duas semanas para ela
embarcar. Não me recordo claramente a minha resposta, só sei que encarei o
desafio e de ultima hora fui junto. Aproximadamente um mês depois eu faria 15
anos, no meio da peregrinação. Posteriormente ela me confessou que de
presente de “debutante” me mostraria o quão dura é a vida, que a partir
daquele momento eu seria um homem de verdade, com valores ainda mais
aguçados e espírito mais humano. Hoje devo tudo que sou à minha mãe, ao
meu pai e, com certeza, ao Caminho de Santiago que me moldou com uma
sutileza de um elefante para a vida.
As aventuras no Caminho foram muitas, fomos inclusive entrevistados
pela ESPN Brasil. Hoje tenho 25 anos, sou formado há 3 em Administração de
Empresas, administro os negócios da família.
Vivo um dilema quanto à religião. Não pratico nenhuma, já fui católico,
porém tenho fé em Deus. Minha consciência tranqüila é minha filosofia de vida
7
e não tive um motivo especial para iniciar o caminho, porém ao terminar, tenho
milhões de motivos para fazê-lo novamente.
Nesses dez anos, nunca escrevi sobre isso e quase nunca consegui me
expressar sobre esse assunto, algo me chamou atenção no seu pedido na
comunidade.
8
Caso 3- L. B. G.
Data: 26/11/2009
Local da entrevista: a pedido da entrevistada, a entrevista foi realizada num
café na região do Tatuapé, São Paulo.
Caracterização da entrevistada:
Iniciais: L. B. G.
Sexo: Feminino
Idade: 30 anos
Estado civil: Casada
Crença / religião: A família de L. é de origem católica, porém ela não se
identificou desta maneira. Afirma que acredita na natureza e em energias que
regem o mundo.
Profissão / ocupação: Empresária. Formada em pedagogia.
Forma de contato: Inicialmente, o contato se deu através da internet. Deixei
um recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao
Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a
peregrinação gostaria de participar da pesquisa e, entre outras pessoas, L. se
candidatou. Algumas pessoas escreveram sugerindo que a entrevistada fosse
L., por ser uma pessoa de destaque nesse meio. A seguir, foi mantido contato
por e-mail, explicando os objetivos da entrevista e, por fim, telefonei para L.
marcando um horário para a realização da entrevista.
Condições da aproximação: desde o início L. se mostrou bastante
entusiasmada em participar da pesquisa, dizendo inúmeras vezes que gosta de
recordar a experiência da peregrinação e que depois disso é uma nova pessoa.
9
Transcrição integral da entrevista:
L. – Você tem as perguntas?
Beatriz – Não! (risos) Na verdade eu tinha pensado em fazer uma coisa
mais aberta, deixar você falar sobre a peregrinação, as coisas que te marcaram
mais...
L. – É só eu ir falando?
Beatriz – Isso! Abordando os temas que foram mais significativos para
você. (pausa)
L. – O primeiro motivo de eu fazer a peregrinação foi realmente tentar
buscar um outro sentido pra minha vida, chegou uma parte da minha vida que
eu parei e falei “meu, quem sou eu? Eu não faço nada que eu gosto...”. Eu não
estava feliz com a minha vida, eu estava com problemas na minha carreira
muito sérios... então eu precisava fazer alguma coisa. E eu não sei por que,
surgiu a vontade de fazer o Caminho de Santiago. Eu já tinha ouvido falar, já
tinha lido o livro do Paulo Coelho quando eu era adolescente (mas não foi por
causa dele que eu fui, realmente foi uma questão que eu precisava fazer
alguma coisa, e essa “alguma coisa” que me apareceu foi o Caminho de
Santiago).
Então eu fui pesquisar a respeito da peregrinação, aí comecei... porque
até então eu não sabia nem quantos quilômetros eram, onde ficava direito, não
sabia nada. Eu decidi em dezembro fazer o Caminho, e em maio eu já estava
no Caminho. Então foi uma coisa muito rápida, eu não tive... não treinei muito
pra ir, foi uma coisa bem assim de supetão. Realmente eu precisava eeh...
decidir alguma coisa pra mim, fazer alguma coisa diferente da minha vida.
Eu tinha... eu casei muito cedo, então eu perdi totalmente a minha
identidade, eu era totalmente dependente do meu marido, então eu tinha vários
hum... uma série de problemas no meu casamento e eu ia me sentindo
perdida: não tinha amigos, não tinha ninguém, eu precisava encontrar um
10
sentido para aquela vida. E foi aí que eu resolvi fazer a peregrinação.
Beatriz – Você mencionou que estava com problemas na carreira, que
tinha problemas no seu casamento... Você poderia falar um pouco sobre esses
problemas?
L. – Tá! Então, o que acontece? Eu casei muito cedo, eu perdi meu avô,
meus pais... (pausa). Deixa eu começar desde o começo! Foi assim: meus pais
se separaram quando eu era bem novinha, então pra mim isso nunca foi um
problema, nunca tive trauma por causa da separação, foi sempre muito
tranqüilo pra mim. Então quem... cuidava na verdade de mim era o meu avô. E
quando eu tinha 17 anos meu avô faleceu na minha frente. Essa foi uma coisa
bem traumática pra mim. (pausa)
Beatriz – O que aconteceu?
L. – Ele teve um enfarte fulminante do coração e morreu em casa. E foi
uma coisa bem traumática que até então eu nunca tinha conseguido superar.
Deve ter ficado no meu inconsciente, eu não pensava mais nisso, não tinha
problemas com relação a isso.
E eu sempre cresci só com mulheres em casa, o meu pai não era um pai
presente, só mulheres. Ficamos eu, minha mãe, minha avó e minha irmã. E aí
eu casei muito cedo. (pausa)
Beatriz – Que idade você tinha quando seus pais se separaram?
L. – 3 anos. Eu tinha... eu não tinha... pra mim é até esquisito um pai e
uma mãe juntos, eu nunca tive isso, foi uma coisa tranqüila. Meu pai casou
várias vezes, tenho vários irmãos e eu me dou bem com todo mundo.
E eu casei muito nova, com 22 anos, eu tinha acabado de fazer
faculdade, tinha uma vida legal já, eu tinha uma escola de educação infantil
(sou pedagoga), e eu conheci meu marido e ele era... (pausa) pintor de parede!
Então ele foi pintar minha escola e eu me apaixonei por ele, ele se apaixonou
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por mim, e a gente casou muito cedo.
Só que por essa diferença cultural (hoje em dia eu acredito que seja por
isso) ele se sentia muito inferior. Então ele acabava me pondo muito pra baixo.
Por eu ser muito nova e não ter alguém que me orientasse legal, eu fui
entrando na dele e acabei perdendo minha identidade: me afastei dos meus
amigos, ia me sentindo inferior, acabei largando tudo o que eu fazia por causa
dele...
Beatriz – Ele era muito mais velho que você?
L. – Não, não... ele é só um pouco (ênfase) mais velho que eu, mas ele
já tinha sido casado antes, já tinha dois filhos...
Então assim, eu fui me anulando como pessoa e fui me dedicando só a
ele. Então a dependência ficou muito grande.
E ele era uma pessoa muito enrolada na vida! Ele... ele... era
atrapalhado... e aí a gente acabou passando por vários problemas conjugais.
Se você perguntasse pra mim “fale dos seus momentos bons”, nossa, eu não
me lembro. Realmente foi um casamento muito... conturbado.
Eu tive filho logo que eu casei, não casei grávida, mas já engravidei
depois de 6 meses de casada, então assim, eu me dediquei muito à família. E
aí acabei me anulando como pessoa.
(pausa)
E aí ele... eu... a gente... mudou o ramo de profissão, começamos a
trabalhar com roupas de surf. Eu fui trabalhar com ele. Então fechei... vendi a
minha escola e comecei a trabalhar junto com ele. E sempre me... me
sentindo... muito pra baixo, porque ele me punha muito pra baixo. Então eu me
sentia feia, me sentia envergonhada, achava que ele era lindo, que ele era
muito paquerado... então eu sempre fui muito insegura, e acabei ficando meio
neurótica. Sabe aquelas mulheres que ficam atrás o tempo inteiro, de olho no
celular, vendo se tem recado? Então, e assim no final do ano passado eu
descobri uma traição. (pausa) Pra mim foi a gota d‟água, eu me senti muito
mal, mas eu não queria deixar ele, ele... a minha vida era ele! Eu amava mais
ele do que os meus próprios filhos. Era uma coisa... assim... chegava a ser
12
doentia.
E foi aí que eu resolvi fazer o Caminho. Eu precisava encontrar um
sentido nisso tudo, eu precisava fazer alguma coisa. E aí, quando eu decidi
fazer o caminho, as coisas já começaram a mudar na minha vida: comecei a
pensar mais em mim, comecei a pensar em treinar pra fazer o Caminho, aí
comecei a conhecer pessoas (ênfase) relacionadas ao Caminho, e então
comecei a ter amigos, coisa que eu não tinha mais, porque meus amigos eram
os amigos dele, eu deixei de ser a L. pra ser a esposa do E., não era “a L.”, era
“a mulher do E.”, então eu acabei perdendo minha identidade, e quando eu
decidi fazer o Caminho, fui resgatando tudo isso. Eu comecei a ver que tinha
pessoas legais, que tinha pessoas que eram muito amigas, e elas começaram
a me dar muita força, muito apoio pra fazer o Caminho, e as coisas começaram
a acontecer. Eu não tinha grana pra fazer, as coisas... acho que de tanta
vontade que eu tinha, as coisas começaram a surgir na minha vida. Até que em
maio eu já estava com a minha passagem, já estava tudo comprado, e foi a
primeira vez que eu saí para um outro país, sozinha, sem falar nenhuma outra
língua a não ser o português (que só tinha o inglês básico de escola, então,
quer dizer, não é nada).
Beatriz – Mas deve ter te trazido muita confiança depois...
L. – Exatamente, exatamente!
Beatriz - ...tendo voltado e superando todas essas questões na sua vida,
e ainda a barreira da linguagem...
L. – Exatamente! Então assim: eu fui! Fui pra Portugal, que era a terra
natal do meu avô, e foi um choque muito grande porque eu já não pensava no
meu avô em momento nenhum da minha vida, já tinha sido... sabe... como se
um capítulo tivesse sido trancado, mas não bem resolvido, porque eu sempre
tive: “puxa, meu avô foi pra mim como se tivesse sido meu pai, morreu na
minha frente e eu nunca disse „eu te amo‟”. Então eu tinha isso dentro de mim,
uma mágoa muito grande por nunca ter demonstrado o quanto eu gostava
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dele, o quanto ele era importante pra mim. Na verdade, eu já nem pensava
mais nisso, não tinha isso na minha cabeça. Mas aí, quando cheguei em
Portugal, que era a terra natal dele porque ele era português, me veio um
sentimento muito forte, eu tive uma crise de choro, e aí me veio à tona, eu
comecei a resgatar tudo que a gente já tinha passado na minha juventude, tudo
que eu já tinha feito na minha vida. E aí, não era pra eu ficar mas eu fiquei um
dia lá em Portugal, conheci um pouquinho de Lisboa e aí, no dia seguinte, eu
comecei a fazer o Caminho.
Fui pra... pra França... Saint Jean Pied de Port, foi de onde eu comecei,
e aí comecei a fazer o Caminho. E o engraçado é que o Caminho... quando eu
comecei a treinar aqui no Brasil, eu tinha dor no joelho, nos treinos, e eu tinha
muito receio de não conseguir fazer a primeira etapa, que é a travessia dos
Pirineus, que é realmente muito complicado, é muita subida, são 24 km sem
quase lugar pra parar, tem um albergue no meio do caminho, mas não tem
lanchonete... é... uma montanha que parece que não tem fim! Quando eu
olhava e pensava “agora acaba!”, vinha mais subida! Eram mais ou menos 20
km de subida e 4 de decida. Então era muito subida... muito! E eu tinha receio
por causa do meu joelho, que doía muito aqui no Brasil quando eu ia andar, se
eu andava um pouco mais.
Beatriz – E você não tinha nenhum problema de saúde...
L. – Não!
Beatriz - ...no joelho, nada?
L. – Não, não, nada! Começou esse problema quando eu fui treinar. Eu
comecei a querer treinar aí eu fui subir escada com peso nas costas, enfim,
sem nenhuma orientação e acabei machucando o joelho.
O mais incrível é que quando eu cheguei lá e comecei a fazer o
Caminho, eu não senti absolutamente nada. Eu levei antiinflamatórios,
analgésicos, joelheira, um monte de coisa, porque eu achei que realmente ia
ter problemas, mas nada! Nenhuma dor sequer, nada, nada, nada, subi e desci
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numa boa, cheguei... saí 8 horas da manhã mais ou menos e cheguei 4 horas
da tarde no próximo pueblo, e começou aí a minha surpresa no caminho, eu
me senti muito bem. Uma sensação muito boa de liberdade, uma sensação
que, até então, eu já não sentia mais, por ser sempre dependente de alguém, e
lá eu era dependente de mim mesma. Não tinha ninguém pra me dizer que
horas eu tinha que levantar, que horas eu tinha que levantar, como eu tinha
que me portar, o que eu tinha que fazer, pra que lado eu tinha que olhar
(porque antes eu só andava olhando pra baixo, porque se eu olhasse pra
algum lado era porque eu devia estar olhando pra alguém, tinha aquele ciúme
todo...). (pausa)
Então foi uma sensação de liberdade muito grande. Então eu comecei a
fazer muitos amigos no Caminho, muitos! Eu... eu... eu estava... eu estava tão
feliz, tão radiante no meu caminho que eu acho que as pessoas se atraiam.
Então, assim, eu comecei a ter muitos amigos no Caminho e assim... a maioria
não eram brasileiros. E era muito legal porque eu... assim... eu não falava
nenhuma outra língua, e eu conseguia me comunicar perfeitamente com todo
mundo. Então eu voltei falando um pouco de espanhol, um pouco de inglês, e
até um pouco de alemão! Então pra mim, uma pessoa que não tinha amigo
nenhum aqui, de repente ter amigos no mundo inteiro... é muito gratificante,
muito gostoso!
Mas realmente, o que me... o que me fez ir a Santiago foi o meu
casamento. Mas quando eu cheguei lá foi que eu percebi que havia questões
na minha vida muito mais amplas que o meu casamento. Então eu pouco
pensei no meu casamento e resgatei outras coisas que estavam adormecidas
em mim e que eram importantes eu zerar.
Então eu tive um encontro com meu avô no caminho, então eu zerei
todo aquele problema de ele ter morrido sem eu ter demonstrado o quanto eu
gostava dele, isso já... já... não é mais problema pra mim, eu consigo falar
sobre isso tranquilamente.
Alguns traumas que eu tinha e consegui descobrir o porquê durante o
Caminho e consegui resolver também...
Encontrei pessoas maravilhosas e que tinham tudo a ver comigo...
Então, assim, eu encontrei a minha identidade, quem é a L., o que eu
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gosto de fazer, qual a minha personalidade... Hoje eu sei perfeitamente me
descrever como mulher, o que antes eu não sabia. Então... hoje eu sou
realmente uma outra pessoa, é como se eu tivesse feito um tratamento de
choque! Uma terapia que demoraria uns 10 anos, eu fiz em 30 dias, então foi
realmente um tratamento de choque.
Eu costumo dizer que o Caminho dá para as pessoas aquilo que elas
precisam. E eu acredito que eu precisava encontrar as pessoas que eu
encontrei e fazer o Caminho do modo que eu fiz.
E eu não tive bolhas, não tive tendinite, não tive dores, não tive
absolutamente nada no meu caminho. As pessoas que vêem as fotos hoje
dizem “nossa, mas você transborda alegria!”, “onde você arranjou maquiagem
durante o Caminho? Sua unha estava feita, seu cabelo estava arrumado” e não
tinha nada, minha unha não estava feita e meu cabelo não estava arrumado!
Então assim, muitas coisas que tinham importância antes deixaram de
ter, eu comecei a dar valor a outras coisas. Então hoje eu prezo muito mais
estar com as pessoas, o relacionamento interpessoal... Eu deixei de ser tão
materialista e passei a dar mais importância pras coisas da natureza, pras
pessoas, pro amor, pra caridade, pra esse tipo de coisa, porque... eu digo
assim: eu passei 30 dias com 3 camisetas, duas bermudas e uma calça e
nunca fui tão feliz na minha vida! Eu dormi em albergue, não tinha conforto
nenhum... é... andava muito, então eu me sentia muito cansada, mas depois de
um banho, é como se eu não tivesse nada. Então eu bebia muito, coisa que
aqui no Brasil eu não fazia, não tinha com quem sair, não tinha amigos mais há
muitos anos... E eu continuo mantendo esses amigos até hoje.
Só que assim, eu digo: a volta foi muito mais difícil, está sendo (ênfase)
muito mais difícil do que a ida, porque mexe muito com a gente, e as pessoas
que cercam a gente (meu marido, minha mãe...) não aceitam que a gente
voltou transformada, querem que a gente seja do jeito que a gente era antes, e
não tem como... não dá mais!
Beatriz – Eu imagino...
L. – E eu estou enfrentando um problema difícil porque aí eu resolvi...
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quando eu voltei... eu retornei... eu percebi... eu vi que na verdade, no meu
casamento o que tinha era uma dependência muito grande, e que amor não
existia.
Beatriz – Você continua com o seu marido?
L. – Não! Continuo! (pausa) Eu quero me separar dele. (pausa) Aí... O
que acontece? Eu acho que ele percebeu que eu fui, que eu tive essa coragem
e aí ele começou a admirar coisas que ele não admirava em mim. Então essa
minha independência e tal... e ele começou a dar importância a coisas em mim
que ele não dava ate então, porque eu me sentia tão inferior, tão inferior, que
ele achava que eu faria qualquer coisa por ele, e quando ele percebeu que eu
faria qualquer coisa por mim mesma (ênfase), eu acho que ele ficou com medo.
Então quando eu voltei pro Brasil, ele tinha feito uma tatuagem pra mim,
tinha reformado minha casa, coisas que... sabe... mas infelizmente o que eu
sentia por ele acabou. Então no Caminho eu descobri que o que eu tinha era
uma dependência muito grande e... que... que eu não tenho mais essa
dependência.
Eu estou tentando me separar hoje em dia, não estou conseguindo
porque ele não aceita... então a gente está num processo bem complicado, eu
estou numa situação complicada de vida, de quer seguir a minha vida pra
frente e ele... ele não... ele...
Beatriz – Ele bloqueia?
L. – Ele bloquear, exatamente! E que como eu voltei com outra cabeça...
eu tinha uma loja de surf. Então eu vendi a minha loja, eu não queria continuar
trabalhando nisso, então assim, não estou trabalhando agora, porque estou tão
envolvida com peregrinação que não consegui me encontrar ainda
profissionalmente. Como pessoa eu já estou bem definida, mas
profissionalmente eu não sei ainda o que fazer.
Beatriz – Mas de repente é aí que pode surgir um ramo na vida
17
profissional, a partir da questão da peregrinação.
L. – Pode, então... exatamente, eu estou em busca disso, mas eu não
sei ainda o que. Então eu organizei esse encontro de peregrinos que eu até
comentei com você, eu estou sempre em contato com peregrinos, escrevi pro
blog (e foi uma coisa bem legal que eu fiz!), tenho vontade de escrever um livro
sobre peregrinação... não passava pela minha cabeça, mas de tanto receber
incentivo das pessoas, tenho essa vontade também... Então são projetos que
eu tenho para o futuro relacionados à peregrinação, e eu quero fazer alguma
coisa nesse sentido, tá? Ajudando as pessoas, auxiliando, nesse sentido
mesmo de peregrinação. E não vou parar de andar! Quero continuar fazendo
outras peregrinações, em outros lugares...
Beatriz – Há quanto tempo você voltou de Santiago?
L. – Eu fiz em maio deste ano.
Beatriz – Recente!
