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POR UMA LEITURA LITERÁRIA CRÍTICA E TRANSFORMADORA NA ESCOLA DE 1º GRAU por MERCEDES FORMIGO FARIÑA Departamento de Ciência da Literatura Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno. Linha de pesquisa: Construção crítica da modernidade. UFRJ/ Faculdade de Letras 1º semestre / 2006.

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POR UMA LEITURA LITERÁRIA CRÍTICA E TRANSFORMADORA

NA ESCOLA DE 1º GRAU

por

MERCEDES FORMIGO FARIÑA

Departamento de Ciência da Literatura

Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno. Linha de pesquisa: Construção crítica da modernidade.

UFRJ/ Faculdade de Letras

1º semestre / 2006.

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FARIÑA, Mercedes Formigo. Por uma leitura literária crítica e transformadora na escola de 1º grau. Mercedes Formigo Fariña. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 162 f. Orientador: Prof. Dr. André Bueno. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. Departamento de Ciência da Literatura. Poética. Bibliografia: Fs.144-162

1-A leitura como fonte de transformação pessoal e social. 2-A apropriação da cultura das elites como direito de todos os cidadãos. 3- Leitura: porta para uma cidadania transformadora. 4- Direitos do leitor/ Direitos do texto 5- Leitura: fonte de prazer e descoberta. 6- Concepção dialética do ensino da leitura.

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FARIÑA, Mercedes Formigo. Por uma leitura literária crítica e transformadora. Dissertação de Mestrado Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2006

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________________________________

Professor Doutor ANDRÉ LUIZ BUENO (orientador)

Professor Doutor ARMANDO GENS

___________________________________________________________________

Professora Doutora HELENA PARENTE CUNHA

___________________________________________________________________

Professor Doutor LUIS EDMUNDO BOUÇAS

___________________________________________________________________

Professora Doutora ROSA GENS

Defendida a dissertação em 10/08/2006.

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A Deus, fonte de vida e amor.

A Juan, esposo querido.

Aos meus filhos: Rafael, Valéria, Leonardo, Mariana

e Raquel.

Aos companheiros que lutam por uma Escola pública

consciente e digna.

Aos colegas, professores da Escola Municipal Mario

Cláudio.

Aos colegas, professores das salas de leitura do

Município do Rio de Janeiro, em especial aos da 1ª

CRE.

Aos meus alunos – todos.

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Agradecimentos

A André Bueno, que fez o que eu precisava: ser

desafiada a ir além do que pensava poder.

À Escola Municipal Mario Cláudio, que permitiu

transformar a minha prática em uma permanente

pesquisa.

À professora Rosa Gens, presença.

À equipe da S.L.P.M.C, Professoras Ana Lúcia

Quaresma, Cláudia Martins, Regina Stoliar e Vera

Assunção. À coordenadora pedagógica, Maria do

Carmo, e às minhas diretoras: Maria Lúcia e Mery

Lucy, inscritas muitas vezes nesse trabalho.

A Marlice Pessoa Aires Barbosa, excelente amiga

e Professora. A ela, muitas vírgulas.

Ao meu revisor de texto, André Vinícius Pessôa,

com carinho e gratidão.

A Simone Monteiro, Ana Costa, Ana Paula,

Glorinha e Fernando, incansáveis na defesa das

Salas de Leitura.

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RESUMO

O ensino da leitura como fonte de crescimento e de transformação pessoal e social.

Políticas públicas de leitura. Multiplicar leituras e leitores como produto de um

planejamento escolar coletivo. A apropriação da cultura das elites como direito de todos

os cidadãos. A escolarização adequada da leitura como papel e função de todos os

professores. Reflexão sobre a prática docente e discente. A importância das salas de

leitura. Leitura: diálogo permanente, arma interativa, inclusiva e transformadora do

sujeito-leitor.

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ABSTRACT

The teaching of reading as a way to empowerment, social and personal development. Public

policies lied to reading. The dissemination of reading and readers as a consequence of a

cooperative school planning. The sharing of the priviledged cultural heritage as a right of every

citizen. The teachers’ awareness of an adequate use of reading habits as their role as

professionals. Reflective student and teaching practice. The key role of the rooms specially

designed for reading activities at the school. Reading: a permanent dialogic activity, an

interactive pedagogic tool for the sake of inclusion and transformation of the reader.

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Sem acesso aos livros, à educação, nem mesmo há

leitura. Pura e simples exclusão. Quem poderia

negar o peso de tais evidências?

André Bueno

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1

2. A LEITURA COMO FONTE DE CRESCIMENTO E TRANSFORMAÇÃO PESSOAL

E SOCIAL

2.1. Retrato histórico da leitura no Brasil..................................................................................12

2.2. Caminhos para a alfabetização e o letramento de todos....................................................21

2.3. Políticas públicas para o ensino da leitura..........................................................................31

2.4. Planejamento participativo: traçar metas e seguir caminhos...........................................37

2.5. Níveis de leitura: denotativa, conotativa e crítica...............................................................47

3. APROPRIAÇÃO DA CULTURA DAS ELITES COMO DIREITO DE TODOS OS

CIDADÃOS

3.1. A importância do ato de ler na escola..................................................................................66

3.2. A utilização da literatura como espelho histórico e cultural do gênero humano............77

3.3. A literatura infantil e juvenil, clássica e moderna..............................................................85

3.4. Trabalhos com leitura em Escolas Públicas........................................................................90

4. LEITURA: PORTA PARA UMA CIDADANIA TRANSFORMADORA

4.1. Ler é transformar-se...........................................................................................................103

4.2. Estratégias e técnicas para alcançar modos de ver e de ler.............................................109

4.3. Direitos do leitor..................................................................................................................117

4.4. Direitos do texto literário....................................................................................................121

4.5. Leitura: fonte de prazer e descoberta................................................................................123

5. CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO ENSINO DA LEITURA

5.1. Ler confiando e desconfiando.............................................................................................126

5.2. A perda da inocência política.............................................................................................130

5.3. A indignação com um mundo de estranhos interesses.....................................................132

5.4. Construção de cidadãos leitores em seu discurso e história............................................133

5.5. Leitura crítica: transformação e comprometimento........................................................137

6. CONCLUSÃO.........................................................................................................................140

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................144

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1. INTRODUÇÃO

O presente estudo ateve-se à formação do cidadão leitor através da escola, tendo como

suporte o teórico Paulo Freire, homem que se dedicou à educação das classes populares e ao

povo. Sonhamos e trabalhamos, como ele, por um Brasil com menos diferenças sociais. Cremos

que a Escola Pública é fundamental nesse processo e que o ensino permanente e gradual da

leitura literária dará a nossos alunos um nível que lhes permita participar da sociedade letrada,

tornando-se sujeitos de suas histórias.

Inicialmente, pesquisamos os títulos e os teóricos que abordavam a questão da leitura e

sua adequada pedagogia, e são muitos. Fichamos cada um e começamos a colocar em prática

algumas sugestões que relataremos mais tarde.

Analisamos conceitos e definições, afinal, se quisermos ensinar a ler significativamente,

precisamos definir o que é ler. Quando eu posso dizer que alguém está alfabetizado? Que

competências essa pessoa precisa demonstrar? Posso trabalhar com literatura antes da

alfabetização? Que ganhos o trabalho com a Literatura Infantil e Juvenil pode trazer? Os

professores estão preparados para esse trabalho? Qual o papel e a função de uma sala de leitura

em uma escola? A leitura literária realmente forma? Transforma modos de ver e de pensar? Dá

voz à criança e ao jovem? Que caminho é esse que eu preciso percorrer para formar um cidadão

crítico? Que critérios de seleção textual serão utilizados? Que autores e livros serão

recomendados para cada série?

Esse foi o eixo centralizador de nossa pesquisa: refletir sobre a presença da literatura nas

escolas de 1º grau da Rede Pública Municipal e como o ensino de uma leitura significativa se dá,

analisando avanços e retrocessos e propondo caminhos coletivos para a formação de um leitor

crítico e consciente.

Por que investigar e pensar a leitura literária na Escola Municipal de 1º grau no Rio de

Janeiro?

Desde o início, sabíamos que o que nos arrebatava, o que era nosso chamamento, na

educação, era a questão da leitura literária e a sua adequada escolarização.

Trabalhando na Sala de Leitura, inicialmente, e no curso de formação de professores, que

necessitava de um currículo de literatura infantil e juvenil diferenciado do que tradicionalmente

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se estudava no segundo grau, preparávamos alunos que fossem capazes de, futuramente,

escolarizar a Literatura Infanto-Juvenil. Mais tarde, em 1990, iniciamos na Sala de Leitura Pólo

Mario Cláudio, escola da 1ª Coordenadoria Regional de Educação – CRE do Município do Rio

de Janeiro, um trabalho pioneiro enquanto Política Pública de Ensino de Leitura e, como Sala de

Leitura Pólo, passamos a coordenar um núcleo de 26 Salas de Leitura satélites, com as quais nos

encontramos, até hoje, uma vez por mês para traçarmos políticas de leitura e planejarmos ações

conjuntas que nos levem a resultados palpáveis. Há dois anos, por ausência de professores na

outra Sala de Leitura Pólo, da 1ª CRE, passamos a coordenar 53 Salas de Leitura Satélites. Como

não podia deixar de ser, tínhamos e ainda temos, continuamente, que pensar e repensar a

escolarização pertinente ao ensino da leitura e avaliar a cada passo seu sucesso ou fracasso.

Como militantes de uma pedagogia crítica da leitura, engajados num processo de ensino

transformador da realidade, buscamos pesquisar as práticas de ensino da leitura literária com o

desejo de desvendar os meandros que as sustentam e, conseqüentemente, reavaliar e repensar

esses saberes, a fim de aperfeiçoar a nossa prática e a das 53 escolas mencionadas.

Fazemos isso com paixão, crendo num Brasil capaz de vencer preconceitos e

desigualdades sociais, com as quais já nos é insuportável conviver.

Muito se tem pesquisado e escrito sobre a importância da leitura na escola. Ao

mergulharmos na leitura de alguns teóricos, como Paulo Freire, Antonio Gramsci, Roland

Barthes, Daniel Pennac, Jean Foucambert, Walter Benjamin, Ezequiel Theodoro da Silva, Ítalo

Calvino, Ana Maria Machado, Eliana Yunes, Isabel Solé, Umberto Eco, Paulo Bragato Filho,

Terry Eagleton, Anne-Marie Chartier, Roger Chartier, Magda Soares e Sonia Krammer,

pensamos: escrever mais o quê? O essencial já foi escrito. Mas, quando voltamos para o nosso

contexto escolar, desejamos avançar, desenvolver a nossa prática, registrá-la, trabalhar nela,

contribuindo para que os altos índices de analfabetismo e iletrismo caiam, para que a literatura de

qualidade retome o lugar e a importância que deve ter na escola.

Como anda a nossa prática hoje? Seria hipócrita e pessimista a negação dos avanços feitos

pelos espaços de leitura criados pelo Município, bem como a manutenção dos acervos, desde a

criação das Salas de Leitura e da figura do professor da Sala de Leitura como promotor de uma

política pública de leitura nas escolas. Já se passaram 16 anos desde o início da implantação desse

trabalho e os resultados começam a aparecer.

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Temos recuos e medos sérios: o fechamento de várias Salas de Leitura por falta de

professores, a retirada destes para substituição freqüente dos professores regentes de turma em

suas faltas ou licenças, acervos inoperantes, espaços utilizados como depósito de livros, e boatos

que correm, de tempos em tempos, de que as Salas de Leitura vão terminar por serem perfumaria

diante das grandes necessidades da Rede Municipal do Rio de Janeiro. Uma máquina gigante que

às vezes trata os professores das Salas de Leitura como tapadores de buracos e, em outras

ocasiões, investe neles como se fossem os profissionais mais importantes.

Resta-nos concluir, então, que apesar de tanta gente séria e competente estar trabalhando

com a leitura, pesquisando e teorizando sobre suas práticas pedagógicas, ela ainda engatinha nas

escolas e não se sustenta em pé por falta de estruturas político-administrativas que consolidem o

trabalho iniciado.

Apesar dos esforços de alguns professores, que, como nós, acreditam e trabalham

eficazmente com a literatura, grande parte deles lê menos do que deveria. As alegações são reais

e basicamente as mesmas: baixos salários, carga horária excessiva, conseqüente esgotamento

físico e dificuldade de conciliação da jornada de trabalho com tarefas domésticas. Tudo isso

passa, sem dúvida, pela questão salarial que todos já conhecemos.

Diante do exposto, não podemos lançar apenas sobre os professores a responsabilidade

dos alunos, num contexto mais amplo, lerem pouco, e de que as leituras literárias significativas

não aparecem nos planejamentos da maior parte de nossas escolas. O que falta? Por que falta?

Falta vontade política em reconhecer a importância do ofício de professor. Há que se

reduzir sua jornada de trabalho em sala de aula e considerar o planejamento e o estudo coletivo

como fundamentais para que as escolas possam produzir conhecimento e promover leituras.

Encontramos professores desejosos de mudar a realidade, porém paralisados por suas

limitações e pela falta de cursos de atualização e de estudo permanentes. Os professores em

regência de turma são como máquinas que não podem deixar de trabalhar. Esse tem sido o lugar

político e social do professor regente de 1º grau: escravo da dupla regência, sem a qual não

conseguiria sobreviver, mas que o deixa cansado até para pensar.

É desse lugar de indignação, de procura, de opressão, de resistência e de muito desejo de

mudança que falamos. Lugar de trabalho, de pesquisa, de mestrado (sem bolsa, licenças ou

redução de carga horária), lugar de produção de conhecimento.

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É dessa experiência de campo, ano após ano, que nasceram as convicções e as dúvidas,

lutando e crendo que a leitura é o caminho para a educação, que precisa ser explorado e

conhecido, primeiramente, pelo professor, para que este possa ser usado como leitor-guia, o

mediador entre o aluno e o livro. Só assim formaremos uma comunidade de leitores capazes de

ler e compreender o que leram, cruzar leituras, comparando-as em suas diferenças estéticas e de

significação. Ler os livros para melhor ler o mundo e nele se inserir significativamente.

Os professores são parte, não única, porém fundamental e mediadora nesse processo.

Acreditamos, também, que toda educação precisa de um novo curso, ao desemperrar a

máquina da repetição de recursos pedagógicos obsoletos, mecânicos e mais do que condenados,

pelos pesquisadores de leitura e pelos resultados dessas práticas, e iniciar experiências coletivas

inovadoras. Construindo juntos novos caminhos nas unidades escolares, ouvindo a todos os

envolvidos no processo daquela região, e encontrando soluções específicas para uma clientela

específica, a partir do corpo docente com que se pode contar.

Como desenvolver o gosto e a consciência da importância da leitura? Que leitor nós

desejamos formar? Em que nível de leitura estão os nossos alunos quando os recebemos? Aonde

queremos que eles cheguem? Que estratégias e livros os professores usarão para que isso

aconteça de fato?

Conhecemos, nós mesmos, as bibliotecas de nossas cidades e os seus acervos, bem como

o acervo da Sala de Leitura da escola em que trabalhamos? Como ensinar e utilizar o que

desconhecemos? Como os dicionários, enciclopédias, revistas e livros, serão úteis ao nosso

trabalho? Estas são algumas das perguntas que nos falam de perto.

Cremos que os professores saberão fazer as escolhas que lhes convém desde que tenham

acesso às informações teóricas que hoje lhes faltam. Temos observado, em diferentes escolas, que

o que para nós, pesquisadores do ensino da leitura, é óbvio, permanece estranho para grande parte

do magistério. Há um abismo entre o discurso acadêmico e o professor da escola pública.

Precisamos de capacitações que aproximem e facilitem a decodificação desses discursos, dando

aos professores oportunidade e contato com novos meios e formas de ensinar a ler. Precisamos

trazer a universidade para a escola e levar a escola para a universidade.

É urgente que essas discussões sejam trazidas para a escola de maneira séria e

conseqüente. Unir teorias e práticas para não continuar “levando com a barriga” as mesmas

situações de repetência e abandono da escola, culpando os alunos e nos escondendo atrás do

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velho clichê: os alunos não gostam e não querem ler, que “eles” não querem nada, são resistentes,

verificam o número de folhas que os livros têm, e só se interessam por livros com gravuras ou por

Harry Potter. Acordemos para a realidade da profunda diferença social que existe entre alunos e

professores. Pois, arraigados que somos à cultura e ao saber das elites, não damos voz aos alunos

(in-fan = sem voz), que sofrem com o choque de discursos, registros e valores, e não nos

sensibilizamos com a falta de expectativas de alguns professores em relação ao trabalho com as

turmas com maiores dificuldades. Sem escuta e sem diálogo, muitos de nossos alunos se sentem

incapazes e param de estudar, acreditando “não dar para isso”.

Práticas comuns nas escolas precisam ser revistas. Se compararmos o serviço de um

professor ao de um médico, diríamos que: se em um hospital der entrada um paciente em estado

grave, ou gravíssimo, qualquer atendente de enfermagem sabe que precisa chamar o melhor

especialista que houver na casa; nas escolas, pelo contrário, as turmas com mais dificuldades são

dadas aos recém contratados ou aos profissionais menos interessados, na crença de ser um

prejuízo menor. Somamos assim o não rendimento de um profissional ao não rendimento de uma

turma e ainda queremos que os alunos recuperem o tempo perdido nas classes de progressão.

Não tem havido vontade política de reverter o quadro de analfabetismo e de iletrismo nas

escolas e no país e isso se reflete na falta de suporte ao trabalho dos professores. A partir de 2007,

estaremos dando início a uma nova estruturação do 1º grau, que será dividido em três segmentos,

onde os alunos não mais poderão ser retidos. Mais uma facada na educação pública. Quantos

homens do poder já descobriram a importância e o valor da leiturização a ponto de transformá-la

em objetivo central da educação? Isso convém?

Quantos professores têm tido acesso à informação teórica e a textos fundamentais no

processo de aprendizagem da leitura? Por que as universidades não possuem um departamento de

Ciência da Leitura? Quantos professores estarão aptos a coordenar as ações individuais que

constituirão a política de leitura escolar, da alfabetização ao letramento? Quantos sabem que a

leitura literária é essencial à formação da subjetividade da criança, podendo responder, de

diferentes formas, a questionamentos íntimos, e ainda proporcionar prazer?

É tempo de unirmos esforços, pois o problema da leitura vai muito além do professor. A

escola pública foi formada para garantir a permanência da divisão social em classes e para

garantir a permanência de poucos nos privilégios das elites. Ela só está cumprindo o papel para o

qual foi criada.

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Apesar de tudo, o professor pode escolher a que sistema vai servir: o da reprodução ou o

da libertação. Libertando a si mesmo e ao seu aluno, construirá métodos reflexivos de ensino de

leitura, portadores de uma clareza social que lhes permita observar o sistema com distanciamento

e lutar contra a repetição.

O professor deverá alcançar a liberdade de estudar junto com o aluno, como um eterno

aprendiz, e, de maneira inteligente, ir formando seu repertório de leituras, caso não o tenha.

Quem enveredar por este caminho certamente irá descobrir como a literatura pode ser uma

tremenda parceira na solução de problemas relacionados ao interesse pela leitura, pela escrita e

pela escola.

Precisamos permitir que todas essas questões permeiem nossas acaloradas discussões

pedagógicas, que muitas vezes não conseguem sair do muro das lamentações. Ao invés de copiar

o planejamento do ano anterior, melhor seria reavaliar nossos planejamentos, buscando novas

soluções e estratégias. Ou será que podemos nos “dar ao luxo” de não mexer em nossos

planejamentos, de não abrir espaço em nossos currículos para a leitura e a literatura, no intuito de

uma formação consciente e responsável do cidadão enquanto leitor e leitor crítico?

Os professores das diferentes disciplinas precisam se unir e planejar, de forma articulada,

leituras para seus alunos, levando em conta o nível de dificuldade, os tipos de textualidade e os

gêneros, graduando-os e procurando dar-lhes uma seqüência e um ritmo, ao longo de todo o 1º

grau. Reconheçamos que temos preferido currículos com pouca ou nenhuma discussão de valores

e critérios para a seleção de conteúdos, e que em sua maior parte são repetitivos, mal planejados,

desconexos, estereotipados e previsíveis, descartando o interesse dos alunos e a sua realidade

social e histórica. Desta forma, com critérios previamente estabelecidos, nega-se todo e qualquer

espaço formal para o desenvolvimento da leitura.

Repensar a pedagogia da leitura, articular diferentes textos, ler o mundo criticamente, e

inserir-se de forma responsável e consciente é tarefa, fundamentalmente, política e

transformadora da escola nesse mundo globalizado.

É necessário levantar novos soldados de leitura, que precisarão lutar bravamente nessa

guerra até que a democratização dos saberes se dê de tal forma que todo cidadão tenha acesso à

cultura, aos espaços públicos de leitura e, conseqüentemente, descubra o prazer de ler

criticamente qualquer coisa, se conscientizando de sua existência enquanto ser-cidadão, que

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nasceu para desfrutar de tudo o que a vida oferece, inclusive o prazer de conhecer e escolher

autores, formas e estilos de textos.

A literatura, enquanto discurso escrito, deve ser expressão de criatividade. Um saber

que possibilite o leitor a engajar-se num processo de construção de um conhecimento formador

de uma leitura de mundo. O professor deve ler e fazer ler, como cidadão-leitor crítico e

consciente das ideologias vigentes, posicionando-se frente ao mundo capitalista, que o destina a

ser um mero reduplicador “inocente”, pressionando-o de todas as formas – baixos salários,

aprovação automática, turmas agigantadas – a reproduzir sua ideologia. O mestre deve ser

agente iluminador de novos saberes e se posicionar firmemente contra essas posturas anti-

sociais e antidemocráticas.

Os homens precisam compreender que os favorecimentos ferem a justiça e a ética

humanas e que a Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, pertencemos a uma só raça, a

humana, ainda que alguns teimem em se crer e se ver superiores ou mais inteligentes, com mais

direitos que outros.

Desejamos formar para a ética do gênero humano. Não para a ética instrumental e

utilitária do mercado, mas para um melhor bem-viver.

A principal meta da leitura é a humanização do homem contra toda barbárie. Educar para

a busca da utopia. Um mundo desejável para ser e estar sem medo de não poder expressar a

essência do humano. Amar a vida e tudo que a envolve.

Precisamos de uma escola valente que aceite o desafio de quebrar paradigmas, ao “remar

contra a maré”. Educar para a solidariedade e para a paz, com firme simplicidade. Educar para

o não consumismo, para a escuta do outro, a convivência, o superar algo em nós que nos una ao

outro, pois o outro sou eu. Barreiras de pobreza, miséria, raça, cultura e religião são muros altos

que se erguem entre os “diferentes” e que precisam ruir.

O leitor maduro é aquele que se abriu para quem somos. Conhece as diferenças, porém

elas não o assustam. Entende que todo julgamento obedece a uma escala de valores imposta

pelos dominadores, pelos que detém o poder, e que esses valores poderiam ser outros se os

pobres tivessem voz social. É especialmente na fala que registramos as diferenças entre

dominadores e dominados, letrados e não letrados. A linguagem é denunciadora da divisão em

classes sociais. No abrir da boca, no pronunciamento de qualquer cidadão, somos capazes de

identificar o seu meio, e só o acesso à cultura letrada pode minimizar diferenças e fazer

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qualquer cidadão ascender socialmente. Ser capaz de ler e compreender o mundo torna o

cidadão livre para sonhar, ter esperança.

A proposta do nosso trabalho é a valorização da leitura literária desde as classes de

alfabetização, de forma planejada e graduada, para que nosso aluno possa ter a sua imaginação

construída pelos clássicos infantis, pela poesia, pelo encantamento da literatura infantil e

juvenil, e não pelo conhecimento de toda sorte de armamentos pesados e pela brutalidade das

ações sanguinárias e absurdamente bárbaras que têm povoado o universo do imaginário infantil

nas favelas e periferias de nossa cidade.

Que nossas crianças e jovens tenham condições de, desde cedo, vislumbrar a

possibilidade de estarem inseridos de forma significativa na sociedade em que vivem. Uma

escola e um ensino ligados diretamente ao estar-no-mundo. Uma escola que acompanhe as

permanentes mudanças desse mundo e que não permaneça a mesma do século passado.

O que desejamos é uma Escola Pública autônoma e de qualidade, com uma política de

pesquisa e de transformação constante, que defina o que é saber ler, e que produza os meios

para esta avaliação, propondo estratégias a serem implementadas, com seqüência gradual e

coerência da 1ª à 8ª séries, considerando a leitura uma competência básica para o desempenho

escolar e o exercício da cidadania.

O apontar para esse caminho é resultado do que já temos começado a experimentar

enquanto professores da Rede Pública do Rio de Janeiro. Alunos que saem e se engajam nas

escolas secundárias, apresentando bons resultados, que são capazes de se destacarem e de

interferirem de forma construtiva nos ambientes que freqüentam.

Nossas experiências bem sucedidas, nas Salas de Leitura e no planejamento escolar como

um todo, começam a se multiplicar e trazer para a escola resultados concretos na forma de

prêmios literários, participações em congressos e debates estudantis, visitas às universidades, e

prêmios nas olimpíadas interestaduais de matemática. O ano de 2005 trouxe grande

produtividade ao corpo docente da Escola Municipal Mario Cláudio, que apostou no seu

Projeto Político Pedagógico e, durante os quatro últimos anos, privilegiou a leitura e a escrita

como responsabilidade de todos os professores. Os resultados estão muito aquém do que

desejamos, pois ainda perdemos muitos alunos para o tráfico de drogas e para a reprovação,

mas resgatamos outros, com muito amor às suas histórias e às histórias da literatura, que nos

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auxiliam na construção conjunta de um novo universo, cheio de arte, beleza, esperança e

criatividade.

Leram, escreveram, desenharam, e foram ao cinema e ao salão do livro. Descobriram que

podem e devem ter voz social e política. Ouviram diferentes vozes através dos diferentes

professores e textos da literatura, das revistas, jornais, filmes, desenhos animados e vídeos.

Tudo isso foi fortalecido pela Sala de Leitura, com empréstimos semanais de livros e formação

de oficinas, e pela coordenação pedagógica, parceira fundamental para que um trabalho sério

com leitura se realizasse, visto que as atividades que circundam a leitura podem ampliá-la ou

torná-la detestável para o aluno.

Nossa prática nos aponta que a leitura deve ser feita de forma planejada e com atividades

que cooperem para a aproximação do aluno e do livro, para que os exercícios sejam centrados

nos significados mais amplos dos textos. Como os autores utilizam a língua e nos atingem, nas

diferentes possibilidades de diálogo dos textos com o leitor e com outros textos, e não no que

eles dizem apenas referencialmente.

Isso incentiva os alunos a se apropriarem dos textos como sujeitos de suas leituras e não

como adivinhos das leituras de seus professores.

Construir junto aos nossos alunos re-escrituras significantes, onde eles possam ler com

liberdade, socializando o seu próprio percurso de leitura, privilegiando a reflexão sobre os

aspectos abordados nos livros, opinando criticamente e ouvindo outros a respeito do mesmo

texto. Assim abriremos leques de entendimento e significação que se somarão nas diferentes

visões do texto.

É nesse convívio pacífico e dessacralizado com o livro e o literário, o professor e a

literatura, que nossos alunos terão a chance de se expressarem e se submeterem à apreciação

dos outros seus pensamentos, experiências de vida e opiniões estéticas, aprendendo a ter e a dar

vez e voz a si e aos companheiros. Esperamos ser o alvo de toda a escola pública e de todo

professor crescer na troca democrática de descobertas e saberes.

Referenciando-nos nas análises sobre o mercado de bens simbólicos, de Pierre Bourdieu,

e nas idéias de Antonio Gramsci, Paulo Freire e Moacir Gadotti acerca do ensino público, e não

deixando escapar os diferentes escritos sobre a leitura e a literatura, e de suas práticas na escola,

procuramos nortear nossa pesquisa sem sair do campo (contato direto com alunos e leituras),

unindo as teorias com a realidade interna das escolas.

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Fazendo parte de uma equipe que coordena 53 escolas municipais da 1ª CRE do

Município do Rio de Janeiro, nossa ação de pesquisa nos foi facilitada. Temos lutado para que ela

se transforme em prática diária e que esta possa ser uma rica fonte de pesquisa e transformação

permanente da prática pedagógica e do ensino da literatura nas escolas públicas. Queremos que

nossos alunos saiam da escola com muitas idéias e textos. Com muita reflexão e leitura, capazes

de serem questionadores do mundo e de darem respostas acerca do que eles já construíram, do

que eles já são. E se a resposta vier de outro, que seja a partir de uma concordância consciente e

crítica do que se escolheu, a fim de que eles possam ser autores de seus próprios discursos e

histórias, e descobrir, principalmente, qual engajamento social deverá substituir a

irresponsabilidade, a corrupção, a exclusão e a injustiça social. Nossa proposta é garantir o livre

acesso do alunado a toda herança literária e cultural humana, rumo a uma educação libertadora

que o torne de fato sujeito-agente de seu crescimento, desenvolvimento e interesse cultural, e não

um mero repetidor da ideologia vigente.

Despertar no professor o desejo de trazer para si a crença de que a educação pode ser fonte

geradora de mudança social. Mudar de mentalidade precede qualquer mudança social. Estar

indignado a ponto de repensar a prática pedagógica e trabalhar na construção coletiva de novas

práticas que recoloquem a leitura no lugar que lhe é devido, combatendo a violência, que tão de

perto nos acede.

É necessário indignar-se e amar a vida, o outro, as artes, as ciências e o homem humano.

Garantir a presença da literatura infantil e juvenil nos planejamentos escolares de toda a Rede

Pública de forma adequada e gradual, possibilitando que o aluno pobre tenha as mesmas

oportunidades de acesso ao saber das elites, e uma formação crítica e consciente do mundo em

que vive, sendo transformado em sujeito de sua história. Ao perder toda inocência política,

posiciona-se, interagindo e interferindo nas decisões e nos rumos de seu país e na sua história.

Sabemos que nada estará algum dia definitivamente concluído, pois estamos em constantes

mudanças, ora avançando, ora retrocedendo. Mas que não se aparte de nós a esperança e a fé no

homem humano para formar uma sociedade mais justa e participativa, onde as decisões não

levem em conta apenas os interesses dos grandes, havendo oportunidade dos que não são virem a

ser grandes veredas.

Nosso trabalho se dirige não apenas à academia, mas, principalmente, aos professores do 1º

grau, que aparecerão duplamente inscritos aqui como interlocutores, com os quais desejamos

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manter permanente diálogo, e como objeto de pesquisa, através de suas falas e ações

pedagógicas. Nosso objetivo maior é, de alguma forma, contribuir para o processo de

transformação da escola, tanto no momento da nossa prática quanto no processo de pesquisa, a

fim de que o desmanche de, pelo menos, alguns nós que temos tecido, ocorra.

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2. O ENSINO DA LEITURA COMO FONTE DE CRESCIMENTO E

TRANSFORMAÇÃO PESSOAL E SOCIAL

2.1. Retrato histórico da leitura no Brasil

Quase sempre, o sujeito social mergulhado apenas na cultura e nas imagens de massa da mercadoria está excluído das formas e imagens culturais mais elaboradas. Não porque delas desgoste, mas porque a elas não tem acesso, não as entende, não fazem parte de seu repertório, passam longe da forma como sua imaginação é construída e influenciada. E nenhum populismo seria capaz de superar, como num passe de mágica, as experiências de uma e outra forma de cultura, ao preço de reduzir o debate ao absurdo. Isso posto, cabe lembrar o óbvio: os sujeitos sociais podem ser educados, tendo acesso à variedade de formas de cultura, podendo então fazer suas escolhas, nesse ou naquele campo, sem as restrições de um elitismo constrangedor (BUENO, 2002, p. 275).

Antes de falarmos da leitura no Brasil, é necessário lembrar da leitura na França, antes e

depois da Revolução Francesa, uma vez que foi a partir daí que ela se tornou algo coletivamente

ensinável nas escolas.

É importante relembrar que, apenas a partir de 1789, com a escola de Jules Ferry, na

França, se concretiza a idéia de que aprender a ler se faz na escola. Antes se aprendia a ler em

casa com os pais ou com preceptores. A partir da Reforma Luterana, e depois da Contra-Reforma

Católica, surge, com a escola republicana, a crença no lema “escolarizar para alfabetizar”. Inicia-

se aí o ensino coletivo e de massa. Até então, o ensino era particular, individual, e apenas as

crianças ricas podiam aprender a ler. A escrita era algo ainda mais complicado, pois só em 1830 a

pena de ferro ou de aço foi inventada. Escrever era uma arte de adultos, pois requeria muita

habilidade com as mãos para dominar uma pena de ganso.

Com a Revolução Francesa, a escola se torna universal e gratuita, sendo necessário uma

maneira de ensinar a muitos de forma econômica. Estavam instituídas as classes e o início de uma

escola mais popular, substituindo os preceptores especializados em leitura, escrita e contas, que

tinham alto custo para as famílias.

De 1810 até 1833, centenas de Escolas Normais aparecem na França. Surgia um novo

professor, especializado em Alfabetização. Porém, alguns mestres continuavam crendo que ler e

escrever eram atividades distintas, defendendo que só se deveria ensinar a escrever quando os

alunos já soubessem ler.

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Era o sonho republicano ter cidadãos alfabetizados para fazer frente à industrialização, à

urbanização e à necessidade de ver a bandeira da Revolução Francesa concretizada: Liberdade,

Igualdade e Fraternidade.

O ideal do homem de ascender socialmente por suas virtudes, seu desempenho escolar,

trouxe à escola um valor de possibilitadora e mediadora dessa ascensão social. Cresceu a procura,

por parte do povo, da escola. Sabemos, porém, que esse ideal republicano não foi alcançado e que

a França continuou sendo um país com grandes e rígidas diferenças sociais e urbanas. Temos

assistido pela televisão os assíduos confrontos e manifestos sociais violentos, que não combinam

com a história do ideal republicano francês.

Hoje vivemos no Brasil situações semelhantes até na queima de carros e ônibus. O nosso

sonho é ver o Brasil alfabetizado, com o fim do trabalho escravo. Ver o Brasil tendo acesso à

leitura, de fato e de direito. O que temos vivido é a pura exclusão.

Apesar da Constituição prever o ensino fundamental público e gratuito dos sete aos

quatorze anos, os índices de analfabetismo são altíssimos, graças à manipulação e à

industrialização da pobreza.

O acesso à leitura e à escrita ainda é privilégio de alguns. O que deveria ser direito de

todo cidadão, um meio de desenvolver e descobrir potencialidades, dar ascensão social e política

às classes sociais desfavorecidas e desastrosamente esmagadas por essa sociedade competitiva e

desigual como é a nossa, tem sido um meio de reproduzir desigualdades: sociedade letrada versus

sociedade não letrada.

Para que as crianças possam adquirir instrumentos capazes de dar-lhes a cidadania e o

engajamento a que têm direito, precisamos proporcionar o acesso à leitura e à escrita e

acompanhá-las em seu letramento, no seu processo de apropriação dos discursos cultos da língua,

sem os quais não receberão visto de entrada numa sociedade letrada.

Há uma realidade alimentada pelos vilões sociais, que não se cansam de enriquecer. Em

muitas regiões desse enorme Brasil não há professores e nem escolas. São gastas muitas horas a

pé ou de caminhão para que as crianças cheguem cansadas à escola, com fome, e sem merenda.

Qual será o futuro dessas crianças, vítimas inocentes de um sistema que as ignora? Essa

invisibilidade social vai gerar a passividade do alienado ou a violência do que se descobre

presidiário de um sistema que o condena sem dar-lhe a menor chance de uma inclusão humana,

decente e justa.

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Não queremos uma escola para a reprodução do sistema, como colocam Passeron e Pierre

Bordieu no livro A reprodução. Nele há um pessimismo determinista que os que acreditam numa

escola libertadora quase não suportam ler. Há situações que merecem ser denunciadas por

roubarem a esperança e a fé na humanidade. Vemos a clara intenção dos poderes políticos em

preservar a mão de obra escrava, deixando as crianças pobres num encurralamento político e

social. Aos dominadores, interessa manter os pobres alijados de todo e qualquer processo de

inclusão. E são poucos os professores que têm essa consciência. Bourdieu e Monique de Saint-

Martin, no artigo “As categorias do juízo professoral”, desnudam o que normalmente ocorre na

escola: o juízo professoral não se dá sobre determinado aluno ou indivíduo, mas sobre o grupo

social a que estes pertencem.

Os agentes encarregados das operações de classificação só podem preencher adequadamente sua função social de classificação social na medida em que ela opera sob a forma de uma operação de classificação escolar, quer dizer, através de uma taxonomia propriamente escolar. Eles só fazem bem o que têm a fazer (objetivamente) porque acreditam fazer uma coisa diferente do que fazem; porque fazem uma coisa diferente do que acreditam fazer; porque eles acreditam no que eles acreditam fazer. Mistificadores mistificados, eles são as primeiras vítimas das operações que efetuam. É porque acreditam operar uma classificação propriamente escolar ou mesmo especificamente “filosófica”, porque eles acreditam atribuir diplomas de qualificação carismática (“espírito filosófico”, etc) que o sistema pode operar uma verdadeira reviravolta do sentido de suas práticas, conseguindo que façam aquilo que nem “por todo ouro do mundo” fariam. É também porque acreditam pronunciar um julgamento estritamente escolar que, ao julgamento social que se mascara sob os considerados eufemismos de sua linguagem escolar (ou mais especificamente filosófica), podem produzir seu efeito próprio: fazendo crer aos que são seu objeto que esse julgamento se aplica ao aluno ou ao aprendiz filósofo que está neles, à sua pessoa ou à sua inteligência, e jamais, em todo caso, à sua pessoa social ou, mais brutalmente, ao filho do professor ou ao filho do comerciante, o julgamento escolar obtém um reconhecimento, que não obteria, sem dúvida, o julgamento social do qual é a forma eufemizada. A transmutação da verdade social em verdade escolar (de “você é um pequeno burguês” em “você é trabalhador, mas não é brilhante”) não é um simples jogo de escrita sem conseqüência, mas uma operação de alquimia social que confere às palavras sua eficácia simbólica, seu poder de agir duravelmente sobre as práticas (BOURDIEU e SAINT-MARTIN, 1975, ps.198 e 199).

Espero que você esteja tão chocado quanto nós estivemos, ao ler pela primeira vez este

texto. É quase assustador verificar, mesmo contra nossa vontade, o quanto é verdadeiro e

perfeitamente aplicável à nossa realidade, ao Rio de Janeiro, capital. Escolas Municipais e

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Escolas Particulares: primeira grande divisão social. Se compararmos o nível de exigência das

Escolas Particulares, do pré-escolar à quarta série, verificaremos, com muita tristeza, as grandes e

sensíveis diferenças. Os conteúdos das boas Escolas Particulares estão dois anos à frente dos

conteúdos de uma boa turma das Escolas Municipais. Absurda e verificável realidade. Poderemos

argumentar que o conteúdo não interessa e o que importa são os processos de aquisição de

conhecimento, já que a internet pode nos oferecer os conteúdos que desejarmos. No entanto, sem

a mediação do professor e a interação dos colegas será a mesma coisa? Por que precisa ser assim?

Os tradicionais exercícios de casa para verificação da compreensão e fixação de conhecimentos

não são aconselháveis nas Escolas Municipais porque as crianças não têm quem as assista.

Porém, na Rede Particular esses exercícios são diários. Assim, as crianças da Rede Pública vão se

tornando preguiçosas e sem limites, pois tudo lhes é permitido e nada lhes é cobrado. Os alunos

têm “todos os direitos” e nenhum limite. A escola passa a ter um caráter assistencialista e de

guardiã das crianças enquanto os pais trabalham. Fórmula perfeita para mantê-las à margem,

futuramente, dos melhores empregos. Fórmula de exclusão.

Despreparados para tarefas de responsabilidade, sem treinamento de produção e afastados

do poder, tornam-se presa fácil da sociedade de consumo escravocrata. A escola, por sua

estrutura, acaba convencendo os alunos de que eles são incapazes para o estudo, de que eles não

dão para isso.

E colocam palavras convictas em suas bocas. Quantos de nós já não ouvimos de nossos

alunos:

– Eu não dou pra isso não, professor.

O IBGE, em sua página da internet, registra:

No Brasil, a taxa de analfabetismo da população de idade de 15 anos ou mais caiu de 17,2

%, em 1992, para 12,4 %, em 2001, conforme dados do IBGE, da Síntese de Indicadores

Sociais/2003. Apesar da queda, o índice brasileiro ainda pode ser considerado muito alto, uma

vez que o número de adultos que não sabem ler e escrever chega a 14,9 milhões.

