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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniel Mascarin Pires Kumasaca A TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES NO ESTADO E AS SÚMULAS VINCULANTES: ANÁLISE HISTÓRICA E IMPACTOS NA ATUALIDADE BRASILEIRA MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2015

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC … Mascarin... · Ao Professor-Orientador Cláudio de Cicco, ... 1. História do Pensamento do Estado Ocidental 15 1.1 Precursores

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniel Mascarin Pires Kumasaca

A TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES NO ESTADO E AS SÚMULAS VINCULANTES:

ANÁLISE HISTÓRICA E IMPACTOS NA ATUALIDADE BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniel Mascarin Pires Kumasaca

A TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES NO ESTADO E AS SÚMULAS VINCULANTES:

ANÁLISE HISTÓRICA E IMPACTOS NA ATUALIDADE BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em Filosofia do Direito

sob orientação do Prof. Dr. Cláudio de Cicco.

São Paulo

2015

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

“Do you hear the people sing?

Singing the song of angry men?

It is the music of a people

who will not be slaves again

When the beating of your heart

echoes the beating of the drums

There is a life about to start when tomorrow comes”

(Do You Hear The People Sing? – Les Miserablés)

Após alguns bons anos de estudos, créditos cumpridos e boas lembranças, chega

o derradeiro momento de encerrar essa bela caminhada trilhada ao longo do mestrado.

Muitos me disseram que era muito cedo para assumir essa responsabilidade e não

acreditavam que um jovem estudante recém-formado aos 24 anos conseguiria ingressar

no mestrado.

Pois aqui estou eu, prestes a encerrar este capítulo de minha história que, espero

eu, seja com chave de ouro, sem arrependimentos e de cabeça erguida, com a mesma

força e ânimo desde o primeiro dia. Por este motivo, alguns agradecimentos devem ser

feitos, pela lembrança e importância ao longo do mestrado e da vida.

Em primeiro lugar, à minha mãe, Suzy Mascarin, por todo o amor e carinho

indispensáveis em minha formação, mas principalmente, por seu apoio incondicional

independente das minhas escolhas, sempre confiando no bom resultado e nunca

duvidando de minha capacidade, acreditando no meu potencial, se preocupando e se

dispondo para o que fosse necessário ao meu bem-estar.

À Thaís Pacheco Villas Boas, minha noiva, por sua paciência, apoio,

compreensão, amor e carinho, sobretudo nos momentos difíceis, estando ao meu lado

nos bons e nos maus momentos, me aturando nos momentos mais delicados, além de

colaborar com a revisão do trabalho. Hoje, posso dizer que a máxima “por trás de um

grande homem, sempre existe uma grande mulher” faz todo o sentido.

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À minha tia, Maria Isabel, falecida aos 34 anos, alguns meses após minha

aprovação no mestrado. Conviver com ela me ensinou a nunca desistir, independente do

tamanho do problema, demonstrando sempre a alegria e felicidade de viver, mesmo com

as dificuldades que a vida traz. Para além de um exemplo de determinação, um

verdadeiro exemplo de vida.

À minha avó Vera Kumasaca, que sempre mostrou muito zelo com a questão

dos meus estudos. Obrigado por sua preocupação e carinho.

Ao amigo e Professor Alvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga, por acreditar

na minha capacidade, por ser meu orientador na graduação, despertando meu interesse

pelo estudo das Súmulas Vinculantes e por me auxiliar a desenvolvê-lo e aprimorá-lo no

mestrado, além de permitir que eu fosse seu assistente e o acompanhasse em suas aulas,

contribuindo não somente para minha futura formação docente, como também pessoal,

me aconselhando, trocando experiências e sempre disposto a ouvir um amigo, sendo um

dos maiores incentivadores com relação ao ingresso no mestrado.

Ao Professor-Orientador Cláudio de Cicco, por acreditar em meu potencial e

possibilitar a liberdade inerente à produção. Seus conselhos e o vasto conhecimento

compartilhado foram imprescindíveis para enriquecer e agregar ao trabalho e à vida de

um jovem estudande de Filosofia do Direito, matéria muitas vezes desvalorizada pelos

profissionais da área do direito, apesar de sua grande importância. Foi uma alegria e

satisfação conviver com o professor e receber seus elogios no decorrer da orientação,

me dando ânimo para prosseguir em muitos momentos difíceis.

Ao amigo e Professor Wallace Ricardo Magri, mestre que tive o privilégio de

conhecer logo em meu primeiro ano de graduação e com quem tive o prazer de ser

assistente, dividindo aulas e aprendendo através de nossos respeitosos debates,

agregando conhecimento variado, já que possuímos muitas posições distintas, o que não

alterou nossa convivência e amizade.

Ao Dr. Renato Lopes Becho, pessoa que me abriu as portas para o primeiro

estágio, tendo toda a paciência do mundo para explicar as dúvidas e as angústias antes

do tempo de um “apressado” estudante, sendo o responsável por meu primeiro contato

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com a filosofia, ao me emprestar a obra “A República”, de Platão, livro que jamais

devolvi e despertou toda minha curiosidade com o mundo filosófico e jurídico.

À Osvaldo Viegaz, por sua amizade, pela revisão deste trabalho e por discordar

de mim na maioria dos meus posicionamentos, gerando assim muitos debates e

discussões de enorme valia para este trabalho e que levaram ao aprimoramento do

conhecimento e a grandes resultados.

Por fim, à minha avó Fátima Faria, que faleceu enquanto eu caminhava no final

desta jornada do mestrado. Pessoa de suma importância em minha vida e que costumava

dizer-me sobre a muita sorte que tive na vida. Com certeza vejo que ela tinha razão: tive

sorte por ter tantas pessoas queridas por perto e que sempre me estenderam a mão

quando precisei, independente do motivo.

“From our lives' beginning on

We are pushed in little forms

No one asks us how we like to be

In school they teach you what to think

But everyone says different things

But they're all convinced that

They're the ones to see”

(I Want Out – Helloween)

“Hey you

Don't tell me there's no hope at all

Together we stand, divided we fall”

(Hey You – Pink Floyd)

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SUMÁRIO

Introdução 11

1. História do Pensamento do Estado Ocidental 15

1.1 Precursores da Antiguidade: O Modelo Grego 16

1.2 Aristóteles e o Pensamento Grego 19

1.3 Roma e as Edicta Pretorianas 35

1.4 Contratualismo e Revoluções Liberais no Estado Moderno 46

1.5 Thomas Hobbes e o Absolutismo do Estado Soberano 49

1.6 John Locke e os Pressupostos do Estado Moderno 54

1.7 Montesquieu, a “Separação dos Poderes” e o

Sistema de Freios e Contrapesos 59

1.8 Rousseau e o Contratualismo Social 70

1.9 Revolução Francesa e o Ideal Iluminista 87

2. O Estado Brasileiro e as Decisões Vinculantes 112

2.1 Brasil Colônia 114

2.2 Casa da Suplicação e os Assentos no Direito Português 122

2.3 Brasil Império 128

2.4 Brasil República 135

2.5 As Três Funções Brasileiras

e Suas Prerrogativas Típicas e Atípicas 151

3. Papel das Súmulas Vinculantes no Estado Brasileiro 160

3.1 Poder, Órgão ou Função? 161

3.2 Emenda Constitucional nº 45/2004 176

3.3 Súmulas Vinculantes e os Princípios Constitucionais 178

3.4 A Extrapolação do Judiciário e o Ativismo Judicial 185

3.5 Impactos na Organização do Estado

e na Tripartição das Funções 195

3.6 Usurpação de Funções Típicas:

Um Problema (In)Constitucional 210

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4. A Filosofia Política e as Súmulas Vinculantes 220

Considerações Finais 238

Bibliografia 243

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RESUMO: O ordenamento jurídico brasileiro permite muitas interpretações do seu

modelo, de suas instituições e de seu alcance na sociedade. Dentre os institutos, as

Súmulas Vinculantes inseridas pela EC 45/2004, possibilitam a análise de todo o

sistema político, social e jurídico brasileiro, vez que resultantes de anormalidades que

podem abalar a segurança do Estado. A ideia é fomentar, através da discussão filosófica

e da reconstrução histórica dos ideários sociais e políticos, como as súmulas vinculantes

afetam a conjuntura atual da República Federativa do Brasil. Não se trata apenas de

abordar o tema referente ao ativismo judicial decorrente das súmulas vinculantes, mas

também e principalmente dissecar o instituto, enfrentar conceitos e derrubar teorias,

embasados justamente no estudo dos modelos filosóficos tratados ao longo da

dissertação. Para tanto, procuramos abordar não apenas os posicionamentos contrários

às súmulas vinculantes, como de igual feita refutar os entendimentos favoráveis, que

por evidência existem e se encontram na doutrina majoritária sobre o Direito

Constitucional Brasileiro. Trabalhamos de forma a não nos concentrar somente nos

institutos jurídicos, mas procuramos encontrar no âmago da própria sociedade as formas

e a discussão sobre o alcance do poder e do seu funcionamento do Estado. Conceber a

história, juntamente com o estudo filosófico, foram preponderantes para alcançar os

resultados aqui elencados, desde a fundamentação teórica até o desenvolvimento crítico

sobre os institutos, instituições e conceitos existentes no Brasil e é justamente no

modelo tripartite de separação de funções em Executivo, Legislativo e Judiciário que a

maior parte do trabalho se enquadra, sobretudo quando analisamos o ativismo judicial

do Supremo Tribunal Federal e a prerrogativa criada com as súmulas vinculantes, já que

é ele a última ratio do sistema brasileiro, motivo pelo qual a análise em torno da Teoria

Geral do Estado se coloca como fundamental para o entendimento final do trabalho.

PALAVRAS-CHAVES: Súmulas Vinculantes, Separação de Funções, Ativismo Judicial,

Supremo Tribunal Federal, Filosofia Política.

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ABSTRACT: The Brazilian legal system allows many interpretations of its model, its

institutions and its scope in society. Among the institutes, the summary bindings

introduced by EC 45/2004 make possible to do analysis of the entire political, social and

Brazilian legal system, since they arise from abnormalities that may jeopardize state

security. The idea is to promote, through philosophical discussion and the historical

reconstruction of social and political ideals, how summary bindings affect the current

landspace of the Federative Republic of Brazil. It is not just about addressing the issue

related to judicial activism resulting from summary bindings, but also and mainly

explores the institute, confronts concepts and puts down theories, grounded in the study

of philosophical models treated along the dissertation. Therefore, we intend to address

not only the positions against the summary bindings, as well as to refute the favorable

understandings, which exist by evidence and are found in the majority doctrine of

constitutional law Brazilian. We work in order to focus not only on legal institutions,

but we try to find at the heart of the society itself, manners and the discussion about the

scope of power and its way of working in the state. Conceiving the story, along with the

philosophical study were outstanding to achieve the results listed here, from the

theoretical foundation to the critical development of the institutes, existing institutions

and concepts in Brazil and it is precisely the tripartite model of separation of executive

functions, legislative and judiciary that the major part of this work is framed, especially

when we analyze the judicial activism of the Supreme Court and the prerogative created

with summary bindings, since it is the last resort of the Brazilian system, reason why the

analysis about the State General Theory stands as crucial to the final understanding of

the work.

KEYWORDS: Summary Bindings, Segregation of Duties, Judicial Activism, Supreme

Court, Political Philosophy.

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INTRODUÇÃO

As Súmulas Vinculantes estão presentes no ordenamento jurídico brasileiro com

a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004 e, desde

então, geram inúmeras discussões sobre o real papel a que o Judiciário e, mais

especificamente sua instância máxima, o Supremo Tribunal Federal, têm em suas

atuações na sociedade.

De uma forma ampla, as súmulas vinculantes constituem a jurisprudência

produzida pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que após reiteradas decisões naquele

sentido, podem receber o efeito vinculante e, por conseguinte, se tornam um

entendimento obrigatório no qual todos os demais tribunais e juízes, a Administração

Pública Direta e Indireta, bem como o Legislativo na sua função atípica devem seguir.

Contudo, ela não possui força para vincular o Legislativo em sua função tipica,

ou seja, legislar, uma vez que criaria uma indesejável petrificação nas disposições legais

e tornaria tal procedimento muito mais gravoso do que já é. Tal afirmação é válida, já

que o STF interferiria de maneira direta nas funções desempenhadas por aquele Órgão,

obrigando-o a seguir e adotar o instituto das Súmulas Vinculantes no momento crucial

do debate sobre futuras leis, levando a uma situação patológica de todo o sistema

organizacional brasileiro.

Ao se tratar de tema tão relevante e atual, é necessário fazer uma busca nos

primórdios do próprio direito brasileiro e suas relações com o direito alienígena,

analisando as muitas nuances em que as decisões judiciais, o Judiciário e o Legislativo

estavam inseridos, já que muito se pode basear na herança lusitana deixada pelas

Ordenações e sua inspiração nos Direitos Canônico e Romano.

O direito brasileiro se mostra no compasso do continuísmo em muitos casos.

Características marcantes do direito da Antiguidade, por exemplo, ainda podem ser

encontradas na atualidade nacional, sobretudo quando analisamos as já citadas

influências romanas e canônicas.

O desenvolvimento do direito no ocidente se deve principalmente a estes dois

troncos, já que dominantes na Península Ibérica mesmo com a presença Moura por

quase um milênio.

Atualmente, somente o Supremo Tribunal Federal é quem possui a prerrogativa

para alterar o entendimento esposado em súmula vinculante, desde que seja o mais

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adequado à súmula vinculante, de modo que afetaria todos os casos que por ventura

tratarem de determinado tema e nos quais já houve incidência desta Súmula Vinculante.

Tal possibilidade de alteração, todavia, não torna menos grave o fato de a Corte

Suprema Brasileira estar, atualmente, agindo como uma instância judicial-legislativa,

numa clara usurpação de funções.

Essa afirmativa é válida e a história mostra como o instituto foi utilizado

lastreado por conceituações não aplicáveis no direito brasileiro. Não se trata, pois, de

fazer um transplante histórico e tentar adequar o direito de dois mil anos na situação

fática atual, mas sim demonstrar que a conjuntura na qual o Brasil está inserido hoje não

permite que a ação do Supremo Tribunal Federal não atinja, direta ou indiretamente, a

independência das demais funções, sobretudo do Legislativo.

Desta forma, antes de inserirmo-nos no estudo das súmulas vinculantes

propriamente ditas, é necessário utilizarmos um pouco da história ocidental para

fundamentarmos dois momentos imprescindíveis para a compreensão do problema

encontrado pelas súmulas vinculantes em vigor no ordenamento jurídico pátrio.

O primeiro diz respeito, antes de tudo, à formação do próprio Estado Ocidental.

Não se trata de um debate puro e simples traçando a história da sociedade ocidental

desde os seus primórdios gregos até chegarmos à Revolução Francesa e toda a sua

influência na formação do pensamento moderno e contemporâneo.

Estamos diante de uma situação que não permite a simples formulação de

hipóteses do nascimento do Estado. Precisamos analisar como a formação do Estado

acompanhou o desenvolvimento do pensamento humano. É neste ponto que se une o

nascimento com a história da sociedade ocidental, devendo sempre ter em mente que

nenhum fenômeno, em hipótese alguma, deve ser explicado tão somente pela sua

origem, mas também pelo estudo do seu momento.1

Para se compreender o atual estágio da política brasileira, não se pode considerar

tão somente o passado, assim como não se pode analisar o presente de forma isolada.

Ambos devem se complementar para alcançar o objetivo findo de contemplar como a

figura brasileira aparece enquanto ente personificado pela vontade do povo. Com isso,

devemos nos preocupar não somente com a teoria atual do Estado brasileiro, mas

1 Neste sentido: “Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo do seu momento. Isto é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: ‘os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais’. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito”. (BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 60).

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também com as demais que foram utilizadas para fundamentar aquela que hoje se

encontra em vigor.

Se considerarmos que as Teorias do Estado são tão antigas quanto o próprio

Estado e que por vezes pressupõem a existência deste, estaremos em uma situação de

análise privilegiada para encontrar na história os modelos nos quais o Brasil se adequou,

chegaremos, com isso, na finalidade de analisar as súmulas vinculantes por sua questão

teleológica, não somente por sua pura e simples inserção no ordenamento jurídico

brasileiro por uma emenda constitucional, possibilidade esta prevista pela própria

Constituição Federal de 1988.

O estudo histórico é preponderante para se compreender o desenvolvimento do

instituto, mas acima disso, é importante para conhecermos os primórdios do direito e da

filosofia na teoria geral do Estado, pois é partindo destes pressupostos teóricos que

alcançaremos a fomentação do Brasil Político.

Já o segundo ponto se refere às questões jurídicas, isto é, de competências entre

as formas instituídas pelo Estado que visam o seu regramento, sua organização e sua

formação enquanto nação.

Este é um princípio elementar na configuração dos Estados modernos, como

veremos ao estudar o pensamento contratualista, sobretudo com a Revolução Francesa,

na qual a constituição dos órgãos que gerem o Estado se dá de forma independente e

harmônica, mantendo-se o equilíbrio social e político.

E quando se estabeleceu essas características aos Três Órgãos da União se

pretendeu propiciar a maior segurança possível aos homens constituídos em sociedade,

vez que surge exatamente no período em que se coloca um ponto final no absolutismo

do Estado.

Não obstante, no Brasil verificaremos que as inclusões de determinadas

filosofias alienígenas nem sempre foram recebidas muito bem, principalmente quando

atingia interesses das classes dominantes.

Vamos estudar com maior afinco este tema ao longo das páginas, mas desde já

podemos afirmar, que todas as mudanças sociais e políticas do Brasil vieram de cima

para baixo, ou seja, da classe dominante para os dominados. Não se mudou as

estruturas, apenas houve a adequação das mesmas para manutenção do status quo.

Diante deste quadro, por evidência que ainda hoje temos a construção da

cidadania no Brasil, sempre às duras penas, com embates, mandos e demandos em todos

os níveis da sociedade e da política.

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E não se pode dizer que o Supremo Tribunal Federal, juntamente com o

Judiciário como um todo, bem como o Executivo e o Legislativo não estão inseridos

nesta conjuntura, pelo contrário, fazem parte e devem auxiliar na sua construção.

A contribuição que se pretende estabelecer nesta dissertação é a ideia de como

um instituto jurídico pode causar abalos na ordem vigente instituída no país. O que

teoricamente seria simples, pode ser um imenso problema.

Por isso não se pretende apenas e tão somente considerar as súmulas vinculantes

inseridas no ordenamento brasileiro. Esta tarefa, além de simplória, não está imbuída do

verdadeiro trabalho sistêmico e de contextualização inerentes para a total compreensão

filosófica, política e social da realidade brasileira.

A nossa necessidade atual não se resume à análise das súmulas vinculantes como

mais uma forma de inovação do Judiciário, mas sim verificar suas estruturas e

concepções ao longo da história.

Não podemos esquecer que o Brasil possui uma Constituição Federal, uma Lei

Maior que rege todo o país, lastreada pela legalidade de acordo com as especificidades

de sua inserção no mundo.

De igual maneira, não queremos realizar comparações descabidas com formas

jurídicas existentes na atualidade ou na história e sim analisar o instituto dentro do seu

contexto, sem nos esquecer de outros momentos nos quais a ideia de “codificação

jurisprudencial” foi colocada em prática.

Portanto, o trabalho procura abordar a história, tanto do ocidente como do Brasil,

sem deixar de contextualizar e identificar os pontos de convergência e divergência

existentes com o caso nacional das súmulas vinculantes.

Mais do que isso: é por meio da filosofia que buscamos as formas de analisar

como o Brasil inseriu o modelo das súmulas vinculantes e procura com ele inovar no

sistema jurídico.

É na filosofia também que encontramos a crítica ao modelo instituído no país,

que causa tumultos na liberdade do Judiciário, infringe o sistema tripartite e abala a

sociedade.

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1. HISTÓRIA DO PENSAMENTO DO ESTADO OCIDENTAL

Desde as primeiras reuniões do homem em grupos a organização social foi

importante para delimitar direitos e impor obrigações. Não obstante, o próprio Estado

surge com a necessidade de se concentrar em tais decisões e fomentar a possibilidade de

criação de unicidade em torno das questões mais importantes e relevantes para um

grupo de pessoas, de modo que a criação de funções estatais foi imperiosa para o seu

desenvolvimento.

A distinção entre as funções que constituem um Estado nem sempre seguiram os

moldes atuais de divisão entre o Executivo, Legislativo e Judiciário existentes no Brasil.

Quando se tem a ideia de separar as funções, inicia-se pela concepção simplória de que

existe no Estado funções distintas e dicotômicas, nas quais estavam todas as bases de

governança daquele que detinha o controle.

Seu surgimento remonta à Antiguidade, ainda quando as civilizações não

encontravam-se reunidas em Estados propriamente ditos e todas as prerrogativas de

funções concentravam-se em uma única pessoa, sem distinções e/ou classificações.

O Estado ao longo da história se desenvolveu sempre lastreado pela classe

dominante e seus interesses, sendo que por séculos não houve uma distinção clara de

funções destinadas aos membros, cabendo-lhes desde a administração da Pólis, da

Cidade-Estado, do Império e dos Reinos, até funções outras como legislar e por vezes

julgar litígios, concentrando tudo numa mesma figura.

Dentro desta perspectiva, o liberalismo tem um papel salutar no

desenvolvimento dos novos conceitos para a Tripartição das Funções, ainda mais com a

prevalência dos direitos individuais, sobretudo com relação à liberdade e ao direito de

propriedade, intimamente atrelados ao desenvolvimento do Estado e dos termos hoje

conhecidos como República e Democracia, adequados a este sistema.2

2 Neste sentido: “Se pode caracterizar o Direito Moderno como direito estatal, centralizado, escrito, previsível (segurança e certeza jurídicas) e normativo. Sua estrutura técnico-formal é constituída por um complexo de normas de teor geral, abstrato, coercível e impessoal. O princípio da generalidade implica a regra jurídica como preceito de ordem abrangente, obrigando a um mesmo número de pessoas que estejam em igual situação jurídica. A lei é para todos e não apenas para algumas pessoas. Por outro lado, a norma de Direito é abstrata (princípio da abstratividade) porque objetiva alcançar maior número possível de ações e acontecimentos. A disposição legal é indeterminada, pois o legislador não pode produzir leis e códigos completos e acabados, não tem condições de prever todos os casos concretos frente às contínuas mudanças da vida social. Por sua vez, a coercibilidade é a possibilidade do uso da coação psicológica e material garantida pelo poder político estatal. Trata-se do estado permanente de força ou coação, acionado pelo aparato estatal para constranger ou induzir à obediência de condutas a serviço das instituições em geral. Por último, o princípio da impessoalidade refere-se à situação de neutralidade diante da

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Apesar desta identificação moderna e contemporânea no Brasil advinda da

Revolução Francesa e baseada na maioria de seus pontos em Montesquieu, a história

nos mostra que em outros momentos teorias desta monta surgiram e, mesmo não sendo

aplicadas, criaram todo um arcabouço no qual sua releitura hoje nos traz uma

compreensão melhor do modelo vigente no Brasil que, mesmo com a influência

francesa, adaptou-se de modo diferente na realidade do país.

1.1 PRECURSORES DA ANTIGUIDADE: O MODELO GREGO

Os agrupamentos humanos remontam aos períodos mais remotos da pré-

história, momento no qual nos escusamos de tratar com afinco pela simples razão de

considerarmos desnecessário inferir fatos que não possuem dados maiores, já que a

história propriamente dita se inicia com o desenvolvimento da escrita.

Isto não significa, todavia, que não existia entre esses grupos um ideário

organizacional, desde sua economia interna até as relações com os demais, o que inclui

por evidência formas de justiça.

As relações sociais nasceram desses agrupamentos e, mais tarde, passou de

dentro do seio familiar para algo maior, que se constituiu na chamada Cidade Antiga,

quando cada membro de cada família se unia sob as ordens patriarcais do chefe da

família, formando o centro decisório, lastreados pelo fogo antigo que guiava suas vidas

particulares e públicas.

Das famílias e de suas particularidades domésticas surgem as associações, que

visam justamente continuar com os ideais familiares em âmbito público, fomando, com

isso, tribos.

Cada fratria ou cúria tinha seu chefe, curião ou fratriarca, cuja principal função era a de presidir aos sacrifícios. Talvez, nos primórdios, suas atribuições tivessem sido mais amplas. A fratria tinha as suas assembleias, as suas deliberações, e podia promulgar decretos. Na fratria, como na família, havia um deus, um culto, um sacerdote, uma justiça e um governo. Era uma pequena sociedade modelada exatamente sobre a família. A associação continuou naturalmente a

particularidade individual, pois a aplicação da norma tem a pretensão de estender-se a uma quantidade indefinida de pessoas, de modo aleatório e não particularizado. Certamente que tais princípios de abstração, generalidade e impessoalidade têm no modelo liberal-individualista um significado ideológico, o de ocultar a desigualdade real dos agentes econômicos, para desse modo se conseguir a aparência de uma igualdade formal, a igualdade perante a lei. Tal ordenação privativista equipara, com uma mesma medida, as desigualdades e as diferenças, situa os indivíduos num mesmo patamar, sem questionar as distinções que fazem da organização social uma pirâmide”. (WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, pp. 30-1).

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crescer, sempre segundo o mesmo modelo. Diversas cúrias ou fratrias se agruparam, formando a tribo.3

Com efeito, sabemos que tais agrupamentos tiveram suas origens nas mais

diversas regiões do mundo, da mesma forma que concebemos que as Cidades-Estados

são assim denominadas por força das Civilizações Mesopotâmicas, de modo que o cerne

inaugural destas concepções se encontra na África e na Ásia Menor.

São as chamadas civilizações Orientais e do Mediterrâneo que se fundam como

formadoras do primeiro pensamento acerca da constituição do Estado, fazendo com que

suas características política, religiosa e econômica particular se transfigurassem e se

tornassem o apoio do bem público.

Com a designação de Estado Antigo, Oriental ou Teocrático, os autores se referem às formas de Estado mais recuadas no tempo, que apenas começavam a definir-se entre as antigas civilizações do Oriente propriamente dito ou do Mediterrâneo. A família, a religião, o Estado, a organização econômica formavam um conjunto confuso, sem diferenciação aparente. Em consequência, não se distingue o pensamento político da religião, da moral, da filosofia ou das doutrinas econômicas.4

Para efeitos didáticos e históricos, aqui consideraremos importante realizar um

recorte profundo nessa significação, já que, neste trabalho, a conjunção crítica estará

pautada no desenvolvimento dos Estados Ocidentais, motivo pelo qual encontraremos

na Grécia o ponto de partida para nossos estudos.

No modelo Grego encontramos o acima elencado por Fustel de Coulanges

acerca da formação da Cidade Antiga, sempre pautada na questão familiar e nos laços

religiosos de seus membros (parentes no geral, em sua maioria), que fizeram surgir os

agrupamentos, tribos e as Cidades-Estados.

Homero nos brinda com uma visão magnífica das relações existentes na Grécia

em seu poema épico Ilíada, mostrando a importância da família e das religiões na

consecução e compreensão da própria Pólis.

Mas uma coisa assevero e com jura solene o confirmo: Por este cetro que ramos nem folhas jamais, em verdade, reproduziu, dês que foi na montanha, do tronco arrancado, e que jamais brotará, pois o bronze, de vez, arrancou-lhe a casca e as folhas – a vida – e que os filhos dos nobres

[Aquivos, quando em função de juízes, empunham, fazendo que

3 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007, p. 130. 4 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 53.

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[valham as leis de deus e os preceitos – solene é, repito, esta jura! – há de chegar o momento em que todos os nobres

[Aquivos hão de gritar por Aquiles, sem vires, então, nenhum modo de protegê-los, no tempo em que às mãos desse Heitor

[homicida uns sobre os outros caírem.5

O desenvolvimento da Pólis Ateniense passou muito por estas formações da

cidade antiga, tanto que verificamos no trecho acima a instituição familiar do âmago

desta civilização e sua predileção pelos deuses, as leis e a justiça divinas.

Cabe salientarmos, inclusive, que a segurança daqueles que formam a cidade é

um importante fator para compreensão do desenvolvimento do seio familiar nas

associações, agrupamentos, tribos e cidades, que passam a refletir exatamente o mesmo

paradigma das relações particulares nos movimentos públicos.

A natureza unitária e a religiosidade se tornam características fundamentais da

Pólis, que se constituiu como um intrincado sistema no qual o pensamento está

diretamente ligado à religião, seja ele político, econômico ou social.

Embora seja comum a referência ao Estado Grego, na verdade não se tem notícia da existência de um Estado único, englobando toda a civilização helênica. Não obstante, pode-se falar genericamente no Estado Grego pela verificação de certas características fundamentais, comuns a todos os Estados que floresceram entre os povos helênicos. Realmente, embora houvesse diferenças profundas entre os costumes adotados em Atenas e Esparta, dois dos principais Estados gregos, a concepção de ambos como sociedade política era bem semelhante, o que permite a generalização. A característica fundamental é a cidade-Estado, ou seja, a polis, como a sociedade política de maior expressão.6

Contudo, é justamente desse “conjunto desconjuntado” que a filosofia política

grega encontra supedâneo para alcançar seus melhores fundamentos, surgindo com isso

importantes e vastas obras sobre a teoria do Estado.

Isto se dá por conta da forte noção de auto-suficiência na preservação do

caráter da cidade-Estado grega, atingindo as finalidades instituídas. Tal fato foi

importante na sua construção interna e nas relações externas, conquistas e dominações.

Desta forma, o indivíduo, na concepção grega, tem importância capital na cidade-

5 HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira; São Paulo: Editora Saraiva, 2011, pp. 72-3. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 54.

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Estado, seja no âmbito das relações públicas entre os demais cidadãos, seja no âmbito

de suas relações particulares.

No Estado Grego o indíviduo tem uma posição peculiar. Há uma elite, que compõe a classe política, com intensa participação nas decisões do Estado, a respeito dos assuntos de caráter público. Entretanto, nas relações de caráter privado a autonomia da vontade individual é bastante restrita.7

A expansão territorial e a subjugação dos povos dominados, pautados nesta

questão da autossuficiência da Pólis, foram essenciais quando do avanço do pensamento

sobre o Estado no Mediterrâneo e de todas as teorias surgidas por este pressuposto.

Mormente esta questão, a civilização grega possui como pressuposto basilar do

seu direito, além do fato religioso, o natural, em que o direito é colocado como

imutável, enquanto a mutabilidade depende do desenvolvimento histórico.

Todos os povos iniciam sua trajetória com a ideia da sacralidade da moral e do direito, sendo este de natureza imutável, enquanto a mutabilidade nasce da contingência histórica. A observação de tal mutabilidade introduz a concepção de um direito natural (por comparação), uma noção de lei superior a ser procurada.8

Assim, devemos estudar, pelo menos, um pensador grego, que foi

preponderante tanto para a Teoria Geral do Estado Ocidental e todas as formações

decorrentes e pensadas para ele, como para as formulações sobre o direito natural, além

de ser o primeiro pensandor a enxergar as três possiveis funções que serão tratadas no

decorrer do trabalho.

1.2 ARISTÓTELES E O PENSAMENTO GREGO

Aristóteles foi um dos principais filósofos gregos e de todo o ocidente. Sua visão

sobre a justiça, por exemplo, foi de suma importância ao longo dos séculos para o

direito e ainda hoje influencia e se constitui como fundamento das concepções dos

juristas, sobretudo com o jusnaturalismo.

Antes, porém, de tecermos considerações à ideia de justiça e de seus

desdobramentos jurídicos, cumpre-nos analisar os sistemas de governo de acordo com o

7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 54. 8 CICCO, Cláudio de. História do Pensamento Jurídico e Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 49.

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pensamento de Aristóteles, para então chegarmos aos seus conceitos de justiça e de

direito inseridos nestas formas estatais.

A doutrina de Aristóteles centra a cidade como sendo uma associação de pessoas

reunidas, motivo pelo qual a sua origem inicia-se dentro das próprias famílias e

conforme se expande vai se configurando de outras maneiras, como as aldeias, até

chegar ao seu fim que é a Pólis.

Importante mencionar que todo e qualquer agrupamento que vise a constituição

de uma cidade, na doutrina aristotélica, deve ter teleologicamente a visão voltada para o

bem comum ou, caso contrário, não haveria porque os cidadãos se reunirem em torno de

ideais que não sejam estes, já que estariam perdendo suas virtudes em algo sem sentido.

A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade definitiva, após atingir o ponto de uma auto-suficiência praticamente completa; assim, ao mesmo tempo que já têm condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor. Toda cidade, portanto, existe naturalmente, da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela é o estágio final destas, pois a natureza de uma coisa é o seu estágio final, porquanto o que cada coisa é quando o seu crescimento se completa nós chamamos de natureza de cada coisa, quer falemos de um homem, de um cavalo ou de uma família. Mais ainda: o objetivo para o qual cada coisa foi criada – sua finalidade – é o que há de melhor para ela, e a auto-suficiência é uma finalidade e o que há de melhor.9

Por isso Aristóteles considera que existe nos homens certa tendência de reunião,

de modo a constituir e formar a família, o povoado e por fim a cidade (Pólis), pois esta

seria o bem maior procurado pelos homens e, portanto, a finalidade última de sua

necessidade de reunião em agrupamentos, de modo a propiciar a vida em torno (e em

busca) do bem-comum, primeiro entre os seus (nas famílias), depois entre os próximos

(nos povoados) e estendendo-se para os grupos maiores (Cidades-Estados).10

Ainda que estes homens não queiram e não necessitem de ajuda mútua, ainda

assim desejam viver unidos. Esta é a finalidade dos homens reunidos em prol de algo

9 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mario da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 15. 10 Neste sentido: “Mesmo que os homens não necessitem de assistência mútua, ainda assim eles desejam viver juntos. Ao mesmo tempo eles são levados a reunir-se por terem interesses comuns, na medida em que cada um deles pode participar de uma vida melhor. É este, então, o principal objetivo de todos e de cada um em separado na vida comunitária, mas os homens se reúnem e mantém a comunidade política apenas para viver, pois há certamente algo de bom no simples fato de estar vivo, desde que a vida não seja sobrecarregada de males penosos demais para serem suportados (é evidente que os homens em sua imensa maioria se apegam à vida ainda que tenham de enfrentar muitos infortúnios, como se ela contivesse em si mesma um certo encanto e doçura inerentes à sua própria natureza).” (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 89).

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maior. A base da sociedade, contudo, está na justiça e na administração da mesma, vez

que é ela a responsável por manter a ordem social e, por conseguinte, determinar o que é

justo dentre aqueles que formaram a Cidade-Estado. Tal fundamento será indispensável

para a compreensão da distribuição de funções de administração da Pólis, pois é a partir

das virtudes dos homens que estas se darão.

É neste diapasão que a filosofia aristotélica considera que a cidade é o todo e,

por este motivo, é composta de várias partes que unidas formam a cidade. Até mesmo as

funções que são distribuídas e classificadas de acordo com sua aplicabilidade são partes

integrantes desse todo, de modo que “a cidade é um complexo, no mesmo sentido de

qualquer outras coisas que são um todo mas se compõem de muitas partes.”11

Antes disso, todavia, Aristóteles considera de salutar importância definir o

conceito daqueles que formarão e ocuparão os cargos na cidade: os cidadãos. Para tanto,

busca através das virtudes inerentes aos bons homens considerá-los por sua natureza

voltados para o bem-comum e, se assim o são, não podem ter outro desígnio que não

aquele pautado nas suas melhores qualidades.

Um cidadão integral pode ser definido por nada mais nem nada menos que pelo direito de administrar justiça e exercer funções públicas. [...] Afirmamos que aquele que tem o direito de participar da função deliberativa ou da judicial é um cidadão da comunidade na qual ele tem este direito, e esta comunidade – uma cidade – é uma multidão de pessoas suficientemente numerosa para assegurar uma vida independente na mesma.12

Temos que cidadão é todo sujeito capaz de participar e fazer política dentro da

cidade. Sua atuação se dará naquela comunidade de pessoas como sendo a necessária

para a administração e a justiça, ou seja, deliberará e decidirá de acordo com as virtudes

inerentes à própria cidade, já que formada por homens (cidadãos) virtuosos. O cidadão

administrador é parte fundamental do todo, que é a Cidade-Estado.

Cada cidadão age de acordo com suas virtudes podemos afirmar, então, que age

de acordo com sua bondade, pois é esta que fundamenta cada tipo de constituição. Em

Aristóteles, cada cidadão é diferente ainda que possua as virtus necessárias para a

manutenção e continuidade da cidade e exatamente por este motivo existem vários tipos

de constituição.

Aqui devemos entender constituição como formas de governo, de modo que

estas se estabelecem e se perpetuam na cidade conforme as virtudes dos cidadãos, sendo 11 ARISTÓTELES. Ob. Cit.. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 77. 12 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 78-9.

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nestas que elas se fundam. A constituição, por ser a disposição das magistraturas na

cidade, se torna o governo estabelecido neste lugar.

Uma constituição é o ordenamento de uma cidade quanto às suas diversas funções de governo, principalmente a função mais importante de todas. O governo em toda parte detém o poder soberano sobre a cidade e a constituição é o governo. Quero dizer que em cidades democráticas, por exemplo, o povo é soberano, mas nas oligarquias, ao contrário, uns poucos o são, e dizemos que elas têm uma constituição diferente. Usaremos a mesma linguagem a propósito de outras formas de governo.13

Assim, de acordo com as constituições de cada Cidade é que se define como

cada função estatal será considerada para o bem comum, já que como anteriormente

abordado, toda e qualquer união de homens virtuosos visa um bem maior, que

necessariamente deve ser público, pois o bem privado e individualista que não visa a

Pólis e por conseguinte o todo é uma forma desvirtuada de constituição.

É a estruturação dessas constituições que determinará se o objetivo é ou não o

bem comum e, portanto, se assim são consideradas, estão corretamente estabelecidas, se

baseando nos princípios essenciais da justiça e da equidade, fundamentais para a

constituição de uma Cidade-Estado.

É óbvio, então que as constituições cujo objetivo é o bem comum são corretamente estruturadas, de conformidade com os princípios essenciais de justiça, enquanto as que visam apenas ao bem dos próprios governantes são todas defeituosas e constituem desvios das constituições corretas; de fato, elas passam a ser despóticas, enquanto a cidade deve ser uma comunidade de homens livres. 14

Tal fato é importante, vez que enquanto aqueles que exercem as funções

públicas devem visar o bem comum e aqueles que são governados esperam que assim

seja feito; da mesma forma, quando os cargos são exercidos de forma alternada, aqueles

que anteriormente eram governados e passam a ser governantes devem visar o bem

comum já que, enquanto uns governam, outros são governados e sempre estarão nesta

relação e visando o bem comum aos governados enquanto governantes. Quando

desejam ficar eternamente nos cargos por conta de vantagens particulares, não estão

visando o bem comum e considerar-se-á como a desvirtuação do modelo constitucional

perfeito, que é aquele voltado para o bem comum.15

13 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 89. 14 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 90. 15 Neste sentido: “Uma vez que constituição significa o mesmo que governo, e o governo é o poder supremo em uma cidade, e o mando pode estar nas mãos de uma única pessoa, ou de poucas pessoas, ou

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Se devemos pensar as formas de governo, devemos também considerar antes de

qualquer coisa o que se deve ter como conceito de justiça, pois é a partir deste princípio

que será guiado as formas de governo, isto dentro do sistema oligárquico e democrático,

duas das formas de desvirtuação das espécies de governo. Tal fato ocorre porque, apesar

de se apegarem ao princípio da justiça, não o concebem no todo, mas sempre em parte,

na qual lhes convém.

Efetivamente, todos os homens se apegam à justiça, mas só avançam até um certo ponto e não dizem qual é o princípio de justiça absoluta em seu todo. Pensa-se, por exemplo, que justiça é igualdade – e de fato é, embora não o seja para todos, mas somente para aqueles que são iguais entre si; também se pensa que a desigualdade pode ser justa, e de fato pode, embora não para todos, mas somente para aqueles que são desiguais entre si; os defensores dos dois princípios, todavia, omitem a qualificação das pessoas às quais eles se aplicam, e por isto julgam mal; a causa disto é que eles julgam tomando-se a si mesmos como exemplo, e quase sempre se é um mau juiz em causa própria.16

A teoria da Justiça aristotélica baseia-se no direito natural, assim como dos

povos de sua época antes das codificações legais iniciadas com Drácon e Sólon na

Grécia e a Lei das Doze Tábuas em Roma. A historicidade do direito natural, portanto,

consiste na ideia de que o direito dos cidadãos é anterior à própria sociedade, ou seja, os

cidadãos possuem direitos porque é natural desde o início que eles o possuam.

da maioria, nos casos em que esta única pessoa, ou as poucas pessoas, ou a maioria, governam tendo em vista o bem comum, estas constituições devem ser forçosamente as corretas; ao contrário, constituem desvios os casos em que o governo é exercido com vistas ao próprio interesse da única pessoa, ou das poucas pessoas, ou da maioria, pois ou se deve dizer que os cidadãos não participam do governo da cidade, ou é necessário que eles realmente participem. [...] Os desvios das constituições mencionadas são a tirania, correspondendo à monarquia, a oligarquia à aristocracia, e a democracia ao governo constitucional; de fato, tirania é a monarquia governando no interesse do monarca, a oligarquia é o governo no interesse dos ricos, e a democracia é o governo no interesse dos pobres, e nenhuma dessas formas governa para o bem de toda a comunidade”. (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 91). 16 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 91-2. Ainda: “Disto resulta que, enquanto “justo” significa justo apenas para certas pessoas e é distinguido de maneira idêntica em relação às coisas a serem distribuídas e às pessoas que as recebem, os partidários dos dois princípios concordam a respeito do que é a igualdade entre coisas, mas discordam quanto ao que constitui igualdade entre pessoas, principalmente pela razão mencionada pouco antes, porque os homens são maus juízes quando de trata de julgar a si mesmos, e também porque, embora ambos os lados apresentem argumentos a respeito de uma justiça limitada e parcial, pensam que estão falando da justiça absoluta. Com efeito, um dos lados pensa que se as pessoas são desiguais sob alguns aspectos – na riqueza, por exemplo – elas são desiguais em tudo, e o outro lado pensa que, se elas são iguais sob alguns aspectos – na liberdade, por exemplo, elas são iguais em tudo. Mas o mais importante eles não mencionam. Se os homens formassem a comunidade e se juntassem por causa da riqueza, sua participação na cidade deveria ser proporcional a seus bens, e então o argumento dos paladinos da oligarquia pareceria válido.” (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 92).

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A natureza, para Aristóteles, ganha um relevo diferente daquele experimentado e

idealizado por Platão, de quem foi discípulo. Enquanto a filosofia platônica centra suas

atenções na subdivisão mundana, entre o real e as ideias, traduzido pelo mundo das

essências, do qual o mundo aparente é apenas uma imitação, a questão da sobrenatureza

ganha contornos importantes para a concepção do direito em Platão, pois é a

manifestação do direito positivo com a própria natureza. “Desde então, uma vez que a

lei era o lugar privilegiado dessa ‘imitação’, opor-se à lei positiva redundava em opor-se

à lei inteligível.”17

De outra via, Aristóteles repensa a teoria de seu mestre, colocando a natureza

não como uma realidade separada, e sim como parte integrante de um princípio

organizacional. Diferente de Platão, Aristóteles não divide o direito positivo e o natural,

mas o coloca como oriundos de um mesmo sistema e integrantes, de igual maneira, da

vida em grupo. Esta proposição é importante por salientar que mesmo existindo um

direito positivo, também o direito natural permanece com sua aplicabilidade, porém não

de forma distinta do direito positivo e sim diretamente ligado a este.

Primeiramente, a filosofia aristotélica classifica e distingue o justo no seu

sentido absoluto e o justo no seu sentido político. A concepção de justiça para o filósofo

grego é preponderante, pois nela está inserida características outras, como a moral.

O justo no sentido absoluto tem um sentido moral, e é colocado sobre um modelo de proporção geométrica: trata-se de definir uma igualdade de relação. O justo é, pois, o igual. Esse é o justo natural. A redefinição do justo natural faz esperar uma repartição simétrica simples: o direito natural, fundado sobre o justo natural e absoluto, deveria ser oposto a um direito positivo, fundado sobre o justo político.18

Por isso Aristóteles prega a equidade da justiça entre todos os cidadãos,

atingindo da mesma maneira a todos sem distinção. Ao diferenciar os tipos de justiça,

Aristóteles acaba caindo na mesma divisão entre o direito natural e o direito positivo, de

modo que é a partir de sua definição do justo no sentido político que vai se operar não a

distinção, mas a articulação estreita entre o direito positivo e o direito natural.

Isto ocorre porque, de acordo com a filosofia aristotélica, o justo político nasce

da união do natural com o positivado, ou seja, emprega em seus fundamentos tanto

17 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 80. 18 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 80.

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questões pertinentes ao direito natural, como ao direito positivo. Assim Aristóteles

resolve o problema da distinção entre ambos ao uní-los quando no justo político.19

O direito natural, portanto, não se atrela àquela concepção tradicional que se liga

a um direito universal, comum a todos e na grande maioria das vezes associado pelos

gregos à esfera do direito não-escrito. Desta forma, temos a clássica distinção entre o

que está devidamente (e legalmente) instituído e aquilo que está não-instituído, o que

não significa, de modo algum, que não exista.

Se há por certo uma distinção fundamental, ela conduz ao não-instituído e ao instituído: o direito natural é por definição não-instituído, ao contrário do direito positivo. Se aceitamos a análise aristotélica de um direito natural concebido como lugar de conversiblidade dos direitos positivos, parece que esse direito deva ser pensado como o “horizonte” dos direitos positivos, ou ainda, para parafrasear Husserl, que os direitos positivos devem ser pensados “sobre o horizonte” do direito natural. Pode-se ainda conceber o direito natural aristotélico como uma “ideia reguladora”, no sentido kantiano, que permite dar sentido aos direitos positivos.20

Tal embate demonstrado por Aristóteles persiste ainda hoje, já que o positivismo

jurídico preza pelo legalmente instituído e refuta aquilo que não está instituído, isto é,

que não tem previsão legal escrita, pois se assim considerado, não haveria uma origem

compreensível e palpável do direito natural.21

19 Neste sentido: “O justo político será, na verdade, em parte natural e em parte legal, quer dizer, positivo. Estranha proposição: ela firma que a distinção entre direito natural e direito positivo não se passa ao exterior da legislação, mas no interior do justo político, ou seja, do domínio da legislação. Para esclarecer essa definição da articulação positivo/natural, Aristóteles nos convida a pensar o natural como o que tem em todo lugar o mesmo poder, e o positivo, o ‘legal’, como o que é colocado por convenção aqui e ali, e vem, pois, particularizar a justiça natural. As consequências imediatas dessa redefinição da articulação do natural e do positivo são claras: há entre eles apenas uma diferença de grau de generalidade, e não uma oposição radical, e o domínio da legalidade (o positivo, portanto) é a realização do justo natural. O raciocínio aristotélico remete a uma interpretação nova da ideia de natureza: se a natureza física é a mesma em todos os lugares (‘o fogo queima tão bem aqui quanto entre os persas’), a natureza humana é variável e sujeita a uma indeterminação essencial. A esse respeito, a ‘conformidade com a natureza’ não se pode pensar em termos de universalidade, mas antes de variabilidade. Em suma, o direito natural não deve ser compreendido como uma ‘universalidade separada’, sobre o modo platônico de uma supernatureza, mas antes como aquilo que acompanha a variabilidade do humano”. (BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, pp. 82-3). 20 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 84. 21 Considera Aristóteles as duas faces do direito (natural e positivo) e as classifica como o “puro convencionalismo ou puro positivismo jurídico, que nega toda justiça natural, todo direito não-instituído; e a do naturalismo, que toma uma ‘origem’ incompreensível do instituído no não-instituído, ou ainda uma crítica das leis positivas em nome de um princípio separado. Com Aristóteles, é afligida de inanição tanto a redução do justo ao legal como a tentativa de introduzir uma legalidade natural. Permanece, pois, essa estranheza filosófica: um justo natural, mas mutável, e não imutável, e que não é outra coisa senão o que permite pensar o direito positivo como direito. (BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, pp. 84-5).

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A política e o justo político devem possuir as qualidades inerentes à sua própria

formação no Estado, não sendo uma ciência em si, mas sim uma maneira de suprir a

generalidade constante nas leis, devendo observar sobretudo três pressupostos:

O apego à constituição existente, a capacidade de exercer as funções políticas e a virtude, posto que a capacidade política não se confunde com a virtude. Somente a deliberação permitirá compensar as lacunas da lei: a deliberação sobre os casos particulares prolonga a lei e a aperfeiçoa.22

Importante este raciocínio, pois percebemos que Aristóteles considera que a

aplicabilidade da lei e as deliberações são essenciais para o prolongamento da mesma e

o aperfeiçoamento no sistema jurídico. Em outras palavras, é o trabalho dos juízes e

julgadores que faz a lei ser adequada a cada caso, o que não permite o engessamento de

entendimento ou, caso contrário, não haveria aperfeiçoamento e sim um modelo estático

de legislação, em que a aplicabilidade seria mecânica. Isso ocorre uma vez que a própria

divisão do direito é equitativa e até mesmo sua divisão assim é considerada, sempre

pautada na visão moral e ética do justo, isto porque a justiça não se distingue da virtude

ética, sendo requisito para o homem político.23

Assim, para Aristóteles, o estadista (legislador) deve se atentar à melhor

constituição, isto é, a melhor maneira de governo existente para a cidade, observando os

modelos já preestabelecidos anteriormente e tendo em mente que este “Estado Ideal”

pode não ser real e deve se ater às circunstâncias para identificar no modelo

estabelecido de Pólis qual forma se adapta aos interesses comuns dos homens.

Aqui, cabe lembrar que o cidadão grego é todo aquele que está diretamente

inserido na política, que é a vida, o escopo da Pólis. Mulheres, crianças e escravos não

estavam inseridos na categoria cidadãos. Aristóteles classificou os vários tipos de

justiça que deveriam gerir a Pólis grega, amparado no direito natural dos cidadãos,

22 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 80. 23 Neste sentido: “Certamente, o jurista não é um moralista: ele não saberia tornar o homem justo, no sentido das disposições interiores que permitissem a este efetuar atos justos. Mas se ele não se pode encarregar da “moralidade subjetiva”, ele é responsável pela justa repartição no seio de uma comunidade política que visa a uma Bem da natureza ético-política. Essa relação particular entre a esfera ético-política e a esfera da legalidade (sobre as quais sugerimos que sejam claramente distintas, mas não radicalmente separadas) é ligada à ideia de que o “bem individual” é submetido ao “bem coletivo” e pode ser descrito como uma regulação ética permanente. O legislador institui uma máquina política, seja por ciração, seja por retificação de um sistema já existente, e essa máquina será auto-regulada por um “feedback ético”: não somente a felicidade e a virtude dis cidadãos serão a prova de que o sistema político é excelente, mas são os efeitos éticos do funcionamento da máquina política que deverão dar informações ao legislador para modelar e modificar esse funcionamento.” (BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, pp. 86-7).

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sendo quatro tipos inicialmente: distributiva, corretiva, política e doméstica. A justiça

política, pela sua amplitude, acaba por conceber outras duas formas: legal e natural.

Antes, porém, Aristóteles considera importante diferenciar o justo do injusto, já

que é a partir dessa diferenciação que a justiça será devidamente aplicada, tanto àqueles

que infringem a lei como àqueles que possuem o direito por esta infração.24

Segundo o filósofo, a Justiça Distributiva é o conceito de que cada um deve

receber de acordo com o que é justo25. É uma proporção de que o governo deve reservar

para que ela aconteça e que cada cidadão não seja prejudicado pela aplicação da justiça.

Neste tipo de justiça temos que todos os verdadeiros cidadãos da Pólis recebem,

de maneira justa e de acordo com sua posição, aquilo que de direito o Estado lhes deve,

isto é, bens, honrarias e cargos, mas também se refere à distribuição de

responsabilidades acerca do funcionamento da Pólis, como deveres e impostos.

Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter participação desigual ou igual à de outra pessoa.26

Desta forma, a justiça distributiva é aquela na qual haverá, ao menos, um sujeito

e um objeto; este sujeito receberá de acordo com o que lhe é de direito e de justiça um

proporcional deste mesmo objeto e qualquer coisa além ou menor do que se deve

distribuir-lhe será considerado injusto.

Nesta modalidade temos que as virtudes de cada cidadão devem ser levadas em

consideração, vez que é a partir delas que se saberá o quanto será distribuído a este ou

àquele e, como boa parte da doutrina aristotélica, esta divisão deve estar de acordo, ser

24 Neste sentido, diz Aristóteles: “O termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que as cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e iníquo”. (ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 194). 25 Para Aristóteles, o justo é o igual, sendo este um meio termo entre o desigual por excesso e por falta. Segundo o professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “Com efeito, argumenta Aristóteles, o justo corresponde ao igual. Mas o igual é um meio termo entre o desigual por excesso e por falta. O justo, pois, é um certo meio. Por outro lado, o igual supõe ao menos dois termos entre os quais se dá a relação de igualdade. Segue-se, necessariamente, que o justo, correspondendo à igualdade, é um meio relativo, isto é, ele é entre dois sujeitos ao mesmo tempo. Mas, posto que, enquanto meio, supõe o justo dois extremos (o mais ou menos), enquanto igual supõe ele duas coisas (que sejam iguais). O justo implica, pois, ao menos quatro termos: os sujeitos (dois) para os quais ele existe e as coisas (duas também) nas quais ele se manifesta”. (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões Sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2ª Edição, 2003, pp. 185-6). 26 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 197.

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justa, não apenas com o cidadão que recebe, mas com os demais membros da Pólis, isto

porque seu destino, sua finalidade, é o bem comum.

O justo nesta acepção é, portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso, um quinhão se torna muito grande e outro muito pequeno, como realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior.27

Desta feita, temos que a forma de distribuição caracterizada pela doutrina

aristotélica versa não apenas sobre a participação dos cidadãos nas honrarias da polis,

mas também sobre as riquezas que esta possui.

Sendo o cidadão membro efetivo do corpo político, não pode caber-lhe apenas as

honras sem os bônus advindos de sua participação, devendo também partilhar das

riquezas, em conjunto com os demais cidadãos, daquilo que a polis proporcionava.

A justiça distributiva, além das honras, também diz respeito à distribuição das riquezas e outras vantagens entre os membros da comunidade. O cidadão, na Grécia antiga, era considerado um “acionista” da pólis e participava, assim, proporcional e diretamente, dos seus benefícios.28

Por sua vez, a Justiça Corretiva é a forma que a Pólis possui para punir, de

acordo com a lei, sem que o juiz fuja dos preceitos legais que o cercam, não podendo

deliberar da maneira que melhor lhe convém. É assim que o juiz não fere o Direito

Natural e do bem geral inerente à Pólis, e por isso, não causa injustiças aos cidadãos.

Em outras palavras, a justiça corretiva é aquela que corrige as injustiças

causadas, procurando restabelecer o equílibrio quebrado entre particulares e visando,

com isso, a equidade aritmética como finalidade última.

Essa justiça é a que desempenha função corretiva nas relações entre as pessoas. Esta última se subdivide em duas: algumas relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depósito e a locação (estas relações são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassino traiçoeiro, o falso testmunho), e outras são

27 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 199. 28 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões Sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2ª Edição, 2003, p. 185.

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violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.29

Como podemos perceber, a justiça corretiva atinge tanto a matéria patrimonial

do sujeito, como também sua honra, sua personalidade. Em Aristóteles vemos, pois, o

que se consagra nos Romanos e ainda hoje temos: a justiça corretiva como maneira de

restabelecer a ordem pela transgressão de um dano material ou moral.

A terceira forma concebida por Aristóteles é a Justiça Política, sendo ela a mais

importante do ponto de vista do filósofo grego, porque a mesma está intrinsecamente

ligada à Pólis, ou seja, a todos os cidadãos gregos indistintamente, aplicando-se no

âmbito das relações entre esses sujeitos conforme o seu status quo.

Ela se apresenta entre as pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo – pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais. Logo, entre pessoas que não se enquadram nesta condição não há justiça política, e sim a justiça em um sentido especial e por analogia.30

É a medida de que o bem da Pólis, de todos os cidadãos, é mais importante do

que o particular ou a prevalência de pequenos grupos. Esta é a personificação da justiça

daquilo que Aristóteles concebeu como a própria Política na vida do cidadão, isto é, a

busca incansável pelo bem comum acima do particular.

É neste ponto da Política que Aristóteles prossegue com uma forma de exclusão,

já que a justiça política está diretamente ligada apenas aos cidadãos, sem inserir neste

contexto mulheres, crianças, estrangeiros, escravos e todos os que não são livres, de

modo que estes são atingidos indiretamente por esta justiça.

Cumpre ainda colocar as duas formas amplas de justiça na qual a política se

encaixa: são as formas de justiça legal e de justiça natural, no já mencionado embate

entre o direito natural e o direito positivado, de modo que a justiça política se insere em

ambos os campos, sendo em parte natural e em parte legal.

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente.31

29 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 199. 30 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 205. 31 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 206.

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Como bem sabemos, a justiça legal é aquela que tem fundamento na lei criada

pelo legislador, possuindo força não natural e lastreada na convenção, sendo a vontade

emanada do ato Legislativo soberana, pois fundada no consenso dos cidadãos. Já a

justiça natural é aquela não fundada na convenção dos cidadãos ou elaborada pelos

legisladores de determinada cidade, mas aquelas provenientes de algo maior e universal,

com aplicabilidade a qualquer um.

Por fim, concebe a Justiça Doméstica, que é a forma de justiça reservada para as

mulheres, crianças e escravos na Grécia Antiga no âmbito da casa. Embora não fossem

consideradas escravas, as mulheres e crianças também não eram consideradas cidadãs,

ficando em um meio termo, com um tipo de justiça particular.

A justiça do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho não são iguais à justiça política, embora se lhe assemelhem; na realidade, não pode haver injustiça no sentido irrestrito em relação a coisas que nos pertencem, mas os escravos de um homem, e seus filhos até uma certa idade em que se tornam independentes, são por assim dizer partes deste homem, e ninguém faz mal a si mesmo (por esta razão uma pessoa não pode ser injusta em relação a si mesma).32

Não podendo haver injustiça em nenhum grau na concepção de Aristóteles,

temos que a justiça doméstica é aquela na qual o cidadão (inserido na Justiça Política)

pratica a justiça dentro de sua casa. Essa ideia tem por base o que já estudamos acerca

dos primeiros grupos que se reuniam em suas casas e depois em prol de um bem maior,

formando as cidades. Fustel de Coulanges bem trabalha essa questão.

Portanto, a justiça é uma virtude geral e independente de seu gênero

(distributiva, corretiva, política ou doméstica) e de sua forma (legal ou natural). Ela

existe e abarca todas as pessoas, cidadãos ou não da Pólis.33

Assim, a justiça nasce da relação do individual com o universal, isto é, das ações

e virtudes de cada cidadão isoladamente na Pólis e a junção de todas essas ações e

virtudes que levam ao bem comum protegido pelas ações dos cidadãos em conjunto,

formando a justiça, considerada a maior das virtudes, até porque reúne todas as

melhores virtudes dos cidadãos em uma.

32 ARISTÓTELES. Ob. Cit. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 205. 33 Neste sentido: “Em geral, a maioria das disposições legais estão constituídas por prescrições da virtude total, porque a lei manda viver de acordo com todas as virtudes e proíbe que se viva de conformidade com todos os vícios. E, das disposições legais, servem para produzir a virtude total todas aquelas estabelecidas sobre a educação para a vida em comunidade. Assim, a lei esgota o domínio ético do cidadão, sendo, por isso, a medida objetiva da justiça no seu mencionado sentido. A justiça geral consiste, pois, no cumprimento da lei. Inversamente, a injustiça total é a sua violação”. (ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 194).

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A justiça (e seu corretivo, a equidade, que a adapta aos casos particulares), é, por excelência, articulação do individual com o universal; virtude das relações humanas, ela harmoniza todas as outras virtudes em função do bem comum, pois o homem justo sempre e em toda parte faz o que se deve fazer e portanto extrai o melhor de todas as outras virtudes.34

Essas delimitações são importantes, pois influem no modo como Aristóteles

pensará um modelo político para a Pólis assentado na forma com que as relações sociais

são estabelecidas, isto é, na exteriorização das virtudes dos cidadãos reunidos em prol

da Pólis e de todo o seu bem público que chega, por conseguinte, à justiça.

O legislador e estadista devem conhecer todas as formas de constituições e de

possibilidades existentes a partir da análise do fenômeno que se apresenta à sua frente.

De acordo com as necessidades da Pólis deve saber discernir qual o melhor modelo

constitucional para ser aplicado ao caso concreto, o que leva, consequentemente, ao

dever de saber quais as melhores leis existentes para este Estado, seja um novo surgindo

deste momento em diante seja um que já existe e que pode ser melhorado.

Não se deve ignorar as diferenças entre as constituições, quantas são elas e as combinações possíveis entre elas. Depois disso deve ser usado o mesmo discernimento para distinguir as melhores leis e as adequadas a cada forma de constituição, pois as leis devem ser feitas, e todos as fazem, para adequar-se às constituições, e não as constituições para adequar-se às leis; com efeito, a constituição é a ordenação das funções de governo nas cidades quanto à maneira de sua distribuição, e à definição do poder supremo nas mesmas e do objetivo de cada comunidades; as leis, porém, distinguem-se dos princípios da constituição, e regulam a forma do exercício do poder pelos altos funcionários e a maneira de eles impedirem que elas sejam descumpridas.35

Conhecendo as disposições da Pólis, é possível estabelecer as demais funções

inerentes à constituição do Estado, quais sejam, saber e estabelecer como se executam

as leis, como se julga através destas e como se delibera para o seu surgimento.

Assim, temos que as primeiras bases teóricas para uma concepção de

“Tripartição de Poderes” foram lançadas justamente por Aristóteles, em que

vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais

sejam: a função de editar as normas; a função de aplicar as normas ao caso concreto; e a

função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas.

34 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, pp. 18-9. 35 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 125.

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Da mesma forma, então, que se deve considerar a alma parte mais importante num animal que o corpo, os elementos de uma cidade correspondentes à alma também devem ser considerados partes dela, com mais razão do que os que contribuem apenas para a satisfação de suas necessidades materiais (tais elementos são a classe militar e a encarregada de administrar a justiça, além da parte que delibera nas assembleias, pois deliberar é função da inteligência política).36

Definida a cidade e as bases nas quais esta se constitui e se fundamenta, cabe

menção aqui e agora ao modelo tripartido concebido por Aristóteles, que conheceu e

distinguiu as funções deliberativas (legislativa), executiva (magistraturas) e judicial, de

modo que todos sejam concentrados em prol da Pólis. Apesar de três instituições

distintas em suas funções, a centralização dos mesmos era necessária para o bem

comum, independentemente se exercido por uma ou por algumas poucas pessoas, a

depender, como visto, da constituição escolhida pelos cidadãos para gerir a cidade.37

Na visão aristotélica, a função mais importante é a deliberativa e, desta feita, se

torna soberana sobre determinados assuntos, que não atingem a parte executiva e a

judicial, sendo-lhes conferidas maiores poderes e os mais importantes dentro de uma

cidade, visando e promovendo a todos os cidadãos o poder decisório, ou a alguns, de

acordo com as constituições já trabalhadas.

A parte deliberativa é soberana quanto à guerra e à paz e à formação e dissolução de alianças, quanto às leis, quanto às sentenças de morte, de exílio e de confisco da propriedade, e quanto à prestação de constas dos funcionários.38

A função executiva, por sua vez, também tem força deliberativa, mas sua

concentração principal está na definição de agir como juiz e emitir ordens à Pólis, pois é

desta função o dever de exercer as determinações expedidas pela assembleia

deliberativa e executar as leis exaradas pelo Legislativo. “O título de função pública, em

poucas palavras, aplica-se principalmente a todas as funções cujos ocupantes têm o

encargo de deliberar sobre certos assuntos, de agir como juízes e de emitir ordens –

especialmente o último, pois dar ordens é característica por excelência da autoridade.”39

36 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 131. 37 Assim define Aristóteles sobre as três partes integrantes de uma cidade devidamente constituída: “destas três partes, uma trata da deliberação sobre assuntos públicos; a segunda trata das funções públicas, ou seja: quais são as que devem ser instituídas, qual deve ser sua autoridade específica, e como devem ser escolhidos os funcionários; a terceira trata de como deve ser o poder Judiciário.” (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 151.) 38 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 151. 39 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, pp. 155-6.

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Importante mencionar que segundo o modelo aristotélico não é o tamanho da

cidade que definirá a quantidade de magistrados, uma vez que o fato de determinada

cidade ser maior que outra não pressupõe que as atividades exijam tanto dos cidadãos na

maior do que na menor. Em outras palavras, podemos encontrar uma pequena cidade

com o mesmo número de magistrados (ou até mais) do que uma grande cidade.

Por este motivo não é tão simples definir a forma de escolha dos magistrados.

De acordo com Aristóteles, alguns pontos devem ser analisados para se saber a forma e

a quantidade dos magistrados, devendo se pautar em três pontos fundamentais: “1)

todos os cidadãos designam, ou alguns; 2) os funcionários são escolhidos entre todos os

cidadãos, ou entre os de determinada classe; 3) o modo de designação pode ser pelo

voto ou pelo sorteio.”40

Destarte, o modelo aristotélico se permeia na forma de escolha dos magistrados

designados para a pólis, como funcionários públicos responsáveis pela ordem e por

executar as deliberações do Legislativo. A forma de escolha é importante, porque é a

partir dela que se saberá a forma de constituição na qual a cidade está lastreada.

Eis o motivo de os três pontos acima mencionados necessitarem de outras

quatro importantes partes na formação das magistraturas nas cidades, sendo elas: “1)

todos os cidadãos podem designar funcionários escolhidos entre todos pelo povo, ou 2)

todos entre todos por sorteio – e entre todos ou seção ou por seção, ou 3) sempre entre

todos, ou ainda 4) em parte de um modo e em parte do outro”.41

É a constituição da cidade que definirá o modo com que os cargos das

magistraturas serão preenchidos, de modo que podemos identificar qual o modelo de

constituição adotado por meio destas formas de escolha dos funcionários públicos.

Por fim, de todas as funções identificadas por Aristóteles, também para o

Judiciário foi determinada as características de sua atuação e até mesmo de sua

formação, na qual também seus membros são escolhidos da mesma maneira que os

determinados para as funções públicas, devendo identificar, ainda, qual a sua esfera de

ação, isto é, como são identificados e divididos os tribunais.

Estas modalidades são em número de quatro se os juízes são escolhidos entre todo o povo e julgam todas as causas; haverá outras tantas modalidades se os juízes para todas as causas forem escolhidos pelo voto em certa classe, ou por sorteio em certa classe, ou se os juízes de alguns tribunais forem escolhidos por sorteio e outros pelo

40 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 157. 41 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 158.

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voto, ou se alguns tribunais forem constituídos de juízes escolhidos em parte por sorteio e em parte pelo voto para as mesmas causas.42

Podemos considerar que para os dois primeiros itens, as pessoas que podem

tomar parte do tribunal e o seu modelo de escolha, são definidas de forma idêntica que

as consideradas nas funções públicas, enquanto sua definição e subdivisão é em número

de oito tribunais, de acordo com as funções exercidas por cada um dos magistrados.43

Aristóteles aponta que a função soberana é a deliberativa, mas demonstra como a

função executiva é importante para a Pólis, ou caso contrário não haveria como aplicar

as penas ou mesmo se fazer um correto julgamento, isto é, a função judicial está ligada à

função executiva, ou as sentenças proferidas ficariam sem qualquer eficácia no mundo

real, sendo esta a função de execução da sentença.

Tal função é necessária, pois seria inútil proferir sentenças sobre os direitos das pessoas se os veredictos não fossem executados, e se a cidade não pode existir sem julgamentos, ela não poderia tampouco existir se as condenações a multas ou a quaisquer outras penas não tivesse execução.44

Temos que na filosofia aristotélica a constituição do Estado era a responsável

por prever a organização e funcionamento de sua administração, possuindo o executivo,

o judiciário e o deliberativo e por “constituição entendo a organização das várias

autoridades, e em particular da autoridade suprema, que está acima de todas as outras.

Mas é preciso deixar claro que, em todos os casos, o corpo dos cidadãos é soberano; a

constituição é a soma total da politeuma”45.

Quando Aristóteles afirma ser o corpo de cidadãos soberano, encontramos

justamente o poder centralizado. A configuração desse corpo é definida de acordo com a

constituição do Estado, podendo ser concentrado numa pessoa ou em uma assembleia,

de acordo com as formas virtuosas de constituições estudadas.

42 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 160. 43 Neste sentido: “Determinemos primeiro quantas espécies há de tribunais. Seu número é oito: um tribunal de contas, outro que julga os ofensores de quaisquer interesses públicos, outro dedicado a julgar ofensas contra a constituição, um quarto para decidir as disputas entre os funcionários e os simples cidadãos quanto a penalidades, um quinto que decide as questões mais importantes relativas aos contratos entre particulares; além destes há os tribunais que julgam os homicídios, que são de várias espécies e podem ser julgados pelos mesmos juízes ou por juízes diferentes; [...] finalmente há tribunais para estrangeiros, sendo um para casos entre estrangeiros e outro entre estrangeiros e cidadãos; em adição a estes tribunais há os que julgam casos relativos a contratos de pouca monta.” (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 159). 44 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 216. 45 ARISTÓTELES. Ob. Cit. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 206.

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Em outras palavras, reconhecemos uma “descentralização-centralizada”, isto é,

apesar de conferir autoridade para seu exercício, as funções permanecem com a figura

do soberano. Encontraremos a autoridade deliberativa, executiva e judicial sendo

exercida por pessoas eleitas ou escolhidas para tanto, seguindo as regras e parâmetros

acima elencados, sem que as funções, todavia sejam descentralizadas, pelo contrário,

permanecem centralizadas com o poder soberano, que é competente para autorizar a

delegação dessas atividades.

Assim, a função do soberano, seja ele uma pessoa ou uma assembleia, é o

exercício do poder por meio da constituição: quando ele a respeita e tem por finalidade

o bem comum, estaremos diante de uma constituição virtuosa (monarquia, democracia

ou aristocracia); mas quando há o desrespeito e a busca por interesses particulares, essa

constituição será desvirtuosa (tirania, demagogia ou oligarquia). A separação das

funções ocorre no primeiro caso para preservar a constituição e a busca pela bem

comum, enquanto no segundo caso o único intuito é a preservação dos interesses

próprios de quem se encontra com o poder soberano.

1.3 ROMA E AS EDICTA PRETORIANAS

Se a Grécia é o berço da civilização ocidental, foi em Roma que tudo passou a se

desenvolver. É com o surgimento e expansão do Império Romano que podemos afirmar

que a sociedade estabeleceu marcos políticos, econômicos e jurídicos para as

necessidades que o próprio império clamava. O direito baseado unicamente nos

costumes religiosos tornou-se arcaico para este vasto império que exigiu um direito

unificado e, mais do que isso, que servisse de espelho para os povos dominados.

