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POSSIBILIDADES E LIMITES DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTENCIA SOCIAL EM UM
MUNICIPIO DE PEQUENO PORTE I
Irma Martins Moroni da Silveira
Resumo
Esta investigação foi realizada em um município de pequeno porte l, é um recorte da pesquisa ”AVALIANDO A IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSSITENCIA SOCIAL NA REGIÃO NORTE E NORDESTE: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil”. Recursos: reunião com a equipe, grupos focais, entrevistas e observações. O estudo foi centrado no CRAS, referência na comunidade. Causou-nos impacto a não identificação do CRAS como equipamento do SUAS. Palavras-chave: Centro de Referência da Assistência Social;
implementação de projetos e serviços socioassistenciais; percepção da política de assistência social pelos usuários. Abstract
This investigation was conducted in a small citiy, it is a clipping of "THE EVALUATION OF THE IMPLEMENTATION OF THE SOCIAL ASSSITENCY SYSTEM in the North and Northeast region: The significance of this sistem to fight poverty in the poorest regions of Brazil". Ressources used: meeting, focus groups with advisers, technicians,and users of the services of CRAS, interviews and observations;lectures. The study was focused on CRAS for being a most important equipment, however users don’t identify it as being part of the Nacional System of The Policy of Assistance. Keywords: Centre of Reference of Social Assistance;
implementation of social projects and services; perception of welfare policy by users.
1 INTRODUÇÃO
O artigo que apresentamos nesta mesa intitulada “Os Caminhos da Assistência
Social no Ceará: dez anos do Sistema Único de Assistência Social é um recorte da pesquisa
“Avaliando a Implementação do Sistema Único de Assistência Social na Região Norte e
Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento da pobreza nas regiões mais pobres
do Brasil.
O objetivo é apresentar resultados parciais do estudo/pesquisa realizado no
Município de Pires Ferreira. A pesquisa de campo ocorreu em abril de 2016 constando de
reunião com técnicos e gestor da Secretaria Municipal do Trabalho e Assistência Social,
dois grupos focais com conselheiros e técnicos e outro com usuários dos serviços prestados
no CRAS; observações durante a dinâmica dos grupos de crianças e adolescentes e do
funcionamento do CRAS; e entrevistas com o secretário municipal e a técnica de gestão.
Considerando o recorte para este artigo, nossa pretensão é abordar o significado social do
CRAS neste município de porte l, em uma tentativa de aproximar a dinâmica do mesmo para
o leitor. Para isso, o artigo será intercalado com as “falas” dos participantes dos grupos e
entrevistados.
2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O MUNICIPIO DE PIRES FERREIRA
Pires Ferreira instituiu-se município em 1987. Sua população é estimada em
cerca de dez mil e quinhentos habitantes, distando de Fortaleza, capital do estado do Ceará
312 km pela BR 020-CE. Seu clima é úmido tropical oscilando entre 24 e 30 graus
centigrados. Cerca de 30% da população é extremamente pobre, e, desses, 68,5% vivem na
zona rural. A pobreza é mais acentuada nas faixas etárias de 6 a 14 anos, 18 a 39 anos e
40 a 59 anos (IBGE, 2010). Mais de 50% de seus habitantes necessitam de vigilância e
assistência social contínua. A seca, o desemprego e a falta de renda acarretam uma intensa
emigração para a região sudeste do Brasil.
O PIB per capita, registrado em 2011, era de R$ 4.211,00. A agricultura ocupa
apenas 9,9% da população e não é voltada para a comercialização. A administração pública
emprega 480 funcionários (Anuário do Ceará, 2014). O analfabetismo atinge 28,9% de
pessoas de 10 anos ou mais. A rede municipal é constituída por 20 escolas de ensino
fundamental e uma escola de nível médio, pertencente ao estado.
Em relação à cultura, a principal manifestação do município ocorre no mês de
maio: “Pires Ferreira Festeiro”. É o aniversário da emancipação política com desfiles,
festejos religiosos, eventos esportivos, feiras culturais e artesanais e eleição da rainha. A
maioria da população Pires Ferreirense professa a fé católica: 9.327. Outras religiões
identificadas são Assembleia de Deus e Testemunhas de Jeová.
A saúde pública do município conta com 05 unidades básicas do Sistema Único
de Saúde (SUS) dispondo todas de um carro para apoio aos distritos. O município tem uma
unidade de emergência e urgência para curativos, pequenas cirurgias, medicação de
emergência e uma ambulância para transporte de pacientes para atendimentos mais graves
em municípios de maior porte.
A assistência social é organizada através da Secretaria do Trabalho e
Assistência Social- SETAS, criada pela lei municipal 161 de 2002; possui um único Centro
de Referência da Assistência Social (CRAS) inaugurado e mantido, inicialmente, com
recursos municipais, e, posteriormente, cofinanciado pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) e com recursos, também, do governo do Ceará para a
concessão de benefícios eventuais. As ações são orientadas pelo Plano Municipal de
Assistência Social aprovado pelo Conselho Municipal de Assistência Social. De acordo com
informações da Secretaria Estadual do Trabalho e Assistência Social do Estado, o município
recebeu através do Fundo Nacional de Assistência Social, em 2016, a importância de
270.561,64; o estado transferiu 31.500,00 destinado aos benefícios eventuais; Informações
obtidas na SETAS do município, esta destinou à assistência social a mesma quantia do
FNAS para a assistência social.
3 COMPREENDENDO OS CAMINHOS DA POLÍTICA DE ASSISTENCIA SOCIAL
NO MUNICÍPIO
A história da política de assistência social está inscrita a partir da criação da
Secretaria do Trabalho e Assistência Social e do Conselho Municipal de Assistência Social
de Pires Ferreira, por meio das leis municipais 161 e 162, ambas no ano de 2002.
A trajetória da assistência até o ano de 2005, quando da instalação da
habilitação em gestão básica, é permeada por programas, projetos e serviços que
pretendiam combater questões relacionadas a criança, aos deficientes e idosos. Entre eles,
mencionamos o Portal Alvorada, os serviços de Cadastro Único, Agente Jovem, Cadastro
dos Artesãos, Cadastro dos Pescadores, Seguro Safra, e o Cartão Alimentação (PCA). Em
2003, no ultimo trimestre, todos os programas de transferência de renda tais como o Bolsa
Escola, o Auxilio Gás, o Bolsa Renda e o Cartão Alimentação foram unificados dando lugar
ao Bolsa Família, que passou a receber o controle social através do Conselho Municipal de
Assistência Social em 2006 ( SETAS, Pires Ferreira,2012).
O CRAS iniciou seu trabalho em prédio alugado (em 2006), e logo passa a
marcar, significativamente, a política de assistência social do município. Essa unidade
pública foi mantida, inicialmente, com recursos próprios do município ressignificando os
projetos que vinham sendo executados e realizando a busca ativa para implantação do
projeto da Família Cidadã, formação de grupos com deficientes com o objetivo de aquisição
do direito ao Benefício da Prestação Continuada (BPC).
Ao longo dessa trajetória há um “crescendum no modus operandi” com projetos
de interesse da população como oficinas para grupos jovens, capacitação de multiplicadores
do projeto Amor a Vida, início de um trabalho com idosos chamado “Jovens da Terceira
Idade”, encontros com pais dos adolescentes, oferta de cursos profissionalizantes, gincanas
culturais, participação dos usuários em feiras artesanais, projeto de capacitação da equipe
da SETAS e do CRAS sobre “Ética no Atendimento” e outros; projeto Coral Infantil,
participação de jovens em festas do município; elaboração e desenvolvimento de um plano
de ação para o cofinanciamento do estado para os benefícios eventuais em 2009.
Estudando a trajetória da assistência social através das publicações, dos
relatórios de gestão e outros documentos do município; além das observações, visitas a
SETAS e CRAS, em reuniões com técnicos, conselheiros e usuários podemos constatar que
o CRAS adquiriu um significado social no município. É, pois, essa afirmativa que nos moveu
a escolher o CRAS como alvo principal deste artigo.
4 O SIGNIFICADO DO CRAS EM PIRES FERREIRA
As atividades do CRAS tiveram início 2006 funcionando em prédio alugado,
passando a sede própria a partir de 2009, tendo sido liberado recursos da união e do estado
para financiamento relativos ao funcionamento dos serviços e aos benefícios eventuais.