L. – Recente! Pouco mais de seis meses atrás... E todo mundo diz pra
mim “Passa, espera! Não toma atitude nenhuma na sua vida...”. Não passa! Eu
durmo pensando no Caminho, acordo pensando no Caminho... Pra cada
pessoa, se você conversar com outras pessoas, é diferente, né? Pra mim foi
tão especial, que eu não tive nada, eu fiz o Caminho... porque normalmente os
brasileiros fazem em 45 dias, eu fiz em 28, então foi muito rápido, foi muito
bem...
Tive dois amigos alemães que me acompanharam praticamente o
Caminho inteiro e que me ensinaram muitas coisas, apesar de não falarem a
minha língua e nem eu a deles.
Então assim, o Caminho foi muito legal justamente por isso, porque
como eu andava muito rápido, poucos brasileiros conseguiam me acompanhar.
Normalmente... porque como brasileiro não tem o costume de andar (eu
também não tinha o costume de andar), não é como o europeu que anda
18
muito, aqui no Brasil tudo é condução e tal! E a minha vida também, mas lá,
meu, eu andava muito rápido! Então os brasileiros normalmente sentiam muitas
dores, cansaço, não conseguiam me acompanhar. Então pra mim isso era
bom, porque quando eu encontrava um brasileiro, eu falava muito! Falava da
minha vida, falava de mim... e pensava pouco! Então eu sentia que eu tinha
essa necessidade de não andar com brasileiros pra poder refletir mais sobre a
minha vida. Então com os estrangeiros eu falava o básico, mas não conseguia,
por exemplo, falar de sentimentos... porque como eu não falo outra língua, eu
só conseguia falar “estou cansada”, “que horas são?”, “vamos comer”, essas
coisas básicas, mas eu não conseguia aprofundar em nenhum assunto.
Então eu evitava... quando um brasileiro falava “vamos fazer o caminho
juntos” passava dois dias e eu falava “olha, sinto muito, mas eu tenho que
seguir meu caminho, você segue o seu”, ia embora e a gente se
desencontrava. E assim, o Caminho é um mar de encontros e reencontros,
desencontros... Encontrava alguém num pueblo, depois de 4 ou 5 dias
encontrava de novo lá na frente, muito gostoso esse encontro e desencontro.
E no Brasil eu consegui encontrar todos os brasileiros que eu encontrei
pelo Caminho... todos!
Beatriz – Que super!
L. – É... eu encontrei ou eles me encontraram, através da comunidade
do Orkut, que foi ode você me achou também... então acabei encontrando com
todos eles, foi bem legal.
E é legal porque eu encontrei pessoas com cabeças muito diferentes.
Quando eu comecei a fazer o Caminho, logo em St. Jean, eu encontrei dois
brasileiros. Então eu cruzei os Pirineus com dois brasileiros de Recife, e tinha
um que era ateu! Eu achei engraçado, porque eu vou fazer o caminho de
Santiago e a primeira pessoa que eu encontro não acredita em Deus! Tudo
bem... depois encontro mais dois brasileiros no próximo pueblo, pai e filho, e os
dois eram ateus também! Eu falei: “não é possível! É alguma mensagem pra
mim! Eu estou só encontrando pessoas descrentes”. (risos)
Beatriz – Qual era sua religião?
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L. – Eu não... na verdade, eu não tinha nenhuma religião.
Quando meu avô morreu, eu fiquei muito revoltada com Deus, eu não
acreditava mais em Deus, eu não acreditava mais em nada. Eu passei um
período da minha vida assim. Um período curto. Logo depois eu já comecei a
restabelecer... Mas eu não tenho nenhuma religião... assim... concreta. Eu
acredito em algumas coisas... eu não acho que eu sou cristã, eu não acredito
em Jesus, eu acho que ele tenha existido, mas não acredito que ele tenha sido
filho de Deus como a maioria das pessoas acredita.
Mas eu acredito em muita coisa, eu sou muito espiritualizada, assim...
acredito em muita coisa, e depois do Caminho acredito em mais coisas ainda,
na natureza, nas forças do universo... mas eu não tenho uma religião... ah! Eu
sou católica, espírita... não! Não tenho nenhuma religião certa.
Beatriz – E a sua família, seguia alguma religião?
L. – Católica. Mas também não era nada assim... ah! Católicos
brasileiros! Sabe, que adora uma cartomante, aquelas coisinhas básicas!
(risos). É o católico brasileiro mesmo, mas assim... a formação da minha
família é católica.
Beatriz – é interessante essa parte da religião, porque a minha pesquisa
é também perceber como pessoas de diferentes religiões vão a Santiago... De
repente eu comecei a conversar com algumas pessoas que fizeram o Caminho
e dizem que foram pra emagrecer, ou porque estava tendo problemas com o
filho e a família achou que assim passaria mais tempo junta e...
L. – É!
Beatriz - ...e aí resolveria...
L.- Na verdade eu conheci duas pessoas aqui no Brasil, mãe e filho, que
foram inclusive comigo fazer o Caminho só que aí lá a gente se separou... e
eles estavam fazendo o Caminho juntos e depois conheci mais dois pais e
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filhos. Então eu acho legal porque tem bastante assim, de família... (pausa)
Mas eu... é... eu acho meio complicado fazer o Caminho com alguém! Não me
arrependo de ter feito sozinha e... eu acho que foi bom pra mim! Porque...
imagina você estar o tempo inteiro com uma pessoa? Você acorda... caminha...
e o tempo inteiro com a pessoa! E é complicado!
Porque apesar de eu ter feito... eu fiz o caminho com esses dois
alemães, por exemplo, que eu sempre falo que foram meus anjos do
Caminho... e até hoje mantenho contato com eles. Mas não era aquela coisa
assim, que eu era obrigada (ênfase) a ficar com eles... se eu estivesse a fim de
ficar sozinha eu ficava sozinha e a gente se encontrava lá na frente, num
pueblo, não tinha nada combinado ou marcado, então foi uma coisa que
aconteceu. Bem interessante, no início tiveram várias coisas que me
marcaram... não sei, você chegou a ler todo o blog?
Beatriz – Sim, li.
L. – Então, uma das coisas que me pegou bastante logo no início do
Caminho foi que eu perdi minha máquina fotográfica. E aí um desses alemães
que andaram comigo quase o Caminho inteiro me cedeu a máquina dele.
Beatriz – Puxa, que inusitado!
L. – É, pra mim também, foi uma... uma lição que eu aprendi e que até
hoje eu continuo utilizando na minha vida. Ele disse uma coisa que... (pausa)
agora, assim, eu sempre levo comigo: “a gente precisa perder algumas coisas
para encontrar outras. Ele estava falando da minha máquina fotográfica, mas a
gente usa isso pra tudo... então foi uma coisa bem importante.
Depois outro... outra coisa importante foi quando eu encontrei a A. que
era uma brasileira que estava com o pé muito machucado e eu ajudei a
carregar a mochila dela. Naquele dia eu andei mais de 40 km, porque eu fui até
onde eu tinha que ir, voltei pra poder carregar a mochila dela. Foi um dia que
eu me senti muito bem, porque eu percebi que eu não tinha nada, não tinha
dores nenhuma e tinha reclamado o dia inteiro... e ela assim, num estado
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assim, andando de havaianas, com o pé machucado, a mochila e sem reclamar
de nada. As minhas dores perto das dores de outras pessoas não eram nada.
Essas são coisas que eu continuo aplicando na minha vida até agora.
Então tiveram várias coisas que eu aprendi, várias lições que eu tomei... E a
gente conversa realmente com muita gente porque... mas o engraçado é
assim, sempre quando se chega numa conversa de bar e tal é “por que você
está fazendo o Caminho?” e é uma coisa que ninguém nunca consegue
explicar por que... “ah! Estou fazendo por este motivo!” Não, que faz o Caminho
normalmente diz que teve um chamado... não é, é porque todo mundo tinha
alguma questão pra resolver, interna... dificilmente... eu, por exemplo, não
conheci ninguém que queria fazer o Caminho pra emagrecer, por exemplo. É
lógico que a gente emagrece porque anda muito, mas as pessoas que vão pra
lá é sempre porque têm uma questão interna mal resolvida, alguma coisinha
que não está legal.
O F., que era esse alemão, era a única pessoa que... eu... assim... eu...
não tinha nenhuma assim... não parecia ter nenhum problema, era uma pessoa
super de bem com a vida (pausa). Ele não tinha um braço, mas ele lidava
super bem com isso, ate eu me esquecia que ele não tinha um braço, porque
era tão natural, ele fazia de tudo (e me ajudava muitas vezes). Então, é... acho
que foi a única pessoa que encontrei que...
Tem um lugar lá que se chama Cruz de Ferro, você já deve ter ouvido
falar, que é onde o peregrino leva uma pedra do seu país de origem, e que
simboliza todos os pesos, os pecados, as coisas que quer deixar, quer zerar. E
ele falava que ele não tinha nenhuma pedra, que ele estava trazendo a pedra
da irmã dele, porque ele não tinha nenhum problema assim, que ele quisesse
deixar pra trás... Mas é um momento bem legal, de muita emoção, porque... eu
digo assim, aqui no Brasil, eu chorava todos os dias de tristeza, todos os dias.
Lá eu chorei muito, quase todos os dias, mas de muita alegria! Era um choro
assim, que vinha, mas de tanta felicidade, era tanta alegria, que eu não
conseguia me conter. E eu digo: se não fosse o amor que eu tenho pelos meus
filhos, que é muito grande, talvez eu não tivesse nem voltado. Talvez... eu
tivesse ficado por lá. Porque eu me encontrei de uma forma, fui tão feliz, tão
feliz! Foram os dias mais felizes da minha vida! Eu me encontrei por completo.
22
Então, se eu não tivesse esse vínculo com os meus filhos, talvez eu não
tivesse voltado, tivesse ficado por lá.
Beatriz – Duas coisas que eu queria saber: como foi deixar a vida do
Brasil durante um mês, fazendo a peregrinação, deixar filhos, marido, trabalho,
tudo e... que coisas você deixou para trás com a sua pedrinha? Fiquei
curiosa...
L. – Então, eu... é... justamente... no Caminho eu... todo mundo me
perguntava “você é casada?” porque eu comecei a fazer o Caminho de aliança,
depois minha mão começou a inchar muito, daí eu tirei a aliança. Depois voltou
ao normal, porque o corpo vai se acostumando, mas aí eu não... porque eu
pensava, toda vez que eu telefonava pro Brasil pra falar com o meu marido, a
gente brigava, então eu evitava.
Na verdade eu me desliguei muito da vida aqui e fiquei lá, consegui me
desligar bastante. Então todo mundo falava pra mim: “você é casada?”, e eu:
“antes do Caminho eu sou, depois eu não sei”. “Você trabalha no que?”, “olha,
eu tenho uma loja, mas depois do Caminho eu já não sei mais”... então assim,
minha vida se divide em antes do Caminho e depois do Caminho. Realmente
foi uma transformação muito grande.
Então os problemas que eu deixei lá foram justamente essa
dependência... Eu encontrei um brasileiro, e eu falei: “quando chegar na Cruz
de Ferro, eu vou deixar a minha aliança, porque é o fardo mais pesado que eu
tenho”. Mas na verdade meu maior problema mesmo era essa dependência
emocional no meu casamento, que até então eu achava que era um amor e
que eu descubro que não era amor, era uma dependência muito grande.
Beatriz – E alguma vez você já sentiu essa dependência antes de casar,
em outros contextos, com outras pessoas...
L. – Não. Não, eu acho que eu era até uma pessoa bem independente.
Eu tive um certo problema na minha vida, porque sempre, tudo que eu quis, eu
consegui muito fácil. Então desde nova, todas as coisas que eu me propus a
23
fazer, eu tive muito sucesso, então eu não sabia lidar muito com frustrações,
porque eu não tive frustrações!
Então desde novinha, por exemplo, eu entrava num concurso de
beleza... ganhava! Primeiro lugar! Eu ia procurar um emprego e conseguia o
emprego que eu queria! Ia prestar vestibular... o primeiro que tentei eu passei!
Então assim, eu nunca tive problemas de frustrações na minha vida. Eu não
sabia lidar com frustrações e... o meu casamento foi uma frustração atrás da
outra! Não consegui nunca... sabe... me sobrepor.
Eu sou uma pessoa que eu gosto... eu sou muito competitiva, gosto
muito sabe... de fazer as coisas, e eu... ele... meu marido eu acho que é como
eu. Então ele começou a se sobressair, e eu comecei a perder minha
identidade. Então eu comecei a deixar de fazer tudo que eu gostava.
Eu sempre fui uma pessoa muito aventureira, eu gosto de praticar
esportes radicais... Depois que casei, não fiz mais nada. Deixei de conversar,
deixei de sair, eu tinha... não tinha amizades... Eu adoro... adoro sabe, sair,
bater papo, tomar uma cervejinha, coisas que meu marido não faz. E eu me
sentia muito rejeitada porque ele saia, mas ele nunca saia comigo. Então eu
comecei a me sentir muito rejeitada e... e aí eu acho que essa foi a importância
do meu caminho, que eu percebi o quanto eu podia ser importante. Eu digo
assim: antes do Caminho, eu era a mulher do E., hoje eu sou a L. Então eu
acho assim, muito legal, porque as pessoas comentam muito esse tipo de
coisa... Tanto que acho que pra você alguém comentou “conversa com a L.”.
Beatriz – Sim, no Orkut me falaram isso na comunidade sobre
Santiago...
L. – Nossa, então, quando eu vejo isso fico muito feliz... Meu, as
pessoas estão comentando de mim! Então eu fico realmente muito contente
porque são pessoas que estão...
Então eu converso com pessoas que já têm livro publicado e que me
elogiam demais, e eu me sinto muito bem, coisa que antes eu não... Sabe,
larguei minha profissão, minha carreira, tudo por conta do casamento, NE, pra
me dedicar a uma vida que não era minha, eu quis viver uma vida de outra
24
pessoa. E hoje eu percebo claramente que ninguém pode viver a vida de
ninguém. E eu achava que a única pessoa que poderia me fazer feliz era o
meu marido, hoje eu entendo que a única pessoa que pode me fazer feliz sou
eu mesma. Ninguém pode ser responsável pela felicidade de ninguém.
Beatriz – E só de perceber isso já valeu, não tem preço!
L. – Não tem! São coisas que ficaram claras pra mim e que eu levo hoje
e que... é até complicado! Porque ele tem muito ciúme do Caminho, muito!
Porque eu voltei realmente transformada. Então eu não tenho... por exemplo,
tudo que eu faço tem que ser escondido. O blog, por exemplo, se ele lê, ele fica
louco da vida com o blog! Morre de ciúmes! Ele não... ele não lê. É... esses
meus amigos da Alemanha, ele não tem nem idéia de que eu continuo me
correspondendo com eles, porque ele morre de ciúme, nem torta alemã eu
posso comer mais, porque ele lembra da Alemanha! Outro dia passou falando
do muro de Berlim, que fez 20 anos que caiu... ele não me deixou assistir! E é
uma coisa que... eu quero fazer e ele... ele está me puxando. E eu quero
realmente essa liberdade pra eu... né... poder fazer as coisas que eu gosto.
E é muito legal, porque lá na Alemanha eles lêem o blog, comentam,
tem comentários no blog do A., que era alemão e falava português, e a gente
conversava e era um barato, porque na verdade ele falava um pouco de
espanhol, mas de tanto conversar comigo, aprendeu português! O alemão
aprende as coisas muito rápido... e era... são coisas muito gostosas! Tinha uma
música que eu cantava que era do... “Viver e não ter a vergonha de ser feliz...”
e no final o alemão já cantava junto comigo! Então era um barato!
E tinha as pessoas que me viam e achavam que eu não era brasileira,
porque eu andava muito rápido. E eu comecei a ficar conhecida no Caminho!
Eu chegava em algum pueblo que tinha um hospitaleiro brasileiro e dizia “ah!
Você que é a brasileira que está caminhando com os alemães!”, então as
pessoas já começavam a comentar de mim, e isso... lá dentro do próprio
Caminho eu já comecei a ficar conhecida. Então era muito legal, porque aqui
eu era muito envergonhada, não falava com ninguém, eu era super
introspectiva... lá eu conversava com todo mundo! Eu era super... sabe,
25
aberta... e era esse negócio mesmo, eu me entreguei ao Caminho de coração
aberto, eu não pensava isso é certo, isso é errado, se eu fizer isso meu marido
não vai gostar... não pensava! Eu me preocupava com os meus filhos, então eu
procurava sempre saber como eles estavam no Brasil, ligava normalmente pré
minha mãe, pra saber como estavam, tal...
Beatriz – Que idade eles têm?
L. – Eu tenho dois filhos, um de 5 anos e um de 6. E aí eu fui muito
criticada por pessoas que nunca fizeram o caminho: “nossa, como você viajou
30 dias e deixou eles assim!”. Mas assim, eu sabia que eu não estava sendo
uma boa mãe aqui. Eu estava... sabe quando você está tão pra baixo que pra
você, acordar no dia seguinte ou não tanto faz?
Beatriz – É, as pessoas às vezes precisam de um tempo... E
independente do que você fizer ou deixar de fazer, sempre vai ter gente pra te
criticar.
L. – Eu não ligo. Não ligo porque acho assim: eu precisava fazer alguma
coisa. E eu tenho certeza de que hoje sou uma mãe. Uma mãe muito melhor
que a que eu era antes. Porque hoje eu percebi o quanto eu posso ser eu
mesma pra educar os meus filhos. Antes... antes eu não conseguia nem falar
não pra eles, eu... eu era uma pamonha! Não conseguia fazer nada, só fazia o
que precisava fazer. Comia porque tinha que comer, levantava porque tinha
que levantar, ia trabalhar porque tinha que trabalhar, quer dizer, não tinha
vontade de viver. Hoje não, sou muito dona de mim, entende, tenho muita
vontade de ser feliz. Essa é que é a diferença: tenho muita vontade de ser feliz!
E eu sei que se eu consigo ser feliz, meus filhos também serão. Eu não quero
ser pra eles um exemplo de mãe que não foi atrás do que precisava pra ser
feliz. Mas é difícil, eu escuto do meu marido que eu estou destruindo a minha
família, que... que eu não quero dar uma chance pra gente continuar, então
está sendo complicado... Estou tentando levar ele pra terapia, mas ele não
aceita de maneira nenhuma, tá?
26
Eu estou passando por uma fase que eu digo: a volta pra mim foi muito
mais difícil, muito mais difícil (ênfase) do que a ida, muito mais!
Beatriz – E durante o seu caminho quais eram os sentimentos,
pensamentos mais freqüentes? (pausa) Ou então planos que você fazia,
lembranças que te vinham...
L. – Era... é... como eu falei pra você, eu me entreguei ao Caminho.
Então eu não tinha nenhum roteiro “hoje eu vou pensar em tal coisa na minha
vida!”, não! As coisas fluíam... sabe... fluíam!
Então eu pensava... mesmo sem eu querer, eu... lembrava coisas da
minha infância, por isso que eu achei engraçado, porque eu fui lá pra pensar no
meu casamento e eu não conseguia pensar no meu casamento. Eu não
conseguia nem pensar no meu marido! Na verdade, lá, é como se eu nem
fosse casada, como se eu fosse totalmente livre!
Então assim, na verdade, o que me veio de lembrança foi o meu avô,
então teve um momento que eu até escrevi no blog, que foi o momento que
eu... encontrei... eu tinha... eu tinha recebido recomendações pra ficar no
albergue do Jesus Jato, que é um espanhol que adora brasileiros, totalmente
místico, ele dedicou a vida inteira à peregrinação... E foi muito legal lá, eu
encontrei um brasileiro, o F., a gente já tinha se encontrado em alguns lugares,
e a gente se entregou bastante ao albergue, então a gente ajudou a lavar a
louça, a servir o jantar, então a gente ficou trabalhando um dia de hospitaleiros,
a gente se doou pra... pra... contribuir lá com o albergue.