Inicialmente, por evidência, todo o direito estava concentrado na realeza, figura

representativa dos deuses, estando ligado de forma intrínseca à religião do Império. Era

o monarca, portanto, o incumbido de dizer o direito, cabendo a ele a última palavra, a

última ratio. Com o fim da realeza, foi necessária a criação de cônsules eleitos

anualmente pelos patrícios. Mas o império crescia. E crescia de forma absurdamente

rápida, de modo que a necessidade de magistrados fez surgir os cargos jurisdicionais

voltados para o direito e não ligados diretamente à religião.

Embora o Ius Civile, que abrangia somente aos cidadãos romanos estivesse

ligado à religião, foi esta necessidade que fez surgir a Lei das Doze Tábuas, ainda na

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República, tornando-se o cerne do Direito Romano, com grande desenvolvimento das

questões processuais ainda hoje importantes para a consecução do direito ocidental.

Eis aqui o primeiro grande marco dessa codificação romana, já que foi através

do direito comparado com as leis gregas que as Doze Tábuas surgiram, havendo

diferenciações importantes entre o direito público e o privado, distinções que

permanecem no direito brasileiro como aspecto da longa duração da influência

romanística. Foi a comparação com o direito grego, somado aos costumes romanos, que

determinaram o seu sucesso.46

Neste período da República, muitas eram as fontes do direito, como os costumes,

as leis, os jurisconsultos e os edictos dos magistrados. Uma das disposições contidas nas

Doze Tábuas diz respeito à instituição dos pretores e sua função como magistrado que

presidia o processo. Dependendo do período da história romana, o pretor possuía

poderes extraordinários na política do Império, sendo ele o responsável por tornar o

conflito jurídico através da linguagem, encaminhando posteriormente para os juízes, que

consultavam ou julgavam.47

Importante observar que o pretor não era o responsável pelo julgamento, mas

sim por ditar os rumos do processo e organizá-los para os jurisconsultos, reais

detentores da prerrogativa de julgamento. Os pretores possuíam cargos que mais se

assemelham aos dos cartorários e chefes de gabinete na atualidade, que organizam e

movimentam o processo para que o juiz, singular ou colegiado, aprecie a causa.

Noticia-se que, na República, o pretor exercia influência considerável sobre o direito romano. Como todos os demais magistrados jurídicos era investido da jurisdictio, mas, além disso, era o detentor do imperium. Pela jurisdictio podia, não julgar, mas dizer o direito e organizar os processos confiados aos jurados. Ao assumir o cargo, o pretor indicava o edito, afixado no forum, para os casos em que ia usar o imperium, dado a conhecer as diversas fórmulas que aplicaria às

46 Neste sentido: O acontecimento mais importante da República, do ponto de vista jurídico, foi a criação da Lei das XII Tábuas, resultado da luta da plebe por novos direitos, mas repudiada pelos patrícios e pelo senado. O direito escrito encontrou nesse ordenamento jurídico um monumento para o direito que revela claramente uma legislação rude e bárbara, fortemente inspirada em legislações primitivas e talvez muito pouco diferente do direito vigente nos séculos anteriores. (NETO, Francisco Caseiro; SERRANO, Pablo Jiménez. Direito Romano – Fundamentos, Teoria e Avaliação dos Conceitos do Direito Romano Aplicados ao Direito Contemporâneo. São Paulo: Desafio Cultural Editora, 2002, p. 27). 47 Neste sentido: “A Lei das XII Tábuas, que estão estudando em Direito Romano, e é um documento fundamental do Direito do Ocidente, também se caracteriza por ser uma consolidação de usos e costumes do povo do Lácio. A lei não se distinguia do costume, a não ser por este elemento extrínseco, de ser escrita: apenas esculpia, para conhecimento de todos, aquilo que o poder anônimo do costume havia revelado. E só com o decorrer do tempo, através de uma longa experiência científica, que a lei passa a ter valor em si e por si, traduzindo a vontade intencional de reger a conduta, ou de estruturar a sociedade de modo impessoal e objetivo”. (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 134).

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partes para a sanção de seus direitos. Existem vários tipos de editos: o edito urbano (proclamado pelo pretor urbano), perpétuo (durava o mesmo tempo que o período do pretor – um ano), repentino (de emergência ou circunstancial que se faz em caso especial) e a pars translaticia (preceitos aproveitáveis) do edito, conservados pelo novo pretor que sucede o anterior.48

Cada edicto tinha uma função específica no direito romano. O pretor, porém, não

tinha a função de julgar, como já verificado, mas sim de preparar o processo para o

julgamento posterior. Neste ponto é importante deixar claro porque as edicta eram

formuladas pelos pretores para serem os trilhos nos quais o processo seguiria, de modo

que não cabia aos pretores as prerrogativas decisórias.

Por isso que, inicialmente, suas funções eram bastante limitadas, já que haviam

inúmeras outras formas legais e mesmo organizacionais que estavam acima de suas

atribuições. Não somente a lei restringia suas ações, como também impedia o pretor de

participar dos julgamentos propriamente ditos.

A atuação do pretor era bastante limitada, para além da restrição imposta pelo rígido formalismo próprio do sistema das ações da lei. Não compreendia as suas funções o julgamento do litígio, tal como o faziam o rex e, após, os cônsules. A iurisdictio conferida ao praetor consistia somente no poder de declarar a norma jurídica aplicável no julgamento. Quiçá com uma forma de mitigar a novel delegação da iurisdictio, houve uma divisão da função de julgar os litígios entre dois órgãos, dicotomizando, assim, o processo civil romano em duas fases. Havia uma primeira fase chamada in iure, perante o pretor, e uma segunda denominada apud iudicem, perante o iudex unus, um cidadão romano que atuava como árbitro. Apenas quando o litígio era travado entre romanos e estrangeiros ou o objeto da controvérsia versava sobre posse ou sucessão hereditária, a fase apud iudicem ocorria junto aos tribunais dos recuperatores e centumviri, respectivamente, e não perante o iudex unus. Era na segunda fase do processo, da qual não participava o pretor, que se dava o julgamento.49

Desta forma, a função do Pretor em muito se assemelha a uma das quais está

incumbido o Supremo Tribunal Federal, qual seja, a função de guardião da Constituição

Federal da República Federativa do Brasil. Agindo em conformidade com as Doze

Tábuas, assim como os Ministros com a Carta Magna, os pretores também deveriam

fazer com que a lei fosse aplicada em conformidade com os códigos estabelecidos,

corrigindo e evitando que ocorressem desconformidades legais.

48 NETO, Francisco Caseiro; SERRANO, Pablo Jiménez. Ob. Cit. São Paulo: Desafio Cultural Editora, 2002, p. 26. 49 DIAS, Handel Martins. A Evolução dos Poderes do Pretor na História do Processo Civil Romano. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Intertemas, 2010, pp. 206-225.

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Mas, diferentemente do Judiciário, os pretores não eram nesta primeira fase os

responsáveis pelos julgamentos, cabendo-lhes a função de dizer o direito, sem que lhe

coubesse também a função de aplicar o direito, restringindo-se à conduzir o processo de

forma correta para o julgamento.

A primeira função do pretor consistia justamente na publicação das edicta,

programa que dispunha quais seriam suas finalidades jurídicas diante da administração

da Justiça em sua magistratura. No ano de sua vigência, os pretores podiam redigir as

regras necessárias à manutenção da Justiça quando a lei não o dispusesse ou possuísse

lacunas, bem como diminuir poderes de regras do direito antigo, sem ab-rogá-las.

A interpretação e aplicação das leis estavam ligadas à religião. Como o

fundamento religioso encontra-se nos dogmas, as suas leis não podem (e não devem)

sofrer alterações, mas sim serem complementadas, o que com o passar dos tempos

acaba por contradizer as próprias disposições religiosas.

Em princípio, por ser divina, a lei era imutável. Devemos notar que nunca se revogavam as leis. Podiam se fazer leis novas, mas as antigas subsistiam sempre, por mais contradição que houvesse. O código de Drácon não foi revogado pelo de Sólon: nem as Leis Reais pela das Doze Tábuas. A pedra em que se gravava a lei era inviolável; quando muito, os menos escrupulosos julgavam poder interpretá-la a seu modo. Esse princípio foi a principal causa da confusão que se nota no direito antigo. Leis opostas e de diferentes épocas estavam reunidas, e todas deviam ser igualmente respeitadas.50

Relevante observar que em todo o direito antigo não existia a revogação de leis e

sim a sobreposição de umas sobre as outras, sem que estas, porém, perdessem a sua

validade e sua aplicabilidade nos casos. E se uma lei não podia revogar outra lei, uma

edicta não poderia ter esse efeito.

Embora as edicta não possuíssem força normativa, tendo por objetivo dirimir as

discrepâncias e diferenças que esta possuía, bem como preencher as suas lacunas, assim

passaram a ser vistas com o tempo.

Sem embargo, o fomento do papel do pretor no exercício da iurisdictio no período formular não se resumiu a tal. Ele incorporou uma novel e importantíssima competência, qual seja, a de produzir direitos. Ao assumir o cargo, o pretor publicava o seu programa (edito), por que revelava como atuaria durante aquele ano em que exerceria a pretoria, realizando autêntica atividade normativa. Dessarte, embora sem derrogar as regras do direito quiritário, os pretores passaram discricionariamente a prever direitos que não estavam previstos ou a modificar os já existentes no ius quiritium. Isso permitiu que os pretores, forte no seu poder de imperium, denegassem

50 COULANGES, Fustel de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007, pp. 209-10.

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ações mesmo quando as tutelas jurídicas pretendidas estivessem insculpidas no direito quiritário ou, ao contrário, concedessem ações quando as pretensões não estivessem previstas no ius civile. Esse direito, produzido e elaborado pelo pretor, era chamado de ius honorarium.51

O direito quiritário tornou-se inaplicável devido à extensão do Império. Apesar

de cumprir sua função dentro da Pólis Romana, não possuía o mesmo alcance e os

mesmos efeitos nas mais distantes partes do território.

Por tal razão, com o tempo, as edicta passaram a ter outro significado no direito

romano, assim como os pretores passaram a desempenhar outra função que outrora não

lhes cabia, função essa de dizer o direito e aplicá-lo, ou seja, julgar os casos.

Neste ponto deixamos de conceber os pretores como guardiões do direito e

passamos a vê-los como aplicadores da lei. O problema é que a lei era criada pelos

próprios pretores no início de sua magistratura, pois a função de preparar as edicta e

afixá-las na porta do fórum continuou, mas cumulada com a função de julgamento.

[...] em virtude do alcance destas disposições – que eram na verdade obrigatórias durante o tempo em que perdurasse o imperium do pretor – e das constantes confirmações dos magistrados subsequentes, os editos vieram por se firmar no tempo, adquirindo praticamente força legislativa reconhecida pelo uso [...]52

Esta abrangência e importância que as edicta passaram a ter foi alavancada pela

influência do poder de imperium do pretor. Como verificado, os pretores tinham como

escopo diminuir as lacunas do sistema jurídico romano, o que acabou gerando uma

abertura muito grande na concepção e na aplicabilidade desse direito.

Em outras palavras, a flexibilização do papel do pretor em cobrir as lacunas

tornou as edicta discricionárias. Se o intuito era diminuir a injustiça e propagar a

equidade do direito, a liberdade dos pretores em baixar edicta acabou por configurar-se

como a própria iniquidade e injustiça, já que aplicariam o direito não de acordo com a

lei preestabelecida, mas sim com a sua própria vontade externada nos proclamas.

Essa modificação do sistema romano se deu não pela Lei das XII Tábuas, até

porque nela não havia a determinação dos edicto, e sim por leis posteriores à sua

criação. A Lei das XII Tábuas é datada de 450 a.C., enquanto o primeiro edicto foi

51 DIAS, Handel Martins. Ob Cit. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Intertemas, 2010, pp. 206-225. 52 AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 67.

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criado em 118 a.C.53 Tal fato se deu por conta da atrofia do direito quiritário, de modo

que as edicta passaram a desempenhar o papel de um verdadeiro código.

É importante destacar que com as edicta e os pretores ganhando cada vez mais

força e espaço no cenário jurídico romano, novos rumos passaram a ser tomados para

incutir na sociedade a aplicabilidade das determinações pretorianas como leis, momento

em que surge, no século II, durante o Império de Adriano, o Edictum Perpetuum.

O jurisconsulto Sálvio Juliano ficou encarregado de redigir uma edicta única,

codificando todas as demais, vindo a ser esta, após sua publicação, o Código do

Império, tornando-se obrigatório nos tribunais com força de lei. Aqui cabe distinguir o

edicto perpetuum proclamado pelos pretores quando do início de sua magistratura e o

Edictum Perpetuum de Sálvio Juliano.

O edicto perpetuum dos pretores estava atrelado ao ano de vigência de sua

magistratura, ou seja, eram as proclamas realizadas por eles quando do início de seu

mandato, de modo que se tornava perpétuo para aquele pretor enquanto durasse sua

magistratura, vigorando até o próximo pretor assumir. Além disso, cabia ao pretor

antecedente deixar nas suas edicta determinações para o próximo pretor que o sucederia

ao cargo, fazendo com que estas se perpetuassem com o novo pretor e assim de maneira

sucessiva enquanto o direito pretoriano vigorou.

Já o Edictum Perpetuum de Sálvio Juliano tinha como base a inalterabilidade,

isto é, a codificação realizada a partir de edicta passadas, mas que permaneciam

pertinentes ao Império foi a saída encontrada para não mais haver necessidade de novas

disposições legais a cada ano, de acordo com as mudanças dos pretores e de suas

vontades. Este período do Império Romano, chamado de Pós-Clássico, findou o direito

pretoriano, uma vez que as edicta unificadas passaram a vigorar com caráter perpétuo,

não no sentido eterno, mas, sim, de inalterabilidade.

O que Adriano pretendeu, portanto – acabando por consegui-lo –, foi dar ao edito de Sálvio Juliano o caráter de perpetuidade, de Código do Império; para tanto, foi o edito sancionado por um senatus consultus, que o tornou obrigatório nos tribunais. A partir de então, ainda que não houvesse perdido o ius edicendi, acabaram os magistrados por sofrer sensível restrição na sua liberdade de redigir e baixar editos, pois as normas contidas nestes deveriam se ater às regras gerais

53 Neste sentido: “Gaio afirma que à época da Lei das XII Tábuas e durante o largo tempo que se seguiu à sua vigência, o pretor ainda não baixava editos; estes surgiram muito mais tarde, posteriormente inclusive à chamada Lei Hortênsia (468 ab. U.C./286 A.C.), e somente após o abrandamento do primitivo critério onde imperava a unidade legislativa; com efeito, a ação inovadora dos pretores aparece e ganha incremento unicamente a partir da Lei Aebutia (630/605 ab. U.C./151/124 A.C.); ao que consta, o mais antigo edito conhecido seria o do pretor Rutilius, datando de 118 a.C.”. (AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, pp. 63-4).

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consagradas pelo edito de Sálvio Juliano; limita-se consideravelmente sua independência, não lhes sendo mais faculdade revogar, por nova disposição, norma contida naquela compilação. Em tais condições, a função criadora do direito, característica de sua autoridade e poder, vai se debilitando, pouco a pouco, até sua completa extinção.54

A necessidade de petrificar o direito surge do mesmo fato de concentrar, nas

mãos do governante (no caso, o Imperador), o poder decorrente do próprio direito. Se é

o direito aquele que fundamenta, adjunto à religião, o poder estatal conferido ao

imperador, este deve ter o controle sobre o direito, demonstrando a sua autoridade.

Aliás, a reunião da legislação produzida em Roma foi empregada em outras

oportunidades, como podemos perceber com a codificação realizada durante o reinado

de Justiniano.

As Constituições Imperiais se tinham sobreposto, formando de César Augusto a Justiniano, de Ocidente a Oriente, um confuso amontoado legislativo. Sob os auspícios de Justiniano, o jurisconsulto Treboniano realizou o trabalho de seleção, catalogação e codificação das leis imperiais, que resultou no Codex Justinianeus (Código de Justiniano).55

O Corpus Juris Civilis foi considerado um marco da história do direito romano, devido

não apenas sua abrangência, mas também por conta da precisão com que um amontoado de

normas esparsas se tornou uma precisa codificação legal.

Um ponto significativo deve ser considerado sob a ótica da identificação

analógica das edicta com as súmulas vinculantes, guardada as devidas proporções

temporais e de alcance jurídico, mas ainda assim determinante para a compreensão

posterior da análise que será realizada sobre o instituto constitucional brasileiro.

Quando Sálvio Juliano reúne as edicta tendo como intuito codificá-las, os

pretores perdem seu poder de imperium, isto é, cada vez mais são podados na criação de

novos direitos, pois devem obedecer às designações contidas no Código do Império.

Neste ponto, a codificação acaba com a discricionariedade dos atos dos pretores, bem

como impedem que novas edicta surjam a cada ano. Por outro lado, ao direcionar todos

os magistrados ao cumprimento estrito do Código do Império, acabou também com a

liberdade decisória que estes possuíam para julgar os casos de acordo com as

determinações legais.

A ação de Adriano funcionou como uma faca de dois gumes. Enquanto nas

questões procedimentais os pretores foram aos poucos compelidos a não proclamarem 54 AZEVEDO, Luiz Carlos de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, pp. 68-9. 55 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 82.

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inúmeras edicta, de outro o processo ficou petrificado, de modo que os julgadores não

mais possuíam liberdade para decidir. É, pois, a função automática do magistrado, que

Hans Kelsen identifica como sendo a diminuição de suas liberdades:

[...] o juiz está reduzido a uma função puramente automática apesar da infinita diversidade dos casos submetidos ao seu diagnóstico, tem sempre e por toda parte soçobrado ante a fecundidade persistente da prática judicial. Ao êxito aparente e transitório dos autoritarismos sucederá, sempre, a reafirmação das liberdades.56

Isto é importante de se ressaltar, vez que a função criadora do direito saiu das

mãos dos magistrados, que ficaram novamente apenas com a função de julgar, ao

mesmo tempo que essa função considerada típica estava atrelada ao estrito cumprimento

das disposições do Edictum Perpetuum, o que contribuiu para solidificar e petrificar o

direito romano.

Cabe ainda ressaltar que os jurisconsultos tiveram importância capital no

desenvolvimento do sistema jurídico romano, desde sua fundação na Lei das XII Tábuas

até a codificação do Corpus Juris Civilis e do Edictum Perpetuum, desenvolvendo

funções que iam além de criar o direito e fazer justiça, mas também uma função

pedagógica, desde perpetuar o direito e sua classe até servir de escola doutrinária e guia

àqueles que encontravam-se nos mais distantes locais do Império.

Os jurisconsultos romanos não limitam sua atividade à prática judicial, em que aconselham, na qualidade de peritos, as decisões dos prestadores para fazer justiça: eles desenvolvem com muita frequência uma obra científica e pedagógica. O ensino do direito representa papel essencial na constituição de um corpo de teoria do direito. Esse ensino responde a várias necessidades: inicialmente, àquela de formar discípulos que vão perpetuar a profissão; em seguida, àquela de defender eventualmente uma “escola” doutrinária particular contra outra corrente (houve assim uma rivalidade entre a escola dos Sabinianos e a dos Proculianos); enfim, àquela de servir de guia para os praticantes do direito, exilados nos confins do Império, em proveito dos quais os mais ilustres jurisconsultos redigem verdadeiros tratados práticos de direito.57

A petrificação e sua relação com os povos conquistados deve ser vista e

entendida com muito cuidado. Buscando pelas fontes históricas, é de conhecimento

geral que os romanos nunca tiveram apreço pela cultura, organização e estrutura dos

56 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2ª Edição, 2007, p. XVIII. 57 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 102.

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povos conquistados, muito pelo contrário, impunham todo o seu aparato já devidamente

solidificado aos mesmos, destruindo quaisquer indícios do antigo povo ali existente.

O próprio caráter do Império Romano imprimia essa característica, já que

primavam pela imediatidade, isto é, por tudo que pudesse ser colocado de forma rápida

na ordem prática, seja ela qual for, o que acaba por incluir não somente as conquistas,

como também seu pensamento político e jurídico.

O imediatismo da vida cotidiana leva o romano para as extraordinárias realizações de ordem prática, para a conquista de outras terras, para a imposição de suas leis no mundo, ao mesmo tempo que impele à estruturação ordenada, sistemática de imponente monumento jurídico – o Corpus Juris Civilis –, de cunho casuísta, desvinculado da desejável fundamentação filosófica.58

Uma vez conquistado, o novo povo se via subjulgado a um sistema totalmente

estranho ao que concebiam antes. Este processo de integração dos povos conquistados

recebeu a nomenclatura de romanização, já que passavam de sua vida “bárbara” ao

romanismo e passavam a ser considerados civilizados (lembrando que qualquer coisa

fora e marginal ao Império – incluindo as pessoas – era considerada não-civilizada).

Em um mundo no qual a codificação legal não era a regra, mas sim a exceção,

este fato se mostra como sendo de importância capital, vez que estes povos, lastreados

por um sistema pautado no direito natural, passavam a ser inseridos em uma nova

conjuntura na qual o sistema letrado-legal era dominante, de modo que a petrificação

pelas edicta modificava essa visão costumeira desses povos, que são atingidos por seu

alcance, vez que integrantes do Império.

A romanização foi um processo duro em que o uso da força do volumoso

exército imperial se fez presente. A imposição do modus operandi diverso àquele

concebido por estes povos era garantido desta maneira e com isso também a

perpetuação do sistema romano, cada vez mais intrincado no orbe político, social e

jurídico do Império.

Era o exército romano e seguidores que garantiam a segurança dos conquistados, graça a presença constante das legiões nas terras agora romanas, onde cada povo foi aprendendo a língua, as leis, os costumes e as tradições dos romanos, tal assertiva denota que constituiu o império romano um processo de integração por meio da força; [...] A expansão Romana ocorreu de forma impositiva, onde os Romanos conquistaram as diversas nações forçadamente, impondo sua moeda,

58 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 12ª Edição, 2012, p. 99.

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sua forma governamental, sua estrutura judiciária, dentre vários outros fatores. 59

Devemos nos atentar para os dois pontos acima tratados, pois eles nos levam à

uma deficiência inerente ao Império Romano. Diferente da Grécia, voltada para as

questões humanas e os pensamentos filosóficos, Roma em quase nada se preocupou

com essas peculiaridades, já que seu interesse não se encontrava no desenvolvimento

filosófico, mas sim na expansão de seus domínios.

A filosofia, seja ela jurídica ou suas outras ramificações, não encontrou campo

fértil em Roma, que na maioria dos casos se limitou a uma “cópia” do modelo grego já

existente. O imediatismo não necessitava de pensamentos rebuscados voltados ao

homem e sua busca incessante pela grandeza e expansão dos domínios não comportava

outra coisa que não o uso da força como medida de garantia de seu ideário básico.

De fato, o caminho que a filosofia jurídica romana tomou, desde a Lei das XII

Tábuas até o Codex de Justiniano, passando por evidência pelos pretores e suas edicta,

tinha como propósito não a produção e expansão do campo do pensamento humano,

mas sim de se estabelecerem como força dominante territorial, de modo que toda e

qualquer instituição que ajudasse neste sentido era válida, o que em alguns aspectos se

refletiu no modelo latino (como o português transpassado ao Brasil).

Diversamente do que ocorre na Grécia, a filosofia não encontra, em Roma, campo fecundo para grandes desenvolvimentos e, muito menos, para a criação. Prático, objetivo, imediatista, concretista, administrador, por excelência, o romano não se deixa arrastar para a especulação filosófica, caracterizando-se, por isso, as produções do engenho latino pela ausência das grandes abstrações e pela elaboração sistemática de doutrinas diferentes a uma dada ordem de fatos.60

Em resumo, a vida “filosófica” do romano era dominar, dominar e dominar.

Tudo que estava voltado para facilitar esta prática era muito bem-vindo. De outro lado,

por parte dos povos dominados, este modelo causava um choque com suas convicções,

pois ainda que considerados “não-civilizados”, isto não significava que não tinham um

sistema para o qual existiam.

Não significa, de igual maneira, que não produziam, tal qual os romanos, uma

verdadeira filosofia pautada não no imediatismo, mas sim voltada para o

59 GUERRERO, Ramiro Anzit. O Império Romano Considerado Como o Primeiro Processo de Integração Regional: Voluntário ou Forçado? Análise do Conteúdo Jurídico e Histórico. Buenos Aires. Disponível em <http://www.anzit-guerrero.net/admin/pdf/557938932.pdf>. Acesso em: 04/07/2014. 60 CRETELLA JÚNIOR, José. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 12ª Edição, 2012, p. 99.

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desenvolvimento do pensamento humano, político, econômico e jurídico. Essas

concepções eram ignoradas e destruídas para implantação do ideário romano que, por

mais intrincado que pudesse ser, tinha como intuito a proliferação e continuidade do

Império, petrificando o sistema em torno deste modelo.

Disciplinado, utilitarista, guerreiro, metódico, trabalhador, imediatista e prático, o romano serve a um ideal bem nítido dominar o mundo e impor sua civilização, fato este posto em relevo, na Eneida, pelo poeta Virgílio, através do vaticínio do herói da epopeia: “Lembra-te, romano, de submeter os povos a teu império. Tua missão é a de impor as condições de paz, poupar os vencidos e abater os soberbos” (Eneida, Canto VI, versos 851 a 853).61

Pensando na petrificação das edicta para os próprios romanos, impossível não

notar como o choque atinge as culturas desses novos povos que passam a integrar o

Império pela força. O que antes encontrava-se no direito natural passa a estar codificado

e, em alguns casos, petrificado e imutável62 pelo sistema pretoriano, fazendo com que se

estabelecesse uma unicidade legal pelo Império (incluindo os novos povos),

contribuindo para o processo de romanização e dominação.

Essa centralização do poder deve-se à mudança ocorrida entre os tempos da

República para o Principado, momento no qual as transições entre um modelo e outro

formaram uma terceira via surgida desta relação dialética, na qual se estabeleceu um

amplo domínio estatal no sentido de manter a unicidade do Império, ou seja, dos povos

romanos e dos novos povos conquistados.

O estabelecimento do Principado foi um momento marcado por uma nova definição política, temporal e espacial de Roma, a qual naturalmente implicou em novos tipos de relacionamento entre a Urbs e o orbs terrarum (Nicolet 1983: 163). Representou o início de um sistema de domínio marcado pelo militarismo; pela centralização imperial evidenciada pela intervenção imperial na elaboração do Direito, na interpretação da lei e na administração da justiça; pela centralização administrativa marcada pela criação de um corpo de funcionários imperiais e de novas secretarias e curatelas, as quais formavam um aparelho de Estado que, além de valorizar o documento escrito, substituiu o contato físico entre os cidadãos e as instâncias de poder.63

61 CRETELLA JÚNIOR, José. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 12ª Edição, 2012, p. 100. 62 Neste sentido: “[...] o Império Romano representou uma experiência observável de interação cultural sobre uma vasta área territorial, simbolizando uma ordem mundial fundamentada em configurações jurídico-políticas e morais, concebidas como eternas e necessárias para garantir a paz e a justiça”. (MENDES, Norma Musco. Império e Romanização: “Estratégias”, Dominação e Colapso. In: Brathair 7 (1), 2007: 25-47. Disponível em <http://www.julianus.org/textos/NMendes_imperio_romaniz.pdf>. Acesso em: 05/07/2014). 63 MENDES, Norma Musco. Ob. Cit. In: Brathair 7 (1), 2007: 25-47. Disponível em <http://www.julianus.org/textos/NMendes_imperio_romaniz.pdf>. Acesso em: 05/07/2014.

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A imposição das formas romanas foi preponderante para o sucesso do Império,

bem como para o desenvolvimento de muitas instituições jurídicas que influenciaram

todo o sistema latino nas esferas culturais, políticas, econômicas e, claro, jurídicas,

modelos que passaram por séculos de transformações e que ainda hoje carregam muitos

dos ideários dos tempos do Império Romano.

1.4 CONTRATUALISMO E REVOLUÇÕES LIBERAIS NO ESTADO MODERNO

O período imediatamente posterior à queda do Império Romano foi por muito

tempo chamado de obscuro, quando teoricamente a razão humana deu lugar ao

ostracismo focado na religião e seus domínios. A Idade Média ficou por anos conhecida

como Idade das Trevas, significação esta já refutada pelos historiadores e pesquisadores

do período.

Apesar de sua importância histórica, até memo para compreensão das

modificações e adaptações realizadas nos códigos e no direito romano como um todo64,

consideramos desnecessário tecer explicações mais rebuscadas, já que não essenciais à

estrutura específica deste trabalho.

De igual forma, mesmo sendo preponderante ao lançar as bases da construção do

Estado Ocidental, não consideraremos a Renascença nestes estudos, ainda que nosso

foco esteja também nas questões estatais.

Desta feita, passados a Idade Média e o período renascentista, que trouxe

consigo um campo perfeito para a procriação de novas ideias e pensamentos que aos

poucos se alastraram pela Europa, o Iluminismo atingiu diretamente a Inglaterra e a

França, principais pontos dessas mudanças.

O ideário humanista do período fez com que o pensamento não mais se

concentrasse no divino, campo predominante na Idade Média com a doutrinação

católica, mas sim voltou-se para a racionalização do homem, ou seja, a razão colocou o

homem e não deus no centro do universo.

64 “Na Alta Idade Média (séculos XI e XII), registrou-se um movimento de releiura das fontes romanas, com os chamados glosadores – Irnécio e sua ‘Escola de Bolonha’ –, com destaque para Búlgaro, Martinus, Hugo e Jacob. Na sequência, advieram as glosas de Accursius, Cino de Pistoia e Bpartolo, que concentraram esforços no sentido de adaptar os textos romanos aos direitos emergentes e aos costumes locais. Nesse ponto, observa Paulo Dourado de Gusmão, estava ‘intorduzido o direito romano na Europa e fundada a jurisprudência ocidental’”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 18-9).

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O liberalismo, mais do que uma política econômica, se proliferou em todos os

setores do pensamento, atingindo de forma significativa as questões políticas e sociais

que se inflamaram e colocaram em voga a até então intocável estratificação da

sociedade, sobretudo no seu modus operandi, isto é, na forma de governo e na

disposição das classes dominantes e dominadas.

As Revoluções Inglesas colocaram em evidência o absolutismo reinante até

aquele momento, de modo que o Estado, antes soberano, foi aos poucos tendo sua

posição intocável abalada, reverberação essa que atingiu também as classes dominantes

e pouco a pouco se espalhou pela Europa.

Com exceção da Grã-Bretanha, que fizera sua revolução no século XVII, e alguns Estados menores, as monarquias absolutas reinavam em todos os Estados em funcionamento no continente europeu; aqueles em que elas não governavam ruíram devido à anarquia e foram tragados por seus vizinhos, como a Polônia. Os monarcas hereditários pela graça de Deus comandavam hierarquias de nobres proprietários, apoiados pela organização tradicional e a ortodoxia das igrejas e envolvidos por uma crescente desordem das instituições que nada tinham a recomendá-las exceto um longo passado.65

Pela ideia de contrato (ou pacto), o ideal político se viu às voltas com inúmeros

novos conceitos que, diferentemente daquilo existente até então, propunham uma

ruptura com os modelos arcaicos e arraigados por um milênio na sociedade feudal.

Em um primeiro momento, encontramos ainda uma forma que procura conciliar

o novo com o velho, em que o contrato da sociedade se estabelece com o Estado

Soberano e absoluto, que passa a tomar as decisões e os rumos gerais, tirando todos os

seres humanos do seu estado natural de guerra. Esta é, estritamente falando, a

concepção hobbesiana do pacto entre a sociedade e o Estado.

Mas quando a ideia de contrato social se encontra com o modelo liberal

idealizado por John Locke temos se não a total e completa ruptura, um avanço

significativo para a formação do pensamento humano, o que com certeza influiu

também para a fomentação do modelo político.

O iluminismo trouxe consigo o ideal do humanismo, enquanto o racionalismo

nascente de René Descartes, lançou as bases para uma nova teoria, que atingiu seu ápice

já no século XIX.

A origem desse movimento deve ser situada na Inglaterra, depois na Alemanha, alcançando, por fim, a França, a Itália, a Espanha e Portugal. Daí ganhou as duas Américas, influenciando vários

65 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 43.

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movimentos do séc. XVIII, como, por exemplo, a Inconfidência Mineira e a Independência dos Estados Unidos. O Humanismo antropocêntrico do séc. XVI, instigado pelas novas descobertas que questionavam o geocentrismo, levou ao racionalismo do séc. XVII, com René Descartes (1596-1650) e sua dúvida metódica, reduzindo a realidade ao pensamento matemático com tabula rasa de toda a tradição religiosa e política fundada em Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás.66

A partir do momento em que o foco de observação sofre essa mudança, o lócus

do homem integra uma realidade diferente, na qual as questões sociais e políticas

passam a fazer parte de sua realidade diária.

Este choque, por evidência, atinge toda a sociedade, uns mais e outros menos.

Neste processo de reconfiguração social, política e econômica, a estrutura piramidal

sofreu abalos que posteriormente serão sentidos no seu todo, desde o ápice até a sua

base, fomentando as ideias e modelos que regem a contemporaneidade ocidental.

É das classes intermediárias da estratificada pirâmide social que surgem os

responsáveis pela maioria dessas mudanças. A ascensão da burguesia inglesa e,

sobretudo francesa, reflete exatamente esse momento e inaugura uma nova fase que

culminaria nas revoluções liberais.

De suma importância a obra de Jean-Jacques Rousseau e do seu contratualismo

humanista, que influencia a formação do pensamento francês e introduz o combustível

que faltava para os movimentos burgueses de tomada do poder.

Temos que considerar que é com a liderança dessa classe que duas das principais

mudanças ocorridas nos séculos XVIII e XIX e que ainda hoje influenciam nossas vidas

cotidianas foram realizadas. A primeira delas foi a Revolução Francesa (1789), com os

ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, quando a burguesia francesa toma o

poder da monarquia. A ideia de soberania está intimamente ligada com o período.

Já a segunda ocorreu na Inglaterra, com a Revolução Industrial, na qual

utilizaremos a abordagem consagrada pelo historiador Eric Hobsbawm67 de subdividi-la

em dois momentos cruciais, quais sejam: (i) a Primeira Revolução Industrial (entre 1780

e algum momento até 1840), na qual o processo de manufatura foi inserido na produção;

e (ii) a Segunda Revolução Industrial (entre 1840 e 1870), com a utilização das

máquinas à vapor (sobretudo barcos).

66 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, pp. 208-9. 67 HOBSBAWM, Eric. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

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O que significa a frase "a revolução industrial explodiu"? Significa que a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. Este fato é hoje tecnicamente conhecido pelos economistas como a "partida para o crescimento auto-sustentável".68

Após a Revolução Francesa e a queda de Napoleão Bonaparte, outra figura surge

como importante base na construção do pensamento político ocidental, principalmente

com o advento das chamadas “monarquias constitucionais”, de modo que Charles de

Montesquieu, muito influenciado pelos movimentos ingleses e pelo ideário liberal,

doutrina aquilo que guiará a maior parte do ocidente nos próximos séculos.

Todos esses impulsos de transformações devem ser considerados na sua

completitude e complexidade para analisarmos o desenvolver das coisas no Brasil, já

que mesmo sendo Colônia de Portugal e posteriormente Império, de alguma forma foi

atingido e influenciado pelas novas teorias europeias, razão pela qual seu estudo é

preeminente para compreensão do trabalho.

1.5 THOMAS HOBBES E O ABSOLUTISMO DO ESTADO SOBERANO

Thomas Hobbes é contratualista e um dos primeiros a pensar em uma forma de

governo baseada num tipo de pacto social com o Estado por um sistema representativo.

Para ele, o homem é mau por natureza e deve ser regrado para que haja convívio em

sociedade, aplicando-se o mesmo pensamento a toda sociedade. Existem, assim, duas

formas de leis para Hobbes: as leis da natureza e as leis civis.

As leis da natureza são aquelas em que não existe sociedade e o homem vive em

constante estado de natureza (o homem sem o convívio social vive em constante estado

de guerra, não se permitindo regramentos – o homem é o lobo do homem). O direito de

natureza, portanto, não cabe no pensamento hobbesiano, vez que neste estágio o homem

não está apto a se regrar, isto porque o regramento deve advir do Soberano enquanto

representante do Estado e não da natureza do ser humano.

É a partir da ruptura do estado de natureza que surge o direito natural e as leis

civis, que são aquelas criadas pelo Estado para unir os homens em sociedade. Segundo

68 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 50.

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Hobbes, o homem, através de um pacto (contrato) social abre mão de sua liberdade para

que o Estado possa gerir a vida de todos.

O que essa lei de natureza – ou de razão – inspira nos homens é a ideia de um contrato fundador do Estado e da sociedade civil. Esse contrato designa a convenção pela qual os homens, por um consentimento mútuo, abrem reciprocamente mão de seus direitos naturais sobre todas as coisas e conferem seu poder a um soberano (monarca ou assembleia, que por sua vez pode ser aristocrática ou democrática).69

Importante mencionar que Hobbes não vê somente uma única pessoa sendo o

governante. Ele considera o Estado Soberano e é através do pacto social que determina

a forma como se constituirá, se por uma única pessoa ou por assembleia de pessoas

tendo por escopo o regramento social. O Estado representa os interesses de todos os

homens que abriram mão de suas liberdades para que fossem geridos por um terceiro e

por isso é absoluto.

Nele, a figura do Soberano é única e possui todo o poder, podendo agir da

maneira que melhor aprouver para garantir a aplicabilidade da lei, pois possui a

liberalidade concedida pelo pacto social. Nada para o soberano é ilegal, porquanto está

acima da lei. O homem não é submisso ao Estado, mas sim o seu fundador. Quando os

homens se unem e formam o pacto social não vinculam-se entre eles, mas sim a um

terceiro, o Estado, que se torna o representante destes.

Por este ponto, vemos que inicialmente o poder pertence ao povo, mas no

momento em que ele dispõe de sua liberdade para fundação do Estado-Leviatã, por

meio do pacto social, automaticamente estará abrindo mão desse poder, passando-o ao

Estado. O poder se torna inteiramente do soberano.

Como o Estado é uno e soberano é ele o único com o poder de império de dizer

o direito e aplicá-lo, de modo que a representatividade advinda do pacto social lhe

legitima para agir em nome da sociedade e dos homens que abriram mão de suas

liberdades individuais em busca da segurança estatal.

Somente o Estado tem o poder de dizer o direito: a soberania se mede por este poder de definir as “regras e medidas”. Somente o Estado tem o poder de comandar, já que a lei é um mandamento. Ora, uma vez que aquele que comanda não o pode fazer senão “de direito”, trata-se de demonstrar absolutamente a legitimidade do poder, o fundamento que torna válida a lei. Esse poder, que é um poder absoluto e soberano, summum imperium, origina-se no contrato.70

69 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 146. 70 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, pp. 140-1.

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Thomas Hobbes não concebeu a separação das funções do Estado, pois tal

situação ensejaria a descentralização do poder do Estado Soberano. Mostraria um

enfraquecimento do Estado, não sendo necessária que a separação ocorra para que se

tenha a aplicação da justiça, que será sempre aplicada pelo Estado Soberano.71

Há, contudo, representantes do Estado para regular a organização da sociedade.

Tais representantes são chamados de Ministros Públicos do Poder Soberano e possuem

a função de ser os olhos do governante, seja ele uma única pessoa, seja uma assembleia

geral, servindo à administração dos negócios públicos, incluindo neste caso os ministros

públicos responsáveis pela administração judicial.

Também são ministros públicos aqueles a quem é concedido o poder judicial. Porque nas suas sedes de justiça representam a pessoa do soberano, e a sua sentença é a sentença dele. Porque, conforme foi declarado, todo o pod er judicial está essencialmente anexado à soberania, portanto todos os outros juízes são apenas ministros daquele ou daqueles que têm o poder soberano. E todas as controvérsias são de duas espécies, a saber, de fato e de direito, e assim são também os julgamentos, uns de fato e outros de direito. De modo que para julgar a mesma controvérsia pode haver dois juízes, um de fato e outro de direito.72

Apesar de o Poder do Estado ser soberano, os ministros públicos assumiam

papel importante na manutenção e organização da sociedade. Não há como conceber

que apenas uma pessoa ou uma assembleia de pessoas gerissem todas as esferas da vida

privada e pública, de modo que da mesma maneira que o pacto permite a representação

do governante como figura estatal, o governante, por sua vez, possui seus representantes

para auxiliá-lo, sempre agindo em nome do poder do Estado.

Isso ocorria vez que o próprio Estado era o único ente responsável pelas leis, não

estando sujeito a elas e, portanto, sendo absoluto neste aspecto. O poder do Estado está

na onipotência do soberano, que nada mais é do que o resultado da soma dos poderes de

todos os indivíduos em sociedade.

A única maneira de instituir um poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante o seu próprio

71 Neste sentido: “O estatuto do sistema jurídico-político hobbesiano não é assimilável à tese positivista da neutralidade axiológica do sistema do direito. A tese de Hobbes permanece bem mais política que jurídica: ele defende uma teleologia das leis, uma vez que a essência das leis e das instituições estadistas deve ser definida pela visão da paz. Em suma, além de todo o o relativismo histórico, o Estado deve visar em tudo e sempre a paz, quer dizer, a conservação e a segurança dos indivíduos.” (BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 142). 72 HOBBES, Thomas. Leviatã – Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástica e Civil. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, pp. 206-7.

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labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como portador de suas pessoas, admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que assim é portador de sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns; todos submetendo desse modo as suas vontades à vontade dele, e as suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens.73

Aqui ocorre uma espécie de delegação de poderes em que cada indivíduo pactua

com os demais cidadãos e criam o contrato no qual o Estado será o responsável pela

gerência da vida em comum. “É como se cada um dissesse ao outro: autorizo este

homem ou esta assembleia, e entrego-lhe meu direito de me governar, com a condição

de que tu lhe abandones teu direito e autorizes da mesma maneira todas as ações

deles”.74 A autorização é a representação.

O absolutismo hobbesiano se baseia no fato de que o pacto social engendrado

pelos cidadãos da sociedade em prol de sua própria configuração confere ao Estado o

poder de ação para proteção dos direitos dos cidadãos. Embora o Estado esteja acima da

lei, ele não o está por ser maior do que ela, mas sim porque os próprios homens, ao

decidirem pelo contrato social, nomearam uma pessoa ou a assembleia de pessoas como

responsável por editar, executar e julgar o direito, o tornando um ser absoluto.

Para Hobbes todas as concepções surgem de forma absoluta, isto é, para se

chegar ao Estado Absoluto, a partir da representação advinda da sociedade, outras

questões absolutas devem ser vistas. Eis que o estado de natureza se constitui na

liberdade absoluta do homem, egoísta e individualista, em constante guerra consigo

mesmo, de modo que para se alcançar o verdadeiro Estado, essa liberdade ilimitada

deve ser renunciada e a renúncia deve ser de forma absoluta, sendo esta a única maneira

de o Estado se formar absoluto, atingindo esse estágio quando todos os homens, pela

representatividade, buscam a segurança e legitimam o poder do Estado.

A via hobbesiana de total renúncia a todo direito individual no contrato não é senão um dos múltiplos possíveis do contrato social. Hobbes, por sua vez, desenha um paradigma monológico: o contrato é único, fixo e não pode consistir em outra coisa senão uma

73 HOBBES, Thomas. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 147. 74 HOBBES, Thomas. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 147.

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subordinação absoluta e incondicional dos indivíduos à autoridade do Estado-Leviatã.75

Diferente do que houve na França Absolutista, em que o Estado como carro

chefe se colocava acima da população não por conta de um pacto realizado entre todos

os cidadãos para que assim o Monarca estivesse acima de todos. Não há

representatividade no modelo francês, enquanto para Hobbes a figura do representante

ou da assembleia era absoluta enquanto do exercício das funções políticas.

Assim, se conclui que diferentemente do absolutismo francês, em que o Monarca

é considerado o ser absoluto, como na famosa frase “O Estado Sou Eu”, no pensamento

de Hobbes o poder é considerado como sendo absoluto, sem o qual o Estado não pode

fazer aquilo para o que foi designado pelo pacto.

É, portanto, a representatividade que diferencia o absolutismo francês (e de

outras nações que assim se constituíram) do absolutismo estatal conceituado por

Thomas Hobbes. Enquanto no primeiro caso o Estado é absoluto por mera liberalidade

do soberano, no segundo caso, preconizado por Hobbes, o Estado se torna absoluto pela

vontade dos cidadãos, que conferem esse poder ao seu representante.

Não se trata de simples conjectura ou mera discussão semântica. São dois pontos

que, apesar de tratados igualmente como “Estados Absolutos”, possuem uma distinção

conceitual de suma importância, sobretudo pelo fato corrente de atribuírem à Hobbes as

bases conceituais para o absolutismo, quando na verdade este jamais identificou a figura

do Estado soberano sem a representatividade conferida pela sociedade, o que difere

totalmente do Estado soberano francês que não possui esta característica.

Enquanto no absolutismo o poder é conferido de forma tácita ao Estado e ao

soberano, que a partir de então passa a dispor deste como melhor entender, o Estado

absoluto de Hobbes baseia-se na necessidade de representatividade governamental, sem

a qual seria impossível pensar que o Estado, dentro de suas atribuições, é absoluto

frente à sociedade, pois é esta que lhe conferiu poder para tanto.

Com isso, só há justiça em sociedade e como o Estado é a única fonte das leis,

somente a ele cabe a administração da justiça. Os homens dispersos e em estado de

natureza não possuem justiça. Somente o Estado é capaz de aplicar a justiça como ela

deve ser, com a permissão dada pelo homem através do contrato social.

75 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 140.

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1.6 JOHN LOCKE E OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO MODERNO

John Locke também possui sua doutrina voltada para o contratualismo, sendo

diferente, contudo, da estudada em Thomas Hobbes. Isto porque, em seu entendiemnto,

o Estado é o guardião da justiça e, como tal, deve exercê-la de acordo com os preceitos

estabelecidos, estando também sujeito às determinações legais, de modo que “a

passagem ao estado civil se efetua pela convenção voluntária de um contrato, que não

rompe, como o de Hobbes, com o estado de natureza, mas ao contrário permite que este

cultive mais eficazmente a paz que nele já reina em parte.”76

Portanto, para Locke, é importante que as leis deem liberdade aos cidadãos

para contestarem, de alguma forma, as ações tomadas deliberadamente, desde que haja

fundamento para tais alegações, uma vez que o Estado não possui o Poder Absoluto

devendo seguir as suas funções de acordo com as leis.

Para compreender tal concepção é importante, antes de mais nada, situar

historicamente o filósofo. Locke viveu na Inglaterra do século XVII, tendo sido

contemporâneo à Revolução Inglesa de 1668, que implementou, diferente da França

Absolutista, um eficaz sistema de direitos do povo e do Parlamento sobre a Coroa.

A contextualização é importante para compreensão das teorias políticas, isto

porque, conforme já verificado com Marc Bloch77, nunca se explica um fenômeno

histórico fora de seu tempo e contexto. Basta verificar que, enquanto Locke possui

doutrina voltada à liberdade e prevalência de direitos, Hobbes centra suas ideias no

absolutismo (através da representatividade) e apoio à monarquia, situações vistas a

partir de suas visões dos Estados que integravam.

Democrata e liberal, enquanto Hobbes era absolutista e favorável à monarquia, Locke justifica consideravelmente em sua obra a evolução política da Inglaterra de seu tempo. Contra Hobbes, o ponto de partida lockiano consiste em sustentar que o homem é naturalmente social: o estado de guerra hobbesiano lhe parece imaginário.78

Locke estudou o Estado e deu forma ao que mais tarde Montesquieu

estruturaria ao conceber a existência de uma tripartição das funções dentro do Estado

responsável por gerir a sociedade.

76 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 187. 77 BLOCH, Marc. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 60. 78 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 146.

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Existem, então, três funções, sendo elas: Legislativo, Executivo e Federativo na

comunidade civil, não concebendo o Judiciário especificamente como um órgão do

Estado, pois sua função estava diretamente atrelada ao Legislativo, diferente do

Executivo, que deveria estar separado. No “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil”,

prescreve Locke:

O poder Legislativo é aquele que tem competência para prescrever segundo que procedimentos a força da comunidade civil deve ser empregada para preservar a comunidade e seus membros. [...] Mas como as leis que são feitas num instante e um tempo muito breve permanecem em vigor de maneira permanente e durável e é indispensável que se assegure sua execução sem descontinuidade, ou pelo menos que ela esteja pronta para ser executada, é necessário que haja um poder que tenha uma existência contínua e que garanta a execução das leis à medida em que são feitas e durante o tempo em que permanecerem em vigor. Por isso, frequentemente o poder Legislativo e o Executivo ficam separados. Em toda comunidade civil existe um outro poder, que se pode chamar de natural porque corresponde ao que cada homem possuía naturalmente antes de entrar em sociedade. Este poder tem então a competência para fazer a guerra e a paz, ligas e alianças, e todas as transações com todas as pessoas e todas as comunidades que estão fora da comunidade civil; se quisermos, podemos chamá-lo de federativo. Uma vez que se compreenda do que se trata, pouco me importa o nome que receba.79

Locke considera que o Legislativo deve ter seu funcionamento limitado em

pouco tempo, somente para a confecção das leis, devendo por isso existir o Executivo,

responsável por garantir a execução das leis elaboradas pelo Legislativo, tendo assim

diferentes atribuições no Estado legalista e agindo separadamente.

Identificadas as funções do Estado, Locke salienta a importância de cada uma

na sociedade. De acordo com a interpretação do trecho acima, percebe-se que tanto o

Legislativo como o Executivo são funções criadas pela sociedade para gerir o Estado,

enquanto a função Federativa é anterior ao próprio Estado, pois não advém das leis ou

de cartas políticas, mas sim do ser humano, existentes antes mesmo deste nascer, sendo

um direito natural de todo e qualquer homem estando diretamente ligada à questões

como paz, guerra e alianças, sendo temas difusos e que interessam toda a coletividade.

Estes dois poderes, Executivo e federativo, embora sejam realmente distintos em si, o primeiro compreendendo a execução das leis internas da sociedade sobre todos aqueles que dela fazem parte, e o segundo implicando na administração da segurança e do interesse do

79 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Editora Vozes, 4ª Edição, 2006, pp. 170-1.

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público externo, com todos aqueles que podem lhe trazer benefícios ou prejuízos, estão quase sempre unidos.80

Embora parecidos, há uma distinção entre o Executivo e Federativo. Enquanto

o primeiro tem sua atuação na sociedade interna, o segundo está ligado aos interesses

desta mesma sociedade no âmbito externo. Seria hoje o que se considerada a soberania

do Estado frente às demais nações.

Isto não significa, porém, que estes devem ser exercidos por pessoas diferentes,

uma vez que requer a força da sociedade civil para sua existência e, ao separá-los em

mãos distintas, não sendo a mesma pessoa a responsável pela aplicabilidade e garantia

dessas leis, estaria a força pública do Estado tendo comandos diferentes, o que abalaria

a ordem jurídica vigente.

Embora, como eu disse, os poderes Executivo e federativo de cada comunidade sejam realmente distintos em si, dificilmente devem ser separados e colocados ao mesmo tempo nas mãos de pessoas distintas; e como ambos requerem a força da sociedade para o seu exercício, é quase impraticável situar a força da comunidade civil em mãos distintas e sem elo hierárquico; ou que os poderes Executivo e federativo sejam confiados a pessoas que possam agir separadamente; isto equivaleria a submeter a força pública a comandos diferentes e resultaria, um dia ou outro, em desordem e ruína.81

Neste ponto verifica-se uma contraposição ao pensamento de Thomas Hobbes,

na acepção de que existe tanto o estado de natureza, do qual deriva o Poder Federativo,

como o estado civil do homem, regrado pela disposição das leis criadas pelo Legislativo

e que fundamentam a sociedade.

Isto se torna importante porque Locke reconhece que o estado de natureza faz

parte da vida do homem enquanto uma realidade palpável, sendo este, portanto, o

encontrado fora da vida na sociedade legalmente constituída.

A existência de um estado de natureza – condição de existência dos homens fora da sociedade civil, que é, para Locke, uma realidade e não uma ficção – está ligada à de uma lei de natureza. [...] As leis positivas ou civis são as editadas pelos homens na sociedade para “ordenar” as ações dos seus membros. [...] A vontade de evitar o estado de guerra é uma das razões principais pelas quais os homens saíram do estado de natureza e puseram-se em sociedade.82

80 LOCKE, John. Ob. Cit. São Paulo: Editora Vozes, 4ª Edição, 2006, p. 171. 81 LOCKE, John. Ob. Cit. São Paulo: Editora Vozes, 4ª Edição, 2006, p. 172. 82 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, pp. 186-7.

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O estado civil, desta forma, não é uma mera derivação do estado de natureza

como ocorre em Hobbes, em que os homens deliberadamente abrem mão de suas

liberdades visando a sua própria segurança e dos demais cidadãos, até porque para

Locke a liberdade é primordial para o sucesso do Estado e de sua configuração política,

econômica e jurídica.

Entretanto, na concepção de Locke, as funções devem estar hierarquizadas,

inexistindo independência e harmonia entre eles, vez que para estas exisirem seria

necessário que todos estivessem no mesmo patamar, sem que existissem diferenciações

de importância entre eles.

Assim, o Legislativo é aquele que possui maior força neste Estado liberal,

devendo estar no ápice da pirâmide hierárquica dos órgãos do Estado e deve se sobrepor

aos demais por ser aquele responsável pela preservação da comunidade.

Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja, que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados. [...] Enquanto o governo subsistir, o Legislativo é o poder supremo, pois aquele que pode legislar para um outro lhe é forçosamente superior; e como esta qualidade de legislatura da sociedade só existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão, o Legislativo é forçosamente supremo, e todos os outros poderes, pertençam eles a uma subdivisão da sociedade ou a qualquer um de seus membros, derivam dele e lhe são subordinados.83

Para a constituição da sociedade pautada nos ideais liberais, ou seja, em

direitos sobre as próprias vidas, liberdades individuais e a propriedade privada, Locke

entende ser necessária a separação das funções, desde que hierarquizados e de modo que

se fixem com a soberania, que continuará com o povo.

A separação dos poderes Legislativo e Executivo é essencial para a constituição de um povo livre: poder supremo do Estado, o Legislativo é a emanação da vontade do povo. A finalidade da lei é moral: ela define as condições da felicidade dos cidadãos. Para Locke, liberdade é a autodeterminação de quem delibera tendo por princípio alcançar a felicidade.84

De acordo com este pensamento, a felicidade somente será alcançada quando a

liberdade for conferida à todos os cidadãos em busca desta determinação de vida.

83 LOCKE, John. Ob. Cit. São Paulo: Editora Vozes, 4ª Edição, 2006, pp. 173-4. 84 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, pp. 187-8.

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Destarte, se a felicidade está na liberdade, justifica-se porque o liberalismo defende de

forma clara a propriedade privada, vez que defende, da mesma forma, a liberdade-

felicidade de todos os cidadãos de determinada sociedade.

O contrato social em Locke tem como finalidade a preservação dos direitos do

homem, tanto fundamentais e oriundos do seu estado de natureza, como a liberdade e a

propriedade privada, como os direitos decorrentes deste estado natural, considerados

como políticos, que é justamente a autoridade política investida de garantir os direitos

naturais de forma positivada.

Embora o Estado possua sua forma de controle sobre os cidadãos, os mesmos

possuem liberdade, que salvaguarda suas ações na órbita social. Isso ocorre porque o

Estado também é gerido por leis e essa união do liberalismo social com o respeito do

Estado às leis formam o sustentáculo dessa sociedade e desse Estado, sendo o inverso

também verdadeiro.

O contrato lockiano tem então um objetivo fundamental de preservação: trata-se de garantir estes direitos naturais no direito positivo. Para existir, uma autoridade pública deve ser investida. Mas esta se verá estreitamente ligada aos direitos que devrá garantir: se ela abusa do poder que lhe foi confiado, o povo conserva permanentemente a possibilidade legítima de reconquistar sua soberania.85

Desta maneira, o respeito pela Constituição deve ser tanto do Estado como dos

cidadãos, diferente de Hobbes, em qux’’xe o Estado está acima da Constituição e, por

isso, não sujeito à ela, somente aplicando-se as leis aos cidadãos. Aqui a tônica é

inversa, já que é o liberalismo a forma de administração social pregada. A liberdade do

cidadão é garantida com a eficácia da justiça e o respeito às leis.86

Por este motivo o cidadão pode contestar e até mesmo destituir os membros

eleitos para o Legislativo quando estes não conseguem atingir as expectativas da

sociedade e acabam por quebrar a confiança depositada. Este é o poder supremo

advindo do povo, o mesmo identificado por Hobbes, mas na sua individualidade em

cada cidadão e na parte absoluta quando do Estado.

85 BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 146. 86 Neste sentido: “Em Locke, tudo consiste em uma bilateralidade da obrigação política: a obrigação dos súditos de obedecer aos direitos positivos editados pelo Estado se afirma apenas na obrigação do Estado de respeitar os direitos naturais dos indivíduos. A submissão ao poder público não é jamais incondicional: pelo contrário, os direitos naturais fundamentais são a condição permanente do exercício do poder e da aplicação e do respeito às leis positivas. Com essa tese de um Estado concebido expressamente como garantia dos direitos individuais, Locke funda o paradigma do liberalismo político”. (BILLIER; Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Manole, 2005, pp. 146-7).

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Como o Legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando considerar o ato Legislativo contrário à confiança que nele depositou; pois todo poder confiado como um instrumento para se atingir um fim é limitado a esse fim, e sempre que esse fim for manifestamente negligenciado ou contrariado, isto implica necessariamente na retirada da confiança, voltando assim o poder para as mãos daqueles que o confiaram, que podem depositá-lo de novo onde considerarem melhor para sua proteção e segurança. Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos.87

A Constituição torna-se importante, pois é ela que resguarda os direitos e

garantias, dentro de determinada sociedade como inerentes aos cidadãos, sendo a

principal lei que deve ser respeitada na nação.

Ela, a Constituição do Estado, permite que a sociedade pertença ao Estado e

que juntos respeitam as leis e a própria Constituição e, ainda, faz com que “toda

soberania pertença ao povo. Isso justifica o direito de resistência: o povo tem razão

suficiente para julgar se os magistrados são dignos da confiança concedida; tem o

direito de destituir um príncipe, se ele não cumpre seu papel de magistrado civil”.88

1.7 MONTESQUIEU, A “SEPARAÇÃO DOS PODERES” E O SISTEMA DE FREIOS E

CONTRAPESOS

Séculos depois, a já estudada teoria de Aristóteles foi aprimorada por Charles de

Montesquieu. A “Separação dos Poderes” é a base da Ciência Política desenvolvida por

ele em sua obra “O Espírito das Leis”, de 1748, que visou moderar o poder do Estado

dividindo-o em funções e incumbindo competências a órgãos diferentes do Estado, de

modo a pensar em um poder centralizado e funções descentralizadas, diferente do

modelo instituído na França Absolutista do Século XVIII, no qual todo o poder se

concentrava no monarca.

É por isso que Montesquieu faz um paralelo estabelecendo as formas de

governos existentes e quais são seus princípios dentro da conjuntura político-legal do

87 LOCKE, John. Ob. Cit. São Paulo: Editora Vozes, 4ª Edição, 2006, p. 173. 88 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 187.

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Estado, destacando três formas: despotismo, monarquia e república, podendo ser

democrática ou aristocrática.

Montesquieu articula a tipologia dos governos – conjunto dos órgãos pelo qual o soberano exerce sua autoridade – em função da natureza deles e do seu princípio. A natureza do despotismo é o poder de um só sem leis, e seu princípio é o temor; a monarquia, um só tem o poder, mas regido por leis e a honra é seu princípio; numa república, ou o povo em massa governa, sob o princípio da virtude cívica, paixão coletiva da causa pública – e ai se tem então uma democracia –, ou apenas uma parte do povo, sob o princípio da moderação, paixão própria de uma república aristocrática.89

De salutar importância explicar novamente que o absolutismo francês não

guarda referência alguma com o poder absoluto do Estado, o mesmo estudado em

Thomas Hobbes. O Estado Absoluto Hobbesiano é assim considerado porque todo o

poder emana do Estado, representante absoluto do poder individual emanado do povo,

de forma a representá-lo pelo pacto social.

Já na França o Absolutismo concentrava-se nas mãos do monarca e não do

Estado, não havendo entre os cidadãos franceses um contrato pelo qual este poder assim

era considerado, ou seja, na França não tínhamos a figura do pacto como fonte do poder

dos homens sendo representado pelo Estado. O soberano se transmudava no poder e no

direito de estar acima das leis, fazendo com que toda a sociedade ficasse à sua mercê.

O juiz não possuía liberdade de julgamento, vez que tudo estava atrelado à

vontade Real do Soberano (não do Estado). “Era expressamente proibido aos juízes

interpretar normas cujo entendimento tivessem dúvidas, devendo em tal caso dirigir-se

ao monarca, o qual como autor da lei era seu guardião e único intérprete”.90

Preconiza Montesquieu que as leis devem servir para garantir as liberdades dos

cidadãos, além de inserir também o Estado como sujeito às mesmas leis nas quais a

sociedade está inserida, sem jamais deixar de entender que somente desta forma é que

se impede o absolutismo de uma pessoa ou um grupo de pessoas sobre todo o restante

da sociedade. “De modo que o sentido da Constituição – conjunto das leis que regem o

governo de um Estado – é, pois, garantir uma forma da liberdade por meio de leis que

suprimem todo o perigo de despotismo.”91

89 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 221. 90 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2ª Edição, 2007, p. VII. 91 BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Ob Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 221.

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Foi esta uma das teorias basilares da Revolução Francesa (1789), grande marco

histórico que findou com o poder arbitrário dos monarcas franceses e iniciou o domínio

da burguesia sobre as determinações do Estado, inclusive com as diretrizes contidas no

Legislativo, Judiciário e Executivo, além da figura do Conselho de Estado (não

existente no Brasil), responsável pelo contencioso judicial do Executivo.

A eclosão da Revolução Francesa teve como arcabouço justamente o modelo

francês pautado na centralização do poder e das riquezas nas mãos do clero e da

nobreza, ficando sobre o Monarca a concentração desse poder e riqueza. A burguesia,

classe subjugada, se une ao povo com o intuito de modificar as estruturas petrificadas

do sistema, garantido-se que as mudanças seriam para ambos, o que evidentemente não

se consolidou, vez que a finalidade da burguesia era justamente possuir os privilégios e

as riquezas que as classes dominantes possuíam e o poder político concentrado com a

monarquia e, uma vez atingido o objetivo, permanecem no poder até os dias atuais.

A Revolução Burguesa é um importante marco no desenvolvimento teórico do

Estado atual, ainda mais quando analisadas as bases na qual se fundou, sendo

especificamente o liberalismo de Locke, o contratualismo de Rousseau e o sistema de

Montesquieu os responsáveis pela construção e solidificação dos moldes estatais.

Antes de tratarmos propriamente da “Separação dos Poderes”, inicialmente

devemos considerar uma diferença linguística constante na teoria de Montesquieu:

Estado e Governo não são sinônimos. Tal diferenciação é preponderante para

considerarmos, depois, a teoria dos freios e contrapesos.

Devemos ter em mente que tanto o Estado como o Governo possuem os três

órgãos (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas no Estado eles existem independente

de sua forma de atuação e, enquanto existir um Estado (seja ele ou outro que se

sobreponha), estes órgãos permanecerão; já o Governo, embora também os possua, está

inserido no Estado e, por vezes, o governo pode ser corrupto, o que corromperá as

funções e prerrogativas dos órgãos, ou mesmo autoritário, o que deixará um órgão se

sobrepor aos demais.

Podemos determinar que a definição de Poderes no Estado, para Montesquieu,

não é exatamente a definição das funções destes poderes, que somente ocorre no

Governo. O Estado não leva em consideração como os poderes estão dispostos,

reconhecendo somente a sua existência, enquanto o Governo está intimamente ligado a

como os poderes serão exercidos. É assim que se considera a liberdade política, que “em

um cidadão é aquela tranquilidade de espírito que provém da convicção que cada um

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tem da sua segurança. Para ter essa liberdade, precisa que o governo seja tal que cada

cidadão não possa temer outro”.92

Em outras palavras, no Estado o Executivo, o Legislativo e o Judiciário

continuarão existindo, independente do seu funcionamento, enquanto no Governo

haverá a necessidade de funcionamento de acordo com os freios e contrapesos, vez que,

havendo usurpação de função por um dos órgãos, automaticamente este governo estará

corrompido e, ainda que no Estado os Três Órgãos permaneçam, no Governo eles

deixam de se existir, pois se confundem entre si.

Portanto, para conseguirmos entender a “Separação dos Poderes” devemos

estabelecer o pensamento de Montesquieu sobre o que são os poderes, isto é, como os

órgãos Legislativo, Judiciário e Executivo se colocam e se sustentam dentro de um

Governo e como suas funções são exercidas de acordo com a constituição do Estado.

Segundo a teoria montesquieuana, existem três órgãos no Estado e assim estão

estabelecidos, resumidamente, cada um deles:

Em cada Estado há três espécies de poderes: o Legislativo; o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes; e o Executivo das que dependem do Direito Civil. Pelo primeiro, o Príncipe ou o Magistrado faz leis para algum tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as demandas dos particulares. A este último chamar-se-á Poder de Julgar; e ao anterior, simplesmente Poder Executivo do Estado.93

De acordo com esta diferenciação, iniciaremos as considerações pelo Judiciário,

seguindo de igual maneira a ordem estabelecida por Montesquieu em “O Espírito das

Leis”, de modo a melhor conceituar e entendê-los.

Para a teoria montesquieuana, os juízes incumbidos dos julgamentos não podem

estar atrelados a um Senado permanente, mas sim tirados do povo conforme prescrição

legal, exercendo suas funções somente enquanto perdurar a necessidade para tanto.

Temos aqui uma importante observação que deve ser considerada: para

Montesquieu os juízes não são como os que conhecemos hoje, formados em direito e

com notório saber jurídico, togados em suas cátedras na incumbência dos julgamentos,

ou caso contrário estaríamos falando de uma espécie de “senado permanente”.

92 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis: As Formas de Governo, a Federação, a Divisão dos Poderes. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 169. 93 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 169.

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Estes juízes mais se assemelham aos jurados num tribunal do Júri, escolhidos de

acordo com a lei somente para determinado julgamento e, após isso, dissolvendo-se e,

em havendo necessidade novamente, outros do povo serão convocados.

Mas, se os tribunais não devem ser fixos, devem-no os julgamentos. A tal ponto que não sejam estes jamais senão um texto preciso da lei. Fosse eles a opinião particular dos juízes, e viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos assumidos.94

Embora refute a carreira de magistrado por considerá-la inapropriada ao

exercício da função de julgar, Montesquieu estabelece que tal fato não pode ser óbice

para que se impeçam os julgamentos de existirem, isto porque, embora não se tenha

tribunais/juízes fixos, as ações que devem ser julgadas continuarão a surgir.

E nesses julgados, como bem observado, não se pode ocorrer a transcrição da

opinião particular dos juízes ou não se teria um ambiente de liberdade política e sim de

autoritarismo à submissão de uma vontade particular, devendo na verdade ocorrer a

interpretação normativa das leis elaboradas pelo Legislativo.

Importante mencionar que Montesquieu não via o Poder de Julgar no mesmo

patamar que o Poder de Executar e o Poder de Legislar, tanto que o considera

praticamente como nulo e inexistente e, apesar disso, não denota que existia hierarquia

entre esses órgãos, como observamos em Aristóteles e Locke, até mesmo porque se

pensarmos em hierarquia entre os “poderes” consequentemente excluiríamos a doutrina

dos freios e contrapesos ou a pensaríamos funcionando com apenas dois dos poderes.

Os Órgãos encontram-se no mesmo grau de importância, sem haver

hierarquizações. Porém, as funções desempenhadas pelos seus membros não, visto que

os juízes não são efetivados em cargos, mas sim temporários, diferentemente do que se

analisa com o Legislativo e o Executivo95. Essa temporalidade, contudo, não afeta a

importância do Órgão Judiciário frente aos demais, visto que igualmente importante.

Tal constatação hoje não mais ocorre, ao menos na teoria e na forma definida em

lei. Contudo, veremos mais adiante que, no caso brasileiro, essa igualdade entre os

órgãos do Estado foi por muito tempo deixada somente na letra fria da lei, pois a prática

denotavam outros atos.

94 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 172. 95 Neste sentido: “Deste modo, o Poder de Julgar, tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a um certo estado, nem a uma certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se têm Juízes diante dos olhos continuamente; teme-se a Magistratura, não os Magistrados”. (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 172).

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Pela teoria de Montesquieu o Legislativo tem uma divisão interna, havendo a

Câmara Baixa e a Câmara Alta, tendo sua distinção pautada no critério de reconhecida

desigualdade entre os cidadãos de determinado Estado.

Apesar de prezar pela liberdade política dentro de um Estado livre, considera

Montesquieu que neste Estado há uma diferença entre o Povo no seu todo e aqueles que

nascem privilegiados por assim dizer, que por isso não podem ser considerados iguais

em sua liberdade ao povo, ou caso tivessem o mesmo peso de liberdade suas vantagens

no Estado seriam inexistentes (percebe-se que não há isonomia para Montesquieu).

Desta forma, o Povo deve estabelecer um Legislativo para si, já que os cidadãos

conhecem suas necessidades políticas melhor do que qualquer outro, de modo que não

há necessidade de se eleger membros de toda a Nação para estas cidades particulares,

mas sim dessas próprias cidades para si, escolhendo seus representantes no seu meio. A

este tipo de Legislativo deu-se o nome de Câmara Baixa.

O povo não deve participar do governo senão para escolher os seus representantes, o que está muito ao seu alcance. Pois, se poucos conhecem o grau preciso de capacidade dos homens, entretanto cada um é capaz de saber, em geral, se esse que ele escolheu é mais esclarecido que a maioria. O corpo de representantes também não deve ser escolhido para tomar resolução ativa, coisa que ele não faria bem. Mas para fazer leis, ou para verificar se executaram bem as que ele fez, coisa que ele pode fazer muito bem, e, mesmo, que só ele pode fazer bem.96

Não podendo se confundir com os do povo, os considerados eminentes pelo

nascimento, pelas riquezas ou pelas honras, devem constituir seu próprio corpo

Legislativo, que se dará de forma diferente devido a sua importância diferenciada na

sociedade. A esse corpo deu-se o nome de Câmara Alta.

Segundo Montesquieu, caso estes privilegiados estivessem “confundidos” junto

ao Povo poderiam acabar sem ter representantes, uma vez que a totalidade dos não-

eminentes ultrapassaria a dos eminentes, motivo pelo qual deve haver essa divisão, em

que cada um deliberará separadamente sobre questões de interesses próprios.

A participação dessas pessoas na Legislação deve pois estar proporcionada às demais vantagens que têm no Estado. Ora, isto se dará se elas formarem um corpo com direito de frear as iniciativas do Povo, assim como o Povo terá direito de frear as delas. Assim, o Poder Legislativo estará confiado não só ao corpo de nobres mas também ao corpo escolhido para representar o Povo. Os dois corpos terão cada

96 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 175.