Essa unidade publica de proteção social básica desempenha o papel mais
importante da assistência social no município. É o espaço mais conhecido da população
mais pobre, das pessoas inscritas no CADUNICO e no Bolsa Família. Eis os registros de
técnicos e conselheiros quando da realização dos grupos focais:
“A visibilidade do CRAS vem crescendo no município. A população conhece “o CRAS de cima (t rata-se da SETAS) e o CRAS de baixo”. Como o atual secretário sempre participou dos eventos sociais, sendo uma pessoa ligada
aos movimentos sociais já foi identificado como o CRAS. Tem um senhor e uma senhora que acharam que ele era o CRAS”. (TÉCNICA) “É importante mencionar que a Assistência Social/CRAS cultivou um nome;
podemos entrar em qualquer reunião nas secretarias. (...) A gente obedece alguns rigores da hierarquia, foi o respeito que construímos junto as demais secretarias. (TÉCNICA)
“O CRAS é feminino, pois raramente os companheiros frequentam este espaço. Meu marido é só de casa para a rua”. (USUÁRIA) “Aqui a gente é bem assistido”. (USUÁRIA)
“Esse trabalho renova a gente, antes ficava em casa sentada num canto”. (USUÁRIA)
Mesmo considerando muito bom o trabalho do CRAS, algumas senhoras/mães
aspiram pela maior oferta de cursos, pois “na condição de pobres não podem pagar para
mandar os filhos para outras cidades”. (usuária) Essa fala denota a preocupação para
garantir uma formação profissional aos filhos, dificultada diante das condições financeiras
precárias; e, implícito, está o desejo de vê-los com uma profissão que possa permitir-lhes
um emprego melhor remunerado, para uma vida melhor. Essa preocupação com a
profissionalização é decorrente, também, da mobilidade de seus filhos ao se obrigar a
distanciar-se para outras cidades, principalmente, Rio de Janeiro e São Paulo.
Outros depoimentos garantem a afirmação de que o CRAS é respeitado e goza
de visibilidade no munícipio:
O CRAS é o centro porque ele movimenta tudo, todas as coisas, inclusive a gente tá na segunda gestão do Conselho Tutelar, mas esse recorre sempre
ao CRAS. Tudo começa e termina no CRAS!” (TÉCNICA) (grifos nossos) “Este espaço aqui tem tanta história, se a gente pudesse captar o que esta sala já construiu no munic ípio geraria lucro, com toda certeza”.
(CONSELHEIRA)
A dinâmica diária do CRAS ocorre com esforço e dedicação dos trabalhadores é
o espaço mais solicitado da assistência social, no município; os profissionais se empenham
em alcançar os usuários mais vulneráveis aos riscos sociais; eis algumas considerações dos
participantes:
O espaço é maravilhoso, mas a gente tem tanto para cumprir, atingir as várias faixas etárias que seria melhor ter outro espaço coletivo. (TÉCNICA) Este espaço (CRAS) é pau para toda obra e atende a 25% da população da
zona urbana. (TÉCNICA) (...) foram minhas amigas que disseram lá é bom pra gente não ficar parada; me aceitaram muito bem, eu sei que eu adoro. (USUÁRIA)
(...) no meu caso, foi o orientador (do CRAS) que me chamou, aí eu vim conhecer o CRAS. (USUÁRIA) A assistente Social procurou nós nas nossas casas (busca ativa), ela explicou um bocado de coisas sobre o bolsa família, sobre os meninos não
faltar no colégio, aí eu vim para cá e amo. (USUÁRIA)
Os técnicos e conselheiros apontam que a falta de renda e outras
vulnerabilidades sociais induzem a uma maior oferta e utilização dos serviços:
“Então a gente prioriza o SISC (Sistema de Informação do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo), inclusive nos obriga a priorizar
quem recebe o Bolsa Família – 85% a 90% são beneficiários do SUAS”.
O trabalho social da equipe junto às famílias é desenvolvido adotando a seguinte
dinâmica: A equipe se orienta pelo planejamento anual a partir de uma avaliação do ano
anterior, onde toda a equipe opina:
Às vezes fazemos um planejamento participativo, envolvendo os usuários e
os assistentes sociais, como agora no final da cartografia vai ter a participação dos usuários do ‘nosso time’ – eles estão pesquisando o território para apresentar no CRAS. (TÉCNICA DO CRAS)
A cartografia a que se refere a técnica é o estudo/mapeamento das zonas de
maior vulnerabilidade do município para informar melhor os profissionais do CRAS em seu
trabalho com a população desassistida. Esses jovens, sob a orientação dos profissionais,
estão participando, ativamente, do estudo das comunidades visando ampliar o
conhecimento da realidade social do município para engajar famílias e indivíduos nos
projetos e serviços desenvolvidos no CRAS. Os resultados serão apresentados à
comunidade.
São desenvolvidos projetos peculiares ao CRAS, e, também atividades que
buscam incentivar a população à participação.
4.1 Projetos/Serviços desenvolvidos no CRAS
A leitura sistemática dos documentos da SETAS e as falas dos segmentos
participantes dos grupos focais permitem identificar projetos e serviços que conferem,
atualmente, uma maior visibilidade ao CRAS, na condição de um equipamento por
excelência da proteção social básica da Política de Assistência Social, no município de Pires
Ferreira:
- Coral Infantil Príncipes do Sertão, vinculado ao Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos (SCFV) aglutinando crianças de 06 a 15 anos; congrega
cerca de 25 crianças e funciona durante a tarde, após as aulas na escola municipal.
Observamos que havia uma criança hiperativa sendo acompanhada por uma
orientadora que conseguiu que o menino alcançasse o objetivo proposto para o dia;
observamos, também, que uma criança com deficiência física participou, igualmente,
com atenção. De fato, pareceu-nos um espaço sócio educativo que pretende lidar
com as diferenças. Assistimos a aula de educação musical quando conferimos a
desenvoltura das crianças e a habilidade do orientador musical em fazer com que
todas cantassem inteiramente concentradas. Esse coral participa em eventos no
município. Já fizeram uma apresentação na TV Diários em 2015.
- Nosso Time (inserido no SCFV) atinge crianças de 9 a 17 anos; este grupo já
alcançou o título de campeão Pires Ferreirense, participa de gincanas e de
mobilizações sociais promovidas pelo CRAS; o trabalho ocorre na sede e nos
distritos de Otavilândia, Donato e Delmiro Gouveia;
- Terceira Idade (SCFV). Este grupo participa, semanalmente, de reuniões
socioeducativas, e se apresentam em datas comemorativas; é um grupo histórico,
existe há muitos anos, desde antes da PNAS; os participantes deixam transparecer
que se sentem “meio donos” do CRAS...é um grupo alegre e reivindicador;
- Vida Ativa, na melhor idade (SCFV) constituído por idosos objetivando a realização
de atividades físicas, sendo mediado por uma Terapeuta Ocupacional; os idosos que
participaram do grupo focal afirmaram se sentir bem melhores quanto a qualidade de
vida, na sua condição de sujeitos ativos;
- Pintando o Sete, também vinculado ao SCFV é outro grupo infantil que agrega
crianças de 3 a 10 anos de idade; é acompanhado por uma educadora física e três
orientadoras sociais para desenvolvimento de atividades lúdicas, motoras e
educativas. É focado no desenvolvimento físico e social das crianças;
- Oferta de Cursos do Pronatec: agricultura orgânica e apicultura ofertados em 2015;
a expectativa de técnicos e usuários é que outros cursos venham para o município, e
que atendam às demandas locais, incluindo as reivindicações dos Distritos. A
divulgação ocorre em feiras, escolas com levantamento de interesses; outros cursos
foram ofertados por outros órgãos/instituições;
- Grupo PAIF é formado por famílias em situação de extrema pobreza, mulheres
grávidas e famílias em descumprimento das condicionalidades do Programa Bolsa
Família. A acolhida ocorre por demanda espontânea, busca ativa e
encaminhamentos; as famílias recebem acompanhamento familiar; visitas
domiciliares; orientações e encaminhamentos. A prioridade é das famílias do PBF e
do BPC e todas são cadastras no CADUNICO e tem um plano de acompanhamento;
a assistente social é a técnica que orienta e acompanha os três grupos com
programações especificas.
Inserimos aqui as palavras do secretário municipal em relação ao PAIF. O gestor
da assistência social considera prioridade o Programa de Atenção Integral à Família – PAIF.
Assim se reportou o Secretario:
“...é o olhar maior que a gente tem hoje na política de assistência é o Paif; é o serviço realizado na proteção social básica; é o serviço mais bem
estruturado, com cofinanciamento dos três entes; é o olhar principal da gestão municipal...todas as realizações do CRAS têm a perspectiva da família. É importante trabalhar a família como um todo, conhecer a
realidade desse grupo e disponibilizar os serviços para os membros pais, mães e filhos, sem esquecer as outras ampliações de famílias.”
