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Obra sobre o conceito de esclarecimento
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1
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Rafael Nogueira Furtado
Por uma ontologia do presente: Esclarecimento e crtica em Michel Foucault
MESTRADO EM FILOSOFIA
SO PAULO
2013
2
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Rafael Nogueira Furtado
Por uma ontologia do presente: Esclarecimento e crtica em Michel Foucault
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial
para a obteno do ttulo de MESTRE em Filosofia, sob a
orientao do Prof. Dr. Mrcio Alves da Fonseca.
SO PAULO
2013
3
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................................... 7
1 O GOVERNO DOS HOMENS ................................................................................. 11
1.1 PODER SOBRE A VIDA ........................................................................................... 11
1.2 DO BIOPODER GOVERNAMENTALIDADE ..................................................... 21
1.3 O NASCIMENTO DO LIBERALISMO ..................................................................... 30
2 AUFKLRUNG E CRTICA .................................................................................... 38
2.1 A SADA DA MENORIDADE ................................................................................... 39
2.2 POR UMA FILOSOFIA DO PRESENTE .................................................................. 48
2.3 A ARTE DE NO SER GOVERNADO .................................................................... 60
3 A ONTOLOGIA CRTICA DO PRESENTE ......................................................... 72
3.1 QUESTES DE MTODO ........................................................................................ 72
3.2 TICA E MODERNIDADE ....................................................................................... 78
CONCLUSO ........................................................................................................................ 92
REFERNCIAS .................................................................................................................... 96
4
INTRODUO
A trajetria intelectual de Michel Foucault perpassa o sculo XX, articulando-
se aos problemas filosficos de seu tempo. Seu trabalho caracteriza-se pela inquietao e
questionamento acerca dos eventos histricos e culturais que marcam o seu presente. Dirige-
lhes o olhar de uma suspeita, busca interroga-los, com vistas a determinar o modo como os
homens so por eles afetados. Uma investigao filosfica que mantm estreito vnculo com a
atualidade, na qual se trata de reconhecer linhas de fora que se delineiam.
Foucault, no conjunto de seus escritos, empreender um estudo das formas de
saber e exerccios de poder postos em atividade pelas sociedades europeias. Tece suas
anlises, investigando a maneira como saberes possibilitam e tornam aceitveis certas prticas
de poder, assim como estas ltimas permitem a produo de conhecimentos a respeito dos
sujeitos. O filsofo tomar como recorte temporal de pesquisa o perodo que se estende do
sculo XV aos nossos dias. Posteriormente, ampliar este escopo, voltando-se ao estudo de
textos e prticas referentes antiguidade greco-romana e aos primeiros sculos da era crist.
A modernidade, cujo incio Foucault situa entre os sculos XV e XVIII, teria
sido palco do desenvolvimento de mecanismos diversos de conduo da conduta dos
indivduos. Mecanismos engendrados no intercruzamento de aparatos tcnicos e polticos,
cuja finalidade estaria em dirigir continuamente a existncia dos homens. Por outro lado, a
mesma modernidade se configura, para o pensador francs, como um modo de filosofar, uma
atitude, definidos como crtica permanente do presente. Esta atitude teria na filosofia do
Esclarecimento um de seus momentos de formulao, quando se interrogar o sentido da
atualidade, ou ainda, quem somos ns que dela fazemos parte. De acordo com Foucault, o
Esclarecimento, ou Aufklrung, como foi designado em lngua alem, atribuir dignidade
filosfica ao presente, transformando-o em questo.
Por conseguinte, o fenmeno do Esclarecimento, cujos impactos ressoaro
pelas cincias, poltica, cultura, religio, tornar-se- motivo de debate para as filosofias
subsequentes. No decurso dos sculos XIX e XX, elas no deixariam de problematizar os
efeitos que a forma de pensamento erigida pelas Luzes teria produzido nas sociedades
contemporneas. Instala-se uma desconfiana, demasiado ctica e crtica quanto
denominada racionalidade moderna e aos produtos sociais da razo ocidental. Filsofos como
Adorno, Horkheimer, Weber, Nietzsche, insistiro em apontar o carter opressivo e autoritrio
das civilizaes fundadas sobre o princpio de racionalizao da natureza e do homem. A
filosofia ir ento se esforar para responder a certa pergunta, atravs da qual acredita poder
5
elucidar-se sobre o significado de sua prpria atualidade e histria. Trata-se da questo: o que
so as Luzes?
Por sua vez, esta dissertao procura explicitar a anlise realizada por Foucault
da Aufklrung, evidenciando suas relaes com o conceito por ele elaborado de atitude crtica,
lanando luz sobre o movimento de fundo do pensamento na modernidade.
Referncias de Foucault s Luzes podem ser traadas desde o final da dcada
de 1950, figurando de modo intermitente em escritos e conferncias posteriores. Contudo,
ser a partir do ano de 1978 que esta temtica tornar-se- para ele objeto de maior ateno. O
filsofo lhe dedicar uma detalhada reflexo, declarando existir um vnculo de pertencimento
entre seu pensamento e aquela que seria a tradio filosfica esclarecida. Em estreita
articulao com esta reflexo situa-se o conceito de atitude crtica. Por crtica entende ele a
recusa relativa das formas de assujeitamento produzidas em nossa civilizao, tendo em vista
o exerccio da autonomia e liberdade. Importa, assim, no mbito desta pesquisa, mostrar a
maneira como a discusso pelo filsofo sobre o Esclarecimento comporta em seu interior
questes levantadas pela problemtica crtica. Como consequncia, cumpre neste trabalho
determinar o que Foucault denominou ontologia do presente, isto , um modo de
problematizao da atualidade, norteador de sua atividade como pensador. Esta ontologia
deixaria sobre a trajetria do filsofo sua marca, ao passo que seria por ele objeto de contnua
reformulao.
A consecuo desta pesquisa compreende trs etapas, distribudas,
respectivamente, em trs captulos. No primeiro, estabelece-se o pano de fundo em relao ao
qual Foucault desenvolve seus estudos sobre a Aufklrung e a atitude crtica, a saber, a noo
de governo. A ela o filsofo recorre como chave de inteligibilidade no estudo das relaes de
poder. Governar consistir em conduzir a conduta dos indivduos, agir sobre suas aes,
utilizando-se para tanto de um contingente de saberes, tecnologias, regulamentos
institucionais, instrumentos jurdicos.
A anlise da temtica do governo em Foucault seguir alguns passos.
Primeiramente, identifica-se seu surgimento no interior de discusses sobre o problema do
biopoder. Este se impe ao filsofo, quando do estudo das estratgias de domnio poltico
dirigidas populao de seres humanos afetados por fenmenos biolgicos. Em segundo
lugar, procura-se evidenciar a ampliao do uso feito por Foucault do termo governo e o
aparecimento do conceito de governamentalidade. Por governamentalidade o filsofo
compreender: o poder exercido sobre a populao, tendo por princpio de ao a economia
6
poltica e os dispositivos de segurana; uma modalidade de poder distinta da soberania e das
disciplinas; o processo de transformao das esferas do Estado em mecanismos de governo.
Por fim, reflete-se sobre o tema da economia liberal, reconhecendo no
liberalismo e no neoliberalismo matrizes de prticas de poder predominantes em nossa
sociedade desde o sculo XIX. O pensamento liberal irrompe contra a racionalidade
governamental moderna enquanto suspeita de que sempre se governa em demasia. Trata-se
para ele de estabelecer princpios de mnima interveno e presena estatal. Ao mesmo tempo,
este pensamento, em sua forma neoliberal, conduzir aplicao de critrios de ordem
econmica em domnios diversos da vida social e poltica, dando origem a novos modos de
governamentalizao.
O segundo captulo investiga, de modo especfico, os pontos de contato
existentes entre o fenmeno da Aufklrung e o conceito de atitude crtica. A anlise do
Esclarecimento aqui visada tem por eixo principal a leitura de Foucault do opsculo de Kant,
Was ist Aufklrung? No incio do captulo, empreende-se uma pesquisa bibliogrfica sobre as
referncias feitas pelo filsofo francs Aufklrung, at que esta viesse a ser discutida por ele
a partir do artigo kantiano. Em decorrncia, tal texto ser contemplado, explicitando-se sua
estrutura argumentativa. Aborda-se posteriormente o comentrio de Foucault sobre o
opsculo, tendo como suporte a aula por ele realizada no dia 5 de janeiro de 1983, no Collge
de France, e o texto, What is Enlightenment?, trazido a pblico em 1984, por Paul Rabinow.
Por fim, o conceito de atitude crtica ento discutido, elucidando-se suas circunstncias de
elaborao e suas relaes com questes suscitadas pela problemtica das Luzes.
Destas relaes emerge a noo de ontologia do presente. Definida pelo
filsofo como uma atitude de interrogao sobre a atualidade, ela designa a tentativa de
compreender processos de constituio de subjetividades, vislumbrando a possibilidade de
transformao de prticas historicamente institudas. De tal modo, o terceiro captulo deste
trabalho se ocupa da apresentao desta ontologia, reconhecendo nela o corolrio das
reflexes elaboradas pela pesquisa.
Para isto, inicialmente, discute-se questes de natureza metodolgica,
clarificando temas como: o nexo saber-poder; a noo de acontecimentalizao; a atividade
histrico-filosfica. Em seguida, investiga-se o papel representado pela figura de Baudelaire
nas discusses de Foucault, indicativa daquilo que se denominar thos filosfico da
modernidade. Com tanto, visa-se efetuar o estudo do pensamento do filsofo, situando-o no
interior do debate crtico moderno, fundado sobre o insistente questionamento: qual essa, a
7
nossa atualidade? O que fez de ns, esse nosso presente? Em que medida sua transformao
possvel?
8
1 O GOVERNO DOS HOMENS
A anlise das relaes entre Aufklrung e o conceito de atitude crtica em
Michel Foucault requer determinarmos o contexto terico de sua emergncia, o qual consiste
nas investigaes do filsofo acerca da problemtica do governo. A noo de governo tem sua
formulao no pensamento foucaultiano a partir da dcada de 1970, sendo caracterizada por
recorrentes transformaes em sua acepo. Neste primeiro captulo, trata-se de apresentar as
condies de seu aparecimento, seus pontos de ancoragem e sua importncia para o objeto da
pesquisa.