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qual as suas assembleias e suas deliberações à parte, e pontos de vista e interesses distintos.97

Apesar dessa diferenciação não-isonômica entre o Povo e os “abastados”,

claramente Montesquieu estabelece que diante das deliberações ambas as Câmaras

podem frear a outra para não ocorrer abusos, o que se coaduna com o defendido por ele

posteriormente no sistema de freios e contrapesos.

Outro importante fator a se considerar na teoria discutida se refere ao fato de

que, assim como ocorre com o Judiciário, o Legislativo não é algo permanente, mas sim

convocado de acordo com as necessidades de legislatura de determinada situação,

momento no qual deverá ser sempre convocado, cabendo ao Executivo o direito de frear

o Legislativo para que este não se torne despótico.

O corpo Legislativo não deve convocar a si mesmo. Porque esse corpo só se reputa ter vontade quando está reunido. Se não se reunisse em sua totalidade, não se poderia dizer qual a parte que seria verdadeiramente o corpo Legislativo: a que estava reunida, ou a que não estava. Se o corpo Legislativo tivesse direito de prorrogar a si mesmo, poderia ocorrer de não ocorrer prorrogar-se ele nunca; o que seria perigoso, caso quisesse atentar contra o Poder Executivo. Além disso, existem épocas mais convenientes do que outras para a reunião do corpo Legislativo.98

Chegamos, finalmente, ao Executivo, que foi chamado de Poder Executivo do

Estado e, diferente do que se pode imaginar, na teoria de Montesquieu para ser

considerado ideal tinha que ser exercido por um Monarca, para que a efetividade das

ações fossem rápidas, o que não aconteceria se muitos detivessem esta prerrogativa.

Considera ainda que, caso o Poder de Executar fosse confiado a um determinado

grupo de pessoas tiradas do Legislativo não mais existiria a liberdade política entre

estes, pois ambos os órgãos estariam unidos e se assim fosse, não haveria a necessidade

de divisão existente.

O Poder Executivo deve estar nas mãos de um Monarca. Porquanto esta parte do Governo, tendo quase sempre necessidade de uma ação instantânea, é melhor administrá-la por um do que por diversos. Já o que depende do Poder Legislativo muitas vezes é regulado por diversos do que por um só. Se não houvesse Monarca, e o Poder Executivo fosse confiado a certo número de pessoas tiradas do corpo Legislativo, não haveria mais liberdade, porque os dois poderes

97 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 175. 98 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 178.

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estariam unidos. As mesmas pessoas teriam algumas vezes, e poderiam ter sempre, participação num e noutro poder.99

Por isso, assim como para Aristóteles, Montesquieu considera que a

determinação das funções separadamente é necessária. Montesquieu, ao primar pela

segurança, entende que cada qual deve estar dentro de suas atribuições e respeitar suas

limitações, não atingindo os demais órgãos ou usurpando-lhes prerrogativas, de modo a

alcançar a autonomia e harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário, permitindo

que os três, de maneira unificada, formem a administração do Estado.

O avanço das ideias de Montesquieu está na sugestão de repartir organicamente o poder como forma de garantir a liberdade. Assim, além de propor a distribuição das atividades estatais a órgãos distintos e independentes entre si, Montesquieu apresenta a ideia da contenção do poder de cada órgão por meio do exercício do poder dos outros órgãos estatais.100

Os interesses governamentais do Estado devem estar regrados para impedir que

um único órgão se sobressaia e acabe por subjugar os demais, sem abrir margens para o

despotismo, em que uma única pessoa detenha o controle de todas as ações ou mesmo

que um dos órgãos coloque os demais sob seu julgo, mantendo a separação, mas não a

harmonia e a independência, características estas desse tipo de separação.

Tais interesses, porém, nunca devem estar concentrados nas mãos de uma única

pessoa, como ocorria na própria França antes da Revolução, na qual Montesquieu pôde

observar os dissabores da centralização do poder e o abuso destes quando colocados

para interesses particulares das classes dominantes no período.101

A primazia neste caso se dá quando pensado que não se pode concentrar o poder

nas mãos de nenhuma classe, mas sim deixá-los livres entre todos. De acordo com o

trecho acima, a questão não se trata de manter nas mãos de um homem, como também

de nobres ou do povo. Este poder deve ser dividido para não causar prejuízos a

nenhuma das partes existentes em um processo, para não existirem favorecimentos que

enfraqueceriam o modelo Tripartido.

99 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 177. 100 SILVA, Roberto Baptista Dias da. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Manole, 2007, p. 204. 101 Neste sentido: “O despotismo de um só – indivíduo, corpo ou povo – tem por origem a confusão das três instâncias, legislativa, executiva e judiciária, que compõem um Estado. A condição da liberdade é, pois, uma separação dos poderes – concebida como independência e complementaridade – que garante sua cooperação e um funcionamento justo e eficaz”. (BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 221)101.

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Devemos, entretanto, ter em mente que tal separação foi uma construção política

advinda (i) da contextualização francesa do período e (ii) do pensamento ideológico de

Montesquieu sobre o abuso contido nas determinações monárquicas francesas. Bem

explica Celso Antônio Bandeira de Mello:

Esta trilogia não reflete uma verdade, uma essência, algo inexorável proveniente da natureza das coisas. É pura e simplesmente uma construção política invulgarmente notável e muito bem-sucedida, pois recebeu amplíssima consagração jurídica. Foi composta em vista de um claro propósito ideológico do Barão de Montesquieu, pensador ilustre que deu forma explícita à idéia da tripartição. A saber: impedir a concentração de poderes para preservar a liberdade dos homens contra abusos e tiranias dos governantes.102

A tripartição das funções leva o Estado a um dilema estrutural que não existia

quando tudo encontrava-se centralizado: como impedir o abuso ou até mesmo a

superioridade de um sobre os demais?

Quando as funções estão centralizadas ou existe uma hierarquia entre estes não

encontramos tal problema, vez que a sua configuração já enseja que um deles estará em

superioridade e os demais se subordinarão a ele ou que tudo está nas mãos de uma única

pessoa, que regerá os órgãos e suas funções conforme sua vontade.

Quando se pensa em órgãos que devem ser independentes e harmônicos entre si,

nos deparamos com esse questionamento, ou caso contrário haveria a separação apenas

teórica, enquanto na prática isso não aconteceria. Devem existir, portanto, mecanismos

capazes de impedir o abuso e promover sua harmonia e independência.

A Carta Política do Estado, que institui os direitos e deveres, deve também

conter disposições que tratem desses órgãos, de suas atribuições, limitações e funções,

sendo assim estabelecidas disposições capazes de impedir abusos e interferências.

Neste sentido, a Tripartição garante que, mesmo independentes em sua forma de

atuação, os mesmos sejam harmônicos entre si, propiciando, pois, um governo

moderado que, é aquele em que “[...] precisa combinar os Poderes, regrá-los, temperá-

los, fazê-los agir; dar a um Poder, por assim dizer, um lastro, para pô-lo em condições

de resistir a um outro. É uma obra-prima da legislação, que raramente o acaso produz, e

raramente se deixa a prudência produzir”.103

102 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, p. 31. 103 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 26.

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Interessante raciocínio. De acordo com as disposições de configuração do

Estado, ele próprio cria mecanismos capazes de conter abusos nas funções, visando

garantir aos cidadãos a segurança jurídica, que não é oriunda da certeza, mas

complementar a ela. Sem ambas, não existe a possibilidade de garantia de órgãos

independentes em suas funções e harmônicos em prol do Estado.

O sistema dos freios e contrapesos existe para que o desempenho das funções de

um órgão impeça que os demais não abusem e subjuguem uns aos outros, ou seja, por

suas atribuições e funções, um órgão impede os demais de exercer aquilo que cabe tão

somente a ele.

Desta forma, todo Estado legalmente constituído e que possui a separação das

funções como marco estabelece funções típicas e atípicas aos seus órgãos. Nas funções

típicas cada órgão somente pode exercer aquilo que legalmente lhes é permitido, de

modo que o Legislativo não pode julgar ou executar as leis que cria e da mesma forma o

Judiciário não pode legislar e executar e o Executivo não pode julgar e legislar.

Internamente, como funções atípicas, agem os órgãos nas funções que tipicamente são

dos demais.

As funções típicas são aquelas exercidas predominantemente por um determinado órgão, são as que guardam uma relação de identidade com o Poder por que são desempenhadas. De forma singela, pode-se dizer que, tipicamente, o Poder Executivo administra e executa, o Poder Legislativo legisla e o Poder Judiciário julga. Atipicamente, cada um dos órgãos estatais exerce as funções que são típicas dos outros. Assim, atipicamente, o Poder Legislativo executa e julga, o Poder Executivo legisla e julga e o Poder Judiciário administra e legisla.104

Temos que cada um, então, trabalha dentro de suas atribuições e limitações. O

intuito de se repartir funções no Estado surge para evitar abusos entre os órgãos ou

mesmo a centralização das funções, o que acabaria gerando abalos na estrutura do

Estado e faria surgir qualquer outra coisa, menos a separação das funções.

Ademais, para que as três funções não fiquem concentradas nas mãos de poucos

ou para que, mesmo após a separação das funções, um não tente ser maior do que o

outro, o próprio poder cria mecanismos capazes de frear o abuso, impedindo que uma

ação minoritária se sobressaia ao interesse e as ações gerais. É o que acontecia no

absolutismo e o que Montesquieu chama de Governo Despótico, em uma análise

histórica dos movimentos políticos.

104 SILVA, Roberto Baptista Dias da. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2007, pp. 205-6.

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O sistema de freios e contrapesos serve então para que não hajam abusos

provenientes do Estado regulador do direito e da execução das leis, bem como no

julgamento dos atos cometidos contrários a estas disposições, motivo pelo qual

Montesquieu adverte que todo tipo de liberdade política deve ter limites, ainda que a

liberdade seja uma virtude.

A liberdade política só se encontra nos Governos Moderados. Mas ela não existe sempre nos Estados moderados. Ela só existe neles quando não se abusa do poder. Mas é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele. Vai até encontrar os limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do Poder, precisa que, pela disposição das coisas, o Poder freie o Poder.105

Não se trata, portanto, de simplesmente o Estado ser livre, mas de o Governo

também o ser, politicamente falando, ou mesmo que um Estado seja moderado o seu

governo poderá não o ser e a disposição dos órgãos não permitirá uma atuação livre de

acordo com suas funções, mas restrita justamente à má-formação do governo

(i)moderado.

É desta maneira que Montesquieu considera a necessidade dos freios e

contrapesos advir do próprio poder, ou seja, quando a atuação do Executivo, Legislativo

e Judiciário passa a impedir que uns interfiram nos outros, seja considerando a função

típica de cada um deles ou a função atípica, agindo de acordo com os dispositivos

constitucionais que estabelecem suas funções e limites, bem como o alcance de seus

atos na sociedade e no cumprimento dos deveres legais uns com os outros, de modo a

fazer também um governo moderado, no qual a liberdade não é ampla e irrestrita, mas

com limites para não ocorrer abusos da própria liberdade.

Considerando todo o exposto, é por tal motivo que não se pode deixar que todo o

poder do Governo, em um Estado, fique centrado na figura de uma única pessoa ou caso

contrário estaríamos diante de uma tirania, na qual não haveria a liberdade política dos

cidadãos e, de igual forma, os próprios órgãos estatais não teriam liberdade de atuação.

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria

105 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, p. 167.

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Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.106

Analisa Montesquieu que a concentração de funções em uma única pessoa (ou

grupo) é prejudicial para a existência do próprio Estado, ou caso contrário não haveria a

liberdade política essencial para a constituição, no sentido aristotélico da palavra, de um

Estado ideal, lastreado igualmente pelos princípios de liberdade entre os órgãos do

Estado, limitados entre eles por suas próprias atuações.

Podemos, então, concluir que a “Separação dos Poderes” em Montesquieu, antes

de uma forma de composição de Governo dentro de um determinado Estado é, na

realidade, uma forma de se garantir a liberdade política dos cidadãos e dos próprios

órgãos deste Governo, impedindo abusos pela liberdade sem controle e irrestrita, seja

dos cidadãos, dos órgãos do Estado ou daqueles que governam e têm como função a

administração e exercício das funções.107

1.8 ROUSSEAU E O CONTRATUALISMO SOCIAL

Se trabalhamos o contratualismo na sua formação com os ingleses Thomas

Hobbes e John Locke, não podemos deixar de citar o filósofo suíço Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778), que com sua obra “O Contrato Social” fomentou o ideário

iluminista francês que guiou os preceitos básicos da Revolução Francesa.

Natural de Genebra, onde dois séculos antes João Calvino juntamente com

outros pensadores implantou sua filosofia reformadora, Rousseau nasceu numa família

que seguia exatamente os preceitos calvinistas, fugindo para França aos 16 anos,

trabalhando em diversas profissões e caminhando em várias camadas sociais.108

106 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 2008, pp. 169-70. 107 Neste sentido: “O despotismo de um só – indivíduo, corpo ou povo – tem por origem a confusão das três instâncias, legislativa, executiva e judiciária, que compõem um Estado. A condição da liberdade é, pois, uma separação dos poderes – concebida como independência e complementaridade – que garante sua cooperação e um funcionamento justo e eficaz. Da lei de divisão dos poderes, Montesquieu espera a realização da liberdade política. Nisso ele é moderno: substitui a confiança nos atores do corpo político, com os riscos que ela comporta pela necessidade de um mecanismo (o funcionamento imanente a poderes separados”. (BARAQUIN, Noëlla; Jacqueline Laffitte. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 221). 108 BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 261.

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Inicialmente, estuda a natureza do homem, partindo do pressuposto do estado de

natureza. Contudo, diferentemente do seu antecessor Hobbes, não considera o homem

mau por natureza ou em constante estado de guerra. Identifica, outrossim, que o homem

é corruptível pelo nível de socialização na qual encontra-se inserido.

Rousseau considera que a corrupção não está ligada à natureza da sociedade,

mas no resultado da socialização desta. Em outras palavras, a corrupção não é anterior,

e sim posterior, de modo que primeiro a sociedade se forma e somente após esse

processo será possível perceber como a socialização acontecerá.

Se analisarmos esta parte da filosofia rousseauniana podemos identificar que

para ele o homem não é bom ou mau, como classifica Thomas Hobbes desde o

princípio. O homem pode, na verdade, se tornar bom ou mau de acordo com o modelo

principiológico que rege sua sociedade.

Por isso o homem natural se caracteriza e se diferencia dos outros animais por

sua liberdade, que pode ser reconhecida por ele próprio, motivo pelo qual o homem

pode, utilizando-se de sua liberdade, agir de acordo com sua consciência liberta, seja

para o bem ou para o mal.

O que caracteriza o homem natural? Ele está próximo da animalidade, vive num estado de dispersão e ignora o trabalho. Distingue-se porém do animal por sua liberdade; o animal não faz mais do que obedecer ao instinto, enquanto o homem “se reconhece livre de aquiescer ou resistir”. Ele pode portanto fazer tanto o bem como o mal.109

A ideia de liberdade do homem vai além daquela pensada antes, sobretudo por

Thomas Hobbes, na qual todos os homens abrem mão de sua liberdade em nome do

Estado-Leviatã para que este governe em busca de um Estado Eclesiástico e visando o

fim do estado de guerra.

Esta liberdade de Rousseau foi erguida como uma das bandeiras primordiais da

Revolução Francesa, isto porque o homem, apesar de próximo da animalidade, se

distancia da mesma a partir do momento em que usa sua liberdade e age na sociedade de

acordo com uma consciência pensante e ciente de ser livre.

Ademais, diferente dos animais, o homem também pode se aperfeiçoar não

apenas ao meio em que vive, mas num todo, desenvolvendo suas plenas faculdades,

enquanto os animais agem por instinto e se adaptam ao meio. O homem, assim, pode se

109 BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 262.

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tornar melhor ou pior do que já é, uma vez que este desenvolvimento não significa

necessariamente que será um progresso moral e ético.

Novamente em contrassenso com Hobbes, Rousseau pensa, com isso, que o

homem natural é naturalmente bom e que o fato de haver corrupção na sociedade não

faz pressupor que todos os homens são maus por natureza, mas sim que ela se

desenvolve e se aperfeiçoa com sua socialização, do mesmo modo que as virtudes

também podem se desenvolver com esta mesma base.

Rousseau entende que não é necessário supô-lo mau por natureza para explicar sua corrupção: “Não há perversidade original no coração humano, e os primeiros movimentos da natureza são sempre retos”. Essa bondade não é um valor ético e se situa aquém da consciência do bem e do mal. Ela constitui uma “moral natural”, uma inocência original, uma disposição psicológica.110

O homem natural, portanto, parte do “zero”, sem pender para o “lado bom” ou o

“lado mau”. No seu nascimento o homem está naturalmente sem quaisquer juízos de

valores, sendo os axiomas resultados da socialização inerente ao grupo em que ele está

inserido e convive.

Não se trata de afirmar que o homem natural será totalmente influenciado pela

sua sociedade, mas que esta exerce sim influência capital sobre a formação do

pensamento, até porque se considerarmos o homem inteiramente determinado por esses

valores não teríamos mudanças e revoluções, de modo que o seu raio de alcance seria

relativo, de acordo com a sociedade e com a mentalidade, bem como a consciência do

ser que a recebe.

Todavia, isso não significa que Rousseau não tenha concebido um “estado de

guerra” entre os homens, como o fez Thomas Hobbes. Mas, diferente deste, Rousseau

considera a corrupção do estado de natureza à desigualdade existente entre os homens,

principalmente quando analisado o direito de propriedade, em que poucos possuíam

muito, encontrando assim o estado de guerra como ponto final deste processo (e não o

ponto inicial, como no modelo hobbesiano).

A desigualdade encontra sua expressão na propriedade, apropriação arbitrária do que, pertencendo a todos, não pertencia a ninguém. Ora, como não é reconhecida por nenhum direito, ela só pode ser defendida pela força e é submetida portanto à lei do mais forte, donde uma guerra de todos contra todos. Encontramos aqui, como ponto de

110 BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 262.

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chegada desse processo de corrupção do estado de natureza, o que Hobbes considerava um ponto de partida.111

Tal qual em Roma com os Patrícios, a lei surgiu para proteger a propriedade dos

abastados, separando os ricos possuidores de terras dos pobres, que pouco ou nada

tinham no quesito liberdade. O abismo social entre ricos e pobres, em alguns lugares do

mundo, separa mais do que a diferença racial entre brancos e negros, por exemplo,

como pode ser visto na História Geral do Brasil.

A saída, por evidência, foi a criação de um sistema capaz de legitimar a

propriedade, ao mesmo tempo em que propiciava a criação do abismo econômico entre

as classes dominantes frente aos “seus subjugados”, que apesar de em número muito

maior, não possuíam o controle do aparato estatal da minoria abastada.

Apesar disso, Rousseau pensa numa forma de “impedir” o abuso legal realizado

pelos ricos em detrimento dos pobres pelo uso de sua força legal, momento no qual

surge a ideia do Contrato Social como mecanismo regulador de toda a situação.

Sendo assim, os ricos criaram um sistema que legitimava sua propriedade, mas na verdade usurpavam algo que não lhes pertencia. Entretanto, o Contrato Social que regularia a situação estabelecida traria benefícios para todos, tanto os ricos como os pobres, nos dizeres do professor Milton Meira do Nascimento: “O maior beneficiário dessa nova situação é aquele que possuía mais bens, o rico. Por outro lado, o pobre, que já não possuía muita coisa, continuará na mesma situação. As leis fornecerão a todos a condição nova da igualdade apenas, e se construirão no mascaramento da desigualdade de fato”.112

A questão do contrato é importante de ser analisada, porque no pensamento de

Rousseau ele vai além daquilo que fora pensado antes por Thomas Hobbes e John

Locke. Não é um simples instrumento que convalida a existência do Estado e do poder

de atuação deste. É, mais do que isso, uma forma de impedir as desigualdades que

surgem pelo sistema legal legitimador da propriedade.

Inferimos, assim, que o contrato social se coloca contra o modelo jurídico até

então existente, no qual a lei nada mais é do que a legitimação da força (como no

exemplo da usurpação da propriedade). Não há realismo jurídico, pois o contrato não

pode advir da experiência e sim da razão humana.

A transição do estado natural ao civil produz no homem mudança notável, substituindo em sua conduta a justiça do instinto e dando aos

111 BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 263. 112 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 212.

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seus atos a moralidade de que antes careciam. Somente então, substituindo a voz do dever ao impulso físico e o direito do apetite, o homem que, até tal ponto, não observava senão a si mesmo, vê-se obrigado a agir, tendo em conta outros princípios e a consultar sua razão antes de atender a caprichos. [...] O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha, é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.113

Renunciando ao direito natural, o homem encontraria nas leis civis aspectos que

não possuiria na sua naturalidade, uma vez que egoísta, como acontece com a usurpação

da propriedade. A moralidade vem pela razão, constituída pelo contrato social e atingida

por todos os homens quando renunciam a sua naturalidade.

O contrato social seria a forma de legitimação do poder político com base na

razão humana. Apesar de parecer conflitante com o princípio primeiro de Rousseau

sobre a liberdade natural do homem, tal legitimação encontra total respaldo justamente

nesta condição, em que a sociedade se estabelece com regras comuns a todos,

respeitando-se a liberdade.114

Estas cláusulas [do contrato social], bem entendidas, reduzem-se a uma só, a saber: a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a favor de toda a comunidade, porque primeiramente, entregando-se cada qual por inteiro, a condição é igual para todos, e, por conseguinte, sendo esta condição idêntica para todos, nenhum tem interesse em fazê-la onerosa aos outros. Ademais, verificando-se a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto possível e nenhum associado tem direito a reclamar, porque se restassem aos particulares alguns direitos, como não haveria superior comum que pudesse sentenciar contra eles e o público, sendo cada qual, em certo ponto, seu próprio juiz, pretenderia sê-lo em tudo. O estado natural subsistiria e a associação degeneraria necessariamente a tirânica ou vã.115

Chegamos à ideia de soberania trabalhada na filosofia rousseauniana, na qual o

povo soberano é a força legítima e o detentor único de todo o poder, que emana dele e

legítima o Estado, sendo o povo o agrupamento de pessoas que, unidos, formam um

corpo coletivo e moral pela virtude de um contrato social.

113 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 39. 114 Neste sentido: “Trata-se de definir as condições de uma ordem social justa, em que a liberdade e a igualdade serão garantidas contra toda forma de opressão, em que cada um, ao mesmo tempo que obedece a regras comuns, sem as quais não há sociedade organizada, não obedecerá a ninguém em particular”. (BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 264). 115 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, pp. 35-6.

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Desta feita, o contrato elaborado se caracteriza por ser original e fundador desta

determinada sociedade, na qual todos os homens abrem mão de sua liberdade natural em

prol da coletividade, desde que a condição estabelecida no contrato social seja igual

para todos, sem distinção, fazendo com que da renúncia à vontade individual nasça no

seu âmago a vontade geral.

“Encontrar uma forma de associação que defensa e proteja a pessoa e os bens de cada associação de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes.” Tal é o problema fundamental que o Contrato Social soluciona.116

A ideia de renúncia da vontade não nos soa estranha e se assemelha ao que

vimos sobre o pensamento de Thomas Hobbes, não fosse por um detalhe: enquanto no

pensamento hobbesiano o homem abre mão de sua liberdade em nome do Estado

Soberano, Rousseau concebe que cada homem renunciará à sua liberdade em nome dos

outros homens, da comunidade, da sociedade em que vive.

Não se pode olvidar ainda que no modelo de Thomas Hobbes não existe a

particularidade da participação do homem, isto é, na sua concepção, cada homem abre

mão de exatamente tudo para criação do Estado-Leviatã. Em Rousseau o homem

conserva direitos e liberdades e ainda participa do resultado, que é o corpo político.117

Podemos perceber essa distinção mais claramente quando analisamos os termos

utilizados por ambos. No modelo hobbesiano, temos o “Estado Soberano”, enquanto no

pensamento rousseauniano encontraremos a expressão “Povo Soberano”, estabelecendo

com isso uma importante diferença, até mesmo nos seus fundamentos (o primeiro serviu

de base ao modelo de absolutismo e o segundo ao de monarquia constitucional).

O homem entrega sim seus direitos naturais ao Estado, mas em troca recebe um

emaranhado sistema de direitos civis capazes de resguardar a sua integridade física e

116 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 35. 117 Ainda: “Entende Rousseau que, no momento em que todos renunciam à totalidade de seus direitos, com a criação do Contrato Social, forma-se um corpo político detentor de todos os direitos e do qual todos participam. O eu absoluto cede ao eu relativo. A esse corpo moral, corpo político, Rousseau dá o nome de soberano, que consiste num resultado da soma dos direitos de todos os homens, e todos os homens dele participam. Com efeito, cada um tem uma parte indivisa nos direitos do todo, igual àquela com que contribuiu para formá-lo. O soberano é assim constituído pela vontade unânime de seus componentes. Portanto, vê-se que, para Rousseau, o corpo político chamado soberano tem sua vontade própria, que ele chama de “vontade geral”. Ela, por definição, não pode errar, então não pode deixar de conduzir ao bem comum. Com efeito, Rousseau não atribui o caráter quantitativo, mas sim qualitativo a essa vontade. Para ser verdadeira, a vontade geral deveria ser, nos seus fins, como na sua essência e deveria partir de todos para ser aplicada a todos, caso contrário, tenderia a uma vontade inicial que não seria regida pelo princípio da equidade”. (CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 213).

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moral, pois são características encontradas no próprio homem que fundamentam a auto-

sobrevivência do Estado.

Entregando, momentaneamente, ao Estado os direitos naturais, em toda sua pureza, e recebendo, em troca, os direitos civis, todos se beneficiarão, a igualdade ficará resguardada, ninguém será prejudicado, todos conservarão sua parcela de liberdade, porque o cidadão se torna súdito não de outro cidadão, mas do Estado, síntese das liberdades individuais.118

Certamente agora rompemos completamente com a ideia de que Hobbes e

Rousseau possuem o mesmo postulado teórico, já que para Hobbes o homem abandona

o seu estado natural e entrega ao Soberano a sua liberdade, enquanto para Rousseau o

homem entrega o seu direito natural ao Estado em troca das leis civis que lhe garantem

a preservação dos seus direitos, o que inclui a sua liberdade, moderada pela própria lei

que a garante para que não sejam cometidos abusos em seu nome.

Também não podemos nos esquecer de que em Hobbes os homens, ao

entregarem sua liberdade, se tornam súditos do Soberano, seja um homem ou uma

assembleia reunida. Rousseau prega o sentindo inverso, no qual os homens permanecem

com suas liberdades (moderadas) e se tornam súditos do Estado, jamais de uma pessoa,

ou haveria a desvirtuação da liberdade.

A autonomia (ou liberdade) é preponderante para compreensão do

desenvolvimento do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, isto porque nenhum

individuo é obrigado a participar da associação de homens, já que a validade do contrato

social é a unanimidade dentre os contratantes. Uma vez aceita, passará a ser essa regra

majoritária que determinará a regra geral.

Tal concepção parece arbitrária, mas na realidade demonstra a maturidade da

construção da ideia contratualista de Rousseau, sendo inclusive base posterior para o

primado democrático das repúblicas ocidentais, isto porque a obediência à vontade

geral, ainda que contrária aos pensamentos de alguns cidadãos se torna a expressão da

soberania e esta obediência vem justamente da liberdade.

Embora a vontade geral, expressão do interesse comum, vá de encontro aos meus interesses egoístas, a própria lógica do contrato exige que eu, como sujeito obediente à soberania, me sinta obrigado

118 CRETELLA JÚNIOR, José. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 12ª Edição, 2012, p. 139. Ainda neste sentido, Jean-Jacques Rousseau considerou: “Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular, e como não há um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se cede sobre si próprio, ganha-se a equivalência de tudo o que se perde e maior força para conservar a que se possui”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 36).

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por uma decisão que resulta do exercício dessa soberania. Obedecendo, continuo livre, pois é a mim mesmo que obedeço: “Quem se recusar a obedecer à vontade geral será constrangido a fazê-lo por todo o corpo, o que não significa outra coisa senão que será forçado a ser livre”.119

A lei, portanto, não é arbitrária, mas sim imperativa, de modo que a vontade

geral, aquela expressada pela unanimidade quando da deliberação legislativa, será

obrigatória ainda que alguns não concordem com ela. Tudo isso decorre porque a

vontade geral é soberana.120

Claro que como em toda relação que envolva grande número de seres humanos é

necessário ter a consciência de que estes erram e se enganam, mas não a vontade geral,

de modo que a sua natureza será sempre a mesma e buscará, a exemplo do preceituado

por Aristóteles, o bem comum, que jamais terá base errônea.

As cláusulas deste contrato determinam-se em tal forma pela natureza do ato, que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito, de sorte que, embora não tenham sido nunca anunciadas, são elas sempre as mesmas, embora tacitamente aceitas e reconhecidas até que, violado o pacto social, cada qual entra de novo na posse de seus direitos e recupera sua liberdade natural, perdendo a convencional em virtude daquela que renunciou.121

Essa passagem expressa bem o que se deve entender pela obediência ao contrato

social. Uma vez desvirtuado ou tendo suas regras caráter puramente individualistas,

cada homem participante deste contrato retoma o seu status primitivo, retirando do

Estado o outrora cedido direito natural e retomando sua liberdade, até que nova

associação de pessoas crie novo pacto que vise o bem comum e não seja desvirtuado

para excentricidades particulares.

Ademais, é importante distinguir na filosofia rousseauniana que vontade de

todos não é a mesma coisa que vontade geral, sendo que “todos” concebe a ideia de

soma de vontades particulares, enquanto a vontade geral advém da soma de pequenas

diferenças, em que cada cidadão exprime exatamente a sua opinião.

119 BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 264. 120 Neste sentido: “A lei não é imperativo arbitrário, mas expressão da vontade geral, já que a vontade de todos é consubstanciada na soberania, que não é privativa de um ou de pequeno grupo: quando o povo, de posse da informação adequada, mantém suas deliberações, sem que os cidadãos tenham tido comunicação entre si, o total geral das pequenas diferenças originará sempre a vontade geral, e a decisão será boa”. (CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 12ª Edição, 2012, p. 139). 121 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 35.

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Essa importante distinção somente é possível pela deliberação, em que se poderá

identificar quando o individuo se exprime visando uma finalidade particular sua ou em

conjunto com um grupo (“todos”) e quando a sua opinião, mesmo que divergente,

procura atingir o bem comum (“geral”).

Em sua filosofia política, a racionalidade nunca vai emparelhada com a individualidade, mas muito com a socialidade. A soberania não é outra coisa senão a “razão pública” e a vontade geral é a razão pública. O Soberano é constituído pelo conjunto dos cidadãos na medida em que possam fazer valer uma vontade política. Essa ideia de que os cidadãos reunidos formariam um “corpo moral” implica que o súdito político “coletivo” é doravante dotado de todos os atributos da pessoa moral individual: vontade, racionalidade, autonomia, responsabilidade.122

Por esse motivo, apesar de o contrato social ser a construção humana acerca da

vontade geral, suas disposições regulam apenas e tão somente sua própria conservação,

de modo que a legislatura deve ser exercida em nome da vontade geral, pois esta não

pode recair sobre o particular apenas, porque abrange o todo.

Existindo o todo e a parte, surge com isso uma relação dialética, na qual a parte

faz parte do todo ao mesmo tempo em que o todo pode ou não fazer relação com a

parte. Considerando essa afirmação, a lei deve ser pensada como o todo e não a certo

ponto particular.

Eu já disse que não existe vontade geral sobre um ponto particular. De fato, este objeto particular está no Estado ou fora dele: uma vontade estranha não é geral em relação a ele, e se este objeto se enquadra no Estado, forma parte dele. Então há entre o todo e a parte uma relação que faz deles dois seres separados, dos quais a parte é um, o outro é tudo, menos essa parte. Porém o todo, menos uma parte não é o tudo, e enquanto isso subsistir, não existe o todo, senão duas partes desiguais: donde se deduz que a vontade de uma não é geral com referência à outra.123

Quando há deliberação do povo, o mesmo responsável pela vontade geral do

contrato social e o objeto no qual deve ser deliberada, a lei é de igual maneira analisada

no seu todo não iremos encontrar a relação todo-parte, mas sim a relação todo-todo, sem

divisões em partes, estabelecendo com isso a vontade geral sobre um objeto inteiro.124

122 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Ob. Cit. São Paulo: Editora Manole, 2005, p. 149. 123 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 54. 124 Analisando a forma de criação da lei e considerando a relação dialética entre a parte que se relaciona com o todo e o todo que se relaciona ou não com a parte, analisou Rousseau: “Quando todo o povo estatui sobre todo o povo, não considera senão a si mesmo, e se então há relação, é, entre o objeto por inteiro sob um ponto de vista, e o objeto inteiro, sob outro ponto de vista, sem divisão alguma do todo. Então a matéria estatuída é geral, como a vontade que estatui. Este ato é o que eu denomino uma lei. Quando digo

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Conclui-se, por isso, que a lei nunca será algo voltado para vontades

particulares, como as de outrora criadas para privilegiar e proteger a propriedade

privada. Ela será sempre geral, sem distinção, podendo conceder privilégios, mas nunca

nomear os privilegiados. A lei será para todos, vez que elaborada por todos.

Assim, pode bem a lei estatuir que haverá privilégios, porém não pode nomear o privilegiado. Pode classificar os cidadãos e ainda assinalar as qualidades que darão direito a estas classes, mas não pode nomear os que nelas hão de ser aceitos. Pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real. Em resumo, toda função que se refere a um objeto individual, não é da alçada do poder Legislativo.125

Temos, então, que a união dos homens em busca do bem comum constituiu o

fundamento legal, a doutrina jurídica capaz de impedir os abusos que a lei individualista

tenta proteger. Mesmo não parecendo crível um conjunto de pessoas reunidas e com

vontades distintas, com a razão pública dotada de vontade, racionalidade, autonomia e

responsabilidade, as características do homem virtuoso em sua liberdade, que se

transmutam também na sociedade, torna-se possível identificar a construção filosófica

em torno da ideia de que a vontade política dessa união não poderá ser desvirtuada.126

Esta impossibilidade de desvirtuação na qual a vontade geral está inserida se

resume na convivência harmônica entre os homens e, mesmo havendo divergências, o

respeito à liberdade de cada um faz com que não se tenha abusos, de modo que o corpo

político dotado das virtudes humanas não pode impedir a expressão da liberdade de

cada ser humano.

Com esse pressuposto, a lei deve ser guiada por duas bases sólidas: a liberdade e

a igualdade, já que sem elas não haveria como existir a legislatura de acordo com a

vontade geral e em vista do bem comum.127

que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera dos súditos em corpo e os atos como abstratos, jamais a um homem como individuo nem a um ato particular”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 54). 125 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 54. 126 Ainda: “Cada contratante torna-se membro do soberano: ele é cidadão, na medida em que participa da autoridade soberana, e sujeito, na medida em que é submetido a ela. Mas é uma mesma vontade que, de um lado e, do outro, obedece. É esse o sentido da autonomia para Rousseau: ‘Cada um ao obedecer a todos não obedece senão a si mesmo’”. (BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 264). 127 Neste sentido: “Se indagarmos em que consiste precisamente o maior bem de todos, que deve ser o fim de todo sistema de legislaçao, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: liberdade e igualdade. A liberdade, porque toda dependência particular é outro tanto de força tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode existir sem ela. [...] o que torna a constituição de um Estado verdadeiramente sólida e estável é o fato das conveniências serem de tal modo observadas que as circunstâncias naturais e as leis estejam sempre de acordo nos mesmos pontos e que aquelas façam, senão

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Não obstante, Jean-Jacques Rousseau diferencia quatro tipos diferentes de leis

que, juntas, além de organizar o Estado, organizam também a sociedade civil e suas

relações, todas pautadas na vontade geral, sendo elas: (i) leis políticas; (ii) leis civis; (iii)

leis penais; e (iv) as leis advindas dos costumes, hábitos e tradições.

As primeiras (políticas) são assim chamadas porque determinam o fundamento

do Estado, das relações do todo com o todo e do soberano com o Estado, cabendo ao

povo, sempre que as leis forem consideradas injustas, estabelecer nova dogmática legal.

As leis que regulam esta relação denominam-se leis políticas e chamam-se também leis fundamentais, não sem relativa razão, se estas forem leis sábias, porque, se em cada Estado só existe uma única forma boa de ordenar, o povo que a encontrou deve conformar-se com ela. Porém se a ordem estabelecida é má, por que chamar de leis fundamentais às leis que lhe impedem de ser bom? Por outro lado, o povo é sempre dono de mudar suas leis, mesmo as melhores, porque se lhe apraz fazer mal a si mesmo, quem é capaz de evitá-lo?128

O povo é o único detentor da vontade geral e o único capaz de mudar as leis em

caso de injustiças ou até mesmo se estas são boas. Deve-se ter em mente que, por

melhor que a lei possa ser, ela deve visar sempre o bem comum, caso contrário estaria

voltada para particulares e assim perderia seu objeto e o seu princípio central.

Hoje conhecemos este ramo como direito público, responsável pela gerência do

Estado e regulador das leis que procuram fazer com que o Soberano não tenha mais

poderes do que aqueles advindos da vontade geral ou no lugar de uma república haveria

uma tirania, com um déspota.

Nas relações entre os particulares ou entre esses e o corpo, Rousseau

compreende que as leis civis devem garantir a liberdade e a independência dos cidadãos

frente aos demais cidadãos, isto porque todo homem é livre e, como vimos, é dessa

liberdade que surge o contrato social, fazendo com que somente o Estado possa

interferir na liberdade dos cidadãos de acordo com a vontade geral.

A segunda relação é a dos membros entre si, ou com o corpo inteiro, e esta relaçao deve ser com referência ao primeiro muito pequena, e grande com referência ao segundo, de sorte que cada cidadão seja perfeitamente indepedente dos outros e excessivamente dependente da

assegurar, pelo menos acompanhar e retificar estas. Porém se o legislador errar no seu objeto, toma um princípio diferente daquele que nasce da natureza das coisas, tendo um à servidão e outro à liberdade, um à riqueza e outro ao povoamento, uma à paz e outro às conquistas, e vereis as leis se debilitarem insensivelmente, modificar-se a constituição e o Estado não deixará de agitar-se até que for mudado ou destruído, recuperando a natureza, então, o seu império invencível”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, pp. 67-9). 128 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, pp. 69-70.

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nação, o que se dá sempre pelos mesmos, meios, porque só o Estado pode minorar a liberdade de seus membros. Desta segunda relação nascem as leis civis.129

As relações civis são aquelas que não dizem respeito propriamente a elaboração

das leis ou às coisas públicas do bem comum, mas a forma com que cada cidadão na sua

particularidade se relaciona com os demais e com o Estado.

A lei civil, mesmo genérica e visando abarcar a todos, procura direcionar seu

foco para gerir as relações sociais particulares, entre os indivíduos e o Estado ou mesmo

dos indivíduos entre si, no que conhecemos hoje como direito privado.

A terceira classe de leis pensadas por Rousseau se relacionam com as duas

primeiras, sobretudo com relação às leis civis, de modo que o descumprimento legal,

além de ser um ato atentatório ao Estado e à vontade geral, é também passível de pena.

A sanção deve ser também um instrumento legal, já que o não atendimento aos

preceitos legais estabelecidos pode levar ao cometimento de crimes. “Pode-se

considerar uma terceira classe de relação entre o homem e a lei, a saber, a da

desobediência à pena. E isso dá lugar à instituição de leis criminais que, no fundo, são

menos uma espécie particular de leis que a sanção de todas as outras”.130

Por fim, o quarto tipo de leis é a que Rousseau considera ser a mais importante,

sendo ela a fundadora de todo o pensamento legal, validando desde a constituição do

Estado até a união do povo em busca de um ideal comum na vontade geral e servindo

ainda para suprir necessidades ou omissões legais.

Tal lei não está escrita ou fundamentada, devendo ser encontrada em todos os

cidadãos, pois eles formam o Estado, com sua vontade geral, buscando por seus

costumes, hábitos e opiniões formar o princípio estrutural da nação.

Quero me referir aos costumes, aos hábitos, e, sobretudo, à opinião, parte desconhecida dos nossos políticos porém da qual depende o êxito de todas as outras; parte da qual o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se aos regulamentos particulares, que não são senão o arco da abóbada, de que os costumes, nascendo lentamente, formam, enfim, a inquebrantável chave.131

Interessante notar como Rousseau dá especial atenção às leis costumeiras,

incutindo nelas inclusive o grau de mais importantes para a formação e constituição do

Estado, velada pela vontade geral.

129 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 70. 130 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 70. 131 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 70.

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Os princípios do direito costumeiro, dos hábitos da população e da opinião

individual de cada cidadão, pressupõe Rousseau, são os pilares de todas as classes

jurídicas existentes e, mais do que isso, do próprio Estado, sendo elas as responsáveis

pela formação do contrato social pela vontade geral.

Por tais motivos, a lei e o legislador serão vistos na doutrina rousseauniana como

fundamentais à organização do Estado e, mais ainda, como preponderantes ao

funcionamento da República. Demonstra, assim, que o legislador desempenha o mais

alto cargo político na república, como em Locke, que o coloca acima das

particularidades humanas (ou estaríamos diante de um tirano).

O legislador é, sob todos os pontos de vista, um homem extraordinário no Estado. Se o é pelo seu talento, não o é menos pelo seu cargo. Não é este de magistratura, nem de soberania. Este cargo, que constitui a República, não entra em sua constituição: é uma função particular e superior, que nada tem de comum com o império humano, porque se aquele que manda nos homens não deve dominar sobre as leis, aquele que domina as leis tampouco deve mandar nos homens. Do contrário, com as leis do tirano, ministro de suas paixões, não farão, muitas vezes, senão perpetuar suas injustiças e nunca poderão evitar que opiniões particulares alterem o saneamento de sua obra.132

A concepção filosófica de Rousseau se tornará base das repúblicas democráticas

em oposição ao despotismo unitário contrastante e presente em quase toda a Europa, de

modo que o povo reunido e em deliberação cria as leis que regerão o Estado, de forma

imperativa e universal.133

Por isso no pensamento rousseauniano não é possível, ou melhor, não é

admissível que os homens sejam submetidos a um, seja um governante ou uma

assembleia de pessoas, pois neste caso não haverá as principais características que até

então tratamos no pensamento do filósofo humanista e estaria todo esse agrupamento

voltado para uma vontade particular e não geral.

Vê-se, ademais, que, reunindo à lei a universalidade da vontade e a do objeto, o que um homem, seja qual for, ordena por si, não é uma lei. O que ordena o soberano sobre um objeto particular, tampouco é uma lei, senão um decreto, nem um ato de soberania, senão de magistratura. Denomino, pois, República, a todo Estado regido por lei, qualquer que seja sua forma de administração, porque somente então é

132 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 57. 133 Neste sentido: “O resultado da deliberação é a lei, expressão imperativa e universal da vontade geral. Assim, o contrato social permite passar da dependência dos homens à dependência das leis. O Estado regido por leis é uma república, em oposição ao despotismo, e a concepção rousseauniana da república é uma democracia direta em que o povo reunido “estatui em pessoa”: “A vontade não se representa”. (BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Dicionário Universitáro dos Filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 264).

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que o interesse público governa e a coisa pública representa algo. Todo governo legítimo é republicano.134

Neste ponto, cumpre-nos salientar, tal qual fizemos em Montesquieu, que Estado

e Governo são dois pontos distintos na filosofia de Rousseau. Enquanto o Estado se

configura como República, aquele regido por uma lei, o Governo é a forma de

administração desse Estado, podendo ser uma Monarquia (com um governante), uma

Aristocracia (com poucos governantes) ou uma Democracia (com muitos governantes).

O tamanho do Estado aquele que definirá a melhor forma de Governo: se possuir

grandes proporções, uma Monarquia; se médias proporções, uma Aristocracia; se de

pequenas proporções, uma Democracia. É a necessidade pautada no tamanho do Estado

que servirá como norte para se saber qual a melhor forma de governo a se constituir,

lembrando que para Rousseau ele sempre será uma República, mudando tão somente a

forma de governo de acordo com suas proporções.

Tendo nascido em meio a governos absolutistas, Rousseau conseguiu identificar

a diferença entre um agrupamento de pessoas que respondem apenas às vontades

particulares do monarca daquilo que posteriormente se configurou como pressuposto

das repúblicas contemporâneas: o respeito ao benefício público que com isso se torna o

respeito às próprias individualidades, em contraposição ao medo decorrente do

individualismo monárquico absolutista.135

Outro ponto fundamental se concentra sobre o fato de que, na república, a

soberania é inalienável, isto é, pelos princípios que regem a sociedade, somada a

moralidade dos particulares, a vontade geral não pode ser “colocada à venda”, pois não

pode ser subvertida em nome de interesses privados.

Tanto é que, segundo Rousseau, o poder pode ser transmitido, mas jamais a

vontade geral. Podemos perceber que o cargo político do ser coletivo é passível de

134 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 55. 135 Ainda: “Existirá grande diferença entre submeter uma multidão e reger uma sociedade. Se homens dispersos são sucessivamente submetidos a um só, qualquer que seja seu número, não vejo aqui senão um senhor e seus escravos. Não vejo um povo e seu chefe e isto será, quando muito, um agrupamento, porém, nunca uma associação. Nela não existe nem o benefício público, nem o político. Este homem, mesmo que escravizasse meio mundo, seria sempre um simples particular. Seu interesse, isolado do dos outros, não será mais que um interesse privado. Se este mesmo indivíduo perecer, seu império, depois dele ficará disperso e sem laço de união, como o azinheiro que se desmancha e cai feito cinzas depois que o fogo o consumiu”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 34).

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transmissão, enquanto que a vontade ficará intacta, uma vez que a vontade geral não

pode sofrer modificações.136

Da mesma forma que é inalienável, a soberania é também indivisível. Não se

trata de afirmar que a forma de gerir a sociedade deva ser feita por uma pessoa, mas sim

que a vontade geral não pode ser dividida porque é única e advinda de um único corpo

político, que não pode ser dividido.

Não se pode dividir porque se perderia o seu princípio, a vontade geral se

dividiria em duas (ou mais) e não poderia ser considerada mais vontade geral, já que

não seria uma vontade única e indivisível, mas várias vontades particulares formadoras

de agrupamentos, não de uma verdadeira associação.

Pela mesma razão que a soberania é inalienável, é indivisível, porque a vontade é ou não geral: é a de todo o povo ou a de uma parte dele. No primeiro caso, esta vontade declarada é um ato de soberania e faz lei, no segundo, é simplesmente uma vontade particular, um ato de magistratura, ou, quando muito, um decreto.137

Destarte, encontramos não os princípios da soberania e da vontade geral,

divididos, e sim o seu objeto, de modo que o corpo político permanece uno, mas se

divide em Legislativo, Executivo, Judiciário, órgãos responsáveis pela administração

em geral, etc., todos coadunando em prol do bem comum, respaldados pela soberania e

pela vontade geral.138

Realizando um trabalho hermenêutico, percebemos que na própria Constituição

Federal de 1988, podemos encontrar no Art. 1º, I e II, os princípios fundamentais pelos

quais o Brasil se constituiu, sendo formado pela sua soberania e pelo povo, fundamentos

estes do pensamento rousseauniano.139

136 Neste sentido: “Afirmo, pois, que não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, não pode alienar-se, e ainda que seja o soberano, que é o ser coletivo, não pode representar-se senão por si mesmo, podendo o poder ser transmitido, porém, não a vontade”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 43). 137 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 44. 138 Neste sentido: “Nossos políticos, não podendo dividir a soberania em seu princípio, dividem-na, quanto a seu objeto, em força e vontade, em poder Legislativo e em poder Executivo, em direitos de impostos, de justiça e de guerra, em administração interna e no poder de tratar com o estrangeiro: às vezes confundem todas essas partes, separando-as das outras, fazendo da soberania um ser fantástico, formando de diversas peças. É como se construíssem um homem com muitos corpos, nos quais um somente tivesse os olhos, outro os braços e outro os pés”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 44). 139 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania;

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Diante deste cenário, Rousseau então afirma que existe uma clara distinção entre

a função de legislar e a função do Executivo, que são distintas desde sua origem até sua

finalidade, não podendo por isso entrar na generalidade das leis, muito menos ser

exercida pela generalidade do povo (embora deva respeitar a vontade geral, que é

revertida na lei).

Temos visto que o poder Legislativo corresponde ao povo, devendo pertencer exclusivamente a ele. Compreende-se, pelos princípios anteriormente estabelecidos, que, pelo contrário, o poder Executivo não pode ser próprio da generalidade como legisladora ou soberana, porque este poder consiste em atos particulares que não são próprio do cadastro da lei, nem do soberano, cujos atos só podem ser leis.140

Percebemos, assim, que Rousseau estabelece também um modelo pautado na

monarquia constitucional, vez que conduzirá as diretrizes da máquina estatal a um

mesmo sentido, fato este que não ocorre na Aristocracia e na Democracia, porque suas

configurações são insuficientes, havendo o soberano e o ministro no Executivo, bem

como o Legislativo e Judiciário.141 Essa configuração tomará forma e será melhor

visualizada quando em breve analisarmos a primeira fase da Revolução Francesa.

Sem contar que a doutrina rousseauniana pressupõe que o governo é vivo, já que

formado pela união de várias vidas que, por sua liberalidade e vontade geral, celebram o

pacto capaz de formar e fornecer as bases de sobrevivência do Estado.

Por outro lado, o modelo estatal possui inúmeros corpos públicos que atuam nas

diversas funções inerentes para sua formação e desenvolvimento, tais como a

legislativa, a executiva e a judiciária. O governo se torna a escala menor daquilo que o

corpo político dos cidadãos é em escala maior.

O governo é, em menor escala, o que o corpo político que o encerra é em maior. É uma pessoa moral provida de certas faculdades, ativa como o soberano, passiva como o Estado, e que pode decompor-se em outros aspectos semelhantes, donde nasce, por conseguinte, uma nova proporção, e ainda outra nesta, segundo a ordem dos tribunais, até chegar a um único chefe ou magistrado supremo, que pode

140 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, pp. 71-2. 141 Prossegue Jean-Jacques Rousseau em seu raciocínio para distinguir as funções legislativas da função executiva: “É, pois, necessário à força pública, um agente próprio que a reúna e a aplique segundo as diretrizes da vontade geral; que sirva de comunicação entre o Estado e o soberano; que faça, de algum modo, na pessoa social o que faz no homem a união da alma com o corpo. Vede qual é, no Estado, a razão do governo mal confundido com o soberano, de que somente é ministro. [...] Chamo, pois, governo ou suprema administração, ao exercício legítimo do poder Executivo; e príncipe ou magistrado, ao homem ou ao corpo encarregado dessa administração. No governo é onde se encontram as forças intermediárias cujas relações formam as do todo para o todo, do soberano ao Estado”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 72).

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representar-se, no meio desta progressão, como a unidade entre a série das frações e a dos números.142

Com isso, Rousseau novamente imprime a importância do corpo político

formado pelo povo que se exprime na vontade geral, de modo que “a diferença essencial

entre esses dois corpos é que o Estado existe por si mesmo, e o governo não existe

senão pelo soberano”.143

O governo, desta feita, é aquele que só existirá pelo soberano, enquanto o Estado

não necessita de um ponto específico, sendo formado por características outras que não

são as mesmas para o governo.

O magistrado (que não tem o mesmo significado que empregamos atualmente) é

o responsável pelo Executivo, estando sob os preceitos da lei, vez que somente a

vontade geral, que leva à soberania, pode designar como a lei será cumprida.

Isso não significa, todavia, que estarão diretamente ligados ao Executivo, pois

esta função não lhes pertence. Cabe ao povo a função de legislar e ao particular

(magistrado) ou uma associação de pessoas, executar as leis. É um trabalho individual

se comparado ao de legislar, embora ambos sejam múnus públicos.

Podemos definir, portanto, a doutrina de Rousseau com base nos seus postulados

sobre o estado natural do homem e sua liberdade. O contrato social, desta feita, será o

agente regulador da vida em sociedade, somente possível através dele.

Rousseau afirma que o estado natural do homem não é o da vida em sociedade, mas o do isolamento. O homem não é o animal socialis (“animal social”) de Aristóteles. Por não ser natural, a sociedade só pode advir de um livre contrato entre os homens. De onde se deduz que as normas que regem a vida social e política são expressões da vontade dos contratantes, isto é, dos membros do grupo social.144

O homem vive em isolamento e somente pelo agrupamento com outros homens

é possível a convivência, por meio do contrato social estabelecido entre os membros

desse grupo. É a livre associação a responsável por tirar o homem do seu estado natural.

As bases filosóficas pensadas por Rousseau compreendem um intrincado sistema

organizacional para o Estado e serviram não apenas como bandeira, mas também como

fundamento dos movimentos revolucionários que se seguiriam na França absolutista.

142 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 75. 143 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 75. 144 CICCO, Cláudio. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 199.

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Após estudarmos a doutrina de Rousseau, somada à de Montesquieu, percebemos como

as duas correntes foram preponderantes para o sucesso desses movimentos sociais.

1.9 REVOLUÇÃO FRANCESA E O IDEAL ILUMINISTA

O Século XVIII comportou inúmeras mudanças na ordem estrutural do

pensamento, da econômica e, também, das formas de governo. Os modelos

monárquicos, com as políticas que tinham como intuito determinar a estratificação da

sociedade e do modelo absolutista trouxeram à pauta discussões que abarcaram todas as

áreas do conhecimento.

O regime feudal ainda encontrava respaldo em alguns pontos da Europa e, com o

passar do Século XVIII o panorama foi mudando cada vez mais, com verdadeiras

revoluções nos países que ainda adotavam esse regime. De todos os movimentos do

período aquele que mais chamou a atenção e provocou uma verdadeira mudança geral

no pensamento político, econômico e social a nível global, foi a Revolução Francesa.

Desde a Renascença e com a Reforma Protestante, quando o teocentrismo foi

desestruturado visando o antropocentrismo, não apenas o poder da Igreja Católica foi

retirado. De igual maneira, os governos até então instituídos como intocáveis sob a

égide do papado foram colocados em voga, principalmente aqueles cujas fundações

continham a religião como pano de fundo.

Os ideais que se seguiam no Iluminismo colocavam o homem como centro do

universo, movimento esse que possibilitou as indagações acerca da situação política e

social até então existentes. O homem passou de mero espectador para o papel principal

no cenário europeu.

Os movimentos liberais na Inglaterra foram os responsáveis pela nova

contextualização política dos pensadores iluministas. Tendo Locke como expoente, suas

ideias de liberdade e governo serviram como base à formação do Estado Moderno.

Na França, Rousseau e Montesquieu forneceram o modelo que seria seguido na

maior parte dos países ocidentais lastreados pela liberdade e igualdade como

fundamentos de suas Constituições. No Estado Contemporâneo, a presença desses dois

filósofos está mais do que arraigada no pensamento político e social, apesar dos poucos

estudos atuais sobre suas obras.

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Foi no apogeu do absolutismo francês, com Luís XVI, que as diferenças entre as

classes sociais mais se acentuaram. Neste conturbado período a França estava dominada

por poucos, enquanto a maioria encontrava-se subjugada aos desígnios dessa minoria.

Dividida internamente, a França possuía uma situação desigual e contrastante. O

Clero e a Nobreza encontravam-se na posição privilegiada do Estado, chegando a cerca

de 400 mil pessoas. Enquanto isso, na base da pirâmide encontrava-se a burguesia, os

artesãos, os camponeses e operários, que juntos alcançavam aproximadamente 23

milhões de pessoas.

As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam, a nobreza, a inquestionável "primeira linha" da nação, embora não tão absolutamente a salvo da intromissão das linhas menores como na Prússia e outros lugares, estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (mas não de tantos quanto o clero, mais bem organizado), e do direito de receber tributos feudais. Politicamente sua situação era menos brilhante. A monarquia absoluta, conquanto inteiramente aristocrática c até mesmo feudal no seu ethos, tinha destituído os nobres de sua independência política e responsabilidade e reduzido ao mínimo suas velhas instituições representativas "estados" e parlements.145

O Terceiro Estado, inclusive, lutou para ter poderes “igualitários”, ao menos no

papel, com o Clero e a Nobreza, o que não refletia a numerosidade do povo que

integrava o mesmo, de modo que a própria Revolução se manteve graças ao grande

apelo das massas populares na luta.146

Temos, com isso, a caracterização das três classes, também chamadas de

Estados: o Clero, que constituía o Primeiro Estado; a Nobreza, que constituía o Segundo

Estado; e a burguesia (comerciantes e artesãos), camponeses e operários, que

constituíam o Terceiro Estado.

Apesar de se encontrar em menor número, o Clero e a Nobreza dominavam a

França e se encontravam no topo da pirâmide, enquanto a burguesia, sedenta pelo poder,

145 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 87. 146 Ainda: “O Terceiro Estado tinha lutado acirradamente, e com sucesso, para obter uma representação tão grande quanto a da nobreza e a do clero juntas, uma ambição moderada para um grupo que oficialmente representava 95% do povo. [...] O Terceiro Estado obteve sucesso contra a resistência unificada do rei e das ordens privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os trabalhadores pobres das cidades, especialmente os de Paris, e, em resumo, também o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma profunda crise socioeconômica”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 22-3).

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estava na “vala comum” com os camponeses da base piramidal, responsáveis na

verdade pela manutenção e sobrevivência da classe dominante.

As disputas entre Clero e Nobreza também aconteciam, sobretudo quando em

voga a posição de destaque próximo da monarquia absolutista, o que levava a batalhas

por reconhecimento de sua grandeza cada vez mais acirradas.

Era natural que os nobres usassem seu bem principal, os privilégios reconhecidos. Durante todo o século XVIII, na França como em tantos outros países, eles invadiram decididamente os postos oficiais que a monarquia absoluta preferia preencher com homens da classe média, politicamente inofensivos e tecnicamente competentes.147

O luxo do topo da pirâmide contrastava com o lixo da base. Para que poucos

pudessem desfrutar das melhores condições, de festas esplendorosas e das riquezas em

abundância, muitos sofriam com as intempéries diárias e lutavam para sobreviver na

miséria, enquanto alimentavam com o seu trabalho mais o Clero e a Nobreza do que a

eles próprios.

Fica claro que além de assegurar os privilégios das classes dominantes, os

camponeses, operários e a burguesia também bancavam o Estado como um todo. Apesar

dos luxos, outros problemas tomavam de igual forma boa parte das receitas estatais, o

que impossibilitava qualquer mudança na ordem social.148

Destaca-se ainda o fator primordial que levou Rousseau a desenvolver suas

teorias políticas: a legislação acerca da propriedade, que neste período procurava

assegurar ao Clero e à Nobreza a inviolabilidade de seus domínios, ainda que a maior

parte do povo nada tivesse e o que possuíam não se encontrava seguro diante da

disparidade legal.

Além de sustentar com o fornecimento das melhores mercadorias produzidas, a

alta carga tributária fazia com que a maior parte das receitas oriundas do esforço dos

camponeses e operários fossem destinados diretamente para o Primeiro Estado,

justificando mais uma vez os gastos com suntuosos caprichos enquanto o povo

permanecia em miséria extrema.

Os problemas financeiros da monarquia agravaram o quadro. A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta,

147 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 88. 148 Neste sentido: “Embora a extravagância de Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte só significavam 6% dos gastos totais, em 1788. A guerra, a Marinha e a diplomacia constituíam um quarto, e metade era consumida pelo serviço da dívida existente. A guerra e a dívida – a guerra americana e sua dívida – partiram a espinha dorsal da monarquia. A crise deu à aristocracia e aos parlaments a sua oportunidade. Eles se recusavam a pagar pela crise se seus privilégios não fossem estendidos”. (HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 90).

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e a tentativa de remediar a situação por meio das reformas de 1774-76 fracassou, derrotada pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçados pelo parlaments. Assim, a França envolveu-se na guerra de independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtido ao custo de bancarrota final e, portanto, a revolução americana pôde proclamar-se causa direta da Revolução Francesa.149

A burguesia também sofria com a cobrança de tributos, mas ainda assim

conseguiu ficar em situação melhor do que as classes baixas francesas. Tudo isso se

deve ao fato de, embora ambos pertencentes ao Terceiro Estado, a burguesia possuir

propriedades, bem como o comércio desenvolvido desde a Idade Média, que foi

amplamente impulsionado com as expansões marítimas.

De fato, todo o cenário francês proporcionava uma verdadeira revolta, já que

muitos camponeses e operários trabalhavam horas seguidas e exaustivas, ficando

privados de suas necessidades básicas para que poucos pudessem desfrutar do melhor e

manter o seu status.

Não obstante esta situação, a burguesia se via prejudicada com a situação de

estratificação social, não podendo galgar para a nobreza francesa, ao mesmo tempo em

que deveriam se manter inserido no Terceiro Estado, dominada pela classe média que

não poderia estar nem na nobreza e nem no clero.

A bem da verdade, o grande motivo que gerou a revolta da burguesia envolve

justamente a questão do poder. Não podendo subir a nobreza e devendo permanecer

com os camponeses e operários, a situação do absolutismo monárquico e do papado

clerical foi o real pretexto de suas aspirações, muito embora as bandeiras levantadas

tenham sido outras, ou caso contrário não haveria o necessário apoio das massas. Não

podemos, assim, estudar a Revolução Francesa fora do seu próprio tempo.

A Revolução Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma, embora a mais proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da França.150

Desde a Renascença o modelo feudal foi colocado em voga. Agora, além desse

sistema, também o absolutismo e a aristocracia não mais gozavam de prestígio,

agravada pela situação geral do povo francês. Nem mesmo o domínio católico secular

estava assegurado em sua posição.

149 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 18. 150 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 86.

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O descontentamento era geral e a eclosão de um enfrentamento entre o povo e a

Monarquia Francesa era questão de tempo. Em primeiro lugar, apesar de estar em

sintonia constante com a Monarquia, o Segundo Estado foi compelido a recolher ainda

mais impostos, o que com certeza não deixou a Nobreza feliz.

Temos de ter claro, antes de adentrarmos propriamente no estudo dos

movimentos revolucionários, que os eventos ocorridos entre 1789 e 1799 não tiveram

propriamente um partido político à frente tomando as rédeas da situação e sim uma

classe, que já representava uma grande parcela da população, inclusa boa parte (ou a

maioria) dos descontentes.

A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter “líderes” do tipo que as revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimento da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de ideias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas ideias era as do liberalismo clássico, conforme formuladas por “filósofos” e “economistas” e difundidas pela maçonaria e associações informais. Até este ponto os “filósofos” podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e sua substituição rápida e efetiva por um novo.151

Assim, devemos entender que a burguesia não apenas se mostrou em ascensão

neste período, como foi a força propulsora que colocou os ideários liberais nas colunas

da revolução defendida tanto por eles como pelos camponeses, grande maioria do povo

francês na época.

Em maio de 1789 podemos perceber as primeiras movimentações neste sentido,

quando houve a convocação dos Estados Gerais, tendo como intuito discutir os rumos a

serem tomados, de modo que o conservadorismo presente na nobreza impediu a prática

da maioria dos atos discutidos.

Por conta disso, em junho do mesmo ano, o Terceiro Estado se reorganiza em

forma de Assembleia Nacional. A burguesia toma a frente como líder intelectual do

movimento com o propósito de elaborar uma Constituição Francesa e, embora Luís XVI

tenha se oposto ao movimento, foi obrigado a reconhecer sua autoridade, que passou a

ser chamada de Assembleia Nacional Constituinte.

151 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 90.

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O Terceiro Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas dos trabalhadores pobres das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também, o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma profunda crise socioeconômica.152

O sucesso da burguesia encontrava-se exatamente no Terceiro Estado, isto

porque apesar de pouco instruído, era formado por milhões de pessoas, que

compensavam a falta de intelecto pela força física da massa, cabendo à burguesia (na

maior parte do tempo) a função de pensar, fazendo com que algo que poderia muito bem

terminar em uma simples reforma ordenada pelo monarca se transformasse numa

revolução sem precedentes mundiais.

Em 14 de julho de 1789, tem início o que é considerado o evento central de toda

a Revolução Francesa: a Queda da Bastilha. Inúmeras pessoas se amontoam e,

incandescidas pelo furor revolucionário, tomam a fortaleza medieval localizada no

coração de Paris, à época principal prisão da França.

Esses três momentos marcaram profundamente o período estudado e foram

fundamentais para os eventos que se seguiram durante os anos de Revolução Francesa,

que atravessou inúmeras fases até a ascensão de Napoleão Bonaparte, em 1804.153

É inegável que o movimento camponês deu à Revolução Francesa o que ela

precisava para estruturar os ideais da burguesia. Foram as grandes massas que

ocasionaram o chamado “Grande Medo”, entre julho e agosto de 1789. Foi sua força

física com a força das ideias burguesas que colocaram fim ao absolutismo feudal.

As revoluções camponesas são movimentos vastos, disformes, anônimos, mas irresistíveis. O que transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma convulsão irreversível foi a combinação dos levantes das cidades provincianas com uma onda de pânico de massa, que se espalhou de forma obscura mas rapidamente por grandes regiões do país: o chamado Grande Medo (Grande Peur), de fins de julho e princípio de agosto de 1789. Três semanas após o 14 de julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França Real ruíam em pedaços.154

152 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 90. 153 Neste sentido: “Assim, a revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Esta tentativa foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do Terceiro Estado – a entidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero porém, de fato, dominada pela classe média – e desprezou a profunda crise socioeconômica em meio à qual lançava suas exigências políticas”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 94). 154 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 94.

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Caía não somente o absolutismo, como toda a estrutura social francesa era

colocada em voga e destruída. Com os privilégios feudais abolidos e as instituições

monárquicas sem quaisquer forças ou representatividades, a classe média e a

aristocracia foram obrigadas a baixar a guarda.155

Dentre as primeiras mudanças ocorridas, no campo jurídico muitos pontos foram

não apenas criticados, como modificados, adequando ao direito o mesmo furor

revolucionário dos campos sociais e econômicos que permearam a revolução para trazer

finalmente as mudanças políticas necessárias.

O sistema jurídico como um todo estava fadado a ruir com o absolutismo,

sobretudo pelo caráter autoritário e com o claro intuito de favorecer as classes

dominantes da pirâmide (Clero e Nobreza), bem como ao governo despótico, que juntos

detinham o controle do Estado e da economia.

Especificamente no campo jurídico, a crítica se concentrou em alguns pontos sensíveis. Primeiramente, na desigualdade perante a lei, uma vez que a nobreza e o clero desfrutavam de privilégios fiscais e acesso exclusivo aos cargos públicos. Em segundo lugar, nas limitações às pessoas e à propriedade, que se manifestavam na existência da servidão e nos entraves às atividades econômicas. Em terceiro lugar, nas intervenções arbitrárias dos governantes e na impossibilidade de participação popular nos assuntos públicos.156

Tanto é verdade que uma das primeiras conquistas que pode ser documentada

por esse movimento foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de

agosto de 1789, votada pela Assembleia Nacional Constituinte, definindo os direitos

individuais e coletivos dos homens como universais.

Podemos salientar alguns importantes aspectos da supracitada Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão que são encontrados amplamente na doutrina de

Rousseau, considerados como direitos naturais de todos os seres humanos, sendo

capitais para a fomentação posterior dos direitos humanos.

155 Ver também: “Tudo o que restou do poderio esta tal foi uma dispersão de regimentos pouco confiáveis, uma Assembleia Nacional sem força coercitiva e uma multiplicidade de administrações municipais ou provincianas da classe média que logo montaram "Guardas Nacionais" burguesas segundo o modelo de Paris. A classe média e a aristocracia imediatamente aceitaram o inevitável: todos os privilégios feudais foram oficialmente abolidos embora, quando a situação política se acalmou, fosse fixado um preço rígido para sua remissão. O feudalismo só foi finalmente abolido em 1793. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 94-5). 156 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2ª Edição, 2008, p. 18.

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Logo em seu Art. 1º, a Declaração estampa que todos os homens nascem livre e

iguais em direitos, complementando no Art. 2º que toda sociedade se origina com o

intuito de garantir os direitos naturais dos homens, quais sejam, a liberdade, a

propriedade, a segurança e a resistência à opressão.157

Do pensamento rousseauniano, extraímos a ideia de liberdade que encampa toda

a sua doutrina, vez que o próprio contrato social só terá existência e ganhará vulto se

realizado pelos homens em suas plenas faculdades, o que inclui a liberdade. Qualquer

ato que advenha de uma única pessoa e seja posteriormente “ratificado” pela sociedade

(pelo uso ou não da força) não é um contrato social.

Essa concepção fica muito clara quando analisado o Art. 3º, da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, que versa sobre a soberania encontrada na Nação e,

por conseguinte, oriunda da sociedade.158 O Art. 6º, porém, é o que melhor desenvolve a

ideia sobre a vontade geral ser a detentora do poder, deixando expressamente claro que

é do homem que esta vontade advém e somente a partir dela que se manifesta a criação

legislativa.159

Fica evidente pela análise literal de alguns artigos da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789 que Jean-Jacques Rousseau exerceu papel preponderante

com sua filosofia e, mais do que isso, possibilitou a quebra com o sistema jurídico

voltado ao absolutismo.

O direito não poderia continuar dominado pela tradição e pela autoridade. A razão humana deveria tomar a seu cargo um projeto de renovação dos ordenamentos jurídicos. As regras deveriam ser claras e

157 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. In: Faculdade de Direito da Universidade Nova Lisboa. Disponível em: <http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/mla_MA_19926.pdf>. Acesso em: 26/08/2014. Artigo 1º- Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Artigo 2º- O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade. a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. 158 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. In: Faculdade de Direito da Universidade Nova Lisboa. Disponível em: <http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/mla_MA_19926.pdf>. Acesso em: 26/08/2014. Artigo 3º- O princípio de toda a soberania reside essencialmente em a Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não emane expressamente. 159 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. In: Faculdade de Direito da Universidade Nova Lisboa. Disponível em: <http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/mla_MA_19926.pdf>. Acesso em: 26/08/2014. Artigo 6º- A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a proteger quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.

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facilmente reconhecíveis. Não deveriam se contradizer. Antes, deveriam participar de um sistema coerente.160

Ao longo de toda Revolução Francesa (1789-1799), quatro fases marcaram seus

dez anos e que culminaram no golpe de Estado de Napoleão Bonaparte (conhecido

como 18 Brumário), de modo que trataremos de cada uma dessas fases devido sua

importância nos eventos revolucionários e na identificação das doutrinas filosóficas

trabalhadas anteriormente.

A primeira foi chamada de Fase Constitucional (1789-1791), ficando marcada

pela Assembleia Nacional Constituinte, formada na sua maioria por representantes da

burguesia. Neste período, a burguesia vitoriosa tomou medidas para providenciar as

mudanças oriundas das transformações profundas do cenário francês.