- Gravidez Feliz (SCFV) é uma atividade destinada às mães; são realizadas oficinas
socioeducativas versando sobre temáticas específicas como aleitamento materno,
planejamento familiar; ECA, desenvolvimento infantil, entre outras. Ao fim de um
período há a entrega de um kit natalidade, consignados como benefício eventual;
- Atendimentos Individuais realizados pelas técnicas do CRAS: acolhimento,
integração dos usuários aos grupos; orientações às famílias e encaminhamentos;
- Atendimentos em grupos: reuniões com os beneficiados do PBF em
descumprimento de condicionalidades; reuniões com os beneficiários do BPC;
oficinas com temas específicos como direitos das crianças e adolescentes, direitos
das mulheres; orientação aos beneficiários do CRAS;
- Visitas domiciliares visando configurar as áreas e situações de vulnerabilidade e,
também, de acompanhamento das famílias;
- Emissão e renovação de carteira do idoso; (encaminhamento pelo CRAS e emitidas
pela SETAS);
- Concessões de benefícios eventuais: kit para as grávidas e concessão de urnas
funerárias; cestas básicas; passagens; satisfação de necessidades especiais e
emergenciais;
- Capacitação promovida pelos técnicos do CRAS. A equipe do CRAS promoveu a
capacitação para os novos entrevistadores do Bolsa Família e, também, de
funcionários para a utilização de instrumentais de encaminhamento; ainda, foram
capacitados os profissionais envolvidos com o atendimento de crianças de 0 a 6
anos, visando a padronização da abordagem a ser utilizada desde a recepção até as
atividades realizadas pelos orientadores; a equipe do Nosso Time, também, foi
treinada para a abordagem a ser utilizada em todos os coletivos no que se refere a
técnicas esportivas, orientação social e planejamento de ações.
Consideramos importante as alusões e referências de conselheiros, técnicos e
usuários sobre o trabalho do CRAS permitindo avaliar seu significado nesse município:
“É a união do grupo, todo mundo se ajuda em função do bem comum, isso
facilita o serviço. Ele acontece através dessa interação, dessa proximidade que a gente tem com o gestor (o Secretário municipal) e a prefeita” (TÉCNICA)
“O reconhecimento do nosso trabalho pela prefeita: salários em dia; ter acabado com a rotatividade de técnicos – aqui, todo mundo é antigo, o mais recente está há dois anos.” (TÉCNICA)
“Todos querem atingir os objetivos.” (TÉCNICA) “As datas comemorativas todos participam, como o coral infantil.” (TÉCNICA)
“Todos se auxiliam no CRAS.” (CONSELHEIRA) “No CRAS a gente participa e a gente expõe o que tá sentindo, o que precisa e o que acontece com a gente.” (USUÁRIA)
“Pra mim está bom demais, se melhorar estraga. Eu vejo as crianças todas felizes aqui, tá bom. A gente tem toda assistência aqui dentro.” (USUÁRIA)
4.2 Serviços de Convivência
As situações vivenciadas pelos usuários envolvem a negligência familiar e pessoa,
violência, trabalho infantil. Os técnicos fazem atividades abertas à comunidade para que a
população tenha conhecimento, atraindo aqueles/as que precisam engajar-se nos serviços
de convivência. As metas previstas para esse seviço vem sendo superadas ano a ano.
O trabalho do CRAS envolve também
“dança e teatro. O CRAS ganhou um tesouro, “caiu” em Pires Ferreira, um
artista, com qualidades; faz atividades com as crianças – teatro, desperta para a musicalidade.” (TÉCNICA) “(...) trabalho com a parte esportiva, traz jovens para o centro de
convivência e a orientação são os profissionais do CRAS que fazem.” (TÉCNICA) “(...) Os orientadores têm sensibilidade, gostam de trabalhar com crianças,
adolescentes, idosos e acabam dando visibilidade à Política de Assistência Social.” (TÉCNICA) (grifos nossos)
Esse trabalho dá vida ao CRAS, nos dando a impressão de uma satisfação dos
participantes e de seus pais que muitas vezes vão buscar seus filhos ou estão participando
de outros serviços. A relação entre a equipe do CRAS e os usuários denota ser
extremamente acolhedora, todos se conhecem. Observamos que alguns integrantes dos
grupos tem laços familiares com funcionários do município; entretanto, a cidade não oferece
esses espaços de participação (teatro, música, grupos esportivos entre outros) e o CRAS
representa muito para todos.
A técnica de gestão trabalha em outros municípios, e, fez a seguinte referência,
deveras significativa, para trabalho de assistência em um município de pequeno porte, onde
as relações de barganha e de troca de favores são recorrentes. Afirma:
A assistência social aqui tem mais resultados que em outros municípios.
Nesses, o assistencialismo e o coronelismo ainda perduram. Aqui em Pires Ferreira tem mais visibilidade, mas ainda tem muito a andar. Podemos, no entanto, avaliar que a visibilidade é o CRAS, porém não significa que todos
compreendam que o CRAS é política de Assistência Social. (Grifos nossos)
Em continuação à sua fala, a técnica indica o que precisa ser feito:
“A capacitação é necessária, precisamos unificar a compreensão do SUAS. A equipe básica conhece bem, mas outros profissionais que trabalham no Bolsa Família precisam de capacitação para não passar o programa de
forma assistencialista. (...) aí o Bolsa Família tem mais visibilidade que o SUAS, do que o CRAS. (...) o CRAS ganhou muito; hoje é uma referência aqui. Mas o SUAS não tem essa visibilidade . A gente cobra
isso quando se avalia. As pessoas não sabem que existe uma coisa maior que o CRAS. O SUAS tem que ser mais discutido, precisa ser mais visto. Se não fizermos a divulgação dele é nossa falta. Nem a gestão maior
conhece o SUAS, é falta nossa”. (Grifos nossos)
Embora se constate um desempenho promissor, o CRAS não consegue
alcançar um trabalho sistemático nos Distritos: são dificuldades objetivas como distancia,
transporte e pessoal para continuidade de projetos. Almeja-se um CRAS volante com uma
equipe preparada para estender mais serviços socioassistenciais tão necessários na zona
rural, onde se identifica uma pobreza extrema.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devido a obediência as regras quanto ao número de páginas deixamos de
abordar algumas questões importantes, aqui mencionadas, apenas, para reflexões. Uma
delas diz respeito a percepção da PNAS/SUAS por parte dos usuários; em todos os grupos,
em nenhum momento, o SUAS fez parte do entendimento dos participantes, somente
quando provocados pelas pesquisadoras, algumas usuárias declararam que sabiam o que
era o SUAS, mas já tinham visto “qualquer coisa a respeito do SUAS na televisão; ou seja, a
principal e única unidade pública do SUAS não é compreendida pelos usuários/as como
parte integrante do Sistema. Nesse sentido, entendemos a importância do CRAS para os
usuários, mas há necessidade de que sejam explicados e discutido os projetos e benefícios
como direitos do cidadão como postos na LOAS, PNAS/SUAS. A técnica de gestão
demonstrou preocupação que será incluída e discutida durante a avaliação dos trabalhos de
2016.
Um aspecto que nos chamou a atenção foi o grau de satisfação dos
trabalhadores com as condições de trabalho e salários. Nenhum deles é concursado, não
havendo perspectiva para tal, a curto prazo. Não há rotatividade entre eles, pois alguns
trabalhadores estão no CRAS desde 2006, o que diferencia de muitos outros municípios; o
mais novo trabalhador já está no CRAS há dois anos. Os salários são os melhores da região
e sempre pagos em dia. Há um grau de confiança estabelecido entre a gestão da
assistência social e a administração municipal. Essa última já demonstrou, em eventos
públicos, sua predileção pela assistência social, o que assegura, de certa forma, a aceitação
das propostas dos profissionais quando chegam para aprovação.
A existência de pessoas portadores de deficiência e vítimas de violência entre
outros riscos não terem nenhum atendimento especifico, fez a prefeitura contratar uma
assistente social para dedicar-se a esses casos, e outros especiais que vinham sendo
atendidos no CRAS. Essa trabalhadora identifica, acolhe, acompanha, e encaminha os
usuários para outros órgãos públicos; recebe, também, apoio do CRAS e da SETAS onde é
lotada. Trata-se, portanto, de uma ação inovadora em um município de pequeno porte, uma
demonstração de responsabilidade com esses grupos especiais.
A pesquisa realizada em Pires Ferreira nos mostra que a coesão da equipe e
todo um conjunto de ações integradas no interior do CRAS, o apoio da gestão às inovações
sugeridas, além de uma inserção nos vários espaços sociopolíticos do município faz com
que essa unidade de proteção social básica alcance resultados promissores, o que,
certamente, poderá contribuir para o avanço dos direitos dos usuários e usuárias.