Aí meus amigos saíram mais cedo (que eram os alemães) e eu disse
que ia ficar um pouco mais porque eu queria conversar com o Jesus Rato, que
era o hospitaleiro. Eu fiquei pra trás, e o F. mais pra trás ainda, porque ele não
acordava cedo, gostava de andar até mais tarde um pouco e aí ficava até mais
tarde na cama, aí me despedi do F. e fui. E aí tinha duas vertentes pra seguir
no Caminho: uma seguia pela Carretera, que era um trecho mais tranqüilo, ou
você seguia pelas montanhas... e tinha uma plaquinha que era pra tomar
cuidado, que pelas montanhas só peregrinos experientes, mas aquela altura eu
já estava me sentindo “a super peregrina”, né? Eu falei “não, vou pelas
27
montanhas!”. E eu não sei porque, mas as montanhas me atraíam, tinha um
fascínio muito grande, eu me sentia muito bem quando eu subia as montanhas.
Sempre me dava crises de choro com a paisagem, com as coisas que eu via,
me sentia muito emocionada nas montanhas. E subi. E foi o único dia que eu
não vi nenhum peregrino, nem na minha frente nem atrás, eu ia absolutamente
sozinha, ninguém subiu pelas montanhas.
Aí o tempo começou a fechar, eu não enxergava nada na minha frente!
A sorte é que tinha uma trilha que não tinha como se perder, você só podia
seguir por aquele caminhozinho, e era montanha de um lado, montanha do
outro, e eu sozinha comecei a ficar... um pouco... com receio. Deu um pouco
de medo de ficar sozinha. Daí resolvi parar um pouco e esperar, eu pensei “o
F. vai passar aqui daqui a pouco, e a gente vai se encontrar!”, e comecei a
esperar e aí comecei a lembrar... Sentei no chão e comecei a lembrar da minha
infância, como se fosse um vídeo da minha vida passando. E comecei a
lembrar... as viagens que eu fazia com o meu avô, como eu era parecida com
ele, esse espírito aventureiro que ele tinha, o quanto ele era importante... Aí eu
peguei um monte de pedrinha e escrevi o nome dele com pedrinhas no chão.
Então foi como se eu tivesse tido um... não sei, eu... eu entrei num transe. E
fiquei lá, naquele meu momento, até passar e eu continuar meu caminho, então
eu digo que foi lá que eu zerei, foi como se eu tivesse conversado com meu
avô, eu sentia muito a presença dele, como se ele estivesse caminhando
comigo, como se ele... se ele fosse a única pessoa que estivesse vendo o que
eu estava fazendo, ele tinha muito orgulho de mim, então eu me sentia
orgulhosa de estar fazendo o que eu estava fazendo.
Depois teve um trecho de subida que, pra mim, foi a parte mais difícil do
meu caminho, não pelo fator físico, mas acho que psicológico. Eu tinha que
subir um trecho... é um trecho complicado que se chama Cebrero. Então a
subida do Cebrero pra mim foi a mais complicada porque eu encostava o
cajado (eu tinha ganhado um cajado!) e pensava “meu, não vou conseguir, eu
não acredito que cheguei até aqui e não vou”. Quando eu cheguei no albergue
eu estava muito cansada, todas as pessoas que eu conhecia já estavam lá, até
o F. já estava lá! Os alemães também já estavam lá! Foi um dia que estava
muito frio, muito frio, uma neblina que eu não enxergava nada, mas foi um dia
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de muita felicidade. Aliás, não teve um dia que não era só felicidade mesmo.
Não teve nenhum dia que “ah, as dificuldades...”, meu, pra mim não teve! Só
realmente alegria, felicidade, não tive dor, não tive nada! Só alegria no meu
caminho.
Beatriz – E o foco era sempre no Caminho mesmo, nunca pensava
sobre quando voltasse, o que ia fazer...
L. – Eu até tentava. Eu encontrei um psicólogo lá, que era até um
brasileiro que também estava fazendo o Caminho, e a gente começou a
conversar. Meu, foi uma coisa assim... a gente conversou muito, chorei muito, e
ele também, sabe, a gente se deu muito bem. A gente ficou dois dias juntos só,
porque ele também não conseguia andar e a gente acabou se separando. E ele
falava pra mim: “meu, você precisa pensar, né... você precisa saber no que
você quer trabalhar, o que você vai buscar”. Mas eu não conseguia! Acho que
o Caminho estava me consumindo tanto, acho que eu estava tão voltada ao
Caminho que eu não conseguia pensar aqui. Não conseguia fazer planos para
o futuro. Eu sabia que queria fazer alguma coisa com relação a turismo, tinha
me sentido muito bem naquele ambiente. Mas eu não conseguia pensar, fazer
planos: “ah! Vou montar um negócio!”, “vou procurar emprego em tal área!”,
não... não conseguia pensar na vida.
Beatriz – E hoje, passado esse tempo, você tem algum plano?
L. – Então, continuo sem planos! (risos) Não, eu sei... eu quero... eu...
na verdade, o que eu gostaria de fazer, é trabalhar com turismo. Relacionado
com esse tipo de turismo, ecoturismo, voltado pra ecologia e tal. Só que é
complicado porque eu tenho dois filhos pequenos então eu vivo num... num
dilema. Porque eu não posso ficar viajando e deixando eles. Eu sei que eu
tenho que ter um emprego fixo, mas eu não quero nada que me prenda muito,
porque eu sou uma pessoa que eu não consigo ter muita rotina. Então se eu
trabalho muito tempo com determinada coisa eu começo a me... me...
entendeu? Eu quero fazer alguma outra coisa! Então é complicado, eu não vou
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investir muito em uma coisa porque eu sei que lá na frente me... eu... ah! Me
enche o saco e eu quero mudar de ramo!
Isso foi uma coisa que eu entendi no Caminho, sobre mim mesma,
porque até então eu achava que era frustrada: tive uma escola. Pô! Por que
não consegui ir em frente com a minha escola? Aí depois trabalhei como
coordenadora pedagógica. Pô! Por que não segui nesse ramo? Daí fui
trabalhar com as roupas... E hoje... eu sei que sou assim! Eu... eu não gosto de
trabalhar sempre com a mesma coisa, eu preciso estar sempre mudando!
E eu sempre procuro estudar e me aperfeiçoar em tudo que faço. Então,
quando eu tinha a escolinha, eu procurava ser a melhor! Depois quando fui ser
coordenadora pedagógica, eu também procurava ser a melhor, então eu
procurava sempre fazer cursos de aperfeiçoamento, fiz na PUC também um
curso de especialização... então eu procurava sempre me aperfeiçoar naquilo
que eu fazia.
Eu não consigo trabalhar muito tempo na mesma coisa, então eu preciso
arrumar alguma coisa que não tenha uma rotina. Sabe... Então eu acho que o
turismo pra mim seria ótimo, porque você um dia está num lugar, outro dia está
em outro, vê cada vez pessoas diferentes...
Eu sei que eu preciso trabalhar com pessoas, não consigo me ver
fechada num escritório, ou numa empresa, eu não conseguiria de maneira
nenhuma. Então não sei ainda, eu quero trabalhar com peregrinação, com
turismo, quero fazer agora o Caminho de Machu Pichu, que eu tenho muita
vontade... quero fazer porque é bem mais curto que Santiago, em uma semana
dá pra fazer, então meus filhos não vão sentir tanto, né, porque eu sei que eles
sentiram bastante. Até hoje eles comentam.
Beatriz – E quando você conversava com eles, eles te perguntavam
alguma coisa assim?
L. – Não. Era só... “Mãe, quando você volta?”, “quantos dias faltam pra
você voltar?”, mas eles pouco falavam comigo, mesmo eu perguntando
algumas coisas, eles pouco falavam. Então eu conversava mais... E era assim,
era complicado por causa do fuso horário. Então assim, o horário que eu
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levantava lá, era madrugada aqui, quando eu começava a caminhar lá, aqui era
madrugada. Então eles estavam dormindo ainda. Quando eu chegava em
algum pueblo que tinha telefone (porque eu não levei celular nem nada!) aqui
era o horário que eles estavam na escola. E os albergues fecham às 10 horas
da noite... então 10 horas da noite você já tem que estar na cama, e eram
umas 5 da tarde aqui (são cinco horas de diferença!), eles ainda estavam na
escola, porque eles só chegam em casa 6 e pouco e... assim, o horário não
batia! Então não eram todos os dias que eu conseguia falar com eles.
Mas eu sempre ligava, falava com a empregada, com a minha mãe,
perguntava como eles estavam... e pouco falava com meu marido. Toda vez
que eu falava com ele a gente brigava, a gente... Chegou na metade do
caminho eu liguei pra ele, eu já tinha caminhado 400 km. Aí cheguei num lugar
em que o hospitaleiro era um brasileiro que morava lá já há 7 ou 8 anos e aí
liguei pra saber como é que estava e ele falou pra mim: “olha, é o seguinte,
você está folgando comigo!”, eu falei: “como estou folgando?”, ele falou assim:
“olha, vou te falar uma coisa, hoje é domingo. Se você não estiver de volta aqui
na 3ª feira, nosso divórcio já vai estar assinado!”. (pausa) Eu falei: “E., eu não
andei 400 km pra pegar um avião e voltar! Eu não vou desistir no meio do
caminho!”, ele falou: “Tá, você quem sabe...” e eu já: “olha, tenho que desligar
porque vai cair a linha!” e já pum! Peguei e desliguei!
Eu voltei pro albergue super chateada, sabe, eles estavam lá, porque
era hora do jantar. E eu voltei super chateada e fui conversar com o
hospitaleiro.
Ele falou: “que que foi”, tal... aí eu contei “meu marido falou que se eu
não voltasse, o divorcio...”, e aí ele (ele é baiano) ele falou: “pô! Por que não
disse pra ele mandar o divórcio pelo correio e aí você assinava, era mais
rápido! Imagina, você já andou ate aqui e o cara quer que você volte?” (pausa)
É mesmo, né? Aí eu já me animei, já me arrumei, continuei... eram coisas
que... imagina! Se ele dissesse uma coisa dessas pra mim antes, eu me
acabava! Chorava três dias sem parar! Antes eu tinha olheiras que as pessoas
falavam assim: “nossa, você está maquiada?”, “dormiu mal?”, não! Era de
tristeza! Era uma pessoa triste! Não tinha alegria de viver.
Eu fiz... há mais ou menos uns 3 anos atrás eu fiz uma cirurgia e
31
coloquei silicone. Mas sabe quando você faz um negócio pra querer agradar ao
outro? Todo mundo falava “mas você não tem medo da cirurgia?”, mas eu: “pra
mim tanto faz, se eu morrer, sei lá!”. (pausa) Meu, pra mim... na época, tanto
faz, eu estava vivendo uma vida tão vazia que não tinha sentido, nada pra mim
tinha sentido! Nem os meus filhos! E eu me sentia muito mal por isso. “Nossa,
como pode? Uma mãe que gosta mais do marido do que dos filhos!” e aí eu
percebi que não era nada disso, na verdade era uma dependência, eu não
sabia viver sem ele. Eu comecei muito nova a viver com ele, casei com 22 anos
e a partir daí era só ele pra mim. E agora não! Agora eu percebo que não pode
ser ele e nem ninguém, só eu! Então eu quero ser feliz, e ele, infelizmente, não
dá pra continuar, apesar de ele dizer que mudou, que me aceita, que me
admira, o amor... o amor que eu sentia ou não era amor ou acabou! Porque eu
não sinto.
Eu até conversei com a psicóloga (meu filho faz terapia) e ela disse:
“você não acha que está muito magoada...” eu falei: “não, meu, não é!” Perdoei
o que tinha pra perdoar, não tenho mágoa de nada, entendo o que aconteceu,
por que ele me traiu, não tenho nenhum problema com isso, mas não amo
mais! E sem amor, pra você seguir com um relacionamento, não dá! (pausa)
Beatriz – Eu costumo dizer quando aparece esse tipo de conflito que só
a gente mesmo pode escolher a nossa vida. Porque aí fica fazendo tudo em
função do outro, o outro que decide, escolhe... E quando a gente olha em volta
esse outro foi fazer as coisas dele e ficamos nós lá, tristes, com uma vida que
não é nossa (porque não fomos nós que escolhemos)... Tipo, e aí só pra não
falar “não” pro outro acaba falando não para si mesmo!
L. – Exatamente, exatamente! Era bem o que acontecia, pra não frustrar
meu marido eu me frustrava!
E assim... a minha transformação já começou na hora que eu decidi
fazer o Caminho de Santiago. Então mesmo antes de ir eu já comecei a me
modificar.
Então assim... eu... nunca... depois que casei, eu nunca comemorei um
aniversário meu. Nunca. Ou, se comemorava, ele me levava pra jantar, mas
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era só eu e ele. Nunca comemorei com família, com amigos, nada. E aí eu ia
viajar em maio e o meu aniversário é em abril. Um mês antes. E eu resolvi
fazer uma festa de aniversário. Nunca tinha feito isso! E já estou casada há 8
anos. Então foram 8 anos sem nada, né. E eu resolvi fazer uma festa de
aniversário. Falei: “quer saber, vou comemorar! Vou num barzinho e vou
chamar todos os meus amigos” (quer dizer, na verdade eram amigos dele). E
chamei! Chamei o pessoal envolvido com esse negocio de roupas, que eram
amigos dele, a família dele, porque na minha... não tinha ninguém... e... chamei
os sobrinhos dele, aí chamei umas pessoas que eu conhecia, por exemplo, do
salão de cabeleireiro, e chamei a manicure e... e então fomos no barzinho.
(pausa) ah! E o meu marido também, é lógico! Era a pessoa mais importante
pra mim... e me deixou sozinha. No dia do meu aniversário, no barzinho. Mas
eu me diverti tanto! E as pessoas me abraçando, com dó de mim, e eu me
divertia, cheguei em casa super tarde...
Então assim, comecei a me transformar antes de fazer o Caminho.
Decidir ir já foi... ter a atitude de ir... eu tenho uma amiga que fala que não
basta querer, tem que ter atitude! Então a partir do momento que eu comprei a
primeira coisinha (comprei a mochila), a minha vida já começou a se
transformar, eu comecei a me transformar interiormente. Então... aí eu comecei
a pesquisar, a fazer outros amigos, a caminhar...
Beatriz – E a decisão também é uma preparação. Porque a gente
sempre pensa em preparação como caminhar com um monte de coisas na
mochila, mas decidir é um passo importante...
L. – Sim! Importante...
Beatriz - ...porque muda a postura da pessoa. Em qualquer situação,
mas no caso da peregrinação, só de ter que pensar em como vai ajeitar as
coisas que dependem de você enquanto você não está, em como vai se
preparar, como vai fazer quando chegar lá...
L. – É, mas sabe que na verdade, a minha vida estava tão sem sentido
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que eu pensei assim: “meu, eu estou vivendo até agora só pro outro e eu
nunca ganhei nada em troca” (pausa). Na verdade eu fui traída, fui humilhada,
brigava o tempo inteiro, ficava pra baixo... E sinceramente, fui mesmo sem me
importar. “Quero que se dane! Que se dane a loja, que se dane as contas, eu
vou cuidar de mim!”. Então eu não pensei muito nesse lado e até hoje escuto
dele: “você me abandonou! Você me deixou os problemas...” e deixei mesmo!
Porque tudo que eu tinha eu perdi em função de ter me anulado enquanto
pessoa. Então quando ele me conheceu, eu tinha uma escola, eu tinha meu
carro, eu tinha minha faculdade, eu era totalmente independente. Eu era
solteira e independente, não dependia de ninguém pra ter o meu dinheiro. E fui
perdendo tudo, perdendo tudo, perdendo tudo... Então hoje em dia, não tenho
mais minha escola, não tenho mais meu carro, não tenho mais vida financeira,
não tenho nada. “O que você tem?” nada! Ele sujou meu nome, então nem
nome eu tinha mais! Depois a gente resgatou, mas foi... foi uma doação, eu me
doei... “ah! Pega aí! Toma minha vida pra você!”, sabe? E hoje em dia não, eu
quero resgatar, e eu sei que sozinha eu vou conseguir muito mais do que com
ele do meu lado. Muito mais!
Então eu tenho certeza que a partir do momento que ele sair de casa, as
coisas vão... um emprego vai aparecer mais facilmente... tudo vai começar a
acontecer, porque vou poder me dedicar mais às coisas que eu gosto de fazer.
O que eu não faço com ele. Porque tenho que ficar sempre dando satisfação
do que eu faço ou deixo de fazer, ele tem muito ciúme de tudo...
E assim, até o encontro de peregrinos foi muito difícil pra acontecer e só
deu porque assim, a gente está se separando, agora ele entendeu que não dá
mais! Porque assim, desde que eu voltei, é muito complicado, porque ele não
aceitava, ele até já me agrediu fisicamente, fui na delegacia, fiz BO, foi assim...
terrível, porque ele não aceita, então ele entra em desespero. E eu tenho medo
do que ele possa fazer, porque a gente escuta tanta loucura por aí, o cara que
matou o filhinho e se jogou e tal, e eu fico preocupada, porque ele é uma
pessoa que pra mim acaba parecendo um pouco desequilibrada... acaba
percebendo que está perdendo tudo que tem... E é uma coisa que
simplesmente pra mim não dá mais. (pausa) Eu quero seguir minha vida com
os meus filhos.
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Beatriz – É... e nessas horas tem que ter autonomia! É igual quando
decide fazer a peregrinação, tem que ter junto com a decisão, a atitude. Eu
percebo assim, que a gente fala da peregrinação... mas a vida da gente hoje,
aqui, também é uma peregrinação!
Vejo pacientes com problemas físicos de saúde, que chegam à terapia...
e pra essas pessoas, como é a peregrinação de médico em médico; de
especialista em especialista...
E eu percebo que essa decisão (de melhorar, de mudar, de partir, o que
for) conta muito, é muito importante pra pessoa porque é decidindo,
escolhendo, que ela se transforma, muda atitudes, comportamentos... Decide
que rumo tomar na vida dela...
L. – E é o que acontece na peregrinação, você toma essas decisões.
E muita coisa eu percebi... por exemplo, se quero chegar a algum lugar,
preciso andar! Então são coisas que eu aprendi que eu... até o alemão falou
pra mim, que eu contei pra ele por e-mail que estava difícil em casa, que eu
quero me separar mas não estou conseguindo, e ele me respondeu: “olha,
você não começou em Saint Jean e chegou a Santiago em um dia. Precisou
andar 800 km pra chegar ao seu objetivo. Então na volta também não vai ser
assim, não vai ser em um dia que resolve tudo, a gente precisa continuar
andando”.
Então são coisas que eu continuo aplicando, e isso é a peregrinação
realmente. O peregrino é peregrino a vida inteira. Hoje eu me sinto peregrina.
Sou a L. peregrina. Eu até brinco que se vou preencher um negócio e tem lá
profissão eu coloco “peregrina”! então eu me sinto uma peregrina na vida.
Porque vi que minha vida esta sempre em transformação, eu estou sempre em
busca de algo melhor.
E os peregrinos são pessoas muito legais, que gostam muito de sempre
ajudar uns aos outros. Se você entrar sempre na comunidade de Santiago (do
Orkut) vai ver que as pessoas estão sempre lá, e sempre estão preocupadas
com as outras, mas sem julgar. Sabe, sem se preocupar com o que é certo ou
errado, aceitar o outro e ajudar! Sem nada em troca. Pelas dificuldades do
35
caminho, são pessoas que acabam ficando bem solidárias com os outros.
Beatriz – Percebi um pouco disso quando deixei os recados nas
comunidades falando sobre o mestrado, perguntando se alguém poderia
colaborar, mas eu nem achava que iam responder. E de repente, no mesmo
dia já chegaram vários recadinhos no meu Orkut, e-mails de pessoas que
gostariam de colaborar, de conversar, até de conhecer meu trabalho! Isso me
surpreendeu bastante!