Nas questões econômicas, diferentemente do que ocorria no modelo absolutista,

pregou o total ideário liberal, marcando o período com o fortalecimento das classes

economicamente ativas, tais como os camponeses, os empresários rurais e os pequenos

artesãos, num primeiro momento, atingindo também posteriormente ao povo comum,

quando da alienação das propriedades da Igreja.

Economicamente, as perspectivas da Assembleia Constituinte eram inteiramente liberais: sua política em relação aos camponeses era o cerco das terras comuns e o incentivo aos empresários rurais; para a classe trabalhadora, a interdição dos sindicatos; para os pequenos artesãos, a abolição dos grêmios e corporações. Dava pouca satisfação concreta ao povo comum, exceto a partir de 1790, com a secularização e a venda dos terrenos da Igreja (bem como dos terrenos da nobreza emigrante) que tinha a tripla vantagem de enfraquecer o clericalismo, fortalecer o empresário rural e o provinciano e dar a muitos camponeses uma retribuição mensurável por suas atividades revolucionárias.161

É fato que os ideários “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” refletem as

bandeiras intentadas pelo liberalismo lockeano e pela filosofia rousseauniana, mas

também foi utilizado pela burguesia para mexer com as massas e mover a real máquina

que colocaria um fim no absolutismo e levaria a burguesia ao poder.

Sem o apoio dos camponeses e operários, não seria possível o sucesso da

Revolução Francesa e muito menos da burguesia, que conseguiu não apenas alcançar o

seu intento, como se manteve e se perdurou no mesmo.

160 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Ob. Cit. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2ª Edição, 2008, 18. 161 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 31.

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Aqui, temos que compreender que a monarquia permaneceu no poder nesta

primeira fase da Revolução Francesa, mas com uma grande diferença: agora não mais

era um Monarca Absoluto e sim um Monarca Constitucional, ou seja, deveria observar

as leis como qualquer outro cidadão, lembrando o que estudamos acerca de

Montesquieu, que previa na Monarquia Constitucional o modelo perfeito de Estado.

O burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários. Oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas também a vontade geral do "povo", que era por sua vez (uma significativa identificação) "a nação francesa". O rei não era mais Luís, pela Graça de Deus, Rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito constitucional do Estado, Rei dos franceses. "A fonte de toda a soberania", dizia a Declaração, "reside essencialmente na nação". E a nação, conforme disse o Abade Sieyès, não reconhecia na terra qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade que não a sua - nem a da humanidade como um todo, nem a de outras nações.162

Luis XVI se tornou um rei sem qualquer privilégio sobre a nação, até porque era

o povo que o reconhecia enquanto governante, não podendo, por isso mesmo, estar

acima do povo ou da Constituição que convalidava o seu posto. Passou a ser não apenas

rei pela graça de deus, como também pelo direito constitucional do Estado, deixando

igualmente de ser Rei da França para sê-lo dos franceses.

Embora revolucionária, a democracia excessiva foi rechaçada, pois mesmo com

a amplitude do direito de voto dos “cidadãos ativos”, levando a um sistema de

monarquia constitucional, se esperava que os “cidadãos passivos” aceitassem a

dominação daqueles que estavam no poder.163

Por evidência o consenso e a aceitação não ocorreram, tendo discordâncias de

ambos os lados: da monarquia, sedenta pela volta do absolutismo em detrimento do

“governo plebeu” instaurado e da massa passiva que, igualmente revolucionária, via as

transformações econômicas incontroladas acentuar as flutuações dos preços, sobretudo

pela livre empresa dos moderados.

162 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 91. 163 Neste sentido: “A incontrolada economia de livre empresa dos moderados acentuou as flutuações dos preços dos alimentos e, consequentemente, a militância dos pobres das cidades, especialmente em Paris. O preço do pão registrava a temperatura política de Paris com a exatidão de um termômetro e as massas de Paris eram a força revolucionária decisiva: não por mero acaso, a nova bandeira nacional francesa foi uma combinação do velho branco real com as cores vermelha e azul de Paris”. (HOBSBAWM, Eric. A Revoluçã Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 32).

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A Constituição Francesa de 1791 trouxe por isso descontentamento tanto à

extrema direita, ao rei e à aristocracia, como à extrema esquerda, aos pequenos e médios

burgueses, além do povo que continuava pagando impostos, agora por conta do fim do

feudalismo. Enquanto isso, a alta burguesia permanecia exatamente onde sempre

desejou: no poder.

Em setembro de 1791, foi publicada a Constituição. O Poder Legislativo caberia a uma Assembleia Nacional; o Executivo, ao rei, que tinha direito de veto sobre as decisões da Assembleia. Neste ponto o mestre era Montesquieu. A França tornara-se uma monarquia constitucional a partir dessa data, assim como a Inglaterra.164

Importante mencionar a questão da divisão entre o Legislativo e o Executivo,

além do direito de veto do rei sobre as decisões da Assembleia. Colocava-se como o

modelo inglês, sem o absolutismo real e a legalidade, que eram os princípios

norteadores a todos, incluindo o rei.

A influência de Montesquieu é mais do que visível neste período. A forma com

que foi feita a separação das funções e a não concentração decisória nas mãos de uma

única pessoa são marcas do filósofo e exatamente o oposto do que acontecia no

despotismo francês, marcado pelo Estado Absolutista.

Ademais, devemos considerar que Montesquieu é contrário tanto ao despotismo

como à democracia, porque o primeiro é o governo da minoria e o segundo o governo

da maioria, sendo ambas formas de um mesmo absolutismo. Este foi um ideal utilizado

pela Revolução Francesa nestes primeiros anos de Monarquia Constitucional.

Esta primeira fase marca justamente o período em que a burguesia se fixa no

poder por meio da Assembleia Constituinte e consegue realizar as transformações em

toda a França conforme pregado por eles. Ao rei caberia o respeito da Constituição,

governando de acordo com ela.165

Em 1792, por conta dos novos eventos acima narrados e da insatisfação que se

espalhava em todas as camadas sociais (exceto a agora dominante alta burguesia),

164 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 216. 165 Analisa Hobsbawm: “Entre 1789 e 1791, a vitoriosa burguesia moderada, atuando através do que tinha a esta altura se transformado na Assembleia Constituinte, tomou providências para a gigantesca racionalização e reforma da França, que era seu objetivo. A maioria dos empreendimentos institucionais duradouros da revolução datam deste período, assim como os seus mais extraordinários resultados internacionais, o sistema métrico e a emancipação pioneira dos judeus”. (HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 97).

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eclodiu finalmente a guerra, apoiada pela ampla maioria da Assembleia Legislativa,

dando origem à nova revolução.166

A monarquia bem que tentou restaurar o Estado Absoluto de outrora, mas a

guerra civil impulsionada pela extrema direita e a esquerda moderada levou a

monarquia a buscar o apoio estrangeiro da Prússia (que inclusive chegou a dominar

algumas partes do território francês), o que não foi visto com bons olhos na França.

Acusado de traição, Luís XVI foi condenado à morte juntamente com sua esposa, Maria

Antonieta da Áustria.

A guerra foi declarada em abril de 1792. A derrota, que o povo (bem plausivelmente) atribuiu à sabotagem e à traição real, trouxe a radicalização. Em agosto-setembro, a monarquia foi derrubada, a República estabelecida e uma nova era da história humana proclamada, com instituição do Ano I do calendário revolucionário, pela ação armada das massas sansculottes de Paris. A heroica idade de ferro da Revolução Francesa começou entre os massacres dos prisioneiros políticos, as eleições para a Convenção Nacional – provavelmente a mais notável assembleia na história do parlamentarismo – e a conclamação para a resistência total dos invasores.167

Marca, assim, o segundo período da Revolução Francesa, chamada de Fase

Republicana (1792-1793), sendo a total quebra com a monarquia, a morte de Luís XVI e

a conclamação da Convenção Nacional os principais seus eventos.

A Convenção foi dominada pelo partido girondino, extremamente belicosos no

exterior, mas muito moderados na França, representando os interesses da burguesia

provinciana, intelectuais e os grandes negócios.

A visão voltada à guerra trouxe ao novo modelo francês alguns pontos que,

posteriormente, fariam a diferença tanto na sociedade, como na economia e na política,

de modo que sua visão até hoje influencia nas guerras contemporâneas, sobretudo

quanto à indistinção até então existente entre soldados e civis, que passaram a ser iguais.

No decorrer de sua crise, a jovem República Francesa descobriu ou inventou a guerra total: a plena mobilização dos recursos de uma nação com o recrutamento, o racionamento e uma economia de guerra rigidamente controlada, e a virtual abolição, dentro do país e no exterior, da distinção entre soldados e civis. Foi apenas em nossa

166 Neste sentido: “Como logo se veria, a guerra podia ser feita para dar lucros. A maioria da nova Assembleia Legislativa, exceto uma pequena ala direitista e uma pequena ala esquerdista sob o comando de Robespierre, pregava a guerra. Por essas razões, também, quando a guerra chegou, as conquistas da Revolução viriam a combinar a libertação, a exploração e a direção política”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 35). 167 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2003, p. 100.

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própria época histórica que se manifestaram as tremendas implicações desta descoberta.168

A nova fase republicana, somada à Constituição Francesa de 1791, trouxe as

bases ao estabelecimento e fortalecimento de uma sociedade marcada pela forte

presença da burguesia e pelo desenvolvimento do capitalismo na parte econômica, em

contraposição ao antigo regime baseado na aristocracia e no feudalismo.

A guerra interna e externa movimentou os muitos pensamentos políticos

existentes. Os sanculottes, pelo governo revolucionário de guerra, desejavam acabar

com a intervenção estrangeira, bem como com a contrarrevolução que ainda encontrava

certa resistência, fazendo com o que o povo de igual maneira se mobilizasse em torno

desses ideais e não somente apoiassem, como também participassem ativamente.169

Esta fase se caracterizou, essencialmente, pelas disputas internas oriundas das

divisões partidárias ocorridas dentro da Assembleia Legislativa, que com a Proclamação

da República ocorrida em 1792 acumulou também as prerrogativas do Executivo antes

pertencentes ao rei.

Os girondinos, republicanos liberais e moderados, opunham-se aos jacobinos e aos igualitários “montanheses”, que não contentes com o caminho já percorrido pela Revolução no campo político e jurídico, queriam levá-la ao campo econômico e social. Assim surgiram as denominações esquerda, direita e centro na política, dadas em função da posição em que se sentavam as principais correntes políticas da época nas bancadas da Convenção Nacional. Os girondinos, liberais e revolucionários moderados, sentavam-se à direita, os Jacobinos, opositores dos girondinos, sentavam-se à esquerda, os indecisos, no centro, formando a chamada “Planície” e os montanheses se sentavam nas bancadas mais altas, também à esquerda. Daí a serem classificados como extrema esquerda.170

A Convenção Nacional era sim dominada pelos revolucionários, o que não

significa que concordavam com todas as ações tomadas. Neste trecho podemos

evidenciar como cada ala lutava em prol de um ideal diferente, uns propondo ações

mais enérgicas nas áreas sociais e econômicas, outros pregando pela continuidade do

168 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 36. 169 Neste sentido: “Os sanculottes saudaram um governo revolucionário de guerra, e não apenas porque defendiam com razão que só assim a contrarrevolução e a intervenção estrangeira podiam ser derrotadas, mas também porque seus métodos mobilizavam o povo e tornavam mais próxima a justiça social. (Eles desprezavam o fato de que nenhum esforço efetivo de guerra moderna é combatível com a democracia direta, voluntário e descentralizada que acalentavam). (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 37). 170 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 217.

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modelo republicano recém-instaurado, o que levou a muitas divisões na Assembleia às

constantes brigas entre os partidos.

A busca pelos ideais da democracia direta, voluntária e descentralizada dos

sansculottes não era vista com bons olhos pelos girondinos, ainda maioria na

Assembleia, que temiam as consequências dessa “abertura democrática” pregada por

aqueles e as consequências que poderia trazer ao momento vivido pela França.

Ademais, os girondinos, apesar de revolucionários, não estavam completamente

de acordo com todos os ideários levantados pela maioria, o que lhes fez bater de frente

com os partidos “mais prestigiados”. A disputa pelo poder acirrava-se internamente com

os rumos que eram tomados.

Os girondinos, temiam as consequências políticas da combinação de uma revolução de massa com a guerra que eles provocaram. Nem estavam preparados para competir com a esquerda. Eles não queriam julgar ou executar o rei, mas tinham que competir com seus rivais, “a Montanha” (os jacobinos), por este símbolo de zelo revolucionário; a Montanha ganhou prestígio, não a Gironda. Por outro lado, os girondinos queriam realmente expandir a guerra até uma cruzada ideológica geral de libertação. E para um desafio até uma cruzada ideológica geral de libertação e para um desafio direto ao grande rival econômico, a Grã-Bretanha. Neste particular, tiveram sucesso.171

A situação geral era crítica. A França encontrava-se em guerra com a maior

parte da Europa, além de ter de conter os enfrentamentos internos pelas disputas de

poder e prestígio social, caracterizando tentativas novas (e frustradas, por vezes), de

qual classe conseguiria se estabelecer e manter seu status quo.

A continuidade mal-sucedida da guerra externa na defesa de suas “fronteiras

naturais” reverberou internamente nas questões políticas francesas. Os girondinos se

enfraqueciam e a esquerda avançava constantemente, intentando inclusive uma revolta

organizada contra Paris, culminando em 1793 com a ascensão da República Jacobina.172

Com isso chega-se ao terceiro período, chamado de Fase Ditatorial (1793-1794),

evidenciada pelo Comitê da Salvação Pública e ainda mais pela República Jacobina do

ano II, grande responsável pelos eventos mais marcantes da Revolução Francesa.

171 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 37. 172 Neste sentido: “Por volta de março de 1793, a França estava em guerra contra a maior parte da Europa e tinha dado início a anexações estrangeiras (legitimadas pela recém-inventada doutrina do direito francês às “fronteiras naturais”). Mas a expansão da guerra, principalmente quando ela ia mal, só fortaleceu a esquerda, a única que poderia vencê-la. Batendo em retirada e derrotada taticamente, a Gironda foi, finalmente, levada a ataques mal calculados contra a esquerda, que logo se transformariam em uma revolta provinciana organizada contra Paris. Um rápido golpe dos sanculottes derrubou-a em 2 de junho de 1793. Havia chegado a República Jacobina”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 37).

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Impulsionada pela guerra que já havia originado a segunda revolução de 1792, a

República Jacobina se caracteriza por algumas figuras centrais e igualmente importantes

na construção do que se praticou enquanto revolução, tais como Robespierre, Danton,

Saint-Just, Marat, o já aludido Comitê da Salvação Pública, o tribunal revolucionário e a

famosa (e famigerada) guilhotina.173

É chamada de fase ditatorial (ou de terror) devido a forma com que os jacobinos

levaram à frente os rumos da república. É de salutar importância destacarmos que toda

revolução procura mudar completamente a estrutura da sociedade e não apenas reformar

ou “aparar arestas” para continuar praticamente da forma que estava.

Com a revolução e os revolucionários virá, indubitavelmente, a contrarrevolução

e os contrarrevolucionários, que pregam a volta ao regime anterior ou mesmo uma

terceira via não adotada por nenhum dos dois.

Bem expôs o historiador Eric Hobsbawm sobre o terror: o número de mortos (17

mil execuções oficiais) durante o dito período de “terror” (14 meses) é modesto se

comparado a outros massacres (contemporâneos à Revolução Francesa ou mesmo na

atualidade), ainda mais quando verificamos, assim como estamos fazendo nestas linhas,

tudo o que a Revolução Francesa defendeu e influenciou.174

Temos, pois, que houveram mudanças radicais entre a situação que se

encontrava no primeiro mês e como ficou no décimo quarto. Reestruturar o país era

necessário, ainda que o custo disso fosse alto. Foi desta maneira que a República

Jacobina e seus administradores enxergaram suas ações.

Para o francês da sólida classe média que estava por trás do Terror, este método não era nem patológico nem apocalíptico, mas primeiro e, sobretudo, o único método efetivo de preservar seu país. Foi isto que a República Jacobina fez, e seu empreendimento foi sobre-humano.175

Os conservadores pregam períodos maiores do que realmente foi o terror, o que

não condiz com a realidade histórica. Basta, para isso, verificarmos o antes e o depois

dos 14 meses em que o “terror” figurou como fundamental para a estruturação da

República Francesa e posteriormente a influência global desse movimento.176

173 Ver: HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 39. 174 Ver: HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 39-40. 175 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 40. 176 Neste sentido: “Em junho de 1793, 60 dos 80 departamentos franceses estavam em revolta contra Paris; os exércitos dos príncipes alemães estavam invadindo a França pelo norte e pelo leste; os britânicos atacavam pelo sul e pelo oeste: o país achava-se desamparado e falido. Quatorze meses mais tarde, toda a França estava sob firme controle, os invasores tinham sido expulsos, os exércitos franceses por sua vez ocupavam a Bélgica e estavam iniciando um período de vinte anos de triunfo militar quase ininterrupto e

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A preservação do país significava para os jacobinos a manutenção dos ideários

levantados pelo liberalismo e que foram os baluartes do início da Revolução Francesa,

inclusive constando na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que é a

propriedade, a liberdade e a igualdade.

Jean-Jacques Rousseau, conforme estudamos, não apenas defendia esses

princípios para formação de uma sociedade pautada no contrato social e na vontade

geral que prescreveu ser impossível a criação de uma sociedade sem essas

características e sem respeitar a vontade geral.

Inclusive, Rousseau trabalhou em sua obra sobre o que considerava o direito de

morte, bem como a quem pertencia e em que casos poderia ser aplicado. Lembremos

que o fato de a vontade ser geral não significa que todos estejam de acordo; pode haver

posicionamentos contrários, mas estes serão compelidos a cumprir os seus preceitos

pela força legal decorrente da atividade legislativa autorizada pela vontade geral.

O contrato social tem por fim a conservação dos contratantes. Quem deseja o fim quer os meios, e estes meios são inseparáveis de alguns riscos e ainda de algumas perdas. Quem quer conservar sua vida, a expensas da dos outros, deve também “dá-la” por eles, quando for preciso. O cidadão não é juiz do perigo a que a lei o obriga a se expor, e quando o príncipe lhe disse: “Convém ao Estado que tu morras”, deve morrer, posto que com esta condição viveu em segurança até então, e sua vida é somente um benefício da natureza, senão um dom condicional do Estado.177

Em outras palavras, Rousseau nos diz que para o bem do Estado (e por isso

devemos entender o bem comum, aquele mesmo que a lei e a vontade geral visam),

pode ocorrer que uma(s) pessoa(s) venha(m) a morrer, de modo que seja conveniente ao

Estado e, por isso, ao povo que é titular da soberania.

Percebe-se que a filosofia rousseauniana não estabelece neste ponto distinções

entre os atos praticados pelos cidadãos, não trazendo que a pena de morte deve ser

direcionada aos criminosos, mas a trata de forma geral, aplicando-a para cada cidadão

de maneira individual daquela sociedade, se assim for melhor para a vontade geral e,

por conseguinte, ao Estado.

fácil. Ainda assim, por volta de 1794, um exército três vezes maior que o anterior era mantido pela metade do custo de março de 1793, e o valor da moeda francesa (ou melhor, do papel-moeda – assignats – que a tinha amplamente substituído) era mantido razoavelmente estável, em contraste marcante com o passado e o futuro. [...] A República do Ano II, com menos recursos, tinha enfrentado com sucesso crises piores”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 40-1). 177 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 51.

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Mas o filósofo suíço prescreveu sobre a pena de morte quando os atos são

praticados por um malfeitor, sendo assim considerado todo aquele que atente contra o

Contrato Social e à conservação do Estado, o que pode significar que este indivíduo

rompeu seus laços com a vontade geral ao praticar um ato decorrente de seu egoísmo,

de sua vontade privada.

Todo malfeitor, atacado o direito social, converte-se pelas suas façanhas em rebelde e traidor da pátria, cessa de ser membro dela ao viciar suas leis e ao fazer-lhe guerra. Então, a conservação do Estado é incompatível com a sua. É preciso que um ou dois pereça, e quando se faz perecer ao culpado, é menos como cidadão que como inimigo. O processo, o julgamento, são as provas do rompimento do laço social, e por conseguinte, de que não é membro do Estado.178

Dissemos tudo isso para voltarmos aos motivos nos quais a República Jacobina

instituiu o que os conservadores chamaram de “terror”. Quando se atingiu o nível no

qual a sobrevivência do Estado e das mudanças estruturais que ocorriam

paulatinamente, a morte de alguns membros que atentem contra o contrato social, o

Estado e a soberania da vontade geral lastreada pela igualdade e pela liberdade, se

justificava como sendo a única via, ou caso contrário quem padeceria seria o Estado.

Ainda, considerou Rousseau um ponto que devemos nos atentar: quando se

atenta contra o Estado, esta pessoa será considerada um inimigo público, aplicando-se a

pena de morte baseada no direito de guerra, em que se ordena matar o vencido.

Analisando novamente e contextualizando o momento francês estudado, veremos que as

guerras internas e externas aconteciam e a República Jacobina nada mais fez do que

aplicar este direito para garantir a sobrevivência do Estado.179

E foi exatamente nesses moldes que a maioria da Convenção Nacional entendeu,

de modo que se esta não fosse o caminho não apenas estaria se arriscando ao Estado,

como também à Revolução e tudo o que até então havia sido conquistado nas duras

batalhas bélicas e ideológicas até então travadas.

Para a maioria da Convenção Nacional, que no fundo deteve o controle durante todo este período, a escolha era simples: ou o Terror, com todos os seus defeitos do ponto de vista da classe média, ou a destruição da Revolução, a desintegração do Estado nacional e provavelmente – já não havia o exemplo da Polônia? – o

178 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 52. 179 Neste sentido: “Pois bem: reconhecido como tal, deve ser, em seu domicilio, afastado pelo desterro, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo público, porque tal inimigo não é uma pessoa moral, é um homem: e então se aplica o direito de guerra que ordena matar ao vencido”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 19ª Edição, 1999, p. 52).

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desaparecimento do país. Muito provavelmente, sem a desesperada crise da França, muitos teriam preferido um regime menos ferrenho e, certamente, uma economia controlada com menos rigor: a queda de Robespierre levou a uma epidemia de descontrole econômico, fraudes e na bancarrota nacional de 1797.180

Manter o Estado e garantir a sua sobrevivência, todavia, envolve muito mais do

que a morte dos inimigos públicos. De igual importância é o apoio interno, do povo,

ainda mais a massa, que foi a grande responsável pelas conquistas revolucionárias.

Assim, os jacobinos colocaram como primeira tarefa ganhar o apoio popular

contra os girondinos na província, além de preservar o já mobilizado e forte apoio

advindo de Paris e dos sansculottes. Possuindo ideias e interesses em comum, crescia o

movimento à favor da República Jacobina, agora apoiada pela maioria do povo.

Graças ao apoio dos revoltosos das províncias e dos sansculottes os jacobinos

conseguiram aprovar nova Constituição que até então encontrava-se obstacularizada

pelo poderio girondino (ocuparam a maioria da Assembleia no começo da Revolução),

garantindo ao povo direitos nunca antes pensados quando do absolutismo monárquico.

Uma nova Constituição um tanto radicalizada e, até então, retardada pela Gironda foi proclamada. De acordo com este nobre, todavia acadêmico, documento, dava-se ao povo o sufrágio universal, o direito de insurreição, trabalho ou subsistência e, o mais significativo, a declaração oficial de que a felicidade de todos era o objetivo do governo e de que os direitos do povo deveriam ser não somente acessíveis mas também operantes. Foi a primeira Constituição genuinamente democrática proclamada por um Estado moderno.181

Em pleno Século XVIII a França encontrava-se na dianteira dos direitos

fundamentais e sociais dos homens. Todos os direitos acima elencados e constantes da

Constituição de 1797, ainda hoje constituem normas inalienáveis e intransferíveis que

todos os cidadãos nos países considerados Estados Democráticos e Sociais de Direito

possuem como garantias fundamentais.

O texto desta nova Carta Política continuou com a atitude de apagar de vez os

resquícios do feudalismo da sociedade, o confisco das terras sem direito à indenização

dos emigrantes, bem como a facilidade aos pequenos compradores adquirirem essas

terras e a abolição da escravatura em suas colônias configuraram verdadeiras inovações

revolucionárias legislativas.182

180 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 41. 181 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 42. 182 Neste sentido: “Mais concretamente, os jacobinos aboliram sem indenização todos os direitos feudais remanescentes, aumentaram as oportunidades para o pequeno comprador adquirir as terras confiscadas

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Com atos como estes, percebe-se que o comando do governo, surgido da aliança

entre os jacobinos e os sansculottes, pendeu para o lado da esquerda e o pensamento

social, se refletindo não apenas nas questões políticas da sociedade, como também na

própria forma de administração do Estado.

O centro do novo governo, representando uma aliança entre jacobinos e sansculottes, inclinou-se claramente para a esquerda. Isso se refletiu no reconstruído Comitê de Salvação Pública, que rapidamente se transformou no efetivo Ministério da Guerra francês. O Comitê perdeu Danton, um revolucionário poderoso, dissoluto e provavelmente corrupto imensamente mais talentoso e mais moderado do que aparentava (tinha sido ministro na última administração real), e ganhou Maximilien Robespierre, que se tornou seu membro mais influente.183

Robespierre foi importante na Revolução Francesa quando colocou a República

Jacobina não apenas como instrumento para ganhar guerras, o que realmente estava

acontecendo quando do período do terror, mas acima disso a república se constituiu

como um ideal sob o qual seu fundamento político se constituía.

Em meio à bagunça que se encontrava a França Revolucionária, tinha-se em

mente, como mais tarde a própria história tratou de mostrar, que a República deveria

servir aos ideais do povo, isto é, da vontade geral insculpida na soberania do Estado.

Interessante notar a posição de Robespierre neste período. Não era um ditador e

seu poder advinha do povo, ou seja, da vontade geral que constituía a Convenção

Nacional, da qual este integrava o Comitê de Salvação Pública.

A República Jacobina não era um instrumento para ganhar guerras, mas um ideal: o terrível e glorioso reino da justiça e da virtude, quando todos os bons cidadãos fossem iguais perante a nação, e quando o povo tivesse liquidado os traidores. Jean-Jacques Rousseau e a cristalina convicção da justiça deram-lhe sua força. Ele não tinha poderes ditatoriais formais nem mesmo um cargo, sendo simplesmente um membro do Comitê de Salvação Pública que era, por sua vez, um mero subcomitê da Convenção – o mais poderoso, embora jamais todo-poderoso.184

Sua importância se dava pelo ideário defendido por ele e pelo apoio que recebia

das massas, que no final acabou também se transformando em sua queda. Ao mesmo

dos emigrantes e, alguns meses mais tarde, aboliram a escravidão nas colônias francesas, a fim de estimular os negros de São Domingos a lutarem pela República contra os ingleses. Essas medidas obtiveram os mais amplos resultados”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 42-3). 183 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 43-4. 184 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 44.

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tempo em que tinha muito poder por meio do povo, convivia com o outro lado da

moeda que é o terror que acompanha esse mesmo poder.

Tanto Robespierre como a República Jacobina num todo foram obrigados a

abandonar o apoio das massas e se afastar das mesmas, o que acabou sendo a

responsável por sua queda.

Isto porque a república era formada da união da classe média com os

trabalhadores. As concessões jacobinas e sansculottes eram toleradas desde que não

ameaçasse o domínio desta mesma classe média, que uma vez no poder não mais

abdicou de sua posição.

O regime era uma aliança entre a classe média e as massas trabalhadoras; as concessões jacobinas e sansculottes eram toleradas só porque, e na medida em que, ligavam as massas ao regime sem aterrorizar os proprietários; e, dentro da aliança, os jacobinos da classe média eram mais decisivos.185

A política predominante, então, não favorecia o povo como um todo, de modo

que as concessões eram permitidas somente até a página dois: a partir do momento em

que algum interesse da classe média dominante fosse atingido, as concessões cessavam

em detrimento dos interesses do povo, privilegiando os interesses particulares.

Tal fato contrasta com a ideia de Rousseau, que foi inclusive a que levou

Robespierre a pensar a República Jacobina como o reino da justiça e virtude. O bem

comum e a vontade geral não eram respeitados e só levados em consideração quando

não atingiam os interesses da classe média, não coadunando e sendo totalmente o

oposto do doutrinado por Rousseau.

As políticas tomadas afastavam o apoio das grandes massas que, cientes do seu

poderio (bastava olhar alguns anos atrás e verificar as conquistas que sua união obteve),

aos poucos se afastou de Robespierre e dos jacobinos.

Ao mesmo tempo em que os avanços bélicos das guerras que antes assolavam o

país com as invasões em todos os pontos cardeais das fronteiras, os altos custos

provenientes destas campanhas atingiram o apoio do povo.186

185 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 44-5. 186 Neste sentido: “Por volta de 1794, o governo e a política eram monolíticos e dominados ferreamente por agentes diretos do Comitê ou da Convenção e por um amplo quadro de oficiais e funcionários jacobinos juntamente com organizações locais do partido. Por fim, as necessidades econômicas da guerra afastaram o apoio popular. Nas cidades, o controle de preços e o racionamento beneficiavam as massas, mas o correspondente congelamento salarial as prejudicava. No campo, o confisco sistemático de alimentos (que os sansculottes das cidades foram os primeiros a advogar) afastou os camponeses. As massas, portanto, recolheram-se ao descontentamento ou a uma passividade confusa e ressentida, especialmente depois do julgamento e da execução dos hebertistas, os mais ardentes porta-vozes dos

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A direita e a esquerda foram desmanteladas e executadas na guilhotina, deixando

Robespierre sozinho, de forma que o poder central continuou sendo exercido por ele,

que na realidade manteve-se nesta posição apenas enquanto havia uma guerra como

fundamento para tanto. Quando o último tiro de canhão foi disparado contra os

exércitos austríacos, em 1794, ele e seus aliados já estavam a caminho da guilhotina.

Por volta de abril de 1794, tanto a direita como a esquerda tinham ido para a guilhotina, e os seguidores de Robespierre estavam, portanto, politicamente isolados. Somente a crise da guerra os mantinha no poder. [...] No Nono Termidor pelo calendário Revolucionário (27 de julho de 1794), a Convenção derrubou Robespierre. No dia seguinte, ele, Saint-Just e Couthon foram executados, e o mesmo ocorreu apenas alguns dias depois com 87 membros da revolucionária Comuna de Paris.187

Neste episódio tem-se o fim da terceira fase da Revolução Francesa, colocando

não apenas fim na República Jacobina, como também aos movimentos partidários que

representavam o povo de forma mais clara e presente, conforme a vontade geral.

Por fim, acontece a última e derradeira fase da Revolução Francesa,

tecnicamente descrita como Período Revolucionário (1794-1799), também chamada de

Diretório, que colocou como principal problema a classe média alcançar novamente a

liberdade política e o avanço econômico dos primórdios da revolução.

A luta da burguesia que se encontrava no comando da última fase da revolução

centrava-se na sua capacidade de tentar impedir um duplo perigo aos seus propósitos:

um levante para o retorno da recém-extinta República Jacobina ou o ressurgimento das

cinzas do Antigo Regime Monarca.

Esse foi, contudo, apenas um dos problemas enfrentados após a queda de

Robespierre. Diferentemente do que ocorreu nos demais períodos da Revolução, a

classe média que agora encontrava-se no poder não conseguiu o mesmo apoio político

que tiveram, por exemplo, os jacobinos.

A grande fraqueza dos termidoreianos assentava-se no fato de que não contavam com nenhum apoio política, obtinham, no máximo, apenas tolerância, pois que estavam espremidos entre uma reação aristocrática revivida e os pobres sansculottes jacobinos de Paris, que já lamentavam a queda de Robespierre.188

sansculottes”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 45-6). 187 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 46-7. 188 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 50.

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Essa instabilidade política, social e econômica somada à falta de apoio do povo

que já desejava a volta do decapitado Robespierre, fez com que o Diretório sofresse

para manter o controle e o poder. Algumas crises foram ocasionadas em decorrência

disso e golpes foram tentados ao longo dos anos (várias em 1795, a de BabAuf em

1796, a do Frutidor em 1797, a do Floreal em 1798 e a da Pradaria em 1799).

A inatividade era a melhor saída para a classe média, já que seu regime era fraco

e impopular, sobretudo quando comparado aos outros estágios da Revolução Francesa.

A principal dificuldade dessa ausência de ações encontra-se justamente no fato de a

burguesia necessitar de iniciativa e expansão.

A saída, assim, foi a utilização das forças militares que conseguiram “arrumar a

casa” com nada mais, nada menos que Napoleão Bonaparte, grande responsável por

reerguer o movimento revolucionário.

A inatividade era a única garantia segura de poder para um regime fraco e impopular, mas a classe média necessitava de iniciativa e expansão. O exército resolveu este problema, aparentemente insolúvel. Ele conquistou; pagou-se a si mesmo e, mais do que isto, suas pilhagens e conquistas resgataram o governo. Teria sido surpreendente que, em consequência, o mais inteligente e capaz dos líderes do exército, Napoleão Bonaparte, tivesse decidido que o exército podia prescindir totalmente do débil regime civil?

Esse exército, bem como sua força e poderio militar/ideológico é originário da

República Jacobina. Foi ele, em grande parte, o responsável pela expulsão dos invasores

nos catorze meses do “terror”. Lastreados pelo impulso inicial da Revolução, se

colocaram como um verdadeiro exército profissional, marcados pelas características

ideológicas dos primórdios da revolução misturada com os interesses estabelecidos no

momento, evidenciando a influência marcante de Bonaparte, que soube explorar de

forma mais do que satisfatória essas marcas do exército francês.

O que mais chama a atenção, porém, é como o exército conseguiu se

profissionalizar com o advento da burguesia, isto é, se tornar um soldado e ascender nos

comandos militares virou mesmo uma profissão, na qual o recrutamento se dava pelo

talento e não apenas pela necessidade de se ter um exército.

Podia-se fazer carreira nas forças armadas e galgar grandes postos, sempre

balizados pelo merecimento de acordo com suas funções e talentos desempenhados,

sendo este o pensamento liberal sobre o que se deve esperar dos melhores profissionais.

Inclusive, pensar neste período e não realizar a devida referência com os ideais

filosófico-políticos estudados seria uma grande perda, já que o liberalismo encontra-se

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em todas as fases da Revolução Francesa, algumas vezes mais marcantes, outras nem

tanto, mas visivelmente presente em todas as fases.

O exército era uma carreira como qualquer outra das muitas abertas ao talento pela revolução burguesa, e os que nele obtiveram sucesso tinham um interesse investido na estabilidade interna como qualquer outro burguês. Foi isto que fez do Exército, a despeito do seu jacobismo embutido, um pilar do governo pós-termidoriano, e de seu líder Bonaparte uma pessoa adequada para concluir a revolução burguesa e iniciar o regime burguês.189

Napoleão se destacou não apenas nas campanhas em que comandava os

exércitos franceses. Sua importância estava também na política interna, desde a

república jacobina.

Apesar de estar atrelado aos políticos que caíram com Robespierre, conseguiu

superar essa questão e se tornou general do exército, alcançando os êxitos da expulsão

dos estrangeiros, em uma das crises da República Jacobina, de modo que a era

napoleônica teve início justamente quando se verificou que o seu sucesso poderia salvar

tudo o que foi conquistado pela Revolução.190

O imaginário criado em torno da figura de Napoleão Bonaparte é grande em

todo o mundo, seja por suas conquistas ao longo dos anos em que governou a França,

seja por sua carreira no exército, ou ainda por conseguir galgar do alto escalão a líder

final da revolução. É visto não apenas pelos franceses, mas também por boa parte do

mundo, como um dos responsáveis pela construção e estruturação de muitas instituições

jurídicas, políticas e econômicas ainda hoje utilizadas.

Para os franceses ele foi o mais bem-sucedido governante de sua longa história. Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais, também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas como existem até hoje. Reconhecidamente, a

189 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 53. 190 Podemos verificar a importância de Napoleão com sua trajetória no exército e na política: “Nascido em 1769, ambicioso, descontente e revolucionário, subiu vagarosamente na Artilharia, um dos poucos ramos do Exército real em que a competência técnica era indispensável. Durante a Revolução, e especialmente sob a ditadura jacobina que ele apoiou firmemente, foi reconhecido por um comissário local em um fronte de suma importância – por casualidade, um patrício de Córsega, fato que dificilmente pode ter abalado suas intenções – como um soldado de dons esplêndidos e muito promissor. O Ano II fez dele um general. Sobreviveu à queda de Robespierre, e uma inclinação para o cultivo de ligações úteis em Paris ajudou-o em sua escalada, após este momento difícil. Agarrou a sua oportunidade na campanha italiana de 1796, que fez dele o inquestionável primeiro soldado da República, que agia com independência ante as autoridades civis. O poder foi em parte atirado sobre seus ombros e em parte agarrado por ele quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e a sua própria indispensabilidade. Tornou-se primeiro-cônsul, depois cônsul vitalício e imperador. Com a sua chegada, como que por milagre, os problemas insolúveis do Diretório tornaram-se solúveis. Em pouco anos, a França tinha um Código Civil, uma concordata com a Igreja e até mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa – um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito secular”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 53-4).

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maioria de suas ideias talvez todas foram previstas pela Revolução e pelo Diretório; sua contribuição pessoal foi fazê-lo um pouco mais conservadoras, hierárquicas e autoritárias. Mas seus predecessores apenas previram; ele realizou.191

Ademais, de suma importância ressaltar como a estruturação do Estado Francês

foi realizada por Napoleão, servindo de modelo posterior a muitos Estados, incluindo o

Brasil, que seguiu em alguns pontos o modelo bonapartista, principalmente nas

dispoições do Código Civil.

Boa parte das instituições foram estabelecidas conforme Rousseau e

Montesquieu, responsáveis em quase todos os aspectos pelos ideais da Revolução

Francesa, desde a Queda da Bastilha em 1789 até o Período Revolucionário em 1799,

assumindo o papel fundamental na formação do Estado Francês durante e após o fim da

Era Napoleônica, sendo por isso a primeira Nação a utilizar-se dos pressupostos

filosóficos destes mestres na fomentação e consecução do ideário estatal.

A Revolução Francesa do Século XVIII representa a vitória no campo político e social dos mesmos princípios igualitários, o campo religioso, que presidiram a Reforma Protestante do século XVI. A queda da nobreza como classe social privilegiada, no crepúsculo dos Tempos Modernos, correspondeu à queda do clero no seu início. A partir da Revolução Francesa, os nobres não mais lideravam a política dos povos, e os títulos nobiliárquicos passaram a ser, cada vez mais, meramente honoríficos, até os dias de hoje.192

As mudanças políticas e sociais do mundo contemporâneo devem muito ao

movimento revolucionário francês em todas as suas fases. Mais do que uma simples

reforma, possibilitou a fundamentação em princípios sólidos e estabeleceu direitos

inerentes a todos os homens.

Interessante nortarmos pela análise dos fatores históricos da Revolução Francesa

a prevalência dos ideários dos filósofos estudados anteriormente, que podem ser

percebidos em cada uma das fases da revolta.

Mais do que interessante, porém, é verificarmos a utilização desses pensadores

ao longo do movimento e da construção de suas bases, propiciando um estudo

significativo não apenas sobre a Revolução Francesa, mas também sobre o

desenvolvimento da filosofia política ao longo deste importante marco da história.

[...] a Inglaterra transitou do Absolutismo-Leviatã para o Liberalismo, enquanto a França, no modelo de Rousseau, pela Revolução Francesa,

191 HOBSBAWM, Eric. Ob. Cit. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, p. 56. 192 CICCO, Cláudio. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 197.

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transitou numa primeira etapa (1788-1791) do Absolutismo para a monarquia liberal, numa segunda etapa (1791-1792) da monarquia para a república liberal, numa terceira, do liberalismo republicano para o despotismo, primeiro jacobino (1793-1794), depois conservador (1794-1799), para, com o golpe de Brumário, voltar à forma de governo em que a decisão cabia a um só (1800-1815), ou seja, a restauração da monarquia absoluta com o 1º Império.193

Com esta brilhante explanação, temos que a Revolução Francesa incorporou os

ideários iluministas e contratualistas e os aplicou em cada uma de suas fases. Nos dez

anos de movimento foi possível identificar pelo estudado nas páginas anteriores a

sintetização acima.

Apesar disso, a Revolução alcançou um propósito parecido com o aquele

conseguido na Inglaterra, “quer dizer, com Rousseau, a Revolução transitando por

Locke, consagrou finalmente o Leviatã. Mas um Leviatã a serviço da classe burguesa,

do mesmo modo que as ‘Gloriosas’, chegando ao mesmo ponto que o empirismo, pela

via da racionalização”194. Ainda que de maneira inversa, alcançaram o mesmo objetivo.

Nestes pontos, temos que destacar que a organização do Estado não ficou apenas

nas questões administrativas, como também legais. A influência do Direito Francês é

patente em muitos Estados, incluindo novamente o Brasil, o que salienta ainda mais a

importância de Napoleão nos rumos brasileiros e mundiais, não se concentrando

somente no cenário europeu.195

Teremos a oportunidade de estudar como que o Imperador Napoleão Bonaparte,

em 1808, no auge de sua tentativa de conquistar a Europa, obriga a Família Real

Portuguesa a não apenas fugir (com a ajuda inglesa), mas também, e principalmente,

transferir o Reino de Portugal para as longínquas terras brasileiras e todo o desenrolar

de acontecimentos que se sucederam a esta empreitada.

193 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 173. 194 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 173. 195 Neste sentido: “Os grandes monumentos de lucidez do Direito francês, os Códigos que se tornaram modelos para todo o mundo burguês, exceto o anglo-saxão, foram napoleônicos. A hierarquia dos funcionários – dos baixos postos até os prefeitos –, das cortes, das universidades e escolas foi sua obra. As grandes “carreiras” da vida pública francesa, o Exército, o funcionalismo público, a educação e o Direito ainda têm formas napoleônicas. Ele trouxe estabilidade e prosperidade para todos, exceto ppara os 250 mil francesas que não retornaram de suas guerras, embora até mesmo para os seus parentes tivesse trazido a glória. [...] Ele destruirá apenas uma coisa: a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade e fraternidade, do povo se erguendo na sua grandiosidade para derrubar a opressão. Esse foi um mito mais poderoso do que o dele, pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que inspirou as revoluções do século XIX, inclusive em seu próprio país”. (HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 7ª Edição, 1996, pp. 56-7).

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2. O ESTADO BRASILEIRO E AS DECISÕES VINCULANTES

O Brasil, apesar de possuir um histórico com as civilizações tupiniquins pré-

cabralianas, é considerado enquanto Estado a partir de seu descobrimento pelos

portugueses que, impulsionados pelas expansões marítimas europeias, alcançaram as

Terras de Santa Cruz em 1500, graças e muito à influência e colaboração moura quando

do seu domínio no desenvolvimento marítimo na Península Ibérica.

A divisão aceitável pelos historiadores no período pós-cabraliano coloca três

momentos principais na história do Brasil como o divisor de águas aos estudos sobre a

formação do Estado, sendo eles: Brasil Colônia (1530-1815), Império (1822-1889) e

República (1889 até o presente). Contudo, visando uma melhor identificação,

trabalharemos dentro do Brasil Colônia o período em que o país foi elevado à categoria

de Reino após a fuga da Família Real, em 1808, por conta das invasões napoleônicas

ocorridas na Europa.

Assim, entre o período de 1815 até 1822 consideraremos dentro da Colônia uma

questão sui generis, na qual o Brasil foi elevado a Reino Unido de Portugal por conta da

transferência da Corte Real e assim permaneceu até a Independência.

Tal acontecimento é importante na compreensão da instituição das súmulas

vinculantes, vez que dizem respeito à questões essenciais da formação e concepção de

Estado naquele período e, embora não influentes na concepção atual de Estado, o são

como fontes históricas para compreensão do presente, vez que para se entender a

atualidade não se pode deixar de entender o próprio passado.196

O homem, desde os primórdios, procura na sociedade as melhores formas de

convivência através das exteriorizações colocadas ao alcance de sua sociabilidade. O

direito emana dessa necessidade do homem de encontrar-se no meio dos seus e, ao

mesmo tempo, estabelecer limites nos deveres de cada cidadão, de todas as pessoas que

estão sob a égide de tal ordenamento jurídico.

196 Neste sentido: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente. [...] Além de tudo, a educação da sensibilidade histórica nem sempre está sozinha em questão. Ocorre de, em uma linha dada, o conhecimento do passado ser diretamente ainda mais importante para a compreensão do passado. [...] Na maioria dos casos, os períodos mais próximos não coincidem menos nesse aspecto com as zonas de clareza relativa. Acrescentem que, ao proceder, mecanicamente, de trás para frente, corre-se sempre o risco de perder tempo na busca das origens ou das causas de fenômeno que, à luz da experiência, irão revelar-se, talvez, imaginários. (BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, pp. 65-7).

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Isto é verdade para as primeiras civilizações, em que o direito não se encontrava

em sua forma escrita, mas já fazia parte da sociedade como um paradigma. Foi o

Código de Hamurabi, surgido na Mesopotâmia, no século II a.C., a primeira forma

escrita de direito conhecida. Mesmo na Grécia, onde a produção intelectual era intensa,

não havia um direito propriamente dito, mas assim como na maioria das demais

civilizações, estava atrelado às religiões e aos costumes.

A lei tem como princípio o interesse dos homens e o assentimento da maioria.

Esta é a máxima que investiu Sólon na Grécia e os legisladores romanos para não mais

falar em nome dos deuses, e sim do povo, que foi quem os investiu de tal poder. A lei,

desta forma, não é mais um decreto religioso, de conhecimento exclusivo dos sacerdotes

e dos aristocratas dominantes. É fundado nas premissas da sociedade e a ela retorna no

seu devido tempo.

É certo que nos primórdios da civilização ocidental o direito, assim como tudo o

que envolvia a Pólis, estava ligado, direta ou indiretamente, à religião. É pelo culto às

divindades que nasce a política, o sacerdócio, os governantes e, também, os

magistrados.197

O desenvolvimento do direito está atrelado ao desenvolvimento da própria

civilização, que avançava para relações sociais, jurídicas e políticas cada vez mais

complicadas, necessitando de um arcabouço legal para sustentar os atos dos

governantes, da sociedade e dos estrangeiros que ali estivessem, estabelecendo

determinações de direito processual e material.

Nestes primórdios jurídicos, quando nem mesmo havia a escrita positivando o

direito, era o natural, por meios dos costumes, que ditava os rumos da civilização ao

qual o direito estava ligado. É a partir da codificação que se muda e não somente o ato

de legislar, como também o de julgar.

Se antes as decisões, assim como as leis, eram faladas, a partir do momento em

que a escrita passou a integrar a vida dos homens, também as decisões passaram a ser

escritas, fundamentando o direito ao qual estava atrelado determinado processo.

Passaram a ter força não apenas das palavras ditas, mas no que se positivava.

197 Quando se examina com certa atenção as características do magistrado entre os antigos, nota-se quão pouco se assemelham às dos chefes de Estado das sociedades modernas. Sacerdócio, justiça e comando confundem-se na mesma pessoa. O magistrado representa a cidade, uma associação tão religiosa quanto política. Tem nas mãos os auspícios, os ritos, a oração, a proteção dos deuses. O cônsul é algo mais do que homem: é o intermediário entre o homem e a divindade. A sua sorte está ligada à sorte pública; o cônsul é como um gênio tutelar da cidade. A morte do cônsul é funesta à república. (COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007, pp.199-200).

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Esse poder advindo da escrita legal, seja nas leis ou nas decisões, foi

determinante para o sucesso do direito e de um órgão responsável pelo julgamento dos

casos. Não é demais afirmar que foi a escrita a responsável pelo surgimento das

primeiras formas de Súmulas Vinculantes, já que ligava a decisão a outros casos.

A História nos coloca momentos em que esses tipos de decisões foram utilizadas

como meios de vincular um caso ao outro, sem a necessidade de novos julgamentos ou

decisões idênticas para casos teoricamente idênticos. Neste capítulo, abordaremos

alguns desses exemplos históricos que estão diretamente ligados às Súmulas

Vinculantes do Supremo Tribunal Federal, vez que são oriundas do tronco no qual está

baseado todo o direito brasileiro.

2.1 BRASIL COLÔNIA

Ao longo da história do Brasil, pouco ou quase nada se discute sobre a forma de

poder e a separação das funções na Constituição Imperial de 1824. A pouca visibilidade

se dá pelo fato de sua concentração encontrar-se na figura central do representante da

Coroa em terras brasileiras o que, de forma alguma, significa que não havia o exercício

dessas funções, ainda que atrelados ao Império Português Ultramarino.

Durante toda a colonização do território brasileiro os responsáveis pela

administração estavam atrelados à Coroa Portuguesa, sejam eles os Capitães Donatários

ou os Governadores-Gerais instituídos pela Metrópole para o povoamento e colonização

do território, que somente passou a se intensificar na esperança de encontrar riquezas,

tal qual o Reino da Espanha com as terras da América Central.

Apesar de muito bem delimitadas pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e

Filipinas, a Colônia se assemelhava ao aparelho de administração encontrado na

Metrópole, mesmo que a Família Real estivesse instalada em Portugal, isto porque o

transplante realizado funcionou como uma máquina aos interesses monárquicos

portugueses, não visando inovações.

Desde a colonização a figura do Judiciário se confundiu com a do Executivo,

mais pelo papel dado aos representantes da Metrópole do que pelas atribuições de suas

funções, isto é, não havia uma divisão ou delimitação de atividades a serem realizadas,

havia, outrossim, as ordens superiores para serem cumpridas, já que independente do

cargo ocupado, todos tinham como intuito buscar os melhores interesses da Coroa.

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Devido à complexidade e especificidades das funções judiciais da época (as funções judiciais confundiam-se com as funções administrativas e também com as funções policiais) haviam outros responsáveis pela efetivação das atividades jurisdicionais nas comarcas: chanceleres, contadores e vereadores, que formavam os Conselhos ou Câmaras Municipais.198

Nas capitanias hereditárias, cabia ao capitão-donatário ser o representante do rei

tanto nas questões administrativas como nas legais, transfigurando-se em sua pessoa o

duplo papel de agente público e Judiciário. Eram os capitães que decidiam como se

daria a organização dentro dos limites de sua capitania, nomeando ouvidores e

instituindo Câmaras de Justiça responsáveis por fazer o elo entre a Colônia e a

Metrópole, através das Ordenações vigentes.

Mais tarde, quando da instituição do Governador-Geral e do Ouvidor Geral nas

províncias, símbolos da dominação portuguesa, as coisas somente pioraram e cada vez

mais as funções se confundiam e não se ajustavam com a realidade colonial, sendo

necessários outros tantos anos para a real estruturação das funções.

Durante todo o período colonial houve a figura da Casa da Suplicação e do

Desembargador do Paço, ambos em Portugal, além da continuidade da produção em

larga escala dos produtos escassos na Europa, que era o que ditava os rumos a serem

tomados na Colônia. Apesar de algumas discordâncias pontuais das intromissões da

Metrópole no desenvolvimento da Colônia, tudo foi aos poucos sendo abafado e as

vontades reais se confirmavam, principalmente após a unificação jurisdicional realizada

pelos Assentos Portugueses, obrigatórios na Metrópole e em todas as suas Colônias.

Aliás, é por meio das Ordenações que os Assentos foram instituídos no Brasil

ainda no período colonial, de modo a deixar o direito aparelhado com as determinações

da Coroa, ou ao menos foi o que se tentou.

Em nosso país esse direito constitucional-europeu aportaria por intermédio das “Ordenações” lusitanas que, no capítulo das jurisprudências, apresentaram a importante contribuição dos assentos obrigatórios e, de maneira geral, serviram como o elo que viria possibilitar a filiação do então incipiente Direito brasileiro à vertente dos países de Direito codicístico, ditos de civil law, ou seja, aqueles integrantes da “família romano-germânica”.199

198 CEZARIO, Leandro Fazollo. A estrutura jurídica no Brasil colonial. Criação, ordenação e implementação. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 72, jan 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7088>. Acesso em 25/12/2013. 199 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 19-20.

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As Ordenações, inclusive, foram importantes institutos jurídicos presentes na

realidade brasileira por longos períodos, até mesmo após a Proclamação da

Independência, em 1822. A continuidade é latente e salta aos olhos. O direito brasileiro

é totalmente pautado nas velhas instituições que passaram séculos se deteriorando.

A bem da verdade, numa análise crua, percebe-se, por exemplo, que o direito

civil é uma continuidade secular que passou pelo direito romano, o direito canônico, por

três ordenações (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) e toda a influência da imposição do

pátrio poder na sociedade. Isso para falar de apenas uma subárea do direito brasileiro.

A configuração da Colônia era clara e não tinha outro intuito que não a produção

de toda e quaisquer espécies de matérias capazes de gerar lucros à Coroa, seja na

exploração do Pau-Brasil, no comércio açucareiro, na extração da borracha e, mais

tarde, na produção do café, em que o país chegou a responder por mais de 70% da

produção global.200

A despreocupação com as instituições que aqui se instalaram era patente.

Enquanto a máquina continuasse produzindo e conseguisse resolver seus problemas

internamente, sem influir ou despender de maiores atenções da Coroa, tudo caminhava

na mais perfeita ordem.

Quanto ao direito, podemos encontrar o mesmo problema na formação e

progresso deste no Brasil Colônia. É certo que as sociedades indígenas constituídas no

território das Terras de Santa Cruz possuíam um regramento que atrelava toda a sua

comunidade. Ainda que se fale das inúmeras tribos e ramificações do Tupi-Guarani, não

se pode ignorar a existência de um direito, ainda que natural e costumeiro, destes povos,

que com o advento da colonização foram subjugados aos desígnios de uma legalidade

teoricamente mais importante.

Desde o início da colonização, instaura-se um processo normativo marcado por contradições: marginaliza-se as práticas costumeiras autênticas e nativas advindas das nações indígenas, mas se tolerava a proliferação de práticas locais baseadas nos privilégios, nos desmandos, compadrios e informalidades. De qualquer forma, é

200 Sobre o tema: “No último decênio do século XIX criou-se uma situação excepcionalmente favorável à expansão do da cultura do café no Brasil. [...] A produção brasileira, que havia aumentado de 3,7 milhões de sacas (de sessenta quilos) em 1880-81 para 5,5 milhões em 1890-91, alcançaria em 1901-02 16,3 milhões.” (FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 34ª Edição, 2007). “No café se apoiava a maior parte da existência do país, e para sustentar-lhe o peso era preciso estimulá-lo. Lança-se mão para isso, em diferentes épocas e sob diferentes formas, de expedientes de amparo e valorização. O resultado foi que desde 1925, a produção de café ultrapassa largamente as exportações.” (PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 18ª Edição, 1976, p. 294).

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indiscutível a coexistência de ordens jurídicas diversas, delineada pela ambivalência, de um lado, do hegemônico ordenamento comum oficial; de outro, de certa pluralidade aberta e casuística, entre o direito informal do jeitinho (lei dos coronéis, dos grandes proprietários de terra) e o Direito comunitário autóctone não reconhecido.201

A legalidade dos atos jurídicos portugueses contrastavam com a legalidade

encontrada nos aldeamentos indígenas. Ainda que baseado no costume, os nativos

brasileiros possuíam um regramento, que foi ignorado para a introdução de uma

estrutura que, posteriormente, passou a empregar atos contrários ao próprio

ordenamento, tudo em função da prevalência dos interesses coloniais e pessoais.

Por isso, enquanto Colônia, o Brasil pouco se desenvolveu no sentido de Estado,

já que repetia, nas suas instituições, as determinações advindas da Metrópole, sem

constituir a sua própria identidade enquanto Estado e não se formando com bases

sólidas, mas sim pautado no jogo de interesses particulares.

No que se refere à estrutura política, registra-se a consolidação de uma instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático e profissional da administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos objetivos de sua população de origem e da sociedade como um todo. Alheia à manifestação e à vontade da população, a Metrópole absolutista instaurou extensões de seu poder real na Colônia, implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocracia patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terra.202

As determinações advindas da Coroa foram sempre no sentido de promover o

mercantilismo e de produzir todas as mercadorias tropicais não existentes na Europa e

que possuíam amplo mercado exploratório da atividade mercantilista, de modo que o

Brasil se mostrou uma repetição da Metrópole, sem conseguir se articular em prol da

sociedade e da população de seu território, pelo contrário, fazendo-o sempre aos

interesses dos portugueses.

O absolutismo do Reino de Portugal fica evidente nas ações e formas de

estruturação que aqui se instalaram, propiciando um aparato político-legal que lastreou

todos os interesses da Coroa, sobretudo aqueles econômicos, no desenvolvimento de

atividades lucrativas aos cofres públicos reais. A burocracia foi preponderante para

atingir tais resultados, vez que atrelou todo o aparato como uma extensão dos poderes

da Metrópole na Colônia.

201 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 54. 202 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 43.

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Com relação à separação das funções, de igual maneira, não havia clara

distinção entre elas. Por evidência, ainda não havia se instituído a teoria clássica de

Montesquieu e as demais teorias existentes também não faziam efeito no Absolutismo

Português, como também não o fez nas demais formas de absolutismo existentes.

Esta situação forjava um imaginário sobre o papel da justiça no Brasil identificada ao uso da força e do poder político. Havia dificuldade de entender a organização do Estado: o poder Judiciário e o Executivo andavam juntos, com funções mal delimitadas, parte de um todo unificado na mentalidade colonial. Um exemplo prático desta união é a figura do Governador-Geral, cujas atribuições administrativas, próprias do Poder Executivo, representante direto do rei e que, ao mesmo tempo, ocupava o cargo de Governador da Relação, chefe do poder Judiciário.203

Por esta razão é difícil se estabelecer uma clara distinção sobre as diposições das

funções na Colônia. Mesmo com as Ordenações Portuguesas, sobretudo as Filipinas que

vigoraram por um maior período de tempo no Brasil do que as demais instituições

jurídicas, muito embora o continuísmo jurídico já citado fosse preponderante em todas

as Ordenações e, posteriormente à elas, ao próprio direito brasileiro.

A perpetuação de ideias, aliás, é típica do Estado Português, que mesmo antes

das Ordenações, com suas cartas legais, já possuía claro intuito de eternizar

determinados institutos do direito romano.

A jurisprudência é uma delas, de modo que as influências culturais, sociais,

históricas e jurídicas pelas quais a Península Ibérica passou influiu de forma

determinante para certo endeusamento das instituições romanísticas, com o intuito de

assegurar certeza e justiça na aplicação do direito.

Nessas primitvas normações já se denotava o germe da ideia que nos séculos vindouros se mostraria recorrente, a saber, a busca incessante de uma fórmula que assegurasse a prática do Direito de modo a preservar o binômio certeza-justiça, certo que, para tanto, se impunha encontrar técnica capaz de outorgar a desejável uniformidade interpretativa, em face dos casos assemelhados.204

Este desequilíbrio é evidente por dois motivos: (i) a Coroa não tinha o interesse

de estabelecer na Colônia instituições que possuía na própria Metrópole, motivo pelo

qual não havia a necessidade clara de ter, na mesma proporção, as fortes delimitações

constantes para o Reino de Portugal; e (ii) sendo uma Colônia de exploração, não 203 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Uma Cadeira de Espinhos: O Supremo Tribunal Federal e a política (1933-1942). Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 48. 204 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 219.

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importava muito como a mesma se constituiria, desde que continuasse produzindo em

larga escala os produtos escassos na Europa e que encontraram em solo brasileiro o

terreno propício para o seu desenvolvimento.

Por mais de trezentos anos as terras brasileiras serviram unicamente ao propósito

exploratório da Coroa Portuguesa. É bem verdade que o êxito na exploração em outras

colônias foi bem mais sucedido, em termos de produção, do que no Brasil, mas também

é um fato concreto que a amplitude do território brasileiro proporcionava ainda mais

possibilidades aos ambiciosos desejos reais do que nos demais territórios.

Um fato ocorrido neste período ganha relevo importantíssimo do ponto de vista

de formação do Estado brasileiro. Em 1808 a Família Real foge com toda a Corte

Portuguesa e ruma ao Brasil devido à iminente invasão de Napoleão Bonaparte ao

Reino, o que se concretizou pouco tempo depois, de modo que a situação do Brasil

muda, sobretudo quanto à sua configuração enquanto Estado.

Com essa mudança, o Brasil passa a figurar não mais como Colônia da

Metrópole, mas sim como a própria Metrópole, já que a transferência da Corte de

Lisboa para o Rio de Janeiro configurou a transformação e elevação do Brasil de

Colônia para Reino. Tal fato ocorreu em 1815, quando passou a ser denominado como

Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Não se trata, aqui, de simples questão semântica. Para a organização do Estado

foi preponderante a constituição do Brasil como Reino. Não apenas isso. Influiu para as

políticas que posteriormente foram tomadas durante o Império, políticas essas

basicamente inspiradas pelas instituições portuguesas que dominaram por longo período

os órgãos de administração do país.

Apesar de considerarmos o Brasil como uma colônia puramente extrativista,

onde o interesse de Portugal somente se manifestou pelas riquezas que aqui se produzia

e pouco fez pelo desenvolvimento geral do território, não podemos deixar de notar a

influência dos sistemas políticos e sociais da Coroa em solo tupiniquim.

Sérgio Buarque de Holanda, inclusive, traça importantes considerações sobre as

contribuições deixadas pelo modelo de colonização espanhol e pelo modelo português,

estabelecendo parâmetros e diferenciações deixadas ao longo dos séculos.

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes

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desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.205

Foi realizado um verdadeiro transplante ultramarino de pessoas, coisas, ideias e

mitos, que se chocaram com as pessoas, coisas, ideias e mitos já existentes nos povos

tupiniquins, formando uma tríade ideológica: europeus, negros e indígenas, tudo junto e

misturado, reunidos no mesmo território, ainda que com diferenças claras.206

O lusitanismo, por evidência, esteve presente na formação social e política do

Brasil, assim como as derivações decorrentes das misturas e miscigenações advindas do

contato com as diversas etnias que por aqui se aventuraram, em especial com os

indígenas e, depois, com os negros africanos utilizados como mão de obra escrava nos

canaviais e nas lavouras de café.

Outra característica influente na formação brasileira foi a chamada

municipalização, ou seja, a divisão baseada em municípios como unidades

descentralizadas que respondiam direto ao governo central. Esta forma, inclusive, pode

ser vista como um aspecto da longa duração estrutural brasileira (embora sem a mesma

significância do período), de modo que existem hoje 5.570 municípios, sendo que em

27 de agosto de 2014 a presidente Dilma Rousseff vetou o Projeto de Lei que

possibilitava a criação de pelo menos 200 novos municípios o que geraria um gasto de

mais 9 bilhões no orçamento.207

As 15 Capitanias Hereditárias se constituíram em grandes latifúndios que,

internamente, se organizavam por meio das pequenas divisões territoriais, quando o

próprio capitão donatário fundava vilas e nomeava funcionários, concentrando, assim, o

caráter público de determinada região naquele local, que mais tarde seria elevado de

categoria, passando de Vila para municípios e cidades, pelo menos assim sendo até a

centralização pombalina do século XVIII.

205 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 31. 206 Neste sentido: “Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros”. (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 31). 207 HAUBERT, Mariana; GUERREIRO, Gabriela. Dilma Veta Criação de Novos Municípios e Abre Crise com Congresso. In: Folha de São Paulo (versão online). Brasília: 27/08/2014. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/08/1506722-dilma-veta-criacao-de-novos-municipios-e-abre-crise-com-congresso.shtml>. Acesso em: 30/08/2014.

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O que contribuiu para distanciar o regime vigente no Brasil da tendência absolutista que se implantava em Portugal, despotismo esclarecido, bem como em como em toda a Europa do, era a dificuldade de comunicação com a Metrópole, e a enorme extensão de nosso território. Pombal chegou a criar os juízes de fora para caçar sentenças de tribunais da colônia que contrariassem sua política centralizadora, mas realmente o golpe de misericórdia veio com a Constituição do Império que simplesmente ignorou o município.208

A característica de o Brasil possuir vasto território, que por força do Tratado de

Tordesilhas (1494) era menor do que o encontrado atualmente, contribuiu não apenas

para essa descentralização municipal das capitanias hereditárias, como também para

distanciar-se um pouco do caráter absolutista do regime português. Para Darcy Ribeiro,

essa é uma das causas que levaram ao “cunhadismo”, isto é, ao cidadão ser e ficar

próximo dos governantes.

Essa relação de proximidade, com origem na convivência do indígena com seus

pares e com os europeus, a proximidade se tornava quase familiar, sendo levado esse

pressuposto depois para a política, em que os governantes são vistos como bons

camaradas.

Tal qual pudemos observar ao analisar as transformações da Cidade Antiga, a

Cidade se forma como uma ampliação do círculo familiar em que os líderes da cidade

desempenhavam a “função” de chefe de família. Este ponto sobre o cunhadismo em

específico demonstra como a “relação familiar” era também existente na política

nacional nos tempos da Colônia.

A instituição que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo. Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório dos índios, que relaciona, uns com os outros, todos os membros de um povo. [...] Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil.209

Esta herança igualmente presente nos dias atuais pode ser vista sob dois pontos

distintos: (i) o positivo, no qual a aproximação permite a maior cobrança e fiscalização

dos atos praticados; (ii) e o negativo que, ao contrário, faz com que a cobrança e a

fiscalização se tornem menores, já que o político não é concebido como alguém que

208 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 244. 209 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª Reimpressão, 2007, pp. 72-3.

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desempenha uma função de acordo com a vontade do povo, como visto em Rousseau,

mas sim como um “camarada”, que às vezes presta alguns “favores”.

O pensamento político na colônia passava muito por esses dois pontos

totalmente contraditórios entre si. O primeiro pode ser definido como a descentralização

da descentralização, ou seja, a criação de vilas/municípios pelas capitanias hereditárias,

em que as capitanias, que se constituíam como a primeira descentralização do poder da

Metrópole, redistribui o seu próprio poder e o descentraliza nas vilas e municípios.

Já o segundo é justamente a tentativa da Metrópole de centralizar ao máximo o

seu poder, obtendo certo sucesso primeiro com Pombal e mais tarde, já independente, o

êxito completo com a Constituição Imperial, que trouxe ao nível nacional a organização

municipal e relevou nem para o segundo, mas para o terceiro plano o papel

desempenhado pelos municípios.

A monarquia constitucional que perdurou até 1889 nos permite estudar muitas

estruturas coloniais que permaneceram e posteriormente foram transplantadas para a

república, num eterno jogo de continuísmo político, jurídico e social.

2.2 CASA DA SUPLICAÇÃO E OS ASSENTOS NO DIREITO PORTUGUÊS

O direito português tem, assim como os demais países de língua latina, seu

tronco basilar no direito romano. As transformações sofridas ao longo da história e

influenciadas pelo direito germânico, canônico e visigótico, deram às ordenações certo

caráter de continuidade, adequando-se somente ao que fosse rigorosamente necessário.

Nem mesmo a influência moura que dominou a Península Ibérica por séculos

desde o fim do Império Romano do Ocidente no século V até a queda do último bastião

islâmico e de Constantinopla, no século XV foi capaz de modificar muitas estruturas já

arraigadas na cultura jurídica portuguesa, oriunda da continuidade romana.

O direito português estava fundado em bases solidificadas desde muito antes,

fazendo com que suas estruturas se estabilizassem na sociedade e que as alterações

constantes nas ordenações fossem puramente para aprimoramento das mesmas, pelo

menos na visão dos legisladores lusos.

Três grandes compilações formavam a estrutura jurídica portuguesa. O primeiro a ordenar uma codificação foi D. João I, que reinou de 1385 a 1433. A elaboração atravessou o reinado de D. Duarte, a regência de D. Leonor, sendo promulgadas pelo recém-coroado Afonso V, que, apesar de nada ter contribuído para a obra, deu-lhe nome: Ordenações Afonsinas, que vigoraram de 1446 a 1521, ano em

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que D. Manoel promulgou a que levou seu nome: Ordenações Manuelinas, fruto da revisão das Afonsinas e da recompilação das leis extravagantes. Depois das Manuelinas, Duarte Nunes de Leão recompilou novas leis extravagantes, até 1569, publicação muito conhecida por Código Sebastiânico, apesar de não ter havido participação ativa de D. Sebastião. Uma nova revisão das Ordenações foi encomendada pelo rei Filipe II a grupo de juristas chefiado por Damião de Aguiar, que as apresentou e obteve aprovação, em 1595, somente impressa e entrada em vigor em 1605 com o nome de Ordenações Filipinas.210

Assim, a ideia primária dos pretores e das edicta advindas do direito romano

também foram postas em prática no direito português. Tal instituto recebeu o nome de

“Assentos” e pode ser considerado como um espelho do direito romano sendo para a

doutrina brasileira a primeira forma histórica de Súmulas Vinculantes inseridas no país,

já que neste período o Brasil ainda respondia ao direito consignado pela Coroa.

Seu objetivo no Direito Português, depois transportado ao Direito Brasileiro,

consistia na unificação da jurisprudência em decisões tomadas por instância superior,

para que, além de não haver decisões contraditórias, também as fontes do direito

ficassem salvaguardadas.

Logo no Livro Primeiro, Título Primeiro, das Ordenações Afonsinas (1446)

havia a determinação sobre as designações das funções judiciárias do Império. O

Regedor, ao lado dos Desembargadores e do Governador da Casa da Justiça, eram os

responsáveis pelo direito no reinado de Dom Afonso V (1438-1481).

É, contudo, nas Ordenações Manuelinas (1513), durante o reinado de Dom

Manuel I (1495-1521), que enxugou as Ordenações Afonsinas e as esclareceu,

tornando-as de entendimento mais simplificado, que surgem os assentos portugueses, a

primeira forma propriamente dita de sumular as decisões dos juízes. O Livro Quinto,

Título LVIII, § 1º, assim dispunha sobre a Casa do Regedor:

E assim havemos por bem, que quando os Desembargadores que forem no despacho d’algum feito, todos ou algum deles tiverem alguma dúvida em alguma nossa Ordenança do entendimento dela, vão com a dita dúvida ao Regedor, o qual na Mesa Grande com os Desembargadores que lhe bem parecer a determinará, e segundo o que for determinado se porá a sentença. E se na dita Mesa forem isso mesmo em dúvida, que ao Regedor pareça que é bem de no-lo fazer saber, para nós logo determinarmos, no-lo fará saber, para nós nisso provermos. E os que em outra maneira interpretarem nossas Ordenações, ou derem sentenças em algum feito, tendo algum deles dúvida no entendimento da dita Ordenança, sem irem ao Regedor

210 CARRILLO, Carlos Alberto. Memória da Justiça Brasileira. Salvador: Tribunal de Justiça, 1997, pp. 37-8.

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como dito, serão suspenso até nossa mercê. E a determinação que sobre o entendimento da dita Ordenação se tomar, mandará o Regedor escrever no livrinho para depois não vir em dúvida.211

Pela leitura da disposição acima transcrita, fica clara a vinculação das decisões

nos assentos portugueses, de acordo com as determinações dos Desembargadores da

Casa da Suplicação, responsáveis pelo direito, explica-se o que eram os assentos

portugueses e qual a sua função no direito do Reino, incluindo suas Colônias.212

Os assentos, de acordo com as disposições legais, eram averbados no Livro da

Relação e, a partir de então, passavam a surtir efeitos legais obrigatórios e vinculatórios,

tendo com isso um duplo efeito: documental e operacional.