REFERÊNCIAS
BRASIL, IBGE RELATORIO ESTATISTICO, 2012.
CEARÁ, Anuário do Ceará 2014
JALES, RACHEL, SILVEIRA IRMA. Relatório Preliminar da Pesquisa Avaliando a Implementação do Sistema Único de Assistência Social na Região Norte e Nordeste.
SETAS Pires Ferreira, Revista Assistência Social 10 Anos, 2012.
SETAS Pires Ferreira, Relatórios de Gestão 2007 a 2015.
SETAS, Pires Ferreira, Relatórios Estatísticos.
IMPASSES E DESAFIOS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM FORTALEZA-CE:
o Sistema Único da Assistência Social e as versões de usuários da Proteção Social Básica
Leila Maria Passos de Souza Bezerra1
Resumo
Este artigo discute impasses e desafios da Política de Assistência Social e da implementação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) em Fortaleza-Ceará, no âmbito da Proteção Social Básica (PSB) nestes anos 2000. Problematiza-se as noções adotadas por esta política pública para nomear seus usuários e seus territórios vividos inscritos nas margens urbanas. E busca-se assinalar percepções de usuários (as) sobre a implementação do SUAS, tomando por referência empírica dois Centros de Assistência Social (CRAS) desta metrópole. Realizou-se pesquisas bibliográfica, documental e de campo. Optou-se pela metodologia qualitativa, com uso da observação direta, entrevista semiestruturada e grupo focal. Palavras-chave: assistência social, política pública e pobreza
urbana. Abstract This article discusses the impasses and challenges of the Social Assistance Policy and the implementation of the Unique System of Social Assistance (SUAS) in Fortaleza-Ceará, in the scope of Basic Social Protection (PSB) in these years 2000. Problematizes the notions adopted by This public policy to name their users and their lived territories inscribed in the urban margins. And it is intended to point out users' perceptions about the implementation of SUAS, taking as an empirical reference two Social Assistance Centers (CRAS) of this metropolis. Literature, documentary and field research were carried out. We chose the qualitative methodology, using direct observation, semi-structured interview and focus group. Keywords: social assistance, public policy and urban poverty.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo versa sobre impasses e desafios da Política Nacional de Assistência
Social (PNAS, 2004) e da implementação Sistema Único da Assistência Social (SUAS,
2015; 2012) em Fortaleza-CE, com foco na Proteção Social Básica (PSB) operacionalizada
1 Doutora em Sociologia. Docente do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós -Graduação em
Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected].
em dois Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) 2 situados na Secretaria
Executiva Regional V (SER V) 3 , nesta metrópole. Problematiza-se, primeiramente, a
configuração desta política pública no campo da gestão territorial da pobreza urbana4 nestes
anos 2000, expressiva de uma tendência de “administração das urgências” (TELLES, 2010)
de caráter focalizado e seletivo em disputa por dentro do Estado brasileiro. Discute-se,
assim, os significados de imagens pré-fabricadas sobre os usuários da PNAS, no nível da
PSB, indicadas na categoria oficial de vulnerabilidade social, que classifica aqueles
identificados em situação de pobreza e seus territórios vividos situados nas margens
urbanas (TELLES, 2010). E, em última instância, busca-se esboçar as percepções de
usuários (as) de CRAS fortalezenses acerca da política de assistência social e da
implementação do SUAS em âmbito local, a fim de pontuar alguns limites-desafios
presentes neste campo estatal.
Salienta-se, nesta interpretação crítica, um impasse preliminar na classificação
social dos segmentos inseridos no campo socioassistencial do Estado brasileiro e em sua
figuração em Fortaleza-Ce, qual seja: a estigmatização socioterritorial e a desqualificação
social (PAUGAN, 2005) associadas à pobreza urbana contemporânea parecem hibridizar-se
com um discurso estatal de suposta garantia de direitos socioassistenciais5 e possibilidade
de “emancipação política e autonomia econômica” dos ditos usuários da política de
assistência social. Para além dos dispositivos reguladores desta política pública, destaca-se
a carga ídeocultural estigmatizante possivelmente inscrita em discursos construídos em
torno de quem é socialmente classificado como “pobre/ vulnerável” no Brasil deste século
XXI, a delinear a figura historicamente negativada deste (a) usuário (a) potencial da
assistência social e residente em territórios às margens da cidade.
Considera-se significativo, portanto, abordar alguns impasses e desafios
intrincados na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), que tem adquirido
centralidade nas formas contemporâneas de regulação do social e tornou-se recorrente
2
Unidades públicas estatais, de base territorial, responsáveis pela execução dos serviços socioassistenciais garantidores do nível de proteção básica previsto pela PNAS (2004)
implementadas em áreas de vulnerabilidade social. Até 2016, a cidade de Fortaleza-CE contava com um total de vinte e sete CRAS implementados.
3 Fortaleza encontra-se atualmente dividida em seis unidades administrativas nomeadas de
Secretarias Executivas Regionais (SERs I, II, III, IV, V e VI). 4 Pobreza urbana vem aqui reconhecida como expressão -limite da questão social, produzida e reproduzida na sociedade capitalista: fenômeno sociohistórico e político, portanto, vinculado
originalmente à lógica exploratória e opressora do capital em termos do modo de produção e reprodução da vida social. Adquiriu novas configurações e visibilidade pública nos anos 1990 e 2000, em meio ao seu adensamento no cerne do capitalismo contemporâneo.
5 Segundo Carvalho (2005), os direitos socioassistenciais constituem -se em direitos sociais que a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) pretende afiançar, no enfrentamento das desigualdades sociais, com vistas a materializar os princípios da igualdade, equidade e justiça
social. Vinculam-se à pretensa satisfação das necessidades humanas básicas de seus usuários.
nesta sociedade brasileira. Ressalta-se que a reflexão crítica acerca da PNAS (2004),
sistematizada neste artigo, constitui-se em recorte específico dos achados preliminares de
pesquisa sobre a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no
Ceará 6 , materializada nos anos de 2015 e 2016. Para tanto, realizou-se pesquisas
bibliográfica, documental e de campo. Optou-se pela metodologia qualitativa, mediante a
observação direta da dinâmica de funcionamento de dois CRAS de Fortaleza-CE, com
registro sistemático em diário de campo; em complementaridade com as técnicas de
entrevista semiestruturada e de grupo focal realizados junto a usuários (as) destas unidades
públicas. O trabalho de campo ocorreu em CRAS localizados em territórios considerados de
vulnerabilidade social, segundo os critérios estabelecidos pela PNAS, cujos elevados
indicadores de pobreza e violência urbanas sinalizam as condições das vidas precárias de
usuários (as) desta política pública, sobretudo, em face dos contínuos e adensados
processos de desmonte do frágil sistema de proteção social brasileiro no tempo presente.
2 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: entre impasses e tensionamentos
A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei n° 8.742/93) define a
assistência social como direito do cidadão e dever do Estado brasileiro. Elevada ao patamar
de Política de Seguridade Social não contributiva, destina-se a “quem dela necessitar” –
desde que dentro dos critérios de seletividades instituídos – com vistas à garantia de
“mínimos sociais” em tensionamento com a perspectiva ampliada da satisfação das
necessidades humanas básicas.
Esta lei regulamenta os princípios previstos nos Arts. 203 e 204 da Constituição
Federal de 1988, relativos ao direito à assistência social. Além disso, instituiu benefícios,
programas, serviços e projetos destinados ao enfrentamento de situações classificadas
como de vulnerabilidades e riscos sociais vividas por parte da população brasileira,
conforme delineadas na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) e nas Normas
Operacionais Básicas da Assistência Social (NOB/SUAS, 2005; 2012), normativas jurídico-
políticas centrais desta política pública. A LOAS configurou-se, portanto, em marco legal que
introduziu novas bases para a proteção social no Brasil, agora considerada direito de
6 Trata-se de recorte de projeto de iniciação científica (IC-UECE) vinculado à pesquisa AVALIANDO A
IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NA REGIÃO NORTE E NORDESTE: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil, sob a coordenação da profa. Dra. Maria Ozanira da Silva e Silva, com apoio da FAPEMA e
do CNPq.
cidadania, com intenção de garantir direitos socioassistenciais aos seus ditos usuários e
alicerçada sobre princípios democráticos fundamentais7.