Na primeira seo do captulo, o tema do governo ser abordado a partir de
seus desdobramentos no interior do conceito de biopoder, no qual ele se configura. Estes
desdobramentos levaro o filsofo a tomar o governo como princpio de inteligibilidade das
relaes de poder. Em seguida, cumpre analisar os estudos de Foucault, dando destaque
elaborao da noo de governamentalidade. Ao final, a ttulo de concluso do captulo,
aborda-se o nascimento da economia poltica e do liberalismo, entendidos como reflexo
crtica sobre a razo governamental predominante desde o sculo XVIII. Est assim composto
o cenrio contra o qual a problemtica da atitude crtica e do Esclarecimento pode ser pensada
na multiplicidade dos traos que a formam.
1.1 PODER SOBRE A VIDA
Em 1978, no curso intitulado Segurana, territrio, populao, Foucault
estabelece como fio condutor de suas anlises a noo de governo, tendo por objetivo
orientar-se no estudo de prticas e saberes, os quais visam gerir populaes, atravs de
tcnicas de segurana1. Este fio condutor ganharia crescente destaque no decorrer das
investigaes do referido ano, precedendo uma srie de subsequentes pesquisas, em que viria
a ocupar lugar privilegiado. Todavia, j em 1975, Foucault se voltava anlise de
procedimentos de regulao dirigidos figura de loucos, crianas, pobres, operrios,
procedimentos elaborados pela Idade Clssica, entendidos como arte de governar2.
1 FOUCAULT, Michel. Segurana, territrio, populao: curso dado no Collge de France (1977-1978). Edio
estabelecida por: Michel Senellart. Direo: Franois Ewald e Allesandro Fontana. Traduo: Eduardo Brando.
So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 117. 2 Idem. Os anormais: curso dado no Collge de France (1974-1975). Edio estabelecida por: Valerio Marchetti
e Antonella Salomoni. Direo: Franois Ewald e Alessandro Fontana. Traduo: Eduardo Brando. So Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 60.
9
Neste momento, para o filsofo, governo compreender trs principais
significaes. A princpio, indica um aparelho jurdico-poltico para o qual se transfere e no
qual se representa a vontade dos indivduos. Em seguida, tal noo aponta para a criao, no
sculo XVIII, de estruturas estatais, as quais possuem uma dimenso eminentemente
institucional. E, por fim, governo refere-se ao desenvolvimento de uma tecnologia de poder
disciplinar, distinta dos mecanismos e sistemas legais. Esta tecnologia fundamenta as
instituies sociais, operando por meio de processos de normalizao3.
Porm, apenas posteriormente o inventrio minucioso das artes de governar se
realizar. Na aula do dia 25 de janeiro de 1978, no Collge de France, Foucault ressalta como,
efetuando uma investigao sobre o aparecimento da populao nas estratgias de poder, ele
se v confrontado com o problema do governo4. Cumprir para o filsofo debruar-se sobre
ele, examinando a maneira pela qual a ideia de governo perpassou a histria das prticas
polticas do Ocidente desde o sculo XV, at sua consolidao e supremacia, no sculo XVIII.
No nos possvel, contudo, explicitar o sentido destas investigaes sem
considerarmos o projeto terico maior no interior do qual elas so tecidas. Como programa
balizador do curso Segurana, territrio, populao, o filsofo oferece um estudo do
biopoder, isto , o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espcie humana,
constitui suas caractersticas biolgicas fundamentais vai poder entrar numa poltica, numa
estratgia poltica, numa estratgia geral do poder.5.
As origens da problemtica do biopoder em Foucault remontam s
conferncias proferidas pelo filsofo no Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado da Guanabara, atual UERJ, em 1974. No contexto destas comunicaes, Foucault,
utilizando-se do neologismo biopoltica6, defende a hiptese, segundo a qual, com o
capitalismo assistimos no privatizao da prtica mdica, mas crescente presena da
medicina nos espaos pblicos. Tomado como objeto de sofisticadas tecnologias polticas, o
corpo torna-se pblico, e o pblico somatocrtico7. Isto significa que vivemos num regime
em que uma das finalidades da interveno estatal o cuidado do corpo, a sade corporal, a
relao entre as doenas e a sade, etc.8. A existncia dos homens posta como alvo de um
amplo processo de medicalizao.
3 Ibid., p. 60.
4 Idem. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 73.
5 Ibid., p. 3.
6 Idem. O nascimento da medicina social. In: MACHADO, Roberto. (Org.). Microfsica do poder. Traduo:
Roberto Machado. 28. ed. So Paulo: Edies Graal, 2010, p. 80. 7 Idem. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve, So Paulo, n. 18, 2010, p. 171.
8 Ibid., p. 171.
10
Conforme ressaltam Martins e Peixoto Junior, esta medicalizao da sociedade
deve-se, em Foucault, a quatro processos que atravessam a histria da medicina ocidental, ao
longo do sculo XVIII9. O primeiro destes processos diz respeito criao de uma medicina
de Estado e de uma polcia mdica. Ambas respondem necessidade do Estado moderno de
agir sobre a populao, gerindo-a de modo a aumentar sua potncia, garantindo e
aperfeioando o funcionamento estatal. Em segundo lugar, tem-se o desenvolvimento da
medicina urbana. Medidas de higienizao e saneamento passam a ser adotadas juntamente a
modificaes operadas no espao das cidades, visando com isto produo de uma populao
sadia10
.
Ademais, Foucault igualmente reconhecer como condio para o
desenvolvimento da medicina social a transformao do hospital em instrumento
teraputico11
. Tal transformao se explica pelo aparelhamento do hospital por mecanismos
disciplinares e pela concepo da doena como fato natural, sobre o qual deve a medicina
agir12
. Finalmente, o quarto processo identificado pelo filsofo neste quadro terico refere-se
associao da medicina a formas de saber como a estatstica. Torna-se assim possvel o
clculo detalhado de dados relativos sade e doena da populao. Deste modo, a
medicina, enquanto poder sobre fenmenos vitais, pode assegurar seu domnio sobre os
sujeitos que busca administrar13
.
A noo de biopoltica, j esboada em 1974, ser redimensionada nas anlises
de Foucault. No curso Em defesa da sociedade, referente aos anos 1975 e 1976, bem como no
primeiro volume de Histria da sexualidade, A vontade de saber, de 1976, o filsofo
investiga a configurao nas sociedades ocidentais de um poder que toma a vida como objeto
de sua regulao, incluindo processos biolgicos no clculo das operaes polticas. A fim de
compreend-lo, o filsofo francs parte de um exame da teoria clssica da soberania. O
soberano aquele cujo poder reside fundamentalmente no direito sobre a vida e a morte de
seus sditos14
. Era-lhe legtimo exp-los ao aniquilamento, ao exigir a defesa incondicional de
sua pessoa ou territrio. Estava igualmente a seu alcance aplicar castigos a infratores,
9 MARTINS, Luiz Alberto Moreira; PEIXOTO JUNIOR, Carlos Augusto. Genealogia do biopoder. Psicologia
Social, Florianpolis, v. 21, n. 2, agosto 2009, p. 158. 10
FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. Op. cit., p. 82. 11
Idem. O nascimento do hospital. In: MACHADO, R. (Org.). Microfsica do poder. Op. cit., p. 99. 12
Ibid., p. 107. 13
Idem. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Op. cit., passim. 14
Idem. Em defesa da sociedade: curso dado no Collge de France (1975-1976). Edio estabelecida por: Mauro
Bertani e Alessandro Fontana. Direo: Franois Ewald e Alessandro Fontana. Traduo: Maria Ermantina
Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 286.
11
punindo-os com sua execuo15
. Entretanto, se o direito do soberano sobre a morte
imediato, seu poder sobre a vida no. Quando age sobre esta porque lhe permitido matar
ou deixar de faz-lo. O efeito do poder soberano sobre a vida s se exerce a partir do
momento em que o soberano pode matar16.
Por sua vez, de acordo com Foucault, desde o sculo XVII v-se surgir uma
nova organizao do poder. Neste sentido, o direito de morte tender a se deslocar ou, pelo
menos, a se apoiar nas exigncias de um poder que gere a vida e a se ordenar em funo dos
seus reclames.17. Se outrora vigorou o princpio segundo o qual era legtimo provocar a
morte ou deixar viver, agora, invertendo-se esta equao, os mecanismos de poder visam
produzir a vida, articulados possibilidade de se deixar morrer. Tem-se, deste modo, a
entrada da vida e dos fenmenos a ela associados, nas estratgias e clculos de poder. No
obstante, o poder que assim se exerce atua no mais em termos de confisco, subtrao,
extorso, tal como se passava no regime de soberania. O poder que age sobre a vida visa sua
contnua e incansvel produo, multiplicao, incitao. Importa menos reprimi-la, anul-la
que regul-la, administr-la18
.
Esta transformao a que a civilizao ocidental assistiu no significou,
contudo, conforme Foucault, o desaparecimento ou neutralizao das guerras e genocdios
que as acompanham. Ao contrrio, declara o filsofo, os confrontos travados ao longo dos
dois ltimos sculos testemunham a favor de crueldades sem precedentes19
. Massacres e
extermnios operam tal como o oposto complementar de um poder que busca aperfeioar
processos vitais. Se antes guerras eram iniciadas a fim de proteger o soberano, na era do
biopoder a morte de uns assegura a existncia de todos20
.
Considera-se que a morte do outro, a morte da raa ruim, da raa inferior (ou
do degenerado, ou do anormal) o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e
mais pura21. Regimes totalitrios como stalinismo e nazi-fascismo teriam, de acordo com o
filsofo, apenas radicalizado mecanismos polticos j presentes nos Estados modernos. Sendo
assim, as atrocidades cometidas por estas ditaduras evidenciariam em grande escala os
elementos imanentes prpria racionalidade poltica ocidental. Tanto os estados totalitrios
quanto os estados democrticos liberais valeram-se e ainda se valem da mesma prerrogativa
15
Ibid., p. 286. 16
Ibid., p. 286. 17
Idem. Histria da sexualidade: a vontade de saber. Vol. 1. Traduo: Jos Augusto Guilhon Albuquerque e
Maria Thereza da Costa Albuquerque. So Paulo: Edies Graal, 2010, p. 148. 18
Ibid., p. 148. 19
Ibid., p. 149. 20
Ibid., p. 150. 21
Idem. Em defesa da sociedade. Op. cit., p. 305.