Brasileiros não alfabetizados são mais facilmente encontrados nas áreas rurais. No estado

de Alagoas, por exemplo, praticamente a metade da população rural de idade de 15 anos ou mais,

em 2001, não sabia ler. Algumas medidas foram tomadas pela sociedade para minimizar a

questão. Em 1997, o Programa Alfabetização Solidária, que foi lançado pela ONG Comunidade

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Solidária, com o objetivo de aumentar o número de cidadãos alfabetizados, contou, no início,

com a parceria de 38 universidades.

Até hoje, a Alfabetização Solidária existe em diversos municípios do Norte e do Nordeste e

também nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. As cidades priorizadas

pelo programa são aquelas com maiores índices de analfabetismo definidos pelo IBGE. É uma

força para tentar acabar de vez com o problema do analfabetismo brasileiro, que já teve

porcentagens bem mais alarmantes em épocas passadas. Programa de apoio técnico e financeiro do

Ministério da Educação para os governos estaduais e as prefeituras, com a colaboração da

sociedade civil, tem o objetivo de diminuir as altas taxas de analfabetismo e de baixa escolaridade

nos chamados bolsões de pobreza do país.

Em outra dimensão social, vemos os alunos da Rede Municipal de Ensino que, em sua

maioria, vêm das favelas, embora as escolas se situem no asfalto. Crianças que vivem reféns dos

tiroteios que podem ocorrer a qualquer hora. Como todos os pais comentam, já se foi o tempo em

que se avisava o horário dos tiros.

– A gente tem que aprender a se esconder quando o tiro come – dizem os meninos.

As salas de aula vão se tornando o único espaço social de lazer e convívio seguro contra a

guerra do tráfico. É nessa realidade social que a leitura precisa acontecer. Temos desenvolvido

um trabalho de leitura crítica e múltipla, que já começa a se manifestar dentro da rede.

Vislumbramos possibilidades de preparar pelo menos os que quiserem.

A leitura resulta de uma necessidade ou do desejo de um diálogo entre um autor, um

leitor, um contexto de produção e um contexto de circulação. Sabemos que os que escrevem têm

como referencial a sua realidade letrada, o seu contexto social (classe média ou alta burguesia), e

as editoras publicam para os que compram (não para os pobres), e o contexto de circulação dá-se

nas bibliotecas, nas residências e nas Salas de Leitura das Escolas Municipais.

As Salas de Leitura são janelas que se abrem para a literatura encontrar-se com o leitor

pobre, muitas vezes extremamente sensível e apreciador da arte da linguagem, mesmo que o seu

contexto e a sua cultura apareçam pouco representados nos textos literários que, em sua quase

totalidade, são de autores oriundos das elites. Mas, como só os ricos admiram e alimentam a

pobreza, os pobres têm provado que também apreciam a arte literária.

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Nós, professores, não podemos ignorar este espaço que se abre. Ainda que saibamos que

há máscaras sociais e que muitas Salas de Leitura estão fechadas e os seus acervos existentes

encontram-se sem circulação, nossa tarefa é continuar trabalhando da melhor forma para que

estes espaços cheguem a ser reivindicados pelo alunado e pela comunidade escolar.

Remetemo-nos à nossa própria história de filha de imigrantes espanhóis, sem biblioteca

em casa, mas aprendendo com os professores a utilizar a biblioteca da escola, a tomar gosto pela

leitura, matar com ela a saudade dos que ficaram para trás, vivendo outras vidas e oportunidades

através dos textos.

Nos anos 60, a literatura infantil era escassa, tínhamos Monteiro Lobato, as coleções

Mundo da Criança e As Mil e Uma Noites, as fábulas e a literatura adulta. A nossa geração

decorava as poesias que vinham sempre no final dos livros didáticos. Nas festas escolares, elas

eram recitadas e aplaudidas. Brincávamos muitas vezes com as poesias. Alguém começava a

declamar um verso e outro continuava, as vozes iam se somando e, naquela brincadeira, todos

ficavam conhecendo aqueles textos. Em uma das disciplinas do Curso de Mestrado, o professor

Antônio Carlos Secchin, em sua oficina de escrita, soltou o que em nossa infância era uma senha:

o início de uma poesia. “Quando Ismália enlouqueceu pôs-se na torre a sonhar”

(GUIMARAENS, 1976, p. 70). Imediatamente respondi: “Viu uma lua no céu, viu outra lua no

mar” (GUIMARAENS, 1976, p. 70).

Em uníssono, continuamos, os dois, a declamar o restante da poesia. Ele fez seu curso

primário em Cachoeiro de Itapemirim e eu no Rio de Janeiro, mas certamente conhecíamos o

mesmo ritual lúdico. Os outros nove alunos nos admiraram. Bem mais novos, creio que pensaram

que apenas conhecíamos de cor a mesma poesia. Mas os olhos do mestre poeta brilharam e,

naquele momento, tínhamos voltado, com saudade, cumplicidade e prazer, aos bancos escolares

da década de 60.

Esses rituais escolares foram extintos e esquecidos pela escola. Como seria bom o seu

resgate. O Município do Rio anualmente publica o Poesia na Escola, em parceria com o jornal

Folha Dirigida, um livro de autoria dos alunos da Rede Pública, onde a produção literária é

incentivada. Temos trabalhado com saraus, onde a poesia é sempre um sucesso garantido, mas

ressuscitá-la enquanto jogo, algo que flui e faz parte do dia-a-dia da cultura das crianças, como

troca lúdica de emoções e sentimentos em torno de um texto, ainda é caminho a trilhar.

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Como diz André Bueno, os alunos não tem tido contato com variados textos e não gostam

de ler porque não os conhecem. A escola precisa criar novamente o habitus do literário como pão

de cada dia.

Sujeitos sociais mergulhados na cultura de massa e nas imagens do consumo ficam

totalmente excluídos de outras formas mais elaboradas de cultura, como a literatura, o teatro, o

cinema, a música clássica, a pintura, a escultura, e outras formas de arte.

Simplesmente, essas formas de arte nunca farão parte do repertório dos alunos se a escola

não intervir. Livros, como alguns de Ana Maria Machado e Fátima Miguez, que se apropriam de

telas de alguns bons pintores como fonte de inspiração, trazendo suas releituras e resgatando para

as crianças esse contato direto com as artes, devem ser referência de formação de novas leituras.

A escola deve trabalhar com a literatura antes mesmo de alfabetizar, isto é, desde a pré-

escola. A criança não precisa saber ler para poder ouvir as histórias e ter seu imaginário povoado

pelos arquétipos dos heróis. Especialmente na dinâmica psíquica, esses arquétipos representam

força, coragem, poder, superação, independência, sucesso, enfim, objetos de admiração e busca

de um ideal. Na infância, há a busca pelo herói para salvar a criança de seus dilemas, o desejo por

ter os poderes mágicos que a farão herói para que ela, por si só, se livre de seus embaraços, sem

depender de outro. Este mesmo pensamento ambíguo ocorre no adolescente (dependência versus

independência) que, por vezes, precisa de alguém como seu herói, e outras vezes quer agir

sozinho, como se fosse auto-suficiente. A literatura pode se tornar, nessa fase, um ideal de busca

de espelhamento e soluções para conflitos.

A literatura desenvolve o cognitivo e supre o emocional, auxiliando a criança a elaborar

medos e dores, sentimentos de incapacidade e desamor. As vitórias de seus heróis serão as suas.

Frisamos também a importância dos finais felizes dos contos clássicos em que o bem sempre

vence o mal, isso anima a criança a crer que a situação de conflito que ela atravessa vai ter fim, e

um bom fim.

É função da escola dar a seu aluno o acesso necessário a essas formas de expressão e arte,

a fim de que os educandos possam ter a sua subjetividade e o seu imaginário construídos e

influenciados por essas linguagens.

E uma tela deserta Virou espaço de descobertas Dos olhos pintores

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A tingir histórias Pinceladas de memórias. Retratos da humanidade, Molduras de sonho e realidade Em tons de tristeza, saudade, Mas também de alegria, de felicidade (MIGUEZ, 2001).

A escritora Fátima Miguez tem norteado parte de sua obra na junção de textos poéticos

com telas de pintores, como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari e Lasar Segall. Esta união da

linguagem literária com a pictórica tem contribuído, em muito, para a educação do olhar estético

das crianças e dos jovens. Destacamos aqui Em boca fechada não entra mosca, que traz o tema

da mulher negra. Inspirada na tela A Negra (1923), de Tarsila do Amaral, dá realce à boca negra,

trazendo para o foco narrativo o preconceito com a mulher, na referência sugestiva ao calar-se

para “se dar bem”, ao manter o status quo masculino (aos homens é dado “o poder falar” e às

mulheres “o poder calar”, para que não entrem moscas em suas bocas, para que não se metam em

problemas). Todos esses preconceitos e limites impostos vêm emoldurados por dois lábios

femininos grossíssimos, em franca brasilidade modernista. Lábios entreabertos, prontos para

falar. O livro é inspirador de muitas discussões e debates em sala de aula, que dão voz aos nossos

alunos. O que diz a boca do pobre e o que diz a boca do rico? Que outros provérbios encontramos

com a palavra boca? Botar a boca no trombone; fazer boca-de-siri; amanhecer com a boca cheia

de formigas; cair na boca do povo; o que faz mal é o que sai da boca e não o que entra; a boca

fala o de que o coração está cheio; etc...

Trabalhar com nossos alunos os ditos populares, as parlendas, os contos folclóricos, as

cantigas de roda e de ninar, os trava-línguas e as adivinhas, formas mais simples de poesia

popular, os conduzirão a mais tarde receberem formas literárias mais elaboradas. Retratos de

humanidade que nos trazem à memória o poema de Drummond, Negra.

A negra para tudo A negra para todos A negra para capinar plantar Regar Colher carregar empilhar no paiol Ensacar Lavar passar remendar costurar cozinhar Rachar lenha Limpar a bunda dos nhozinhos Trepar.

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A negra para tudo Nada que não seja tudo tudo tudo Até o minuto de (único trabalho para seu proveito exclusivo) morrer (DRUMMOND, 1983, p. 557).

Entendemos que a alfabetização deve ser um processo permanente de conhecer novas

formas de expressão e cultura, não apenas o aprendizado de um código restrito a letras e fonemas,

mas uma escolarização que garanta o contato com o que nossa língua tem de melhor em termos

de literatura e cultura, e que um texto possa puxar outro e outro, numa verdadeira construção do

nosso estar-no-mundo, sendo a leitura enriquecida pelos diferentes modos de ver, pronunciar e

sentir o humano.

A verdadeira alfabetização vai muito além das letras e fonemas, ela exige sensibilidade e

observação, ou seja, estar antenado com tudo que gira ao nosso redor e ao redor do aluno.

O escritor Ricardo Azevedo dá uma Aula de leitura com seu poema:

Aula de leitura A leitura é muito mais Que decifrar palavras. Quem quiser parar pra ver Pode até se surpreender: Vai ler nas folhas do chão, Se é outono ou verão; Nas ondas soltas do mar, Se é hora de navegar; E no jeito da pessoa, Se trabalha ou se é à-toa; Na cara do lutador, Quando está sentindo dor; Vai ler na casa de alguém O gosto que o dono tem; E no pêlo do cachorro, Se é melhor gritar socorro; E na cinza da fumaça, O tamanho da desgraça;

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E no tom que sopra o vento, Se corre o barco ou vai lento; E também na cor da fruta, E no cheiro da comida, E no ronco do motor, E nos dentes do cavalo, E na pele da pessoa, E no brilho do sorriso, Vai ler nas nuvens do céu, Vai ler na palma da mão, Vai ler até nas estrelas E no som do coração. Uma arte que dá medo É a de ler um olhar, Pois os olhos têm segredos Difíceis de decifrar (AZEVEDO, 1998).

Esse poema resume toda a complexidade que a arte de ler abrange. O leitor é um

decifrador de olhos e de segredos, da natureza e do outro. Para que essa interação seja ampliada e

enriquecida, ele precisa dominar os códigos de leitura e escrita que lhe facilitarão a comunicação

com o outro, estando atento e sensível a tudo que se passa ao seu redor.

2.2. Caminhos para a alfabetização e o letramento de todos

Não posso reduzir a alfabetização ao ensino puro da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizandos. Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem no alfabetizando o seu sujeito (FREIRE , 2003, p. 19).

Segundo Paulo Freire, não é possível compreender a educação como uma prática

autônoma ou neutra, o que não significa também que toda educação sistemática seja reprodução

da ideologia dominante e que o aluno seja um depositário do saber do professor. Na educação

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bancária, o professor deposita no aluno o conhecimento, como se ele fosse uma folha em branco,

tábula rasa. Acreditamos, como Freire, que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, e que

a criança vem à escola portando saberes, experiências, sentimentos e aprendizados. A escola não

é o único lugar que ensina, contudo a escolarização permite ao aluno ver e compreender o mundo

de forma diferente, com instrumentos de pensamento que o ajudam a interpretar, a interagir e a

enunciar com competência e criticidade, em diferentes situações sociais. A escola que desejamos

deve contribuir para a formação de um cidadão capaz de analisar, refletir e agir criticamente

sobre o mundo e o caminho que tem trilhado. Os saberes escolares, aliados às vivências e às

histórias pessoais e coletivas, transformam o sujeito, ampliam seu olhar e mobilizam novas

descobertas e relações.

Pesquisa recentemente anunciada pelo Jornal Nacional, telejornal da Rede Globo, declara

que 41% das crianças matriculadas nas escolas públicas não terminam o 1º grau. E as não

matriculadas, quantas serão? E as crianças do interior, onde não há sequer escolas?

Essa situação é gravíssima, e ainda temos que levar em conta as crianças que reconhecem

os símbolos e as letras, mas não conseguem entender o que lêem. Muitas vezes passando três ou

quatro anos na escola e não conseguindo sequer escrever o próprio nome sem espelhar a escrita.

Há poucos dias, em uma escola da Rede Municipal de Ensino, um menino era testado por

escrito quanto à sua leitura. Após ter respondido com sucesso todas as questões, fomos felicitá-lo

por ele ter se saído tão bem. O menino afirmou que não sabia o que estava escrito. Estranhamos e

resolvemos pedir-lhe que lesse em voz alta. Para nossa surpresa, ele não sabia ler. Perguntamos-

lhe, então, como tinha respondido às questões acertadamente. Com toda sua inocência, nos

respondeu: – Eu olho as palavras que faltam na pergunta e ponho na resposta. Uma das

perguntas era: – De que cor é a rosa? O texto dizia que a rosa era vermelha. E o menino havia

respondido: – Vermelha.

Acabáramos de descobrir que ele não sabia ler, mas encontrara uma outra forma de

responder sem compreender o que lera. Ele apenas observara o posicionamento das palavras nas

frases e o aparecimento de cada uma em um determinado espaço. Aos nove anos, estava em

pleno processo inicial de decodificação da escrita, quando se esperava que ele lesse aos sete.

Por que os alunos não conseguem ler os símbolos e unir significantes e significados

depois de meses na escola?

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A maioria dos alunos brasileiros não compreende o que lê. Esta é a conclusão do estudo realizado pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A prova mediu a capacidade de leitura de estudantes de 15 anos em 32 países, envolvendo ao todo 265 mil estudantes de escolas públicas e privadas. Nossos alunos de escola pública foram capazes de identificar letras, palavras e frases, mas não de compreender o sentido do que lêem. Em último lugar no teste, nossas escolas parecem estar formando analfabetos funcionais. Como reverter este quadro? A solução, apontada pelo ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, é a mesma que encontro em meu trabalho de professor de português na rede pública da periferia de São Paulo: a escola brasileira precisa ensinar o aluno a ler. De que forma tornar a leitura agradável para nossos alunos? Como formar leitores literários? A escola brasileira precisa fazer da leitura uma ação e não somente uma teoria. Para se fazer da sala de aula um espaço de leitura, não bastam livros, mas também a capacitação do professor, o desmanche de um sistema curricular e burocrático que “amarra” o professor em uma rotina que lhe tira a liberdade e a criatividade, e uma renovação da prática do ensino na sala de aula. Minha experiência como professor na periferia me ensinou que para formarmos leitores precisamos viver o livro na sala de aula, sem medo de vivenciar a literatura como ela é: uma manifestação humana por excelência (Prof. Luis Marques, mestrando da FEUSP).

Na França, por volta de 1980, até o exército foi mobilizado na luta contra o iletrismo. É

interessante observarmos que a questão da descoberta do caminho para a formação do cidadão-

leitor não é um problema apenas dos países pobres como o Brasil. Por que será que esse caminho

está tão difícil de se descobrir? Haverá verdadeiro interesse dos governos em democratizar a

formação do cidadão-leitor? Ou será que há uma mesma necessidade internacional de que os

pobres continuem preenchendo os postos de exploração de trabalho “oferecidos” pelos ricos e

mantenham a base da sociedade de consumo em trabalhos que não permitem a verdadeira

reflexão? Terá o professor consciência suficiente da sua força e importância enquanto formador

de estruturas de percepção racional e afetiva do mundo?

Que processos psicológicos estão envolvidos na produção e no uso da linguagem? Fato é

que as tradicionais práticas de alfabetização adotadas pelas escolas já não dão conta ou são

insuficientes, diante da multiplicidade de situações que implicam o uso da escrita. Além de tudo,

contamos hoje, nas escolas públicas, com turmas abarrotadas (30 a 40 alunos) nas classes de

alfabetização. A leitura é um conjunto de capacidades específicas que exige do alfabetizando

dedicação, interesse, atenção e desejo. Sem desejo não há leitura em nenhum nível. O mundo gira

em torno da criança e do adulto, trazendo demandas de leituras. O livro não é o único objeto de

consumo a ser lido. Há letreiros luminosos, anunciando o último modelo de celular, é preciso

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escrever o nome dos amigos na agenda desse celular, mandar torpedos, ler rótulos e embalagens

de refrigerantes, chocolates e tênis das marcas que os atores vendem na TV. Para estar inserido

neste mundo é indispensável ser um leitor.

Ao pesquisarmos vários teóricos da leitura, observamos que suas conceituações abordam

diferentes aspectos, tal a importância do ato de ler. A ênfase pode ser política: “ler é arma”, como

diz Paulo Freire. Para ele, a leitura capacita o homem a se defender politicamente do risco de ser

enganado (pensar que está votando em um e votar em outro). No entanto, quanto à mudança de

posicionamento do próprio candidato, ao ser eleito, sabemos, os brasileiros, que não há nenhuma

garantia.

Muitos níveis diferenciados de riscos e de possibilidades. Assim é a leitura, como a vida,

ampla e cheia de diferentes abrangências e significados. O que sabemos? Do que e de quem

podemos nos defender com segurança numa sociedade feita de contratos e documentos que

precisamos ler atentamente?

A leitura de um contrato trabalhista é fundamental para o empregado. A leitura de um

contrato de casamento é vital para os nubentes. A leitura do contrato de um plano de saúde, ou de

um aluguel de imóvel é leitura-arma, prevenção. Posicionar-se diante de fatos banais do dia-a-

dia, sem ser enganado, é fundamental para qualquer cidadão. Leitura de sobrevivência numa

sociedade cada vez mais letrada.

Para Émile Genouvrier e Jean Peytard:

Ler é descobrir na grafia dos signos uma seqüência ordenada dos sons. Insistimos no fato de que a leitura, durante todo o período do ensino elementar, se faz em voz alta. “Fala-se a escrita”. Quer dizer que o aluno descobre a fala e ouve-a, mas não é mais a fonte da mesma: fala a partir de um texto. Graças a essa fala, compreende o escrito; a ajuda do oral lhe é indispensável para que a grafia se revele (GENOUVRIER e PEYTARD, 1974, p. 47).

A relação da fala com a escrita opera inicialmente como a tradução de um texto de língua

estrangeira. Em todo tempo, comparamos um sistema a outro, e isso se dá lenta e gradualmente,

até que a criança vai compreendendo os símbolos e descobrindo que a língua falada não é

semelhante à escrita. Evoluindo, no processo de comparar e verificar representações, ela vai

adquirindo uma autonomia que a capacita a “ler de carreirinha” e não mais soletrando sílabas.

Jean Foucambert estabelece a diferença entre um leitor e um decifrador. Um leitor não

terá dificuldades com livros, independente do número de páginas que tenha, enquanto um

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decifrador dirá: “não sei o que acontece comigo, toda vez que quero ler me dá dor de cabeça”. O

decifrador não consegue ler por muito tempo, pois não tem a competência necessária para o

aproveitamento da leitura. Ele se cansa. Foucambert afirma, ainda, que o verdadeiro leitor é

bilíngüe, não pensa na fala para entender a escrita, a considera como uma linguagem para os

olhos.

Descobrir o outro através da sua fala, pela escrita, é um excelente exercício para o

aprendizado do que um texto pode comunicar. A poesia, os contos de fadas, as fábulas, as letras

das músicas populares, as crônicas e os textos literários são bons exemplos de vozes que se fazem

ouvir através do registro escrito.

A poesia declamada nos faz parar, ouvir e admirar o que o autor conseguiu dizer de uma

forma incomum, poética. Por ser incomum e apresentar rimas, chama atenção da criança e

oferece excelente exercício de leitura e escrita para os alfabetizandos.

Diz Foucambert: “Ler é tratar com os olhos uma linguagem feita para os olhos”.

(FOUCAMBERT, 1989, p. 7). Segundo ele, a escrita é a linguagem que se dirige aos olhos.

Funciona e evolui para a comodidade da comunicação visual. O domínio inicial do código

deveria centrar-se na memória visual, no que as crianças têm contato permanente: rótulos, placas

de portas, nomes de ruas, letreiros, anúncios, etc.

Ao pensarmos em leitura com os olhos, levando em conta apenas o movimento horizontal

e o que os olhos são capazes de ler, estamos falando de um nível de leitura. Se permanecermos

nele ou perderemos a riqueza da leitura vertical, que lê determinado texto em paralelo com

outros, com os quais vai formando paradigmas literários e referências anteriores, assim

enriquecendo os sentidos.

Como ler Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda, sem que se apresente

diante de nossa memória o texto e a simbologia do Chapeuzinho Vermelho? Os dois textos

dialogam e o autor nos obriga a fazer algumas paradas para verificar diferenças e semelhanças

com o texto revisitado. A leitura não é linear ou contém apenas o que o autor diz aqui e agora.

Ela se junta a universos de significação literária, social, cultural e pessoal que lhe dará

abrangência ao formar cadeias de sentidos que ligam os universos de diferentes autores e textos

em verdadeiros circuitos de leituras.

Luis Carlos Cagliari, em seu livro Alfabetização e lingüística, observa:

Um texto escrito nem sempre é montado sintagmaticamente, apesar da aparência linear das letras e das palavras. Um bom exemplo disso são os dicionários. Um

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outro exemplo típico é a apresentação de dados. Quando analisados e interpretados em tabelas e gráficos, sua leitura é em grande parte dirigida, tendo pontos de partida e chegada mais ou menos bem definidos. Porém, os dados brutos são um conjunto de coisas escritas que não podem ser lidas linearmente. O leitor deve ligar as partes que julgar pertinentes como se resolvesse um quebra-cabeça (CAGLIARI, 2002, p. 153).

Precisamos compreender que a leitura que nos capacita a decodificar as mensagens

escritas, técnicas ou poéticas, exige de nós competências que deverão ser desenvolvidas pelos

professores em todas as abrangências: leitura sintagmática e paradigmática em paralelo;

consciência de eixos de seleção e combinação; e conhecimento de estruturas e gêneros textuais

diferenciados. Segundo Cagliari, se quisermos formar bons leitores, ensinar as crianças a ler em

seu próprio dialeto é fundamental, pois a habilidade como falante é decisiva para a boa leitura.

Lionel Bellenger aborda uma outra característica da leitura. Para ele: “Ler é ser um pouco

clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se para uma ficção, abrir o parêntese do

imaginário” (BELLENGER, 1989, p. 58). É interessante observarmos aqui que: para haver leitura

significativa, precisamos interromper nosso curso de vida e adentrar no universo do autor,

seguindo seus devaneios, fantasias e intenções, explicitados através da sua escrita. Precisamos

nos colocar à margem do que se passa ao nosso redor e viajar para um outro tempo, o tempo do

livro, em que nos disponibilizamos para lê-lo.

Em cada definição podemos ver que foi dada ênfase a uma das muitas características que a

leitura aborda. Para Ezequiel Silva, por exemplo, “ler é, antes de tudo, compreender” (SILVA,

1981, p. 67). Ler é processo de construir significado a partir do texto. Isso se torna possível pela

interação entre os elementos textuais e os conhecimentos do leitor. Quanto maior a concordância

entre eles, maior a probabilidade de êxito da leitura. Compreender tem um sentido muito amplo.

Eu posso compreender na minha medida ou na medida das minhas leituras anteriores, mas

compreender tudo, com todas as possibilidades de interpretação, no texto literário, é praticamente

impossível. Porque, como diz Lacan:

Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer dizer, e nada nunca será esgotado (LACAN, 2005).

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Se levarmos em conta apenas a linguagem denotativa, então diremos que alguém está

alfabetizado, isto é, sabe ler, pois é capaz de decodificar aquilo que lê.

Magda Soares define e pergunta: “Ler é um conjunto de habilidades, comportamentos,

conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum: em que ponto desse continuum

uma pessoa deve estar, para ser considerada alfabetizada, no que se refere à leitura? (SOARES,

2003, p. 48). Observemos que Magda não considera o processo de alfabetização como algo que

termina, já que, para ela, a “Leitura não é ato solitário; é interação verbal entre indivíduos e

indivíduos socialmente determinados” (SOARES, 2003). Aqui a ênfase está na interação entre o

leitor, o autor e o texto literário, como produtos de diferentes sociedades e modos de pensar que

dialogam através do texto. Este é o pensamento da Estética da Recepção, de Wolfgang Iser, onde

o leitor reescreve o texto ao lê-lo.

Uma outra definição interessante vem de Jean Foucambert: “Ler é funcionar como uma

agulha de um toca-discos que transforma vibrações de um certo tipo em sinais de outro tipo

(FOUCAMBERT, 1999, p. 47).

Podemos dizer que o enfoque agora está sobre as diferenças entre significante e

significado, faces de uma mesma moeda que podem apresentar significações muitas vezes

imprevisíveis. No caso da literatura, a palavra sai do “estado de dicionário” e alça vôos só

possíveis de serem decodificados dentro de um novo código, gerado no fazer do texto literário,

em contato com as experiências de leitura do leitor e do autor. Continuaremos nesse caminho de

refletir sobre a leitura com Daniel Pennac, que diz: “a leitura é um ato de criação permanente”

(PENNAC, 1993, p. 26).

No texto literário, podemos encontrar sempre novos significados, dependendo de nossas

experiências de vida ou de leituras. Terry Eagleton afirma que “as obras literárias permanecem as

mesmas enquanto as suas interpretações se modificam de acordo com o tempo e a sociedade que

as interpreta” (EAGLETON). É o que ele chama de “horizontes históricos”. Cada cultura leva

para o texto seu contexto e, a partir dele, estabelece um diálogo. Mas o que é contexto? O que é

contextualizar?

Contexto, do latim contextus, “tecido com”, tecer junto, recolher sentidos do entorno

histórico e cultural. As noções de tempo e de espaço como variantes dos significados atribuídos

aos textos. Nem tudo é visível à primeira vista, por isso precisamos contextualizar.

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No livro de literatura infantil, Amores de artistas, de Sonia Rosa, tão amado pelas

crianças, encontramos expressões como “sumiu na poeira” e “sumiu num rabo de foguete”, que

eram expressões muito comuns no tempo da ditadura, quando os estudantes sumiam e não mais

apareciam por estarem metidos “num rabo de foguete”, ou seja, em situações politicamente

“perigosas”. Há uma contextualização que, para as crianças, passará desapercebida, a não ser que

o professor mediador as oriente.

Para Stanley Fish, “a leitura não é a descoberta do que significa o texto, mas um processo de

sentir aquilo que ele nos faz” (FISH, 1980, p. 39). O efeito da leitura no leitor é o que importa, e

o que ela promove no receptor é que lhe dá vida e história.

A importância de como a mensagem chega ao receptor torna indispensável a leitura em voz

alta para que um outro lhe confira a pertinência. Esse outro pode ser o professor, a mãe ou

qualquer outra pessoa próxima a quem a criança se exponha, para que seja confirmada ou não a

sua leitura. Esse processo de aprender a ler envolve muitos outros processos que exigem alguns

pré-requisitos, como segurança e aceitação, entender que o erro faz parte do processo de

aprender. Essas condições, na maioria das vezes, não são encontradas nas crianças pobres,

miseráveis, fazendo com que algumas permaneçam nas classes de alfabetização por anos

seguidos, se recusando a ligar friamente símbolos a significados e sons. Teorizar, buscar

compreender os processos e caminhos percorridos pelo aprendiz de leitura, e registrar erros e

acertos pedagógicos, têm como finalidade reavaliar a cada passo nossas práticas enquanto

formadores de caminhos de aprendizagem permanente.

Pelas definições citadas, podemos perceber como é complexo conceituar a leitura. Como

sempre estará faltando algo, uma nova possibilidade ou abrangência que sempre nos levará além.

“Iletrismo” é o novo nome dado a uma realidade muito simples: “a escolaridade básica

universal não assegura a prática cotidiana da leitura, nem o gosto de ler, muito menos o prazer da

leitura” (FERREIRO, 1999, p.16). Para Magda Soares, iletrado é aquele para o qual faltam

conhecimentos literários. Escreveu Foucambert:

Em que medida a escrita, em suas numerosas formas, em seus múltiplos gêneros, ajuda-nos a eternizar o instante, a reencontrar o passado, a vislumbrar o futuro, a relacionar o que o presente fragmenta, a esboçar uma perspectiva, a refletir sobre os meios de ação, a compreender a ação dos meios e como eles nos aproximam e nos afastam dos fins, a...? [...] O iletramento, na verdade, designa pouca familiaridade com as razões do uso e com as redes da comunicação escrita, uma falta de busca da escrita enquanto elemento integrado aos temas de interesse e de

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preocupação. O iletramento define-se, assim, como a incultura da escrita (FOUCAMBERT, 1998, p. 13).

A colocação de Foucambert nos leva a pensar: no caso do Brasil, é apenas o desinteresse

que pesa ou é a falta de acesso do aluno e de sua família ao livro e aos diferentes gêneros de

escrita? O fato é que a capacidade leitora precisa ser desenvolvida nas séries subseqüentes à

alfabetização. Há muita diversidade de textos e gêneros textuais para serem conhecidos e

ensinados.

O que justificaria o gosto generalizado pela leitura no ensino fundamental – quando o

professor faz da aula uma magia, um momento de encanto e prazer – e o abandono do livro nas

classes seguintes?

É evidente que os alunos precisam passar por processos de leitura que os capacitem a ir

desenvolvendo, gradativamente, seu senso estético e sua capacidade de decodificar o literário.

Sem um planejamento sistemático e eficaz não obteremos sucesso. Passar de textos não-verbais a

verbais, de textos informativos a textos literários, de textos mais simples a textos mais

complexos, exige rituais de passagem e a mediação do professor, que irá conjugar e selecionar os

textos de acordo com o nível leitor dos alunos.

Dar a eles a oportunidade de tocar nos livros e admirar a capa, a textura, dar-lhes tempo

de lerem os títulos. Deixá-los escolher à vontade, dar-lhes a responsabilidade de guarda e

conservação dos livros, bem como a sua devolução no caso de empréstimo. Condições

fundamentais para se desenvolver um relacionamento.

Em um de nossos encontros de Sala de Leitura, com a escritora e professora Fátima

Miguez, foi distribuída por ela uma carta poética, escrita por Bartolomeu Campos de Queirós à

sua amiga Vânia, que passamos a reproduzir por conter afirmativas que muito nos interessam.

CARTA POÉTICA Belo Horizonte, 14 de Julho de 1996. Vânia, amiga minha, Por muitas vezes tenho afirmado que as palavras são portas e janelas. Se me debruço e olho, inscrevo-me na paisagem. Se destranco as portas, o enredo do mundo me visita. Vivo, hoje, desse privilégio de me estar somando ao mundo pela leitura, e de me estar dividindo pela escrita. Escrever é arriscar-se, ao tentar adivinhar o obscuro, enquanto ler é iluminar-se com a claridade do já decifrado.

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O gesto definitivo da escola sobre a minha vida foi o de não me ter afastado do prazer de ler e escrever. Minha professora, livro às mãos, encerrava as aulas remetendo-nos a outras geografias, novas histórias, belas linguagens. Sem receio do tempo e segura quanto às funções da literatura, ela exercia o magistério descontextualizando-nos, oferecendo-nos caminhos alternativos para outras viagens, não deixando morrer nossa curiosidade infantil, fazendo nascer, em nós, mais e mais desejos. Desse momento em diante, jamais estive em irremediável solidão. Há sempre ao meu lado, um livro sem nenhuma força inibidora, sem exigência ou cobrança, surpreendo-me com o ainda insuspeitado. E pode a educação fazer mais pelo homem do que remediar a sua solidão? Nascer é ganhar o abandono, é inaugurar a perda e estar só até o momento de morrer a própria morte. Vejo duas sortes de solidão: uma que inibe e outra que desafia. Padecendo da primeira, o homem se vê só, e sem força movedora para encontrar-se nas relações: se fecha e sofre. Na segunda, a dor é menor. Mesmo sabendo-se condenado à solidão, o sujeito pro-cura, busca, insiste em estar-com, consciente da impossibilidade da completude. Não é tarefa simples para a escola essa de formar leitores. É necessário, antes, ser uma escola leitora capaz de ler a cultura do mundo para bem selecionar o seu conteúdo curricular. A escola é um apêndice da cultura. Ela só romperá o cotidiano ao tomar posse da tradição, tomar posse do conhecimento produzido anteriormente. Mas muitos dos seus responsáveis consideram a cultura como matéria de um programa, como se isso fosse possível ou inteligente. Tal atitude evidencia a sua pouca capacidade de ler. Suspeito, minha amiga Vânia, que, assim sendo, a nossa cidadania será sempre cega, exercitada, comprometida com o modismo e não movida por uma força advinda do reconhecimento, pelo homem, de sua própria dignidade. A escola usa a leitura apenas com a perspectiva de somar “saber”. E ler pelo prazer de ler possibilita-nos o saber como acréscimo e a felicidade como objetivo. Vânia, o mundo é um imenso livro sem texto; ou melhor, um intenso texto. Leituras e escritas são, pois, atividades inerentes ao homem. Fascinante é ainda certificar-se de que esse livro foi criado a partir da palavra. Foi dizendo faça-se a luz, façam-se as águas, faça-se o firmamento, que tudo se fez. A palavra, de fato, realiza aquilo que prenuncia. A escola, sempre, impede o aluno de escrever a sua legenda sob esse livro, como seleciona as legendas que devem ser lidas, de acordo com a sua conveniência. (Não acredito em escola de conveniência ou de busca de equilíbrio. Ser educado é existir no plural. É apreender que tudo tem vários prumos, inúmeros pontos de vista, múltiplos significantes e muitos tantos valores. É suspeitar que dois mais dois só são quatro quando a sociedade é justa). A escola é servil e está sempre a serviço de determinados caprichos. Daí a liberdade ser considerada, por ela, como um privilégio que ela outorga e não como uma exposição incondicional para se educar. Ser educado é praticar a liberdade com o refinamento próprio daqueles que descobriram os limites da humanidade. Não se é livre sem cuidados. E a leitura, dentro de seus propósitos maiores, só é possível na liberdade. Todo meu interesse está em afirmar que não há cidadão sem leitura (QUEIRÓS, 1996).

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A carta continua, mas nós paramos por aqui. É suficiente a afirmativa categórica de um

poeta-professor de que não há cidadão sem leitura, de que não há leitura sem liberdade e que “ler

é iluminar-se com o já decifrado”.

O que não somos capazes de decifrar está impedido de nos iluminar. Isto significa que

quanto maiores forem os instrumentos que oferecermos a nossos alunos de decodificação e

interpretação, e maior o contato com bibliotecas, autores e livros, mais condições eles terão de

serem iluminados.

Que nossos professores estejam seguros da função que a literatura exerce na formação da

subjetividade e na humanidade de nossos alunos, como estava segura a professora de Bartolomeu

Campos de Queirós.

2.3. Políticas públicas para o ensino da leitura

Eu li todos os livros que ganhei na 4ª série e os tenho até hoje. Cada um tem uma história diferente e marcante. O livro Mistério de feiurinha eu li seis vezes. Eu realmente adorei todos os livros que ganhei. Adoraria ganhar outros (Rachel da Silva Azevedo, aluna da E. M. Mario Cláudio).

Esse depoimento se junta a muitos outros que todos os professores têm ouvido. Só

podemos lamentar o corte da verba do projeto federal Literatura em minha casa. Políticas

públicas de leitura sem continuidade têm sido motivo de lamento por parte de todos.

Acreditávamos poder formar um pequeno acervo literário em cada lar dessa cidade através desse

projeto. De repente, a notícia do corte.

“Alice no país das maravilhas” é uma excelente metáfora para o ensino da leitura no

Município do Rio de Janeiro. Somos ainda meninos desvendando a vida, a pedagogização

adequada da leitura e as estruturas político-sociais que a impedem. Ora nos sentimos enormes,

quando vemos nossos alunos bem sucedidos, amando a literatura, ora nos sentimos nanicos,

quando nos deparamos com o analfabetismo e a falta de leitura literária, denunciada pelos diários

de classe. Felizes, diante de escolas que produzem leitores, e derrotados, quando vemos os

quadros de professores reduzidos e as Salas de Leitura fechadas. Crescemos quando somos

investidos de cursos de capacitação permanente e quando nos é garantido o horário para os Grupos

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de Trabalhos, diminuímos quando nos obrigam a atuar como substitutos emergenciais de outros

professores.

As Salas de Leitura do Município do Rio de Janeiro, criadas há 16 anos, marcaram um

avanço significativo nas Políticas Públicas de Leitura no Município do Rio de Janeiro na medida

em que deslocaram professores para exercerem a tarefa fundamental de pensar a leitura das

diferentes linguagens e gêneros, literários e artísticos. Foram abertos espaços físicos para a guarda

e a circulação de livros na escola, com acervos para professores e alunos. Formalizou-se uma

verba pública para a compra de livros pelos órgãos centrais e pelas escolas. Foram capacitados

professores pela Secretaria Municipal de Educação – SME, indicados por seus diretores e

submetidos a entrevistas nas Coordenadorias Regionais de Educação – CRE, para se integrarem,

inicialmente, às 30 Salas de Leitura Pólo, reconhecidas como gerenciadoras desse processo de

multiplicar leituras e leitores por toda a Rede Municipal de Ensino.

Estas Salas de Leitura Pólo coordenariam e multiplicariam o trabalho nas escolas com as

Salas de Leitura Satélites e se reuniriam uma vez por mês com o órgão central (SME). As Salas

de Leitura Pólo contariam com cinco professores e as Satélites com um professor, devendo este

atender aos dois turnos. A idéia inicial era aos poucos aumentar esse quantitativo de professores

nas Salas de Leitura Satélite, conforme fossem surgindo os resultados e o serviço fosse ganhando

espaço político.

Os professores que iniciaram esse trabalho foram investidos pela Secretaria de Educação

com diferentes cursos: contadores de histórias, Projeto Horizontes Culturais e de organização de

acervo. Todos os cursos da Casa da Leitura eram oferecidos aos professores da Rede dentro dos

horários de trabalho. A CEFET foi acionada para a capacitação de todos os professores das Salas

de Leitura Pólo em informática básica: utilização do Word, Excel e Windows, e da internet.

Foram criados Grupos de Trabalho das diferentes linguagens e de mídia: literatura, jornal,

rádio, quadrinhos, vídeo e fotografia, e Grupos de Estudo para repasse com as Salas de Leitura

Satélites.

Os professores das Salas de Leitura foram construindo uma identidade diferenciada pelas

sucessivas capacitações em palestras e encontros com autores, ilustradores, profissionais de

rádios e de TVs educativas. Foi sendo construída uma prática de pensar a leitura na escola com o

órgão central na 1ª semana do mês, com a CRE (órgão regional) na 2ª semana e com as Salas de

Leitura Satélites na 3ª semana. Esse procedimento tem sido mantido por 16 anos. São 10 CREs,

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com 30 Salas de Leitura Pólo, e cada Pólo possui em média 25 Salas Satélites. Na 1ª CRE, as

Salas Pólo foram se integrando de tal maneira que as reuniões regionais eram e ainda são

realizadas no mesmo espaço. Temos a visibilidade do trabalho em 53 escolas articuladas,

trabalhando com as mesmas políticas de leitura, em permanente troca de experiências

significativas, estudos de textos teóricos, análises de vídeos educativos e de filmes, e encontros

com autores e ilustradores em cursos de capacitação continuada.