Vale observar que a averbação dos assentos no Livro da Relação, à época das Ordenações Filipinas, configurava e formalizava a força obrigatória desses arestos, operando, na verdade, com dupla finalidade: de um lado, uma função documental, para a perpétua memória do que fora acordado como sendo a melhor inteligência a ser dada a certo dispositivo das Ordenações; e, de outro, uma função operacional, facilitando aos profissionais do foro a pesquisa e a utilização desses assentos para solução dos casos subsumidos em seu enunciado.213

De igual modo que as edicta pretorianas, os assentos portugueses engessaram o

sistema jurídico da época e propiciaram não a unicidade do direito, mas sim a

discrepância no mesmo, já que cada Regedor, cada Desembargador, possuía o seu

entendimento sobre os casos que chegavam ao seu conhecimento, algo comum para o

Judiciário, em nome da liberdade decisória do juiz.

Outro ponto de encontro entre as edicta romanas e os assentos portugueses está

no fato de que os magistrados estavam presos à uma decisão imposta, que além de

unificar o direito unificava também o entendimento jurídico e os casos, por mais

complexos e diferentes entre si que pudessem ser.

211 PORTUGAL. Ordenações Manuelinas de 1513. Compilado por COIMBRA, Arménio Alves Fernandes; SANTOS, Pedro Manuel Amaro; RODRIGUES, Joaquim Pereira; CASTRO, Manuel Fraga; WYNANTS, Hugues. Universidade de Coimbra. Acesso em 24/12/2013. 212 Neste sentido: “Os assentos consistiam em proposições gerais e abstratas, cuja natureza era de verdadeiras normas jurídicas em sentido material, já que tinham força obrigatória geral, nos termos do art. 2º do Código Civil português, suscetíveis de revogação somente por leis posteriores e de declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional”. (DEMO, Roberto Luiz Luchi. O Resgate da Súmula Pelo Supremo Tribunal Federal. R. CEJ, Brasília, n. 24, p. 80-86, jan./mar. 2004. Disponível em <http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/588/768>. Acesso em 25/12/2013). 213 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 226.

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E para além da petrificação do direito, a atuação livre dos magistrados ficava

restrita, sobretudo durante a vigência do governo pombalino, que se caracterizou pelo

autoritarismo em suas decisões de comando.

Esse direito jurisprudencial ou costume Judiciário não se firmou sem fortes resistências, como se deu em Portugal. No século XVIII, no período autoritário do governo do Marquês de Pombal, a função hermenêutica do juiz era condenada. Os assentos da Casa da Suplicação, tomados em Mesa Grande, dependiam da vontade do monarca, o que se fez em largo período da história de Portugal.214

Soma-se a isso, assim como o acontecido durante o Império Romano, também

no Reino de Portugal a produção legislativa encontrava obstáculos, sobretudo pelo fato

de muitas leis colidirem entre si no ordenamento jurídico vigente, da mesma forma que

as edicta colidiam umas com as outras, o que demonstra e comprova a instabilidade

desse sistema em que aquele que julga é o responsável também pela elaboração do

próprio direito, acabando com a isonomia.

As ordenações não ficaram de fora, de modo que os assentos portugueses foram

atingidos e acabavam por colocar em dúvida o alcance real da vinculação decisória dos

julgadores do reino.

A dinâmica legislativa característica da época teve como efeito que, a breve prazo, as Ordenações Manuelinas se vissem complementadas por diversos diplomas avulsos. Havia, também, uma multiplicidade de interpretações vinculativas dos assentos da Casa da Suplicação e era necessário sistematizar os diplomas avulsos, convindo fazer uma colectânea dessa legislação avulsa.215

O instituto dos assentos foi firmado pela Casa da Suplicação, sendo esta um

Tribunal Superior do reino com duplo grau de jurisdição. Dividida em duas seções, cada

uma possuía competências diferentes perante os julgamentos. A primeira, chamada de

Casa do Cível, era responsável pela apreciação de petições, além da decisão de perdões

e comutação de penas. Já a segunda casa era responsável pela apreciação dos recursos

que a Casa do Cível não tinha competência para julgar.

De acordo com as Ordenações Filipinas, a Casa da Suplicação estava constituída

com um regedor, um chanceler, desembargadores dos agravos, corregedores do crime e

corregedores do cível da Corte, juízes dos feitos da Coroa e Fazenda, ouvidores das

214 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 21. 215 PEREIRA, José Gerardo Barbosa. Sociedade, Elites e Poder em Pernambuco no Século XVII. Tese de Doutoramento. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2012, p. 33.

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apelações crime, procurador dos feitos da Coroa, procurador dos feitos da Fazenda, juiz

da Chancelaria e um procurador da Justiça, além de outros cargos administrativos.216

A Casa da Suplicação foi, assim, durante muito tempo, a segunda instância dos

tribunais portugueses, nos quais recorriam sempre que necessário, julgando não

somente os processos pertinentes à Coroa, como da mesma forma os das Colônias

ultramarinas, constituindo-se como a última instância judiciária portuguesa.

Apesar das constantes mudanças de nomenclatura ao longo dos séculos, por

influência do Direito Romano, esta passou a ser chamada de Casa da Suplicação por

força das Ordenações Filipinas, que trouxe inúmeras outras determinações e funções.

A Europa passava por grandes transformações em fins do século XVIII e início

do XIX devido às Guerras Napoleônicas. Em 1808, com a intensificação dos conflitos

entre Inglaterra e França, a armada de Napoleão bateu às portas dos domínios

portugueses e, após muita deliberação da Família Real, a fuga foi planejada para sua

Colônia de Além-Mar, com a ajuda da Inglaterra.

A transferência, conforme já dissemos, não foi somente da Família Real, mas de

todas as suas instituições, sejam econômicas, culturais ou jurídicas. Ainda com o poder

absolutista concentrado nas mãos de Dom João VI, o Estado Português não se resumia à

porção de terra deixada para trás. Estando a Família Real na Colônia, ali estaria o reino.

Com o transplante ultramarino da Família Real e do Estado Português

propriamente dito, a Colônia Brasileira foi elevada à Reino, de modo que as instituições

antes basilares da soberania de Portugal na Europa foram adequadas á realidade

nacional, sem perder o toque deixado pelas Ordenações Filipinas, também vigentes no

Brasil por ser este uma continuidade de Portugal.

Um fato importante deve ser mencionado. A Casa da Suplicação era a última

instância do meio jurídico português e encontrava-se sediada no Reino, sendo

responsável também pelo julgamento em segundo grau das colônias, como era o caso do

Brasil, Goa, Moçambique e Angola.

Tanto na Metrópole como nos territórios dominados haviam-se constituído

Tribunais de Relação, que passaram a ser a segunda instância judiciária do Reino,

216 PORTUGAL. Ordenações Filipinas de 1603. Compilado por SALGUEIRO, Ângela dos Anjos Aguiar; SANTOS, Lídia Maria Machado Sacramento dos; CAMPONÊS, Jorge Filipe Bandeiras de Oliveira; ALMEIDA, Maria Amélia Dias Figueiredo de; MAMEDE, Pedro Miguel Fernandes; COSTA, Sandra Patrícia Bernardo; DIAS, Sara Marisa da Graça. Universidade de Coimbra. Acesso em 24/12/2013.

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enquanto a Casa da Suplicação passou a ser encarada como a instância máxima, assim

como o Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira é visto.

A Casa da Suplicação tornou-se a Corte Suprema para Portugal e para as Colônias, com a instituição dos Tribunais de Relação como cortes de 2ª instância (foram sendo criadas as Relações do Porto, para Portugal, da Bahia, para o Brasil, e de Goa, para a Índia). Assim, a Casa da Suplicação passou a ser o intérprete máximo do direito português, constituindo suas decisões assentos que deveriam ser acolhidos pelas instâncias inferiores como jurisprudência vinculante.217

Sem a Casa da Suplicação, novas prerrogativas foram outorgados às instituições

já previstas no cenário brasileiro, que antes ficavam em segundo plano por estarem

abaixo das determinações vindas da Coroa. Mas agora, com a Família Real e a própria

Coroa instalada no território colonial, novas formas surgiram.

É o caso, por exemplo, da Casa da Relação, com sede na cidade do Rio de

Janeiro e que possuía atribuições semelhantes àquelas outrora existentes na Casa da

Suplicação Portuguesa.

[...] a competência para proferir assentos foi outorgada à Casa da Relação do Rio de Janeiro, denominação pela qual era conhecido, pelos lusitanos, o Tribunal Superior. Quando proferidos e registrados os assentos, cópias deles eram remetidas aos chanceleres dos tribunais inferiores, devendo ser respeitados como leis. Isso não impedia, contudo, a interposição de recursos contra os julgados neles baseados.218

As Casas de Relações eram tribunais locais, sendo que a localizada no Rio de

Janeiro tornou-se a responsável pelo direcionamento antes pertencente à Casa da

Suplicação. A escolha desta cidade explica-se pelo fato de, a exemplo de Lisboa ser a

sede do Império, o Rio de Janeiro foi elevado a tal posto quando da vinda da Família

Real ao país. Com isso, por força do Alvará de 10 de maio de 1808219, o então príncipe

regente eleva a Casa de Relação do Rio de Janeiro ao posto de Casa da Suplicação, com

todas as suas atribuições definidas por lei.

Assim, embora previsível, os assentos portugueses no ordenamento jurídico

brasileiro tiveram que conviver com algo que estava acima de seu alcance, algo criado

para salvaguardar o próprio Imperador, que foi a figura do Poder Moderador. Mesmo 217 MARTINS FILHO, Ives Granda da Silva. Solução Histórica da Estrutura Judiciária Brasileira. Revista Jurídica Virtual, Brasília, v. 1, n. 5, set. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_05/evol_historica.htm>. Acesso em 24/12/2013. 218 LOR, Encarnacion Alfonso. Súmula Vinculante e Repercussão Geral: novos institutos de direito processual constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 30. 219 BRASIL. Alvará de 10 de maio de 1808. Fonte: Planalto.

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existindo os assentos que vinculavam as decisões, no final, cabia ao Imperador, sempre,

a última palavra.

2.3 BRASIL IMPÉRIO

Com o advento da Independência, em 1822, o país se inseriu em uma nova

configuração de Estado, que já despontava na Europa com o pós-Revolução Francesa,

também influenciada pela Constituição Americana de 1787 e, mais uma vez, adéqua o

modelo europeu preconizado por Charles de Montesquieu para o período.

Os entraves e as disputas políticas encontradas no início do Brasil Império

podem ser facilmente percebidos com a análise dos desdobramentos ocorridos desde a

formalização de se reestruturar politicamente o país até a outorga da Carta Imperial.

Embora cheios do espírito revolucionário que eclodira na Europa quarenta anos

antes, bem como pela independência estadunidense em 1776, os deputados constituintes

tentaram trazer um liberalismo moderado que, ao mesmo tempo em que pregavam

certas liberdades individuais e limitasse os poderes do Imperador, procuravam manter o

sistema escravagista e as estruturas aristocráticas perpetuadas nos séculos anteriores.

Tanto é que as Ordenações continuaram em vigor mesmo após a independência,

bem como os Assentos da Casa da Suplicação, conforme autorização do Decreto-

Imperial de 20 de outubro de 1823, que dispunha sobre a legislação em vigor no

Império Brasileiro.220

Posteriormente, mesmo com a outorga da Carta Política de 1824, as Ordenações

Filipinas e os Assentos da Casa da Suplicação foram oficialmente recepcionados pelo

direito brasileiro e passaram a integrar o ordenamento jurídico vigente à época, por

força do Decreto-Legislativo nº 2.684, de 23 de outubro de 1875.221

O pensamento político deste período era conflitante: ideais libertários

contrastavam com o conservadorismo, que ocorre quase como regra em todas as fases

de transformações, como na Revolução Francesa. Apesar de tentar trazer os ideais

europeus, a estrutura social brasileira, na sua maioria de indígenas e escravos, não

encontrou totalmente o respaldo necessário para sua expansão.222

220 BRASIL. Decreto-Imperial de 20 de outubro de 1823. Fonte: Câmara dos Deputados. 221 BRASIL. Decreto-Legislativo nº 2.684, de 23 de outubro de 1875. Fonte: Planalto. 222 Neste sentido: “Proclamada a Independência, pelo Príncipe D. Pedro de Bragança, em 7 de setembro de 1822, e reconhecido o novo Estado do Brasil pelos Estados Unidos da América e pelo Império da Áustria, a liderança política brasileira sentiu necessidade de buscar uma legitimação teórica para o novo

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Tentavam inserir mudanças na sociedade, tais quais as defendidas pelos

europeus e estadunidenses, sem que, todavia, as estruturas sofressem qualquer tipo de

alteração que os tirasse da posição de poder. Inclusive, tanto a aristocracia como a

condição de escravo eram ideais combatidos nos dois movimentos citados, uma vez que

contrários aos princípios da liberdade e da igualdade defendidos por estes. No Brasil a

ordem era: mudem, mas deixem como está.

As classes dominantes tentava manter intocáveis os seus privilégios com a

manutenção tanto do sistema aristocrático, como do escravista ao mesmo tempo em que

procuraram diminuir os poderes do Imperador subordinando o Executivo ao Legislativo,

com a ideia de criar uma monarquia constitucional nos moldes montesquieuanos, o que

sem sombra de dúvidas irritou Pedro I, que fechou a constituinte e nomeou um

Conselho de Estado responsável pela confecção da Carta Política do Império.

O principal ponto que não agradou ao imperador D. Pedro I foi a ideia de subordinar o Poder Executivo ao Legislativo. Com essa tentativa de limitar seu poder, o Imperador recorreu à força a fechou a Constituinte, em novembro de 1823. [...] Após este triste episódio, D. Pedro I nomeou um Conselho de Estado, que se encarregou de redigir o texto constitucional, outorgado em 25 de março de 1824.223

A bem da verdade, se analisarmos a intenção dos deputados constituintes,

perceberemos que eles ansiavam, do mesmo modo que a burguesia na França

Absolutista, o poder que se concentrava nas mãos do Clero e da Nobreza. O

absolutismo do imperador, de igual forma, se parece em muitos aspectos com o modelo

que teve como último expoente Luís XVI.

A ação do imperador impediu os pretensos liberais de conseguir alcançar o

poder. Mesmo que se reconheça o fato de a Constituição Imperial ter sido um grande

avanço na história jurídica do país, não podemos nos esquecer do caráter absolutista e

até certo ponto extremista deste Diploma.

Foi, outrossim, uma tentativa de copiar o parlamentarismo que já há algum

tempo tinha obtido bons resultados na Europa, mas que no Brasil esbarrou nos modelos

regime que se implantava. Foi procurar em Jean-Jacques Rousseau e no mito do bom selvagem fundamentação para uma soberania de uma nação profundamente indígena. Eis aí o caráter político do famoso movimento indianista que se estenderá até meados do século XIX, quando poetas e prosadores procuram exaltar o elemento nativo colocando à altura dos heróis da epopeia inglesa, francesa, americana da época do romantismo”. (CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 247). 223 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 121.

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arcaicos e nos interesses prosaicos das elites agrárias dominantes, que queriam

mudanças, desde que estas não os atingissem.

O que se viu, assim, foi a tentativa de transpassar ao Brasil o modelo europeu,

com os devidos “ajustes” necessários não à realidade nacional, mas sim às vontades

particulares, sobretudo de Pedro I.224

Ao mesmo tempo em que concedia-se alguns direitos individuais e políticos,

inseria-se a figura do Poder Moderador do Imperador, que se colocava com ele acima de

qualquer ato, dispositivo legal ou cidadão, estando acima até mesmo da própria

Constituição, criando a figura do Estado-Leviatã de Thomas Hobbes, já que centrado na

sua figura e no poder eclesiástico da religião oficial do Brasil, o catolicismo.

O Brasil se inseriu, à sua maneira, nesta nova concepção de divisão instrumental,

constitucionalmente reconhecida para melhor garantia e segurança dos atos praticados

pelo Estado. A Tripartição Clássica entre Executivo, Legislativo e Judiciário ganhou a

inclusão de um quarto, que na realidade não estava no mesmo patamar que os demais.

Este poder concentrava-se na figura do Imperador e concedia-lhe exceções à regra de

harmonização e independência.

O Quarto Poder estava acima de toda e qualquer suspeita. Suas ações não se

confundiam com as do Executivo e não se sujeitavam ao crivo do Judiciário, que ficava

de mãos atadas. O Poder Moderador estava disposto na Constituição Imperial de 1824

em seu Art. 10, não trazendo quaisquer referências quanto à harmonia e a

independência. Entre os Arts. 98 e 101 da Carta Constitucional de 1824 estão dispostas

as atribuições conferidas ao Imperador, sendo que o Art. 98 resume muito bem o seu

significado no Estado:

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.225

Cabia ao Poder Moderador, conforme se interpreta da segunda parte do

supracitado dispositivo legal, velar sobre a independência e a harmonia dos demais

224 Neste sentido: “Durante o Império, pela Constituição de 1824, o Poder Executivo cabia ao Primeiro Ministro; o Poder Legislativo, ao Senado e à Câmara dos Deputados; o Poder Judiciário, aos Juízes e Tribunais. Por fim, o imperador era assistido por um Conselho de Estado, detendo o poder moderador, que lhe dava possibilidade de interferir nos demais poderes”. (CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 247). 225 BRASIL. Constituição Política do Imperio do Brazil de 25 de Março de 1824. Fonte: Planalto.

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órgãos do Estado, ou seja, era ele o responsável, estando acima de todos, por manter os

demais ao seu dispor. Thomas Hobbes aplaude a ideia.

Inclusive, o Poder Moderador ia além de qualquer outro, até porque suas

atribuições não estavam restritas somente às questões burocráticas de funcionamento

estatal, como nomear Ministros de Estado e Magistrados para ocupar suas respectivas

funções no Executivo e Judiciário, como também nomear bispos e prover benefícios

eclesiásticos, numa clara manifestação de interferência nas questões pertinentes à Igreja

Católica, tida como religião oficial do Império (Art. 5).

Não é demais afirmar que durante todo o Império, assim como durante toda a

Colônia, o Judiciário via seus trabalhos atrelados à disposição dos demais, seja no

tocante ao Governador-Geral, seja com relação ao Imperador, a força de sua matize

como definidor do pensamento jurídico nacional estava minada pelas vontades daqueles

que detinham o poder. Enfatiza Rosalina Corrêa de Araújo:

Esse quarto poder, conforme estabelecia a Carta política, pousava sobre os demais – Executivo, Legislativo e Judicial – através do poder de prerrogativa, que permitia do imperador sancionar resoluções, prorrogar e adiar sessões, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente os ministros, suspender os magistrados e conceder indulto e anistia.226

O Império, na realidade, contribuiu de forma significativa na produção jurídica,

embora estivesse atrelado ao poder moderador e aos assentos que, como visto, foram

repetidos no cenário brasileiro tal qual o concebido em Portugal, mas desta vez com leis

próprias e fomentadas no próprio território brasileiro.

A importância da Casa da Suplicação e dos Assentos ultrapassa os limites da

relação Colônia-Império, como comprova o Decreto nº 2.684, de 23 de outubro de

1875, que inseriu os assentos portugueses no ordenamento jurídico brasileiro, dando

“força de lei no Império a assentos da Casa da Suplicação de Lisboa e competência ao

Supremo Tribunal de Justiça para tomar outros.”227

Assim como no Império Romano o Edictum Perpetuum de Sálvio Juliano

durante o governo do Imperador Adriano reuniu e codificou todas as edicta anteriores

em um único volume, também esta lei teve como intuito vincular o Judiciário às

decisões e determinações já existentes por força dos assentos.

226 ARAÚJO, Rosalina Corrêa de. O Estado e o Poder Judiciário no Brasil. Editora Lúmen Júris. Rio de Janeiro: 2004, p. 27. 227 BRASIL. Ob. Cit. 23 de outubro de 1875. Fonte: Planalto.

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Art. 1º Os assentos tomados na Casa da Supplicação de Lisboa, depois da creação da do Rio de Janeiro até á época da Independencia, á excepção dos que estão derogados pela legislação posterior, têm força de lei em todo o Imperio. As disposições desta lei não prejudicam os casos julgados contra ou conforme os ditos assentos.228

Além dele, o Decreto nº 6.142, de 10 de março de 1876, dispôs sobre a liberdade

de interpretação da norma jurídica e da importância do debate para a composição do

ordenamento brasileiro. Tanto é que “os assentos tomados não prejudicarão os casos

julgados contra ou conforme a doutrina que estabelecerem”229.

Interessante notar que este decreto trata ainda sobre quem poderia propor os

assentos ao Supremo Tribunal de Justiça, não cabendo somente a estes as deliberações

sobre os assuntos passiveis de constarem nos assentos, conforme determina o Art. 4º do

supracitado decreto imperial.

Art. 4º Serão tomados os assentos: I. Por indicação de qualquer Ministro do Supremo Tribunal de Justiça. II. Por proposta de alguma das Relações do Imperio, ou de qualquer Juiz de primeira instancia. III. A requerimento feito pelo Instituto da Ordem dos Advogados.230

Também o Art. 5º trata de como deverá ser realizado o requerimento, ao

estipular que as decisões controvertidas devem ser encaminhadas com cópia das atas de

julgamentos, sem as quais não seria possível tratar da possível criação de assentos.

Art. 5º As indicações, propostas e requerimentos serão acompanhados: I. De um relatorio circumstanciado dos julgamentos divergentes, que se especificarão, e das duvidas occorridas sobre a intelligencia da lei ou do direito em these. II. De certidão verbo ad verbum dos julgamentos divergentes. Estas certidões serão passadas ex-officio pelos funccionarios competentes, mediante requisição.231

Percebe-se, pois, já no decurso do século XIX, que a liberdade jurisprudencial

não estava atrelada ao cumprimento estrito dos assentos. Mesmo possuindo força

normativa, conforme verificado no decreto anterior, os assentos não prejudicarão a

atuação dos magistrados nos casos anteriores.

228 BRASIL. Ob. Cit. 23 de outubro de 1875. Fonte: Planalto. 229 BRASIL. Decreto nº 6.142, de 10 de março de 1876. Fonte: Planalto. 230 BRASIL. Ob. Cit. 10 de março de 1876. Fonte: Planalto. 231 BRASIL. Ob. Cit. 10 de março de 1876. Fonte: Planalto.

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No Império, a maioria das disposições das Ordenações Filipinas persistiram,

mesmo após a promulgação da Primeira Constituição Brasileira (1824). Uma mudança

chegou a ser tentada, mas não foi concretizada:

[...] a competência para proferir assentos foi transferida para o Supremo Tribunal de Justiça, previsto no Art. 163 da Constituição Imperial. Muito diminuta foi à participação do novo Tribunal, como de resto, de todo o Poder Judiciário da época, mitigado pela criação do Poder Moderador, que centralizava, nas mãos do Imperador, quase todas as decisões políticas, incluindo aquelas relativas às questões legais.232

Não se pode também deixar de citar outro importante fator das heranças

portuguesas no Brasil, iniciado ainda durante o período colonial e que prosseguiu por

todo o Império e República, que é a questão da burocracia estatal atrelada aos interesses

do poder dominante em cada um desses períodos.

Esta característica não foi perceptível somente nas instâncias do Executivo e

Legislativo ao longo do Império, como foram encontradas no Judiciário, atuando na

manutenção da classe dominante e em busca dos interesses do Imperador, pautados em

leis que já denotavam o absolutismo português repassado ao Império pelo poder

moderador, tendo como finalidade a manutenção do status quo.

Mais que um estamento burocrático, a magistratura simbolizava uma expressão significativa do poder do Estado, ungido para interpretar e aplicar a legalidade estatal, garantir a segurança do sistema e resolver os conflitos de interesses das elites dominantes. Contata-se, pois, o procedimento profissional e político dos magistrados enquanto atores privilegiados da elite imperial, sua relação com o poder político, com a sociedade civil e sua contribuição na formação das instituições nacionais.233

O Judiciário se mostrou mais como cargos políticos do que de magistrados

capazes para o julgamento imparcial. Seu papel no surgimento do Estado brasileiro após

a Independência em 1822 continuou a mesma que se iniciou ainda na Colônia, de modo

a favorecer os principais atores do cenário político.

O apadrinhamento foi determinante para o sucesso desse modelo pautado nos

interesses e nas formas de administrá-lo de acordo com os aliados. Os magistrados

praticavam a atividade judicial e ao mesmo tempo política, o que significava que não

separavam suas funções de julgar das de administrar.

232 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 31. 233 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 96.

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Na prática, o poder judicial estava identificado com o poder político, embora, institucionalmente, suas funções fossem distintas. O governo central utilizava-se dos mecanismos de nomeação e remoção de juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a justiça fosse partidária, e o cargo, utilizado para futuros processos eleitorais (fraudes e desvios) ou mesmo para recompensar amigos e políticos aliados. Assim, o juiz deixava de apreciar conflitos de sua competência (impessoalidade, neutralidade) para entrar numa prática antijudiciária, em que só contava o atendimento ao partido aliado e aos chefes no interior.234

O Absolutismo atrelava todas estas instâncias à vontade soberana do Imperador,

como se evidencia na célebre frase de Luis XIV: “O Estado Sou Eu”. Tal afirmação não

é errônea quando analisada as circunstâncias em que foi pronunciada.

Somado ao fato de que os juízes julgavam de acordo com os interesses maiores

dos grupos dominantes, claro é que o poder moderador e aquele externado pelo próprio

imperador, atrelavam os juízes, participantes ativos dentro desse sistema.

Interessante notar que a figura do poder moderador, oficialmente extinto com a

Proclamação da República em 1889 e a consequente promulgação da Constituição

Republicana de 1891 não o tirou do cenário político nacional, sobretudo porque as

oligarquias, como classe dominante, continuaram a desempenhar o seu papel de

controle das instituições. Aqueles que antes dominavam o Império passaram a dominar

também a República.

Essa estrutura que teoricamente buscou suas bases na estruturação de Estado

Francês e Estadunidense esteve inserida numa mudança iniciada também no advento

desses dois grandes acontecimentos do mundo ocidental, que é a transformação de

mentalidade quanto ao conceito de "nação", ocorrido em fins do Século XIX.

De acordo com essa nova denominação, não mais se atrelava o Estado ao seu

governante, como ocorrido no próprio Brasil quando da fuga da Família Real, mas sim

ao povo, sendo este o responsável pela formação da nação e pela constituição do Estado.

A equação nação = Estado = povo e, especialmente, povo soberano, vinculou indubitavelmente a nação ao território, pois a estrutura e a definição dos Estados eram agora essencialmente territoriais. Implicava também uma multiplicidade de Estados-nações assim constituídos, e de fato isso era uma consequência da autodeterminação popular. A Declaração francesa dos Direitos em 1795 assim propôs: "Cada povo é independente e soberano, qualquer que seja o número de

234 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 96.

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indivíduos que o compõem e a extensão do território que ocupa. Essa soberania é inalienável".235

Esta mudança é importante para a compreensão do ocorrido no Brasil durante o

período colonial, mas também para compreender o que ocorreu durante todo o Império,

em que a figura do Poder Moderador centrada no Imperador se tornou a base da nação,

ou seja, apesar de tratar na Constituição Imperial de 1824 dos institutos da Revolução

Francesa e da Tripartição Clássica das Funções de Montesquieu, não era no povo que se

centrava o Estado, mas sim no Imperador, situação que não se modifica completamente

com o advento da República, após a sua proclamação.

2.4 BRASIL REPÚBLICA

Desde sua formação a República conviveu com os mais diversos tipos de

mentalidades na busca pelo poder. Esse choque de ideologias, normal em toda e

qualquer sociedade, não foi assim considerado no Estado Brasileiro, que mantinha sua

sociedade estratificada e as ideologias pautadas na busca do melhor interesse das classes

dominantes e da manutenção de seu status quo.

Sua causa encontra-se na própria sociedade e na sua mentalidade. Como vimos,

as dificuldades de inserção de novas ideologias foi extremamente complicada no

período Imperial, em que as classes dominantes, desejosas do poder e da manutenção

dos seus privilégios, freava todos e qualquer movimento no sentido de mudanças.

A modernização decorrente da industrialização , no entanto, esbarrava com a viva reação dos principais interessados na manutenção do statu quo ante da economia agrária, escravocrata, patriarcal. Como são eles os líderes locais, cuja voz chega ao Parlamento, entende-se a forte corrente oposta a qualquer mudança legislativa em matéria de propriedade, família e sucessões.236

A posição social das classes dominantes do Império passou também pela

República, até mesmo porque as oligarquias que predominavam desde a colônia,

continuaram a se fazer presentes nos cenários Imperial e Republicano, tornando o

ambiente político volátil.

235 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo Desde 1780: Programa, mito e realidade. São Paulo: Editora Saraiva de Bolso, 2011, p. 29. 236 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 289.

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Esta instabilidade política e ideológica criou por vezes ambientes hostis, levando

o governo a decretar, por inúmeras vezes, o estado de sítio em todo o território nacional,

sempre tendo como intuito conter os ânimos e manter a ordem.

A bem da verdade, durante toda a Primeira República (1889-1930) poucas foram

às vezes em que não houve o estado de exceção decretado, seja pelas revoltas

monarquistas no início da República, seja pelo clamor popular ou o “terror do

comunismo”; de alguma forma, justificava-se o uso do estado de sítio para apaziguar os

ânimos e retomar a ordem.

A primeira Constituição Republicana trouxe consigo uma série de mudanças na

legislação acerca do processo e julgamento das lides, o que influiu decisivamente na

extinção dos assentos portugueses, visto que não guardavam mais relação com o novo

modelo instituído.

Com a primeira Constituição Republicana, em 1891, adveio a dualidade das Justiças – Federal e Estadual (art. 34, n. 26), e também a dualidade processos (art. 34, n. 23), já que cada Estado ficava autorizado a legislar sobre processo e organizar sua justiça. Paralelamente, findou-se a aplicação dos assentos portugueses em nosso país, o que bem se compreende, já que a Constituição Republicana previra outro modus procedendi para se alcançar o ideal da uniformidade jurisprudencial, dispondo no art. 59, § 2º, que “nos casos em que houver de aplicar as leis dos Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência dos tribunais locais e vice-versa, as justiças dos Estados consultarão a jurisprudência dos tribunais federais, quando houverem de interpretar as leis da União”.237

Tomado os assentos como obsoletos, a nova carta procurou, contudo,

uniformizar a jurisprudência de modo a alcançar maior efetividade da justiça na

aplicação do direito aos casos análogos.

Ainda, quando da Proclamação da República surgiu a dúvida sobre qual fim dar

ao Poder Moderador. A resposta foi simples e rápida: imputar no Executivo todas as

atribuições antes pertinentes ao Imperador, mas não de forma explícita em um dos

Artigos ou Sessões da Constituição Republicana de 1891 e sim de maneira implícita,

sem deixar que os demais poderes se sentissem “subjulgados”.

A prática, porém, mostrou justamente o contrário e o Executivo se colocou

acima dos demais e subjugou-os, sobretudo o Judiciário, que viu cada vez mais sua

atuação sendo diminuída e a importância de seus atos relevados.

237 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 224-5.

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Apesar de não existir mais o Poder Moderador, o Presidente, herdeiro desse poder absoluto, estava um pouquinho acima da lei e dos demais poderes: o que estava escrito no papel da nova Constituição não era suficiente para garantir o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário.238

O transplante realizado pelo Executivo em tomar para si, ainda que sem

nenhuma determinação constitucional, as atribuições do Poder Moderador, não foi

nenhuma novidade, já que os moldes estatais brasileiros sempre se propuseram a seguir

as bases estrangeiras, principalmente europeias, no que houve uma total modificação

para o enquadramento na realidade nacional, ou seja, todo e qualquer modelo não

poderia interferir no já estratificado quadro social disposto no país.

Ainda nos primórdios da República, as instituições pretorianas, bem conhecidas

e trabalhadas pelo Direito Romano, foram transpassadas ao direito brasileiro. O

continuísmo jurídico é confirmado, da mesma forma em que ocorreu com o Código

Civil (de 1916 e de 2002) e muitas outras criações jurídicas constantes dos institutos

romanísticos.

O Decreto nº 1.030, de 14 de novembro de 1890239, véspera de aniversário de

um ano da República, foi publicado na Sala das Sessões do Governo Provisório, tendo

sido assinada pelo Presidente Manoel Deodoro da Fonseca e por seu Ministro da Justiça

Manuel Ferraz de Campos Sales (posteriormente eleito o 4º Presidente da República,

entre os anos de 1898 e 1902, após a entrega do poder à sociedade civil pelos militares).

A força legal do Decreto tinha por intuito organizar a Justiça no âmbito do

Distrito Federal, de modo que as pretorias foram designadas para atender somente à

Capital da República.240

238 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. Ob. Cit. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), 2007, p. 79. 239 BRASIL. Decreto 1.030, de 14 de novembro de 1890. Fonte: Câmara dos Deputados. Organiza a Justiça no Districto Federal. O Generalissimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, tendo ouvido o Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, resolve decretar a lei seguinte: Organização da Justiça no Districto Federal 240 BRASIL. Ob. Cit. 14 de novembro de 1890. Fonte: Câmara dos Deputados. Dispõe o Decreto 1.030, de 14 de novembro de 1890: Art. 1º A Justiça civil e penal é distribuida no Districto Federal pelas seguintes autoridades: Pretores; Juntas correccionaes; Juizo dos Feitos da Fazenda Municipal; Tribunal civil e criminal; Jury;

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Os pretores foram divididos de acordo com as circunscrições, que se

subdividiam em urbana e suburbanas, correspondendo às vinte e uma freguesias do

Distrito Federal (até então localizado no Rio de Janeiro), devendo cada pretor residir na

circunscrição em que fora eleito.

Tal qual em Roma, em que os pretores eram divididos de acordo com a área e

com o tipo de conflito, no Brasil Republicano o mesmo ocorreu, de modo que cada qual

era responsável por uma das 21 circunscrições do Distrito Federal, no Rio de Janeiro.

Os pretores eram escolhidos, de acordo com o Art. 16, dentre os cidadãos

brasileiros e com formação em direito241. Apesar de parecer uma regra evidente, um fato

na República pode evidenciar a necessidade de especificar a formação para o cargo.

Cândido Barata Ribeiro, médico baiano, chegou a ocupar em 25 de novembro de 1893 a

cadeira vaga em decorrência do falecimento do Barão de Sobral, permanecendo no

cargo por dez meses, até o Senado negar sua aprovação em 24 de setembro de 1894, por

falta de notório saber jurídico.242

Outra característica dos pretores romanos e que foi mantida no Brasil está

relacionada à sua eleição, já que ficavam no cargo por um período de quatro anos,

quando não vitalícios, passando à vitaliciedade após esse período, ganhando

prerrogativas do cargo, de acordo com o Art. 17:

Art. 17. O pretor que não for nomeado dentre os magistrados vitalicios, o será por quatro annos, durante os quaes é inamovivel, e só perde o logar por sentença, ou a seu pedido; e, findo o quatriennio, póde ser reconduzido com titulo de vitaliciedade.243

Contudo, a principal parte do Decreto está na jurisdição ao qual o pretor estava

relacionado, bem como sua competência de julgamento nas áreas cível e criminal, de

acordo com as especificidades dos casos. Tais dispositivos estão presentes no Título II,

Capítulo I, entre os Arts. 49 e 51.

241 BRASIL. Ob. Cit. 14 de novembro de 1890. Fonte: Câmara dos Deputados. Art. 16. Só pode ser nomeado pretor o cidadão brazileiro que for graduado em direito, e provar haver bem exercido, durante dous annos, pelo menos, a judicatura, o ministerio publico ou a advocacia, preferindo o que tiver titulo de exame ou habilitação. 242 Sobre o tema: Em decreto de 23 de outubro de 1893, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, preenchendo a vaga ocorrida com o falecimento do Barão de Sobral; tomou posse em 25 de novembro seguinte. Submetida a nomeação ao Senado da República, este, em sessão secreta de 24 de setembro de 1894, negou a aprovação, com base em Parecer da Comissão de Justiça e Legislação, que considerou desatendido o requisito de “notável saber jurídico” (DCN de 25 de setembro de 1894, p. 1156). Em consequência, Barata Ribeiro deixou o exercício do cargo de Ministro em 24 do referido mês de setembro. Fonte: STF. 243 BRASIL. Ob. Cit. 14 de novembro de 1890. Fonte: Câmara dos Deputados.

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O pretor também era o Presidente das Juntas Correcionais, cabendo à ele

desempenhar alguns outros atos que na atualidade são desempenhados pelos auxiliares

da justiça, tais como oficiais de justiça, peritos e escrivães, além da própria função de

julgamento da lide.

Os pretores tinham, assim, não apenas poderes administrativos, como também

responsabilidade de julgamento e cuidados com os trâmites do processo, respeitando

sempre sua jurisdição definida pela própria lei.

A característica mais marcante dos pretores romanos não ficou de lado no Brasil.

Eis que a afixação do edital na porta da Pretoria foi instituída aos pretores brasileiros, tal

qual com seus antecessores romanos.

Art. 114. Os pretores affixam tambem uma cópia do edital da convocação e participam ao juiz presidente, antes do dia da reunião, as notificação feitas. [...] Art. 149. Cada Pretoria, camara e conselho organiza annualmente os mappas estatisticos dos seus trabalhos judiciaes, e o presidente da Côrte de Appellação, recebendo-os, manda organizar o mappa geral, e o remette ao Governo com um relatorio circumstanciado do estado da administração da Justiça, mencionando as duvidas e lacunas encontradas na execução das leis.244

A vinculação decisória fica clara nestes dois artigos supracitados. Inclusive,

assim como em Roma, os pretores brasileiros anexavam os editais na porta das

Pretorias, de modo a cientificar a todos os cidadãos as determinações constantes para a

aquela circunscrição.

Este é um exemplo claro não apenas do continuísmo das instituições jurídicas

brasileiras, como também um claro indício de utilização de modelos arcaicos já

abandonados, mas que por força da influência romana no direito português foi retomado

como solução aos problemas.

Os juízes, atralados à estratificação legal pelos julgados, tornavam-se meros

servos da burocracia estatal, que tinha como pressuposto a dominação pela

racionalização dos procedimentos burocráticos do Estado, isto é, a complexidade e o

alcance geral das ações racionalmente ordenadas sobre os indivíduos facilitou a

dominação do Estado sob seu jugo.

A racionalização, indispensável para a implantação e funcionamento da dominação burocrática, impessoal, só se torna possível como legalismo e com a rígida compreensão objetiva da hermenêutica como uma análise gramatical ou sistêmica dos termos da lei, aplicando-a ao

244 BRASIL. Ob. Cit. 14 de novembro de 1890. Fonte: Câmara dos Deputados.

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caso proposto a julgamento perante um funcionário do Estado, o juiz, que, nessa ótica, age exatamente, embora em grau superior, como qualquer outro representante do Estado, a distribuir protocolos carimbados em seu guichê...245

Não obstante, é um fato consumado que a corrupção do Império passou às

instituições republicanas da mesma forma que o Poder Moderador se transplantou direto

para o Executivo. Os escândalos noticiados pela imprensa e que chegavam ao STF

foram por vezes ignorados, sem que se houvesse uma punição, como ocorriam com as

fraudes eleitorais e os votos de cabresto, demonstrando o amplo domínio pelas

oligarquias cafeeiras de São Paulo e leiteiras de Minas Gerais.246

O conflito entre o Executivo e o Judiciário não se deu somente no plano

ideológico, com os constantes entraves e recorrentes discussões acerca da delimitação

de funções. A análise jurisprudencial é importante fator histórico deste período e denota

todas as tensões que envolviam as disputas de poder pelas oligarquias e os embates que

tais guerras causavam no âmbito legal.

Dentre os principais problemas está a questão do já citado estado de sítio, sob o

qual esteve toda a Primeira República (1889-1930). Os atos do Executivo, na sua

maioria das vezes, confrontava a atribuição constitucional conferida pela Carta de 1891

para regulação do Estado. O embate era evidente e foi por vezes alvo de discussões no

Congresso e até mesmo na sociedade, através da imprensa.

Segundo informações da Biblioteca do Congresso Nacional, entre 1889

(Proclamação da República) e 1930 (Golpe de Vargas) foram encontrados 144 (cento e

quarenta e quatro) decretos que, de alguma forma, aludem ao estado de sítio, sendo a

maioria deles emanados do Executivo e alguns do Legislativo.247

Os julgamentos ganhavam ares de afirmação quando o Supremo Tribunal

Federal, figura central do Judiciário nacional, passou a firmar posicionamento sobre

245 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 302. 246 Neste sentido: “A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas das deformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da renda nacional, da sua arraigada discriminação contra os negros escravos ou forros e contra os núcleos caipiras que lhe resistiam, bem como contra as massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e nessa discriminação senhorial é que devem ser procuradas as razões pelas quais o Brasil se atrasou tão gritantemente em relação aos demais países latino-americanos e a qualquer outro povo do mesmo nível de desenvolvimento, tanto na abolição da escravatura como na imposição ao Estado da obrigação de assegurar educação primária à população e na extensão aos trabalhadores rurais dos direitos de sindicalização e de greve”. (RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª Reimpressão, 2007, p. 364). 247 Fonte: BIBLIOTECA DO CONGRESSO NACIONAL. Pesquisa realizada em 20/11/2013.

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muitos atos que antes eram tidos como excluídos da competência de julgamento, já que

imbuídos do “Poder Moderador” do Executivo.

O respeito a estas atribuições constitucionais de cada órgão, contudo, é que

parecia não estar tão delimitado, especialmente quando analisado o Executivo frente aos

demais órgãos da União. Em todos os períodos da história brasileira, de alguma forma,

o Poder Moderador, seja com essa nomenclatura ou não, passou pelo Executivo, em

alguns pontos mais e em outros menos, prevalecendo sua superioridade e atendendo à

classe dominante.

A Constituição Federal de 1891 estabeleceu (ou tentou) o Estado brasileiro nos

moldes republicanos e foi influenciada pela sua antecessora, de modo que muitos

dispositivos que serviam somente para o Império continuaram na República, o que

também não se mostra como nenhuma novidade, uma vez que, conforme já analisado,

todo o direito brasileiro decorre de uma linha sucessória imaginária que passa pelas

Ordenações, pelo direito visigótico, canônico, germânico e romano.

Uma significativa alteração ocorreu na forma de configuração do Estado,

deixando de ser um Estado unitário centrado na figura do imperador, para se constituir

como uma federação, na qual os Estados-membros possuiriam seus representantes nas

três funções de governo.

Dominando o poder, os presidentes implementaram políticas que beneficiaram o setor que os apoiava. Assim, criou-se a política do café com leite, que elegia presidentes de São Paulo e Minas Gerais, os Estados mais ricos na época e que dominavam o cenário político República. Tal política sofreu duras críticas de empresários ligados à indústria, que estava em expansão neste período.248

Os ideais conflitantes e as divergências ideológicas hoje são consideradas não

apenas normais, como também saudáveis à sobrevivência da república e da democracia,

mas a fase de transição entre o fim do Império e o começo da República foi

extremamente conturbada, principalmente pelo domínio aristocrático dos cafeicultores,

os mesmos que tentaram na Constituição Imperial tirar os poderes do Imperador,

permitir alguns direitos individuais e ao mesmo tempo manter seu status.

O governo provisório instaurado quando da queda do Império foi encabeçado

pelos militares, para depois então realizar a transição civil. Foi neste momento que o

248 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 250.

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então presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, convoca a constituinte para elaboração

de nova Carta Política.

O governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca teve a missão de legislar a Carta Política da época. Em 1890, foi nomeada uma constituinte encarregada de elaborar um projeto de Constituição. O resultado deste trabalho foram três projetos, revistos por Rui Barbosa, influenciado pelo modelo norte-americano presidencialista, federativo, bicameral e com a tripartição dos Poderes, que consistiram no texto final da Constituição promulgada em 1891.249

De uma maneira geral, percebe-se que a Primeira República vivia afundada na

instabilidade de suas instituições, em que a grande maioria delas continuava com

resquícios dos velhos ideais imperiais conservadores.

Esta Constituição, a primeira republicana, teve como escopo assegurar a

manutenção do mesmo status quo agrícola perpetuado desde a Colônia, com o domínio

dos latifundiários de São Paulo e Minas Gerais, mas agora sem o Imperador tentando

ficar acima de seus interesses políticos.

A República sobrevivia da arbitrariedade do Estado, que transparecia em seus

atos a fraqueza de suas instituições e do engajamento destas na luta pelo poder, já que

tudo girava em torno de quem detinha o poder e, consequentemente, de quem ficaria

com este ao ser eleito presidente.

A República não formaria partidos políticos. Apenas republicanos formados na propaganda ocupavam as lideranças, nas vagas deixadas pelos homens do Império. Aos donatários das Províncias monarquistas haviam sucedido primeiros os militares da confiança de Deodoro; depois de oligarcas consolidados pela política dos governadores. Houve mudanças de pessoas, mas não de processos. Ainda é Rui que escreve: “A verdade é que neste regime não existem as oposições, não existem os partidos, não existe a ação política, nem organizada nem popular, não existe nada senão o mecanismo oficial da administração do Governo, destinado a frustrar, a iludir os eleitores do país.”250

Ao longo da história da Primeira República, muitas foram às vezes que os atos

do Executivo ficaram acima do julgamento do STF, mesmo que tais atos implicassem

na violação de garantias constitucionais ou na usurpação de prerrogativas, quando cabia

ao Executivo tanto a sua função típica, como a dos demais órgãos.

249 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 122. 250 SILVA, Hélio. História da República Brasileira – O Levante da Escola Militar (1920-1922). Editora Três, Volume 5. São Paulo: 1998, p. 34.

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Sobrepondo-se aos demais Órgãos, o Executivo criava um ambiente hostil, em

que a constitucionalidade de seus atos era questionada a todo instante pelas instâncias

políticas e sociais, que viam no Judiciário um aliado importante para conter os ânimos e

os atos contrários à legalidade instituída pela Constituição Republicana de 1891. O STF,

por sua vez, começa a desempenhar papel fundamental nos cenários político e jurídico

nacional, que serão mais claramente identificados com os eventos futuros da segunda

década do Século XX.

Ainda em meio aos conflitos estatais e paralelos da década de 1920,

encontramos a edição do Decreto nº 16.273, de 20 de dezembro de 1923, que tinha por

escopo organizar a justiça no âmbito do Distrito Federal, inserindo ainda a figura do

prejulgado em sua legislação processual, o que posteriormente seria copiado pelos

demais Códigos Estaduais de Processo.251

Segundo suas disposições, quando o relator de determinado processo verificar a

existência de divergência entre as Câmaras, poderá propor após a revisão da causa, que

o julgamento seja realizado em sessão conjunta, de modo que tentava uniformizar a

jurisprudência existente nos tribunais, além de possibilitar também a revisão dos

julgados dos tribunais.252

O direito, neste período, pode ser visto como uma importante força que impede a

manifestação dos movimentos da sociedade, impedindo-os não apenas de se

desenvolverem, como também deixando clara as diferenças da realidade social nacional

e do sistema jurídico privilegiador das classes dominantes.

Caracteriza o esforço pela racionalização do direito: 1º) a sistematização racional; 2º) o sacrifício do interesse social ao rigor lógico; 3º) a consideração do direito como fenômeno destacadamente urbano, como regulador das atividades sobretudo mercantis, para proveito de uma classe em ascensão constante, isto é, a burguesia.253

251 BRASIL. Decreto nº 16.273, de 20 de dezembro de 1923. Fonte: Planalto. 252 Posteriormente, com a edição da Lei 319, de 25 de novembro de 1936, o prejulgado passa a ter expansão à nível nacional, de modo que em 1939 é inserido definitivamente no Código de Processo Civil, em seu Art. 861: “A requerimento de qualquer de seus juizes, a Câmara, ou turma julgadora, poderá promover o pronunciamento prévio das Câmaras reunidas sobre a interpretação de qualquer norma jurídica, se reconhecer que sobre ela ocorre, ou poderá ocorrer, divergência de interpretação entre Câmaras ou turmas”. (Decreto-Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939. Fonte: Planalto). O Código de Processo Civil trouxe ainda a possibilidade da revista, que seria a correção de divergência entre órgãos fracionários de um mesmo tribunal, inserido em seu Art. 853: “Conceder-se-á recurso de revista para as Câmaras Civis reunidas, nos casos em que divergirem, em suas decisões finais, duas (2) ou mais Câmaras, ou turmas, entre si, quanto ao modo de interpretar o direito em tese. Nos mesmos casos, será o recurso extensivo à decisão final de qualquer das Câmaras, ou turmas, que contrariar outro julgado, também final, das Câmaras reunidas”. (Decreto-Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939. Fonte: Planalto). 253 CICCO, Cláudio de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp. 300-1.

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É sim um objeto posto à serviço da dominação. O direito se caracteriza há muito

por esta função, não deixando de ser diferente no Brasil. Aliás, é o próprio direito que

acaba por dar bases aos golpes que se verificaram ao longo da história, uma vez que são

as disputas pelo poder conferido pelo direito que levaram os movimentos golpistas,

vitoriosos ou não, a tentar tomar o poder.

Confirmando o prognóstico, em 1930, após outra fraude nas eleições

presidenciais para a sucessão de Washington Luís, novo Golpe é operado na República,

desta vez com sucesso. Sem a possibilidade de intervenção do governo, como em outras

ocasiões, a Aliança Liberal, formada por Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande Sul e

encabeçada por Getúlio Vargas toma o poder e, mais do que isso, a legalidade do país.

Com Vargas foi somente mais um período de instabilidade social, jurídica e

legal, ainda mais porque houve a revogação da Constituição de 1891 com o Golpe de

1930. Não havia garantias ou direitos fundamentais assegurados. O Legislativo e o

Judiciário estavam à mercê, sem Constituição para regular atribuições e impedir

arbítrios. Tudo centralizava-se nas mãos do Executivo e os Decretos-Leis emanados

dele que deram um caráter “aconstitucional” ao Governo Provisório (1930-1934).

O decreto de 11 de novembro de 1930 instituía o Governo Provisório e lhe conferia não só as atribuições do Poder Executivo como também as do Poder Legislativo, até que fosse eleita a Assembleia Constituinte e estabelecida a reorganização social do país. Na mesma ocasião, foram dissolvidos o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais. Os governadores foram substituídos por interventores, incumbidos da indicação dos prefeitos. Foram suspensas as garantias constitucionais e excluídas da apreciação judiciária os decretos e atos do Governo Provisório ou dos interventores.254

Ao baixar o Decreto-Lei 19.398, de 11 de novembro de 1930255, o Governo

Provisório (1930-1934) fica oficialmente instituído e todas as ações são concentradas no

Executivo, que passa a ter prerrogativas além de suas funções típicas. Do outro lado, o

Congresso Nacional é fechado, de modo que não existe a fomentação de leis, até porque

Vargas governaria por meio de Decretos-Leis e o Judiciário ficou, durante os anos

seguintes, a mercê de suas vontades arbitrárias.

Imbuído de um tal espírito “revolucionário”, Vargas tentou por vezes acabar

com o sistema tripartido de funções, uma vez que as determinações do Executivo, por

254 COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: Instituto de Estudos Jurídicos e Econômicos – IEJE, 2001, p. 64. 255 BRASIL. Decreto-Lei 19.398, de 11 de novembro de 1930. Fonte: Planalto. Institue o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, e dá outras providencias.

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meio dos Decretos-Leis seriam “suficientes” ao menos para as questões legislativas, de

modo que deturpava as funções e desconstituía o Estado. Bem lembra Aristóteles que

um Estado não pautado na lei não possui a real constituição.256

Contudo, como fazer o mesmo com o Judiciário, acabando com sua liberdade de

atuação que, por vezes, batia de frente com os preceitos emanados pelo Executivo,

como tantas vezes verificado na Primeira República? Esta pergunta ganhou relevos

importantes, já que os Decretos-Leis não possuíam alcance decisório, como as sentenças

do Judiciário. A solução foi encontrada no passado brasileiro e não foi necessário ir

muito longe para isso.

Inclusive, foi durante o Governo Provisório (1930-1934) que Vargas tentou

implantar novamente no Brasil a vinculação das instâncias inferiores do Judiciário à

interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal à legislação pátria. O autoritarismo

do Governo Vargas buscou, através desta medida, o controle do Judiciário, da mesma

forma em que intentou controlar a política do país.

A segunda tentativa pátria nesse sentido, em 1933, foi por meio do Decreto 23.055, de 09 de agosto, que instituiu o Recurso de Ofício, vinculando as instâncias judiciais inferiores à interpretação dada pelas decisões do Supremo Tribunal Federal às leis federais.257

Foi assim chamado de Recurso de Ofício uma vez que, havendo discrepância

entre a aplicabilidade da legislação federal e a decisão do juiz, o presidente do Tribunal

ou da Câmara deveria recorrer de ofício ao Supremo Tribunal Federal, para que este

deliberasse sobre o ocorrido, sempre com efeito suspensivo.

O Art. 1º do Decreto nº 23.055, de 9 de agosto de 1933, procurou potencializar e

ao mesmo tempo aumentar a autoridade e a eficácia das decisões do Supremo Tribunal

Federal, de modo a vincular as demais instâncias de acordo com a interpretação da

Corte Maior sobre determinados assuntos.258

256 Neste sentido: “Não há constituição onde as leis não governam; as leis devem governar tudo, enquanto os magistrados devem cuidar apenas dos casos particulares, e devemos julgar que governo constitucional é isto; se a democracia é realmente uma das formas de constituição, é evidente que uma organização desta espécie, em que tudo é administrado por decisões da assembleia popular, não é sequer uma democracia no verdadeiro sentido da palavra, pois decretos não podem constituir normas gerais”. (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 132). 257 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, 31. 258 Art. 1º As justiças dos Estados, do Distrito Federal e do Territorio do Acre devem interpretar as leis da União de acôrdo com a jurisprudencia do Supremo Tribunal Federal. § 1º Sempre que os julgamentos das mesmas justiças se fundarem em disposição ou princípio constitucional, ou decidirem contrariamente a leis federais, ou a decretos ou átos do Govêrno da União, o presidente do Tribunal ou o da Camara respectiva, a quem coubér, recorrerá "ex-officio" para o Supremo

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Em menos de um ano, tal Decreto perdeu a eficácia por conta do Segundo

Governo Vargas, chamado de Constitucional (1934-1937), tendo início com a

Promulgação da Carta Constitucional, sendo que o Primeiro Governo foi marcado pelo

autoritarismo por conta dos muitos Decretos-Leis baixados por Vargas, como forma de

controlar o país.

Em 1934, por conta da forte pressão popular, sobretudo após o Movimento

Constitucionalista de 1932, em São Paulo, uma nova Constituição é promulgada e

eleições são marcadas para a sucessão presidencial. Essa Carta, aliás, foi uma das mais

bem elaboradas da história do país, por estar lastreada por inúmeros juristas renomados

do período.

O que poderia ser finalmente um período de legalidade e respeito às disposições

constitucionais, porém, durou pouco. Em 1935 Vargas baixa a Lei de Segurança

Nacional259, definindo os crimes contra a ordem política e social e em 1937, com outro

golpe, outorga nova Constituição, inspirada na Constituição Polaca e elaborada por

Francisco Campos, dando início ao Estado Novo (1937-1945).

Mais uma vez e por mais um golpe as estruturas da República brasileira

sofreram abalos significativos, alterando a configuração do próprio Estado e assentando

novamente a política autoritária como forma de governo, assim permanecendo até 1945,

quando do fim da Era Vargas após quinze longos anos no poder.

Aliás, neste meio tempo entre a queda de Getúlio Vargas e a eleição de Eurico

Gaspar Dutra, o Brasil teve fato único até hoje na história do país: entre 29 de outubro

de 1945 e 31 de janeiro de 1946 o então presidente do Supremo Tribunal Federal,

Ministro José Linhares, exerceu o cargo de Presidente da República, tendo sido

nomeado pelas Forças Armadas para preparar o retorno à ordem democrática,

organizando as eleições presidenciais para o novo Chefe do Executivo Nacional,

permanecendo no cargo até a posse de Dutra.260

Em 1946, outra Constituição é promulgada, tendo como intuito promover a

democracia e estabilizar a República, duas situações ainda longe de serem alcançadas,

mesmo após mais de cinquenta anos de sua proclamação e três Constituições Federais.

Tribunal federal, com efeito suspensivo, dentro do prazo de tres dias contados da publicação do respectivo acórdão. (BRASIL. Decreto nº 23.055, de 09 de agosto de 1933. Fonte: Planalto). 259 BRASIL. Lei nº 38, de 4 de abril de 1935. Fonte: Planalto. Define crimes contra a ordem política e social. 260 BRASIL. Biblioteca da Presidência da República. Fonte: Planalto.

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Vargas governou o país por quinze anos sem nunca ter sido eleito para o cargo

de presidente da República neste período, vez que perdeu as eleições à sucessão de

Washington Luís em 1930 para Júlio Prestes. Suas ações temerárias colocaram em risco

as instituições já muito frágeis da república, sobretudo o Judiciário e o Legislativo que,

apesar de praticamente nulos, agiam conforme conseguiam espaço.

Entretanto, não foi somente durante o governo Vargas que ocorreu a tentativa de

retorno dos assentos sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal a nível federal e

dos Tribunais de Justiça a nível estadual, conferindo-lhes poderes não apenas

vinculativos, mas também com força normativa.

Em 1964 presidindo a Comissão encarregada de apresentar ao Congresso Nacional o anteprojeto de um novo Código de Processo Civil, Alfredo Buzaid propôs a adoção do instituto dos assentos, confessadamente inspirado no modelo português. Tais assentos teriam força de lei em todo o território nacional, quando emitidos pelo Supremo Tribunal Federal, ou apenas no respectivo Estado, quando expedidos pelos Tribunais de Justiça. Segundo esclarecido na exposição de motivos, o instituto visava a resolver o problema da uniformidade da jurisprudência.261

Este anteprojeto do Código de Processo Civil que pretendia retornar com o

instituto dos assentos foi uma aberração ao constitucionalismo federativo. A Carta

Magna de 1946, promulgada logo após o fim da Era Vargas, trouxe consigo não

somente a separação entre as funções, mas também suas atribuições no cenário nacional,

determinando expressamente suas competências típicas e atípicas.

Na supracitada Constituição Federal de 1946 cabia ao Legislativo o ato de

legislar, ou seja, fomentar leis, sendo esta sua função típica. Ao Judiciário cabia julgar

de acordo com o predisposto nestas leis criadas pelas Casas Legislativas, sendo esta sua

função típica. É certo que, internamente, o Judiciário podia legislar (como com seus

Regimentos Internos) e o Legislativo Julgar (como o fazem com processos de

impeachment), mas o que o anteprojeto do CPC pretendia era conferir força de lei às

decisões do Judiciário, numa clara usurpação de função.

Em outras palavras, uma lei hierarquicamente inferior à Constituição Federal de

1946 pretendia conceder ao Judiciário atribuição maior do que as constitucionalmente

determinadas, além de ser totalmente contrária aos princípios instituídos da separação

das funções, já que o Judiciário se sub-rogaria no Legislativo por meio de suas decisões.

261 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, pp. 31-2.

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Desnecessário dizer que este retorno dos assentos contou com o apoio

majoritário da doutrina, mas foi suprimido com a alegação de “[...] afronta

constitucional aos princípios da independência jurisdicional e da Separação das

Funções. A ideia, contudo, não resultou de todo sem proveito, inspirando o Ministro

Victor Nunes Leal para a criação das súmulas do Supremo Tribunal Federal”.262

Ademais, ainda em 1964, sob o pretexto de uma iminente revolução comunista,

os militares novamente tomam o poder e destituem João Goulart. Contudo,

diferentemente dos demais períodos na História em que os militares tomam o poder e

depois o entrega aos civis, desta vez o poder ficou com os militares e o país passou a ser

governado por uma Junta formada por Exército, Marinha e Aeronáutica.

O caráter deste regime ditatorial foi corroborado pelos dezessete Atos

Institucionais baixados ao longo dos cinco primeiros anos, que posteriormente passaram

a integrar a Constituição Federal de 1967 como emendas constitucionais.

Inclusive, os Atos Institucionais, tal como os Decretos-Leis de Vargas, aparecem

como verdadeiras aberrações jurídicas em nome da manutenção da ordem social e da

política nacional. Uma vez que a Junta Militar se fixou no governo, utilizou-se do Ato

Institucional nº 1 para “explicar” os motivos do golpe e mais, para se investir do

exercício do Poder Constituinte Originário.

Neste ínterim, o já citado Código de Processo Civil de 1939 sofreu inúmeras

transformações e alterações em seu texto com leis extravagantes, o que modificou

muitas das suas disposições originais.

Na ânsia de atualizar a lei processual nacional, em 1964 foi apresentado projeto

para um novo código, sob organização de Alfredo Buzaid, que tentou intorduzir

novamente os assentos obrigatórios, tanto para decisões do Supremo Tribunal Federal,

como para os tribunais de justiça.

No anteprojeto oferecido por Alfredo Buzaid, revivia-se a tradição lusitana dos assentos obrigatórios, prevendo-se que a decisão tomada por maioria absoluta, no STF (questão federal) ou nos Tribunais de Justiça (direito local), seria obrigatória nos respectivos âmbitos, enquanto não viesse alterada por igual critério; editado o Assento, este teria força de lei após 45 dias de sua publicação no órgão oficial (arts. 518, 519 e 520, parágrafo único).263

Tal proposta foi duramente criticada pela doutrina por conta de sua

inconstitucionalidade, tanto por conflito com a Constituição Republicana, como também 262 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 32. 263 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 231.

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pela força de lei conferida aos assentos, de modo que seu capítulo foi transformado em

disposições sobre as Súmulas de Jurisprudência Predominante no STF, mas sem o

caráter vinculativo anterior.264

Apesar de se manter a Constituição Federal de 1946, não haveria eleições para

uma nova constituinte. A própria Junta Militar que governava o país seria a responsável

pela fomentação da Constituição que substituiria a que se encontrava em vigor, fato este

que ocorreu em 1967.

Interessante notar que o Ato Institucional nº 1265, foi elaborado, dentre outros,

por Francisco Campos, idealizador da Reforma Constitucional de 1926 e da

Constituição Polaca de 1937, o que comprova exatamente as intenções do novo

governo. É Francisco Campos que coloca, como em outras vezes, todas as prerrogativas

constitucionais nas mãos do Executivo.

De todos os Atos Institucionais, porém, o mais subversivo às estruturas do

Supremo Tribunal Federal foi o de nº 6266, que subjugou a instância máxima do

Judiciário ao Executivo. O Art. 4º dispunha sobre a exclusão de apreciação pelo

Judiciário de todo e qualquer ato praticado em nome do governo, conforme segue:

Art. 4º - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.267

A característica mais marcante deste período, contudo, fica por conta das formas

utilizadas pelo governo para manter a dita ordem e segurança nacional, formas essas

utilizadas sem qualquer pudor pelo governo e por seus grupos paramilitares.

264 Neste sentido: “Tal proposta foi criticada em sede doutrinária, antes de mais nada, por inconstitucional. A comissão revisora sugeriu a supressão de todo o capítulo, entendendo que, a manter-se a eficácia vinculativa dos assentos, o futuro Código se poria em contraste com a Constituição da República; e, a eliminar-se tal eficácia, quase nenhum alcance prático teriam as disposições relativas à uniformização da jurisprudência. O Projeto abandonou a solução dos assentos com força de lei; não sumprimiu o Capítulo, mas deu-lhe nova feição, inspirada na Súmula da Jurisprudência Predominante do STF e conservada, com alterações de pormenor, pelo Congresso Nacional”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 7. Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 231-2). 265 BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Fonte: Planalto. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações instroduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. 266 BRASIL. Ato Institucional nº 6 de 1º de fevereiro de 1969. Fonte: Planalto. Dá nova redação aos artigos 113, 114 e 122 da Constituição Federal de 1967; ratifica as Emendas Constitucionais feitas por Atos Complementares subsequentes ao Ato Institucional nº 5; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes. 267 BRASIL. Ob. Cit. 1º de fevereiro de 1969. Fonte: Planalto.

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Apoiados pela Doutrina da Segurança Nacional dos tempos de Vargas, a tortura

e os atos arbitrários contra a sociedade prevaleceram sobre quaisquer outras

determinações legais, constantes ou não na Constituição Federal de 1967 e o detalhe

mais importante é: todos esses atos praticados pelo governo estavam excluídos da

apreciação do Judiciário, conforme determinou o Ato Institucional nº 6.

Durante mais vinte anos, desde o golpe em 1964 até a reabertura política em

1985, a instabilidade social, política, econômica e jurídica prevaleceu no Brasil. O

autoritarismo latente dos atos do governo e sua exclusão da apreciação pelo Judiciário,

além da falta de pluralismo partidário, fez com que toda a luta fosse em prol da

democracia e do respeito às instituições republicanas, por mais fracas que estas fossem.

O cenário muda a partir da Constituição Federal de 1988, quando o Brasil

oficialmente se insere no Estado Democrático e Social de Direito, estabelecendo direitos

tidos como fundamentais a todos os cidadãos, permitindo a harmonia e independência

dos três órgãos da União.

O caráter autoritário do regime militar, inclusive, é o grande responsável pelo

estilo conferido à Constituição Federal de 1988, que procurou abarcar tantos quantos

direitos fundamentais conseguisse para que não houvesse subjugação da sociedade,

tornando-os Numerus Clausus, cláusulas que não podem ser diminuídas.

Dentre as Cláusulas Pétreas, inclusive, consta determinação expressa quanto à

forma de configuração das Três Funções, independentes e harmônicas entre si, de modo

que cada qual conserve a característica que lhe confere a Constituição Federal.

A República Brasileira, apesar de jovem, sofreu inúmeros abalos e sua

construção foi paulatina, ainda mais por conta das fracas estruturas encontradas aqui

para sua propagação. Conforme analisado, o continuísmo político e social foi

determinante para o Estado brasileiro atual, inspirado em determinações e instituições

tão antigas quanto o próprio direito ocidental e, mesmo que ultrapassadas, acabam por

renovar seu fôlego e ganham nova roupagem para voltar à vida, como é o caso das

súmulas (assentos) vinculantes.

A reabertura democrática e a Constituição Federal de 1988 vieram como forma

de tentar modificar este cenário, propiciando aos órgãos do Estado a liberdade de

atuação, desde que respeitados os seus próprios limites constitucionais, o que, aos

poucos, foi entendido e praticado. Entretanto, algumas escapadas podem ser percebidas,

como é o caso das Súmulas Vinculantes.

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2.5 AS TRÊS FUNÇÕES BRASILEIRAS E SUAS PRERROGATIVAS TÍPICAS E ATÍPICAS

Da clássica teoria de Montesquieu, o Estado brasileiro mantém muitas

características proeminentes, fazendo com que suas atribuições, limites e

especificidades insiram a nação no chamado Estado Democrático e Social de Direito,

sobretudo após 1988.

O sistema de governo adotado no Brasil é o presidencialista pelo voto direto da

população, sendo que a constituição brasileira atribuiu cumulativamente a chefia de

Estado e de Governo ao Presidente, sendo ambos indissociáveis.

Ao Presidente da República são atribuídas competências privativas, tanto de

natureza de Chefe de Estado, representando a República Federativa do Brasil nas

relações internacionais e, internamente, sua unidade, como de Chefe de Governo,

praticando atos de administração e de natureza política, estes últimos quando participa

do processo Legislativo.

A Chefia de Estado não responde por seus atos políticos e deles não presta conta

ao Legislativo e/ou Judiciário, mas tão só ao povo, o que não é o caso do Brasil.

A Chefia de Governo, por sua vez, diz respeito ao exercício da função na

Administração Pública, de comando da máquina estatal e com fixação das metas e

princípios políticos que irão ser impressos no Poder Público, sendo ainda o responsável

pela administração interna geral.

Essa diferenciação de conceituação é importante, pois existem casos em que a

Chefia de Estado e de Governo são distintas e exercidas por pessoas diferentes, sendo o

exercício dessas funções pela mesma pessoa que caracteriza o sistema de governo

presidencialista, como o brasileiro.

Isso caracteriza o sistema de governo presidencialista, como vimos, pois que o Presidente da República, como Chefe do Poder Executivo, enfeixa as funções de Chefe de Estado e as de Chefe de Governo, e não depende da confiança do Congresso, para ser investido no cargo nem para nele permanecer, uma vez que tem mandato fixo de quatro anos, ao contrário do que ocorre no sistema de governo parlamentar, que a Constituinte recusou adotar para o Brasil, no momento, remetendo a um plebiscito.268

Ainda que, como vimos, por longos períodos da história do Brasil, o Executivo

tenha extrapolado e muito suas funções (típicas e atípicas), desde a Constituição Federal

268 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 542-3.

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de 1988 temos um determinado equilíbrio entre os órgãos do Estado, de modo que as

ações do presidente estão mais bem vigiadas do que outrora.269

Quando pensamos no Executivo no Brasil, temos a falsa ideia de que ele é

“superior” aos demais, ainda que por disposições constitucionais não exista quaisquer

hierarquias entre os órgãos do Estado, tendo, inclusive, o princípio de autonomia e

independência regrados pela relação harmoniosa entre todos.

Esse mito tem origem na própria constituição do Estado, de modo que por longo

período, desde a Colônia e o Império, passando por boa parte da República, o Executivo

se colocou acima dos demais. A relação hoje existente de independência e harmonia é

nova, apesar de há muito fazer parte da ordem jurídica nacional nas Cartas Políticas

vigentes antes da Constituição Federal de 1988.

O Executivo Nacional tem como funções típicas os atos de chefia de Estado,

chefia de governo e atos de administração. Atipicamente, tal órgão legisla, por exemplo,

através de medida provisória, além de julgar, no contencioso administrativo, de modo

que em ambos os casos os atos praticados podem ser revistos tanto pelo Legislativo

como pelo Judiciário.

Segundo Kelsen, quando se permite que o Executivo tenha como função atípica

legislar, tem-se um Legislativo que não pode receber essa designação por força legal,

mas que essencialmente tem, na sua ação, esta função. É o caso, por exemplo, das

Medidas Provisórias restritas ao Presidente da República.270

Ainda neste âmbito, encontramos a figura do Legislativo, que a nível Federal é

representado pelo Congresso Nacional formando pela união da Câmara dos Deputados,

com representantes do povo eleitos segundo a proporção da população dos Estados e

pelo Senado, com representantes igualmente distribuídos e eleitos nos Estados. É, por

isso, chamado de sistema bicameral.

269 Neste sentido, anota o Professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes: “É recorrente na realidade política brasileira certa hiperpotencialização do Executivo, centrado na figura do Presidente da República. Tem-se verificado, eventualmente, instantes históricos nos quais o Poder Executivo exerce certo predomínio na vida política nacional, o que é uma das características construídas em nosso modelo político”. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 947). 270 Neste sentido: “A maioria das constituições que supostamente incorporam o princípio de separação de poderes autoriza o chefe do departamento Executivo a decretar normas gerais no lugar do órgão Legislativo, sem que desse órgão emane qualquer autorização especial na forma de um “estatuto autorizante” (Ermächtigungsgesetz), caso se estejam vivendo circunstâncias especiais, tais como guerra, rebelião ou crise econômica. Desse modo, além do órgão Legislativo ordinário, essas constituições aprovam um órgão Legislativo extraordinário, ao qual apenas é negada a designação de ‘Legislativo’”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 387).