L. – E é legal que começamos a pensar em encontros de peregrinos
porque muitos acabam ficando amigos, conversando sempre, mas sem nunca
ter se visto pessoalmente. E aí vem a vontade de conhecer essas pessoas, de
poder se encontrar com elas.
E eu organizei o encontro de peregrinos a princípio pensando nessa
vontade de reunir todas essas pessoas. Marquei em São Paulo, mas é legal
que a maioria das pessoas acabaram vindo de outros estados! Tem gente da
Bahia, do Rio, de Santa Catarina... Então assim, tem gente do Brasil inteiro!
A gente se encontra na sexta à noite, faz uma fogueira, aproveita pra se
conhecer, e depois no outro dia tem a caminhada, de 23 km, de Piracicaba até
Águas de São Pedro, daí a gente dorme em Águas de São Pedro... e é legal
que vão peregrinos que já fizeram o Caminho e futuros peregrinos, que
aproveitam pra treinar e pra aprender mais sobre o Caminho. Eu também antes
de ir conheci pessoas que já tinham feito, e isso é bem legal.
Beatriz – Então conhecer essas pessoas que já tinham passado pela
experiência foi uma coisa que te ajudou.
L. – Sim, me ajudou muito... muito! Tenho uma amiga que já fez o
Caminho umas oito vezes, depois se você quiser te passo o contato dela,
porque é uma história bem legal, era uma pessoa que tentou suicídio e a
peregrinação foi o que salvou ela... e ela trabalha hoje com peregrinação!
E é uma pessoa que eu peguei muita amizade, tanto que quando fui pra
lá, eu fui junto com ela, só que aí ela fez o caminho português e eu fui fazer o
36
caminho francês.
Nós fomos em cinco pessoas juntas pra Portugal, fui eu, essa amiga,
que é a K. e o H., que fizeram o caminho português mas foram a trabalho, pra
traçar rotas e tal... e aí eu fiz o Frances com o A. e a dona M. que são mãe e
filho, só que pra não levar tanto tempo fazendo a peregrinação, eles
começaram um dia antes e um pueblo na minha frente. Só que como eu
andava muito rápido, eu acabei não só alcançando como ainda passando eles
no Caminho! E acabou que eles tiveram que pegar ônibus num trecho do
Caminho, senão não ia dar tempo e eu fiz o Caminho inteiro a pé.
E é interessante na peregrinação que a maioria das pessoas acaba não
fazendo o caminho inteiro a pé. Porque as vezes tem bolhas, tendinite, e aí não
consegue. Eu me sinto mais vitoriosa ainda porque não peguei ônibus em
momento nenhum! Só a pé o tempo inteiro, o tempo inteiro.
E assim... Quando eu cheguei em Santiago, eu não conseguia parar de
andar. E aí depois de Santiago eu andei até Finisterra a pé, que é onde
realmente acaba a peregrinação, que é conhecida como o fim do mundo, e tem
um ritual que a gente queima uma peça de roupa, que simboliza a morte da
antiga pessoa e um ressurgimento, como se fosse a fênix. Então, nossa! É uma
sensação!
E nesse caminho até Finisterra eu já estava me sentindo muito mais
leve, era uma coisa que não tinha aquela obrigação, eu estava fazendo porque
eu queria. Então foi muito gostoso. Mas é um caminho com pouca infra-
estrutura, porque são poucos os peregrinos que fazem, não tem muito
albergue, teve um dia que não tinha lugar pra dormir e eu tive que dormir do
lado de fora, no saco de dormir, lá fora mesmo! Mas foi uma experiência muito
gostosa pra mim, eu adorei!
Beatriz – Quanto tempo de Santiago até Finisterra?
L. – Três dias. Mas a maioria faz em quatro. São 100 km, mas teve um
dia que eu caminhei mais de 40 km, eu andei bastante!
E foi mais um reencontro com o meu avô também, porque ele era uma
pessoa que vivia acampando na praia, então ele era muito ligado à praia, então
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chegar a Finisterra, que é no litoral, foi realmente como encerrar esse ciclo. Foi
muito, muito gostoso!
Beatriz – Sua relação com seu avô era bem próxima, né?
L. – Então, quando ele era vivo, eu não conseguia perceber isso. Que
era tão próxima. Mas era. Era muito, mas eu não tinha consciência. Eu sou
muito parecida com ele, com o espírito de aventura dele, eu digo que ele era
alguém que veio pra Terra a passeio, não a trabalho! Então ele era aventureiro,
gostava de acampar, ele até tinha um trailer, vivia viajando, ele era um cigano!
E eu era... eu sou muito parecida com ele, mas eu não percebia isso. Muito
pelo contrário, eu criticava! “Imagina, ele fica em trailer, não tem conforto
nenhum, não tem nem higiene!”, eu falava mal, mas na verdade a gente era
muito parecido. Quando ele morreu, eu tinha 17 anos, e eu era o xodó dele! Ele
procurava fazer de tudo pra mim e eu nunca agradeci, nunca disse pra ele que
eu o amava, nunca! E ele ter morrido dessa forma tão inesperada, ele nem
estava doente, não tinha nada! Pra mim foi um choque muito grande. E era
uma coisa que eu não tinha conseguido superar.
Então até coisas assim... Eu tinha um problema engraçado: eu não
conseguia falar em telefone público que já me dava vontade de fazer xixi! E era
uma coisa que me incomodava, porque eu pegava no orelhão e já tinha que
desligar. E aí conversando com um psicólogo no Caminho eu disse “você que é
psicólogo, me explica o que acontece”, e ele falou assim: “olha, é engraçado
isso acontecer... mas me diz uma coisa, o que você estava fazendo quando
seu avô morreu?” e de repente me veio: eu estava no orelhão! Meu, e aí eu
entendi o porquê! E era uma coisa que eu já nem lembrava mais, e aí passou,
hoje consigo falar no orelhão mais tranquilamente! (risos)
Então mexeu com muitas coisas que eu nem imaginava, e que quando
saí do Brasil nunca pensei que indo lá iria resolver.
Beatriz – E me diz uma coisa, por que Santiago de Compostela e não o
Caminho do Sol, ou os Passos de Anchieta...
38
L. – Não sei! (risos) Na verdade eu não sabia que existiam caminhos no
Brasil. Eu só tomei conhecimento dos caminhos brasileiros depois que decidi
fazer o Caminho de Santiago.
Quando decidi ir eu comecei a freqüentar a Associação de Amigos do
Caminho, porque lá eles informam, dão palestra, e lá eu fiquei sabendo dos
caminhos brasileiros, que são vinte e poucos caminhos. Mas ate então eu não
conhecia. E eu não sei por que, foi... é... Santiago apareceu! É uma coisa que
eu tinha que fazer, na época eu até comentei com o meu marido, eu falei: “vou
fazer o Caminho de Santiago”. Ele falou: “ah, legal! Vou com você! Quantos
quilômetros são?”. E eu: “800”. “Você é maluca! Pensei que fosse uns 30...
Imagina se eu vou andar isso!”. E o tempo inteiro ele ficava “você não vai
conseguir! Imagina... não vai conseguir!”. E aí eu fui pra lá achando que não ia
conseguir. Quando eu estava lá eu pensei: “meu, eu consigo! Já vim até aqui!”.
E me deu uma crise de choro quando cheguei a Santiago. Porque quando eu
cheguei, eu... foi... foi como se eu tivesse chegado em mais um pueblo. Mas
depois que eu fui pro albergue, caiu. Tudo que eu tinha feito, tudo que eu tinha
passado veio. E eu comecei a chorar, chorar, chorar... Pensei, se eu vim até
aqui, eu posso qualquer coisa na minha vida. Eu sou uma vencedora mesmo,
porque consegui o que ninguém acreditava, nem eu mesma acreditava! E eu
fiz! Então eu posso fazer qualquer coisa, nada me segura. Foi, nossa, uma
sensação muito boa. E ao mesmo tempo, muito ruim, porque tinha acabado.
A volta à realidade é muito difícil, eu não queria voltar. Eu tinha fugido do
mundo. Todos os meus problemas ficaram e lá só tinha coisas boas. Então,
assim, ao mesmo tempo que eu queria voltar pra ver meus filhos, arrumar a
casa, eu tinha muito medo de voltar, eu queria ficar. Eu parei... eu poderia ter
chegado em Santiago um dia antes, eu parei a 5 km de Santiago, isso pra mim
não era nada! Eu estava só... sabe... tentando segurar mais um pouco? Aí eu
parei 5 km antes, dormi lá e no dia seguinte andei até Santiago. Eu não queria
que acabasse. E quando ia chegar à Finisterra foi a mesma coisa, comecei a
andar devagarzinho... (risos). Mas foi muito legal, lá em Finisterra encontrei
com todos os amigos do Caminho, que estavam lá me esperando, eles foram
de ônibus e ficaram me esperando! O F., o alemão... foi de ônibus e ficou me
esperando. Foi muito emocionante.
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Beatriz – E as pessoas se aproximam muito...
L. – Muito!
Beatriz - ...quando se conhecem...
L. – Eu conheci um hospitaleiro brasileiro, e ele falava: “meu, alemão é
um povo muito frio”. E eu pensei, eu tinha essa visão dos alemães! No país
deles, até pode ser, mas aqui no Caminho eles são diferentes! O Caminho faz
as pessoas serem muito parecidas. Todo mundo acaba se aproximando, se
doando... Porque eu digo: no Caminho, somos todos iguais. Nem mais nem
menos, iguais! A gente não sabe quem é rico, pobre, está todo mundo na
mesma situação, dormindo no mesmo lugar, são todos iguais... Então, é isso o
que aproxima as pessoas. Cada um com uma história, mas lá, naquele
momento, todos iguais. Pra você ter idéia, a noite no albergue ficava todo
mundo de papete e meia, aquela coisa que meu Deus! Eu nunca sairia na rua
assim! Mas lá era normal... e a gente jantava e passava o pão no prato, e era
tanta fome que se alguém deixava alguma coisa no prato o outro comia... eram
coisas tão gostosas, e que se você olhava as pessoas muitas tinham dinheiro,
eram bem sucedidas... Lá as máscaras vão caindo e se vive de forma muito
simples.
E tem outra coisa que lembrei pra te falar! O Caminho de Santiago é
chamado “caminho da 3ª idade”, a maioria das pessoas que fazem são idosos.
A grande maioria, conheci poucos jovens. Da minha idade já tinham poucos,
não era comum. Tanto que no encontro de peregrinos a faixa etária é 45, 50
anos, veio uma de Santa Catarina que já tem 70 anos, ela já fez o Caminho e
vai de novo em 2011. Então normalmente é um caminho pra pessoas mais
velhas. Tem vezes, a pessoa trabalhou a vida toda, daí aposenta, e agora?
Tem que buscar alguma coisa, daí vai fazer o Caminho de Santiago. São
pessoas normalmente aposentadas, que já viveram muito e acabam
descobrindo muita coisa no caminho. É muito interessante isso.
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Beatriz – E uma coisa que tenho percebido nos peregrinos é como isso
mexe mesmo com eles, dá pra ver na necessidade de contar a experiência...
Quantas pessoas que fizeram uma peregrinação e depois montam blog,
escrevem livro, publicam as fotos...
L. – É, acho que é a troca de experiências mesmo e estar em contato
com outros peregrinos é muito gostoso. Parece que a gente pertenceu a um
mundo e agora pertence a outro. E as pessoas que não pertencem a esse
mundo de peregrinos não entendem o que a gente fala! Só quem ta nesse
mundo consegue entender.
Quando eu comecei a fazer o Caminho, e mesmo antes de ir, eu
pensava, são 800 km! É muita coisa, é pra se fazer uma vez na vida. E é
incrível, porque você volta e já quer ir de novo. Lá eu conheci um peregrino que
é do Rio de Janeiro, e ele já fez o Caminho oito vezes! E ano sim ano não ele
vai. E tem seus sessenta e poucos anos. Tem site sobre o Caminho, livro...
Alguns não, mas a grande maioria que faz tem vontade de ir de novo. É bem
comum encontrar pessoas lá que não estão pela primeira vez no Caminho.
Muito comum.
Lá na associação (é legal você ir, porque lá você vai conhecer bastante
gente), tem pessoas que já fizeram muitas vezes. E aí começam a buscar
outros caminhos. Eu agora tenho vontade de fazer todos os caminhos do
Brasil, outros internacionais também, o Caminho de Santiago por outras rotas
(apesar que o caminho francês pra mim foi maravilhoso).
Tem partes mais maçantes porque... a paisagem não muda muito. E é
interessante que eu não me sentia bem em cidades grandes. Acho que por
morar em São Paulo, que já é uma grande metrópole, eu me sentia
incomodada. Eu gostava de ficar naqueles “pueblozinhos” bem pequenininhos,
pra mim pareciam cidadezinhas de contos de fadas! E assim, os meus
antepassados são daquela região da Espanha, e minha avó me contava
historinhas de lá, e vendo a paisagem, as montanhas, dá pra entender muito
mais a imaginação daquelas pessoas! Menina, eu viajava! Eu passava em
cidades medievais, e eu me sentia naquela época, dava até pra imaginar
cavaleiros de armaduras! Eu conseguia me transportar a essas épocas.
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E tem cidades lá que diziam que eram cidades amaldiçoadas, como
Foncebadon, teve uma praga de um cigano... Ele morreu lá e jogou uma praga,
disse que toda a cidade morreria e a cidade foi mesmo morrendo! E os
peregrinos morriam de medo de passar lá, porque diziam que tinha cães
ferozes, que na verdade eram os demônios que tomavam conta da cidade...
E... eu tinha muita curiosidade de passar por lá. E eu me senti tão bem, como
se... como se na outra vida eu tivesse vivido lá! Parecia que eu fazia parte
daquele lugar, sabe? Eu me sentia muito familiarizada.
A paisagem da Espanha é bem diferente da mossa vegetação. Mas pra
mim, eu me sentia tão familiarizada com aquele lugar que parecia que eu tinha
nascido ali, crescido ali. Era uma sensação muito gostosa. Como se eu
voltasse à minha infância. Só que na verdade eu nunca havia estado lá.
Beatriz – Isso é interessante! Outro dia eu estava lendo que a
peregrinação é sempre para um lugar sagrado, ou como Santiago de
Compostela, um lugar religioso, ou pra terra natal da pessoa, da família, que
por ser o lugar das origens passa a ser sagrado. E eu acho isso... bonito! Tipo,
de depois trazer essas coisas para a vida...
L. – É... Santiago é um lugar sagrado por ter os ossos do apóstolo, mas
também tem muitas lendas... Eu não sei por que (aliás, acho que ninguém
sabe!), mas é um lugar que atrai gente! São muitos peregrinos que fazem,
muitos! Os albergues todos lotados no Caminho. Muito cheio, muita gente
fazendo peregrinação em todas as épocas do ano. Mesmo no inverno que é
mais difícil. Mas em 2011 eu quero fazer no inverno.
Ah! E eu não sei o que faz as pessoas irem a Santiago. Pra mim não foi
o santo, eu não tinha promessa nenhuma pra Santiago! Eu nem acredito muito
em santos! Chegar a Santiago foi chegar a um objetivo, mas não chegar na
catedral (isso pra mim foi mais uma coisa), porque eu prefiro as igrejas
pequenininhas, as grandes me incomodam. Sabe, esse negócio de muita
riqueza em nome de Deus me incomoda!
Se você for ver, é um caminho de sangue! Porque... os mouros e os
cristãos lutavam e... não é uma coisa que me atrai! Esse lado, porque não sou
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católica, mas o caminho me atraiu. Não sei se é porque lá estamos debaixo da
Via Láctea e tem uma energia diferente, é um caminho que milhares de
pessoas percorrem há milhares de anos. É uma coisa que tem uma força
espiritual muito grande. Mas pra mim não é católico! Conheci muita gente La
que não era católico. Os alemães, por exemplo, eram protestantes. Então é um
lugar que atrai muita gente, tanto faz de qual religião.
Essa coisa de religião, você vê a peregrinação pra Machu Pichu... pra
mim, espiritualmente, tem mais força que Santiago, porque é mais parecido
com o que eu acredito. Na verdade Santiago surgiu porque a Igreja precisava
de alguma coisa forte, porque os mouros estavam tomando conta de tudo! E aí
fizeram esse negocio do corpo de Santiago, que pra mim eu nem acho que é
ele! Dizem que é o corpo de uma mulher que encontraram lá... então, assim,
tem muita história que se conta sobre lá.
É o caminho que importa. Chegar é chegar a um objetivo. Pra mim foi
mais importante chegar a Finisterra do que a Santiago. Santiago foi importante
enquanto cidade, mas não pela coisa toda de igreja... claro, na missa eu me
emocionei, mas é porque é uma coisa que arrepia! E tem aquele negócio de
abraçar a estatua de Santiago... eu fui, eu fiz todos os rituais, mas eu me senti
meio ridícula fazendo aquilo! (risos). Pra mim foi muito mais importante a Cruz
de Ferro, outros rituais que fiz durante o Caminho foram mais marcantes que o
próprio ritual de abraçar o santo, enfim, me senti ridícula fazendo aquilo. É
engraçado... E as pessoas vão fazendo montinhos de pedra durante o
Caminho, que representam seus problemas, as promessas que fazem... E
aqueles montinhos de pedra que você vê quando passa, te arrepia! Coisas que
as pessoas vão abandonando pelo caminho, é muito interessante.
E eu ia me desprendendo tanto das coisas materiais que literalmente eu
ia perdendo tudo pelo caminho! Perdia roupa, perdia toalha, perdia tudo! Teve
um italiano que falou: “cadê seus óculos de sol?”, e eu: “perdi!”. E ele: “mas
não é possível, isso é patológico!” (risos). Porque eu perdia tudo no caminho!
Porque eu realmente não dava importância às coisas materiais. E eu acho que
ia largando! Comecei perdendo a câmera. Depois perdi uma calça, perdi a
toalha, os óculos... Eu levei os sticks pra andar, que eram bastões de
caminhada que eu nem usava e acabei doando num albergue, porque de
43
repente alguém podia estar precisando, então deixei lá. Daí ganhei um cajado,
que ate trouxe comigo pro Brasil, e aquilo pra mim tem um sentido que nossa!
Vale muito mais que os sticks que eu paguei uma nota!
Beatriz – Deixa eu ver, o que mais... Ai! A sua idade! Eu ia perguntar no
começo, mas esqueci! (risos)
L. – Trinta.
Beatriz – E pra gente terminar aqui, como você se definiria?
L. – Sabe que depois do Caminho eu sinto mais necessidade de
encontrar uma religião? Mas uma religião que tenha a minha cara. E eu não sei
bem ainda, vou continuar em busca, não me considero cristã, mas acredito em
muitas coisas. Acredito nas energias, nas energias que as pessoas passam,
acho isso muito importante. E acredito que tudo tem um porquê, tudo na vida
tem a hora e o motivo pra acontecer...
O que eu posso te dizer assim, de mim, é que sou uma pessoa que está
sempre em busca de encontrar a felicidade e a liberdade. E depois do Caminho
eu vi que a única pessoa que pode fazer isso por mim sou eu mesma.
E ganhar dinheiro... lógico, é importante porque sem ele eu não tenho
como viajar! Mas... não é tudo na vida. Sou uma pessoa aventureira, que não
gosta de rotina e que valoriza muito o contato com os outros. A gente não pode
viver pro dinheiro, é ele que tem que servir a gente!
Mesmo com todos os problemas que tenho passado hoje, na minha
vida, eu sou uma pessoa feliz. E todo dia eu acordo e agradeço o sol, o céu... e
consigo perceber detalhes que eu não percebia antes. Vai, pôr do sol! Mesmo
com a poluição, da janela do meu prédio é lindo de ver! E são coisas que antes
passavam e que agora dou muito mais importância... o por do sol, a chuva...
coisas que acontecem e que antes eu nem percebia, hoje percebo muito mais.