Na PNAS (2004) são definidas as bases para um comando único na gestão
descentralizada da política de assistência social – o Sistema Único da Assistência Social
(SUAS) – regulamentado pela Lei n° 12.435/2011 e publicadas duas Normas Operacionais
Básicas – NOB/SUAS – centrais: a de 2005 e a atual, de 2012, a disciplinar a gestão pública
da assistência social em todo o território nacional. Segundo estas normativas jurídico-
políticas, o Estado assume primazia para afiançar seguranças sociais fundamentais e define
o público usuário desta política pública.
Mas, afinal a quem se destina a política de assistência social no Brasil
contemporâneo? Seus usuários – “aqueles que dela necessitarem” – são definidos como
cidadãos e grupos em situações de vulnerabilidade social – atendidos no nível da Proteção
Social Básica (PSB) nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), em caráter
preventivo – e de risco social8 – incluídos no nível da Proteção Social Especial de média e
de alta complexidade (PNAS, 2004). Para além do público historicamente reconhecido como
específico do campo socioassistencial – os ditos “pobres inaptos para o trabalho” – esta
política pública abrange também outros segmentos populacionais – os “pobres aptos para o
trabalho” – desempregados ou em situações precarizadas e/ou informais de trabalho, que se
ampliam face às dinâmicas do capitalismo mundializado. Destarte, problematiza-se os
significados desta noção classificatória – vulnerabilidade social – atribuída aos usuários
desta política pública no nível da proteção social básica (PSB). Importa salientar que,
segundo a PNAS, a PSB visa:
(...) prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e
comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou,
fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras) (2004: 27).
7 Dentre estes, destacam-se: a supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as
exigências de rentabilidade econômica, em consonância com seu caráter não contr ibutivo; a universalização dos direitos assistenciais; o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como a convivência familiar e comunitária,
vedada qualquer comprovação vexatória de necessidade. 8 A situação do risco emerge na PNAS como uma face da exclusão social: “(...) um processo que pode levar a um acirramento da desigualdade e da pobreza” associado a situações
socioeconômicas das famílias e “(...) que induzem à violação dos direitos de seus membros ...” (PNAS, 2004; 30) e à fragilização e ruptura dos vínculos familiar e comunitário. Nesta perspectiva incluem a situação de rua, a violência doméstica, o cumprimento de medidas socioeducativa e a
situação de trabalho infantil.
Desta feita, as duas noções inter-relacionam-se na classificação estatal de quem
são os (as) usuários (as) deste campo socioassistencial, a chamar a atenção para o caráter
limitado e secundarizado que a referência à pobreza – enquanto organicamente vinculada à
civilização do capital e sua correlata produção de desigualdades sociais – parece assumir
nesta configuração. Segundo a PNAS (2004) e, sobretudo, na NOB/SUAS (2005), as
situações consideradas de vulnerabilidade9 e riscos sociais deverão ser demarcadas nos
municípios segundo indicadores sociais e critérios quantitativos de identificação e
mensuração de pobreza e suas variantes, com destaque para o critério renda considerado
primordial na definição dos destinatários desta política pública. Dois aspectos apresentam-
se centrais neste discurso estatal para circunscrever a situação de vulnerabilidade social: os
indicadores de pobreza associados aos de múltiplas violências. É delineada em função da
prevenção aos riscos sociais reportados à violação de direitos e à fragilização e/ou ruptura
de vínculos familiares e comunitários conexas, via de regra, a múltiplas manifestações de
violências, incluindo as situações de ameaça vivenciadas nas margens urbanas.
Estas noções – de pobreza, vulnerabilidade e risco sociais – aparecem
associadas e interdependentes nos discursos advindos deste campo socioassistencial
estatal. E assinalam uma dimensão polissêmica nas experiências de trabalhadores (as) do
SUAS em suas relações profissionais tecidas com os (as) usuários (as) dos Centros de
Referência da Assistência Social (CRAS) inseridos em territórios urbanos estigmatizados.
Sob esta classificação social reproduzem-se discursos/imagens passíveis de associação
daqueles em situação de pobreza e de seus territórios vividos com ameaças incontroláveis e
imprevisíveis produtoras da sensação de perigo iminente; com as violências urbana e
juvenil; com as situações vinculadas às áreas de risco geográfico10 e aos “assentamentos
humanos precários”, conforme são oficialmente definidas as favelas; e, de forma
contundente, associadas ao tráfico e à criminalidade presentes nestes espaços ditos de
vulnerabilidade e riscos sociais (BEZERRA; CARVALHO, 2015).
Tais sentidos são imputados, via de regra, às experiências dos ditos “pobres” em
seus territórios vividos, respectivamente, como encarnação da periculosidade e/ou das
“vidas matáveis” (homo sacer) na contemporaneidade; zonas urbanas fronteiriças, de
evitação social e/ou de segregação socioespacial. Eis aqui um dos pontos de tensão e
9 Para definir a população vulnerável, a PNAS considera as situações de domic ílio – residências com serviços de infraestrutura inadequados; renda – famílias com renda per capta de ¼ a ½ salário
mínimo; e situação de trabalho dos membros da família – que dará origem à taxa de vulnerabilidade. Os dados complementares usados para construir esta taxa nas metrópoles são os indicadores de homic ídios em geral, homicídios de jovens, mortalidade infantil, taxa de intensidade
da pobreza (NOB/SUAS, 2005). Na NOB/SUAS de 2012, esta delimitação não aparece de maneira clara.
10 Áreas de risco geográfico são definidas segundo critérios físico-geográficos, a saber: inundações,
alagamento, deslizamentos e desmoronamento.
impasse inscrito no discurso da PNAS (2004), pois, conforme lembra Wacquant (2007: 15):
é preciso estar atento “(...) à capacidade que o Estado detém de traçar as demarcações
sociais salientes e de produzir a realidade social por meio de seu trabalho de inculcação de
categorias e de classificações eficientes”. O Estado comunica normas e molda
representações coletivas e subjetivas. É nessa perspectiva que se questiona esta
classificação social dos usuários da PNAS e dos seus espaços de moradia presentes no
campo socioassistencial passível de reiterar, em seus discursos e práticas, o pensamento
abissal (SANTOS, 2009): aquele capaz de produzir linhas cartográficas imaginárias – que se
materializam via segregações nos espaços urbanos – que distinguem, hierarquizam e
segregam os socialmente construídos como “inúteis, perigosos, ininteligíveis, objetos de
supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de cá da linha)” (SANTOS, 2009:13).
Importa desnaturalizar os referentes simbólicos que tais noções mobilizam no
imaginário social do Brasil nestes anos 2000, mergulhada em experiências de incertezas e
inseguranças individual e social, de precarização da existência (ALVES, 2013), além dos
sinais de um (neo)conservadorismo persistente associado a traços fascistas à brasileira em
vias de expansão. Destaca-se, aqui, o peso sociocultural de uma tríplice “desqualificação
social” inscrita nas nomeações contemporâneas para designar os destinatários da
assistência social estatal: ser identificado como “pobre”/“vulnerável”; residir em território de
vulnerabilidade social considerado “violento, perigoso e de pobres”, que imprime uma
insígnia simbólica negativa aos moradores das margens urbanas; tornar-se público
preferencial desta gestão territorial da pobreza urbana, então identificado como em situação
de vulnerabilidade social, a demandar a proteção social estatal para (sobre)viver.
O impasse delineia-se de forma inusitada: pelo mesmo discurso de inclusão
social e afirmação de direitos de cidadania propugnados pela PNAS (2004) – ora
reconhecida publicamente como conquista sem precedentes no campo dos direitos sociais e
socioassistenciais – parece reiterar-se a figura negativada do pobre incivil (TELLES, 1999).
Neste sentido, pode reproduzir a versão do usuário classificado, submetido ao controle, à
vigilância e ao crivo institucional-estatal. Atente-se, aqui, para o retorno do mito das “classes
perigosas” recorrentemente acionado no imaginário e nas práticas sociais brasileiras neste
século XXI – que tende a associar, perversamente, pobreza, criminalidade e violência – e
projetar sobre estas margens – com destaque às favelas – discursos e práticas
estigmatizantes e sociosegregacionistas de lugares ditos perigosos e de evitação social, que
reverberam sobre seus residentes. As estigmatizações da pobreza e territorial
retroalimentam-se nesta conjuntura brasileira, a adensar os processos de segregações
socioespaciais que marcam as vidas precárias de múltiplos (as) usuários (as) do SUAS.