Com as recentes mudanças políticas, sentimos o arrefecer dos investimentos. Outros pólos

foram criados: Pólos de Educação pelo Trabalho e Pólo de Informática. As Salas de Leitura

deixaram de ser encaradas com a mesma seriedade. Os professores das Salas de Leitura passaram

a substituir professores em suas escolas nos casos de licenças médicas, curtas ou prolongadas.

Em algumas Salas, as substituições temporárias tornaram-se permanentes. O número de cursos de

formação continuada diminuiu e várias Salas encontram-se fechadas e o seu acervo parado.

Mesmo assim, em muitas Coordenadorias Regionais de Educação, as Salas de Leitura

cresceram e marcaram a diferença. Pesquisas externas, como o Projeto Idéia, apontam que as

escolas que possuem Salas de Leitura tiveram melhores índices de nível leitor do que as escolas

que não as possuem, e que as escolas que são Pólo de Leitura que funcionam ainda alcançaram

índices maiores. O que comprova que nos lugares onde se obteve maiores investimentos

materiais e humanos, foram colhidos melhores resultados. As Salas Pólo recebem muitos livros,

computadores e vídeos educativos, nacionais e importados, e também cursos de formação

permanente. As Salas Satélites, ao contrário, não possuem computador. Contam apenas com um

professor, que é responsável pelo empréstimo de livros para toda a escola, nos dois turnos. Este

professor precisa ter horário disponível para atender aos dois turnos; auxiliar os alunos em

pesquisas; desenvolver o Projeto Político Pedagógico da escola; registrar, organizar e fazer

circular o acervo; levar os alunos a passeios pedagógicos, quando solicitado; prestar contas de

estatísticas de empréstimos de livros e manutenção do acervo; e planejar e implementar ações

pedagógicas que dêem conta de inserir a escola nos eventos literários e artísticos da SME, da

CRE e da Sala Pólo. Mesmo com essa sobrecarga, as estatísticas evidenciam bons resultados

alcançados pela parceria que se dá entre a circulação de livros e a mediação do professor.

Pasmem, pois, mesmo diante da avalanche de responsabilidades dadas a um único

professor, o órgão administrativo central não libera a verba para a sua dupla regência. Os

professores de Sala de Leitura são os únicos da Rede que não podem fazer dupla regência. Temos

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lutado para que os professores das Salas Satélites sejam remunerados para trabalhar em tempo

integral, caso queiram, e que as Salas de Leitura estejam abertas em todos os horários de

funcionamento das escolas com pelo menos dois professores por horário. Isto é o mínimo para

que o trabalho possa ser realizado com eficácia.

Os professores das Salas Pólo, por sua vez, trabalham em escolas grandes, com dois

segmentos, coordenam e preparam material didático para as reuniões mensais com as Satélites,

trazem sugestões de abordagem de temas e autores, organizam, separam e pesquisam bibliografia

para dar suporte teórico aos projetos, e repassam as novas Políticas de Leitura dentro e fora da

escola, ainda fazendo o mesmo serviço que já foi descrito para as Satélites.

Trabalhamos numa Sala de Leitura Pólo que já se faz respeitar dentro da Rede. Com

acervo de quase 12 mil livros, entre enciclopédias, coleções completas de autores, como

Monteiro Lobato, Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rego, Nelson Rodrigues,

Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Carlos

Drummond de Andrade, Silvia Orthof, Maria Clara Machado, Lygia Bojunga Nunes, Ruth

Rocha, Ana Maria Machado, Fátima Miguez, Anna Cláudia Ramos, entre muitos outros.

Preparamos pelo menos dois grandes eventos anuais. Um é o Imagem Meio Reflexo, que

reúne todos os professores de Sala de Leitura, e o outro vem do desdobramento deste mesmo

evento organizado pelas CREs, que é preparado pelas Salas Pólo dentro de cada região. Temos

mais um outro evento, que apresenta exposições dos trabalhos feitos sobre a obra de um autor que

é escolhido anualmente, cuja indicação vem através do projeto Paixão de Ler.

Muitos professores são contra os eventos na escola, por acreditarem que estes se

convertem no único momento de leitura. Todavia, quando os eventos estão inseridos num

planejamento, reforçam e fortalecem a vida leitora dos alunos e professores. Não há como negar

que esses eventos marcam a vida de todos: são verdadeiros encontros com os autores e com a

literatura. Os eventos, quando bem trabalhados e perpassados por leituras de textos significativos,

constroem diálogos que se eternizam em nossas memórias leitoras, servindo de “disparadores” de

descobertas de novos autores e textos.

A Sala de Leitura tem participação em vários projetos: o Projeto Memória, que registra e

resgata a história de cada escola; o Projeto Poesia na Escola, que acontece todos os anos com a

publicação das melhores poesias pela Secretaria de Educação; e o Projeto Redação, que todos os

anos premia os melhores alunos com a publicação de suas redações. Além desses, temos o Tudo

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ao mesmo tempo no Rio, que leva para a praça pública os trabalhos feitos por nossos alunos. No

caso da 1ª CRE, o projeto tomava corpo na Quinta da Boa Vista, e hoje no Campo de Santana,

onde são expostos os trabalhos feitos pelos alunos com apresentações de números de dança,

teatro e música.

As Salas Pólo também têm preparado, nesses anos de existência, o encontro entre

professores e autores de textos literários e científicos sobre literatura. Já estiveram em nossas

Salas de Leitura Pólo da 1ª CRE vários autores e professores universitários: a professora Rosa

Gens, da UFRJ, que falou sobre a literatura do medo; a professora Antonella Catinari, autora de A

bicicleta e o tempo; Georgina Martins, autora dos livros de Literatura Infanto-Juvenil No olho da

rua, Minha família é colorida, Maré de histórias e O menino que gostava de ser; Fátima Miguez,

autora de Seu vento soprador de histórias, A cama que não lava o pé, Em boca fechada não entra

mosca e Perto dos olhos, perto do coração; Edna Bueno, autora de Entre Bambus, que falou

sobre a emoção da escrita e sobre o prêmio que recebeu no concurso de literatura França-Brasil;

Sonia Rosa, autora de O Menino Nito e Amores de artista, entre outros; Anna Claudia Ramos,

autora da coleção Água, Terra, Fogo e Ar e dos livros Todo mundo tem medo, Todo mundo tem

casa, A gente pode/A gente não pode e Apenas diferente, que, além de dirigir oficinas de escrita,

veio compartilhar um pouco de seus livros e histórias de Literatura Infanto-Juvenil; e Adriana

Lisboa, autora de Língua de Trapos, que apresentou uma palestra sobre a sua escrita e a literatura

infantil.

Todos esses encontros foram de substancial importância para os professores das Salas de

Leitura que, diante de autores que admiravam, puderam levar para seus alunos as suas impressões

sobre o encontro e até agendarem a visita de alguns deles às suas escolas.

No ano de 2005, foi publicado um fascículo de atualização do Núcleo Curricular Básico –

Multieducação, que não tem como objetivo substituir o guia lançado anos atrás e sim propor

novos diálogos, rever alguns conceitos, acrescentar temáticas e ampliar propostas anteriormente

discutidas. A novidade é que um módulo foi dedicado à Sala de Leitura. O documento possui 23

páginas e foi redigido pela equipe da professora Simone Monteiro, atual diretora do

Departamento de Mídia e Educação. A publicação foi um grande ganho, pois fortalece a

existência e a permanência do espaço e da função de professor regente da Sala de Leitura.

O documento descreve e pontua o trabalho das Salas de Leitura. Nele, a professora Simone

Monteiro declara que

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ensinar a ler é, antes de tudo, ensinar a escolher (...) Aconselha a escola a possibilitar as trocas entre a literatura e outros textos de circulação social, contribuindo para a formação de leitores críticos, capazes de reconhecer que condições de enunciação diferentes geram textos diferentes e supõem diferentes pactos de leitura. Compreende a leitura como prática social que se dá dentro e fora da escola e que as atividades desencadeadas nas/a partir das Salas de Leitura devem ser compreendidas no contexto de uma proposta de trabalho, que se articula com as demais ações promovidas na escola, em consonância com o Projeto Político Pedagógico (...) favorecendo a construção de práticas intertextuais e interdisciplinares (...) (MONTEIRO, 2005, p.19).

Simone Monteiro defende, ainda, a promoção da leitura e a formação de leitores na escola

como tarefas das mais importantes, que não podem ser relegadas a um segundo plano. Os

professores de Sala de Leitura vivem num constante “vai e vem” de ordens e proposições, muitas

vezes desafiadoras, que o impulsionam a estudar sempre mais e a ir descobrindo que todos já

sabem alguma coisa, mas sempre tem o que aprender.

Várias vezes nos deparamos com jogos dialéticos de posicionamentos diante do papel e da

função das Salas de Leitura dentro das escolas. Essa diversidade de papéis do professor de Sala

de Leitura pode ferir alguns pensamentos lógicos a seu respeito, porém funciona como retrato e

registro da realidade contraditória em que temos vivido.

Múltiplas linguagens, múltiplas funções. Tudo é tão múltiplo que a delimitação parece não

ser ainda possível na escola. Promover a leitura literária e revelar a natureza do texto e os

mecanismos utilizados em sua produção é desde sempre o nosso carro-chefe. Precisamos levar os

alunos aos espaços públicos de promoção da leitura, aos teatros, aos cinemas e aos museus,

estarmos antenados com as ações culturais que ocorrem na cidade, propormos leituras dos meios

de comunicação, e participarmos dos projetos propostos pela escola e pela Secretaria. E também

convencer os colegas que se é um parceiro e não um concorrente junto aos alunos, que você não

está ali passando tempo, sem uma proposta pedagógica para emprestar qualquer livro ou passar

qualquer filme enquanto o professor regente descansa. É pela literatura que nos mantemos firmes

nesse lugar. Como diz Antonio Cândido: “A literatura se caracteriza por essa liberdade

extraordinária que transcende as nossas servidões” (CÂNDIDO, 2003, p. 163).

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2.4.Planejamento participativo: traçar metas e seguir caminhos

O ensino da leitura parece ser realizado ao acaso, fazendo com que os professores ajam através do ensaio-e-erro quando da abordagem de materiais escritos junto a seus alunos. Vale a pena mencionar que até mesmo os chamados “guias curriculares” (ou outros instrumentos de apoio ao professor), em tratando do tópico de leitura, são bastante superficiais e nada ilustrativos (SILVA, 1999, p. 33).

Um dos maiores problemas da educação é a fragmentação em todos os níveis. A sociedade

está dividida em classes, a rede de ensino dividiu-se em particular e pública, a família

fragmentou-se em irmãos e filhos de diferentes origens, e o livro didático, por sua vez, traz

conteúdos em textos fragmentados. Dificilmente um texto nos é dado integralmente. Em

conseqüência disso, o aprendizado se divide e o aluno tem dificuldade de entender onde os

professores querem chegar, pois os alunos não têm acesso ao planejamento como um todo. Não

lhes é explicado o caminho nem o lugar de chegada. Ninguém gosta de andar às cegas, porém, na

maioria das vezes, é assim que conduzimos nossos alunos, às apalpadelas.

Há algum tempo, esteve em nossa escola o professor Danilo Gandin, falando sobre

planejamento e gestão democrática. Ele disse uma frase que não conseguimos mais esquecer:

“Para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve”.

Imediatamente, a relacionamos com o ensino da leitura nas escolas. Estaremos, como

escola, sabendo onde queremos chegar? Que leitor queremos formar? Haverá um caminho

específico que nos leve, com segurança, a esta formação? Confiamos em nossa intuição de

“bons” mestres e vamos repetindo as formas que foram utilizadas conosco, sem repensá-las, ou

sem sequer nos lermos nelas?

Cremos ser necessário muito mais do que apenas falar em leitura. Há uma necessidade

urgente de deixar as teorias, traçar metas e abrir caminhos novos para a formação de leitores

críticos e responsáveis, capazes de escolher seus destinos profissionais e sair da condenação à

cegueira social e política.

As práticas de leitura escolar não nascem do acaso e nem do autoritarismo ao nível da tarefa, mas sim de uma programação envolvente e devidamente planejada, que incorpore no seu trajeto de execução as necessidades, as inquietações e os desejos dos alunos-leitores (SILVA, 1999, p. 49).

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O mundo globalizado e diverso em muitas linguagens, repleto de especialistas e de áreas

absurdamente competitivas, onde formar o cidadão pouco ou nada importa, orienta todos os

esforços para o lucro, para a manutenção do status quo e para o preenchimento das necessidades

empresariais.

O saber permanece no domínio de poucos. Áreas isoladas que se juntam em cartéis de

exploração engajam os cidadãos em funções que são de interesse particular, a fim de que os que

lucram com a desinformação e a pobreza possam manter-se. Assim, um aluno de 1º grau de uma

Escola Municipal tende a permanecer no proletariado ou a se engajar nos quartéis do tráfico, que

cada vez mais, e em ritmo assustadoramente acelerado, disputam os jovens com a escola. Quem

se levantará para frear tamanha força?

É tarefa do professor: lutar por uma Escola Pública consciente e digna; apresentar o acesso

à cultura como uma forma de escapar à condenação social; desenvolver, com seus alunos,

parcerias de aprendizados; promover descobertas capazes de envolver o aluno no ato de ler o

mundo e a sociedade da qual faz parte, compreendendo suas divisões e movimentações; e buscar

sua própria inserção. Queiramos ou não, somos espelhos em que nossos jovens miram.

A escola é parte e reflexo desse mundo capitalista, fragmentado e impiedoso. Por outro

lado, pode ser também um espaço de reflexão, leitura significativa, formação e mudanças.

O professor de História tem sua leitura de mundo, assim como o de Geografia, o de

Matemática, o de Ciências e o de Língua Portuguesa, e essas diferentes e ricas leituras muitas

vezes não são partilhadas por julgarmos o aluno incapaz. Rompamos com falsas crenças e

partilhemos nossas experiências de vida com um ensino real. A polifonia é indispensável a uma

formação saudável.

Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha.[...] Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita (BOFF, 1997, p. 78).

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Cada um de nós tem o seu próprio jeito de olhar a vida e os textos. Esse olhar é fruto de

muitos outros olhares que nos nortearam e limitaram, e da cultura que nos forma. Como estamos

em constante formação, ousamos cruzar variados modos de ver e sentir a vida. Estimulamos

nossos alunos a formarem arquivos internos de leituras e saberes. Todo aluno deveria ser

ensinado, desafiado e estimulado a comparar leituras em sala de aula com o auxílio dos diferentes

professores, já que é através desses conhecimentos, somados e confrontados pelas suas próprias

experiências, trazidas de seus universos sociais e familiares, que serão formadas suas opiniões e

leituras do mundo em que vivem. Perdemos nesse distanciamento e nessa separação das

disciplinas e professores a riqueza da troca e a observação consciente dos diferentes modos de ver

e ler. E assim é: “e cada qual no seu canto e em cada canto uma dor”, citando Chico Buarque.

Há urgência de planejamentos de leituras que englobem todos os professores e os

diferentes modos de ler os textos. Planejamento participativo, onde todos tenham voz: alunos,

pais e professores. A escola, então, será uma resposta aos anseios de uma coletividade e não

estará mais a serviço de uma ideologia governamental.

Cremos que o ensino da leitura abrange todas as áreas do conhecimento e, por isso, deve

ser objeto de preocupação e planejamento de todos os professores. Juntos, estabelecerão métodos

e critérios para a formação de seus alunos.

Ler com os alunos, desde o início e todos os dias, e incendiá-los com a fagulha de

Prometeu; deixar o aluno se envolver com a realidade do texto, e, ao imaginar-se nele,

compreender o mundo e as palavras; verificar se as questões dos personagens são as deles

também; elaborar seus medos, angústias e conflitos, enquanto lêem e relêem: também são

funções da escola.

Bruno Bettelheim, em seu livro A psicanálise dos contos de fadas, aponta para a importância da leitura dos contos de fadas como forma de trabalhar as emoções das crianças e seus medos de enfrentarem o mundo hostil.

Mas meu interesse nos contos de fadas não resulta de uma análise técnica de seus méritos. É, ao contrário, conseqüência de me perguntar por que razão, na minha experiência, as crianças – tanto as normais quanto as anormais, em todos os níveis de inteligência – acham os contos de fadas folclóricos mais satisfatórios do que todas as outras estórias infantis. Quanto mais tentei entender a razão destas histórias terem tanto êxito no enriquecimento da vida interior da criança, tanto mais percebi que estes contos, num sentido bem mais profundo do que outros tipos de leitura começam onde a criança realmente se encontra no seu ser psicológico e emocional. Falam de suas pressões internas graves de um modo que ela inconscientemente compreende e – sem menosprezar as lutas interiores mais sérias que o crescimento pressupõe – oferecem exemplos tanto

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de soluções temporárias quanto permanentes para dificuldades prementes (BETTELHEIM, 1980, p. 14).

Experiências de leituras bem sucedidas apontam para uma realidade pedagógica

facilmente verificável. Quando o professor, respeitando o interesse dos alunos, traz para a sala de

aula textos de boa qualidade e os lê, partilhando o sabor da leitura na experiência conjunta de

descobrir, de sentir, de desfrutar o texto, facilmente obterá resultados positivos com seus alunos.

Nossa proposta é que a escola defina o caminho em que quer andar com a leitura. Formar

um cidadão crítico e consciente de seu papel social, a fim de que o povo deixe de ser massa de

manobra e passe a ser sujeito de sua história, como propõe Paulo Freire.

A leitura capacita o ser humano a pensar e agir com liberdade, combatendo o autoritarismo e outros ”ismos” que sinalizam a reprodução das estruturas injustas da sociedade. Nesta esfera, a educação e a escola desempenham um papel de suma importância.[...] (ZILBERMAN, 2003, p. 49).

A formação de um cidadão leitor é a verdadeira alavanca social que impulsionará

mudanças, engajará, inserirá e trará um conseqüente acesso a uma vida social mais digna.

Ensinar a ler começa no desafio de lermos nossos alunos, suas dificuldades, suas

necessidades, e, a partir do conhecimento da sua realidade, apresentar-lhes novas realidades por

meio de palavras-linguagem, que podem ser compartilhadas por eles como sendo as suas. Como

o astrônomo vê, através da luneta, os astros e as diferentes estrelas, assim também o leitor poderá,

através do texto, observar novos mundos, novas histórias de vida, imagens, sons, cores, sinais e

símbolos, que se unem em alternâncias e seqüências que podem eletrizar, envolver, sensibilizar,

fazer rir ou chorar, informar e esclarecer.

Por muito tempo, a escola tem se preocupado exageradamente com os conteúdos e o

cognitivo, em detrimento do emocional e do estético. O crescimento assustador da violência

dentro das escolas faz-nos observar a necessidade urgente de tratar de questões de convivência,

tolerância e respeito pelo outro. Todos esses valores passam pela questão da leitura em sala de

aula e pelo planejamento conjunto, que já é uma das propostas do ensino do município, que

precisa ser posto em prática permanente. O chamado Projeto Político Pedagógico na maior parte

das vezes não passa do papel. Por quê? Quem o está impedindo? Ou quem não está nos

permitindo pô-lo em prática?

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Possivelmente, a falta de horários comuns para centros de estudos ou, quem sabe, a nossa

formação reprodutora não nos permite ousar. Nós nos sentimos presos nessa máquina de

programas e livros didáticos pré-estabelecidos. Com tudo isso, é hora de sermos sacudidos pelas

novas exigências dos alunos pobres que possuem computador e estão por dentro do que acontece

na cidade até mesmo antes de acontecer.

Lembramo-nos que na ocasião do primeiro arrastão, na cidade do Rio de Janeiro, fomos

avisados por nossos alunos de que não fôssemos naquela tarde na Praça Saens Peña. Perguntamos

o porque e eles nos disseram que as mulheres ladras do morro iam descer com seus meninos para

saquear quem encontrassem pela frente.

Ouvi aquilo com estranheza e sem acreditar que fosse verdade.

À noite, ao assistir o repórter, vi que a informação recebida antecipadamente era

verdadeira. Planejamento e ação. Eles estavam aprendendo fora da escola o que era planejar e

realizar com “sucesso”.

Lideranças estavam dando lições de poder e força que nos imobilizam. Como lidar com

essas realidades cada vez mais fortes entrando nas escolas? Que estratégias de ensino serão úteis

para dizer-lhes que temos algo melhor a lhes ensinar, além do crime.

Como educar contra a barbárie? Como fazer nossos alunos serem capazes de sonhar que é

possível ter acesso à moradia, à alimentação e ao ensino sem se deixarem corromper?

Nada melhor do que um texto que amplie os horizontes e fale ao coração e à cabeça.

Verificar as necessidades da turma e escolher textos que, de alguma forma, ampliem o olhar,

trazendo o invisível e descortinando o que está abaixo da superfície dos fatos. Percebemos que

nossos alunos realmente crêem que os homens envolvidos com o tráfico são pessoas boas e que

defendem os moradores da comunidade. Apresentemos-lhes, então, novos textos e contextos,

com os quais possam dialogar e refletir.

Quantas falsas crenças serão removidas? Você poderá me dizer: “Mas é perigoso isso,

mexer com assuntos que envolvem valores de risco e comprometem nossas vidas. E se o que

dissermos for comentado ‘lá em cima’?”. Já dizia Guimarães Rosa: “Viver é perigoso”.

Nossos alunos caminham como os homens do mito platônico da caverna. Habituados às

sombras, vêem as figuras e não “o que e quem são” nesta sociedade. É preciso abrir clareiras,

deixar que a luz da consciência social entre.

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A leitura, como forma de transformação consciente do homem, deverá levá-lo a crescer, a

se informar e a viver todas as formas de bens simbólicos culturais. Penetrando em diferentes

campos do conhecimento, o homem desempenhará diferentes funções e papéis sociais.

Poder mágico e incalculável há nos textos. Com cada ser humano dá-se um encontro

único e especial, que poderá ser observado e compartilhado na sala de aula com a troca dos

diferentes modos de ler, observar e sentir os textos. E, quando neles conseguimos nos perder,

então é a clareira. Dá-se o êxtase da descoberta da linguagem literária como espelho do humano

que encanta e assusta, que nos faz sacudir o que pensávamos, enriquecendo-nos e transformando-

nos. Apenas os grandes mestres da literatura são capazes de nos levar a tanto. É importante que

nossos alunos saibam diferenciar a literatura de qualidade da subliteratura, que nada nos

acrescenta além da pobreza literária de autores que têm buscado o caminho da venda em massa

para o consumo rápido e fácil.

Nossos alunos só estarão aptos a discernir o que é um bom texto mediante o acesso a

todos os tipos de texto. A diferença literária saltará aos olhos se a sensibilidade for trabalhada e

auxiliada por um professor leitor-guia.

A forma que o professor orienta o aluno será fundamental para a construção de um

processo criativo de aprendizagem. O aluno não pode ser visto como uma folha em branco, onde

o professor determina o que vai ser escrito, anulando a bagagem já trazida, a fim de torná-lo um

repetidor de conteúdos ideologizados e formá-lo para o sistema, no intuito de preencher uma vaga

pré-determinada.

Paulo Freire chama esse processo de “educação bancária”. Nele o aluno é o depósito e o

professor o depositário.

Ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados” – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber (FREIRE, 1987, p. 63).

Esta postura de “educação bancária”, ao ser adotada, dificulta o pensar autêntico, como diz

Paulo Freire. Formar é para pensar e não para reproduzir, numa obediência cega e opressora. A

educação só será eficaz quando for libertadora e humanizante. O homem descobrindo o mundo

com os outros homens, igualmente livres, para desenvolver suas habilidades, potencialidades e

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pensamentos dentro de um respeito mútuo, na tolerância de um livre pensar, pela exposição de

saberes e culturas. Freire nos convida, em seu livro Pedagogia do oprimido, a uma permanente e

corajosa reflexão sobre a divisão social em homens “do que fazer” versus as massas oprimidas,

homens reduzidos “ao puro fazer”.

A educação e a leitura são práticas da liberdade e não consolidação do domínio de alguns.

O homem, em busca do seu estar-no-mundo, há de ser consciente na sua inserção.

A proposta educativa que liberta, insere e valoriza o que o indivíduo é não pode ser

entendida como um simples depositar de informações ou de textos. Deve depender de uma

construção coletiva, fruto do diálogo e do questionamento que nasce no aluno diante do mundo

que o cerca. Muitas vezes estamos respondendo às nossas próprias questões e não as de nossos

alunos. Até que ponto nós nos importamos com as questões deles?

Em uma reunião de planejamento, em nossa escola, um professor relata que passou todo

os primeiros anos da sua vida escolar desejando que algum professor lhe explicasse porque as

formigas andam em fila, mas nunca teve coragem de perguntar por medo de parecer ridículo.

Esse medo aparece retratado por Bartolomeu Campos de Queirós, no seu livro Indez: “Era

silencioso esse desejo, mas era forte. Sem saber o que aconteceria ali na escola, além de aprender

a ler, escrever e fazer conta de cabeça, o menino sentia um medo que lhe doía também no corpo

inteiro” (QUEIRÓS, 2004, p. 72).

Precisamos observar o nível de liberdade que temos criado para que nossos alunos

coloquem seus anseios de aprendizagem. A elaboração do saber não se faz sem riscos. É

necessário ir com nossos alunos além de nossas respostas prontas. Socializar o saber implica em

socializarmos oportunidades de emprego e dividirmos o status profissional e social de detentores

do saber. Lygia Bojunga Nunes, em Casa da Madrinha, registra também a sua percepção da escola

através de seu personagem Pavão:

A escola para onde levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente. Osarta tinha três cursos: o curso de Papo, o curso Linha, e o curso filtro. O curso papo era isso mesmo: papo. Batiam papo que só vendo. O Pavão até que gostou; naquele tempo o pensamento dele era normal, ele gostava de conversar, de ficar sabendo o que é que os outros achavam, de achar também uma porção de coisas. Só tinha um problema: ele não podia achar nada; tinha que ficar

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quieto escutando o pessoal falar. Se abria o bico ia de castigo; se pedia pra ir lá fora ia de castigo; se cochilava (o pessoal falava tanto que dava sono), acordavam ele correndo pra ele ir de castigo. O Pavão resolveu então toda hora abrir o bico, ir lá fora, cochilar, só pra ficar de castigo e não ouvir mais o pessoal falar. (...) O curso papo era pra isso mesmo: pro aluno ficar com medo de tudo. O pessoal de Osarta sabia que quanto mais apavorado o aluno ia ficando, mais o pensamento dele ia atrasando. E então eles martelavam o dia inteiro no ouvido do Pavão (Nunes, 1995, p. 24).

A autora faz um retrato da escola como repressora, reduplicadora, autoritária e nociva aos

alunos. Capaz de fazê-los regredir, entristecer e emudecer, tirando-lhes a possibilidade de

interagir, de se enunciar e de produzir.

Ludmila Tomé de Andrade, em seu livro Professores-leitores e sua formação, analisa os

procedimentos teóricos e a formulação científica de professores que relatam suas experiências e

pesquisas com leitura. Todos os textos são de professores, em 34 livros, que a autora chama de

“cartas”, enviadas pelos professores universitários, que têm por destino a prática de ensino da

leitura. Ela classifica esses livros em seis grupos: I -Vulgarização científica; II - Pesquisa sobre a

escola; III - Pesquisa aplicada; IV - Reflexões sobre o ensino; V - Manual de atividades; VI -

Relatos de experiência. E faz o percurso desses autores de ciência às práticas escolares de ensino

da língua e da leitura. Avança mostrando que alguns autores desejam oferecer seu conhecimento

de pesquisa para o seu próprio campo científico e outros se preocupam em “atingir o campo de

ensino” (ANDRADE, 2004, p. 53).

Dos 34 livros que a autora analisa, 18 fazem parte da nossa bibliografia. Isso nos fez

pensar no caminho que escolhemos enquanto professores pesquisadores.

Passeamos um pouco por cada um deles. Nossa intenção é mediar, ser uma ponte entre

uma prática e outra, estar na pesquisa para chegar no trabalho com a escola e a leitura. Cremos

que os suportes teóricos instrumentalizam a prática e dão condições aos professores que, diante

das contingências do dia-a-dia, encontrarão as soluções enquanto buscarem apropriar-se dessas

leituras.

Um professor consciente e reflexivo estará constantemente se debruçando sobre os

resultados de sua ação pedagógica junto aos seus alunos, buscando novos caminhos para andar. O

professor da Rede Pública, embora tenha a orientação da Secretaria de Educação para seguir os

marcos operativos propostos pela Multieducação, planeja suas ações pedagógicas de forma

autônoma. Essa autonomia seria uma abertura para novos caminhos se o professor tivesse uma

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formação continuada, mas isso não ocorre. Muitas vezes o professor possui apenas o 2º grau, e

essa autonomia se transforma em um caminho espinhoso, solitário e truncado. Bom seria que

tivéssemos escolas como a Escola Pública Joaquim Venâncio. Relata o artigo de Lucila Soares,

publicado na revista Veja, de 5 de abril de 2006, que esta escola, que ficou em 3º lugar no

ENEM, conta com 70% de seus professores com títulos de mestres ou doutores. Autonomia sem

formação é o mesmo que proclamar a libertação dos escravos sem oferecer emprego. Sem

formação científica, o professor permanecerá preso às velhas práticas.

A qualidade das aulas vai passar, sem dúvida nenhuma, pela qualidade da formação do

professor e do ensino universitário. Como e quem forma os professores que somos?

Com o advento do xerox, o contato dos universitários com o objeto-livro caiu

assustadoramente. Os alunos muitas vezes não conseguem e não são ensinados a ir além do que o

professor estabeleceu como leitura na sala de aula. Essa prática universitária de trabalhar com

xerox e não com o livro, com capítulos e não com o todo das idéias dos teóricos, tem se alastrado

e instituído o hábito das leituras fragmentadas. Isto tem chegado às escolas e aos livros didáticos,

onde as lições se apresentam de forma autônoma, dificultando a aprendizagem.

Escolher o caminho em que se quer andar demanda conhecimento, formação, pesquisa e

muito trabalho. Como diz Gramsci: “Estudar é coisa muito séria”. Ser professor é mais sério

ainda, pois é a hora em que se trará a práxis do estudado.

Nossa escolha dos textos, a forma como lhes daremos a seqüência e como os utilizaremos,

é a espinha dorsal de nossa proposta. Formar um cidadão leitor só é possível através de textos de

qualidade, apresentados e estudados com os alunos de forma planejada, de acordo com os

objetivos que se pretende alcançar. Isto é um trabalho sério, que não pode ser realizado ao acaso.

Para os professores, o instrumento de base para a condução das aulas, fundamento de suas estratégias pedagógicas, é a leitura, a qual se organiza por “textos”, conforme são designados por alunos e professores. Eles constituem o fio condutor do desenvolvimento de um curso e são a unidade do planejamento pedagógico. O conjunto de textos selecionados pelos professores pode dar visibilidade ao planejamento de uma disciplina (ANDRADE, 2004, p. 125).

A autora Ludmila Tomé de Andrade, no trecho citado acima, se refere ao planejamento das

disciplinas universitárias. No entanto, o mesmo processo de avaliar o planejamento se dá em

qualquer nível. Para formar um aluno-leitor é necessário escolher previamente o acervo de textos

com os quais o professor irá trabalhar.

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No nosso caso, o trabalho se refere a diferentes gêneros e formas de escrita, para os quais o

aluno precisa desenvolver sua capacidade leitora. Ler uma bula não é o mesmo que ler um

poema. Ler um texto de Geografia exige uma competência de domínio de alguns conceitos, sem

os quais a leitura não ocorrerá.

No caso da leitura literária, alguns conceitos precisarão ser ensinados para que as diferentes

manifestações artísticas (conto, crônica, poesia, romance, carta, história em quadrinhos, etc)

sejam identificadas e decodificadas segundo a proposta de seus autores.

Em uma reunião pedagógica coletiva, avaliamos que os alunos tinham dificuldade de

reconhecer os gêneros discursivos e compreender os enunciados das questões de todas as

disciplinas e que, a partir da 6ª série, o número de empréstimos de livros caía bastante.

Ficou decidido, então, que se faria um levantamento das palavras específicas de cada

disciplina e se trabalharia dando ênfase à compreensão desses conceitos. Cada professor, com o

auxílio do coordenador pedagógico e dos professores de Sala de Leitura, buscaria contos ou

poemas que se referissem a um conteúdo específico que, a partir do texto literário, seriam

contextualizados seus conceitos e significados. O objetivo central era criar pontes de

comunicação entre áreas apresentadas como distintas, cruzando informações e saberes para que o

alunado fosse capaz de organizar e armazenar conhecimentos.

Lendo fica-se a saber quase tudo. Eu também leio[...] há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa (SARAMAGO apud PAULINO e COSSON, 2004, p. 107).

Consideremos a outra margem como a leitura significativa, onde o leitor maduro vai

construindo e tecendo significados que se abrem em muitas direções, possibilitando ao aluno-

leitor chegar a margem e passar pelo leito de seu próprio rio, construído através de diferentes

textos, como mediadores de diversas leituras.

Cecília Meireles descreveu esse processo, certamente por ela percorrido, no Cântico

XXIV.

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Não digas: este que me deu corpo é meu Pai. Esta que me deu corpo é minha Mãe. Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram Em espírito. E esses foram sem número. Sem nome De todos os tempos. Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje. Todos os que já viveram E andam fazendo-te dia-a-dia Os de hoje, os de amanhã. E os homens, e as coisas todas silenciosas. A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos. O teu mundo não tem pólos. É tu és o próprio mundo (MEIRELES).

Neste texto, a autora frisa que não nascemos prontos e não estamos acabados. Somos

construídos a cada dia por diferentes vozes que registram os nossos ouvidos. Polifonia.

2.5. Níveis de leitura: denotativa, conotativa e crítica

A educação é transformação do homem e do mundo. Para que essa transformação se estabeleça, é necessário que o homem se movimente de um lugar significativo para outro, isto é, pratique em sua vida o exercício dialético da libertação. No ato de libertar-se, isto é, de tomar consciência da sua necessidade é que o ato de ler passa a ganhar a sua significação maior e primeira (SILVA, 1981, p. 77).

Ao nos depararmos, enquanto professores, com a necessidade de ensinarmos nossos

alunos a ler significativamente, precisamos levar em conta os diferentes níveis de alcance de

leitura e as diferentes dificuldades que um texto pode oferecer para ser lido.

É comum observarmos, dentro de uma mesma turma, diferentes níveis de leitura. Alguns

alunos chegam apenas à leitura denotativa, não conseguindo transferir os dados apresentados no

texto para nenhum outro contexto. A leitura é estática. Ela não se comunica com o receptor em

toda sua potencialidade, porque este não possui instrumentos para acolhê-la. Não são discernidas

“as segundas intenções”, o leitor não está apto a decifrá-las.

Cabe ao professor caminhar com esse aluno e instruí-lo em múltiplas e variadas leituras,

até que este chegue à leitura significativa, em que o aluno-leitor continuará decodificando o nível

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de significação denotativa, acrescentado, agora, pelo nível de significação conotativa. É

necessário que ele tenha clareza quanto à diferença entre o emprego denotativo e o emprego

conotativo de um termo, sem esquecer a tensão que sempre se estabelece entre esses dois

empregos e suas significações. Há uma letra de Gilberto Gil que deixa clara essa diferença:

Metáfora Uma lata existe para conter algo, Mas quando o poeta diz lata Pode estar querendo dizer o incontível. Uma meta existe para ser um alvo, Mas quando o poeta diz meta Pode estar querendo dizer o inatingível. Por isso não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudo-nada cabe, Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha a caber O incabível (GIL, 1982).

Nessa poesia, Gil expressa como ninguém o processo do fazer literário: dizer o indizível,

conter o incontível. Unir heterodoxos como sinônimos. Porém, se ao lado dessa poesia, pusermos

o texto “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, observaremos a dura referência a uma realidade que

não cabe no poema, não embeleza o verso. Gullar utiliza o poema-denúncia para nos apresentar o

anti-poético, que é indizível por ser vergonhoso para o Brasil:

O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás A luz e o telefone A sonegação Do leite Da carne Do açúcar Do pão O funcionário público

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Não cabe no poema Com seu salário de fome Sua vida fechada Em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras -porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço a poema, senhores, não fede nem cheira (GULLAR, 1983, p. 224).

Adélia Prado ilustra bem como se pode tensionar as duas funções da linguagem

(referencial e poética): “De vez em quando Deus me tira a poesia/E quando digo pedra é pedra

mesmo” (PRADO).

A linguagem não-literária trabalha com a denotação, que apresenta as palavras em estado

de dicionário. Muitas vezes, a denotação alça vôos simbólicos inesperados e faz um contraponto

com a conotação, ampliando o sentido do texto. Adélia diz que Deus lhe tira a poesia através de

um gênero de escrita reconhecidamente poético, isto é, literário. Donde concluímos que: onde há

poesia, a decifração é mais complexa, pois envolve o simbólico. Quando a poesia se retira,

podemos recorrer ao dicionário e encontrar a significação pretendida.

Aos poucos, através do contato continuado com o literário, o aluno irá aprendendo a

descobrir novas intenções nos textos e a ser sensível à tensão estabelecida entre os dois níveis de

leitura, em sua concomitante significação, discernindo as suas funções e intenções. Em uma outra

letra de Gilberto Gil, vamos encontrar a palavra “rebento”, aparecendo ora no sentido denotativo

ora no conotativo, com sutis migrações de um nível de significação a outro:

Rebento, substantivo abstrato, O ato, a criação, o seu momento, Como uma estrela nova e seu barato Que só Deus sabe lá, no firmamento.

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Tudo que nasce é rebento, Tudo que brota, que vinga, que medra, Rebento raro como a flor na pedra, Rebento farto como trigo ao vento. Outras vezes rebento simplesmente No presente do indicativo, Como a corrente de um cão furioso, Como as mãos de um lavrador ativo. Ás vezes, mesmo perigosamente, Como acidente em forno radioativo, Às vezes, só porque fico nervoso, Rebento, Às vezes somente porque estou vivo. Rebento, a reação imediata A cada sensação de abatimento Rebento, o coração dizendo “bata”, Rebento, esse trovão dentro da mata E a imensidão do som desse momento (GIL, 1978).

Nessa poesia, observamos as diferentes utilizações semânticas de um mesmo vocábulo. O

autor explora os sentidos denotativo e conotativo, e as diferenças que se formam nos contextos

em que a palavra é utilizada, com a intenção de explorar as potencialidades de significação. O

poeta parte da metalinguagem, explicando a linguagem como um recurso utilizado para deflagrar

a riqueza das diferentes possibilidades semânticas num único vocábulo. Polissemia.

Desde a mais tenra idade, podemos trabalhar essas diferenças semânticas, trazendo para a

criança uma maior consciência da estrutura dos textos, da significação das palavras e das frases,

assim como a importância dos espaços vazios para o entendimento do significado que se quer

dar. É o que passaremos a observar em “Ana e o pernilongo”, de José Paulo Paes:

Toda semana Eu me lembro da Ana. Para mim não há semAna Sem Ana. Havia um pernilongo Chamado Lino Que tocava violino Mas era tão pequenino O Lino e tocava tão fino o seu violino que nunca ouvi o Lino Nem vi o Lino

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(PAES, 2005).

Quando o autor coloca uma letra maiúscula no meio da palavra “semAna”, quebra uma

norma gramatical e, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de ler uma palavra na outra, e,

conseqüentemente, numa frase, “semana sem Ana”, já que o primeiro olhar sobre a palavra nos

leva a lê-la de uma vez. Em seguida, ao estranharmos a letra maiúscula no centro da palavra,

retornamos a leitura para observar as duas palavras que se formaram: “sem” e “Ana”. Temos,

então, “Semana sem Ana”, grafada como “SemAna”.

Os jogos fônicos e semânticos constituem a base estrutural dessa poesia de José Paulo

Paes. Ele sabe brincar com as palavras de um jeito gostoso, que as crianças adoram. Textos como

esse fogem dos tradicionais textos acartilhados, feitos exclusivamente para reforçar o

aprendizado da leitura referencial, sem nenhum significado ou valor literário para as crianças.

Este, ao contrário, vai preparando as crianças para os diferentes significados, a partir de uma

única palavra.

