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4 Agradecimentos Serei eternamente grato à generosidade de Albano Gomes pela revisão Alexandre Passos pela capa, e ao prefácio do professor Jean Hébette. Ao afeto e companheirismo de Rosa Rocha Aos irmãos e irmãs da rede Fórum Carajás Aos amigos/as do Núcleo Piratininga de Comunicação- NPC-RJ À generosidade do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE/RJ) pela publicização da produção em sua página. À cessão de fotos do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP), ONG de Marabá, J. Sobrinho, irmão Antonio, Rosa Rocha e Thiago Cruz. Às amigas Najla Passos, Márcia Andreola e Laudenice Oliveira, pelo delírio poético, político e afetuoso no derradeiro encontro de comunicação do NPC/2009.

Poroca Pequena

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4

Agradecimentos

Serei eternamente grato à generosidade de Albano Gomes pela revisão

Alexandre Passos pela capa, e ao prefácio do professor Jean Hébette.

Ao afeto e companheirismo de Rosa Rocha

Aos irmãos e irmãs da rede Fórum Carajás

Aos amigos/as do Núcleo Piratininga de Comunicação- NPC-RJ

À generosidade do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

(IBASE/RJ) pela publicização da produção em sua página.

À cessão de fotos do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e

Popular (CEPASP), ONG de Marabá, J. Sobrinho, irmão Antonio, Rosa Rocha e Thiago

Cruz.

Às amigas Najla Passos, Márcia Andreola e Laudenice Oliveira, pelo delírio

poético, político e afetuoso no derradeiro encontro de comunicação do NPC/2009.

Page 2: Poroca Pequena

5

:: Expediente ::

Pororoca pequena: marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de cá

Capa: Alexandre Passos Revisão: Albano Gomes Fotos: arquivo do Cepasp, Rogério Almeida, Rosa Rocha e Thiago Cruz Contato do autor: [email protected] Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Almeida, Rogério Henrique Pororoca pequena: marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de cá / Rogério Henrique Almeida. – Belém, 2009. 187 f.: il. 210X297mm Inclui bibliografias 1. Grandes Projetos - Amazônia. 2. Conflitos agrários - Amazônia. 3. Mineração – Amazônia. 4. Agrobiodiversidade - Amazônia. 5. Projeto de desenvolvimento- Amazônia. I. Título. CDD 21. ed. 336.09811

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6

SUMÁRIO

Sobre o autor..................................................................................................08 A gênese do Pororoca.....................................................................................09 Prefácio............................................................................................................12

01ª Parte – Estado e os grandes projetos

01- Nova Sudam?....................................................................................................15

02- BR-163- Dias piores virão?................................................................................20

03-Grandes projetos na Amazônia: mineração em Juruti a produção de energia.....26

04-Geração de energia na Amazônia: caso de Estreito em questão..........................33

05-Siderurgia em crise: o vendaval da economia especulativa e a mineração na

Amazônia...................................................................................................................47

02ª- Parte

Araguaia-Tocantins- Território em disputa

06-Fragmentos de 20 anos de luta pela terra...........................................................59

07-Bico do Papagaio: dias de sangue, dias de UDR, 24 anos atrás.............................................................................................................68

08-A luta pela terra na Amazônia: camponeses/as a família Mutran, Daniel Dantas e outros sujeitos.........................................................................................................72

09-Agrobiodiversidade na Amazônia: movimentos sociais apontam agroecologia como

forma de desenvolvimento......................................................................................94

10- O julgamento do caso João Canuto: tudo uma ilusão?......................................100

11. Carajás, o novo cenário?.....................................................................................107

12. Amazônia, Pará e o mundo das águas do Baixo Tocantins....................................116

03ª- Parte

Belém- a cidade

13-Coletivo Rádio cipó: a inquietação cultural na quebrada da Amazônia..................127

Page 4: Poroca Pequena

7

14-Bosque Rodrigues Alves, o Jardim Botânico da Amazônia: 120 anos e

História.................................................................................................................133

04- Entrevistas

15-A Amazônia sob a análise de Lúcio Flávio Pinto............................................146

16-Amazônia e as novas frentes de expansão mineral e do agronegócio no sul e sudeste do Pará- Entrevista com Batista Afonso- CPT/Marabá.........................................171

17-Extrativismo mineral em Juruti: passivos sociais e ambientais e a peleja dos nativos

contra o grande projeto- Entrevista com Gerdeonor Pereira camponês do oeste do PA............................................................................................................................179

18-Maranhão: as vísceras do sertão- Entrevista com Antonio Gomes (Criolo)- ativista pastoral do oeste do MA............................................................................................185

Page 5: Poroca Pequena

8

Sobre o autor

Rogério Almeida é graduado em comunicação, com mestrado em planejamento

pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA). É professor da

Universidade da Amazônia (UNAMA) e da Faculdade do Pará (FAP).

Tem produzido artigos, reportagens e entrevistas sobre as dinâmicas de grandes

na Amazônia, em particular no Pará.

É articulista do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE),

Ecodebate e colaborar da rede Fórum Carajás.

Sempre que pode anima o blog http://www.rogerioalmeidafuro.blogspot.com/

Gosta de samba, choro, maracatu, bumba meu boi e outros batuques.

Email para contato: [email protected]

Page 6: Poroca Pequena

9

A GÊNESE DO POROROCA

Os percalços que a vida nos proporciona, os raros incentivos, mas francos, a

identificação com as dinâmicas da região ajudaram a cimentar o presente livro. O ânimo

tem âncora ainda no reconhecimento da produção através da publicação parcial ou na

íntegra dos artigos, reportagens e entrevistas em espaços acadêmicos ou jornalísticos.

O site da revista paulista Caros Amigos, a rede Fórum Carajás, o Laboratório de

Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LPP/UERJ), o site

Ecodebate, a revista Democracia Viva do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e

Econômicas (IBASE/RJ) foram alguns dos espaços que ajudaram na publicização do

material.

Registre-se ainda a iniciativa do blog Furo, e deflagrada em setembro de 2008 e

foi paralisada em março de 2009 e reanimada em seguida, além da revista Sem Terra

(impressa). Tem-se ainda a publicação de material e participação do 3º Encontro da

Rede de Estudos Rurais, ocorrido em Campina Grande, Paraíba, em setembro de 2008,

a partir do artigo “Araguaia-Tocantins: fragmentos de 20 anos de luta pela terra”.

O material ora publicado compreende produções realizadas entre os anos de

2003 a 2009. Em algumas passagens do presente registro é possível encontrar inflexões

sobre o papel do Estado, as tensões entre os diferentes agentes que disputam o território

e as riquezas nele existentes e o modelo de projeto de desenvolvimento. Alguns

trabalhos exigiram empreitada em campo, para se verificar as relações entre os grandes

empreendimentos e as populações locais.

Foi assim no caso da ocupação da fazenda Maria Bonita em Eldorado do

Carajás, sudeste do Pará. A presente reportagem registra os protagonistas antigos e

recentes na disputa pela terra no sudeste do Pará. Tem-se aqui o Estado, a família

Mutran, o MST e o banqueiro Daniel Dantas, indicado como novo ator no cenário da

disputa pela terra no estado. O mesmo é indiciado por uma série de ilícitos, como

formação de quadrilha, evasão de divisas, crime contra o mercado financeiro. Através

Page 7: Poroca Pequena

10

da empresa Agropecuária Santa Bárbara, passou a controlar inúmeras propriedades na

região.

Algumas terras envolvidas nas negociações foram apropriadas indevidamente

através do expediente jurídico de aforamento, uma ferramenta que concede apenas o

direito a uso da terra para fins de extrativismo da Castanha do Pará e não o direito de

posse, como os negociadores Mutran e Dantas querem fazer crer.

Outros casos foram o polo de gusa de Pequiá em Açailândia, oeste do Maranhão

e a construção da hidrelétrica de Estreito, na mesma região do polo de gusa. O primeiro

empreendimento nos remete a mais de duas décadas, surgido através do Poloamazônia,

quando a política nacional instalou a perspectiva de desenvolvimento da região a partir

de polos de produção de madeira, minério e pecuária. .

Já o caso da hidrelétrica de Estreito atualiza a intervenção do Estado numa

orientação de desenvolvimento a partir de eixos de integração, onde a geração de

energia desponta como sendo um deles. Enquanto no primeiro caso a Superintendência

de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) era o agente de indução da economia, no

segundo tem-se o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

como o ponta de lança, não só na região, mas em dimensões continentais.

Ainda em campo tem-se o registro da experiência em agroecologia desenvolvida

na região do baixo Tocantins, Pará, iniciativa empreendida pela ONG Associação

Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (APACC) com sindicatos de trabalhadores

rurais. A ambição de buscar a transição de práticas consideradas tradicionais do uso dos

recursos da floresta para práticas agroecológicas teve início nos primeiros anos da

década de 2000.

O trabalho de campo foi uma necessidade de se presenciar os passivos sociais e

ambientais induzidos pelos grandes projetos e aspectos aplicados pela APACC no baixo

Tocantins. Bem como em outras regiões visitadas. Um aprendizado em ouvir alguns

invisíveis: trabalhadores rurais, donas de casa, desempregados, idosos, prostitutas,

moto-taxistas, estudantes de graduação, donos de botequim, dirigentes sindicais e

profissionais liberais como educadores e jornalistas. O campo é a faculdade sem

parede?

Page 8: Poroca Pequena

11

As dinâmicas dos mundos rurais dão corpo ao modesto projeto. A exceção é o

capítulo dedicado à cidade de Belém. Duas reportagens pontuam nuances da metrópole.

A primeira trata de militância cultural centrada na música, a partir do grupo Coletivo

Rádio Cipó. A trupe nascida no bairro da Pedreira, conhecida zona boemia. Jovens e

outros nem tão jovens somam em poesia e sonoridade numa produção original. Dona

Onete e mestre Laurentino, como reza o clichê, são as estrelas da companhia. O

segundo recupera fragmentos dos 120 anos do Bosque Rodrigues, um naco de floresta

dentro da cidade. Um ponto de visita de turistas e das famílias de Belém, assim como o

Bosque do Museu Goeldi.

O Pororoca pequena: marolinhas sobre a(s) Amazônia(s) de cá foi puxado a

fórceps, numa peleja realizada desprovida de apoios institucionais, exceto amparos

pontuais da rede Fórum Carajás. 18 trabalhos entre artigos, reportagens e entrevistas

integram a obra. Os mesmos estão divididos em quatro seções: a) Estado e os grandes

projetos, b) Araguaia-Tocantins- território em disputa, c) Belém- a cidade e d)

Entrevistas com dirigentes sindicais e populares e assessores e uma com o jornalista

Lúcio Flávio Pinto. Esta última realizada com o auxílio luxuoso dos ex-colegas de

mestrado no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), Guilherme

Carvalho e Nanani Albino, a quem sou grato pela colaboração.

A(s) Amazônia(s) do Brasil são várias. Seria pretensão desejar um nome

pomposo ao singelo trabalho, ante a complexidade de redes econômicas, políticas e

sociais que se espraiam pela região na disputa pelo território e pela definição de seus

projetos de desenvolvimento. Por isso a opção pelo nome adotado.

A publicação é apenas um pequeno sopro sobre a vastidão de delicados cenários

que conformam as dinâmicas da região. Espera-se que o presente trabalho possa de

alguma forma ser produtivo como fonte de pesquisa e debates. Ainda que modesto.

Page 9: Poroca Pequena

12

Prefácio

Jean Hébette1

Em “Pororoca pequena marolinha sobre a(s) Amazônia(s) de cá”, o jornalista

Rogério Almeida, bem conhecido entre nós por sua militância junto aos movimentos

sociais no campo pinta uma paisagem das contradições sociais e políticas que nos afetam,

à nós, moradores da imensa Amazônia irrigada por uma igualmente imensa bacia

hidrográfica. Tão imensa e diversificada do ponto de vista físico, econômico, social,

político e, principalmente, cultural, que autores – notadamente geógrafos, como

Ariovaldo de Oliveira – a desdobram, como Rogério Almeida prefere desdobrá-la - o que

lhe permite não esconder sua particular simpatia pela Amazônia dos rios Tocantins e

Araguaia, como se estes dois afluentes do Amazonas, já por só imensos, oferecessem

uma espécie de síntese de todas elas.

Apesar da “modéstia” que o autor atribui – modestamente – a seu livro, vários de

seus textos já foram apresentados em reuniões e encontros científicos, e mereceram

publicações de revistas reconhecidas como Caros Amigos (site), Revista Democracia

Viva do IBASE e do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio

de Janeiro.

A coletânea reúne 18 trabalhos distribuídos em quatro partes: a primeira,

referida aos chamados Grandes Projetos, cada vez maiores na dimensão dos seus

impactos sociais; a segunda, mais substancial, traça a audaciosa saga dos pequenos

produtores rurais por aí imigrados em confronto com o latifúndio especulativo e ilegal; na

terceira parte, o autor dá um pulo rápido para a cidade de Belém, antes de concluir, na

quarta parte, com quatro entrevistas com testemunhas significativas de nossa história

recente. Esta paisagem sugere uma arte de pirotecnia com um fogo de artifício de flashes

brilhantes e percutidores lançados em todos os horizontes da vida sofrida do campesinato

1 Sociólogo e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Page 10: Poroca Pequena

13

amazônico. Destes flashes se destaca uma quantidade de números preciosos coletados em

fontes confiáveis.

A narração flui, fugindo à linguagem acadêmica à qual o redator teve que se

submeter na sua dissertação do mestrado apresentado ao Núcleo de Altos Estudos

Amazônicos (NAEA), lhe preferindo um estilo jornalístico mais florido, recheado de

metáforas, às vezes tangentes a um certo preciosismo .

Na sua “modéstia”, o livro ora publicado pode ser muito útil para leitores que,

sem quererem se aprofundar no assunto, fazem questão de se manter a par dos eventos

mais significativos da região nos último cinco anos. Muito útil, sobretudo, para

professores do ensino fundamental das diversas disciplinas, assim como para estudantes

universitários. Neste sentido, referências mais explícitas à literatura citada em passant

seriam bem-vindas. Espera-se do jornalista Rogério Almeida que, dando seqüência a seu

anterior livro “Araguaia-Tocantins. Fios de uma história camponesa” (2006) e deste

novo, nos gratifique, também, com análises mais detidas nas quais se treinou nos tempos

de seu mestrado.

Page 11: Poroca Pequena

14

01 PARTE

Estado e os grandes projetos

01- Nova Sudam?

02- BR-163- Dias piores virão?

03-Grandes projetos na Amazônia: mineração em Juruti a produção de energia

04-Geração de energia na Amazônia: caso de Estreito em questão

05-Siderurgia em crise: o vendaval da economia especulativa e a mineração na Amazônia

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15

NOVA SUDAM?2

A corrupção é a primeira relação que se materializa ao pronunciar a palavra

SUDAM. Tal realidade nem tanto reservada a bastidores e muito menos nova foi o que

mais lhe deu visibilidade. Ninho de oligarcas da elite amazônica e empresários do

Centro-Sul, íntimos com a prática do patrimonialismo, a SUDAM lhes serviu como uma

galinha de ovos de ouro por mais de três décadas. As denúncias festejadas na imprensa

em 2000/2001 nasceram do entrevero entre os “coronéis”, Antonio Carlos Magalhães da

Bahia e Jader Barbalho do Pará, quando governava o país Fernando Henrique Cardoso.

Em sua certidão de nascimento SUDAM significa Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia. Juridicamente uma autarquia, criada através da Lei

5.173 de 27.10.1966, em substituição a Superintendência do Plano de Valorização

Econômica da Amazônia (SPVEA) (Lei n.º 1.806 de 06.01.1953). A Agência de

Desenvolvimento da Amazônia (ADA) foi criada em substituição da mesma em 02 de

maio de 2001, por conta do “catatau” de denúncias de corrupção. Prestes ao seu

renascimento, após a aprovação no Congresso Nacional, ocorre interrogar que caminho

a mesma seguirá. A autarquia atua no raio de nove estados da Amazônia Legal (Acre,

Amapá, Amazonas, Pará, Tocantins, Mato Grosso, Roraima, Rondônia e Maranhão).

Tem a sua sede em Belém, capital do Pará.

Não foi a pororoca de corrupção publicizada que levou à extinção da SUDAM.

Na verdade a alteração de estratégia já existia há pelo menos quatro anos, com base

técnica. Tudo resultado da nova concepção do papel do Estado exigida pela recente

conjuntura da economia mundial, onde se prega a redução ao máximo do mesmo na

economia. Bem como à crise fiscal e financeira que abala o país desde a década de

1980. Assim advoga parte da tese de doutoramento defendida em 2005, no Núcleo de

Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), pelo

economista, Sérgio Roberto Bacury de Lira, Morte e ressurreição da SUDAM: uma

análise da decadência e extinção do padrão de planejamento regional da Amazônia.

Na análise do pesquisador a extinção da SUDAM em 2001 tratou-se de um

oportunismo do Estado, que não colocou em debate a questão que seria central, o 2 Texto publicado originalmente no boletim eletrônico Notícias da Amazônia, da Secretaria do MST/Pará, n. 66, de 18 de janeiro de 2006 e posteriormente no site do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LPP/UERJ).

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16

modelo de desenvolvimento regional com base em incentivos fiscais. O economista

defende que a extinção da SUDAM resulta da desestruturação e do término de um

modelo de planejamento regional brasileiro.

Os registros das academias sobre a SUDAM sinalizam tratar-se de uma agência

criada no sentido de promover o desenvolvimento regional e a integração da Amazônia

ao restante do país com base em pesados incentivos fiscais às grandes empresas do

Centro-Sul e mesmo internacionais. Acreditava-se na tese de que só assim seria possível

o desenvolvimento regional, tornando a região um polo exportador interno e externo de

produtos primários.

A segunda etapa do processo de industrialização marcava o contexto da época,

onde se verificava a associação do capital industrial nacional com o internacional.

Modelo gerido pela escola cepalina (Comissão Econômica para América Latina e

Caribe), que ficou conhecido como de substituição de importação, onde o Estado

exerceu papel central. Ao se investigar tal modelo de planejamento desenhado no

regime militar, cuja característica principal residia na verticalidade, temos entre os

resultados: concentração de terra e renda, internalização de passivos sociais e

ambientais, além de transferência de riquezas.

Na “conquista” da Amazônia, outros vetores somaram a projetos estabelecidos

no Poloamazônia, pela SUDAM, uma das medidas elencadas no Plano Nacional de

Desenvolvimento (PND), que visava a implantação de projetos no setor de pecuária,

madeira, minério e obras de infraestrutura para a região. Ressalte-se o Programa Grande

Carajás, que determinou a instalação da exploração de minério na Serra de Carajás,

polos siderúrgicos, exploração de bauxita (matéria prima para a produção de alumínio),

na região do Trombetas, oeste do Pará, construção da hidrelétrica de Tucuruí, sudeste do

Pará, e instalação de fábricas de lingotes de alumínio no Pará e no Maranhão.

Sedimentava-se assim a conquista da fronteira, marcada por uma abissal

indiferença ao cidadão amazônico, numa região estabelecida na cabeça dos planejadores

como um vazio demográfico. Se de alguma forma a região se integrou ao resto do país,

as medidas não reduziram as diferenças regionais.

Com a radicalização do que se convencionou chamar de políticas neoliberais,

quando as grandes corporações hegemonizam o processo de organização da economia

mundial, em detrimento dos Estados nacionais, que papel caberia a uma agência

Page 14: Poroca Pequena

17

regional de desenvolvimento num país de condição periférica, numa região periférica

nacional?

Como será a definição de suas metas para a região, posto o Plano Plurianual

(PPA), política que define os investimentos do Governo Federal já estabelece questões

estratégicas? Nota-se no conjunto projetos com semblante similar ao de outrora

batizados de grandes. Como os em infraestrutura. No portfólio tem-se a construção de

transporte multimodal (estradas, ferrovias, hidrovias), com vistas a garantir o

escoamento de grãos que têm na soja seu carro-chefe. Além de uma série de

hidrelétricas, que historicamente funcionaram como degradadoras ambientais, e

motivadoras de expulsão da população nativa.

Como a corrupção emerge em nossa História como prática de enriquecimento,

destaque-se que ainda em 1980, a Comissão Interministerial de Avaliação de Incentivos

Fiscais (COMIF) já denunciava a questão na SUDAM. Mesmo em 1970 já se tinha

registro. Como é quase impossível desvencilhar o nome da agência de práticas

fraudulentas, ocorre aqui relembrar protagonistas de tal ação. No rol, nomes

reconhecidos na política nacional, como o chefe político Jader Barbalho. Mesma

dimensão ocupada por Antonio Carlos Magalhães com relação a Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Como as coisas na Amazônia costumam ter uma dimensão gigantesca, as

estatísticas da fraude da SUDAM não fogem à regra. Os números levantados pelo

economista Lira sobre o processo de fraudes indicam que até abril de 2001, o montante

desviado estava na casa de R$1,7 bilhão, onde R$600 milhões seriam frutos de 35

projetos considerados irregulares e R$1,1 bilhão seriam oriundos de 159 empresas (de

um total de 213 projetos considerados fraudulentos), que foram cancelados pelo

Conselho da SUDAM.

Ainda conforme pesquisa do professor Lira, consta que entre 1996 e 2001 dos

274 projetos que receberam recursos da SUDAM, apenas cinco escritórios foram

responsáveis pela metade dos projetos, com valor estipulado em R$616 milhões. No

mesmo balaio 68 projetos foram elaborados por um escritório de uma ex-diretora da

SUDAM. O centro-oeste do Pará é um dos destinos de tais recursos. Um dos

fazendeiros Délio Fernandes, teria desviado R$4,2 milhões. Foi da sede da fazenda de

Fernandes que Bida, um dos mentores da execução da missionária Dorothy Stang, ligou

para pedir apoio para fuga.

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18

Entre esses muitos projetos escandalosos cumpre lembrar o ranário da esposa do

Barbalho, a senhora Márcia, com valor de R$9,6 milhões. Os relatórios do Ministério da

Fazenda apontam que ao longo de mais de três décadas um dos maiores beneficiados foi

o fazendeiro goiano José Osmar Guedes, que teria sangrado R$400 milhões.

Investigações divulgadas na época indicam que o fazendeiro depositou U$ 41 mil em

contas pessoais de José Arthur Guedes Tourinho, então-diretor da SUDAM, indicado

por Barbalho. Tourinho foi presidente do clube de futebol Paysandu.

Na prestação de contas de campanha do ex-governador do Amazonas,

Amazonino Mendes (PFL/DEM), constam várias empresas suspeitas de desviarem

recursos da SUDAM, como a Distribuidora Genal Ltda. e Chocam Chocolate da

Amazônia. Até onde chegaram os tentáculos da rede que ajudou a desviar recursos aos

baldes da SUDAM? O elenco é de primeira linha: advogados, contadores, economistas,

mediadores, com escritórios plantados em várias cidades dentro e fora da região, sob a

ingerência de políticos de todos os estados da Amazônia Legal.

A nova SUDAM volta à vida tendo no rastro de suas três décadas marcas

profundas de corrupção. A superintendência foi ressuscitada segundo Projeto de Lei da

Câmara Federal de nº. 60, integrada ao Sistema de Planejamento e Orçamento Federal.

A finalidade ficou definida como promover o desenvolvimento includente e sustentável

de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na

economia nacional e internacional.

Referências

HOLANDA, de S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

LIRA, S. R. B. Morte e ressurreição da SUDAM: uma análise da decadência e

extinção do padrão de planejamento regional da Amazônia. 2005. Dissertação

(Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento) – Núcleo de Altos Estudos

Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2005.

MONTEIRO, M. Siderurgia e carvoejamento: drenagem energético-material e

pauperização regional. Belém: NAEA/UFPA, 1998.

Page 16: Poroca Pequena

19

SÁ, P. Carajás: proposta de desenvolvimento regional integrado. In: COSTA, J. M. M.

(coord.). Os Grandes projetos da Amazônia: impactos e perspectivas. Belém:

NAEA/UFPA, 1987. p. 73-103. (Cadernos do NAEA, n. 9)

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20

BR-163: DIAS PIORES VIRÃO?3

A conquista do tri campeonato de futebol pelo escrete canarinho é um dos

emblemas da década de 1970, instante em que o Estado de exceção conforma o Brasil.

Na cena econômica tem-se o “milagre econômico”. Para a Amazônia é marcante o

projeto de integração da região ao resto do país, numa lógica de planejamento periférico

e vertical desenhada nos gabinetes dos militares. A regra ditava a ampliação da fronteira

agrícola e exploração de matérias-primas para a conquista da região. No Araguaia

pipocava a guerrilha. Com vistas à exploração das riquezas minerais e ampliação da

agricultura e pecuária, obras de infraestrutura surgiram na floresta como símbolos da

modernidade. Entre elas a BR-163, que liga Cuiabá, no Mato Grosso a Santarém, no

oeste do Pará.

Nos anos inaugurais da década de 2000, o assunto BR-163 hegemonizou o

debate nas universidades locais, nacionais e mesmo internacionais, quando o assunto era

a Amazônia. Discussão que envolve ainda associações de trabalhadores, ambientalistas,

setores da economia nacional, internacional, governos federal e estaduais. No centro

constava a tentativa de construção de um referencial de organização do território a partir

do zoneamento econômico e ecológico (ZEE). Na fauna de atores sociais que disputam

uso da terra e recursos naturais constam: sojeiros, madeireiros, garimpeiros, populações

indígenas, extrativistas, pecuaristas, agricultores, mineradoras etc.

Grilagem de terras, exploração ilegal de madeira, elevado índice de

trabalhadores em condições de escravidão, execuções de trabalhadores rurais e seus

apoiadores ajudam a compor a aquarela da região. Entre os dias 19 e 20 de setembro de

2005, a Universidade Federal do Pará (UFPA), através do Núcleo de Altos Amazônicos

(NAEA), em parceira com a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA – agora

novamente SUDAM), Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), entre outros, ZEE,

encaminhado pelo governo federal em parceria com os estados do Amazonas, Pará e

Mato Grosso. Na ocasião, a obra dividida em quatro volumes de autoria do pesquisador

Jean Hébette, “Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia”,

3 Texto publicado originalmente no boletim eletrônico Notícias da Amazônia, da Secretaria do MST/Pará. Nº 59, de 20 de setembro de 2005 e posteriormente no site do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LPP/UERJ).

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21

que examina o processo desde a década de 1970, abriu o debate sobre o processo de

ocupação na Amazônia.

Inspirado numa perspectiva desenvolvimentista e na busca incessante do

superávit primário, o Governo Federal visa a semear e colaborar para a melhoria de

obras de infra-estrutura. Na lógica de transporte multimodal (rodovias, hidrovias,

ferrovias), em seu Plano Plurianual (PPA), a BR-163 volta à pauta como uma prioridade

de melhorar a circulação da produção de grãos, que se avoluma no Centro-Oeste do

país. No celeiro dos interessados verifica-se além das empresas multinacionais, o rei da

soja e também do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS). O empreendimento

inaugura a mistura do tempero entre o público e o privado, na burocracia estatal

batizado de Parceria Público Privado (PPP).

Se a oportunidade econômica faz brilhar cifrões nos olhos dos produtores de

grãos, o contrário ocorre nas populações nativas (índios, extrativistas, trabalhadores

rurais, ribeirinhos etc.). Nas linhas dos planejadores e dos ditos investidores, são sempre

elevados à categoria de problema ao desenvolvimento. Alvo da coerção pública e

privada. Como a registrada na reserva Raposa do Sol, Roraima, no dia 17 de setembro

de 2005, com o ataque de 150 pistoleiros armados contra os indígenas. Se a

possibilidade econômica revela-se excelente, alarmante os impactos sociais e ambientais

se desnudam.

Experiências pretéritas contabilizam os passivos sociais e ambientais aos

montes. Quase que inquestionáveis. A defesa do projeto é escudada num tal de

desenvolvimento sustentável, ainda que não se discuta o paradoxo de tal tese, coadunar

desenvolvimento baseado em uso intensivo de recursos naturais; e sustentável, ancorado

em algo que advoga o socialmente justo, economicamente viável e ambientalmente

zeloso. Como efetivar tal proposta numa democracia marcada pelo aleijão da

concentração de terra e renda, em rincões onde a diferença não é reconhecida, onde o

poder econômico e político imperam, em detrimento de qualquer parâmetro legal?

A produção de grãos pesa na balança comercial (estimada em 50%), ainda que

os números das dívidas dos produtores sejam omitidos pelos principais meios de

comunicação, que no caminho oposto esmeram-se na demonização do movimento

camponês. Além da festejada produção de soja, que põe abaixo milhares de hectares da

floresta amazônica e do cerrado, biomas que marcam a região, a paisagem é hoje a

Page 19: Poroca Pequena

22

principal área de exploração ilegal de madeira, grilagens de terras e violência contra

camponeses e seus apoiadores, como a irmã Dorothy, executada em fevereiro de 2005.

Tal violência contra camponeses, seus apoiadores e assessores deu o primeiro

sinal com a morte de sindicalista Ademir Federecci (Dema), 36 anos, executado na

região de Altamira, no ano de 2001, quando denunciava o processo de exploração ilegal

de madeira, corrupção nos processos de financiamento da extinta Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e grilagens de terra. Em seguida ocorreu a

execução do dirigente sindical Bartolomeu Morais da Silva (o Brasília), morto por 21

tiros após sessão de tortura, ironicamente numa comunidade batizada de Castelo dos

Sonhos. Já no ano de 2003, uma chacina envolvendo seis trabalhadores rurais e um

médio produtor denuncia o deslocamento do morticínio do sul e sudeste do Pará rumo

sudoeste do estado.

Maiores que os passivos sociais e ambientais e a possibilidade de faturamento

financeiro, é a diversidade dos recursos naturais e sociais. A região abriga três imensas

bacias hidrográficas (Teles Pires/Tapajós, Xingu e Amazonas) e dezenas de tributários.

Dessa riqueza natural dependem aproximadamente dois milhões de habitantes,

envolvendo diversos grupos sociais e econômicos. Assim explica o documento base do

Plano de Desenvolvimento Sustentável.

No desenho do plano visa-se a integração de políticas que possibilitem o

desenvolvimento integrado da região. Ao se espelhar no passado, a fé entra em refluxo.

Nesses instantes criam-se os tais espaços de participação pública, as audiências. Ainda

que signifique um passo à frente, a assimetria marca o debate, que acaba por se

assemelhar a espaços circenses, como os já registrados nas audiências do projeto Juruti,

oeste do Pará (exploração de bauxita, matéria-prima para a produção de alumínio) e nas

audiências do projeto da hidroelétrica de Estreito, oeste do Maranhão e norte do

Tocantins.

Em tais espaços verificou-se a capacidade das empresas, muitas delas multi, em

persuadir do sapateiro ao prefeito na formação do coral do “a favor” do projeto, sem

muito explicar pontos delicados, como o deslocamento e reassentamentos de

agricultores, índios, extrativistas etc. Aqui o tempo sempre nubla. Isso sem falar nas

imperfeições de engenharia, como a imprecisão do local da barragem de Estreito. Aos

que desafinam o coro “do pró” olhares de esguelha, o deboche e mesmo ira dos

Page 20: Poroca Pequena

23

contrários. Outro elemento recai sobre o hermetismo da linguagem técnica, o que

provoca o monopólio da fala.

Na geografia o documento do Governo Federal explica que a área do projeto

reúne 71 municípios, sendo 28 no estado do Pará, 37 no estado do Mato Grosso, e seis

no estado do Amazonas, perfazendo uma área total de 1,23 milhão de km2 (123 milhões

de hectares) que correspondem a 24,6% da Amazônia Legal e 14,47% do território

nacional. Desse total, 828.619 mil km2 encontram-se no Pará (66,41% do território

estadual), 280.550 km2 no Mato Grosso (31,06% do estado) e 122.624 km2 no

Amazonas (7,81% do estado). Aqui inclusa a já celebridade nacional, Terra do Meio,

oeste do Pará.

Já no município de Santarém alguns setores festejam a introdução da soja, e até

um porto, construído pela empresa Cargil, no maior flagrante de indiferença à legislação

ambiental. O mesmo foi erguido quando o processo encontrava-se na Justiça, sem uma

definição. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará já engrossa os seus registros

com mortes de trabalhadores da região, como denunciado numa audiência com a oficial

da Organização das Nações Unidas (ONU), Asma Jahangir. Verifica-se assim a

concentração do debate do ordenamento do território em certa medida no Pará, posto

Mato Grosso já possuir um zoneamento.

Qual a trilha a seguir para a manutenção ou uso equilibrado dos recursos naturais

e a inversão da gramática dessa modalidade de projeto, que tem por regra a

expropriação dos nativos? A criação de áreas de reservas? Parece ser essa a indicação

do Governo Federal em alguma escala consensuado pelo Governo do Pará, que juntos

desejam a definição de nove áreas.

Teríamos assim a criação de mosaico que, conforme os dados oficiais, garantiria

a proteção de 60% do território em debate. O objetivo do projeto é criar em parceria

com o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis e do Meio Ambiente

(IBAMA) e o Governo do Estado, nove unidades de conservação, divididas nas

Florestas Nacional ou Estadual de Trairão, do Amaná, do Crepori, do Iriri e do

Jamanxim; os parques Nacional ou Estadual do Jamanxim e do Rio Novo; e a Área de

Proteção Ambiental Tapajós. Estas reservas ocupariam áreas nos municípios de

Jacareacanga, Novo Progresso, Trairão, Itaituba, Rurópolis e Altamira, todos

localizados no Pará.

Page 21: Poroca Pequena

24

Que cenários se desenham no horizonte com a tentativa de disciplinamento do

uso do território na BR-163 para a Amazônia? Em alguma medida os pesquisadores

indicam que em certa escala já ocorre uma territorialização na região através de sojeiros,

grande pecuária, mineradoras canadenses, empresas juniores de mineração e

agricultores. No entanto, indícios indicam que uma situação de caos é interessante para

o processo de transferência de terras públicas para a iniciativa privada, principalmente

no bioma cerrado, como se verifica em Santarém, onde 500 famílias foram expulsas

numa única tacada na comunidade de Santa Rosa, e engrossam hoje bolsões de miséria

da periferia de Santarém.

A esfera jurídica e militar tem sido a regra no planejamento do estado para tratar

na questão de disputa de terras ao longo de 10 anos de mando do Partido da Social

Democracia no Pará (PSDB). Nesse sentido criou varas agrárias que em tese seriam

espaços para se diluir as disputas pela terra. Já no aparato armado criou uma divisão

especial na Polícia Militar, Divisão Especial de Conflitos Agrários (DECA). Impossível

tratar do assunto sem citar o Massacre de Eldorado, de 1996, onde 19 sem terra foram

executados e 69 feridos.

Já no ano de 2005 numa só caneta o juiz da Vara Agrária de Marabá, Líbio

Moura, expediu 50 liminares de reintegração de posse. A maior da História. A ação das

tropas da PM durou três meses e foi marcada pela denúncia de truculência, onde

lavouras foram queimadas e barracos destruídos. Mas, no estado onde mais se mata sem

terra, o governo garante que tudo vai mudar com a implantação do Projeto Pará Rural,

calçado com financiamento do Bando Mundial, que visa a integração subordinada do

agricultor ao mercado. Dias piores virão?

Referências

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Contando a história do Pará. Belém: Emotion, 2002. v. 2, p. 211-262.

ALMEIDA, A W. B.O Intransitivo da transição: o Estado, os conflitos agrários e a

violência na Amazônia (1965-1989). In: LÉNA, Philippe; OLIVERIA, Adélia E.

(orgs.). Amazônia a fronteira agrícola: 20 anos depois. Belém: MPEG, 1991. p. 259-

290.

Page 22: Poroca Pequena

25

ANDRIOLI. A. I. A reforma agrária e o Governo Lula: entre a expectativa e a

possibilidade. Revista Espaço Acadêmico, Maringá (PR), n. 31, dez. 2003. Disponível

em: <www.espacoacademico.com.br> Acesso em: 10 de 08 de 2005.

CARVALHO, G. A integração sul-americana e o Brasil: o protagonismo brasileiro na

implementação do IIRSA. Belém: FASE, 2004.

PINTO, L. F. Os grandes projetos e a crise. In: COSTA, J. M. M. (coord.). Os grandes

projetos da Amazônia: impactos e perspectivas. Belém: NAEA/UFPA, 1987. p. 164-

168 (Cadernos do NAEA, n. 9)

ROSSET, P. O bom, o mau e o feio: a política fundiária do Banco Mundial. In:

MARTINS, M. D. (org.) O Banco Mundial e a terra: ofensiva e resistência na

América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004. p. 16-26

SÁ, P. Carajás: proposta de desenvolvimento regional integrado. In: COSTA, J. M. M.

(coord.). Os grandes projetos da Amazônia: impactos e perspectivas. Belém:

NAEA/UFPA, 1987. p. 73-103. (Cadernos do NAEA, n. 9)

Page 23: Poroca Pequena

26

GRANDES PROJETOS NA AMAZÔNIA: MINERAÇÃO EM JURUTI E A

PRODUÇÃO DE ENERGIA 4

1.500 pessoas ocuparam no dia 28 de janeiro de 2009 uma área de operação da

empresa estadunidense Alcoa, no município de Juruti, oeste do Pará. No local é

explorada uma mina de bauxita, matéria-prima para a produção de alumina que é em

seguida transformada em alumínio.

O empreendimento fica na bacia do Amazonas. Um bilhão de reais deve ser

aplicado para produzir quatro milhões de toneladas do minério. Desse total de

investimento a sociedade brasileira vai entrar com 500 milhões através do Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a juros módicos.

A companhia é uma das maiores mineradoras do mundo e opera em 32 países

nos quatro continentes. No Maranhão mantém uma empresa de produção de lingotes de

alumínio, Alumar, desde a década de 1980, em sociedade com a BHP Billiton e que

deverá incrementar a produção de 368 mil para 420 mil toneladas. Por isso o interesse

na mina de Juruti, que também vai emancipar a Alcoa do fornecimento da Mineração

Rio do Norte, da Vale, que extrai a bauxita no município de Oriximiná, na mesma

região. Além das frentes de mineração o baixo Amazonas tem em pauta a construção de

hidrelétricas no rio Tapajós e é impactado pela monocultura de grãos e pelo porto da

Cargil.

Além de negócios no Maranhão e agora no Pará, a Alcoa também é acionista

majoritária do consórcio Baesa, responsável pela usina hidrelétrica de Barra Grande,

localizada na região Sul do país. Junto com o grupo Votorantim, a Alcoa foi denunciada

pela violação das Diretrizes para Empresas Multinacionais da Organização para

Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A Alcoa e o grupo Votorantim foram denunciados pelo Movimento de Atingidos

de Barragens (MAB) no ano de 2005. As empresas aproveitaram a Avaliação de

Impacto Ambiental apresentada, em 1999, pela empresa Engevix Engenharia S. A., que

atestava de modo fraudulento a viabilidade ambiental da exploração do potencial

hidroelétrico no rio Pelotas, afluente do rio Uruguai, informa nota do MAB.

4 Trabalho publicado no site www.plataformabndes.org.br em fevereiro de 2009

Page 24: Poroca Pequena

27

No caso do Pará, os militantes denunciam os danos aos recursos hídricos,

redução do pescado, impedimento do direito de ir e vir dos ribeirinhos, diminuição da

coleta da castanha do Brasil, andiroba e outras fontes de proteína e recursos da flora

usados para fins medicinais.

O projeto representa também um risco de morte aos trabalhadores, por conta da

construção da ferrovia que escoará o minério. Eles explicam que não há túneis ou

desvios nos trechos que cortam os projetos de assentamento impactados pela obra.

Durante a ocupação, a tropa de choque da Polícia Militar foi acionada. Os

policiais usaram gás de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes.

Crianças e mulheres foram atingidas. Afinal, quem é o inimigo?

Documento sistematizado por Raimundo Gomes da Cruz Neto, sociólogo que

visitou as comunidades atingidas, esclarece que a mina está localizada numa área de

floresta densa, nas cabeceiras do lago Juriti Grande, caracterizada por três platôs. A

ferrovia atravessa dois projetos de assentamento de agricultores, criados pelo Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Um deles é o Socó, com 420 famílias, das quais 43 tiveram seus lotes

atravessados pela ferrovia, que receberam por indenização R$ 0,24/metro quadrado, por

força de um acordo entre o sindicato e a empresa, enquanto reivindicavam R$ 3,00. O

porto está colado à cidade sede do município de Juruti, de onde várias famílias

estruturadas social e economicamente no bairro Terra Preta foram expulsas.

Gerdeonor Pereira, dirigente no Projeto de Assentamento Extrativista (PAE)

Juruti Velho, informa que 80% do minério estão no PAE. O militante informa que pelo

menos 50 mil hectares de floresta devem ser derrubados.

“O projeto trouxe para a cidade umas 15 mil pessoas. O município não tem

estrutura para cuidar desse povo com moradia, saúde e escola. Hoje a empresa já iniciou

as demissões porque as construções estão em fase de conclusão. Para onde esse povo

vai”, interroga Pereira? Há informes que por conta de migração o município passou por

dois surtos de hepatite. A fase de construção é considerada onde a prefeitura mais fatura

com arrecadação do Imposto Sobre Serviço (ISS). A estimativa é de um milhão por mês

desde 2006.

A presença da empresa também incrementou o mercado de prostituição, drogas,

especulação imobiliária e ocupações.

Page 25: Poroca Pequena

28

Os passivos socioambientais já experimentados nas 60 comunidades onde

vivem cerca de quatro mil famílias num total aproximado de nove mil pessoas foram

omitidos nos estudos de impactos ambientais, realizados pela empresa CNEC

Engenharia e apresentado pela Alcoa para obter a licença.

A CNEC é a mesma empresa que realizou os estudos para a construção da

hidrelétrica de Estreito, onde a Alcoa é sócia da Vale, da Suez Energy, da BHP Billiton

e da Camargo Correa.

A hidrelétrica de Estreito está sendo erguida no rio Tocantins, fronteira do

Maranhão com o estado do Tocantins e é considerado o maior empreendimento do setor

no Brasil. No caso de Estreito, entre as omissões consta que as áreas indígenas nos dois

estados, Krahô, Apinajé, no estado do Tocantins, e Gavião e Krikati no Maranhão não

serão afetadas pela obra. Informação que foi contestada pelas comunidades indígenas e

pelos defensores dos direitos humanos.

As omissões nos relatórios que indicam os impactos ambientais da exploração da

bauxita do Pará estão entre as motivações da ação movida na justiça pelos Ministérios

Públicos Federal e Estadual (MP) desde 2005. Nestes termos, a Alcoa funciona na

ilegalidade em terras do Pará, posto as contestações dos MP sobre o processo de

licenciamento da exploração de bauxita.

O não cumprimento da recomendação dos MP também resvala no governo do

estado do Pará. Gabriel Guerreiro, deputado estadual (PV) e Walmir Ortega, ambos ex-

secretários do meio ambiente, respondem por improbidade administrativa. O primeiro

pela aprovação da licença de operação da Alcoa e o segundo pela manutenção,

contrariando a recomendação dos MP, que decidiram pela suspensão.

Assim a Alcoa, como a Cargil que produz grãos no município vizinho de

Santarém, que ergueu um porto ao arrepio da lei, finaliza a construção de rodovia,

ferrovia, porto e tanques de contenção de rejeitos para a extração do minério.

O MPF e o MPE consideram que o Instituto Brasileiro dos Recursos Renováveis

e do Meio Ambiente (IBAMA) deveria licenciar o projeto Juruti e não a Secretaria de

Meio Ambiente, como ocorreu: Os elementos que demonstram a necessidade de que o

licenciamento se dê no âmbito federal são:

Page 26: Poroca Pequena

29

1 - a área na qual estão localizadas as minas de bauxita pertence à União, tendo

sido objeto de arrecadação administrativa e, hoje, encontra-se em processo de

regularização fundiária, tendente a permitir a fixação dos clientes da reforma agrária;

2 - todas as atividades para a obtenção da bauxita (escavações e deposição de

rejeitos nas cavas) ocorrerão sobre o aquífero Alter-do-Chão, importante reserva de

água doce que atravessa dois estados (Pará e Amazonas);

3 - o porto está localizado às margens do rio Amazonas, rio internacional, sem

que tal impacto tenha sido nem mesmo corretamente mensurado ou nem sequer

estudado;

4 - todo o Projeto Juruti está contido na bacia hidrográfica do Amazonas, sob

jurisdição federal;

5 - há o registro de 73 ocorrências de sítios arqueológicos na Área de Influência

Direta (AID), até esta fase;

6 - na AID existem espécies vegetais (castanheiras, pau-cravo, pau rosa)

protegidas pela legislação ambiental;

7 - na AID existem os ecossistemas de várzeas.

Negociações - Após a mobilização da população atingida pelo grande projeto de

mineração que deve durar entre 80 a 100 anos, uma rodada de negociação foi realizada

entre 9 a 11 de fevereiro, no município polo da região, Santarém.

Além dos atingidos pelo projeto, participaram dos debates o representante da

Alcoa na América Latina, Franklin Feder, os Ministérios Públicos, Prefeitura de Juruti e

representantes do Governo do Estado. A rodada teve várias divisões. Dia de debate com

todos os envolvidos na questão, dia dedicado ao debate entre os atingidos e a empresa e

uma rodada de negociação encerra com a participação de Walmir Ortega, então

Secretário de Meio Ambiente do Pará, informa Pereira.

Reivindicações – A Associação das Comunidades de Juruti Velho exige entre

outras coisas a participação de 1,5 % nos lucros da empresa, investimentos em

educação, saúde e moradia e a definição de uma agenda de compromisso. Gerdeonor

Pereira esclarece que a primeira reivindicação já foi atendida.

Page 27: Poroca Pequena

30

Tal tipo de empreendimento na Amazônia coloca em lados opostos grandes

corporações com staff de capacidade internacional de negociação e populações

consideradas tradicionais. Tanto no caso do Pará como na fronteira do Maranhão com o

Tocantins, a empresa apresenta um discurso de redenção da pobreza através do grande

empreendimento, que deve ser seguido como se fosse um mantra da prosperidade.