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O bicameralismo é importante no sistema brasileiro, pois garante a participação

geral tanto da Nação por meio de seus representantes diretos (eleitos deputados

federais), como dos Estados federados (eleitos senadores), estando todos integrados em

prol da busca pela unicidade federal.

Este sistema constitucional bicameral, isto é, a divisão entre duas Casas

diferentes que juntas formam o Congresso Nacional e, por suas atribuições, exercem a

função típica de legisferar, sendo atípicas as funções de julgamento e de execução.

A função legislativa de competência da União é exercida pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, integrados respectivamente por Deputados e Senadores. É da tradição constitucional brasileira a organização do Poder Legidlativo em dois ramos, sistema denominado bicameralismo, que vem desde o Império, salvo as limitações contidas nas Constituições de 1934 e 1937, que tenderam para o unicameralismo, sistema segundo o qual o Poder Legislativo é exercido por uma única câmara.271

Existem muitas discussões acerca de qual o melhor modelo existente

(bicameralismo ou unicameralismo), sendo certo que a forma brasileira acaba por gerar

um processo Legislativo mais vagaroso, que não atende completamente os anseios da

sociedade, pois sua configuração não se encontra totalmente interligada com esta.272

Conforme mencionado, o sistema de eleições para o Legislativo é realizado pelo

voto da população no sistema proporcional, em que os deputados, por representarem o

povo, serão eleitos de forma direta e através do coeficiente partidário, levando-se em

consideração a população de cada Estado na divisão de vagas na Câmara.

Já os senadores são representantes dos Estados e eleitos em números iguais para

cada Estado Federado, isto porque pelo princípio do Pacto Federativo, não existe

hierarquia entre os entes federados.

O sistema proporcional consiste em cada partido eleger o número de representantes de acordo com sua força eleitoral dentro dos Estados e Municípios para compor o Poder Legislativo nos seus três níveis. Essa

271 SILVA, José Afonso da. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 509. 272 Neste sentido: “Debate-se muito sobre as vantagens e desvantagens de um e de outro sistema. Mas a dogmática constitucional, desde a promulgação da Constituição dos EUA, recusa aceitar o unicameralismo nas federações, por entender que o Senado é a câmara representativa dos Estados Federados, sendo, pois, indispensável sua existência ao lado de uma câmara representativa do povo. Diz-se, em prol disso, que os Estados Federais apresentam uma estrutura dualista. De uma parte, deve estar presente a nação, em sua unidade global, de outra parte, os Estados-membros da federação, com sua autonomia particular. Existe bicameralismo também em Estados unitários. Tem-se o bicameralismo como um sistema mais propício ao conservadorismo, enquanto o unicameralismo favoreceria os avançoes democráticos, na medida em que canaliza e exprime melhor os anseios da soberania porpular por transformações”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 509-10).

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força é medida pelo chamado quociente eleitoral, dividindo-se o número de votos válidos pelo número de lugares ("cadeiras") a preencher no Legislativo. Esse sistema é utilizado no Brasil para a eleição dos Deputados Federais (art. 45 da CF), sendo o mesmo princípio estendido à escolha dos Deputados Estaduais e os Vereadores.273

A lei é um instrumento imprescindível para manter a ordem no Estado

Democrático de Direito, já que é a única forma legitima de imposição de obrigações aos

indivíduos que a ela pertencem, proporcionando-lhes os direitos e deveres necessários

para a vida em sociedade.

As votações em ambas as casas, geralmente, são tomadas por maioria simples de

votos, exceto se a Constituição previr o contrário (como é o caso das Emendas

Constitucionais), de modo que a aprovação se dá quando o quórum mínimo necessário

atinge essa maioria.

As decisões no Congresso Nacional são tomadas por maioria simples de votos, a não ser que a Constituição disponha diferentemente em hipóteses específicas. Como quorum para funcionamento, exige-se a presença da maioria absoluta dos membros. Portanto, há um quorum para a instalação da sessão e outro para a aprovação de uma proposta de deliberação. Maioria simples de votos significa o maior número de votos orientados para uma direção decisória. Maioria simples não equivale, necessariamente, à metade mais um dos votos dos presentes. Nos casos em que há mais de dois sentidos possíveis de voto, ou havendo votos nulos ou em branco, pode-se configurar a maioria de votos sem atingir a marca numérica correspondente à maior grandeza numérica superior à metade dos votos dos presentes". Veja-se que a Constituição não determina que se alcance a maioria de votos dos presentes, mas, apenas, que se tome a decisão "por maioria de votos". A deliberação coincidirá com a proposta que reunir maior contagem de votos.274

O processo de elaboração legislativa envolve muito mais do que as exigências

para a criação de uma Súmula Vinculante, de modo que os efeitos desta última não

podem vincular de maneira erga omnes, tal qual a lei o faz, àqueles que não estando

envolvidos em determinada demanda. A decisão judicial, ainda que seja advinda do

Supremo Tribunal Federal não pode ultrapassar os limites do processo, muito menos se

“transformar” em uma decisão com força normativa erga omnes.

Como preceituado por Montesquieu, não é de bom grado que aquele que elabora

as leis seja o mesmo que as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção dos

273 DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª Edição, 2011, p. 106. 274 SILVA, José Afonso da. Ob.Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 500.

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problemas gerais para dá-la a objetos particulares. Da mesma forma, não se pode pensar

que o Legislativo julgue de acordo com as leis que ele próprio fomenta, ou assim

também haveria abusos e interesses particulares no lugar daqueles que interessam à

coletividade.

O Legislativo tem como função típica regular e elaborar leis necessárias para o

bom regramento da sociedade, sendo a mesma responsável por mediar a relação entre o

conteúdo da lei e o seu alcance social, ou seja, é dela que parte o ensejo e a necessidade,

que voltam em forma de lei.

Por fim, temos o Judiciário, que é integrado por vários órgãos e instâncias, cada

qual exercendo uma função específica, tendo por função principal, no âmbito do Estado

Democrático e Social de Direito, assegurar que as aplicações das leis sejam

direcionadas a casos concretos, com a prevalência da equidade, resguardando sempre os

Princípios Constitucionais vigentes no país.

A função jurisdicional do Judiciário deve compor conflito de interesses em cada

caso concreto. Este princípio básico do Judiciário existente não só no Brasil, mas em

toda e qualquer Nação em que exista tal órgão, faz com que a função do Estado-Juiz

somente se evidencie quando houver um caso concreto.

Os conflitos de interesses são compostos, solucionados, pelos órgãos do Poder Judiciário com fundamento em ordens gerais e abstratas, que são ordens legais, constantes ora de corpos escritos que são as leis, ora de costumes, ou de simples normas gerais, que devem ser aplicadas por eles, pois está praticamente abandonado o sistema de composição de lides com base em ordem singular erigida especialmente para solucionar determinado conflito.275

Assim, identificamos que a função típica do Judiciário é julgar os conflitos

existentes na sociedade, seja entre os particulares, entre estes e o Estado ou mesmo entre

os Estados entre si.

No caso brasileiro, o Judiciário tem como função típica a resolução de conflitos

contidos na sua jurisdição, conferindo à lei a hermenêutica interpretativa com base nos

casos que chegam diariamente às suas instâncias mais variadas.

O Professor José Afonso da Silva faz importante observação acerca do

Judiciário, ou melhor, da função constitucionalmente atribuída pelo Estado visando a

resolução dos conflitos. Essa é a função típica do Judiciário e deve ser sempre lembrada

na atualidade devido as constantes interferências na República Brasileira.

275 SILVA, José Afonso da. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 553-4.

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De passagem, já dissemos que os órgãos do Poder Judiciário têm por função compor conflitos de interesses em cada caso concreto. Isso é o que se chama função jurisdicional ou simplesmente jurisdição, que se realiza por meio de um processo judicial, dito, por isso mesmo, sistema de composição de conflitos de interesses ou sistema de composição de lides.276

É evidente que o Judiciário deve aplicar a lei para a resolução dos conflitos. Os

enunciados sumulados devem servir tão somente como guia, não como forma

obrigatória de resolução de conflitos, uma vez que não possui força para tanto e não

respeita o verdadeiro processo Legislativo.

A lei não traz exemplos de casos passados e não se baseia na aplicação da

própria lei para criar um enunciado no qual vincule o Judiciário e a Administração

Pública Direta e Indireta. A lei se dirige e deve atingir a todos, diferente de uma decisão

judicial que só pode dizer respeito às partes envolvidas, sem extrapolar sua jurisdição.

Ademais, uma das garantias constitucionais previstas como cláusula pétrea e

direito fundamental de todo e qualquer cidadão, brasileiro ou estrangeiro que estiver em

território nacional, é o livre acesso (inclusive gratuito) ao Judiciário. Garante ainda o

juiz natural e o devido processo legal, inerentes ao bom funcionamento da justiça.

O modelo presente, no entanto, consagra o livre acesso ao Judiciário. Os princípios da proteção judicial efetiva (art. 5 e , X X X V ) , do juiz natural (art. 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5 2 , LV) têm influência decisiva no processo organizatótio da Justiça, especialmente no que concerne às garantias da magistratura e à estruturação independente dos órgãos.277

De acordo com as determinações constitucionais, os três órgãos possuem

atribuições típicas e atípicas no Estado brasileiro, variando de acordo com sua atuação e

o alcance de seus atos no cenário nacional.

Por meio da aplicação efetiva e concreta tanto das funções constitucionais típicas

como das disposições atípicas, configura o Estado Democrático e Social de Direito

Brasileiro basilado pelo princípio da legalidade.

O gradativo desenvolvimento da proposta de tripartição das funções estatais, a par da progressiva configuração conceitual do “Estado de Direito”, acabaram por germinar no desenho político-institucional hoje vigorante na maioria dos países onde se distinguem – embora não em compartimentos estanques – o Estado julgador, o administrador e o legislador. Essa tripartição, contudo, não se revela radical, prevendo

276 SILVA, José Afonso da. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 553. 277 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 974.

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nossa Constituição Federal situações em que cada Poder fica autorizado a realizar tarefas diversas das que lhe cabem ordinariamente, por exemplo: o Legislativo julga (arts. 49, IX; 52, I e II) e administra (art. 52, XII e XIII); o Executivo julga (art. 84, XII) e legisla (art. 84, III, IV e XXVI); o Judiciário administra (art. 96 e incisos) e, de certo modo, legisla (arts. 93 e 125, § 1º).278

Conforme analisado anteriormente, a má delimitação dessas funções causou

inúmeras convulsões na República, sejam elas populares ou advindas dos próprios

órgãos do Estado que, cansados de sofrer usurpações, clamavam por sua liberdade

constitucional de atuação.

Foram, assim, fixados critérios para melhor auxiliar na compreensão das funções

e delimitações, visando facilitar a compreensão da difícil diferenciação das atribuições

típicas e atípicas, de modo que existem hoje dois critérios comumente utilizados, sendo

eles: “A) Um critério ‘orgânico’ ou ‘subjetivo’, que se propõe a identificar a função

através de quem a produz e B) um critério ‘objetivo’ que toma em conta a atividade,

vale dizer, um dado objeto (não um sujeito)”.279

O primeiro deles acaba sendo impreciso e não traduz com maestria o que

encontramos no ordenamento jurídico brasileiro vigente. Isto porque restrinde o

conjunto orgânico de um poder atrelando-o a uma determinada função e sabemos que

não existem somente funções típicas aos poderes constitucionalmente previstos, como

também o exercício regular de atividades atípicas, desde que não extrapolem suas

limitações constitucionais.

Eis, pois, que, de modo com tais formulações, tanto Legislativo quanto Judiciário, como Executivo, exerceriam as três funções estatais: de modo normal e típico aquela que lhes corresponde primacialmente – respectivamente, legislar, julgar e administrar – e, em caráter menos comum (ou até mesmo em certas situações muito invulgares como ocorre no processo de impeachment), funções, em princípio, pertinentes a outros órgãos do Poder. À vista disto, jamais se poderia depreender, com segurança, se uma atividade é legislativa, administrativa ou jurisdicional pelo só fato de provir do corpo Legislativo, Executivo ou Judiciário, fato que compromete irremissivelmente o critério orgânico.280

Resumir as funções dos Três Órgãos ao critério orgânico não encontraria

respaldo constitucional, já que a própria configuração das prerrogativas é no sentido de

buscar, através de suas funções típicas e, mais ainda, das atípicas, propiciar a existência

278 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 99. 279 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, p. 32. 280 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, p. 34.

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do sistema de freios e contrapesos, pois não é unicamente a partir do gozo de suas

atividades típicas que os órgãos controlam uns aos outros, mas principalmente de suas

atribuições atípicas, regulando-se entre si nas funções específicas dos demais.

O segundo critério elencado, considerado como sendo “objetivo”, sofre uma

subdivisão, no qual surgem duas outras formas para explicação do mesmo conteúdo,

sendo elas o critério objetivo material e formal, dicotômicos entre si apesar de se

constituírem como parte do critério objetivo.

a) um critério (objetivo) material ou substancial, é aquele que busca reconhecer a função a partir de elementos intrínsecos a ela, isto é, que se radiquem em sua própria natural tipologia. Os que defendem tal critério usualmente afirmam que a atividade característica da função legislativa se tipifica pela expedição de atos gerais e abstratos; a função administrativa por ser “prática”, ou então por ser “concreta”, ou por visar de modo “direto e imediato” a realização da utilidade pública, e a atividade jurisdicional por consistir na solução de controvérsias jurídicas. b) um critério (objetivo) formal, que se apega essencialmente em características “de direito”, portanto, em atributos especificamente deduzíveis do tratamento normativo que lhes corresponda, independentemente da similitude material que estas ou aquelas atividades possam apresentar entre si. Por este critério, o próprio da função legislativa seria não apenas a generalidade abstração, pois sua especificidade adviria de possuir o predicado de inovar inicialmente na ordem jurídica, com fundamento tão só na Constituição; o próprio da função administrativa seria, conforme nos parece, a de se desenvolver mediante comandos “infralegais” e excepcionalmente “infraconstitucionais”, expedidos na intimidade de uma estrutura hierárquica; o próprio da função jurisdicional seria resolver controvérsias com a força jurídica da definitividade.281

Diante dessas importantes conceituações explanadas pelo professor Celso

Antônio Bandeira de Mello, devemos considerar que o critério aplicado no Brasil é

justamente o objetivo formal, que se baseia na fundamentação legal de cada um dos

órgãos para, assim, especificar suas funções dentro da organização do Estado para as

questões típicas e, de igual modo, estabelece as funções atípicas, que por vezes são

idênticas aos dos demais órgãos, mas que não possuem a formalidade essencial para que

assim sejam consideradas, que é a tipicidade específica em suas funções para um e a

atipicidade para os demais.

Sendo um o poder no Estado Brasileiro e três os seus órgãos funcionais,

delimitados desta maneira desde a Constituição Imperial de 1824 (mesmo com a

281 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, pp. 32-3.

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presença do quarto Poder, o Moderador, pertencente ao Imperador), sendo eles o

Executivo, Legislativo e o Judiciário. Não podendo, portanto, agir isoladamente, o

Estado investe prerrogativas a outros três órgãos que ficam responsáveis por

determinadas ações, voltadas sempre para a sociedade.

O Poder Legislativo tem, basicamente, o encargo de elaborar as leis necessárias ao bom regramento da sociedade. Essa é sua função marcante, sua função típica. [...] Sobre o Poder Executivo, podemos dizer que ele se caracteriza por executar os mandamentos das leis. Cabe a ele principalmente desenvolver a gestão da coisa pública, a realização e a administração de obras e serviço. [...] Em relação ao Poder Judiciário, este tipicamente exerce o poder de julgamento de controvérsias envolvendo situações concretas ou questões de justiça em abstrato.282

Analisar a atuação e o alcance dos atos de cada um dos órgãos e suas funções é

tarefa difícil e delicada, vez que é comum a usurpação de funções ao longo da história

do país e mesmo não tendo ocorrido de forma brutal e avassaladora como em outros

períodos, não se pode deixar de lado situações e disposições legais que permitam tal

atrevimento.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu tanto as funções típicas como as

atípicas aos órgãos do Estado brasileiro legalmente instituídos, além de limites para que

um não ultrapasse as disposições constitucionais determinadas para o outro, mantendo-

se a harmonia e a independência entre os eles.

282 DALLARI JÚNIOR, Hélcio de Abreu. Teoria Geral do Estado Contemporâneo. São Paulo: Editora Rideel, 2ª Edição, 2008, pp. 43-4.

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3. PAPEL DAS SÚMULAS VINCULANTES NO ESTADO BRASILEIRO

Conforme analisado ao longo desta pesquisa as decisões vinculantes estão

presentes em toda a história do país, muito influenciada pela própria composição do

direito ao longo de sua estruturação, iniciando com o Direito Romano, passando por

todo o período Germânico, Canônico e Visigótico, que culminaram nas Ordenações

Portuguesas.

A utilização de jurisprudência como forma legal de direito não é impossível,

tanto que o “Commom Law” baseia seus julgamentos nos precedentes criados a partir de

ponderações anteriores, sem, contudo, descartar a existência de particularidades nos

casos em que merece maior atenção.

No “Civil Law”, porém, tal fato é controverso, uma vez que o próprio sistema

não abarca a possibilidade de a jurisprudência ser utilizada senão como orientação, visto

que lastreada na legislação positivada, de modo que a institucionalização no direito

brasileiro não pode ser baseada, como é, na codificação e ter, ao mesmo tempo, um

sistema voltado à “sumularização” do direito, criando atritos entre os órgãos do Estado

e insegurança jurídica na sociedade.

O instituto das Súmulas Vinculantes no Brasil não é recente, sendo que seu

desenvolvimento ao longo dos anos somente solidifica o entendimento de que o

Judiciário, como órgão independente e harmônico constitucionalmente estabelecido

pelo Poder Constituinte Originário, age em deságio com relação aos demais e, claro, à

sua função típica disposta na Constituição Federal de 1988.

Neste ponto, importante mencionar que são muitas as interpretações dadas à

necessidade de criação das Súmulas Vinculantes, necessidade esta que não encontra

respaldo na maioria dessas pretensas justificativas.

A complexidade e a divisão do sistema judicial brasileiro, aliado à grande extensão territorial do País e à diversidade cultural e regional proporciona divergências frequentes na interpretação das normas constitucionais. A adoção da súmula vinculante decorre da necessidade de se padronizar e uniformizar a interpretação jurídico-constitucional nas instâncias judiciais e possibilitar a aplicação isonômica do direito aos jurisdicionados que se encontram na mesma situação jurídica.283

283 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Supremo Tribunal Federal: Aprimoramento das Funções da Justiça e Good Governance. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, pp. 134-5.

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Como se pode verificar, as justificativas variam desde a padronização e

uniformização da interpretação das normas constitucionais até a divisão do sistema

Judiciário brasileiro, que por conta da grande extensão territorial pode causar

divergências hermenêuticas, de modo que as súmulas vinculantes servem para que os

jurisdicionados tenham a segurança de que o direito está sendo interpretado

corretamente, além de considerar que consequentemente haveria a celeridade processual

ao impedir recursos ou “brecar” ações desnecessárias, o que se verifica como grande

falácia, já que, mesmo após a edição de várias súmulas vinculantes, o judiciário

permanece abarrotado de ações e recursos.

Recorre-se, assim, a todo e qualquer tipo de pretextos para embasar a aplicação

das Súmulas Vinculantes, sem contudo ter em mente por momento algum que essas

teorias se chocam diretamente com o modelo estatal brasileiro e a própria Constituição

Federal. É a justificativa que cairia como uma luva no modelo estadunidense da

Commom Law.

Em alguns pontos da pesquisa já foi possível relacionar historicamente e também

contemporaneamente muitos problemas e particularidades que envolvem o instituto das

Súmulas Vinculantes, ganhando relevo a sua instrumentalização como meio de

proporcionar uma teórica segurança jurídica, mas que acaba não tendo essa finalidade

quando analisados todos os pressupostos de sua aplicabilidade no Estado Democrático e

Social de Direito que tem por base o sistema do “Civil Law”, como o caso brasileiro.

Com a incidência das súmulas vinculantes veríamos que o grande volume de

jurisprudências criaria na atualidade nacional um sistema híbrido, meio “Civil Law”,

meio “Common Law”, sem com isso levar ao principal intuito de ambos os sistemas,

que é a segurança jurídica, tornando o ordenamento jurídico instável e inseguro.

3.1 PODER, ÓRGÃO OU FUNÇÃO?

Até agora tratamos muito ao longo do trabalho de poder, órgãos e funções: do

Estado, dos Poderes, da sociedade e dos homens. Mas na realidade, qual conceito

devemos utilizar quando analisamos as súmulas vinculantes e a organização do Estado

brasileiro? Até que ponto os poderes/funções/órgãos do Estado devem estar de acordo

com os pressupostos sociais?

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São perguntas mais do que válidas. Antes de tudo devemos entendê-los como

algo atrelado à organização, mais precisamente, à organização política, pois é deste

fundamento que surge a base para a aplicação deste termo.

De todas as teorias acima ventiladas, desde o modelo grego antigo até o

iluminista e o contratualista, passamos inúmeras laudas utilizando essas terminologias

para designarmos pontos essenciais deste trabalho.

Por vezes parece até mesmo confuso e fora de contexto a utilização dessas

terminologias para designar os atos praticados pelos servidores do Estado, de modo que

as diferenças devem ser estabelecidas ou, mais do que nos confundirmos, poderemos

perder o real sentido das palavras.

Cabe, portanto, realizarmos um trabalho hermenêutico e interpretarmos aqui o

que cada um desses termos significa, isto porque será de extrema importância ao

deslinde do trabalho.

A utilização de um e de outro deve ser feita de acordo com o seu significado e

não de forma desmedida, causando entendimentos errôneos e discrepantes com a

realidade do seu sentido etimológico, motivo pelo qual devemos compreender primeiro

cada um dos termos para então analisarmos o explanado pelos filósofos e considerarmos

aquilo que será aplicado ao presente estudo.

Inicialmente, quanto ao termo “poder” temos inúmeras designações que servem

ao mesmo, de modo que pretenderemos, aqui, utilizar apenas e tão somente a definição

sobre os órgãos do Estado e suas funções constitucionalmente estabelecidas, utilizando

para tanto o termo “poderes públicos”.

Poderes Públicos. Geralmente é a denominação que se dá para nomear o conjunto de autoridade ou órgãos administrativos, instituídos para, como representantes do Poder Público ou do Estado, desempenharem as funções públicas que lhe são atribuídas por lei. Dizem-se, também, poderes políticos. A reunião destes poderes, legítimos representantes da soberania popular, exprime a própria ideia de governo, tomada em seu amplo sentido.284

Temos, portanto, que os poderes enquanto considerados políticos, se referem à

reunião estabelecida com o fito de se constituir o governo por meio da soberania

popular. Em outras palavras, podemos dizer que o poder é a convalidação pelo povo dos

órgãos responsáveis pela condução do Estado segundo os desígnios do próprio povo.

284 SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 29ª Edição, 2012, p. 1052.

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Os poderes públicos são aqueles legalmente instituídos como partes do Estado,

sem que, contudo, haja uma divisão dos mesmos, muito embora seja usual determinar

essa separação de acordo com suas atribuições.285

Quando se afirma que o poder exprime a ideia de governo, tem-se que a

soberania popular exprime a ideia de Estado, pois para que se tenha o governo é preciso,

antes disso, que a coletividade se una em prol desta formação, somente possível pela

legitimação do governo pela vontade da soberania popular.

A causalidade do poder consiste na neutralização da vontade, embora não necessariamente na ruptura da vontade do subalterno. Ela o atinge também e justamente quando este quer agir no mesmo sentido e vem a saber que teria de agir assim de qualquer modo. A função do poder consiste na regulação da contingência. Como qualquer outro código de meios, o código do poder se refere também a uma discrepância possível (!) – não necessariamente real – dos resultados seletivos de Alter e Ego, ao torná-los “iguais”.286

Pensar o poder tal qual exprimiu Luhmann é considerar o mesmo como um

catalisador da vontade, que é justamente aquilo que defendemos até este momento, em

que a soberania popular se coloca como fundamento da expressão da vontade geral,

ainda que haja divergências ideológicas na sociedade.

Se o poder é único e o Estado espalha as funções para melhor organizar e

manutenir a sociedade, por óbvio que a descentralização ganharia outros aspectos para

complementar a ideia de Estado uno, ou seja, vai existir sim responsáveis pelas mais

diversas atividades de manutenção do Estado, mas que não devem ganhar a definição de

“poder”, pois divergem em suas essências.

De outra feita, quando analisamos o termo “órgão”, segundo a definição jurídica

entabulada por de Plácido e Silva, temos que consiste na parte do Estado responsável

pela execução de determinada ordem, obviamente prevista em lei, visando a

organização do mesmo.

Órgão. Derivado do grego órganon (instrumento), originalmente exprime ou designa tudo que possa servir de meio à execução de alguma coisa. É o instrumento, a que se comete o desempenho de uma função determinada. [...] Órgão exprime a ideia de executar ou realizar, porque por ele se executam ou se realizam as finalidades ou

285 Neste sentido: “Os Poderes Públicos agrupam-se, consoante a natureza de funções que lhes são atribuídas sob uma tríplice manifestação. É assim que se dizem: Executivo, Judiciário e Legislativo. Embora praticamente autônomos, estes três poderes agem harmonicamente, procurando, cada um dentro da esfera de ação que lhe é traçada por lei, cumprir os desígnios que constituem sua missão, e que são os próprios desígnios do Estado”. (SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 29ª Edição, 2012, p. 1052). 286 LUHMANN, Niklas. Poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 11.

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objetivos atribuídos à organização, ou se desempenham as funções que lhe são inerentes.287

Embora órgão esteja mais ligado a termos médicos do que propriamente da

Teoria Geral do Estado, a ideia que ele procura exprimir é justamente essa, de uma parte

que separada tem sua função, mas quando reunida com os demais órgãos, formam o

corpo do Estado.

Esta ideia ganha maior relevância quando se toma por base a teoria das

patologias sociais de Émile Durkheim, que considera que cada órgão do Estado pode

sofrer de “doenças” sociais que podem atingi-lo diretamente ou não, causando “dor” ou

não, o que de forma alguma significa dizer que, não havendo dor não há doença (seja na

sociedade, seja no ser humano).288

Assim, tendo um órgão específico responsável pelo cumprimento de

determinado preceito estabelecido em lei e necessitando de agentes capazes para tanto,

resta-nos então o último dos termos.

Destarte, o termo “função”, tem uma designação importante no desenvolvimento

do Estado, e se refere aos cargos e determinações legais estabelecidas segundo um dever

de agir, pois assim determinado pela lei.

Função. Do latim functio, de fungi (exercer, desempenhar), embora seja tido no mesmo sentido de cargo, emprego, exercício ou ofício, na técnica do Direito Administrativo, entende-se mais propriamente o direito ou dever de agir, atribuído ou conferido por lei a uma pessoa, ou a várias, a fim de assegurar a vida da administração pública ou o preenchimento de sua missão, segundo os princípios instituídos pela própria lei. Da função atribuída ou imposta à pessoa é que advém, certamente, o cargo, o ofício, o emprego e, consequentemente, o exercício das atribuições que lhe são inerentes.289

Segundo a definição trazida por de Plácido e Silva, a função é o dever de agir

daquele que integra o Estado, a Administração Pública (Direta ou Indireta),

possibilitando a atuação dos órgãos enquanto partes do todo que é o poder do Estado.

287 SILVA, de Plácido e. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 29ª Edição, 2012, p. 989. 288 Neste sentido: “Vê-se que um fato só pode ser qualificado de patológico em relação a uma espécie dada. As condições da saúde e da doença não podem ser definidas in abstracto e de maneira absoluta. A regra não é contestada em biologia; jamais ocorreu a alguém que o que é normal para um molusco o é também para um vertebrado. Cada espécie tem sua saúde, porque tem seu tipo médio que lhe é próprio, e a saúde das espécies mais baixas não é menor que a das elevadas. O mesmo princípio aplica-se à sociologia, embora frequentemente ele seja ignorado. É preciso renunciar a esse hábito, ainda muito difundido, de julgar uma instituição, uma prática, uma máxima moral, como se elas fossem boas ou más em si mesmas e por si mesmas, para todos os tipos sociais indistintamente”. (DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 59). 289 SILVA, de Plácido e. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 29ª Edição, 2012, p. 645.

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As três definições acima tratadas possibilitam o entendimento e a compreensão

dos termos em separado. Muito embora todos formem a vontade soberana e sejam

essenciais ao Estado, cada qual deve ser entendido conforme sua delimitação prática.

Desta feita, a Constituição Brasileira procurou, ao estabelecer as três funções a

três órgãos distintos do Poder Soberano do Estado garantir que todos mantenham a

independência entre si, mas convirjam e busquem a unicidade dos desígnios do Estado,

havendo a interdependência entre eles.

Interdependência. Formado das palavras inter (dentro, no meio de) e dependência (subordinação), exprime o estado ou a qualidade de duas coisas, que, embora independentes no desempenho de finalidades inerentes ou próprias, vivem ligadas entre si por uma recíproca dependência, em virtude do que realizam as mesmas finalidades pelo auxílio mútuo ou coadjuvação recíproca.290

É neste ponto que convergem as doutrinas filosóficas estudadas com o que se

pretende neste trabalho, demonstrando que o Estado brasileiro procurou sim deixar cada

função delimitada, tanto as típicas como as atípicas, estabelecendo que todas elas devem

levar à unicidade do Estado e fortificação da soberania do povo, sendo esta última, na

realidade, o poder uno.

Devemos nos atentar que um Estado surge por inúmeros fatores, tendo por

constituição três características essenciais: população (que se difere de povo), território

(independente de sua extensão) e soberania (na acepção rousseauniana do termo). Na

falta de um desses elementos inexistiria um Estado.

Pois bem, todos esses fatores são confirmados não apenas de forma tácita, isto é,

sabe-se que o Brasil é formado pela diversidade de sua população, pela sua grande

extensão territorial (do Oiapoque ao Chuí) e por sua soberania popular diante da

comunidade internacional. Esta legitimidade vem pelo reconhecimento dos demais

Entes Federativos e pelo documento jurídico que forma o direito de o Estado ser

considerado como tal. Com isso, devemos afirmar que um Estado é assim considerado

quando a ordem jurídica nacional e internacional reconhece suas três características.

Havendo este reconhecimento e tendo a legitimidade do ordenamento jurídico, o

Estado está apto para elaborar, executar e julgar conforme suas predisposições legais,

tudo isso oriundo da soberania da vontade geral do povo dentro dos seus domínios

territoriais (as três características de Estado inseridas, também, na doutrina contratual de

Rousseau). É a lei a balizadora das ações como um todo.

290 SILVA, de Plácido e. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 29ª Edição, 2012, p. 759.

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O “poder” não é algum tipo de substância ou entidade por trás da ordem social. O poder político é a eficácia da ordem coercitiva reconhecida como Direito. Descrever o Estado como “o poder por trás do Direito” é incorreto, já que sugere a existência de duas entidades distintas onde existe apenas uma: a ordem jurídica. O dualismo de Direito e Estado é uma duplicação supérflua do objeto de nossa cognição, um resultado de nossa tendência a personificar e então hipostatizar nossas personificações.291

Todas as três características aceitáveis de formação e constituição de um Estado

acima citadas estão inseridas na ordem jurídica de alguma maneira: o território,

enquanto limitações do poder legal da lei; a população, enquanto órgãos constitutivos

do Estado e aplicadores (pelos direitos e deveres) das leis por suas ações; e a soberania,

que é o poder da vontade geral contida na lei.

O poder do Estado deve ser visto dessa maneira, já que é o Direito que

reconhece o poder com o qual o Estado age de acordo com as predisposições da vontade

geral soberana. Não há dualismo, já que é o direito de ser que afirma a ação do Estado e

o convalida na sociedade.

Sendo assim, a lei é o instrumento hábil capaz de regular todas as relações

existentes do Estado (tanto que no caso do Brasil temos o princípio da legalidade estatal

insculpido na Constituição Federal Brasileira), desde sua criação até as formas de

convívio entre os particulares em geral. É a coercibilidade da norma que imputa o

cumprimento dos desígnios como um todo, sem exclusão.

Apesar de a nomenclatura atual utilizar os “Três Poderes” para se referir aos

órgãos que elaboram (Legislativo), executam (Executivo) e julgam (Judiciário) de

acordo com a lei, é sabido que suas funções são exercidas para a existência do próprio

Estado, sendo órgãos vitais do mesmo.

O poder, então, deve ser considerado uno, vez que a soberania é uma. Não

significa dizer que todos pensam da mesma maneira e sim que todo o povo é titular,

quando reunidos, do poder que garante a constituição do Estado.

Pode até surgir a pergunta: se o poder é uno como existe separação na ciência

política de acordo com as especificidades de cada poder, isto é, porque se fraciona o

Estado em poderes?

Em primeiro lugar, os teóricos políticos procuram identificar em cada esfera

características que diferenciem a atuação de um dos demais, não para torná-los

totalmente autônomos no exercício de suas atividades, mas para identificar o que cada 291 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 275.

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um possui de obrigações determinadas pela lei em face dos demais “poderes” e da

própria sociedade, podendo considerar até mesmo uma divisão doutrinária para estudo e

melhor compreensão do Estado.

Em segundo lugar não há que se falar de maneira alguma em divisão do Estado.

A soberania do povo é a única capaz de legitimar o Estado e, portanto, deve ser a única

capaz de criar, extinguir ou mesmo dividir um Estado.

Conforme analisamos nas conceituações precisas do jurista de Plácido e Silva,

poder, órgão e função são três termos distintos que por vezes são utilizados para

explicar a mesma coisa: o exercício da atividade pública. Neste trabalho pretendemos

colocar cada termo em seu lugar, não conferindo interpretações diversas daquela que

deve designá-lo.

A palavra “poder” tem significados diferentes nesses diferentes usos. O poder do Estado ao qual o povo está sujeito nada mais é que a validade e a eficácia da ordem jurídica, de cuja unidade resultam a unidade do território e a do povo. O “poder” do Estado deve ser a validade e a eficácia da ordem jurídica nacional, caso a soberania deva ser considerada uma qualidade desse poder. Porque a soberania só pode ser a qualidade de uma ordem normativa na condição de autoridade que é a fonte de obrigações e direitos. Quando, por outro lado, se fala dos três poderes do Estado, o poder é compreendido como uma função.292

O citado problema semântico é encontrado inclusive em Charles de

Montesquieu, que utiliza o termo “poder” para determinar como a organização do

Estado deve ocorrer e se consolidar no Executivo, Legislativo e Judiciário (além do

Conselho de Estado atrelado ao Executivo, quando for o caso).

Mormente este fato, consideraremos, pela análise da teoria montesquieuana que

sua intenção ao utilizar o termo “poder” não se referia ao Estado, à soberania popular,

mas sim que era necessário separar os órgãos que compõem o Estado levando-se em

consideração as funções legalmente determinadas para cada um deles no governo.

Até mesmo porque a própria ideia de poder no Estado, seja ele qual for e em

qual período da história seja estudado, impede a sua divisão sem que o próprio Estado

não se enfraqueça. Explica-se: não se pode separar o poder sem se separar o Estado,

pois o que legitima o Estado é justamente o uno poder da soberania popular. Dois

poderes ensejariam conceber duas soberanias distintas e, por conseguinte, dois Estados.

292 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, pp. 364-5.

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Estas duas soberanias que nos referimos acima não é uma afirmação de que não

existe oposição no Estado uno, mas sim que a própria oposição faz parte do que se

considera soberania popular e convalida o poder uno advindo dela.

Outro ponto importante que nos faz crer que Montesquieu utiliza o termo

“poder” para se referir às funções de cada um desses órgãos é o fato de que eles devem

existir inseridos em determinada conjuntura histórica, social e política de um dado

Estado para então receber a legitimação para suas ações, de modo que tanto as funções

como a execução das mesmas estão determinadas na lei (basta lembrarmos do princípio

da legalidade do Estado).

Com base nisso, podemos perceber que o poder não busca legitimação, vez que

ele é a própria encarnação da legitimidade da soberania popular. Se um “poder”

(Executivo, Legislativo, Judiciário ou outro concebido) necessita dessa legitimação, não

podemos nem de longe considerá-lo um poder.

Na realidade, necessitando exatamente do poder para existir (tanto enquanto

órgão, como para seus atos), os ditos “poderes” em Montesquieu são delegatários do

verdadeiro poder emanado pela soberania popular. Sendo legitimado por ele e tendo

seus atos validados em seu nome, o Executivo, o Legislativo e Judiciário se revestem

dessas características que, separadas, designam a função individual de cada órgão e que

juntas formam o Estado, pertencendo tudo ao poder da soberania popular.

O conceito de “separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma dessas três funções.293

Temos que cada órgão exercerá a função para a qual foi legalmente designado,

recebendo poder legal para isso. Contudo, não todo poder ou não haveriam os vários

órgãos e tudo ficaria concentrado em absoluto. Se se transferir todo o poder soberano à

um órgão criar-se-ia uma ditadura, seja ela do Executivo, Legislativo ou Judiciário, isto

porque seria um órgão com todo o poder soberano pertencente ao povo.294

293 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 385. 294 Neste sentido: “Na verdade, uma dicotomia é a base da costumeira tricotomia. A função legislativa opõe-se tanto à função executiva quanto à judiciária, sendo que estas duas últimas estão, obviamente, relacionadas de modo mais íntimo entre si do que com a primeira”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 365).

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Realizando um apanhado acerca das teorias políticas estudadas até o momento,

bem como dos conceitos ora trabalhados, teremos que concluir que a filosofia procurou

abordar o que constitui e forma o Estado.

Seja por meio do direito natural ou positivo, do modelo greco-romano ou

medieval, ou mesmo os contratualistas; o poder analisado será uno, ainda que se

considere as funções distintas, concentradas ou dispersas.

Não se trata de afirmar que todas as teorias tenham o mesmo fim e vejam o

poder da mesma maneira, até porque isso seria loucura, mas sim que independentemente

de como se considera a formação do Estado, organização, distribuição de competências

e a realização da própria atividade política são oriundas do poder. O que vai variar, de

caso para caso, filósofo para filósofo, será a forma com que cada um enxergará o poder

e como pensa que devem se dar seus desdobramentos na constituição do Estado.

Por isso, quando falamos em órgãos do Estado nos referimos a tudo que de

alguma forma se relaciona dentro dele e com ele a partir do ordenamento jurídico, pois

todas as relações existentes no Estado advêm, de alguma forma, do direito ali

constituído.

Devemos considerar como órgão do Estado todo aquele, seja quem for,

particular ou público; legislador, executor ou julgador; quem aplica ou quem sofre a

pena. Todos de alguma forma serão órgãos do Estado, já que são órgãos quem cumprem

a função determinada pela lei dentro do Estado.

Quem quer que cumpra uma função determinada pela ordem jurídica é um órgão. Essas funções, tenham elas um caráter criador de norma ou aplicador de norma, são todas, em última análise, dirigidas à execução de uma sanção jurídica. O parlamento que decreta um código penal e os cidadãos que elegem o parlamento são órgãos do Estado, assim como o juiz que sentencia o criminoso e o individuo que efetivamente executa a pena. Nesse sentido, um órgão é um indivíduo que cumpre uma função específica. A qualidade de órgão de um indivíduo é constituída por sua função. Ele é um porque e na medida em que executa uma função criadora de Direito ou aplicadora de Direito.295

Kelsen nos colocou de forma mais simples o que tentávamos dizer. O Estado

não é algo concreto, não possui um corpo físico. Ele é formado pelos órgãos, desde suas

instituições (Legislativo, Executivo e Judiciário), aos particulares e agentes que dão

vida e fazem o Estado se mover. Todos, em sua natureza estatal, são órgãos essenciais

295 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 277.

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para a sobrevivência do Estado, sendo partes integrantes do mesmo, tanto que sem eles

não haveria povo e soberania, e o território seria inútil.

Com tudo isso, chegamos a uma conclusão lógica de que o Estado, enquanto ser

material, somente age através de seus órgãos, desde o Legislativo ao elaborar uma lei,

do Executivo ao colocá-la em prática e do Judiciário ao julgar os casos decorrentes dela;

desde o particular que faz um negócio jurídico com outro, ou a união dos cidadãos nas

eleições para escolher aqueles que governarão o país. Todos são órgãos do Estado e

suas ações são ações do Estado.

Diferenciamos, aqui, um ponto: aqueles que estão agindo por possuírem algum

vínculo com o Estado, ou seja, de forma “secundária”, cumprindo a decisão legal de

aplicação da lei, por exemplo, exercem atividades de Estado, enquanto os demais,

agindo de forma “primária”, exercem atividades do Estado, que lhes dão vida.

Se o Estado somente atua por seus órgãos, assim o faz por determinações do

Direito. É a ordem jurídica estabelecida que guia as ações dos órgãos, seja quais forem e

em que nível hierárquico dentro do Estado se encontrem. A ação visa um fim, que pode

estar ou não determinado em lei, bastando lembrar que não necessariamente todos os

fatos estarão legalmente dispostos, já que não são absolutos, mas sim que as ações são

permitidas ou não pela lei.

O Estado atua apenas através de seus órgãos. Esta verdade, muitas vezes expressa e aceita, significa que a ordem jurídica pode ser criada e aplicada apenas por indivíduos designados pela própria ordem. Não basta que a ordem jurídica declare em termos gerais quais são os indivíduos qualificados para executar essas funções. A ordem também deve estabelecer um procedimento por meio do qual o indivíduo particular se torne um órgão.296

O Estado atuante por seus órgãos faz com que a ordem jurídica se personifique,

ou seja, enquanto não aplicada, a obra final da ordem jurídica não está completamente

estabelecida, necessitando dessa ação para se fazer presente no mundo. Por isso, deve-se

ver que o “Estado, como sujeito que atua através de seus órgãos, o Estado como sujeito

de imputação, o Estado pessoa jurídica, é a personificação de uma ordem jurídica”.297

E quando assim age, cria tanto direitos como obrigações para si, já que também

está para o ordenamento jurídico, como os seus órgãos, que atuantes neste sentido

296 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 280. 297 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 283.

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conferem ao Estado a especificidade de contrair os direitos e deveres decorrentes da lei

(como o princípio da legalidade da administração pública existente no Brasil).298

Ao consideramos os três principais órgãos do Estado analisados, encontraremos

nas suas funções típicas justamente a ação que se espera de cada deles um conforme

predisposto na ordem jurídica; já nas funções atípicas, encontramos a sua ação interna

para colocar igualmente as disposições legais de sua auto-sobrevivência: pela ação

atípica ele se regula perante os demais, se igualando a eles na sua ação típica.

No caso brasileiro, podemos analisar a separação de funções unindo a teoria de

Kelsen acerca da atuação dos órgãos em nome da ordem jurídica e de Rousseau, que

considera a liberdade e o bem geral como as bases de sua filosofia política, estando

inclusive no Contrato Social.

Quando pensamos em “Separação de Poderes” devemos considerá-los enquanto

órgãos, em que cada ser (e nesse caso também os homens que atuam no cumprimento da

ordem jurídica), possui a liberdade de ação determinada pela lei e somente agindo desta

maneira em decorrência da lei ordenar de forma coercitiva essa ação.

Em outras palavras, quando o Brasil estabelece que o Estado é formado pelas

Três Funções, considera-se a garantia de liberdade a cada um deles visando o bem

comum e tendo como finalidade o cumprimento da vontade geral (Rousseau), que deve

ser entendida como a ordem jurídica estabelecida, quando os órgãos são colocados de

forma a agir como se o Estado tivesse um corpo.

A separação de funções (poderes) entre os órgãos do Estado é uma forma de

organização política, tendo funções distintas e reguladas pelo Estado, sendo possível,

por isso, definir “fronteiras” que separa um dos demais, encontrando na doutrina

estadunidense a sua melhor definição.299

298 Neste sentido: “Falar de obrigações e direitos do Estado não quer dizer que algum ser, que existe separadamente dos indivíduos humanos, “tem” essas obrigações e deveres. Falamos de tais obrigações e deveres quando imputamos ao Estado, à unidade personificada da ordem jurídica, os atos que constituem o conteúdo dessas obrigações e deveres. Estes são obrigações e direitos de indivíduos que, ao cumprirem esses deveres, ao exercerem esses direitos, têm a capacidade de órgãos do Estado. As obrigações e direitos do Estado são obrigações e direitos dos órgãos do Estado. A existência de obrigações e direitos do Estado não implica o problema da auto-imputação, mas o da imputação. As obrigações e direitos do Estado são obrigações e direitos dos indivíduos que, segundo nosso critério, devem ser considerados órgãos do Estado, ou seja, que executam uma função específica determinada pela ordem jurídica. Essa função específica determinada pela ordem jurídica. Essa função pode ser o conteúdo de uma obrigação ou de um direito”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 286). 299 Neste sentido: “A revisão judicial de legislação é uma transgressão evidente do princípio de separação dos poderes. Este princípio encontra-se na base da Constituição americana e é considerado um elemento específico da democracia. Ele foi formulado da seguinte maneira pela Suprema Corte dos Estados Unidos: ‘Que todos os poderes confiados ao governo, estadual ou nacional, estão divididos em três

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A liberdade é o fundamento da democracia brasileira, tanto para o cidadão como

para os órgãos que compõem a atuação do Estado. A liberdade está intimamente ligada

à justiça, pois a decisão judicial (que também deve ser lastreada pela liberdade do

julgador) deve respeitar este princípio instituído a todo cidadão, conforme já vimos no

estudado Jean-Jacques Rousseau e nos anos de Revolução Francesa (1789-1799).

Embora inicialmente (como em Hobbes) a ideia de liberdade tenha um caráter

péssimo para a formação do indivíduo e sobrevivência do Estado, a mesma deve ser

distinguida em duas completamente diferentes: a ação particular, em que cada um age

visando benefícios próprios em detrimento da maioria, que pode acabar com o Estado, e

a ação social, na qual a totalidade é livre e age com o intuito de assegurar o Estado.

Um princípio de justiça do mais alto valor político é o que se apresenta com base num sistema moral em que a liberdade individual é tida como o valor supremo. A ideia originária de liberdade tem caráter puramente negativo. É o postulado individualista de que o homem deve ser livre, quer dizer, não estar submetido a nenhuma ordem normativa que regule a sua conduta em face dos outros e limite, consequentemente, a sua liberdade individual. É uma norma que exclui a validade de todas as normas sociais que limitam a liberdade individual. [...] Se tem de existir uma ordem normativa que vincule os homens na sua conduta recíproca, ela apenas poderá ser uma ordem erigida com base no assentimento dos indivíduos que lhe vão ficar submetidos.300

A teoria contratualista de Rousseau é a que melhor exprime essa liberdade

social, na qual o homem não age de maneira particular sem respeito à ordem jurídica

vigente. Não se trata de afirmar que não existem exceções que fundam suas ações de

liberdade de forma contrária ao bem comum (como os marginais de Durkheim), mas

que essas exceções simplesmente confirmam a regra acima trabalhada e, mais do que

isso, o modelo democrático baseado nesta liberdade social por meio do contrato.

Além da liberdade, importante mencionar e trabalhar outro conceito defendido

por Rousseau e pela Revolução Francesa: a igualdade, que exerceu importância capital

grandes departamentos, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Que das funções apropriadas a cada um desses ramos do governo será investido um corpo separado de funcionários públicos, e que a perfeição do sistema exige que as linhas que separam e dividem esses departamentos devam ser ampla e claramente definidas. Também é essencial para o funcionamento bem-sucedido desse sistema que às pessoas às quais foi confiado o poder em cada um desses ramos não seja permitida a intromissão nos poderes confiados aos outros, mas que cada um deva, por meio da lei de sua criação, limitar-se ao exercício dos poderes apropriados ao seu próprio departamento e a nenhum outro’. (Kilbourn v. Thompson, 103, U.S. 168, 190s (1880)”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 385). 300 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 49.

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para o desenvolvimento do movimento revolucionário e que imprimiu aquilo que seria o

norte legal para a maioria dos países ocidentais, qual seja, a “igualdade perante a lei”.

A Constituição Federal de 1988, por exemplo, resguardou a todos os brasileiros

e estrangeiros residentes no país a igualdade de direitos (e de deveres) perante a lei. É a

chamada igualdade legal, que corresponde a dizer: a lei, teoricamente, não levará em

consideração nenhuma circunstância particular de cada cidadão, a todos atingindo de

igual forma, igualando os iguais e desigualando os desiguais.

Essa doutrina, também com base nos ideários liberais, teve por intuito

justamente acabar com os privilégios legais existentes no Estado Absolutista e assegurar

a todos, desde os nobres até os plebeus, desde a burguesia até os camponeses, que não

mais haveriam privilégios legais (novamente, na teoria).

O que vemos na realidade é que este princípio não iguala a todos, muito pelo

contrário, ele pressupõe desde logo que existem desigualdades entre os homens. Ele não

pode, entretanto, fazer menção de quais são as desigualdades.

A afirmação de que todos os homens são iguais está em aberta contradição com os fatos. Quando, apesar disso, se recorre a ela para fundamentar a exigência ou postulado de que todos os homens devem ser tratados por igual, ela apenas pode significar que as desigualdades de fato existentes – e que não é possível negar – são irrelevantes para o tratamento do homem.301

Assim, para se levar em consideração este princípio, não deve-se apenas afirmar

que todos os homens são iguais e que não haverá distinções. O princípio da igualdade

somente é realmente levado à cabo quando as desigualdades existentes não são negadas,

mas ainda que se confirme sua existência, não serão consideradas, sendo dispensadas

quando necessário se colocar os homens perante a lei.

Para se ter a igualdade perante a lei, portanto, deve-se reconhecer que existe a

desigualdade, ou caso contrário não haveria a necessidade de se igualar a todos, já que

todos já seriam iguais.

Não apenas isso. Quando se diz que os iguais devem ser tratados de forma igual

e os desiguais de forma desigual, deve-se ter para tanto as mesmas características que

justifiquem o tratamento dessa maneira. Isto é: duas pessoas devem estar com todas as

características que ensejam a sua igual ou com todas que ensejam a sua desigualdade,

ou caso contrário este princípio não teria cabimento.

301 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 51.

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O princípio não é, pois, de forma alguma, um princípio de igualdade. Ele não postula um tratamento igual, não apenas um tratamento igual mas também um tratamento desigual. [...] Como já acentuamos, o princípio ou regra de que os que são iguais devem ser tratados igualmente apenas pode valer em combinação com a regra segundo a qual os que são desiguais devem ser tratados de forma desigual.302

Tanto é que a igualdade pode existir até mesmo quando não há expressamente na

lei que exista a igualdade entre os cidadãos, quando se estabelecem determinados tipos

de direitos que abarquem a alguns ao mesmo tempo em que se exclui a outros,

igualando os primeiros perante a lei.303

Analisando agora sob o viés das funções típicas e atípicas dos Tres Órgãos,

devemos considerar alguns pontos interessantes levantados por Kelsen e também

trabalhados por Rousseau e Montesquieu em suas obras.

Primeiramente, quando falamos em liberdade e distinguimos o seu caráter social

do individual, nada mais estamos fazendo do que colocando em outras palavras a

terminologia utilizada na doutrina rousseauniana para definir o Contrato Social. Em

termos práticos, a liberdade social, em que os indivíduos podem expressar sua

individualidade (que não tem nada em comum com o individualismo), é a exteriorização

das liberdades que respeitam o regramento social contido na lei.

Quando pensamos nos órgãos do Estado brasileiro, a liberdade dos indivíduos

está também nos atos do Estado (até porque, como vimos, ele age de acordo com os

movimentos dos seus órgãos), de modo que quando um juiz exerce sua função de julgar

ele está exteriorizando sua individualidade com supedâneo na liberdade social conferida

pela Constituição Federal de 1988, sendo a recíproca verdadeira para os demais órgãos.

A liberdade é a função típica do juiz, autorizada por lei e somente a lei pode

desautorizá-lo, isto é, somente a Constituição Federal, que é aquela que lhe dá

prerrogativas de julgamento, pode impedir que ele invada a seara que não lhe pertence.

O exercício de sua função atípica, portanto, deve estar restrita ao círculo no qual sua

função típica está devidamente inserida.

O segundo princípio estudado está intimamente ligado a este, já que a justiça da

igualdade deve ser vista sempre perante a lei, que considera todos iguais quando com

302 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, pp. 54-5. 303 Neste sentido: “A igualdade perante a lei pode existir mesmo quando não existir nenhuma igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescrever nenhum tratamento igualitário. Se a lei confere apenas aos homens, e não às mulheres, um direito de voto e, portanto, não existe sob este aspecto igualdade na lei, pode no entanto subsistir o princípio da igualdade perante esta lei”. (KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 60).

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características iguais e desiguais quando diferentes. E sua relação com a liberdade é

íntima, uma vez que a igualdade é o ponto balizador do juiz ao proferir a sentença.

A igualdade é princípio fundamental e deve ser tida como formadora do próprio

direito, visto que ao se produzir leis e regramentos, estes abarcam a todos sem distinção,

gerando efeitos iguais para todas as pessoas.

Não se pode olvidar que todos, segundo o texto constitucional, têm o direito de

petição aos órgãos públicos e do Judiciário, de modo ao igualar sem distinção que

qualquer do povo pode requerer na forma prescrita em lei a satisfação dos seus direitos,

garante-se acesso integral ao órgão judicial.

Pois bem, quando temos a função jurisdicional (função esta típica do órgão

judicial) impedida por uma súmula vinculante fere-se ambos os princípios: primeiro a

liberdade do juiz do seu livre-convencimento e, em segundo lugar (e muito mais

importante), o direito das partes serem tratadas como iguais e receberem o mesmo

tratamento que fora dispensado nos demais casos antes da edição de súmulas com

efeitos vinculantes.

Nas funções atípicas, observamos que os Três Órgãos possuem as funções que

são típicas dos demais, não podendo exceder, por isso, a sua limitação legal de atuação,

isto é, quando um exerce de forma atípica a função típica de outro, não pode atingir ou

mesmo sobrepujar esta função como se típica sua fosse.304

A teoria de tripartição das funções não é unânime. Hans Kelsen, por exemplo,

considera que existem apenas duas funções no Estado (criação e aplicação do direito).

Entretanto, vamos continuar analisando sob o prisma de Montesquieu e do que

encontramos na sociedade brasileira, na qual os três estão devidamente separados na

teoria, mesmo que na prática encontremos uns adentrando na seara dos outros.

A separação das funções é tão importante para o Estado Brasileiro que é

considerado como cláusula pétrea pelo Art. 60, § 4º, III, da Carta Magna305, de modo

que não é passível de deliberação a sua modificação e/ou abolição.

304 Hans Kelsen nos dá como exemplo a função de legislar, tipicamente do Legislativo, mas que pode ser exercida de forma atípica pelo Executivo e Judiciário: “Não existe nenhuma ordem jurídica, de nenhum Estado Moderno, segundo a qual os tribunais e autoridades administrativas sejam excluídas da criação de normas jurídicas gerais, isto é, da legislação, e da legistação não apenas com base em estatutos e regras de costume, mas também diretamente baseada na constituição”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 386). 305 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...]

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3.2 EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004

A Emenda Constitucional nº 45, da relatora Zulaiê Cobra, de 30 de dezembro de

2004, alterou e acrescentou artigos da Carta Magna, conforme possibilita o art. 60, § 3º

da mesma, instituindo as Súmulas Vinculantes. Depois de 12 anos de tramitação do

projeto inicial, de 26 de março de 1992, proposta pelo Deputado Federal Hélio Bicudo,

com a PEC 96/92, a alteração investida pela Emenda Constitucional 45/04 dispõe sobre

a competência do Supremo Tribunal Federal e reveste a Súmula Vinculante de um

efeito normativo que, na realidade, ela não possui.

Além dessas disposições, a Emenda Constitucional nº 45/2004 modificou as

estruturas e algumas competências do Judiciário Brasileiro, além de tratar de outros

temas estruturais como o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal Superior do

Trabalho, alterando disposições anteriores e acrescentando outras.

Conforme estudado ao longo deste trabalho, através das análises históricas,

pode-se afirmar que as Súmulas Vinculantes passaram, assim como as edicta

pretorianas, a ser entendimentos petrificados do STF sobre determinada matéria.

Mesmo com o respaldo da Emenda Constitucional Nº 45/2004, o conceito de separação

e harmonização das Três Funções passou a ficar ameaçado, assim como a autonomia do

magistrado. A singularidade de cada caso, portanto, ficou condicionada a uma decisão

única, não respeitando as suas especificidades nem a análise aprofundada do tema.

Ademais, a sobrecitada Emenda Constitucional nº 45/2004 que acrescentou o

Art. 103-A referente às Súmulas Vinculantes é uma determinação aberta, no qual

necessitou de posterior regulamentação, feita pela Lei 11.417, de 19 de dezembro de

2006306, que precisou ser promulgada para preencher lacunas deixadas por um

dispositivo da Constituição Federal que foi criado com o intuito de evitar lacunas.

Parece irônico, mas a questão é extremamente séria.

De acordo com a redação da Lei 11.417/2006, a vigência da Súmula Vinculante

é imediata, isto é, ocorre logo após a sua publicação na imprensa oficial. Não apenas

isso: a própria Lei confere ao Supremo Tribunal Federal possibilitar que o efeito

III - a separação dos Poderes; 306 BRASIL. Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Fonte: Planalto. Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências.

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vinculante seja ex tunc ou ex nunc, além de poder fixar uma data específica para a sua

validade, por força do seu Art. 4º.

Art. 4o A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.307

As Súmulas Vinculantes surgiram com o fito de proporcionar maior segurança

jurídica ao fragilizado ordenamento jurídico brasileiro, além de possibilitar a celeridade

nos julgamentos, com a diminuição de casos “repetidos” nas instâncias inferiores,

fazendo com que outras demandas recebam a atenção devida.

A alegação de segurança jurídica não encontra respaldo nas determinações legais

de fundamentação e regulamentação das Súmulas Vinculantes, isto porque ao barrar o

acesso de processos considerados “idênticos”, se criará um ambiente de insegurança

jurídica e a análise do caso será sempre superficial, isso se realmente ocorrer alguma

análise por parte das instâncias inferiores, vez que basta “bater” a Súmula Vinculante

com o caso pleiteado para se verificar que não há respaldo para sua continuidade, pois já

se sabe o resultado do julgamento antes mesmo de qualquer aprofundamento.

Ademais, em caso de descumprimento da súmula vinculante cabe reclamação

para o Supremo Tribunal Federal. Segundo o Art. 7º, da Lei 11.417/2006308, redação

repetida no Art. 103-A, § 3º, da Constituição Federal, qualquer decisão judicial ou ato

administrativo que contrarie dispositivo contido em Súmula Vinculante, a decisão

poderá ser cassada ou o ato administrativo anulado.

De acordo com a redação dada ao Art. 103-A da Constituição Federal de 1988

conferida pela Emenda Constitucional Nº 45/2004, as decisões do Supremo Tribunal

Federal ficam vinculadas normativamente, para cumprimento estrito do Judiciário e da

Administração Pública. Não sendo leis, agem com força normativa e pairam sobre as

decisões futuras, não abrindo margem para diferenças, seja de determinado caso ou

307 BRASIL. Ob. Cit. 19 de dezembro de 2006. Fonte: Planalto. 308 BRASIL. Ob. Cit. 19 de dezembro de 2006. Fonte: Planalto. Art. 7º Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação [...] § 2º Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.

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sentença proferida por um magistrado competente, que não possui a liberdade

necessária à produção judicial.

Tal liberdade pode ser verificada na Lei de Introdução às Normas do Direito

Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, em que o juiz possui como

uma de suas funções decidir de acordo com os princípios gerais do direito, analogia ou

costumes caso a lei se mostre omissa. Embora o Art. 4º da lei disponha sobre

analogia309, a mesma está atrelada a sua liberdade decisória, não respeitada pelas

Súmulas Vinculantes, uma vez que seu entendimento e sua analogia são de observância

obrigatória ao magistrado.

Mitiga-se, neste ponto, a liberdade do magistrado e até mesmo o princípio

constitucional do livre convencimento do juiz, que deverá observar e se moldar ao

preceituado pela Súmula Vinculante antes mesmo de analisar se o caso em concreto

guarda ou não relação com o texto sumulado, que acaba ferindo outro direito

constitucional fundamental que é o livre acesso ao Judiciário.

É bom ressaltar que as Súmulas Vinculantes agem também sobre os Atos

Administrativos, de modo que mesmo tendo a previsão constitucional de

fundamentação legal dos atos, por meio dos princípios da legalidade e da motivação,

estes atos devem ficar adstritos ao conteúdo das Súmulas Vinculantes, gerando uma

força sobre esferas do Poder Público além dos casos particulares.

3.3 SÚMULAS VINCULANTES E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O regramento basilar do sistema jurídico brasileiro consiste na hierarquização

legal. A norma inferior busca sua validade na imediatamente superior, tendo todas por

dever a observância da Constituição Federal, regendo atualmente a Carta Política de

1988, não havendo nada acima dela (somente a Norma Hipotética Fundamental,

segundo a visão teórica kelseniana).

As Súmulas Vinculantes não estão inseridas na categoria de leis, ou caso

contrário seriam produzidas pelo Legislativo, não pelo Judiciário, não estando

encaixadas em nenhuma das hipóteses de hierarquização das leis. Em outras palavras,

significa afirmar que pela leitura do texto constitucional, as Súmulas Vinculantes são

309 BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 setembro de 1942. Fonte: Planalto. Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

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meios interpretativos dessas mesmas leis. Não se trata de interpretação extensiva da

norma constitucional, mas pura e simplesmente de hermenêutica.

Contudo, não se pode olvidar que as Súmulas, sejam elas vinculantes,

impeditivas de recursos ou simplesmente de orientação, devem respeitar ao regramento

para sua fomentação e validade, obedecendo critérios objetivos constantes das leis e

subjetivos, através do livre convencimento do magistrado.

Ao se inserir a Súmula com efeito vinculante no orbe jurídico brasileiro, acabou-

se por criar não uma jurisprudência de respaldo às decisões ou para orientação geral,

mas sim uma forma obrigatória de regramento em que a observância acarreta inclusive a

cassação da decisão judicial ou a declaração de nulidade do ato administrativo.

Não se trata, aqui, de reforma decisória de órgão colegiado, como ocorrem com

os acórdãos provenientes da análise oriunda do duplo grau de jurisdição, mas sim de

uma cassação da decisão judicial, como se esta nunca houvesse existido e, portanto, não

produzindo os mínimos efeitos legais.

Extirpar-se-á desde logo o princípio constitucional do livre convencimento do

juiz, que fica atrelado não às possibilidades legais existentes para julgamento do caso e

sim pela impossibilidade geral de decisão trazida pela súmula vinculante, que impede

qualquer movimento do julgador que não seja aquele estritamente designado na súmula.

Aliás, o duplo grau de jurisdição é outro princípio constitucional que deixará de

existir quando o caso colidir com Súmula Vinculante, já que nem ao mesmo chegaria ao

conhecimento dos tribunais a matéria, ficando parado logo na primeira instância e nunca

é demais afirmar que tal princípio encontra respaldo nas garantias e direitos

fundamentias dos cidadãos310, não podendo ser negado por um decisão com força

normativa do Supremo Tribunal Federal.

Outro ponto primordial surge nesta análise, referente à questão da coisa julgada,

em que corre-se o risco desta deixar de existir. Explica-se: ao se conferir a faculdade de

retratação às Súmulas Vinculantes, como as demais decisões do Supremo Tribunal

Federal, tal fato poderá atingir a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito

adquirido, baluartes da segurança jurídica que as Súmulas Vinculantes teoricamente

visam proteger.

310 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art.5º [...] [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

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Se nem mesmo a lei pode prejudicar tais atos, considerados cláusulas pétreas

pela Constituição Federal de 1988, uma decisão judicial não pode, de igual maneira,

produzir efeitos e prejudicar tais disposições. É um retrocesso legal afirmar que as

súmulas vinculantes não podem causar esse efeito.

As Súmulas Vinculantes hoje se apresentam como “verdadeiras normas de um

único artigo”, sendo que suas disposições possuem força obrigatória, embora não

possuam tal poder, fazendo com que todo o Judiciário fique engessado e adstrito às

determinações sumulares, além de compromoter também o Legislativo e a

Administração Pública direta e indireta na sua função atípica de julgamento, função esta

constitucionalmente prevista na esfera administrativa.

É difícil imaginar como as Súmulas Vinculantes podem condensar toda a

realidade jurídica em disposições de poucas linhas. Nem mesmo uma Lei

Complementar, que tem por intuito justamente completar o entendimento de

determinada lei e/ou disposição legal consegue em tão pouco espaço fazê-lo, uma

simples súmula não terá o êxito que seus partidários afirmam possuir.

Estamos diante de uma inferência perigosa que as Súmulas Vinculantes causam

no aparato legal do Estado Brasileiro, isto porque sua existência ultrapassa a esfera da

relação entre as partes em um caso concreto e atinge diretamente garantias fundamentais

de terceiros, que veem seus direitos sendo mitigados sem nem ao menos terem

ingressado no Judiciário, isto é, a segurança jurídica constitucional é relevada à segundo

plano em nome da vinculação das decisões do STF, com força normativa.

Qual segurança jurídica um precedente deste pode produzir? Nenhuma. Essa é a

resposta cabível. O instituto das Súmulas Vinculantes viola princípios estabelecidos

pelo Poder Constituinte Originário e tendo sido inserido por meio de Emenda

Constitucional deveria ter a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal

Federal, que por evidência não o fará ou a Corte Suprema perderia sua nova “função

típica” de legislar.

A corroborar com o acima explanado, o Ministro Celso de Mello, apud

Encarnacion Alfonso Lor, declara que a súmula vinculante é “uma norma de decisão, ou

seja, tem poder normativo”311. Com isso, percebe-se que as normas de decisão se

enquadram em uma das espécies do gênero de norma, sem possuir força de Lei

justamente por não ser uma norma jurídica.

311 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 105.

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Entretanto, há ainda quem acredite que as Súmulas Vinculantes, em caso de

embate com a Lei, devem prevalecer no entendimento e na consecução do caso jurídico

concreto. É o que assevera Wagner Giglio, apud Rodolfo de Camargo Mancuso, quando

afirma que elas “atingem um status superior ao da Lei, pois no entrechoque entre lei e

súmula prevalece esta sobre aquela”.312

Este posicionamento não somente demonstra uma afronta aos princípios

constitucionais como também coloca em risco a já citada segurança jurídica, necessária

para toda e qualquer ideia de direito positivo vigente no Brasil. Não é, contudo, uma

visão isolada, mas sim adotada por boa parte da doutrina quando defendem a utilização

das Súmulas Vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.

Além dessa defesa desmedida, tais doutrinadores ainda afirmam que não há

usurpação de funções quando a Corte Suprema edita suas Súmulas Vinculantes, posto

que esta atividade se encontra respaldada na Carta Magna. Contudo, a mera análise do

instituto e do ato sumular se colocam como atividade puramente legislativa, ainda que

autorizado pela Constituição, motivo pelo qual pugnamos pela inconstitucionalidade e

vedação geral desta prática.

Os argumentos utilizados são fracos e não demonstram de maneira clara como as

Súmulas Vinculantes podem ser úteis ao Estado Democrático e Social de Direito

Brasileiro, isto porque as próprias teses contrariam-se e se afrontam, mostrando que a

necessidade de existir uma pretensa “supremacia” do Judiciário sobre o Executivo e o

Legislativo deve ser justificada de qualquer forma pelos operadores do direito, como se

fosse uma questão de “justiça histórica”.

Oportuno lembrar que a igualdade e certeza devem ser garantidas no momento da elaboração das leis, e, sobretudo, no momento de sua aplicação. Na sistemática anterior à súmula vinculante, as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade difuso valiam apenas para um único caso. A decisão do Supremo Tribunal, órgão máximo da jurisdição constitucional, era desprovida de força para se impor sobre os outros juízes e tribunais, ou seja, a mesma norma poderia ser considerada constitucional por alguns e inconstitucional para outros, propiciando forte insegurança jurídica.313

Pergunta-se: é razão para a criação de uma Súmula com força normativa e que

vincule todo o Judiciário, bem como a Administração Direta e Indireta? Não se trata

312 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2010, p. 365. 313 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 135.

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simplesmente sobre a possibilidade decisória do julgador, mas sim do ativismo judicial,

ao permitir que o Supremo Tribunal Federal possa “legislar” quando sua função é julgar

e guardar a Constituição Federal. Se há o risco de uma mesma lei ser considerada

constitucional por uns e inconstitucional por outros, cabe aos legitimados proporem

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e esta decisão, que só poderá ser tomada

pelo Supremo Tribunal Federal, terá efeito sobre a lei ou o motivo da controvérsia, não

tendo qualquer necessidade de súmulas vinculantes.

Em resumo, as decisões do Supremo Tribunal Federal devem recair sobre os

casos concretos que lhe chegam por sua competência originaria ou por meio de

recursos, sem que os mesmos sejam “pré-julgados” por súmulas vinculantes. Ainda que

a decisão verse sobre determinada lei, devemos lembrar que a consonância para tanto

deve ser encontrada na Constituição Federal, que possui inúmeras garantias ignoradas

pelas súmulas vinculantes.

A defesa ao instituto, porém, permanece sendo realizada e alguns afirmam que

as súmulas vinculantes chegaram para suprir a necessidade de aplicação isonômica do

direito aos jurisdicionados, bem como em impedir divergências interpretativas. Em

outras palavras, as súmulas vinculantes garantem que cada jurisdicionado terá a correta

aplicação interpretativa da norma constitucional ao seu caso. No entanto, se

contradizem ao afirmarem que muitos processos possuem as mesmas questões de direito

e não acrescentam nada ao debate das questões jurídicas.

Para além disso, impede sublinhar o elevado número de processos submetidos a julgamento no STF. Na maioria das vezes, envolvem as mesmas questões de direito, exigindo um esforço repetitivo e burocrático, sem acrescentar ao debate novas questões jurídicas. Assim, com a adoção da súmula vinculante se pretende conter e resolver os litígios de massa que respeitem ao mesmo problema constitucional.314

Resolver litígios de massa não é, de maneira alguma, garantir que cada

jurisdicionado tenha a aplicação isonômica da interpretação jurídico-constitucional, mas

sim que todos os casos são iguais quando colidentes com Súmula Vinculante.

São muitos os princípios constitucionais envolvidos nessa discussão. Afirmar de

modo simplório que as Súmulas Vinculantes não atingem princípios basilares do direito

fundamental de todo cidadão, tais como o acesso ao Judiciário, o julgamento isonômico,

314 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 135.

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o livre convencimento do juiz, dentre outros já explanados acima, e relevar o fato de

que se está criando um superpoder, com atribuições além daquelas constitucionalmente

permitidas, é extremamente perigoso e atentatório.