Perseguindo objetivos de auxiliar os alunos em rituais de passagem, que os levarão de um

nível de entendimento leitor a outro, podemos trabalhar com fábulas, como a do “Lobo e o

cordeiro”, em que eles facilmente poderão identificar pessoas de seu convívio, que são maliciosas

ou más como aquele lobo e assim, facilmente, passar da denotação, representada pelos animais,

para a conotação, representada por humanos semelhantes àqueles animais. Gradualmente,

poderemos ir aumentando o nível de dificuldade da leitura literária até que o aluno, no seu tempo,

venha a alcançar uma autonomia leitora. Assim, ele saberá ir à busca dos elementos necessários

para ler um texto mais complexo, como “Língua”, de Caetano Veloso, que exige um

conhecimento prévio de alguns dados históricos, lingüísticos e literários.

Gosto de sentir minha língua roçar na língua de Luís de Camões Gosto de ser e de estar E quero me dedicar A criar confusões de prosódia E uma profusão de paródias Que encurtem dores E furtem cores como de camaleões Gosto do Pessoa na pessoa Da rosa no Rosa E sei que a poesia está para a prosa Assim como o amor está para a amizade E quem há de negar que esta lhe é superior

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E deixa os portugais morrerem à mingua Minha pátria é minha língua (...) (VELOSO, 1984).

A análise semiótica do poema de Caetano Veloso requer do leitor conhecimentos variados,

pré-textuais, sem os quais a leitura não será possível. Quem é esse “Rosa” de quem fala o texto?

Guimarães Rosa, escritor, ou Noel Rosa, compositor de Vila Isabel? Ou teremos abertura para os

dois?

O “Pessoa”, referência clara a Fernando Pessoa – “Minha pátria é minha língua” – e ao

poema “Mensagem”, que é uma releitura de Os Lusíadas, de Luis de Camões, exige do aluno que

ele conheça literatura portuguesa. Quanta informação necessária para uma “simples” leitura! Isso

sem levarmos em conta os conceitos de prosódia e paródia, e poesia e prosa. Caetano compara o

amor à poesia e a prosa à amizade, enaltecendo o valor desta, colocando-a muito acima da prosa.

Por quê? Quais serão os seus conceitos “roseanos”? Estaria ele considerando Guimarães Rosa

também poeta e não romancista?

Para que nossos alunos alcancem os diferentes níveis de leitura e os questionem, é

necessário planejar um caminho pedagógico e mediar com eficácia as diferentes leituras.

Outros dois poemas que trabalhamos com freqüência são: “Meus oito anos”, de Casimiro

de Abreu, e “Ai que saudades”, de Ruth Rocha. No primeiro, a infância é relembrada como

motivo de muita saudade e romantismo:

Oh! Que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras, À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! (ABREU, 2005, p. 114).

No segundo, vemos a dessacralização da infância com a criança oprimida pelas leis dos

adultos. O humor de Ruth é acentuado. A “presença” paralela do texto “matriz”, de Casimiro de

Abreu, é fonte de inspiração e paródia. As crianças gostam muito e ainda se vêem representadas

nos sentimentos de opressão e de mal-estar na escola.

Ai que saudades...

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Ai que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais... Me sentia rejeitada, Tão feia desajeitada, Tão frágil, tola, impotente, Apesar dos laranjais. Ai que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida, Não gostava da comida Mas tinha que comer mais... Espinafre, beterraba, E era fígado e era fava, E tudo que eu não gostava Em porções industriais. Como são tristes os dias Da criança escravizada, Todos mandam na coitada, Ela não manda em ninguém... O pai manda, a mãe desmanda, O irmão mais velho comanda, Todos entram na ciranda, E ela sempre diz amém... Naqueles tempos ditosos Não podia abrir a boca, E a professora era louca, Só queria era gritar. Senta direito, menina! Ou se não, tem sabatina! Que letra mais horrorosa! E pare de conversar!

Oh dias da minha infância, Quando eu ficava doente Ou sentia dor de dente, E lá vinha tratamento! Era um tal de vitamina... Mingau, remédio, vacina, Inalação e aspirina, Injeção e linimento! E sem falar na tortura: Blusa de gola engomada, Roupa de cava apertada, Sapatinho de verniz... E as ordens? Anda direito!

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Diz bom-dia pras visitas! Que menina mais sem jeito! Tira o dedo do nariz! Que aurora que sol! Que vida! Vai já guardar os brinquedos! Menina, não chupe os dedos! Não pode brincar na lama! Vai já botar o agasalho! Vai já fazer a lição! Criança não tem razão! É tarde, vai já pra cama! Vê se penteia o cabelo! Menina se mostradeira! Menina novidadeira! Está se rindo demais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! (ROCHA).

Ao ler o texto em voz alta e permitir que os alunos emitam opiniões e sentimentos, tendo

liberdade para dizer o que não conhecem ou nunca ouviram falar, o professor poderá introduzir o

diálogo com o literário.

Podemos também comparar os hábitos das crianças de anos atrás com os das de hoje. O

que mudou e o que permaneceu? Trabalhamos com intertextualidades, pois visitamos textos

clássicos e modernos que nos permitem correlacionar semelhanças e diferenças, obrigando os

alunos a levantarem hipóteses, compararem, perceberem intenções e tirarem conclusões.

Os textos podem se tornar “disparadores” da busca de conhecimento e de novos conceitos.

Ao lê-los, crianças e jovens estarão verificando que existem textos que remetem a outros, que

precisam conhecer. Outros ainda podem oferecer pistas falsas, até que se revelem diferentes do

texto ou da personagem supostamente evocada. Foi o que aconteceu conosco, ao ver a capa do

livro de Adriana Lisboa, Língua de trapos. Pensávamos numa releitura da boneca Emília, de

Monteiro Lobato. Porém, encontramos uma boneca cuja língua roçava não apenas na de Camões,

mas em muitas línguas que, como a nossa, são construídas de pedaços de outras, como retalhos.

Adriana Lisboa vai conduzindo a sua escrita da denotação para a conotação, passeando pela

história e pela língua sem perder o fio da meada da criança:

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E com uma novidade: dentro da boca, uma língua de trapos que desata a falar. Essa língua, quem foi que fez? Ora, ninguém! Fez-se devagar e sozinha, Aqui de listras, ali de bolinhas, aqui xadrez, Pied-de-poule, escocês... Tem até rendinha! E é tudo trapo. Uma língua de trapos. (LISBOA, 2005, p. 12).

Aqui, nesse texto, temos dois níveis de leitura: o denotativo e o conotativo. O que pensa o

texto, levando em conta a construção da língua da boneca que era de trapos variados? E a leitura

conotativa, que alcança a referência à construção de qualquer língua do planeta? Desde o título,

sentimos a desconstrução da expressão “língua de trapo”, que culturalmente se refere à pessoa

que fala demais ou é fofoqueira. A autora acrescenta o “s”, que fará toda a diferença. Trata-se de

língua de trapos, uma língua construída de vários pedaços de tecidos diferentes, que são reunidos

para simbolizar que todas as línguas são formadas e ligadas historicamente entre si.

A construção da língua da boneca é semelhante à construção de qualquer língua. Os

pedaços vão se misturando, de tal forma que muitas vezes os esquecemos como partes. A palavra

pied-de-poule é francesa, mas já está incorporada ao léxico português e o tecido que ela

representa é escocês. Não há como não admirar a escolha, tanto temática como vocabular, da

autora. Linguagem literária de altíssimo valor poético, pertinente para crianças de todas as idades.

Há um texto de Lygia Bojunga Nunes, do livro Feito à mão, que ilustra a dificuldade que

uma criança pode ter em alcançar o sentido conotativo, mesmo em pequenas expressões. A

mediação da passagem do entendimento literal para o conotativo é necessária. O texto revela o

tempo que uma criança de quatro anos levou para ir de um entendimento a outro, e a mediação da

mãe para que isso pudesse acontecer.

No meio de todo aquele pessoal que morava no costureiro tinha uma turma que, para mim, era mágica: a turma dos botões. Às vezes, numa noite de insônia, num embalo de rede, numa viagem de trem, eu gosto de dar linha para a minha memória. Só para ficar vendo até onde é que ela vai. Aqui e ali dou um puxão na linha, pra ver se a memória volteia bonito para mais e mais longe. E uma vez, num desses puxões, a minha memória chegou o mais longe que eu já consegui fazer ela voar: eu me vi de quatro anos, sentada no chão, a minha mãe ao lado, o costureiro também; e me dizendo: – Tu ficas muito tempo sem falar. E ouvi ela respondendo: – Engano teu: eu estou falando.

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– Falando com quem?! – Com os meus botões. – Eu não ouvi. – Quando a gente fala com botão, os outros não escutam. Foi a primeira vez que eu me lembro de ter sintonizado nessa expressão que a minha mãe gostava muito: falar com os botões. A resposta da minha mãe, quando eu disse que ela ficava muito tempo sem falar com botão (ou com linha, ou com tesoura): tipo da coisa natural. O que eu achei extraordinário foi a minha mãe ficar assim, falando tanto tempo. Logo ela: uma mulher de pouca fala. A conclusão não demorou: se a minha mãe fica esse tempo todo batendo papo com os botões é porque o papo é ótimo! (conclusão que logo emprestou aos botões uma qualidade mágica.) E, se a minha mãe fala com eles, eu também vou falar, ué. E falei. E falei, e falei. Mas eu falava em voz alta: afinal de contas, falar era falar. E vivia a cata de novos interlocutores. No fundo mais fundo que é o costureiro, em qualquer pacotinho que eu encontrava no meio de linha e de lã, lá estava eu fuçando, atrás de novos botões pra conversar. De quê? Ora, do casamento do botão de madeira (...). Acho que, um dia, a minha mãe ficou intrigada de ver que eu não conversava com alfinete, nem com agulha, nem com a linha e, então, me perguntou: – Por quê que tu só falas com botão? – Tu também, ué. E só aí ela me explicou que aquela expressão significava falar com a gente mesma, pensar, meditar. E, outra vez, querendo imitar a minha mãe, eu larguei a prática de conversar com os botões e me iniciei na prática de falar com os meus botões (NUNES, 1999, ps. 11 e 12).

Encarar as crianças como bobinhas ou incapazes de entender o sentido conotativo dos

textos é um grande engano pedagógico, pois a vida das crianças está rodeada de linguagem

conotativa em seu dia-a-dia. A criança é perfeitamente capaz de ler e compreender o simbólico. A

literatura ainda é considerada uma atividade de elite e de adultos, daí o preconceito existente em

oferecê-la à criança. Mas quando isto é feito com textos de qualidade, há uma resposta positiva e

imediata.

Outro texto de Lygia Bojunga Nunes, que fortalece a passagem do nível de leitura

denotativo ao conotativo, é o “Fazendo Ana Paz”.

Acordei no meio da noite pensando no que o meu filho me disse: você é uma velha egoísta! Fiquei olhando pra cara dele. Ele meio que riu e disse que tava brincando. Não adiantou: já tinha dito. E o você é uma velha egoísta já tinha me caído mal que só vendo. Que nem a pizza que eu comi outro dia, nossa! Que pizza pra cair mal. Que massa mal feita.

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Que tanto óleo. Que mistura sem jeito de queijo e de enchova. Que horror. A pizza não saía da minha digestão nem da minha cabeça, nunca na vida eu pensei que era possível pensar tanto numa pizza.

Mal eu fico boa da pizza e já me cai esse você é

uma velha egoísta que eu não to conseguindo

digerir. Assim fica difícil. Por quê que eu sou

uma velha egoísta? Por quê?

Pra começar eu não sou velha. Ele pode até achar que sou porque é meu filho, mas eu não acho (NUNES, 1993, p. 20).

A autora compara a comida que não cai bem com o relacionamento mal resolvido com o

filho. Palavras difíceis de engolir são comparadas a uma pizza, oleosa, pesada e indigesta. Assim

os professores introduzem as crianças e os jovens no mundo do simbólico, fazendo pontes de

significação que mais tarde servirão de referência para leituras metafóricas e complexas.

Só a escola divide os textos em permitidos e proibidos pela faixa etária. A linguagem

televisiva, por exemplo, é vivenciada por toda a família sem que sejam separados os seus

assistentes. Dificilmente, neste caso, a criança apresenta dificuldades de compreensão. É claro

que a linguagem literária apresenta níveis mais complexos de linguagem, mas é preconceito

acreditar que a criança é incapaz, sem oferecer a ela uma leitura que lhe custe um esforço maior,

como acontece com adultos na Academia, ao lerem Bourdieu, Bakhtin ou Gramsci. A leitura que

desafia sempre oferece obstáculos.

Empenhamo-nos em considerar a Literatura como um elemento indispensável para a

formação de crianças reflexivas. Nesse lidar diário no ensino da Literatura com normalistas,

adolescentes ou crianças, deixamos claro que os textos são sempre novos a cada leitura que

fazemos. Mostramos, na prática, que somos enriquecidos pelas leituras das diferentes crianças,

jovens, adultos, homens e mulheres, sejam ricos e pobres. Todas as leituras são significantes,

ricas experiências de mundo que devemos contabilizar.

A medida em que o leitor for se aprofundando nos textos lidos, buscando mais leituras, ele

estará apto a ser um leitor crítico.

A leitura crítica sempre leva à produção ou construção de um outro texto: o texto do próprio leitor. Em outras palavras, a leitura crítica sempre gera expressão: o

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desvelamento do ser leitor. Assim, este tipo de leitura é muito mais do que um simples processo de apropriação de significado; a leitura crítica deve ser caracterizada como um projeto, pois concretiza-se numa proposta pensada pelo ser-no-mundo, dirigido ao outro (SILVA, 1981, p. 81).

Podemos concluir, então, que a leitura possui níveis de decodificação que nem todos

alcançam. Mas, cabe-nos dizer que é possível conduzir um aluno que se encontra no nível de

leitura denotativa ao nível de leitor crítico, desde que se trabalhe para isso, e que ele assim o

queira.

Emília Ferreiro, em seu livro Passado e presente dos verbos ler e escrever, afirma:

As crianças – todas as crianças, garanto – estão

dispostas para a aventura da aprendizagem

inteligente. Estão fartas de ser tratadas como

infradotadas ou como adultos em miniatura. São

o que são e têm direito a ser o que são: seres

mutáveis por natureza, porque aprender e mudar

é seu modo de ser no mundo (FERREIRA, 1999,

p. 39).

Os níveis de leitura estão sujeitos também à faixa etária da criança e à sua maturidade

emocional. Ana Maria Machado, em seu livro Como e por que ler os clássicos, nos dá exemplo

claro de um percurso de formação de uma cidadã leitora, que, como ela, após alguns anos, vê o

texto da infância com outros olhos e também como, desde cedo, já reconhece as inferências.

Observe:

Entre continuações e interrupções, fui seguindo em frente aos poucos e ajudada pelos meus pais. Eles sempre liam comigo alguma coisa, ora em voz alta antes de eu dormir, ora resumindo capítulos que então eu pulava. Foi uma empolgação. Fiquei fascinada com a história daquele homem sozinho numa ilha ensolarada, cercado de praias como as do Rio ou do Espírito Santo, de que eu sentia tantas saudades, tendo que fazer sua vida toda a partir de umas poucas coisas salvas do navio, construir, plantar, colher, esconder-se de canibais, preparar-se para enfrentar inimigos. Só muito mais tarde, em várias releituras adultas, fui descobrindo o ideário colonialista e mercantilista da época, latente no enredo, que ajudava a construir o mito do self-made man. Só então fui percebendo as relações de dominação de Robinson para com seu companheiro, Sexta-feira. Na época, e por toda adolescência, eu não via nada disso. Era apenas a história de uma grande aventura: o naufrágio, o homem lutando contra a

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natureza buscando sua sobrevivência, tentando ir além da condição animal para reinventar a cultura (MACHADO, 2002, p. 85).

Muitos professores temem a leitura dos clássicos, alegando que os alunos não alcançarão o

sentido do texto. Optam, muitas vezes, por adaptações ou leituras facilitadas de partes de textos.

O depoimento de Ana Maria Machado se junta ao nosso e ao de tantos outros leitores que, desde

cedo, leram os clássicos e foram por eles enriquecidos, dentro de seu nível de entendimento.

Sentindo grande prazer nessas leituras, não se preocuparam com o entendimento global ou o

domínio de todo o vocabulário. As leituras também já foram verdadeiros atos subversivos das

crianças, como diz Daniel Pennac, remetendo ao tempo em que ler fazia mal à vista e livros como

Madame Bovary, O Cortiço e O crime do padre Amaro, não tinham a aprovação dos pais.

Hoje, muitas crianças amam a leitura dos clássicos. Atendia a alguns alunos na Sala de

Leitura Pólo Mario Cláudio quando uma menina de 11 anos me questionou: – Professora, Os

miseráveis, da coleção “Literatura em minha casa” está completo ou é adaptação? Questionei-

lhe porque desejava saber isso, admirada com a pergunta incomum para a sua idade e o seu meio

social. Ela me respondeu: – Já li seis vezes, não vou esquecer nunca esse livro. Ele me deixou

impressionada com a miséria e a pobreza. Quero o original e os outros volumes, meu pai me

disse que acha que tem outros volumes.

Naquele momento, me senti atraída pelo interesse da menina. Começamos a conversar

sobre alguns clássicos. Estava diante de uma leitora ávida, sensível, que já conhecia o prazer do

texto. Nos dias que se seguiram nos tornamos grandes amigas, e o nosso assunto eram os grandes

clássicos. Ela amava Dom Quixote, como eu.

Investir nas potencialidades dos alunos, descobrindo e fazendo descobertas, não nos faz

concordar com a suspensão de um programa nacional, como é o Projeto Literatura em minha

casa, paralisado pelo governo federal sob alegação de não ter havido o retorno esperado. Quem

espera retorno rápido é a sociedade de consumo, onde tudo é para ontem, feito de qualquer forma

e para durar pouco. Educação não rima com consumo. O processo de ensino-aprendizagem

precisa ser construído com alunos concretos e não com as idéias cristalizadas e preconceituosas

de que os alunos da Rede Pública não gostam de ler. Cada vez mais aumentam os depoimentos de

professores de Sala de Leitura, apontando alunos que lêem 20 a 30 romances por semestre. O

senso de 2005 das Salas de Leitura do Município do Rio de Janeiro registrou um recorde nos

últimos três anos, no número de empréstimos de livros. Já são 1030 salas de leitura, com acervo

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em média de 5500 livros de literatura, 900 fitas de vídeo e 100 DVDs, servindo às classes menos

favorecidas. Estão sendo trabalhados os núcleos curriculares básicos como um eixo em que se

articulam os princípios educativos de meio ambiente, trabalho, cultura e linguagens, com núcleos

conceituais básicos. Trabalha-se neles a identidade (quem sou eu?), o tempo (hoje, ontem,

amanhã), o espaço (Rio de Janeiro, Brasil, Mundo) e a transformação (para onde vou eu e o

mundo em que vivo).

Nossos alunos precisarão se sentir livres para imaginar, para dialogar e compartilhar notícias, desejos, histórias; precisarão que lhes oportunisem a descoberta de seus "disparadores próprios" para a linguagem escrita (Multieducação – Núcleo curricular básico).

Os objetivos são claros: abrir janelas para o mundo através da literatura em sala de aula, a

fim de estabelecer um diálogo, isto é, uma interação com a realidade de nossos dias e do homem

com ele mesmo; facilitar o que há de mágico na leitura; aprender a compor novas palavras e

novos significados; compor novos textos; ser íntimo da língua que falamos, que, através da qual,

somos, existimos e nos movemos na linguagem.

A leitura é um processo de busca de si e do outro, e a literatura um grande espelho, não só

da ficção, mas do que realmente somos: linguagem. Homens em busca de sua essência, que só

pode se manifestar como e pela linguagem.

Descobrir novas formas de dizer-se através da poesia, de entregar-se à poesia que sai do

outro e nos encontra, nos embriaga, nos nocauteia, derrama sobre nós sua luz e seu brilho,

indispensáveis para continuarmos a jornada, sempre acreditando que “tudo vale a pena, quando a

alma não é pequena”, como já disse Fernando Pessoa. E as crianças pobres valem a pena!

Há um caminho a trilhar se quisermos avançar. Explorar, desde cedo, textos que

dialoguem com outros. Por exemplo, chegar à turma e propor a leitura de “Chapeuzinho

amarelo”, de Chico Buarque de Holanda. É impossível não correr em paralelo, em nossa

memória, a história de Chapeuzinho Vermelho, dos irmãos Grimm, e o contraste entre as duas.

Enquanto a Chapeuzinho Vermelho era corajosa, indo, sozinha, visitar a avó que morava na

floresta, “Chapeuzinho Amarelo era amarelada de medo/Tinha medo de tudo/Aquela

chapeuzinho/Já não ria/Em festa não aparecia/Não subia escada/Nem descia...” (BUARQUE,

1980).

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O pânico, que muitas vezes paralisa as crianças das grandes cidades, é retratado aqui com

força. Inclui os medos que aparecem, oriundos de histórias contadas. Chapeuzinho Amarelo, por

exemplo, tinha medo do lobo dos Grimm.

E de todos os medos que tinha/o medo mais que medonho/era o medo do tal do LOBO/um LOBO que nunca se via,/que morava lá longe, do outro lado da montanha/num buraco da Alemanha/cheio de teia de aranha/Numa terra tão estranha/que vai ver que o tal do LOBO/nem existia (BUARQUE, 1980).

A referência ao lobo da Alemanha, lugar de origem dos contos de Grimm, é uma

referência clara a Chapeuzinho Vermelho, que só será descoberta se o aluno possuir esta

informação. A análise paralela dos dois contos abrirá novos sentidos a ambos os textos. No texto

matriz, que ensina a obediência pelo medo, Chapeuzinho Vermelho passou por várias situações

ao desobedecer à mãe e só foi salva porque o caçador (homem, forte e adulto) intervém.

Chapeuzinho Amarelo, por sua vez, constrói a sua salvação, ou libertação, enfrentando o lobo e

fazendo dele um bolo que ela mesma não come, por preferir bolo de chocolate. Com humor e

muita propriedade, Chico enfatiza o processo de enfrentamento do medo e a saída vitoriosa, sem

interferências nem do elemento adulto nem do masculino, o que era muito comum nos contos

clássicos. Chapeuzinho Amarelo reverte a situação, fazendo o lobo temê-la. “Aí Chapeuzinho

encheu e disse:/Pára assim!/Agora! Já!/Do jeito que você tá!/E o lobo parado assim/Do jeito que

o lobo estava/Já não era mais um LO-BO/Era um BO-LO” (BUARQUE, 1980).

A desconstrução do medo é também a desconstrução da palavra, a inversão dos modelos

rígidos dos contos clássicos: crianças são salvas por adultos (Chapeuzinho Vermelho), mulheres

são salvas por homens (Cinderela, Rapunzel e Branca de Neve).

Crianças são in-fan (sem voz), mas Chapeuzinho Amarelo manda o lobo parar, dá ordens,

deixando-o tremendo de medo. Reversão do processo: “Já não era mais um LO-BO/ Era um BO-

LO/ Um bolo de lobo fofo/tremendo que nem pudim/com medo de Chapeuzim/Com medo de ser

comido/Com vela e tudo, inteirim” (BUARQUE, 1980).

Mais adiante lemos, com os alunos, “Fita verde no cabelo”, de Guimarães Rosa, que

completa o circuito das três personagens femininas que não têm nome, cujas identidades são

marcadas pelo que usam nos cabelos, em suas cores. Chapeuzinho Vermelho, Chapeuzinho

Amarelo e Fita Verde são personagens tipificados, representam épocas, estilos de vida e rituais de

passagem. Em “Chapeuzinho Vermelho” vemos uma pré-adolescente ganhando a liberdade de se

movimentar, indo à casa da avó. Como todo herói, passa por provações, mas vence o lobo

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(perigo real). Em Chapeuzinho Amarelo, o ritual de passagem se dá no interior da personagem,

no percurso de enfrentamento do medo. Medo do lobo da Alemanha, perigo imaginário que vai

ser transposto pelo enfrentamento, narrado com humor e riso, quando se depara com o próprio

lobo, nu em pêlo. O perigo vencido passa a ser instrumento de libertação dos outros medos (lo-bo

= bo-lo), desconstruindo o texto matriz. Em “Fita verde no cabelo”, o medo não é mais do lobo-

homem e sua sexualidade, o que ameaça é o lobo-avó, que representa a velhice e a morte. Aqui, o

lobo e a avó se confundem. Nariz de lobo e mãos de lobo são frutos da velhice. Se em

Chapeuzinho Vermelho abriu-se a possibilidade de confundir o lobo com a avó, no conto de

Rosa, o verdadeiro lobo é o tempo (Cronos), que devora.

Ao ligarmos os três contos, temos a representação dos rituais de passagem femininos,

como se os três livros fossem apenas um, no espaço atemporal do “Tudo era uma vez...” (ROSA,

1992, p. 4). Chapeuzinho Vermelho significa tanto o início da vida, com toda a sua

potencialidade e os seus riscos, quanto a educação realizada pelo medo. “Chapeuzinho amarelo”

revela todos os conflitos e medos interiores, aponta em direção ao crescimento e a superação,

bem como a formação da identidade de uma educação libertadora. “Fita verde no cabelo”

representa o auge da mocidade de encontro aos sonhos que são paralisados com a realidade da

morte. Ao mesmo tempo, preenche o hiato da avó (velhice) como o fim (morte), mas que é

também o início, já que a avó deu origem à neta, pois é do velho que surge o novo. “Novas

velhas” histórias, formando um circuito que reúne textos, épocas, autores, personagens e leitores.

Além do levantamento dos elementos dos três textos, é importante estarmos abertos a

acolher uma leitura não prevista, que poderá até divergir, de alguma forma dos dados

encontrados, desde que a interpretação seja coerente com os textos.

Vygotsky, em seu livro Pensamento e linguagem, enfatiza o que ele chama de sentido das

palavras sobre sua significação, e recorre a Paulhan, explicando:

Segundo este autor, o sentido duma palavra é a soma de todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta na nossa consciência. É um todo complexo, fluido, dinâmico que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado mais não é do que uma das zonas do sentido, a zona mais estável e precisa. Uma palavra extrai o seu sentido do contexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentido muda também. O significado mantém-se estável através de todas as mudanças de sentido. O significado de uma palavra tal como surge no dicionário não passa de uma pedra do edifício do sentido, não é mais do que uma potencialidade que tem diversas realizações no discurso.(...) Num determinado contexto, uma palavra significa simultaneamente mais ou menos do

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que a mesma palavra tomada isoladamente; significa mais, porque adquire novo contexto; significa menos, porque o seu significado é limitado e estreitado pelo mesmo contexto. (...) As palavras extraem o seu sentido da frase em que estão inseridas, e esta, por sua vez, o colhe do livro e este das obras todas do autor (VYGOTSKY, 1979, p. 191).

Muitos significados vão se entretecendo e abrindo redes de co-sentido, que levantam o

sentido de uma obra em relação ao seu tempo, ao tempo futuro e às obras que abordam o mesmo

tema, ou que pertencem ao mesmo gênero.

Um outro texto que apresentamos a nossos alunos com freqüência, por ser um facilitador

da passagem de entendimento do nível denotativo para o conotativo, com simplicidade e muito

lirismo, é a crônica de Cecília Meireles, “Brinquedos incendiados”:

Uma noite, houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zunidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de Mr. Jourdain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo. Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente algum bonequinho de celulóide, modestos cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidades de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos. Assim, o bando que passava de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção de valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como os namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens, e deixar cravados nelas, como setas, os nossos olhos. Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d'água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonho apenas da infância, amor platônico. O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.

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Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? – Pensavam as crianças. Tinha morrido um mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados. E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distantes! (MEIRELES, 1983, ps. 19 e 20).

A palavra incêndio é utilizada inicialmente no sentido denotativo (acidente com fogo

destruidor). Ao final, dá-se o emprego conotativo, quando Cecília mostra que existem outros

incêndios sem fogo, mas igualmente devoradores.

A clareza com que a passagem de um nível a outro é feita, aliada à beleza do texto, faz

dele um sucesso absoluto entre as crianças pobres, que vivem olhando as vitrines maravilhosas da

“sociedade do espetáculo” do lado de fora, tendo elas mesmas que “incendiar seus sonhos”, como

bem disse uma aluna.

Dando continuidade ao trabalho de reconhecer a utilização da denotação e da conotação

pela literatura, apresentamos a poesia “Desistência”, de Maria Dinorah:

O menino Tonho Mexendo no lixo Achou um sonho E pôs-se a sonhar. Com queijo de nuvens, Bolachas de estrela, Pastéis de luar. O sonho era duro E estava mofado. E ele desistiu De sonhar acordado (DINORAH, 1986).

Esse poema pode dialogar com a crônica de Cecília Meireles. Ambos falam de sonhos

perdidos. São dois gêneros textuais trabalhando o mesmo tema. No segundo texto, podemos fazer

o levantamento de duas áreas semânticas básicas: o sonho, doce, comestível que poderia saciar a

fome se não estivesse mofado, e o sonho que é imaginação, sonho acordado. Dessa tensão entre

denotação e conotação, teremos o aparecimento de vocábulos relacionados com alimentação:

queijo, bolachas, pastéis; e um vocabulário ligado semanticamente aos que sonham, os poetas:

nuvens, estrela e luar.

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O poema se dá, na interseção das duas áreas semânticas e no jogo entre elas, que nós,

professores de leitura, podemos comparar com os conjuntos matemáticos quanto à forma de

raciocínio.

O que caracteriza um texto literário são suas metáforas e as múltiplas possibilidades que

temos em substituí-las, criando paradigmas simbólicos cambiantes, que serão acolhidos pelos

leitores, não apenas segundo as possíveis conotações alcançadas, como também segundo uma

própria rede de sentidos.

Os rituais de controle de significação dos textos e as interpretações, únicas e rígidas, que

não levarem em conta essa realidade dos sentidos de significação, apenas afastarão os alunos dos

livros e da literatura.

A literatura, como arte, deve conservar esse espaço de interação do leitor com o texto. Não

pode faltar o desejo de leituras diferenciadas. A verdadeira leitura não deve ser vinculada a uma

estrutura pronta e imutável. A leitura significativa seleciona informações, compara-as com outras,

verifica, conclui e produz conhecimento. A leitura é parte integrante e fundamental do processo

de construção de conhecimento e de construção política do cidadão.

Garantida a consciência dos níveis leitores por todos os professores da escola, assim como

os processos de passagem de um nível a outro, estes poderão selecionar textos a serem estudados

por cada turma ou série, não devendo se ater aos livros didáticos, que, infelizmente, não têm

correspondido às necessidades dos alunos. Conteúdos e textos fragmentados e desconectados

mais dificultam do que auxiliam o ensino e o entendimento.

3. A APROPRIAÇÃO DA CULTURA DAS ELITES COMO DIREITO DE TODOS OS

CIDADÃOS

3.1. A importância do ato de ler na escola

Minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história (FREIRE, 2002, p. 57).

A escola precisa aceitar o desafio de deixar de ser mera repetidora da ideologia vigente e

acreditar que pode formar cidadãos críticos, conscientes e participativos, que sairão do time dos

excluídos e rotulados, dos “joão-ninguém”, não para apenas mudar de lado, mas para construir

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estruturas sociais mais justas, mais solidárias, menos competitivas e exploratórias. Busquemos,

juntos, práticas que concretizem esse pensar.

A criança, desde que nasce ou até mesmo antes de nascer, é leitora. Ela lê o amor ou o

desamor de seus pais. Ela lê a claridade e a escuridão, a voz aveludada ou irritada, ela se

relaciona com o seu entorno a partir do que sente e vê. Quando a criança chega à escola já traz

uma leitura de mundo, que é fruto de sua própria história de vida. Cabe agora, à escola apresentá-

la às letras e aos sinais que, juntos, formam a língua escrita. Há um texto de Bartolomeu Campos

de Queirós, de seu livro Indez, que exemplifica, maravilhosamente, esse processo de aprender a

ler.

Quando os pássaros, entrando pela boca da noite, escreviam com penas noturnas no céu, o avô lia os sinais dos ventos, das cores, das nuvens e previa chuva, colheita, frio. Por outras vezes, o pai, escutando o tempo, fazia leituras do silêncio e soltando a língua traduzia seus ruídos em palavras que traziam de volta a infância antiga ou decifravam o futuro escrito por Deus em linhas tortas. Enquanto bordava, a mãe lia chegadas de cartas, visitas, presentes, na medida em que a agulha lhe espetava os dedos e encarnava de vida o linho branco. E quando na beira do tanque, entre espuma e anil, enxaguava as roupas, o vôo dos insetos lhe trazia pequenos pressentimentos de chegadas e partidas, percebidos pela intensidade do bater das asas. Ah! Lembro-me da volta do tio, depois de muita ausência. Antônio olhou em seus olhos, demoradamente, e leu que era possível não só deitar em seu colo, mas deixar também escapar o choro, sem medo, até aliviar a saudade que era tanta! Na escola a professora ensinava leitura. Foi sem esforço que o menino aprendeu. Ele já conhecia que entre as letras e seus silêncios podia-se saber muito mais longe. Era possível viajar mundos distantes. Mundo que o olhar não alcançava, mas o livro trazia. E daí, para Antônio escrever, bastou ter apenas um lápis (QUEIRÓS, 2002, p. 6).

A naturalidade com que Bartolomeu descreve o aprendizado da leitura e da escrita é

contundente quando comparado às dificuldades apresentadas por muitos de nossos alunos.

Sabemos que em condições normais de aprendizado é assim que ocorre. Aos poucos, a criança

vai construindo sentidos, antecipando significados, identificando elementos e marcas textuais,

bem como o significado das palavras e dos textos. Inicia a identificar suas geografias: poesia e

prosa.

Bartolomeu faz registro do ensino de poesia em dois de seus livros. No Indez:

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Em aulas de poesia, as irmãs testavam sua memória. Ele guardava, de cor, versos que as meninas repetiam em seu ouvido como martelo de carpinteiro: Três de cada lado, na janela uma donzela, trabalhava em seu bordado, seis cachinhos tinha ela, sendo três de cada lado; um rapaz que ali passava, elegante e bem trajado, com seis fios de bigode, sendo três de cada lado; vendo a moça que bordava, ficou logo apaixonado, e seis beijos lhe enviou, sendo três de cada lado; o pai a cena assistia, desceu a escada zangado, e seis bengaladas lhe deu, sendo três de cada lado (QUEIRÓS, 2004, ps. 55 e 56).

Em Ler escrever e fazer conta de cabeça: “Nas aulas de poesia, Dona Maria caprichava.

Abria o caderno, e não só lia poemas, mas escrevia fundo em nosso pensamento as idéias mais

eternas. Ninguém suspirava, com medo da poesia ir embora” (QUEIRÓS, 2004, p. 36).

Sujeitos sociais mergulhados na cultura de massa e nas imagens do consumo ficam

totalmente excluídos de manifestações mais elaboradas de cultura, como a literatura, o teatro, o

cinema, a música clássica, a pintura, a escultura, e outras formas de arte.

Essas nunca farão parte do seu repertório se a escola não intervir. Os alunos não tem tido

contato com variados textos e não gostam de ler simplesmente porque não os conhecem.

O espaço de sala de aula deve se abrir sem medo na formação de leitores. Será no contato

das crianças com os livros e as letras que elas tomarão posse e domínio da leitura. Frank Smith

afirma que não devemos nos preocupar com as crianças que não conseguem ler e que precisam da

ajuda de outros, pois, a medida em que forem tomando gosto, se apropriarão dos códigos de

leitura e não permitirão que ninguém leia por elas.

É importante também que as crianças sejam ouvidas em suas primeiras leituras pelo

professor e pelos colegas.

“Não há maneira melhor de ganhar consciência do que se lê e do que se poderá vir a

escrever do que lendo em voz alta” (SARAMAGO, 2003, p.24), declara o escritor José

Saramago, em entrevista à revista Nova Escola, de outubro de 2003.

Essa prática tem sido abandonada nas escolas de hoje, face ao imenso número de alunos

por turma, 35 em média. Anteriormente tínhamos 20 a 25 alunos. Houve, portanto, um acréscimo

de 40%.

Há uma falta de clareza quanto à importância de gerar a consciência das diferenças de

entonação como mediadoras de diferentes sentidos e significados. Variantes de pontuação se

descortinam na leitura oral que, ao tornar-se um hábito diário, oportuniza uma grande interação

do que se lê. O professor, que aprova ou corrige apenas tecnicamente a leitura do aluno, muitas

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vezes não percebe que texto pode ser lido em voz alta. Compartilhado, revelará alguns sentidos

não observados antes. O contato com a leitura em voz alta obriga o aluno a posicionar-se de

diversas formas diante de um texto que possibilite leituras com diferentes estilos e intenções.

A entonação de voz que usamos para um texto dramático não é a mesma que a de um

poético, seja lírico ou épico, ou, ainda, de uma crônica ou um texto humorístico.

Foucambert traz uma grande contribuição para a compreensão do ensino da leitura:

Na fase de aprendizado, o meio deve proporcionar à criança toda a ajuda para utilizar textos “verdadeiros” e não simplificar os textos para adaptá-los às possibilidades atuais do aprendiz. Não se aprende primeiro a ler palavras, depois frases, mais adiante textos, e, finalmente, textos dos quais se precisa (FOUCAMBERT, 1998, p. 15).

Textos com qualidade e significado são fundamentais para o aprendiz de leitura, seja ele

criança, jovem, adulto ou velho.

Na sua grande maioria, o aluno tem vergonha de ler em voz alta, temendo a crítica dos

colegas. Cabe ao professor dar-lhe o encorajamento necessário para que ele saia de seu casulo.

Lancemos mão de recursos de comparação com os grandes atores das telenovelas que, mesmo

sendo profissionais da dramaturgia que ganham salários milionários, erram e repetem várias

vezes suas falas até que a intenção do diretor seja alcançada. Assim, temos conseguido fazer com

que os alunos – os que sempre se negam a ler – leiam. A medida em que vão se sentindo capazes,

dominando suas leituras, a auto-estima sobe e não há quem os faça parar, principalmente os

alunos das primeiras séries. Eles se maravilham ao ver que conseguiram ler e querem que todos

saibam disso. Uma criança, espontaneamente, após ter conseguido ler em voz alta para sua turma

um poema, disse:

– Parece que eu fiquei grande!

Ela sabia que estava alcançando um novo nível como ser humano, pois já sabia ler

publicamente, em voz alta e sem silabar.

É importante que o leitor iniciante seja estimulado a ler em voz alta para que um outro lhe

confira a pertinência.

Esse outro pode ser o professor, a mãe ou qualquer pessoa próxima, a quem a criança se

expõe para ver confirmada a sua leitura. O processo de aprender a ler envolve alguns pré-

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requisitos: segurança, amor, aceitação e o entendimento de que o errar faz parte do processo de

aprender.

São esses pré-requisitos que, na maioria das vezes, por não serem encontrados nas crianças

pobres e miseráveis, que fazem com que alguns permaneçam nas classes de alfabetização por

anos seguidos, se recusando a ligar os símbolos a significados e sons.

Bordieu estabelece uma diferença entre pobres e miseráveis, que, no caso do Brasil, é

totalmente pertinente.

Dentro de uma mesma rede de ensino, temos turmas que correspondem ao que é ensinado

e outras fadadas à reprovação e ao desencanto com a escola. Esse segundo grupo é bastante

encontrado nas escolas municipais do Rio de Janeiro e corresponde socialmente aos miseráveis.

Os pobres sempre freqüentaram as escolas públicas, mas hoje os professores se vêem desafiados

pela presença dos miseráveis, totalmente desassistidos pela família, pelo estado e até pela escola,

que não está preparada para esta realidade tão desvalida. Nem por isso devemos esquecê-los ou

deixá-los de lado. Precisamos ouvi-los e dar-lhes voz, já que nem sabem que devem tê-la.

Apresentar-lhes os autores que fazem parte da história da arte literária, os que foram aprovados

pela crítica e pela leitura em várias gerações, tendo subido ao podium dos clássicos literários –

muitas vezes citados e parodiados por outros – , e mostrar que vale a pena conhecê-los.

Será sempre através da mediação do professor que esses textos irão se tornando

significativos para que o aluno possa se abrir para novas leituras e se colocar diante dos colegas,

expressando sentimentos, pensamentos e conclusões. Os diferentes modos de ver os textos vão

abrindo horizontes de leituras antes inimagináveis. Quando nós, professores, conseguimos ter

crédito com nossos alunos, ao colocá-los em contato com bons textos, nos surpreendemos com a

recepção.