Eu mudei muito o meu estilo de vida. Eu vivia todo final de semana em
shopping! Hoje eu evito! Porque é um lugar que me incomoda. Porque as
pessoas passam pelas outras sem ver ninguém! Sabe, isso que eu achei
44
engraçado! Olha, no metrô é lotado e ninguém olha pro lado. La no Caminho
não tem um que passe por você sem dizer “bom caminho!”. E eu pensava:
“quando eu voltar pro Brasil, vou continuar falando „bom caminho‟ pra todo
mundo”, e é um costume que a gente adquire lá... quando voltei eu ia caminhar
no parque, e sempre “bom caminho!” (risos) é engraçado, mas é muito bom!
E eu dizia que quando voltasse para o Brasil ia ter que fazer muitas
coisas. Dizer “bom caminho” e arrumar uma máquina que ronca e solta “pum”,
porque eu não conseguia mais dormir sem isso! Vender minha cama de casal e
comprar um beliche! Porque acostumei a correr pra pegar a cama de baixo,
porque era uma disputa! (risos). A gente chega tão casada que ate a escadinha
do beliche desanima! (risos). E são coisas engraçadas que a gente comentava
no caminho... a gente vivia muito na simplicidade. Era varalzinho no albergue,
tinha que lavar a roupa na mão, e aí caminhava com a roupa molhada
pendurada fora da mochila. Você leva bem pouca coisa, e aí mesmo chegando
cansada, tem que lavar sua roupa, cuidar das suas coisas...
E outra coisa: um peregrino só ajuda o outro se for solicitado. Se não,
cada um tem o seu limite, sua cruz pra carregar... só ajuda se vê que está
precisando mesmo, ou se é solicitado.
Que nem agora que vim conversar com você... eu falei pro meu marido
que ia vir aqui, porque conheci uma menina que está pesquisando sobre o
Caminho... e ele falou: “mas ela vai te pagar?” e eu falei: “não, porque não
custa nada eu ir lá contar minha história”. Aqui todo mundo espera alguma
coisa em troca, lá não, ninguém esperava nada! E isso é a coisa mais gostosa
que tem!
A mesma coisa com o encontro de peregrinos que eu organizei... “O que
você vai ganhar com isso?”. Nada, nada além de amigos!
Tem um filósofo que fala que as pessoas nascem boas... (pausa).
Beatriz – Rousseau!
L. – Isso, Rousseau! É exatamente isso, as pessoas são boas! O mundo
é bom! É essa porcaria de capitalismo que a gente vive, que é tudo por
dinheiro, que faz a gente deixar de lado coisas tão importantes... e as coisas
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que deixam a gente méis feliz não têm preço, são de graça. Mas a gente nem
sempre enxerga! Só vive pra trabalhar, trabalhar, trabalhar, depois fica doente,
não tem amigos pra dividir... e isso não vale nada!
Essas são as coisas que aprendi e que aplico na minha vida, e que não
tem mais jeito de voltar a ser como antes. A L. de antes... não! A L. que parecia
existir antes, não existe mais! Agora eu sou assim, não tem como voltar atrás
mais. O tempo não anda pra trás!
E o importante é a liberdade, claro, respeitando os outros, mas liberdade
de ser você, de ser feliz, porque a gente só está aqui pra isso, pra ser feliz. E
eu me entreguei nesse caminho de coração.
Não é pra usar a razão, pensar o que é certo ou errado, porque isso
mora no coração de cada um.
E é o que eu quero deixar pros meus filhos. Essa visão do que é ser
humano, o que é ajudar o próximo... Com isso, o resto eles com certeza
conseguem. Deixar estudo e valores (de não enganar ninguém, de ser sincero
com os outros e com eles) é mais importante do que deixar bens.
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Questionários Respondidos
QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: I.S.A. Sexo: F Idade: 47
Profissão: professora (Ensino Medio) Escolaridade: superior
Estado civil: casada Filhos: 1 filho
Religião: simpatizo com o budismo.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Em julho de 2008.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Sim, meu trabalho é estressante, porque dou aulas de matemática para
adolescentes de ensino médio. Eu também estava tendo alguns problemas
familiares com meu filho adolescente, que estava muito rebelde.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Eu já estava pensando em fazer o caminho há alguns anos. No prédio em
que moro, uma moça amiga minha fez e sempre falou como uma coisa que fez
muito bem a ela (posso te passar o contato dela, ela ama falar sobre isso).
Então, quando meu marido sugeriu uma viagem de férias, fazia muito tempo
que a nossa família não viajava junta, e eu acabei sugerindo que a gente fosse
47
os 3 juntos fazer o caminho de Santiago, porque imaginei que a gente acabaria
ficando uma família mais unida e amorosa, por termos de passar muito tempo
juntos. Trabalhando com adolescentes eu sabia que quando eles ficam
rebeldes é porque querem atenção, e no caminho achei que a gente podia
acabar resolvendo de algum jeito esse problema do nosso filho, ou pelo menos
seria melhor do que ir viajar para algum lugar que cada um vai para um lado
fazer o que quiser. Lá a família precisaria ficar junta e unida.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Muitos momentos me emocionaram. No avião estava tudo bem, eu acho
que só quando vi que estava no caminho, com a mochila nas costas e que teria
que andar por tanto tempo é que me dei conta do que estava fazendo. Mesmo
sobre o meu filho, se eu ficasse nervosa, não podia só mandar ele de castigo
para o quarto, eu teria que conversar com ele e resolver o problema! E isso
aconteceu muitas vezes, acho que nunca conversamos tanto. E escrevendo
para você agora, acho que antes disso eu mal conhecia meu filho, não o
escutava nem dava a atenção que os jovens sempre precisam nessa fase.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Um sentimento de vitória e de que os desafios que passo podem parecer
grandes, mas que tenho o poder de superar cada um deles. Se estão na minha
vida é porque eu dou conta.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Normal. Para nós foi tranqüilo, porque a gente estava em família. Eu e meu
marido conseguimos tirar férias do trabalho ao mesmo tempo e junto com as
férias escolares do nosso filho. Então foi bem tranqüilo, uma viagem de férias
em família, só que num lugar bem diferente.
6- E como foi voltar?
48
Essa viagem foi diferente, talvez porque muitas coisas mudaram para mim,
e também porque foi a viagem mais longa que já fiz, e a primeira para outro
país. Eu estava cansada e com vontade de chegar em casa. Mas eu amei ter
ido. Durante o caminho parece que só existe aquilo lá, que aquele é o mundo,
mas sabe que quando terminei me deu uma saudade de casa! De tomar banho
no meu banheiro, dormir na minha cama, comer minha comida... Viajar é bom,
mas só se você sabe que vai voltar.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Mudei bastante. Acho que estou mais próxima do meu filho e do meu
marido. Antes não, tudo me irritava, eu vivia estressada. Por exemplo hoje a
gente faz mais coisas em família. Coisas simples até, mas que antes não fazia.
Um almoço de domingo, na mesa com os 3 juntos, sabe um momento gostoso.
A gente não tinha isso antes, cada um comia quando e onde queria, quase
sempre vendo TV. Era como se eu nem fosse mãe do meu filho, esposa do
meu marido, a gente acabava discutindo muito. Agora acho que nossa família
está mais amorosa, e isso me deixa viver melhor. Mesmo no meu trabalho,
acho que sou uma professora melhor, me estresso menos com a garotada,
acho que entendi, convivendo mais com meu filho, que nessa fase eles são
agitados mesmo, não fazem de propósito para me irritar. E acho que tudo flui
melhor por eu viver mais em paz comigo mesma.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: R.A. Sexo: M Idade: 50
Profissão: engenheiro Escolaridade: superior
Estado civil: casado Filhos: 1
Religião: minha família se converteu ao budismo recentemente.
Quando fez o Caminho de Santiago?
7/2008
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Minha vida era boa. Eu tinha e ainda tenho um bom emprego, minha família
tem uma condição de vida confortável. De problemas a gente tinha mais é de
brigar muito na família, qualquer coisinha que a gente não concordava já era
motivo para discutir.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Na verdade eu sugeri viajar todos juntos nas férias, tinha muitos anos que a
gente não viajava. E foi minha esposa que sugeriu o caminho de Santiago.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Teve um dia, a gente já estava quase chegando no albergue e eu torci meu
pé. Fiquei bastante inseguro sobre o que fazer naquela situação em uma
50
estradinha no meio do nada! E então meu filho carregou minha mochila por
todos os quilômetros que faltavam. Sem ninguém pedir, foi uma atitude dele
mesmo. Foi quando eu parei de ver ele como um moleque irresponsável, ele
não era isso, ele era um homem! E merecia todo o meu respeito.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Pensar que eu cruzei um país inteiro a pé é uma coisa muito forte pra mim.
E também todo esse sentimento de família, minha esposa falava e ainda fala
muito sobre isso, e eu vi que a gente tem que abrir mão de algumas coisas
para conquistar outras maiores.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Foi maravilhoso, as merecidas férias que eu não tirava há muitos anos!
6- E como foi voltar?
A volta também é parte do caminho. Eu se pudesse ficava lá em algum
lugar do caminho por mais um bom tempo, vivendo sem chefe, sem relógio,
tomando vinho.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Eu já não levo o trabalho tão a sério. Hoje eu trabalho para viver, e antes eu
acho que vivia para trabalhar. Sei apreciar um final de semana gostoso com a
família, os amigos. E já não brigamos tanto, acho que vi que sou parte da
família e não o dono dela.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: G.S.A. Sexo: M Idade: 18
Profissão: estudante Escolaridade: fazendo cursinho
Estado civil: solteiro Filhos: não
Religião: acredito em deus, mas não tenho uma religião. Todas são boas, acho
que o mais importante é ser justo e ter a consciência limpa.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Julho/2008.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Eu não vou mentir pra você falando que minha vida era legal porque não
era não. Eu estava numa fase que eu não queria nem saber de nada. Meus
pais achavam que eu era um moleque mimado, revoltado sem motivo. A escola
não fazia sentido nenhum pra mim, então eu matava todas as aulas que podia
ou então ficava dormindo. Daí ia mal e arrumava mais problemas ainda, meus
pais ficavam falando e eu já me enchia e saia ou me fechava no meu quarto e
aí eles já começavam a alucinar que eu estava com os amigos errados, que eu
usava drogas. Eu estava naquela fase que você pensa que ninguém te
entende, como se alguém tivesse que me entender.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
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Na época nenhuma. Eu vi o seu Orkut e sei que você é nova, então vai me
entender. Sabe quando seus pais inventam o maior programa de índio e te
arrastam junto mesmo você falando que não vai? Foi tipo assim. Até a véspera
eu não queria ir nem arrastado. Falei que eles podiam ir e eu ficava em casa de
boa, falei que podia ficar na casa de algum amigo, mas nem me ouviam. Indo
pro aeroporto eu ainda tinha esperança do vôo ser cancelado, da gente pegar
um avião errado e chegar em algum lugar bem louco, tipo Nova York, que nem
em filme, sabe? Ficava imaginando essas coisas só de zuera. Daí antes de
embarcar minha mãe me deu um livrinho sobre os cavaleiros templários que
guardavam o caminho antigamente. E fiquei imaginando que já que eu estava
no vôo certo, isso podia ser uma aventura, como se eu fosse um cavaleiro
desses, em busca de algum tesouro.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Nos primeiros dias eu não estava animado não. Meu pai se irritava e andava
sozinho mais pra frente e minha mãe ficava falando que eu devia tentar
aproveitar, e várias coisas que eu nem ouvia. No 3º dia, quando paramos para
comer numa vilinha que eu não lembro o nome, acabei conversando com um
cara que era espanhol e que sabia muito dos cavaleiros templários. E ele falou
pra mim que mais do que proteger o caminho ou buscar tesouros, como eu
achava, o que todo cavaleiro deveria fazer era lutar por honra e justiça, e que
só assim ele ia conquistar os maiores tesouros, que estavam dentro dele
mesmo. E eu acho que foi aí que entrei mesmo na idéia da peregrinação. Lutar
por justiça e honra me pareceu uma luta que valia a pena.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
A idéia de lutar por justiça e por honra. Eu já tenho 18 anos, sei que não
sou um cavaleiro medieval, mas acredito que se eu tiver firme essas idéias, vou
ser um homem melhor, ter uma vida digna.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
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No meu caso foi um grande alívio, vendo a coisa hoje. Na época fiquei
muito de saco cheio de ter que ir, mas logo que entrei no espírito da coisa,
fiquei muito grato pelos meus pais terem me levado mesmo que a força.
6- E como foi voltar?
Foi ruim. Eu faria tudo outra vez, o caminho. Voltar e ver meus amigos
daquele jeito, iguais, do jeito que eu era antes, né, me desanimou. Vai ver que
eu me toquei de como eu era, mas eu sentia como se o mundo fosse um lugar
tão grande, com tanta coisa pra ver e pra ser, e eu não queria mais aquela
vidinha de menininho mimado, de dormir na aula, jogar vídeo game e ir pra
balada. Eu quero ser digno da vida que tenho. Quero explorar possibilidades,
lutar e me esforçar para conquistar meus tesouros. Acho que eu meio que não
voltei, continuo no espírito da coisa.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Nossa, muitas mudanças! A 1ª é que eu vi que meu pai estava certo, eu era
um moleque mimado. Não sei te explicar, mas eu sinto como se agora sim eu
estivesse aqui, vivendo minha vida. Antes eu só ia empurrando tudo, nem
ligava. Agora eu quero fazer minhas escolhas, lutar e conquistar meus
objetivos. Só serei digno dos meus sonhos se eu lutar por eles. Estou levando
as coisas mais a sério, acho que cresci.
54
QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: H.G. Sexo: F Idade: 36
Profissão: tenho uma loja de produtos esotéricos
Escolaridade: superior incompleto
Estado civil: divorciada Filhos: 0
Religião: apenas acredito em Deus e na força do nosso pensamento, que pode
mexer com energias mais poderosas do que nós mesmos.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Abril de 2004
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Eu tinha acabado de me separar quando decidi fazer o caminho. Estava
passando por um momento muito delicado.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Era um sonho que eu tinha desde adolescente, mas que nunca dava certo.
Ou não tinha dinheiro, aí quando tinha não dava tempo. Quando me separei eu
precisava de um tempo para mim e pensei, por que não realizar este sonho?
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
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Vários momentos foram tocantes para mim, mas a chegada a Compostela e
a missa dos peregrinos foram muito emocionantes. Nem sou católica nem
nada, mas foi uma cerimônia muito linda, como se viesse fechar uma fase que
eu passei e daqui para frente tudo ia ser melhor.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Persistência para superar as dificuldades.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Eu precisava de um tempo. Deixar o trabalho foi mais difícil, eu organizei
tudo antes de ir, e de vez em quando telefonava para saber se tudo estava
bem. Mas foi bom ter ido, me fez pensar sobre muitas coisas do meu
casamento e da separação, da minha vida que aqui eu só engolia e depois
ficava me sentindo mal, meio deprimida, e nem sabia ao certo porque.
6- E como foi voltar?
Eu não queria voltar. Mas me senti com mais coragem para enfrentar minha
vida do que eu tinha antes de ir.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Fiquei uma pessoa mais reflexiva, penso mais nas coisas de minha vida e
em como elas me afetam ao invés de só deixar pra lá. Também sou mais
persistente hoje.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: B.D.T. Sexo: M Idade: 42
Profissão: publicitário Escolaridade: MBA
Estado civil: solteiro Filhos: 0
Religião: minha família é católica, mas não tenho nenhuma religião.
Quando fez o Caminho de Santiago?
09/2009.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não era bem um conflito. Eu trabalhava na diretoria de uma grande
empresa, me dedicava demais ao trabalho, e para mim estava tudo bem. Era
uma dessas pessoas viciadas em trabalho, para você entender, eu chegava a
tomar remédios para não dormir e poder trabalhar mais. Até que um dia fui
demitido.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
De repente me vi desempregado e foi quando percebi que fora o trabalho,
eu não tinha exatamente uma vida. E é bem difícil quando você percebe isso.
Fui fazer terapia (eu li no seu perfil que você é psicóloga). Resolvi montar a
vida que eu não tinha vivido até então. Descobrir o que gosto e o que não
gosto, quem sou eu, fazer amigos, me divertir... coisas que fui deixando de lado
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cada vez mais e que quanto mais eu deixava de lado, mais me pareciam ter
pouca importância. Sem o trabalho eu tinha tempo e tinha boas economias,
então pensei em viajar. Eu queria ir para algum lugar diferente. Pesquisando eu
conheci o Caminho de Santiago e resolvi ir.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Quase todos os dias acontecia algo, na realidade ou mesmo nos meus
pensamentos, que me emocionava. Mas para mim, o que mais mexe comigo é
quando penso que essa atitude deve ter sido a primeira que tomei por livre
vontade e para mim mesmo, sem cobranças ou necessidades. Apenas resolvi
e coloquei em prática algo de bom para minha vida fora do trabalho, bem da
vida pessoal mesmo.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Que se eu mesmo não viver por mim e tomar as atitudes que julgo certas,
mais ninguém poderá fazer isso.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui buscar alguma coisa
que eu nem saberia, e acho que ainda não sei, explicar o que.
6- E como foi voltar?
Foi bom, voltei muito satisfeito e orgulhoso de mim, não apenas por ter
conseguido fazer todo o caminho, que tem alguns trechos bem difíceis para
pessoas sedentárias como eu era na época, mas por ter feito algo por mim, por
começar a dar alguma forma para mim. Pude me ver como uma pessoa que
tem tudo nas mãos para viver a vida que quiser.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
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Agora tenho mais autonomia. Também dou mais valor a coisas que antes
eu não me importava, vi que a vida é muito mais que uma carreira de sucesso.
Por exemplo, todos os dias eu acordo cedo e vou caminhar, mesmo que seja
um dia cheio de compromissos, eu faço isso. Também faço questão de ir surfar
nos finais de semana, eu não fazia isso nunca antes, acho que desde quando
eu era adolescente. Percebi que a carreira não é tudo. A vida pode ser boa e
feliz com isso, ou sem isso, ou ainda apesar disso.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: L.N. Sexo: F Idade: 28
Profissão: nutricionista Escolaridade: superior
Estado civil: solteira Filhos: 0
Religião: católica não praticante
Quando fez o Caminho de Santiago?
Outubro de 2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não, nenhum conflito muito sério. Meu maior drama é que eu queria sair da
casa dos meus pais, eu até já tinha meu apartamento, mas ficava insegura de
morar sozinha. Algumas vezes me dava um medo muito grande que me
paralisava! Assim, sem nenhum motivo. Eu ficava muito mal, tinha crises de
choro, não dormia de jeito nenhum, sentia como se alguém me observasse.
Quando eu tinha essas crises, quase sempre era meu irmão quem me
acalmava, eu tinha muito medo de sair de casa e algo acontecer enquanto eu
estivesse só. Repensando agora, sempre fui uma pessoa com muitos medos,
mas era esse medo sem motivo que mais me doía.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
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Meu irmão ia fazer o Caminho porque ele corta todo o norte da Espanha.
Nossa família é de origem espanhola, e ele queria conhecer o local de origem
dos nossos avós. Ele me convidou para ir junto e no começo, quando ele foi
me contando como era, achei uma loucura. Andar aquilo tudo com uma
mochila tão pesada, dormir de qualquer jeito, ficar tanto tempo longe... Mas
acabei aceitando o convite, nem eu mesma sei por que.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Dentre todos, a Cruz de Ferro, quando coloquei uma pedrinha no pé da
cruz, parece que tirei uma tonelada das costas! Nunca mais tive aquelas crises
de medo, acho que descarreguei tudo lá. Outro momento bom foi a chegada,
olhei para trás e não pude acreditar que eu tinha mesmo conseguido!