A cooptação de políticos e agentes que representem algum tipo de liderança

consta como agenda da ação da empresa, em particular para fazerem coro pró-

empreendimento nas audiências públicas onde são apresentados os estudos de impactos

ambientais.

A empresa também não se descuida em “convencer” os meios de comunicação

locais da sua nobre causa. É raro algum veículo de comunicação dar visibilidade sobre

as mazelas dos grandes projetos. No caso da Alcoa nenhum veículo informou que a

mesma opera de forma ilegal. O destaque conferido recaiu sobre a nota da empresa

sobre os possíveis prejuízos.

Tanto no caso da usina de Estreito, como no caso da exploração mineral em

Juruti, o fato foi verificado. Qualquer questionamento que soe a ambientalismo é logo

satanizado. E os portadores de inquietações sobre os impactos socioambientais tratados

como agentes que defendem o “atraso” do lugar.

O processo de licenciamento das obras e as populações tradicionais locais são

classificados como os grandes entraves pelos empreendedores. Os mesmos podem ter

em breve as suas demandas aceitas no que tange ao processo de licenciamento de obras

na Amazônia. Ao menos, se depender do esforço de Mangabeira Unger, que deseja

azeitar o já delicado processo.

O desenvolvimento e o progresso formam a dorsal do discurso de defesa dos

grandes empreendimentos, que segundo as empresas, vai fazer germinar como se fosse

leite e mel, o emprego e a fortuna nos rincões. Numa clara linha de desinformação sobre

a lógica que conforma tais empreendimentos nas periferias do planeta, o enclave. Ou

seja, o saque dos recursos naturais.

Page 28: Poroca Pequena

31

Mineração na Amazônia e os eixos de integração do continente

O extrativismo tem regido a economia na Amazônia. O ciclo mais recente é o

mineral, iniciado a partir da década de 1950, no estado do Amapá, quando o mesmo

ainda tinha o status de território.

A exploração do manganês na Serra do Navio foi o pontapé inicial, e que em

apenas cinco décadas se exauriu, restando apenas o buraco, literalmente. A exploração

mineral no Amapá, considerada a primeira na Amazônia, foi protagonizada pela

empresa estadunidense de Daniel Ludwig, a Bethlehem Steel Company em sociedade

com o empresário Augusto Trajano de Azevedo Antunes, dono da Indústria e Comércio

de Mineração S. A. (ICOMI).

O ciclo da mineração ganhou maiores proporções na Amazônia a partir da região

de Carajás com a presença da Vale na extração do minério de ferro na década de 1980,

no Pará.

É creditado a Eliezer Batista, ex-executivo da Vale, a construção do mapa das

riquezas naturais na América do Sul. Batista é pai de Eike, festejado como o novo

bilionário nacional. Obra do acaso? Os levantamentos de Batista foram encomendados

pela Corporação Andina de Fomento (CAF). A CAF é um dos agentes do projeto de

Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

Do conjunto de 10 eixos de integração, quatro se destacam, por suas riquezas

naturais e possibilidades de conexões: o Amazonas, o Hidrovia Paraná-Paraguay, o

Capricórnio e o Andino. O objetivo central prima em facilitar a circulação de

mercadorias.

O eixo do Amazonas compreende os seguintes países: Colômbia, Peru, Equador

e Brasil e visa criar uma rede eficiente de transportes entre a bacia amazônica e o litoral

do Pacífico, com vista à exportação.

Nesse sentido o BNDES exerce protagonismo continental, financiando obras de

integração além de nossas fronteiras. Outro ator importante no longa metragem de

extração das riquezas do continente é o Banco Interamericano de Desenvolvimento

(BID).

No mundo do Brasil, alguns se arriscam em pontuar que o Programa de

Aceleração do Crescimento (PAC) é uma miniatura do IIRSA.

Page 29: Poroca Pequena

32

Antes do fim

No dia 16 de setembro de 2009 o Pará viveu um dia histórico. Em Belém o

aparato policial foi usado contra populares numa audiência pública sobre o projeto da

hidrelétrica de Belo Monte. Já no município de Juruti a governadora Ana Júlia Carepa

(PT) cortava a fita do projeto de mineração de bauxita da Alcoa. Além de cortar a fita a

governadora plantou uma árvore. Uma exacerbação do marketing.

Os dois projetos estão localizados na mesma região, sudoeste do estado. Numa

foto de um diário local a governadora aparece amparada pelo representante da Alcoa na

América Latina, Franklin Feder. Ainda na mesma foto destaque para o ministro das

Minas e Energia, Edson Lobão, uma figura íntima do senador José Sarney. Desde o

regime de exceção. Essa tal de governabilidade....

Mais irônico, o Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), acabava de apresentar

relatório onde indica que a produção de alumínio é um desastre para região amazônica.

Page 30: Poroca Pequena

33

GERAÇÃO DE ENERGIA NA AMAZÔNIA - CASO DE ESTREITO E M

QUESTÃO5

O presidente Lula inaugurou no dia 04 de outubro de 2008 a segunda casa de

força da hidrelétrica de Tucuruí, no sudeste do Pará. A UHE de Tucuruí é a maior

hidrelétrica genuinamente nacional e foi erguida no rio Tocantins há 24 anos para

alimentar com energia subsidiada empresas de produção de alumínio no Pará, Albrás e

Alunorte, do grupo Vale e a Alumar, no Maranhão, da estadunidense Alcoa. 75% da

produção de energia de Tucuruí vão para a exportação e o estado possui uma das tarifas

domésticas mais caras do país. O derradeiro reajuste foi de 16% na tarifa doméstica.

A segunda casa tem potência instalada de 4,1 mil megawatts. Junto com a

primeira casa de força a potência instalada de Tucuruí vai ser de 8,3 mil megawatts. O

maior empreendimento do setor de energia encontra-se em construção no mesmo rio, na

fronteira do estado do Maranhão com o Tocantins, no município de Estreito.

A construção de hidrelétricas na Amazônia integra um portfólio de projetos

baseados no uso intensivo dos recursos naturais da região. O modelo de

desenvolvimento tem na concentração da terra, renda e do poder político e econômico

seus pilares e ativa tensões entre populações consideradas tradicionais e grandes

corporação do capital mundial.

No caso de Estreito, tais projetos tensionam com comunidades indígenas Krahô,

Apinajé, no estado do Tocantins, e Gavião e Krikati no Maranhão. Na fronteira há ainda

pescadores, extrativistas e camponeses, ladeados por reservas como a Serra das Mesas

do lado maranhense e um sítio de árvores fossilizadas no Tocantins. A hidrelétrica de

Estreito prestes a completar o terceiro ano em fevereiro de 2009 avança sobre o rio.

5 Reportagem publicada originalmente no blog Furo em novembro de 2008 e reproduzida no site do www.forumcarajas.org.br, que apoiou o trabalho.

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34

Estreito em questão – um mapa de enclaves

Sinalização na fronteira do Maranhão com o Tocantins – by Rogério Almeida/2008

A BR-010 corta o município de Estreito, oeste do Maranhão. A cidade há três

anos tinha uma população estimada em 10 mil habitantes localizados na sede do

município de um total de 26.490, conforme os dados do ano de 2007 do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda conforme o IBGE, até 2001 a

população total do município era calculada em torno de 22.930 habitantes, bem antes do

início da obra, em fevereiro de 2007.

BR-010- município de Estreito/MA- by Rogério Almeida/2008

O município de Estreito encontra-se numa região repleta em implantação de

grandes projetos públicos e privados. A cidade dista 100 km do polo de soja

considerado um dos mais importantes do país, na cidade de Balsas, sul do Maranhão e

tem como vizinha Aguiarnopólis, cidade do norte do Tocantins e fica mais de 500 km

da capital do estado, São Luís. Os economistas tratam o modelo econômico de enclave,

traduzindo, não dinamiza a economia local.

Além do polo de soja, impactam o município a implantação da ferrovia Norte-

Sul, a ampliação da BR-010 e a construção do maior projeto hidrelétrico do país, a

hidrelétrica de Estreito, no rio Tocantins. Não muito distante dali, no município de

Page 32: Poroca Pequena

35

Açailândia, um polo de gusa dinamiza uma cadeia de destruição ambiental e de trabalho

escravo para a produção do carvão vegetal.

O grotão e o planeta

O empreendimento da UHE de Estreito pluga o grotão marcado por inúmeras

chacinas de camponeses ao resto do mundo através da geração de energia. O

empreendimento pertence ao Consórcio Ceste, que aglutina as grandes corporações do

quilate da Camargo Corrêa (4,44%), Alcoa (25,49%), Vale (30%) e a belga Suez-

Tractebel (40,07%).

O custo da obra é estimado em R$ 2,5 bilhões para que Estreito gere 1.087 MW

de energia. Os barramentos no rio devem ultrapassar a casa das 50 unidades entre

grandes e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH). As PC produzem no máximo 3 mil

kw. Ambientalistas que tratam sobre barragens advertem que caso se sacramente o

planejamento estatal, o rio Tocantins deve se transformar num grande lago, onde os

impactos ambientais e cumulativos são imensuráveis.

A radical alteração do ciclo de reprodução dos peixes, destruição da mata ciliar e

inundação de florestas nativas que abrigam animais silvestres são alguns dos impactos

pontuados. Empreendimentos de grande porte tendem a atrair grandes contingentes de

migrantes. 5.500 operários da construção civil estão no canteiro de obras atualmente.

Cabe interrogar: para onde essa população irá após a conclusão da obra, prevista para

2010?

Estreito e Carolina no estado do Maranhão, e Aguiarnópolis, Babaçulândia,

Barra do Ouro, Darcinópolis, Filadélfia, Goiatins, Itapiratins, Palmeirante, Palmeiras do

Tocantins e Tupiratins serão os municípios afetados diretamente pela obra. As cidades

abaladas pelo empreendimento tendem a ter os preços da terra, o aluguel e a venda de

imóveis inflacionados. As periferias proliferam ladeadas pela marginalidade, aumento

de consumo de álcool e a criminalidade. Até três anos atrás no município de Estreito

não se via mendigos nas ruas. Um passeio na rodoviária local indica a alteração dessa

realidade.

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36

Ao fundo a ponte que separa o município de Estreito/MA da cidade de Aguiarnópolis/TO by Rogério Almeida/2008

Carros das empresas sinalizados com uma bandeira vermelha com um xis,

homens fardados de variadas indumentárias que indicam a variedade de empresas que

atuam no canteiro de obras da barragem, ônibus que os carregam agora fazem parte da

paisagem na cidade. O trabalho é terceirizado.

A hidrelétrica de Estreito encontra-se em croquis dos planejadores de velha data.

Localiza-se na bacia Araguaia-Tocantins, considerada a de maior em potencial de

geração de energia hidroelétrica do Brasil. Tal modelo de empreendimento ratifica uma

economia baseada no uso intensivo dos recursos naturais, ou seja, extrativa.

BR-010- a rodovia escoa a produção de soja do sul do Maranhão – by Rogério Almeida/2008

O hoje ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, reconhecido pelos serviços

prestados à ditadura, integrante do ninho da família Sarney, ainda quando senador foi

um dos mais fervorosos defensores da implantação da hidrelétrica de Estreito. Dono de

meios de comunicação na região Tocantina, cedeu os veículos que controla para que

alardeassem as “benesses” da instalação do empreendimento.

A Tractebel em Goiás

Bento Rixen, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Goiás em artigo de 2003,

numa publicação do Fórum Carajás, “Escritos sobre a água” alerta sobre os passivos

Page 34: Poroca Pequena

37

sociais e ambientais provocados pela empresa na construção da hidrelétrica de Cana

Brava, nos município de Minaçu e Cavalcante.

Por conta da indiferença dos diretores da Tractebel em relação às populações

atingidas a CPT mobilizou a visita de um grupo de representantes de ONG belgas. Os

militantes internacionais puderam conhecer o cotidiano das famílias que foram expulsas

de suas terras e os desdobramentos do lago que surgiu depois da construção da

barragem.

Rixen no artigo explicita que a indenização proposta aos atingidos pela barragem

ficou no patamar de R$ 5.300,00. O militante da CPT adverte que muitos não aceitaram

esse valor considerado uma “mixaria”. No Ministério Público de Brasília e em Goiânia

um documento enumera 804 famílias cadastradas como atingidas.

O reassentamento é uma das questões mais delicadas no processo de

implantação de hidrelétricas. Em geral não se consegue reproduzir as mesmas condições

de reprodução de vida das origens dos trabalhadores rurais. Esse tem sido um

questionamento constante, e a construção de Lajeado e Serra da Mesa, no estado do

Tocantins ratificam a tese sobre a questão.

A equipe de belgas visitou uma área de 26 famílias reassentadas pela empresa

Tractebel. Apesar de boa casa e uma parcela de 20 ha, eles não estão bem. Entrevistados

reclamam que só é possível produzir em um hectare, posto ter de manter a reserva

ambiental e a impossibilidade de plantar sobre os morros. Segundo a família, a

plantação tem de ser irrigada, entretanto, eles não possuem dinheiro para pagar a

energia da bomba de irrigação, revela Rixen.

Um grupo de 42 famílias na época vivia debaixo da lona preta na periferia de

Minaçu. Os belgas denunciaram que eles ficaram sem comida, sem água potável e sem

emprego. A “moradia” ficava a 500 metros de uma área de mineração de amianto, em

um terreno que a própria prefeitura cedeu.

Em outro local de visita da equipe as terras férteis viraram brejos por conta da

proximidade com o lago da barragem. Tornou-se impossível produzir os alimentos para

sustento da família. O cheiro de fermentação e os mosquitos completavam o quadro

crítico.

Page 35: Poroca Pequena

38

Desenvolvimento para quem?

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o

principal agente financiador da obra, ou seja, a sociedade financia um modelo de

desenvolvimento arcaico. Não seria mais prudente o Estado induzir um modelo de

desenvolvimento contrário, em setores intensivos em tecnologia, por exemplo?

Artigo no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, edição de outubro de 2008, do

professor João Roberto Lopes Pinto, da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ),

baseado em relatórios do próprio BNDES, indica que tal opção de desenvolvimento

intensiva no uso dos recursos naturais, induz a um crescimento menor de renda e da

produtividade, onde prevalecem a ocupação informal, precária e de baixa qualificação.

Gozam da gentileza do Estado o setor da mineração, celulose e etanol.

Tal modelo de desenvolvimento induzido pelo Estado tende a fortalecer ainda

mais as desigualdades existentes no país. Nesse sentido um conjunto de organizações

sociais e políticas organizaram a frente “Plataforma BNDES,” explica o artigo do

professor Pinto. A frente deseja pressionar o governo para que reoriente a política do

BNDES em favor de um desenvolvimento que busque a superação das desigualdades e

promova os direitos sociais.

Pinto reflete que a Plataforma argumenta que se faz necessário, entre outros

pontos:

a) fortalecer a economia de base camponesa e familiar, que garante produção

para o mercado interno;

b) descentralizar o crédito e que fomente a diversificação produtiva e a inovação

técnica;

c) incentivar a participação pública em obras de infraestrutura social, como uma

política de saneamento básico.

Page 36: Poroca Pequena

39

Comissão Mundial de Barragens Adverte

Canteiro de obra da hidrelétrica de Estreito/MA – by Rogério Almeida/2008

Entre os anos de 1997 e 2000 uma comissão realizou estudos sobre a construção

de barragens em todo o mundo. Tucuruí foi o caso selecionado na América Latina. A

construção de barragens do Brasil é responsável por 40% do valor da dívida externa.

Entre os impactos da construção de barragens como a de Estreito os estudos

organizados pela Comissão Mundial de Barragens (Banco Mundial, construtores,

atingidos por barragens, pesquisadores) verificaram-se:

a) o alagamento e a salinização afetam um quinto das terras irrigadas no mundo,

incluindo terras irrigadas por grandes barragens e apresentam graves impactos de longo

prazo, muitas vezes permanentes, sobre a terra, a agricultura e a subsistência da

população;

b) as grandes barragens provocam impactos cumulativos sobre a água,

inundações naturais e a composição de espécies quando várias barragens são

implantadas em um só rio (caso da bacia Araguaia-Tocantins);

c) as grandes barragens provocam destruição da floresta e locais selvagens, o

desaparecimento de espécies e a destruição das áreas de captação à montante devido à

inundação da área do reservatório;

d) as grandes barragens provocam o deslocamento de 40 a 80 milhões de pessoas

em todo o mundo; muitas das pessoas deslocadas não são reconhecidas (ou cadastradas)

como tal e, portanto, não são reassentadas ou indenizadas.

Page 37: Poroca Pequena

40

Histórias de garimpeiros

Na região as histórias de venturas e desventuras sobre a busca de riqueza fácil

em garimpos no Pará é generosa. Francisco foi o moto-taxista que serviu como guia na

ensolarada Estreito. Ele soma uns 40 anos e é filho de migrantes do Ceará, estado que

nunca chegou a retornar após ter ficado adulto. O nosso guia perambulou pelos

garimpos do sudeste do Pará nos municípios de Xinguara, Rio Maria, Redenção e São

Félix do Xingu.

Mamão, Pedra Rica, Camuru são alguns dos garimpos em que Francisco passou.

Num deles ganhou um pouco de dinheiro com o ouro encontrado. Fala que não guardou

muito da sorte que teve na década de 1980. “Dinheiro de garimpo parece que é

amaldiçoado. Nunca durou muito”, reflete o moto-taxista. Francisco informa que passou

no maior garimpo a céu aberto do mundo, o de Serra Pelada, mas não ficou por lá.

Ele lembra de pessoa que “bamburrou“ (achou muito ouro) até 300 quilos de

ouro. Teve fortuna em fazendas de gado e casas, como o caso de um garimpeiro que

mora em Estreito conhecido como Índio. O afortunado é do município de Codó. Quando

ele pegou o dinheiro comprou uma penca de carros e invadiu a cidade natal exibindo o

“sucesso” em terras paraenses, conta Francisco.

Nas idas e vindas de Francisco ao Pará em busca de riqueza perdeu dois irmãos.

A perda mais trágica foi a do caçula. Francisco lembra que o irmão tinha apenas 16

anos, e que era muito generoso com as pessoas ao redor. Mas, a realidade do garimpo

não permite tal atitude. Após achar uma pequena porção de ouro foi tocaiado e morto

por parceiros de farra em bebidas e cabarés. Outro irmão não tem notícia faz mais de 15

anos. Francisco acredita que ele mora em Redenção, sudeste do Pará.

Page 38: Poroca Pequena

41

A busca pelas fotos

Canteiro de obra da hidrelétrica de Estreito/MA – by Rogério Almeida/2008

Falo a Francisco do interesse em fazer fotos da obra da UHE de Estreito. Ele

sugere que alugue uma canoa. Somente ela pode levar você até o local onde a

construção começou. Numa viagem até um portinho tenho sorte, deparo-me com José

Antônio por volta das 11h da manhã de um dia escaldante. Antônio entre outras

atividades é pescador, feirante e dono de sítio.

Antônio, nosso timoneiro na arriscada viagem no caudaloso Tocantins. Estreito/MA/2008.

Passou toda a manhã numa exaustiva viagem, onde foi buscar a esposa e uns

porcos para criar no sítio que tem na periferia do município de Estreito. Acusando

cansaço resistiu em pegar a empreitada de uma viagem que durou mais de uma hora (ida

e volta) no caudaloso Tocantins até o canteiro da obra. A viagem ganha em emoção

posto o motor da canoa padecer de panes quando esquenta. O jeito é parar e apreciar a

paisagem.

No portinho algumas embarcações. Uma barraca comercializa bebidas.

Moradores se divertem no rio e tomam umas pingas. As casas humildes destoam do

gigantismo da obra vizinha. A arquitetura de compensado e cobertura de palha socorre

Page 39: Poroca Pequena

42

os moradores nos dias de chuva. Antônio limpa a merda dos porcos da canoa e

iniciamos a viagem. Ainda de onde saímos é possível avistar o local.

Portinho na cidade de Estreito/MA

Dragas, barcos de vigilância, numa paisagem aonde é possível se avistar

babaçuais e outros tipos de vegetação antecipam a nossa chegada. A passagem de uma

embarcação veloz conhecida como voadeira forma banzeiros e faz a nossa canoa sacudir

no meio do Tocantins. Antônio sugere cuidado. O pescador avisa que os vigilantes do

barco ficam ali para impedir que a passagem dos ribeirinhos quando usam dinamite na

obra. Segundo ele, as explosões são comuns no raiar do dia e no apagar da tarde.

Draga no rio Tocantins, município de Estreito/MA. By Rogério Almeida/2008

Há luz nos grotões?

A instalação da hidrelétrica de Estreito coleciona inúmeros capítulos. Os

relatórios de impactos socioambientais amplamente criticados, as ações nos Ministérios

Públicos do Maranhão e Estreito, mobilizações do Movimento dos Atingidos por

Barragens (MAB), apoiados pelo MST, atentado à bala de um gerente de operações

contra militantes contrários à instalação da barragem, greve de operários do canteiro de

obras por conta da péssima qualidade da comida e assédio moral de um gerente, que

acabou sendo espancado pelos operários.

Page 40: Poroca Pequena

43

O progresso, a geração de emprego e o desenvolvimento são os argumentos dos

alinhados na defesa do projeto. Qualquer voz que destoe de tal perspectiva é tratada

como ressonância de forças externas que não desejam o progresso do país. É comum a

ojeriza a movimentos sociais e manifestações de xenofobia a análises e ONG

internacionais que fazem oposição ao modelo do empreendimento.

Isso foi verificado desde o processo de audiências públicas. A força da “grana”

coopta de clérigos a políticos, passa pelo incentivo à criação de associações de fachada,

como o caso da Associação de Atingidos pela Barragem, entre outras. As audiências

que seriam um espaço de debate possuem ares de congresso de “partido único”, isso na

capital ou no interior.

A propaganda é a alma do negócio?

Máquinas no aterramento do rio Tocantins/MA. By Rogério Almeida/2008

Os boletins do Ceste celebram uma série de ações junto aos mais diversos

segmentos da sociedade. Um posto de atendimento ao migrante localizado na pequena

rodoviária indica para que as pessoas façam ficha no Sistema Nacional de Emprego

Page 41: Poroca Pequena

44

(SINE), sempre com filas enormes. Escritórios do consórcio se espraiam em cidades

estratégicas nos dois estados.

Os jornais do consórcio celebram ainda cursos que passam pela “inclusão

digital” com a Colônia de Pescadores Z-35, que se manifestou contra o acampamento do

MAB, doação de ambulância, doação de computadores a unidades de saúde, o que

traduz uma confusão sobre o papel do Estado e o da empresa. São ofertados ainda em

parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), cursos de

panificação e costura.

Não raro os boletins inundam suas páginas com depoimentos de famílias que já

foram desapropriadas pelo Consórcio. Tudo é flor nesse jardim? Uma série de

reportagens de Beatriz Camargo, publicada no site Repórter Brasil, no mês de julho

indicam que não. Sobre a especulação imobiliária, a série indica que houve pressão por

parte de pessoas de empresas terceirizadas na compra de imóveis, com vistas a serem

desapropriados com um melhor preço pelo consórcio.

A não inclusão dos povos indígenas como setores que podem ser afetados pela

construção é outro ponto. O certo é que desde o começo do processo há uma série de

temas nublados. Enquanto isso as obras avançam sobre o rio, sobre as histórias das

populações locais, a reconfigurar uma região prenhe em conflitos na disputa pela terra e

os recursos naturais nela existentes.

Aterramento do rio Tocantins, Estreito/MA. by Rogério Almeida/2008

Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR)

Raimundo Carvalho, conhecido como Cabeça Branca, dirigente sindical rural de

Estreito, explica que no começo todo mundo achava que a barragem ia ser boa. Aos

poucos o povo vai aprendendo que não é bem assim. Carvalho foi operário na

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45

construção da barragem de Boa Esperança, no rio Parnaíba, no estado do Piauí na

década de 1960, e também um atingido pela própria obra que ajudou a erguer.

Carvalho- dirigente sindical rural, no município de Estreito/MA. by Rogério Almeida/2008

Carvalho lembra que com o dinheiro que ganhou não conseguiu comprar nem

metro de terra depois. “Com a terra a gente comia todos os dias, ganhava um

dinheirinho e podia trabalhar a família por muito tempo. Dinheiro não é tudo na vida”,

arremata o senhor. Ele alerta que a média de indenização tem sido de R$ 30 mil. Ele

teme pelos idosos. “Tenho um colega que mora só. Vai ser desabrigado. Tem uns 80

anos. O que ele vai fazer aqui na cidade?”, interroga o sindicalista.

Construção civil - sindicato em construção

Paisagem na beiro do rio Tocantins, município de Estreito/MA. by Rogério Almeida/2008

Delfino Araújo é o presidente do recém criado Sindicato da Construção Civil de

Estreito, que tem 140 sócios como fundadores. Ele explica que o registro para a criação

do sindicato foi publicado no Diário Oficial em fevereiro deste ano. O sindicato ainda

está em fase de construção, é o que se conclui após a conversa com o dirigente.

Araújo ainda não sabe quantificar quantas empresas estão no canteiro de obras

da hidrelétrica e nem o número preciso de operários. Ele informa que já solicitou os

dados para o setor responsável.

Page 43: Poroca Pequena

46

Sobre a paralisação de 11 dias dos operários no mês de julho, Araújo relata que

as condições precárias de trabalho e a ração foram os motivadores. O dirigente alerta

que o sindicato necessita tomar pé dos dados, para que possa garantir uma intervenção

qualificada.

Page 44: Poroca Pequena

47

SIDERURGIA EM CRISE: O VENDAVAL DA ECONOMIA ESPECUL ATIVA

E A MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA 6

Quando o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) anunciou a realização da

Exposição Internacional da Mineração da Amazônia, no Centro de Convenções Hangar

em Belém, que ocorreu entre 10 e 13 de novembro de 2008, a crise econômica mundial

ainda não havia dado o ar de sua graça em plagas regionais. O anúncio foi realizado

pelo menos um mês antes.

O vendaval da especulação da economia fez com que o polo de siderurgia de

Carajás entrasse em refluxo. As empresas instaladas nas cidades de Marabá, sudeste do

Pará e no município de Açailândia, oeste do Maranhão, promoveram vários expedientes

para manter o quadro funcional, entre eles férias coletivas.

José Sampaio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Açailândia, reflete

que o clima é de incerteza. A imprensa do município salienta que o comércio local já foi

atingido pela crise e que houve uma redução de 25% de sua dinâmica. Sampaio informa

que o setor deu férias coletivas a 20% dos funcionários no dia 31 de outubro. O

sindicato tem orientado para que os operários não façam dívidas.

Sampaio, sindicalista em Açailândia/MA. by Rogério Almeida/2008

O ferro-gusa da região tem os EUA como o principal destino. O mercado

americano consumiu no ano de 2007 cerca de 5,95 milhões de toneladas, mais de 60%

das exportações nacionais. A queda de preços tem sido vertiginosa, a tonelada que

chegou a US$900,00 no começo de 2008, em agosto ocupou a casa de US$500,00 a

US$600,00 e por último as empresas estrangeiras ofereciam US$380,00 quando o

6 Trabalho publicado no site da rede www.forumcarajas.org.br em novembro de 2008.

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patamar suportável é a casa dos US$500,00, conforme matéria do Valor Econômico do

mês de outubro.

O site oficial do evento festeja a participação de 85 empresas de várias partes do

país, como São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Ceará, Rio de Janeiro, Paraná, Rio

Grande do Sul e Bahia, deste total 25 empresas são do Pará. O Estado é um gigante do

setor, e muito se deve aos números estratosféricos da mina de Carajás.

Cogita-se que pelo menos cerca de 80% do superávit da balança comercial do

Pará deve-se ao extrativismo do minério de ferro. A se considerar o delicado contexto, o

evento que propagou ser uma oportunidade de lançamento de novas tecnologias e métier

de negócios, ganhou outros ares. O clima do evento tornou-se mais sombrio com a

libertação de 51 pessoas em condições análogas a escravidão em carvoarias no sudeste

do Pará no dia da abertura. Entre os libertados mulheres e menores de 15 anos.

Carreta de carvão na região de Açailândia/MA. by Rogério Almeida/2008

As grandes corporações da mineração em nota à mídia celebram os louros do

evento, onde, segundo eles, pode-se notar a preocupação com a questão da

sustentabilidade. Ao se visitar os grotões onde as empresas operam, outro mundo

desponta. Parece que os especialistas são de outro planeta. Sobre a questão, o professor

de semiótica Edílson Cazeloto em artigo intitulado “Entre ecorrevolucionários e

ecorreformistas o papel da mídia”, publicado na edição 36, setembro DE 2007 da revista

Democracia Viva/IBASE, esclarece com sobriedade a disputa sobre a categoria.

Em um trecho da análise o professor enfatiza:

Enquanto a maior parte da humanidade vê no aquecimento global a

iminência de uma tragédia ímpar, os bens aventurados do capital, já

sentem no ar o cheiro de oportunidades para o lucro. Para essa

parcela, a sustentabilidade tornou-se uma forma de agregar valor às

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49

marcas de seus produtos e ao capital de suas empresas. É o chamado

capitalismo verde, que vem ganhando a adesão de empresas (na

maioria, corporações globais) como um novo Eldorado (GAZELOTO,

2007).

O polo de Carajás – Em seu artigo, o sociólogo e agrônomo Raimundo Gomes

da Cruz Neto dispara que já no século VII tem-se registro da atividade de siderurgia no

mundo. No século XIX a indústria impulsionou a economia dos Estados Unidos. No

Brasil a atividade ganha relevância no início dos anos de 1930, tempos de Getúlio

Vargas. A atividade aporta no Pará na década de 1980 através do Programa Grande

Carajás (PGC), no apagar da ditadura militar. O autor acompanha os abissais processos

de transformações da região de Carajás de velha data.

Ponte ferroviária da Vale que escoa o minério de ferro no município de Açailândia/MA by Rogério Almeida/2008

15 empresas constituem o polo, sendo oito no Pará e sete no Maranhão - são

responsáveis, atualmente, por mais de 60% das exportações brasileiras de ferro-gusa, o

principal insumo na indústria do aço, informa site do Sindicato das Empresas de Ferro-

Gusa do Estado do Pará. Um dos setores interessados é a indústria bélica.

A Vale é a responsável pelo fornecimento da matéria-prima para a produção de

gusa do polo de Carajás, que há mais de duas décadas ativa uma série de cadeias de

destruição ambiental e de formas análogas de trabalho escravo através da produção de

carvão vegetal.

Medidas mitigadoras?

A pressão nacional e internacional fez com que o setor lançasse em fevereiro de

2007, um fundo de reflorestamento, com a adesão de 11 empresas. A iniciativa é no

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mínimo estranha, posto que entre as exigências para a instalação das empresas na

região, que se deu a partir de uma política de renúncia fiscal através da

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), um dos itens impostos

recai sobre uma política de reflorestamento. Outra medida no sentido de fazer oposição

ao trabalho escravo foi a criação do Instituto Carvão Cidadão (ICC), ou seria uma mera

questão de marketing, travestida em responsabilidade social?

Por essas e outras, as siderúrgicas foram multadas em R$ 550 milhões no ano de

2005, que poderia chegar a até R$ 770 milhões, se fosse aplicado o que rege o Código

Florestal e a Lei de Crime Ambiental. Hoje, só no Distrito Industrial de Marabá estão

em funcionamento oito siderúrgicas, perfazendo um total de 17 alto fornos, para uma

produção de quase três milhões de toneladas de ferro-gusa, recupera Raimundo Gomes

em artigo intitulado “Siderurgia em Carajás - 20 anos de destruição”. No Pará a

Secretaria de Meio Ambiente realizou várias operações de fiscalização para ajustamento

de condutas das empresas.

Placa indica o perigo na área de depósito dos resíduos do polo de gusa em Açailândia/MA. by Rogério Almeida/2008

Neste contexto a monocultura de eucalipto tem assim florescido em alguns

municípios do nordeste do estado, na região de Paragominas e em Marabá e São João

do Araguaia, a sudeste. No Maranhão existe desde remotos tempos, com a destruição do

cerrado. O propósito era a implantação de fábrica de celulose, que não veio a

deslanchar, devido ao recuo de um grupo oriental. O que ocorreu foi o não cumprimento

de um item do acordo por parte das empresas. Um dos muitos descumpridos.

Maurílio de Abreu Monteiro, professor da Universidade Federal do Pará

(UFPA), explica que para a produção de uma tonelada de ferro-gusa é preciso queimar

2,6 toneladas de madeira. Como a produção de gusa na região Norte em 2003 foi de 2,2

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51

milhões de toneladas, isso representa a queima de 5,7 milhões de toneladas de madeira.

David Carvalho, economista, também professor da UFPA em vários artigos sobre a

mineração atesta tratar-se de um projeto de enclave, em resumo, não dinamiza a

economia local.

Antes do turbilhão da crise o cenário da mineração no Pará vivia um momento

de ampliação com a expansão de várias frentes de exploração, que ultrapassam a

fronteira de Carajás, como no caso dos municípios de Ourilândia do Norte, Tucumã,

Xinguara, São Félix do Xingu, Paragominas e Juruti. Vale e Alcoa protagonizam o

momento de transbordamento das frentes.

Momento marcado por tensão entre trabalhadores rurais assentados pela reforma

agrária a Mineração Onça Puma, do grupo Vale. As organizações de defesa dos direitos

humanos da região, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), tornaram a situação

pública.

Não bastassem as questões de ordem ambiental e social, soma-se ao setor a Lei

Kandir, que isenta de imposto a exportação dos minérios e semi-elaborados. O

descompasso rege a modalidade de extrativismo mineral, enquanto o faturamento da

Vale cresce, somente no Pará tem sido maior que o crescimento nacional, a região de

Carajás coleciona passivos de toda ordem.

Distrito de Pequiá, onde se localiza o polo de gusa no município de Açailândia/MA. by Rogério Almeida/2008

21 municípios do Pará estão entre os 100 que mais desmatam na Amazônia.

Dessas duas dezenas de cidades, 19 estão no sudeste do Pará, que além da mina abriga o

polo siderúrgico. Boa parte desses municípios ocupa linha de frente em desmatamento e

também lidera o ranking de violência. Os estudos foram realizados através do Projeto

Prodes – Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite/2007. Outra

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52

questão, esta de ordem trabalhista, reside em índices recordes de ações contra a Vale no

município de Parauapebas.

Gusa em Açailândia - A oeste do Maranhão no município de Açailândia

operam quatro empresas, Vale do Pindaré, Viena Siderúrgica, Gusa NE e Fergumar y

Simasa. Relatórios da área ambiental atestam que as empresas não nutrem demasiado

zelo quando o assunto é meio ambiente. Todos os resíduos ganham a vizinhança sem

nenhum tratamento, Famílias afetadas pelas poluições das empresas, em particular da

Gusa NE, com sede em Belo Horizonte e filiada ao ICC, têm denunciado a questão. No

total são 20 processos contra a empresa que reivindicam indenizações da gusa e que

duram mais de três anos.

Tempestade de escória em Pequiá-Açailândia/MA. by irmão Antonio/2008

Dois relatórios que abordam os impactos do polo de gusa sobre a vizinhança se

complementam quanto os danos provocados à saúde das famílias do Destrito Industrial

de Pequiá, onde as empresas encontram-se instaladas. Informações do relatório da

perícia ambiental realizada no fim de 2006 e apresentado em março de 2007 pelo perito

Ulisses Brigatto Albino, para a Vara Judicial da Comarca de Açailândia indicam

desleixo em várias situações sobre a operação da Gusa NE. A empresa opera amparada

por Licença de Operação fornecida pela Secretaria de meio Ambiente do Maranhão, que

venceu no dia 19 de outubro de 2008.

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Poluição no Distrito de Pequiá-Açailândia-MA. by irmão Antonio/2008

Um estudo realizado pela engenheira ambiental Mariana de la Fuente Gómez,

datado de 2007, ratifica os dados sobre os danos ao meio ambiente e à saúde dos

moradores da região. Edvar e Joaquim, dois senhores que mobilizam os moradores para

a organização da luta pelos seus direitos, lembram que a comunidade existe desde a

década de 1970, e que o polo começou nos anos 1980. Eles recordam que ainda havia

muita mata na região e que a exploração da madeira foi a primeira frente da economia

do lugar.

Distrito de Pequiá

As casas ficam emprensadas entre a BR-222, num elevado, e as empresas. A

perícia indica que a presença das famílias antecede as indústrias. A idade das árvores

dos quintais, muitas com mais de 20 anos, que ultrapassa o período de instalação das

gusas atesta a tese.

A empresa Gusa Nordeste opera três alto-fornos, nenhum possui filtro anti-

partículas nas chaminés, que emitem grande quantidade de fuligem de carvão e minério.

Em todas as seis casas visitadas pelo perito o pó da fuligem foi encontrado. Os pátios

das empresas ficam próximo aos quintais das casas. Os riachos padecem com os

resíduos das fábricas e com o esgoto sem tratamento das moradias.

Page 51: Poroca Pequena

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Via pública de Pequiá, Açailândia/MA. by Rogério Almeida/2008

Gases, fuligem, poeira, águas poluídas e escória são alguns dos agentes da

poluição da comunidade de Pequiá, que soma cerca de 1.500 famílias em moradias

humildes, muitas de madeira e não atendidas com saneamento básico. Problemas de

ordem respiratória, alergias, dores de cabeça são algumas das queixas dos moradores, o

que já registrou até o óbito de uma criança.

Uma cerca de arame separa a área do polo de gusa dos quintais das residências em Pequiá, Açailândia/MA. by R.

Almeida/2008

Entre as poluições provocadas pela Gusa NE a perícia ambiental verificou os

seguintes pontos: a) fuligem - provoca a poluição do ar; b) poeira - carvão vegetal,

minério e o seixo compõem parte da matéria-prima para a produção do minério. Uma

trituração antecede a queima nos alto-fornos, o que provoca a emissão de pó, posto o

composto ser transportado através de esteiras; d) gases - a ausência de filtros químicos

ou aparelhos de incineração de gases faz com que vapores provenientes da combustão

dos alto-fornos sejam lançados na atmosfera e espalhados pelo vento. A temperatura

oscila de 1800 a 2000º C. A análise do perito sinaliza que ainda que não prejudiquem a

saúde humana, os gases emitidos no processo contribuem para o aquecimento global; e)

água de resfriamento - a água é que faz o resfriamento dos alto-fornos, que é retirada

Page 52: Poroca Pequena

55

do riacho Pequiá e armazenada em caixa d’água. Através da gravidade a água resfria os

fornos e volta ao riacho, carregando resíduos que atravessam vários quintais.

O laudo do perito Ulisses Brigatto revela uma enxurrada de problemas. Soma-se

aos indicados acima a drenagem das águas das chuvas. O laudo da perícia ambiental

atesta que as poças de água são comuns nos pátios da empresa. A água contém ferro e

outros elementos provenientes da siderurgia e pode carreá-los para corpos d’água

localizados próximos da fábrica.

A Gusa NE não conta com rede de captação e tratamento de águas pluviais. Os

resíduos são lançados para fora da empresa para uma lagoa a 400 metros de distância.

Há registro da poluição das águas dos poços consumidas pelos animais domésticos, que

fazem parte da dieta das famílias.

Um grave problema é a escória, que alguns tratam de “munha” ou “moinha”.

Uma parte do resíduo pode ser usada na construção civil, calçamento de rodovias ou

como suporte de construção de ferrovias. Outra, se devidamente tratada, pode ser usada

em fertilizantes.

Escória da produção de ferro gusa-Pequiá-Açailândia-MA. by Rogério Almeida/2008

O contato com o ambiente pode causar sérios danos à natureza e intoxicação de

plantas, pessoas e animais. A escória é depositada a céu aberto próximo a um riacho

conhecido como Quarenta, ainda que poluído, continua a ser lugar de diversão de alguns

moradores. É comum a lavagem de carros e a visita de animais.

Page 53: Poroca Pequena

56

O laudo de Brigatto propõe que a empresa se equipe com filtros anti-partículas

nas chaminés, incineradores de gases e rede de drenagem. E que a escória seja

acondicionada em uma caixa de concreto, ao contrário do que ocorre hoje, uma

montanha a céu aberto sujeita a ser espalhada sobre as moradias próximas por conta das

pancadas dos ventos. O laudo sugere a remoção das famílias que moram próximas à

Gusa NE.

Vizinhos em conflito

Francisca da Silva é uma senhora negra e energética. Fala com profunda

indignação sobre os impactos da fábrica, que praticamente fica no quintal de sua casa,

Dona Francisca reclama do ruído, posto a indústria operar 24h ininterruptamente.

“Tenho um marido adoentado pelo derrame. Outro dia a fábrica soltou um gás na

madrugada. Todo mundo da casa saiu correndo para a rua com medo de explosão”,

informa a senhora.

D. Francisca- queixa-se da poluição das fábricas-Açailândia-MA. by Rogério Almeida/2008

O Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH), ONG com sede

em Açailândia tem sido um mediador da luta das comunidades afetadas ao lado dos

padres e irmãos cambonianos. O CDVDH também é procurado em casos de trabalho

escravo. É esta ONG que denuncia dois graves acidentes na escória depositada a cerca

de 450 metros da fábrica.

Os relatórios do CDVDH indicam que o primeiro ocorreu em setembro de 1992

com um garoto de oito anos. O segundo com outro garoto de sete anos, Gilcivaldo

Oliveira de Souza. A família indica que o menino se acidentou na montanha da escória e

que provocou queimaduras de terceiro grau. Gilcivaldo veio a óbito no mês de

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dezembro do mesmo ano do acidente. A empresa argumenta em sua defesa que o garoto

se acidentou em uma caieira, prática comum para a produção de carvão. O segundo

acidente ocorreu em novembro de 2001, com o jovem de 21 anos, Ivanilson Rodrigues.

O jovem sofreu queimaduras de terceiro grau e carece de cuidados especiais. Após

várias situações de conflito entre a empresa o vitimado e o CDVDH, a empresa garantiu

o tratamento em clínica particular. Todos os casos foram encaminhados para o

Ministério Público Federal.

Sede do CDVDH, Açailância/MA. by Rogério Almeida/2008

As demandas colocadas acima é que mobilizam um coletivo de organizações

populares no movimento Justiça nos Trilhos. O grupo realizou uma série de debates

sobre as questões no Fórum Social Mundial, que ocorreu entre janeiro e fevereiro de

2009, em Belém.

Seminário Justiça nos Trilhos- Pequiá-Açailândia-MA by Irmão Antonio

O coletivo busca a partir de estudos realizados pelas universidades federais do

Maranhão e Pará, a construção de medidas que diminuam os impactos do setor nas

comunidades atingidas e a garantia de um fundo de desenvolvimento, extinto após a

privatização da Vale, em 1997.

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02- PARTE

Araguaia-Tocantins- território em disputa

06-Araguaia-Tocantins: fragmentos de 20 anos de luta pela terra

07-Bico do Papagaio: dias de sangue, dias de UDR , 24 anos atrás

08-A luta pela terra na Amazônia: camponeses/as a família Mutran, Daniel Dantas e

outros sujeitos

09-Agrobiodiversidade na Amazônia: movimentos sociais apontam agroecologia como forma de desenvolvimento

10- O julgamento do caso João Canuto: tudo uma ilusão?

11. Carajás, o novo cenário?

12. Amazônia, Pará e o mundo das águas do Baixo Tocantins

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Araguaia-Tocantins – fragmentos de 20 anos de luta pela terra*7

É lugar comum dedicar aos anos redondos algumas linhas. Seja no sentido de

exaltar ou de oposição. No ano de 2007 alguns fatos relacionados com a luta pela terra

no Pará somam duas décadas. Faz 20 anos que o primeiro projeto de assentamento (PA)

da reforma agrária no sudeste do Pará foi criado, o Castanhal Araras, no município de

São João do Araguaia.

Mesmo tempo do assassinato do advogado ligado ao PC do B, o deputado Paulo

Fonteles, reconhecido pela militância junto aos camponeses (as). Ao longo das duas

décadas ocorreu no sul e sudeste do Pará uma reconfiguração que passa pela dimensão

física, política, social e econômica, com a efetivação do campesinato na fronteira.

Período igual de vida tem a obra Oligarquia dos Castanhais, assinada pela professora

Marília Emmi, da Universidade Federal do Pará (UFPA). A dissertação de mestrado

defendida no Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA), sob a orientação do

professor Jean Hébette, recupera que elementos políticos, sociais, jurídicos e

econômicos concorreram para a construção da oligarquia no sudeste paraense.

Ainda hoje a obra é leitura indicada aos que buscam compreender a aguda

disputa pelos recursos naturais e território na região celebrizada sob a lente triste onde

mais se matou camponeses no Brasil. Na fronteira agro-mineral concorrem índios,

empresas mineradoras, fazendeiros, madeireiros, camponeses de toda ordem, com terra

ou ocupantes, além de garimpeiros.

Ao longo dos séculos é o extrativismo que tem regido o diapasão da economia

amazônica, ou saque, como preferem alguns. É o almoxarifado a condição irreversível

da região? Cá aflui a tecnologia de ponta de uma das principais mineradoras do mundo,

a Companhia Vale do Rio do Doce (CVRD), com formas rudimentares de cultivo.

Locus onde não raro trabalhadores são libertados aos montes do cativeiro da terra,

*Artigo apresentado no 3º Encontro da Rede de Estudos Rurais, realizado entre os dias 09 e 12 de setembro de 2008, Campina Grande - PB, Brasil. Além dos anais do encontro, o artigo foi publicado na edição de janeiro de 2009 da revista Democracia Viva, nº 41, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE/RJ) e em vários sites.

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escravizados para amansar a floresta, que cede cada vez mais lugar ao gado e a

monoculturas e novas frentes mineradoras.