12
soberana do biopoder para legitimar, em nome do cuidado da vida, seu paradoxal abandono e
exposio morte22. Mata-se, ou deixa-se morrer, para fazer viver: eis o paradoxo desta nova
estratgia.
Ao gerir os processos vitais, o biopoder subdivide-se em dois polos, duas
formas distintas, mas que se complementam. Um destes polos volta-se para o corpo como
mquina23. Esta forma de biopoder visa ao adestramento dos corpos, extorquindo suas
foras, para ento ampli-las. O corpo torna-se to mais til quanto mais docilizado. Desta
maneira, ser possvel subjug-lo ao contingente de tecnologias e operaes de que depende o
funcionamento social. O biopoder atua para multiplicar as foras, intensifica-las, fazendo-as
crescer, ao invs de destru-las. Foucault reencontra aqui as disciplinas, as quais iro compor,
em seu conjunto, uma antomo-poltica do corpo humano.24.
Em Vigiar e Punir, o filsofo havia oferecido uma extensa descrio dos
mecanismos disciplinares que se dedicam a repartir os espaos, ordenar os indivduos,
treinando-os e mantendo-os sob permanente vigilncia25
. Corpos disciplinados e
medicalizados, punidos se preciso, cuja fora produtiva disponvel oferece-se sua utilizao.
Tais disciplinas j haviam se estabelecido no sculo XVII26
. Ao longo do sculo XVIII,
porm, as tcnicas de adestramento dos corpos se articularo a dispositivos que investem
sobre os indivduos, agora contemplados enquanto corpo-espcie27. Foucault denomina
biopoltica o outro polo complementar do biopoder.
A biopoltica tem como seu objeto a populao de homens viventes e os
fenmenos naturais a ela subjacentes. Regula e intervm sobre taxas de natalidade, fluxos de
migrao, sade pblica, longevidade. No um poder individualizante, como as disciplinas,
mas massifica os indivduos em um contingente global, a partir de uma realidade biolgica
fundamental28
. A antomo-poltica do corpo encontra a bio-poltica da populao. Na
articulao formada pelo cruzamento destas duas linhas de fora est a sexualidade. Enquanto
fenmeno poltico e vital, a sexualidade reporta-se tanto ao homem em sua dimenso
corporal, quanto ao homem como membro de uma espcie que se reproduz29
.
22
CANDIOTTO, Cesar. Cuidado da vida e dispositivos de segurana: a atualidade da biopoltica. In: BRANCO,
Guilherme Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Foucault: filosofia & poltica. Belo Horizonte: Autntica
Editora, 2011, p. 90. 23
FOUCAULT, M. Histria da sexualidade: a vontade de saber. Op. cit., p. 151. 24
Ibid., p. 151, grifo do autor. 25
Idem. Vigiar e punir: nascimento da priso. Traduo: Raquel Ramalhete. 26. ed. Petrpolis: Vozes, 2002,
passim. 26
Ibid., passim. 27
Idem. Histria da sexualidade: a vontade de saber. Op. cit., p. 151. 28
Ibid., p. 152. 29
Ibid., p. 152.
13
Nas palavras de Foucault, o homem, durante milnios permaneceu o que era
para Aristteles: um animal vivo e, alm disso, capaz de existncia poltica; o homem
moderno um animal, em cuja poltica, sua vida de ser vivo est em questo30. Objeto
privilegiado do biopoder, a sexualidade, ao longo do sculo XIX, ser tema de uma profcua
produo de discursos. Estes se dispem a enunci-la naquilo que seria sua natureza esquiva,
fugidia, perscrutando sua presena nos recnditos das condutas, em sonhos, na etiologia das
loucuras, na vida das crianas. A sociedade do biopoder uma sociedade do sexo, o qual
tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o que permite analis-la e o que
torna possvel constitu-la31. Se o poder se ocupa da sexualidade menos para reprimi-la que
para suscit-la. Atravs de infinita verbalizao, permanente fazer falar, o sexo controlado
mediante sua insero no discurso.
Passados dois anos da publicao do primeiro volume de Histria da
sexualidade, Foucault retornar problemtica do biopoder, ocasio do curso Segurana,
territrio, populao. Todavia, ele situa esta problemtica agora sob a perspectiva dos
dispositivos modernos de segurana. Tais dispositivos so inicialmente apresentados pelo
filsofo a partir de dois exemplos: a punio do roubo e o tratamento dado lepra, peste e
varola32
.
No primeiro exemplo, supondo uma lei penal simples, no matars, no
roubars33, Foucault traar distines entre, de um lado, mecanismos jurdicos e
disciplinares, e de outro, mecanismos de segurana. No tocante aos mecanismos jurdicos,
estes se inserem em um sistema legal, o qual determina medidas punitivas ao infrator da lei,
operando conforme o binmio permisso/proibio. Decretos, regulamentos, medidas
legislativas compe este sistema que predominar durante a Idade Mdia, estendendo-se at
os sculos XVII e XVIII. A ele um segundo modelo se sobrepe, sem, contudo, exclu-lo34
.
As leis penais so agora articuladas a mecanismos disciplinares de vigilncia e correo. O
sistema formado pelo conjunto das disciplinas visa esquadrinhar o infrator, na tentativa de
predizer seu crime. Uma vez desrespeitada a lei, agem sobre ele medidas corretivas que lhe
impe exerccios, trabalhos, punies em geral, a fim de transform-lo, moraliz-lo. Os
mecanismos disciplinares se estabelecem a partir do sculo XVIII35
.
30
Ibid., p. 156. 31
Ibid., p. 159. 32
Idem. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 6-14. 33
Ibid., p. 6. 34
Ibid., p. 7. 35
Ibid., p. 9.
14
Por fim, nossa contemporaneidade v configurar-se um terceiro modelo, uma
terceira forma de organizar o funcionamento social, a partir do problema da criminalidade: os
mecanismos de segurana. De acordo com eles, o roubo ser pensado em sua relao com
eventos e fenmenos passveis de ocorrerem, introduzidos em um clculo sobre o custo de sua
gesto. So questes concernentes aos mecanismos de segurana as taxas de criminalidade; a
probabilidade de ocorrncia do crime conforme camadas sociais e regies; a relao do crime
com as guerras, a fome; o conhecimento sobre qual forma de represso a mais vantajosa,
tendo em vista seu custo para a sociedade e seus efeitos sobre a reincidncia das infraes36
.
Eis uma equao, para a qual importa menos eliminar o crime que geri-lo dentro dos limites
de sua aceitabilidade37
. Vale ainda ressaltar, no h excluso necessria entre sistemas
jurdicos, disciplinas e tcnicas de segurana. Tem-se, porm, uma diferenciao no uso e
nfase dada a estes dispositivos em determinados perodos histricos.
Em uma srie posterior de exemplos, Foucault analisar os leprosrios da Idade
Mdia, o tratamento da peste, e o controle da epidemia de varola. Mediante instrumentos
jurdicos, como leis e regulamentos, os leprosos sero excludos, segregados por uma lgica
binria, semelhante quela subjacente ao enfrentamento do crime. Quanto ao tratamento dado
peste, porm, sero utilizadas medidas de diviso dos espaos; distribuio dos sujeitos em
razo desta diviso; controle detalhado de suas atividades, submetendo os indivduos a um
processo de inspeo e vigilncia38
.
Por sua vez, o problema da varola redesenha este quadro de poder. Mais
importante que docilizar os sujeitos, para que estes aceitem as disciplinas e vigilncias, trata-
se de produzir um conhecimento sobre os fenmenos naturais que os afetam, de modo a se
obter um levantamento estatstico dos dados relativos a certa doena. Pode-se assim, por meio
de tcnicas de segurana, agir sobre a enfermidade, control-la, tendo por parmetro os
limites de normalidade. A sociedade contempornea encontra-se de tal modo atravessada por
estas tcnicas que Foucault ser levado a indagar: poderamos dizer que em nossas
sociedades a economia geral de poder est se tornando da ordem da segurana?39.
Ao refletir sobre os mecanismos de segurana, Foucault descreve, portanto,
trs aspectos gerais que lhes seriam caractersticos. Primeiramente, o filsofo analisa a
maneira como o problema do espao nas cidades foi tratado diferentemente pelo poder
soberano, disciplinar e finalmente, do ponto de vista da segurana.
36
Ibid., p. 7. 37
Ibid., p. 8. 38
Ibid., p. 14. 39
Ibid., p. 15.
15
Os mecanismos de segurana reconhecem na cidade um objeto em contnuo
desenvolvimento e mobilidade. Ela requer planejamento, de modo que os fenmenos naturais
que a afetam passem a ser regulados. Estes fenmenos so entendidos como elementos
passveis de transformao e variabilidade. Correspondem higiene do local, seu arejamento,
s mercadorias que circulam pelas ruas, recebidas ou enviadas pelas estradas, aos perigos
oferecidos por ladres, assassinos, delinquentes para a integridade dos bens pblicos40
.
preciso administrar estes elementos, utilizando-se de clculos que
determinem seu funcionamento, expresso em termos de probabilidade. Desta forma, para as
tcnicas de segurana, trata-se no apenas de distribuir, vigiar e adestrar os indivduos no
interior de espaos determinados (como por exemplo, no interior de instituies como a
priso, o hospital, a fbrica), mas trata-se de dar conta de fenmenos mais amplos da vida
biolgica.41.
Neste momento, coloca-se como alvo de interveno das tecnologias de
segurana o meio. Esta noo designa a multiplicidade de variveis que perpassam a cidade e
a vida que nela se desenrola, tais como seu espao geogrfico, suas construes, eventuais
acidentes naturais42
. Por conseguinte, ressalta Foucault, o meio articula indivduos no
enquanto sujeitos de direito ou organismos individuais, mas enquanto populao43
. A
concepo de populao emerge, portanto, como conceito estratgico, o qual posteriormente
orientar as anlises do filsofo sobre o tema do governo. sobre ela, enquanto
multiplicidade de indivduos atravessados por uma realidade biolgica, que agem as tcnicas
de segurana.