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Encontrei minha coragem. Falando assim parece uma coisinha boba, mas
estou falando da coragem de seguir meu próprio caminho, viver a minha vida.
Eu jamais pensaria algo assim antes, vivia com medo de tudo, desde coisas
concretas como dirigir, tempestades, de morrer, de perder minha família até
esse medo que eu não sei de onde vinha.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Foi muito difícil, se meu irmão não estivesse comigo eu não iria. Difícil
deixar meus pais, nossa casa, a rotina que eu tinha todos os dias... eu pensava
que o dia da viagem estava chegando e já me dava uma ansiedade muito
grande, medo do avião, de estar longe, de me machucar, de estar por tanto
tempo num lugar aberto, de não conseguir andar tanto... Chorei muito,
principalmente no aeroporto me despedindo dos meus pais.
6- E como foi voltar?
Fiquei aliviada de estar de volta, e também feliz de ter conseguido fazer
todo o caminho e de ter superado meus medos.
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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
A maior mudança é que agora não tenho mais as crises nem os medos de
outras coisas, ou quando tenho, eles já não me paralisam, eu consigo
enfrentar. Com isso fiquei uma pessoa mais leve, rio mais, saio mais, durmo
melhor, porque antes eu tinha muitos pesadelos, e nunca mais tive aquela
sensação estranha de que alguém me observava. Hoje eu sou uma pessoa
muito mais em paz comigo mesma, mais espiritualizada até. Acredito muito no
poder de pensar positivo e tentar ver as coisas de um jeito melhor.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: D.N. Sexo: M Idade: 30
Profissão: advogado Escolaridade: pós-graduação
Estado civil: solteiro Filhos: 0
Religião: católico não praticante
Quando fez o Caminho de Santiago?
Outubro de 2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Nenhum conflito, era uma vida normal. Eu tinha uma boa relação com a
minha família, trabalho em algo que gosto, tenho bons amigos, minha família
tem uma boa condição financeira, tudo normal.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Sou descendente de espanhóis e queria muito conhecer a região de onde
vieram meus avós. A Espanha é um país muito bonito e cheio de cultura, vale a
pena conhecer, é uma viagem que sempre digo a todos, se um dia puder ir, vá!
E eu também queria levar minha irmã, estava muito preocupado com ela e
como somos muito próximos um do outro, pensei que uma viagem para um
lugar bonito lhe faria bem.
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3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Quando cheguei me senti um vencedor! Eu tinha ido mais pelo caminho do
que pensando mesmo numa peregrinação, eu queria conhecer o lugar. Mas
mesmo assim, quando eu terminei foi uma emoção muito grande.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Um sentimento que eu não saberia que nome dar. Algo como ter entrado
em contato com as minhas origens e me sentir protegido por causa disso, me
sinto mais forte.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Normal, tirei férias do trabalho e parti em viagem.
6- E como foi voltar?
A volta foi mais emocionante que a ida. Reencontrar meus pais, meus avós,
depois de ter visto onde eles viviam, me senti mais próximo deles e da nossa
história. Antes a história da nossa família era só algo que se passou, hoje não,
é algo concreto e que faz parte de quem eu sou. E outra coisa da volta, que
acho que é normal em toda viagem agradável, é que é bem estranho retomar o
dia a dia depois, parecia que eu já não era parte dele.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
O que eu mais percebo e essa relação com minha família e nosso passado.
Uma coisa mais concreta e que tem relação com isso também é o meu
sobrenome espanhol. Antes eu sempre o pronunciava de forma
aportuguesada, para facilitar a escrita e compreensão dos outros. Agora não,
uso a pronúncia espanhola e, se necessário, soletro!
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: L.A.H.W. Sexo: F Idade: 31
Profissão: terapeuta holística Escolaridade: superior
Estado civil: tenho uma relação estável Filhos: 0
Religião: wicca
Quando fez o Caminho de Santiago?
10/2005
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Eu tinha muita dificuldade de me assumir como sou. E acho que por causa
disso, era bem insatisfeita com a minha vida, parecia que nada nunca ia para
frente! Um conflito que eu tinha é que eu sou homossexual e era bem difícil
assumir isso até para mim mesma. Eu escondia! E mesmo quando não
consegui mais esconder de mim, escondia dos outros. Eu achava que ninguém
entenderia, minha família, por exemplo, que é toda evangélica, seria bem difícil
dizer isso para eles. Eu não tenho nada contra os evangélicos, vejo muitas
bruxas falando mal dos cristãos, mas toda minha família é cristã e são pessoas
boas, que muitas vezes me surpreendem, só pensamos de jeitos diferentes.
Essa parte da religião também era meio que um problema para mim. Eu ia
na igreja com a minha família desde criancinha, e sempre achava chato. Daí fui
ficando mais velha e comecei a questionar as coisas para mim mesma, não era
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uma coisa que me deixava bem. Comecei a pensar em como seria ter outra
religião, mais com a minha cara e cheguei até a pesquisar algumas delas pela
internet. Foi quando conheci a wicca, que é a religião do povo celta e me
encantei muito, por exemplo em adorar a uma deusa e não a um deus. Mas na
época eu só estudava, não praticava, porque pra minha família se eu falasse
que sou uma bruxa, nossa, eu nem sabia como que ia ser. E sempre continuei
indo na igreja, como se nada estivesse acontecendo. Mas estava e o caminho
que minha vida estava tomando acabava me frustrando, porque era como se
eu não fosse a pessoa que na verdade sou.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava
vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo
mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.
O que eu sentia era uma grande insatisfação. Conheci o Caminho de Santiago
em um documentário na TV, me pareceu uma viagem interessante e comecei a
ler sobre ele na internet, até que em alguns meses acertei tudo e fui, mas
naquela época para mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo
caminho fossem coisas separadas, só hoje eu consigo perceber que na vida da
gente nada é separado, tudo é parte do mesmo todo e dança conforme a
harmonia da Deusa.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Não sei se você conhece a história de uma cidade fantasma que existe no
caminho. Foi um cigano que antes de morrer rogou uma praga e aí desde
então não tem mais ninguém que vive lá. Passar por lá me deu uma emoção
muito grande, não sei nem dizer bem o que. Mas eu chorava de um jeito como
não lembro de ter chorado nunca antes na minha vida. Sabe o que é quando
você imagina um lugar com vida, com pessoas que eram felizes ou tinham
problemas e de repente não tem mais nada lá. Acho que reconheci na cidade
fantasma a vida que eu estava levando até então.
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4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
No caminho você encontra quase de tudo. Se você me perguntasse o que
mais me chamou a atenção no caminho de Santiago, eu te responderia que foi
a diversidade. Você encontra pessoas dos mais diferentes lugares, raças,
religiões... e isso tudo lá. Se você pensa no mundo inteiro, você começa a
reparar que existe mais variedade ainda! Acho que essa experiência me fez ver
que somos todos diferentes, e está tudo bem em ser diferente, não é uma coisa
ruim, porque comecei a acreditar que são as diferenças que nos fazem ser nós
mesmos.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Foi estranho. Não é como partir para uma viagem turística. A partir do
momento que eu fechei a viagem eu já comecei a me preparar. Eu tinha um
bom condicionamento físico, então não estava preocupada com a caminhada
como muita gente que eu encontrei me dizia que estava. Todas as noites antes
de dormir e todas as manhãs antes de tocar meus pés no chão eu meditava e
fazia uma visualização para que tudo fosse bem no caminho. Sem nem
perceber eu já estava sendo mais eu, já estava fazendo essas coisinhas da
wicca e que eu não ousava fazer antes. Eu tirei uma licença no trabalho para
poder ir, e depois acabei saindo do emprego que eu estava porque ele não
tinha nada a ver comigo, resolvi mudar de área. Uma coisa legal é que na
véspera da viagem eu juntei toda a minha família, meus amigos e fiz uma festa
de despedida para mim mesma, meio que terminando aquela parte da minha
vida e me preparando, estando livre para o que quer que fosse surgir para mim
a partir dali.
6- E como foi voltar?
Queria que tivesse durado mais. Mas ao mesmo tempo eu também estava
ansiosa pra voltar e tomar algumas atitudes na minha vida que antes eu não
tinha coragem.
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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Sou outra pessoa! Se você olhasse para mim antes e agora não
reconheceria. Eu cheguei e logo fui contando as velhas novidades: olá turma,
eu sou homossexual. Ah, e também sou uma bruxa! E fazer isso foi tirar das
costas um peso ainda maior que a minha mochila. Achei que teria brigas e
discussões, mas me surpreendi bastante quando minha mãe me abraçou e me
disse que o importante era eu estar feliz. Antes eu não tinha coragem de falar
isso pra ninguém, e vivia frustrada. Porque no fundo, era eu mesma que não
aceitava as diferenças, todo mundo tinha que ser igual! E eu acho que nem
tinha consciência disso. Então, se eu sou homossexual, tinha que ter algo de
errado comigo. Se minha família é cristã, eles não vão me aceitar, porque eu
acho que só via as pessoas como caricaturas, então nenhum cristão me
aceitaria! Mas ainda bem que somos todos diferentes uns dos outros!
Também saí do meu emprego, eu tinha estudado administração, profissão
em que nunca atuei, e eu trabalhava em um escritório, um serviço mecânico e
chato que não tinha nada a ver comigo. E então abri um espaço holístico, com
terapias e cursos e nessa eu acabei conhecendo minha namorada. Hoje tenho
uma relação estável com minha namorada e estamos começando a pensar em
adotar uma menininha.
E outra mudança é que não sou mais evangélica, na verdade acho que eu
nunca fui. Praticamos a wicca em casa, temos um coven apenas de mulheres
que celebram juntas os Sabas, que são as festividades da nossa religião, e as
luas cheias. É uma religião em que me encontrei e que sou aceita como sou.
Nossa proposta, pelo menos no nosso coven, é praticar a verdadeira religião
dos celtas que era um povo com uma cultura muito rica e mitos que continuam
atuais para as pessoas de hoje.
Acho que a maior mudança é que não tenho medo de ser quem sou, de me
assumir. Se me aceitam, claro que fico feliz, mas não ser aceita não é mais
aquele drama. Posso dizer que sou uma pessoa realizada hoje.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: M.M.Z.S. Sexo: F Idade: 44
Profissão: não estou trabalhando Escolaridade: bacharel em direito
Estado civil: casada Filhos: 2
Religião: católica – não praticante
Quando fez o Caminho de Santiago?
08 de 2010
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Minha vida era normal. Meu marido sempre foi um homem que fez todas as
minhas vontades, ele me mima muito. E também tenho uma relação bem legal
com as minhas filhas, falo que sou mais amiga delas do que mãe, falamos
sobre tudo e fazemos muitas coisas juntas.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Eu sempre quis emagrecer, porque sempre fui gordinha. Sempre tive muitos
problemas com meu peso e com comida, desde bem novinha. Mas quando
você é criança, na minha época, todo mundo achava até saudável uma criança
gordinha e te estimulam a comer mais. Quando fui crescendo eu me achava
muito feia por ser gordinha. Pela sua foto acho que você é bem novinha e bem
bonita, mas pensa alguém da sua idade tendo que comprar roupas em lojas de
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tamanhos grandes, não podendo usar coisas da moda e que suas amigas
usam... é ruim, você fica se achando quase um ET. E depois de mais alguns
anos você passa dos 30, tem filhos e o problema não é mais só de estética,
você começa a ter problemas de saúde. Eu tentava de tudo para emagrecer:
dieta da sopa, da salada, da lua, mas nunca funcionava. Tentava tomar
remédios e eu até emagrecia, mas logo que parava voltava tudo outra vez. Eu
sentia um vazio tão grande, sentia que precisava ter alguma coisa dentro de
mim e comia mais e mais... O caminho foi uma tentativa de emagrecer
também. Até hoje eu nunca conversei com mais ninguém que fez para
emagrecer, mas antes eu ouvia muitas pessoas falarem que andaram muito e
acabavam emagrecendo um pouco. E também tem toda aquela parte mística
sobre o caminho que eu acho super bacana.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Acho que foi perceber que no caminho as coisas não são como quase
sempre é na vida da gente. O tempo passa diferente, não tem essa correria.
Você acorda quando quer, caminha o quanto pode e come o que precisa. Você
não tem preocupações, você não precisa de nada e nem precisa ser nada.
Você é só alguém que está andando por ali. E aí você pensa quanta gente já
passou por lá em mil e tantos anos, e você vê que você é apenas mais um. Me
senti parte de alguma coisa maior do que eu, é uma sensação que eu nunca
tive antes. Deve ser a energia. O caminho tem uma energia muito forte, fica
debaixo da Via Láctea, todo mundo acaba se emocionando.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Que ser uma pessoa bonita não significa ser magra. Tem gente bonita que
é magra e também gente bonita que é gordinha, do mesmo jeito que tem gente
magra e feia. E também que a beleza não é só o que fica por fora, é o que a
gente é por dentro.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
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Bom, eu acho que foi normal. Eu não tenho um trabalho, não tenho esses
problemas de chefe, compromissos de empresa ou negociar férias. Meu marido
cuidou de tudo enquanto estive viajando e a gente também tem uma
empregada de muita confiança, está com a nossa família desde que a gente se
casou, ela cuida bem da casa e me ajuda com as meninas. As meninas não me
preocupavam muito porque já são grandinhas, elas tem 12 e 14 anos e ficam
no colégio em período integral, não são meninas dessas que ficam por aí
arrumando confusão, nunca foram dessas coisas, então eu fui bem tranqüila.
Mas é claro que sempre telefonava pra falar com elas e com meu marido,
saber se estava tudo bem, coisas de mãe.
6- E como foi voltar?
Foi maravilhoso, a viagem foi muito bonita, mas eu estava com saudades
da minha família e de casa, do meu país...
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Aprendi a viver com menos. Com menos roupas, com menos preocupações
em ter que ser que nem todo mundo, fiquei menos consumista e já percebo
que as meninas também estão ficando assim. Quanto a emagrecer, me
decepcionei um pouco. Eu achava que ia começar o caminho gordinha e ia
chegar magra, linda e jovem que nem uma modelo, que nem a Gisele
Bündchen! E é claro que não foi bem assim. Emagreci um pouquinho, claro,
porque antes eu era muito sedentária, mas não tanto assim. Só que depois que
voltei comecei a levar a sério de verdade esse negócio de emagrecer. Estou
fazendo um acompanhamento com uma nutricionista, não mais fazendo essas
dietas malucas que eu via por aí, comendo direito e também estou fazendo
esportes numa academia. Pensando na minha saúde, porque agora sei que
beleza não depende de ser magra.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: H.C.M. Sexo: M Idade: 26
Profissão: engenheiro Escolaridade: superior
Estado civil: solteiro Filhos: não
Religião: acredito em Deus
Quando fez o Caminho de Santiago?
Julho de 2010
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Era normal. Eu fazia engenharia na Poli-USP. Vivia na USP, estudava muito
mais do que eu gostaria, tinha vários amigos, minha namorada que amo muito.
Não que tudo fosse perfeito, mas não tinha nenhum problema tão ruim. Era
uma vida normal de um jovem universitário.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Começou com uma zueira. La pelo 1º ou 2º ano de Poli estava eu e o meu
amigo D. (acho que ele também vai te mandar isso, mostrei o questionário e o
seu perfil do Orkut pra ele e ele disse que ia responder) então num fim de
semana a gente estava assistindo um filme que se chama Diários de
Motocicleta, que mostra a viagem do Che Guevara e do amigo dele pela
America do Sul e eu zuei que a gente podia fazer alguma coisa do tipo quando
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terminasse a facu. Fomos amadurecendo a idéia, acabamos conhecendo o
Caminho de Santiago e pra surpresa de nós 2 a gente foi mesmo! Mas não
tinha nenhum motivo religioso não, ate porque naquela época eu era ateu. A
gente ia pela aventura, pelo sentimento de liberdade.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Passando por Foncebadón, se não me falha o nome. Era uma cidade
abandonada. Não sei te dizer o que rolou, mas foi muito louco! Me deu uma
emoção diferente, me fez ter certeza pela primeira vez na minha vida de que
existe algo maior que nós, e que esse ser, Deus, deve ter poder sobre a gente.
E o mais engraçado é que a gente só parou para explorar essa cidade porque
ouvimos um pessoal dizendo que ela era cheia de demônios e pareceu uma
boa aventura. Não que eu acreditasse, se eu acreditasse eu nem ia, mas me
deu vontade de ficar um tempo lá, dar uma boa olhada. Eu estava lá, sozinho
em silencio e eu sentia uma presença que logo me pareceu ser muitas
presenças diferentes. Eu sei que tinha coisa lá, e eles (as presenças) eu tinha
a sensação que vinham pra cima de mim, que iam me fazer mal e eu não vou
mentir, me deu muito medo, só não saí correndo porque senão o D. ia me zuar
pra sempre! Mas eu tinha que fazer alguma coisa e não sabia o que. Peguei a
concha que eu usava na mochila, como a maioria dos peregrinos e me
concentrei em Santiago. Eu precisava de ajuda lá, e se tanta gente acredita
nele, tem que ter algum poder né. E logo as presenças sumiram e tudo que
restou era uma paz muito grande em mim. Me deu uma crise de choro muito
forte. Não sou de ficar por aí chorando, não pense isso de mim! Mas a emoção
foi muito grande, eu sei que era Deus. Maior adrenalina, fui procurar demônios
e encontrei deus. A vida é irônica algumas vezes.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Encontrei Deus no caminho. Não o Deus dos cristãos, acho que não é o
Deus de nenhuma religião, porque todas elas foram inventadas pelos homens,
não são reais. Mas em diversas oportunidades acho que entrei em contato com
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uma força maior do que eu. Uma coisa boa, que me fez sentir muito protegido e
especial.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Eu tinha terminado a faculdade e ainda não tinha um emprego, então não
deixei isso para trás. A família e os amigos eu deixei normal, sabendo que logo
voltaria, na minha cabeça era só uma viagem. Mas tive saudades da minha
namorada, porque ela é muito especial pra mim e infelizmente não pode vir
junto.
6- E como foi voltar?
Voltei muito animado, cheio de aventuras para contar.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
A maior diferença é que agora acredito em Deus. Não gosto de religiões, de
instituições, mas gosto muito de Deus e todos os dias agora eu me concentro e
falo com Ele do meu jeito. Antes não, se viesse alguém me falar dessas coisas
eu nem ia acreditar e ainda ia zuar a pessoa, rir pra caramba de alguém adulto
e inteligente que acredita nesse tipo de coisa. As vezes minha namorada e eu,
a gente acabava discutindo um pouco por essas coisas. Não brigando, mas
saia uns bons quebras! Porque ela é uma moça muito espiritualizada, não tem
religião, mas fala muito nessas coisas de pensamento positivo e energias e eu
sempre falava pra ela como que uma moça da idade dela, inteligente, ela faz
economia aqui na USP e como que ela poderia acreditar nessas coisas? Pra
mim naquela época era só um monte de besteiras, agora não, eu respeito
muito isso. Mesmo quando não é o que eu acredito eu respeito, porque sei que
pra pessoa aquilo deve ajudar ela de algum jeito.
Uma mudança menor e mais boba, mas que minha família comemorou
muito é que agora eu sou muito mais organizado, antes eu deixava tudo
bagunçado!
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: D.B. Sexo: M Idade: 25
Profissão: engenheiro Escolaridade: MBA em andamento
Estado civil: solteiro Filhos: não
Religião: paganismo
Quando fez o Caminho de Santiago?
Julho de 2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Na época minha maior preocupação é que eu estava me formando na
faculdade, fiz engenharia na USP junto com o H., ele que me mostrou esse
questionário e entrei no seu Orkut e quando vi acabei me interessando muito
pela sua pesquisa. Então eu ia me formar e não tinha idéia do que queria fazer.