A inserção e/ou permanência no campo socioassistencial estatal parece passar
pela remodelagem dos modos de vida destes destinatários da política de assistência social,
pelo silenciamento de seus saberes em favor do saber técnico-científico ou saberes peritos,
pela (re-)produção de sua não existência pelas vias classificatória e de subordinação aos
critérios e normas de inclusão-exclusão social. Todavia, em meio às formas atuais de
controle estatal da pobreza urbana – sob a face sombria da vulnerabilidade social à
brasileira – os destinatários da assistência social constroem suas táticas de autocontrole,
distinção social e/ou de resistências, seja para afinar-se com as exigências e normas de
instituições responsáveis pela operacionalização desta política pública, seja para resistir –
individual e/ou coletivamente – e escapar das malhas estatais de controle, vigilância e
punição.
Esta perspectiva de gestão territorial das vulnerabilidades e dos riscos sociais
pode alinhar-se à tendência contemporânea de regulação social da pobreza urbana
assentada na complementaridade entre a “assistencialização do social” e a
(re)criminalização da pobreza, dos “pobres” e de seus territórios vividos. E arisca-se,
mesmo, a aproximar-se de um tipo de neo-panoptnismo social, expressão originalmente
cunhada por Wacquant (2005) para designar a conjunção entre regulação social e regulação
penal da insegurança social administrada por um “Leviatã neoliberal”, a fomentar uma “(...)
intensificação conjunta dos tratamentos social e penal da pobreza e na ativação das
funções de polícia dos serviços de assistência social” (WACQUANT, 2005: 23; grifo
nosso).
Na profícua análise de Wacquant (2005), esta nova-velha regulação social dos
“pobres” e de seus espaços de moradia configura-se em “novo governo da insegurança
social” capaz de aliar frágeis e focalizadas políticas socioassistenciais – a tendência
minimalista de assistencialização do social ora enunciada – com o recrudescimento do
aparato policial e jurídico-penal hiperativo do Estado em meio à marginalidade avançada11.
Tal perspectiva parece tornar-se parâmetro para a gestão territorial da pobreza urbana
também no Brasil. E pode encontrar na Política Nacional de Assistência Social (PNAS,
2004), nos moldes atuais de implementação do SUAS, um campo ambíguo, contraditório e
disputado por projetos político-culturais em luta pela hegemonia na vida brasileira neste
século XXI. Vem se tecendo esta tendência gestionária no campo socioassistencial estatal,
com fortes possibilidades de prevalecer nesta conjuntura de suposta “austeridade
11
Constitui um novo regime de pobreza urbana presente nas sociedades avançadas capitalistas. Resultado da fragmentação do salariato urbano, da desconexão funcional entre os bairros de relegação (periféricos e desprezados) e a economia nacional e mundial, da estigmatização
territorial e da retração das proteções anteriormente garantidas pelo Estado social.
orçamentária” entrelaçada ao desmonte do frágil e recente sistema de proteção social
brasileiro adensado pós-impeachment de Dilma Rousseff e conduzido pelo atual governo.
Nessa linha interpretativa, a possibilidade de “emancipação e autonomia”
(NOB/SUAS, 2005) dos (as) usuários (as) da PNAS e do SUAS traduz-se em impasse e
desafio no Brasil do presente. A proposta de emancipação em termos políticos e mesmo de
garantias dos mínimos sociais de sobrevivência – numa versão ainda minimalista de
cidadania – encontra-se em tensão constitutiva com a satisfação das necessidades
humanas – numa configuração ampliada da garantia de direitos sociais básicos e fundada
em princípios democráticos – ambas anunciadas pela Política Nacional de Assistência
Social (PNAS, 2004) em termos jurídico-políticos. O que pode reiterar, mais uma vez, a
prevalência do princípio da regulação dos ditos “pobres/vulneráveis sociais” nas esferas
cotidiana e institucional.
Para Santos (2000), o equilíbrio entre regulação e emancipação pretendido pelo
projeto da modernidade nunca foi atingido plenamente. A confluência entre capitalismo e
modernidade tem resultado no fortalecimento do pilar da regulação em detrimento do pilar
da emancipação 12 , consolidado num processo histórico contraditório, não linear e
diferenciado, a considerar as particularidades das configurações das sociedades modernas.
Conforme enuncia, a complexa matriz das energias emancipatórias e regulatórias vem
sendo reduzida a dois grandes instrumentos de racionalização da vida coletiva: a ciência
moderna e o direito estatal moderno. De um lado, o predomínio da racionalidade cognitivo-
instrumental da ciência e da técnica tendeu a descredenciar outras formas de saberes-
cultura produzidos fora dos cânones científicos. Trata-se de um dos modos mais poderosos
de produção da não existência: a monocultura do saber e do rigor do saber. De outro lado, o
direito estatal moderno parece ganhar vida própria: deixa de refletir a sociedade que o criou,
e passa, ao contrário, a exigir que a sociedade o reflita incondicionalmente.
Santos (2000) traz uma importante chave analítica, considerando o caráter
preliminar desta reflexão: colocar em debate crítico os impasses e desafios instituídos entre
esta expressão do direito estatal moderno – neste caso, a política de assistência social,
suas normativas jurídico-políticas e instituições, que se pretendem ao reconhecimento social
e à garantia dos direitos de cidadania dos segmentos pauperizados enquanto direitos
socioassistenciais – versus a reprodução do “desvalor dos pobres”13 (SOUZA, 2006) como
12
O pilar da regulação é constituído por três princ ípios: do mercado, do Estado e da comunidade. A modernidade ocidental ao entrecruzar-se com o capitalismo potencializou o desenvolvimento do princ ípio do mercado em detrimento do Estado e deste em relação à comunidade. O pilar da
emancipação constitui-se das racionalidades cognitivo-instrumental (ciência e técnica), moral -prática (Direito moderno e Estado) e estético-expressiva (das artes e literatura) (SANTOS, 2000).
13 A produção social do “desvalor do pobre” e da naturalização das desigualdades sociais e a
produção de “subcidadãos” no Brasil constituem-se em fenômenos modernos. Vinculam-se à
experiência cotidiana de muitos (as) usuários (as) desta política pública em âmbito
municipal.
3 À GUISA DE CONCLUSÃO: limites-desafios de uma política pública em (des)construção
Nesta interpretação crítica, dialoga-se com a profícua análise de Souza (2006)
sobre o “desvalor do pobre” e a criação de um habitus precário14 na sociedade brasileira
para enfocar mecanismos sócio-culturais que o (re)produzem por dentro da
institucionalidade democrática à brasileira. Para o autor, estes fenômenos vinculam-se à
produção de uma “concepção do valor diferencial entre os seres humanos” e uma estrutura
de hierarquia valorativa e normativa transformadas em fundamentos de práticas sociais e
institucionais concretas. Afirma que, no Brasil, inexiste o princípio da “dign idade” ora
traduzido em componente transclassista indispensável à configuração das sociedades
modernas avançadas e suposta possibilidade da igualdade e do reconhecimento social
materializarem-se para indivíduos e grupos como base da “cidadania”. Em seu lugar,
predominam outros “operadores simbólicos” que autorizam uma hierarquização e
classificação de pessoas como merecedoras ou não de reconhecimento e de respeito. Eis a
histórica matriz político-cultural hierárquico-autoritária e conservadora (DAGNINO, 2000)
cotidianamente (re)produzida em discursos e práticas sociais por dentro da
institucionalidade democrática neste País, a reiterar o lugar de subalternidade (im)posto aos
segmentos em situação de pobreza residentes nas margens urbanas.
Considera-se tais pistas interessantes para pensar as condições socioculturais e
políticas da (re)produção da pobreza pluridimensional no Brasil. Reforçam a necessidade de
aproximação das percepções e vivências dos (as) usuários (as) da Política de Assistência,
na tentativa de desnaturalizar as imagens pré-fabricadas sobre seu público potencial nas
particularidades de sua operacionalização nos Centros de Referência da Assistência Social
modernização seletiva e periférica implementada neste país, em especial, relativa à eficácia de
valores e instituições modernas importadas “de fora para dentro”, com destaque para o Estado e o Mercado (SOUZA, 2006).
14 Segundo Souza (2006), o habitus precário consiste em esquemas avaliativos compartilhados
objetivamente expressivos de um tipo de personalidade e de disposições de comportamento incapazes de atender às exigências para um indivíduo ou grupo social ser considerado produt ível e útil em uma sociedade dita moderna. O que, supostamente, lhe garantiria o reconhecimento
social independente da dimensão jurídico-política. Considera este habitus precário um fenômeno de massa específico de sociedades periféricas, como a brasileira, passível de produzir “(...) este tipo de consenso, como que corporal, pré-reflexivo, e naturalizado, que pode permitir, para além
da eficácia jurídica, uma espécie de acordo implícito que sugere que algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo. (...) redes invis íveis que desqualificam indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutos e subcidadão, (...) tanto para os privilegiados como para
as vítimas da precariedade (SOUZA, 2006: 48).