É um absurdo pensar que uma súmula que não passa de entendimento do STF

possa estar e ficar acima da Lei, ou melhor, de toda e qualquer Lei. Seria, pois, colocar

o sistema jurídico brasileiro subjugado ao Judiciário, especificamente à Suprema Corte,

numa afronta à Constituição e à sociedade brasileira, que detém o Poder Soberano.

Não cabe ao Supremo Tribunal Federal intervir na sociedade através das

súmulas vinculantes como se estas fossem leis, quando transformam o fato social em

fato jurídico pela ordem legalmente instituída. As decisões judiciais (e isto deve ficar

bem claro), não são leis gerais, de modo que a força das sentenças fica restrita às partes,

o que denota uma clara supressão de instância.

A norma geral que, a certas condições determinadas de modo abstrato, vincula certas consequências determinadas de modo abstrato tem de ser individualizada e concretizada para entrar em contato com a vida social, para ser aplicada à realidade. Para esse fim, tem-se de, num caso concreto, averiguar se as condições, determinadas in abstracto na norma geral, estão presentes in concreto, para que a sanção, determinada in abstracto na norma geral, possa ser ordenada e executada in concreto.315

Segundo a Constituição Federal de 1988, é função do Judiciário realizar a

transição do fato abstrato para a realidade concreta por meio do processo judicial. Essa é

sua função típica, que se inicia ao receber o processo e se finda com a decisão judicial,

sem vícios e sem vinculações a outras decisões e ainda que os casos pareçam similares,

jamais serão idênticos.

Não obstante, a segurança jurídica é um princípio basilar contido não apenas no

Brasil, mas em todos os países inseridos no Estado Democrático de Direito, seja no

sistema codificado ou consuetudinário e a Constituição Federal prevê este instituto em

diversas passagens, mas basicamente procura assegurar que a lei não impacte

contrariamente ao sistema, atuando harmonicamente na sociedade, regulando-a.

Temos que nos recordar sempre, com isso, que no direito positivo o que oferece

segurança ao sistema normativo é o fato de a lei estar vigente no tempo e somente outra

lei no mesmo patamar ou superior poderá retirar sua eficácia do ordenamento jurídico.

Há um sentido filosófico e um sentido sociológico de positivação. No primeiro, positivação designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer

315 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 196.

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um direito por força de um ato de vontade. Segue daí a tese segundo a qual todo e qualquer direito é um fruto de atos dessa natureza, ou seja, o direito é um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas. [...] No sentido sociológico, positivação é um fenômeno que naquele século [XIX] será representado pela crescente importância da lei votada pelos parlamentos como fonte do direito.316

Não obstante, devemos nos atentar ao fato de que as súmulas vinculantes não se

encaixam neste tipo de raciocínio. O motivo? Pura e simplesmente porque esta máxima

aplicar-se-á somente no caso das leis e assim devemos entender toda a atividade típica

do Legislativo. O Judiciário não elabora leis, mas julga conforme suas disposições.

Dotar as súmulas vinculantes de efeitos normativos é não apenas conferir ao

Judiciário a prerrogativa de legislar (tipicamente) como também interferir na separação

das funções, sendo não apenas inconstitucional, mas prejudicial ao sistema jurídico.

Além do Estado, temos também que os cidadãos ficam compelidos à

observância das súmulas vinculantes, o que ultrapassa os limites das decisões entre as

partes litigantes e atinge terceiros, suprimindo até mesmo direitos fundamentais como o

devido processo legal e o acesso ao Judiciário, acabando com a segurança jurídica.

Segurança jurídica pode significar duas coisas: 1. Segurança através do direito, e portanto segurança face ao roubo, homicídio, furto, incumprimento do contrato; 2. Segurança do próprio direito, garantia da sua cognoscibilidade, aplicabilidade, efetividade. Apenas existe segurança através do direito, quando o próprio direito é seguro.317

A segurança jurídica no Estado de Direito tem dois significados, podendo ser

aquela advinda do direito, ou seja, o bem tutelado pelo direito positivado ou, de outra

feita, que o direito é cognoscitivo, de modo a garantir que o próprio direito é seguro,

pois não é possível que a eficácia jurídica seja colocada em jogo.

Quando se impede o acesso ao Judiciário, não por força de lei, mas de decisões

reiteradas do Supremo Tribunal Federal, há clara violação de direitos tidos como

fundamentais e não falamos apenas do direito de petição, mas até mesmo de extinguir

direitos, o que cabe à lei. A decisão, seja ela advinda de órgão colegiado ou unitário,

não pode atingir direito de terceiro, sobretudo quando se impede a análise da

especificidade de cada caso, garantindo a segurança jurídica na aplicação da lei.

316 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Editora Atlas, 4ª Edição, 2003, p. 74. 317 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 218.

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3.4 A EXTRAPOLAÇÃO DO JUDICIÁRIO E O ATIVISMO JUDICIAL

O debate sobre as súmulas vinculantes possui contornos relevantes para além das

questões processuais e em suas reverberações no ordenamento jurídico brasileiro, mas

também na sociedade e no Estado. Como vimos, as Súmulas Vinculantes são

jurisprudências, não devendo possuir força normativa, principalmente por atingirem

todas as instâncias do Judiciário, da administração pública direta e indireta e o

Legislativo em sua função atípica.

Num Estado Democrático e Social de Direito, como o Brasil está constituído,

este instituto fere não somente o princípio constitucional de separação e harmonização

das funções, mas igualmente diminui a importância do Legislativo frente aos demais,

uma vez que sua função de certa forma está sendo exercida pelo Judiciário, ferindo sua

independência por conta dessas “aventuras jurisprudenciais”.

No tocante ao processo legislativo, a Constituição Federal de 1988 traz em seu

bojo qual o procedimento a ser realizado para consecução das leis, de modo a elencar

todas as normas jurídicas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, cabendo

exclusivamente ao Legislativo confeccioná-las por sua função típica.318

O processo para elaboração e aprovação das leis é complexo e demorado,

devendo respeitar ritos diferentes a depender da proposta de norma jurídica pretendida.

As disposições constitucionais não trazem em seu bojo nenhuma referência às

“súmulas” (independente de qual sua origem) como modelo de lei, muito menos confere

ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de integrar o procedimento em detrimento

do Legislativo.

Desta feita, uma súmula vinculante não pode fazer o papel normativo

característico da lei, seja ela qual for, de modo que o entendimento do STF sobre a lei

não deve extrapolar a aplicação ao caso concreto. Não devemos esperar que as decisões

318 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 59. O processo Legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos Legislativos; VII - resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

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da Corte Suprema para um caso atinjam direitos de outros antes mesmos de serem

analisados pelo Judiciário.

O Supremo, com 11 ministros, extrapola sua função constitucional de

julgamento e cria por meio das Súmulas Vinculantes um instrumento com força

normativa, invadindo a função típica do Legislativo, o que ocorre também quando

analisamos o papel das Medidas Provisórias e a extrapolação do Executivo.

Temos, portanto, que é a Constituição Federal Brasileira de 1988 que disciplina

tudo o que será considerado norma jurídica, para que não haja confusão com outras

disposições que teoricamente podem versar sobre direitos, mas que se constituem como

abusos, usurpação e extrapolação perpetrados pelos demais órgãos do Estado, caso este

das Súmulas Vinculantes.

É importante, para salvaguarda da liberdade humana, que não se confira o título de norma jurídica a mandamentos que não sejam normas. Decretos arbitrários são mandamentos, mas não são mandamentos normativos. Em verdade, são desmandos. São atos atrabiliários, repugnantes a concepções arraigadas e gerais. Logo, não são normas jurídicas. Mesmo quando recebem o nome de leis, tais mandamentos não são normas de Direito. São arbitrariedades, são contrafações, e nada mais.319

A questão da politização do Judiciário e o ativismo judicial ganha cada vez mais

destaque nos estudos que tratam das Três Funções e suas disposições constitucionais.

Tal problema inicia-se quando o Judiciário passa a exercer determinadas funções e

recebe competências que lhe são estranhas. Essas nuances entre a verdadeira atividade

judicial e a atividade advinda dos demais órgãos constitucionais deve ser considerada e

analisada cuidadosamente.

Quando a Constituição atrela cada um dos seus órgãos a uma competência

distinta e os faz se vigiarem uns aos outros evita-se a possibilidade de golpes e abusos

de poder. Não somente isso: uma vez delimitado seu raio de atuação, consequentemente

se impede que um órgão interfira nos demais e abale o sistema existente.

O que ocorre, porém, é que por conta do ativismo judicial, os limites criados

para delimitar as funções de cada um dos órgãos estão sendo ultrapassados e o

Judiciário está se comportando de maneira a interferir diretamente nas funções

exercidas pelos demais, abalando as estruturas das linhas demarcatórias das

competências constitucionais.

319 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Estudos. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1ª Edição, 2005, p. 102.

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Ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir é a ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e, até mesmo da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da legiferação (ou de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição aos órgãos superiores do aparelho Judiciário, e sim da descaracterização da função típica do poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes. A observância da separação dos Poderes importa, dentre diversos outros consectários, na manutenção dos órgãos do Judiciário nos limites da função jurisdicional que lhes é confiada e para cujo exercício foram estruturados.320

Enquanto o Judiciário invade as demais esferas constituídas no Estado

Brasileiro, sua atuação compromete todo um sistema que procura dar mobilidade aos

órgãos no exercício de suas funções. Apesar do dever de vigilância entre eles, a

independência é a chave principal para o exercício do papel do Executivo, do

Legislativo e do Judiciário.

Com as súmulas vinculantes o que acontece é justamente o contrário, com o

Judiciário invadindo a seara do Legislativo, fazendo com que a própria Carta Política

caia em descrédito decorrente da usurparção de função por um órgão e o desrespeito aos

preceitos constitucionais nela resguardados, relevando-se sua importância a segundo

plano em nome de uma ordem deturpada instaurada pela possibilidade de criação de

súmulas que vinculam todo o Estado.

Certo é que o embate entre os órgãos e os limites de suas funções existe desde

antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004. Soma-se ainda o fato de as

questões que não pertencem à seara do Judiciário, mas sim do Executivo e do

Legislativo, reverberam na sua atuação, isto porque, ao atuar politicamente, denotam o

seu ativismo judicial em casos que não lhe incumbem sua atuação.

Quanto à judicialização da política, consiste na transferência ao Poder Judiciário da apreciação de questões de caráter político, cuja análise seria, em regra, de competência dos poderes Executivo e Legislativo. Com isso, ao se judicializarem questões políticas, dá-se ao Poder Judiciário uma dimensão política, com afastamento de sua postura até então vista como neutra, já que ele passa a realizar julgamento que transcende a perspectiva da legalidade, ingerindo-se em seara de mérito administrativo, procedendo a avaliação de caráter político, ou seja, de conveniência e oportunidade, o que gera sua politização. Ao se atribuir ao Judiciário tarefas que violam as regras da separação dos

320 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 117.

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poderes, a politização da justiça leva a uma situação de estresse institucional.321

Com as Súmulas Vinculantes ocorre justamente este fenômeno, uma vez que

confere ao Judiciário a possibilidade de, ainda que de forma indireta quanto ao

Legislativo, exercer a função típica deste, isto porque suas decisões vinculadas possuem

efeitos erga omnes e sua força normativa acaba por lhe empregar a generalidade que

somente a lei deve possuir, em detrimento da especificidade de cada caso necessária nas

decisões judiciais.

Tal fato reforça o entendimento sobre o ativismo do Judiciário. Ao vincular

todas as instâncias inferiores ao entendimento petrificado de suas cátedras, o Tribunal

retira toda e qualquer possibilidade de que uma especificidade processual possa

acarretar em um entendimento diverso daquele ensejado na Súmula Vinculante.

A decisão passa a não mais velar sobre um processo, mas sobre todos em que o

assunto seja o mesmo. Contudo, como já defendemos, ainda que se considere temas

conexos em processos similares, cada caso possui peculiaridades diferentes que devem

ser consideradas quando das análises judiciais. Por mais similares que um caso possa

ser a outros, não pode-se afimar e tratá-los como sendo idênticos em todos os sentidos.

Em regra, em virtude de esse modelo ser realizado através de um caso concreto, a eficácia da decisão fica restrita às partes que figuraram no referido processo, sem transcender sequer a casos idênticos, não possuindo força para vincular a decisão de outro magistrado, ou mesmo do próprio magistrado que a proferiu, em um caso idêntico, mas com outras partes.322

O ativismo do STF com relação aos temas constitucionais configura

transmutação de competência, em que o Judiciário se aproveita de “brechas

constitucionais” para garantir a efetividade de suas decisões que, seguindo a liberalidade

de seus membros, podem receber o efeito vinculante.

Nesta acepção, alguns julgados merecem destaque justamente por imprimirem o

impulso do Supremo Tribunal Federal quando diante de uma suposta omissão dos

outros órgãos da União o que, por certo, não lhe confere o direito constitucional de

321 COL, Juliana Sípoli. Politização do Poder Judiciário e Ativismo Judicial. In Anais do VII Encontro Internacional de Produção Científica Cesumar (VII EPCC) Centro Universitário de Maringá. Editora Cesumar. Maringá: 2011, p. 2. 322 ROMANIUC, Jefson Márcio Silva. Ativismo judicial e o Supremo Tribunal Federal: Visão crítica sobre os limites da atuação judicial. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 97, fev 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11081&revista_caderno=9>. Acesso em 15 de maio 2013.

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tomar para si a competência e realizar os atos típicos dos demais órgãos como algo

normal e comum ao Judiciário.

Tem-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal adota o ativismo judicial com vistas a dar efetividade às normas constitucionais, precipuamente, em face da omissão dos demais Poderes. Nesse sentido interessante citar recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, nas quais se verifica o ativismo judicial, em virtude da matéria que abordam. São elas, dentre outras: a) Instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência – ADI 3105/DF; b) Criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário – ADI 3367; c) Pesquisa com células-tronco embrionárias – ADI 3510/DF; d) Interrupção da gestação de fetos anencefálicos – ADPF 54/DF; e) Restrição do uso de algemas – HC 91952/SP e Súmula Vinculante nº 11; f) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol – PET 3388/RR; g) Vedação ao Nepotismo – ADC 12/DF e Súmula Vinculante nº 13.323

O caráter que possui a decisão de restrição às partes é consagrado no direito

brasileiro como princípio da congruência, em que o juiz deve ficar adstrito aos fatos

narrados e aos elementos instrutivos do processo que lhe garantem a especificidade. Ao

se deparar com a Súmula Vinculante temos uma afronta a este princípio quanto às

peculiaridades de cada caso. Não é demais afirmar que cada processo é único e assim

deve ser tratado pelos juízes, independente da instância em que se encontrar.

Nada poderá garantir em hipótese alguma que todos os casos de uma

determinada matéria conterão as mesmas características e especificidades que fazem

outros serem vinculados a uma decisão do Supremo Tribunal Federal sem nem mesmo

serem analisados. Nada, seja na legislação, na sociedade, nas muitas teorias sobre o

processo ou nos artigos científicos, monografias, dissertações de mestrado, teses de

doutorado ou pós-doutorado poderá cometer tamanha afronta.

Não se pode tratar como sendo iguais todos os processos que versem sobre um

mesmo tema. São diferentes em sua essência e é justamente essa característica essencial

de cada caso que cria a peculiaridade e a especificidade que somente guardará relação

com aquele caso e nenhum outro mais.

Importante mencionarmos também que essa diferença dificilmente é percebida

por um desembargador ou mesmo um ministro, sendo certo que o juiz de primeiro grau

no exercício de sua função, é aquele que mais se aproxima de identificar as nuances de

diferenciação, haja vista que é dele a prerrogativa de possuir a única chance de contato

323 SOUSA JUNIOR, Arthur Bezerra de; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. O Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal. In: Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Anais do XXII Encontro Nacional do CONPEDI Curitiba-PR: Fundação Boiteux, 2013, pp. 12-3.

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do Judiciário com as partes envolvidas no processo quando da realizaçao da audiência,

facultando-lhe por isso um momento diferenciado para perceber situações que os

demais julgadores não possuem condições, já que as partes do processo são

representadas por seus advogados e tanto desembargadores como ministros, por suas

atribuições, não terão contato com elas.

Sobre esse ativismo judicial do STF, muitos oferecem como “desculpa” que a

omissão dos demais órgãos confere-lhe competência para interferir nas suas funções e

atribuições. Isso serve para dar efetividade às normas constitucionais que devem ser

cumpridas a qualquer custo, seja pelo órgão responsável, seja pelo STF.

Contudo, uma vez constantes no Texto Constitucional, incumbe ao Supremo Tribunal Federal o dever constitucional de zelá-los e efetivá-los. Uma Constituição inoperante e ineficaz não pode ser considerada uma Constituição zelada. E para não incorrer neste risco, o Supremo Tribunal Federal preenche os espaços deixados pelos demais poderes e zela pela Constituição da República, no momento que a torna efetiva. Todavia, a questão ganha novos contornos quando se está diante da proteção de direitos sociais constitucionalmente previstos e que, na maioria das vezes, implicam na elaboração e execução de políticas públicas. Em face da omissão dos outros Poderes nessa matéria, o Supremo Tribunal Federal quando provocado torna efetivos tais direitos adentrando na seara dos demais Poderes e se utilizando do ativismo judicial.324

Destarte, a politização do Judiciário pelo STF acaba por impactar a própria

ordem constitucional dos fatores, colocando em voga a aderência legal das suas

decisões, isto porque o seu entendimento jurisprudencial estará conflitando com a

necessidade de regulamentação legal de determinados assuntos e isto ocorre quando a

existência de uma súmula vinculante influencia e impede de alguma maneira a edição

de uma lei que vise aprimorar o ordenamento jurídico brasileiro.

O fato de que muitas matérias não possuem a necessária legislação regulatória

não abre margem para a Corte Suprema sair a torto e à direita com suas prerrogativas

procurando entendimentos sobre o assunto e, mais do que isso, colocando-os em

súmulas vinculantes, atrelando toda a sociedade às suas decisões.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, embora seja guardião da Constituição Federal, logo, com o dever institucional de tutelar-lhe, evitando mudanças inconstitucionais, acaba, por força da politização, gerando mudanças constitucionais, embora não seja o poder competente para essa função. E, na medida em que transcende os

324 SOUSA JUNIOR, Arthur Bezerra de; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Ob. Cit.. In: Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Anais do XXII Encontro Nacional do CONPEDI Curitiba-PR: Fundação Boiteux, 2013, pp. 10-1.

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limites legais, atesta-se seu ativismo judicial, aferível em diversos casos, como na formulação da Súmula Vinculante nº 13 que disciplina o nepotismo, embora não haja disposição constitucional sobre a matéria, o que deixa indubitável seu ativismo no caso, em que a Corte Constitucional ter-se-ia, embora não reste explicitamente claro na súmula, embasado no princípio da moralidade, inscrito no caput do Art. 37 da CF/88, para regulamentar essa matéria, como se pode depreender dos votos exarados pelos Ministros do Supremo no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12, considerada como um dos precedentes para edição da Súmula Vinculante nº 13, a qual evidencia o ingresso do Poder Judiciário na seara legislativa, já que, partindo de um princípio constitucional, formulou um enunciado normativo.325

A citada Súmula Vinculante nº 13, que passou a “disciplinar” o nepotismo, é um

exemplo claro de como pode ocorrer a usurpação de função pelo Supremo Tribunal

Federal, já que, ainda não possuindo leis sobre determinado assunto, o Tribunal editou a

súmula com seu entendimento, que assim deve ser acompanhado por todos os órgãos do

Estado e pela sociedade com efeito erga omnes.

Vivemos em um sistema híbrido com a Civil Law e a Common Law

constantemente em choque, o que se torna visível no exercício da advocacia, quando

muitos advogados antes mesmo de consultarem uma lei sobre o assunto, consultam

diretamente as jurisprudências dos tribunais, buscando o melhor entendimento para seu

caso concreto, ainda que estas não possuam o efeito vinculante.

À exemplo da Súmula Vinculante nº 13, que versa sobre o nepotismo, temos

ainda o Enunciado Sumular nº 11, que trata sobre o uso de algemas, quando não existe

lei sobre o assunto para que o STF exponha seu entendimento sobre o assunto. A

inferência jurídica sumulada pelos ministros surge com base nos Direitos Humanos e no

Pacto de San José da Costa Rica. Contudo, se assim considerarmos sempre que o

Supremo decidir por criar uma Súmula Vinculante, deveriam fechar todos os presídios

existentes no país, já que a condição da população carcerária é mais desumana do que o

uso de algemas em determinadas situações.

Interessante notarmos que com relação à súmula vinculante nº 13 houve a edição

do Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010326, que versa sobre o nepotismo na

administração pública direta e indireta no âmbito federal e, apesar disso, o enunciado

sumular permanece em vigor sem qualquer alteração.

325 COL, Juliana Sípoli. Ob. Cit. Maringá: 2011, p. 3. 326 BRASIL. Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010. Fonte: Planalto.

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Podemos resumir que o ativismo judicial como sendo “uma participação mais

ampla e intensa do Judiciário na efetivação dos valores constitucionalmente

estabelecidos, ou seja, uma maior atuação do Judiciário em um espaço que, em um

primeiro momento, está reservado aos outros poderes”327. Usar como pretexto a

efetivação dos valores constitucionais não pode abrir margem para que o Judiciário atue

com suas decisões nas esferas Executiva e, sobretudo, Legislativa, não abrindo margens

à independência e harmonia dos mesmos, mas ao contrário, contribuindo para a

confusão entre eles.

O importante jurista Hans Kelsen trabalhou o importante tema sobre a

individualização da sentença judicial, isto é, a produção de efeitos da aplicação do

direito apenas entre as partes litigantes e atendendo a especificidade de cada caso para

que somente se produza os efeitos nesses casos.

A decisão judicial é claramente constitutiva na medida em que ordena que uma sanção concreta seja executa contra um delinquente individual. Mas ela possui um caráter constitutivo também na medida em que averigua os fatos que condicionam a sanção. No mundo do Direito não existe nenhum fato “em si”, nenhum “fato absoluto”, existem apenas fatos averiguados por um órgão competente num processo prescrito pelo Direito.328

Kelsen apresenta de forma enfática que na Ciência Jurídica nenhum fato pode

ser absoluto, o que nos leva a crer que a aplicação da norma deve atender a cada caso

em suas peculiaridades. Ao fazer do direito um fato absoluto, se retira não da norma,

mas do caso, toda a especificidade com que ele deve ser tratado.

A norma, mesmo que geral, não pode ser absoluta e, por isso, a decisão judicial

só pode trazer efeitos de maneira absoluta entre as partes litigantes. A decisão judicial

que procura ser absoluta e sai da esfera da particularidade de cada caso, tal qual as

Súmulas Vinculantes, não constitui um Direito, mas impede o mesmo de se manifestar.

Quando o Supremo Tribunal Federal atrela suas decisões por meio das Súmulas

Vinculantes, impede os tribunais de aplicarem o seu entendimento sobre o direito,

retirando do julgador a liberdade para o exercício de suas funções, uma vez que sua

decisão não estará livre, mas vinculada a outra decisão do maior órgão do Judiciário

pátrio, suprimindo a atuação do magistrado de primeira instância e de todas as demais.

Ao vincular a certos fatos certas consequências, a ordem jurídica deve também designar um órgão que tem de averiguar os fatos de um caso

327 COSTA, Andreia Elias da. Estado de direito e ativismo judicial. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2010, pp. 52-3. 328 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 197.

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concreto e prescrever o processo que o órgão tem de observar ao fazê-lo. A ordem jurídica pode autorizar esse órgão a regular o processo de acordo com o seu arbítrio; mas o órgão e o processo pelos quais devem ser averiguados os fatos condicionantes têm de ser – direta ou indiretamente – determinados pela ordem jurídica, para fazer com que esta seja aplicável à vida social.329

O tribunal não pode determinar se um fato será ou não aplicado à vida social. É a

sociedade que determinará se o fato praticado terá ou não consequências jurídicas. Um

tribunal é legitimado para julgar pela ordem jurídica que, no caso do Brasil, se trata da

Constituição Federal de 1988, que traz um rol de competências das instâncias superiores

e ao mesmo tempo traz as competências originárias de todos os tribunais pátrios.

O Supremo Tribunal Federal suprime instâncias e acaba com a atividade judicial

dos tribunais e juízes. Mais do que isso, impede que um fato social seja considerado

conforme a ordem jurídica estabelece, isto é, impede que a ação seja vista ou não na

possibilidade jurídica de sua especificidade.

O ativismo judicial é preocupante e imprime às decisões do STF um ar de

arbitrariedade, visto que ultrapassam os limites processuais e atingem não apenas

direitos e garantias dos cidadãos, como também podam a atuação do Judiciário quando

da análise específica do processo.

Uma vez não existindo fatos absolutos, cabe aos juízes realizar a ligação entre o

fato narrado no litígio e o direito a ser aplicado. Antes de ser levado aos tribunais para

análise, o fato já se encontra inserido na ordem jurídica e sua constituição como tal

depende estritamente da ação julgadora dos órgãos do Judiciário, que acabam se

tornando impedidos de realizar essa função por força normativa sumular.

É opinião típica de um leigo a de que existem fatos absolutos, imediatamente evidentes. Apenas ao serem averiguados por meio de um processo jurídico é que os fatos são trazidos para a esfera do Direito ou, por assim dizer, passam a existir dentro dessa esfera. Formulando isso de um modo paradoxalmente preciso, poderíamos dizer que os fatos condicionantes “criam” juridicamente esses fatos. Portanto, a função de averiguar fatos através de um processo jurídico tem um caráter especificamente constitutivo.330

Se um fato é praticado na sociedade, o direito nasce tão logo na essência do ato

realizado, sendo ele legal ou ilegal, se inserindo desde então na ordem jurídica e,

quando levado ao Judiciário pelas partes, tem-se a constituição da pretensão sobre este

329 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, pp. 197-8. 330 KELSEN, Hans. Ob. Cit.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 198.

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direito, com o devido processo legal, respeitando-se a legislação como um todo. Em

resumo, não pode a súmula vinculante ser a “responsável” por inserir ou não na ordem

jurídica o fato, mas sim a lei, única que possui eficácia pela vontade da sociedade.

Se a própria Constituição Federal de 1988 impede a supressão de instâncias na

análise jurídica dos fatos, o que se pode dizer da atuação do Supremo Tribunal Federal

enquanto “legislador” nas Súmulas Vinculantes? O processo jurídico, que possui caráter

constitutivo do fato jurídico, deixa de ter mecanismos para atingir um determiado

resultado por meio de ação judicial quando colide com súmula vinculante, atingindo

todo o sistema constitucional brasileiro.

Como o sistema adotado no Brasil preza não apenas pela codificação, como

também pelo princípio da legalidade, o juiz tem na norma jurídica o mandamento com

força de império. A aplicação da norma, por evidência, dependerá da hermenêutica

utilizada pelo juiz ao caso. É de acordo com tal interpretação e ligação do fato à norma

jurídica que ocorre a constituição do direito.

Isso não significa, todavia, que o juiz está adstrito e preso por um cabresto,

somente enxergando a norma jurídica à sua frente. O julgador tem o dever de aplicar a

lei, mas tem a faculdade de interpretá-la de acordo com a sua visão do caso, balizado

pelo princípio do livre-convencimento do juiz.

Embora nos façam acreditar no engessamento do sistema codificado, a realidade

brasileira se mostra diferente, posto que o juiz tem a liberdade constitucional de

convencimento e de julgar. Basta verificarmos nos tribunais pátrios entendimentos

diversos para casos análogos, mas analisados de acordo com as suas especificidades, de

modo a não causar injustiças perante a lei.

A contrário do que pode parecer à primeira vista, as divergências que surgem entre sentenças relativas às mesmas questões de fato e de direito, longe de revelarem a fragilidade da jurisprudência, demonstram que o ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador.331

Na realidade, são as especificidades de cada caso que permitem o não

cometimento de injustiças no momento de aplicação da lei e verifica-se que a atuação

ativa do Supremo Tribunal Federal por meio das súmulas vinculantes acaba com toda e

qualquer possibilidade de verificação das peculiaridades do caso concreto, até mesmo

porque a lei será afastada para aplicação da decisão sumulada da Corte.

331 REALE, Miguel. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 158.

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É fato que a decisão judicial emanada por juiz competente cria um direito e não

é isto que se discute ao longo deste trabalho. O que queremos demonstrar é que este

direito criado pela hermenêutica jurídica da interpretação feita entre o fato e a lei deve

criar direitos e obrigações apenas às partes envolvidas na lide. Quaisquer extrapolações

desta seara ultrapassam a lide e interferem em todo o ordenamento jurídico pátrio.

A principal especificidade da norma jurídica num Estado de Direito, desde os

tempos de Revolução Francesa e do ideário de Rousseau, reside no fato de a mesma ser

geral e não específica. A sentença judicial versa sobre casos envolvendo determinado

número de particulares e não a coletividade, motivo pelo qual não pode e não deve

possuir a mesma força legal que aquela emanada do Legislativo sob o risco de

extrapolar a função jurisdicional e trazer à baila o ativismo judicial não somente como

algo aceitável, mas também e principalmente, como algo necessário ao sistema

processual brasileiro, o que por evidência não pode ocorrer.332

O juiz deve ter o livre-convencimento e sua independência de atuação é única

para o êxito na função, não podendo ser condicionado por decisões judiciais de órgãos

superiores, tal qual ocorre com as Súmulas Vinculantes. O ativismo judicial do STF está

incidindo diretamente nas atribuições judiciais dos órgãos julgadores, petrificando

entendimentos e relevando as características peculiares do caso concreto.

As súmulas vinculantes impedem os juízes de desempenharem seu papel

constitucional de julgamento. Não devemos relevar o fato de que “os juízes são, em

geral ‘independentes’, isto é, estão sujeitos apenas às leis e não às ordens (instruções) de

órgãos Judiciários ou administrativos superiores.” 333, o que nos faz concluir que o STF

não tem a prerrogativa de interferir nas atribuições do Judiciário como um todo, muito

menos na administração pública direta e indireta e no Legislativo em sua função atípica.

3.5 IMPACTOS NA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO E NA TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES

Conforme abordado em inúmeras ocasiões, o Brasil se inseriu após a

promulgação da Constituição Federal de 1988 em um Estado Democrático e Social de

332 Importante contribuição acerca do assunto nos traz Miguel Reale: “A jurisprudência, muitas vezes, inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem completar o sistema objetivo do direito”. (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 159). 333 KELSEN, Hans. Ob. Cit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 393.

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Direito. O que poderia ser um retrocesso frente à crescente expansão do neoliberalismo

na década de 1980 foi o ponto de partida para a solidificação da democracia, algo que

antes nunca ocorrera na história do país.

Assim, a organização do Estado priorizou os problemas sociais e as questões

fundamentais para todo e qualquer cidadão brasileiro ou estrangeiro residentes em

território nacional, havendo por bem elencar logo no início da Carta Constitucional os

princípios que regem o Estado.334

Também tratou nas questões de organização como o Estado se constituiria, ou

seja, qual o sistema utilizado para determinar as funções específicas de cada órgão no

sistema brasileiro, conferindo-lhes a independência nas suas prerrogativas, mas, ao

mesmo tempo, a harmonia335. Não podemos jamais esquecer, por isso, as funções

típicas e atípicas dos Três Órgãos, bem como dos limites constitucionais para sua

atividade no Estado, vez que primordiais à compreensão deste trabalho.336

Registra-se corrente doutrinária sustentando que o enunciado pretoriano obrigatório atrita com a desejável harmonia entre os Poderes. Assim, para Evandro Lins e Silva, “a Súmula com efeito vinculante absoluto para os juízes de primeira instância significa a introdução de um sucedâneo da lei em nosso sistema jurídico, produzindo a superposição ou conflito de atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário”; além disso, entende o autor que isso afronta outra garantia institucional, a saber, “a liberdade-poder de todos os magistrados de decidir os litígios segundo a lei, conforme o seu convencimento pessoal”. Também Luiz Flávio Gomes pensa que as

334 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 335 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 336 “Função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerias, normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”, atributo que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce (normalmente pelo Poder Executivo e seus sujeitos auxiliares e, atipicamente, por órgãos de outros Poderes) na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, pp. 35-6).

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Súmulas vinculantes “conflitam com o princípio da Separação dos Poderes (art. 2º e art. 60, § 4º, inciso III), visto que o Judiciário não pode ditar regras gerais e abstratas, com validade universal (non exemplis sed legibus judicatum est), falta-lhe legitimação democrática para isso”.337

Se no exercício das funções atípicas não encontramos arbitrariedades, o mesmo

não se pode dizer quando da análise das funções típicas, em que existe a possibilidade

de abalo ao Pacto Federativo e ao princípio da independência e harmonia entre os

órgãos do Estado Brasileiro, gerando insegurança jurídica aos processos já existentes e

aos direitos garantidos na Constituição.

Então, quando o Judiciário e em especial o Supremo Tribunal Federal decide

pelo ativismo judicial isso abre margem à ocorrência de fatos ainda mais gravosos sob o

ponto de vista da independência e harmonia, pois colidentes diretamente com as

atribuições designadas para cada órgão exercer em seu raio de abrangência.

O Supremo Tribunal Federal está atuando em áreas que não lhe são pertencentes,

criando um ambiente instável e de insegurança jurídica. Na conjuntura atual, o

Judiciário está se transformando em um superpoder, até mesmo porque sua atuação está

se inserindo acima da própria lei, com o pretesto de ser mera interpretação da mesma.

Quando analisamos as alterações inseridas pela EC 45/04 na Reforma do

Judiciário, percebe-se que a Constituição Federal passa a permitir que o Supremo

Tribunal Federal atue no campo Legislativo por meio das Súmulas Vinculantes. É nítida

que a nova configuração hermenêutica do texto constitucional permite e confere

prerrogativas ao Judiciário que ultrapassam os limites do razoável e acabam por atingir,

interferir e conferir função que pertence tipicamente ao Legislativo.

É fato que a regra não permite que os órgãos interfiram nas funções dos demais,

muito menos pratiquem atos típicos que não sejam aqueles determinados pela

Constituição. Entretanto, a extrapolação desse limite do razoável para a esfera de suas

funções típicas não pode ser encarado dentro da normalidade dos acontecimentos.

Dessa forma, em razão de vários fatores, como a própria inércia do Poder Legislativo, tal como a construção do texto constitucional vigente ao qual se deu feição nitidamente socializante e, ainda, não se pode descurar da influência de outros mecanismos, como a pressão midiática, por meio da opinião pública, a fim de que haja a implementação de políticas públicas por parte do Poder Judiciário – ainda que este não tenha competência para tanto e nem mesmo legitimidade democrática, já que seus membros são escolhidos por critérios técnicos, e não por mecanismo eletivos, como no caso dos

337 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 107.

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representantes eleitos por voto popular para o exercício de cargos do Executivo e Legislativo – de forma a se estimular a politização do Judiciário.338

A inércia ou mesmo a operacionalidade falha de um dos órgãos no exercício de

suas funções não permite pressupor que outro órgão possa ultrajá-lo de suas funções e

tomar para si a prerrogativa de desempenhar seus cargos. Isto vale tanto para o

Judiciário em legislar tipicamente, como para o Executivo tomar para si essa mesma

possibilidade, conforme já ocorrido tantas outras vezes por meio dos Decretos-Leis, que

hoje ganharam a roupagem das Medidas Provisórias.

É perigoso e ao mesmo tempo inseguro este tipo de pensamento, pois a

instabilidade constitucional seria latente mediante a insurgência de um órgão sobre os

demais. Estaremos diante de práticas que atingem diretamente a democracia brasileira.

Os impactos no Estado estão sendo sentidos e quem sofre é a sociedade. A atual

configuração não caracteriza o sistema de freios e contrapesos, mas sim um sistema que

não faz diferença alguma na manutenção da Tripartição das Funções. Verificamos, pois,

a existência de superpoderes que mais se preocupam com as questões de como se

sobrepor e enfraquecer os demais do que com seus deveres na sociedade.

Verificamos que, diferentemente das súmulas sem efeito vinculante, que se

caracterizam como institutos jurídicos de orientação sobre o posicionamento dos

tribunais, as Súmulas Vinculantes, por sua vez, têm efeitos erga omnes e recaem sobre

tudo e todos, além de serem exclusivas do Supremo Tribunal Federal.

A diferenciação entre estes dois institutos foi também tratada pelos juristas

brasileiros quando do questionamento sobre a possibilidade de criação das Súmulas

Vinculantes e suas afirmações em audiências públicas e em entrevistas constitui

importante fonte para identificarmos os motivos de as Súmulas Vinculantes não estarem

de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.

Inicialmente é bom lembrarmos que, quando da instituição das Súmulas na Corte

Suprema na década de 1960, o intuito foi definir em pequenos enunciados o

posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre temas repetidos nos julgamentos,

sem que tais verbetes vinculassem as decisões das instâncias inferiores ou da

administração pública direta e indireta, além do Legislativo. Conforme o Ministro

Evandro Lins e Silva:

338 COL, Juliana Sípoli. Ob. Cit. Maringá: 2011, p. 2.

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Para os não iniciados, para o público em geral, diremos: Súmula foi a expressão de que se valeu Victor Nunes Leal, nos idos de 1963, para definir, em pequenos enunciados, o que o Supremo Tribunal Federal, onde era um dos seus maiores ministros, vinha decidindo de modo reiterado acerca de temas que se repetiam amiudadamente em seus julgamentos. Era uma medida, de natureza regimental, que se destinava, primordialmente, a descongestionar os trabalhos do tribunal, simplificando e tornando mais célere a ação de seus juízes. Ao mesmo tempo, a Súmula servia de informação a todos os magistrados do País e aos advogados, dando a conhecer a orientação da Corte Suprema nas questões mais frequentes. Houve críticas e resistências à sua implantação sob o temor de que ela provocasse a estagnação da jurisprudência ou que pretendesse atuar com força de lei. Seu criador, Victor Nunes, saiu a campo e, em conferências proferidas na época, explicou e deixou bem claro que a Súmula não tinha caráter impositivo ou obrigatório. Ela era matéria puramente regimental e podia ser alterada a qualquer momento, por sugestão dos ministros ou das partes, através de agravo contra o despacho de arquivamento do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento [...] A Súmula é um valioso instrumento, que pode ser invocado pelos advogados como elemento de persuasão, mas não vincula nem mesmo os juízes de primeiro grau. Único sobrevivente dos ministros presentes à sessão de sua criação, reivindico o conhecimento da sua origem, da sua razão de ser, da sua finalidade e das suas limitações.339

A súmula tinha o pressuposto de servir como orientação geral à sociedade e ao

Estado, sem trazer consigo o efeito de obrigatoriedade, seja para os juízes de primeiro

grau ou para as demais esferas do Judiciário.

A sua finalidade, em momento algum, vinculava as instâncias do Judiciário ou

possuía efeitos nos demais Órgãos e na Administração Pública direta e indireta. Tanto é

verdade que essas súmulas continuam sendo editadas pelo Supremo Tribunal Federal e

pelos demais tribunais de todo o país, não havendo qualquer relação de vinculação

decisória nestes enunciados, que servem tão somente como referenciais.

Quando voltamos os olhares às Súmulas Vinculantes, o mesmo Ministro

Evandro Lins e Silva se mostra inteiramente contrário às mesmas, vez que estaríamos

diante de uma limitação nas atribuições dos julgadores e se criaria a figura do “juiz

legislador”, conforme foi preconizado por Pedro Lessa.

Que são as ‘súmulas vinculantes’ senão uma repetição dessa força obrigatória que se quer dar às decisões sumuladas pelos tribunais superiores? [...] Nunca se imaginou a possibilidade de conferir à Súmula o poder vinculante ou de cumprimento obrigatório, imutável para o próprio tribunal que a edita ou para as instâncias inferiores. Do contrário teríamos a revivescência dos Assentos do Superior Tribunal de Justiça, na esteira dos Assentos das Casas da Suplicação,

339 SILVA, Evandro Lins e. Crime de Hermenêutica e Súmulas Vinculantes. Revista Consulex nº 5 de 31/5/1997.

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considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, desde a fundação da República. Súmula ‘vinculante’ seria um novo nome para os velhos Assentos. O grande Ministro Pedro Lessa já estigmatizara a figura do ‘juiz legislador’, não prevista ‘pelos que organizaram e limitaram os nossos poderes políticos’.340

Uma súmula de cumprimento obrigatório pelos tribunais e sem possibilidade de

interpretações de acordo com as peculiaridades de cada caso carrega o caráter de

imutabilidade da decisão e se torna prejudicial ao direito que nunca terá um

desenvolvimento nas questões sumuladas por impedimentos obrigatórios delas próprias.

A falta ou mesmo a dificuldade de mudanças no entendimento petrificado das

súmulas vinculantes atinge a Tripartição das Funções e impacta diretamente nos

meandros da sociedade.

Neste mesmo diapasão, o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos,

quando da audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça do

Senado (CCJ), se manifestou de maneira contrária ao instituto das súmulas vinculantes,

haja vista que o perigo de completo engessamento do Judiciário e de qualquer

possibilidade de mudança, que desde já estaria impedida.

Anunciada como um remédio aparentemente milagroso, ao qual se atribui o condão de limpar a pauta dos tribunais e acabar com a morosidade, a súmula vinculante tem tantos efeitos colaterais que acredito ser uma temeridade a sua implantação. A medida instalaria a ditadura do Supremo no Brasil. Criar a possibilidade da súmula vinculante vai efetivamente matar nos tribunais brasileiros aquilo que eles têm de melhor, que é o frescor, a possibilidade da modificação, do pensamento lateral e criativo em relação às questões, que são mutáveis. Com a implantação da súmula vinculante o Supremo fica com muito poder e é uma coisa que engessa um pouco a jurisprudência. A grande virtude, qualidade da jurisprudência, é exatamente a sua variedade, a sua mobilidade, a sua possibilidade de se transformar. Se durante o Plano Collor o Supremo tivesse sumulado a sua posição, não teríamos a liberação das poupanças. O Plano teria sido engessado e teria sido cumprido, porque naquele momento o STF foi com uma posição em que houve uma hesitação. Os juízes de primeira instância foram liberando as poupanças e ganhando respeitabilidade.341

Interessante notar a questão da ditadura do Supremo no Brasil, uma vez que o

órgão máximo do Judiciário acabaria por engessar todo o sistema atingindo diretamente

o próprio ordenamento jurídico, que seria colocado em segundo plano quando já

340 SILVA, Evandro Lins e. Ob. Cit. Revista Consultor Jurídico, edição de 10.01.2001. 341 BASTOS, Márcio Thomaz. Súmula vinculante instalaria ditadura no Judiciário. Jornal Hora do Povo, fev. 2004. Disponível em: <ktp://www.horadopovo.com.br/2004/ fevereiro/1 3-02-O4Ipag3d .htm>. Acesso em: 07/01/2014.

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existente súmula vinculante sobre o mesmo assunto, seja de forma diferente ou que

pretendesse legalizar de acordo com a posição da Corte Suprema, baseada em um

suposto entendimento da propria lei.

Seguindo o raciocínio do Ministro Evandro Lins e Silva, o respeitado jurista

Márcio Thomaz Bastos entende que esses institutos matariam a possibilidade de

modificações de entendimentos, bem como a liberdade de interpretação e decisão do

juiz, seja ele singular ou de órgão colegiado, passando a dever respeito à “estrita

legalidade de uma súmula”.

O exemplo citado pelo ex-Ministro à época das discussões sobre as súmulas

vinculantes é perfeito para comprovar o fato de que o Supremo Tribunal Federal não é,

de maneira alguma, guardião de toda a verdade jurídica no Brasil. Em momento de

hesitação, que podemos entender como dúvidas, foram os juízes singulares da primeira

instância que começaram a firmar o entendimento hoje também dominante no Supremo

Tribunal Federal e não a Corte Suprema.342

Quando afirmamos que as súmulas vinculantes atingem a organização do Estado

e a Tripartição das Funções, não podemos desconsiderar que a sociedade é quem sofrerá

de forma mais incisiva este impacto, isto porque o desenvolvimento dos movimentos

sociais encontrá resistência de atuação não na fomentação legal e sim na força

normativa de decisões do STF, apesar de a constituição resguardar o direito de

fazer/deixar de fazer algo somente por força de lei (e não de súmula vinculante).

Até mesmo o atual Ministro Marco Aurélio Mello é partidário da negatividade

oriunda das Súmulas Vinculantes no ordenamento jurídico, mostrando a possibilidade

de engessamento e de acomodação do julgador diante do caso concreto, bastando

invocar uma Súmula Vinculante no momento do julgamento para ver-se livre do caso.

A súmula vinculante apresenta mais aspectos negativos do que positivos. Cada processo é um processo e, ao apreciar o conflito de interesses nele estampado, o detentor do ofício judicante há de atuar com a maior independência possível. O homem tende à acomodação; o homem tende à generalização, especialmente quando se defronta com volume de trabalho invencível. Receio que a súmula vinculante acabe por engessar o próprio Direito.343

342 Em 27 de novembro de 2013 o Supremo Tribunal Federal iniciou os trabalhos de julgamento das quase 400 mil ações que versam sobre os Planos Econômicos (Bresser, Verão, Collor I e Collor II), com o fito de pacificar o entendimento de que os valores são devidos pelos bancos aos autores que possuíam contas poupanças no período. Isso significa que o Supremo Tribunal Federal, depois de mais de vinte anos de decisões de juízes singulares, mudou seu entendimento e a hesitação que anteriormente imperava na Corte para reconhecer que antes estavam errados, algo que não é possível com as súmulas vinculantes. 343 MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. Entrevista. In: Revista Consulex nº 10 de 31/10/1997.

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Apesar disso, há quem afirme que as mudanças proporcionadas pela revisão ou

pelo cancelamento de uma súmula vinculante interessam a todos os setores da sociedade

e, portanto, as propostas e discussões para tanto proporcionam um debate democrático

na ditadura do Supremo, o que não passa de uma falácia.

Parece-nos que as súmulas vinculantes estão engessando não apenas o sistema

jurídico como um todo ou os órgãos do Estado no exercício de suas funções, como está

afetando também a sociedade, que estará à mercê de situações diversas petrificadas em

súmulas vinculantes.

Os posicionamentos favoráveis são inúmeros e quase sempre terminam na

proposição de formas distintas de defesa das Súmulas Vinculantes, tendo em comum o

fato de que estes institutos não abalariam e muito menos se constituiriam como

problemas no ordenamento jurídico vigente e na Separação das Funções.

Os representantes da sociedade pluralista têm acesso às discussões sobre a interpretação constitucional e podem oferecer propostas e soluções que considerem adequadas para a edição, revisão ou cancelamento da súmula vinculante. Abre-se um espaço democrático de debate para a sociedade civil organizada e a esfera pública, ou seja, as deliberações a respeito das súmulas vinculantes não se restringem às partes e aos membros do STF. O esforço de todos pode produzir com mais facilidades as modificações das súmulas editadas, quando se fizer necessário procurar argumentos novos, aspectos inexplorados nos velhos argumentos, ou apontar as modificações da própria realidade social, política, cultural ou econômica344

Ao invés de propor o esforço de todos no intuito de modificar as súmulas

vinculantes, deveria, sim, propor um esforço de toda a sociedade civil no sentido de

fomentar projetos de lei que realmente tenham utilidade para o Estado brasileiro, sem

que com isso houvesse a criação de institutos que geram a usurpação de funções, como

ocorre no caso do Supremo Tribunal Federal e as Súmulas Vinculantes, de modo a se

respeitar a autonomia e a harmonia dos órgãos, já que a elaboração de leis é mais viável

e benéfica à sociedade do que a alteração de súmulas vinculantes.

Este caso, aliás, é interessante. Despertar o debate social sobre novas políticas

legais não é interessante, mas atribuir ao STF competência para otimizar as mudanças

por meio de súmulas vinculantes é algo possível, de modo que “a súmula vinculante não

se contém nos lindes de uma singela questão processual, concernente a quem seja parte

344 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 136.

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numa relação processual, mas antes se trata de um problema jurídico-político, atinente a

todo o povo brasileiro (em cujo nome o Poder é exercido – CF, art. 1º, § único)”345.

Percebemos alguns grandes problemas na pequena afirmação acima, visto que,

em primeiro lugar, procuram conferir legalidade ao fato de a súmula vinculante

ultrapassar os limites de um determinado processo e, em segundo, colocam como uma

determinação do povo brasileiro, isto porque o poder é exercido por seus representantes

(o que não significa que estes o exerçam corretamente). Certo é que o povo não deseja

ser talhado em seus direitos fundamentais por uma súmula vinculante, quando a própria

Constituição Federal de 1988 resguarda essas garantias.

Outro fato é ainda mais interessante e merece atenção: segundo a EC 45/04,

existe a possibilidade de o entendimento esposado em súmula vinculante ser alterado

mediante pedido dos legitimados para tanto, sendo regulamentado pela Lei 11.417, de

19 de dezembro de 2006, aqueles que podem propor a edição, revisão, ou cancelamento

do enunciado sumular346. As súmulas vinculantes não são declaradas inconstitucionais,

mas no máximo serão canceladas.

Ora, já vimos que o STF sozinho não é o responsável por todas as modificações

jurídicas necessárias na sociedade, precisando na verdade de todo o aparato judicial para

encontrar o melhor caminho para determinadas revisões no entendimento, o que não

seria possível com as súmulas vinculantes, que sempre engessará o sistema e não

permitirá o debate.

Não obstante, temos que mencionar o fato de que, pelo controle difuso de

constitucionalidade, um juiz singular pode afastar a incidência de determinada lei com a

declaração de inconstitucionalidade da mesma, que recairá sobre as partes daquele

processo e sem efeito erga omnes, mas não o pode fazê-lo com uma súmula vinculante. 345 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 351. 346 BRASIL. Ob. Cit. 19 de dezembro de 2006. Fonte: Planalto. Art. 3o São legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – o Procurador-Geral da República; V - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VI - o Defensor Público-Geral da União; VII – partido político com representação no Congresso Nacional; VIII – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; IX – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; X - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; XI - os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

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Não se pode olvidar que existem mudanças nas mais diversas searas da

sociedade que não surgem com meras discussões dentro de uma súmula, mas sim com a

análise do caso concreto, em que se pode argumentar e interpretar a legislação de forma

clara, não somente pelo juiz singular, que ainda tem a possibilidade do contato com as

partes envoldias no processo quando da realização de audiências, como igualmente

pelos órgãos colegiados.

É um contrassenso afirmar que uma súmula vinculante não atinge a organização

do Estado e a Tripartição de Funçoes, haja vista que a atuação do Supremo Tribunal

Federal neste campo denota a utilização de prerrogativas pertencentes ao Legislativo

para fazer valer a força normativa de suas decisões sumuladas com efeitos vinculantes.

Dentre os defensores das Súmulas Vinculantes a usurpação de função é palavra

proibida, já que não há, em momento algum, tal extrapolação, assim como não existem

impactos na Organização do Estado, muito menos abalos na Tripartição das Funções.

O fato de o Supremo Tribunal Federal extrapolar de suas funções não significa

que não há violação da Separação das Funções, muito pelo contrário. O reconhecimento

de um fato como verdadeiro não torna o outro (não há ofensa à separação das funções)

igualmente verdadeiro, de modo que ao exercer a atividade de sumular com efeitos

vinculantes as suas próprias decisões atingem sim a tripartição das funções.

As Súmulas Vinculantes, desta feita, atingem toda a organização do Estado

Brasileiro e abalam sim a Separação das Funções constitucionalmente prevista. Nesta

toada, a afirmação de que o Executivo não legisla por meio de Medida Provisória ganha

o mesmo destaque, vez que além de se constituírem como verdadeiras normas, as

mesmas podem ser transformadas em leis por decisão do Legislativo.

Na verdade, antes e além de uma vera separação de Poderes, o que, a rigor, se colhe da CF vigente é a ideia de uma distribuição de funções, ainda assim atenuada pelas mútuas interferências. Corolariamente, a independência entre os Poderes também há de ser vista com as necessárias refrações, descartada a conotação “separação em compartimentos estanques”, ideia hoje impraticável no contexto de nossa República Federativa, em que o constituinte de 1988 pretendeu instaurar uma democracia participativa, buscando agregar em torna da defesa do bem comum os Poderes constituídos e a própria sociedade civil.347

Analisando a afirmação acima, parece claro que para além de não interferir na

separação das funções, a realidade é que o constituinte “deixou em aberto” a

347 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 115.

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possibilidade de interferências porque não pretendeu uma separação de funções

estanque, mas volátil conforme a sociedade, o que é contraditório não apenas na seara

legal, como também e principalmente no desígnio de atribuições de cada órgão.

A inferência se torna, no mínimo, perigosa, sobretudo quando o autor afirma

sobre a democracia participativa. Quão democrático é não poder ingressar com uma

demanda no Judiciário porque, ao contrário do que prevê a Constituição Federal, em

que a obrigação está no cumprimento de lei (Art. 5º, II), a Súmula Vinculante impede

essa participação.

E não podemos negar, ainda, que a separação de funções no Brasil não é algo

estanque, muito pelo contrário, ou não teríamos a diferenciação entre funções típicas e

atípicas, comprovando que não são Órgãos estáticos na sociedade, mas sim que se

movimentam e se completamentam mutuamente.

Não pode passar despercebido o poder concedido à súmula vinculante pelo legislador constitucional reformador. Sublinha-se que ela extrapola a simples validade e interpretação da Constituição e das leis, alcançando também a eficácia de atos normativos. Para ficar mais claro: acresceu-se a possibilidade de (i) dispor sobre a eficácia, e; (ii) ter como objeto qualquer ato normativo, e não apenas a lei ou a Constituição. Além disso, a súmula constitucional alcança normas federais, estaduais, distritais e municipais.348

O fato de o Poder Constituinte Derivado se investir de uma faculdade conferida

somente ao Poder Constituinte Originário e, com isso, não passível no atual momento

do Estado brasileiro, somente faz aumentar a crise instalada entre os órgãos da União

que cada vez mais tentam criar mecanismos inconstitucionais para se sobrevaler em

detrimento dos demais. Nunca é demais afirmar que a Separação das Funções é uma

cláusula pétrea e por isso não facultativa de mudanças, muito embora casos como as

súmulas vinculantes e as medidas provisórias se apresentem como formas de burlar a

separação das funções em nome de interesses outros que não condizem com a realidade

da sociedade brasileira.

De uma maneira geral, os argumentos que tentam fundamentar a necessidade das

súmulas vinculantes, bem como aqueles que procuram dissociá-las da atividade

legislativa, buscam sempre distanciar a forma com que as súmulas vinculantes são

criadas da atividade legislativa em si, procedimentos estes que, sem sombra de dúvidas,

são bem distintos um do outro.

348 LIMA, Gabriel Dias. Súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2267, 15 set. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13503>.

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Se analisados deste ponto de vista, não há mesmo qualquer relação e impactos

na Organização do Estado, nem mesmo na Tripartição das Funções. Não é essa análise

superficial, contudo, que devemos realizar, mas sim focar na teleologia contida tanto na

lei fomentada pelo Legislativo, como na súmula vinculante editada pelo Supremo

Tribunal Federal, se tornando evidente que os enunciados sumulares de efeito

vinculante tem por finalidade possuir o alcance de uma lei emanada do Legislativo.

Basta verificarmos que para além das teses sobre a necessidade das súmulas

vinculantes no sistema nacional existem também aquelas que tratam sobre a

continuidade da liberdade decisória e jurisprudencial dos magistrados e tratam o

engessamento do Judiciário como um mito, numa realidade bem distante da atualidade

no direito brasileiro.

De acordo com essas teorias, a possibilidade de revisão de uma súmula

vinculante já inibe qualquer relação de engessamento das instâncias judiciárias ao

conteúdo das súmulas, o que constitui uma grande falácia, já que até a concretização da

revisão da súmula esta surtiu efeitos e continuará surtindo até sua revisão final,

atingindo causas já existentes e casos que nem mesmo serão analisados, pois colidentes

com as súmulas vinculantes ainda em vigor.

Não merece prosperar a tese de que as súmulas vinculantes implicariam em engessamento da jurisprudência, impedindo sua evolução diante dos influxos da realidade subjacente. A possibilidade de revisão e cancelamento das súmulas assegura a dinâmica da jurisprudência constitucional e permite rever suas concepções a respeito de determinado tema. Assim, é possível evitar-se a estagnação do fluxo criativo da jurisprudência, e não se obsta, pelo mesmo motivo, sua adaptação às novas emergências.349

Também, cumpre-nos indagar: o que ocorre com a coisa julgada dos casos

barrados por súmula vinculante que, posteriormente, foi revista ou mesmo declarada

sem eficácia? Não se trata de uma lei, na qual existe a possibilidade de designação dos

seus efeitos retroativos ou não, mas sim de várias decisões sumuladas. Na realidade, o

efeito normativo da súmula vinculante não a coloca com nenhuma força superior à lei.

Não há dinâmica nesta conjectura, pois, diferentemente das leis, em que o

entendimento sobre sua interpretação varia de acordo com o juiz e o local, as súmulas

349 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 135.

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vinculantes não permitem tal abertura, o que é um absurdo se pensarmos à nível do

próprio Supremo Tribunal Federal e de seus membros.

Explica-se: desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004, a

composição da Corte se modificou, seja pela aposentadoria compulsória, pelos pedidos

de aposentadoria ou pelo falecimento de seus ministros, momento em que novos

membros passaram a integrar os assentos da Casa, ministros esses que podem possuir

entendimento diverso daqueles anteriores, mas que são impedidos de manifestá-los por

existir a súmula vinculante, não expressando nos votos as questões atinentes sobre

determinados assuntos, de modo que, em certo tempo, não será mais necessário

consultar em nada o ordenamento jurídico sobre determinados pontos, eis que existe

uma Súmula Vinculante sobre o caso.

A título exemplificativo, quando da Emenda Constitucional 45/2004, apenas

três350 ministros continuam no Supremo Tribunal Federal atualmente, enquanto outros

oito já não mais fazem parte de sua composição. Quando da promulgação da primeira

súmula vinculante, em 6 de junho de 2007, após a regulamentação feita pela Lei

11.417/2006, apenas cinco ministros continuam na Corte.351

Não se pode esperar que o Supremo Tribunal Federal hoje tenha os mesmos

entendimentos externados cem anos atrás, da mesma forma que não se pode cobrar dos

ministros o mesmo posicionamento daqueles sobre os quais foram nomeados para

substituir. As súmulas vinculantes acabam gerando um impedimento com seus próprios

fomentadores, que não terão a oportunidade e nem a possibilidade de se manifestar

acerca de assuntos já engessados pelos entendimentos sumulares de ministros anteriores

que não fazem mais parte da Corte e o perigo dessa obrigatoriedade sumular atinge a

sociedade, que se petrificará em torno de decisões antiquadas e de dificil revisão, que

depende única e exclusivamente de decisão tomada por no mínimo 2/3 dos ministros

reunidos em sessão plenária, além de outras diposições contidas na Lei 11.417, de 19 de

dezembro de 2006, que não terá efeito para suspender processos em andamento cuja

aplicação da súmula esteja sendo discutido.

Ademais, torna-se evidente que o engessamento jurídico criado pela aplicação

das Súmulas Vinculantes é prejudicial para toda a sociedade brasileira, uma vez que o

350 Por ordem de antiguidade: José Celso de Mello Filho (indicado em 17 de agosto de 1989); Marco Aurélio Mendes de Farias Mello (indicado em 13 de junho de 1990); e Gilmar Ferreira Mendes (indicado em 20 de junho de 2002). 351 Além dos já citados anteriormente, incluem-se na lista: Enrique Ricardo Lewandowski (indicado em 16 de março de 2006) e Cármen Lúcia Antunes Rocha (indicada em 21 de junho de 2006).

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Judiciário, desde as instâncias inferiores até os tribunais superiores, ficará preso em

decisões cuja mutabilidade não é tão simples, isso quando existente essa possibilidade e,

mais do que isso, o interesse para que determinadas decisões sejam “revistas”.

O respeito “legal” seria, ao que se indica, não apenas às leis emanadas pelo

Legislativo, como também aos enunciados sumulados e vinculativos emitidos pelo

Supremo Tribunal Federal, modificando com isso as estruturas organizacionais do

Estado Brasileiro e incidindo diretamente na conjuntura da tripartição das funções.

Com efeito, a eficácia expandida da súmula vinculante do STF enseja que o paradigma jurídico nacional, regulador das condutas comissivas e omissivas atuais e futuras, passa a ser não apenas a norma legal, mas também os enunciados dessa súmula obrigatória. De observar que essa eficácia expandida não opera apenas no plano dos conflitos judicializados, mas impende reconhecer que as súmulas vinculantes projetam um efeito preventivo geral ao interno da coletividade, já que, por intermédio dos operadores do direito, os entendimentos assentados chegam ao conhecimento dos jurisdicionados – pessoas físicas e jurídicas – assim influenciando ou até mesmo condicionando os comportamentos.352

Não cabe ao STF a função de ser o condicionante das condutas do povo, mas

sim às leis, que agem de forma geral e não específica, como ocorrem com decisões de

casos concretos sumulados com efeito vinculante e com as sentenças num todo, já que

uma de suas características é justamente se adequar a cada caso concreto, sem ser geral

como as leis, mas aplicando as mesmas em casos específicos.353

É perigoso podar a liberdade de decisão dos magistrados, em que se estaria

criando um ambiente no qual os juízes seriam meros reprodutores de decisões já

tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, impedindo-se que a lei seja aplicada.

É um trabalho robótico que não enseja a produção jurídica, mas a rebaixa,

lembrando a gaiola de ferro de Max Weber e a burocratização do Estado em arquétipos

predeterminados e superficiais, desvintuando o real sentido da Nação Brasileira,

deturpando os preceitos da separação das funções e impossibilitando a organização do

Estado de acordo com os desígnios legais necessários, impactando ao final numa

sociedade moldada conforme as súmulas vinculantes, não mais sendo ela o refratário da

352 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 355-6. 353 Sobre essa discussão, acreditam os defensores das Sùmulas Vinculantes que “em substância, norma legal e súmula vinculativa têm aptidão para balizar condutas em modo impositivo” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 356). Nos faz crer, assim, que estando as partes envolvidas ou não no processo judicial, tanto as leis, como as súmulas vinculantes podem recair sobre os cidadãos e alterar suas condutas, embora própria Constituição vede outra forma que não a lei com tal poder.

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fomentação legal. As nossas universidades estão formando simples operadores do

direito, não mais juristas como antigamente.

Os teóricos da conspiração que pregam a possibilidade de liberdade do

magistrado afirmam que sempre restaria observar as súmulas vinculantes. Traduzindo:

não precisa observar a lei para aplicabilidade ao caso concreto, mas sim as súmulas

vinculantes, porque estas sim encontram-se mais de acordo com as necessidades

jurídicas do caso em apreço, ignorando-se, com isso, a lei.

Não há que se falar em cerceamento da independência do juiz em razão da súmula vinculante. Ao magistrado sempre restaria a possibilidade de avaliação quanto ao conteúdo da súmula e dos precedentes originários, aquando da sua aplicação ou não a um determinado caso concreto.354

Mudanças no entendimento somente serão possíveis na existência da avaliação,

o que não ocorre pelas súmulas vinculantes. Ainda que a doutrina fundamente e

estruture teses, o entendimento (e sua mudança) caberá sempre ao Judiciário, que por

questões de impedimentos técnicos e não legais, ficará em silêncio, preferindo manter a

vinculação sumular, ainda que com ela venha o engessamento do Estado.

Essa discussão é válida, tendo em vista que o efeito vinculativo interfere e se

constitui como um problema na organização política e geral da sociedade, causando

impactos no Estado e na Tripartição das Funções, ainda que para alguns o verdadeiro

problema esteja no uso arbitrário das súmulas vinculantes, pois caso contrário elas até

poderiam ser benéficas na atual conjuntura, o que refutamos veementemente.355

Certo é que um dos princípios centrais da República Brasileira é a igualdade

perante a lei. Mas a questão é saber que deve ser a lei a responsável por assegurar essa

igualdade e não uma Súmula Vinculante. Ao se considerar que é a decisão vinculativa a

forma correta de se assegurar a igualdade perante a lei, estaremos diante da insegurança 354 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 136. 355 Neste sentido: “Assim como a divergência jurisprudencial, em si mesma, não configura um verdadeiro problema, porque até certo grau ela é compreensível, e, preenchidos certos quesitos, ela pode ser prevenida ou então superada, assim também o efeito vinculativo das Súmulas, em si mesmo, não constitui um verdadeiro problema: a uma, não faz sentido sumular, se não é para uniformizar, e não faz sentido uniformizar, se é para o enunciado operar com uma simples força persuasiva; a duas, é notório que o direito brasileiro vem apresentando uma notória tendência à potencialização da eficácia da jurisprudência predominante, mormente daquela sumulada, num forte indicativo, portanto, de que a garantia de igualdade de todos perante a lei deve ser preservada, também, quando a lei atua em concreto, para dirimir a lide submetida ao Judiciário. Portanto, o que se pode temer é o uso desvirtuado, injustificado ou até mesmo arbitrário que porventura se faça da Súmula vinculativa, e não próprio instituto, em si mesmo considerado”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 122).

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jurídica, uma vez que a súmula vinculante estaria sendo utilizada em desconsonância

com a lei e criando atritos com o ordenamento que visa proteger.

Conluimos, portanto, que as súmulas vinculantes causam um impacto negativo

tanto na organização do Estado, como na separação tripartite das funções, atingindo

diretamente a sociedade e impedindo o desenvolvimento jurídico de acordo com os

fatos sociais, interferindo e engessando os desígnios do Estado, do exercício funcional

dos seus órgãos e prejudicando os movimentos da sociedade como um todo.

3.6 USURPAÇÃO DE FUNÇÕES TÍPICAS: UM PROBLEMA (IN)CONSTITUCIONAL

Depois de todo o abordado acerca da formação e construção do Brasil, bem

como de sua inserção e configuração enquanto Estado Democrático e Social de Direito,

cabe agora tratar especificamente de importante tema sobre a organização do Estado e

suas reverberações gerais na sociedade.

Sabemos que as Súmulas Vinculantes foram inseridas no ordenamento jurídico

pátrio por meio da EC 45/04, contudo, não podemos deixar de considerar outras e novas

formas de interferências nas funções constitucionalmente estabelecida dos órgãos.

Contudo, as súmulas vinculantes não se constituem como modelo único de

usurpação de função de um dos órgãos nas prerrogativas típicas dos demais. É, na

realidade, mais uma forma legalmente existente que propicia esse abuso, de modo que

ainda nos falta analisar alguns outros pontos gerais para compreensão do todo acerca

das interferências entre os órgãos constitucionais.

Igualmente existente já há algumas décadas no ordenamento brasileiro, as

Medidas Provisórias provenientes do Executivo, vindo a substituir os famigerados

Decretos-Leis, que durante anos ditaram os rumos e a legalidade do país em detrimento

da legislação, sendo característica marcante da já estudada Era Vargas (1930-1945).

Apesar da mudança da nomenclatura, temos que as Medidas Provisórias

permanecem com a mesma ideia, se constituindo como uma prerrogativa única e

exclusiva do Presidente da República em casos de relevância e urgência, conforme

predispõe o próprio texto constitucional.356

356 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

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Sua eficácia, porém, não se prolongará até que outra Medida à revogue,

extinguindo-se no tempo-espaço em sessenta dias, prorrogáveis por igual período, caso

o Congresso Nacional não a converta em lei, perdendo sua eficácia, mas não

prejudicando os atos e as relações jurídicas fundadas com base em suas determinações.

A medida provisória foi talhada pelo constituinte segundo o modelo italiano dos decretos-leis, adotados em casos extraordinários de necessidade e urgência, devendo ser, imediatamente, comunicados ao parlamento, que é convocado se não estiver reunido. O decreto-lei perde efeito se não convertido em lei no prazo de sessenta dias da sua publicação. Admite-se, nesse caso, que a Câmara possa regular, por lei, as relações jurídicas surgidas com base no decreto não convertido em lei.357

Interessante notarmos que, diferentemente das súmulas vinculantes, que

possuem força normativa, pelas disposições constitucionais as Medidas Provisórias

possuem força de lei e se revestem desse império como se realmente fossem atos

praticados e editados pelo Legislativo em sua função típica.

Se consideramos e com razão como um gravíssimo problema a força normativa

das súmulas vinculantes, a força de lei da medida provisória é da mesma forma danosa

às estruturas do sistema brasileiro.

Por essa característica, inclusive, encontramos as justificativas para a supremacia

do executivo sobre os demais, como o foi durante a Era Vargas e como sempre será

assim considerado enquanto os atos possuírem força de lei numa ditadura

constitucional, conforme já demonstrou Giorgio Agamben358, principalmente porque o

binômio de “casos relevantes e urgência” é totalmente subjetivo e discricionário.

O alcance da força de lei das Medidas Provisórias, ainda que consideradas

resolutivas quando não convertidas em lei pelo Congresso Nacional, abalam a

Tripartição das Funções e o Estado da mesma maneira que as Súmulas Vinculantes com

seus enunciados com força normativa.

357 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 925 358 O filósofo italiano, ao considerar o estado de exceção, assim descreveu os atos com força-de-lei em uma ditadura constitucional, como o nazismo defendido por Carl Schmitt: “É determinante que, em sentido técnico, o sintagma ‘força de lei’ se refira, tanto na doutrina moderna quanto na antiga, não à lei, mas àqueles decretos - que tem justamente, como se diz, força de lei - que o poder executivo pode, em alguns casos - particularmente, no estado de exceção - promulgar. O conceito ‘força-de-lei’, enquanto termo técnico do direito, define, pois, uma separação entre a vis obligandi ou a aplicabilidade da norma e sua essência formal, pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua ‘força’”. (AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 60).

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São duas formas existentes e em vigor no Ordenamento Jurídico brasileiro que

atingem o sistema legal adotado, posto que a incidência de atos de caráter normativo por

parte do Judiciário e legal por parte do Executivo não guardam sintonia com o princípio

da independência e harmonia dos órgãos do Estado.

Não bastasse isso, o Legislativo procura também alguma forma de inserir no

texto constitucional modificações que lhe permitam sobrepujar e atingir as

competências típicas dos demais órgãos. É a conclusão a que chegamos pela análise da

PEC 3/2011, de autoria do Deputado Federal Nazareno Fonteles, do Partido dos

Trabalhadores do Piauí (PT/PI), apensada à PEC 171/2012, de autoria Deputado Federal

Mendonça Filho, do Partido Democratas de Pernambuco (DEM/PE), tendo por

fundamento o mesmo alvitre de modificação do Art. 49, V, da Constituição Federal359.

A previsão constitucional faz referência a um meio que pode ser considerado

como integrante do sistema de freios e contrapesos contido no ordenamento jurídico

brasileiro, vez que permite ao Congresso Nacional cassar atos arbitrários do Executivo

quando extrapolarem seus limites.

É fato que tal norma constitucional tem como pressuposto justamente impedir

que o Executivo, por meio de atos administrativos, ultrapasse os limites de seu poder e

acabe por legislar, de modo a proteger o Pacto Federativo e a autonomia e

independência do Legislativo face o Executivo.