Não queria um emprego, pensava em abrir meu próprio negócio, ou em
trabalhar por conta própria, mas não sabia, todos me diziam que era
complicado, que podia não dar certo. Mas não era bem um conflito, eu só não
sabia o que queria fazer dali pra frente.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
O H. e eu somos da mesma cidade e estudamos na mesma escola. Daí
entramos os 2 na Poli e viemos pra SP, dividimos um apartamento. Então a
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gente era quase irmãos, ainda somos, e um sábado sem ter o que fazer
assistimos um filme em que o Che viaja de moto pela América e ficamos
brincando sobre fazer uma viagem parecida. Mas não dava pra trancar a
faculdade e ir, daí a gente zuava que depois de terminar a gente ia viajar pra
algum lugar bem inusitado para comemorar. E isso não era um projeto, era só
de farra mesmo que a gente falava, só pra ficar se distraindo, pra ver a cara
que as pessoas faziam quando a gente falava isso, de brincadeira mesmo.
Então a gente já estava no último ano e meio que por acaso acabamos
conhecendo o Caminho de Santiago. Eu já tinha ouvido falar, mas não sabia
quase nada sobre isso. Então mostrei pra ele e resolvemos ir. Porque acredito
que tem algumas coisas que a gente faz quando é jovem, mas se eu for pensar
daqui uns 10 ou 15 anos, eu já vou ter família, filhos, vou ter que sustentá-los,
ter um trabalho sério (não que eu não seja um cara sério agora, mas não posso
dizer que tenho tantas responsabilidades na vida quanto um homem que tem
família), e aí não daria pra fazer esse tipo de coisa.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Foi engraçado. Porque eu não sou cristão, eu sou um bruxo, sigo o
paganismo. Não sei se você conhece, nós acreditamos em muitos deuses e
nossos cultos são voltados principalmente para a natureza. E o caminho de
Santiago é católico. Eu ia por ir, para comemorar o fim da faculdade e
descansar dos estudos um pouco, e também pela aventura que seria, me
imaginava quase como se fosse um cavaleiro medieval indo por aquelas
estradas, dormindo por aí ou pedindo abrigo, solucionando mistérios e
ajudando mocinhas indefesas. Falei isso para dizer que o caminho não tem
tempo, nem parecia que a gente estava no século XXI, você poderia estar em
qualquer época e nem se dar conta disso. La tudo é possível, encontros com
seres sobrenaturais, a magia acontece lá de verdade, é um lugar com muita
energia. Ir até lá e vivenciar isso sendo um bruxo foi algo muito interessante.
Teve uma noite que não conseguimos chegar ao albergue e tivemos que
dormir na beira da estrada. Era uma estradinha de terra que cortava um campo
muito grande. Fazia calor, então não seria uma coisa ruim dormir la fora. E eu
me deitei olhando as estrelas e não conseguia dormir de jeito nenhum. Fiquei
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várias horas acordado olhando para as estrelas e percebendo como somos
seres tão pequenos e que se dão uma importância tão maior do que realmente
tem. Fiquei pensando na magia que mantém a ordem das coisas, que faz o
mundo ser como é. E também pensei nos caminhos que escolhemos seguir e
naqueles que a gente escolhe não seguir – e que nunca vai saber como ia ter
sido caminhar por eles.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Comecei a ver a magia de um jeito diferente. Não é aquela coisa sisuda,
cheia de preparações e um roteirinho para você seguir. Magia é uma coisa que
flui, é uma coisa que precisa ser livre, e aí sim ela inunda você e tudo a sua
volta. E você vê que a magia não é algo tão especial como mostram nos filmes,
a magia é tudo o que existe, e tudo o que existe é mágico. Todos nós somos
seres mágicos, e é essa a magia. Esse poder de criar novas realidades é o que
nos liga aos deuses.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Cara, para ser bem sincero, tudo o que eu deixei para trás foram minhas
dúvidas. Não, foi um pouco estranho, na verdade. Só pensei nisso agora,
escrevendo pra você. Porque eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o
que eu iria encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu não tinha idéia de quem
seria eu quando eu voltasse. Com certeza já não sou o mesmo.
6- E como foi voltar?
Demorei várias semanas pra entrar nos eixos outra vez. Ou melhor, ainda
não entrei! Eu nunca mais fui o mesmo depois disso, num sentido bom. Porque
lá as coisas passam diferentes, o tempo é outro, como eu falei antes. E acabei
chegando à conclusão que as coisas são estranhas aqui fora, e não no
caminho.
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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Eu sou um ser mágico, vivo num mundo cheio de magia. E isso me faz
sentir em paz e me faz ser uma pessoa melhor. Acho que só por mudar isso já
valeu. Porque antes eu era duas pessoas, ou eu era o bruxo ou eu era o
estudante da Poli, sério, sisudo e racional. Acho que consegui juntar mais as
coisas. Mesmo que eu tenha vários compromissos, posso ter magia no meu
cotidiano, seja fazendo meus rituais, acendendo um incenso, ou só fazendo
mentalizações, nosso pensamento tem muita força, e saudando o sol e a lua.
Eu tinha um pouco de medo de expor meu lado espiritual, quando eu era mais
novo o pessoal me zuava, achavam que eu estava lendo muito Harry Potter.
Não que hoje eu saia por aí dizendo pra todos que sou um bruxo, mas não é
algo que preciso esconder. E se me perguntam, eu respondo mesmo!
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: K.L. Sexo: M Idade: 33
Profissão: administrador Escolaridade: pós-graduado
Estado civil: divorciado Filhos: 1
Religião: agnóstico
Quando fez o Caminho de Santiago?
Maio de 2007.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não tinha conflitos. Minha vida era comum. Eu trabalho em uma grande
empresa do ramo alimentício, viajo muito (quase sempre a trabalho) e nas
minhas horas vagas gosto de jogar tênis.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Minhas férias chegaram e eu pensei em fazer uma viagem diferente, foi
quando conheci o caminho de Santiago, que me atraiu pela beleza das
paisagens, e pela cultura da Espanha, que é muito bonita.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Não teve uma situação específica. Passar por construções históricas é algo
que me emociona, lá tem lugares muito bonitos de conhecer e visitar.
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4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
A praticidade e o pensamento que não preciso de tantas coisas quanto eu
imaginava que precisaria. Eu fui fazer o caminho, mas não queria ter que
arrastar aquela mochila pesada por tantos quilômetros. Então escolhi um
modelo desses próprios para caminhadas de 1 ou 2 dias, pequeno. E antes de
partir eu estudei muito bem meu roteiro e separei mudas de roupas e barrinhas
de cereais e outras coisas que eu poderia precisar em algumas caixas. Então
fui ao correio e despachei cada caixa para uma cidade ao longo do caminho.
Quando eu chegava a alguma delas eu ia ao correio, retirava o pacote e tinha
roupas limpas! Já enchia a caixa com o que eu não fosse precisar e mandava
para casa. Foi bem tranqüilo, encontrei essa idéia na internet e hoje recomendo
a todos que vão para lá fazer isso também. Porque é prático. Você não precisa
carregar tanto peso e evita muitas filas: para despachar e pegar a bagagem, e
nos albergues você não é obrigado a ficar lá lavando roupas ou coisa assim, o
que é bom, porque você chega tão cansado que só quer tomar um bom banho,
comer e dormir.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Não me senti deixando nada. Porque eu estava de férias e eu não tenho
uma família. Quer dizer, eu tenho meus pais, que moram em Santos então não
nos vemos com tanta freqüência, e tenho meu filho, que mora em Salvador
com minha ex-esposa, praticamente só o vejo nas férias escolares, quando ele
vem passar aqui em São Paulo. Claro que o amo, mas não posso dizer que
temos uma relação muito próxima.
6- E como foi voltar?
Tão triste quanto costuma ser quando as férias terminam.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
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Não sei. Se tenho que dizer alguma coisa, acho que fiquei um pouco menos
estressado. Minha vida é muito corrida e às vezes é difícil manter a calma.
Claro que eu preferia viver como era no caminho de Santiago, sem agenda,
sem problemas para resolver, mas preciso encarar a realidade que vivo e ela é
outra bem diferente.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: M.L.F. Sexo: F Idade: 28
Profissão: historiadora Escolaridade: mestrado
Estado civil: solteira Filhos: 0
Religião: minha espiritualidade é muito forte, mas não sigo uma religião.
Quando fez o Caminho de Santiago?
04/2011
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Sim, eu tinha alguns conflitos, quem é que não tem? O conflito mais recente
que eu tinha, que também era o mais simples, é que eu tinha acabado de
terminar um relacionamento que eu tinha há vários anos. Você se sente
horrível quando pensa que conhece alguém e acredita que este homem te
ama, faz planos... e então você descobre que estava enganada. Muito
enganada. Mas não sei se seria apropriado chamar isso de conflito, foi um fato
que aconteceu e que resolvemos terminando o namoro, mas o fim do
relacionamento era uma coisa que me deixava triste. Não por ter terminado,
mas por ter sido daquele jeito, terminando mal e com brigas.
Mas eu tinha outro conflito que me acompanhava há muito mais tempo, e
que me deixava ainda mais apreensiva. Isso não é uma coisa que se ouve com
freqüência, ou pelo menos não a sério. Eu sou especial. Claro que cada
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pessoa é única e isso as torna especiais. Mas o que eu quero dizer é que tenho
habilidades que a maioria das pessoas não tem. Eu vejo e converso com seres
espirituais e também tenho sonhos e visões sobre coisas que vão acontecer.
Por vários anos eu freqüentei um psicólogo para tentar conviver com isso, mas
ele me tratava como se essas coisas fossem sintomas de que algo está errado
comigo. Você é psicóloga, mas sei que sua mente é muito aberta nesse
sentido, me parece que você irá acreditar em mim, não tem nada de errado
com a minha mente. Fora isso eu tenho uma vida normal, e as pessoas com
quem convivo nem desconfiam dessas minhas capacidades. Depois que aceitei
essas coisas, saí da terapia e comecei a buscar respostas em religiões,
conheci várias como o cristianismo (minha família é católica, mas não somos
praticantes), o kardecismo, a umbanda... e nada funcionava para mim. Conheci
então o esoterismo e no começo era legal, mas também acabei me
decepcionando. Porque no fundo essas crenças todas me traziam dogmas e
não me respondiam a sério o que estava acontecendo, enquanto que a postura
da psicologia era de que eu tenho alguma doença mental.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Eu sou apaixonada por história medieval! Uma das motivações foi essa, ver
tudo aquilo de perto. Sou formada em história e nunca havia tido a
oportunidade de viajar para o exterior. Pareceu-me uma boa oportunidade de
unir esses dois projetos e ainda passar um tempo longe de tudo.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Muitos momentos me emocionaram. Um deles foi logo no início do caminho.
Eu fiz o caminho francês. E quando eu estava em St. Jean, onde começa o
caminho, eu tive uma visão. Não tenho certeza se você está habituada a ter de
lidar com visões, mas elas são como flashes, é bem rápido e depois que se vai
nos deixa uma sensação engraçada e ficamos um bom tempo a pensar sobre
ela e sobre o que está querendo nos dizer. Nessa visão eu vi um homem se
aproximando depressa a cavalo, um grande machado na mão, até que, com
um grito ele cortava a cabeça de alguém e me tirava daquele estado de transe
(não sei se esta é a palavra adequada). Foi uma visão que se repetiu todos os
83
dias, assim que eu iniciava a caminhada. Sempre do mesmo jeito. Foi para
mim algo novo, pois é bem raro eu ter visões que se repetem e durante tanto
tempo. E ela sempre me deixava muito pensativa, porque minhas visões quase
nunca são literais e essa claramente não era. Eu ficava o dia todo imaginando
o que estaria querendo me dizer, lembrando de frases. “Perder a cabeça”.
“Cabeças irão rolar”. “Onde eu estava com a cabeça?”. Comecei a ver que eu
estava mesmo “perdendo a cabeça” com essas coisas! Tinha que mudar minha
postura, ficar um pouco mais leve porque o que for para ser será, mesmo que
nós não queiramos. Às vezes é melhor apenas se entregar à vida e deixar que
ela faça de nós aquilo que precisamos ser, ou aquilo que já somos nos nossos
corações.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Cada pessoa deve seguir seu próprio caminho com coragem, pois ninguém
jamais escapará impunemente se não atravessá-lo. Ao mesmo tempo que
ninguém jamais sairá ileso de sua caminhada pela vida.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Eu estava muito animada até o caminho começar. Gostei da viagem, é um
lugar lindo, com uma história riquíssima e que me fez repensar muito sobre a
minha postura na vida. Mas em alguns momentos, principalmente durante o por
do sol, eu olhava envolta e pensava “não acredito que estou mesmo aqui!
Como estão todos no Brasil?” e me dava uma sensação estranha, como se eu
nunca mais fosse sair de lá. Mas logo passava, porque você chega no albergue
e tem coisas para fazer, arrumar suas coisas, lavar sua roupa, e com isso eu
me envolvia nessas tarefas e a sensação passava.
6- E como foi voltar?
Foi bom e foi ruim. Foi bom porque eu tinha saudades daqui, da minha
família e dos meus amigos, da minha cidade, acho que de viver mais de um dia
no mesmo lugar. Mas foi ruim porque eu queria que o caminho tivesse durado
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mais tempo, foi uma experiência que me permitiu entrar em contato com lados
meus que eu nunca me permitia ou quando entrava era de um jeito muito
rígido, que não me fazia bem.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Não levo nada tão a sério mais. E isso me faz bem, porque antes eu
“perdia a cabeça” fácil demais. Principalmente com essas minhas
habilidades. Quando se é como nós, as coisas são diferentes. É como viver
num mundo totalmente diferente do mundo onde todos que você conhece
vivem. É quase um universo paralelo. Eu sentia muita falta de falar com
alguém como eu, alguém que iria me entender e me levar a sério. Não me
olhar como uma pessoa imatura que quer chamar a atenção ou como
alguém que tem algum problema mental. Acabei me aceitando melhor.
Afinal, cada um de nós vive em seu próprio universo paralelo, e se o meu
inclui a paranormalidade, o que é que tem?
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: O.I.X. Sexo: M Idade: 36
Profissão: autônomo. Eu filmo e fotografo eventos Escolaridade: técnico
Estado civil: casado Filhos: 1
Religião: não acredito em um Deus, acredito numa força positiva, numa energia
maior que nós e que está por trás da vida.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Junho e Julho de 2005.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Era normal. Tinha alguns problemas, mas nada sério, coisas do dia a dia
mesmo.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Antes do caminho de Santiago eu já tinha feito alguns outros caminhos
como o caminho do sol, no interior de SP, Machu Pichu no Peru e a Estrada
Real que liga Minas a Paraty. Fazer o caminho de Santiago surgiu como mais
uma das minhas viagens.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
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A missa dos peregrinos lá em Compostela foi muito bonita. Não sou católico
mas mesmo assim a cerimônia me emocionou.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Falando apenas do caminho de Santiago eu não sei te responder. Acho que
tanto faz o caminho, o que sempre eu sinto durante é uma sensação de ter
garra e no fim você se sente vitorioso.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Na época eu já trabalhava como autônomo e meu negócio era juntar
dinheiro e viajar! Então eu pegava vários trabalhos e aí viajava e quando
voltava eu já começava a planejar minha próxima viagem e ia juntando dinheiro
e as coisas que precisava para ir. Minha esposa que naquela época era minha
namorada nunca quis vir comigo. Quando era alguma viagem mais comum ela
vinha, mas pra fazer essas trilhas não. É mais coisa de homem. Você vê
mulheres lá, mas deve ser mais difícil pra elas e aí ela não me acompanhava.
Alguns homens descansam indo pescar ou no futebol, eu gosto de viagens e
principalmente de fazer essas trilhas e ela sempre respeitou isso do mesmo
jeito que eu respeito quando ela quer ir no shopping com as amigas, porque
isso é coisa de mulher mesmo. Essas viagens são duras, você se cansa,
carrega peso, coisas que uma mulher não iria gostar.
6- E como foi voltar?
Sempre vejo as voltas das minhas viagens como uma pausa. O que me
importa é viajar, conhecer lugares novos, passar por experiências que eu não
passaria vivendo só aqui. Voltar não é uma parte que eu gosto, mas se eu
quiser viajar mais, é uma parte necessária.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
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Toda viagem muda a gente, não sei dizer uma coisa que me mudou indo
pra Compostela, mas sobre as trilhas em geral, me sinto muito mais persistente
quando volto.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: V. M. A. Sexo: M Idade: 54
Profissão: empresário Escolaridade: superior
Estado civil: casado Filhos: 3
Religião: católico mas não vou a igreja.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Abril de 2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Minha vida era corrida. Eu trabalhava demais, comia errado e era um
homem muito sedentário. Eu brinco sempre que o esporte que eu praticava era
levantamento de garfo. E por conta da vida que eu vinha levando comecei a
ficar doente. Colesterol alto, stress e eu tinha também um problema no joelho
que eu precisei operar. Se não fosse a boa vontade da minha esposa tenho
certeza que nossa família ia ter se desmantelado, porque eu era um homem
muito ranzinza!
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Depois que operei o joelho precisei me afastar do trabalho por um tempo e
acabei revendo muitas coisas da minha vida. Fui fazendo fisioterapia, voltando
a caminhar e mesmo não sentindo mais dores, eu não conseguia ter confiança.
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O caminho de Santiago foi como o meu teste final. Embarquei 1 ano depois da
cirurgia, junto com a minha esposa, na verdade eu já vinha pensando em fazer
uma dessas grandes caminhadas quando estivesse bem, mas foi ela quem
sugeriu Compostela.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
A chegada me emocionou demais, eu chorei muito porque eu não
acreditava que iria mesmo conseguir.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Com boa vontade e dedicação tudo é possível. E que o que importa mesmo
da vida é os momentos de alegria. Porque quando chegar no fim da vida não
vou lembrar do quanto eu me esforcei pra fazer um bom trabalho, vou lembrar
muito mais dos bons momentos que tive com minha esposa, minha família, que
são as pessoas que amo.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Pela minha esposa ter me acompanhado foi mais fácil porque ela é alguém
que lida com as coisas do dia a dia muito melhor do que eu. Meus filhos já são
todos adultos, cada um já tem sua própria vida. Minha filha mora em Madri,
então ela nos buscou no aeroporto e quando terminamos a peregrinação
aproveitamos para passar um tempo com ela. Meu filho mais velho cuidou de
tudo na empresa enquanto estive fora e fez isso muito bem. E o caçula faz
faculdade no Rio, já mora sozinho e tem sua própria vida. Por isso quando parti
eu estava muito seguro do que ia fazer, não foi uma loucura, estava tudo
acertado. E sentir esse apoio da minha família foi muito bom para mim. Até
meu netinho que tem 3 anos fez um desenho e me deu antes de eu ir.
6- E como foi voltar?
Voltar foi bom, mas levei vários dias para me ajustar outra vez a rotina que
eu tinha aqui e percebi que não dava. Então a rotina precisou ser modificada.
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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Eu mudei muito. Ou melhor, o jeito de encarar a vida é que mudou. Eu rio
mais, brinco mais, sei que para todo problema existe uma solução e que tudo é
possível. Hoje eu valorizo coisas que antes eu não dava importância, estar com
a minha família, com o meu netinho, e ter qualidade de vida antes de tudo!
Cuido da minha saúde, da minha alimentação e descobri que fazer esportes
me deixa mais feliz. Antes eu via essas coisas como implicância dos meus
médicos. E também parei de fumar.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: P.G. Sexo: F Idade: 29
Profissão: veterinária Escolaridade: especialização
Estado civil: casada Filhos: 0
Religião: católica mas não sou praticante
Quando fez o Caminho de Santiago?