(CRAS) implementados em Fortaleza-CE. E, assim, contribuir para romper com a
perspectiva do “desvalor dos pobres” e do “habitus precário” em curso em discursos e
práticas cotidianas.
Neste sentido, dentre os principais “achados” desta pesquisa, ressalta-se alguns
dos limites-desafios da Política de Assistência Social identificados no processo de
implementação do Sistema Único da Assistência Social, no nível da proteção social básica
nesta metrópole, sob o ponto de vista de usuários de CRAS. O primeiro consiste em
desconhecimento, por parte dos (as) interlocutores (as), da política de assistência social, do
SUAS e de seus serviços socioassistenciais operacionalizados nos CRAS de maneira
articulada e inscritos nesta política pública, bem como de suas normativas reguladoras.
Consideraram que estas unidades públicas encontram-se inseridas em seus territórios para
prestarem uma “ajuda aos pobres”, na condição de “necessitados” materiais, figuras
identificadas como público por excelência da assistência social, sobretudo, concernente a
três aspectos de falta/privação, a saber: sem trabalho (formal e/ou informal, socialmente
protegido e/ou precarizado); sem local de moradia (casa própria ou alugada); e ausência de
condições de prover sua alimentação e de sua família sem precisar recorrer à mendicância
e/ou à ajuda de outrem.
Explicitaram esparsas informações acerca dos programas, projetos, serviços e
benefícios deste campo e da dinâmica de funcionamento dos CRAS, restritos, desta feita, à
condição de usuários (as) receptores (as) das ações socioassistenciais. Não os apreendem
como constitutivos desta política pública de assistência social, senão como atividades
isoladas, tópicas e descontínuas. Mesmo os mecanismos de participação no controle social
desta política pública – considerando os conselhos de assistência social e as conferências –
eram desconhecidas para os (as) interlocutores (as).
As narrativas destes (as) usuários (as) reafirmam a ausência do debate da
classe social na política de assistência social, que aponta a urgência do reconhecimento
social de seus usuários (as) como pertencente às classes trabalhadoras (COUTO, YASBEK,
RAICHELLIS, 2010). E, de maneira correlata, enunciam uma despolitização em termos das
ações da proteção social básica (PSB) operacionalizadas nos CRAS pesquisados, a indicar
a presença das marcas da gênese histórica conservadora da assistência social e da
subalternidade atribuída aos usuários deste campo social, por vezes, ainda por estes
incorporada e reproduzida. Nesta perspectiva, identificou-se táticas tanto de difamação
lateral e/ou transferência de estigmas associados à pobreza empreendidas pelos (as)
interlocutores (as), como de distinção social mediante a construção de hierarquizações
sociomorais internas entre estes “(des)iguais” usuários (as) dos CRAS, conforme já
enunciadas por Bezerra (2015).
A expressão limite do desconhecimento desta política pública emergiu quando
os (as) usuários (as) confundiram, recorrentemente, política de assistência social com o
trabalho dos assistentes sociais ou como sinônimo do (a) profissional de serviço social. A
satisfação de suas demandas sociais postas aos CRAS, independente da resolutividade
alcançada, correspondia às formas de atuação destes (as) profissionais, cujas relações com
os (as) usuários (as) eram abalizadas em respeito, confiança e ética-profissional, segundo
relataram os (as) entrevistados (as). Portanto, a publicização de informações junto aos
usuários sobre este campo socioassistencial estatal, os direitos a este vinculados e as
formas de participação no controle social desta política pública é um desafio a ser
enfrentado no cotidiano institucional. E, de maneira contundente, a reinvenção da prática
político-educativa por parte dos profissionais atuantes nos CRAS mediante o uso de
metodologias ativas/participativas associadas ao (re)conhecimento de demandas, saberes,
cultura e protagonismo dos (as) usuários (as) são urgentes face ao desmonte dos direitos
sociais, a exigir a produção de subjetividades insurgentes em suas distintas expressões de
resistências e lutas sociopolíticas culturais cotidianas. No caso do serviço social, investir na
instrumentalidade do trabalho profissional15 alicerçada na racionalidade crítica e apreendida
como mediação indispensável à materialização cotidiana do projeto ético-político
hegemônico da profissão.
Limite-desafio posto em xeque ao considerar outro impasse apreendido neste
campo da política de assistência social em Fortaleza-CE: as condições e formas de
contratação precarizadas dos (as) trabalhadores (as) sociais, com foco nos CRAS, em
especial, no momento em que parte desta pesquisa foi realizada. A insegurança e
incertezas vivenciadas pelos (as) profissionais face a um novo processo de seleção pública
municipal eram compartilhadas pelos (as) usuários (as) nestes respectivos equipamentos
sociais, que enunciaram aspectos emblemáticos do processo de implementação do SUAS
neste município: primeiro, a insuficiência do quantitativo de profissionais em relação às
demandas sociais crescentes nos territórios; segundo, a rotatividade e/ou desligamentos
recorrentes dos trabalhadores sociais em relação direta com a descontinuidades e/ou
interrupção dos serviços prestados nos CRAS, a implicar em postergação ou não acesso
aos parcos direitos socioassistenciais recém conquistados em termos jurídico-políticos. Tais
condições de trabalho obstaculizam ainda a territorialização – um dos eixos estruturantes
desta política pública – e o estabelecimento dos vínculos sociais (de confiança e respeito)
entre usuários (as) e trabalhadores (as) sociais indispensáveis à materialização destes
CRAS como referência nos territórios nos quais se encontram implementados. Neste
15
Instrumentalidade apreendida em suas dimensões indissociáveis – teórico-metodológica, técnico-
operativa e ético-política – em interface com a pesquisa social e a formação permanente.
sentido, o desafio neste campo passa pela implementação da gestão do trabalho e a
educação da educação permanente na política de assistência social, em consonância com a
NOB/SUAS RH (2006) e SUAS (2012). E, em verdade, ultrapassa este campo, posto que
remete à luta pelo direito ao trabalho protegido articulada à segurança social que, para além
de reconhecimento e fortalecimento dos trabalhadores do SUAS, consiste em luta histórica
de todos (as) aqueles (as) que se identificam e pertencem às classes trabalhadoras.
É no momento de profundas transformações no capitalismo contemporâneo –
com destaque ao crescimento do desemprego estrutural e da precarização da existência –
que vem se ampliando a demanda pela assistência social estatal como tendência
mundializada, centrada nas políticas de gestão territorial e transferência de renda voltadas
àqueles ora classificados como “vulneráveis e/ou em riscos sociais”. As medidas de
“discriminação positiva” dos pobres parecem não apagar a histórica e reatualizada
estigmatização colada a este tipo de proteção social focalizada no público preferencial da
assistência – dos ditos “incapazes para o trabalho” – somadas ao crescente contingente de
trabalhadores precarizados e/ou desempregados considerados supranumerários na lógica
capitalista. Esta política de assistência social denota-se, até o momento, incapaz de
garantir-lhes a saída da situação de pobreza pluridimensional e de dependência em relação
ao Estado para sobreviver, a fim de ascenderem à condição de autonomia (econômica) e
“emancipação” política, portanto, à dimensão de sujeitos de direitos, segundo anuncia a
PNAS (2004) em seu discurso jurídico-político.
As decisões políticas têm sido, ao contrário, reduzidas à dimensão técnico-
científica e a gestão da vida passa a ser feita por especialistas. Esta tem sido uma
sistemática instituída desde o século XIX, quando a ciência moderna converteu-se em
instância moral suprema aliada ao direito estatal moderno. Segundo alerta Santos, “(...) a
despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do
conflito social e da revolta social (2000: 51-51). Parece significativo, então, questionar a
tendência de transformação da política em gestão e controle técnico-científico da sociedade,
para repensar a perspectiva regulatória da pobreza assumida pela PNAS em nome do
“direito à assistência social” como caminho à cidadania social, à emancipação e autonomia
de seus destinatários. Afinal, parece realizar-se uma metamorfose da dimensão política da
pobreza – expressão-limite das desigualdades sociais organicamente vinculadas ao
capitalismo e adensadas em sua versão financeirizada planetária – em questões técnico-
administrativas de gestão territorializada da pobreza urbana em ampla construção na vida
brasileira e fortalezense dos anos 2000.
Todavia, para além dos discursos e práticas sociais de objetificações dos
sujeitos, do tipo de individualização/subjetivação e classificação social produzidas pelo
Estado e sua malha institucional, existem resistências, ressignificações, afrontamentos e
dasautorizações deste poder expressivas da multivocalidade, polissemia e pluralidades das
experiências dos sujeitos sociopolíticos que desafiam a lógica classificatória estatal e suas
estratégias punitivo-penais. Eixo temático que se pretende desenvolver em outros diálogos
públicos, a partir das descobertas apreendidas durante a pesquisa social ora concluída.