Há alguns anos atrás, estávamos lendo, com uma turma de 2ª série, o livro de Ruth Rocha

O que os olhos não vêem, que conta a história de um Rei que só via e ouvia os grandes. No meio

da encenação – a leitura feita pelos professores de sala de leitura é verdadeira encenação – , uma

menina interrompeu abruptamente a leitura e disse:

– Os ricos têm nojo dos pobres.

O texto não explicitava que os grandes eram os ricos. O foco de uma primeira leitura

estava no tamanho físico, tanto que a solução dada pela autora para que o Rei ouvisse seus

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súditos foi a compra de pernas de pau para que eles pudessem ter maior tamanho e o

procurassem, a fim de serem ouvidos.

Aquela criança, em sua condição de miserável, entendia bem o que se passava naquele

contexto literário. A autora apontava, de forma criativa e sem chocar, levando o leitor à reflexão

de que o Rei não ouvia os pequenos. A menina, por sua vez, sabia que pequenos significavam ser

os pobres. Pedimos-lhe, então, que explicasse o que para ela significava ter nojo. Ela respondeu

segura: – Não chegar nem perto! E fez cara de nojo.

Convidamos a turma a desenhar ou escrever algo sobre como imaginavam aquele reino. A

mesma criança que interrompeu a leitura desenhou um Rei imenso, gordo, e uma menina

magrinha, bem parecida com ela, em pé diante daquele Rei, escrevendo ao lado: “Os ricos tem

nojo dos pobres”. Ela chegara a uma outra conclusão: a de que o Rei era rico e por isso tinha nojo

dos pobres. Tenho até hoje guardado esse desenho, que me estimulou a ler mais Ruth Rocha para

as crianças e também para as normalistas, as futuras professoras. Daquelas leituras feitas com os

alunos, tirávamos muito proveito, pois analisávamos os trabalhos propostos acerca do texto e

depois trocávamos experiências com a visão das crianças. Freqüentemente, nos surpreendíamos

com a luz das crianças, surgida através dos textos.

Cada leitor e cada texto têm a história de suas leituras. Leitor maduro é aquele que, em

contato com um texto novo, faz convergir para o seu significado os de todos os textos que leu.

Para ser um leitor-guia, é preciso ser leitor maduro. Um neófito em leitura não pode ser

leitor-guia. Acreditamos que o primeiro mito a ser desconstruído em relação ao aprendizado da

leitura é a crença de que ler é castigo. A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil vem, há

alguns anos, doando livros para alunos das escolas de 1º grau. O Projeto Literatura em Minha

casa também tem sido muito bom, mas nem sempre a posse física do livro garante a sua leitura e

a sua apropriação.

É sob esse ponto de vista que o papel do professor como guia de leituras é imprescindível

na sala de aula. Isto deve acontecer da forma mais lúdica possível, sem notas nem cobranças,

simplesmente lendo, facilitando e propiciando o contato com o texto, degustando a escritura.

O ex-Secretário de Educação, Moacyr Góes, em seu artigo “A leitura como construção da

cidadania”, fala de uma listagem de leituras que construíram sua a cidadania. Confessa que foi

muito mais um autodidata do que um cumpridor de currículos universitários em carreiras

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acadêmicas, e que o seu ser-político foi gerado no útero da literatura que desvela a compaixão

pelo homem.

Quando o professor passa, como dever de casa, a ler dois ou três livros por semestre, ele está condicionando a leitura a uma pena que há de ser cumprida, condição para o aluno/leitor alcançar a aprovação no final do ano letivo. Como a cultura judaico-cristã já carrega em si o trabalho como peso de punição e o prazer como ônus do pecado, a escola e a família agregam a este campo de expiação, a leitura. Daí a recomendação ”leia um livro, menino”, passa a ser um anátema tão ameaçador de desgraças como o “ganharás o pão com o suor de teu rosto” e o “parirás com dor”. Assim, o tema “A leitura como construção de cidadania” passa, antes, pela questão do resgate da leitura como momento de prazer e paixão. E o caminho dessa conquista é a reeducação da família e do professor. (GÓES, 1998, p 37).

Só um professor não-leitor pode, hoje, trabalhar a leitura dessa forma. Góes teve a

felicidade de ser formado e ter acesso aos livros fora da influência da escola. O que ele propõe é

bem mais difícil para um menino nascido na classe operária.

É difícil cercar os “fundamentos” da leitura, pois se trata de uma atividade eminentemente polimorfa: da pesquisa no anuário à desmontagem de um texto filosófico, passando pela degustação de um poema, pelo vôo sobre o jornal habitual, pelo olhar lançado sobre um anúncio ou um programa, pelo romance policial devorado no trem, pelo enunciado de um problema de física, pelo manual de instrução de um aparelho novo, pela retomada de um texto que se está escrevendo, pela consulta ao dicionário, pelo estudo literário de uma antologia... (FOUCAMBERT, 1998, p. 105).

Vários são os gêneros discursivos e cada um exige uma competência leitora que deverá ser

apresentada e desenvolvida na escola por todos os professores.

A escola é praticamente a única porta que se abre para o contato com os livros e o

despertar da necessidade de ser leitor com competência. Quanto maior for a consciência das

necessidades do aluno, maior será a possibilidade de construção crítica de uma rede de leituras.

Isso me faz lembrar um texto que utilizamos muitas vezes, com diferentes leituras, e que se aplica

também à formação de cidadãos leitores.

Tecendo a manhã

João Cabral de Melo Neto

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1.

Um galo sozinho não tece uma manhã Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele E o lance a outro; de um outro galo Que apanhe o grito que um galo antes E o lance a outro; e de outros galos Que com muitos galos se cruzem Os fios de sol de seus gritos de galo, Para que a manhã, desde uma teia tênue, Se vá tecendo, entre todos os galos. 2.

E se encorpando em tela, entre todos, Se erguendo tenda onde entrem todos, Se entretendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo Que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Um único texto não tece um leitor. O professor precisará conduzir ou passear com seus

alunos por muitos outros textos que gritem, que lhes chamem a atenção para os absurdos

grotescos e as delicadezas sutis desse viver caótico que todo homem humano precisa enfrentar.

Um texto fala a outro texto. Eles se cruzam, se tecem entre muitos outros textos, para

formar um amanhã iluminado pela luz da palavra, sempre unida a uma outra e ainda mais uma

outra, trazendo a sensibilidade e a coragem de enfrentar o viver diário de forma mais solidária,

sensível, aberta e fraterna. Teça na escola um novo amanhã em meio a muitos textos e autores!

Escreva uma nova história!

É função da escola dar a seu aluno o acesso necessário a diversas formas de expressão e

arte, a fim de que eles possam ter a sua subjetividade e o seu imaginário construídos e

influenciados pela linguagem.

Se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão, e, ao se encontrarem, eles trocam os pães, cada homem vai embora com um; porém se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando uma idéia, e, ao se encontrarem, eles trocam as idéias, cada homem vai embora com duas. Provérbio chinês (CORTELLA, 2002, p. 159).

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É senso comum, em nossos dias, que a leitura é indispensável à formação de uma

cidadania plena e responsável. É voz corrente entre os professores que os alunos não sabem

interpretar o que lêem e este é o principal motivo pelo qual eles não vão bem na maioria das

avaliações por que passam. Em todos os conselhos de classe, ouve-se a mesma reclamação: os

alunos não sabem identificar o que está sendo perguntado. Questiona-se, então: que estratégias

estão sendo buscadas pelos professores para mudar esse quadro? Que espaço e papel tem tido a

leitura nas salas de aula? Que espaço a leitura ocupa nos planejamentos curriculares?

Dependendo de onde quisermos chegar, precisaremos escolher os caminhos. No caso da

leitura, precisamos escolher os textos.

Ao examinar os planejamentos escolares de diferentes escolas, dentro de um dos módulos

do curso de pós-graduação de literatura infantil e juvenil da UFRJ, numa turma de 23 alunos,

sendo todos professores, verificou-se que o espaço que as escolas reservam para a leitura literária,

em seu planejamento anual, é mínimo.

Como o verbo ler não admite imperativos, é importante que os professores estabeleçam

com seus alunos objetivos claros a serem alcançados. Como bem coloca Vygotsk, a

aprendizagem é construída na interação de sujeitos cooperativos que têm objetivos comuns. No

caso da leitura, o professor precisa querer ensinar, ter instrumentos para isso, estar

completamente envolvido com o que ensina e fortalecer as crenças na importância social e

política da leitura.

Tanto o professor quanto o aluno deverão construir um contexto de aprendizado e troca,

segundo objetivos pré-estabelecidos. É bom que o aluno conheça seu processo de aprendizagem,

o caminho que precisará trilhar até ser um leitor crítico. Que consiga identificar em que parte do

caminho está e o que lhe falta para chegar onde pretende. Onde não há parceria e cumplicidade, a

aprendizagem é prejudicada. Portanto, sendo o processo ensino-aprendizagem constituído na

interação, o professor deverá estar atento e aberto às dúvidas, impasses, curiosidades, reflexões,

emoções e sentidos, discutindo e trocando as leituras que levem os seus alunos a ampliarem os

seus limites de interpretação e conhecimento. “É só mediante atividades conscientemente

concebidas, planejadas e executadas que as condições de existência dos homens, em todas as suas

dimensões, podem ir se tornando cada vez mais humanizadas” (SEVERINO, 1991, p. 33).

Despertar o leitor para interesses que podem estar por trás das palavras, desmistificando

os meios de comunicação e o seu compromisso com a sociedade de consumo – que transforma

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tudo em evento e espetáculo – , revelará que o alvo maior de suas instituições é o lucro que a sua

linguagem, enquanto mercadoria, proporciona.

Ampliar horizontes, promover vivências e desconstruir linguagens, como as da

propaganda e da informação, são procedimentos que ajudam a construir uma sociedade

participativa, reflexiva e com um bom alcance de leitura dos meios de comunicação. Faz-se

necessário mostrar como a mídia funciona sempre a partir dos seus interesses.

Todo professor é um livro e, conseqüentemente, uma promessa de leitura para seus alunos. A questão é saber se esse livro se renova e se revitaliza na própria prática do ensino; de que maneira esse livro se deixa fruir pelos alunos-leitores e se esse livro se abre à reflexão e ao posicionamento dos leitores, permitindo a produção de muitos outros livros (SILVA, 1999, p. 30).

Todas as escolas da Rede Pública Municipal de Ensino da Cidade do Rio de Janeiro

contam com um espaço voltado para a promoção da leitura: as Salas de Leitura. Elas possuem um

amplo e atualizado acervo de livros literários e didáticos. Cremos que, se não houver a mediação

do livro maior que é o professor, o acervo da escola não chegará a ser propriedade do alunado.

Sabemos que a escola não é o único meio de acesso aos saberes e à cultura. Cabe a ela

gerar experiências positivas de leitura a todos os alunos, mesmo que ela saiba que nem todos

serão ávidos leitores, mas que, pelo menos, consigam ler o suficiente para compreender o mundo

em que vivem e qual é o seu lugar. Para tanto, a escola precisa gastar tempo, investir e priorizar

estratégias de compreensão contínua.

Como tudo na vida, ler demanda tempo e esforço. Nem sempre é fácil e prazeroso. Há um

caminho inicial a percorrer, que exige paciência, perseverança, criatividade e amor por parte do

professor. Este deve ser um exemplo de leitor, comentando com seus alunos as leituras que o

apaixonam. Escreveu Ana Maria Machado: “Eu sempre trabalhei com muita paixão, sem medo

da leitura. Procurava passar esse sentimento para a turma. Meus alunos de 13 anos liam autores

como Graciliano Ramos, Ariano Suassuna. E curtiam adoidado” (MACHADO, 2001).

Se o professor não for leitor, será impossível para ele formar leitores. Não podemos fazer

ninguém gostar do que não gostamos. Precisamos ler os contos folclóricos que retratam nosso

povo, a nossa gente, estimular os alunos a fazerem inferências na leitura, questionando as idéias

que estão sendo ventiladas, e providenciar textos com ampla visão de mundo para que as noções

de bairro, cidade, estado e país (o Brasil em relação ao mundo; a América em relação aos

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continentes) se estabeleçam. Que nossos alunos possam ir tecendo redes de sentido, sabendo que

um outro pode e deve ser diferente dele, pois vivemos em contextos e culturas diferenciadas. Que

a leitura seja um instrumento que leve o aluno a participar ativamente da sociedade em que vive,

formando-o como um cidadão capaz de pensar e de vivenciar algo além dos interesses imediatos

(dinheiro, poder ou diversão), sendo tolerante, amoroso e sensível com o outro, já que a arte da

palavra prima pela liberdade de olhar e descrever o humano de forma única e criativa.

(...) a leitura capacita o ser humano a pensar e agir com liberdade, combatendo o autoritarismo e outros “ismos”que sinalizam a reprodução das estruturas injustas da sociedade. Nesta esfera, a educação e a escola desempenham um papel de suma importância (ZILBERMAN apud SILVA, 2003, p. 49).

Diferentes textos com diferentes olhares, que vão se somando e se entrecruzando,

proporcionam no leitor um novo texto, inteiramente dele, que redundará na formação de sua

própria identidade, que será sempre a de um aprendiz do estar-no-mundo, gerada por um

posicionamento digno do humano.

É papel do professor oportunizar momentos de prazerosa leitura. Selecionar textos e

autores que vão provocar e instigar os alunos a uma saudável discussão dos fatos, assuntos e

maneiras de ver e sentir a vida. É nesse encontro diário entre alunos e professores que o gosto, a

sustância da leitura, é formado, e o verdadeiro prazer em conhecer é desenvolvido.

Se ler é arma, como diz Paulo Freire, quanto mais lermos, melhores e mais poderosas

serão as nossas armas. Ana Maria Machado afirma que “ler é também uma ferramenta de

sucesso” (MACHADO, 1999, p. 74).

Ao propormos um exercício de leitura, estaremos desafiando nossos alunos a

desarrumarem seus mundos interiores e a rearrumá-los como quem muda a decoração ou mesmo

a estrutura de uma casa.

“Nascemos não-prontos e vamos nos fazendo; eu, neste momento, sou o mais novo de

mim, minha mais nova edição (‘revista e ampliada’) e, se o critério para a velhice é o tempo, o

mais velho de mim está no passado” (CORTELLA, 2002, p.158).

Maravilhosa esta fala que abre espaço para nos vermos como inacabados, capazes de estar

construindo sempre novos saberes e competências.

Que isto esteja claro para nós e para os nossos alunos. Não paramos de aprender. Aos 54

anos ainda podemos fazer um mestrado, aos 13 anos podemos ser alfabetizados e termos contato

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pela primeira vez com a literatura. Muitas vezes ocorre no aluno saber ler, mas não ter tido a

oportunidade de conhecer textos literários. Essa alfabetização também se faz necessária. A

iniciação literária, quanto mais cedo ocorrer, mais incidirá sobre o estímulo e a prática leitora dos

alunos.

Estamos teorizando, buscando compreender os processos e caminhos percorridos pelo

aprendiz de leitura, registrando erros e acertos pedagógicos, a fim de reavaliar, a cada passo, as

nossas práticas enquanto formadores de caminhos de aprendizagem permanente. “Estudar é

assumir uma atitude séria diante de um problema” (FREIRE, 2003, p. 58).

Nas definições citadas, podemos perceber como é complexo conceituar o processo de

aquisição das habilidades básicas de leitura e a sua continuidade no letramento. Precisamos

assumir uma atitude mais séria de prática e pesquisa diante da nossa realidade. Como sempre

estará faltando algo, uma nova possibilidade ou necessidade a se descobrir, poderemos ir além do

que temos ido?

Hoje, uma das maiores reclamações dos professores é que os alunos não ouvem o que se

fala. Estaremos, nós, ouvindo-os? Precisamos voltar-nos para a nossa prática, refletindo

criticamente sobre ela, para não sermos ingênuos-delirantes. Observem a fala de uma professora,

em um Conselho de Classe, referindo-se aos alunos pobres: – Como vocês querem oferecer um

ensino de qualidade se os alunos não são de qualidade?

Essa fala não foi rechaçada. Pelo contrário, foi fortalecida pela fala de um outro professor,

no mesmo Conselho de Classe: – O problema é que eles falam uma outra língua. É tudo

diferente, eu não aprendi a ensinar pra esse tipo de aluno. Eles não querem nada com nada.

Isto me faz lembrar um desenho animado da coleção Crianças Criativas, chamado Dá um

sorriso pra titia, onde a tia insiste em ordenar à criança por várias vezes e de diferentes formas: –

Dá um sorriso pra titia!

Ela dança, canta, dá cambalhota para que a criança faça o que ela deseja. Tudo é inútil, até

que ela desiste e vai embora. Só, então, a criança começa a rir, com ares de quem venceu o “cabo

de guerra”. Quantas vezes parecemos agradar a nossos alunos, mas desejamos apenas que nos

obedeçam, sem levarmos em conta o que eles estão desejosos de saber.

3.2. A utilização da literatura como espelho histórico e cultural do gênero humano

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A imagem no espelho

Aos vinte anos escreveu suas memórias. Daí por diante é que começou a viver. Justificava-se: – Se eu deixar para escrever minhas memórias quando tiver 70 anos, vou esquecer muita coisa e mentir demais. Redigindo-as logo de saída, serão mais fiéis e terão a graça das coisas verdes. O que viveu depois disto não foi precisamente o que constava no livro, embora ele se esforçasse por viver o contado, não recuando nem diante de coisas desabonadoras. Mas os fatos nem sempre correspondiam ao texto e, para ser franco, direi que muitas vezes o contradiziam. Querendo ser honesto, pensou em retificar as memórias à proporção que a vida as contrariava. Mas isto seria falsificação do que honestamente pretendera (ou imaginara) devesse ser a sua vida. Ele não tinha fantasiado coisa alguma. Pusera no papel o que lhe parecera próprio de acontecer. Se não tinha acontecido, era certamente traição da vida, não dele. Em paz com a consciência, ignorou a versão do real, oposta ao real prefigurado. Seu livro foi adotado nos colégios, e todos reconheceram que aquele era o único livro de memórias totalmente verdadeiro. Os espelhos não mentem (DRUMMOND, 1997, p. 25).

Drummond brinca neste texto com a relação entre literatura e realidade, e a dificuldade da

escrita ser fiel ao real. Ao narrarmos, emprestamos à narrativa nossos sonhos, ficções e desejos.

O importante é saber que toda escritura nasce de uma vivência social e humana, que pode ser

compartilhada esteticamente através da literatura.

As histórias povoaram desde sempre o homem. Os contos ao redor das fogueiras, contos

da história do homem, contos de fadas, as histórias bíblicas, os mitos gregos e latinos, as fábulas,

e os grandes e eternos clássicos Dom Quixote de la Mancha, Romeu e Julieta, Os Lusíadas, O

vermelho e o negro, Madame Bovary, Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas, que são

grandes espelhos. Expressões de realidade?

Sim, realidade estética, cultural e humana, que toma corpo e vida através do livro e

mantém com o leitor uma relação de troca tão forte e viva que atravessa séculos e gerações. O

homem se move em intermináveis buscas de quem ele é, e a literatura, embora metonímica, ao

mostrar a parte e não o todo do que o homem busca, tem respondido a muitos questionamentos,

auxiliando-o. Através das narrativas, a literatura organiza esteticamente o caos interior em que o

homem vive e o constante nonsense da vida.

O homem é incapaz de abarcar em si sua totalidade. A literatura abre feixes de infinitas

possibilidades de nos vermos de diferentes formas nos mais abrangentes textos – espelhos – ,

eficazes em nos confrontar com o que somos, potencialmente ou em essência.

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Através da literatura, podemos ser Cinderela, Capitu, Madame Bovary, Julieta, Madalena,

a cachorra baleia ou Romeu. Por que não?

A literatura proporciona o desdobrar-se para ver ou ser magicamente o outro, num jogo de

faz de conta que qualquer criança conhece bem. Basta contarmos uma história ou assistirmos a

um filme e ela imediatamente dirá aos outros: – Eu sou o super-homem, eu sou a pequena sereia,

eu sou a Cinderela. Outra dirá: – Eu sou a bruxa. A escritora Georgina Martins escreveu o livro

O menino que gostava de ser a partir da observação da reação de seu filho de cinco anos, que

vivia “sendo” em cada história que ela lhe contava.

Muitos são os caminhos para o homem compreender a sua realidade. A literatura de

qualidade aborda as questões básicas do humano e por isso pode servir como um grande espelho

psíquico e cultural, que auxilia o educar contra o egoísmo e a barbárie.

Ana Maria Machado, autora de literatura infantil e juvenil, acaba de lançar um livro

chamado Como e por que ler os clássicos Universais desde cedo, onde narra maravilhosas

experiências de leituras com os grandes textos da literatura universal. Nele, defende com clareza

e paixão os benefícios da leitura dos clássicos desde a infância, tanto no auxílio da compreensão

do estar-no-mundo quanto na descoberta e no entendimento do outro. Considera, também, o

acesso a esses livros um direito de todos, cidadãos-herdeiros desse patrimônio cultural.

E nós, professores, como mediaremos esse acesso? Já que, como diz Daniel Pennac, o

verbo ler não suporta imperativos. Como formar a simbiose – “intimidade incomparável era a

dupla que formávamos, ele leitor, e tão sagaz, e nós o livro, e tão cúmplice” (PENNAC, 1993, p.

180) – entre o aluno e o livro?

No livro Como um romance, de Daniel Pennac, vemos o relato de um ex-aluno do poeta e

professor francês Georges Perros, que registra como o mestre chegava à sala de aula e o prazer

com que lia para seus alunos.

Encurvado, numa japona azul-marinho, cachimbo na boca ou na mão. Esvaziava uma sacola de livros sobre a mesa. E era a vida... Todas as suas leituras eram como dádivas... Ele era a caixa de ressonância natural de todos os livros, a encarnação do texto, o livro feito homem (PENNAC, 1993, ps. 86 e 87). Ele nos falava de tudo, nos lia tudo... Ele nos tomava pelo que éramos, jovens colegiais incultos e que mereciam saber... Perros ressuscitava autores. Levanta e caminha: de Apollinaire a Zola, de Brecht a Wilde, eles apareciam todos em nossa sala bem vivos (PENNAC, 1993, p. 88). Ao escutá-lo, nós tínhamos vontade de ler e pronto, era tudo. (PENNAC, 1993, p. 89). O grifo é nosso.

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Aqui vemos o relato da experiência de um professor bem sucedido em desvendar o

caminho da leitura a seus alunos. Mas nem sempre é assim. Em Drummond, encontramos o

poema “Iniciação literária”, que narra uma experiência oposta. O aluno detesta o texto que lhe é

oferecido pela escola e deseja que o autor receba como penalidade ser obrigado a ler o próprio

texto:

Leituras! Leituras! Como quem diz: navios... Sair pelo mundo Voando na capa vermelha de Júlio Verne. Mas por que me deram para livro escolar A cultura dos campos de Assis Brasil? O mundo é só fosfatos-lotes de 25 hectares -soja-fumo-alfafa-batata-doce-mandioca pastos de cria-pastos de engorda. Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto Condenando esse Assis a ler a sua obra (DRUMMOND, 1983, p. 601).

A literatura clássica, por ter resistido às muitas leituras, apaixonado muitos leitores e

perdurado através dos tempos, é garantia de qualidade e devemos oferecê-la, ainda que não tenha

plena aceitação prazerosa do alunado. Ela tem uma marca forte de universalidade, fala do

homem, de seus conflitos e de sua natureza. O professor poderá despertar esse desejo através de

atividades pré-textuais, falando do valor do autor para a literatura como um todo, o que ele trouxe

de inovador, as suas principais marcas, a sua sensibilidade à frente de seu tempo e a sua história

de vida. Assim, estaremos esquentando as turbinas da turma, para que a leitura se dê em terra

fértil. Depois, é só lançar o texto e deixar com que ele fale aos alunos.

É fundamental que bem cedo as crianças entrem em contato com esses textos,

principalmente, os clássicos infantis: Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Pinóquio, Peter-Pan, as

fábulas de Esopo e La Fontaine, os livros de Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Bartolomeu

Campos de Queirós, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Eliardo França,

José Paulo Paes, e muitos outros.

Defendemos que a escola pública se planeje para fazer circular esse patrimônio em seus

corredores, como um assunto comum entre seus alunos, e lute pela sua permanência.

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Acreditamos, ainda, que os alunos poderão ir se apossando do discurso dos contos

clássicos e, em paralelo, ir tomando contato com as intertextualidades geradas a partir deles. Os

contos modernos trabalham a desconstrução de maniqueísmos e estereótipos de príncipes,

princesas, fadas e bruxas, dos finais felizes e dos papéis masculinos e femininos. Livros como O

fantástico mistério de Feiurinha, Procurando Firme, Vou ali e volto já, O príncipe desencantado,

Ora fada ora bruxa e Apenas diferente auxiliarão os alunos a perceberem semelhanças e

diferenças, e os instigarão a ler cada vez mais.

Uxa leva um susto e sai correndo. Larga os dois sapatos de cristal, Que já estavam doendo... Quer dizer: Os pés é que doíam, os sapatos apertavam... E Uxa corre, com medo de virar princesa E ter que ser feliz para sempre, credo, E vira bruxa, num repente (ORTHOF, 1985).

Contagiar os alunos com o prazer que sentimos ao ler esses textos: os clássicos e os

modernos!

No livro A formação da leitura no Brasil, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, temos a

citação de um depoimento dado por Manuel Bandeira sobre sua leitura de Camões, quando o

poeta pernambucano estudava no colégio Pedro II: “A Silva Ramos e a Souza da Silveira devo o

gosto que tomei a Camões, cujos principais episódios de Os Lusíadas eu sabia de cor e

declamava em casa para mim mesmo com grande ênfase” (BANDEIRA apud LAJOLO e

ZILBERMAN, 1999, p. 210).

Não é possível encarar o ensino da leitura como algo sério se descartarmos os clássicos.

Precisamos, sim, ler os grandes autores, pois cada um de nós tem direito a ter acesso a esse

patrimônio cultural da humanidade que não podemos perder. Cada um de nós tem o direito de

saber ao menos que essa herança cultural existe. Vamos conhecer Cervantes, Camões, Homero,

Machado de Assis, Câmara Cascudo e Gonçalves Dias, e desconstruir em nossos alunos a falsa

crença de que ler não é bom e que a leitura dos clássicos só serve para passar no vestibular.

É claro que existe uma determinação mais geral da sociedade sobre a escola, esperando que a sala de aula seja um lugar de submissão, de doutrinação, de seleção social, de domesticação. Diante desse fato, qual a opção: REFORÇAR/REPRODUZIR este esquema ou RESISTIR/TENTAR

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TRANSFORMAR? Entendemos que o professor tem que sair de uma posição reativa, defensiva e partir para uma fase autocrítica e de (re) construção de sua proposta pedagógica. Temos consciência de que não é tarefa simples, mas é necessária (VASCONCELLOS, 1996, p. 34).

Se quisermos trabalhar com seriedade a leitura, é urgente que professores e coordenadores

pedagógicos se voltem para a necessidade de formar professores-leitores, incentivando-os a

fazerem cursos de pós-graduação que premiem a leitura crítica. Mudar a escola passa por

mudança da leitura que se faz dela, bem como a de seus programas e caminhos: ”Para quem não

sabe aonde vai qualquer caminho serve”.

Ana Maria Machado, em seu livro Texturas, diz estar convencida de que o que leva o

aluno a ler é o exemplo. Precisamos, então, de professores apaixonados por leitura, que

contaminem seus alunos ao expressarem essa paixão na sala de aula.

Se observarmos os planejamentos pedagógicos, veremos o quanto a leitura está fora deles.

Para mudar este panorama na educação, precisamos, como escola, começar pelos professores.

Como seria bom, se toda escola, professores e alunos, se voltasse para a leitura conjunta de livros

previamente escolhidos por todos. Planos de leitura onde tivéssemos toda a escola envolvida: um

clássico, um romance, um poeta, um compositor, um pintor, um seriado da televisão, ou qualquer

outra coisa que a escola julgue importante ler. Fazer uma grande viagem conjunta ao mundo da

leitura é abrir uma porta para uma cidadania humanizada na educação. Motivação,

compartilhamento, fruição e prazer.

O defeito dos livros impróprios e, portanto, refugados pelas crianças está em que retarda o advento do gosto pela leitura. Há homens que passaram a vida sem ler um livro, fora os escolares, justamente por não terem tido em criança o ensejo de ler um só livro que lhes falasse à imaginação. Já os que têm a felicidade de na idade própria entrarem em contato com livros que interessam, esses se tornam grandes ledores e por meio da leitura prolongam até ao fim da vida o progresso auto-educativo (LOBATO, 1964, ps. 253 e 254).

Nossos alunos têm textos variados em que se poderão ver representados e espelhados com

simpatia, humor e poesia. A escolha certa dos textos será o diferencial para o sucesso ou

insucesso da leitura na escola, bem como a forma de partilhá-los.

Três dos maiores escritores brasileiros escrevem contos sobre o espelho: Machado de

Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Três contos que trabalham a mesma temática e o

mesmo movimento de encarar-se, de contemplar o que se é. Com medo, assustando-se,

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aproximando-se e afastando-se do espelho, mas desejando descobrir-se. Recomendamos a leitura

dos três nas séries finais. Podemos buscar o espelho da madrasta da Branca de Neve e o espelho

da Bela e a fera ou o de Alice no país dos espelhos e dialogar esses universos literários com a

realidade de cada aluno. Um dos núcleos conceituais da Multieducação é a identidade e a escola

precisa auxiliar a sua formação, construindo a subjetividade das crianças através da ficção.

O que nossos espelhos nos dizem? Pai? Mãe? Escola? Sociedade? Estaremos trabalhando

a polifonia literária e social em concomitância com a formação da identidade? Quem sou eu?

Com quem tenho sido identificado (visão de fora)? Como o outro me vê? Como eu me vejo?

Com quem me identifico (visão de dentro)? As leituras de si mesmo, do outro e do mundo

formam uma ciranda onde a criança precisa se inscrever saudavelmente. Só o respeito e o amor

constroem relacionamentos francos e confortáveis, ajudando a criança a formar sua auto-estima.

Ao pensarmos em um outro clássico, João e Maria, vemos como a mentalidade medieval

está contida ali e como conservamos seus ranços na questão dos papéis e funções da família, que

até hoje serve como um grande espelho.

A questão da fome aparece retratada como o motivo para o pai levar as crianças para

passear na floresta e “perdê-los”. Quando as crianças entram na casa da bruxa, e são presas, é

interessante observar que o menino será alimentado até poder ser comido – fase adulta – pelo

sistema – a bruxa – , enquanto a menina é submetida de imediato a trabalhos domésticos. Que

futuro espera os meninos e as meninas pobres? É um bom momento para discutirmos sobre os

papéis sociais, as questões de gênero, a ética e a justiça social. Uma das funções essenciais da

utilização da literatura na escola é transformar o aluno em sujeito de sua elocução.

Discorrer e propor pesquisa sobre o que permaneceu e o que mudou nos costumes sociais

pode ser um bom disparador de diálogos e posicionamentos por parte dos alunos. Pais e mães

abandonam seus filhos hoje por não poderem sustentá-los? O que pode explicar tanta pobreza e

miséria num mundo globalizado? A sociedade de consumo exclui ou inclui? Qual a diferença

entre sociedade globalizada e sociedade planetarizada? Estas questões podem ser lançadas para

estimular a pesquisa e a leitura de mundo.

A literatura, como diz Cecília Meireles, é uma nutrição. Cada qual escolhe o livro que lhe

apetece de acordo com o título, o gênero ou o autor, que já conheceu e gostou. É comum na

infância e adolescência escolher um autor e pedir tudo o que seja de sua autoria para ler.

É bom que o professor conheça o acervo interno de seus alunos, pois poderá usá-lo para

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cruzar leituras. Apropriar-se de estratégias de leitura que o aluno traz, para, a partir delas,

avançar. Todo professor é um investigador docente que precisa compreender e participar da

caminhada do seu aluno. Procurar entender que hipóteses nossos alunos usam para resolver seus

problemas.

Como lêem? Como interpretam o que lêem?

Estando atento a que nenhum juízo sobre alguém é definitivo, o professor é o mediador,

aquele que acredita que a educação transforma. Ao deparar-se com rótulos e preconceitos, deve

desestruturá-los e combatê-los com clareza e propósito, sem esmorecer.

O que diferenciaria um texto comum de um texto artisticamente construído? Que

parâmetros poderiam ser propostos para que qualquer cidadão escolarizado possa reconhecer um

texto literário?

Essa proposta foi feita a alguns autores por Ieda de Oliveira, organizadora do livro recém-

publicado O que é qualidade em literatura infantil e juvenil?. Com as palavras da escritora,

podemos observar a diversidade de enfoques dados ao tema. Diversidade não excludente ou

incompatível, mas enriquecedora de ângulos de observação. Diferentes modos de ver e de

construir literatura.

Celso Sisto afirma:

(...) a linguagem é mesmo o ponto alto na avaliação de uma obra. Por vezes, quando leio alguns livros destinados às crianças (e olha que faço isso diariamente, por força não apenas da profissão!), tenho a impressão de que a linguagem empregada é artificial. Parece que o narrador tem dificuldade de dizer as coisas de maneira normal, sem precisar usa uma linguagem empolada, dura, formal, boba pobre. E para completar, ainda acopla-se ao texto um tom de ensinamento, como se no fundo da escrita houvesse uma voz aconselhando o tempo todo: faça isso, faça assim senão acontece isso! (SISTO, 2005, p. 127).

Sisto fala ainda dos textos estereotipados, camuflados, com predomínio do machismo, do

servilismo e da burrice.

Enquanto Celso Sisto escolhe falar do que não deve ser a literatura, Bartolomeu diz,

poeticamente: “Quando inauguro uma nova linguagem, quando a liberdade se faz fio norteador,

quando a inventividade se faz material indispensável de trabalho, quando não existe preconceito

diante da fantasia, quando a sonoridade agrada aos ouvidos...” (QUEIRÓS, 2005, p. 169).

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Quando tudo isso ocorre num texto, é certo que a criança gostará dele. É impressionante

como a criança reconhece se um texto é sonoro, leve, cheio de inventividade e fantasia.

“Quero um texto que tanto permita a entrada da criança, como também acorde a infância

que mora em todo adulto” (QUEIRÓS, 2005, p. 170).

É preciso que nós, professores, pouco a pouco ensinemos nossos alunos a reconhecer um

bom texto, e isso só será possível na medida que formos dando-lhes as pistas e as marcas que o

diferem. Despertemos em nossos alunos a observação e a percepção de códigos de escrita que

caracterizem a utilização do código estético literário, bem como as diferentes formas de articular

um texto.

“Há livro que ‘ensina’, ou melhor, determina a sina do sujeito. Há livro que concorre para

o sujeito reinventar o seu destino” (QUEIRÓS, 2005, p. 171). Bartolomeu neste trecho se refere à

diferença entre os livros científicos ou didáticos, reprodutores de informação, que não possuem

inventividade nem desafiam a imaginação criadora, dos que marcam a vida do leitor para sempre.

Em uma de nossas aulas, na Escola Municipal Tiradentes, durante a leitura do livro O

menino Nito, de Sonia Rosa, uma menina começou a chorar e alguém da turma disse: – Não liga

não, tia. Ela chora à toa que nem o menino do livro.

Imediatamente a menina se defendeu, dizendo que tinha muitos motivos para chorar, pois

o pai batia muito nela e no irmão toda vez que chegava bêbado em casa. Essa criança apresentava

sérios problemas de concentração e rendimento escolar. Diante daquele espelho textual, ela não

pôde resistir e se abriu. Essa atitude de abertura fez com que os colegas se aproximassem dela e a

amparassem, emocional e fisicamente. Depois o pai foi chamado e alertado que, se ela chegasse

novamente à escola com hematomas, ele seria denunciado. A ação de um texto na vida dessa

turma certamente será sempre lembrada.

A boa literatura dá mesmo voz à criança, faz dela o sujeito de sua enunciação e sua

história. Daí o cuidado redobrado que devemos ter com os textos, para que a criança não se

enuncie mal.

Além dos problemas com a qualidade dos textos, temos que observar a qualidade também

das ilustrações, que muitas vezes não passam de meras publicidades do livro e de seu autor, já

“consagrado”.

Normalmente, a criança escolhe o livro pela capa ou por não ser grosso, ou ainda por

haver uma forte publicidade sobre ele. Cremos que sem desejo não há leitura, por isso devemos

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respeitar o desejo de nossos alunos, e incentivá-los a quebrarem seus limites, experimentando

novas leituras e tendo a consciência de que eles não podem escolher o que não conhecem. O

caminho é trabalhar textos que acionem o desejo. Textos que os envolvam e alimentem até a

irresistibilidade.

A enunciação é a expressão de um ser único, que pertence a um espaço e tempo únicos.

Por isso, linguagem e identidade estão intimamente ligadas. A literatura dá voz à criança. Faz

com que ela se enuncie.

Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra (BAKHTIN, 1992, p. 17).

A palavra abre caminho para as relações e interações entre os alunos, e os textos vão se

tecendo numa polifonia que busca a harmonia e a compreensão do mundo literário, seus autores e

textos, e do mundo social e escolar.

3.3. A literatura infantil e juvenil, clássica e moderna

Ao examinarmos o boom editorial que ocorreu na literatura infantil e juvenil depois dos

anos 80 e 90, encontraremos, como diz Affonso Romano de Sant’anna, muita “lixoteratura”.

Textos feitos para vender, sem nenhum ou com pouco valor literário. Porém, é preciso reconhecer

também o valor de uma literatura que se mostra cada vez mais artisticamente literária, de alto

valor estético, reconhecida como de muita qualidade. A Literatura Infanto-Juvenil brasileira conta

hoje com autores e ilustradores mundialmente premiados, como é o caso de Ana Maria Machado,

Lygia Bojunga Nunes, Adriana Lisboa, Marina Colasanti, Bartolomeu Campos de Queirós, Ruth

Rocha, Sylvia Orthof, Eva Furnari, Anna Claudia Ramos, Ana Raquel, Roger Mello, e muitos

outros.

Quando a Literatura Infanto-Juvenil tem qualidade estética, qualquer pessoa pode ler e se encantar. Brilhante é o escritor que consegue captar o imaginário infantil e juvenil e se comunicar diretamente com a alma da criança ou do jovem. Conseguir escrever de fato um livro que as crianças e os jovens possam ler e se identificar, é tarefa difícil e requer habilidades (RAMOS, 2005, p. 148).

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A verdadeira leitura libertadora é aquela que, através do poético, ilumina nosso pensar e

nosso sentir, nos conduzindo a recriar o que antes pensávamos. Não representa um simples

prazer, um relaxamento dentro de uma programação de lazer, nem uma substituição imaginativa

da realidade, e sim uma intensificação do viver, um construir-se através da leitura, da

narratividade e da poesia. Como, por exemplo, as fábulas, que auxiliam na construção da

subjetividade e na organização interior do ser humano diante do seu caos e sua perplexidade, que

lhe ocorrem desde a mais tenra infância.

É através da nova realidade, apresentada pelo literário, que articulamos em nós mesmos

níveis de consciência mais elevados e mais complexos.

A nova realidade que se forma, na ficção nos forma. É interessante observarmos a relação

que existe entre as histórias que contamos e os homens que formamos. A clássica história

Cinderela deixou gerações de mulheres paralisadas, esperando por príncipes encantados. Em

nossa geração, com todo movimento de libertação feminina, ainda é comum encontrar mulheres

sofrendo do Complexo de Cinderela, esperando por um homem que a salve de enfrentar a vida,

isto é, o mundo do trabalho.

Da mesma forma, o clássico Peter Pan gerou e ainda gera muitos homens que não querem

crescer e se identificam com o personagem, tomando-o como modelo. Dele não se despedem.

Dessa realidade psico-social, nasce o livro Síndrome de Peter Pan, que trata da fuga da realidade

como um problema emocional sério, revelando a incapacidade de muitos homens em deixarem de

ser filhos, saírem da dependência materna, geradora de muitas dificuldades familiares, e de

deixarem relacionamentos. Homens que não conseguem assumir a responsabilidade de sustentar

a família e exercer um papel social responsável são verdadeiros pais e maridos fantasmas.

Disfunção que começa na infância e pode ser identificada através de sintomas como a

irresponsabilidade no cumprimento das tarefas e a falta de estrutura emocional para enfrentar

problemas. O medo de crescer.

Quando analisamos com as crianças e jovens essas condutas, rapidamente são

identificadas com pessoas da família que apresentam tais sintomas e que muitas vezes se

confessam vítimas desses sentimentos. A leitura dá voz e consciência a quem somos, abrindo

leques de reidentificações.