Um segundo aspecto geral dos mecanismos de segurana esboado por
Foucault, tendo em vista a relao do governo com o acontecimento.44. Tem-se como pano
de fundo desta relao a escassez alimentar nos sculos XVII e XVIII. O que o filsofo
procura mostrar atravs de sua anlise a maneira como tcnicas de segurana se sobrepem
a um sistema jurdico-disciplinar, na tentativa de solucionar o problema da oferta de cereais.
Uma sobreposio reveladora da nova racionalidade governamental que se faz sentir. Pode-se
notar, deste modo, como a temtica do governo uma vez mais lateralmente introduzida nas
40
Ibid., p. 23-27. 41
FONSECA, Mrcio Alves da. Para pensar o pblico e o privado: Foucault e o tema das artes de governar. In:
RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autntica Editora,
2006, p. 157. 42
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 27. 43
Ibid., p. 28. 44
Ibid., p. 40.
16
reflexes de Foucault, at ser definitivamente trazida ao centro de suas preocupaes. Um
deslocamento do qual seus escritos posteriores sero testemunha.
Pois bem. Ao se pretender combater a escassez de alimentos, toma-se na
Frana dos sculos XVII e XVIII um conjunto de medidas jurdicas e disciplinares em que se
procura conter o preo dos gros, limitar sua exportao, controlar seu comrcio, pressionar
os indivduos para que produzam, vigiar a prtica de estocagem45
. Como se poderia supor,
estas medidas fracassaro em evitar as recorrentes crises no mercado de cereais. No entanto,
entrar em cena uma nova concepo de economia, representada especialmente pelo
pensamento dos fisiocratas. O problema da escassez dos alimentos passa a ser situado sob a
perspectiva do livre comrcio e da livre circulao dos gros. Privilegia-se, na gesto da
produo e distribuio do cereal, aquilo que seria sua realidade natural. Natureza aceita,
reconhecida, a qual no se tentar coibir, reprimir, mas cujas flutuaes deve-se deixar agir
para ento regular46
.
Reportando-se comparao com os mecanismos disciplinares, Foucault
destaca algumas caractersticas das tcnicas de segurana. Enquanto as disciplinas so
centrpetas, isolando o espao para em seu interior o poder operar de modo pleno, a
segurana difusa, incorpora constantemente novos elementos, ampliando indefinidamente
seu campo de atuao47
. Ademais, se para as disciplinas, que tudo busca controlar, o princpio
fisiocrtico do laissez-faire bloqueia sua ao, para a segurana este mesmo princpio
condio de seu funcionamento. Deixar fazer, deixar que os processos se desenrolem em sua
naturalidade, de maneira a intensific-los, combin-los.
As disciplinas, como tambm os mecanismos jurdicos, determinam proibies
e obrigaes. Ao contrrio, mecanismos de segurana dirigem-se realidade, procurando
compreend-la em seu funcionamento prprio, fazendo os elementos da realidade atuarem
uns em relao aos outros48. Eis o ponto em que se apoiar o pensamento liberal. Ou seja,
para o liberalismo necessrio deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas
andarem, de tal forma que a realidade se desenvolva e v, siga seu caminho, de acordo com
as leis, os princpios e os mecanismos que so os da realidade mesma.49. A liberdade como
eixo poltico de uma racionalidade de governo que se anuncia o elemento correlato destas
tecnologias de segurana.
45
Ibid., p. 42-43. 46
Ibid., p. 45. 47
Ibid., p. 58-59. 48
Ibid., p. 62. 49
Ibid., p. 62-63.
17
Por fim, Foucault apresenta um terceiro aspecto inerente aos mecanismos de
segurana, ainda em sua oposio quanto s disciplinas. Cumpre ao filsofo estabelecer aqui
uma distino entre normao e normalizao. Os mecanismos disciplinares ao adotarem
medidas de normao, tm por referncia modelos previamente dados e aos quais procuram
conformar os indivduos. A norma aqui o elemento primeiro e fundamental a que os homens
devem se submeter.50
Por sua vez, no tocante s tecnologias de segurana, importa identificar
padres de normalidade na realidade, aos quais se buscar adequar diferentes populaes.
Neste sentido, o normal que primeiro, e a norma se deduz dele, ou a partir deste estudo
de normalidades que a norma se fixa51. O controle da varola se torna emblemtico para
Foucault ao pensar como esta normalizao se processa.
Ao invs de proceder pela negao da doena, segregando-a, o tratamento da
varola vale-se de sua natureza, o que consiste em produzir no enfermo o quadro mesmo da
varola. Indivduos doentes no sero proibidos de manterem contato entre si ou com aqueles
saudveis, como determinaria o modelo disciplinar52
. As prticas de vacinao tomam a
populao em seu conjunto, no operando divises entre doentes e no-doentes. Visam extrair
da anlise desta populao um quadro probabilstico geral das taxas de mortalidade, contagio,
padres de transmisso. Chega-se assim a uma curva grfica do que pode ser considerado
normal para determinada doena. A partir desta curva de normalidade se tentar alinhar as
curvas desviantes que se produzem. Deste modo, a operao de normalizao vai consistir
em fazer essas diferentes distribuies de normalidade funcionarem umas em relao s
outras53. Com isto, pode-se observar que as tcnicas de segurana, evitando estabelecer
proibies, separaes, represso dos fenmenos, elas os combinam entre si, mitigando-os ou
incitando-os.
Uma vez mais delimita-se a populao como objeto no centro das operaes
estratgicas de poder, a partir do sculo XVIII. Todavia, esta noo sofrer transformaes
antes que adquira seu sentido contemporneo. Inicialmente, at o limiar do sculo XVII, seu
sentido possuia conotaes unicamente negativas, referindo-se ao despovoamento de um
determinado territrio. Em seguida, o mercantilismo e o cameralismo, ao tratarem da
populao, iro compreend-la como conjunto de sujeitos de direitos, afetados por
determinados processos econmicos. Entretanto, com os fisiocratas esta concepo comea a
modificar-se.
50
Ibid., p. 74-75. 51
Ibid., p. 83. 52
Ibid., p. 83. 53
Ibid., p. 83.
18
A populao ser identificada a uma naturalidade penetrvel54, estando em
ntima relao com seu entorno geogrfico, econmico e natural. Sobre ela, tcnicas e
procedimentos vo agir, com vistas a govern-la. Tem-se, portanto, um conjunto de
elementos que, de um lado, se inserem no regime geral dos seres vivos e, de outro,
apresentam uma superfcie de contato para transformaes autoritrias, mas refletidas e
calculadas.55.
Em decorrncia, deparamo-nos com uma problemtica semelhante quela
presente nas anlises anteriores de Foucault a respeito do biopoder. Como se pde observar, o
biopoder consistia em mecanismos reguladores dos processos vitais, investindo sobre o corpo-
espcie humano na forma de uma biopoltica. O que as investigaes do filsofo agora nos
revela a ampliao de suas pesquisas, incluindo nos estudos precedentes uma reflexo
detalhada sobre tcnicas de segurana, responsveis por gerirem certa populao. Em
decorrncia, a esta gesto do homem-espcie Foucault denomina governo.56. como
forma de administrar a massa de indivduos viventes que as prticas de governo vo se
constituir em nossa sociedade. Assim, a reflexo de Foucault desloca-se do eixo formado
pelos elementos segurana-territrio-populao para aquele formado por segurana-
populao-governo57.
1.2 DO BIOPODER GOVERNAMENTALIDADE
O que a anlise precedente revelou foi o modo como, do interior da noo de
biopoder, emerge o conceito de governo, em associao a tecnologias de segurana
reguladoras da populao. Populao, como visto, consistente em um conjunto de indivduos,
cuja condio de ser vivo colocada em questo por mecanismos de poder e prticas
discursivas. Compreendamos, portanto, o sentido assumido neste momento pelo tema do
governo, para estabelecermos o cenrio contra o qual se desenvolver a problemtica da
Aufklrung, em suas relaes com a crtica.
Esclarece-nos Ramos do , o estudo do governo em Foucault se presta
investigao de uma mentalidade poltica inteiramente nova, entendida como forma de
54
Ibid., p. 94. 55
Ibid., p. 58. 56
CANDIOTTO, CESAR. Foucault e a crtica da verdade. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2010, p. 96. 57
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 117.
19
atingir fins polticos, mas que descrita pela ao calculada sobre as foras, as atividades e as
relaes que constituem o conjunto da populao58.
Desde o sculo XVI, a Europa ser palco do desenvolvimento de uma vasta
literatura contendo conselhos acerca de como o Prncipe deve exercer seu poder, a partir
daquilo que se passa a denominar artes de governar59. Como governar torna-se preocupao
central das reflexes polticas deste perodo. Em realidade, na Antiguidade clssica, e mesmo
durante a Idade Mdia, tratados foram elaborados sobre a relao do soberano com seu
territrio. No entanto, o que se apresenta a partir do sculo XVI a anlise detalhada dos
modos de governar os homens, a famlia, uma casa, as crianas, ou ainda, de governar uma
provncia, uma instituio, um Estado, como governar a si mesmo60
. So questes que
engendram um amplo espectro de tecnologias de poder e que procuram responder sobre
como se governar, como ser governado, como governar os outros, por quem devemos aceitar
ser governados61.
A fim de esboar as caractersticas do governo, enquanto modalidade poltica
que se anuncia, Foucault traa comparaes entre duas obras ilustrativas: O Prncipe de
Maquiavel e O espelho poltico de Guillaume de La Perrire. Por um lado, as reflexes de
Maquiavel circunscrevem-se no mbito da soberania. Isto significa que o poder do Prncipe
por ele entendido como domnio e manuteno de seu territrio. No obstante, o soberano
ocupa uma posio de exterioridade em relao a seu principado62
. Um vnculo frgil e
passvel de rompimento os une, devendo ser objeto de contnua observncia e proteo. Por
sua vez, o trabalho de La Perrire oferece-nos uma precisa descrio sobre o que consiste
governar. O autor de O espelho poltico define o governo pela correta disposio das coisas,
das quais algum se encarrega para conduzi-las a um fim adequado63.