Contudo, as propostas encaminhadas à Mesa da Câmara dos Deputados possuem

redação que ampliam tais prerrogativas, de modo a deixar extensiva as funções

desempenhadas por esses órgãos e, por evidência, invadindo a seara de outros órgãos e

instituições da administração pública, tomando para o Congresso Nacional prerrogativas

que estão além de suas competências.

Em ambas as Propostas de Emendas Constitucionais percebemos a tentativa de

modificar o texto constitucional e aumentar o alcance dos atos do Legislativo. Enquanto

a PEC 3/2011 procura acrescentar a sustação dos atos normativos dos “outros

poderes”360, a PEC 171/2012 entende por bem que a sustação deve alcançar os atos do

359 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; 360 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Emenda Constitucional nº 3, de 10 de fevereiro de 2011. Autoria de Nazareno Fontales (PT/PI). Fonte: Câmara dos Deputados.

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“poder público”361, em clara afronta aos princípios insculpidos e velados na

Constituição Federal.

Chega-se até mesmo a alegarem uma lacuna legal para que o Legislativo possa

cassar atos praticados pelo Judiciário, ou seja, corre-se o risco de as sentenças deixarem

de fazer a coisa julgada e o ato jurídico perfeito, já que poderá ser cassada pelo

Legislativo caso este órgão assim entenda.

Como, na prática, o Poder Legislativo (Congresso Nacional) poderá cumprir de forma plena o mandamento constitucional descrito no inciso XI, do art. 49, em relação ao Poder Judiciário? No nosso entendimento, há uma lacuna no inciso V, do art. 49, levando a uma desigualdade nas relações do Poder Legislativo com os outros Poderes, isto é: atualmente, o Poder Legislativo pode sustar atos do Poder Executivo, mas não pode fazer o mesmo em relação aos atos do Poder Judiciário. Esta Emenda visa, pois, preencher essa lacuna e corrigir essa desigualdade, contribuindo assim para o equilíbrio entre os três Poderes. [...] Nada mais razoável que o Congresso Nacional passe também a poder sustar atos normativos viciados emanados do Poder Judiciário, como já o faz em relação ao Poder Executivo. Com isso estaremos garantindo de modo mais completo a independência e harmonia dos Poderes, conforme previsto no art. 2º da CF. [...] A inscrição, nas constituições, de regras claras sobre o funcionamento harmônico e independente dos poderes fortalece o regime democrático, evitando que ocorram, com frequência, conflitos de competência entre os mesmos e o consequente desgaste de suas imagens perante a opinião pública.362

A justificativa para a alteração no texto constitucional está fundamentada no fato

de que o Legislativo deve zelar pela competência de sua função legislativa, disposto no

próprio Art. 49, XI, da Carta Magna, o que não significa, em momento algum, interferir

na independência desses, de modo que “o Deputado Fonteles busca ‘constitucionalizar’

um controle preventivo que já é feito pelas comissões de constituição e justiça da

Câmara e do Senado, durante o processo Legislativo”.363

Entretanto, é importante mencionar que o fato de um ato praticado por

determinado órgão para impedir os excessos e abusos do outro, configurando o sistema

de freios e contrapesos, não significa, necessariamente, que o mesmo ato deva ser

voltado aos demais. No caso em tela, sustar uma decisão do Executivo tem como intuito

361 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Emenda Constitucional nº 171, de 16 de maio de 2012. Autoria de Mendonça Filho (DEM/PE). Fonte: Câmara dos Deputados. 362 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Ob. Cit. Autoria de Nazareno Fontales (PT/PI). Fonte: Câmara dos Deputados. 363 BISSOLI, Norian. A Inconstitucionalidade da PEC nº 3/2011. In: JurisWay. 2011. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=6248>. Acesso em: 14/01/2014.

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impedir que Medidas Provisórias se tornem arcabouços da legalidade do país, não se

podendo dizer isso das decisões judiciais, por possuírem outra carga valorativa.

As PEC’s tentam estabelecer, pautadas na harmonia e independência dos órgãos,

as bases para alterar o texto da Constituição e prever que o Congresso Nacional possa

suspender quaisquer atos do Poder Público, o que por certo atinge a Tripartição das

Funções no lugar de preservá-la.

Apesar disso, a defesa sobre a não interferência e usurpação de funções é

realizada tendo como finalidade a aprovação das propostas. A possibilidade de que uma

decisão judicial poderá ser cassada por ordem do Legislativo é totalmente impensável e

não apenas porque interfere nas funções de cada órgão, mas porque toda a segurança

jurídica que se espera da mesma não mais existiria.

Conforme está disciplinada no art. 2º da Constituição Federal, a compreensão da independência de um poder deve ser acompanhada de equilíbrio e de harmonia entre os poderes. Destarte, um Estado Democrático de Direito somente pode existir se cada poder agir estritamente no seu âmbito de atuação, não interferindo nas competências constitucionais e infraconstitucionais conferidas a outro poder. [...] Ressalte-se que a proposta não fere o princípio da separação dos poderes, vez que o que se pretende não é estabelecer uma ingerência desmedida na atividade típica (preponderante) dos demais poderes, e sim permitir que o Congresso Nacional exerça sua função de zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes, conforme determina a Constituição Federal em seu art. 49, XI. Além disso, conforme foi explanado, já existe a possibilidade de o Poder Legislativo sustar atos do Poder Executivo, não sendo mais do que razoável a mesma premissa para os demais poderes.364

Ao se afirmar que os órgãos devem agir estritamente no âmbito de sua atuação,

acaba por se refutar a própria disposição Constitucional de que existem funções típicas e

atípicas, em que cada órgão ao exercê-las fará com que o sistema de freios e contrapesos

funcione, ou seja, sem as funções atípicas conferidas pela Carta Constitucional, se

somente existissem as funções típicas, não haveria o sistema de freios e contrapesos.

Não existe neste caso a vigilância recíproca ensejada pelo texto legal, já que

falamos de um único órgão, o Legislativo, que poderá ter prerrogativas maiores do que

os concedidos ao próprio Judiciário que deve observar o devido processo legal para

rever decisões tomadas em instâncias inferiores, para não caracterizar a supressão de

instância e se respeitar o princípio do duplo grau de jurisdição.

364 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Ob. Cit. Autoria de Mendonça Filho (DEM/PE). Fonte: Câmara dos Deputados.

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A pretensa vigilância e fiscalização para impedir que um órgão viole os limites

impostos constitucionalmente já é uma violação constitucional, por tentar conceder ao

Legislativo que reveja, sem qualquer critério, as decisões do Judiciário, que dependem

de uma série de outras questões legais, para além dos princípios constitucionais atuais.

Da mesma forma que as Súmulas Vinculantes e as Medidas Provisórias abalam a

ordem vigente que paira sobre a Tripartição das Funções, as propostas de alteração da

competência do Congresso Nacional não estão de acordo com o sistema de freios e

contrapesos, muito pelo contrário, criaria uma situação em que o Legislativo poderia

cassar atos administrativos do Executivo e até mesmo decisões judiciais, sendo que cabe

ao Judiciário a última ratio nos casos de julgamentos.

Verificando as três formas acima tratadas, somente podemos concluir pela

inconstitucionalidade desses institutos no ordenamento jurídico pátrio. Ainda que as

Medidas Provisórias tenham sido inseridas pelo Poder Constituinte Originário, certo é

que a sua existência na letra da lei e os efeitos causados pela sua edição atingem

cláusulas pétreas, dentre elas a Tripartição das Funções.

Assim como as Medidas Provisórias e as PEC’s que preveem o Controle do

Legislativo sobre os atos públicos, as Súmulas Vinculantes infringem dispositivos legais

e procedimentais da Constituição Federal de 1988, revelando como este instituto não

encontra respaldo legal na sua criação e execução na sociedade, atingindo diretamente a

ordem vigente, o Estado de Direito e a segurança jurídica, causando abalos na sociedade

e na harmonização e independência dos Órgãos da União.

Verifica-se, portanto, a incidência da inconstitucionalidade material, que ocorre

justamente quando o conteúdo de uma norma, total ou em parte, contraria os ditames

constitucionais. Esse vício é insanável, visto que não há como solucioná-lo a não ser

com a retirada do Ordenamento Jurídico do texto normativo que se encontra em conflito

com a Constituição.

Conforme exposto acima, encontramos problemas nos dois institutos já

existentes e naquele que, até o momento, ainda é caracterizado como um projeto.

Embora as Medidas Provisórias se constituírem como regra esposada pelo Poder

Constituinte Originário, por óbvio que sua disposição e alcance contrariam dispositivos

legais constitucionais, além de influir diretamente na Separação das Funções. O mesmo

pode ser dito do Controle Legislativo sobre os atos públicos já que, mesmo estando por

enquanto somente nas Propostas de Emendas Constitucionais, procura-se por ele dar

legalidade a um ato claramente inconstitucional.

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Quanto às Súmulas Vinculantes, o assunto aparece controvertido na doutrina

brasileira, mas percebemos que também o papel desempenhado pelas Súmulas

Vinculantes vai muito além da compreensão e do entendimento sobre seu alcance, já

que todos os argumentos utilizados quando da sua criação pela Lei 11.417/2006, após a

aprovação da Emenda Constitucional 45/04, caem por terra ao analisar como a estrutura

do Judiciário se encontra e como todas as dificuldades continuam a persistir e a

aumentar, comprovadas pelos dados constantemente divulgados nos Relatórios do

Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Sob a luz dessas concretas informações, o princípio da independência do juiz

natural e do direito ao devido processo legal ficam ameaçados. A grande quantidade de

processos parados, sem soluções e que aguardam uma definição judicial demonstram

exatamente o que a analise já evidenciou: a criação das Súmulas Vinculantes, em

momento algum, auxiliou na prestação dos serviços judiciais, atravancando processos,

petrificando o entendimento e findando com a liberdade jurisprudencial dos juízes.

Tudo isso sem considerar o fato de que o direito não mais parte do pressuposto

de especificidade de cada caso, muito menos contribui na rápida solução do problema.

Ambas as questões tornaram-se secundárias, já que a simplificação em uma decisão

petrificada retirou toda a juridicidade não somente dos processos, analisados a partir de

então com o mesmo viés, mas de todo o Judiciário, que teve de se curvar às decisões e

entendimentos já consagrados e petrificados das Súmulas Vinculantes.

A discussão sobre a constitucionalidade de atos que extrapolam e interferem nos

demais órgãos do Estado é tão atual que não podemos deixar de citar como exemplo o

direito português, em que os assentos foram considerados inconstitucionais, de modo

que atualmente a discussão encontra-se em torno da força vinculativa ou não dos

acórdãos de uniformização do Supremo Tribunal de Justiça.

O que se discute atualmente em Portugal é se esses acórdãos de uniformização do Supremo Tribunal de Justiça têm ou não força vinculativa para os demais tribunais. Há os que defendem o seu caráter vinculativo para as instâncias e para o próprio STJ, enquanto este não alterar a sua jurisprudência. Uma outra corrente, claramente majoritária, é no sentido de que essa jurisprudência não seria vinculativa, mas apenas serviria de orientação para outros tribunais.365

Como se viu, em Portugal a doutrina majoritária o considera inconstitucional

simplesmente por conta da legiferação promovida pelo Judiciário. Nas palavras do 365 SIFUENTES, Mônica Jacqueline. A Extinção da Súmula Vinculante no Direito Português. Disponível em: <mhtml:file://U\_transporte\Informativo Jurídico.mht>. Acesso em 15/04/2015.

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ilustre Professor José Joaquim Gomes Canotilho, “os assentos autenticamente

interpretativos das normas legais são hoje inconstitucionais porque são verdadeira

Legislativo, violando o princípio da tipicidade das leis (art. 115/5)”.366

Todos estes levantamentos, entretanto, já não se mostram como obstáculos ao

STF. A partir do momento em que se entendeu que as decisões vinculadas das Ações

Declaratórias de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade pudessem servir como

entendimento para casos análogos, todo o Judiciário foi abalado. Isso porque, dentro das

questões de discussão judicial, não haveria espaço para dúvidas ou questionamentos

pertinentes aos casos, que somente são possíveis de serem verificados quando

analisados em suas especificidades.

Essa afirmação é de total importância para a real compreensão do impacto

negativo causado por estes modelos de usurpação de funções e em especial pelas

Súmulas Vinculantes: quando se entendeu que estas são constitucionais no ordenamento

jurídico brasileiro, todas as instâncias do Judiciário passaram a ficar dependentes não

somente dos Princípios Constitucionais, mas também de ordens normativas com

prerrogativas excepcionais, ou seja, além da observância Constitucional e de todos os

ordenamentos existentes no Brasil, o Judiciário passou a ficar atrelado às decisões do

STF, não como jurisprudências para clarear e nortear o juiz em suas ideias ou a defender

e sustentar uma tese, mas como norma decisiva para a consecução da sentença e

continuidade (ou não) do processo.

Há uma evidente violação ao Judiciário como um todo, visto que se fere a

liberdade jurisdicional do magistrado e ainda o Princípio Constitucional da Tripartição

das Funções, ao passo que o Judiciário sai de suas funções típicas, interferindo de

maneira direta no Legislativo.

Além do mais, muitos doutrinadores alegam que não somente os magistrados,

mas também as partes terão previsibilidade no resultado do litígio ou do processo e,

desta forma, evitariam movimentar o Judiciário com suas demandas ou com a

interposição de recursos, pois já saberiam se suas pretensões seriam alcançadas ou não,

ferindo o princípio constitucional de livre alcance da justiça por todos os cidadãos

brasileiros, conforme constantes no Art. 5º, incisos LXXIII, LXXIV e LXXV.367

366 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Editora Almedina, 1991, pp. 1012-3. 367 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto.

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O que devemos ter em mente é que o magistrado pode ficar diante de um caso

concreto que o faça se deparar com uma nova teoria que mude sua convicção, sem

contar que cada caso carrega em si uma forma peculiar, sendo extremamente difícil,

quiçá impossível, que todos os processos contenham as mesmas características

individualizadoras.

Não obstante, há quem sustente que as súmulas vinculantes não causam

prejuízos na atuação dos magistrados, muito pelo contrário, servem para agir com

coerência, ou seja, os casos análogos devem ser encarados e julgados da mesma

maneira. Segundo John P. Dawson, apud Rodolfo de Camargo Mancuso:

A compulsão para que o precedente seja respeitado e seguido é, na sua essência, um meio de limitação de poder. Significa que uma Corte não pode julgar um caso obedecendo à tendência do momento, sem primeiramente agir em coerência com as decisões judiciais que antecederam aquele caso. Assim, pois, uma decisão do passado, cujas razões foram expostas, deve ser aplicada a casos similares e futuros onde caibam as mesmas razões, e somente novas e persuasivas razões poderão ditar uma decisão que não seja similar as decisões antecedentes. Parece-nos ser este um meio de evitar arbitrariedades, que deve ser um dos principais objetivos de todo o sistema jurídico.368

As “novas e persuasivas razões” ensejadas no texto acima somente poderão

ocorrer partindo-se do pressuposto de que o caso concreto será fielmente analisado pelo

juiz de primeira instância. Contudo, antes mesmo da propositura da ação judicial, o

advogado já será induzido de que não conseguirá atingir o fim desejado, uma vez que a

existência de Súmula Vinculante inibe a continuação do processo.

As “arbitrariedades”, também sustentadas na afirmação de John P. Dawson é,

senão outra coisa, que o juiz decida diferente do entendimento dos Tribunais

Superiores. Isso sim, diante do entendimento constitucional, é uma arbitrariedade, uma

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro Judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença; 368 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2010, p. 361.

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vez que a suposta liberdade de interpretação do caso concreto ficaria atrelada a uma

Súmula com força vinculante.

Evitam-se arbitrariedades impedindo que o STF comprometa por seus atos todo

o sistema jurídico nacional e não vinculando a decisão de um magistrado a enunciados

sumulados com força normativa. Diante disso, o engessamento do Judiciário é um dos

problemas mais graves causados pela incidência da súmula vinculante.

Adotar o instituto em estudo é afrontar de forma cristalina o princípio do livre convencimento do magistrado, assim como todos aqueles resultantes e ensejadores dele, pois a obrigatoriedade da decisão do juiz ser prolatada segundo decisões previamente colacionadas pelo STF torna inútil a figura dos jurisdicionados, das provas e da própria pretensão reclamada, tendo em vista já haver resposta pré-concebida ao direito suscitado.369

É importante frisarmos que o Juiz de primeira instância é o único que possui

contato com as partes, que tem possibilidade de instruir a fase probatória e, assim,

possui o conhecimento necessário para efetuar um bom julgamento, podendo adequar as

leis ao caso concreto. Também, a súmula vinculante acaba com a liberdade de

interpretação, tornando impossível novas concepções jurídicas, afetando o ideal de

justiça, do qual o magistrado deve estar imbuído.

A partir da vigência das Súmulas Vinculantes no ordenamento jurídico

brasileiro, o principio da legalidade, que é um dos auspícios basilares do direito

nacional, passa a ser equivocado já que, como afirma Aymoré Roque Pottes de Mello,

apud Rodolfo de Camargo Mancuso: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei ou de súmula vinculante”370, configurando uma

afronta ao princípio constitucional de liberdade legal.

O maior problema na inconstitucionalidade das Súmulas Vinculantes encontra-se

ainda no fato de incidir diretamente nos princípios constitucionais da Separação das

Funções e do Federalismo, atingindo completamente não somente o Judiciário e a

Administração Pública Direta e Indireta, como também o Legislativo.

Se consideramos acertadamente que as jurisprudências dos tribunais pátrios no

geral orientam e influenciam a atividade legislativa, como não esperar o mesmo

resultado das súmulas vinculantes, que não somente mostram o caminho, mas o fazem

de maneira obrigatória, sem que o Legislativo saía desse ponto? 369 CARVALHO, Isabella Rodrigues Rocha de. A súmula vinculante em face ao princípio do livre convencimento do juiz. 2008. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 13/01/2014. 370 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2010, p. 350.

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4. A FILOSOFIA POLÍTICA BRASILEIRA E AS SÚMULAS VINCULANTES

Ao longo de todas as laudas até aqui escritas estudamos dois pontos centrais da

tese, pautando-se inicialmente na contextualização filosófica e política dos institutos da

Teoria Geral do Estado, com ênfase na conceituação ocidental desde a Antiguidade

Clássica até a Contemporaneidade, bem como nos institutos jurídicos que ao longo da

história se colocaram como decisões vinculativas do Judiciário.

A organização do Estado é preponderante para se compreender todas as

transformações estruturais pelas quais a sociedade ocidental passou desde os

primórdios, contando desde seu desenvolvimento na Pólis ateniense até a afluência do

Império Romano, sua dissolução e a paulatina formação dos Estados.

Em cada um desses estágios históricos muitas nuances foram consideradas para

a fomentação de uma teoria na qual grande parte das Nações ocidentais lastrearam sua

forma de governo, sua filosofia política, econômica e cultural.

O que queremos dizer aqui é que nenhum evento acontece isoladamente no

mundo e, de uma forma ou de outra, às vezes de maneira intensa e outras nem tanto,

acabam gerando influências das mais diversas. É uma relação de causa-efeito que

somente comprova a interligação entre os seres humanos.

Quando reconhecemos que nenhum evento age isoladamente, temos que o ser

humano, enquanto ser racional e dotado de sua própria razão, é capaz de alcançar por

meio de seu intelecto as mais complexas e fascinantes teorias capazes de explicar não

somente o seu contexto histórico, mas propiciar também discussões que vão além do

seu tempo e alcançam, séculos depois, importância tamanha que, por vezes, não

alcançou quando de sua constituição.

Surge, então, um importante questionamento: existe alguma relação entre a

filosofia política até então estudada e as súmulas vinculantes existentes no ordenamento

jurídico brasileiro e previstas a partir da Emenda Constitucional nº 45/04?

A filosofia política encontrou no Brasil certas restrições e barreiras, sobretudo

pelas características existentes na colônia quando de sua povoação (leia-se exploração)

pela Metrópole Portuguesa.

Antes de adentrarmos na essência dessa política filosófica e sua incidência na

atualidade, de suma importância verificar como se deu esta (má)formação ao longo da

história brasileira, numa condição totalmente “sui generis”.

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São muitos autores e pensadores que trabalharam esta formação ideológica e

todo o caminho que foi percorrido neste tempo, devido às muitas influências dos

diversos tipos de gentes que aqui se estabeleceram, inclusive (e sobretudo) dos

portugueses e sua total displicência com a própria ideologia portuguesa.

Quando muito, o Brasil seguiu no período colonial com alguns pontos

preponderantes de manutenção estatal advindas da Metrópole, principalmente quanto à

burocratização dos aparatos da administração, muito bem apreendidos e aprimorados

pelos brasileiros, tanto que se tornaram característica na atualidade pelo engessamento

das instituições e das classes dominantes.

Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e tudo predisposta a manter o povo gemendo e produzindo.371

A vida em sociedade seguia exatamente essa burocratização e estratificação

social e aqueles que se encontravam no poder, estando ou não atrelados ao governo, ou

sendo os grandes latifundiários e coronéis encaminhavam seus filhos para estudar na

Metrópole e, quando voltavam, assumiam diretamente cargos no governo, a fim de

manter o continuísmo político, social e jurídico.

E mesmo depois da instalação dos primeiros cursos de ensino superior no Brasil,

com as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda (depois realocada para Recife),

em 1827, os filhos desses coronéis continuavam a viajar para Coimbra com o intuito de

continuar aprendendo as “artimanhas estatais”.

As primeiras faculdades de direito, inspiradas em pressupostos formais de modelos alienígenas (particularmente das diretrizes e estatutos de Coimbra), contribuíram para elaborar um pensamento jurídico ilustrado, cosmopolita e literário, bem distante dos anseios de uma sociedade agrária da qual grande parte da população encontrava-se excluída e marginalizada. Essas duas escolas (Recife e São Paulo) foram importantes por exercer como redutos encarregados de formar atores jurídicos e influenciar estratégias estruturadoras do Estado-Nação brasileiro.372

As novas teorias, porém, chegavam e muitas vezes batiam no conservadorismo e

no jogo de interesses, muito mais importantes que qualquer outra filosofia existente. A

influência desses institutos, contudo, é patente, assim como o “abrasileiramento” de

371 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2ª reimpressão, 2007, p. 62. 372 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 85.

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muitas dessas filosofias, adequadas às “necessidades” brasileiras porque na realidade,

serviam às necessidades da classe dominante e visavam apenas seus interesses e nunca o

da coletividade.

Nesta fase, em que o liberalismo tentou despontar no Brasil, o choque de

realidades entre o ambiente encontrado na Europa e aquele encontrado no além-mar,

demonstra como a dificuldade de se expandir de acordo com os princípios estabelecidos

para sua existência, ao invés de ser um impeditivo, na realidade, funcionou como uma

segunda saída, na qual os novos axiomas encontraram outro campo para se manifestar.

O que sobretudo importa ter em vista é esta clara distinção entre o liberalismo europeu, como ideologia revolucionária articulada por novos setores emergentes e forjados na luta contra os privilégios da nobreza, e o liberalismo brasileiro canalizado e adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários de terra e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial. [...] No Brasil, o liberalismo expressaria a necessidade de reordenação do poder nacional e a dominação das elites agrárias, processo esse marcado pela ambigüidade de junção de formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico, ou seja, a discrepante dicotomia que iria perdurar ao longo de toda a tradição republicana: a retórica liberal sob a dominação oligárquica, o conteúdo conservador sob a aparência de formas democráticas. Exemplo disso é a paradoxal conciliação “liberalismo-escravidão”.373

Basta lembrarmos dois pontos interessantes que dizem muito mais sobre esse

“aproveitamento” das teorias europeias no Estado Brasileiro, ainda mais quando da fuga

da Família Real, em 1808, e todos os desenrolares a partir de então, proporcionado à ex-

Colônia se inserir globalmente numa condição única.

Sabemos que, embora a Revolução Francesa tenha colocado fim no absolutismo

francês e feito ascender ao poder a burguesia, em Portugal as coisas permaneceram as

mesmas e, quando a Família Real deixa a Metrópole por conta das invasões

napoleônicas, se dirigindo à Colônia, automaticamente se tem a transferência do Estado

Português ao Brasil, figurado pelo Rei João VI. Posteriormente, entre 1815 e 1822 (até a

independência), ainda, houve a elevação do país à categoria de Reino Unido de

Portugal, Brasil e Algarves.

Com o retorno da Família Real à Portugal e a independência do Brasil, o

caminho natural a se trilhar seria a constituição de um país dominado não atrelado (ao

menos na teoria) com seu antigo dominador. Na verdade, o que houve foi o repasse do

373 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, pp. 79-80.

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bastão de João VI à seu filho Pedro I, permanecendo o poder nas mãos da Família Real,

mesmo com o país independente (novamente, teoricamente falando).

O Império (1822-1889) trouxe outra “inovação” filosófica brasileira advinda do

Velho Continente. Se Montesquieu estabeleceu os sistemas da Tripartição das Funções

e de freios e contrapesos, no Brasil a ideia de Três Funções foi igualmente

implementada, mas, como vimos antes, com um adendo, sendo eles chancelados pelo

Poder Moderador do Imperador, responsável também por frear o Legislativo e o

Executivo, sem ter, contudo, um contrapeso (muito menos um freio) para si próprio (e

para o Executivo, exercido também pelo Imperador).

Não houve mudanças significativas após o regresso de Pedro I pra Portugal e

início do período regencial (1831-1840), no qual a figura do Poder Moderador persisitiu

e com o Golpe da Maioridade, quando Pedro II teve sua maioridade decretada aos

catorze anos e se tornou oficialmente Imperador do Brasil, o instituto permanceu

intocável, assim como suas prerrogativas.

O próprio liberalismo esbarrou inúmeras vezes durante o início da República

neste conservadorismo, que impedia o desenvolvimento político, social e até mesmo

econômico. Vide que, diferentemente do ocorrido na França quando da Revolução

Francesa, a burguesia brasileira só passa a se formar, de maneira muito tardia, na

segunda metade do Século XX.

Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido.374

Interessante notar que até mesmo o liberalismo não foi amplamente aceito,

mesmo que para os interesses particulares daqueles que estavam no poder tal teoria

pudesse impulsionar essas vontades, o modelo liberal não emplacou no Brasil.

É sempre importante destacar que os movimentos ideológicos brasileiros que

inspiravam mudanças nas estruturas do país sempre se manifestaram de forma contrária

374 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 160.

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ao esperado, isto é, partiam daqueles que estavam no poder e eram impostos àqueles que

se encontravam abaixo destes.

É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase sempre de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade.375

Sérgio Buarque de Holanda nos dá uma visão clara e privilegiada sobre o que foi

a transmutação dos preceitos ideológicos da Europa para o Brasil: conceitos prontos e

acabados que eram colocados à disposição da classe dominante para, com isso, manter-

se no poder. Ainda que tais preceitos contivessem disposições contrárias até mesmo ao

que essas classes propunham seguir no Brasil (como o caso do liberalismo), conseguiam

de alguma forma incorporar essas novas ideias e abarcá-las aos seus interesses.376

Ao analisarmos estas constatações sobre os impactos das teorias alienígenas no

Brasil, percebemos o quão difícil poderia ser, pela própria estrutura das organizações

políticas, sociais e econômicas brasileiras, que estas teorias pudessem de alguma forma

ter a mesma incidência do que na Europa.

Isso não significa, entretanto, que esses conceitos não influenciaram a formação

ideológica brasileira. Independente da Nação estudada (no ocidente a regra é geral), as

ideias essenciais de Aristóteles, Locke e Montesquieu (assim como de outros, como

Maquiavel, Hobbes e Rousseau) são encontradas na constituição dos Estados e por

constituição não devemos entender somente a Lei Maior de uma nação, mas assim como

verificamos em Aristóteles, significa tudo aquilo que forma o Estado.

Iniciando pelo modelo aristotélico, percebe-se que a insurgência dos ideais

brasileiros (e também dos portugueses ao longo do período colonial) em momento

algum procuraram (e se preocuparam) em constituir-se primando pelo bem comum que,

na realidade, inicialmente estava voltado à Família Real, posteriormente ao Imperador e,

375 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 160. 376 Neste sentido, completa Sérgio Buarque de Holanda: “Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e era exaltados nos livros e discursos”. (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 160).

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por fim, às elites que já dominavam a economia e se transformaram também nos donos

do poder estatal.

As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República, exerceu desde sempre um poder hegemônico.377

Isto acaba por excluir todo o resto, ainda que feito da maneira como pensado por

Aristóteles, pois realizado de maneira errada e visando interesses particulares ao invés

do bem maior e público, sempre atralado aos interesses das classes dominantes.

O liberalismo lockeano, como já amplamente acima demonstrado, passou longe

do que a sociedade brasileira, ou melhor, do que esses donos do poder econômico,

pressupunham para suas “necessidades”. Evidente que um modelo liberal não

encontraria espaço com o Imperador, mas esse fato não se transformou com a

proclamação da república e só apareceu com certa e maior influência mais de setenta

anos após o início do período republicano.

Já Montesquieu, é mais do que inegável sua presença no Estado brasileiro,

sobretudo pela configuração de separação dos órgãos do Estado e, com o tempo, do

sistema de freios e contrapesos. Apesar disso, sua teoria sofreu nas mãos dos brasileiros,

que adaptaram tudo o que puderam para seus interesses.

Podemos simplificar tudo o que dissemos até então sobre as teorias européias e

suas influências e transmutações no Estado brasileiro com uma frase impactante, escrita

em 1937 (em pleno Estado Novo de Vargas), por Sérgio Buarque de Holanda, que

continua tão atual como no período em que foi escrita e que reflete o Brasil desde os

tempos de Colônia: “como esperar transformações profundas em um país onde eram

mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?”.378

E o que poderíamos dizer com relação às súmulas vinculantes? Embora

tenhamos nos cansado de estudar tanto o seu desenvolvimento histórico mundial como

também sua formação nas entranhas brasileiras, desde os assentos portugueses até os

pretores brasileiros, temos que verificar não somente como estas súmulas se inseriram

377 RIBEIRO, Darcy. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2ª reimpressão, 2007, pp. 200-1. 378 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ob. Cit. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 26ª Edição, 2008, p. 78.

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no ordenamento jurídico brasileiro, mas igualmente a forma com que se relacionam com

o modelo de Estado aqui existente.

Já ressaltamos como as novas ideologias de Estado entraram e se chocaram com

as antigas, precárias e conservadoras ideologias portuguesas transmutadas no território

brasileiro como uma praga, se instalando em todas as instâncias e fazendo de todo o

Estado (independente de considerarmos ou não “poderes distintos”), bem como da

economia e da sociedade, um ser estranho surgido dessa relação dialética.

Mesmo que se considere estes pressupostos da constituição do Estado brasileiro,

as várias mudanças e atitudes tomadas ao longo dos séculos com relação às funções do

Estado, colocam em voga exatamente uma discussão neste sentido: onde podemos situar

as súmulas vinculantes na atual conjuntura histórica, política, social, jurídica e, claro,

estrutural? Esta é a maior contribuição que este trabalho pretende alcançar.

Quando falamos em estruturas, podemos lembrar de Rosa Luxemburg379, que

trabalhou a diferença entre reforma e revolução e verificarmos que, em todos os casos

do Brasil, as mudanças jamais se procederam de forma estrutural, como requer toda

revolução, mas sim de maneira superficial, como ocorre com as reformas.

Não estamos afirmando que a configuração do Brasil hoje está totalmente

assentada em algo que, em princípio, foi revolucionário, mas sim que a proposta

inserida na Constituição Federal de 1988, em momento algum, poderia aceitar um

modelo no qual a liberdade dos órgãos não têm limites, como com o sempre lembrado

Poder Moderador e como foi durante quase toda República (sem contar toda a Colônia).

Tanto que, conforme estudamos e criticamos, não existe um cabedal teórico forte

que disponha de forma favorável às súmulas vinculantes (basta verificar nosso embate

anterior com os defensores das súmulas vinculantes que consideram as súmulas

vinculantes uma “inovação” para o Supremo Tribunal Federal).

Existe contradição, como já demonstrado nestes próprios autores citados acima,

sobre o que realmente são as súmulas vinculantes no Estado brasileiro, seus alcances e

principalmente o quanto a sociedade pode ser atingida por estas medidas de exceção (no

sentindo agambeniano da palavra) tomadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Se (i) é a súmula que vincula, então somente quando o STF “escolha” (“confirmar” é o verbo no contexto do art. 8.º da EC 45/2004) alguns dentre os seus enunciados e os revista dessa qualidade superlativa é que se terá o dito efeito vinculativo, a potencializar a tese assentada; se (ii) certas decisões é que têm efeito vinculante, então o espectro da

379 LUXEMBURG, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Editora Expressão Cultural, 2008.

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eficácia obrigatória se alarga, porque será possível que uma decisão de mérito, ainda que não extratificada em súmula, tomada pelo STF em julgamento por maioria qualificada, passe a operar como precedente, de aplicação obrigatória para os casos aí subsumidos. Esta última alternativa opera na carga eficacial das decisões de mérito do STF nas ADIns e ADCons (CF, art. 102 § 2º - EC 45/2004), porque elas, as decisões, é que projetam eficácia erga omnes e efeito vinculante. Em contraponto, aquela primeira alternativa está acolhida na disciplina da súmula vinculante, lendo-se no art. 103-A da CF – EC 45/2004 – que ela, a súmula, é que tem efeito vinculante em face do Judiciário e da Administração Pública.380

Tal fato deve ser analisado com bastante cuidado, já que mesmo quando

consideramos as várias adaptações realizadas nas filosofias políticas estudadas logo na

primeira parte da dissertação, não podemos nunca desconsiderar o que a Constituição

Federal de 1988 trouxe quando de sua promulgação e manteve-se sem alteração, vez

que cláusula pétrea: a independência e harmonia dos das funções separadas em órgãos

do Estado.

Juízes legisladores? Frase perigosa desde Aristóteles, passando por Hobbes,

Locke, Montesquieu e nossa Carta Magna de 1988. Não se trata simplesmente de uma

função, mas de sua extrapolação, na qual os responsáveis pelo julgamento se

transmutam e criam súmulas com alcance normativo. Montesquieu considerou uma

situação como essa despótica, ditatorial, na qual uma pessoa exerce função em dois

órgãos distintos.

Certamente, do ponto de vista substancial, tanto o processo Judiciário quanto o Legislativo resultam em criação do direito, ambos são “law-making processes”. Mas diverso é o modo, ou se se prefere o procedimento ou estrutura, desses dois procedimentos de formação do direito, e cuida-se de diferença que merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz pode ser criativo, dinâmico e “ativista” e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e as modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz.381

Devemos tomar cuidado com essa segunda forma de juiz, que na verdade deixa

de ser juiz e se torna um “legislador inconstitucional”, vez que não eleito conforme

prevê o ordenamento jurídico constitucional. Ademais, o “ativismo” retratado deve-se

considerar como aquele no qual o juiz realiza a sua função julgadora e, assim, por meio

de sua função, de modo que o direito criado se manifesta às partes litigantes, possuindo 380 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2010, pp. 343-4. 381 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 5ª reimpressão, 1999, p. 74.

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efeito erga omnes tão somente para elas e não se estendendo à terceiros, como preveem

as súmulas vinculantes.

A Dogmática Jurídica é o estudo do sistema de normas jurídicas vigentes em determinada época e local. Seu objetivo é conhecer as normas, interpretá-las, integrá-las no sistema, aplicá-las nos casos concretos. É chamada “Dogmática” porque a situação do jurista – seja ele advogado, juiz, escrivão, promotor – perante a norma jurídica, é semelhante à do fiel diante dos dogmas. Deve aceitar a norma vigente como ponto de partida inatacável.382

A norma jurídica se coloca como um dogma e, de acordo com o que nos ensinou

o Professor André Franco Montoro, esta é uma situação de sujeição à norma jurídica. Se

bem nos lembrarmos, quando citamos o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello

consideramos que o princípio da legalidade é o da completa sujeição da administração

pública à lei. Em que lugar encontramos um grave problema quando dizemos o mesmo

sobre as súmulas vinculantes?

As teorias de Estado inseridas e adaptadas no Brasil de forma leviana por

aqueles que se encontravam no poder e se chocam claramente com o que se pretende à

partir das súmulas vinculantes e, tal qual no momento em que essas teorias foram

trazidas e adaptadas, a contradição entre o que se pretende passar e o que realmente

ocorre é gritante, de modo que o texto constitucional originário (e também as teorias)

ficam somente no papel, possuindo validade, mas não trazendo eficácia na vida prática.

Não se trata aqui de afirmar-se com todas as letras e sem embargo sobre a

perfeição da máxima do juspositivismo, ignorando com isso as demais teorias jurídicas

e que fundamentaram as ideias dos pensadores do Estado acima estudados, que se

baseiam principalmente no jusnaturalismo, até mesmo porque o Estado brasileiro não é

formado puramente com o positivismo jurídico, abrindo margens para a atuação do

magistrado e a participação integral da sociedade, bebendo de suas fontes históricas,

filosóficas e sociológicas para fomentação da legalidade.

Devemos lembrar, entretanto, de uma máxima que o próprio Aristóteles

defendeu, a de que a constituição do Estado deve visar o bem-comum entendendo-se

como o bem que melhor atingirá os cidadãos de determinado lugar, que regem e

estabelecem as melhores formas de se constituir a si e ao seu Estado, ainda que tal fato

constitua na positivação desse direito.

382 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 12ª Edição, Volume I, 1984, p. 132.

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O positivismo jurídico consiste fundamentalmente na identificação do “direito” com o “direito positivo”. Direito natural, princípios de justiça e conceitos semelhantes estão fora do campo da ciência do direito. [...] O positivismo jurídico é a uma ideia segundo a qual o direito é ditado pelo poder dominante na sociedade, em um processo histórico. Segundo essa concepção, só é direito aquilo que o poder dominante determina, e o que ele determina só é direito em virtude dessa circunstância mesma.383

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 pugnou por estabelecer um

conceito que se prolongava como um aspecto da longa duração da história brasileira

desde a Carta Imperial de 1824: a separação das funções, com a diferença de que, desta

vez, as mesmas seriam respeitadas nas suas especificidades e atribuições, funcionando

conforme as disposições constitucionais e de acordo com suas funções (o que jamais

havia ocorrido nos demais períodos históricos).

Foi necessário, para tanto, estabelecer de forma positivada este direito que

(porque não?) podemos considerar natural aos órgãos funcionais do Estado. Mas ao

contrário da harmonia e independência buscada há quase duzentos anos, o que se vê é

novamente o desrespeito aos padrões constitucionais: onde sempre se viu o Executivo e

em poucas oportunidades o Legislativo se prevalecer, agora tenta o Judiciário se colocar

acima de suas funções.

Ora, a teoria da divisão do poder diz que qualquer atividade exercida pelo Estado deve antes de tudo predispô-lo a regulá-la preventivamente, por meio de atos do último tipo, isto é, mediante normas gerais e abstratas. Não pode o Estado iniciar concretamente a sua ação num ou noutro campo e dar ordens a um ou outro indivíduo. Primeiramente há de haver disciplinado a matéria de modo geral, ditando em abstrato as regras para a própria atividade, os seus limites e modalidades. Só depois disto poderá passar à ação concreta. Esta última é vinculada pelo que dispõem as normas gerais e não pode contrariá-las. Por isto é que a atividade dirigida à edição dos atos gerais se denomina atividade legislativa; e a concreta, dirigida à prática dos atos especiais ou ao agir material, se denomina atividade administrativa.384

O princípio da legalidade está disciplinado no Art. 37, caput, da Constituição

Federal de 1988385, sendo ele um baluarte da luta conta o absolutismo, no qual o Estado

383 MONTORO, André Franco. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 12ª Edição, Volume I, 1984, p. 336. 384 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Editora Malheiros, 2ª Edição. 2001, p. 50. 385 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

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se insere de igual maneira nas leis do país, ou seja, não encontra-se acima da Carta

Constitucional, sendo regido por ela e não podendo, de qualquer forma, transgredi-la.

Ao Estado somente é permitido, assim, agir de acordo com as leis.

Não se pode olvidar que a legalidade estatal adveio da Revolução Francesa, de

modo a impedir abusos das funções estatais pelos órgãos, reverberando na sociedade. É

uma forma de controlar os atos do Estado, em que não pode, de maneira alguma, agir

contrário à lei, atingindo a sociedade e contrariando suas próprias disposições. Ademais,

funciona como um poder para prevenir que os demais órgãos ajam em desconformidade

com os preceitos que regem suas funções no Estado.

O princípio da legalidade é da completa submissão da Administração Pública às leis. Esta deve tão somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito Brasileiro.386

Por evidência que a dicotomia existente durante todo o Império e que

posteriormente passou pela República pode ser percebida nesta fase, com o embate

entre o liberalismo e o conservadorismo, colocando no plano de discussão dos direitos a

proteção maior às elites dominantes em detrimento do restante da sociedade.

A ideia constitucional significa, pois, em síntese, a tentativa de – através de uma lei formal – limitar e controlar o poder política e vincular o exercício desse poder a normas bilateralmente vinculantes para os detentores do poder político e para os cidadãos. Esta viragem deixa transparecer, por seu turno, uma transformação na compreensão da Constituição, que já não se apresenta mais como mera ordenação da vida em sociedade, MS, mais do que isso, é o ato constitutivo dessa ordenação, que inaugura uma nova realidade jurídica e política.387

Assim, a única capaz de vincular um regramento tanto dos órgãos

constitucionalmente existentes como de toda a sociedade deve ser a Constituição

Federal e toda legislação infraconstitucional que esteja de acordo com os princípios

basilares insculpidos na Carta Magna. Fica claro que a lei e a Constituição devem ser

[...] 386 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, p. 104. 387 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição Como Princípio – Os Limites da Jurisdição Constitucional Brasileira. São Paulo: Editora Manole, 1ª Edição, 2003, p. 29.

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mais do que simples regramentos sociais, como também os responsáveis pela ordenação

da vivência humana nesta realidade, sendo um norte à vida em sociedade.

O fato de a ordem jurídica reger todo o funcionamento do Estado não significa,

todavia, que o Judiciário se sobrepõe aos demais Órgãos, facultando sua atuação a não

harmonização das funções. O Brasil, sendo constituído como uma União de Estados

Federados, tem seu caráter de unicidade, assim como as instituições que o formam, que

trabalham para manter essa integralidade.

Somente com a unicidade do Estado é possível pensar a divisão das funções

entre seus órgãos, comprimindo a cada um deles uma função específica que o distingue

dos demais, com características e abrangências diferentes, mas com o mesmo objetivo: a

composição de um Estado único. A sociedade, legitimadora do Poder, é aquela para

quem os Órgãos do Estado estão voltados, procurando sempre a sua soberania.

Apesar de o princípio da legalidade ser aquele no qual a Administração Pública

Direta e Indireta deve se basilar no cumprimento de suas obrigações, temos que as

súmulas vinculantes não são leis, ao menos não no sentido na qual consideramos uma

norma jurídica, não podendo ser equiparadas a elas, possuindo apenas efeito normativo.

A expressão “lei jurídica” pode ser empregada em dois sentidos diferentes. Um, restrito ou equivalente à lei escrita. Nesse sentido, “lei” (direito escrito) opõe-se ao “costume jurídico” (direito não escrito). Em outra acepção, ampla, o vocábulo “lei” abrange todas as normas jurídicas: lei escrita, costume jurídico, jurisprudência, etc.388

Em outras palavras, podemos considerar o primeiro caso o sistema do Civil Law,

no qual o Brasil está inserido e entende por lei o direito escrito e, muito embora os

costumes possam ser utilizados, essa exceção somente confirma a regra. Já o segundo

caso, no qual abrange o direito não escrito, temos o sistema da Common Law, como nos

Estados Unidos, em que a jurisprudência tem grande valor legal.

O embate entre o Civil Law e o Common Law é o mesmo que temos agora com

as súmulas vinculantes. Não se pode negar o fato de que as súmulas são enunciados de

jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e, assim consideradas, não podem ser

fontes do direito como a lei, seja por sua incidência na sociedade, seja por ter sido

elaborada por órgão incompetente e estranho na separação das funções.

O ilustre professor Washington de Barros Monteiro afirmou que “por mais

reiterada que seja, a jurisprudência não constitui norma imperativa como fonte formal

388 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 12ª Edição, Volume II, 1984, p. 30.

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do direito.”389. Assim, mesmo que o tribunal superior tenha em suas decisões maior

incidência para um ou outro lado, os juízes não possuem como obrigatoriedade segui-

las, vez que não são leis, podendo utilizar do seu livre convencimento, desde que

pautados na lei (e não nas súmulas).

A lei surge como fonte direta e imediata do direito, seguindo-se-lhe, tão somente, com caráter mediato e direto, o costume. Além dessas, nenhuma outra fonte pode admitir-se, nem mesmo com caráter supletivo. E também se exclui a jurisprudência, isto é, a “auctoritas rerum similiter judicatarum”, porque, por maior que seja a influência dos precedentes judiciais, jamais eles adquirem o valor de uma norma obrigatória e universal, podendo, quando muito, propiciar reformas ou inovações legislativas, como também pode fazer a ciência jurídica.390

De suma importância e relevância as lições de Vicente Ráo. As jurisprudências

dos tribunais não podem ser utilizadas como fontes legais de direito, pois esta força de

império é direcionada de maneira direta no ordenamento brasileiro às leis. As súmulas

vinculantes, de acordo com o texto constitucional de redação dada pela EC 45/2004,

possui esse poder de vincular a administração pública e acaba por não servir ao

Legislativo como forma de inovação, já que embora não vinculado, as súmulas atingem

também suas funções e prerrogativas enquanto poder independente.

Não podemos nunca (jamais!) nos esquecer da diferenciação de fontes materiais

e formais do direito quando consideramos não somente as súmulas vinculantes, mas

todas as espécies de súmulas e jurisprudências advindas dos tribunais brasileiros, isto

porque é esta diferenciação que mostrará como as súmulas vinculantes não possuem

espaço no atual sistema jurídico pátrio.

A interpretação judicial, judiciária ou usual é a que realizam os juízes ao sentenciar. Tem força obrigatória para as partes a que se aplica, quando de trata de sentença isolada. E, no caso de firmar jurisprudência, essa interpretação passa a constituir para os casos análogos, uma fonte formal do direito.391

As fontes formais, assim, servem como uma espécie de guia ao direito contido

nas fontes materiais. Elas não criam o direito, papel este reservado às fontes materiais,

mas demonstram, como uma forma de exemplo legal, como a aplicação material do

389 MONTEIRO, Washington de Barros. Revista Forense 76/204. Apud MONTORO, André Franco. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 12ª Edição, Volume II, 1984, p. 93. 390 RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 303. 391 MONTORO, André Franco. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 12ª Edição, Volume II, 1984, p. 123.

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direito se deu neste ou n’aquele caso, sem com isso criar um direito que deve ser

seguido em todos os demais casos análogos.

É neste patamar que colocamos e que deveriam ser colocadas as súmulas

vinculantes, uma vez que estas não encontram fundamento para existir enquanto fontes

materiais obrigatórias à administração pública direta e indireta e ao Judiciário. A

existência de norma jurídica que permite esta acepção encontraria respaldo no

positivismo jurídico, mas será que a contradição desse sistema vinculante não o refuta

ao mesmo tempo em que o ratifica? No nosso ver sim.

Isto porque, quando falamos em lei, temos que ter em mente não somente um

conjunto de fatos, valores e lógica, como bem expressou o professor Miguel Reale392,

mas também saber que tudo isso advém de um Poder, que primeiro emana do povo e

depois se constitui no Estado, no governo, na administração pública direta, indireta e na

justiça, todos submissos ao poder soberano do povo.

Preliminarmente, é necessário advertir que a antiga distinção entre fonte formal e fonte material do direito tem sido fonte de grandes equívocos nos domínios da Ciência Jurídica, tornando-se indispensável empregarmos o termo fonte do direito para indicar apenas os processos de produção de normas jurídicas. Tais processos pressupõem sempre uma estrutura de poder, desde o poder capaz de assegurar por si mesmo o adimplemento das normas por ele emanadas (como é o caso do poder estatal no processo Legislativo) até outras formas subordinadas de poder que estabelecem, de maneira objetiva, relações que permitem seja pretendida a garantia de execução outorgada pelo Estado.393

Não precisa de muito esforço para se verificar que falta às súmulas vinculantes

esta prerrogativa de legislatura. Apesar de a fonte do poder ser una (o povo), sua

vontade externada, quando alcança os níveis estatais, se subdivide e continua se

reportando a este poder central, no qual se encontra a sociedade. O poder conferido ao

Legislativo não é o mesmo do que o conferido ao Judiciário ou ao Executivo, mesmo

que advindos do mesmo local. 392 Neste sentido: “Verifica-se que o momento lógico expresso pela proposição hipotética, ou a forma da regra jurídica, é inseparável de sua base fática e de seus objetivos axiológicos: fato, valor e forma lógica compõem-se, em suma, de maneira complementar, dando-nos, em sua plenitude, a estrutura lógico-fático-axiológica da norma de direito. Isto não impede, é claro, que, por abstração, sejam postos entre parênteses os aspectos fático e valorativo. Quando se quer, porém, ter um conceito integral da norma é necessário estudar os três fatores em sua correlação dinâmica. Quando, pois, dizemos que o Direito se atualiza como fato, valor e norma, é preciso tomar estas palavras significando, respectivamente, os momentos de referência fática, axiológica e lógica que marcam o processus da experiência jurídica, o terceiro momento representando a composição superadora dos outros dois, nele e por ele absorvidos e integrados”. (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, pp. 95-6). 393 REALE, Miguel. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 129.

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Por isso, a ideia de súmula vinculante como uma espécie de “lei” elaborada pelo

Judiciário passa longe de ser válida e factível, ainda que a Constituição Federal de 1988,

por meio da EC 45/2004, tenha revestido a mesma de certo poder e certo império. Não

se pode olvidar, contudo, que lhe falta o poder de lei, aquele que existe para o

Legislativo e não existe da mesma maneira para o Judiciário e o Executivo. Este poder

advém do povo e somente o povo pode modificá-lo.

O professor Miguel Reale expressa entendimento parecido com o acima

elencado pelo professor André Franco Montoro, ao considerar a jurisprudência como

decisões dos tribunais advindas de uma atividade interpretativa-legal realizada pelos

juízes. É uma atividade intelectual, vez que pressupõe a hermenêutica legal desses

agentes na análise do caso com a aplicabilidade jurídica.

Os juízes são chamados a aplicar o Direito aos casos concretos, a dirimir conflitos que surgem entre indivíduos e grupos; para aplicar o Direito, o juiz deve, evidentemente, realizar um trabalho prévio de interpretação das normas jurídicas, que nem sempre são suscetíveis de uma única apreensão intelectual. Enquanto que as leis físico-matemáticas têm um rigor e uma estrutura que não dão lugar a interpretações conflitantes, as leis jurídicas, ao contrário, são momentos de vida que se integram na experiência humana e que, a todo instante, exigem um esforço de superamento de entendimentos contrastantes, para que possam ser aplicadas em consonância com as exigências da sociedade em determinado momento e lugar.394

Inclusive, salienta sobre as leis possuírem a prerrogativa da interpretação, o que

com certeza não cabe nas súmulas vinculantes (ou nas jurisprudências), já que estas não

se caracterizam dessa forma, por já serem uma interpretação da lei dada a um caso

específico. Apesar de ser possível a interpretação da interpretação legal, isto

configuraria uma impossibilidade fática, pois como vimos, faltaria o essencial poder do

qual somente o Legislativo encontra-se investido.

A pretensa e suposta inovação legal que as súmulas vinculantes trazem, na

realidade, não é um papel que lhe assiste. A inovação legal cabe ao Legislativo e não

por conta da certeza, mas sim da segurança que lhe é atribuída pelo poder do povo,

sendo que a certeza de algo impediria esta inovação, diferente do que ocorre com a

segurança que permite esta ação.395

394 REALE, Miguel. Ob. Cit. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 158. 395 Neste sentido: “Prefiro dizer que certeza e segurança formam uma “díade” inseparável, visto como, se é verdade que quanto mais o direito se torna certo, mais gera condições de segurança, também é necessário não esquecer que a certeza estática e definitiva acabaria por destruir a formulação de novas soluções mais adequadas à vida, e essa possibilidade de inovar acabaria gerando a revolta a insegurança. Chego mesmo a dizer que uma segurança absolutamente certa seria uma razão de insegurança, visto ser

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O Judiciário tem como funcionalidade dentro do modelo constitucional resolver

os conflitos existentes tanto na esfera particular, como na pública, o que também se

entende entre os Órgãos constituídos do Estado. Sua atribuição, de forma alguma,

permite se sobrepor ou até mesmo usurpar a função dos demais entes. Cabe ao

Judiciário a qualidade de ser o juiz das causas e protetor da Constituição, resolvendo os

conflitos existentes em torno desta, não criando novos ao usurpar prerrogativas.

A interferência de qualquer um dos órgãos nas funções típicas dos demais já

seria uma anormalidade dentro do Estado, que veria ferido seu princípio de separação,

harmonização e integração da União com seus Órgãos. Isto porque, com a interferência,

não existiria o respeito à autonomia e à liberdade, ficando a ação atrelada aos desígnios

e determinações de todos, isto quando considerados em sua função típica.

Embora a Carta Constitucional de 1988 tenha criado disposições para frear e

impedir o abuso de um órgão pelos demais, a usurpação do Legislativo pelo Judiciário,

é mostra de que a ação minoritária dos Ministros do Supremo Tribunal Federal minam

as ações dos magistrados brasileiros, ao passo que a sua atividade está atrelada às

Súmulas. Mesmo o Legislativo não sendo obrigado a visar as Súmulas Vinculantes em

sua funçao típica, os juízes devem observá-la como entendimento único (e petrificado).

Como dito anteriormente não se pretende que a teoria de Montesquieu seja vista

sob os olhares jurídicos ortodoxos, em que a sua aplicabilidade deve ser exatamente de

acordo com o preceituado e imaginado para a França do século XVIII, em que o

absolutismo dominava, tal qual a nobreza e o clero como classes sociais principais.

São inúmeras as diferenças existentes entre a França de Montesquieu e o Brasil

das Súmulas Vinculantes e todos esses aspectos devem ser considerados para uma

verdadeira análise da deturpação do conceito de separação dos órgãos e usurpação de

funções entre os entes federados.

Em primeiro lugar, salienta-se o momento vivido pela França, de ascensão da

burguesia e desenvolvimento do liberalismo sob a ótica dos direitos individuais da

liberdade e da propriedade. No Brasil, a burguesia somente começa a se desenvolver em

meandros do Século XX, aproximadamente duzentos anos após Montesquieu ter

concebido a ideia utilizada na Revolução Francesa.

conatural ao homem – único ente dotado de liberdade e de poder de síntese – o impulso para a mudança e a perfectibilidade, o que Camus, sob outro ângulo, denomina “espírito de revolta”. (REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1986, p. 79).

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O fato de o Brasil valer-se dos termos da separação das funções desde a

Constituição Imperial de 1824 não significa que esses tenham sido colocados à

disposição da população como forma de estruturação do Estado que se formava. As

práticas coloniais-imperiais contrastavam com a ideologia liberal desses institutos, que

inclusive protegiam (quando eram provocados) o modelo imperial de interesses das

classes dominantes e elites agrárias.

Ainda, não podemos nos esquecer que no modelo de Montesquieu a função de

legislar possuía importância maior do que a de executar e a de julgar, em que o

Legislativo se constituía como uma espécie de porta-voz dos desígnios legais do Estado,

ou seja, a função é mais importante no exercício pleno do Governo, estando disposta se

hierarquias no Estado. Além disso, existia também a figura do Conselho de Estado,

órgão responsável pela administração da justiça no âmbito do Executivo, idealizado por

Montesquieu e não existente no modelo brasileiro.

O Brasil, de outro lado, ao longo de sua história, foi um Estado constituído para

ter o modelo ao qual Montesquieu lutou contra, o absolutismo. Apesar de ter pensado a

Tripartição das Funções e o Sistema de Freios e Contrapesos como a forma ideal para

um Estado, Montesquieu apoiava a ideia de uma Monarquia Constitucional, tal qual a

Inglaterra, diferente do Imperialismo pautado na escravidão e nos interesses das elites

como no Brasil.

Temos, com isso, que o Brasil não preceituou diferenças entre os Órgãos do

Estado, tão pouco o fez para suas prerrogativas típicas. Pela harmonia e independência

das Funções dos Órgãos constitucionalmente estabelecidos todos encontram-se no

mesmo patamar de igualdade e suas funções não são graduadas, uma vez que todas são

igualmente importantes para existência e manutenção da segurança jurídica estatal.

A estrutura organizacional do Brasil não teve sua origem nos primórdios da

sociedade nacional, mas sempre serviram como forma de afirmação do Estado

Português durante a Colônia, do Imperador e do Poder Moderador durante o Império e

dos interesses particulares ou das elites dominantes durante toda a República.

Afirmar hoje que as causas e o momento da França não podem ser tomados

como base para a estruturação brasileira é completamente correto, da mesma forma que

se tentarmoa aplicar a ideia integral de Montesquieu também será. Nem mesmo a

França aplica a concepção montesquieuana na sua integralidade, tanto que não se

organizam como uma Monarquia Constitucional, mas sim como uma República.

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Da mesma forma o Brasil foi adaptando-se e aplicando o seu próprio modelo de

Tripartição das Funções, desde o início constituído na harmonia e independência,

embora quase nunca (ou nunca) tenha disso possível verificar tais pressupostos no país.

Não se pode também ignorar o fato de que adaptações são necessárias em toda e

qualquer doutrina que seja estrangeira, isto porque seus idealizadores a pensam e a

modelam de acordo com as nações que observam como exemplo, seja a que vivem ou a

que escolheram para fundar sua teoria.

Houve, sim, adaptações da Teoria da Tripartição das Funções e do Sistema de

Freios e Contrapesos à realidade brasileira, não negamos tal acontecimento. O que

discutimos e criticamos não é a adaptação, mas a deturpação do conceito aplicado no

Brasil ao longo dos séculos.

A teoria de Montesquieu não é perfeita e deixa espaços em aberto, espaços estes

que não encontrariam respaldo para se complementar na realidade brasileira por ser

distinta daquela encontrada na França no Século XVIII. Essa realidade, na verdade, não

é a mesma para nenhuma das nações atualmente.

Entretanto, não podemos negar o fato de que as Três Funções foram

perfeitamente delimitados pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de

outubro de 1988. Pode não ser exatamente o modelo preconizado por Montesquieu, mas

a adaptação à realidade social e jurídica brasileira foram feitas para que estes pudessem,

finalmente, atuar no cenário nacional, depois de tantos séculos de mandos e desmandos,

com a supremacia e subjugação de um em detrimento dos demais.

Pode-se discutir e criticar o modo com que o Poder Constituinte Originário

manteve em muitas disposições o mesmo que está sendo repetido desde a Constituição

Imperial de 1824 sobre as funções e limitações dos Três Órgãos, assim como pode-se

fazer o mesmo com as inovações trazidas por esta mesma Constituinte à eles, sobretudo

com relação ao sistema de freios e contrapesos, bem como sua eficiência no cenário

nacional, em que até a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004

encontrava-se em ordem, ainda que alguns institutos, como os Decretos Presidenciais

transmutados em Medidas Provisórias teimem em permanecer no orbe jurídico pátrio.

A Emenda Constitucional nº 45/2004 veio para convalidar uma prática

inconstitucional, primeiro por conferir ao Judiciário a atribuição de legislar e de

estabelecer regras aos demais órgãos e, segundo, por estar em desalinho com o princípio

da legalidade da administração pública, em que esta deve agir de acordo com as leis e

não com as súmulas vinculantes emitidas pelo Supremo Tribunal Federal.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muitas páginas consideramos e analisamos diversos conceitos e fatos

preeminentes à compreensão do pensamento ocidental e, no caso específico deste

trabalho, do processo social, político, urbano e jurídico da sociedade brasileira através

do desenvolvimento do direito e suas influências.

Muitos pontos mereceram destaque, sobretudo por sua pertinência e auxílio na

compreensão dos fatores mais essenciais na busca de uma análise crítica do instituto das

Súmulas Vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, bem como sua relação com o

próprio Estado, somente sendo capaz de chegar neste estágio por conta dos estudos

voltados para a formação das sociedades ocidentais.

Trilhamos um longo caminho que possibilitou reflexões aprofundadas sobre os

rumos que o Estado brasileiro pode tomar se o abalo estrutural nas suas entranhas

organizacionais permanecer, sendo este o principal objetivo deste trabalho: analisar e

refletir as nuances que envolvem todos os lados das súmulas vinculantes e sua

incidência na sociedade.

As discussões advindas dos modelos históricos aqui trabalhados devem estar

eivadas pela incessante busca de conhecimento e aprimoramento, pois somente assim

poderemos encontrar os caminhos e as saídas para os becos que se encontra atualmente

o contraditório sistema jurídico pátrio.

Por este motivo, procuramos estudar com afinco interesse como a propedêutica

filosófica-jurídica incide sobre o sistema Tripartite de Funções concebido desde a

Antiguidade Grega e remodelado durante a Modernidade, sobretudo por Montesquieu,

responsável pela criação do modelo que foi adaptado no cenário brasileiro.

Para tanto, precisamos não somente buscar um material aprofundado sobre os

teóricos políticos que trabalharam o tema, mas também analisar a sociedade em que

cada um desses pensadores estavam inseridos para então analisar as possibilidades de

aplicação desses arquétipos da constituição do Estado.

Afinal, foram eles que lançaram as bases da Contemporaneidade Política

Ocidental, fazendo com que o estudo da formação social, política, econômica e jurídica

do Brasil possibilite compreender como se criaram e perpeturam algumas estruturas que

por seu domínio construíram o que hoje conhecemos como o Estado Brasileiro.

É a análise dessas estruturas que permitem estudarmos hoje o ponto a que

chegou a sociedade nacional. O continuísmo de muitas instituições internas são as

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responsáveis pelo que encontramos hoje a nível político, econômico, social e, por

evidência, jurídico.

Não se trata de afirmarmos que não sofremos influências externas ao longo dos

séculos, pelo contrário. Essas mesmas instituições responsáveis pela formação do Brasil

são também responsáveis pela entrada das ideias (e por vezes de sua má-interpretação)

na sociedade brasileira, gerando além de conflitos pela distroção ideológica, abismos

praticamente intransponíveis entre o Estado e a população como um todo.

É dessa forma que devemos observar o Brasil, desde sua constituição enquanto

Colônia, passando pela sua condição “sui generis” durante o Império (o que inclui o

absurdo jurídico do Poder Moderador), bem como pelas muitas facetas da República,

desde o domínio das Oligarquias, os períodos ditatoriais e a pouca fase democrática.

Diante de todo o estudo, fica-se evidente que é de suma importância buscar uma

pretensão judicial célere para o atual estágio que se encontra o Judiciário Brasileiro, já

que a população espera uma resposta rápida para solucionar os seus conflitos. Porém,

não se pode buscá-la a qualquer custo, devendo ser observada a qualidade nas decisões

dos magistrados e, acima disso, não ferir os preceitos impostos na Carta Magna.

A título exemplificativo, no primeiro ano de funcionamento em Brasília, em

1960 foram julgados pelo Supremo Tribunal Federal 5.747 processos. Em 2007, por sua

vez, a Corte Suprema Brasileira julgou 159.522, somando os julgamentos individuais e

colegiados, sendo humanamente impossível que 11 Ministros decidam questões de

extrema importância com a qualidade que se espera e se deseja da Corte.

O inchaço do Judiciário, com inúmeros casos que diariamente chegam às suas

portas, somados às diversas resoluções do Conselho Nacional de Justiça sobre a

necessidade de cumprimento de “metas” pelos órgãos judiciais são fatores

preponderantes para discussão sobre o que acontece no Estado brasileiro atual, o que

não significa, por sua vez, que esta discussão tenha que ser encurtada por um caminho

teoricamente mais fácil, que é engessar o Judiciário numa completa insegurança jurídica

por meio das súmulas vinculantes.

Existe a possibilidade de o Juiz Singular analisar o caso concreto com mais

cautela, até mesmo porque é ele o único que terá a oportunidade de ter contato com as

partes do processo, devendo tal decisão ser analisada pelo Tribunal hierarquicamente

superior e que no máximo terá apenas contato com os advogados das partes, se for o

caso e não criar um instrumento como a Súmula Vinculante que impeça a revisão da

decisão e, mais do que isso, engesse o sistema, não criando uma solução, mas sim

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ignorando o problema que é justamente uma via na qual não exista a usurpação de

funções pelos órgãos do Estado.

É fácil notar como as Súmulas Vinculantes ferem alguns princípios

constitucionais brasileiros, como o da Separação das Funções e o da autonomia do

Magistrado, além dos princípios processuais mais importantes, isto é, o direito ao duplo

grau de jurisdição e a interposição de recursos.

A Súmula Vinculante possui força normativa criando obrigatoriedade a todos os

Tribunais, Magistrados e Administração Pública direta e indireta. Assim sendo, o

Judiciário está violando a função típica do Legislativo, ferindo de forma clara a

Separação das Funções.

Cada vez mais a Súmula Vinculante vem ganhando força no Brasil e o estranho é

que nos países que utilizam o sistema jurídico Common Law a vinculação das decisões

judiciais vem perdendo força, criando-se assim Leis específicas para algumas matérias.

Em 1999, por exemplo, a Inglaterra criou o Código de Processo Civil; já os Estados

Unidos criaram o Uniform Commercial Code e o Class Action Fairness Act.

A Súmula Vinculante é uma barreira para o desenvolvimento do direito

brasileiro, já que a sociedade evolui, os conceitos mudam, as leis são alteradas e o

direito fica estagnado, o que é uma grande contradição. Desta forma, novas teses não

existirão, já que os Magistrados irão julgá-las seguindo a súmula que vincula a decisão.

Atualmente, o maior culpado pela grande demanda de processos que atolam o

Judiciário é o próprio Estado, já que a maioria dos processos em andamento possuem

como parte a Fazenda Nacional, Autarquias, Fazenda Estadual, ou Municípios como

autor ou réu na demanda.

A falta de funcionários no Judiciário é outro problema grave, posto que os atos

processuais demoram à serem cumpridos, fazendo com que as demandas não tenham

um fluxo natural, pelo contrário, acabam muitas vezes se arrastando por anos sem que

se tenha a celeridade tão defendida pelos apoiadores das Súmulas Vinculantes, que

colocam em risco muitos outros pontos.

Portanto, chega-se a seguinte questão: quem tem prerrogativas, hoje no Brasil,

para declarar a inconstitucionalidade do ato normativo consubstanciado na Súmula

Vinculante? Quem possui a competência para declarar a inconstitucionalidade do ato

normativo consubstanciado na Súmula Vinculante é o STF. Porém, como pode se

esperar que o órgão que cria a Súmula Vinculante a declare inconstitucional?

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Não se pode esperar que o próprio órgão criador da súmula a declare

inconstitucional, uma vez que perderia o poder criado pela mesma e, ao mesmo tempo,

deixariam de exercer força nos demais órgãos, em suas funções e prerrogativas, seja de

forma direta ou indiretamente.

Encontramos-nos em uma situação delicada, na qual o sistema de Tripartição das

Funções corre sérios riscos diante das constantes interferências de um órgão nos demais.

A história recente do Brasil (e também mundial) está para provar como o controle

exercido por um órgão e o subjugamento dos demais cria um abismo entre a sociedade e

a possibilidade de se conceber a democracia.

Ao levantarmos importantes questões da atualidade e colocarmos o estudo

histórico das instituições como fontes analíticas pretendemos, ainda, chamar a atenção

para as propedêuticas jurídicas e como estas podem ser úteis no auxílio da

contextualização e compreensão dos dilemas contemporâneos.

A filosofia abordada nas páginas deste trabalho, tal qual a parte histórica, não

pretende de forma alguma encerrar a discussão sobre o embate existente entre os Órgãos

do Estado, até porque estes sempre existirão.

Pretende apresentar como a extrapolação de um órgão e o domínio desses sobre

os demais pode causar abalos significativos na sociedade, tornando cada vez mais difícil

a constituição de uma verdadeira democracia pautada em princípios básicos.

Basta lembrar que por vários períodos da história brasileira o Judiciário foi

subjugado aos demais órgãos e hoje parece que deseja “dar o troco”. Quem perde, assim

como quem perdeu nos demais períodos históricos, é a sociedade brasileira, que tem

uma figura simbólica, mas que não o representa, tal qual o Executivo e o Legislativo

não representavam (e em alguns casos ainda não representam).

Vivemos em uma democracia recente, em que nossa Constituição é complexa

por naturaza, o que gera dificuldades de entendimento até mesmo para grandes juristas,

sendo muito extensa e sofrendo inúmeras emendas, dificultando em todos os aspectos o

acesso da população em geral ao seu conteúdo. Com a intervenção atual que ocorre

entre as funções não fica claro na prática o que é típico de um órgão e o que não é, o que

coloca em risco todo o sistema democrático.

Por isso, acreditamos que para um Estado ser forte ele precisa igualmente de

uma Constituição forte, de preferência com menos dispositivos e poucas matérias

trazidas em seu bojo, fazendo com que, como resultado, todos os cidadãos possam ter

conhecimento sobre seu texto, facilitando o entendimento e não o dificultando.

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Montesquieu foi muito feliz ao considerar que quando a Prerrogativa de Julgar é

exercida pelo Legislativo ou pelo Executivo este seria arbitrário, já que o juiz seria o

legislador e o executor das leis, sendo na realidade um opressor e desvirtuando-se de

sua função de imparcialidade de julgamento de acordo com as leis. Essa mesma máxima

vale aos demais órgãos e a história já tratou de constatar esse fato.

Certo é que, historicamente, o sistema de vinculação de decisões não é nenhuma

novidade e sempre se constituiu como um fracasso, ferindo as funções específicas e

impedindo o desenvolvimento jurídico por conta da imposição normativa à decisão do

magistrado em detrimentos aos preceitos legais.

A filosofia política trabalhada ao longo deste estudo não somente pode, como

deve ser analisada para compreensão da atualidade brasileira, isto porque sua incidência

na realidade nacional é visível e esta foi a proposta principal desta dissertação,

mostrando como o pensamento filosófico desde a Antiguidade se apresenta como uma

importante ferramente para entendermos o presente.

Caso qualquer pessoa, estudante ou jurista, tenha em mente discutir o instituto

das Súmulas Vinculantes não o pode realizar afastando seus estudos das considerações

da filosofia política, principalmente com relação à separação de funções, já que o

primeiro afeta diretamente o segundo.

Contribuir para a pesquisa e sobretudo à continuidade dos estudos filosóficos e

políticos é demasiado importante para compreensão da realidade, seja ela jurídica,

econômica, social ou histórica. Aprimorar esses estudos, contextualizando ideias e

pensamentos com a atualidade é uma tarefa difícil, mas ao mesmo tempo reconfortante

diante dos resultados que podem ser alcançados, como os que alcançamos com este

trabalho sobre as Súmulas Vinculantes e seu prejudicial papel normativo ao Estado

Brasileiro e ao sistema jurídico pátrio.

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