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Em 2005, houve um concurso de cartas, promovido pela Secretaria Municipal de

Educação, cujo tema foi: “Carta ao meu personagem dos contos de fadas favorito”. Através do

gênero epistolar, pudemos verificar o nível de conhecimento dos contos clássicos de nossos

alunos e ficamos surpresos com o que os empréstimos e a leitura haviam realizado. Escolhemos

uma, entre muitas cartas, para registrar aqui:

Para meu personagem favorito Peter Pan

Caro Peter Pan,

Quero ir voando junto a você e a Wendy para a Terra do Nunca encontrar os meninos perdidos, ver as sereias, enfrentar o Capitão Gancho e jogá-lo no mar, para que seja comido pelo crocodilo. Quero enfrentar todos os perigos, como os piratas e todas as aventuras: voar e morar numa árvore com os meninos e meninas perdidas. Amigo Peter Pan, quero que me leve para a Terra do Nunca para não mais crescer, igual a você que foi para lá há tanto tempo e nunca mais cresceu. Já era para você estar bem velhinho, como essa Terra é mágica fez com que você nunca mais crescesse. Você já fez dois filmes, já era para você estar com uns cinqüenta anos. Mas e aí, como é que você está? E a Sininho? Continuam brigando? Melhor vocês pararem com isso. Afinal vocês são amigos, e é graças à Sininho que você está aí, na Terra do Nunca. Porque foi ela que te deu o pó mágico para você voar. Afinal, ela só tem ciúmes de você quando você leva alguém para lá. Ela gosta muito de você. Peter Pan, estou te esperando para nós partirmos para nossas aventuras. Não se esqueça de trazer a Wendy e a Sininho e o pó Mágico para eu poder voar. E também não se esqueça de avisar o Capitão Gancho que eu estou indo e vou lutar com ele e acabar com ele de uma vez por todas. (Allan Espíndola de Freitas, 8ª série, E.M. Mario Cláudio).

A leitura crítica, reflexão sobre as histórias contadas, deve ser objeto de salutar

problematização no confronto com os contos modernos que desarticulam os clássicos e abrem o

entendimento para outros caminhos de solução nas situações de crise.

Após ler o conto Cinderela, já num outro dia, dando tempo para as crianças elaborarem a

sua primeira leitura, ler com elas Vou ali e volto já é uma sugestão. As crianças acham muita

graça neste livro porque toda a previsibilidade dos contos clássicos é quebrada. O príncipe mente.

Diz “vou ali e volto já”, mas não volta. Ele não está interessado em se casar, muito menos em

salvar das imposições sociais alguém que não seja ele mesmo. A princesa é ludibriada, mas até

gosta, pois queria correr o mundo atrás de aventuras que são muito mais emocionantes do que o

casamento. Podemos ainda, em seqüência, ler a história de Dona Baratinha, que só queria se

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casar e mostrar como personagens e pessoas diferentes podem ter pensamentos e desejos diversos

diante de uma mesma situação de vida.

O principal é que o professor não faça uma leitura tendenciosa, mas que deixe as crianças

desfrutarem e construírem em si mesmas seus valores e saídas. É talvez apenas na descontração

do brincar com valores rígidos que a criança e o adulto conseguem dar fluxo à sua liberdade de

criação, isto é, compor seu próprio texto a partir de outros. Se a turma for já alfabetizada, com um

nível de leitura mediano, podemos interagir as leituras com o filme Para sempre Cinderela, numa

tentativa de tornar realidade o ficcional através da própria ficção.

É comum, hoje, pais e professores perguntarem: que leituras e autores farão seus filhos

gostarem de ler? Pode-se chegar a determinar como seria um livro adequado às crianças? Seria

um grande alívio obter-se tão sábia receita, mas poderia acontecer que o leitor se desinteressasse

por um livro sob medida, trocando-o por outros, tidos como menos recomendáveis.

Encontramos muitos textos facilitados, onde a criança é idiotizada. Há ainda um ranço dos

primeiros textos de literatura infantil, anteriores a Monteiro Lobato, que desejavam apenas

prevenir as crianças quanto aos riscos que poderiam correr caso desobedecessem aos pais ou aos

professores. Livros para ensinar a obediência ou hábitos de higiene e educação, como os que

trazem as cinco palavrinhas mágicas: obrigado, por favor, com licença, até amanhã e desculpe.

Marina Colasanti, em entrevista dada para a Tese de Doutorado de Rosa Maria Cuba

Riche, O feminino na literatura infantil e juvenil brasileira, declarou:

Não penso na criança não, eu escrevo. Não facilito nada para ela. (...) Não tenho a menor preocupação com o entendimento das crianças dessa ou daquela palavra não faz nenhuma diferença. Preocupo-me com a musicalidade, melodia, riqueza de metáfora, com absoluta proibição, interdição de lugar comum, qualquer coisa que se lhe aproxime. Gosto de um texto muito trabalhado. Eu acho que isso é muito bom para a criança. Ela pode não se dar conta de que aquele texto é muito trabalhado. Não é para ela se dar conta. Como um leitor adulto que não é profissional, em geral não pára para pensar nisso, mas é muito importante a forma. Aquilo atrai, alimenta, encanta. Há uma coisa altamente encantatória no texto.(...) O texto tem muitos significados. Quero que ele tenha muitos significados, que abra muitas leituras (COLASANTI, 1995, ps. 23 e 24).

Monteiro Lobato, em Reinações de Narizinho, fala da dificuldade dos adultos em entrar

no reino do faz-de-conta. “Que bicho bobo é gente grande! Morrem de lidar com as maravilhas e

não aprendem nada. Não aprendem essa coisa tão simples que é o “faz-de-conta” (LOBATO,

1988, p. 13).

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Lobato levou a pedagogização da leitura a sério, utilizando-se de vários artifícios para

promover o contato das crianças com livros de qualidade. Deu voz, através de seus personagens,

às fábulas, relendo-as criticamente para que não se tornassem entediantes para as crianças.

Nos seus livros, encontramos uma sociedade leitora e narradora. Todos os personagens

lêem e conhecem histórias. Dona Benta é a narradora principal, ela dará voz aos clássicos, lendo-

os e adaptando-os para as crianças. Tia Anastácia e Tio Barnabé também dão sua contribuição

para que os meninos sejam enriquecidos com contos predominantemente orais, os contos

populares.

A verdadeira literatura fortalece o imaginário infantil e forma seu ser poético, capacitando

a criança a ser uma leitora em potencial das artes e do mundo da ficção.

A literatura que vamos enfatizar aqui é a literatura de qualidade, seja ela recomendada

para crianças ou para adultos. Essa divisão é tola, pois tudo que tem qualidade pode ser oferecido,

desde que a criança tenha alcançado letramento suficiente para aquele nível leitor.

A literatura infantil e juvenil ocupa hoje lugar de destaque entre os autores famosos do

nosso universo literário. Já se foi o tempo em que era desprezada pela academia e considerada

como menor. Hoje contamos com autores premiados internacionalmente e best-sellers que

ocupam uma boa parte do mercado editorial. Como o livro é um objeto de consumo, podemos

dizer que a escola é responsável por cerca de 80% desse consumo e nem tudo o que é consumido

é de boa qualidade, o que denuncia que a escola precisa prestar mais atenção no que tem

escolhido para seus alunos.

Procurando atender as demandas de temas transversais propostos pelos parâmetros

curriculares, muita coisa inútil, com pouca ou nenhuma qualidade literária, ou apenas

informativa, foi oferecida pelas editoras às escolas.

Alguns autores não abrem mão da qualidade artística de seus textos, como Lygia Bogunga

Nunes, Marina Colasanti, Silvia Orthof, Edy Lima, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e

Bartolomeu Campos de Queirós. Podemos indicar seus livros sem medo.

3.4. Trabalhos com leitura em Escolas Públicas

Que importa a paisagem, a glória, a baía, a linha do horizonte? – O que eu vejo é o beco. (BANDEIRA, 1993, p. 150).

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Chega de só ver o beco! Olhemos para a linha do horizonte!

A escola pública sofre hoje o mesmo preconceito que o pobre, o negro e o favelado. Os

professores da escola pública municipal, por tabela, mesmo sendo concursados e bem formados,

com mestrado e doutorado, são vistos com desdém pelos da Rede Particular (a rede dos ricos) e

sofrem tanto quanto os seus alunos. Isso é sentido fortemente quando reunimos professores de

diferentes redes.

Ao expormos os trabalhos de nossos alunos, todos se espantam, e o comentário é sempre o

mesmo: “Não sabia que os alunos do Município trabalhavam tão bem assim”.

A mídia interessada em desmoralizar a escola pública tem mostrado a face assustadora da

Rede Pública: alunos que aos dez anos não sabem ler. Isso, em relação a alguns, não é mentira.

Mas, numa Rede tão grande como a do Município do Rio de Janeiro, com 1054 escolas e 750.000

alunos, com realidades tão diferenciadas, muitas vezes olha-se apenas para os defeitos, sem

observar os avanços que a escola, com seus alunos e professores, tem produzido.

Um professor da Rede Municipal, num depoimento, declarou gostar mais de dar aula no

CIEP da Maré do que em uma escola famosa da Zona Sul. Segundo sua experiência, os alunos da

Maré, por serem pobres e viverem a maior parte do dia por conta própria, aprendem a buscar

soluções práticas e criativas para os problemas apresentados, enquanto que as crianças bem

servidas e supridas têm dificuldades para saírem de situações-problema com autonomia.

Para observar cientificamente a resposta do alunado da Rede Pública face ao da Rede

Particular, diante de uma aula de literatura infantil na Sala de Leitura, durante todo ano de 2000,

desenvolvemos um projeto de leitura em duas escolas municipais, Mario Cláudio e Tiradentes, e

numa outra, particular, o Centro de Estudos e Pesquisa Sião, na Tijuca. O mesmo planejamento

foi utilizado por nós, com fins de pesquisa, nas três escolas, e os resultados foram idênticos. As

crianças amavam as aulas e sempre nos recebiam com extremo entusiasmo. Uma vez por semana,

50 minutos de leitura e prazer. Ouvir um texto e degustá-lo. Depois, com toda liberdade,

expressar os sentimentos, as lembranças e as vontades que ele provocou. Escrever, desenhar,

mandar uma carta para alguém, fazer uma poesia sobre o assunto e partilhar as emoções e os

sentidos que a leitura gerou. Após a aula, os empréstimos e trocas de livros.

Instituímos uma ficha de leitura para cada aluno da escola, a fim de registrarmos os

empréstimos. Em paralelo, lhes foi explicado o valor desse registro, desde que o livro fosse

realmente lido, pois ali eles teriam um histórico das leituras feitas, semelhante ao histórico

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escolar, sem notas, podendo guardá-lo para sempre. Ao término do ano letivo, cada aluno recebeu

sua ficha de leituras com a apreciação do professor de Sala de Leitura. Eles vibravam ao recebê-

las. Carimbamos ficha por ficha e assinamos com palavras elogiosas e estimulantes: “Continue

lendo!”; “Parabéns!”; “Você construiu um belo acervo interno!”; “No ano que vem leia mais!”. A

pesquisa referida foi realizada no primeiro segmento do Ensino Fundamental, pois a Escola

Tiradentes e o Centro de Estudos e Pesquisa Sião só possuem o primeiro segmento. Foi uma

experiência rica, onde observamos que, diante dos contos clássicos e da literatura infantil, e de

um mesmo planejamento escolar, realizado pelo mesmo profissional de leitura, os resultados

foram semelhantes. As crianças, felizes, participavam muito das aulas, interagindo e dando suas

opiniões sem medo.

Com os mais velhos, no segundo segmento do Ensino Fundamental, adotamos algumas

taxonomias, ensinadas e explicadas a partir da 4ª série.

Ao final do ano, registramos o extravio de vários livros, principalmente por causa dos

alunos que abandonavam a escola ou dos que eram transferidos e, deste modo, não devolviam os

exemplares. Foi necessário, então, mobilizar a secretaria da escola para auxiliar no controle.

Instituímos o “nada consta” da Sala de Leitura, ensinando às crianças que o acervo é um bem

público e que deve ser preservado para que, da mesma forma que é útil para eles, possa ser para

outros. Consciência do livro como bem público.

Foi um ano de muito trabalho e crescimento para eles e para nós. Descobrimos que as

crianças das classes de alfabetização também eram capazes de decodificar as figuras, as cores e

as seqüências narrativas, e que também queriam levar os livros para casa.

Instituímos, então, o empréstimo de livros para as classes de alfabetização. Descobrimos

que os pais começavam a ler com seus filhos, ampliando o relacionamento e deixando as crianças

mais felizes. Relatos e mais relatos de alunos, pais, tios e avós sobre as experiências com leitura

começaram a chegar. Crianças levando a cultura letrada aos morros, favelas e comunidades.

A escola pública tem colocado, através de empréstimos feitos aos alunos, livros em casas

onde ele jamais chegaria não fosse essa fonte, pois o objeto-livro é caro e, para muitos,

inalcançável.

Os professores das Salas de Leitura, em parceria com professores-regentes das turmas,

promoveram uma verdadeira revolução cultural, pois agora são os filhos que estão lendo para os

pais os contos de fadas, as histórias modernas e o folclore nacional.

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Chega ao proletariado, na voz das crianças, a cultura milenar universal. Isto através da

escola, no prazer em contar histórias e sabê-las recontadas em suas casas pelas crianças.

Estabelece-se o circuito inverso de transmissão de cultura, que em breve há de ser sentido por

todo o município.

É comum hoje, em nossas escolas, os pais dizerem que os filhos pedem livros de presente,

ou, ao passarem nas bancas, querem que os pais comprem livros, revistas e jornais. Isso, dentro

de uma realidade de comunidades carentes, é totalmente novo e estimulante para nós, que

trabalhamos nas Salas de Leitura. É o reconhecimento de que o nosso trabalho começa a dar

frutos.

Que maravilha! Experimentar através do outro, ver com os olhos do outro sem perder o

seu olhar, e, através desses outros, múltiplos, crescer, amadurecer e construir conhecimento. O

objetivo último da leitura e da literatura é facilitar e aprofundar o diálogo do sujeito com o

mundo.

Passaremos a relatar alguns projetos de leitura desenvolvidos na Sala de Leitura Pólo

Mario Cláudio, da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Desde o ano de 2000, a escola decidiu investir na leitura, pois a maior queixa de todos os

professores era a que os alunos não sabiam ler. Convidamos o professor Danilo Gandin para uma

jornada conosco, a fim de que nos fosse ensinado como realizar um planejamento participativo.

Não éramos muitos, mas estávamos decididos a fazer algo por aqueles alunos.

Concluímos que: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam

entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE , 2002, p. 57).

Começamos estabelecendo marcos referenciais claros. Traçamos metas e objetivos,

dividimos tarefas e buscamos parcerias dentro e fora da escola. O grupo que comprou a idéia

iniciou a movimentação com ações claras, a fim de alcançar o objetivo comum: levar o aluno a

ler com prazer. Espalhamos pela escola algumas definições sobre o ato de ler. Estudamos,

ouvimos e partilhamos com os alunos as teorias de Paulo Freire.

Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar ou buscar criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é

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engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da compreensão e da comunicação (FREIRE, 1993, p. 29).

Batizamos o projeto com o nome Ler e escrever com mais prazer. Organizamos oficinas

de leitura diárias, trouxemos autores à escola, separamos livros por gêneros, e depois por temas, e

os colocamos em cestinhas de plástico coloridas. Marcamos os livros de Literatura Infantil com

uma fita durex colorida, cada cor representando uma gradação do nível de dificuldade de leitura

que o livro oferece. Amarela para leitores iniciantes, verde para leitores em formação e vermelha

para leitores fluentes ou maduros.

Instituímos, como rotina na escola, o empréstimo semanal de livros para todas as turmas.

Não dissemos que era obrigatório nem pressionamos ninguém a ler, simplesmente fizemos como

parte de um processo educativo, e as crianças gostaram. Transformamos a ida semanal à Sala de

Leitura num momento lúdico, onde o aluno era totalmente livre para escolher o livro que

desejasse.

A melhora foi sentida e os professores pediram que o projeto inicial da Sala de Leitura

fosse o projeto político-pedagógico de toda escola.

O grupo, que inicialmente contou com 12 professores trabalhando em equipe, foi se

fortalecendo e os resultados práticos aparecendo. O número de empréstimos na Sala de Leitura

foi crescendo. Os professores foram tendo interesse em observar o vocabulário específico e

técnico que cada disciplina possui e se ativeram mais a esse fato. Os trabalhos em parceria foram

aumentando, passou a ser comum ver o professor de História marcar a análise e a discussão de

um filme com o de Língua Portuguesa e o de Geografia.

Foram estimuladas visitas a museus, à Escola de Belas Artes, ao Teatro Municipal, ao

salão do livro e à Bienal do livro. As duas últimas atividades culturais já têm agenda obrigatória

entre nós. E todos sabem, pelo menos, que é necessário estar “antenado” com os acontecimentos

culturais da cidade. O grupo cresceu, o nível de leitura foi crescendo também, e não apenas dos

alunos, mas também dos professores. Apostamos na formação continuada de todos, pois todos

têm sempre muito que aprender.

O papel da Sala de Leitura foi fundamental nesse processo. O empréstimo semanal de

livros tornou-se um hábito desde as primeiras letras até à 8ª série, quando se espera que o aluno

engajado num planejamento de leitura seja capaz de diferenciar os gêneros textuais e reconhecer

se um texto é literário, comercial, científico ou jornalístico. A qualidade se revela no contato e no

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relacionamento construído com os textos. Aos poucos, o nível leitor vai subindo como sobem as

águas de um rio e, naturalmente, o aluno começa a exigir textos de qualidade. Ele começa a

reconhecer o que é bom, criativo, inovador e bem escrito, re-significando o seu modo de ver o

mundo e a literatura.

Para formar os leitores que desejávamos, buscamos textos que fossem variados (diferentes

gêneros) e bons. Aproveitamos as “sobras” dos livros do projeto federal Literatura em minha

casa. Numa escola grande, como a Mario Cláudio, essa “sobra” é significativa para formar um

banco de livros. Essa foi outra medida que nos auxiliou bastante. 40 exemplares repetidos de um

mesmo livro são suficientes para uma mesma turma, lendo em conjunto algum capítulo

selecionado pelo professor ou pelos alunos, e deixando em aberto a possibilidade do aluno levar

ou não o livro, emprestado com registro da Sala de Leitura.

Muitas vezes os alunos precisavam esperar o professor terminar a atividade com todas as

turmas para depois, como um prêmio, levar o livro que estava sendo trabalhado para terminar a

leitura em casa.

Pedimos à diretora que comprasse mais cestinhas para organizar esse acervo extra. As

cestinhas coloridas de plástico fizeram muito sucesso, pois organizaram os livros sem sacralizá-

los, eram fáceis de transportar para as turmas, caso interessasse aos professores, e permitiam uma

reorganização rápida do acervo, de acordo com temas, gêneros, autores, estilos literários, etc.

A praticidade das cestinhas foi sendo sentida pelos professores das outras Salas de Leitura,

quando estes nos visitavam em nossas reuniões mensais, e a idéia foi multiplicada nas outras

Salas de Leitura do município.

Aproveitamos a mobilidade das cestinhas para também levar às Salas um ensino teórico da

leitura. Um dia falávamos sobre poesia, sua especificidade e marcas lingüísticas, sempre

graduando com a série o conteúdo teórico e os exemplos poéticos. Levávamos livros,

previamente selecionados e organizados de acordo com a aula dada, para que os alunos pudessem

ligar os textos com o que foi estudado, sem cobranças feitas através de provas ou resumos.

Apenas oferecíamos a eles livros de poesia para empréstimo após uma aula de poesia. Depois da

aula de crônicas, eles já sabiam que as cestinhas, naquele dia, só teriam livros de crônicas. Na

aula de contos, era a vez dos livros com contos.

Eles tinham entendido que estavam sendo submetidos a um processo pedagógico que lhes

oportunizava o conhecimento do gênero textual que eles precisavam conhecer e que, em outra

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ocasião, poderiam levar para ler algum outro de sua preferência. Para cada modalidade de escrita,

uma cestinha. Uma vez por semana, eles vinham à Sala de Leitura e escolhiam o que desejavam

ler. De 15 em 15 dias, com as oficinas de gêneros, a escolha dos livros era orientada. A

intermediação do professor ocorria tanto nas salas de aula quanto na Sala de Leitura.

Foi um sucesso! Víamos as crianças crescendo na leitura e adquirindo uma autonomia

leitora.

Interessante que, inicialmente, os meninos acreditavam que a poesia era “coisa de

menina”, numa visão estereotipada. Porém, quando entravam em contato com textos de

qualidade, mudavam de opinião e começavam a assumir seus gostos e suas identificações

literárias. Começamos a ganhar prêmios de poesia em concursos. No ano de 2005, a Escola

Mario Cláudio ganhou o 1º e o 3º lugar no concurso de poesia da Biblioteca Municipal de

Jacarepaguá. Deixamos aqui registradas as duas poesias vitoriosas:

O 1º lugar: aluna Percília Poema: Estou aqui Quando precisar de uma estrela guia, É só me chamar Vou estar sempre aqui, Para te guiar. Se estiver preso, Nem que seja em outro amor, Posso ser seu julgamento. Eu te libertarei, E te prenderei em meus braços. Estou aqui, e nunca vou te abandonar. Se você telefonar, Estou pronta para te escutar. Se precisar desabafar, Posso até te encontrar, Para conversar. Meu coração entrou em prantos, Quando te perdi, Mas a paixão não é eterna, Só agora eu vi. Me dê a mão, Ainda resta uma amizade, O nosso amor é só saudades. No fim da nossa ilusão.

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O 3º Lugar: aluno Tiago Ramos Poema: Fim

Todo fim tem um começo, Mas o meu fim não tem começo, Por que isso? Será que eu errei Em alguma coisa? Será que eu nunca Vou saber o meu começo? Por onde eu comecei? De que lugar eu Vim? Será que eu faço parte de algum lugar? Como saber? Quero encontrar o meu Começo. Quem me ajuda? Por favor? Dar sentido ao nada que eu sou. Bem, se o meu fim era apenas um sonho, Bem aventurado sou. Pois que seria de mim, Sem um começo e sem um fim.

Além desses dois prêmios literários, tivemos uma grata surpresa. As turmas de 8ª série

estavam lendo Dom Quixote de la Mancha e um de nossos alunos, após a leitura, desejou

desenhar a dupla inseparável, Dom Quixote e Sancho Pança. O desenho foi tão criativo que a

professora Simone Monteiro, presente na escola em função de um dos eventos de Sala de Leitura,

gostou tanto que o colocou num grande painel no Salão do Livro, para homenagear os 400 anos

da obra. Quanta emoção! Ver o desenho feito na escola exposto como um painel de arte. Era a

escola interagindo com o mundo! Eram os alunos participando de um evento cultural na cidade!

Nada é por acaso, ensinamos isso a nossos alunos. Acreditamos na vitória que é fruto de

trabalho, da presença do objeto-livro na escola e das parcerias entre diferentes disciplinas e

professores.

O município do Rio de Janeiro tem feito um trabalho memorável nessa área, com Salas de

Leitura bem equipadas e um acervo rico e atualizado. O trabalho, pioneiro, tem sido abrangente

para a sociedade.

Ler é envolver-se. Vamos nos afundando nas areias movediças do texto, deixando-nos encobrir pelas palavras, envolvidos por todos os lados, como a luz e o ar. Tudo se converte em substantivos, verbos, adjetivos, imagens que saltam da matéria da vida, como certas esculturas de Miguel Ângelo ou de Rodin, quando brotam da pedra informe rostos, ou torsos, ou mãos, ou a doçura de um beijo de amor. Quem pode olhar uma folha sem fazer no intelecto a leitura:

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folha. Um caminho é terra, paisagem, destinos, vogais e consoantes. Com quantas sílabas se faz uma canoa? Ler é felicidade do olhar (LOUREIRO, 1995, ps. 24 e 25).

.

Deveria ser tarefa permanente dos governos: promover o encontro dos cidadãos com os

livros; facilitar o acesso à boa literatura, bem como divulgá-la através dos órgãos de imprensa,

principalmente através da televisão; construir mais bibliotecas; e fazer que em todo território

nacional, as escolas de primeiro grau tenham uma Sala de Leitura com um acervo

permanentemente atualizado e professores bem formados, que guiem e orientem os alunos em

seu percurso na leitura dos clássicos, dos modernos, das revistas em quadrinhos, dos programas

de televisão, dos jornais, das revistas, dos eventos culturais da cidade, dos best-sellers do

momento, das letras de músicas e das artes em geral.

. Com isso, despertar a paixão pelo livro até que ele seja uma “febre” nacional.

O acesso garantido e facilitado ao livro e à cultura deveria ser direito de qualquer cidadão,

mas nossa realidade é bem outra. Possuímos apenas 4.000 Bibliotecas em todo o território

nacional, enquanto a Espanha, que é um país bem menor, possui 10.000.

O município do Rio de Janeiro tem feito um trabalho pioneiro, do qual nos orgulhamos de

estar participando. Das 1.030 escolas da rede, todas possuem Salas de Leitura com um bom

acervo. A Prefeitura tem investido na formação dos professores, ainda que de forma insuficiente.

Muitos são os problemas enfrentados pelos professores, que infinitas vezes são retirados

de suas salas para outros serviços, considerados mais urgentes e de maior importância.

Se perguntarmos a um cidadão comum onde encontrar uma biblioteca pública, poucos

saberão responder. Ora, se “um país se faz com homens e livros”, como afirmou Monteiro

Lobato, precisamos saber onde encontrar esses livros. A verdade é que não há uma ação política

que trate da importância da leitura na formação do país.

Lembramo-nos, com tristeza, quando, no ano de 1998, na ocasião da mudança da direção

da escola, a Sala de Leitura do Colégio Estadual João Alfredo foi exterminada. A diretora alegava

não saber para que uma escola necessita de uma biblioteca e uma Sala de Leitura. Havia

sinceridade nas afirmações públicas daquela diretora diante do corpo docente da escola, mas

também uma total ignorância pedagógica.

Em 1987, havíamos sido convidados para implementar o Curso Normal naquela

instituição. Uma de nossas primeiras ações foi criar uma Sala de Leitura, onde o acesso e o

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manuseio de livros pudesse ser fácil, próximo aos alunos. Onde a disposição e a organização dos

livros por temas, gêneros textuais e autores variasse dependendo do que o professor fosse

trabalhar no momento. Como se aparecesse um convite ao aluno pela sua beleza e organização,

um “leia-me”. Se a linguagem promove encontros, também o livro precisa atrair o leitor e seduzi-

lo, estando próximo a ele. Falar-lhe, para que haja troca, diálogo, toque, percepção do que é bom,

do que é literário, do que é a marca da cultura humana.

Numa fatídica manhã, fomos informados que a Sala de Leitura daria lugar a uma sala de

aula comum, pois o novo governo queria aumentar o número de alunos matriculados.

O grêmio escolar fez um abaixo assinado, foi à Secretaria de Educação, mas era fato

irrevogável a Sala de Leitura estava desfeita e os livros de literatura iriam ser enviados para a

biblioteca, onde o serviço se limitava ao empréstimo frio de livros que ficavam em estantes que

os alunos não tinham acesso.

Havia espaço no pátio para construção de novas salas, mas não havia interesse político

nem mobilização dos professores da casa, que também julgavam um luxo manter apenas quatro

professoras desfrutando da ”regalia” de promoverem projetos de leitura na escola.

Trabalhos inesquecíveis foram realizados ali, ao longo dos oito anos em que a Sala de

Leitura durou. A Sala começava a se tornar o coração da escola, com seus projetos ousados e

inovadores. Parcerias foram desenvolvidas com a UERJ. Os temas e livros a serem estudados

eram escolhidos pelos alunos. Os bons professores não conseguiam ficar de fora. Aquele espaço

começou a fazer a diferença na escola, tornou-se ponto de encontro de alunos engajados e

atuantes. Tudo o que acontecia culturalmente na cidade tinha seu espaço de divulgação ali. Obras

e autores eram lidos e discutidos, comparados, contextualizados e divulgados. Porém, a sala foi

desfeita sem que ninguém desse atenção aos que choravam por ela. Parecíamos estar em pleno

São Bernardo, lutando contra valores capitalistas, onde a cultura não tem espaço, a não ser que

redunde em votos. “Mas biblioteca num lugar como esse! Para quê? Para o Nogueira ler um

romance de mês em mês. Uma literatura desgraçada...” (RAMOS, 1978, p. 83).

Os dias se passavam e quem mais lembrava dos bons tempos da Sala de Leitura eram os

alunos. Saudosos da leitura conjunta de livros que haviam marcado suas vidas, das discussões

acaloradas sobre a letra de alguma música que nos traziam para analisar ou a leitura de um

simples poema que aparecera na novela da TV Globo.

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Há ainda muito que fazer pela leitura, desde a escola e seus professores até as políticas

públicas nos âmbitos estaduais, municipais e federais. Imaginem se os poderes públicos

decidissem investir na leitura. Que maravilha!

Em cada escola, professores apaixonados pela leitura. Em cada praça, perto dos balanços

e brinquedos, uma Sala de Leitura com professores aptos a orientar e a fazer leituras para as

crianças, e pelo menos uma biblioteca por cidade. Acreditamos, como diz Ana Maria Machado,

em seu livro Contracorrente, que o hábito de ler se aprende, que escovar os dentes ou tomar

banho é cultural. O problema é que ainda não se pensou o livro e os espaços de leitura como

fundamentais na formação da cidadania. Nosso desejo é que ler seja tão natural quanto tomar um

sorvete. Pedir um livro, como se pede um cachorro quente na esquina.

Todo professor é um livro e, conseqüentemente, uma promessa de leitura para seus alunos. A questão é saber se esse livro se renova e se revitaliza na própria prática do ensino; de que maneira esse livro se deixa fruir pelos alunos-leitores e se esse livro se abre à reflexão e ao posicionamento dos leitores, permitindo a produção de muitos outros livros (SILVA, 1999, p. 30).

Outro aspecto interessante da leitura é o conceito que nós, professores, carregamos a

respeito de certos autores e textos. Trabalhando na Sala de Leitura, temos a oportunidade de ter

contato com todas as turmas, idades e séries. Todo dia somos surpreendidos por interesses e

leituras inesperadas. Aprendemos com nossos alunos a quebrar preconceitos. Recebi, há alguns

dias atrás, uma turma de 5ª série, dessas oriundas da progressão, com idade bem acima da média.

Tínhamos preparados dois textos para ler aquele dia. Um para esta turma, de 5ª, e outro para as

turmas de 8ª série. Um dos alunos sugeriu que lêssemos o texto que, segundo a nossa avaliação,

seria o mais difícil e o menos interessante. A insistência foi tanta que permitimos. Para nossa

surpresa, a turma ficou interessadíssima e participou quase compulsivamente. Todos queriam

falar. O texto é parte do romance A Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, que passamos a

reproduzir:

Toma essa barata, não quero o que vi. Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu vi: pois o que eu via com constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando. Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama, era lama, e nem sequer lama já

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seca, mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade. Toma, tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! Tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando. Era isso, era isso então. É que eu olhava a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, dentro de mim passagens duras estreitas. Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria ficar sozinha com a minha agressão. E de repente gemi alto, dessa vez ouvi meu gemido. É como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência e eu sentia com susto e nojo que “eu ser” vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana. (...) E na minha grande dilatação eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas o meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade, meu medo era ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infame que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com a verdade sempre me difamaram. Segura a minha mão, porque sinto que estou indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida-, e através da barata que mesmo agora revejo, através dessa mostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança. A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam. Também eu, que aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era irredutível, também eu tinha milhares de cílios pestanejando, e com meus cílios eu avanço, eu protozoária, proteína pura. Segura minha mão, cheguei ao irredutível com a fatalidade de um dobre, sinto que tudo isso é antigo e amplo, sinto no hieróglifo da barata lenta a grafia do Extremo Oriente. E neste deserto de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva. A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido (LISPECTOR, 1994, ps. 103 e 104).

Logo após o termino da leitura, os depoimentos dos alunos:

Maria Michele: – Eu sei o que ela estava sentindo. Ela estava se sentindo um nada,

menos que uma barata morta. Eu me sinto assim toda vez que o meu pai diz que eu não presto.

Make: – Professora, quem mora em comunidade sabe muito bem o que é um inferno de

vida crua. Outro dia passando pelo Campinho eu vi um monte de bandido jogando bola com a

cabeça de alguém. Sinistro. Fiquei boladão. Não conseguia tirar aquilo da cabeça.

Delmir, que já perdeu três irmãos no tráfico e tem mais um envolvido: – Eu me sinto um

nada quando meus irmãos ficam “nessa vida”.

Wellington: – Eu me senti um nada quando repeti de ano.

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Paulo Vinicius: – Pior é no ano seguinte quando todo mundo que era da tua turma passa

por você e grita: Repetente! Eu me senti menos que barata quando eu perdi meu pai.

Amanda: – Eu me sinto péssima quando eu agarro minha mãe e ela diz: saaai!

Andreza: – Eu fico mal quando me dizem que eu sou feia.

A literatura carrega o poder de fazer o homem se enunciar. O texto que nós julgávamos

impróprio numa turma de difícil concentração e aproveitamento estava ali, sendo saboreado,

recebido com total pertinência e curiosidade. Era um texto separado para ser lido com a 8ª série.

Uma leitura desafio.

A leitura, enquanto lugar de colheita de sentidos, vem do verbo latino legere, colher,

remetendo ao gesto da mão que recolhe e ajunta. Quando terminamos a leitura de qualquer livro,

levamos para nós novos sentidos, novas maneiras de ver e de perceber. Caminhando na leitura,

recolho e escolho os traços de um caminho imprevisto e novo.

Legere significa recolher as letras com os olhos. A ênfase da leitura se dá no que o leitor é

capaz de recolher. No quanto ela está apropriada ao seu nível de leitura e oportuniza uma boa

colheita. Todo professor, ao selecionar um texto, deve pensar no diálogo que o aluno será ou não

capaz de travar com o texto.

O texto deve ter alguma relação com o contexto dos alunos, pois se estiver totalmente fora

não haverá interesse de leitura. Contextualizar é abrir todas as possibilidades de diálogo com

outros textos, espaços e tempos. Para Paulo Freire, ler o mundo é contextualizar-se e nele inserir-

se criticamente, conhecendo os direitos e os deveres dos cidadãos e percebendo o todo: a visão

planetária.

Planetário é o que se planetarizou, deixou de pertencer a um contexto específico para

pertencer ao planeta como um fenômeno histórico. Planetário é o que é tecido, construído com

todos. O contexto da planetarização é o da construção da comunidade humana. Não é apenas o

que já existe, mas o que pode ser feito.

O processo de planetarização tem por base a circulação rápida de dados e informações por

todo o planeta. Ao espaço real, acrescentamos o espaço virtual ou o ciberespaço. A internet

tornou-se o fenômeno mais característico de nossa era. No ciberespaço, a informação está

disponível todo tempo em qualquer lugar do mundo. A internet rompeu limites entre tempo e

espaço, no entanto também criou um apartheid, o apartheid digital, pois os agrupamentos que

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não souberem manipulá-la ficarão distantes da produção do conhecimento. Isto, com certeza,

contribuirá para agravar as diferenças sociais.

A inclusão digital assegura o direito inalienável à comunicação com o mundo. Precisamos

pensar numa pedagogia do mundo. A pedagogia da Terra, como vem sendo chamada, implica

num diálogo permanente do homem com o seu contexto, com a natureza e tudo que ela produz.

Como entendemos o homem? Como sujeito ou objeto do mundo? Que cidadãos tomarão

as decisões do planeta? São esses que vamos formar?

Cada vez mais se faz necessário que a alfabetização digital ocorra, pois a leitura estará

sempre ligada aos direitos humanos e planetários.

A pedagogia da Terra pressupõe a leitura do mundo para humanizá-lo e para manter a

vida. Educar com sentido. Educar em rede. Educar para a vida sustentável. Educar para a paz.

Esse novo eixo pedagógico precisa ser construído por professores e alunos, lendo e

compreendendo textos e contextos que os levem da escola à construção de uma educação

planetária.

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4. LEITURA: PORTA PARA UMA CIDADANIA TRANSFORMADORA

4.1. Ler é transformar-se

A ideologia é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos. Se poderá então dizer: o Mundo sempre Novo, que se dá na ressurreição plena de todos os sentidos (BRAIT, 2005, p. 176).

Vários são os depoimentos de vidas transformadas por idéias ou pensamentos contidos em

livros. O livro mais vendido em todo o mundo, a Bíblia, é claro exemplo de leitura

transformadora. Seu texto mexe com todos os nossos valores, gerando a fruição de que fala

Roland Barthes. São infinitas as vidas transformadas por ele. Lutero é um claro exemplo. Uma

frase, “e o justo viverá pela fé” (Hab. 2:4), foi suficiente para provocar uma cisão com sérias

mudanças não só na sua vida como em toda uma descendência de ministros que o seguiram. Os

sacerdotes passaram a entender que poderiam servir a Deus e se casarem. A Bíblia já rendeu

milhares de outros livros, que foram escritos para relatar mudanças de vida ocasionadas pela sua

leitura.

Em Dom Quixote de la Mancha, o cura e o barbeiro destroem a biblioteca para expurgar a

influência dos livros sobre o fidalgo. Assim também, os governos se omitem quanto à criação de

novas bibliotecas e Salas de Leitura, pelo medo do que os livros possam produzir num povo

letrado. O livre pensamento, o questionar, o observar e o concluir incomodam muita gente.

Prefere-se governar um povo inculto e moldável do que enfrentar os questionamentos que

certamente a leitura trará. Os diferentes modos de ver o mundo, as diferentes linguagens e

expressões, vão abrindo caminhos e alargando os pensamentos que as elites teimam em

monopolizar. A leitura é patrimônio cultural da humanidade e, como tal, deve ser encarada.

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Há fruições e reflexões que só a prática de diferentes caminhos de leituras poderão nos

oferecer. Barthes diz que a fruição desmonta estruturas lingüísticas que transmitem significados e

que desmontar essas estruturas é re-significar, isto é, é remexer o pensamento humano. Fazê-lo

voltar-se para outro ângulo, repensar o que antes parecia sedimentado e auxiliar a humanidade a

caminhar para a luz.

Quando Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, diz “não tive filhos,

não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1998, p. 212), é impossível

ao leitor crítico passar por este texto sem refletir no que é ter filhos e que legado irá lhes deixar.

Pensar novamente o antigo dilema é também espaço de fruição no sentido “barthesiano”.

O livro pode ser também uma manifestação estética do fazer literário, do jogo textual que

nos prende, encanta e seduz.

Como uma pintura maravilhosa, o livro também é um quadro de poesia ímpar, digno de

ser contemplado, muito mais do que analisado, ou cortado em fatias, na escolarização literária.

O livro literário que prende e seduz é aquele que vai arrastando o leitor para dentro do

texto sem que ele perceba, envolvendo-o como um polvo em seus tentáculos, de tal forma que,

mesmo querendo, o leitor não consegue pensar em outra coisa. Quando esse jogo acaba, fica a

vontade de voltar a ele, como a criança que pede a mãe que conte repetidas vezes a mesma

história e não enjoa.

As crianças são bastante conservadoras quanto às histórias. Querem escutá-las com as mesmas palavras usadas na primeira vez, pelo prazer de reconhecê-las, de aprendê-las em seus detalhes, na sua exata seqüência, de reexperimentar as emoções do primeiro encontro, na mesma ordem: surpresa, medo, gratificação. Precisam de ordem e tranqüilidade: o mundo não deve distanciar-se muito bruscamente da ordem binária sobre a qual caminha com tanto esforço (RODARI, 1982, p. 51).

Educar é transformar, conduzir de um lugar significativo a outro, e isso é impossível de

ser feito sem o auxílio de textos literários que estimulem o pensamento ao trazerem uma nova

forma de ver o mundo em que vivemos.

Ansiamos por uma leitura que não nos negue o prazer de pensar, decifrar e interrogar. E que depois de nos exigir algum esforço, nos faça sair dela diferentes do que éramos ao entrar, sofrendo alguma transformação (MACHADO, 2002, p. 130).

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O lugar do livro, do leitor crítico e da leitura, não é um lugar de privilégios. A luz

desvenda. A luz ofusca. A luz lança as grandes questões.