Na região a floresta arde em carvoarias para a produção de carvão vegetal que

alimenta siderurgias no Maranhão e Pará. Pedaço de chão onde se agita um

“movimento” separatista ancorado num discurso emocional, que visa ao calor de cada

eleição a criação do estado de Carajás. O mesmo se dá a oeste e sul do Maranhão. Uma

terra marcada por passivos de todos os vernizes.

Numa viagem no quente rincão, em todos os sentidos, assalta-nos uma paisagem

de terra arrasada. Nas serrarias montanhas de resíduos de madeira ladeiam as oficinas.

Nas rodovias estaduais e federais cerca e pasto entediam qualquer viajante. Ao longe o

gado busca sombra sob a torre de alta tensão do linhão da hidrelétrica de Tucuruí, que

alimenta empresas de produção de alumínio no município de Barcarena, no Pará,

controladas pela CVRD, e na capital do Maranhão, São Luís, de propriedade da

estadunidense ALCOA.

Uma foto em 3X4 do que foi a conquista da fronteira, baseada em pólos de

produção: madeira, gado, energia, mineração e siderurgia. Estado e o capital nacional e

internacional dançavam de mãos dadas numa trilha sonora econômica marcada pelo

planejamento pragmático. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) destoa em

algo?

Terra arrasada- dias de luta

Para que um território seja construído outro deve fenecer. Tem sido assim ao

longo das eras a eterna construção e a desconstrução dos territórios e a alternância de

poder. Assim, sob o decreto de número 3938, no dia 15 de janeiro de 1987, numa área

de 5.058.4728 hectares foram assentadas 92 famílias do que veio a ser o primeiro PA da

reforma agrária no sudeste do Pará, o Castanhal Araras, localizado no município de São

João do Araguaia. Dava-se o início da desconstrução do que ficou conhecido como

polígono dos castanhais. Fruto de atos de ocupação por posseiros da terra indígena do

povo gavião e inúmeros acampamentos em órgãos públicos.

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Cupuaçu, castanha do Pará, pupunha, açaí constavam na flora do lugar. Um

experimento de modelo de organização social e política através de fomento de caixa

agrícola, organização de movimento de mulheres, realização de festival ecológico foram

realizados no PA Araras, 40 km de Marabá. A ONG Centro de Educação, Pesquisa e

Assessoria Sindical e Popular (CEPASP) foi um dos principais animadores no PA.

Pelo pioneirismo a comunidade acabou por servir de berço a vários dirigentes

que ocuparam e ainda ocupam cargos na Federação dos Trabalhadores na Agricultura

do Pará (Fetagri) e na central de cooperativas da região. Conseguiu eleger vereadores e

até um vice-prefeito. A experiência de Araras se alastrou para os municípios vizinhos de

Nova Ipixuna e Eldorado do Carajás.

O prognóstico na fronteira não previa a permanência do campesinato. Sucedia

afirmar que o mesmo seguiria em itinerância cedendo lugar à “eficiência capitalista”.

Mas, o que se desnudou no sudeste seguiu o sentido contrário. Até fevereiro de 2006 a

Superintendência Regional (SR) 27 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA), contabilizava 450 PA´s no sudeste e sul do Pará, além de cem áreas

em avaliação para desapropriação.

O universo de 58.152 famílias se espraia por 14.753419.1623 hectares, o que

corresponde a 52% do território de 36 municípios do sul e sudeste do Pará, gerenciados

pela SR-27, INCRA de Marabá. Os dados do INCRA indicam um déficit a menor de

26.909 famílias. À primeira vista tem terra sobrando. Então o que falta para ocorrer a

distensão? Sabe-se que cortar a terra (demarcar) é apenas um passo.

Mas, há como inverter a agenda de pesquisa dos institutos, coadunar ações conjuntas

das diferentes esferas do poder público com vistas a melhorar a qualidade de vida do

assentado (a), ainda prenha de precariedade? Defende-se que a região deva ser ocupada

por cientistas, que o conhecimento preceda os sistemas de uso dos recursos naturais,

mas questiona-se: que ciência cara pálida, para quem?

Aos alinhados ao capitalismo agrário, não tem sentido a efetivação de PA´s, aos

olhos deles, uma mera representação do atraso ou favelas rurais, como preferem.

A territorialização camponesa iniciada ao apagar da luzes da década de 1980, além da

dimensão física registra a construção de representações políticas e institucionais. Como

a efetivação de uma regional da FETAGRI, o MST e a recentemente criada Federação

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dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar (FETRAF). Trata-se de uma

cidadania conquistada e não concedida, que ultrapassa os limites da mera análise física

da reconfiguração da região. Considera-se prudente ponderar sobre o reconhecimento

político, social e econômico da categoria.

Tem-se registro da Escola Família Agricultura (EFA) dedicada aos filhos (as)

dos assentados (as), com sede em Marabá, a edificação de cooperativas e associações de

produtores e prestadoras de assistência técnica, aos moldes da COOPSERVIÇOS,

ligada à Fetagri, bem como a mobilização de uma organização de combate à

impunidade no campo, como o Comitê Rio Maria. Instituição que conseguiu levar a

julgamento os assassinos dos militantes Expedito Ribeiro e João Canuto, ainda que a

luta tenha ultrapassado a casa de uma década. Mas, a naturalização das mortes de

camponeses (as) e a impunidade tem sido a regra.

Ainda na esfera da educação a primeira turma de Pedagogia foi formada no ano

de 2006, e encontra-se em curso primeira turma de Agronomia, com o debate da

formação de uma turma de Letras. Ainda que insuficientes tem-se políticas de crédito

para fomento, produção e moradia. Como se nota, são direitos garantidos pela

Constituição e somente efetivados através de mobilizações. O que há demoníaco nisso?

Qual o sentido da parcialidade nos meios de comunicação de massa sobre a ação da

categoria, o de criminalizar a ação da mesma? Os ricos fazem lobby, os marginais

mobilização.

A memória é outra dimensão do processo de territorialização, como a nomeação

de PA´s e ocupações com nomes que lembram chacinas e mortos na disputa pela terra.

A exemplo do PA 17 de Abril, em memória do Massacre de Eldorado, Paulo Fontelles,

Gabriel Pimenta, ambos advogados, José Dutra da Costa (Dezinho), militante da

FETAGRI assassinado em 2000, no município de Rondon do Pará, a ocupação 26 de

Março, que homenageia os militantes assassinados do MST “Fusquinha” e “Doutor”,

PA Pe Josimo Tavares, PA Expedito Ribeiro, entre tantos. Registre-se ainda que locais

marcados por chacinas de posseiros na década de 1980, a mais sangrenta, são hoje PA´s,

como o Castanhal Cuxiú e Ubá e a fazenda Princesa.

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Na dimensão política tem-se a exoneração de dois superintendes do INCRA de

Marabá, Petrus Emile Abi-Abib e Victor Hugo da Paixão. Bem como a participação dos

representantes dos assentados no processo de definição do Programa Operacional (PO)

da SR-27 que até 1997 era definido a portas fechadas entre prefeitos e técnicos do

INCRA. Verifica-se a participação dos dirigentes na disputa por cargos nos legislativos

e executivos municipais, que tensiona o status quo nos rincões.

Se antes não se decidia um pleito eleitoral sem a mediação da família Mutran, -o

tronco familiar com maior robustez no tempo dos castanhais- registra-se nos dias de

hoje um refluxo. Atualmente não tem nenhuma representante na Câmara Municipal de

Marabá, e não goza de quase nenhuma influência nos pleitos do executivo. Na

derradeira eleição a representante da família, a ex-deputada estadual Cristina Mutran,

saiu como vice numa chapa encabeçada por também ex-deputada estadual Elza

Miranda, que conseguiu somente o terceiro lugar.

Registra-se ainda a perda do único assento na Assembléia Legislativa. A fazenda

Peruano, localizada no município de Eldorado do Carajás e a Cabaceiras, localizada no

município de Marabá estão ocupadas pelo MST. A última foi desapropriada

recentemente. As mesmas constam no livro da “lista suja” do trabalho escravo do

Ministério Público do Trabalho (MPT), assim como a Mutamba. A fazenda Cedro

também em Marabá foi repassada ao banqueiro Daniel Dantas, que tem adquirido

inúmeras fazendas na região com o maior rebanho de gado do Pará.

Se nas décadas pretéritas o universo camponês do sudeste paraense era povoado

por vários mediadores, como a Igreja Católica através de suas Pastorais e as

Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s), o Movimento de Educação de Base (MEB),

partidos políticos legítimos e clandestinos, ONG´s, Universidade Federal via o

programa do Centro Agro-ambiental do Tocantins (CAT), tem-se hoje uma apropriação

do discurso pelo próprio ator social, o camponês, motivo de inquietação de um cipoal de

pesquisas.

Sublinhe-se que no início da desapropriação dos castanhais era o ministro da reforma

agrária nada mais, nada menos que o senhor Jader Barbalho, no então governo do

presidente José Sarney, instantes da redemocratização do país. A corda e a caçamba. A

pasta da comunicação tinha como titular o finado ACM. Era ou não era uma linha de

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ataque capaz de causar terror a qualquer defesa? Cumpre pontuar que o processo serviu

mais para oxigenar a vida econômica dos coronéis, onde a luta dos posseiros de São

João do Araguaia foi assim desvirtuada do seu sentido original.

Dias em que os latifundiários mobilizados no que ficou conhecido como

“Centrão” fez radical oposição ao Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).

Radicalização que ganhou aspectos de esquadrão da morte através de sua entidade de

representação, a União Democrática Ruralista (UDR), que tinha (tem) como timoneiro o

goiano Ronaldo Caiado. O Bico do Papagaio, sudeste do Pará, oeste do Maranhão e o

norte do atual estado do Tocantins, saiu do anonimato neste período. Região

imortalizada pelas inúmeras chacinas e execuções de camponeses (as) e seus pares.

Números da luta e institucional idades

Nos anos de 1987/1988 foram desapropriados 24 áreas/castanhais para fins de

reforma agrária. Já entre 1989 a 1991 experimenta-se um imobilismo com a efetivação

somente de sete PA´s. Ao se investigar o período que compreende entre 1992 a 1995

são criados 33 PA´s. É a ação reativa do Estado ante o Massacre de Eldorado de Carajás

que ativa a criação massiva de PA´s na região. No período entre 1996 a 1999 são

criados 202 PA´s, 44.8% do total de 450 PA´s. Dias do governo de Fernando Henrique

Cardoso, que reconheceu numerosas áreas ocupadas na Amazônia como PA. Trata-se de

reforma agrária ou regularização fundiária?

Já entre 2000 a 2005 criam-se 184 PA´s, o que equivale a 40.8%. O Massacre de

Eldorado do Carajás é o estopim para efetivação de inúmeras instituições. No momento

o posto avançado do INCRA ganha o status de superintendência regional, Polícia

Federal e Ministério Público Federal são instalados na tensa fronteira amazônica.

Mesmo modelo realizado no Xingu após o assassinato da missionária estadunidense

Dorothy Stang, região para onde se desloca a violência antes concentrada no sul e

sudeste do estado.

Se num sentido na década de 1990 por vários fatores internos, como a luta pela

terra e as chacinas de Corumbiara, Rondônia (1995) e o Massacre de Eldorado do

Carajás, Pará (1996), e a externos, como a política mitigadora de reforma agrária do

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Banco Mundial, com vistas a assanhar o mercado de terras e a distensionar a luta pela

terra na América Latina, Ásia e África o tema da reforma agrária vigorou na agenda

política do governo; em oposição os eixos de integração desenhados pela macro-política

econômica (energia, comunicação e transporte) operaram no sentido oposto da demanda

dos movimentos sociais do campo.

Efetiva-se em sua contradição a territorialização camponesa, marcada por pelo

menos em dois pilares. O de semblante camponês, a luta pela terra; e o segundo pelo

processo capitalista, com a mercantilização da terra em detrimento de sua função social,

como desejavam os camponeses (as) e pares.

Interroga-se: INCRA e as entidades de classe dos trabalhadores (as) possuem

pernas para administrar o vasto universo de assentamentos? Sabe-se que o apogeu da

ação comunitária da luta camponesa dá-se no processo de organização e ocupação de

áreas consideradas improdutivas, e que ao “cortar a terra” verifica-se o retorno da

cultura do individualismo. Realidade tanto ativada pelas políticas públicas, quanto pela

cada vez mais presente igrejas neo-pentecostais em ocupações e assentamentos, que

ancoram o seu discurso numa perspectiva da prosperidade individual.

Como reflete o poeta Leminski, “problema tem família grande”. É certo que

ocorre ainda a crise de legitimidade de dirigentes e entidades de representação de classe,

disputas internas, processo de diferenciação no interior de ocupações e assentamentos. E

ainda a presença de pessoas consideradas “infiltradas” do Estado e do setor privado que

monitoram as ações nas áreas, como registrado no ano de 2001, quando um serviço do

Exército Brasileiro foi descortinado em Marabá. O mesmo tinha a missão de monitorar

a agenda das entidades ligadas à defesa da reforma agrária, meio ambiente e direitos

humanos. Ainda que tenha havido uma audiência pública em Marabá através da Câmara

Federal, nunca mais se ouviu falar no assunto e não se tem conhecimento de algum

desfecho.

No mesmo ano ocorreu um recrudescimento da violência pública e privada na

região, com registro de inúmeras mortes, prisão de dirigentes e uma sistemática ação de

reintegração de posse. É a precariedade uma marca do universo camponês, que muitas

vezes não resiste e repassa seus lotes a comerciantes, médios e pequenos produtores,

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que reconstroem os minifúndios. Sabe-se de casos de fazendeiros oferecendo suas

terras para desapropriação no INCRA.

Na imbricada engrenagem da delicada questão fundiária amazônica quem ganha

com a efetivação de tantos PA´s ? E a massa de camponeses (as) terá capacidade de

construir um modelo de desenvolvimento a partir dos PA´s? Será possível a definição

de políticas para a região sem uma regularização fundiária, sem um zoneamento

econômico e ecológico? A sobreposição marca a cartografia do lugar, com PA´s em

áreas indígenas, por exemplo.

É certa a conquista política da categoria ante o Estado marcado pelo

autoritarismo numa área de fronteira militarizada por longos anos. Migração espontânea

e estimulada através de projetos de colonização oficial e privado, grandes projetos e

garimpos são fatores pontuados como estimuladores da migração na região. Impregnada

de maranhenses, estado considerado o principal exportador de tensão social do país,

como reflete o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Dos 19 mortos do Massacre de Eldorado do Carajás, 11 eram do Maranhão. Eles

(as) estão nos PA´s, na coordenação de entidades de classe. São alvos de preconceito na

região através de piadas que os relacionam a questões pejorativas. Mesmo preconceito

existente entre manauaras e belenenses. Mesmo tratamento pejorativo que ganha relevo

nos meios de comunicação regionais quando tratam da luta pela terra, onde “sem terra”

é relacionado a coisas desagradáveis.

Ainda não se tem notícia da construção de um espaço de visibilidade para

produção camponesa, como o fez o latifundiário, que celebra seus bois há mais de duas

décadas, na principal feira agropecuária regional, a de Marabá.

Eis o posseiro alçado a condição de assentado da reforma agrária, reconhecido

pelo Estado. Fato que inverteu o cotidiano das entidades de representação dos

camponeses, com agenda repleta de reuniões com órgãos públicos, guinando-as a uma

tarefa burocratizada em detrimento de uma agenda política.

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Em meio à criação do Distrito Florestal de Carajás, ainda um bicho anuviado no

horizonte, que à primeira vista soa como um mero socorro aos produtores de gusa que

ao longo de duas décadas corroboraram no desflorestamento da região e não cumpriram

acordos no sentido oposto. Prestes a tornar o mundo degradado em monocultura de

eucalipto.

Uma vez mais o socorro vem do Estado, desta feita via o Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Antes foi a Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), atual Agência de Desenvolvimento da

Amazônia (ADA), a bengala do capital privado.

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BICO DO PAPAGAIO: DIAS DE SANGUE, DIAS DE UDR, 24 ANOS ATRÁS8

A defesa intransigente na manutenção de grandes extensões de terras na região de

fronteira integrou o DNA da formação da União Democrática Ruralista (UDR). A mesma

veio a nascer no imortalizado Bico do Papagaio, quando o norte do atual estado do

Tocantins, pertencia ao estado de Goiás. O Bico se completa com o sul do Pará, e o oeste do

Maranhão.

Região cantada em prosa, verso, pesquisas, reportagens, onde mais se matou

camponeses na disputa pela terra no Brasil. No extenso obituário de camponeses uma

parcela significativa é creditada ao escudo da UDR. Ainda hoje a região é palco de

execuções de trabalhadores(as) rurais que defendem a reforma agrária. Passadas duas

décadas, tal latitude do país continua a registrar índice alarmante de trabalhadores em

condições análogas à escravidão.

A UDR surge no cerrado goiano em 1985 a partir da reunião de dirigentes da

Federação da Agricultura de Goiás, da Associação dos Criadores de Gir, Nelore e Zebu de

Goiás, da Associação dos Fazendeiros de Araguaína e da Associação dos Fazendeiros do

Xingu. No ninho de animadores destacam-se: Ronaldo Ramos Caiado, estrela de primeira

grandeza da sigla, Jairo de Andrade, um dos organizadores da “Marcha com Deus, pela

família, pela liberdade”, idos de 1964, mineiro do município de Passos, Altair Veloso e

Salvador Farina, donos de terras em Goiás. Plínio Junqueira Júnior, engenheiro agrônomo

de tradicional família paulista foi o único fazendeiro de fora da região a integrar a cúpula de

fundação da UDR.

As informações aqui elencadas tomam como base a obra: “Donos de terras:

trajetória da União Democrática Ruralista (UDR)”, da pesquisadora Marcionila Fernandes,

publicada em 1999, em Belém, Pará. A obra resulta de pesquisa de dissertação defendida no

Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA),

em 1992.

Inquietava a pesquisadora conhecer: qual a gênese da representação patronal, sob

que princípios atua, quem são os seus representantes, e que táticas usam. Fernandes adverte

que um dos motivadores para a fundação da UDR reside na ameaça de desapropriação de

áreas consideradas como de situação de conflito, conforme a agenda do Plano Nacional de

Reforma Agrária (PNRA), de 1985. O PNRA nasceu sob o contexto da Nova República, no

8 Trabalho publicado na página do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC/RJ) em junho de 2006.

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governo de José Sarney, que repassou o Ministério da Reforma Agrária (MIRAD) para

Jader Barbalho.

Nas investigações da pesquisadora sobre o perfil do quadro da entidade, destaca

tratar-se de pessoas do Centro-Sul do país, que desenvolvem atividades nos setores de

comércio, indústria, serviços e mesmo bancárias (Bamerindus), e que por via legal ou não,

adquiriram grandes extensões de terras, caso da família Lunardelli, na época da pesquisa,

dona de 11 empreendimentos na Amazônia.

Ou mesmo produtores de tradição rural paulista, que possuem origem na oligarquia

cafeeira, como a família Lanari. Sobre o Grupo Quagliato, dono da Empresa Agropecuária

Quagliato da Amazônia Agropecuária S. A. (QUAMASA), detinha três fazendas na região,

e era dona da Usina São Luiz S. A. Em Ourinhos, São Paulo, o Quagliato processava açúcar

e álcool. Outra família citada é a Bannach, que hoje batiza um município na região. A

família tem origem na atividade madeireira, vindos do Paraná. Tão expressivo é o poder?

Formalmente a UDR do sul do Pará foi criada em 17 de maio de 1986, no Parque

Agropecuário de Redenção. Compuseram a mesa, Ronaldo Caiado, fundador da UDR em

Goiás, Roberto Paranhos Rio Branco, presidente da Associação dos Empresários da

Amazônia, Alceline Veronese, prefeito de Redenção, Plínio Junqueira, de São Paulo e

Udelson Franco, de Minas Gerais. Em sua análise, a pesquisadora pontua como uma das

características da matriz da UDR no Pará, os laços (articulação) entre o norte e o sul.

A entidade também teve as suas versões em Marabá e Altamira. No entanto, o

estudo deixa claro o protagonismo do sul do estado e do município de Paragominas,

nordeste do Pará. Fernandes esclarece que a versão de Paragominas dialogava com

frequência com a capital, Belém, espécie de quartel general. A Associação Rural da

Pecuária do Pará (ARPP) é matriz da versão da UDR de Paragominas, a partir de uma

reunião com os dirigentes Plínio Junqueira e Ronaldo Caiado.

Com a intervenção dos irmãos Lincoln e Luiz Bueno, paulistas do celeiro dos

cafeicultores, aportados na região desde a década de 1970, a entidade ganha forma. “Um

pioneiro”. Tem sido esse o amparo de gestos mais largos para a manutenção do poder de tal

setor. A que tudo e todos devem se submeter. Onde não há espaço para a diferença.

Entre outros artífices no processo de defesa da intocabilidade das grandes porções

de terras na fronteira, a pesquisa pontua a presença do então estudante de Direito da UFPA,

Leonardo Lobato, integrante do que ficou conhecido como UDR Jovem. Há ainda Gastão

Carvalho Filho, mineiro, e Luiz Otávio Rodrigues da Cunha, paulista, descendente de

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70

famílias proprietárias de terras em vários estados da União. Engrossam o escrete do

processo de privatização de terras, setores tradicionais de pressão, entre eles: grupo Belauto,

grupo Marcos Marcelino, grupo EBD, grupo Jonasa e construtora Estacon.

Assim como a pesquisadora, outros indicam a intervenção do Estado como fator

importante para a oxigenação da saúde financeira de tais atores da fronteira. Recursos, em

particular advindos de fundos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

(SUDAM), reeditaram a prática do patrimonialismo.

Diferente de seus pares tradicionais, como a Confederação Nacional da Agricultura

(CNA). Sociedade Rural Brasileira (SRB), Organização das Cooperativas do Brasil (OCB),

cujo dirigente da época era nada mais, nada menos do que o ex-ministro da Agricultura,

Roberto Rodrigues, a UDR não tinha esmero em dialogar com o Estado.

A partir desse mosaico ruralista, floresce a Frente Ampla da Agropecuária

Brasileira, em 1986. Assim vai desaguar no que ficou conhecido na Assembléia Nacional

Constituinte, como “Centrão”, frente parlamentar que abortou a possibilidade de uma

reforma agrária. Enfileirados na defesa do latifúndio, vestiam a camisa da UDR pelo Pará:

Asdrubal Bentes, Jorge Arbage e Fausto Fernandes. Outras expressões residiam em Afif

Domingues (PL/SP) e Alysson Paulinelli (PFL/MG), Ubiratan Spinelli (MT), Cunha Bueno

(SP), José Lourenço (BA). No derradeiro pleito eleitoral de Marabá em 2004 o PT

emprestou a estrela como vice, na chapa de Asdrubal Bentes, onde ficou em segundo lugar.

Tempos modernos?

Dias de sangue

Formalmente pode-se afirmar que a existência da UDR no Pará foi curta, meia

década. A entidade enrolou a bandeira em 1991 (será?), no mesmo local onde havia nascido

cinco anos antes. O pouco tempo da existência imortalizou a região como a mais violenta

do país na disputa pela terra. Entre os anos de 1988 a 1987 há ocorrências de sete chacinas

na região, com o saldo de 62 mortes.

As chacinas estão assim distribuídas: Chacina dos Irmãos – Xinguara, junho de

1985, 06 mortos; Chacina Ingá – Conceição do Araguaia, 13 mortos, maio de 1985;

Chacina Surubim- Xinguara, junho de 1985, 17 mortos; Chacina Fazenda Ubá – São João

do Araguaia, 13.06.1985/18.06.1985, 08 mortos; Chacina Fazenda Princesa-Marabá,

setembro de 1985, 05 mortos; Chacina Paraúnas – São Geraldo do Araguaia, junho de 1986,

10 mortos; Chacina Goianésia – Goianésia do Pará, outubro de 1987, 03 mortos (Relatório

de violação dos direitos humanos na Amazônia – CPT, 2005).

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71

Os massacres que tiveram o processo de apuração iniciados são: a chacina da Ubá, e

o caso da fazenda Princesa, com cinco camponeses executados, onde alguns tiveram as

cabeças decepadas e os corpos jogados no rio. Ambos os processos tramitam há 23 anos. Já

no episódio ocorrido em Goianésia do Pará, o processo é dado como desaparecido. No

mesmo período o município de Rio Maria registrou a morte de membros da família Canuto,

ligados ao PCdoB, assim como o advogado Paulo Fontelles, Gabriel Pimenta, João Batista e

o Pe. Josimo, este caso em Imperatriz, Maranhão.

É possível sinalizar que a gana da UDR arrefeceu na região? Episódios ocorridos no

primeiro semestre do ano de 2006 parecem indicar a direção contrária. Os ânimos dos

ruralistas exaltaram-se com a prisão de pares e intermediários em execuções de camponeses

ocorridas na década de 1980, e mesmo em período mais recente.

São os casos das prisões de Marlon Lopes Pidde, fazendeiro, acusado de ter

coordenado a chacina de cinco trabalhadores rurais na fazenda Princesa, município de

Marabá, em setembro de 1985; Manoel Cardoso Neto, o Nelito, fazendeiro acusado de ser o

mandante do assassinato do advogado Gabriel Sales Pimenta, crime ocorrido em Marabá,

em 1982; Domicio de Sousa, o Raul, acusado de ser um dos intermediários do assassinato

do Sindicalista José Dutra da Costa, o Dezinho, crime ocorrido em Rondon do Pará, em 21

de novembro de 2000, e José Serafim Sales, o Barreirito, pistoleiro condenado a vinte e

cinco anos de prisão por ter assassinado, em 02 de fevereiro de 1991, o sindicalista

Expedito Ribeiro de Souza, no município de Rio Maria. Barreirito foi preso em Boston,

EUA.

As prisões foram efetuadas pela Polícia Federal, após constante pressão das

instituições ligadas aos camponeses, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de

Xinguara, junto ao Ministério da Justiça. Outro elemento da cena recente tem sido as

constantes denúncias e libertações de trabalhadores rurais em condições análogas à

escravidão nas fazendas e nas carvoarias. O Pará sozinho responde com 50% dos casos

brasileiros, ao menos onde a fiscalização consegue alcançar.

Completa o quadro a ocupação da fazenda Rio Vermelho, do Grupo Quagliato pelo

MST, a ocupação da fazenda Maria Bonita, no município de Eldorado do Carajás, que

envolve a família Mutran e o banqueiro Daniel Dantas. Ofendidos em seus brios, os

ruralistas pediram a cabeça do frei Henri des Roziers, advogada da CPT de Xinguara, ao

bispo de Conceição do Araguaia. Pedido que foi negado. As reuniões com vistas à degola

do frei foram mediadas pelo senhor Ronaldo Caiado.

Há cinzas nesse rescaldo?

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72

A LUTA PELA TERRA NA AMAZÔNIA: CAMPONESES(AS), A FA MÍLIA MUTRAN, DANIEL DANTAS E OUTROS SUJEITOS 9

Raimundo Nonato do Carmo, de 53 anos, ex-presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais (STR) do município de Tucuruí, sudeste do Pará, foi executado

com sete tiros na noite de 16 de abril de 2009, véspera da passagem de 13 anos do

Massacre de Eldorado do Carajás. O nome de Nonato integrou uma lista de 260 pessoas

ameaçadas de morte no estado. Entre os ameaçados há dirigentes sindicais,

ambientalistas, advogados, indígenas e religiosos.

Ao centro o sindicalista de Tucuruí, Raimundinho, executado no dia 16 de abril de 2009. FOTO: arquivo do Centro

de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP).

No dia 18 do mesmo mês, nove trabalhadores sem terra foram baleados por

“seguranças” da fazenda Espírito Santo, no município de Xinguara. Militantes do MST

ocupam a fazenda desde fevereiro. Há registro de outros grupos de camponeses na

mesma área.

Se na década de 1980, período considerado o mais sangrento do lugar, a União

Democrática Ruralista (UDR) exerceu o protagonismo da violência e a milícia fazia a

defesa da propriedade privada, atualmente as “empresas” de segurança configuram o

braço armado das grandes propriedades.

Desde o início da década de 2000 as organizações camponesas denunciam a

questão aos órgãos públicos. Através de uma audiência pública realizada em Marabá, a

9 O presente trabalho resulta de vários trabalhos publicados anteriormente nos formatos de artigos e reportagens e foi publicado na página da rede www.forumcarajas.org.br e parcialmente na Revista Sem Terra

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73

comissão de direitos humanos da Câmara Federal tomou conhecimento do assunto no

ano de 2001.

A audiência foi motivada pelo recrudescimento da violência no campo. Entre

julho e agosto daquele ano 121 camponeses foram presos e sete executados. Sendo três

da mesma família, caso do sindicalista de Marabá, José Pinheiro Lima (Dedezinho), a

esposa e o filho de 15 anos. No mesmo período documentos de espionagem do Exército

em Marabá direcionados para monitorar as ações dos movimentos sociais taxavam os

mesmos de "forças adversas passíveis de eliminação”. Os documentos do quartel

general do Exército Brasileiro (EB) direcionado para monitorar as ações dos

movimentos sociais foram divulgados através de várias reportagens do jornalista Josias

de Souza, da Folha de São Paulo, em agosto de 2001.

A fazenda Espírito Santo, onde os sem terra foram baleados, está em nome da

Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, do grupo Opportunity, do banqueiro Daniel

Dantas. A propriedade já foi flagrada com uso de mão-de-obra escrava10 pela Delegacia

Regional do Trabalho (DRT).

Dantas é o mais novo sujeito da cena econômica e política a exercer pressão

sobre as terras e as riquezas locais. Uma presença ainda não digerida para as pessoas

que se inquietam em entender as dinâmicas da região. Mas, relatórios da Polícia Federal

assinados pelo delegado Ricardo Andrade Saadi indicam indícios de lavagem de

dinheiro.

Quanto à posse legal das terras, em 30 de janeiro de 2009 o juiz Líbio Araújo de

Moura, titular da vara agrária de Redenção, bloqueou os títulos das fazendas Castanhal,

Espírito Santo e Castanhal Carajás. As duas fazendas somam 10 mil hectares e foram

negociadas por R$ 85 milhões pelo pecuarista Benedito Mutran. As áreas estão

indisponíveis para qualquer tipo de negociação.

As fazendas vendidas pelo Mutran não poderiam ter sido negociadas, posto

serem terras cedidas pelo Estado através da ferramenta jurídica do aforamento, que

10 José Pereira Ferreira ganhou notoriedade, em novembro de 2008, quando foi aprovada pelo Congresso uma indenização no valor de R$ 52 mil. Zé Pereira tinha sido reduzido à condição de escravo na fazenda Espírito Santo, cidade de Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pelas autoridades tupiniquins, foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil. Ferreira, goiano de São Miguel do Araguaia, veio com oito anos para o Pará acompanhar o pai, que também fazia serviços para fazendas. Hoje, com 31 anos e o dinheiro da indenização, pretende começar vida nova para compensar a vida roubada pelos anos de tratamento para salvar a visão atingida pelos pistoleiros, pelas ameaças recebidas e a escravidão. "Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar. (Leonardo Sakamoto, Repórter Brasil, 02.06.2004).

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74

concede direito de uso para fins do extrativismo da castanha do Brasil e não de posse.

Desde os tempos coloniais a terra e os recursos nela existentes mobilizam redes

econômicas, políticas e sociais. Nos dias atuais, por onde se lança a atenção nas

Amazônias do Brasil ou fora dela há registros de tensão entre grandes corporações e as

populações locais.

O sul e o sudeste do Pará, banhados pela bacia do Araguaia-Tocantins, ao longo

de sua “conquista” se configuraram como uma espécie de emblema da expropriação e

da violência pública e privada contra as populações indígenas e camponesas na

Amazônia. Trata-se de uma fronteira agro-mineral, onde tensionam pelo controle dos

territórios empresas do quilate da Vale, madeireiros, fazendeiros, pecuaristas, indígenas,

garimpeiros, frigoríficos de grande porte, camponeses assentados, ocupantes filiados ou

não a alguma representação política, sob uma situação fundiária de abissal incerteza.

Para efeito didático trataremos apenas de sudeste as duas regiões em questão.

Registro do cartaz de uma mobilização realizada em Belém contra a violência no campo na década de 1980. Foto: Miguel Chikaoka/Jornal Resistência.

Amazônia grilada

6.102 títulos de terra registrados nos cartórios estaduais possuem irregularidades.

Somados, os papéis representam mais de 110 milhões de hectares, quase um Pará a

mais, em áreas possivelmente griladas. Os dados resultam de três anos de pesquisa dos

órgãos ligados à questão fundiária no estado, através da Comissão Permanente de

Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem (Tribunal

de Justiça, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Advocacia Geral

da União, Ordem dos Advogados do Brasil, Federação dos Trabalhadores na

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75

Agricultura, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, Comissão Pastoral

da Terra e a Federação da Agricultura do Estado do Pará). O documento foi apresentado

em 30 de abril de 2009 no auditório do Ministério Público Federal (MPF)

Conforme o site do MPF, a magnitude dos problemas nos registros – que

abrangem de fraudes evidentes a erros de escriturários - levou a um pedido, dirigido à

Corregedoria do Interior do Tribunal de Justiça, para que iniciasse imediatamente o

cancelamento administrativo de todos os títulos irregulares, já bloqueados por medida

do próprio TJ. A desembargadora Maria Rita Lima Xavier, corregedora do interior,

negou o pedido no último mês de março.

O cancelamento dos títulos vai evitar a criação de seis mil processos para o

cancelamento dos títulos que podem durar infinitos anos no tribunal já sobrecarregado.

Com o indeferimento da desembargadora Maria Rita Lima Xavier, a comissão recorreu

ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que o mesmo defira pelo cancelamento dos

títulos falsos.

Felício Pontes Jr, procurador da República e representante do MPF na comissão,

argumenta que os indícios de fraude são evidentes demais para ficarem esperando

processo judicial. O pedido de cancelamento dos títulos é subscrito pelo Ministério

Público do Estado, Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e a Procuradoria Geral do

Estado (PGE) e foi enviado ao CNJ através dos Correios no mesmo dia de apresentação

dos dados.

Entre os episódios de grilagem mais famosos do Pará está o do “fantasma”

Carlos Medeiros, ente jurídica e fisicamente inexistente que acumula 167 títulos de terra

irregulares. Todos os títulos de Medeiros que somam 1,8 milhões de hectares estão

bloqueados. As terras se espraiam em dez municípios paraenses. A mesma situação

nubla os empreendimentos da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara S/A., no sudeste

do estado.

Sudeste do Pará

A aguda disputa pela terra alçou a região à condição de mais violenta na disputa

pela terra no país. Os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) estimam em cerca de

600 pessoas executadas na disputa pela terra ao longo de três décadas. A impunidade

beira a casa de cem por cento.

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Por conta da abundância da riqueza mineral no regime militar a região ganhou o

status de área de segurança nacional. A Guerrilha do Araguaia também colaborou para a

militarização da fronteira. Na cena econômica o extrativismo da castanha do Brasil, com

apogeu até 1970 é considerado relevante na historiografia regional. Tempos marcados

pelas oligarquias. Foi justo nesta delicada região, considerada uma das mais tensas na

disputa pela terra no país, que Dantas nos derradeiros três anos fez sem muito

estardalhaço um pequeno feudo. Assim como os interesses, não é nítida a quantidade

exata de terras e gado sob o controle da pessoa jurídica do senhor Dantas em terras do

Pará, a Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, dirigida pelo ex-cunhado Carlos

Rodenburg.

Mobilização de camponeses em Marabá/PA na década de 2000. Foto: Arquivo do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP).

Estima-se em cerca de 40 fazendas distribuídas em nove municípios do sul e

sudeste do estado. Mas, os gerentes da empresa se defendem alegando que controlam

somente 15 propriedades, que totalizam 510 mil hectares com 450 mil cabeças de gado.

Desde julho de 2008 o Governo do Pará através do ITERPA realiza um levantamento

sobre as fazendas controladas pela empresa. Algumas matérias realizadas por jornais

regionais indicam que os fazendeiros locais festejam as ações da pecuária Santa

Bárbara, inclusive concedendo-lhe honrarias de excelência da categoria no estado

através da Federação da Agricultura e Pecuária do Para (FAEPA).

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Antecedentes regionais

Houve um tempo em que os castanhais das terras do Araguaia-Tocantins11 foram

livres. Os rios configuravam as principais vias de transporte. Os dias reinaram assim até

o ano de 1920. Na época a Amazônia respirava o ocaso do ciclo do extrativismo da

borracha. O comércio dos irmãos Chamom fazia o aviamento12 nos municípios de

Marabá e Tucuruí (na época Alcobaça), sudeste do Pará. Desta forma era ativado o

extrativismo da castanha13. Enquanto cabiam as empresas Bittar Irmãos, Dias & Cia,

Nicolau da Costa e A Borges & Cia, entre tantos, aviarem em Belém. Europa e Estados

Unidos foram os destinos da produção, explica a pesquisadora Marília Emmi, na obra

“A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais”.

Operários “amansando“ a floresta na região de Marabá/PA. Foto: arquivo do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP).

Até então os índios Gavião e seus sub grupos (Krikateje, Parketeje e Akrikateje),

bem como, Kaapor, Xicrin, Atikum, Guajajara, Suruí, entre outros povos, eram os

senhores do lugar, ainda que o Estado viesse a declarar durante o regime militar a

porção de terras um vazio demográfico. Trabalho escravo, mandonismo e clientelismo

davam contorno ao poder dos coronéis.

11 A bacia do Araguaia-Tocantins banha três regiões do território nacional: Norte, parte do Nordeste e Centro Oeste. Mede 813.674 km2 e corta os estados do Maranhão, Tocantins, Pará, Goiás, Mato Grosso e parte do Distrito Federal. Dois biomas integram a bacia do Araguaia-Tocantins, Cerrado e Floresta Amazônica, com predomínio do primeiro. Para melhor compreender a disputa pela terra na região sugiro a leitura da obra “A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais”, da pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Marília Emmi, 1999, 2ª edição. 12 Aviamento consistia na forma de poder dos comerciantes com os coletadores de castanha. Os comerciantes adiantavam suprimentos necessários aos dias de trabalho na floresta, cabendo ao coletador a venda obrigatória da castanha ao comerciante. 13 Castanha do Pará (Bertholletia Excelsa) é uma frondosa árvore. Em remotos tempos, abundou em vários estados do Norte. É do ouriço, o fruto, que se extrai a castanha.

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Conforme pesquisa de Emmi, o comerciante e político Deodoro de Mendonça e

sua parentela hegemonizam no domínio dos castanhais até 1940. No período aportou na

região descendente de sírio-libaneses, a família Mutran, oriunda do município de

Grajaú, Maranhão, num distante 1920. Já em 1930 arrenda e adquire várias terras.

Coube à empresa A Borges & Cia aviar a família.

Hoje a atividade da pecuária predomina na região. A iniciativa ganhou

proporção a partir de uma política indutora da economia do Estado na Amazônia, em

particular no sudeste do Pará. O sudeste paraense detém o maior rebanho de gado do

estado. Os anos eram de chumbo, e além da pecuária o estado incentivou a atividade

madeireira e minerária. A ideia era fazer com que a região prosperasse a partir desses

três polos: madeira, gado e minério.

Bateria de fornos para produção de carvão na região de Marabá/PA. Foto: arquivo do Centro de Educação, Pesquisa e

Assessoria Sindical e Popular (CEPASP).

Assim vastas extensões de terras foram transferidas ou apropriadas por empresas

nacionais do Centro-Sul e internacionais. Entre elas podem ser encontrados bancos

como Bradesco, Real e o extinto Bamerindus, sem falar na Volkswagen. Por falar em

banco, outro que antecipou Dantas foi Calmon de Sá, do falido Banco Econômico.

A renúncia fiscal foi a política adotada para a atração de empresas. A prática

tinha nos agentes de planejamento e do financeiro estatais a ponta de lança, leia-se

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e Banco da Amazônia

(BASA).

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79

Região explosiva

É complexo o xadrez de agentes e suas respectivas redes que atuam no sudeste

do Pará. Cá aflora a grande mineradora Vale, privatizada desde 1997, numa operação

considerada um crime de lesa pátria. Por ser a detentora de tecnologia de ponta é ela

quem estrutura e desestrutura o território do lugar, como ocorre em várias partes do

Pará, a exemplo da tensão registrada no município de Ourilândia do Norte e vizinhança,

onde inúmeras famílias de projetos de assentamento da reforma agrária têm sido

expulsas por conta de sua Mineradora Onça Puma (MOP), que explora níquel, conforme

denúncias de entidades locais.

Agem ainda pelo controle do território grupos indígenas, em certa medida já

aculturados pelos hábitos do mundo não índio. Na década de 1980, quando a disputa

pela terra torna-se mais aguda, a refrega ganha ares de esquadrão da morte a partir da

ação da UDR, ligada a fazendeiros do Bico do Papagaio, norte do Tocantins, sudeste do

Pará e oeste do Maranhão. A instituição era animada por Ronaldo Caiado, político

radicado em Goiás.

Acampamento de camponeses/as em Ourilândia do Norte/PA, em 2008. Foto: Raimundo Gomes da Cruz Neto

Com tal contexto, ninguém ousou indicar que o campesinato da fronteira iria se

territorializar. Hoje a categoria controla mais de 50% do território no sudeste paraense

através de projetos de assentamento, em 36 municípios sob a responsabilidade do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O reconhecimento de

áreas ocupadas, algumas delas há mais de duas décadas teve no trágico episódio do

Massacre de Eldorado o estopim.

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Não resta dúvida quanto ao peso dos fazendeiros na região, mas a conversão de

fazendas ocupadas em projetos de assentamento demonstra o avanço do poder de

mobilização dos movimentos sociais camponeses, expressos através da Federação dos

Trabalhadores Rurais na Agricultura do Pará e Amapá (FETAGRI), regional sudeste,

com atuação que soma mais de uma década. Mesmo período contabiliza o MST.

Além desses agentes registra-se a presença de garimpeiros. Fora os projetos de

assentamento há outras expressões do poder do campesinato local, traduzidas através da

efetivação da Escola Família Agrícola (EFA), cursos de nível superior, como

Agronomia, Pedagogia e Letras, assento de representações da categoria nas câmaras e

executivos municipais e iniciativas de rádios comunitárias e outras ferramentas de

comunicação. Por conta dos projetos de assentamento germinam na região empresas de

prestação de assistência técnica rural.

O sudeste do Pará é uma região que merece atenção especial por parte do Poder

Público. Ela coleciona graves passivos oriundos da experiência dos grandes projetos. A

região é recordista em trabalho escravo, assassinatos contra dirigentes e militantes da

reforma agrária, concentra boa parte dos municípios mais violentos do país, sem citar a

devastação florestal.

Mas, o cenário atual não soa animador. Um exame no Programa de Aceleração

do Crescimento (PAC) sinaliza para maior pressão sobre a terra e os recursos naturais

nela existentes. Há uma série de obras de infraestrutura: rodovias, hidrovias,

hidrelétricas na bacia do Araguaia-Tocantins que irão reorientar, como nos anos da

ditadura, e do Programa Grande Carajás (PGC), na dedada de 1980, o cenário

econômico, social e político da região.

Uma perspectiva similar desponta a oeste do estado, com a expansão da frente

mineral no município de Juruti, a partir da bauxita. O minério explorado pela empresa

estadunidense Alcoa é matéria para a produção de alumínio. A Alcoa é uma das maiores

empresas do setor. Ainda a oeste tem-se a agenda da construção de inúmeras barragens

no rio Tapajós e no Xingu e desde 1980 a bauxita é extraída pela Vale no município de

Oriximiná.

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Família Mutran – A senhora dos Castanhais

Na paisagem das oligarquias dos castanhais, a dos Mutran se tornou a de maior

destaque. Notabilizou-se na história do sudeste paraense pelo abuso da violência. A

condição de escravidão, ou modo similar de submissão, continua a ocorrer nas terras do

Araguaia-Tocantins. O modelo é apenas uma face das variadas modalidades de

violência que povoam a atmosfera local. Uma bela expressão da modernidade.

São muitas as acusações de crimes que pesam nas costas do clã dos Mutran.

Assassinatos, corrupção na administração da prefeitura de Marabá, manutenção de

cemitérios clandestinos em “suas” fazendas, submissão de trabalhadores rurais à

condição de trabalho escravo e devastação dos castanhais para a implantação da

pecuária.

Em listas sujas divulgadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), constam

três propriedades da família. As “listas sujas” do trabalho escravo foram divulgadas nos

anos de 2003 e 2004. As propriedades são: Fazenda Cabaceiras, ocupada pelo MST

desde 26 de março de 1999, a Fazenda Peruano, também ocupada pelo MST em abril de

2004, e a Mutamba, onde o MST ocupou, mas não conseguiu se manter. Sob força de

liminar os nomes das fazendas foram retirados das listas. Desta forma o fazendeiro pode

pleitear financiamento público.

Na página www.repoterbrasil.com.br a reportagem de Leonardo Sakamoto,

divulgada no dia 30 de julho de 2004, denuncia que a empresa Jorge Mutran Exportação

e Importação Ltda. foi obrigada a pagar a multa de R$ 1.350.440,00, por ter sido

autuada mais de uma vez por trabalho escravo em sua fazenda Cabaceiras, em Marabá,

sudeste do Pará. Na época foi a maior indenização no Brasil por um caso de redução de

pessoas à condição análoga à de escravo.

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Reintegração da fazenda Cabaceiras em 1999, Marabá/PA Fonte: J. Sobrinho (1999)

A reportagem de Sakamoto conta ainda que a sentença foi expedida por Jorge

Vieira, da 2ª Vara da Justiça do Trabalho de Marabá, e resulta de uma ação civil pública

movida pelo Ministério Público do Trabalho. Os réus aceitaram as determinações do

MPT e o juiz homologou a sentença. A ela não coube recurso. Os responsáveis pela

empresa citados no processo da Cabaceiras são os irmãos Evandro (dono também da

fazenda Peruano), Délio e Celso Mutran e Helena Mutran.