Em 2009.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Sim, eu tinha muitos problemas financeiros. Eu tinha um emprego e
ganhava um salário muito bom, até acima do valor do mercado, porque
trabalho em uma clínica de um bairro de classe alta de São Paulo. Mas eu era
bem impulsiva na hora de gastar e acabava me endividando. Não entrava na
minha cabeça por exemplo eu sair e não comprar nada. E comprava por
impulso mesmo! Coisas que eu nem precisava, que eu já sabia que nem iria
usar. Eu não estava com o nome sujo nem nada disso, mas já me aconteceu
de estar. Mas eu fazia malabarismos com o dinheiro pra poder pagar todos os
gastos que fazia, pegava emprestado com a família e com amigos e até já
perdi amigos por isso.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
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Minhas férias chegaram e eu queria viajar. Mesmo com problemas
financeiros eu não conseguia pensar ah, vou ficar aqui, porque eu até podia,
né? Mas não, eu tinha que ir. Foi mais uma das minhas compras por
impulsividade, essa viagem, mas também foi uma das poucas que eu não me
arrependi.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Me emocionou quando passei pelo Cebreiro, que é uma montanha muito
alta no caminho. Lá tem uma igrejinha muito linda, toda de pedra, e tem uma
lenda que conta que está lá o Santo Graal, o mesmo que os cavaleiros do rei
Arthur procuravam naquelas histórias. E a lenda conta que muitos séculos
atrás, no meio do inverno, tinha só um camponês na missa, porque com a neve
deve ser bem ruim de passar por ali. Então, e quando o padre estava rezando
a missa o pão e o vinho viraram carne e sangue. Não sei porque isso me
emocionou, porque eu nem sou de ir na missa nem nada, mas quando entrei
na capelinha me emocionei muito e fiquei um bom tempo lá, eu não queria ir
embora dali. Era uma paz muito grande como eu nunca tinha sentido.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Que eu posso viver com menos. Felicidade é estar bem com você mesma,
estar bem com as pessoas que você gosta. Tanto faz o que você tem ou deixa
de ter. Eu comecei carregando muito mais coisa do que podia e do que
precisava. E quando isso pesa nos seus ombros você percebe que pode
passar bem sem todas aquelas coisas e vai ser mais feliz sem elas e sem as
dores que carregar tudo aquilo traz. Também na vida a gente não tem que ficar
sempre carregando tantas coisas, dá pra ser feliz com muito menos.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
No começo eu tive um pouco de medo de ficar muito isolada, porque fui
sozinha. Mas logo eu entrei no clima e já nem pensava muito em tudo e todos
que ficaram no Brasil. Fora isso foi normal. Eu estava de férias e fui viajar. E
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quase que eu esqueci de contar, na época eu não tinha ninguém e conheci
meu marido no vôo de volta para o Brasil. E eu sei que isso só aconteceu
porque eu mudei, porque senão mesmo que a gente se conhecesse do mesmo
jeito, eu não acho que ia dar certo.
6- E como foi voltar?
Voltar foi esquisito. Só quando voltei foi que eu vi quantas coisas eu tinha
que mudar na minha vida. Organizar meus gastos mas também rever minha
relação com o dinheiro e as pessoas, porque as pessoas não valem o que elas
tem, elas valem pelo que são. Antes não, se eu via alguém que não andava
com roupas de marcas boas, que não ia a lugares badalados, eu já nem levava
a sério.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Me acalmei, antes era como se eu vivesse competindo com todo mundo,
ate comigo mesma. Também fiquei mais organizada e mais humana.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: D.K.F. Sexo: F Idade: 34
Profissão: contadora Escolaridade: superior
Estado civil: solteira Filhos: 1
Religião: não tenho religião
Quando fez o Caminho de Santiago?
Outubro de 2008.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não, era tudo normal.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Não tive assim uma motivação. Eu tinha lido o Paulo Coelho, foi onde eu
conheci o caminho e achei que seria uma boa experiência.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Não sei. Mas uma coisa que eu gostei muito no caminho de Santiago é que
lá as pessoas são diferentes. Tem mais cumplicidade, mesmo que ninguém se
conheça, lá estão todos juntos. Se alguma coisa acontecer, alguém vai te
ajudar, aqui não tem dessas coisas. E mesmo de dividir as coisas,
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compartilhar. Lá é uma cumplicidade muito grande que aqui não tem. O certo
era ter, mas tem muita gente que nem na família tem isso. E essa amizade ou
cumplicidade, eu não sei que nome dar a ela, mas me fez sentir muito bem.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Se eu quero que as pessoas gostem de mim e me considerem, eu tenho
que gostar e considerar as pessoas. Acho que assim é que aparece aquela
cumplicidade que eu falei.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Foi normal. Eu deixei minha filha na casa da minha mãe e fui. Se ela fosse
maiorzinha eu levava ela, mas na época ela só tinha 5 anos, então não ia dar
certo. E sempre que eu podia eu ligava para saber se ela estava bem.
6- E como foi voltar?
Também foi um momento emocionante, eu nunca tinha feito uma viagem
tão longa e nem tinha estado tanto tempo longe da minha filha. Mas foi
estranho voltar a viver fora do caminho, sem aquele jeito de lidar com as
pessoas que eu falei antes. Aqui as pessoas são distantes umas das outras e
quando alguém vai ser diferente já acham que é algum oportunista, algum
golpe.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Percebo que sou mais atenta ao que eu sinto, antes eu não me importava
nada com isso.
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QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: N.L.H. Sexo: F Idade: 46
Profissão: dona de casa Escolaridade: ensino médio
Estado civil: casada Filhos: 2
Religião: kardecismo
Quando fez o Caminho de Santiago?
Maio de 2001.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Eu estava muito deprimida porque eu tinha perdido meu sobrinho quase um
ano atrás. Esse sobrinho era muito especial para mim, porque fui eu que criei
ele, era como um filho para mim. E ele morreu atropelado. Foi horrível, eu não
tinha força nem para sair da cama, não comia, não cuidava da casa, não fazia
nada. Foi muito de repente, eu não estava preparada. Fiz terapia e quando
comecei a melhorar meu marido me levou para fazer o caminho de Santiago.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
A morte do meu sobrinho. Mas antes disso meu marido e eu já pensamos
em fazer, muitos anos antes, mas nunca dava certo. Então depois que
aconteceu isso achamos que talvez fosse esse o tempo de ir.
97
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
Teve uma noite que eu não conseguia dormir de jeito nenhum. E deitada na
cama ouvi a voz do meu sobrinho, como se ele estivesse lá do meu lado
dizendo “tia, não chora. Eu estou bem e quero que a senhora volte a sorrir”.
Chorei muito depois disso, mas de alegria, por saber que ele estava bem onde
quer que ele estava. Eu tive certeza na mesma hora que era ele.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
A certeza de que Deus é bom e sabe o que faz. Que nada é por acaso e
que um dia todos vamos nos encontrar outra vez.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Para ser muito sincera, eu não lembro. Acho que eu estava tão deprimida
que eu já não sentia mais nada. Meu marido acertou todos os detalhes da
viagem, cuidou de tudo.
6- E como foi voltar?
Voltei muito melhor. Com ânimo, com vontade de viver.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Mudei meu jeito de ver a vida e a morte. A morte não é um fim. Comecei a
freqüentar um centro espírita e hoje sou kardecista. E tenho a certeza que
aconteça o que acontecer, Deus sabe o que faz na vida da gente.
98
QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: A.Y.A. Sexo: M Idade: 29
Profissão: administrador de empresas Escolaridade: pós-graduação
Estado civil: casado Filhos: 1
Religião: não sigo nenhuma religião. Acredito na força do pensamento de atrair
situações para a nossa vida e em uma energia criadora.
Quando fez o Caminho de Santiago?
2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não tinha nenhum conflito ou problema sério. Sempre fui uma pessoa de
muita sorte. Não é que eu não tenho problemas, mas são sempre coisas
corriqueiras, nada digno de muito stress. Levo a vida com muito bom humor.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Quando eu tinha uns 16 anos ou coisa assim eu li O diário de um mago, do
Paulo Coelho. Na época eu achei que o Caminho e a história toda era uma
ficção. Mas olhando na internet eu descobri que existia mesmo e a partir daí eu
sempre ficava pensando em ir algum dia. É uma experiência muito boa e que
recomendo muito, em especial para pessoas que buscam uma ampliação da
consciência como eu sempre busquei.
99
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
É complicado escolher um momento porque o caminho todo tem uma
energia muito boa que faz cada momento que você passa nele ser especial.
Mas um momento especial para mim foi passar pela ermida de Santa Maria de
Arnotegui. É um ponto do caminho onde antigamente uma moça da nobreza
construiu uma cabana para acolher e tratar de peregrinos feridos. Ao descobrir
isso seu pai mandou o irmão da moça buscá-la, mas ele se enfureceu porque
ela não se convencia e então ele a matou. Ele ficou muito arrependido e fez a
peregrinação em busca de perdão. Já voltando para casa, resolveu ficar por ali
e continuar o trabalho de sua irmã. Essa é a história de santa Felícia, que me
emociona demais. Passar por ali, lembrar dessa história foi bem especial. Me
fez pensar muito sobre a caridade, não no sentido de sair por aí dando o peixe,
mas ensinando a pescar. O mundo tem tanta gente que precisa de ajuda e
poderia ser um lugar melhor se todos tivessem boas oportunidades.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Ajudar o próximo é uma coisa muito boa, que me faz um homem melhor e
faz do mundo um lugar melhor. Eu fui para lá querendo ampliar minha
consciência num sentido espiritual, e não é que isso não aconteceu, mas
comecei a ter mais consciência da vida material. Ajudar alguém em dificuldade
a ter uma vida mais digna, sentir e respeitar as dores do outro é uma coisa que
me dá força para levar a minha vida de um jeito melhor. Percebi que para eu
estar bem, as outras pessoas precisam ficar bem também, eu seria um
hipócrita tendo uma vida legal e deixando todos a minha volta sofrendo quando
muitas vezes eu tenho o poder de dar oportunidades para essas pessoas terem
uma vida melhor.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
100
Eu fui durante as minhas férias então não tive que me ausentar do trabalho.
E fui junto com a minha esposa, que também queria fazer o Caminho de
Santiago há bastante tempo.
6- E como foi voltar?
Voltar foi ruim. Quase fiz como Santa Felícia e fiquei por lá! Meu corpo
voltou, mas meu coração continua lá, procuro manter aqui o estilo de vida que
a gente tem no caminho, dentro do possível.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Passei a dar mais atenção ao bem estar das outras pessoas, tanto no meu
cotidiano, mas também fazendo trabalhos voluntários com jovens de uma
comunidade próxima de onde moro, ensinando inglês. Também me tornei pai.
Na época da peregrinação eu ainda não tinha filho, mas mesmo assim eu sei
que aquela experiência me fez ser um pai melhor para ele, tenho bem firmes
em mim os valores que quero passar ao meu filho, justiça, honestidade, ver as
adversidades da vida com bom humor e ser um homem de paz. Outra
mudança é que desde então nunca mais parei de caminhar.
101
QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: K.S.P.D. Sexo: F Idade: 23
Profissão: estudante Escolaridade: superior - cursando
Estado civil: solteira Filhos: 0
Religião: acredito que o nosso pensamento pode trazer coisas para nós. E
gosto muito de acender incensos para purificar minha vida e deixar só energias
boas.
Quando fez o Caminho de Santiago?
Em julho de 2010.
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
Não, sempre fui uma pessoa muito tranqüila.
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
Não tive um motivo. Eu vi alguns programas na TV sobre o caminho, fui
pesquisando e acabei me interessando de conhecer.
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
O caminho todo emociona, tem paisagens e construções lindas. Passar por
uma cidade fantasma que tem lá me deu medo, tem várias histórias que eles
contam de demônios que tem lá. Eu não acredito nessas coisas, mas passar
102
por lá depois de ouvir esse tipo de coisa dá um medinho. E também me
emocionou subir o Cebreiro, que é uma subida muito grande e difícil, que
olhando de baixo você acha que não vai conseguir e olhando de cima você
nem acredita que conseguiu.
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
Força de vontade. Eu sempre consegui tudo muito fácil, de mão beijada,
como dizem, porque a condição financeira da minha família é muito boa então
nunca tive que lutar mesmo por alguma coisa. Eu queria e eu tinha. No
caminho não, eu fui sozinha e eu tinha que andar tudo aquilo e carregar minhas
próprias coisas, lavar minha roupa, as vezes fazer comida e eu nunca tinha
cozinhado nada antes disso, então eu tinha que me resolver porque não tinha
ninguém lá pra fazer nada por mim. Ganhei muita independência e confiança
em mim mesma. Pode parecer legal ter um monte de gente envolta de você
fazendo tudo que você quer, mas lá eu vi que isso não me deixou aprender a
ter confiança em mim mesma.
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
Normal, as férias chegaram e eu fui viajar.
6- E como foi voltar?
Foi ruim, quando vi que ia terminar eu andava devagarzinho pro caminho
durar mais. Ninguém gosta quando as férias terminam. Mas não foi só isso,
não sei falar, é que me senti muito bem lá no caminho. Eu sentia que eu posso
tudo, que eu consigo.
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?
Fiquei sendo uma pessoa mais prática, organizada e também mais
responsável e independente. Também passei a ter consciência de que as
pessoas comuns não vivem como eu vivo. Na 1ª vez que eu cheguei no
103
albergue pra você ter idéia, eu nem sabia lavar roupa e uma outra moça me
ensinou como era. Porque eu nunca precisei fazer essas coisas. Então agora
sou mais independente e sei como a maioria das pessoas vivem. Foi uma boa
experiência para mim, passei a dar muito mais valor a vida que tenho e a levar
as coisas mais a sério.
104
Tabelas e gráficos referentes aos questionários
1- Amostragem:
1.1- Gênero:
Gênero Quantidade
Feminino 10
Masculino 10
1.2- Faixa etária:
Faixas etárias Quantidade
Até 29 anos 08
30 a 39 anos 06
40 a 49 anos 04
50 anos ou mais 02
Gênero
Feminino
Masculino
105
1.3- Estado civil:
Estado civil Quantidade
Solteiro 09
Casado ou relação estável 09
Divorciado 02
1.4- Filhos:
Tem filhos? Quantidade
Sim 11
Não 09
Faixa etária
Até 29 anos
30 a 39 anos
40 a 49 anos
50 anos ou mais
Estado civil
Solteiro
Casado ou relação estável
Divorciado
106
1.5- Escolaridade:
Nível de escolaridade Quantidade
Ensino Médio 02
Ensino técnico 01
Superior incompleto 02
Superior completo 09
Pós-graduação 06
1.6- Crenças religiosas:
Tem filhos?
Sim
Não
Nível de escolaridade
Ensino Médio
Ensino técnico
Superior incompleto
Superior completo
Pós-graduação
107
Crença/Religião Quantidade
Católico não praticante 05
Kardecismo 01
Budismo 02
Paganismo 01
Wicca 01
Agnóstico/Sem religião 05
Apenas crê em Deus 03
Crença no “pensamento positivo” 04
Crença em energias 06
2- Questões:
2.1- Conflitos:
Conflitos mencionados Quantidade
No trabalho ou estudo 05
Na família 05
Entre o casal 02
0 1 2 3 4 5 6 7
Crença Religiosa
108
Problemas de saúde 03
Luto 01
Conflito religioso 02
Conflito ligado à sexualidade 01
Frustração com a vida que vinha
levando
01
Problemas financeiros 01
Dificuldade em lidar com
habilidades paranormais
01
Conflitos “comuns” da vida
cotidiana
03
Não tem conflitos 05
2.2- Motivação:
Motivação religiosa ou não
religiosa
Quantidade
Religiosa 01
Não religiosa 19
0
1
2
3
4
5
6
Conflitos mencionados
109
Natureza da motivação Quantidade
Turismo, viagem de férias 05
Motivos culturais, pela história do
Caminho de Santiago
03
Aventura da condição de
peregrino
03
Mística do Caminho de Santiago 02
Ampliação da consciência
espiritual
01
Origens familiares na Espanha 01
Emagrecer 01
Motivação relacionada ao conflito 05
Queria fazer a peregrinação há
muitos anos
04
Nenhum motivo/não soube dizer 04
Motivação religiosa ou não religiosa
Religiosa
Não religiosa
110
2.3- Momentos marcantes da peregrinação:
Momento Quantidade
Partida 01
Chegada a Compostela 04
Missa dos peregrinos 02
Passar por Foncebadón 03
Cruz de Ferro 01
Subida do Cebreiro 02
Passar pela Ermida de Santa
Maria de Arnotegui
01
Encontro com o outro 03
Poder agir com autonomia 01
Relação com o tempo 02
Relato de experiência mística 04
Não sabe dizer ou não especifica 05
0
1
2
3
4
5
6
Natureza da motivação
111
2.4- Valores, pensamentos e emoções ligadas à peregrinação:
Valores Quantidade
Persistência, superação,
coragem de continuar
06
Ter sucesso, ser vitorioso 03
Mais humano e/ou mais
espiritualizado
06
Autonomia 05
Ideal de justiça, de um mundo
melhor para todos
03
Praticidade 01
Respeito pela diversidade e pelas
(próprias) diferenças
01
Beleza como algo interno e não
apenas externo
01
Contato com as origens foi
fortalecedor
01
0
1
2
3
4
5
6
Momentos mais marcantes
112
2.5- Partida:
Reação à partida Quantidade
“Normal”, sem conflitos 14
Disparadora de conflitos 01
Partida percebida como um
“alívio”
04
Outros dados mencionados sobre Quantidade
0 1 2 3 4 5 6 7
Valores adquiridos na peregrinação
0
2
4
6
8
10
12
14
16
“Normal”, sem conflitos Disparadora de conflitos Partida percebida como um “alívio”
Reação à partida
113
a partida
Descreve como organizou a
rotina cotidiana antes de partir
08
Relata algum tipo de preparação
espiritual anterior à partida
01
2.6- Retorno:
Como reagiu ao retornar Quantidade
Triste pelo fim das férias 03
Desejo de que o Caminho
durasse mais
06
Animado, com coragem de
enfrentar a vida
05
Demora em ajustar-se à rotina 05
Necessidade de modificar a
rotina
06
Feliz em voltar, saudades de
casa e da família
07
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Descreve como organizou a rotina cotidiana antes de partir
Relata algum tipo de preparação espiritual anterior à partida
Outros dados sobre a partida
114
2.7- Transformações que a pessoa percebe em si e/ou em sua vida:
Natureza da mudança Quantidade
Na vida familiar 07
Na rotina 04
Inclusão exercícios físicos 04
Na crença religiosa 04
No trabalho ou estudo 03
Maior autonomia 04
Tornou-se mais reflexivo 03
Tornou-se mais persistente 03
Tornou-se mais espiritualizado 03
Tornou-se mais organizado 04
É mais saudável atualmente 03
Maior autoconfiança 04
Dedica mais tempo ao lazer 03
Tem maior paz interior 08
Maior vínculo com as próprias
origens
01
Menos consumista 01
Mais preocupado com o bem 01
0
1
2
3
4
5
6
7
8
Triste pelo fim das férias
Desejo de que o
Caminho durasse mais
Animado, com
coragem de enfrentar a
vida
Demora em ajustar-se à
rotina
Necessidade de modificar
a rotina
Feliz em voltar,
saudades de casa e da
família
Reações ao retorno
115
estar dos outros
Não sabe dizer 02
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Transformações em si e/ou na vida
116
APÊNDICE
117
Modelo do questionário
QUESTIONÁRIO
Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido
para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.
As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao
longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa
te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.
Muito obrigada!
IDENTIFICAÇÃO
Iniciais: Sexo: Idade:
Profissão: Escolaridade:
Estado civil: Filhos:
Religião:
Quando fez o Caminho de Santiago?
1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum
tipo de conflito?
2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?
3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?
4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no
Caminho ainda te acompanham?
5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o
trabalho/estudos, etc.?
6- E como foi voltar?
118
7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após
a peregrinação?