No dia 29 de novembro de 2005, o jornal O Globo publicou um texto de Luiz Garcia,

intitulado “Joca Hood”. Ao ler o texto, admirei a forma inteligente, criativa, e bem-humorada, ao

mesmo tempo clara e corajosa, com que temas tão polêmicos e delicados eram abordados.

Recortei o jornal, tirei xerox e fiz dele um texto de debates. Foi lindo notar a surpresa e o choque

daqueles que passaram a ver pelo olhar do jornalista o que antes, sozinhos, não conseguiam.

O texto, como os livros, fez o mesmo percurso, subindo o morro pela mão dos meninos e

meninas, que, de olhos abertos, alertam os pais sobre os processos de esclarecimento que a leitura

traz para sua realidade.

Joca Hood

A informação veio da própria polícia: Joca, novo chefe do tráfico de drogas na Rocinha, proibiu furtos, assaltos e outras formas de violência contra moradores em seus domínios.

Já foram expulsos (não se sabe se das imediações ou do nosso vale de lágrimas) variados assaltantes de casas, e matadores sem justa causa (na ótica bandida, claro), ladrões de carros e estupradores.

Agiam na vasta área que Joca considerava sua suserania. Não é pouca coisa: vai de um shopping na Barra até o Humaitá.

Pelo menos superficialmente, parece se tratar de um bandido à moda antiga. Joca tem quase 40 anos (um ancião, pelas tabelas atuais do submundo) e dizem que não usa drogas. Parece acreditar que uma eficaz política assistencialista à sua maneira – com execução ou espancamento de pequenos ladrões, maridos que batem demais na mulher etc – manterá a comunidade ao seu lado e a polícia à distância.

No começo dos anos 80, quando o governador Brizola lançou o conceito do bandido-cidadão, muita gente – até sensata em outras áreas – acreditou ingenuamente que as favelas viveriam melhor com menos policiais por perto, e mais representantes de algo parecido com o Robin Hood do cinema.

Contavam-se casos, verdadeiros ou não. Como o da velhinha de Botafogo que assaltada num ônibus por dois pivetes, foi se queixar ao gerente da boca-de-fumo do Dona Marta. Pois, imaginem só, lá estava a dupla de ladrões. Cada um levou um tiro na mão que escolheu (existia esse direito) e a senhora foi embora com seu dinheiro.

Mas dou testemunho do caso verídico de um amigo, cujo escritório numa ladeira da Zona Sul foi arrombado e muita coisa roubada. Um seu contínuo, morador do morro, levou a vítima até o chefe do tráfico local: era um pouco mais que um rapazote, mas tinha odor de autoridade. Prometeu conseguir a devolução de tudo e anunciou a execução do ladrão. A vítima argumentou que não era para tanto e ouviu explicação taxativa: – Doutor, não posso ter ladrão

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por aqui. Preciso ter certeza de que, quando os homens sobem o morro, é atrás de mim e de mais ninguém. Se não, passo a vida me escondendo. Ele podia até ter razão. Mas o que importa é o fato de que, como o tempo mostrou, a teoria do marginal-cidadão era demagogia para eleitor dormir. Esses e outros equívocos levaram à situação preta que vivemos hoje muitas vezes pior. Em parte devido aos anos da equivocada teoria brizolista, em parte porque, mesmo depois de desmascarada a tese (e de outras almas simples), ainda não se descobriu forma eficiente e duradoura, e permitida pelos recursos em caixa, de reduzir as dimensões do problema. O favela-bairro, já se viu, tem efeito limitado e parece só dar certo em pequenas comunidades. Quanto a pintar as casinhas em cores alegres, como andam fazendo (e não é a primeira vez), parece que não traz paz ou alegria: ora vejam só, o uso de cores vivas produz humor negro. Enfim a esperança é a última que leva uma rajada de AK-47 no bucho. Portanto, à prudente distância, acompanhamos a carreira do suposto Robin Hood da Rocinha. Sem adesão ou entusiasmo: pelo menos já sabemos que nada adianta trocar um estilo de bandidagem por outro, só porque o novo é bom de marketing.

Grande poder tem a palavra! Todas as vezes que um regime autoritário se estabelece num

país, livros e bibliotecas são destruídos. O golpe de 1964 destruiu diversas bibliotecas de

professores e intelectuais.

Se livros não tivessem força de arma transformadora, não seriam queimados ou destruídos

por esses regimes.

Agora no colégio iria consertar o desmantelo desta alma, descida demais para a terra. Iriam podar os galhos de uma árvore, para que os seus brotos crescessem para cima. – Quando voltar do colégio, vem outro, nem parece o mesmo. Todo mundo acreditava nisso. Este outro, de que tanto falavam, seria o sonho de minha mãe. O Carlinhos que ela desejava ter como filho. Esta lembrança me animava para a vida nova (REGO, 2004, p. 147).

Os pais, ao colocarem seus filhos na escola, esperam mudanças. A própria criança vê a

escola como um lugar onde ela será ensinada para se tornar um cidadão preparado para enfrentar

o mundo sem medo. A expectativa de todos é que a criança se transforme em outra; “vem outro,

nem parece o mesmo” (REGO, 2004, p. 147).

A literatura pode ser também motivadora de discussões em sala de aula que promovam

transformações de valores e tratem dos direitos das crianças e jovens, fazendo com que os seus

sonhos, desejos e medos alcancem visibilidade. Na literatura cabem todos os assuntos e temas,

como, por exemplo, a questão dos gêneros sexuais, tão rigidamente tratada, com o predomínio de

filosofias machistas.

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Em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes, encontramos uma menina cheia de desejos

e sonhos, que queria ser escritora e lutava para ser respeitada na família.

– E por que é que você inventou um amigo em vez de uma amiga? – Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher. Ele me olhou bem sério. De repente riu: – No duro? – É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá

na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefes de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que – puxa vida! – Vocês é que vão ter tudo. Até pra resolver casamento – então eu não vejo? – A gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina (NUNES, 1996, p. 16).

Após a leitura e a discussão de um texto como esse, podemos dar continuidade às questões

de gênero, utilizando os livros Casais que não se casam e Faca sem ponta e galinha sem pé.

O primeiro texto, em forma de advinha, brinca com o léxico, burlando a expectativa da

criança de que todo par mínimo linguístico, feminino e masculino, forma casais:

Há casais que não se casam, E por terem tal destino, Nem sempre trocando O por A, Se vai do masculino ao feminino. (...) Ele sai do forno quentinho, Ela, na grama, corre, rola. Tá provado porque o bolo Não é marido da bola. (...) Existem dois, que engraçado Com vocação pra banqueiro. Bolso não casa com bolsa, Mas ambos guardam dinheiro. (...) Quem quiser que continue Porque eu já estou cansado De perceber a toda hora Que nada não casa com nado (GUEDES, 1998).

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O segundo texto, de Ruth Rocha, conta a história de um casal de irmãos que, após um dia

de muita chuva, passa por baixo de um arco-íris e começa a se sentir diferente. Na troca dos

papéis de gênero, os irmãos passam a se compreender e a se aceitar, ficando muito amigos após

terem destrocado seus papéis. Enxergar o outro e a si mesmo através da literatura é algo que

acrescenta à sensibilidade e gera um novo olhar.

Estamos trabalhando neste ano o projeto A cor da cultura, que tem como alvo combater o

racismo na escola. O racismo é um tema que também aparece inscrito na literatura infantil.

Lemos para as crianças: Negrinha, de Monteiro Lobato, O menino Nito, de Sonia Rosa, Minha

família é colorida, de Georgina Martins, Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado,

e As tranças de Bintou, de Sylviane A. Diouf.

Experiência recente, com o último livro citado, revelou o alto índice de racismo em nossa

sociedade. Após contar a história de Bintou, que era uma menina negra que não gostava de seu

cabelo, mas que fica feliz, ao final da história, com o enfeite de pássaros. Uma de nossas

crianças, que já vinha com problemas de aceitar-se negra, numa distração do professor, pegou o

livro e rasgou a imagem da menina. Perguntamos-lhe porque fizera aquilo e ela respondeu: –

Porque ela não ficou bonita, nada. Definitivamente, aquela criança não reconhecia naquela

ilustração o ideal de beleza exigido por uma sociedade racista. Sabemos que esta criança, diante

de um espelho, rasgará a própria imagem, que não suportará ver porque se reconhece socialmente

desprezada.

Ela já vinha perguntando, em casa e na escola: – Por que eu sou negra?

Os pais tentavam explicar que ela era negra porque eles eram negros. A menina estava

diante de um dilema sem solução. As perguntas deveriam ser: – Por que sou discriminada? Por

que é feio ser negra? Quando me livrarei da dor de ser discriminada?

Esta menina ainda está longe de ser feliz como Bintou.

Meu nome é Bintou, e meu sonho é ter tranças. Meu cabelo é curto e crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça. Às vezes, sonho que passarinhos estão fazendo ninhos na minha cabeça. Mas na maioria das vezes eu sonho mesmo é com tranças. Longas tranças, enfeitadas com pedras coloridas e conchinhas (...)

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Eu sou Bintou. Meu cabelo é negro e brilhante. Meu cabelo é macio e bonito. Eu sou a menina dos pássaros no cabelo. O sol me segue, e estou muito feliz. (DIOUF, 2005).

Este não é o único livro capaz de quebrar as expectativas do professor, ao apresentá-lo

para a criança. Certo dia, lendo o livro de Ana Maria Machado, Menina bonita do laço de fita,

uma criança negra me interrompeu dizendo: – Só um coelho pra querer ser negro. Era como se

ela dissesse: – Ele não sabe o que é ser gente negra. As crianças são muito sensíveis e sinceras,

não vão concordar para nos agradar. Elas sempre dirão que “o rei está nu” diante das situações de

constrangimento.

4.2. Estratégias e técnicas para alcançar modos de ver e de ler

É pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias para ler (CERVANTES, 2002, p. 31).

O texto nos mostra a voracidade leitora de um personagem que tipifica o leitor ideal que

todo autor e todo professor gostariam de ter. Aquele que, literalmente, paga o preço pela leitura, a

ponto de vender suas propriedades para comprar livros. No entanto, nem todos os leitores são

assim. Cada leitor tem seu ritmo e seu desejo de ler. Sem desejo não há leitura e, como os níveis

de desejo são variados, também serão variados os tempos e modos de ler e interpretar os textos.

Para que nossos alunos cheguem a ser bons leitores será necessário que a escola encare a

formação de leitores críticos e conscientes como sua função e, para isso, estabeleça metas e

objetivos a serem alcançados na sala de aula.

Estabelecer objetivos na leitura, isto é, estabelecer estratégias de controle e regulamento

do próprio conhecimento, é uma atividade cognitiva.

A leitura deve partir de uma necessidade para que se realize significativamente no aluno.

Chamamos isso de leitura motivada. A repetição mecânica “Vovó viu a uva/A uva é da vovó” é

um exercício vazio de significado. Atividades como essa, mecânicas, não conduzem à

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aprendizagem. A criança precisa perceber que o que está escrito merece a sua atenção. Vale o

esforço de leitura.

Ela deverá ser conduzida a encontrar os seus próprios objetivos de leitura. A escola pode

e deve, provisoriamente, criar artifícios e desenvolver estratégias metacognitivas, necessárias à

atividade de ler. O professor pode auxiliar os alunos na formulação de hipóteses que contribuirão

para o entendimento dos textos, uma vez que esses não são produtos acabados que esperam

passivamente um leitor.

Podemos aplicar esses mesmos objetivos a turmas também não alfabetizadas, pois elas já

trazem uma leitura de mundo que as capacita a levantarem hipóteses, formularem perguntas e se

identificarem com personagens.

Desenvolver os diferentes modos de ver e ler o texto e aprender novos olhares na troca

com os outros que povoam as salas de aula. O livro A flor do lado de lá, de Roger Melo, ilustra

muito bem o modo limitado de ver. O cachorro de Roger só conseguia olhar para um lado. Via

apenas a sua rosa, contemplava-a dia após dia, sem olhar para nenhuma outra. Com os olhos fixos

nela, ele não vê, pois não olha para as dezenas de outras flores que estavam do outro lado. Muitas

vezes também somos assim, não conseguimos ver além do que os nossos olhos contemplam. É

pela leitura que nossos horizontes se alargam. Aprendemos a ler confiando e desconfiando,

levantando informações sobre as fontes que o texto consultou, sobre os autores que os escreveram

e as editoras que os publicaram.

Podemos também aplicar esses critérios aos textos utilizados com os alunos não

alfabetizados, pois eles precisam de textos de qualidade que se somem à leitura de mundo que

eles já trazem.

O livro Quero casa com janela, conta a história de uma galinha que contratou um

carpinteiro para fazer uma janela, pois sua casa não tinha ventilação. O galo carpinteiro veio, fez

um buraco na madeira e se foi. Veio a chuva e a casa se molhou. A galinha mandou chamar

novamente o carpinteiro, pois queria se proteger da chuva. Ele pregou uma tábua na janela. A

galinha não se satisfez e de novo ele foi chamado. Ela queria uma janela que abrisse e fechasse de

acordo com suas necessidades.

A professora leu esta história para seus alunos e começou a levantar hipóteses de leitura.

Será que essa galinha era muito exigente? O marceneiro era um bom profissional? É muito

desejar uma casa com uma janela que abra e feche? Se você fosse a galinha, o que diria ao

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marceneiro? A turma toda se apressou em participar. Algumas opiniões se dividiram, o que foi

ótimo. Uns acharam que o marceneiro não queria fazer o serviço direito. Outros perguntaram

porque ela não disse desde o começo como queria a janela. Logo a professora levantou outra

hipótese. Quando nós nunca tivemos uma coisa, será que conseguimos ver o problema que ela

trará ou só com o uso é que os problemas aparecem? Imaginem que essa galinha nunca teve uma

janela. Uma criança disse que no começo ela só queria ver a paisagem. – Quando ela descobriu

que precisava algo mais? – perguntou a professora. – No dia em que choveu – respondeu o aluno.

De repente, lá no final da sala, levanta-se um aluno, aparentemente distraído, e diz: – Que

galinha boba, ela só queria casa com janela, eu quero casa com piscina. Todos riram e cada um

foi dizendo o que desejava.

Ao final, a professora havia preparado uma surpresa: numa folhinha de papel, uma janela

que se abria e fechava, e numa outra folha, um espaço para desenhar e depois colar a janela. Em

cima, o título: “O que vejo de minha janela”.

– É para desenhar, professora?

– É.

A turma estava totalmente envolvida com a ambientação preparada para dar suporte e

significação àquela leitura. Outras discussões iam sendo levantadas com naturalidade enquanto os

alunos desenhavam.

– Professora, eu posso desenhar outra coisa? O que eu vejo lá de casa é feio, é lixo.

– O que você quer desenhar?

– Quero desenhar coisa bonita.

– Então, vamos mudar o título para “o que eu gostaria de ver da minha janela”?

– É, é, é ...

Experiências como essa, de leitura conjunta e refletida, buscando a compreensão, deixam

boas marcas na vida leitora das crianças, e certamente as ajudará a levantarem novas hipóteses de

leitura cada vez que lerem.

Um livro que tem proporcionado às crianças a oportunidade de ver os diferentes modos de

amar é O homem que amava as caixas, de Stephen King.

Era uma vez um homem. O homem tinha um filho. O filho amava o homem e

o homem amava caixas. (...) Todos os tipos de caixas! O homem tinha dificuldade de dizer ao filho que o amava; então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho. E seus aviões sempre voavam... A

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não ser, claro, que chovesse. As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam... E brincavam... E brincavam e brincavam. A maioria das pessoas achava o homem muito estranho. Os velhos apontavam para ele. As velhas olhavam zangadas para ele. Seus vizinhos riam dele pelas costas. Mas nada disso preocupava o homem, porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem... O amor de um pelo outro (KING, 1997).

Alargando a visão sobre as formas de expressar amor, esse livro é de um altíssimo nível de

lirismo pelo texto e por suas ilustrações, que revelam o gradual estreitamento de laços entre um

pai e seu filho.

Desejamos formar leitores que ultrapassem os muros da escola, que desejem formar sua

própria história de leituras, que aprendam a garimpar livros que talvez não sejam tão importantes

para os professores, mas que serão para eles num momento de curiosidade ou de dor. O

importante é que a criança entenda que a literatura possa conter o que ela tanto busca: prazer e

conhecimento.

Organizar e planejar atividades pré-textuais devem ser práticas permanentes dos

professores de leitura, pois estas atividades dão suporte e podem suscitar nos alunos o desejo de

ler. Depoimentos e testemunhos acerca de leituras feitas são excelente exercício para despertar o

interesse de quem ainda não teve seus valores e pensamentos subvertidos diante de uma obra

literária.

É importante que se reserve um tempo para deixar fluir as declarações na sala de aula

sobre as leituras feitas em casa. Depois de ouvir alguns relatos, o professor pode propor

exercícios orais, utilizando a linguagem de propaganda para vender o livro já lido. Os alunos

poderão ter como tarefa ler o livro que escolheram e recomendá-lo para seus colegas, revelando

alguns segredos que suscitaram curiosidade e escondendo outros, que geraram suspense. Tudo

para que a leitura possa se tornar uma experiência de troca coletiva, isto é, para que as leituras em

comum façam parte das conversas dos alunos nos corredores da escola, no refeitório, nas rodas,

nos tempos vagos, ou nos momentos em que esperam que outra atividade seja proposta.

Os professores de outras disciplinas, como a História, também poderão lançar mão da

literatura para oferecer novos modos de pensar.

Quem construiu Tebas de sete portas? Constam nos livros os nomes dos reis; Terão os reis arrastado os blocos de pedra? E Babilônia, tantas vezes arrasada.

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– Quem, tantas vezes, a reconstruiu? Em que edifícios da dourada Lima os construtores moravam? Para onde iam, à noite, os pedreiros Depois de pronta a Muralha da China? A grande Roma é cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem triunfavam os Césares? Teria a tão decantada Bizâncio Só palácios para os seus habitantes? Até na lendária Atlântida, na noite em que pelo mar foi tragada, Os afogados devem ter gritado por seus escravos. O jovem Alexandro conquistou a Índia sozinho? César, vencendo os gauleses, não levaria consigo ao Menos um cozinheiro? Chorou Felipe de Espanha quando a sua esquadra foi A pique; e ninguém mais terá chorado? A cada página, um grande feito. Quem cozinhava o banquete? De dez em dez anos, um grande homem. Quem pagava as despesas? Tantas histórias, Quantas perguntas (BRECHT, 2006, p. 166).

As questões levantadas por essa poesia fazem, obrigatoriamente, com que os alunos

pensem nos processos históricos de conquista e em como a História nos é ensinada, deixando de

fora as lutas e a participação do povo.

Sendo a História registrada pela elite, mantém o povo excluído. É bom que as crianças e os

jovens saibam disso desde cedo.

Em terra de cego Quem tem um olho é rei...

Rei do olhar Na roda da vida a brincar...

(MIGUEZ, 2001).

Todo e qualquer texto exige do leitor uma chave, que pode ser o código lingüístico, o nível

de letramento ou a escuta apurada do leitor. O texto é habitado. Ouvindo-o, o leitor percebe suas

tênues sugestões e seus possíveis significados.

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Cada leitor, de acordo com o tipo de cultura, sensibilidade ou história que possui, terá ou

não condições de chegar a um nível literário de leitura. Cabe ao professor oportunizar condições

concretas para que seus alunos leiam significativamente e não apenas mecanicamente.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma Tem mil faces secretas sob a face neutra E te pergunta sem interesse de resposta, Pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? (DRUMMOND, 1983, p. 161).

O professor deverá distribuir chaves diversas, e seus alunos abrirão os textos,

caminhando passo a passo.

A linguagem literária se distingue de toda e qualquer outra no sentido em que o seu

compromisso é com a arte. A arte da palavra e a arte da elocução. Na arte das metáforas, onde o

simbólico prevalece, tudo pode ser e acontecer enquanto houver linguagem mágica.

Embaladas nos braços de ventania, Palavras avoadas, arejadas de poesia, Entrelaçam memórias, trançam histórias, Animadas pelo vento Do cirandeiro da magia, Do alquimista da energia... (...) E você? Em qual ciranda vai entrar Para um bom dia começar? Na ciranda do tempo e do vento turbulentos Ou na ciranda do vento e do tempo lentos? (MIGUEZ, 2001).

Com muitas rimas, ritmo, imagens e poesia, a autora constrói um texto que rememora

diferentes cantos e contos populares da infância. Recria, na essência da palavra. Traz um sopro de

vida nova ao antigo, tirando a “morrinha” da tristeza e da saudade, ao dar uma roupagem alegre

ao seu velho vento, soprador de histórias.

As interpretações de um texto não obedecem a um processo de convergência, mesmo

porque as experiências dos alunos são diferenciadas. Cabe ao professor instigar o conflito das

interpretações junto ao grupo de alunos. Nesse conflito é que reside a maior riqueza da leitura.

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Como numa aula de Educação Física, onde temos níveis de alcance dos exercícios físicos,

também em leitura temos níveis de entendimento, que só alcançamos com a prática, construindo,

comparando e observando os diversos pontos de vista. Despertar o leitor para interesses que

podem estar por trás das palavras, ampliando horizontes e promovendo vivências, é conseguir a

construção de um bom alcance de leitura dos textos, das situações da vida e dos meios de

comunicação, isto é, de como eles funcionam e os objetivos que os movem.

Assim, estaremos contribuindo para a formação crítica do cidadão-leitor. Ler a palavra, o

texto e o contexto, e, a partir dessa leitura reflexiva e crítica, interferir e interagir com lucidez e

eficácia, não como massa passiva, mas como cidadãos capazes de mudar suas histórias, a história

de seu povo e quiçá a do mundo.

Para promover estas ações em nossos alunos, criamos, com fins didáticos, algumas

taxonomias, que lhes foram ensinadas e explicadas, a fim de que pudessem constantemente se

auto-avaliarem e serem avaliados:

1 - Leitor iniciante: nível I de leitura = leitura denotativa; leitura de rótulos, placas,

músicas, títulos de livros e símbolos.

2 - Leitor em formação: nível II de leitura = leitor em processo de passagem da leitura

denotativa para a conotativa; leitor em processo de reconhecimento dos gêneros textuais.

3 - Leitor maduro: nível III de leitura = leitor decodificador da linguagem conotativa,

capaz de reconhecer os gêneros textuais e diferenciar o discurso científico do discurso

literário.

4 - Leitor crítico: nível IV de leitura = leitor capaz de comparar e contextualizar autores e

leituras, gêneros textuais (Bakhtin) e campos de conhecimento (Bourdieu).

A escritora Raquel de Queiroz, em As três Marias, registra a consciência dos níveis de

leitura e dos diferentes interesses leitores em cada faixa etária, e como eles vão se transformando

a medida que cresce a maturidade leitora.

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Falei em livro. É que vivíamos lendo, então. Foi justamente por esse tempo que descobri a literatura. Até essa época eu já lia, naturalmente, mas lia como criança, pelo prazer das aventuras heróicas, pela sugestão do maravilhoso: Gulliver, Robson, o Capitão Nemo. Nesta nova fase comecei a ler como adolescente, como a quase mulher em que me ia transformando depressa. A querer os livros onde falassem de amor, os eternos e róseos romancinhos franceses, em que homens cheios de espírito e de tédio, cansados das sereias e dos paradoxos, se apaixonam pelas ingênuas de dezesseis anos. E a poesia, a grande e divina poesia! Mas agora, digo como o velho Rousseau: é preciso não mentir. A poesia me envolveu, me sufocou, me raptou, é bem verdade. Mas na sua forma mais banal e subalterna, nos sonetinhos sentimentais, nas coisas leves e triviais do amor. Bastava qualquer verso fácil dum poeta de boudoir, que dissesse coisas gentis e românticas, para me encher os olhos de água. Ah! Toi et moi! Ah! Geraldy! A poesia, a grande poesia, verdadeira e poderosa, essa só me possuiu lentamente, quando a minha alma foi perdendo aos poucos as sucessivas capas que a cobriam. Quantos anos levei, quantas almas gastei em emoções de segunda ordem, até ser capaz de entender e sentir sozinha a beleza da filha do Rei? (QUEIROZ, 1980, p. 20).

Uma história de leituras significativas só pode ser construída gradativamente e no contato

diário com autores e livros. Cada nível leitor precisa ser percorrido por alunos e professores.

Necessário reconhecer o valor de cada trecho do percurso como vital para alcançar o próximo, até

que surja o cidadão-leitor crítico, capaz de discernir a qualidade dos textos.

É preciso em educação, reinventar, em conjunto, uma ética da rebeldia, uma ética que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade docente. Não é mero acaso que a primeira palavra, de fato, que um ser humano aprende a dizer e a entender é o não. Seja oral ou gestualmente, o não é a fundação a partir da qual se constrói nossa principal característica: a liberdade, a capacidade de ultrapassar as determinações da natureza e das situações presumidamente limitantes. Só quem é capaz de dizer o não pode dizer o sim, isto é, pode escolher e acatar deliberadamente o curso das circunstâncias e das exigências externas e internas (CORTELLA, 2002, p. 156).

Este é o cidadão que desejamos formar, capaz de dizer não, consciente do seu aqui e

agora, pronto para interrogar, pesquisar, refletir e escolher. Homem construtor de sua história e

destino.

Assim também acontece com os textos literários. Um leitor conhecedor da linguagem

característica de cada gênero textual será capaz de diferenciar um texto original e bem construído

de um texto pobre, sem valor literário, ao qual poderá dizer não.

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4.3. Direitos do leitor

Ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça do outro, para compreender melhor o que se passa na nossa. Essa atitude, no entanto, implica a possibilidade de distanciar-se do fato, para ter dele uma visão de cima, evidenciada de um aumento do poder sobre o mundo e sobre si por meio desse esforço teórico. Ao mesmo tempo, implica o sentimento de pertencer a uma comunidade de preocupações que, mais que um destinatário, nos faz interlocutor daquilo que o autor produziu. Isso vale para todos os tipos de textos, seja um manual de instruções, seja um romance, um texto teórico ou um poema (FOUCAMBERT, 1989, p. 30).

Ser leitor é privilégio de quem ultrapassou etapas de formação cultural, social e temporal.

Sem espaço, livros, desejo e tempo, não poderá haver leitura. Ser um leitor ávido é não conseguir

ficar sem ler. A qualquer hora e em qualquer lugar, como mostra um cartaz de incentivo à leitura

que apresenta um adolescente pendurado, como se fosse numa rede, dentro de um ônibus, lendo.

“Ler é um direito de todo cidadão, não um dever. É alimento do espírito, igualzinho a comida.

Todo mundo precisa, todo mundo deve ter a sua disposição – de boa qualidade, variada, em

quantidades que saciem a fome” (MACHADO, 2002, p. 15).

Pennac, no seu livro Como um romance, lista dez direitos imprescindíveis de todo leitor,

que passamos a registrar:

1. O direito de não ler. 2. O direito de pular páginas. 3. O direito de não terminar um livro. 4. O direito de reler. 5. O direito de ler qualquer coisa. 6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível). 7. O direito de ler em qualquer lugar. 8. O direito de ler uma frase aqui outra ali. 9. O direito de ler em voz alta. 10. O direito de calar. (PENNAC, 1993, p. 139).

Além desses, podemos enumerar mais alguns, dos quais já temos desfrutado no nosso

relacionamento de intimidade com o livro:

1. O direito de ter acesso ao livro.

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2. O direito de ser ensinado a ler.

3. O direito de ler quatro ou cinco livros ao mesmo tempo.

4. O direito de não saber onde leu isto ou aquilo.

5. O direito de misturar leituras e autores.

6. O direito de carregar o livro debaixo do braço.

7. O direito de esquecê-lo e não saber onde.

8. O direito de não emprestá-lo.

9. O direito de falar bem ou mal dele.

Com certeza você já lembrou de outros. Infindáveis são os direitos do leitor que se

apropria do livro como um grande amigo, com afetividade, tornando-se seu interlocutor.

O Jornal do Professor, da Prefeitura do Rio de Janeiro, de setembro de 1999, fala da

relação entre o leitor e o livro, utilizando depoimentos de grandes escritores:

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava um no outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. De casa em casa, eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras. Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntima a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação (Lygia Bojunga Nunes). Às vezes, sentava-me na rede balançando-me com um livro no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante (Clarice Lispector).

Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventava (João Ubaldo Ribeiro).

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Cada leitor, no convívio com o texto, irá descobrindo muitos outros direitos e prazeres que

os livros oferecem. O escritor Jorge Luis Borges, em seu Ensaio autobiográfico, afirma que não

era leitor de romances, gostava de leituras mais curtas e preferia os contos.

No transcurso de uma vida consagrada principalmente à literatura, li poucos romances, na maioria dos casos, só cheguei à última página pelo senso do dever. Ao mesmo tempo, sempre fui um leitor de contos. Stevenson, Kipling, James, Conrad, Poe, Chesterton, os contos de As mil e uma noites na versão de Lane e certas narrativas de Hawthorne fizeram parte de minhas leituras habituais desde que tenho memória (BORGES, 2000, p. 97).

Já Alberto Manguel nos chama atenção para termos cuidado com certos leitores que

imputam às leituras valores que elas não possuem, ao dizer que:

Nem todos os poderes do leitor são iluminadores. O mesmo ato que pode dar vida ao texto, extrair suas revelações, multiplicar seus significados, espelhar nele o passado, o presente e as possibilidades do futuro pode também destruir ou tentar destruir a página viva. Todo leitor inventa leituras, o que não é a mesma coisa que mentir; mas todo leitor também pode mentir, declarando obstinadamente que o texto serve a uma doutrina, a uma lei arbitrária, a uma vantagem particular, aos direitos dos donos de escravos ou à autoridade de tiranos (MANGUEL, 1997, ps. 322 e 323).

O texto pode ser utilizado de forma equivocada ou provocar situações inesperadas, como

em Dom Quixote de la Mancha, onde o leitor rompe com a realidade a ponto de esquecer-se dela

e “mudar-se” para a ficção.

É, pois, de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler (CERVANTES, 2002, p. 31).

Ana Maria Machado confessa:

Sou uma leitora voraz, devo aos livros o que sou. Nos momentos mais difíceis e dolorosos da minha vida, aqueles instantes da solidão existencial mais dura, do confronto com a dor mais além da própria solidariedade e do carinho, foram os livros que me deram a mão, que estabeleceram uma ponte que me uniu a pessoas que nunca conheci, mas cujos espíritos me iluminaram e me enriqueceram,

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deram continuidade à minha participação na aventura humana, além das distâncias e vencendo os séculos. Só tenho por eles uma atitude grata e afetuosa, de reconhecimento e celebração (MACHADO, 1999, p. 71).

Todo leitor é um território aberto para a conquista de novos autores e livros, e para

aventuras, sustos e medos que se desfazem ao vento nas páginas lidas. Os verdadeiros leitores são

insaciáveis, sempre querem outro e mais outro livro, tornando-se desbravadores e conquistadores

das obras que, por sua vez, os conquistaram.

“Quando eu escrevi e interpretei o monólogo LIVRO, falando da minha vida de leitora e

contando os seis ‘casos de amor’ que eu tive com obras literárias, eu estava longe de imaginar

que comprido ia ser o caminho que eu ia andar” (NUNES, 1993, p. 9).

Como são belos os dias do despertar da leitura, com a descoberta dos livros, nossos

companheiros inseparáveis.

Os livros guardam a maravilhosa capacidade de unir pessoas de tão distantes épocas que

nunca se viram. Entre elas, uma estranha intimidade. Falamos de autores e de livros como se

fossem amigos e companheiros de toda vida.

Biblioteca Verde

Papai, me compra a Biblioteca internacional de Obras Célebres. São só 24 volumes encadernados Em percalina verde. Meu filho, é livro demais para uma criança. Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo. Quando crescer eu compro. Agora não. Papai me compra agora. É em percalina verde, Só 24 volumes. Compra, compra, compra. Fica quieto, menino, eu vou comprar. (...) A mãe se queixa: não dorme este menino, O irmão reclama: apaga a luz cretino! Espermacete cai na cama, queima A perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo Essa biblioteca antes que pegue fogo Na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova. Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho. Mas leio, leio. Em filosofias Tropeço e caio, cavalgo de novo Meu verde livro, em cavalarias Me perco medievo; em contos, poemas Me vejo viver. Como te devoro,

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Verde pastagem. Ou antes carruagem De fugir de mim e me trazer de volta À casa a qualquer hora num fechar De páginas? Tudo que sei é ela que me ensina. O que eu saberei, o que não saberei nunca, Está na Biblioteca em verde murmúrio De flauta-percalina eternamente (DRUMMOND, 1983, ps. 603 e 604).

Através dos livros, aprendemos, amamos e odiamos, elaboramos emoções e sentimentos.

Adquirimos modos de pensar e enxergar a vida. Ampliamos horizontes e descobrimos medos.

Mergulhamos dentro de nós ao mergulharmos nos personagens apresentados. Refletimos e

refratamos. Ah, que prazer, ter um livro para ler! Poder estar com ele, apaixonadamente, com

todo tempo, liberdade, aceitação e interesse.

A leitura como exercício lúdico e livre exige o protagonismo do leitor. Só ele pode levá-lo a cabo. O aspecto lúdico do texto literário diz respeito não só ao processo de criação artística, que é função do autor, mas também diz respeito ao ato de ler, que é função do leitor (SISTO, 2005, p. 131).

Ser íntimo de muitos livros e leituras. Passear de acordo com o desejo e o dia. Leituras

para aquecer o coração, leituras para se encontrar.

4.4. Direitos do texto literário

O texto literário procura a divergência (QUEIRÓS, 2005, p. 171).

Tendo como referencial o decálogo dos direitos do leitor proposto por Pennac,

relacionamos o que seriam os direitos de um texto literário, partindo da opinião de alguns

escritores e críticos literários.

Segundo Bartolomeu Campos de Queirós, todo texto literário é sempre jovem e libertador.

Deve ser capaz de permitir vôos aos leitores, provocar sentimentos diversificados e abrir portas

através das metáforas, para que os leitores dialoguem com as emoções e fantasias dos autores.

Segundo Queirós, o mundo e o texto são movidos pela fantasia e o real é uma fantasia que tomou

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corpo. Para ele, são direitos do texto: navegar em metáforas, buscar o inusitado e abrir,

democraticamente, portas para possíveis leitores. Desse relato de Bartolomeu, retiraremos os

quatro primeiros direitos dos textos literários, do texto de Celso Sisto, os quatro seguintes, e a

Umberto Eco pertencem os dois últimos:

Direitos do texto:

1- Ser sempre jovem e libertador;

2- Permitir sentimentos diversificados e individuais;

3- Abrir portas para o leitor;

4- Ser movido pela fantasia (ficcional);

5- Não seguir padrões pré-estabelecidos;

6- Não ter que ensinar;

7- Ser lido na vertical (profundamente);

8- Fazer calar preconceitos e estereótipos;

9- Dialogar com outros livros;

10- Provocar a contemplação do estético;

11- Nunca esgotar-se;

12- Ser uma experiência de transformação para o leitor;

13- Seguir seu livre curso, soltando-se de seu autor para ser

compreendido;

14- Deslocar o leitor de suas antigas convicções;

15- Manter permanente diálogo com o leitor.

Barthes considera que o escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe – a língua – e o

leitor é o que observa e analisa a brincadeira e, se dela gostar, com ela se deleita em total

intimidade e participação. O texto prossegue como um rio em seu curso, alheio aos que o

observam, criticam, ou simplesmente o desnudam com seus olhares e interpretações. Muitas

vezes, os cães ladram e o texto passa, vai passando de geração em geração, garantindo seu

público e sua vendagem.

Foucambert acredita que

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“toda leitura é uma leitura em rede, cada texto existindo somente por referência a outros. Mal nos damos conta disso tudo quando afirmamos que qualquer leitura só funciona indiretamente em relação à experiência concreta e se situa, antes no mundo da escrita em si, num sistema de referências e representações que constitui um universo cultural. E aprender a ler é entrar nesse universo, que não pode separar os aspectos técnicos da prática da intertextualidade.(...) Substituindo o termo “alfabetização” pelo termo “leiturização”, que se abre para o universo de um modo de pensar exercido pela razão gráfica” (FOUCAMBERT, 1998, p.112).

Não há livro que não se relacione com seu tempo, a cultura e os livros que o cercam. A

razão gráfica impõe códigos, formas e suportes que pertencem, em última instância, desejemos

ou não, ao mercado. Por isso o livro é um objeto de consumo que precisa dar-se a conhecer para

vir a existir, segundo normas que lhe são impostas.

4.5. Leitura: fonte de prazer e descoberta

Será possível escrever uma carta em forma de livro para explicar um prazer, o prazer da leitura? A própria existência desse livro já é uma resposta.(...) Haverá alguma criança que, numa noite de verão, na qual o sono custa a chegar, não tenha imaginado ver no céu o veleiro de Peter Pan? Meu filho, quero ensinar-lhe a ver este veleiro, quero escrever este livro para contar-lhe que até os livros sérios, até os livros de adultos, até os livros difíceis, não passam de veleiros disfarçados, e possuem o mesmo encantamento do barco movido a pó dourado (COTRONEO, 2004, ps.15 e 21)

Quando lemos o livro de Roberto Cotroneo, Se uma criança, numa manhã de verão...,

desejosamos que todos os professores que trabalham com literatura fizessem o mesmo. A

sensibilidade, o amor e a vivência pessoal com os livros saltam em cada página. Quando nos

damos conta, somos o filho a quem ele se dirige. Que leitura deliciosa!

Merece credibilidade quem tem como objetivo deixar registrado para o filho o modo pelo

qual a literatura é uma fonte de prazer, diferente do que muitas vezes mostra a escola.

Controneo, quando se refere à escola como inimiga da descoberta do prazer pela criança,

faz doer o coração, pois sabemos que em muitas escolas isso ainda acontece. Ele nem questiona o

que ensina a escola, simplesmente afirma a sua incapacidade no ensino da literatura como algo

prazeroso, registrando e desvendando o seu próprio caminho de relacionamento com os livros,

num tom intimista de um pai que deixou o seu melhor legado ao filho, Controneo descortina o

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mundo dos livros e a boa literatura com naturalidade, simplicidade e beleza, procurando registrar

suas experiências como leitor apaixonado por narrativas e personagens. O autor que, na infância,

com os colegas de classe, recitava de memória poesias da literatura italiana, mostra que viveu a

vida inteira com livros, abraçando e conhecendo personagens como pessoas significativas

capazes de influenciar suas decisões.

Controneo apresenta a literatura como forma de conhecer o mundo e a vida. “Este livro é

uma espécie de iniciação à vida” (CONTRONEO, 2004, p. 31), afirma. Se uma criança, numa

manhã de verão... se refere à vida de leitura e faz pontes com a realidade, com outros livros,

filmes e linguagens. Literatura e vida nele se assemelham. Em pouco tempo, nos sentimos sob a

tutela literária de um autor (que é crítico literário e jornalista) com um vasto repertório. Um autor

disposto a ser leitor-guia de seus leitores (ou filhos). “Mas não falarei em demasia, porque este

livro escolheu algumas poucas obras, selecionadas a dedo a fim de dar-lhe uma idéia da literatura,

assim espero, bastante diferente daquela que lhe será ensinada na escola” (CONTRONEO, 2004,

p. 23), escreveu Controneo.

O ensino da literatura nas escolas infelizmente continua a ser visto negativamente até na

Itália, onde a tradição do ensino da linguagem literária o dificulta e o sacraliza. A visão

predominante é a de que o autor é sempre um gênio que produziu o que ninguém entende.

Daniel Pennac faz o mesmo que Controneo em seu Como um romance, que é um livro de

memórias e de relatos de experiências prazerosas de leituras.

Teríamos, como professores de Sala de Leitura, muitas experiências semelhantes às de

Pennac. Acolhemos suas críticas e propostas, pois elas nos enriquecem, sendo um testemunho

vivo de como a literatura pode influenciar a construção da sensibilidade da criança e do adulto.

Como o contato com grandes personagens pode ocupar os vazios deixados por adultos

“pequenos” que não satisfazem emocionalmente as crianças e não desempenham seus papéis?

Como a literatura pode ser um eficaz substituto de ausências emocionais, ao levar a criança a ler

outras realidades?

A escritora de Literatura Infanto-Juvenil, Anna Cláudia Ramos, declarou:

Se a vida não me desse qualquer coisa, eu podia inventar (RAMOS, 2005, p. 148.) (...) Livro de verdade era livro que tinha história de poder imaginar, sonhar, me deixar ser diferente e pensar coisas novas. Ou me acolher quando o meu mundo insistia em doer (RAMOS, 2005, p. 152).