Cabe entender por coisas, os homens em suas relaes com aquilo que lhes
necessrio para sua sobrevivncia, como o aspecto geogrfico do local onde habitam, suas
condies climticas, os meios de subsistncia, bem como os hbitos e costumes que lhes so
caractersticos64
. Por outro lado, so encarregados da prtica do governo no somente o
58
RAMOS DO , Jorge. Notas sobre Foucault e a governamentalidade. In: SOUZA, Pedro; FALCO, Lus
Felipe. (Org.). Michel Foucault: perspectivas. Rio de Janeiro: Achiam, 2005, p. 15-16. 59
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 118. 60
Ibid., p. 119. 61
Ibid., p. 119. 62
Ibid., p. 122. 63
Ibid., p. 127. 64
Ibid., p. 128.
20
Prncipe, mas tambm magistrados, juzes, aqueles que no apenas governaram o Estado, mas
a casa, a famlia, uma ordem religiosa65
.
Deste modo, evidencia-se o sentido geral que ir balizar as anlises de Foucault
sobre o governo e que distinguir este ltimo de um poder exercido por um soberano sobre o
territrio. Trata-se de localizar na modernidade nascente, no o processo de fortalecimento ou
unificao do poder poltico na figura do Prncipe, mas sim o desenvolvimento de tcnicas
de poder orientadas para os indivduos, destinadas a govern-los de maneira contnua e
permanente66. Tcnicas de governo que se configuraro no encontro de dois processos que
marcam o sculo XVI. Primeiramente, o aparecimento dos grandes Estados coloniais
administrativos. Em segundo lugar, a Reforma religiosa, em cujo interior se problematiza a
forma como deve ser conduzida a salvao dos fieis. Ambos os processos instalam uma
problemtica geral do governo67.
Ora, se governar , portanto, dispor das coisas de modo a conduzi-las na
direo de fins determinados, caber a Foucault interrogar-se sobre que fins so estes, aos
quais a prtica do governo visa. O poder soberano opera com o objetivo de promover o bem
pblico e a salvao de todos. Por este bem pblico entende-se o cumprimento das leis, as
quais so, em ltima instncia, as leis do prprio soberano. Logo, a finalidade da soberania
acaba por ser a manuteno de seu prprio poder68
. J o governo, segundo La Perrire, tem
em vista prover os elementos dirigidos de seu fim e satisfao adequada. Para que isto se
efetue, ou seja, para satisfazer as coisas em sua finalidade prpria, sero utilizadas menos leis
que tticas e estratgias69
. Enquanto os mecanismos legais lanam sobre a sociedade um olhar
uniformizante, requer-se, com as tticas entender os fenmenos a parir do conjunto das
prticas, quer dizer, em todo o tipo de relaes que vo estabelecendo uma maneira de fazer
orientada para objetivos comuns e regulada por uma reflexo contnua sobre resultados
obtidos70.
Porm, se o sculo XVI viu nascer o governo como nova matriz de poder, sua
instaurao definitiva em nossa sociedade s ser possvel com a chegada do sculo XVIII.
Isto se deve, conforme Foucault, a um bloqueio das artes de governar, produzido por duas
65
Idem. A governamentalidade. In: MACHADO, R. (Org.). Microfsica do poder. Op. cit., p. 280. 66
PRADO FILHO, Kleber. Michel Foucault: uma histria da governamentalidade. Rio de Janeiro: Achiam,
2006, p. 57. 67
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 119. 68
Ibid., p. 131. 69
Ibid., p. 132. 70
RAMOS DO , J. Notas sobre Foucault e a governamentalidade. Op. cit., p. 20.
21
razes71
. A primeira delas, de natureza histrica, refere-se aos inmeros conflitos militares
que atravessaram os sculos XVI e XVII. As artes de governar apenas se afirmaro durante o
perodo posterior de expanso econmica e relativa paz poltica. J a segunda razo consiste
nas estruturas institucionais e mentais72 destes dois sculos, ainda associadas ao modelo de
soberania. No obstante, o poder como governo emergir no sculo XVIII, quando superadas
estas estruturas, impulsionado por processos como expanso demogrfica, abundncia da
moeda, prosperidade agrcola. Questes relacionadas ao problema, portanto, da populao, e
associadas a um campo nascente do conhecimento, a saber, a economia poltica. , pois,
graas ao isolamento desse nvel de realidade que se chama economia, que o problema do
governo pode enfim ser pensado, refletido e calculado fora do marco jurdico da soberania73.
Neste sentido, constatamos, junto a Prado Filho, que as populaes so
colocadas como objetivo final do governo, que passa a ser melhorar a sua sorte, aumentar sua
riqueza e sua potncia, aumentar sua sade e a durao de sua vida74. A economia consistir,
ento, no conjunto de conhecimentos que permitir executar este objetivo, atravs do
entendimento da relao entre a populao e os fenmenos que a afetam, como o territrio, a
riqueza, o trabalho. Assim, tendo o problema do governo se colocado no centro das reflexes
de Foucault, o filsofo considerar necessrio traar a histria do que denomina Por
governamentalidade. Por este conceito, ele compreende: 1) clculos, reflexes, instituies,
procedimentos, os quais exercem uma forma de poder sobre a populao, o qual tem por
princpio a economia poltica e os mecanismos de segurana; 2) o processo empreendido no
Ocidente cujo efeito a estruturao do poder como governo, em detrimento do modelo de
soberania e disciplinar; 3) o gesto que torna as esferas do Estado progressivamente
governamentalizadas75.
Trata-se, atravs da histria da governamentalidade, de realizar um estudo
sobre as prticas de governo implementadas em nossas sociedades, evidenciando rupturas e
deslocamentos, permitindo uma compreenso das operaes contemporneas do poder. A
consequncia imediata de um projeto como este ser o lugar atribudo por Foucault ao papel
do Estado, em suas investigaes. Ao formular a noo de governamentalidade, no interior de
71
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 134. 72
Ibid., p. 135. 73
Ibid., p. 138. 74
PRADO FILHO, K. Michel Foucault: uma histria da governamentalidade. Op. cit., p. 55. 75
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 143-144.
22
seus estudos sobre o governo, Foucault visa encontrar um instrumento heurstico76 que lhe
permita analisar modos de controle da conduta dos homens, mediante o aparelho estatal,
todavia, recusando a referncia figura de um Estado unitrio, concentrado e autnomo.
No se trata, no pensamento poltico de Foucault, de tomar o Estado como
entidade j dada, institucionalizada, cuja posio na distribuio dos poderes atuaria como
autoridade mtica a ser temida, odiada, atacada. Ao contrrio, o Estado deve ser situado em
uma rede de poderes que o permeia e a partir da qual ele se estrutura. necessrio realizar
uma passagem ao exterior77, em direo s mltiplas relaes de fora nas quais o Estado
moderno se desenvolve. Os poderes se exercem por meio de tcnicas difusas e discretas de
governamento dos indivduos em diferentes domnios78, e ser em contraposio a essas
mesmas tcnicas que posteriormente o problema da crtica e da Aufklrung iro insurgir em
Foucault.
Ao elucidar-se sobre as modernas prticas de governo, o filsofo ento analisa
o uso do termo, percorrendo documentos dos sculos XIV, XV e XVI79
. Constata alguns
sentidos que lhe foram usualmente atribudos. Governar ir referir-se ao gesto de guiar, dirigir
algum ao longo de um caminho. Designar igualmente o ato de prover o sustento material de
um indivduo, ou de sustentar-se a si mesmo. Em sntese, como forma semntica comum s
muitas acepes passveis de serem encontradas, governar consistir em conduzir pessoas.
A partir destas definies, observa-se que nunca se governa um Estado, nunca se governa um
territrio, nunca se governa uma estrutura poltica. Quem governado so sempre as pessoas,
so homens, so indivduos ou coletividades80.
Governar , portanto, guiar indivduos, conduzir condutas, encarregando-se no
de territrios, mas dos homens que os habitam. Foucault apropria-se desta concepo,
reconhecendo nela uma chave de inteligibilidade privilegiada para a compreenso das prticas
de poder prprias modernidade. O governo possui um duplo aspecto: age tanto no nvel
individual quanto em termos globais. De acordo com o filsofo, nossa civilizao
atravessada por dispositivos responsveis tanto por individualizar, produzir subjetividades,
76
DUARTE, Andr. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e do Estado Moderno. In:
BRANCO, Guilherme Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Foucault: filosofia & poltica. Belo Horizonte:
Autntica Editora, 2011, p. 55. 77
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 158. 78
DUARTE, A. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e do Estado Moderno. Op. cit., p.
54. 79
FOUCAULT, M. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 162. 80
Ibid., p. 164.
23
quanto por totalizar os sujeitos na forma de populaes reguladas81
. As sociedades ocidentais
foram marcadas por uma centralizao do poder poltico, de cuja administrao burocrtica os
Estados modernos so exemplos. Porm, estabeleceu-se igualmente nestas sociedades tcnicas
de poder voltadas para os indivduos e destinadas a dirigi-los de maneira contnua e
permanente82.
Deparamo-nos aqui com um quadro conceitual semelhante ao abordado no
contexto das anlises de Foucault sobre o biopoder. A antomo-poltica do corpo e a
biopoltica das populaes sero agora situadas sob o amplo espectro das prticas de
governamentalidade, conforme o estudo desta ltima ganha relevo em seu pensamento. Pode-
se dizer que com o sculo XVI, entramos na era das condutas, na era das direes, na era dos
governos.83. Com isto, dois problemas se colocaro reflexo poltica. Para o primeiro,
importar saber a partir de qual forma de racionalidade deve-se governar. Lembremos que
ainda nos encontramos historicamente em um perodo dominado pelo modelo de soberania.
Em seguida, tratar-se- de determinar de quais objetos este governo ir se ocupar.
O que caracteriza a racionalidade governamental, segundo Foucault, o fato de
se apoiar em princpios que no so as leis divinas ou uma ordem teleolgica imanente ao
mundo84
. A razo de governo, tal como emerge no final do sculo XVI, uma razo de
Estado. Conforme esta, trata-se de definir modos de gerir um Estado a partir de princpios
prprios, distintos daqueles por meio dos quais um pai governa sua famlia, um chefe, a sua
comunidade, ou Deus, o mundo85
. O que est em jogo nas anlises de Foucault mostrar o
processo de aparecimento do Estado como produto de uma governamentalizao da
sociedade, de um atravessamento massivo desta por tecnologias de governo.