A fazenda Cabaceiras mantinha cemitério clandestino. A denúncia veio à tona

em setembro de 1999, através de reportagem assinada por Ismael Machado, publicada

na revista Caros Amigos, de São Paulo, na edição de número 30. A denúncia da

presença de cemitério clandestino na fazendeira Cabaceiras foi realizada por uma

testemunha de 64 anos, que foi mantida no anonimato. O depoimento ocorreu no dia 21

de julho na Procuradoria da República do Pará. A fazenda foi desapropriada pelo

INCRA recentemente.

A Quincas Bonfim e Sebastião Pereira Dias (Sebastião da Teresona), lendários

pistoleiros da região, cabia a contratação de peões para a derrubada da mata nativa e

implantação de pasto. Além da contratação de peões constava na rotina dos pistoleiros a

eliminação de desafetos e peões insubordinados. Conta a matéria de Machado que pelo

menos 40 homicídios ocorreram entre 1982 e 1989. Antes de pertencer ao clã Mutran, a

fazenda Cabaceiras foi administrada pela empresa Nelito Indústria e Comércio S. A.

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Foi com Benedito Mutran Filho que o senhor Dantas negociou a compra de

inúmeras fazendas, entre elas a Maria Bonita, ocupada por cerca de 600 famílias ligadas

ao MST no dia 25 de julho de 2008, quando se celebra o Dia do Trabalhador Rural. A

ação do movimento foi um ato contra a corrupção no país, no sentido de se obter mais

agilidade na política de reforma agrária, assim explica nota divulgada pelo movimento.

O braço escravo das carvoarias ajuda a queimar a floresta na região de Marabá/PA. Foto: arquivo do Centro de Educação, Pesquisa

e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP).

Boa parte das terras sob o domínio da família é uma cessão de uso do Estado

para fins do extrativismo da castanha, e não pode ser repassadas para terceiros. As

fazendas São Roque e Cedro também seguiram a mesma linha das citadas acima na

negociação com Dantas.

Vavá - o chefe da família

Osvaldo dos Reis Mutran, tratado pelos pares como Vavá foi julgado pelo Júri

Popular e absolvido no dia 24 de agosto de 2005, em Marabá, pelo assassinato de uma

criança de oito anos, David Ferreira Abreu de Souza, crime ocorrido em 2002, no km

07, no Bairro Nova Marabá. O garoto foi morto com um tiro na cabeça quando jogava

futebol em frente a uma propriedade de Vavá. Na ocasião, populares provocaram um

quebra-quebra na casa do chefe do clã.

A Sociedade de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) atua no caso como

Assistência da Acusação do Ministério Público. No corolário de impropérios cometidos

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pelo senhor de 73 anos de idade na época do julgamento, consta ainda a morte de um

fiscal da Fazenda do Estado, Daniel Lira Mourão, idos de 1990.

Entre a década de 1950 e meados de 1980, tal notícia da realização de júri

popular tendo como réu um Mutran soaria como galhofa no oco dos ouvidos dos chefes

dos castanhais da região.

O filho de Nagib foi prefeito nomeado de Marabá e deputado estadual. Vavá é

pai de dois filhos: Nagib Neto, que foi prefeito de Marabá e Osvaldo Júnior, vereador -

casado com Ezilda Pastana, juíza em Marabá. Vavá tem dois irmãos: Guido - com um

filho ex- vereador (Guido Filho) - e Aziz. Vavá e Nagib Neto tiveram os mandatos

cassados, conta Sakamoto em reportagem. Já o filho Júnior veio a morrer no fim de

2005, quando brincava de roleta russa.

Por conta da execução do fiscal da Receita, Osvaldo Mutran foi alvo de uma

Comissão Parlamentar de Inquérito, e foi cassado do cargo de deputado estadual e

condenado a oito anos de prisão. Não cumpriu a pena integralmente. Pelo crime

cometido Vavá foi premiado com indulto (perdoado). Mourão foi morto por não

concordar em deixar o fazendeiro passar gado sem registro, o que o livraria de pagar

impostos. Já Nagib, o filho, foi cassado por corrupção na prefeitura e condenado a repor

ao erário público cerca de R$ 1 milhão. Atualmente é vereador em Marabá.

Aforamento

Trata-se de um mecanismo de cessão de uso da terra concedido pelo Estado a

terceiros. No caso do sudeste do Pará os registros históricos indicam que a prática

remonta aos anos de 1920. No Pará o aforamento abrange um período de concessão de

1955 a 1966 (a partir daí eles só serão adquiridos por transferências de direitos dos

foreiros originais). O Estado nesse período concedeu 252 aforamentos, dos quais, 168,

ou seja, 66,66% foram em Marabá, informa pesquisa da professora Marília Emmi.

A obra da professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) esclarece que a

Lei de nº 913 previa a concessão de um único aforamento com área de 3.600 hectares

para cada requerente, o que se observou desde o início foi uma tendência à concentração

do domínio das áreas de castanhais por grupos familiares.

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85

O bom negócio residia na coleta e no comércio da castanha. Através da força,

arrendamento e aforamento, as terras públicas foram transferidas para o poder privado.

Desta forma a família Mutran, a partir de 1950, vai se configurar como a de maior

robustez no Pará. Na pesquisa de Emmi há indicadores que em 1960 a família chegou a

ser detentora de 80% dos castanhais.

A partir do presente cenário em certa medida anuviado sobre os reais interesses

do senhor Dantas no Pará, em parceria com fazendeiros da mais fina estampa, é que se

dirige a ação de ocupação das fazendas Maria Bonita, em Eldorado do Carajás, Espírito

Santo, no município de Xinguara e a fazenda Cedro, em Marabá.

A ocupação, forma de pressão que visa democratizar a terra, emerge assim como

uma ação que questiona uma estrutura de poder local e a homogeneização de projeto de

desenvolvimento baseado na grande propriedade rural.

Ocupações: a fazenda Maria Bonita

Nessa peleja pela terra em Carajás, o MST tem orientado suas ações contra as

representações do poder tradicional do lugar e ao modelo de desenvolvimento local. O

movimento ocupou ou incentivou a ocupação de inúmeras fazendas da família Mutran.

Assim o movimento afrontou as cercas das fazendas Peruano e Baguá, no

município de Eldorado do Carajás e as fazendas Cabaceiras e Mutamba, em Marabá.

Em todas as fazendas foram registradas ocorrências de trabalho escravo, crimes

ambientais e títulos da terra sob suspeita.

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Ocupação da fazenda Maria Bonita, Eldorado do Carajás/PA, no dia 25 de julho de 2008. Foto: Thiago Cruz, estudante de sociologia, campi de Marabá/UFPA.

Em 2008 o MST ocupou a fazenda Maria Bonita, localizada às margens da PA-

150. Cerca de 100 km separam Eldorado do Carajás, do município polo da região,

Marabá. Onde antes se encontrava uma frondosa floresta de castanha e mogno,

vislumbra-se cerca, pasto e gado. Quem segue o sentido de Marabá rumo a Eldorado do

Carajás, antes de chegar à fazenda Maria Bonita, passa pela Curva do S, local do

massacre de Eldorado em 1996.

Eidê Oliveira, uma das coordenadoras do acampamento dos sem terra, ao

lembrar da madrugada da ocupação da Maria Bonita recorda que a ação da empresa de

segurança da fazenda e dos vizinhos foi rápida. “Aqui na porteira encheu de carro da

empresa Atalaia Serviços de Segurança com licença da Polícia Federal para operar no

estado do Tocantins. Os homens estavam encapuzados”, informa Oliveira, uma jovem

de pouco mais de 40 anos, mãe de cinco filhos e avó de quatro netos, que há seis anos

milita no MST. Oliveira lembra que o clima ficou tão tenso que o gerente da fazenda

deixou a arma cair.

Entrar no acampamento foi fácil. O dia é ensolarado e o local parece bem calmo.

Os homens estão caçando numa mata vizinha, onde também pescam no rio Vermelho. O

local serve ainda para a retirada de palhas e madeira para a construção dos barracos.

Eidê conta que no rio Vermelho é possível encontrar muitos peixes, entre eles o

saboroso pintado.

“Acampamento é uma escola sobre a luta pela terra. Mas, nem todos resistem. O

processo até se alcançar a desapropriação demora. A gente vive muitas privações”,

reflete a avó militante. Eidê explica que desde o dia 12 de agosto de 2008 as carretas

com o gado da fazenda não param de sair. Ela estima em pelo menos cem. Para a

militante isso é um bom sinal.

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Ocupação da fazenda Maria Bonita, Eldorado do Carajás/PA, no dia 25 de julho de 2008. Foto: Thiago Cruz, estudante de sociologia, campi de Marabá/UFPA

O acampamento está organizado em 23 núcleos de base, cada núcleo com média

de dez famílias. Durante a prosa com a militante fomos interrompidos em vários

momentos com a chegada de representantes de família para a inscrição no cadastro.

Pergunto como fazem para identificar possíveis infiltrados, ela informa que alguns já

são conhecidos. E sempre que chegam não são bem-vindos.

Desde o dia 01 de agosto de 2008 uma liminar de reintegração de posse foi

expedida pela justiça de Marabá. Já a audiência no dia 7 de agosto no INCRA de

Marabá terminou em impasse. A reunião foi entre a assessoria jurídica do Grupo Santa

Bárbara e a representação dos movimentos sociais locais, mediada pelo ouvidor

nacional Gercindo Filho.

Enquanto a equipe jurídica da Santa Bárbara exige a saída imediata dos

ocupantes, a representação do MST enfatizou a permanência na área até a conclusão do

levantamento sobre a cadeia dominial da fazenda.

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Ocupação da fazenda Maria Bonita, Eldorado do Carajás/PA, no dia 25 de julho de 2008. Foto: Thiago Cruz, estudante de sociologia, campi de Marabá/UFPA.

A fazenda Castanhal Espírito Santo

280 camponeses ligados ao MST ocuparam a fazenda Espírito Santo, localizada

no município de Xinguara, no dia 28 de fevereiro de 2009. Os trabalhadores rurais

ligados ao movimento foram antecedidos por outros grupos que também atuam na

região, entre eles a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF).

Xinguara na década de 1980 foi locus de chacinas como Surubim (17 mortos) e

Dos Irmãos (6 mortos). Ambas as chacinas não possuem processo para apurar os

responsáveis.

Nos dias atuais o município foi palco de ação de uma “empresa de segurança” da

fazenda Espírito Santo, que feriu a bala de vários calibres oito militantes do MST no dia

18 de abril de 2009. A ação dos seguranças disparando escopetas e revólveres foi

transmitida em cadeia nacional.

O staff jurídico e de imprensa da Agropecuária Santa Bárbara, com reconhecida

competência, hegemoniza os seus argumentos na mídia no sentido de criminalizar as

ações do movimento. Argumentos replicados nos mais diferentes meios de

comunicação.

Os dirigentes do MST informam que os jornalistas têm viajado às áreas

ocupadas do grupo em aviões fretados pela empresa. Questiona-se então: com que

isenção os jornalistas podem avaliar os fatos? No caso da Espírito Santo noticiou-se que

os mesmos foram mantidos em cárcere privado pelos militantes, notícia desmentida

pelo depoimento na delegacia do repórter Vitor Haôr, da TV Liberal de Marabá,

segundo notícia do site do MST publicada em 27 de abril de 2009, em matéria assinada

pelo jornalista Max Costa.

Edinaldo de Souza, repórter do jornal Opinião de Marabá também desmente a

notícia de cárcere privado e que os mesmos teriam sido usados como escudo humano.

Ele conta que não retornou no mesmo dia do conflito a Marabá de avião em razão da

aeronave ter partido lotada, transportando o cinegrafista Felipe Almeida, um segurança

ferido e um sem-terra baleado. Ele retornaria a Marabá dia seguinte (19.04), por volta

de 14h 30min, juntamente com o restante dos repórteres e a advogada Brenda Santis. A

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notícia foi veiculada no dia de 27 de abril de 2009no blog do jornalista e publicitário

Hiroshi Bógea, radicado em Marabá.

No caso da fazenda Espírito Santo, os jornalistas não informam que o registro da

propriedade foi suspenso em janeiro de 2009 pela Vara Agrária de Redenção. Ou

mesmo da prática de trabalho escravo na área, e que a propriedade pública foi

comercializada pelo pecuarista Benedito Mutran ao grupo Santa Bárbara de forma

ilegal.

Um linchamento político e ideológico, assim pode ser analisada a cobertura da

maioria da imprensa local e nacional sobre a presença do MST em áreas controladas

pelo grupo Santa Bárbara Xinguara do banqueiro Daniel Dantas.

A disputa recente pela terra no Pará já registrou pedidos de intervenção federal

pela senadora Kátia Abreu (DEM/TO), a representante mor da Confederação Nacional

da Agricultura (CNA) no mês de março de 2009. No dia 22 de abril do mesmo ano, o

pedido foi reendossado na Procuradoria Geral da República.

A representação regional da entidade, a Federação de Agricultura e Pecuária do

Pará (FAEPA) foi flagrada no mesmo período pela má aplicação de verbas públicas na

campanha de combate da febre aftosa no estado pelo presidente da entidade, Carlos

Xavier. Um jantar orçado em quatro mil reais é um dos questionamentos. Mas, a agenda

negativa dos pecuaristas não teve amplificação da mídia. A reportagem foi veiculada no

jornal da TV Globo, Bom Dia Brasil, de 25 de março de 2009.

A reportagem realizada por Roberto Paiva explica que 40% da carne consumida

no estado não passa por fiscalização sanitária. Os recursos, oriundos da Agência de

Defesa Agropecuária do Estado Pará (ADEPARÁ) para o combate da febre aftosa, R$

1.441 milhão foram repassados desde 2007 através de três convênios para o presidente

do Fundo, o senhor Carlos Xavier, que nunca prestou contas.

Entre as notas flagradas pela auditoria consta uma compra de 150 projéteis para

armas de calibre 38. Cura-se aftosa na bala ou seriam para os “seguranças” das

fazendas? Tem-se ainda uma nota fiscal no valor de R$ 21 mil para aluguel de carros.

Se as ocupações ocupam generoso espaço dos meios de comunicação local, não ocorre a

mesma atenção sobre os “deslizes” dos empreendedores da pecuária.

Enquanto as ações de ocupação dos sem terra ganham ares de satanização da

maioria da cobertura da mídia, as execuções de dirigentes sindicais, as chacinas de

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camponeses(as) e as libertações de trabalhadores(as) das fazendas e carvoarias de

condições análogas à escravidão são naturalizadas.

Também não gozou da devida atenção nas coberturas jornalísticas locais o fato

histórico da condenação, numa única tacada, de 27 fazendeiros por manterem pessoas

escravizadas, numa sentença expedida pelo juiz federal de Marabá, Carlos Henrique

Borlido Haddad e divulgada em 4 de março de 2009.

Lista dos fazendeiros condenados e as respectivas penas

CONDENADOS PENA

1. Jerônimo Aparecido de Freitas 3 anos e 9 meses

2. Francisco Sérgio da Silva Siqueira 4 anos

3. Marco Antonio Chaves Fernandes de Queiroz e

José Fernandes de Queiroz

6 anos

4. Oseon Oseas de Macedo, 6 anos

5. Valdemir Machado Cordeiro 4 anos e 8 meses

6. Paulo César de Oliveira 6 anos

7. Humberto Eustáquio de Queiroz 4 anos

8. Erismar de Faria Salgado 4 anos

9. Cezar Augusto de Oliveira 5 anos e 4 meses

10. Manoel Clementino Teixeira 3 anos e 4 meses

11. Francisco Vitalino de Oliveira Franco 5 anos

12. Valdemar Rodrigues do Vale 3 anos e 9 meses

13. Fábio Oliveira Ribeiro 4 anos e 8 meses

14. Milton Martins da Costa 5 anos e 3 meses

15. Walderez Fernando Resende Barbosa, Antônio

Vieira de Sá e José Aparecido Mendes Paulo

8 anos e 3 meses

16. Rubens Francisco Miranda da Silva 4 anos

17. Magnon Coelho de Carvalho 6 anos

18. Joyce Anne Ramalho 3 anos e 4 meses

19. Raimundo Rocha Martins Filho 5 anos e 5 meses e 10

dias

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20. Vicente Medeiros 6 anos, 6 meses e 22 dias

21. José Régis da Silva 10 anos e 6 meses

22. Rogério Queiroz de Araújo 3 anos e 9 meses

23. Reinaldo José Zucatelli e Helmo Oliveira Lima 6 anos e 9 meses

24. Wilson Ferreira da Rocha 3 anos

25. Wilson Ferreira da Rocha 6 anos (em outro

processo, devido à

reincidência)

Fonte: Justiça Federal do Pará, Marabá (2009)

A parcialidade é a principal estampa da cobertura sobre os fatos que envolvem a

disputa pela terra no Pará. A complexa realidade fundiária sempre é secundada, em

detrimento do horizonte positivista em defesa da propriedade privada. Ainda que os

meios para a construção da mesma sejam em sua maioria questionáveis.

A fazenda Cedro

240 famílias ligadas ao MST ocuparam a fazenda Cedro no dia primeiro de

março de 2009. A propriedade é festejada no mundo do agronegócio por seu caráter de

excelência na produção de gado zebu, no município de Marabá.

A área é objeto de imbróglio jurídico que envolve o estado, a família Mutran e o

grupo Santa Bárbara. Ao longo dos anos o castanhal deixou de existir e em seu lugar

surgiu o pasto. Com a fazenda Cedro, atualmente são três as fazendas ocupadas pelo

MST que envolvem o nome da Pecuária Santa Bárbara.

A “faca” na jugular da governadora Ana Júlia

No começo de 2008, Ana Júlia Carepa, governadora do Pará (PT), foi

surpreendida pela visita do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, um reconhecido

militante do PT paulista. Um sujeito alinhado na defesa dos direitos humanos de

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camponeses e de presos políticos, em tempos idos. Em 1986 o advogado esteve em

Belém em ato simbólico que denunciava a violência contra camponeses, o Tribunal da

Terra.

O ato simbólico teve entre os organizadores sindicatos de trabalhadores rurais,

CPT, OAB e ocorreu entre os dias 18 e 19 de abril de 1986, no Palácio da Justiça, com

o objetivo de levantar denúncias contra multinacionais, Estado e o latifúndio.

As chacinas Surubim e Ubá constavam no rol de casos, que somaram 83 mortes

no ano de 1985 na região. Registraram-se ainda o assassinado do sindicalista Benedito

Bandeira, no município de Tomé Açu, onde a comunidade revoltada com a execução

destruiu a delegacia e matou os três pistoleiros, que receberam CR$ 5.000,00 do

fazendeiro Acrino Breda, que nunca chegou a ser preso pelo caso.

O Pe. Josimo que coordenou a CPT de Imperatriz, Maranhão, morto em 10 de

maio de 1986, participou do Tribunal para denunciar o atentado que sofrera. Um mês

depois foi executado com tiros dados pelas costas.

23 anos depois da realização do ato simbólico, Luiz Eduardo Greenhalgh aporta

no Pará do outro lado da cerca, na condição de lobista do banqueiro Daniel Dantas. Em

entrevista ao repórter Leandro Fortes, da revista Carta Capital, edição de nº 544, em

maio de 2009, Ana Júlia denuncia que o antigo defensor levou a tiracolo o gerente

máximo da Agropecuária Santa Bárbara, Carlos Rondenburg, indiciado pela Polícia

Federal junto com Daniel Dantas, ex-cunhado, por gestão fraudulenta, formação de

quadrilha, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e empréstimo vedado.

O objetivo da visita era o pedido de revisão de uma notificação de crime

ambiental expedida pela Secretaria de Meio Ambiente contra a fazenda Espírito Santo.

Conforme a entrevista, Ana Júlia avalia hoje que desde 2008 há uma agenda de pressão

pró-Dantas em diferentes flancos e no sentido de desqualificar o governo estadual na

mídia e no Congresso.

Em seguida a governadora recebeu o telefonema do presidente do Supremo

Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, pedindo informações sobre as reintegrações de

posse no estado. Outro passo é a presença da senadora Kátia Abreu (DEM/TO) e chefe

da CNA com pedido de intervenção federal no estado, seguido de discurso/anúncio na

Câmara Federal do correligionário Abelardo Lupion (DEM/PR), integrante da “bancada

ruralista”, de chacina de camponeses sem terras paraenses.

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93

Na análise da governadora, além da desqualificação do governo na tensa disputa

pela terra em solo paraense, a frente ruralista deseja a qualquer custo a reedição de

episódios como o protagonizado na administração do PSDB, quando o médico Almir

Gabriel governou o estado e Fernando Henrique o país, o trágico Massacre de Eldorado

dos Carajás, ainda hoje impune, como muitos outros.

Gilmar Mendes baixa em Marabá - No dia 04 de dezembro de 2009, do

presidente do STF esteve em Marabá para ativar o primeiro mutirão fundiário do

Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que visa reduzir em 10% as tensões no campo. O

principio é a conciliação dos ânimos. Interroga-se: e os títulos grilados de terras, os

crimes impunes, a morosidade da justiça?

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AGROBIODIVERSIDADE NA AMAZÔNIA: MOVIMENTOS SOCIAIS

APONTAM PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS COMO FORMA DE

DESENVOLVIMENTO 14

A disputa pela terra e os recursos nela existentes coloca ao centro a disputa pelo

projeto de desenvolvimento em que estão em oposição grandes corporações do setor do

agronegócio, mineradoras, construtoras de barragens, base de lançamento de foguetes

de Alcântara, empresas de cosméticos e farmácia; e no outro extremo camponeses,

indígenas e quilombolas e demais modos de vida considerados tradicionais na

Amazônia. No setor de sementes os mastodontes são Monsanto, Dupont e Syngenta,

que controlam próximo de 40% do mercado mundial.

A diferença de força e do poder político e econômico entre as partes envolvidas

foi um dos pontos de reflexão do Seminário Agrobiodiversidade da Amazônia, ocorrido

nos dias 17 e 18 de novembro de 2008, na ilha de São Luís, Maranhão. Rede de

Agroecologia do Maranhão (RAMA) e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

foram os organizadores do evento.

A ensolarada cidade recebeu cerca de 130 pessoas de todo o canto da Amazônia

e de outras regiões do país para refletir sobre a questão e expor produtos numa feira

dedicada à riqueza de variedades da natureza e do artesanato. Cachaça, licores, mel,

comidas típicas, geléias e compotas foram expostos, entre outros itens. Na semana que

reflete sobre a Consciência Negra, num estado de grande contingência afro, o Tambor

de Crioula do mestre Felipe fez as honras da casa.

A consolidação de ações em rede a partir de frentes que alternem mobilização

política de pressão nos níveis locais e nacionais e a potencialização das iniciativas locais

de agroecologia, fortalecimento da troca de experiências foram algumas sugestões de

enfrentamento com a conjuntura que favorece as grandes corporações.

Quilombolas, camponeses, indígenas e assessores compartilharam práticas

baseadas nos princípios da agroecologia e que ainda carecem de maior visibilidade

como possibilidades concretas de desenvolvimento que contemplem o saber e os modos

de produção das populações da terra firme, várzea, ilha, estuário, cerrado, áreas de

colonização consideradas antigas e as áreas de colonização mais recentes na Amazônia.

14 Trabalho publicado na página da rede www.forumcarajas.org.br, em novembro de 2009.

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Grandes projetos em questão

Nice Tavares, uma negra quebradeira de coco babaçu do Maranhão e integrante

do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), reflete que a

manutenção da agrobiodiversidade representa a garantia da vida. A militante arremata

que o desenvolvimento baseado nas grandes empresas só traz destruição ao povo que

vive no campo.

A interpretação da Tavares comunga da fala dos depoimentos de militantes de

outras regiões, como no caso do José Maria, do Baixo Parnaíba, mesorregião leste

maranhense (Chapadinha, Coelho Neto, Caxias, Codó e Chapada do Alto Itapecuru),

onde proliferam monoculturas de soja e cana.

No contexto de expansão de grandes grupos sobre áreas de populações

consideradas tradicionais é comum a lógica da violência em diferentes níveis: expulsão

da família camponesa, grilagem de terra, corrupção do poder público, destruição

ambiental, condições análogas a trabalho escravo, prostituição e violência urbana. O

militante indicar que o Grupo João Santos é um dos protagonistas. José Maria informa

ainda sobre o elevado índice de poluição dos recursos hídricos por conta do uso

intensivo da monocultura da soja.

Marly e Santinha são índias Makuxi da área da Raposa Serra do Sol, em

Roraima. Além do povo Makuxi a reserva registra os povos Ingarikó, Patamona,

Taurepang e Wapixana. As simpáticas índias informam que a presença dos sulistas na

região teve início lá na década de 1960 e foi se aprofundando com o passar dos anos.

Elas festejam o fracasso eleitoral do prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, o

mais voraz opositor da demarcação continua da reserva.

A ação contra a União que visa o esquartejamento da reserva Raposa Serra do

Sol foi movida pelos senadores Augusto Afonso Botelho Neto (PT/RR) e Francisco

Mazarildo de Melo Cavalcanti (PTB/RR), com o endosso do governador do estado,

Ottomar Pinto (PSDB).

As indígenas relatam que os grandes produtores de arroz expulsam os homens da

região e cometem todos os tipos de violência contra crianças e mulheres. As mulheres

são estupradas, ressalvam com revolta as índias. As Makuxi pontuam que a

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monocultura do arroz destrói os mananciais e os buritizais, palmeira comum na região.

Uma artimanha corrente para a composição de latifúndios tem sido a compra de lotes

em projetos de assentamento da reforma agrária. Além do arroz registra-se a introdução

da leguminosa acácia manja, uma planta exótica.

Dinâmicas agroecológicas

O seminário alternou dois momentos: o primeiro dedicado para reflexão e o

segundo para a apresentação de experiências locais. Silenciosamente homens e

mulheres do campo fazem uma pequena revolução. A oeste do Maranhão a ONG, que

tem como caráter ser dirigida por trabalhadores(as) rurais tem consolidado uma prática

em agroecologia que contempla inúmeras dimensões, como gênero, geração, educação e

tecnologias baratas. Trata-se do Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

(CENTRU), que tem entre os integrantes o histórico militante da luta camponesa,

Manoel Conceição Santos.

Ainda no Maranhão, na região do Mearim, região marcada pela proeminência de

palmeiras de babaçu, a Associação de Assentamentos no Estado do Maranhão

(ASSEMA) incentiva uma prática em agroecologia que já alcançou o mercado

internacional e tem na linha de frente mulheres camponesas.

Já na região do baixo Tocantins, onde predomina uma dinâmica de estuário,

onde a vida se condiciona às oscilações das marés, a Associação Paraense de Apoio às

Comunidades Carentes (APACC) anima uma rede de agricultores(as) em agroecologia

em três municípios locais.

Experiências em agroecologia

A ASSEMA é uma organização dirigida por trabalhadores rurais e quebradeiras

de coco babaçu que tem atuação no médio Mearim, região central do estado do

Maranhão, situado no Meio Norte do Brasil.

Seu trabalho envolve famílias de 17 áreas de assentamento dos municípios de

São Luiz Gonzaga do Maranhão, Lima Campos, Lago do Junco, Lago dos Rodrigues,

Esperantinópolis e Peritoró, todos situados na referida região, com uma população entre

10 e 20 mil habitantes.

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O comércio solidário e a produção agroecológica norteiam a atuação da

organização. No município de Lima Campos 11 famílias da Associação dos

Agricultores da Gleba Riachuelo participam da experiência consorciando o plantio de

banana, abacaxi, caju, jaca e mamão com leguminosas, árvores madeireiras da região e

a palmeira do babaçu.

Em Lago do Junco, a ASSEMA assessora uma Escola Familiar Agrícola (EFA)

que atende atualmente 42 jovens entre 12 e 18 anos de oito comunidades. Lá, os jovens

aprendem técnicas de produção diversificada, no sistema integrado que inclui o plantio

de roças, criação de pequenos animais, hortas medicinais e alimentícias.

O CENTRU tem na década de 1970 a sua semente e se estruturou em 1980 no

Maranhão e em Pernambuco. No Maranhão tem uma ação diversificada em

agroecologia em múltiplas linhas que passam pela formação de núcleos de base

familiar, fomento a organização de cooperativas, fábricas de beneficiamento de castanha

de caju, centro de difusão de tecnologias e Escola Técnica de Agroecologia voltada para

filhos(as) de agricultores(as).

O Centro de Estudos do Trabalhador Rural (CETRAL), localizado no município

de João Lisboa, funciona como uma espécie de laboratório. Ele recebe visitas de

trabalhadores rurais de outros estados do país e do exterior, além de professores e

pesquisadores. É nele que funciona a Escola Técnica de Agroecologia e onde há mais de

uma década se desenvolve um sistema agroflorestal em dez hectares.

Nos 10 hectares são cultivados horta, trinta e nove espécies de frutíferas, entre

elas, acerola, caju, banana, abacaxi, coco, jaca, goiaba, cupuaçu, murici. Entre as

madeiras podem ser encontradas, cedro, ipê, inharé, copaíba, mogno, paricá e nim. No

caso das leguminosas usadas para adubação verde, existe farta produção de feijão

guandu, mucuna preta e sabiá. A estrutura do CETRAL conta com alojamento e

auditório.

A modelagem da experiência CENTRU encontra-se no Projeto de

Desenvolvimento Sustentável e Solidário (PDSS) – O Cerrado é vida! Uma espécie de

orientador das ações da organização.

Uma das pernas fundamentais é a Central de Cooperativas Agroextrativistas do

Maranhão (CCAMA), que reúne sete cooperativas nos municípios de Amarante

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98

(Cooprama), João Lisboa (Coopajol), Imperatriz (Coopai), Montes Altos (Coopemi),

São Raimundo das Mangabeiras (Coopevida), Loreto (Coopral), Balsas (COOPAEB).

A CCAMA é o resultado de mais de dez anos de atuação do CENTRU junto

aos(às) trabalhadores(as) rurais no oeste e sul do Maranhão. São 1.935 famílias,

conforme os dados do projeto. Se multiplicarmos por cinco a média de pessoas por

família, teremos 9.675 pessoas envolvidas.

APACC - Faz oito anos que a Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes

(APACC) atua na região do Baixo Tocantins desenvolvendo atividades voltadas para a

transição do modelo de agricultura tradicional para o modelo baseado na agroecologia.

Ao longo desse tempo a APACC fomentou um pouco mais de 1.000 experimentos

baseados na agroecologia, em aproximadamente 130 comunidades, que envolveu cerca

de 2.500 pessoas nos municípios de Cametá, Oeiras do Pará e Limoeiro do Ajuru.

A caminhada incentivou canais de diálogo com uma diversidade de sujeitos

sociais regionais, nacionais e internacionais, entre eles universidades, associações e

cooperativas de produtores rurais, Casa Familiar Rural, sindicatos de trabalhadores

rurais, colônias de pescadores e inúmeras instituições dos governos municipais, estadual

e federal.

Um pouco da vasta experiência encontra-se registrada em artigos na Revista

Agriculturas - experiências em agroecologia, em citações de trabalhos científicos de

pesquisas universitárias, nos relatos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais em

participação de vários encontros dentro e fora do Pará.

Em novembro a APACC lança o livro que recupera um pouco da história da

experiência. A produção contextualiza os elementos econômicos, políticos e sociais do

Baixo Tocantins e sinaliza para a metodologia de trabalho que alterna o diálogo e a

produção de experimentos na área de produção e saúde preventiva de forma integrada.

O livro registra ainda os desdobramentos positivos e os limites da experiência.

A avaliação em regra geral é positiva e entusiasmada sobre a intervenção da

APACC nos mais diversos níveis do diálogo da instituição. A avaliação positiva pode

ser encontrada nos relatórios de observadores externos, na esfera dos financiadores e

principalmente nos depoimentos do sujeito social que é o principal parceiro da APACC,

o(a) trabalhador(a) rural, que efetivou uma Rede de Multiplicadores em Agroecologia.

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O reconhecido e inovador trabalho da APACC tem como ponto positivo a

diversificação da produção camponesa do baixo Tocantins. A inovação se reflete que

antes da intervenção da APACC o produtor mantinha uma ou duas linhas de produção.

Após a troca de conhecimento com a equipe multidisciplinar da ONG, a unidade

produtiva mantém entre quatro e seis linhas de produção, o que possibilita segurança

alimentar e renda durante todo o ano. O manejo do açaí é uma das práticas com maior

repercussão no aumento da produção.

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100

O JULGAMENTO DO CASO JOÃO CANUTO- TUDO UMA ILUSÃO? 15

A história da luta pela terra no sudeste paraense é impregnada de sangue camponês,

onde a década de 1980 do século XX é considerada a mais pujante. Na distensão da ditadura,

enquanto as representações políticas camponesas se reorganizavam, os pecuaristas em oposição

à possibilidade da efetivação de um plano nacional de reforma agrária, ao mesmo tempo em que

se fortificaram no Congresso Nacional, impulsionaram a radicalização na defesa da propriedade

privada através da União Democrática Ruralista (UDR), tendo no município de Redenção, no

sudeste paraense, como berço principal.

É à UDR que se credita a mobilização de fazendeiros na região do Bico do Papagaio,

norte do Tocantins, oeste do Maranhão e sudeste do Pará no enfrentamento contra as ações de

ocupações de terras pelos camponeses. As inúmeras chacinas e execuções de dirigentes

sindicais rurais e seus apoiadores despontam neste instante. Os assassinatos de membros da

família Canuto e do sindicalista Expedito Ribeiro, militantes do PC do B e dirigentes do

Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) no município de Rio Maria ocorrem nesse período.

Por conta da morosidade da justiça local em apurar os inúmeros casos de assassinatos

no campo paraense o estado brasileiro tem sido denunciado em cortes internacionais, a exemplo

da Organização dos Estados Americanos (OEA). A morosidade se constitui como uma nódoa na

ação da justiça local quando se trata de processos sobre as execuções de dirigentes sindicais pró

reforma agrária. E se constitui como uma seiva que irriga a manutenção da violência. Há casos

que ultrapassam a casa de uma década e outros que somam mais de vinte anos.

A demora na justiça tem impulsionado várias frentes de mobilização dentro e fora do

país com vistas a levar a julgamento os mandantes dos crimes contra dirigentes camponeses/as.

O caso de João Canuto de Oliveira levou 17 anos e cinco meses até ir a julgamento, numa

mobilização do Comitê Rio Maria. 18 tiros disparados por dois pistoleiros não identificados

mataram Canuto no dia 18 de dezembro de 1985, às 15.30h, em frente ao cemitério da cidade.

Ao cair da tarde, às 18.35h da tarde do dia 23 de maio de 2003, após dois dias de

julgamento, Adilson Carvalho Laranjeira e Vantuir Gonçalves de Paula foram condenados a 19

anos e 10 meses de prisão no Tribunal do Júri de Belém, Pará. Roberto Moura, juiz da 1ª Vara

Penal (o mesmo do caso Eldorado do Carajás), fez o pronunciamento da pena de dois, dos cinco

fazendeiros acusados de mandantes do assassinato do presidente do STR de Rio Maria, João

15 Trabalho publicado parcialmente na Revista Cadernos do Terceiro Mundo, edição de nº246, no ano de 2003.

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101

Canuto de Oliveira. Os outros três fazendeiros acusados de mando da morte do sindicalista e

que estão foragidos são: Ovídio Gomes Oliveira, Juranidr Pereira da Silva e Gaspar Roberto

Fernandes.

Luzia Canuto, filha de João é historiadora e coordena o Comitê Rio Maria. A

organização anima a luta por justiça a favor dos militantes da reforma agrária assassinados no

Pará. Luzia comemorou a sentença dos fazendeiros ao lado da mãe, dona Geraldina, 65 anos na

época, e o irmão Orlando. O irmão de Luzia é sobrevivente de um seqüestro cinco anos após a

execução do pai, onde dois irmãos José e Paulo foram mortos. Quando do julgamento, Orlando

presidia a Câmara Municipal de Rio Maria.

O julgamento dos acusados da morte de João Canuto entra para a história por dois

motivos: primeiro pelo fato de ser a sétima vez em que acusados de envolvimento de morte de

animadores da reforma agrária sentar no banco dos réus; e o segundo, por conta das brechas da

Lei, que possibilitou que os dois fazendeiros condenados gozarem do direito de recorrem em

liberdade, por serem primários e “gozarem de bons antecedentes”.

O desejo de dona Geraldina era vê-los saírem algemados direto para a cadeia. Ainda

assim perto de 600 trabalhadores rurais acampados desde o primeiro dia do julgamento

festejaram a sentença.

AS TESTEMUNHAS

Dois meses antes de ser morto João Canuto de Oliveira ficou escondido dos pistoleiros

na casa do defensor público José Roberto da Costa Martins, que atuou a partir de 1983 em

Conceição do Araguaia, 200 quilômetros de Rio Maria. Martins declarou em seu depoimento

que Canuto lhe havia confessado que Vantuir tinha interesse na morte dele. No tribunal Martins

denuncia que vários depoimentos relativos ao caso do sindicalista sumiram da delegacia de Rio

Maria, que por conta do fato, tiveram de ser retomados em Conceição do Araguaia.

Aqui vale uma ressalva no que diz respeito ao chefe de delegacia no interior do Pará

naqueles dias distantes. Os mesmos não eram obrigados a terem graduação em Direito. Os

chefes de delegacia eram alcunhados de “bate pau”, não raro, pistoleiro, homem de confiança

do prefeito. Na época da morte de Canuto, Adilson Laranjeira era prefeito de Rio Maria.

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102

Padre Ricardo Rezende Figueira atuou na região entre 1977 a 1989 como membro da Comissão

Pastoral da Terra (CPT). Rezende assina dois livros essenciais para quem se interessa por essa

latitude da Amazônia A Justiça do Lobo, posseiros e padres do Araguaia (Vozes, 1986) e Rio

Maria, o Canto da Terra (Vozes,1993). Por conta de seu vínculo de amizade com João Canuto o

depoimento ganhou outra conotação, a de informante.

No livro Rio Maria, o canto da terra (página 177), Rezende registra uma conversa com o

lavrador João Martins, onde narra uma fala do mesmo: “Se falava que houve reunião para matar

João Canuto. Uma com vinte e cinco pessoas, na casa do Valter Valente. O cabeça era

Laranjeira. Quando os dois pistoleiros chegaram para acertar Canuto, vinham da fazenda Canaã,

do Ovídio.”

Rezende recorda em seu depoimento que se comentava na cidade que os fazendeiros e

políticos se reuniram algumas vezes para planejar a morte de Canuto e dos deputados estaduais

Paulo Fonteles e João Batista (assassinados em 1987 e 1988) e do ex-deputado federal Ademir

Andrade, hoje vereador em Belém pelo PSB.

Entre os participantes da reunião estavam Laranjeira, o prefeito de Conceição do

Araguaia, Orlando Mendonça e seus irmãos Marcondes e Jordão Mendonça; Dirceu, Danilo e

Juscelino, o médico Eurico, Jurandir e o fazendeiro Elviro Arantes, encarregado da contratação

dos pistoleiros ao lado do fazendeiro Zanela.

A TESMUNHA CHAVE

Olinto Domingos Vieira, comerciante de sementes em Rio Maria foi o depoimento

decisivo para condenar os fazendeiros Adilson Laranjeira e Vantuir de Paula. O comerciante

confessou em júri que esteve em uma reunião de fazendeiros que decidiu pela execução de

Canuto. A reunião foi três dias antes da morte do sindicalista e serviu para se fazer a coleta do

dinheiro que iria pagar os pistoleiros.

Vieira sentenciou que além de Vantuir de Paula, estavam presentes os fazendeiros Renê

Simões, o dono da casa de prenome Danilo, o irmão de um dos réus, conhecido como Valtinho.

Vieira informa que chegou a ver o fazendeiro Adilson Laranjeira deixando a casa onde ocorreu

a reunião. “Ouvi quando todos eles falaram que tinham que eliminar o João Canuto senão as

invasões iam continuar”. Todos foram unânimes, finalizou Vieira. Para o promotor Edson

Cardoso o depoimento do comerciante fornecia evidências de sobra para o tribunal do júri

condenar os fazendeiros a 30 anos de reclusão em regime fechado, pena máxima por homicídio

culposo qualificado. Só que não foi bem assim o desfecho.

Page 100: Poroca Pequena

103

IMPRESSÕES DO JULGAMENTO

O ministro Nilmário Miranda, secretário nacional dos Direitos Humanos, e o presidente

da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha presenciaram o final do julgamento. Para João

Paulo, a condenação é emblemática, passo fundamental para o fim da impunidade no país.

Apesar de verem com bons olhos a condenação dos fazendeiros, representantes da Anistia

Internacional e da Federação Internacional de Direitos Humanos prometem vigilância com

relação ao caso e com outras ocorrências de assassinatos de militantes da luta pela reforma

agrária no Brasil.

Apesar da demora no andamento do processo, 17 anos e cinco meses, o observador da

Anistia Internacional, o uruguaio Edgar Carvalho, avaliou como positivo o desfecho da luta do

movimento popular brasileiro. Annie Marie Delmares, advogada do Tribunal de Hauts de Siene,

França e integrante da Federação Internacional de Direitos Humanos discordou do bom senso

dos colegas estrangeiros, para Delmares, para que o julgamento seja perfeito é necessário que a

sentença seja cumprida.

“Uma ilusão” disparou frei Henri des Roziers, advogado francês assistente da acusação,

e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Xinguara, cidade vizinha a Rio Maria. Frei Henri

comparou o desfecho do Caso Canuto com o julgamento do Eldorado de Carajás, onde o major

José Maria Oliveira e o coronel Mário Pantoja, que também foram condenados em junho em

2002 respondem em liberdade até hoje.

O estado do Pará ostenta o recorde de crimes contra lideranças populares executadas na

luta pela reforma agrária, 541 casos só no sul e sudeste do Estado desde 1980. Isso motivou a

presença do presidente nacional da CPT no julgamento do caso Canuto, D. Tomás Balduíno,

que considera: “A violência no sul e sudeste do Pará é emblemática. É os Estado mais conflitivo

na disputa pela terra por causa do governo e da justiça, que emperra a reforma agrária e gera a

impunidade”.

JUSTIÇA

“ A omissão do Poder Judiciário é, de maneira geral, extremamente óbvia e grave. Tem

muita omissão, mais que omissão. Eu, pessoalmente, sou testemunha da existência de poucos

juízes absolutamente autênticos, de promotores de justiça honestos, competentes e corajosos. O

Judiciário do Brasil, principalmente o do Pará, apresenta muitos problemas. Uma das razões

para isso é a falta de um sistema de fiscalização legítimo. É fundamental que exista uma

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104

fiscalização do Judiciário, a partir da sociedade organizada. O funcionamento do Judiciário

quase sempre foi a favor dos fazendeiros, dos ricos e das pessoas que têm poder econômico,

social e político,” a observação é do Frei Henri des Roziers, coordenador da CPT de Xinguara, a

revista Em Questão (Belém, nº07, 2ª quinzena de 2003).

Quando se examina o diagnóstico organizado pela CPT do Pará de 541 mortes ocorridas

no sul e sudeste do Estado desde 1980, e somente sete casos entre mandantes (03), intermediário

(01), e pistoleiros (03), foram a júri e nenhuma pessoa se encontra presa, fica evidente que há

algo de grave na província do Pará. É a partir de tal quadro que o movimento popular cimenta o

discurso que é a certeza de impunidade que motiva a pistolagem contra lideranças sindicais e do

MST.

Caso do fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim, que foi julgado e condenado no dia seis

de junho de 2000 a 19 anos e meio de prisão como mandante da morte do também sindicalista

Expedito Ribeiro de Souza. O fazendeiro cumpre pena domiciliar em sua mansão em Goiânia,

Goiás, alegando motivo de saúde.

Ainda conforme documento da CPT, sete júris foram realizados envolvendo

sindicalistas de Rio Maria, incluindo o caso do fazendeiro Jerônimo Alves. Ubiratan Ubirajara,

assassino dos filhos de João Canuto, José e Paulo, foi condenado a 50 anos de prisão, foragido

da penitenciária de Belém dois anos após ser condenado; José Serafim Sales, conhecido como

“Barreirito”, assassino de Expedito Ribeiro, condenado a 25 anos de prisão, foragido desde

1999 da penitenciária de Marabá; Francisco de Assis atende pela alcunha de “Grilo”,

intermediário da morte de Expedito Ribeiro, 21 anos de prisão; Paulo César, tentativa de

assassinato contra Carlos Cabral, condenado a dois anos de reclusão. Há ainda o caso do ex-

sargento da PM Edson Matos, foragido do quartel da PM mesmo antes de ir ao tribunal do júri.

Outro exemplo que não pode deixar de ser lembrado é o caso do Massacre de Eldorado

do Carajás, onde 19 trabalhadores rurais sem terra foram mortos pela PM do Pará, em 17 de

abril de 1996. Na questão de Eldorado somente dois oficiais dos 154 policiais envolvidos foram

condenados pelo último júri de 2001, e esperam em liberdade julgamento de recurso. Por essas e

outras demandas relacionadas com a luta pela terra que em 1999 a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o estado

brasileiro pela lentidão em apurar o caso de João Canuto.

AS CARTAS RECENTES DE RIO MARIA

A vitória do Caso Canuto foi parcial, avaliou Jax Pinto, ex coordenador da CPT do

Pará. “Acreditamos que há um avanço no que diz respeito aos casos de levar a julgamento os

envolvidos na morte de lideranças empenhadas na luta pela reforma agrária no Brasil. É

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105

resultado na pressão do movimento no Brasil e internacional. Hoje a reforma agrária é pauta

nacional. Isso resulta da luta, da ação em rede do movimento”, arremata Pinto.