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Cabe ao professor trazer a literatura para o cotidiano de seus alunos como algo aprazível,

que os auxiliará na compreensão de um mundo tão cheio de surpresas e dores. Ao apresentar ao

alunado os diferentes gêneros literários, autores e temas, através de sua sensibilidade e habilidade

com os diferentes textos, o professor facilmente será admirado pelos alunos.

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5. CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO ENSINO DE LEITURA 5.1. Ler confiando e desconfiando

Os pensadores que argumentaram que o significado aparente não é necessariamente o real foram em geral recebidos com desprezo: Copérnico foi seguido por Marx, segundo o qual o verdadeiro significado dos processos sociais ocorria “por trás dos agentes individuais”, e a Marx seguiu-se Freud, argumentando que os significados reais de nossas palavras e atos eram imperceptíveis à mente consciente. O estruturalismo é o herdeiro moderno dessa crença de que a realidade e a nossa experiência da realidade não são contínuos entre si; nessa condição de herdeiro, o estruturalismo ameaça a segurança ideológica daqueles que desejam ter o mundo sob seu controle (...) como Freud, ele mostra a verdade chocante de que até a experiência mais íntima é efeito de uma estrutura (EAGLETON, 2001, p. 149).

Custa-nos pensar como a alienação e a inocência política podem dar aos homens o

conformismo e até a felicidade dentro do caos. O lado penoso de quem tem os olhos abertos pela

leitura é precisar ter um estômago de ferro para enfrentar esse mundo de tão estranhos interesses.

Homens que se apropriam de outros, com a pura intenção de explorar, de serem servidos,

alimentando sua insaciável ganância. Homens que simplesmente excluem ou passam por cima de

outros, como se nada estivessem fazendo. Pensamos que a metáfora que mais se aproxima do

desvendar dos nossos olhos “políticos” é a de Édipo descobrindo ter se deitado com a mãe. A

sensação de impotência ao enfrentar o irremediável pode ser o sentimento de quem se vê atrelado

a um sistema injusto e esmagador, contra o qual é preciso confrontar.

É Bourdieu chegando à Academia, enfrentando as discriminações sociais que tanto o

marcaram. Fazendo-se igual para ser ouvido por aqueles que, ocupando os mesmos espaços

acadêmicos, nunca chegaram a ser de fato seus pares.

É Gramsci enfrentando um tribunal que manda prendê-lo por ele saber pensar e ver o que a

massa ignora. Em sua integridade professoral, Gramsci pretendeu preparar ideologicamente o

proletariado para a tomada do poder de forma organizada e consciente. Foi preciso detê-lo para

que ele não mentoreasse o povo. – Impeçam esse homem de pensar por pelo menos vinte anos.

Prendam-no, seus pensamentos se opõem aos do poder! – disse o juiz que o condenou.

Estar preso numa masmorra ou estar preso nas estruturas sociais imutáveis e mortíferas?

O que é pior? Quantos não suportaram a realidade que os rodeava e se mataram? Torquato Neto,

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compositor, cantor, poeta... Sucumbiu. Escolheu as drogas e a própria morte para não ter que ver

mais... O “saber” o ofuscou.

É Graciliano Ramos sendo preso por denunciar em seus romances a máscara, a opressão e

o escravagismo praticado pelos coronéis. Alguns dizem que ele foi vítima de um equívoco, mas o

historiador Nelson Werneck Sodré, no prefácio do livro do escritor, Memórias do Cárcere,

escreveu:

Era ele mesmo que se pretendia ferir. Desde o primeiro ato do drama que foi forçado a viver, tudo foi cuidadosamente pensado, premeditado, claro e absolutamente intencional: a prisão arbitrária, a promiscuidade com os ladrões e assassinos, a viagem no porão, a ida para a Colônia Correcional, a ausência de processo. (...) Em Graciliano Ramos se brutalizava tudo aquilo que a cultura pode realizar em favor do homem, de sua visão de existência, de sua ânsia pela liberdade. Os que, nele, pretenderam atingir tão fundo e tão longe, eram parentes espirituais daquele general espanhol que, em Salamanca, onde Unamuno dera suas aulas, atirou o revólver sobre a mesa, bradando: – “Abaixo a cultura”. Eram irmãos dos que assassinaram a Garcia Lorca, na calada da noite. Não existiu o “engano lamentável” a que se pretendem referir alguns incautos e outros espertos: foi tudo realizado com a frieza premeditada, com a serena determinação dos atos cuidadosamente examinados, com aquele horror à cultura que caracteriza o obscurantismo e a tirania, por toda parte, com o medo à inteligência, em qualquer meio (SODRÉ, 2004, p. 29).

Graciliano se comprometeu com a sua geração, cônscio dos riscos que corria. Lutou até o

fim. Manteve-se fiel a tudo que acreditava e transformou seus dias de cárcere em dias de

continuada denúncia das injustiças e horrores praticados pelas elites na garantia da manutenção

dos seus privilégios. Cada companheiro de cela foi transformado pelo escritor num retrato de uma

humanidade complexa e revelante, surpreendente, cuja natureza dialética era manifestada nos

apertos do cárcere. Graciliano, além da maravilhosa obra, deixou um exemplo de vida fiel às suas

convicções.

É Paulo Freire sendo deportado, banido do Brasil por desejar a justiça social e ter a

coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação, que identificou a alfabetização

com o processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto para a aquisição de

instrumentos de leitura e escrita quanto para sua libertação política através da erradicação do

analfabetismo. Foi um dos primeiros brasileiros a ser exilado. Da Terra que tanto amou, levou a

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força e o desejo de voltar. Voltou, anos depois, com a mesma esperança, garra e determinação de

quem realmente trabalhou para ver a hominização e a solidariedade prevalecerem sobre o

egoísmo e a reificação. Precisamos hoje de homens íntegros e conscientes como foram Graciliano

Ramos e Paulo Freire, que em nenhum momento divergiram suas práticas de seus discursos. A

leitura correta de mundo não deve matar a esperança nem a capacidade de indignar-se e de lutar

para transformá-lo.

Depois de 16 anos de exílio, Paulo Freire foi Secretário de Educação no Município de São

Paulo, onde procurou empenhar-se para pôr em prática tudo o que antes havia ensinado a seus

alunos. Lutou por melhorias salariais para os professores, por renovações curriculares e criou

programas especiais para alfabetização de adultos. Foi reconhecido mundialmente com o título de

Doutor Honoris Causa por 27 universidades estrangeiras. Isso nos faz lembrar a lei bíblica da

semeadura: “Os que com lágrimas semeiam com júbilo ceifarão” (Sal. 126:5).

Paulo Freire acreditou, sofreu, semeou e colheu os frutos de uma pedagogia do trabalho,

da terra, da solidariedade e do humanitarismo, tão bem defendida por ele. Fez muitos discípulos e

deixou larga bagagem cultural, registrada nos livros que escreveu e no precioso exemplo de uma

vida digna. Que o exemplo dado por esse homem nos inspire a encarar a realidade sem

esmorecer.

Que possamos dialeticamente ver a miséria humana manifestada no egoísmo das elites e

que ela não nos paralise, destrua ou assombre. Lancemos fora todo medo de trabalhar

inutilmente. Nossos meninos e meninas têm jeito sim. Eles esperam por nós, a fim de que

desatemos seus nós com práticas pedagógicas que lhes imputem credibilidade e fé. Fé no que

podem vir a ser, fé no que já são. E que nós, professores, acreditemos que possamos formar nas

escolas públicas futuros líderes de comunidades, não esquecendo nunca que a educação ou é

libertadora ou alienante e domesticadora. Nada adianta mudar a aparência das práticas

pedagógicas para que pareçam libertadoras se a pedagogia interna que utilizamos é autoritária e

se a visão que temos de nossos alunos é de que eles nada sabem, de que não vale a pena ouvi-los

ou investirmos na verdade deles. Um trabalho sério, que envolva de fato as necessidades do

aluno, é fundamental para que ele não precise “fingir que aprende e o professor fingir que

ensina”.

Precisamos superar a contradição entre o educador e o educando e, dialogicamente, vê-los

como sujeitos de uma educação descentralizada, em que o pensar verdadeiro é o pensar crítico

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que busca a causalidade profunda dos acontecimentos. Através da percepção de educadores e

educandos, buscar a síntese para uma eficaz transformação, com o compromisso histórico de

visar a libertação de todos os homens.

Pensar a literatura e os livros também dialeticamente é algo que pode nos surpreender.

Terry Eagleton, no seu livro Teoria Literária, nos coloca que “estar dentro do próprio discurso é

estar cego ao seu poder” (EAGLETON, 2001, p. 279).

O poder do discurso crítico articula-se em vários níveis. Ele tem o poder de “policiar” a língua, de determinar que certos enunciados devem ser excluídos por não se conformarem ao que é considerado um estilo aceitável. O poder de policiar a própria escrita, de classificá-la de “literária” e de “não-literária”, de perenemente grandiosa e de efemeramente popular. É o poder de conferir ou não certificados àqueles que foram classificados como bons ou maus usuários do discurso.Trata-se, por fim, de uma questão de relações de poder entre a instituição acadêmico-literária, onde tudo isto ocorre, e os interesses da sociedade em geral, cujas necessidades ideológicas serão servidas, e cujo pessoal será reproduzido pela preservação e ampliação controlada do discurso em questão (EAGLETON, 2001, ps. 279 e 280).

Roberto da Matta fez um maravilhoso estudo estrutural e antropológico do que podem ser

os textos literários e a arte para uma sociedade.

Olhar certo texto numa perspectiva global é procurar inventariar nele um determinado número de relações e de regras. O mundo social é feito dessas relações e dessas normas, de tal modo que é sempre possível desmontar um certo arranjo ou combinação verificando quem é o centro, e em que nível da realidade essas combinações são assumidas (DA MATTA, 1997, p. 310).

Dialogicamente, o letramento oferece a oportunidade de passar de um campo social a

outro, mas não une um a outro como gostaríamos. Muitas vezes, o seccionamento social

permanece e isso não nos ajuda. É preciso que esse letramento seja oferecido a todos e não

apenas a alguns.

Muitas vezes o aluno com o qual obtivemos bons resultados poderá ser um futuro Nhô

Augusto, de Guimarães Rosa, ou um Paulo Honório, de Graciliano Ramos, perpetuando a

hierarquização e a opressão humana. Há o perigo de estarmos a serviço da reduplicação da

miséria e da opressão social mesmo quando a nossa intenção é não reduplicarmos o sistema. Ao

promovermos o domínio da leitura e da escrita, poderemos estar formando homens bem

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sucedidos para si, descomprometidos com o social, assumindo papéis de novos opressores. É a

dialética da formação. Formar para quê?

Tentamos refletir sobre a complexidade do nosso sistema social, que mantém e realimenta

profundas desigualdades, abrindo o abismo de dois ideais sociais em constante luta, colocados

pelo “dilema de uma sociedade: o da igualdade e o da hierarquia” (DA MATTA, 1997, p. 334).

Sabemos que mudar a mentalidade do povo é um trabalho longo. Os que possuem visão

crítica problematizam a visão que o povo está tendo e lutam por um mundo mais humano.

Nenhuma outra profissão, que não seja a de professor, tem uma nova geração inteira consigo para

formar. Que esta visão crítica produza adeptos e não apenas ouvintes. “O diálogo é o encontro

amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam, isto é, o transformam, e,

transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE, 1975, p. 43). É

profundo em nós esse desejo.

Nenhum livro vale o papel em que foi escrito se ele não se inscrever de alguma forma

benignamente em nosso viver, se sua semente não puder florescer e frutificar. Sabemos que

somos seres incompletos, não podemos saber tudo, porém podemos saber mais e crescer através

da leitura de autores que nos brindam com sementes comprometidas com o humano, a terra e seu

percurso dialético.

5.2. A perda da inocência política

Estamos todos empenhados na luta por uma escola pública municipal competente, em que as crianças percebam – vivendo – que estudar é tão sério quanto prazeros (FREIRE, 1991, p. 55).

Estaremos todos empenhados numa escola pública municipal competente? Ensinar exige

do professor um forte respeito pelo que é ensinado. Respeito por sua cultura, sua linguagem, seu

sotaque e sua semântica. Ensinar a ler e a escrever não é favor ou caridade. Afirma Paulo Freire

que ensinar é um engajamento social e humano. A pedagogia é antropologia e a literatura é

humanizante. Acreditamos que formar um cidadão leitor é formar um homem sensível e humano.

Não há educação sem objetivos e interesses que vão além dela. Educar para quê?

Nosso sonho é que a escola pública continue aberta aos pobres e miseráveis desse país,

dando-lhes chances reais de prosperar em sua humanidade e capacidade de conviver com o outro,

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sendo instrumento para remissão de injustiças sociais alarmantes e discriminatórias. Uma escola

que forme os que desejam ingressar no mercado de trabalho e que oportunize condições para uma

vida saudável, higiênica e feliz.

Precisamos reagir às idéias neoliberais que apontam para situações fatalistas que induzem

a crer que nada podemos fazer contra a realidade social em que vivemos: crianças abandonadas à

própria sorte, que enfrentam diariamente tiroteios; pais ausentes pelo excesso de trabalho ou

destruídos pelo alcoolismo e pelas drogas; filhos de presidiários; meninas amantes de bandidos

que expõem com naturalidade e até certo orgulho sua ideologia; valores e vivências abomináveis

aos professores; etc. Como sair dessa realidade tão dura e encher-se de esperança e crer que há

saída através da educação? Ou melhor, que só há saída pela educação. Educar exige respeito aos

saberes dos educandos, reflexão crítica sobre a prática do professor, pesquisa sobre o aluno, o que

é preciso ensinar e o que ele quer aprender. Exige não ter medo de arriscar-se e acreditar que a

mudança é possível. Exige empatia entre o aluno e o professor. É necessário que um acredite e

confie no outro. É indispensável também que as ações do professor correspondam à sua fala e

sejam coerentes e profundamente envolvidas com o seu fazer pedagógico e a sua busca de

conhecimento.

Estou convencido, porém, de que a rigorosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou em outras palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa de arrogância. Não nego a competência, por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor. Gente mais gente (FREIRE, 2000, p. 165).

Nosso desejo, como o de Freire, é de que a leitura e, principalmente, a leitura literária

aproxime os homens, lhes concedendo um olhar mais sensível e humano, dando-lhes condições

de verificar as intenções e a confiabilidade de cada texto lido. Todo texto está inscrito num

contexto e se liga a uma linha filosófica de ver o mundo e nele se inserir. Nenhum texto é neutro,

ainda que não esteja explicitamente engajado. Por mais livre que pareça, cada texto se junta

sempre a outro, mais ou menos criativo e generoso que, como ele, vê a si e a esse outro segundo

um mesmo lugar, seja literário ou científico, sério ou humorístico, libertador ou duplicador, ou

mesmo verdadeiro ou impostor. O caráter dos textos deverá ser reconhecidamente identificado

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pelo leitor crítico, formado para perder a inocência política e “abrir os olhos” de outros leitores,

inocentes.

5.3. A indignação com um mundo de estranhos interesses

Eu comemoro não a invasão, mas a rebelião contra a invasão. E se tivesse de falar dos principais ensinamentos que a trágica experiência colonial nos dá, eu diria que o primeiro e mais fundamental deles é o que deve fundar a nossa decisão de recusar a espoliação, a invasão de classe também como invasores ou invadidos. É o ensinamento da inconformidade diante das injustiças, o ensinamento do que somos capazes de decidir, de mudar o mundo, de melhorá-lo. O ensinamento de que os poderosos não podem tudo; de que os frágeis podem fazer, na luta por sua libertação, de sua fraqueza a força com a qual vencem a força dos fortes (FREIRE, 2000, p. 5).

Muitas vezes a cultura e a leitura são invadidas pelo jogo de fazer dinheiro e a indústria do

entretenimento procura o povo para ludibriá-lo, oferecendo-lhe uma subliteratura divulgada

maciçamente como se fosse de qualidade. O único compromisso que a indústria livreira tem com

o pobre é que ele pode ser um consumidor em potencial. Como não temos controle de qualidade

sobre a literatura, deparamo-nos com muitos livros que são antiliteratura. Na carona dos temas

transversais há muita “porcaria” publicada e massificada. Como o povo não consegue distinguir o

literário do apelativo, do kitsch, do texto pobre e mal escrito, a indústria livreira usa e abusa.

O povo teve, desde sempre, seus olhos voltados para o concreto, para suas necessidades

básicas: comer, trabalhar, colocar os filhos na escola e ter onde morar. Ele não tem letramento

suficiente para sancionar leituras ou comprar, privilegiando a qualidade. Por isso, as publicações

que tratam de assuntos atuais, do que já é conhecido e que não exige muita reflexão, são as que

vão ser escolhidas e digeridas avidamente.

Inserir a realidade da literatura, do abstrato, do reflexivo, do novo e do criativo é o nosso

desafio. A obviedade dos textos, a pobreza de construção, a previsibilidade e o oportunismo se

assemelham à linguagem de propaganda, que anuncia apenas para vender, sem ter compromisso

com o produto oferecido. Há um único interesse nisso: o lucro.

Hoggart, em seu livro The uses of Literacy, chama atenção para o fato de que o processo

de mudança social é lento e precisamos começar mudando desde já os nossos hábitos de leitura,

já que a imprensa popular é hoje uma das maiores forças conservadoras na vida pública. Sua

própria natureza requer que ela promova o conservadorismo e a conformidade.

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O interesse da indústria do entretenimento não é melhorar o nível de leitura. Muito pelo

contrário, o boom da leitura paradidática não acrescenta qualidade à leitura e sim a mantém num

baixíssimo e limitado universo de modismos reducionistas, inibidores de um apetite leitor que

venha a exigir arte e inovação nos processos de escrita. A indústria não se preocupa com a

formação do cidadão leitor crítico, apenas oferece leituras facilitadas e de fácil digestão. Leituras

para consumo.

Hoggart diz ainda que a objeção mais forte aos entretenimentos populares mais banais não

está em que eles impedem seus leitores de se tornarem intelectuais, mas em que eles dificultam

que as pessoas sem inclinação intelectual se tornem inteligentes à sua própria maneira.

A leitura que não favorece o artístico e a criação não desenvolve nem a sensibilidade nem

a reflexão. Queremos uma leitura que enriqueça a leitura de mundo, auxilie nossos alunos a se

expressarem, a pensarem, a questionarem o mundo em que vivem, observando as estruturas

estabelecidas sobre o fosso de desigualdades sociais que gritam diante de todos nós sem que

sequer as ouçamos. Precisamos estar atentos a esses confusos e estranhos interesses que brincam

de cabra-cega com o povo sem permitir que a venda lhe seja retirada.

Estranhamos que a escola escolha textos facilitados, que não exijam do leitor autoria no

processo formador de sentidos, e deixe de fora a literatura de qualidade, onde o aluno é

convocado a participar de sua leitura. Que interesse pode ter a escola em marginalizar os bons

autores e suas obras? Por quê? Quem entende?

Só podemos entender que a literatura seja retirada dos currículos e dos planejamentos

porque ela dá medo. Medo do que vai ser entendido, medo do que vai ser concluído, medo do que

vai ser pensado, das teias de significação que vão sendo formadas. A literatura assusta os

opressores porque ela é, por princípio, libertadora. Libertadora das estruturas habituais de

significação. Libertadora da passividade que freia o pensamento e o impede de avançar em

hipóteses e possibilidades.

5.4. Construção de cidadãos leitores em seu discurso e história

De que adianta “saber ler” se os objetos de leitura (livros, jornais, revistas, etc) não são colocados à disposição do indivíduo? De que adianta “ser letrado” se não há tempo para o usufruto dos bens culturais escritos? De que adianta “ser

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alfabetizado” se não há dinheiro para aquisição de obras? De que adianta “saber ler” se não existe um projeto social orientado para despertar a consciência crítica através da leitura? Estas perguntas revelam que outras condições, de ordem sócio-cultural e econômica, são necessárias para que a prática da leitura seja efetivamente exercida (SILVA, 1997, p. 47).

Sem garantir a escolarização e o acesso aos livros e sem haver um mediador entre os livros

e os alunos, teremos uma simples exclusão. Não é possível formar sem transformar, assim como

é impossível transformar sem se comprometer.

Há uma história de domínio público em que um porco é convidado por uma galinha a

ganhar muito dinheiro, servindo todas as manhãs ovos com presunto aos trabalhadores. A galinha

garantiu ser um ótimo negócio e que ganhariam muito dinheiro. Mas o porco, que não era bobo,

sabia que aceitar a proposta lhe custaria a vida, pois só a galinha sairia ganhando com essa

sociedade.

Muitas vezes propomos a nossos alunos o que para eles soa como uma equação

impossível. O nosso comprometimento deve nos levar a estudar, pesquisar e falar a verdade. Qual

é a nossa proposta de trabalho? Estaremos comprometidos com ela? Quem lucrará e quem irá

para o sacrifício? Há condições de negociar com o aluno sobre o que ele tem realmente interesse

em aprender? Ou será ele um escravo do saber e do dizer do professor?

Certamente nossos alunos logo saberão se estamos comprometidos com eles ou não, se

temos objetivos a alcançar ou simplesmente esperamos que o tempo de aula escorra pelo ralo,

loucos para ouvir o sinal e eles dizendo: – Já bateu, professor. E, ao chegarmos na sala dos

professores, repetirmos o mesmo: – Hoje os alunos estavam impossíveis.

Diante de um professor que não tem clareza nem objetivos em suas aulas, todos os alunos

ficam tontos, não sabem o que fazer. Se levantam, pedindo para ir ao banheiro, contam piadas,

abrem os celulares e tiram fotos dos amigos, se batem, escondem objetos uns dos outros, se

xingam... É uma “festa”! Mal sabem que eles serão os futuros “porcos” que irão para o sacrifício.

Sacrificarão as oportunidades de aprendizado e de uma nova leitura de mundo. Perderão a

capacidade de avaliar criticamente as propostas de parceria que lhe serão oferecidas ao longo da

vida. Que pena! Quando isso acontece, todos perdem por não saberem que estão alimentando a

ideologia vigente.

A escola precisa ser, sem dúvida, uma agência de transmissão e promoção da cultura. É

necessário que, a par disso, estejamos determinados a não nos submetermos passivamente à

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exploração das elites. É necessário despertar o proletariado para as muralhas fortemente

construídas, verdadeiras barreiras impostas pelo sistema. Quando isto acontecer, o povo

conscientemente irá se organizar e reivindicar seus direitos e espaços de trabalho, moradia, lazer,

higiene e saúde.

A elite só se compromete com a pobreza quando acuada por uma movimentação

organizada. A escritora Ruth Rocha, em seu livro “para crianças” O que os olhos não vêem,

aborda essa questão, contando a história de um Rei que não enxergava os pequenos, só vendo e

ouvindo os grandes. Até que o povo constrói pernas de pau e faz o Rei fugir da cidade com medo.

Não somos ingênuos a ponto de acreditar que a leitura crítica sozinha possa mudar uma

nação, mas acreditamos que ela certamente trará uma consciência. Saberemos contra quem

devemos nos dirigir e nos posicionar.

Ezequiel Silva, no seu livro Conferências sobre leitura, afirma:

Talvez a leitura do mundo que precede e alimenta com substância concreta a leitura da palavra escrita, como quer e propõe Paulo Freire, seja mais potente para analisar, compreender e/ou, se quiserem, “sentir” na própria pele as contradições da realidade brasileira do presente. Esse tipo de leitura talvez seja capaz de estimular o surgimento de contestações maiores, gerando contrapontos concretos ao regime de privilégios, como é o caso, por exemplo, dos movimentos dos sem-terra, sem-teto, sem-escola, sem-emprego e outros “sem” que põem a nu todos os processos de exclusão social, todas as terríveis desigualdades do Brasil de hoje (SILVA, 2005, p. 11).

Muitas vezes não somos capazes de avaliar o quanto a escola é excludente. Excluímos

com nosso olhar de reprovação, de não aceitação. Excluímos quando não nos preocupamos com a

nossa formação, quando nos mostramos indiferentes com o progresso ou o retrocesso de nossos

alunos e quando aceitamos sem questionar os processos escamoteadores da realidade nas nossas

práticas diárias.

Essa foi a principal bandeira levantada por Paulo Freire, um dos maiores educadores que a

escola pública já conheceu. Especializado na educação de adultos e em sua alfabetização, Freire

passou sua vida pensando e repensando o ensino público. Escreveu muitos livros, artigos, deu

entrevistas, foi cassado e expulso do Brasil pela ditadura militar, confrontou estruturas, mostrou

suas convicções com a paixão de quem verdadeiramente lutou por seus ideais: conquistar uma

realidade social mais justa, menos perversa, promover, sempre que possível, a superação das

desigualdades sociais e a consciência dos deveres e direitos de todo cidadão.

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A hominização deve ocorrer enquanto construção do homem como humano, já que ele

pode ser formado para ser bárbaro, destruidor de sua raça, um homem-bomba, estruturado psico-

socialmente para matar e morrer. Toda hominização decorre de uma postura ideológica

(consciente ou não) relativa à história e à sociedade, como diz Mario Sergio Cortella em seu livro

A escola e o conhecimento. Essa postura pode ser formadora ou duplicadora ideológica.

Cabe ao professor escolher o que vai auxiliar a construir, levando em conta que todo

conhecimento é político, e que o homem estará sempre se deparando com outros homens,

defendendo seus interesses e jogando com os valores a favor ou contra a humanidade. Todos nós

estamos cansados de assistir a filmes de far west em que os brancos dizimam os índios de

maneira desumana e nós consentimos em chamá-los de “mocinhos”, nos alegrando quando eles

vencem pela matança e pelo preconceito étnico. Estamos tão acostumados à barbárie que não nos

indignamos mais.

Nessa leitura é “ingênua” e partidária quando o narrador nos conduz a pensar e sentir

como ele, nos convencendo de que o que ele narra é bom. Cabe-nos abrir espaços de reflexão e

contextualização dos interesses que estão gerenciando tais ações.

Por que só os jovens pobres estão liderando as bocas de fumo? Se eles são tão bem pagos

e se há possibilidade de enriquecer e ter o poder nas mãos, por que os ricos não se habilitam?

Que ideologia haveria por trás da criação e o reforço desse pensamento? Por que, mesmo

diante de uma realidade de mortes seqüenciais de traficantes, alguns de nossos adolescentes ainda

acreditam que é a melhor oportunidade de vida pertencer a esses “comandos”?

Vocês poderiam me responder?

– Porque aqui é assim. São os valores deles.

E nós lembramos de uma poesia de Bertold Brecht:

Nós vos pedimos com insistência Não digam nunca isto é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa época em que reina a confusão Em que corre sangue, Em que o arbítrio tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza, Não digam nunca: isto é natural! Para que nada passe a ser imutável (BRECHT, 1996).

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Este é o cidadão que desejamos formar, consciente do seu aqui e agora, pronto para

interrogar, pesquisar e refletir até que possa escolher. Homem construtor de sua história e seu

destino.

Que assim seja também com os textos literários. Que haja não um leitor ingênuo e

despreparado, mas um leitor conhecedor da linguagem característica de cada gênero textual,

capaz de diferenciar um texto original e bem construído de um texto “lugar-comum”, pobre, sem

valor literário.

Uma educação libertadora como propõe Paulo Freire não se conforma com o aqui é assim, e se aprofunda nas questões tirando-lhes as máscaras, e proporcionando a seus alunos meios de decodificarem as estruturas sociais pelo que apresentam nas entrelinhas (CORTELLA, 2002, p. 156).

Que os professores se organizem e lutem pelo financiamento de verbas que priorizem o

estudo de práticas de leitura, para que haja uma política de construção de uma ciência da leitura

de caráter nacional. É o que desejamos.

Escolhe teu diálogo E Tua melhor palavra Ou Teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com o silêncio Dialogamos (DRUMMOND, 1983, p. 784).

5.5. Leitura crítica: transformação e comprometimento Deve haver um compromisso para que haja transformação social e para que a igualdade de

direitos seja respeitada.

Não podemos esquecer ou mascarar a dimensão política da leitura. Cada texto é produto

de sua ideologia e do contexto cultural que o produziu. Não podemos olhar para um texto apenas

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como algo inovador e individual, e sim como uma confluência de saberes próprios de um grupo e

de uma época.

Desmascarar essa dimensão política da leitura é função do professor, bem com ler

criticamente a nova ordem imposta pelo modelo econômico. Burlar esse modelo ao identificá-lo é

o que nos propõe Luiz Percival, nos lembrando que o livro é um objeto de consumo e, portanto,

um bem da sociedade de consumo, atrelado a ela e às suas exigências. Desde os anos 80,

presenciamos no Brasil um boom editorial que privilegiou a produção em massa de textos

encomendados e “facilitados”, de fácil digestão para o aluno, dando ênfase à “pedagogia do

gostoso” e à “leitura do prazer”, sem nenhum valor literário. Percival alerta ainda que, com ou

sem prazer, é necessário que todos se apropriem dos códigos de escrita e reconheçam a sua

função social.

Ezequiel da Silva, por sua vez, aponta objetivos que a escola deve perseguir no que se

refere à formação de leitores: resgatar a pessoa e a aprendizagem do aluno como fundamento do

ato pedagógico, razão primeira de todas as ações do professor. “Promover a leitura depende de

coerência e sensibilidade” (SILVA, 2005, p. 85).

Sylvia Orthof, em seu conto “Mudanças no galinheiro”, aborda a questão da autoridade, o

ordenar das decisões que atingem uma coletividade, e como a mudança das ações de um que não

se submete pode trazer conseqüentes mudanças nas ações de outros. Isto pode acontecer a partir

de descobertas libertadoras que fazemos, ao lermos o nosso entorno, e esse é o papel fundamental

da leitura.

– Se o galo não pode cantar porque o sol sumiu do céu, é porque o galo não manda coisa alguma, porque, se mandasse, cantava. O galo implica comigo porque sou fraca, sou fraca, sou fraca... Mas se eu resolver mudar eu mudo! A galinha subiu no poleiro, tomou coragem e falou: – Se a casa está em desordem, a culpa é minha, mas também é do galo. Afinal, a casa é nossa. Ele que ajude... e, se os pintinhos estão mal cuidados é porque meu marido só faz cantar de galo, esquece de conversar com os filhos, esquece de ser amigo da gente. Aí ela ficou tão nervosa, tão nervosa, que abriu a boca e cantou: – Cocoricó! (ORTHOF, 2002, p. 10).

Muitas vezes somos especialistas na leitura dos textos literários, mas não conseguimos ler

o texto da vida. O nosso desejo é que nossos alunos transitem com liberdade, alcancem um bom

nível de letramento e não se julguem superiores por isso, oprimindo os que ficaram para trás.

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Bourdieu, em seu livro As regras da arte, fala do quanto a arte é feita e consumida por

uma elite e o quão difícil é para o povo ter acesso a seus bens culturais.

Como a percepção “pura” das obras pictóricas ou musicais, a leitura “pura” que as obras mais avançadas da vanguarda exigem imperativamente e que os críticos e outros leitores profissionais tendem a aplicar a toda obra legítima é uma instituição social, que é o resultado de toda história do campo de produção cultural, história da produção do escritor puro e do consumidor puro que esse campo contribui para produzir produzindo para ele. Sendo o produto de um tipo particular de condições sociais, o texto postula a existência de um leitor capaz de adotar a postura correspondente a essas condições: quando ele é a expressão de um campo levado a um alto grau de autonomia, encerra uma injunção, uma intimação, aquela mesma registrada, e ratificada, sem o saber, pela maior parte das teorias da recepção, e da leitura. Com efeito, baseando-se em uma análise de aparência fenomenológica de uma experiência vivida de leitor cultivado, elas se condenam a extrair dessa norma feita homem teses ingenuamente normativas. Batizado de “leitor implícito” com a teoria da recepção de Wolfgang Iser, de “arquileitor” com Michael Riffaterre ou de “leitor informado” com Stanley Fish, o leitor de que realmente a análise – por exemplo, com a descrição da experiência da leitura como retenção e propensão em Iser – não é mais do que o próprio teórico que seguindo nisso uma inclinação muito comum no leitor, toma por objeto sua própria experiência, não analisada sociologicamente, de leitor cultivado (BOURDIEU, 1996, p. 336).

Faz-se necessário encarar a realidade e poder ler o seu pano de fundo, ou seja, observar o

que se mostra além do visível. Como num quebra cabeças, é preciso estudar todas as peças e seus

encaixes. Que leituras estão escondidas atrás de cada peça? No xadrez da vida não é fácil dar um

xeque-mate, isto é, conseguir vencer as estruturas sociais que nos esmagam.

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6. CONCLUSÃO

O nosso trabalho de pesquisa percorreu os diferentes escritos de professores e escritores

sobre o ensino da leitura. Em seguida, analisamos as políticas públicas de leitura e como a

Prefeitura do Rio de Janeiro tem investido no acervo e nos professores. Ficou claro que a

responsabilidade de formar cidadãos leitores é de todos os professores.

A nossa proposta é que a presença da leitura literária e da leitura significativa seja

garantida nos planejamentos escolares de todos os professores da Rede Pública de forma

adequada e gradual, possibilitando ao aluno as mesmas oportunidades de acesso ao saber das

elites e a uma formação cidadã, crítica e consciente, que lhes permita serem os sujeitos de suas

histórias. Além disso, deve haver uma Política Pública de Leitura séria na educação infantil até à

8ª série, com a participação e a formação continuada dos professores (todos e não apenas os de

Língua Portuguesa e os de Sala de Leitura), que estabeleça metas e objetivos planejados passo a

passo, a fim de que a nossa Escola Pública seja transformada num grande espaço de formação de

cidadãos leitores, transformadores do mundo em que habitam.

É nosso sonho ver cada professor consciente de seu papel transformador, de sua

importância na grande virada que a Educação precisa dar, antes que a barbárie vença e que a

violência e o desamor sejam as preferências “humanas” sem limites, causando o fim dos grandes

patrimônios da humanidade, construídos através dos séculos.

A escola é lugar de esperança e sonho, é lugar de trabalho árduo e imprescindível em meio

ao caos social desagregador, injusto e cego. O professor, um condutor informado, preparado para

trabalhar com as diferenças, um ávido leitor, conhecedor do seu trabalho e do acervo de sua

escola, um mediador entre alunos e livros.

O nosso clamor e a nossa voz se empenham para que aumentem as ações dos órgãos

públicos no sentido de valorizar o trabalho do professor de 1o grau, instrumentalizando-o com

cursos de aperfeiçoamento e dando-lhe tempo para estudar. Assim, recuperaremos o sonho e nos

deixaremos invadir pelo amor e pela dor humana, tão bem representada nos textos literários.

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Na leitura, descobrimos o prazer e a felicidade, mergulhando com gosto no texto até

conseguirmos estabelecer com ele um diálogo, deixando-o falar. Até que sejamos capazes de

contemplá-lo, ao conversarmos com ele.

Ser leitor é ser ouvinte da palavra e do mundo. Ser professor-leitor é relacionar textos e

contextos, a fim de conseguir conduzir e seduzir os alunos, acompanhando-os no exercício da

leitura. Inicialmente isto se faz com textos mais simples, porém significativos para a criança.

Uma leitura espelhada (ou espelhante) da realidade lhe permite formar vínculos afetivos com o

texto e levantar hipóteses, refletindo sobre a realidade da palavra no texto, pensando sobre si

mesmo e o outro e, finalmente, sobre o mundo, compreendendo e organizando causas e

conseqüências, mudanças e permanências, valores, culturas, diferentes modos de sentir e ver a

realidade em que vivemos. Sendo enriquecidas por autores e obras, temas e filosofias de vida,

semelhanças e diferenças.

Ir pouco a pouco oferecendo aos alunos textos que exijam mais, que os desafiem em sua

compreensão, sem desanimá-los ou fazê-los sentirem-se incapazes. Instrumentalizar os alunos

com textos teóricos e literários.

Distinguindo os diferentes gêneros literários e textuais, dando-lhes mobilidade nas

diferentes interações sociais, o professor formará um leitor proficiente no literário e nas múltiplas

linguagens (histórias em quadrinhos, fotos, cinema, pintura, grafismo, propaganda, etc),

ensinando-o a ler nas entrelinhas até que a leitura crítica aflore com naturalidade como uma

árvore que cresce e frutifica.

Sabemos que isso é possível. Todo nosso trabalho de pesquisa de campo deteve-se em

observar planejamentos, estratégias e textos utilizados no ensino e na prática leitora, a fim de

comprovar os resultados que o trabalho com a leitura, especialmente a literária, pode oferecer ao

cidadão e à sociedade.

Ensinamos formando valores e desejos de viver num mundo mais justo, mais coerente,

menos solitário e menos excludente. Que a verdadeira cidadania seja formada, transformando

aquele que seria mais um alienado, excluído e manobrado, em um cidadão participativo e

consciente.

Que o professor possa aceitar o desafio que muito o recompensará, o de ir de mãos dadas

com o seu aluno, alcançando todos os seus níveis de leitura, o denotativo, o conotativo e o crítico,

conscientizando de que estamos todos aprendendo e crescendo, nos libertando da ignorância e do

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engano, e que esses processos nunca terminam, pois somos eternos aprendizes e o verdadeiro

mestre é aquele que não se cansa de ver os problemas e buscar as soluções, sempre estudando e

crescendo junto aos seus alunos e pares.

Que a leitura seja para nós um grande diálogo, uma grande inferência com o texto para

que, como cidadãos leitores, possamos ir da infância à vida adulta transformando e sendo

transformados, interagindo e refletindo. O professor oportunizará aos alunos a saída do time dos

que são, socialmente, “massa de manobra”, isto é, os excluídos, preparando-os para que possam

ter condições de serem sujeitos de suas próprias histórias, passando o bastão de cidadãos leitores

às próximas gerações. Que possamos dizer o contrário do que disse Machado de Assis em

Memórias Póstumas de Brás Cubas: tivemos filhos, tivemos alunos e partilhamos com eles o

melhor legado da riqueza humana: o acesso à arte, à criação literária e o amor e respeito à

humanidade.

Formemos cidadãos cônscios das estruturas sociais em que estão imersos, dispostos a lutar

por uma sociedade mais justa, fraterna e tolerante. Abandonando antigos e viciados modelos de

hipocrisia, fraude e manipulação, sendo mais justos e humanos, com diferentes modos de ver e

ler a vida e o mundo, inconformados com o presente século e sua barbárie, prontos para lutar

contra as desigualdades sociais.

Só a leitura crítica de mundo pode levar um cidadão a esta estatura. Este papel social

pertence à escola, uma vez que toda liberdade em termos de conteúdo e planejamento nos tem

sido dada. Que os professores aproveitem os furos do sistema e iniciem uma nova história das

Escolas Públicas, onde muitas lideranças serão formadas. Não deixem o fogo da paixão pela vida

e pelo humano se apagar, não se conformem com o que já foi visto e vivido.

Que essa dissertação seja um depoimento que possa auxiliar os que militam na Educação

Pública a articular com mais clareza e confiança as questões da leitura, da informação e da

pesquisa, por uma educação democrática e libertadora em todos os níveis, para que o nosso barco

não esteja à deriva de políticas públicas descomprometidas com o povo nem a serviço de

propagandas políticas populistas, eleitoreiras, corruptas, deseducativas e geradoras de mais

pobreza e violência.

Nosso objetivo foi o de reunir teóricos da leitura que, com seus dados, análises críticas e

reflexões, pudessem dar suporte teórico e validar a nossa prática. Além disso, dividimos

experiências de campo, positivas e negativas, e algumas reflexões críticas sobre o ensino da

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leitura como uma arma para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Pretendemos

contribuir eficazmente para as transformações e as definições dos objetivos educacionais que

darão voz ao saber científico produzido em nosso país e movimentar a construção histórica da

educação direcionada às crianças e aos jovens pobres e miseráveis, atentando para a importância

da participação efetiva das classes populares na busca das soluções, incluindo sua voz e vez, não

como quem concede um favor, mas como quem reconhece a importância desse direito. Só então

estaremos encontrando um caminho para planejar nossas ações educativas, partindo dos

verdadeiros problemas de nossos alunos e de nossa sociedade, não esquecendo nunca de analisar

as competências necessárias do professor para ensinar a leitura e a escrita no mundo

contemporâneo. Cremos que o domínio da leitura e da escrita pode e deve ser eficazmente

ensinado às classes menos favorecidas, e que são fundamentais para o exercício de uma cidadania

plena e consciente. Para nós, seguindo o pensamento de Gramsci, a cidadania deve assegurar a

cada cidadão, pelo menos “abstratamente”, as condições gerais de se tornar um “governante”.

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