A fim de determinar o que se entender, no incio do sculo XVII, por razo de
Estado, Foucault volta-se a trs autores emblemticos: Botero, Palazzo e Chemnitz. Encontra
neles alguns elementos comuns oferecidos como definio desta noo. Para estes pensadores,
a razo de Estado que permite conhecer a maneira pela qual o Estado poder expandir-se,
fortalecer-se e perdurar, atravs de meios que garantam sua felicidade e prosperidade86
.
Na extensa literatura produzida neste momento sobre o tema, Foucault
encontra algumas consideraes gerais. A interrogao acerca de qual deveria ser a
81
Idem. Omnes et singulatim: uma crtica da razo poltica. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Ditos e escritos: estratgia, poder-saber. Vol. 4. 2. ed. Traduo: Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 2010, p. 385. 82
Ibid., p. 357. 83
Ibid., p. 309. 84
Ibid., p.. 317-318. 85
Ibid., p. 317-318. 86
Idem. Omnes et singulatim: uma crtica da razo poltica. Op. cit., p. 373-374.
24
racionalidade prpria s prticas de governo, encontrara uma possvel soluo. Esta
racionalidade deve apoiar-se em conhecimentos e reflexes racionais, os quais tem por objeto
o funcionamento do Estado87
. O que legitima a razo de Estado no so sistemas legalistas,
em que prevalece a noo de justia e o respeito a leis divinas, humanas e naturais. Como
ressalta Foucault, se em So Toms de Aquino, o rei dirige a cidade de forma anloga quela
que Deus dirige o mundo, para a razo de Estado o governo da sociedade deve pautar-se em
regras prticas, visando s necessidades do prprio Estado88
.
Em decorrncia, requer-se de um governo o desenvolvimento de um saber,
um saber concreto, preciso e medido89. A estatstica vai oferecer os instrumentos tericos
necessrios racionalidade governamental. Entende-se por ela, o conhecimento do Estado,
conhecimento das foras e dos recursos que caracterizam um Estado num momento dado90.
Cabe a este saber computar dados referentes populao, como taxas de natalidade,
mortalidade, mas tambm avaliar todo um espectro de riquezas, tais como recursos hdricos e
minerais, mas tambm os impostos arrecadados, a moeda em circulao91
. Governar e
conhecer o Estado consistem em duas operaes estreitamente articuladas.
O fortalecimento do Estado decorre da necessidade de situ-lo em um cenrio
de competividade, no qual ele se confronta com outras unidades estatais. O Estado j no
busca mais ascender condio de Imprio universal, mas a uma posio dominante em
relao a seus concorrentes, devendo estabelecer estratgias para que venha a prevalecer sobre
eles92
. Com isto, um elemento figurar nas reflexes e clculos polticos. Trata-se do conceito
de fora. O governo deve ser tal que aumente as foras do Estado, com vistas a torn-lo apto
concorrncia interestatal93
. Emerge assim, no cenrio poltico, um embate dinmico, cujo
efeito ser a criao de duas tecnologias de governo: um dispositivo diplomtico-militar e o
dispositivo da polcia.
funo deste primeiro dispositivo regular a expanso dos Estados, de modo
que o crescimento de um no afete o outro, ao ponto de acarretar-lhe seu desaparecimento94
.
Sendo a Europa formada por uma grande diversidade de Estados, preciso dot-la de um
mecanismo que lhe assegure algum equilbrio interno. Este mecanismo tem como
preocupao a manuteno da denominada balana europeia. Conforme tal balana, medidas
87
Ibid., p. 374. 88
Ibid., p. 374-375. 89
Ibid., p. 376. 90
Idem. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 365. 91
Ibid., p. 365. 92
Ibid., p. 393. 93
Ibid., p. 396. 94
Ibid., p. 398-410.
25
polticas devem ser tomadas, de maneira a impedir que Estados mais fortes imponham suas
leis a outros Estados, bem como zelar para que eles no se tornem potncias capazes de
aniquilar seus concorrentes95
.
Porm, ao segundo dispositivo que Foucault detm-se mais demoradamente.
Por polcia, o sculo XVII entender no uma instituio especfica no interior da sociedade,
mas o conjunto dos meios pelos quais possvel fazer as foras do Estado crescerem,
mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado.96. Analisando o trabalho de um autor
emblemtico, Turquet de Mayerne, Foucault apresenta, grosso modo, aqueles que seriam os
princpios gerais que regem a prtica da polcia. Neste sentido, compete a ela todas as
atividades humanas em uma dada sociedade. Importa polcia ocupar-se dos homens em suas
relaes com o ambiente natural em que vivem, com a cidade, com seu trabalho, em suas
relaes de troca e produo. Em ltima anlise, espera-se assim ampliar as foras do Estado
em que estes sujeitos residem97
.
Posteriormente, De Lamare, no sculo XVIII, efetuar uma compilao sobre
os principais itens a serem observados pela polcia. Esto entre eles: a religio; a moralidade;
a sade; os meios de subsistncia; as construes urbanas; a segurana das cidades; as artes;
as cincias; o comrcio; as fbricas; os trabalhadores; os pobres. Em sntese, a polcia vela
por tudo que diz respeito felicidade dos homens98. Neste perodo, o problema do governo
atravessa a Europa de tal modo que veremos nascer, ao final do sculo XVII, no ensino
universitrio alemo, a Polizeiwissenschaft, isto , uma cincia da polcia99
.
Debruando-se sobre este problema, von Justi deixa entrever em suas anlises
aquele que seria o paradoxo subjacente ao trabalho da polcia. Se por um lado ela faz ampliar
a potncia do Estado, por outro, deve zelar pela vida de cada indivduo, garantindo sua
felicidade. tarefa da polcia melhorar a vida dos homens em sua individualidade, mas levar,
como consequncia, ao crescimento do Estado como um todo. Ou seja, consolidar e
aumentar a fora do Estado, fazer bom uso das foras do Estado, proporcionar a felicidade dos
sditos, essa articulao que especfica da polcia100.
Todavia, os conjuntos tecnolgicos da polcia e da razo de Estado sofrero
abalos ao longo do sculo XVIII. Abalos provocados, em especial, pelo pensamento
95
Ibid., p. 398-410. 96
Ibid., p. 421. 97
Ibid., p. 423. 98
Idem. Omnes et singulatim: uma crtica da razo poltica. Op. cit., p. 380. 99
Ibid., p. 380. 100
Idem. Segurana, territrio, populao. Op. cit., p. 440.
26
econmico nascente. Problemas referentes economia, como a antes mencionada crise dos
cereais, confrontam o debate poltico com um novo programa de governo101
.
Por um lado, como alternativa necessidade de estrito controle, vislumbra-se
confiar os processos econmicos regulao natural e espontnea do mercado102
. Trata-se
agora de estabelecer certa liberdade de comrcio e concorrncia, de difcil acomodao no
tradicional dispositivo da polcia. Por outro lado, a razo de Estado ser atravessada por
algumas transformaes importantes. A princpio, a partir do sculo XVIII, configura-se
como elemento a se opor ao Estado a noo de sociedade civil. Esta sociedade irredutvel
ao Estado, aparecendo como entidade natural, composta pelas relaes espontaneamente
formadas por homens que vivem, se comunicam e trabalham. Em sua naturalidade, ela
contrasta a aparelhagem estatal artificial, no cessando de impor-se s anlises econmicas103
.
Ademais, afirma-se, no mbito do governo, a necessidade de um conhecimento racional e
cientfico, o qual consistir na economia poltica. Ainda que utilizado pela prtica
governamental, este conhecimento exterior a ela, dirigindo-lhe um olhar de permanente
suspeita104
.
Um terceiro aspecto catalizador de alteraes na razo de Estado consiste na
emergncia da populao, enquanto objeto natural105
. Como antes pudemos constatar, a
populao denota no um conjunto de sditos, sujeitos de direitos, mas de homens afetados
por fenmenos vitais, passveis de manipulao. E aqui retornamos s discusses iniciais
deste primeiro captulo. Ou seja, entendida a populao de tal modo, o papel do governo ser
respeitar sua realidade biolgica fundamental, procurando regul-la, atravs de tecnologias de
segurana. Sociedade, economia, populao, segurana, liberdade: so os elementos da nova
governamentalidade106 o aprofundamento da temtica da crtica, no segundo captulo deste
trabalho, evidenciar como as matrizes de governamentalidade sero confrontadas por um
conjunto de prticas discursivas e formas de combate.
No contexto das transformaes do sculo XVIII, o governo, como
racionalidade poltica, dissocia-se das estruturas mentais e institucionais de soberania,
adquirindo em relao a elas autonomia. Assiste-se ao desbloqueio das artes de governar, o
qual se dar em associao ao surgimento da economia poltica, como novo dispositivo de
saber e poder. sobre ela que se apoiar, a partir deste instante, a razo governamental. Desta
101
Ibid., p. 459-494. 102
Ibid., p. 463. 103
Ibid., p. 469-470. 104
Ibid., p. 471-472. 105
Ibid., p. 472-473. 106
Ibid., p. 476.
27
maneira, o entendimento da problemtica do governo, em relao a qual se erguero as
reflexes sobre a crtica e a Aufklrung, requer abordarmos, a ttulo de concluso, as anlises
de Foucault sobre o liberalismo. Vejamos, assim, como o pensamento liberal articula as
discusses econmicas e polticas contemporneas.
1.3 O NASCIMENTO DO LIBERALISMO
Na seo anterior observamos o modo como, a partir da noo de biopoder,
delimita-se no pensamento de Foucault o conceito de governo, entendido como forma de
gesto de populaes. O filsofo toma este conceito como fio condutor de suas anlises,
dedicando-se a estud-lo de maneira detalhada e sistemtica. Governar consiste no em
exercer o poder sobre um territrio, mas gerir os homens em suas relaes com os elementos
necessrios manuteno da vida. Trata-se de melhorar a existncia dos sujeitos, assegurar
seu bem-estar, regular suas atividades, a fim de promover a felicidade e prosperidade de cada
indivduo. Deste modo, espera-se aumentar consequentemente a potncia do Estado, o qual
no origem, mas efeito das mltiplas e microfsicas artes de governo. Governar conduzir
condutas. Isto significa que no apenas a populao passa a ser contemplada como objeto das
tcnicas governamentais, mas, ao longo da histria da reflexo poltica, a existncia de cada
homem, em sua individualidade, ser posta em questo, examinada, problematizada.