ALERTA

Durante a conversa Pinto foi enfático em salientar a sua preocupação em relação ao que

considera a última fronteira da Amazônia. Trata-se da Terra do Meio, a derradeira reserva de

Mogno, madeira de grande valor comercial no mercado mundial. A região fica na Amazônia

Oriental, entre os rios Xingu e Iriri, bandas dos municípios de Altamira, São Félix do Xingu,

Itaituba e Novo Progresso.

“Lá tudo é grande, até o pequeno proprietário de terra. Lá a dinâmica pela disputa da

terra é entre o grande e o pequeno, e entre os grandes proprietários e índios. Há um casamento

cruel entre a destruição ambiental e a violência. A situação da região nos preocupa bastante, e

pode ficar mais grave. Sem falar na construção da polêmica hidrelétrica de Belo Monte”,

finaliza Pinto.

APREENSÃO é a palavra chave que traduz o sentimento dos envolvidos na

condenação dos fazendeiros que encomendaram a morte de João Canuto. O processo de recurso

pode durar até cinco anos entre as instâncias estaduais e nacionais. Nos recentes documentos

distribuídos pela internet do Comitê Rio Maria, reside a avaliação que o juiz Moura poderia ter

decretado a prisão imediata por ser um crime considerado hediondo.

Além da convocação para a manutenção da pressão das entidades nacionais e

internacionais para a prisão dos condenados, o documento do Comitê Rio Maria salienta que:

“... é óbvio que os condenados e seus parceiros poderosos e violentos não ficarão passivos. Eles

vão tentar calar de uma maneira ou de outra a voz daqueles que lutaram e lutam pela Justiça na

região e para que este julgamento e condenação se realizassem”. Assina a nota a família Canuto,

Comitê Rio Maria, CPT e o STR.

TRIBUNAL SIMBÓLICO

“O Tribunal Internacional de Crimes de Latifúndio no Pará” foi realizado de 27 a 30 de

outubro de 2003, como forma de pressionar as autoridades sobre a omissão de mortes na luta

pela terra. Foi lançado no último dia do julgamento dos fazendeiros que encomendaram a morte

de Canuto.

Foi um tribunal popular que julgou alguns processos de visibilidade nacional, como os

acusados pelo Massacre de Eldorado do Carajás e pelas mortes de “Fusquinha” e “Doutor”

(integrantes do MST mortos em Parauapebas), e “Dezinho” (integrante da Federação dos

Trabalhadores na Agricultura – Fetagri, morto em Rondon do Pará, 2000). Edmilson Rodrigues,

prefeito de Belém na época e D. Tomás Balduíno, coordenador da CPT nacional estiveram no

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106

lançamento do Tribunal. Dira Paes, Marcos Winter, Letícia Sabatela, Carla Marins e Leonardo

Vieira foram alguns dos artistas que estiveram presentes no julgamento. Eles integram um

comitê que apóia a luta pela reforma agrária no Brasil. Naquele mesmo momento uma outra

chacina no Xingu era noticiada.

Dona Geraldina Canuto, viúva de João veio a óbito no dia 15 de outubro de 2009. O

derradeiro depoimento de dona Geraldina foi dado a jovens realizadores, que produzem

um documentário sobre as viúvas e mães de trabalhadores rurais da região.

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107

CARAJÁS, O NOVO CENÁRIO?16

A passagem do ano de 2003 para o ano de 2004 na região do Bico do Papagaio,

norte do Tocantins, sul do Pará e oeste do Maranhão, foi marcada pelo alarde

apaixonante de defesa do meio ambiente por conta dos possíveis impactos ambientais e

inundações que a hidrelétrica de Marabá venha a causar caso saia dos croquis dos

engenheiros. 25 municípios dão vida ao Bico do Papagaio, com uma população

estimada em 150 mil pessoas. Uma região imortalizada na história pela Guerrilha do

Araguaia, e a violência e morte de dirigentes sindicais rurais.

O inusitado é que o primeiro apito tenha soado da boca de Siqueira Campos

(PSDB), ex-governador do Estado do Tocantins, denunciado por uma revista de

circulação nacional como o dono de todas as iniciativas financeiras exitosas no estado.

Um animador do desenvolvimentismo, cujo slogan de sua administração ganhava

caráter na frase: Tocantins, o Estado da livre iniciativa. Mais estranho ainda é que oito

hidrelétricas estão planejadas para o Tocantins, sendo que a hidrelétrica de Lajeado já

está produzindo. É energia para exportação. Na propaganda nos sertões do Brasil é que

tais projetos vão promover o desenvolvimento, geração de emprego, vão trazer o

progresso aos rincões do Brasil.

A hidrelétrica de Marabá está desenhada como outras 15 da bacia do Araguaia

Tocantins desde a década de 80 (na década de 80 eram previstas 27, segundo

planejamento do Programa Grande Carajás). A cidade de Marabá tem cerca de 200 mil

habitantes, é a principal do sudeste do Pará. Tem no comércio sua base econômica. E

goza da boa fama de se resolver tudo na ponta da peixeira ou da bala.

A cidade tem alma violenta e violentada. Um resíduo do processo de

colonização marcado por grandes projetos, ausência de debate, violação de leis e

direitos. Algo similar com o que vem sendo reeditado em toda a região do Bico do

Papagaio.

Com um custo estimado de U$2 bilhões de dólares, com um prazo de construção

médio de oito anos, a hidrelétrica deverá ser uma das maiores do país, com capacidade 16 Trabalho publicado no site www.riosvivos.org.br me janeiro de 2004

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de produção de 2.160 megawatts. Segundo dados da Cartilha Águas sem barragens,

editada em 2003 pelo Fórum Carajás (2003-, rede de organizações populares da área de

abrangência da Ferrovia de Carajás), 11 municípios serão atingidos.

A hidrelétrica afetará ainda as comunidades indígenas Gavião, aldeia Mãe Maria

e Suruí Aiwekar no Pará. 16.465 pessoas dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão

serão deslocadas de seus locais de origem. Sendo 4.364 pessoas da área urbana e 12.100

da zona rural, onde estão camponeses, indígenas, extrativistas e pescadores. O Parque

Estadual do Encontro das Águas, onde os rios Tocantins e Araguaia se encontram

poderá sumir. Pedra de Amolar, o marco geográfico da divisa entre os três estados

deverá ter a mesma sina.

O que soa mais grave é que segundo estudos da Agência Nacional de Energia

Elétrica (Aneel) a hidrelétrica de Marabá está inserida na zona de transição do rio

Araguaia, onde se verifica entre abril e setembro a migração de espécies de peixes que

deixam o reservatório de Tucuruí, sul do Pará, e os lagos e igarapés nas proximidades

de Itupiranga e Marabá, Pará. Ao mesmo tempo há cardumes descendo o Araguaia em

direção ao Tocantins. O que caracteriza como uma área com restrição à implantação de

hidrelétrica.

A Cnec Engenharia S/A, empresa paulista é a responsável pela realização dos

estudos de viabilidade técnica e dos impactos ambientais e sociais. A empresa é a

mesma que vem fazendo estudos nas hidrelétricas do Vale do Araguaia Tocantins, - o

maior em potencial hidrelétrico do país -, como a de Estreito, oeste do Maranhão.

Segundo matérias publicadas nos jornais do Tocantins os municípios do Estado

serão os mais atingidos com a formação do lago de 10 bilhões de metros cúbicos de

água, numa área de 1.300 quilômetros quadrados. Os impactos sociais e ambientais

imediatos são de difícil mensuração, sem falar nos cumulativos. A região é bela.

Marcada pela presença de vários sítios arqueológicos, um pôr de sol extraordinário e

nativos sem pressa. Esperantina e Araguatins, cidades do Estado do Tocantins, correm o

risco de submergirem com a formação do lago.

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109

É válida a mobilização ocorre no Tocantins, mas, uma vez mais se palmilha o

mesmo erro de outrora, não se discutir o modelo de desenvolvimento estabelecido para

a região. No mapa dos grandes projetos as hidrelétricas são apenas um dos pontos.

Consta ainda a abertura de estradas, portos, construção da Ferrovia Norte-sul,

monocultura da soja via Projeto Sampaio no próprio Tocantins, novos projetos de

exploração da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), com o cobre em Canaã do

Carajás, bauxita em Paragominas, nova siderúrgica em Marabá, implantação de empresa

de produção de placas de aço em São Luís, Maranhão, construção de linhas de energia

para as empresas de Alumina e Alumina em Barcarena no Pará (Alunorte/Albrás), e a

Alumar, São Luís, concomitantemente a hidrelétrica de Tucuruí passou por uma

duplicação de sua capacidade produtiva com a implantação de 10 novas turbinas.

O que se nota é uma nova reconfiguração espacial a partir desses novos grandes

projetos. Pelo montante dos empreendimentos que emergem, é como se surgisse um

novo Projeto Carajás. Agora no contexto de economia globalizada, não mais sob a égide

da doutrina de segurança nacional. Pelo que podemos notar ao longo da experiência dos

anos do projeto Carajás, não há nada de novo na paisagem. A lógica permanece a

mesma desde o descobrimento do país: o saque das riquezas, e a socialização das

catástrofes sociais e ambientais. Para efeito de comprovação basta uma visita aos

Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), e outros.

O que se registra de novo front é uma mobilização que ocorre há uns quatro anos

dos setores populares da região do Bico do Papagaio, através de realização de vários

seminários, campanhas contra a construção de barragens que tem como interessadas as

empresas de alumínio (Alcoa, Billliton, Votorantim, CVRD) que objetivam a autonomia

de energia, o maior insumo na produção do minério. Produção de livros, cartilhas e

artigos também fazem parte do rosário das ações dos populares. O que se desponta na

janela é a reedição de uma história tantas vezes lida.

Alguns dados sobre as hidrelétricas do Vale Araguaia Tocantins

1- Cana Brava (GO)

350 famílias não foram indenizadas, outras tantas receberam compensações pífias. 35

mil hectares de terra submergiram nos municípios de Minaçu, Cavalcante e Colinas do

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110

Sul, todos em Goiás, além de atingir áreas dos índios Awa-canoeiros. Depois de longos

debates com o Ministério Público Federal, a empresa responsável pelo empreendimento,

a Tractebel, concordou em “discutir ações compensatórias”, mas a instituição

encarregada de defender os direitos dos índios ainda não deu prosseguimento ao acordo.

Um dos reflexos da usina de Cana Brava na área dos Awa-canoeiros foi a

transformação de um rio de corredeiras, impossível de navegar, em um lago que

possibilita a entrada de estranhos por via fluvial. A hidrelétrica gera 471 MW. O

empreendimento custou US$ 420 milhões, parte dos quais financiados por bancos de

fomento como BNDES e BID .

• Empresa interessada: Tractebel.

2 - Serra da Mesa (GO)

Encheram o reservatório Serra da Mesa em 1997, criando o maior lago, em termos de

volume de água (54,4 milhões de métros cúbicos) da América Latina (área 1.784 km2).

O lago banha nove municípios, entre eles: Uruaçu, Campinorte, Colinaçu, Cavalcante,

Minacú e Campinaçú. Segundo o MAB são mais de 1.800 famílias atingidas e nem uma

foi indenizada, apenas alguns grandes proprietários, mais localizados na região do

canteiro. Segundo a FURNAS e pelo IEA, na época eram 1.390 famílias, sendo 1.295

atendidas. Faltam 95, destas 75 estão com o dinheiro depositado em juízo, e as outras 20

estão nas áreas de remanso. Hoje tem mais de 100 casos na justiça reivindicando revisão

das indenizações. Houve uma litigação com enfoque na existência de um grupo de

6 Índios Avá-Canoeiro em terras que foram inundadas (8% da reserva). Isso provocou

uma série de ações da Funai e um “programa” da Furnas em favor dos indígenas,

inclusive uma porcentagem dos “royalties”. Segundo a CPT-Goiás, o caso de Serra da

Mesa é bem dramático, pois não se fez nenhuma tentativa de negociação coletiva, tudo

que aconteceu e o que não aconteceu foi individualmente, o que dificultou e muito a luta

tardia daquele povo. A potência de Serra da Mesa é 1275MW.

• Empresas interessadas: Furnas, Votorantim, Banco Bradesco e Camargo Côrrea.

3 - Serra Quebrada (MA/TO)

Deve inundar os municípios de Itaguatins/TO e Governador Edson Lobão/MA e

desalojará 14 mil pessoas, além de alterar o modo de vida dos oleiros e pescadores da

região. Também deve afetar áreas dos povos indígenas Krikati e Apinajé. Com relação

aos povos Apinagés isso vai se dar em suas áreas mais férteis. A previsão é de que a

hidrelétrica produza 1.328MW. A licitação está prevista para o 1º semestre de 2002.

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111

• Empresas interessadas: Alcoa, Billiton, Eletrobrás, Eletronorte, Votorantim e Vale

do Rio Doce.

• Últimas informações: nas audiências sobre a hidrelétrica de Estreito foi relatado que

existe mais de vinte ações na justiça contra Serra Quebrada.

4 - Estreito (MA/TO)

Situa-se entre os municípios de Aguiarnópolis/TO e Estreito/MA, com impactos mais

profundos nas cidades de Carolina/MA, Babaçulândia/TO, que deve ser inundada, e

Filadélfia/TO atingindo diretamente 1.150 pessoas e indiretamente a reserva indígena

krahô, além do Monumento Natural das Árvores Fossilizadas. A avaliação é de que a

água que abastece várias cidades ao longo do rio Tocantins sofrerá danos com a

hidrelétrica. A licitação está prevista para o 1º semestre de 2002. A hidrelétrica de

Estreito deve produzir 1.087MW. O empreendimento tem o financiamento do BNDES.

• Empresas interessadas: Alcoa, Billiton, Camargo Correa, Tractabel e Vale do Rio

Doce.

• Últimas informações: o Ministério Público Federal de Imperatriz entrou com uma

ação questionando os processos de licitação e licenciamento do empreendimento. 60

% da construção já foi realizada na metade de 2009.

5 - Tupirantins (TO)

Deve atingir os municípios de Tupirantins e Itapirantins, além de áreas indígenas. A

licitação está prevista para o 1º semestre de 2002. Esta hidrelétrica deve produzir 820

megawatts de energia.

• Empresa interessada: EDP.

6 - Lajeado (TO)

Inundou os municípios de Miracema, Lajeado, Palmas, Porto Nacional, Brejinho de

Nazaré e Ipueiras, desalojando três mil famílias. A hidrelétrica entrou em

funcionamento no 2º semestre de 2001, com a perspectiva de produzir 850 megawatts

de energia.

• Empresas que adquiriram a concessão: EDP, Grupo Rede, CEB e CMS Energy.

7 - Peixe Angical (TO)

Começou a operar em 2006 com capacidade de produzir 452 megawatts. A

hidrelétrica fica entre os municípios de Peixe e São Salvador. A licitação aconteceu no

1º semestre de 2001. O consórcio Enerpeixe. O processo de licenciamento foi

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112

questionado pelo IBAMA, que apresentou 37 recomendações. Essas recomendações

diziam respeito às compensações que serão oferecidas para os donos de mineração, a

atualização da listagem de flora, fauna e ictiofauna, a reformulação do programa de

reassentamento para as famílias atingidas e a apresentação de estudos complementares

sobre a vila de Espírito Santo, próxima à cidade de Paranã.

• Empresas interessadas: EDP e Grupo Rede.

8 - São Salvador (TO)

Foi inaugurada em 2009 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Situada

entre os municípios de São Salvador do Tocantins e Paranã. O licenciamento ambiental

foi contestado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis (IBAMA), que considerou insatisfatórios as informações apresentadas no

processo e aspectos relevantes à análise do processo não foram contemplados ou sequer

abordados. A situação desse empreendimento é que a empresa foi notificada e que ela

acatou a notificação. A hidrelétrica gera 243 megawatts.

• Empresa interessada: Tractebel.

9- Marabá (PA)

Localizar-se-á no Rio Tocantins, próximo a confluência com o rio Araguaia. Inundará

terras de onze municípios, afetando cerca de 12.100 pessoas da área rural e 4.364

pessoas da área urbana. O impacto deste aproveitamento sobre a terra indígena Mãe

Maria (Grupo Gavião) foi considerado crítico. A interferência se dará sobre 10% desta

terra indígena e também afetará a área indígena Sororó, do povo Suruí Aiwekar. Os

impactos também se darão em áreas de extração de castanha-do-pará e babaçu e do

parque estadual do Encontro das Águas. A capacidade instalada deve ser de 2.160 MW

num investimento de quase US$2bi.

• Últimas informações: caso Marabá seja aprovada, toda a justificativa para a negação

da licença ambiental para Santa Isabel cai por terra.

10 - Couto Magalhães (GO/MT)

Deve inundar áreas do parque das Emas, em Goiás, assim como o projeto da

hidrelétrica de Itumirim(GO), que foi embargada recentemente pelo Ibama, e atingir os

municípios de Santa Rita do Araguaia e Alto do Araguaia, numa das últimas áreas em

bom estado de conservação do cerrado As empresas que se mostraram interessadas são

a EDP e o grupo rede. A hidrelétrica de Couto Magalhães obteve o maior ágio no leilão

de novembro de 2001, mas até hoje não recebeu o licenciamento prévio por parte do

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113

Ibama. Seu EIA-Rima apresentou cinco espécies de mamíferos ameaçadas, mas os

técnicos do Ibama verificaram cerca de dez espécies de mamíferos e uma de arara azul

protegidas por lei federal. A situação de Couto Magalhães é que a empresa foi

notificada. Está previsto que sejam gerados 150 megawatts de energia.

• Empresa interessada: Consórcio Enercouto (EDP e Grupo Rede).

11 - Santa Isabel (TO/PA)

Situada no baixo curso do Rio Araguaia, próximo à Santa Isabel do Araguaia, deve

inundar áreas pertencentes aos municípios de Palestina do Pará, Piçarra e São Geraldo

do Araguaia, 7,4% da reserva ecológica da serra das Andorinhas e parte da APA de São

Geraldo do Araguaia, no estado do Pará, e dos municípios de Ananás, Araguanã,

Riachinho e Xambioá do estado do Tocantins, desabrigando 974 pessoas na área rural e

1404 pessoas de área urbana. Também afetará áreas dos povos indígenas Surui e Karajá.

Essa é uma área de transição entre formações florestais e vegetação de cerrado. O

projeto prevê a geração de 1200MW. Empresas interessadas: Alcoa, Billiton,

Votorantim, Camargo Correa e Vale do Rio Doce.

• Últimas notícias: as empresas desistiram da construção de Santa Isabel. O seu

licenciamento ambiental foi negado pelo Ibama, dentro da perspectiva de deixar o rio

Araguaia ileso, tanto em relação à construção de hidrelétricas como da construção da

hidrovia Araguaia-Tocantins.

12 - Araguanã (TO/PA)

É um desdobramento da hidrelétrica de Santa Isabel, sendo que tem seu eixo

localizado logo após a montante de Santa Isabel, numa área de transição entre a área

integrada, ao norte, e a área de integração incipiente, ao sul. Inundará o território de 18

municípios, atingindo 10.000 pessoas na área Rural e 18% das terras da Comunidade

Indígena Karajá de Xambioá, numa área equivalente a 2.297 km2. Segundo Glenn

Switkes, da Rede Internacional de Rios, haveria efeitos difíceis de se prevê sobre os

pantanais da ilha do Bananal. A sua capacidade instalada deve ser de 960MW.

A CVRD

A Companhia Vale do Rio Doce (CCRD) é sem dúvida o principal ator

econômico da região sudeste do Pará, estadual e a principal empresa mineradora do

país. Privatizada desde 1997, e colecionando sucessivos recordes de faturamento, a

sétima mineradora do mundo possui em seu planejamento uma série de recentes

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114

investimentos, que combinados com várias obras de infra-estrutura agendadas no Plano

Plurianual (PPA) do governo anterior, e sem uma definição diferente no atual governo

configuram o que chamo de nova expansão do capital na região do Vale do Araguaia -

Tocantins.

Nas contas do jornalista Lúcio Flávio Pinto, a CVRD é a empresa que mais

exporta no Brasil, responsável por 20% do comércio exterior da balança comercial, 70%

dos produtos da Vale são extraídos do solo do Pará. Com 22 mil funcionários a empresa

faturou U$ 5,2 bilhões dólares em 2002. Com um valor estimado hoje em U$ 13 bilhões

de dólares, a empresa navega sob o comando da Bradespar (do Bradesco) e do grupo de

fundos de pensão liderados pela Previ (do Banco do Brasil).

Avançar num debate sobre a CVRD não é a proposta deste trabalho, no entanto

julgo na necessidade de aclarar alguns elementos recentes da história da empresa, posto

a relevância da CVRD para a compreensão da região. A fonte de informação é a

recente publicação da editora Cejup, CVRD: a sigla do enclave na Amazônia,

assinado pelo sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto. A nossa idéia é tentar nominar

alguns projetos. O atual estágio evidencia na região mais que nunca, o que se

convencionou chamar de nova ordem mundial. E avalio que a CVRD é a encarnação

dessa lógica do capital em escala internacional.

O desenho de vários eixos de integração para o continente latino-americano

parece não soar algo aleatório. Faz parte das políticas de integração encaminhadas a

partir da Casa Branca, que como rios, devem desaguar na Área de Livre Comércio das

Américas (ALCA). Algo similar se reflete na América Central com o Plano Panamá

Puebla (PPP).

Segundo Pinto, a CVRD investiu 5,3 bilhões de dólares na incorporação de 13

companhias. Em abril concluiu investimento de mais de um bilhão de dólares em quatro

grandes negócios: a compra de metade do capital que sua sócia japonesa Mitsui possuía

na mineradora Caemi; a inauguração da duplicação da usina de alumina da Alunorte,

Barcarena, Pará, de 2,4 milhões para 4,2 milhões de toneladas; a conclusão da maior

pelotizadora de ferro do país, em São Luís, no Maranhão, de 6 milhões de toneladas, e a

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115

aquisição da Mineração Vera Cruz (antes TRZ), para começar a lavrar a bauxita em

Paragominas, assegurando o abastecimento da Alunorte como a maior produtora do

continente e das maiores de alumina do mundo.

Um outro projeto com semblante de grande porte é a siderurgia de placas de aço.

A empresa deseja Será implantar a fábrica no Porto da Ponta da Madeira, em São Luís

Maranhão em parceria com a siderúrgica chinesa- Baosteel. Por se tratar de um ilha, os

impactos ambientais podem ser graves.

Uma associação de várias organizações sociais da cidade organizou um

movimento contrário à instalação da fábrica. No movimento há várias representantes da

zona rural da cidade. São pescadores, extrativistas, trabalhadores rurais que correm o

risco de perder terras que são usadas há mais de cem anos. A instalação ameaça ainda o

abastecimento, já precário de água potável na ilha.

Page 113: Poroca Pequena

116

AMAZÔNIA, PARÁ E O MUNDO DAS ÁGUAS DO BAIXO TOCANTI NS17

O Brasil é o país que concentra a maior parcela da principal floresta tropical do

mundo, a Amazônia. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru,

Suriname e Venezuela são os demais países onde incide a floresta. Do território

nacional cerca de 60% é constituído pela Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas,

oeste do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), com uma

população estimada em 20 milhões de pessoas.

A floresta é um mundo de gente, olhares, saberes, cores, cheiro e histórias. A

abundância de recursos florestais, minerais e hídricos a torna alvo dos mais diferentes

interesses em variadas dimensões: econômicas, sociais, políticas e ambientais. O direito

à propriedade privada sobre à terra tem se sobreposto à posse ancestral.

As Amazônias do Brasil são várias. Nesse vasto mundo o Pará é o segundo

estado em extensão territorial. Há áreas de colonização mais recentes, como o sudeste; e

as de colonização mais antiga, tais como a Bragantina e o Baixo Tocantins, inseridas na

mesorregião Nordeste, além da fronteira em disputa, caso do sudoeste do estado. No

sudeste do Pará a disputa pela terra ainda é aguda. Já na Bragantina e no Baixo

Tocantins o quadro é considerado bem definido. O contrário ocorre a sudoeste que tem

se constituído em cenário de deslocamento da violência contra camponeses e seus pares,

antes concentrada a sudeste do estado.

O rio inunda a vida dessas gentes de realidades ímpares. O rio as distancia e

aproxima, alimenta e é espaço de lazer, contemplação poética e quintal de lendas: Iara,

Boto, Boiúna e sabe-se lá quantas outras. O rio é a vida e às vezes a morte dessa

população. Numa parte do ano ele invade ruas, casas, roças e pastos, chegando, em

algumas regiões, a causar danos materiais. Noutra época do ano recua e forma praias.

Nas regiões marcadas pela realidade do estuário, caso do Baixo Tocantins, a oscilação

de seis em seis horas dos rios condiciona a vida da população. O pôr do sol é uma

pintura.

17 O presente artigo integra a publicação Na Trilha do Anilzinho: Resistência e Multiplicação de Conhecimentos Agroecológicos na Região do Baixo Tocantins-PA, recuperação sobre a experiência da em agroecologia da ONG Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (APACC) na região do Baixo Tocantins. O artigo foi aprovado em dezembro de 2009 para publicação na Revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo/USP.

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117

No mundo de rios da Amazônia do Brasil pretende-se erguer um outro mundo, o

do concreto, para geração de energia. Os planos do Governo Federal já realizaram isso

no caudaloso rio Tocantins, e continuam a fazer. Assim, também agendam o mesmo

rumo para o rio Xingu, o rio Tapajós, o rio Araguaia e o rio Madeira. Energia para

quem? Eis a pergunta que se encontra no ar.

No caldeirão dos povos da Amazônia há índios, negros e mestiços. Nativos e os

que para cá vieram em busca de dias melhores: migrantes internos, com ênfase

nordestina e gente de terras mais distantes, caso de europeus e asiáticos. Eles podem ser

encontrados em terra firme, várzea ou ilhas. A Amazônia é uma aventura? Um tanto

dessa gente veio em busca de riqueza “mágica” nos garimpos, outro tanto atraída pelo

sonho de emprego nos grandes projetos de mineração, ferrovia, siderurgia e barragens.

Hoje engrossam a constelação das faces dessa terra.

Quando se investiga a colonização recente marcada pela implantação de grandes

projetos, o quadro social destoa da beleza do pôr do sol. Subempregados, alguns

empregados em ocupações secundárias, muitos escravizados em fazendas e carvoarias,

ao lado da destruição da floresta, poluição dos rios, redução do pescado constituem o

quadro da realidade social e ambiental.

Uma parte dessa gente da Amazônia do Pará encontrou um rumo na vida na

agricultura familiar. Uma espécie de retorno às origens. Alguns estão na direção das

organizações de representação camponesas e outra parcela sentou o passo em projetos

de assentamentos rurais ou ainda disputa um pedaço de terra. Muitos (as) foram mortos

(as) na disputa pela terra. E existe uma boa parcela no trecho (estrada) com as borocas

(mochilas) nas costas em busca de um canto para viver.

A terra e os recursos nela existentes na Amazônia animam um conjunto de

interesses e disputas de infinitas redes econômicas, sociais e políticas, em escalas

regionais, nacionais e internacionais que conectam a Região Amazônica ao resto do

planeta, o que põe em cena a disputa pelo modelo de desenvolvimento. Dias melhores

virão?

Baixo Tocantins: economia, política e campesinato

O cotidiano no mundo das águas da micro região de Cametá, mais conhecida como

Baixo Tocantins é organizado pelos rios Moju, Pará e o caudaloso Tocantins. Sete

municípios compõem a região: Abaetetuba, Igarapé Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá,

Page 115: Poroca Pequena

118

Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará. Em maior ou menor profundidade a região sofre os

impactos da barragem de Tucuruí, com ênfase para a redução do pescado.

Desse conjunto apenas o município de Oeiras do Pará não é banhado pelo Tocantins e

sim pelo rio Pará. No estuário é a oscilação das marés que condiciona a vida da

população local. Cascos (canoas), voadeiras e popopôs, - nome de embarcação

adquirido por conta do ruído do motor - constituem a principal forma de transporte e

canal das relações comerciais entre os agricultores, pescadores e extrativistas com o

meio urbano. As viagens, que às vezes ultrapassam 10h, são momentos de

contemplação, solidariedade, troca de informação, conto de causos, fofoca, galhofas

diversas entre os (as) conhecidos (as).

O Baixo Tocantins encontra-se numa zona de fronteira. A microrregião localiza-

se entre a Amazônia Central e Amazônia Oriental, no nordeste do Pará, por onde passa

a linha dividindo coincidentemente a microrregião do Baixo Tocantins e a de Tucuruí

(COSTA, 2006, p. 21). A micro-região integra a bacia do Tocantins, considerada a

segunda mais importante do país, superada apenas pela bacia do rio Amazonas. É ainda

indicada como a de maior potencial para a geração de energia hidroelétrica. A bacia do

Tocantins-Araguaia constitui um dos eixos de planejamento do Governo Federal, com

enfoque em transporte e geração de energia, o que prenuncia outros impactos sociais e

ambientais para as populações locais.

O rio Tocantins, como parte desse complexo estuário amazônico, se comunica

com o rio Pará, se junta ao rio Guamá vai formar a baía do Guajará e o conjunto fluvial

da foz do gigante rio Amazonas, o qual despeja diariamente milhões de metros cúbicos

de água doce no oceano Atlântico (COSTA, 2006, p. 23).

A Eletronorte, empresa responsável pela UH de Tucuruí, nos derradeiros anos

tem se empenhado em implantar alguns projetos que reduzam os impactos resultantes

da obra. Recentemente a usina teve a sua capacidade duplicada para acompanhar o

ritmo de aumento da produção das indústrias de alumínio do Pará e Maranhão, ligadas a

grandes corporações, a Vale e a Alcoa.

A obra de engenharia foi erguida durante o regime militar para alimentar as

grandes corporações do setor de alumínio no Pará e no Maranhão com energia barata.

Entre os impactos provocados pela barragem há registros de: inundação de vasta

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119

extensão de floresta, deslocamento de populações indígenas, não indenização de

famílias deslocadas pela obra, redução do pescado e poluição, erosão do leito e das

margens do rio e elevado índice de malária. Sem falar do não atendimento das

populações nativas com a energia gerada pela hidrelétrica.

Sobre a população da região do Baixo Tocantins os dados do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (2000) apontam que corresponde a 353.860 habitantes. A

população rural ocupa duas dinâmicas distintas: terra firme e a região das ilhas. Na

primeira predomina o cultivo da mandioca para a produção de farinha; enquanto nas

ilhas o açaí desponta como a principal produção. Além da palmeira do açaí nas ilhas há

grande incidência de buritizais, entre outras espécies.

Por conta do açaí, ora coqueluche nacional e internacional, chegam à região uma

série de empresas de comercialização do Pará, e de regiões economicamente mais

desenvolvidas, como o sudeste do país e mesmo empresas européias e americanas. A

presente corrida sobre o açaí tem motivado junto aos trabalhadores rurais a necessidade

de fortalecer a organização dos produtores para que se consiga uma melhor capacidade

de negociação. No momento as empresas tendem a estipular o preço do produto.

A cobertura vegetal do Baixo Tocantins é classificada por especialistas como

floresta equatorial densa. As pesquisas sobre a Amazônia indicam que a atividade

madeireira tem sido o primeiro passo para o início do desflorestamento. As

investigações realizadas por Gilson Costa sobre o Baixo Tocantins apontam que o

processo na região teve início na década de 1960, com prolongamento até a década de

1990, quando se registra a redução do estoque de madeira, tendo como conseqüência a

migração das madeireiras para outras regiões.

As áreas de terra firme desflorestadas são ocupadas por agricultura tradicional de

corte e queima, onde basicamente cultiva-se mandioca, o principal produto dessa zona.

Quanto à região das ilhas, que também sofreu desflorestamento no mesmo período, este

foi bem menos intenso, com menor impacto, até porque não havia grandes

concentrações de espécies madeiráveis como na região de terra firme, o que, dentre

outros fatores, permitiu a essas áreas relativa conservação (COSTA, 2006, p. 25).

A exploração do cacau e a seringa configuraram a cena econômica por longos anos na

região de Cametá, até meados da década de 1970. Seguida da exploração madeireira,

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120

que antecipou a monocultura da pimenta-do-reino, duas matrizes em demasia caras ao

equilíbrio ambiental.

Nos dias atuais as atividades de agricultura e do extrativismo regem a economia

local. As análises de Gilson Costa sobre a região atestam que a renda agrícola advinda

da agricultura e do extrativismo, responde por mais de 60% da economia dos

municípios da região do Baixo Tocantins.

Um pouco da história do campesinato do Baixo Tocantins

Em termos gerais, os estudos considerados clássicos sobre a categoria

campesinato indicam que é a condição subordinada que o conforma nas diferentes

sociedades escravocratas, feudais, socialistas e capitalistas, a partir da transferência do

excedente de sua produção para outras classes sociais. A base de produção familiar e o

controle relativo sobre os meios de produção são outras características em comum nas

observações de diferentes pesquisadores. Embora a condição subalterna o conforme, tal

condição não anula a sua revolta ante os agentes de sua condição.

Já as pesquisas sobre o campesinato na Amazônia indicam que a precariedade é

uma característica que integra a vida do (a) camponês (a) na região. Precariedade que

passa pela baixa escolaridade, baixo uso de insumos, pouca capacidade na produção e

comercialização, grandes distâncias dos centros de comercialização, o que facilita a

ação de atravessadores, além de ausência/insuficiência de assistência técnica. As

grandes famílias emergem como um fator de pressão sobre os recursos naturais e a terra.

No Baixo Tocantins, por exemplo, há casos de famílias com mais de dez filhos.

No que diz respeito ao campesinato do Baixo Tocantins é considerado um dos

mais antigos e importantes da Amazônia. O caráter combativo é uma marca na trajetória

desse campesinato. Há dois momentos históricos marcantes na luta em busca da

emancipação: a Cabanagem, revolução ocorrida no século XIX e o Movimento de

resistência conhecido como Anilzinho, anos 1970, quando o país ainda vivia num

processo de ditadura militar.

A Cabanagem (1835-1840) é um dos momentos mais significativos nessa

trajetória de insurgência do período regencial do Brasil. Avalia-se que pela primeira vez

os oprimidos conseguiram chegar ao poder. Entretanto o movimento agrupava

representantes das elites locais e o povo pobre da região. O nome do movimento é uma

Page 118: Poroca Pequena

121

referência às moradias humildes das comunidades ribeirinhas. A repressão contra a

revolta cabana chegou a assassinar cerca de 30% da população do Pará na época,

estimada em cem mil habitantes.

Já o movimento do Anilzinho se constitui como um marco recente do

campesinato do Baixo Tocantins. O movimento que aconteceu no município de Baião

foi o primeiro no contexto da luta pela tomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais

(STR) pelos trabalhadores alinhados politicamente como o “novo sindicalismo”. Esse

conflito ocorreu em 1979, numa região denominada Anilzinho, situada às margens de

um rio do mesmo nome. Constituiu um fato importante no processo de adesão da Igreja

Católica local à luta pela terra que já iniciara em diversas regiões do Brasil e sobre a

qual a Igreja Católica manifestou publicamente, através do documento “Igreja e

problemas da terra” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 1980).

A trajetória do campesinato amazônico na busca pela emancipação registra

várias mediações, que transitam por partidos políticos, segmentos da Igreja Católica,

ONG, entre outros. A Igreja Católica é um dos mediadores mais presentes a partir da

década de 1960, e avança até a década de 1990. Na caminhada camponesa amazônica

foi relevante a presença da Igreja Católica a partir das Comunidades Eclesiais de Base

(CEB) na formação de STR, associações e cooperativas. Na experiência de Cametá são

conhecidas as comunidades cristãs que fomentaram experiências com o cultivo da

pimenta-do-reino, a criação de cantinas comunitárias e a assistência técnica.

O campesinato do Baixo Tocantins realizou em momentos mais recentes

inúmeras frentes de atuação. Nos registros de pesquisa de Valdomiro de Sousa

encontram-se o Movimento em Defesa da Região Tocantina (Modert) e o Movimento

Nacional dos Atingidos por Barragens (Monab) e ainda o Movimento Nacional dos

Trabalhadores da Pesca (Monape). Nota-se na História do Baixo Tocantins um conjunto

de inúmeras formas de mobilização que passa pelos gritos da terra, acampamentos de

camponeses no município de Cametá, - cidade pólo da região-, ocupações em órgãos

públicos no município e em Belém, marcam os anos 1990.

Na década de 1990 registrou-se uma vasta mobilização camponesa em todo o

país em busca do reconhecimento econômico, social e político. Nesse contexto de lutas

realizam-se mobilizações no município de Cametá e no vizinho município de Tucuruí

na luta pela energia elétrica. Os acampamentos que tiveram a participação do bispo D.

Page 119: Poroca Pequena

122

José Elias só foram desfeitos após acordo e recebimento de fax do Ministro das Minas e

Energia da época atendendo a reivindicação dos acampados no fim da década de 1990.

A conquista do Fundo Constitucional do Norte (FNO) especial é considerada um

marco do momento recente da luta sindical dos (as) trabalhadores (as) rurais do Baixo

Tocantins. Assim também é percebida a eleição de representantes da categoria em

diferentes níveis de poder: executivo e legislativo em escalas municipal e estadual. Em

certa medida um passo significativo na relação de poder contra as forças tradicionais.

Além do FNO a luta sindical alcançou outras políticas públicas para a região como o

Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar (Pronaf).

Se o momento inaugural foi marcado pelo foguetório, o segundo não teve tanta

celebração. Sucedeu um profundo endividamento. Entre os fatores indicados

encontram-se a ausência de habilidade do trabalhador/a rural com as entrelinhas da

dinâmica bancária. Gilson Costa sublinha que os camponeses foram duramente

atingidos, enquanto os setores do agronegócio ligados à produção dos insumos

agropecuários conseguiram lucrar bastante com a venda de maquinário e adubo

químico.

Técnicos que atuam na assistência rural regional revelam que o modelo dos

projetos foi equivocado, marcado pelo incentivo de monoculturas da pimenta-do-reino,

e de espécies frutíferas estranhas à região, como o murici. Uma ação na contramão do

que preconizam os estudos sobre a Amazônia, que sugerem a dinâmica da

diversificação de culturas e Sistemas Agroflorestais (SAF). No campo da assistência

técnica a região registra a presença da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

(Emater) e a Comissão Executiva da Lavoura Cacaueira (Ceplac) de forma considerada

não sistemática existem ações de algumas prefeituras.

Os registros históricos sobre as ações da Prelazia de Cametá com o incentivo da

pimenta-do-reino sinalizam como limites além da dinâmica de monocultura, o uso

intensivo de adubos químicos. O golpe de misericórdia na monocultura de pimenta-do-

reino foi a redução do preço no mercado externo. A outra fase diz respeito às linhas de

financiamento do governo que tiveram como resultado o endividamento das famílias

camponesas, o que resultou num clima de insegurança e desconfiança entre os/as

trabalhadores/as rurais sobre qualquer intervenção externa.

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123

Eis uma modesta reconstrução sobre a vasta história da região em que vai se

desenvolve a experiência no contexto recente, da Associação Paraense de Apoio às

Comunidades Carentes (APACC) na construção de um processo de transição do modo

de produção camponesa, tendo como centro a agroecologia.

Entre os desdobramentos da jornada, que soma aproximadamente oito anos, tem-

se, a construção da rede de camponeses (as) multiplicadores (as) no horizonte da

agroecologia e saúde preventiva, seguindo uma orientação cuja base reside no diálogo e

na troca das diferentes formas de conhecimento, para o cultivo de práticas inovadoras de

produção camponesa.

Ao longo desse tempo a APACC fomentou um pouco mais de 1.000

experimentos baseados na agroecologia, em aproximadamente 130 comunidades, que

envolveu cerca de 2.500 pessoas nos município de Cametá, Oeiras do Pará e Limoeiro

do Ajuru.

A caminhada incentivou canais de diálogo com uma diversidade de sujeitos

sociais regionais, nacionais e internacionais, entre eles universidades, associações e

cooperativas de produtores rurais, Casa Familiar Rural, sindicatos de trabalhadores

rurais, colônias de pescadores e inúmeras instituições dos governos municipais, estadual

e federal.

Um pouco da vasta experiência encontra-se registrada em artigos na Revista

Agriculturas - experiências em agroecologia, em citações de trabalhos científicos de

pesquisas universitárias, nos relatos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais em

participação de vários encontros dentro e fora do Pará.

Em janeiro deste ano, quando da realização do Fórum Social Mundial em

Belém, Pará a APACC lançou o livro Na Trilha do Anilzinho: Resistência e

multiplicação de Conhecimentos Agrocológicos na Região do Baixo Tocantins-PA. A

publicação recupera um pouco da História da experiência.

A produção contextualiza os elementos econômicos, políticos e sociais do Baixo

Tocantins e sinaliza para a metodologia de trabalho que alterna o diálogo e produção de

experimentos na área de produção e saúde preventiva de forma integrada. O livro

registra ainda os desdobramentos positivos e limites da experiência.

Page 121: Poroca Pequena

124

Avaliação em regra geral é positiva e entusiasmada sobre a intervenção da

APACC nos mais diversos níveis do diálogo da instituição. A avaliação positiva pode

ser encontrada nos relatórios de observadores externos, na esfera nos financiadores e

principalmente depoimentos do sujeito social que é o principal parceiro da APACC, o

trabalhador/a rural, que efetivou uma Rede de Multiplicadores em Agroecologia.

O reconhecido e inovador trabalho do APACC tem como pontos positivos a

diversificação da produção camponesa do Baixo Tocantins. A inovação se reflete que

antes da intervenção da APACC o produtor mantinha uma ou duas linhas de produção,

com após a troca de conhecimento com a equipe multidisciplinar da ONG a unidade

produtiva mantém entre quanto a seis linhas de produção. Isso possibilita segurança

alimentar e renda durante todo o ano. O manejo do açaí é uma das praticas com maior

repercussão no aumento da produção.

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126

03ª- PARTE

Belém- a cidade

13-Coletivo Rádio cipó: a inquietação cultural na quebrada da Amazônia

14-Bosque Rodrigues Alves, o Jardim Botânico da Amazônia: 120 anos e História

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127

COLETIVO RÁDIO CIPÓ - A INQUIETAÇÃO CULTURAL NA QUE BRADA

DA AMAZÔNIA 18

Há cidades na Amazônia. Ao contrário da perspectiva exuberante dos que

percebem a região. Uma delas, Belém, soma mais de um milhão e meio de habitantes,

cresce de costas para o rio. A cidade que é quase uma ilha coleciona favelas e os

espigões proliferam por toda parte, assim como o mercado informal. O cimento sufoca

furos, igarapés e rios em Santa Maria do Grão do Pará, nome de batismo da capital

paraense.

Não há emprego para todos. A cidade é para todos?

Os condomínios verticais ou não despontam como signos da tragédia social que

conforma o país. A cidade se avoluma descoberta de saneamento básico, desprovida de

transporte coletivo digno, sob um calor escaldante e sufocada em engarrafamentos.

Ela é negra, índia, branca e mestiça. Inóspita para a maioria dos filhos seus. Nela

os canais proliferam, assim como as gangues e a venda de balas e picolés e a

mendicância nos coletivos. É a mais barulhenta da nação. A informalidade integra a

paisagem. Há vendedores de inúmeros produtos: picolé, água, água de coco e o que for

possível comercializar. À noite a fumaça dos churrasquinhos nubla alguns pontos da

cidade. Em várias vicinais o corpo é comercializado. Tudo parece banal.

A polícia é a presença mais constante do Estado nas baixadas. Numa dessas, à

Rua Álvaro Adolfo, no bairro da Pedreira, renomado por sua boemia, abrigo de

inúmeras manifestações populares germinou o Coletivo Rádio Cipó. O balaio de

animação cultural agrupa gente jovem e outros não tão jovens assim. A rua que é

considerada celeiro de artistas, abriga uma série de grupos de carimbó.

Lá Ruy Montalvão e Carlinhos Vas encontraram D. Onete. A professora

aposentada é compositora e cantora, venceu vários festivais de carimbó no estado.

Mestre Bereco é outro carimbozeiro do grupo, que ainda tem o mais veterano roqueiro

do Brasil, mestre Laurentino, 82 anos de praia.

18 Trabalho publicado originalmente na edição comemorativa de 30 anos do Jornal Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), em outubro de 2008.

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Coletivo Rádio Cipó- Foto- Divulgação

O Coletivo se auto-define como um núcleo de produção de mídia sonora aliado à

tecnologia de áudio digital caseira na produção de pesquisas sonoras experimentais com

o objetivo de divulgar essa produção para o Brasil e no exterior. Dão seiva ao grupo MC

RatoBoy (vocal), MC Jamant (vocal), Renato Chalu (guitarra), Jarede das Arábias

(baixo e guitarra) e Luís Bolla (percussões), Carlinhos Vas, Mestre Laurentino e Dona

Onete.

Primeiros passos

O vocalista Ruy Montalvão, “RatoBoy”, explica que a gênese de tudo se

encontra no fim da década de 1990, quando o mesmo militava na banda autoral Manga

Beso, ao lado de outros músicos como Carlinhos Vas, Vlad Cunha, Bernardo e Márcio

Maués.

“Fervilhava o festival “Rock das 6h” na cidade e a banda iria se apresentar pela

primeira vez num palco com estrutura. Ná Figueredo, conhecido animador cultural em

Belém, nos chamou e pediu para que um senhor, mestre Laurentino, abrisse o show da

banda. Apelou que o coroa fazia um som bacana na gaita harmônica. O grupo topou e

seu Laurentino caiu na graça de todos”, recorda Montalvão.

Se é necessário sorte na vida e estar num lugar certo e na hora certa, seu

Laurentino foi laureado por ela. Hermano Vianna, doutor em antropologia, pesquisador

na área de música e coordenador do site Overmundo, se encontrava no espetáculo. O

irmão do Herbert Vianna, vocalista da banda Paralamas do Sucesso, observava o show.

O intento do pesquisador era garimpar artistas locais para integrar a iniciativa Música

do Brasil, e convidou Laurentino para o projeto. Foi a janela para o mestre ser

conhecido em território nacional.