Por sua vez, as artes de governo encontraro como obstculo de seu pleno
desenvolvimento, na modernidade, o modelo de soberania do poder. A superao deste
modelo s ser possvel aps o sculo XVIII. Todavia, a racionalidade governamental que
ento emergir distingue-se daquela que atravessou os sculos XVI e XVII. Trata-se, desde
meados do sculo XVIII, do aparecimento de uma nova arte de governar, a qual se
caracteriza, especialmente, pelo recurso a mecanismos de limitao das prticas mesmas de
governo. Se anteriormente o cenrio poltico foi povoado por reflexes que buscavam ampliar
as foras do Estado, tem-se agora a configurao de uma razo do governo mnimo107. O
governo mnimo no coloca fim razo de Estado e ao dispositivo da polcia, mas os
transforma, formulando uma nova questo: como no governar em demasia, ou ento, at
107
Idem. Nascimento da biopoltica: curso dado no Collge de France (1978-1979). Edio estabelecida por:
Michel Senellart. Direo: Franois Ewald e Allesandro Fontana. Traduo: Eduardo Brando. So Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 40.
28
quais limites se dever governar?108
. Como veremos, interrogaes intimamente articuladas
problemtica da crtica e do Esclarecimento em Foucault.
Este governo mnimo, em decorrncia, requer ser compreendido a partir de
algumas caractersticas que lhe so prprias. A princpio, como j referido, o desenvolvimento
da nova razo governamental est relacionado ao surgimento da economia poltica. Isto no
significa, contudo, que os processos econmicos determinem, enquanto superestrutura, as
prticas de governo. A relao entre governo e economia encontra-se na formao de um
campo de interveno governamental, o qual se tornar princpio e critrio de verdade. Este
campo o mercado109
. Enquanto para a Idade Mdia o mercado local de jurisdio, devendo
os preos ser estabelecidos segundo parmetros de justia, a partir do sculo XVIII o mercado
ser entendido como espao natural, revelando certa verdade, que a verdade do preo. O
governo ser definido em funo desta realidade natural e reveladora do mercado. O
mercado deve dizer a verdade, deve dizer a verdade em relao prtica governamental110.
Uma segunda caracterstica da nova arte de governar diz respeito ao modo
como o clculo do poder ser balizado por uma anlise utilitarista das intervenes e
regulamentos do governo. O que til fazer: eis a questo de que se ocupar o pensamento
poltico a partir de ento111
. No obstante, para Foucault, o utilitarismo confronta-nos com o
tema sempre recorrente da liberdade. Avaliar a utilidade das prticas governamentais implica
questionar a competncia daqueles que governam. Procedimento este que no ser possvel
sem uma contnua problematizao da posio de obedincia e autonomia dos governados.
Por fim, da articulao entre o mercado enquanto critrio de verdade e o utilitarismo como
princpio de governo configura-se a noo de interesse. A razo governamental, a partir do
sculo XVIII, uma razo que se exerce sobre interesses112
.
Ora, vimos como, em um contexto administrativo e diplomtico, procurou-se
gerir o Estado, tendo por horizonte o equilbrio da balana europeia. razo de Estado e
polcia competia fazer crescer as foras do Estado ilimitadamente em seu interior, mas de
forma limitada em seu exterior. Visava-se, assim, promover uma relao de concorrncia
interestatal, assegurando, porm, que nenhum Estado subjugasse ou aniquilasse seu
adversrio. J a partir do sculo XVIII, no tocante ao campo do mercado, assiste-se a uma
108
Ibid., p. 40. 109
Ibid., p. 42. 110
Ibid., p. 45. 111
Ibid., p. 55. 112
Ibid., p. 61.
29
superao das fronteiras estatais. Trata-se de uma mundializao do mercado113, em que a
concorrncia entre Estados funda-se no suposto de que o enriquecimento de uma nao s
possvel, em longo prazo, mediante o enriquecimento de todos os outros pases. Ademais, a
criao de um mercado livre e sem fronteiras no somente garantiria o enriquecimento e
progresso econmico indefinido de todo o mundo, mas seria a via segura para a obteno de
uma paz global e perptua114
.
Por conseguinte, Foucault denominar liberalismo o conjunto destes aspectos,
os quais caracterizam a racionalidade governamental. E por liberalismo o filsofo no
compreende uma ideologia ou teoria econmica, mas uma maneira de fazer orientada
para objetivos e regulando-se por uma reflexo contnua. O liberalismo deve ser analisado
ento como princpio e mtodo de racionalizao do exerccio do governo115. Tomado como
investigao permanente dos limites das formas de governar, o pensamento liberal funda-se
sobre a suspeita de que sempre se governa demais116.
As teses fisiocratas e os estudos de Adam Smith, ambos desenvolvidos em
meados do sculo XVIII, lanaro as bases deste pensamento. Sofrendo uma srie de
modificaes, ele chegar ao sculo XX sob a denominao neoliberalismo. Entre os
modelos liberais e neoliberais, algumas diferenas podem ser traadas. Para ambos, cumpre
agirem em consonncia a jogos de interesses econmicos e polticos, inscritos na realidade
natural do mercado, em que o campo de atuao do poder governamental permanentemente
colocado em questo. Nesta conjuntura, a noo de liberdade desempenha um papel central no
clculo do poder. Porm, elucida-nos Veiga-Neto, enquanto para o liberalismo clssico a
liberdade de mercado consistir em deixar as atividades econmicas a seu curso espontneo,
tem-se com o neoliberalismo uma produo e regulao ativas da economia, atravs do
estmulo competitividade117
. Neste sentido, conforme a perspectiva neoliberal, os processos
econmicos no devem ser entregues ordem de sua prpria natureza. Eles necessitam ser
continuamente ensinados, governados, regulados, dirigidos, controlados118. Certamente, a
prpria liberdade torna-se um produto, tal como outros, a ser comercializado119
.
113
Ibid., p. 75. 114
Ibid., p. 78. 115
Ibid., p. 432. 116
Ibid., p. 433. 117
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidades, neoliberalismo e educao. In: BRANCO, Guilherme
Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Foucault: filosofia & poltica. Belo Horizonte: Autntica Editora,
2011, p. 38-39. 118
Ibid., p. 39. 119
Ibid., p. 39.
30
Foucault dirige-se, assim, ao estudo de duas escolas neoliberais: o
ordoliberalismo e o neoliberalismo americano. Quanto ao ordoliberalismo, ou neoliberalismo
alemo, o contexto histrico de sua emergncia ser pautado pela formao de Repblica de
Weimar, a crise econmica de 1929, o fenmeno do nazismo e a reconstruo da Alemanha
aps a Segunda Guerra Mundial120
. Estes acontecimentos tm como denominador comum o
problema da consolidao do Estado alemo. reflexo poltica e econmica ser colocado o
desafio de pensar o estabelecimento dos limites e alcance do Estado e o modo como sua
relao com os indivduos dever ser organizada. Em outras palavras, o ordoliberalismo
procura encontrar uma maneira, segunda a qual a liberdade econmica poder fundar um
Estado, ao mesmo tempo em que restringe seu espao de ao121
. Consequentemente, s ser
digno de legitimidade aquele Estado que no violar as liberdades individuais. Para a Europa
do sculo XVIII, tratava-se de criar, no interior do aparelho do Estado, no interior do
dispositivo da polcia, certa liberdade econmica. J para a Alemanha do sculo XX, o
problema se colocar de modo contrrio. Isto , supondo um Estado que no existe, como
faz-lo existir a partir desse espao no estatal que o de uma liberdade econmica?122.
Em decorrncia, a economia de mercado assumir progressivamente o papel de
princpio organizador do poder poltico. Papel que se impe no apenas ao Estado alemo,
mas a racionalidade governamental europeia ser cada vez mais perpassada, modulada,
definida pela prtica econmica liberal. E este exerccio de regulao poltica, assumido pela
economia de mercado, decorrer de um conjunto de transformaes pelo o qual passou o
liberalismo clssico, at atingir a forma do neoliberalismo.
A primeira destas transformaes refere-se mudana que far do mercado no
apenas um local de troca, mas de concorrncia123
. Esta concorrncia, todavia, no se orienta
pela tradicional exigncia de se deixar fazer. A concorrncia no resultado de um
funcionamento natural e espontneo do mercado. Ela consequncia de uma demorada e
elaborada arte de gesto. Logo, sero para isto confeccionadas tecnologias vrias de governo,
as quais abrangero o mercado em sua totalidade. Todo e cada aspecto da vida econmica
deve ser objeto de regulao. Portanto, para os neoliberais, o problema no saber se h
coisas em que no se pode mexer e outras em que se tem o direito de mexer. O problema
saber como mexer124.
120
FOUCAULT, M. Nascimento da biopoltica. Op. cit., p. 107. 121
Ibid., p. 117. 122
Ibid., p. 117. 123
Ibid., p. 160-161. 124
Ibid., p. 184.
31
Porm, para que a concorrncia possa operar, a interveno do governo
necessita dar-se no apenas no nvel do mercado, mas sim sobre a sociedade como um todo.
V-se assim consolidar-se no somente um governo econmico, mas o que caracteriza o
neoliberalismo ser ele instrumento de um governo de sociedade125. A sociedade resultante
da regulao liberal , acima de tudo, uma sociedade que funciona segundo o modelo da
competitividade. E este modelo possui dois aspectos principais. Primeiramente, a sociedade
da concorrncia sustenta-se uma tica social da empresa126. Isto significa que suas unidades
funcionais, suas estruturas de base, assumem a forma de empresas. Em segundo lugar, estas
sociedades tm suas leis e instituies jurdicas adaptadas s exigncias da economia de
mercado. O sistema legal em que se apoiam organiza-se de modo a permitir novas
intervenes estatais, sempre que estas se fizerem necessrias127
.
As anlises de Foucault no se detm unicamente ao ordoliberalismo.
Importar ao filsofo igualmente investigar os desdobramentos sofridos pelo neoliberalismo
americano. E como contexto de sua emergncia, Foucault identifica o programa do New Deal
e as polticas de orientao keynesiana; o plano Beveridge, com suas medidas de interveno
do Estado na economia; e, finalmente, os programas sociais que visavam o fenmeno da
pobreza, a educao, assinalando a presena cada vez maior do governo do Estado na
sociedade128
. Ser contra estas polticas que o neoliberalismo americano insurgir,
configurando uma maneira de ser e de pensar [...] um tipo de relao entre governantes e
governados, muito mais que uma tcnica dos governantes em relao aos governados129.
Elemento determinante na composio do neoliberalismo americano ser a
teoria do capital humano130. Teoria esta que trar consigo algumas consequncias. A
primeira delas reporta-se tomada do trabalho e do trabalhador como objetos centrais nas
anlises neoliberais. O que, por sua vez, impe a estas anlises a necessidade de compreenso
do comportamento humano, entendido como a relao entre fins e meios raros que tm usos
mutuamente excludentes131. Ora, definindo-se por capital tudo o que pode ser futuramente
revertido em fonte renda, o trabalhador passa ento a ser reconhecido como o principal
elemento produtor de riquezas. O trabalhador torna-se, pois, capital humano. Reconhece-se no
homem uma empresa, em cujo interior no se separa o sujeito de suas caractersticas fsicas e
125
Ibid., p. 199. 126
Ibid., p. 201. 127
Ibid., p. 203-204. 128
Ibid., p. 107. 129
Ibid., p. 301. 130
Ibid., p. 311. 131
Ibid., p. 306.
32
psicolgicas envolvidas no processo produtivo. Este capital humano deve ser melhorado,
aperfeioado, de forma a gerar o maior montante de riqueza possvel. Em decorrncia, sero
implementadas medidas escolares, mdicas, demogrficas, tornando a populao alvo de
investimentos estatais macios. Somente o capital humano poder assegurar a prosperidade do
Estado132
.
Uma segunda consequncia da teoria mencionada diz respeito transformao
do pensamento econmico em chave de inteligibilidade para os fenmenos sociais como um
todo133
. Assim, procede-se a uma generalizao da forma econmica, a qual opera enquanto
princpio de decifrao das relaes sociais e dos comportamentos individuais134. Tal
generalizao resulta na regulao das vrias instncias da sociedade, tendo em vista o
aumento de seu potencial produtivo. Sobretudo, a economia como chave de inteligibilidade
permite o desenvolvimento de critrios de avaliao e aferio das prticas governamentais.
Estas prticas sero recusadas ou admitidas conforme seu custo e benefcio, conforme o
clculo de oferta e procura. Forma-se uma espcie de tribunal econmico que pretende aferir
a ao do governo em termos estritamente de economia e de mercado135.
Por conseguinte, desta ampliao do pensamento econmico para os domnios
gerais da vida humana deriva a noo de homo oeconomicus. Isto significa, no quadro do
liberalismo, compreender o sujeito a partir de uma lgica mercadolgica, decifr-lo mediante
teorias e instrumentos econmicos136
. A figura do homo oeconomicus ser a superfcie sobre a
qual interviro as tcnicas e procedimentos governamentais. como homo oeconomicus que o
indivduo vem a ser governado, fornecendo ele a base, a unidade estrutural, em que se
desenvolver a racionalidade poltica emergente137
.
Todavia, revelam as anlises de Foucault, o aparecimento do homo
oeconomicus no se restringe ao mbito do neoliberalismo americano. No interior do
empirismo ingls v-se delimitar um conceito de sujeito, definido no por possuir uma
liberdade fundamental, ou estar dividido entre corpo e alma, nem tampouco por possuir um
ncleo de desejos irracionais. Trata-se de um sujeito de escolhas irredutveis, exercidas em
nome de determinados interesses138
. Esta concepo de sujeito distingue-se daquela
subjacente ao denominado sujeito de direito. De um lado, o sujeito de direito submete-se a um
132
Ibid., p. 315-320. 133
Ibid., p. 334. 134
Ibid., p. 334. 135
Ibid., p. 339. 136
Ibid., p. 345. 137
Ibid., p. 345-346. 138
Ibid., p. 372.
33
pacto, atravs do qual poder associar-se a outros homens, constituir uma sociedade, desde
que renuncie a interesses particulares, em benefcio de um bem comum. De outro lado,
assegurado ao sujeito de interesse que ele no tenha de desfazer-se de suas aspiraes
particulares139
. Isto, pois, conforme afirma a economia poltica, a maximizao e persecuo
de seus interesses individuais contribuiro para a satisfao do interesse pblico. Dir o
pensamento liberal que a realizao das aspiraes egostas converge de modo espontneo e
involuntrio para a consecuo da vontade coletiva140
.
Para que esta convergncia se d, os indivduos devem ser cegos quanto
natureza e ao contedo do bem comum. A obscuridade, a cegueira so absolutamente
necessrias a todos os agentes econmicos. O bem coletivo no deve ser visado141. Um bem
que no deve e no pode ser visado, uma vez nenhuma teoria ou estratgia econmica ser
capaz apreend-lo em sua totalidade. No apenas os agentes econmicos, mas agente poltico
algum tem a capacidade de conhecer, por completo, os interesses coletivos. Deste modo, o
mundo econmico , por natureza, opaco. por natureza intotalizvel142. O soberano v-se
assim radicalmente confrontado com sua impotncia fundamental em saber e fazer convergir
a vontade dos indivduos que integram determinado Estado. Pode-se afirmar, o liberalismo
comeou quando, precisamente, foi formulada essa incompatibilidade essencial entre, por
um lado, a multiplicidade no-totalizvel dos sujeitos de interesse, dos sujeitos econmicos e,
por outro lado, a unidade totalizante do soberano jurdico143.
O homo oeconomicus representa, portanto, um limite traado no centro do
poder poltico, conduzindo, consequentemente, a uma problematizao da razo
governamental. Esta razo ver a si, a partir do sculo XVIII, constantemente questionada por
prticas e discursos que constituem o fundamento mesmo de uma sociedade liberal. Deste
modo, nota-se como a temtica do governo, inicialmente esboada no curso Os anormais,
encontra neste momento seu desenvolvimento balizado por uma tecnologia econmica. A
racionalidade governamental que emerge a partir do sculo XVIII tem seu ponto de apoio na
economia poltica e no liberalismo, ao mesmo tempo que se deixa por eles confrontar.
Liberalismo compreendido como princpio de limitao do Estado, em cuja base reside a
suspeita de que sempre se governa demais.
139
SANTOS, Rone Eleandro dos. O liberalismo econmico como crtica da razo governamental em Michel
Foucault. Argumentos, Fortaleza, n. 2, 2009, p. 101. 140
Ibid., p. 101. 141
FOUCAULT, M. Nascimento da biopoltica. Op. cit., p. 380. 142
Ibid., p. 383. 143
Ibid., p. 384.
34
Ao longo deste captulo, pudemos observar como a noo de governo comps-
se no interior de discusses referentes a intervenes sobre fenmenos ligados vida
biolgica. Os estudos de Foucault evidenciaram a maneira como as prticas de governar
conheceram uma profcua multiplicao a partir do sculo XV. Tratou-se, neste instante, de
saber como gerir a sociedade, considerando-a em suas diversas esferas. Emergia assim os
conjuntos tecnolgicos da razo de Estado e do dispositivo da polcia. At ento obscurecido
pelas estruturas de soberania, somente com o sculo XVIII o modelo governamental de gesto
ganhou autonomia, tornando-se a forma predominante assumida pelo exerccio do poder
poltico.
Contudo, no ter sido apenas com vistas a descrever a organizao do poder
poltico moderno que Foucault utilizou-se da noo de governo. Ele reconheceu nesta um
princpio de inteligibilidade que o permitiu analisar as relaes de poder em sua generalidade.
Isto, pois, governar, em Foucault, remete ao amplo campo semntico das prticas destinadas a
conduzir condutas. Para o filsofo, governa-se ao se estruturar um domnio pr-determinado
de aes possveis para os sujeitos. a partir de um clculo de probabilidades, no limite do
tolervel, do aceitvel, estabelecido por um conjunto de curvas de normalidade, que a ao
governamental se exercer. O governo dos homens est para alm das fronteiras do Estado.
Ele o atravessa, tal como uma rede cujos inmeros pontos e interseces lhe do sustentao.
Entretanto, ao abordar a temtica do governo, Foucault insistir na
possibilidade, sempre presente, de opor-se a ele. Oposio que tomar a forma de uma recusa
refletida e estratgica: eis uma primeira apresentao daquele que podemos considerar como
sendo o sentido dado por Foucault ao fenmeno das Luzes, em sua relao com a atitude
crtica.
35
2 AUFKLRUNG E CRTICA
O captulo anterior procurou explicitar as consideraes de Foucault sobre as
formas erigidas no Ocidente de conduo da conduta dos sujeitos, oferecendo a possibilidade
de sua crtica, enquanto exerccio de liberdade e autonomia. As anlises precedentes orientam
as reflexes do filsofo sobre a Aufklrung144
, em suas relaes com o conceito de atitude
crtica.
Foucault volta-se problemtica das Luzes, tendo por eixo de seus estudos o
texto kantiano de 1784, Was ist Aufklrung?. No ano de 1983, ao dar incio ao curso
ministrado no Collge de France, Foucault declara: o escrito de Kant parece coincidir
exatamente, e formular em termos bem estritos, com um dos problemas importantes de que eu
gostaria de falar: justamente essa relao do governo de si com o governo dos outros145. Ao
tecer sua discusso em torno da Aufklrung e da crtica, o filsofo francs busca romper com
prticas de assujeitamento presentes nas sociedades modernas, interrogando dispositivos de
normatizao e controle.
Cumpre, na composio do segundo captulo, realizar a exposio do tema
desta pesquisa, percorrendo para isto trs etapas. Se nos importa analisar o exame de Foucault
sobre as Luzes, destacando sua estreita ligao com a noo de atitude crtica, deve-se
ressaltar no ter sido apenas ao ano de 1983 que esta temtica impor-se-ia a seu pensamento.
Retomaremos em sntese as referncias prvias do filsofo a este acontecimento em relao
ao qual a filosofia jamais pde ser indiferente. Indicar-se-