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129

Após a experiência cada membro da banda tomou um rumo, voltando a se

encontrar tempos depois motivados pela aprovação de um projeto com incentivo de lei

municipal, Tó Teixeira. “Foi aí que fui morar com o Vas na Álvaro Adolfo, após uma

temporada em São Paulo. Fizemos a experiência de uma rádio popular de poste. A gente

tocava além da música do grupo a do pessoal local. A experiência durou até o chefe de

uma gangue solicitar o fim da rádio, que estava prejudicando os interesses da emissora

dele”, lembra Montalvão.

O som do Coletivo mescla a musicalidade regional com batidas eletrônicas. Soa

hip hop desprovido de chatice e repetição. A sonoridade que nasceu na quebrada

amazônica com ensaios realizados nas ruas do próprio bairro já ganhou o país. A via foi

a divulgação através da rede mundial de computadores tanto das faixas do primeiro CD,

“Formigando na calçada do Brasil”, lançado este ano pelo selo Ná Records, como

através de videoclipes.

Outra possibilidade de visibilidade do trabalho do grupo é a participação em

festivais considerados alternativos que pipocam em todo o país, como uma afirmação

que se pode produzir sem a mediação de grandes corporações do mercado fonográfico, a

cada dia mais esquálido. Assim o grupo já foi aclamado em São Paulo, Rio de Janeiro,

Goiás, Pernambuco e Brasília.

As músicas da Rádio Cipó, impregnadas da influência do rock, dubby e ragga

muffy estão postadas no site da gravadora Trama e mantém o próprio site,

www.coletivoradiocipo.org. O projeto mais ambicioso do Coletivo é a produção do

registro da obra do mestre Laurentino em várias mídias: DVD, CD e livro.

Mestre Laurentino – o neto de escravos que virou pop depois dos 70 anos

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130

Mestre Laurentino, no Bar do Parque. by R. Rocha/2009

Encontramos João Laurentino da Silva, mais conhecido no mundo pop como

mestre Laurentino, numa manhã ensolarada de setembro na Praça da República. O neto

de escravos veio ao mundo no dia primeiro de janeiro de 1926, no município de Ponta

de Pedras, arquipélago do Marajó. Aos quatro anos foi adotado pelo juiz de direito

Francisco das Costa Palmeira. Não tem mais irmãos vivos e depois de adotado não

manteve mais contato com os pais biológicos.

Mestre Laurentino, no Bar do Parque. by R. Rocha/2009

Estudou até a quinta série. Trabalhou como técnico de manutenção de aviões na

extinta empresa Real Aerovias, que existiu entre 1946 e 1961. O autor do hit “Lourinha

americana”, que tira um sarro do pedantismo estadunidense, também passou pela roça e

pela exploração da madeira. “A música é sucesso internacional. Já recebi comentários

da Itália, Portugal, França, Alemanha e até dos próprios Estados Unidos”, fala com

orgulho o serelepe senhor de 82 anos.

A música foi gravada pela banda pernambucana Mundo Livre S. A., no CD “Por

pouco”. Num trecho a canção dispara: “Essa lourinha americana (lourinha

americana)/Está querendo me esculachar/Foi dizendo que eu sou neguinho (bem

neguinho)/E que na América eu não posso entrar”.

O aposentado que recebe um salário mínimo por mês reflete que o mundo se

encontra cheio de bandalheira e que não gosta de “lari-lari”. Humilde, apesar da

popularidade, considera-se pequeno, menor que um grão de mostarda. Laurentino tem

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131

memória prodigiosa. Lembra de fatos históricos e políticos antigos, como uma eleição

do tempo do interventor Magalhães Barata, quando era comum se emprenhar urnas.

O mestre em detalhes

O mestre mora na ilha do Outeiro, Região Metropolitana de Belém com Elza

Freire da Silva, com quem teve 10 filhos. Mas, somado a outros relacionamentos

Laurentino contabiliza o total de 16 rebentos. Além da companheira Elza o compositor

que guarda as canções que faz na cachola, tem como xodós dona Maria Josefina,

acreana descendente de europeu e a dona Leonice dos Santos. Segundo o mestre, ele

ainda confere o placar em noites chuvosas.

Por cinco mil réis comprou a primeira gaita aos 18 anos. Desde menino

manifestou interesse por música. Passou por incontáveis programas de auditórios nas

emissoras de rádio e TV locais. Narra aventuras do tempo da PRC-5, atual Rádio Clube.

O hoje celebrizado mestre já foi homenageado pela Câmara Municipal de Ponta de

Pedras e em Belém.

Recentemente recebeu um incentivo da governadora Ana Júlia para a construção

de uma escolinha e aquisição de instrumentos para a sua banda de rock. “Não esquece

de colocar isso” exige o artista que no CD que deve ser lançado ainda este ano versa

sobre a disputa eleitoral estadunidense.

Laurentino tem coleção de anéis. by R. Rocha/2009

Mestre Laurentino só toma vinho e há oito anos abandonou o cigarro. Adora

andar e contar causos. Diz ele que chega a percorrer até 14 km quando visita o

município de São Caetano de Odivelas, onde tem uma terrinha. Sem modéstia afirma

que aonde chega esbandalha tudo.

Page 129: Poroca Pequena

132

“Tomo conta”, afirma o roqueiro mais antigo do Brasil. Entre as aventuras das

múltiplas viagens ele conta que no festival de Goiânia os “malucos “ o apanharam do

palco e o jogaram para o alto. Caiu em cima da caixa de som e quebrou os óculos.

Na manhã que comungamos nota-se a preocupação e o amor do mestre pela

natureza. Em certo momento da conversa ele interrompe e aponta a brincadeira de um

par de passarinhos. “Coisa linda,” exclama. Além da coleção de chapéus, relógios e

anéis, - as mãos sempre estão repletas deles -, o mestre coleciona cães, são mais de 14,

afirma. Tirando o som com a batida das mãos ele cantarola várias canções do primeiro

CD solo, em fase de produção. Numa delas filosofa: “No galho de nossas fantasias cada

um tem a sua aranha”.

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133

BOSQUE RODRIGUES ALVES, O JARDIM BOTÂNICO DA AMAZÔN IA. 120

ANOS DE HISTÓRIA 19

A fé e o rio conduzem Santa Maria de Belém do Grão-Pará, o nome oficial da

capital do Pará, Belém. A cidade foi erguida por portugueses na foz do rio Amazonas

em 12 de janeiro de 1616 na terra dos índios Tupinambás. Francisco Caldeira Castelo

Branco comandava a expedição dos colonizadores, conta a história oficial. Aqui todo

mês de outubro uma população estimada em 1,5 milhão de pessoas se reúnem para

celebrar a Virgem no Círio de Nazaré, a principal manifestação religiosa do estado.

Belém é quase uma ilha. Dos 505.823 km2, 332.037 km2 é região insular

(65,64%), formada por 43 ilhas. Sob um clima quente úmido, numa temperatura média

de 30º C, é o comércio que faz cidade se mover economicamente. A hidrografia é rica,

baías, rios igarapés, furos. Tanto em sua parte continental quanta na insular. Baía do

Guajará, baía do Marajó, baía de Santo Antônio, baía do Sol, rio Guamá, rio Murubira,

rio Mari-Mari, igarapé do Tucunduba são alguns dos recursos que compõem a

península.

Aqui lendas e história pulsam na mesma intensidade: Curupira, Boiúna, Boto,

Matinta Pereira, Vitória Régia, Mapinguari figuram como alguns dos mitos amazônicos.

A Revolução Cabanagem erguida e coordenada por populares entre 1835/1840, onde 30

mil pessoas morreram soa como orgulho. Em Belém o ciclo da borracha, o que ficou

conhecido como Belle-Époque, segunda metade do século XIX, ergue na Amazônia

teatros, parques e palácios de fina estampa. A Europa era o espelho do modelo de

urbanismo.

A memória histórica do Bosque

É no ápice do extrativismo da borracha que surge o Bosque Rodrigues Alves, o

Jardim Botânico da Amazônia. Nasce no bojo do processo de modernização da

urbanização da cidade. A Europa respirava a Revolução Industrial. No Brasil vivia-se o

ocaso da Monarquia e o surgimento da República. O capital gerado pela exploração da

borracha colaborava para tornar Belém a “Paris dos Trópicos”. Teatro da Paz, Palacete

19 Trabalho publicado originalmente na Revista Ecologia e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, n. 108, 2003.

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134

Bolonha, Praça da República, Praça Batista Campos, Mercado de Ferro do Ver-o-Peso,

hoje monumentos históricos despontavam na floresta como signos da elite local.

Duas datas se confundem para definir a criação do Bosque Rodrigues Alves. A

primeira defende que o logradouro nasce oficialmente, segundo documento do

Departamento de Extensão Cultural do Bosque, em 1870 através de decreto do 4º vice-

presidente da província do Grão-Pará, Abel Graça, uma espécie de vice-governador.

A segunda data, a mais aceita, confere ao senhor João Diogo Clemente Malcher,

então presidente da Câmara Municipal, numa sessão de 25 de agosto de 1883 a criação

do espaço de lazer dos ricos que surgiam com o lucro da exportação do látex. A

iniciativa teria partido do senhor José Coelho Gama Abreu, o Barão de Marajó, um

geógrafo da Amazônia, intendente de Belém, espécie de prefeito da cidade (1879/1881).

A memória do Bosque narra que a inspiração teria sido o “Bois de Boulogne”,

de Paris. Bosque Municipal do Marco da Légua, uma referência ao limite da cidade, é o

primeiro nome do Bosque. A valorização dos elementos da natureza como o ar, a luz e a

água serviam como ideário de qualidade de vida, progresso e higiene.

A história do Bosque Rodrigues Alves é marcada por várias reformas. A mais

importante é creditada ao senhor Antônio Lemos, intendente da província entre

1897/1912. O intendente teve papel definitivo para definição da urbanística de Belém.

Em 1900 Lemos decide pela realização de uma grande reforma do Bosque.

A mesma dura três anos. Monumentos como grutas, riachos, cascatas, viveiros,

definição espacial de hoje foram realizadas por Lemos. Eduardo Hass, diretor do

Bosque e o arquiteto José Castro Figueiredo foram os responsáveis pela empreitada.

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135

Erguido em frente à ferrovia Belém-Bragança, que ligava a capital ao interior, o

Bosque Rodrigues Alves ganha seu nome definitivo em 17 de dezembro de 1906,

através de uma resolução do Conselho Municipal. O nome é uma homenagem ao

correligionário de Lemos, o então Presidente da República do Brasil, Francisco de Paula

Rodrigues Alves.

O Bosque por dentro

Um pedaço da Amazônia nativa de terra firme no centro nervoso da cidade de

Belém. O portão principal do Bosque fica em frente à Avenida Almirante Barroso, uma

das principais da cidade, que liga alguns bairros da periferia ao centro. O tráfego de

carros é intenso.

Os 15 hectares do Rodrigues Alves, 150 mil quadrados, tomam um quarteirão

inteiro do bairro do Marco. O Bosque é assim um pulmão no meio da urbe. Passear pelo

Bosque é fazer uma viagem pela história de Belém. Além do fragmento da floresta

nativa, pode-se verificar a presença de vários monumentos históricos do áureo período

da borracha.

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136

Na flora encontramos 4.987 árvores de 50 famílias, 194 gêneros e 309 espécies

que foram catalogadas pela equipe técnica de flora do Bosque em parceria com a

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), através do Laboratório de

Sementes Florestais, com coordenação da doutora Noemir Viana, e o Laboratório de

Botânica, através da doutora Regina Célia, e a Universidade Federal Rural da Amazônia

(UFRA), num censo realizado entre setembro 1998 e junho de 1999. Para efeito de

catalogação foram consideradas as árvores a partir de 10 cm de diâmetro. Do conjunto

levantado cerca de 2.000 são consideradas como jovens.

O tombamento de árvores no logradouro era um problema a ser superado. Para

tanto se fazia necessário conhecer a diversidade da floresta e classificá-la. O Censo

concluiu que existem 333 árvores por hectare. Flávio Contente, engenheiro florestal,

coordenador de flora do Bosque, explica que tais dados são de grande importância,

considerando que estamos falando da principal metrópole da Amazônia. O trabalho

contribuiu ainda para se conhecer a saúde da flora e se planejar uma intervenção

visando administrar o tombamento das árvores, que despontava como uma ameaça aos

visitantes do Jardim Botânico.

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137

O censo verificou que 94% da flora do Bosque é composta de árvores nativas da

Amazônia. Outro aspecto que o censo levantou é que a floresta está num estágio de

regeneração, o que significa dizer que há várias árvores consideradas novas. Entre os

6% da flora considerada exótica são encontrados bambus, palmeira imperial, mangueira,

palmeira rabo de peixe e tamarindo.

O fragmento de floresta está divido em quatro quadrantes e em 112 canteiros.

Após o censo da flora, depois da medição da altura e diâmetro, cada árvore ganhou uma

placa de identidade. Todos os dados levantados estão informatizados no programa

Autocad, o que permite a localização de cada árvore.

Entre as árvores do Bosque Rodrigues Alves existe a cumaru, típica da

Amazônia. A cumaru produz em sua semente a substância cumarina, usada pelas

indústrias de cosméticos como fixador de perfumes. Atualmente a patente pertence à

multinacional de cosméticos Chanel. A cumarina também é usada na medicina para o

controle da arritmia cardíaca.

Outra informação destacada no censo é a presença de 16 árvores de

maçaranduba. Além de muito resistente só começa a produzir por volta de 300 anos de

vida, quando alcança a idade adulta. Tamatá é a árvore mais importante do Bosque em

índices de fitosociologia (classificação por família, gênero, espécie). Acapu americana,

espécie em vias de extinção, que exige condições especiais para a sua reprodução consta

na flora no Bosque.

Outra árvore relevante no acervo é a andiroba, usada em várias áreas da

medicina alternativa. A árvore que possibilitou a geração de riqueza do Pará, a

seringueira, está catalogada na flora do Rodrigues Alves. Paricá, marupá e açaí são

outras espécies verificadas.

Os bichos do Bosque

O censo para identificar os bichos do bosque ainda está em andamento. É o que

explica Jairo Moura, veterinário do Bosque. Do que já foi realizado da fauna livre

chegou-se ao diagnóstico que 65% é composta de mamíferos, 21% de aves, 12% de

répteis e 02% de anfíbios. Além de Moura, uma bióloga, três estagiários e dois

tratadores de animais completam a equipe que cuida da fauna.

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138

Entre os mamíferos são encontradas cutias, vistas facilmente quando se faz a

trilha ecológica para os visitantes. Pacas, preguiça real, macaco de cheiro, morcegos,

tatu, são outros animais encontrados. Entre esses animais o morcego tem papel

fundamental para a manutenção da floresta, destaca Moura. O veterinário explica que

pelo menos 500 espécies de árvores dependem da ação do morcego para a sua

reprodução. Das 150 espécies de morcegos existentes do Brasil, 11 foram catalogadas

no Rodrigues Alves. O trabalho foi realizado em parceria com a Universidade Estadual

de São Paulo (UNESP), campus de Botucatu, através do Departamento de Zoologia.

O morcego é considerado o formador de florestas, fala com entusiasmo Moura.

“Quando fazemos as trilhas com os estudantes, trabalhamos a desmistificação que é

dada comumente a esse animal. O morcego defeca de 12 em 12 minutos, onde expele

pelo menos seis mil sementes por noite”, explica o veterinário. Sabiá, periquito,

papagaio são algumas aves que fazem uso da floresta. Entre os répteis podemos

encontrar a jiboia e o camaleão. Além de uma infinidade de insetos.

Apesar do carro chefe ser a floresta, o Rodrigues Alves mantém um acervo de

animais da Amazônia em cativeiro. Entre eles uma quantidade de quelônios (tracajá,

muçuã, tartaruga, perenas, jabuti), araras, papagaios, e a ararajuba, espécie ameaçada de

extinção, são as aves mantidas pelo Bosque. Que mantém ainda macaco prego, e os

peixes tambaqui, pirarucu e o poraquê, conhecido como peixe elétrico. Jacarés e o

mamífero peixe boi podem ser vistos no lago do Bosque.

MONUMENTOS DO BOSQUE

Page 136: Poroca Pequena

139

Chalé de ferro - é uma estrutura pré-fabricada de ferro com 378 m2 de origem

belga construído entre os anos de 1892/1900 para servir de residência para os ricos

empresários do látex. É um dos três existentes em Belém. O segundo encontra-se no

campus do Guamá da Universidade Federal do Pará (UFPA), o terceiro desmontado e

com paradeiro ignorado. A sua origem é a Societe Anonyme des Foges d´Aiseau, da

cidade de Aiseau, Bélgica. O sistema de construção foi patenteado em 1885 por Josef

Danly. O chalé é tombado pelos patrimônios histórico municipal, estadual e nacional. O

prédio integra o acervo da arquitetura do ferro, significativo na história de Belém,

conhecida como a cidade das mangueiras.

O chalé pertencia à Sociedade Beneficente Portuguesa, foi remontado no Bosque

em 1985, trabalho que tomou de seis a sete meses. A construção do prédio foi idealizada

para o clima da região. Algo que facilitasse a circulação do vento e fosse resistente as

intempéries do clima amazônico. Atualmente o prédio abriga o Setor de Extensão

Cultural do Bosque, a Coordenação de Articulação Educacional e Comunicação Social,

uma exposição permanente da coleção didático-científico de fauna e flora.

Page 137: Poroca Pequena

140

A última reforma do chalé custou R$ 50 mil, teve apoio da Petrobrás, durou três

meses. É um dos seis projetos apoiados pela empresa. A reforma foi pensada para

melhor atender os visitantes. O prédio recebeu nova pintura, reparos na cobertura e na

estrutura de madeira, além de tratamento anticorrosivo na estrutura de ferro. Ainda

como parte integrante da arquitetura do ferro no Rodrigues Alves existem coretos e

viveiros para aves.

O Monumento aos Intendentes – revela a não nova preocupação dos políticos

com o culto à própria imagem. O monumento fica bem no meio do Bosque. Inaugurado

em 1906 numa homenagem ao congresso de intendentes de todo Pará e caciques do

Partido Republicano realizado em 1903. O grande objetivo residia em garantir na

reforma constitucional do Estado a reeleição do governador Augusto Montenegro.

O projeto do monumento é de autoria do senhor Maurice Blaise, um professor

da Escola Normal do Pará, fruto de concurso internacional onde competiram artistas

sul-americanos e europeus. A matriz inspiradora seria a Fonte de Médicis do parque do

Palácio de Luxemburgo de Paris. No monumento constam os bustos de Augusto

Montenegro e Antônio Lemos.

Homenagem aos naturalistas - dois medalhões de bronze foram inaugurados

em 1939 no Bosque Rodrigues Alves. Um dedicado ao naturalista João Barbosa

Rodrigues, um dos mais importantes naturalistas do Brasil. Tem trabalhos nos ramos de

botânica, etnografia e arqueologia. Como estudioso da Amazônia, percorreu em 1874 os

rios Tapajós, Urubu, Jatapu, Ualumã, Jamundá, Trombetas e Capim. Em 85 volumes

registrou informações sobre indígenas, materiais sobre a pedra polida, geografia,

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141

trabalho sobre a pororoca no rio Capim. O outro naturalista e botânico homenageado é

Gerg Hubner.

Os mitos amazônicos - estátuas do Curupira e do Mapinguari, protetores da

floresta estão localizadas na primeira clareira do Bosque. As entidades mitológicas

fazem parte do imaginário da Amazônia. O Curupira é a Mãe do Mato, apesar do uso do

artigo masculino. É descrito como um ser de estatura pequena, traços de índio, e que

possui os pés virados para trás. À entidade é conferido o dom da invisibilidade. Conta a

lenda que o Curupira protege a floresta dos seus inimigos deixando-os sem rumo. Haja

Curupira para tanta devastação.

Um ser de grande porte, feições de macaco, só que com um único olho cravado

no meio da testa e dono de uma grande boca, que se estende até a barriga na direção do

umbigo. Assim é a descrição do Mapinguari. Alguns nativos narram que o Mapinguari

tem os pés no formato de uma mão de pilão. A lenda narra que a entidade só anda pela

mata durante o dia. E que só apareceria em dias santos e feriados. Ainda como parte da

lenda, há pessoas que acham que o Mapinguari é um índio que alcançou uma idade

avançada e virou um monstro.

O Jardim Botânico da Amazônia

O Bosque Rodrigues Alves ganhou o status de Jardim Botânico da Amazônia em

2002, em Recife, Pernambuco, durante a 11ª reunião da Comissão Nacional de Jardins

Botânicos, com base na resolução 266 do Conselho Nacional de Meio Ambiente

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142

(CONAMA). Agora o logradouro passa a integrar a Botanic Gardens Conservation

Internacional (BGCI), rede mundial com 1.846 jardins em 148 países. O certificado foi

entregue em cerimônia pela passagem dos 119 anos do Rodrigues Alves pelo presidente

da Rede Brasileira de Jardins Botânicos, Sérgio Bruni.

A elevação do Bosque Rodrigues Alves à Categoria de Jardim Botânico é o fato

mais importante da memória recente do logradouro. Tal fato descortina uma terceira

fase na história do Bosque, depois de sua inauguração e a reforma realizada pelo

intendente Antônio Lemos, explica Flávio Contente.

Com o novo status o Bosque espera facilidade para captação de recursos a nível

nacional e internacional para desenvolvimentos de projetos. A construção de uma

biblioteca no Chalé de Ferro, uma coleção especial de plantas e o apoio dos parques

ecológicos de Belém e Mosqueiro, distrito de Belém, são projetos agendados pela

coordenação do Rodrigues Alves Bosque.

Com a elevação do Bosque à categoria de Jardim Botânico, passamos a integrar

uma rede nacional de jardins botânicos e outra internacional. Devemos entender que o

horizonte do Bosque agora segue a uma diretriz estabelecida pela Rede Brasileira de

Jardins Botânicos, ressalta Contente. Conservação da biodiversidade, capacitação de

pessoal, trabalho em educação ambiental, pesquisa estão em desenvolvimento.

Agora o Rodrigues Alves passa a ser uma área protegida, onde o acervo da flora

cientificamente já reconhecido e identificado através do censo, terá como finalidade o

estudo, a pesquisa e a documentação da flora do país. Entre as atividades a serem

desenvolvidas como diretrizes dos jardins botânicos constam o desenvolvimento de

pesquisa, o intercâmbio científico, a manutenção da biodiversidade, a organização de

biblioteca e o desenvolvimento de programa de educação ambiental.

Alguns projetos desenvolvidos pelo Bosque

SOS Ararajuba - um casal de ararajubas no mercado negro pode custar até

US$20 mil. Na Amazônia estima-se que existam cerca de 2.500. Na lista dos animais

em vias de extinção, a ararajuba pertence à família dos Psitacídeos, atinge um tamanho

de 34 centímetros. A reprodução da ave é anual, uma média de dois a oito ovos, onde

80% dos filhotes conseguem sobreviver. A ararajuba é muito conhecida no exterior,

chegou a valer até dois escravos no século XVI. Tem a coloração amarela e as pontas

Page 140: Poroca Pequena

143

das asas verdes. A Sociedade Brasileira de Ornitologia defende no Congresso Nacional,

através de projeto-lei, que a ave se torne símbolo do Brasil.

No projeto de assentamento (PA) José Pinheiro, localizado próximo de Marabá,

sudeste do Pará, na Transamazônica, criado há dois anos pelo Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA), verifica-se uma boa incidência da ararajuba.

É lá que a equipe de fauna do Rodrigues Alves deu o pontapé inicial do Projeto SOS

Ararajuba. O projeto reúne como parceiros as 40 famílias do PA, Petrobrás, Ibama,

Batalhão de Policiamento Ambiental e o Museu Emílio Goeldi, que também possui o

status de Jardim Botânico.

Por conta das limitações de sobrevivência no PA, 30% da proteína animal

consumida pelas famílias é proveniente da caça. Após um curso sobre educação

ambiental as famílias estão recebendo animais de pequeno porte para a manutenção da

taxa de proteína animal, e evitar a caça. O projeto iniciado em julho do ano passado está

orçado em 70 mil reais.

O próximo passo do projeto é um trabalho nas feiras livres de Belém em parceria

com a Secreta Municipal de Economia (SECON), pra evitar o tráfico de animais

silvestres nas feiras de 25 de Setembro, Terra Firme e Ver-o-Peso. O trabalho terá como

mote a educação ambiental.

Na trilha da Amazônia - 200 mil pessoas passam pelo Rodrigues Alves por

ano. A maioria desse público é oriunda de escolas. 12 escolas por semana visitam a

área. A trilha ecológica é um sub-programa inserido na pauta do Projeto de Educação

Ambiental do Bosque, desempenhando a função de canal de disseminação das

informações levantadas pelo censo.

O programa possibilita que os visitantes conheçam a história do Bosque e os

recursos de flora e fauna que ele abriga. Assim se supera o horizonte do Bosque ser

percebido apenas como espaço de lazer. A ciência e a história são passadas de forma

lúdica. Os visitantes com a ajuda de um técnico do Bosque passam a conhecer as

árvores, os animais, a importância histórica do Rodrigues Alves, os monumentos.

Quem desejar passar o dia inteiro da área não terá problemas com a alimentação.

Um restaurante com comidas típicas do Pará funciona todos os dias. Para socorrer a

sede tem ainda quiosques que comercializam sorvetes de frutas da região e água. Para as

crianças existe um pequeno parque. E o visitante que desejar descansar, pode sossegar

Page 141: Poroca Pequena

144

as nádegas num dos bancos de estilo neoclássico com a gravação de uma esfinge em

cada lado, assentado no início do século passado.

Dos 15 hectares de área, seis constam como área reservada. É lá a maior

densidade de plantas. É nesse canto que a fauna livre pode viver e se reproduzir distante

da presença humana. É nesse canto que as jiboias vivem.

Terapias na selva - A Fundação Mokiti Okada é quem anima o projeto de

ginástica para a terceira idade em conjunto com Fundação Papa João XXIII

(FUNPAPA), que integra a administração indireta da Prefeitura de Belém. O projeto

visa a utilização do Rodrigues Alves com ambição de melhorar a qualidade de vida

física e psicológica da comunidade.

A Fundação Okada desenvolve as atividades com base na terapia Johrei

incentivada desde 1931 por Mokiti Okada, que consiste no uso das mãos para a

canalização da energia vital do universo. Exercícios leves de ginástica e reeducação dos

movimentos denominada Lian Gong são aplicados a um público estimado em 100

pessoas desde 2001.

A administração – 70 pessoas, lotadas no Departamento de Gestão de Áreas

Especiais da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Belém (SEMMA), trabalham

para que o Bosque Rodrigues Alves, o Jardim Botânico da Amazônia se mantenha

sempre limpo e os projetos saiam do papel. A Guarda Municipal de Belém (GBEL)

garante a segurança.

120 anos, a festa – Além de uma campanha publicitária para a publicização do

aniversário, consta na agenda a realização de reforma em alguns espaços do Bosque. Na

semana dos 120 anos do Rodrigues Alves ocorrerá sessão solene na Câmara Municipal

de Belém, apresentação dos projetos, apresentações artísticas, distribuição de mudas de

árvores nativas da Amazônia e sessões de vídeo.

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145

04- PARTE

Entrevistas

15-A Amazônia sob a análise de Lúcio Flávio Pinto

16-Amazônia e as novas frentes de expansão mineral e do agronegócio no sul e sudeste do Pará- Entrevista com Batista Afonso- CPT/Marabá

17-Extrativismo mineral em Juruti: passivos sociais e ambientais e a peleja dos nativos contra o grande projeto- Entrevista com Gerdeonor Pereira camponês do oeste do PA

18-Maranhão: as vísceras do sertão- Entrevista com Antonio Gomes (Criolo)- ativista pastoral do oeste do MA

Page 143: Poroca Pequena

146

A AMAZÔNIA SOB A ANÁLISE DE LÚCIO FLÁVIO PINTO 20

Nosso entrevistado é um homem gentil e de aspecto grave, daquele tipo de repórter

investigativo que não se faz mais. Durante três horas de conversa, ficou claro porque o jornalista

e sociólogo Lucio Flavio Pinto, 54 anos, vive há quase duas décadas sob a pressão de vários

processos judiciais. O motivo? Escrever em seu Jornal Pessoal, formato tablóide, com tiragem

de 2 mil exemplares, o que ninguém mais tem coragem de publicar sobre os principais conflitos

da região amazônica, como a grilagem de terra, a exploração ilegal de madeira e a conivência do

Judiciário com esses delitos. “Antes o grileiro tinha o seu parceiro no 38. Hoje os grileiros

descobriram que o Judiciário, por desconhecimento, insensibilidade, omissão ou conivência, é o

principal parceiro do grileiro na Amazônia”.

Ganhador de quatro prêmios Esso, dois da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas

Profissionais), e o maior prêmio jornalístico da Itália (o prêmio Colombe d’Oro per la Pace),

percorreu, ao longo de 38 anos de profissão, diversas redações como do Estadão, Veja e Isto É,

e publicações alternativas, como dos extintos jornais Opinião e Movimento. Tem 10 livros

publicados, todos sobre a Amazônia. Nesse momento, corre o risco de ser condenado e ir para a

cadeia. “Acho interessante que durante o regime militar, fui jornalista por 19 anos e só fui

processado uma vez. Desde 1992, já foram 15 processos, além de mais um na justiça eleitoral.

Em pleno regime democrático, sinto-me mais perseguido do que na ditadura.”

*Entrevistadores: Rogério Almeida, Guilherme Carvalho e Nanani Albino.

Rogério Almeida - Como foi o início de sua carreira?

Comecei no jornalismo em 1966, com 16 anos, em A Província do Pará. Aí fui pro Rio de

Janeiro, onde trabalhei no Correio da Manhã. Voltei então para Belém, onde fiquei até janeiro

de 1969. Quando foi baixado o AI-5, eu era editor de A Província do Pará, depois de ter sido

seu secretário de redação por um período. Resolvi ir para São Paulo porque não havia mais

condição de trabalho em Belém. Trabalhei no Diário de S. Paulo e no Diário da Noite, que

fazia parte dos Diários Associados, e participei da edição especial da revista Realidade sobre a

Amazônia, que ganhou o Prêmio Esso de Reportagem de 1971. Naquela época a edição foi de

450 mil exemplares. Uma edição de 400 páginas, toda ela sobre a Amazônia. Uma edição

antológica. Trabalhei também na Rádio Eldorado do grupo Mesquita, do Estadão. Depois voltei

para Belém, onde fui correspondente do Estadão e da Veja.

Guilherme Carvalho – Quando foi esse regresso?

Eu ia e voltava sempre. Nesse período era muito inconstante. Voltei mesmo em fim de 1971.

Fiquei aqui até o fim de 1972, daí voltei para São Paulo, para o jornal O Estado de S. Paulo,

20 Trabalho publicado na página da revista paulistana Caros Amigos em julho de 2004 e posteriormente no livro o Jornalismo na linha de tiro autoria do entrevistado no ano de 2006.

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onde fiquei 17 anos, de 1971 a 1988. Voltei para cá no fim 1974,quando fiquei como

correspondente. Trabalhei no Opinião, para mim, o maior jornal alternativo daquela época.

Trabalhei ainda no Movimento e no EX. Todas eram publicações alternativas. Em seguida,

trabalhei no O Liberal (jornal de maior circulação do Norte do país) e na TV Liberal. Trabalhei

na Isto É e no Jornal da República. Aí, em 1987, comecei a fazer o Jornal Pessoal. Antes havia

feito o Informe Amazônico, que foi o embrião do Jornal Pessoal. Foram 12 números do Informe

Amazônico. Antes, em 1975, havia feito o Bandeira 3, um tablóide semanal de 18 páginas.

Nanani Albino – Antes de entrar no Jornal Pessoal, gostaria de voltar um pouco na sua

trajetória. A Amazônia é rica em história de intensa migração. Gostaria de saber a

história de sua família. Qual é o seu movimento familiar?

Minha família é totalmente migratória. Meu avô por parte de mãe é português. Meu avô por

parte de pai veio da seca do Nordeste para o Acre, depois para o Pará. Por parte de mãe

português e acreano e cearense e acreano por parte de pai.

Nanani Albino – Sempre em Belém ou interior?

Santarém. Eu nasci em Santarém e minha mãe também. Eles se juntaram lá. Depois viemos para

cá.

Nanani Albino – O que fazia o seu pai?

Meu pai era precoce. Começou a trabalhar no Nordeste com meu avô que era comerciante com

oito anos, carregava semente de algodão. Meu avô voltou para a Amazônia e meu pai dava aula

de inglês e era fotógrafo. Foi o primeiro locutor esportivo em Santarém, com 14 anos. Fundou o

jornal Baixo Amazonas. Depois foi presidente da Congregação Mariana e secretário do prefeito

da cidade. Como o prefeito era muito inibido, era ele quem fazia os discursos, o que lhe rendeu

o apelido de “papagaio do prefeito”. Iniciou a primeira campanha para a industrialização da juta,

fibra que havia sido trazida pelos japoneses para o Baixo Amazonas com sementes da Ásia.

Como era muito audacioso, escreveu para Getúlio Vargas e conseguiu uma audiência com o

presidente, no Palácio do Catete, Rio no Janeiro, na época sede do governo.

O presidente liberou a importação das máquinas para a industrialização da juta. As máquinas

vieram da Inglaterra e meu pai começou a montar a fábrica. Em 1954, ele foi deputado estadual

pelo PTB, com a quinta maior votação do Estado. A família o acompanhou para Belém quando

assumiu o cargo. Ele fez carreira como deputado pelo PTB, daí integrou a comissão de

planejamento da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia).

Rogério Almeida - O embrião da SUDAM?

Não era o embrião do SUDAM. A SPVEA foi criada em 1953, por Vargas, substituída pela

SUDAM. Ela deveria continuar, mas desapareceu em 1966, no regime militar. Bem, meu pai

trabalhou na SPVEA, depois foi prefeito de Santarém, pelo MDB (atual PMDB).

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148

Rogério Almeida - Então o senhor não teve problemas para estudar, já que era de classe

média?

A nossa vida foi um pouco incerta. Depois que meu avô perdeu tudo com a seca meu pai ficou

pobre e eu estudava em escola pública. Num dado momento, meu pai começou a enriquecer

como empresário e comerciante. Chegou a ter três fábricas, duas delas de fibras, a Tecejuta, em

Santarém, e a Tecefátima, no município de Capanema, e a de cerâmica Marajó. Nessa época

éramos de classe média alta. Pude ter um bom estudo. Meu maior patrimônio era uma conta

corrente em aberto na Livraria Martins. Podia tirar o que quisesse.

Guilherme Carvalho - Quantos irmãos?

Somos sete. Seis homens e uma mulher.

Guilherme Carvalho – Como foi o episódio que ocorreu com teu pai durante a ditadura?

Naquele tempo, o Pará só tinha 83 municípios. Dos 83, o MDB, de oposição, só elegeu dois em

Santa Isabel, um pequeno município e Santarém, o segundo mais importante município do

Estado. Meu pai tinha conseguido uma vitória grande sobre a Arena, com uma margem de 65%

dos votos. Ele já havia sido “garfado” duas vezes no “mapismo” (a fraude que era praticada

quando se fechava a apuração dos votos). Então, desde o início ele ficou atravessado. A arena

tinha o controle político e ele tentou uma composição com o governador Alacid Nunes com o

pretexto de irregularidades nas contas dele, meu pai foi afastado pela Câmara Municipal, onde

era minoria. Tinha apenas três representantes do total de nove. Afastado, a Câmara resolveu

pela sua cassação. Ele entrou na Justiça no município de Óbidos, o juiz era Christo Alves, que

veio a ser desembargador depois. Ele concedeu mandado de segurança para a reintegração do

meu pai no cargo. No dia da execução do mandado de segurança, Alacid enviou uma tropa com

150 homens da PM com ordem de não permitir a posse. Papai teve apoio do deputado mais

votado da região, o brigadeiro Haroldo Veloso, que tinha sido líder da revoltas de Jacareacanga

e Aragarças contra Juscelino kubistchek e era da ala radical da Aeronáutica embora fosse da

Arena. Ele disse que ia liderar a passeata para papai reassumir a prefeitura. Quando a passeata

saiu, às cinco horas da tarde para a prefeitura, a PM começou a atirar. Morreram três pessoas.

Papai teve que fugir e recebeu a cobertura do brigadeiro Paulo Vítor, que se deslocou para lá

com tropas, avião da Aeronáutica. Isso aconteceu em 1968. Ele conseguiu fugir e depois teve o

mandato cassado. Talvez seja o único político cassado duas vezes. Primeiro o mandato e depois

os direitos políticos. E Santarém foi declarada área de Segurança Nacional, não pôde mais

eleger seu prefeito.

Rogério Almeida – Como foi a sua saída para o Sudeste. Foi convite de algum meio de

comunicação de lá ou uma iniciativa sua?

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Vi que aqui não dava mais. A imprensa estava acomodada. Fui primeiro para o Rio de Janeiro.

Parte de minha família morava lá e mesmo sem contato nenhum consegui trabalhar no Correio

da Manhã. Na última fase de D. Niomar. A gente já começava a ver o início da decadência do

jornal que havia sido o mais importante da República. Por problema de família, voltei para

Belém. Fiquei indo e vindo um certo período. Até que fiquei em Belém por mais tempo e

participei de uma série de transformações em A Província do Pará. A primeira página dessa

época era só de telegramas nacionais e internacionais. Fizemos chamadas de primeira página,

introduzimos suplementos. Aí veio o AI- 5. Li a íntegra na redação, fim de noite. Vi que não

tinha como ficar mais em Belém.

Rogério Almeida - Do Pará, quem assinou foi o Jarbas Passarinho?

Passarinho era o ministro do Pará, autor da célebre frase sobre “jogar fora os escrúpulos da

consciência” para poder assinar o AI-5. É a frase mais infeliz de Passarinho. Vi que não tinha

chance, que os donos de jornais iriam aceitar a censura, determinada por via telefônica, como

aceitaram mais tarde. No dia 2 de janeiro de 1969, fui para São Paulo e ainda peguei a

decadência dos Diários Associados, que durante um certo período foi um dos mais importantes

de São Paulo. Chegamos a criar ainda um suplemento de vanguarda aos domingos. Nesse

período o que me interessava era o cosmopolitismo, sociologia cultural e sociologia política.

Meu sonho era passar um tempo fora, sair do Brasil. Estava fazendo mestrado de política na

USP, com Oliveiros Ferreira. Minha tese era mostrar que às vezes o pensamento conservador

pode ser mais modernizador do que o pensamento de esquerda e analisava os intelectuais das

décadas de 20 e 30 no Brasil. Fui entrevistar o presidente da Associação dos Empresários da

Amazônia, na antiga sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, que era

no Viaduto Maria Paula, o Eduardo Celestino Ribeiro, bandeirante típico, dono da Cetenco

Engenharia. No meio da entrevista, ele começou a falar da Amazônia que bandeirantes como ele

estavam criando. Na medida em que ele falava (já havia escrito dois livros sobre isso), entrava

em pânico. Dizia para mim mesmo: se ele conseguir fazer isso, a minha Amazônia, na qual

nasci e havia vivido a maior parte da minha vida, desaparece. Era o auge da pecuária de corte.

Decidi voltar para a Amazônia.

Nanani Albino - Era a contradição de sua tese?

Não é contradição. É aplicação histórica. Aquelas tendências modernizadoras dos anos 20 e 30

se tornaram conservadoras. Avalio que há uma diferença entre conservadorismo e

reacionarismo. Meu marco teórico na época era Karl Manheimm. Eu dizia que às vezes a reação

contra a mudança exerce um papel muito importante de oxigenação das idéias. Isso ocorreu com

o fim do feudalismo na Europa. O pensamento dos nobres da oligarquia era mágico. Isso fez

surgir uma literatura fantástica, muito rica. Eles escapavam da realidade para o mundo da

imaginação. Isso é bom para gerar controvérsia. Um ambiente mais democrático. Foi isso que

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ocorreu com os intelectuais de 20 e 30 chamados de direita: Oliveira Vianna, Azevedo Amaral,

Lourival Fontes. Todos estão atentos a Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Sérgio

Buarque de Holanda. E esquecendo essa vertente, incluindo Gilberto Freyre, que conheciam o

Brasil melhor dos que os de esquerda. Os pensadores conservadores, como Paulo Prado,

conheciam muito o Brasil.

Rogério Almeida – E os conservadores de hoje, conhecem ?

Acho que não conhecem mais.

Nanani Albino – O que desconhecem?

O brasileiro continua a viver como caranguejo, arranhando o litoral, para usar a imagem

quinhentista. Do ponto de vista do pensamento, a imagem vale até hoje. É sempre o pensamento

do litoral voltado para fora do Brasil. O Brasil não conhece o Brasil. A penetração para o sertão,

a corrida para o Oeste, mais destrói do que conscientiza. A descoberta do Brasil não passa de

movimentos espasmódicos e cheios de exotismo. É o descobridor querendo que a paisagem

original seja de acordo com a visão do colonizador. Isso me levou a desistir da grande imprensa.

Houve um momento importantíssimo para mim, principalmente entre 1971 e 1979. Quem quiser

escrever a história da Amazônia tem que obrigatoriamente consultar o jornal O Estado de S.

Paulo nesse período. A história da Amazônia desse período está no Estadão. Em nenhum outro

lugar a história da Amazônia é mais visível. Isso foi um trabalho paulatino de convencimento da

direção

Nanani Albino – Isso se deve a quê? Por que você estava lá?

Quando fui para o Estadão, não havia um só paraense na redação, nem de qualquer outra parte

da Amazônia. Várias coincidências fizeram aproximar-me do dono do jornal, Júlio Mesquita

Neto. Em alguns momentos ele precisou de determinadas coisas que forneci, inclusive escrever

editorial. Naquela época fiz a “heresia” de entrar na sala do doutor Júlio que ninguém entrava.

Não tinha muito respeito pela sacralidade do “aquário” (ambiente da direção do jornal) do

chefe. O Estadão tinha a mácula do Estado Novo, quando o governo entrou no Estadão e o

administrou. A propósito, o Estadão melhorou tecnicamente nesse período. A marca do

liberalismo do Estadão dessa época era não aceitar censura. A rede de informação do Estadão

era bem fraca. Sob a liderança do Raul Martins Bastos, do Departamento de Sucursais e

Correspondentes, que naquela época não tinha muita importância, ajudei a fazer a mudança de

toda a rede de correspondentes do jornal no país. Havia pessoas que trabalhavam no jornal fazia

muito tempo, e entraram numa rotina que era pobre para o jornalismo.

Rogério Almeida – Quem veio cobrir a Guerrilha?

Nós tínhamos feito o levantamento e faltava apenas a senha, que viria a ser a ACISO - Ação

Cívico Social do Exército, que arrancava dentes da população carente e outras coisas, além de o

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repórter enviado era tido como de confiança do governo. Os oito parágrafos iniciais eram

dedicados a essa história da ACISO, o resto era só a história da guerrilha, a única que furou a

muralha da censura no período. Depois disso, se decidiu que o Estadão ia ser o grande jornal da

Amazônia. O plano, aprovado pessoalmente pelo doutor Júlio, era para eu vir para cá e montar a

sucursal, a primeira sucursal verdadeiramente regional do jornal. Fizemos uma grande reunião

com todos os correspondentes da região, e logo acordamos que São Paulo não mexeria em

nosso texto. A nossa idéia era depurar a visão exótica da Amazônia. Permitir que a Amazônia

verdadeira emergisse na grande imprensa.

Rogério Almeida – Como foi a decisão da direção?

A gente apresentou o projeto e foi aprovado.

Rogério Almeida – Ainda é exótico o olhar da grande imprensa sobre a Amazônia?

Hoje a cobertura da grande imprensa é muito pior do que na época do regime militar, eles

aceitam a Amazônia como o lugar onde ocorrem os fatos insólitos, originais e inéditos. Eles não

conseguem fazer uma cobertura sistemática.

Nanani Albino – Quem são “eles”?

Toda a grande imprensa. Na época nós tínhamos a sucursal do Estadão, da Veja, Manchete.

Todos os grandes jornais tinham correspondentes.

Rogério Almeida – Não é contraditório quando a Amazônia é pauta em todo canto do mundo?

É um interesse estandartizado. É o que se quer que seja a Amazônia. Essa é a regra para a

Amazônia. Para acompanhar a Amazônia bem, é preciso uma boa estrutura, gente bem paga e

qualificada. Eles não querem isso. Exemplo disso é Klester Cavalcanti, repórter da Veja. Ele

apareceu um dia dizendo que foi seqüestrado, embora o caso nunca tenha sido bem elucidado,

provavelmente pelos grileiros de terras. Ele foi retirado de Belém logo em seguida como se

fosse uma operação de guerra. Uma história cheia de contradição. Dois terços da matéria que

saiu em Veja era sobre o seqüestro dele. O que ele escreveu sobre grilagem de terras não

justificava de jeito nenhum qualquer ato hostil. Era muito menos do que qualquer um aqui da

terra já havia escrito várias vezes. Ele saiu como o Indiana Jones, de volta à metrópole

cosmopolita depois de aventuras na jungle feroz e primitiva.

Guilherme Carvalho – Nesse caso o seu Jornal Pessoal surge para se contrapor a isso?

Como disse, fiquei 17 anos no Estadão. Existe uma regra que se você sobrevive há 15 anos na

empresa, você é indemitível, para usar um neologismo. Quando pedi demissão, o doutor Júlio

me ligou. Ele se sentia desconfortável, eu vim com um compromisso dele. Pedi demissão

porque não acreditava mais que o Estadão pudesse fazer uma cobertura decente da Amazônia,

como havia feito no passado.

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Nanani Albino – O que havia mudado?

Tinha mudado o seguinte, vou citar um exemplo: eu estava fazendo uma cobertura sobre um

assunto. No melhor dia a matéria não saiu. Liguei para o editor de São Paulo e perguntei o que

estava acontecendo. Ele falou que havia dado dois dias seguidos de Amazônia e que precisava

dar uma matéria de Fortaleza. Vi que o Estadão não voltaria mais a ser o que era. Quando saí,

depois de 22 anos na grande imprensa, sabia que não tinha volta. Meu compromisso era com a

Amazônia. Escrever o que a grande imprensa não escrevia. Eu já tinha iniciado o Jornal

Pessoal, em setembro de 1987.

Rogério Almeida – Você ainda estava no Liberal?

Eu ainda estava em O Liberal. Começou exatamente por causa da morte de Paulo Fontelles, que

foi deputado estadual pelo PMDB e advogado que defendia os posseiros no sul do Pará. Ele não

conseguiu se eleger deputado federal. Seria reeleito fácil se saísse deputado estadual. Aí ele

assumiu o vínculo com o PC do B. Três dias antes a gente havia participado de um debate no

Instituto Lauro Sodré, do qual fez parte Luiz Pinguelli, que ficou pouco tempo na Eletrobrás,

porque ele não tem voto, Lula o demitiu para colocar o Silas Randeau.

Rogério Almeida - Por pressão do PMDB?

Da ala conservadora do PMDB e porque o Pinguelli queria executar o programa do PT para

energia. Mas o PT já tinha mudado e não queria mais o programa de energia.

Rogério Almeida – Pinguelli é a maior autoridade de energia no

Brasil?

Não é a maior, mas digo que é uma grande autoridade é respeitado por todas as pessoas. O que o

PT fez com ele foi uma coisa indecente. Decidiu demiti-lo sem que ele nem fosse consultado.

Como fez com o Christovam Buarque. Bem, voltando ao episódio Paulo Fontelles, nós

estávamos no debate, Paulo e eu, depois conversamos longamente. Parecia um desabafo dele.

Três dias depois, quando estava fazendo uma cobertura na Sudam, um colega que cobria polícia

informou que ele havia sido morto. Vi o corpo dele quando ainda estava no carro. Ele estava no

banco do carona. Ainda com o cigarro na mão. Foram três tiros de mestre dados na cabeça dele.

Morreu na hora, sem a menor possibilidade de reação. Foi no dia 10 de junho de 1987. Uma

regra não escrita do crime de encomenda dizia que quem estava em Belém estava a salvo. Era a

sede dos poderes institucionais. Agora, no sertão, não; era a lei da selva. Em Belém, os

pistoleiros respeitavam. O caso do Paulo foi o primeiro crime político na região metropolitana

de Belém. Eu disse que a gente tinha que impedir que o crime ficasse impune. Só assim seria

possível frear uma escalada, como viria a ocorrer. No ano seguinte, foi morto o advogado João

Batista, em pleno exercício de seu mandato de deputado estadual. Passei três meses

investigando. Escrevi uma grande matéria, que veio a ganhar o prêmio da FENAJ, no ano de seu

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lançamento. Escrevia nessa época a coluna Repórter 70, a mais influente do jornal O Liberal,

apresentava um programa de entrevistas na TV Liberal e tinha minha própria coluna assinada no

jornal. Na época do assassinato do Paulo, o dono da empresa tinha acabado de morrer, o

Romulo Maiorana. Entreguei a matéria para a Rosângela Maiorana Kzan, que depois viria a

entrar com cinco ações ns Justiça contra mim. Ela falou que a matéria era impressionante, só

que tinha um problema: denunciava as pessoas mais ricas do Pará. Com o Joaquim Fonseca, que

se dizia o maior armador fluvial do mundo e o Jair Bernadino de Souza, da Belauto, a maior

revendedora de automóveis. Ela disse que não podia publicar a matéria porque citava dois dos

maiores anunciantes do jornal. Sugeri que ia fazer um jornal, ela falou que imprimiria o meu

jornal de graça, contanto que não citasse isso. Depois, entraram com uma ação na justiça para

que citasse onde era a impressão do Jornal Pessoal, para intimidar as gráficas, que realmente se

amedrontavam. No segundo número, foi uma denúncia de um rombo de 30 milhões de dólares

no Banco da Amazônia (BASA), que nenhum jornal publicava, pelo presidente interino do

banco, que era o advogado de O Liberal, Augusto Barreira Pereira. O Liberal não publicava

porque um dos envolvidos era o procurador dele, e A Província do Pará não publicava porque

outro dos envolvidos era o famoso Billy Blanco, irmão do Milton Trindade, superintendente da

empresa.

Rogério Almeida - O compositor?

O compositor se beneficiou, são as fraquezas da alma. Aí O Liberal disse que não imprimiria o

jornal. Passei para a segunda gráfica, das 11 pelas quais o Jornal Pessoal já passou. Em

seguida, publiquei uma denúncia de uso de cocaína bem antes da escalada da droga, sobre a

penetração da cocaína na alta sociedade. Envolvia uma pessoa que era amiga do dono dessa

segunda gráfica, que não podia imprimir por causa disso. O que avaliei é que se o Jornal

Pessoal não saísse, mesmo saindo pouco, com pouca circulação, determinadas matérias nunca

seriam publicadas na imprensa local e nacional. Local por causa dos compromissos, nacional

pelo desinteresse. O Jornal Pessoal se mantém nessa trincheira. Se não sair no Pessoal,

provavelmente não sai em nenhum lugar.

Nanani Albino – Você sofre ameaças?

Além de situações constrangedoras de perda de amizades, há ameaças anônimas. A primeira

você fica em desespero. Depois aprende a filtrar as ameaças dos trotes, que são sérias. É preciso

tratar com seriedade o assunto. Tem gente que é vítima de brincadeiras de humor negro e se diz

perseguida. Houve um momento em que os telefonemas anônimos não vinham para mim. Foi

feito um para o diretor de redação de O Liberal, que era o Cláudio Augusto de Sá Leal, que já

morreu. Dizia a voz: “Doutor, prepare a manchete de amanhã: Assassinado Lúcio Flávio Pinto”.

Descobri de onde vinham as ameaças. Isso foi em 1985, o Jader Barbalho era o governador do

Estado. liguei para ele, informei-o e lhe disse que se fosse investigar saberia de onde estava

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vindo. Comuniquei-lhe que estava com uma carta para ser enviada para o dono do Estado de S.

Paulo, contando que as ameaças de morte estavam vindo dele. Depois do impacto, o Jader

reagiu, disse que a carta seria usada pelos seus inimigos para tentar prejudicá-lo. Retruquei que

lia eu que estava sendo ameaçado de ser destruído. Ele pediu 24 horas para desmontar o

esquema. No dia seguinte, ligou dizendo que era verdade e que ele havia desmontado o

esquema.

Guilherme Carvalho – Os caras estavam mesmo interessados em assassinar você?

O Jader apurou minha denúncia e desfez qualquer esquema que pudesse ser montado contra

mim afirmando, numa reunião com seu esquema de segurança, literalmente, que “cortaria o

saco” de quem pretendesse me fazer mal. Na época, eu estava fazendo a primeira denúncia de

corrupção do Jader. Foi por isso a reação. A denúncia estava muito bem documentada. Eles não

tinham como rebater. Foi o momento mais crítico. Por ironia, dizem que protejo o Jader.

Nanani Albino- Por que dizem isso?

Eu e o Jader estudamos na mesma época no Colégio Paes de Carvalho. Da turma, fui o único

que não subiu com o Jader. O resto todo subiu. Quando o Jader estava formando o primeiro

secretariado dele, me chamou na sede do IDESP (Instituto de Desenvolvimento Econômico e

Social do Pará, órgão extinto no governo Almir Gabriel, do PSDB). Estavam ele e o Roberto

Ferreira, que seria o secretário da Fazenda. Ele perguntou o que eu queria ser no governo dele.

Nessa época eu escrevia muito sobre terras, ele sugeriu a presidência do Iterpa (Instituto de

Terras do Pará). Falei que não, ele sugeriu que eu fosse o coordenador do Conselho Superior de

Desenvolvimento, que seria o órgão-chave da administração dele, mas se reuniu uma vez. Falei

que não queria nada, que seguiria jornalista e crítico dele.

Guilherme Carvalho -Você responde a quantos processos e qual a natureza deles?-

Acho interessante que durante o regime militar (1964-1985), fui jornalista por 19 anos e só fui

processado uma vez. O caso foi por causa do suplemento Encarte, que editava em O Liberal.

Denunciei o processo de tortura que uns presos sofreram após uma fuga. Eles eram levados para

o “interrogatório” de barco para a ilha de Cotijuba. Na lancha Marta da Conceição houve a fuga

e jogaram na baía o tenente responsável pela tortura, Teodorico Rodrigues. Fizemos as fotos da

tortura, publicamos. O governador da época era o Aloysio Chaves, que mandou investigar as

denúncias. O chefe do inquérito era o então major Antonio Carlos (depois coronel da PM e

secretário de Segurança Pública). Ele me chama de lado e informa que todos os jornalistas que

foram lá haviam admitido que as fotos tinham sido montadas. Desmentiram tudo o que haviam

feito. E que o interesse da polícia era pegar o repórter policial Paulo Ronaldo. O Paulo foi um

célebre repórter, tinha sido eleito deputado estadual pela oposição. Ele era muito popular e tinha

tido uma votação estrondosa. A polícia era louca para pegá-lo. Eu e o Paulo fomos indiciados na

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Lei de Segurança Nacional por incitarmos a sociedade contra as autoridades. Depois o crime foi

desqualificado na justiça militar e o processo arquivado na justiça comum. Desde 1992, quando

a Rosângela Maiorana Kzan entrou com a primeira ação, das cinco que moveu contra mim, já

foram 15 processos, além de mais um na justiça eleitoral. Em pleno regime democrático, sinto-

me mais perseguido do que na ditadura.

Rogério Almeida - O que se passa?

A Justiça está sendo usada como instrumento de quadrilhas. Vejamos uma coisa absurda. A

história da maior grilagem da humanidade usa como autor um certo Carlos Medeiros. Todo

mundo sabe que o Carlos Medeiros não existe. Foi forjado por uma quadrilha de advogados e

corretores de terras. Foi inventado inclusive por um advogado que morreu recentemente. Eles

vão aos cartórios com os juízes e desembargadores em nome de uma pessoa que não existe. Já

escrevi várias vezes no Jornal Pessoal que a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil exigisse

do advogado a apresentação em carne e osso do cliente, o Carlos Medeiros. E caso o advogado

não se apresentasse no prazo de uma semana, cassasse a licença do advogado. A Justiça hoje,

por ser o poder menos fiscalizado, se tornou um poder terrível.

Rogério Almeida- Desse rosário de processos, nove são sobre grilagem de terras?

Nove são de grilagem de terras e extração de madeira na Terra do Meio, lá no Xingu. Cinco são

da dona do Liberal, a Rosângela Maiorana Kzan. Chegou ao cúmulo dela entrar com ação cível

para me proibir de falar o nome dela para sempre. Fiz a seguinte pergunta no Tribunal: caso ela

ganhe, como vai ser a execução da sentença? Vão mandar um censor do Tribunal? Vou ter que

submeter o Jornal Pessoal a um censor do Tribunal? É um absurdo. A ação prospera até hoje.

Guilherme Carvalho - A Justiça paraense nesse caso, ou o Judiciário de um modo geral,

está servindo como instrumento para que a ação dessas quadrilhas de grilagens de terras

proliferem?

Veja o caso da desembargadora Maria do Céu Duarte. Ela se sentiu ofendida por um artigo meu

no qual reproduzia trecho de uma decisão dela. Disse que a ofensa era agravada pelo fato de eu

ter colocado aspas na declaração dela, denotando intenção de ofenda.

Rogério Almeida – Para tentar ser didático. São três os atores que o processam. Os dois

desembargadores, a Maiorana e o pessoal da grilagem de terras.

E tem a figura intolerante do prefeito de Belém, que também é dono de uma ação, Edmilson

Rodrigues (PT/PA). A ação é porque ele dava dinheiro para um escroque, um crápula do

jornalismo para defender a prefeitura e garantir uma coluna com pseudônimo, que era o “Décio

Malho”. Usando essa gazua, ele ofendia todas as pessoas inimputavelmente. Mostrei que o PT

que vinha para estabelecer a moralidade, estava usando o dinheiro público para chantagem.

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Rogério Almeida- Qual era o jornal?

Jornal Popular Rogério Almeida – Ainda existe?

Quando o prefeito deixou de pagar o jornal, deixaram de falar bem dele. No processo, uso a

figura jurídica da exceção da verdade. Ou seja, a possibilidade de provar que tudo que estou

dizendo é verdade. E as pessoas não deixam. A primeira sentença que me condenou foi

manuscrita. Tinha 54 páginas. Foi dada por uma juíza que jamais havia dado uma sentença

parecida. Você visualizando notava que não era a mesma letra. Há uma regra da lavratura de

sentença que diz que se o juiz começar a manuscrever a sentença, tem que fazer do principio ao

fim, rubricar cada página e assinar no final. A juíza não fez isso. Pedi perícia. Afirmava que não

havia sido a juíza quem havia escrito aquela sentença. Pedi perícia grafotécnica e grafológica.

Era mais de um modelo de letra.

Rogério Almeida – Qual foi a acusação?

Foi na ação da Rosângela Maiorana, por crime de imprensa.

Rogério Almeida – O que a motivou a processar você?

Mostrei a briga entre os irmãos Maiorana. Mostrei que havia uma dissensão entre os irmãos.

Que eles estavam usando o mesmo funcionário para criar duas empresas para fazer no Amapá a

mesma coisa para um e outro, sem que um soubesse da iniciativa do outro, em negócios

pessoais paralelos ao da empresa. Estavam criando empresa satélite para um e para outro.

Depois o funcionário foi demitido por justa causa. Acho importante dizer que em nenhuma das

15 ações qualquer dos autores usou o direito de resposta. Ninguém quis exercer o direito de

reposta no meu jornal ou em outro espaço, inclusive um servidor público, como é o

desembargador. Por que eles não prestam contas? Publico qualquer tipo de carta.

Nanani Albino –Você tem alguma condenação?

O primeiro caso foi esse da Rosângela Maiorana. O segundo foi o do desembargador João

Alberto Paiva. No primeiro pedi a perícia. Acabou não sendo feita a perícia. A desembargadora

que autorizou a perícia foi alvo de uma campanha contra ela no jornal O Liberal. Tentei

esclarecer o caso. Não tive espaço nem no jornal oponente, o Diário do Pará (propriedade do

deputado federal Jader Barbalho). O próprio Jader interferiu para a não publicação da

explicação, quando o pai dele já havia autorizado.

Rogério Almeida- Tem um problema também com os órgãos de imprensa aqui no Pará?

Tem. No O Liberal sou proibido de sair. A coisa é tão séria, que fui fazer uma palestra num

cursinho. O dono resolveu anunciar no jornal O Liberal, pagando nos classificados. Nem

anúncio pago com o meu nome sai no Liberal. A pedido meu, numa das audiências, a juíza

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interrogou Rosângela Maiorana se era verdade que o meu nome era proibido de sair no jornal.

Ela respondeu que não. Que no dia em que eu morrer, sai. Quanto ódio, meu Deus!

Rogério Almeida – Como é a história mais recente de sua batalha processual, a da

condenação do processo movido pelo desembargador Paiva?

Em 1996, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) propôs, na comarca de Altamira, uma ação de

anulação e cancelamento dos registros imobiliários que havia ali em nome da Incenxil

(Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu). A Incenxil era uma empresa de

Altamira, que foi comprada pela Rondon Agropecuária, do grupo C. R. Almeida. O que havia

de ativo na Incenxil? Registros de posse, com uma cadeia dominial longa, mas que não

mostrava a origem da titulação. Cadeia dominial são os registros sucessivos que o imóvel tem

no cartório. A propriedade privada só se caracteriza quando o domínio da terra sai do

patrimônio público para o particular. O primeiro registro, de 1923, tinha a seguinte informação:

“título hábil”, mas sem informar qual era o título. Evidentemente que era uma cadeia dominial

incompleta.

Rogério Almeida – Altamira ainda é o maior município em extensão territorial do mundo?

Ainda é o maior município. No “chute”, uns 150 mil quilômetros quadrados. O Iterpa pediu

para o juiz Torquato Alencar uma tutela antecipada. O que é isso? Autorizar que na margem do

registro constasse, com autorização do juiz: “Esta terra está sub-judice com ação de

cancelamento proposta pelo ITERPA”. Para que isso? Para alertar terceiros de boa fé. Qualquer

pessoa que quisesse comprar essas terras iria saber que a terra estava sob litígio. Assim,

qualquer comprador seria de má fé. Sem direito a indenização. O juiz deu a tutela antecipada. A

empresa recorreu em Belém. O agravo foi para o desembargador João Alberto Paiva. Ele

decidiu, em liminar, sem examinar o mérito da questão, que as terras são “inquestionavelmente

de propriedade particular”. A liminar é dada quando o direito é evidente (sem maior indagação)

e há iminência de dano irreparável. Como, se o Iterpa entrou com o pedido de anulação e

cancelamento dos registros imobiliários que havia no cartório de Altamira da Incenxil? O

desembargador deixou de ouvir o Ministério Público. São 5 milhões de hectares. São duas vezes

e meia a área da Bélgica. Todos os órgãos públicos, federais e estaduais, dizem que a terra é

pública. Avalio que o juiz deveria ter tido cautela na questão. Quatro meses depois da decisão, o

Ministério Público se manifestou contrariamente.

Nanani Albino – Você fez alguma crítica sobre o desembargador ou somente sobre a

decisão dele?

A minha crítica é sobre o ato. Ao longo desses 40 anos, nunca entrei num assunto se não tenho

prova. Nunca fui processado por falta de provas. A questão é sintomática. A C. R. Almeida,

antes entrar com as ações, tinha o jornalista Oliveira Bastos como seu assessor especial.

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158

Mandou-me duas cartas violentíssimas. A tentativa era me desmoralizar. Não conseguiu. Depois

ele saiu da empresa. No terreno do debate, não fui vencido. Só escrevo depois de ler, verificar,

me convencer da questão. Não produzo com base em dossiê. Só escrevo quando domino o

assunto.

Guilherme Carvalho - Lúcio, você tem tido dificuldade de conseguir advogado aqui?

Quando a Rosângela Maiorana Kzan, em setembro de 1992, entrou com a primeira das cinco

sucessivas ações, procurei oito advogados. Em geral, de esquerda. Todos, sob diferentes

pretextos, não aceitaram a minha causa. Uns alegando dor de cabeça, amizade... Um amigo, que

não era advogado militante, sem escritório, topou fazer a defesa. O acordo era que eu

freqüentasse o Fórum e ajudasse na elaboração das peças. Aí comecei a estudar Direito e

freqüentar o Fórum. São doze anos. Usei de todos os institutos do Direito Penal. Sempre é a Lei

de Imprensa. Avalio que não haja alguém que conheça a Lei de Imprensa melhor do que eu.

Nanani Albino - Por que a Lei de Imprensa, criada em pleno regime militar, ainda não foi

derrubada?

A lei é inconstitucional. Só que alguém tem que entrar com Ação de Declaração de

Inconstitucionalidade (ADIN). Aí fica o sindicato, a Federação, ficam os grandes líderes dos

direitos humanos dizendo que a lei é entulho do regime autoritário. E ninguém toma uma atitude

positiva. A Constituição revogou tacitamente a lei. Como a Lei de Imprensa é especial, ela deve

ser inconstitucional e tem que ter uma outra lei para revogá-la. Por quê? Porque os democratas

de ontem são os autoritários de hoje. Edmilson Rodrigues, prefeito do PT, usou a Lei de

Imprensa contra mim. Lula não vive dizendo que a imprensa é denuncista? Não interessa ao

poder, de direita ou de esquerda, abolir a Lei de Imprensa.

Guilherme Carvalho - Qual avaliação que você faz da relação entre os meios de

comunicação, governo e esses grupos econômicos que estão controlando mais terras,

grilando?

Acho que a imprensa deva ser democrática. Se você manda uma carta e o jornal não a publica,

já deveria ser considerado crime, a recusa da publicação da carta. Se você mandou e em 48

horas, o jornal não publicou, já seria crime. Bastaria entrar na Justiça provando o recebimento

da carta e que não foi publicada. A partir desse dia, multa violenta na empresa, em dinheiro.

Com isso se resguardaria o direito do cidadão de se defender daquilo que foi escrito contra ele

na imprensa. Por esse lado, se defenderia o cidadão. Outro ponto seria que ninguém poderia

entrar na Justiça sem antes esgotar a via administrativa. Nesses moldes, nenhum dos

desembargadores poderia me processar, já que não exerceram o direito de resposta. Acho

também que com a criação de alguns mecanismos seria possível estabelecer uma relação

democrática dos meios de comunicação. Por exemplo: cada empresa que alcançasse

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159

determinada tiragem, ou determinado capital, deveria ficar obrigada a abrir o seu capital. E a

empresa não poderia absorver as ações totais, deveria permitir que 10% fossem comprados pelo

cidadão. Não acredito no modelo de conselho, como feito no Peru. O Estado, quando entra no

campo cultural, é totalitário por atavismo. É o cidadão que deve ter o controle. Não o Estado.

Quando optei pelo Jornal Pessoal, nunca aceitei publicidade.

Nanani Albino – Como ele sobrevive?

Há horas em que ele se paga. Há horas em que não se paga. Isso hoje é o que menos importa.

Numa época ele só era vendido através de assinaturas. Cheguei a ter 1.200 assinantes. Mais que

o Jornal Liberal, que tinha 800. Mas para manter as assinaturas, teria que virar empresa.

Nanani Albino – Qual é a tiragem?

2 mil exemplares.

Nanani Albino - E a distribuição?

Só em banca.

Guilherme Carvalho- Voltando naquela relação dos meios de comunicação. Poder

Judiciário e os grupos econômicos...

A C. R. Almeida criou uma pendência judicial. Enquanto tiver a pendência judicial, ela domina

a terra. É uma forma mais sofisticada de grilagem do que as formas anteriores. A forma antiga

era falsificação de título, corromper o cartório. Agora eles fazem questão de manter a questão

sub-judice. A justiça pode tomar uma decisão. No próximo número do Jornal Pessoal farei um

comentário sobre uma resolução baixada pela corregedora geral de Justiça do interior,

Carmencin Cavalcante. Ela usou seu poder de arbítrio numa questão. O poder arbitrário do

Estado deve ser em defesa do interesse público. Se há dúvida de registro de uma terra imensa,

cancela-se e o particular que vá para a justiça.

Guilherme Carvalho – A Justiça no Pará não decide por quê?

Porque não quer. Há esse exemplo da doutora Carmencin Cavalcante. Ela baixou uma resolução

em que ela cancela. No caso da Jarí, ela cancelou a unificação de terras em 940 mil hectares.

Exerceu o poder de arbítrio. Tem de usar. Falta vontade ao judiciário. Agora mesmo estão com

recurso de plotagem, GPS. Sim, de que adianta ter tudo isso sem vontade política?

Nanani Albino - Você ainda é réu primário?

Sou. Porque a questão está suspensa. Tentaram armar uma trama quando fui condenado pela

primeira vez. Eles queriam me colocar na cadeia e fotografar, para pôr a minha foto no jornal.

Mesmo que eu saísse no primeiro minuto. A justiça é terrível. É um poder triturador –lento, mas

inelutável. Por isso há o ditado: quem tem juízo, não vai a juízo. Quando li a decisão do

Tribunal, passei o fim de semana questionando onde havia errado. Não posso errar. Não posso

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160

deixar o inimigo se alimentar de falhas. Sobretudo das pequenas, que desviam da apreciação do

mérito e se restringem a uma preliminar formal.

Nanani Albino– Como você consegue com tanta pressão ser um repórter investigativo? O

que significa ser um repórter investigativo?

As pessoas pensam que repórter investigativo é aquele presenteado por dossiê. Investigar

significa ir atrás do fio da meada e questionar sempre. Se você não tem dossiê, vai atrás dos

fatos. A escola de repórter de polícia continua sendo a grande escola. Morto não manda release.

Não tem assessor de imprensa. O problema é que consigo desagradar todo mundo. O PT não me

considera um aliado. O PSDB não me considera aliado. O PFL, idem. Azar deles. E azar o meu.

Guilherme Carvalho – Você falou do governo Edmilson e falou do Jader. E quanto ao

governo do Estado, os governos de Almir Gabriel e Simão Jatene (atual governador do

Pará/PSDB). O Ministério Público faz o que o Executivo quer?

Infelizmente. Quando ele passou a se tornar muito forte, os procuradores passaram a ter carreira

política. Marília Crespo, Manoel Santino saíram do MP diretamente para a política. Acho isso

uma promiscuidade. Acho que não se deveria mandar lista tríplice para o governador. O

colegiado do Ministério Público deveria escolher seus novos integrantes. Não tem porque

representante do Ministério Público ser desembargador. Nem gente da OAB. A promoção

deveria se restringir aos integrantes da carreira. O governador não deveria nomear ninguém.

Todos acabam dependendo do poder executivo.

Nanani Albino – Você falou que a melhor escola para investigar os fatos é estar diante dos

fatos e perguntar. No que tange à Amazônia, o que te inquieta? Quais os fatos que

deveriam estar na pauta e não estão?

Sempre lembro, como metáfora, o exemplo de Isaac Newton. Estavam os dois irmãos debaixo

da macieira. Felizmente a maçã caiu na cabeça de Newton. Fosse na cabeça do irmão, teria

gerado no máximo um palavrão. O jornalista é aquele que faz a pergunta certa, na hora certa. O

jornalista é aquele que incomoda o poder. Seja qual for. Ideológico, econômico, institucional.

Uma vez, em Tucuruí, o presidente da Eletronorte afirmava que a água do lago era boa. A TV

filmando. Então pedi: “beba essa água”. Ele não tomou. Ninguém estava esperando. Liquidou-

se. Um outro episódio foi com o pistoleiro que executou o deputado João Batista, de nome

Péricles. Numa pequena sala da Assembléia Legislativa, ele dava entrevista. Só entrava uma

equipe de TV de cada vez. O arquivo está na Cultura. Ele afirmava que nunca tinha pegado

numa arma. Pedi para o soldado tirar as balas do revólver e passá-lo para mim. O capitão, que

estava ao lado, autorizou. Peguei o revólver e disse para o Péricles: “pega”. Ele tomou a arma de

minha mão na hora. Era um profissional. A equipe da TV Cultura, que filmou tudo, saiu

correndo para exibir o filme. Jornalismo é isso. Em cima do lance. E às vezes não. Até porque

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161

as sociedades que mais se desenvolvem são aquelas que dão tempo para as pessoas ficarem no

ócio, refletindo. Não existe verdade sem ócio. Outra coisa foi Sossego. Dezenas de matérias.

Rogério Almeida - Você poderia explicar o que é Sossego?

É a primeira mina de cobre a entrar em produção, que vai tornar o Brasil auto-suficiente. É a

primeira das cinco minas da região de Carajás, no Sudeste do Pará. Em 1977, estava lá quando

começou a pesquisa no Salobo 3 Alfa, em Carajás e comecei a estudar cobre. O principal são as

boas fontes. Acompanhei a história da Caraíba, do Geisel, dos estudos do Estado-Maior das

Forças Armadas para abastecer de cobre o Brasil. O cobre é o segundo item na balança de

importações minerais. Concluí que ocorreria um paradoxo. Vamos ser auto-suficientes e vamos

continuar importando cobre. Vamos exportar concentrado e importar cobre metálico. Porque há

uma incompatibilidade entre a Caraíba Metais e a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Com

os calos de 20 anos tentando estudar a questão, você faz a pergunta certa. Escreve uma matéria

que, talvez, ninguém vá escrever, ao menos naquele momento, em cima do fato.

Em Marabá, em 1995, na Escola Mendonça Virgolino, houve um debate sobre o projeto de

cobre do Salobo. Valor do projeto: 1,6 bilhão de dólares. Não se sabia onde ia ficar. Se em

Marabá ou Parauapebas, ambas no Pará, ou Rosário do Oeste, no Maranhão. Aí o Haroldo

Bezerra, então prefeito de Marabá, informa no meio do debate que o pessoal da Salobo Metais

tinha visitado a cidade no dia anterior. Interroguei se ele havia perguntado se a quantidade de

minério daria para produzir, durante 20 anos, 140 mil toneladas de concentrado ao ano. Bezerra

retruca o por que da pergunta. Expliquei que se não fosse assim a mina não sairia. Não teria

viabilidade econômica, fosse lá onde ficasse instalada.

Nanani Albino – Você avalia que as pessoas que estão no planejamento das políticas

públicas para a Amazônia estão fazendo as perguntas certas?

Alguns são honestos e competentes possuem a resposta. Outros, não. As pessoas que fizeram os

contratos de minério de ferro, bauxita (matéria prima para a produção do alumínio), os contratos

da Albrás (maior empresa de alumínio do Brasil, instalada no município de Barcarena, a 40 Km

de Belém), sabiam que estavam cometendo um crime contra o Brasil.

Rogério Almeida – Todos esses projetos se deram no regime militar?

Todos. Todas as pessoas que assinaram contratos dos grandes projetos na Amazônia deveriam

estar respondendo a processos. A base do meu diálogo são os fatos. Eliezer Batista (ex-

executivo da CVRD - Companhia Vale do Rio Doce), um dos homens mais importantes da

história contemporânea, que concebeu todo o Grande Carajás, disse que, caso não tivesse havido

corrupção na construção de Tucuruí, nós não teríamos precisado subsidiar o alumínio. E a

CVRD é uma empresa do alumínio. O subsídio custou dois bilhões de dólares. Fui apurar e

escrevi matérias sobre o assunto no Jornal Pessoal. Em contato com o ex-deputado federal do

PT, Geraldo Pastana, sugeri que ele convocasse o Eliezer. Não foi aprovado o pedido. Então,

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162

pedimos informações no TCU - Tribunal de Contas da União, depois de dois anos tivemos a

reposta deles, de que se tratava de águas passadas.

Rogério Almeida- Dois bilhões em subsídio?

De subsídio no alumínio e de corrupção na construção de Tucuruí.

Rogério Almeida – A empresa no caso era a Camargo Corrêa?

A Camargo Corrêa teve um lucro líquido de 500 milhões de dólares na construção da

hidrelétrica de Tucuruí. Sempre que posso, toco no assunto. As pessoas não se indignam. Fico

estupefato com a questão. No regime militar, descobri que balanço de empresa é uma fonte

preciosa de informação. Principalmente pelo que não está dito. O Banco do Estado Pará

(Banpará) foi eleito o banco do ano em 1983, quando eu havia escrito que o banco era uma

porcaria e que todas as suas operações estavam erradas. E a revista Exame, uma publicação

aparentemente de conceito, afirmava se tratar do banco com o melhor desempenho no Brasil.

Passei a estudar balanço, consultar gente que sabia. Fui estudar o balanço da Albrás de 1987 e

conclui que só a variação cambial entre a moeda japonesa e o dólar relativos à moeda nacional,

que proporcionou a maior aplicação de capital de risco estrangeiro na história do Brasil

representava três vezes o orçamento do Estado do Pará. Perdemos três vezes o orçamento do

Estado. Consultei o cidadão que fazia o orçamento no Rio de Janeiro e ele confirmou a conta.

Escrevi matéria em O Liberal. Imaginava um escândalo nacional e nada houve.

Nanani Albino- Por que a opinião pública parece não se aliar a você?

Há um descompasso entre a agenda da opinião pública e a agenda da história. Estamos numa

situação colonial. Caso a gente soubesse o que está acontecendo de verdade, não seríamos

coloniais.

Rogério Almeida – Existe saída para essa condição colonial?

Tem. Ciência e tecnologia, o modelo de colonização que defendo é a ocupação através da

ciência e tecnologia. Deveríamos ter aqui não colono de soja e não colono de arroz.

Nanani Albino – O que é isso?

Em vez de colonos, cientistas. Ele não vai só produzir ciência, se ele estuda arroz, vai plantar

arroz. Vai ensinar como é que faz, fazendo. Vamos pegar o cara e colocar no campo, e não no

campus, com bolsa de pesquisa, uma estrutura mínima. Se a gente não colocar a formação antes

da transformação está liquidada a Amazônia. Sei que serão necessários muitos milhões no

começo. Quando comecei a visitar o Araguaia, a densidade de mogno era o dobro do que existe

no Xingu, eram 10 árvores por hectare. Não tem mais nada lá. Diziam que a gente ia aprender

com a experiência do Araguaia. Estamos fazendo pior no Xingu. Aí só vai restar o Acre. Uma

árvore por hectare. Araguaia era a maior reserva de mogno do mundo.

Nanani Albino – Você fala em mudança substancial em investimento em pesquisa ?

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Devemos conceber investimento em pesquisa não como retaguarda, mas como vanguarda.

Vamos pegar a meninada da USP, UFRJ e outras com uma boa bolsa e vamos para o campo

aprender. Os orientadores também devem ir ao campo, com condições de trabalho bons salários.

Nanani Albino – E as universidades federais locais?

Todo mundo iria para o campo. É como se estivesse em Israel. A nossa guerra é a guerra da

ciência. Guerra da ciência não é ficar fazendo o seu trabalhozinho acadêmico. É fazer a difusão

da ciência no campo.

Nanani Albino - Agora é a hora?

Tem que começar já senão nunca vai começar.

Nanani Albino – E os colonos não científicos?

Ele vai aprender e ensinar. Você coloca o doutor em genética na Transamazônica para fazer

melhoramento no campo com uso do conhecimento tradicional e empírico. Considero que o

pessoal tem que ir a campo. O doutor tem que deixar de canto essa postura arrogante.

Nanani Albino – Como você avalia a ciência produzida na Amazônia?

Quando comecei a fazer palestras, começavam a fazer perguntas sobre a minha formação e eu

dizia malandramente que era jornalista. Era um constrangimento. Jornalista não tem valor

científico. Aí eu dizia: sou sociólogo e tinha o carimbo da academia. Depois dizia: “vamos para

o debate!” O critério da verdade é o debate. Se vocês são os cientistas, os doutores, vocês vão

me vencer no debate. Caso eu vença, não adianta ser doutor.

Nanani Albino – No Brasil, existe a tradição do debate?

Aqui o debate costuma ser improdutivo, assistemático e acientífico. O que grita mais alto, as

pessoas aplaudem, vence o debate. Todos sabem do rigor que tenho com os dados. Caso esteja

errado, corrijo. Num determinado debate, soube da proibição por decreto pelo presidente José

Sarney do uso do alumínio nos garimpos. Disse que seria pior. Que os garimpos iriam usar

cianeto. A pessoa que conversava iria palestrar pela tarde. Cheguei na hora em que ela falava de

uma importante denúncia que a Amazônia iria ser inundada por “cianureto”. Mandei um bilhete

informando que não era cianureto e sim cianeto.

Guilherme Carvalho – Qual a perspectiva da Amazônia diante de mais um Plano

Plurianual aprovado?

Quando Lula foi eleito, elogiou a tecnocracia do regime militar. Escrevi um artigo dizendo que

ele tinha certa razão. Acho que nunca se fez tanto plano. Alguns tão bem feitos que não

poderiam nem ser executados. Uma vez, em Brasília, fui ao Instituto de Pesquisa de Econômica

Aplicada (IPEA), cujo chefe era o ministro João Paulo dos Reis Veloso, do Planejamento, que

sempre se preocupava com a história, por isso apadrinhou intelectuais marxistas. Não queria

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164

passar como o tecnocrata dos ditadores. Em 1972, andando pelo IPEA, entrei inadvertidamente

numa sala onde estava sendo dada uma aula sobre Marx. Aquilo era uma heresia privatizada.

Nessa época, o IPEA publicou um livro crítico sobre a colonização dirigida na Amazônia.

Critica o INCRA, os incentivos fiscais que motivaram a formação dos latifúndios com

metodologia marxista. Caso for analisar a história pela fonte secundária, você vai dizer que esse

era um déspota esclarecido. Agora a bíblia sobre a Amazônia é um livro sobre o II Plano de

Desenvolvimento da Amazônia – PDA (1975/1979). Esse documento diz o que da Amazônia?

Diz que o papel da Amazônia é fornecer insumos para o Brasil moderno e matérias-primas para

o mundo. Com isso, ela vai aumentar o ritmo do desenvolvimento brasileiro, pois o Brasil não

tem poupança suficiente para isso, e também manter a roda do processo produtivo do mundo. É

isso que interessa. Tudo dito claramente sem filigranas ou cosméticos. É um futuro colonial.

Como mudar isso? Tornar o povo participante.

Rogério Almeida – Qual é orçamento para a ciência na Amazônia?

Zero, dois ou meio por cento do orçamento em ciência e tecnologia.

Rogério Almeida – Estamos condenados ao colonialismo?

Se tirassem as verbas estrangeiras seriam o,ooo qualquer coisa.

Nanani Albino – Qual é o investimento em pesquisa vindo do exterior?

Dois terços dos investimentos da pesquisa são em moeda estrangeira. A Amazônia não é

prioridade nem para o Brasil.

Nanani Albino – E o resultado?

É o modelo colonial. O projeto MADAM (Programa Manejo e Dinâmica nas Áreas de

Manguezais), por exemplo, é interesse alemão. Há documentos que são produzidos em alemão,

e que nunca foram traduzidos. O que o mundo desenvolvido quer da Amazônia? Preservar uma

parte da Amazônia e estudá-la antes que acabe. Ninguém no mundo sério tem dúvida de que a

gente vai acabar com a Amazônia. Somos destruidores como eles também foram e são. A

história da humanidade é a história da destruição da floresta. Na Amazônia, é a primeira vez que

a gente tem a possibilidade de uma civilização florestal. É o único lugar que tem floresta

expressiva hoje. Temos a consciência e os meios, se a gente não usar a consciência e os meios,

vamos seguir a tradição do homo agrícola. Vamos destruir a floresta. A Amazônia só tem futuro

no mundo. Onde Marx escreveu O Capital? No Museu Britânico. O Marx nunca entrou numa

fábrica. Em quais dados primários se baseia O Capital? Nos relatórios dos fiscais de fábrica da

Inglaterra.

Rogério Almeida- Então não era um bom jornalista

Era ótimo jornalista.

Rogério Almeida – Mesmo distante do campo?

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Mesmo não indo para o campo. Quando ele ia para o campo, ele era o editor da Nova Gazeta

Renana. Ele escreveu sobre o monopólio da lenha e a liberdade de imprensa. A luta dele contra

o censor. O censor esperando ele na redação e ele dormindo. Até o momento que ele se tornou

profeta tinha muito bom humor.

Rogério Almeida – A gente estava falando em ciência, e o SIVAM – Serviço de Vigilância

da Amazônia?

São 20 anos de verba de ciência e tecnologia na Amazônia que estão sendo distorcido pela visão

geopolítica. Hoje nós temos o SIVAM pronto. Isso significa maior segurança para a Amazônia?

O prisma da geopolítica é o que mais distorce a visão da Amazônia. Desde Arthur Cezar

Ferreira Reis, que é a matriz desse pensamento. A nossa relação com o mundo tem que ser

diferente. Quanto mais a gente se desenvolve, mais a gente fica subdesenvolvido. Continua

aquela visão de Euclides da Cunha do seringueiro. Aquele que quanto mais trabalha, mais se

escraviza. Aquele que compra produtos caros no barracão, e vende produtos baratos. Uma

relação de troca desfavorável.

Rogério Almeida - Essa questão da regulação fundiária, gostaria que a gente retomasse. É

uma questão séria na Amazônia.

Está em vigor o Estatuto da Terra. Foi baixado pelos militares em novembro de 1964, o Estatuto

é melhor que a Constituição. O Estatuto diz o seguinte: ninguém pode ser dono de mais de 600

vezes o modulo rural.

Rogério Almeida – O módulo rural hoje é de 25 hectares?

Há vários tipos de módulos. Há de um hectare, para a horticultura, ao maior, que é o

silvicultural, que é de 120 hectares. Pela letra da lei, ninguém pode ser dono de mais de 72 mil

hectares. Vamos pegar os Estados Unidos, onde há cadastros fundiários desde o século XVIII.

São amarrações por posições astronômicas. Como a gente não tinha isso, a nossa amarração foi

através de acidentes naturais. Só que a gente não conhecia o interior. No início da República

expedimos 40 mil títulos de posse. Isso só existe no Pará e na Bahia. Era uma carta do poder

público autorizando a ocupação do interior por quem estivesse disposto a ocupar. O limite

máximo era uma légua quadrada, que corresponde a 4.356 hectares. Com base nisso, ninguém

poderia aparecer com título de posse com 5 milhões de hectares. Desses 40 mil títulos, apenas 3

mil buscaram a regularização depois. O resto deu origem a essas grilagens. É fraude. Caso o

senhor Cecílio Rego Almeida aparecesse com um título desses nos Estados Unidos, poderia ser

preso.

Rogério Almeida – Vamos falar um pouco sobre a CVRD -Companhia Vale do Rio do

Doce. A Vale é maior que o Pará?

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166

É maior. A CVRD tem uma verba de investimento maior que a do Estado. O faturamento da

CVRD é maior que a receita do Estado. Caso o modelo de enclave prospere, a CVRD vai ser

três vezes maior que o Pará. É um modelo baseado em matéria-prima, quantidade crescente de

minério de ferro. Vinte milhões de toneladas era o ponto de viabilidade da mina de Carajás.

Hoje está em 55 milhões de toneladas. Por quê? O primeiro trem saiu de Carajás com a tonelada

de minério a 26 dólares, hoje são 15 dólares. Ocorre que tem de produzir cada vez mais. O Pará

é o 2º Estado em território, 9º em população, 16º em Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH), 19º em Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ). É o modelo da África do Sul. Nós

somos a África do Sul da Amazônia.

Rogério Almeida - A privatização foi um crime de lesa pátria?

A melhor análise que saiu foi da Euromoney, uma revista de negócios da Europa, foram 16

páginas. Eles mostraram o absurdo que foi o preço de avaliação de arremate da CVRD. O

absurdo é tanto que hoje os japoneses estão na CVRD. Uma das regras da privatização era que

comprador não poderia ser acionista da CVRD. O modelador da privatização, que é o Bradesco,

é o principal controlador fora dos fundos federais. Que privatização é essa? Foi um dos maiores

escândalos do Brasil. As ações propostas na Justiça não foram decididas até hoje.

Nanani Albino – Há 12 anos você vem sendo processado. Qual a postura das entidades de

classe, federação, sindicato de jornalistas em relação a isso?

Bem, fui do sindicato do tempo em que o Lula tentava implantar as delegacias sindicais no

ABC, no fim da década de 70. A gente foi o primeiro sindicato a ter salário profissional e

delegacia sindical. Depois perdemos no Superior Tribunal do Trabalho. A gente fez isso

primeiro. No primeiro processo, o presidente do sindicato escreveu uma nota de solidariedade

tão sórdida, que pedi o meu desligamento do sindicato. A solidariedade era pior do que se

tivesse feito um ataque a mim. Ele dizia que a Rosangela Maiorana tinha razão, mas que tinha

de ser solidário pelo espírito de corpo. Nesse recente episódio (do desembargador João Paiva) a

nota de solidariedade foi comandada pelas ONG´s: Instituto Sócio Ambiental (ISA), Amigos da

Terra, Greenpeace. FENAJ e sindicato aderiram. A iniciativa não foi deles. O episódio mais

triste que ocorreu nesses quase 40 anos de profissão foi quando denunciei a infiltração do

narcotráfico na Amazônia, em 1991, ano em que ocorreu o assassinato de uma figura da

sociedade, que era lavador do dinheiro do narcotráfico internacional. Durante meses, o Jornal

Pessoal foi o único que publicou os fatos. Era a história de Bruno Matos. Quatro meses depois,

saiu uma única matéria nos três jornais da cidade, dizendo que ele tinha se suicidado. Ele

morreu na BR 316, a 90Km/h, recebeu um tiro na distância mínima de três metros, de cima para

baixo, da esquerda e ele era destro. Foi um único tiro, preciso. Esse é o suicídio mais

inverossímil da história da humanidade. Um tiro a três metros de distância, dirigindo o carro a

90Km/h. Após o Jornal Pessoal encadear os fatos, a PF apreendeu uma tonelada de cocaína no

Marajó e no rio??? Amazonas. Toda a imprensa foi para a sede da PF para a coletiva. Fui e não

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167

fiz qualquer pergunta. Os colegas interrogaram sobre o meu silêncio. Falei que tinha ido para

conversar em off com o delegado José Salles, hoje superintendente aqui no Pará. O colega

declarou, então, que iria ficar. Que agora é que ia começar o bom. Retruquei que não existe off

coletivo. Que se tratava de uma conversa particular, estabelecida através da confiança mútua.

Concordei em que todos participassem, com o compromisso de que todos publicassem o que ia

ser dito ali. Todos foram embora. O Salles, delegado, interrogou: são esses seus colegas?

Nanani Albino – Você tem 38 anos de jornalismo. O Jornal Pessoal muitas vezes não cobre

nem sequer os custos. Você hoje consegue viver da profissão?

Dou palestras, escrevo artigos para fora, escrevo livros. Do Jornal Pessoal, não. O Jornal

Pessoal é a pedra no sapato.

Guilherme Carvalho – A mosca na sopa?

O Roger Aguinelli, presidente da CVRD, um dos homens mais poderosos do Brasil, num vôo

leu um clipping do Jornal Pessoal. A CVRD mantém o Jornal Pessoal no seu clipping. Ele

ficou furioso. Contatou o chefe de comunicação, que estava indo para o Maranhão, para antes

parar no Pará. Queria que me dissesse que ele não era banqueiro, que faz filantropia e que

destina todo o dinheiro das suas participações em conselhos a obras de caridade. Estava furioso

com o Jornal Pessoal. Agora, nesse episódio (da condenação), recebi uma carta do Jarbas

Passarinho em solidariedade. Ele fez o que nenhum colega meu fez. “Use essa carta, se quiser”,

disse ele. Fomos adversários. Nunca me processou. Mesmo quando ele era o homem mais

poderoso do Pará.

Nanani Albino– Que preço você paga?

No Jornal Pessoal, quem quiser entrar, tem que me convencer. Não interessa se é poderoso. O

Hélio Gueiros (ex-governador do Pará e ex-prefeito de Belém, candidato nesse pleito de 2004 à

prefeitura de Belém), mandou uma carta para mim que começava assim: ”Lúcio Flávio, porque

tu não vais chupar o cu da puta que te pariu?” Publiquei a carta. Ele não imaginava que

publicaria e nunca mais quis falar sobre isso.

Rogério Almeida – São quantos livros?

Dez livros e participação em muitas obras coletivas.

Rogério Almeida – A produção dos livros obedece à mesma lógica do Jornal Pessoal,

bancados por ti mesmo?

Agora, sim. Antes, não. O melhor que fiz foi bancado por uma bolsa de pesquisa americana, da

Universidade da Flórida, que me permitiu falar mal de um do símbolos americanos, o Daniel

Ludwig, do projeto Jari. Recebi uma boa bolsa de seis meses. Passei seis meses pesquisando e

estudando nos Estados Unidos, escrevendo um livro contra um símbolo do capitalismo

americano. Esse foi o livro que mais me gratificou. Quanto aos outros, não tive essa retaguarda.

Foi um dos melhores períodos da minha vida.

Page 165: Poroca Pequena

168

Guilherme Carvalho – Você é um homem cético ou esperançoso?

Se fosse cético, já teria entregado as armas. Tenho esperança. Agora, a minha consciência diz

que estou numa luta perdida. Vou continuar a luta até o último dia.

Nanani Albino –Você acha que vai pagar atrás das grades por expor fatos que mais

ninguém publica?

Cipriano Barata foi muito mais jornalista do que eu. Toda vez que ia para as grades, escrevia um

jornal. Escrevia na guarita da fortaleza maranhense. É um exemplo. O meu algoz, a Rosângela

Maiorana, que já foi minha amiga, disse que iria me mandar para a prisão. Retruquei que o risco

era que eu iria ter tempo para escrever um Jornal Pessoal por dia. Iria imitar o Cipriano Barata.

Como diz o Gramsci, pessimismo na inteligência, otimismo na vontade. Tenho clareza que a

máquina está me triturando. Vou capitular? Não sei?

Nanani Albino - Você falou que a salvação da Amazônia está no mundo. Você acha que a

salvação para Lúcio Flávio Pinto está fora da Amazônia?

Na Itália, tem um grande jornalista chama Maurizio Chierice. É um dos principais enviados

especiais da imprensa italiana. Cobre todos os conflitos internacionais. Ele escreveu um artigo

no L’Unità, na primeira página, sobre o meu caso, edição do dia 19 de julho. Ele pediu para não

calar a voz da Amazônia. Além do artigo, mandou uma carta para o embaixador brasileiro, o

Itamar Franco. Não interessa o que vai acontecer. Interessa que eu não pedi. Foi ele quem me

indicou para o maior prêmio de jornalismo da Itália, em 1997. Fui o primeiro não europeu que

recebeu esse prêmio. No ano que recebi, o deputado federal da Irlanda do Norte, John Humme

também ganhou, que, no ano seguinte, foi Prêmio Nobel da Paz. Recebeu também um jornalista,

poeta e escritor albanês, Fatos Lubonja, que passou 19 anos preso. O governo brasileiro mandou

um funcionário da embaixada numa ocasião em que estavam lado a lado, pela primeira vez na

Europa, os embaixadores da Inglaterra e da Irlanda. Ao registrarem o fato, o auditório os

aplaudiu. Depois vim a saber que o Itamaraty, consultado pelo embaixador, havia dito que eu

não era “confiável”. Por isso o embaixador não foi. Fiquei contente em saber que eu não era

confiável para o poder.

Rogério Almeida – Como você avalia a presença dos Estados Unidos na Amazônia?

Os Estados Unidos não conseguem entender a América do Sul. São incapazes. Clinton esteve

para lançar o Plano Colômbia em Nova Granada. Ele não conseguia perceber que estava diante

da sede de um poder imperial que foi maior do que os Estados Unidos, que foi o da Espanha. No

século XVI, metade das universidades da Europa estava na península ibérica. Nós levamos

quatro séculos para fazer a nossa universidade. A rigor, a nossa universidade foi criada em

1950, a Universidade do Brasil. Ele esqueceu que existe uma história hispânica anterior aos

Estados Unidos. Fomos maiores que os Estados Unidos até D. Pedro II. Ele era uma pessoa

brilhante, mas infelizmente travou a nossa história por 50 anos. Quando a biblioteca de

Washington sofreu um incêndio, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro era muito mais rica e

Page 166: Poroca Pequena

169

importante. Perdemos o rumo da história nesse período. Entre 1822 e 1850, não tinha Lei de

Terras no Brasil, a lei, não escrita, era a da ocupação, o princípio da posse, que fez a grandeza

dos Estados Unidos. Quando criaram a Lei 601, de 1850, a ocupação física foi substituída pelo

papel. E só pode ter papel, quem tem dinheiro. Liquidaram com um projeto do Brasil, que

estava na cabeça do patriarca José Bonifácio. Ninguém fala desse período. A diplomacia

americana se baseia na falta de conhecimento. Qualquer que seja o conteúdo do Plano

Colômbia, ele é trágico. Um equívoco para o continente e para os Estados Unidos. Hoje o

cidadão médio americano bem informado não tem dúvida de que Bush deve ser colocado para

fora. Podem vir a fazer um novo Vietnã na América do Sul se insistirem em mais presença física

americana. Temos que contrapor a ela uma integração econômica continental. Tem que acabar

com esse negócio de ALCA, Mercosul, por algo mais amplo na América do Sul. Onde a gente

possa se unir para nos tornarmos mais fortes? Se você inverter o rio?? Cassiquiare, vai abrir o

caminho pelo centro da América do Sul, vai entrar pelo Caribe e vai sair na Bacia do Prata.

Você vai acabar com o esquema de comércio no mundo inteiro. Com uma inversão de águas,

você já começa a revolução. Aí tem lógica fazer hidrelétrica no Madeira. Enquanto isso não

vem, não tem lógica. Nós estamos trazendo 200 megawatts por dia do sistema Guri da

Venezuela para Boa Vista usar 72 megawatts. Estamos jogando fora 128 megawatts. Guri é

atualmente a maior hidrelétrica do mundo. A estrutura do domínio do Estado é poderosa no

sistema de gestão do desenvolvimento venezuelano. A Venezuela pode quebrar essa estrutura

burocrática, que gera, de um lado, americanofilismo, e de outro lado esse fidelismo do Chávez.

Temos que resolver as coisas passo a passo. Temos que mudar a matriz de energia e o modal de

transporte do continente. Não é fazendo retórica contra plano Colômbia, fazendo SIVAM. Isso é

perfumaria.

Rogério Almeida-- Esse modelo de integração econômica para o continente que você fala é

via ALCA?

Não. Acaba com isso de ALCA, Mercosul, ALADE. Vamos trabalhar as nossas potencialidades.

Rogério Almeida – Quando você fala a gente, fala América Latina?

América Latina. Só vamos pensar lá fora depois que a gente fizer uma hidrovia do Caribe à

Bacia do Prata. Não podemos integrar para sermos esmagados. Carajás não tem carvão, vamos

trazer o carvão da Colômbia.

Guilherme Carvalho – Lúcio, construir uma hidrovia desse jeito não significa destruir boa

parte do pantanal?

Não vai passar no Pantanal. Passa ao largo. Sempre defendemos que o caminho natural é o rio.

Sempre brigamos contra as rodovias. Por que agora achamos que todas as hidrovias vão

destruir? Podemos fazer hidrovias perfeitamente válidas. Não podemos é fazer como foram

feitas as rodovias e as ferrovias. A hidrovia é para desenvolver o interior, o núcleo das regiões

conforme as suas aptidões. Devemos optar por ciência e projetos que agregam valor.

Page 167: Poroca Pequena

170

Guilherme Carvalho – Isso é um problema. As hidrovias não são pensadas nesse modelo.

São pensadas para soja.

A própria lei dá os antídotos para esse problema. Só vamos aprovar hidrovias se tiver comitê de

bacia. Dos 103 comitês de bacia, nenhum é da Amazônia. Não podemos aprovar um projeto de

hidrovia sem um plano de desenvolvimento, transformado em lei e aprovado pela Assembléia

Legislativa e referendado pelo Congresso Nacional. Terminou a fase da esquerda dizer, sou

contra, diagnostico certo, mas não sei fazer. Tem que saber fazer.

Rogério Almeida – Você ainda está dando aula?

Faz sete anos que não dou aula. Estou aprendendo de novo.

Sobre os entrevistadores: Todos cursam o mestrado em planejamento no Núcleo de Altos Amazônicos (NAEA), na Universidade Federal do Pará (UFPA). Rogério é jornalista e colabora no setor de comunicação do MST no Pará. Nanani é jornalista. Guilherme é historiador e técnico da FASE Pará.

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171

AMAZÔNIA E AS NOVAS FRENTES DE EXPANSÃO MINERAL E D O

AGRONEGÓCIO NO SUL E SUDESTE DO PARÁ21

Batista Afonso é um militante dos direitos humanos numa explosiva região da

Amazônia, o sudeste do Pará, onde é o coordenador da Comissão Pastoral da Terra

(CPT) no município de Marabá, cidade polo da região. Afonso é advogado e integra o

colegiado nacional da CPT, instituição ligada à Igreja Católica alinhada na defesa da

reforma agrária. A disputa pela terra na região sudeste do Pará imortalizou a mesma

como a mais sangrenta do país. Capítulo escrito com grande violência na década de

1980, com o registro estimado em quase 600 casos de mortes contra camponeses, com

quase cem por cento de impunidade.

A última década, contada a partir do Massacre de Eldorado do Carajás, fez com

que a região experimentasse profundas transformações. Modificações indicadas a partir

do reconhecimento de inúmeras áreas ocupadas como projetos de assentamento, avanço

da exploração mineral tendo como sujeito a Vale, implantação de grandes frigoríficos,

como o do grupo Bertin, a “compra” massiva de várias fazendas pela Agropecuária

Santa Bárbara, “empreendimento” rural do banqueiro Daniel Dantas, suspeito de um

mundo de crimes no sistema financeiro. No entanto, a efetivação de projetos de

assentamento não fez com que a atividade pecuária sofresse algum refluxo.

Ao mesmo tempo o polo de gusa se amplia em Marabá, imensas obras de

infraestrutura do Governo Federal ativam a migração e inchaço das cidades polo e

pequenas cidades onde os projetos de mineração iniciam, como no caso de Ourilândia

do Norte, Tucumã, Canaã de Carajás, Floresta do Araguaia e São Félix do Xingu. Se na

década de 1980 o fazendeiro aplacava a diferença sobre o domínio da terra contra o

camponês a partir do 38, vivencia-se hoje um processo de criminalização a partir de

condenações de dirigentes e advogados por conta das ações de ocupações. A exemplo

do que ocorreu no caso do Batista Afonso e em seguida com mais três dirigentes do

MST e dos garimpeiros.

O capital se alastra sobre as terras amazônicas, advoga sua perspectiva de

desenvolvimento da região em editoriais de grandes jornais, notas de primeira página

em edições dominicais, em reportagens que indicam que fora de tal diapasão não há

saída, como matéria publicada na revista Exame sobre os louros do projeto que explora 21 Trabalho publicado no site da rede www.forumcarajas.org.br em agosto de 2008.

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bauxita no pequeno município de Juruti da multinacional do setor de alumínio, Alcoa.

Os dias de hoje registram outro momento de tensão no sul e sudeste do Pará e em outras

áreas da Amazônia, com um radical avanço do interesse do capital sobre a terra e os

recursos nela existentes. A cortina de tal teatro de destruição já foi erguida em anos

distantes. A história de mortes, destruição da natureza, apropriação irregular de terra,

corrupção pública, hegemonia do poder da grana deixam isso evidente. É sobre o

complexo contexto vivenciado hoje no sudeste do Pará que Batista Afonso reflete nesta

entrevista concedida a Rogério Almeida, colaborador da rede Fórum Carajás.

Fórum Carajás (FC) – Qual o contexto atual no sul e no sudeste do Pará?

Batista Afonso (BA) – A reflexão que os movimentos da região fazem hoje é que a

região está vivendo uma nova investida do capital, que na verdade não é nova, existe

desde 1960, quando se descobriu a reserva de minério de Carajás. Mas, a tensão antes

residia na ação do latifúndio contra os camponeses e assessores. Foi isso que tornou a

região conhecida mundialmente. A questão do minério estava concentrada no município

de Parauapebas. Recentemente o capital da atividade minerária avançou sobre outros

municípios, triplicando ou quadruplicando os investimentos. Isso impulsiona outras

atividades, como a produção de gusa. A produção de gusa alavanca a exploração

irregular de madeira, a produção de carvão baseada na mão-de-obra escrava e a

monocultura de eucalipto. A mineração impacta hoje não apenas Parauapebas, mas

também Canaã dos Carajás, com a exploração de níquel através do projeto Sossego e o

Salobo. Há ainda a ampliação do polo de gusa de Marabá e o anúncio da aciaria da Vale

para a produção de liga de ferro. Os municípios próximos a Marabá sofrerão grandes

impactos com essa nova frente. Tem os casos ainda de Ourilândia do Norte, Tucumã,

Água Azul do Norte, São Feliz do Xingu através da mineração da Onça Puma do grupo

Vale e vários outros projetos, como em Floresta do Araguaia. Há outras mineradoras

internacionais em Xinguara e Rio Maria. A investida do capital a partir da mineração

acarreta uma série de situações de conflitos contra os posseiros, os assentados, contra os

trabalhadores que residem nessa área de interesse das mineradoras. Há inúmeros

projetos de assentamento em áreas de interesse do setor da mineração. Tais projetos de

mineração tendem a atrair uma forte migração para a região. Em municípios como

Marabá, Parauapebas, Ourilândia e vários outros há uma projeção de crescimento

populacional, salve em engano, calculada numa margem acima de 8% ao ano. Não há

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173

emprego para toda essa população que migra, que acaba por engrossar as populações

marginais nas periferias. Marabá registra hoje inúmeras ocupações urbanas. A situação

é marcada pela precariedade, sem apoio das prefeituras locais. A situação é de pobreza.

As questões ambientais dos grandes projetos de minerais são graves e não são

fiscalizadas, como a poluição dos rios e do ar. A atividade da mineração anima a tensão

tanto no campo como na cidade.

FC – Como é o caso da Mineração Onça Puma (MOP) no município de Ourilândia do

Norte?

BA – O caso é uma expressão do poder que possui a Vale e outras empresas de

mineração que se implantam aqui na região. As empresas são indiferentes às

comunidades que residem aqui. O poder econômico se impõe sobre qualquer outro

direito da população local. A MOP decide implantar um gigantesco projeto de

mineração onde vivem oitocentas famílias assentadas somente no raio de abrangência

do projeto. A lei é clara, a empresa tem a licença de pesquisa e o alvará de exploração

do minério. Mas, para a mina funcionar necessita resolver o problema das pessoas que

vivem na área, posseiros, proprietários etc. A empresa não pode passar por cima das

pessoas, abrir o buraco que quiser e expulsar as pessoas. Pelo código de mineração o

projeto só pode ser implantado depois a resolução do problema dos que moram na área.

A MOP saiu comprando lotes da reforma agrária ignorando que não podia fazer negócio

com os assentados e destruir o patrimônio público ali encontrado.

FC – Em que pé se encontra a questão hoje?

BA – Sobre os abusos da empresa a gente ingressou no Ministério Público Federal

(MPF). O MPF decidiu protocolar ação civil pública na justiça federal de Marabá para

requerer que a MOP cessasse os abusos e pagasse aquilo que fosse de direito dos

trabalhadores que tiveram de sair da área. Só que, antes do MPF a Procuradoria do

INCRA de Brasília interpôs a ação. Não avaliamos de forma positiva a ação da

Procuradoria. O correto seria a Procuradoria do INCRA ter procurado o MPF para

combinar uma ação única. Assim teremos uma ação com mais peso. O MPF tem dois

caminhos, ingressar na ação com novas denúncias e documentos ou não ingressar e ficar

como fiscal da lei. A nossa expectativa é que o MPF ingresse como membro da ação.

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174

Isso trará mais legitimidade e melhores condições na defesa dos interesses dos

trabalhadores. A gente necessita entrar com outras ações.

FC – O movimento já possui uma avaliação sobre os reais interesses do grupo do senhor

Daniel Dantas na região?

BA – A gente ainda não tem uma clareza. Mas, há indícios fortes de lavagem de

dinheiro, como já noticiou a imprensa. Mas, isso necessita ser investigado pela justiça.

Outra questão são os interesses do agronegócio a partir das monoculturas, como a soja e

a cana, o dito agronegócio mais moderno. A gente acredita que esse setor deseje

controlar áreas já devastadas pela pecuária. A soja e a cana hoje gozam de bastante

incentivo do governo por conta dos bio-combustíves. Há ainda a valorização das

commodities no mercado internacional. O sul e o sudeste possuem grande interesse

dessa frente. Aqui não há mais floresta. Tudo foi transformado em capim. Os nossos

vizinhos Maranhão e Tocantins estão repletos de soja e eucalipto. A monocultura de

eucalipto já ocupa boa parte das terras do oeste do Maranhão, nos municípios de São

Pedro da Água Branca, Açailândia e Imperatriz. O cultivo já ultrapassou a fronteira.

Hoje as regiões sul e sudeste do Pará já possuem uma imensa área plantada. Assim

como o gado cruzou a fronteira tempos atrás, as monoculturas estão fazendo isso hoje.

FC – O movimento já conhece a quantidade de áreas controladas pelo grupo Santa

Bárbara?

BA – O que a gente conhece é o que a imprensa divulgou, em torno de 500 mil hectares

de terras. Considerando o curto espaço de tempo para a aquisição das áreas, a gente

sugere que há algo de errado. Há muito dinheiro envolvido. Fazendo um paralelo com o

caso da fazenda Cabaceiras, a família Mutran pediu de 30 a 40 milhões para a

desapropriação. As áreas comercializadas pelos Mutran não são inferiores a esses

valores. Tem ainda o gado. Devem ter comprado porteira fechada. Isso tudo consolida a

suspeita de lavagem de dinheiro.

FC – E sobre a questão da legalidade da comercialização da terra, não era apenas uma

concessão do Estado para o extrativismo da castanha?

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175

BA – Isso o Governo Federal e o estado do Pará devem investigar melhor. Não somente

as áreas do grupo Santa Bárbara, mas também de outros casos, como do Grupo Rio

Vermelho e Mutran. A nossa questão fundiária é bem delicada. As terras eram do

Estado e depois foram aforadas e de uma hora outra para outra se tornaram título

definitivos. Isso precisa ser investigado. Há uma margem de terras públicas

incorporadas por esses grupos junto à faixa considerada legal. Uma triagem do Governo

Federal e do estado vai encontrar várias irregularidades.

FC – Isso é o caso da fazenda Peruano dos Mutran ocupada pelo MST?

BA – Quando a Peruano foi ocupada a imprensa alardeou que a fazenda era exemplo de

produtividade. Isso foi um estardalhaço geral. A imprensa defendia a propriedade como

modelo, a mais produtiva do sudeste do Pará. Ao final da investigação realizada,

conclui-se que mais da metade era irregular e foi devastada completamente para a

implantação da pecuária e a reserva florestal acabada. A parte que é considerada legal

não há reserva de floresta legal. A fazenda tinha anda registro de trabalho escravo em

2003. O conceito da propriedade produtiva é meramente ideológico. É uma forma de

encobrir um festival de irregularidades. As áreas submetidas aos critérios previstos na

Constituição Federal não resistem à primeira investigação para se concluir que de

produtivo não tem nada.

FC – Qual a avaliação do movimento com relação à fazenda Maria Bonita? Será

desapropriada?

BA – A expectativa é que o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e o INCRA realizem

a triagem sobre a área. Não resta dúvida que a triagem vai encontrar ali terra pública

incorporada ilegalmente. Aquela área ali está numa localização estratégica, situada na

beira da PA-150. É uma área propícia para a reforma agrária.

FC – E quanto aos atos da Justiça com relação às ações dos movimentos que defendem

a reforma agrária na região?

BA – No caso da justiça estadual ela sempre manteve (juízes e promotores), relação

estreita com o latifúndio local. Sem falar nas policias militar e civil. Aqui sempre foi

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176

comum a expedição de liminares de reintegração de posse, como se diz aqui na região,

nas coxas. Não havia cuidado de averiguar se há posse de boa fé ou não ou crimes de

grilagens. A partir da pressão dos movimentos sociais as varas agrárias foram efetivadas

e o Tribunal de Justiça criou uma comissão de combate à grilagem de terras. A maioria

das varas agrárias têm o cuidado de averiguar a legitimidade dos títulos de terras. Mas,

infelizmente não temos juízes atuando sempre na vara agrária, pois há casos de licenças

e férias. Aí ocorre o caso dos cargos serem ocupados por juízes comuns, que não

conhecem a questão. Quando isso ocorre muitos juízes repetem a mesma linha de

atuação que existia antes das varas agrárias.

FC – Foi o que ocorreu no caso da fazenda Maria Bonita?

BA – Isso. A orientação aqui na região é que antes da decisão da reintegração de posse

deve haver uma audiência prévia e o debate entre o INCRA e o ITERPA. Só que a juíza

expediu a liminar sem cumprir essa etapa, ferindo diretrizes da vara agrária e acordos do

Tribunal de Justiça e a Ouvidoria Agrária audiência a um mês atrás. Outro aspecto é a

atuação da Justiça Federal. Aí entram os interesses dos grandes grupos de mineração,

em particular a Vale. Quando se intensifica a luta dos movimentos sociais por conta da

expansão da mineração, isso tem se transformado em processo e a decisão tem sido dura

contra os movimentos sociais.

FC – E quanto à sua condenação de 2,5 de detenção?

BA – A minha condenação é um caso claro. A pena estabelecida de um a três anos o

código diz que só pode se aproximar do máximo quando o acusado possuir péssimos

antecedentes, responder a outros processos, possuir antecedentes que o desabonem na

sociedade. Não é o meu caso. Não respondo a outro processo, tenho ocupação definida,

residência fixa etc. Mesmo assim o juiz Carlos Haddad arbitrou ao máximo a pena.

Além disso, em condenações estipuladas até quatro anos, cabe a pena alternativa,

benefício que foi negado. Em tese a avaliação é que a intenção da justiça é impor um

retrocesso ao movimento social da região.

FC – E a condenação dos militantes do MST e dos garimpos, segue a mesma linha?

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BA – Ocorreu a condenação de três militantes do MST e dos garimpeiros pela obstrução

da ferrovia de Carajás. Cada um foi condenado a pagar multa de cinco milhões de reais.

No nosso ponto de vista é uma questão absurda ética e moralmente, sem falar no

aspecto jurídico. As multas estabelecidas eram multas individuais para todos os

ocupantes que desobedeceram à ordem da justiça. Os advogados da Vale calcularam

que cerca de 700 pessoas ocuparam a ferrovia. Baseado nos valores calculados pelos

advogados da Vale o juiz decidiu imputar a multa somente aos três dirigentes. A

avaliação que a gente faz é que o sentido desse tipo de ato é criminalizar os movimentos

sociais.

FC – Quantas são as ocupações que aguardam a desapropriação de terras para reforma

agrária na região?

BA – Hoje no sul e no sudeste a gente estima em cem ocupações com uma população

aproximada de 12 mil famílias.

FC – Para finalizar, qual a perspectiva para região ante o cenário de expansão da

produção mineral e do agronegócio?

BA – A avaliação é que as tensões irão continuar. Mas, com uma ligeira mudança. A

expansão dessas frentes muda a relação com o camponês. O latifúndio antes resolvia os

seus interesses com o 38. As frentes de mineração e do agronegócio não agem assim.

Eles não sujam a mão desse jeito. Eles agem no sentido de criminalizar e difamar as

ações do movimento social. Além da impunidade. O processo ocorre através da

mobilização de vários advogados das grandes corporações que movem várias ações

contra os dirigentes. A justiça que nós temos ainda mantém uma visão preconceituosa

contra os movimentos sociais e considera que o poder econômico deve prevalecer. Hoje

temos uma dezena de dirigentes sendo processados. Precisamos acompanhar isso com

muito cuidado sob a pena desses dirigentes serem condenados e terem suas vidas

inviabilizadas. Outro lado é a campanha realizada pelas grandes corporações nas

empresas de comunicação através de reportagens parciais, enquanto os crimes por eles

cometidos são omitidos.

FC – Qual a saída?

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BA – Somar forças. A união entre indígenas, lavradores, quilombolas e trabalhadores

em geral.

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EXTRATIVISMO MINERAL EM JURUTI: PASSIVOS SOCIAIS E

AMBIENTAIS E A PELEJA DOS NATIVOS CONTRA O GRANDE P ROJETO22

Juruti, município cravado a oeste do Pará, com mais de cem anos de existência,

dono de densa floresta repleta de castanheiras, escapou do anonimato por conta de

situação de conflito que envolve a mineradora estadunidense Alcoa, uma das maiores do

mundo do setor de alumínio, num extremo; e populações consideradas tradicionais do

outro.

Desde a década de 1980 a região experimenta o ciclo do extrativismo mineral. A

Mineração Rio do Norte (MRN), empresa do grupo Vale, explora bauxita no município

de Oriximiná. Ela protagonizou um dos maiores acidentes ambientais da Amazônia, ao

depositar por mais de 10 anos rejeitos do processo de mineração no lago do Batata.

A situação de disputa pelo território e os recursos nele existentes impregnam a

aquarela de tensão na Amazônia. Nuances que dialogam com processos gerados em

grandes centros de desenvolvimento que demandam matérias primas, como no caso da

China, bem como os processos de integração regional como a Iniciativa de Integração

da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o Plano de Aceleração do

Crescimento (PAC), da alçada do Governo Federal.

No horizonte, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES) emerge como ponta de lança. No caso do projeto de extração da bauxita, uma

mina de cerca de 700 milhões de toneladas de minério de excelente qualidade, o banco

entra com 500 milhões de reais do total de um bilhão a ser aplicado.

Em fevereiro de 2009 o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) mediou um debate

sobre mais de um milhão de hectares de terras públicas na região. Um dos sujeitos

econômicos e sociais que agitam a disputa pela terra e as riquezas lá existentes é a Vale,

que protocolou junto ao Departamento Nacional de Produção e Mineração (DNPM), 21

pedidos de direito de prospecção e lavra. A peleja envolve ainda comunidades indígenas

e tradicionais, grileiros de terras e madeireiros.

22 Trabalho publicado originalmente do blog Furo e na página da rede www.forumcarajas.org.br em fevereiro de 2009.

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Ajudam a agitar a pororoca de tensões uma agenda de construção de cerca de 10

hidrelétricas e hidrovias. Isso sem falar na monocultura da soja e um porto de

escoamento do grão da também estadunidense Cargil.

No caso da Alcoa em Juruti, as 60 comunidades, cerca de nove mil pessoas,

decidiram pela ocupação de pontos estratégicos no dia 28 de janeiro de 2009, quando

ocorria em Belém, o Fórum Social Mundial. A medida, explica um dos coordenadores

do movimento, foi uma forma de chamar a atenção do mundo e da sociedade sobre as

irregularidades cometidas pela Alcoa no território dos camponeses.

É domingo, 15 de fevereiro de 2009. Chove em Belém. No bairro do Jurunas,

celeiro de manifestações carnavalescas, a vizinhança se agita. Estamos na parte do

bairro próxima à Cidade Velha, onde as trupes de momo costumam se concentrar. Na

casa de religiosas encontramos o dirigente Gerdeonor Pereira, pai de quatro filhos,

camponês do Projeto de Assentamento Extrativista Juruti Velho, que vai contar um

pouco do que ocorre no coração da Amazônia desde 2000.

Furo – O que motivou a manifestação de ribeirinhos afetados pelas obras da mineradora

Alcoa?

Gerdeonor Pereira (GP) – A primeira motivação foi aproveitar a oportunidade de

chamar a atenção do mundo para os problemas sociais e ambientais que estamos

sofrendo por conta da mineração da Alcoa. Era a época do Fórum Social Mundial

(FSM). O mundo estava de olho em nós. A gente queria aproveitar isso e chamar a

atenção da sociedade brasileira. O segundo momento foi pressionar a empresa a assinar

um termo de compromisso que tentamos negociar desde 2005. A empresa não levou a

sério. Ela saiu da mesa de negociação após conseguir a licença prévia (LP).

Furo – Nesse intervalo de tempo, o que os camponeses fizeram?

GP – Nesse meio tempo continuamos a nossa jornada de luta em Santarém, em Belém e

em Brasília com a empresa, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA) e o Ministério Público (MP).

Furo – Qual era a inquietação?

GP – O reconhecimento da comunidade como população tradicional. Temos mais de

século de história. A empresa não reconhece a gente como população tradicional e nem

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181

a nossa Associação de Comunidades Ribeirinhas do Distrito de Juruti Velho

(ACORJUV). A empresa queria que a titulação do INCRA fosse individual. Assim fica

mais fácil de manipular. O nosso pleito é a titulação coletiva.

Furo – Vocês moram no Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) de Juruti Velho?

GP – Isso. O nosso PAE foi criado em 2005. Somos mais de nove mil pessoas.

Furo – Quais os principais danos que a Alcoa provoca na região?

GP – No caso dos ambientais temos o desmatamento de 800 hectares de floresta. Em

nosso PAE são 40 hectares. Centenas de castanheiras foram derrubadas e enterradas.

Perdemos a conta dos igarapés que foram soterrados e as cabeceiras de rios

contaminadas. A Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) que deveria fiscalizar demora

para ir até Juruti. A Alcoa no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) desconsidera

que a gente existe. A gente não se encontra no EIA. São 3.500 famílias de 60

comunidades.

Furo – Como foi a ação de mobilização?

GP – Colocamos 1.500 pessoas no dia 28 de janeiro. Bloqueamos a área da ferrovia,

porto e a rodovia e ficamos na porta da base da empresa. A polícia chegou e jogou gás

de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo na gente. Ficamos nove dias acampados.

Furo – Quantas são as reivindicações e quais as principais?

GP – Temos 15 pontos em nossa pauta. Consideramos os principais a indenização pelos

danos e prejuízos já sofridos. Pagamento pela ocupação do terreno. A Alcoa vai ficar

em nossa terra uns 70 anos. Ela vai ocupar 50 mil hectares. A floresta que existe vai ser

derrubada. Queremos ainda 1,5 % de participação da lavra da bauxita e pagamento da

retirada da água de nosso lago. A Alcoa vai usar cinco mil litros de água por hora do

lago Juruti Velho. Desejamos ainda uma agenda de compromisso que contemple as 60

comunidades que moram no distrito de Juruti Velho.

Furo – Qual o tamanho do PAE Juruti Velho?

GP – 109 mil hectares. Estamos numa frente de atuação chamada Juruti em Ação. Tem

pessoas e organizações do município e gente de fora da região. Movimentos sociais,

como a Via Campesina.

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Furo – E quanto às empresas que estão dentro do PAE?

GP – Queremos que elas se retirem do assentamento. Hoje temos duas. A CNEC

Engenharia, responsável pelos Planos de Controle Ambiental (PCA). São 35 PCA.

Enquanto a gente trabalha para unir as prestadoras de serviço da Alcoa fazem o caminho

oposto. No dia 02 de março o Walmir Ortega, que é o secretário de meio ambiente, vai

debater com a gente os 35 PCA. Até agora a gente não conhece nenhum. Esperamos que

o Ortega compareça. Na semana que foi de negociação (09 a 13 de fevereiro), o

secretário mandou apenas técnicos.

Furo – O que há de compromisso firmado?

GP – Os danos e prejuízos a Alcoa se comprometeu em pagar. Temos um documento

assinado pelo representante da empresa na América Latina, Franklin Feder e os outros

diretores. A Alcoa também assinou o documento sobre a participação no lucro da lavra.

Isso depende da titulação da terra, que deve sair até o dia 15 de abril, conforme

negociação com o INCRA. Pelejamos pelo reconhecimento de nossas terras há 28 anos.

Furo – Nessa semana de negociação quem estava à mesa com vocês?

GP – A empresa, o INCRA, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA), os Ministérios

Públicos Federal e Estadual e o André Farias, secretário de estado.

Furo – Qual era a pauta com os MP?

GP – Queríamos saber das audiências realizadas nas comunidades e informação sobre a

ação movida contra a Alcoa.

Furo – E com o órgão fundiário do Estado?

GP – Com o ITERPA a nossa agenda tem questões com duas glebas Curumucuri e

Mumuru.

Furo – Quais são as reinvidicações para o Governo do Estado?

GP – Questões com o meio ambiente e investimentos na saúde, educação, moradia e

eletricidade. Onde moramos não há energia elétrica. Temos energia somente de 18 da

tarde às 23 horas. É na base do gerador que funciona com diesel. A prefeitura é que

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abastece. O secretário de estado André Farias assinou documento garantido que antes do

ano acabar a gente tem energia elétrica.

Furo – Já existe algum projeto de energia?

GP – Temos um projeto firmado no valor de seis milhões entre INCRA, prefeitura e a

nossa associação para a construção de uma micro-central de energia. Isso foi

documentado e filmado. A imprensa aqui não tava falando nada. Começou somente

depois que furamos o bloqueio da região.

Furo – Qual é a agenda com a Secretaria de Meio Ambiente?

GP – Primeiro que o secretário não foi falar com a gente. Ele mandou uma equipe

técnica. Nós não aceitamos. Há coisas em nossa agenda que o técnico não pode decidir.

Somente o secretário. Precisamos rever os PCA. Necessitamos de um marco legal sobre

a retirada da água do nosso lago.

Furo – Como vocês avaliam o processo de luta?

GP – Avançamos com algumas coisas. Como a titulação da terra. O INCRA tem até o

dia 15 de abril para resolver o assunto. Com a Alcoa avançamos com relação ao

pagamento dos danos e prejuízos causados. Mas, com a empresa a gente fica com o pé

atrás. Na empresa é delicado confiar.

Furo – A empresa não costuma cumprir o que assina?

GP – Nos Projetos de Assentamento (PA) Socó I e Socó II a Alcoa assinou acordos e

não cumpriu. É nesses PA que passa a ferrovia. A empresa prometeu a construção de

desvios e passarelas e não fez nada. Não fez escola e nem as estradas. A Alcoa fez uma

agenda de compromisso com a comunidade dos PA e não cumpriu.

Furo – Como você avalia a empresa nesse processo?

GP – Na verdade ela não queria pagar nada. A alegação dos advogados da empresa é

que a mineração é um processo devastador e que não tem que indenizar os moradores.

Estamos exigindo o que o código de mineração nos garante. Mesmo que ela pague os

nossos prejuízos, esse dinheiro não vai cobrir a destruição de 50 mil hectares de floresta

nativa.

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Furo – O que falta para a empresa iniciar a lavra?

GP – A licença de operação. O processo para a lavra exige três etapas. A licença prévia,

licença de instalação e a de operação. A licença de operação está condicionada ao

pagamento das indenizações.

Furo – Como é a fiscalização?

GP – Temos um problema sério. Os técnicos da SEMA quando vão para o campo ficam

nas estruturas da Alcoa. Como vou fiscalizar um projeto e fico dentro da estrutura da

empresa? Não conhecemos os PCA. Eles ficaram de entregar os documentos até o dia

22 de fevereiro. E ficamos de discutir tudo no dia 02 de março com o secretário Ortega.

Furo – Como é ler o EIA-RIMA?

GP – É complicado. É muito grande e tem muita informação técnica. Mas, a gente

entendeu quando eles disseram que a gente não existe e nem a floresta. E que não vai

haver alteração em nossos rios e igarapés. As águas dos igarapés Fifi, Maranhão e Juruti

já estão sendo afetadas. Essas informações eles omitem. A empresa pisou na lei

brasileira. A gente compreende que seria necessário o EIA-RIMA para o porto, outro

para a rodovia e outro para a ferrovia.

Furo – Quem vai avaliar os danos e prejuízos da Alcoa?

GP – Uma empresa que o INCRA vai indicar.

Furo – Além da Alcoa, tem mais gente pressionando sobre os recursos naturais?

GP – Os madeireiros. Ano passado denunciamos a retirada ilegal de seis balsas de

madeira.

Furo – E no boletim de ocorrência feito pela Alcoa contra a ação de vocês, quais foram

as acusações?

GP – A empresa denunciou que a gente tava fazendo formação de quadrilha e invasão

da propriedade privada. Os advogados da Alcoa indicaram o meu nome, o nome da irmã

Brunildes e da nossa advogada Regiane e do companheiro Antonio Marcos. A gente

entende que quem invadiu foi a Alcoa. Isso deixa a gente mais indignado. Sou

agricultor familiar, pai de quatro filhos e nunca tive uma passagem na polícia. Depois

eles retiraram a queixa. Fez parte da negociação.

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Furo – E a imprensa local, como funciona?

GP – E difícil de falar dos danos provocados pela empresa.

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MARANHÃO - AS VÍSCERAS DO SERTÃO 23

O Maranhão é o principal estado exportador de mão-de-obra escrava. No sul do

estado grandes corporações como Bunge e Cargil hegemonizam o cultivo da

monocultura da soja. A mesma região registra vários casos de trabalho escravo e

imensas fazendas controladas por produtores oriundos do Sul do país em parceria com a

família Sarney. Açailândia e Balsas estão entre os municípios que mais desmatam no

estado, informam os dados do Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis

(IBAMA). Respectivamente os municípios estão no oeste e sul do estado, região de pré-

Amazônia, onde incide o bioma cerrado.

O primeiro município abriga um polo de produção de ferro-gusa; já o segundo

um polo de produção de soja. Ambos os empreendimentos gozaram de generosos

incentivos fiscais do governo para a instalação.

No mundo erguido pelos projetos, intensivos no uso dos recursos naturais, o

rastro de passivos serpenteia na paisagem marcada pelo bioma cerrado, onde se

localizam várias nascentes de rios, germinam um universo marcado pela degradação

ambiental, trabalho escravo e prostituição de crianças.

Antonio Gomes de Moraes, conhecido como “Criolo”, é militante da Comissão

Pastoral da Terra (CPT) de Balsas, sul do Maranhão e integra a frente de defesa do

bioma cerrado na região. Ele pinça um pouco do vasto mundo do sertão do Maranhão, o

estado que exporta mais de 40% de toda mão-de-obra escrava liberta em todo o país.

Furo – Qual a área de atuação da diocese?

Antonio Gomes (AG) – Temos aqui na diocese de Balsas 18 municípios (Balsas,

Mirador, Alto Parnaíba, Riachão, Feira Nova, Fortaleza dos Nogueiras, São Raimundo

das Mangabeiras, Loreto, Benedito Leite, São Domingos do Azeitão, Nova Iorque,

Sucupira do Norte, Fortaleza dos Nogueiras, São Félix de Balsas, Nova Colina, Tasso

Fragoso, Sambaíba e Pastos Bons). Mas, o total abrange cerca de 28 cidades, limitando

com os estados do Tocantins e Piauí, para onde se alastra a fronteira agrícola da soja.

Furo – Como se configura o cenário aqui na região sul do Maranhão?

23 Trabalho publicado originalmente em dezembro de 2008 no site da rede www.forumcarajas.org.br

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AG – Os grandes projetos aqui na região, baseados na monocultura da soja, cana, e as

carvoarias configuram como os grandes desestabilizadores do mundo rural da região. A

história começou aqui no fim de 1970, com a presença dos sulistas para o cultivo da

soja. Depois vieram os paulistas e por último a turma do Mato Grosso. Isso se deu

graças aos incentivos do governo.

Furo – Quais as empresas que estão aqui na região de Balsas?

AG – As maiores aqui são a Bunge e a Cargil.

Furo – Onde se concentra a monocultura de soja?

AG – Balsas, Tasso Fragoso e Alto Parnaíba são os municípios com maior incidência.

Para se ter uma ideia somente a fazenda Agroserra, na fronteira dos municípios de São

Raimundo das Mangabeiras outra parte em Fortaleza dos Nogueiras, controla 230 mil

hectares. A propriedade é da família Ticianeli, de origem paranaense. São três irmãos.

Soubemos que a família Sarney possui ações no grupo. Creio em que em 2005 cerca de

1.700 trabalhadores foram flagrados em condições degradantes de trabalho na produção

da cana.

Furo – Além da Agroserra, que outras fazendas possuem esse gigantismo?

AG – Carolina do Norte, Parnaíba, Nova Holanda, de propriedade da família Sarney.

No momento são as que lembro, mas tem mais.

Furo – Como fica o rio Balsas e a vegetação local?

AG – Outro dia fizemos umas imagens áreas. O rio Balsas se encontra totalmente

degradado e a sua mata ciliar em destroços. O desmatamento aqui é o mais perverso

possível. A prática é do correntão, que consiste em amarrar uma grande corrente em

dois tratores para a derrubada da mata nativa, no caso aqui, o cerrado.

Furo – E como fica a madeira?

AG – A madeira é utilizada para a produção de carvão vegetal que alimenta as empresas

de gusa.

Furo – A produção de carvão é indicada como fonte de trabalho escravo, aqui também é

assim?

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AG – Aqui temos trabalho escravo nas fazendas de grão e cana e nas carvoarias. Em

2004 foram libertados 28 trabalhadores em São Raimundo das Mangabeiras na

produção de carvão vegetal, em 2005 foram libertados mais 20 em Tasso Fragoso, em

fazenda de soja. Em outubro foram soltos no município de Balsas em fazenda de soja

mulheres e crianças.

Furo – Na questão além da destruição da mata ciliar e do cerrado, que outro passivo a

monocultura da soja provoca?

AG – Temos a poluição. A monocultura de soja é tratada através de aviões. E na

questão social registram-se a expropriação camponesa. O Maranhão é hoje o principal

exportador de mão-de-obra escrava. Muito se deve às monoculturas que expulsam as

famílias camponesas. Para se ter uma ideia da tragédia do trabalho no estado, o

Maranhão responde com 40% de toda mão de obra escrava libertada em todo o país.

Isso se configura como um desastre social.

Furo – Qual o balanço que o senhor faz da soja na região?

AG – Venderam que Balsas ia ser o melhor lugar do mundo. Balsas é um bom lugar

para poucas pessoas, somente para os que possuem dinheiro. Para a gente fica o deserto,

a terra e a água poluída pelo veneno lançado pelos aviões.

Furo - Já ocorreu algum caso de óbito de animais ou pessoas por contaminação?

AG – Tivemos o caso do lugar do Vão da Salina, aqui em Balsas, o registro de óbito de

animais. Em Loreto também tivemos registros de dois óbitos de crianças. O caso

ocorreu na comunidade conhecida como Brejão, um projeto chamado Serra Vermelha,

do ex-ministro da agricultura, Roberto Rodrigues. Em uma semana todas as famílias da

comunidade tiveram o mesmo problema de saúde: vômito e diarreia. No fim da semana

as duas crianças vieram a óbito no mesmo dia.

Furo – O que dizia o laudo médico?

AG – Os médicos se recusaram a informar a causa mortis. Sabe-se ainda da morte de

animais no mesmo perímetro.

Furo – O senhor faz ideia da quantidade de veneno usado?

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AG – Em um hectare de soja são colocados 509 quilos de produtos químicos durante

todo o cultivo.

Furo – Como tem sido a ação dos movimentos sociais da região com relação a esses

passivos sociais e ambientais?

AG – Nos anos de 1980 era mais atuante. Já nos anos de 1990, quando Fernando

Henrique assume o governo, a gente avalia que engessou o movimento. Hoje os

sindicatos estão bitolados em encaminhar aposentadorias rurais. É a burocratização do

movimento e a perda do espírito de luta.

Furo – Como é a ação da CPT na região?

AG – A nossa equipe é muito pequena para a dimensão física e dos problemas da

região. A gente se empenha em tentar formar a militância.

Furo – Tem havido ocupações na região?

AG – Nos anos de 2000 tem-se registro de algumas ocupações que esperam pela

efetivação de projetos de assentamentos rurais. Isso de 2002 para cá. São os casos da

fazenda Taboão, no município de São Raimundo das Mangabeiras, fazenda Sucupira e

na fazenda Ponteira, ambas no município de Riachão. São mais de 200 famílias que

estão na terra. Ainda pressionamos o INCRA para a efetivação dos projetos de

assentamento.

Furo – Falando em INCRA, como funciona aqui na região?

AG – Em assembleia dos movimentos sociais aqui foi pedido o afastamento de quatro

funcionários que estavam em conluio com fazendeiros. Aqui a instituição é muito lenta.

Furo – Queria voltar ao assunto sobre trabalho escravo. E quanto aos acordos coletivos

em que os sindicatos de trabalhadores rurais (STR) integram o grupo que trata do

assunto, como se desenvolve?

AG – Primeiro que esses acordos coletivos de trabalho em sua maioria tem sido mero

faz-de-conta para mascarar o trabalho escravo. Às vezes os STR funcionam mais como

um desagregador dos trabalhadores. Voltemos ao caso da Agroserra. Em dois casos

houve manifestações dos trabalhadores contra a empresa. A fazenda produz soja e cana.

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Furo – Quando a monocultura da cana chegou?

AG – A Agroserra que trouxe, tem 21 mil hectares cultivados, onde 16 mil são

irrigados. É a morte do rio Neri. A empresa do outro lado detona as cabeceiras do rio

Itapecuru. O lugar fica ali na Reserva Estadual do Mirador, uma ilha cercada de soja e

agora cana por todos os lados. Mais de 500 famílias estão sendo retiradas da reserva.

Quando da criação do parque na década de 1980, o governo se manifestou pela garantia

do reassentamento das famílias, que nunca ocorreu.