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POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: relações
controversas
Paula Raquel da Silva Jales1
Resumo O Ministério do Desenvolvimento Social é o responsável pela gestão federal da Política de Assistência Social e do Programa Bolsa Família que historicamente estiveram vinculados a Secretarias Nacionais diferentes. No entanto, a nível municipal, o Bolsa Família é operacionalizado na estrutura da Política de Assistência Social. O objetivo geral da pesquisa foi, portanto, entender a relação existente entre a Política de Assistência Social e o Bolsa Família no município de Fortaleza, Estado do Ceará, através de estudos bibliográficos, documental e de campo. Palavras-chave: Política de Assistência Social. Programas de
Transferência de Renda. Gestão Pública. Abstract
The Ministry of Social Development is responsible for the federal administration of the Social Assistance Policy and the Bolsa Família Program (PBF), which have been historically linked to different National Secretariats. However, at the municipal level, Bolsa Família is operationalized in the structure of the Social Assistance Policy. The general objective of this research was to understand the relationship between the Social Assistance Policy and the Bolsa Família in the city of Fortaleza, State of Ceará, through bibliographical, documentary and field studies. Keywords: Social Assistance Policy. Income Transfer Programs. Public administration.
1 INTRODUÇÃO
A Assistência Social é afiançada como direito com a sanção da Constituição
Federal de 1988. É um política pública “não contributiva” 2 destinada a garantir os mínimos
1 Assistente Social formada pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Doutoranda em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Professora substituta e Coordenadora do Estágio do curso de graduação em Serviço
Social da UECE. E-mail: [email protected]/ [email protected]. 2 Entende-se que toda política pública é contributiva, pois é financiada através de impostos. No entanto, o termo “não contributivo” refere-se a não pagamento de encargos diretos pela população
para o financiamento da mesma.
sociais a quem dela necessitar, com vista ao atendimento de necessidades básicas 3
(BRASIL, 1993). Já o Bolsa Família, criado em 2003, é um Programa de Transferência de
Renda Condicionada que unificou os procedimentos de gestão e execução das ações de
transferência de renda do governo federal, notadamente, as dos Programas Bolsa-Escola,
Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação, Auxílio-Gás, também denominados de Programas
Remanescentes, bem como do Cadastro Único (CadÚnico).
Nesse sentido, a Assistência Social e o Bolsa Família se constituíram de formas
diversificadas, pois a primeira é uma política pública universalizante 4 garantida através de
serviços de proteção social básica e especial. Já o Programa foi idealizado a partir de um
relatório diagnóstico na transição de governos federais 5 e posteriormente “enxertado” no
aparelho do Estado por meio de pactuações nas Comissões Intergetora Bipartite (CIB) e
Intergestora Tripartite (CIT) 6 . A perspectiva que o direciona é a focalização e a
transversalidade devido a relação que estabelece com as políticas de Saúde e Educação
(COUTINHO, 2013).
O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) é o responsável pela gestão
federal dessa Política e desse Programa, por meio da Secretaria Nacional de Assistência
Social (SNAS) e da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC), respectivamente.
Apesar de terem arranjos institucionais próprios, a nível municipal, o Programa Bolsa
Família (PBF) é operacionalizado na estrutura da Política de Assistência Social. Há
diretrizes nacionais para priorização, no atendimento do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS)7, das famílias incluídas no PBF, como também orientação para articulação
desse Programa com os serviços do SUAS, inaugurado pela publicação do Protocolo de
Gestão Integrada de Serviços, Benefícios e Transferências de Renda no âmbito do Sistema
Único de Assistência Social, pertencente a Resolução CIT n° 7, de 10 de dezembro de
2009.
A partir dessas reflexões, foi concebido o projeto de iniciação científica
“Assistência Social e Transferência de Renda: analise da gestão pública da Política de
Assistência Social e do Programa Bolsa Família no município de Fortaleza-CE”, financiado
3 Para compreender a contradição entre as concepções de “mínimos soc iais” e “necessidades básicas” presente na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) conferir: PEREIRA, Potyara
Amazoneida Pereira. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
4 Universalizante no sentido da abrangência a todos que dela necessitarem.
5 O “Relatório de Governo de Transição sobre os Programas Sociais” foi elaborado no terceiro trimestre de 2002, período de transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula da Silva (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2004).
6 As Comissões são instâncias de negociação e pactuação entre gestores federais, estaduais e municipais (MDS, 2012).
7 O SUAS é o sistema que gere as ações na área da assistência social de forma descentralizada e
participativa (BRASIL, 1993)
pela Universidade Estadual do Ceará 8. Este projeto também está vinculado à pesquisa
“Avaliando a implementação do Sistema Único de Assistência Social na região Norte e
Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do
Brasil”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico
do Maranhão (FAPEMA) e coordenado regionalmente pela professora Doutora Ozanira Silva
e Silva e localmente pela professora Doutora Alba Pinho de Carvalho.
Este artigo apresenta resultados preliminares do projeto supramencionado, que
teve a seguinte pergunta de partida: Por que e como as gestões da Política de Assistência
Social e do Programa Bolsa Família se relacionam no município de Fortaleza-CE? O
objetivo geral deste trabalho foi, portanto, entender a relação existente entre a Política de
Assistência Social e o Bolsa Família no município de Fortaleza-CE, partindo do pressuposto
de que o PBF é um programa socioassistencial.
A pesquisa com ênfase qualitativa foi composta por estudos bibliográficos,
documental e de campo. O lócus do trabalho de campo foi a Secretaria Municipal de
Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA), atualmente denominada
Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos e Combate à Fome, responsável
pela implementação do SUAS em Fortaleza; três Centros de Referência da Assistência
Social (CRAS), quais sejam: CRAS Serviluz, CRAS Bom Jardim e CRAS Couto Fernandes;
e quatro Núcleos de o Cadastro Único (Nucad) localizados nas Secretarias Executivas
Regionais (SER)9 I, IV e VI, bem como no Vap Vup Messejana10.
As técnicas de coleta de dados foram: observação direta e entrevista
semiestruturada. E os instrumentos: diário de campo, roteiro de entrevista e gravador de
voz. Foram entrevistadas 15 pessoas entre gestores, supervisores, técnicos, tecnólogos e
operadores do Cadastro Único, que autorizaram a gravação e socialização de suas falas
através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Reitera-se o
compromisso de divulgar os resultados da pesquisa de iniciação científica com a referida
Secretaria e os entrevistados, após a conclusão do relatório final, a fim de cumprir o papel
de devolução social do estudo.
8 A bolsista de Iniciação Cient ífica (IC-UECE), Ana Nicolle Conceição de Oliveira, e a bolsista do Programa de Bolsas de Estudo e Permanência Universitária (PBEPU), Wisla Kadigina Holanda Costa, são integrantes desse projeto e estão contribuindo de forma significativa para coleta,
organização e análise dos dados, bem como na redação do relatório final. 9 O município de Fortaleza está dividido em sete SER (I, II, III, IV, V, VI e Centro), que descentralizam a gestão das secretarias municipais. A sede administrativa da SER fica em um dos bairros da região
delimitada. 10
O Vap Vup é uma central de serviços do governo do estado do Ceará que oferece o acesso a diferentes órgãos públicos em único espaço. Em Fortaleza os bairros que tem essa central são:
Messejana e Antônio Bezerra.
Para concretização do objetivo proposto, a discussão foi organizada em três
tópicos, quais sejam: 1) breve histórico da execução do CadÚnico e do PBF em Fortaleza;
2) percepções dos entrevistados sobre a relação entre o Programa e a Pol ítica; 3) esboço
dos resultados preliminares da pesquisa de campo.
2 SINGULARIDADE DO CADASTRO ÚNICO E DO BOLSA FAMÍLIA EM FORTALEZA
O Bolsa Família começou a ser executado no final de 2003 e início de 2004,
através da Coordenadoria de Políticas Públicas de Assistência Social (CASSI), da
Secretaria de Educação e Assistência Social (SEDAS), que instituiu a Coordenação do
Cadastro Único e do Programa Bolsa Família. Esta coordenação passou a ser responsável
pela implementação do Programa no município, bem como pela integração dos Programas
Remanescentes ao PBF.
Em 2005, Fortaleza firmou o “Termo de Adesão ao Programa Bolsa Família e ao
Cadastro Único de Programas Sociais” junto ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate a Fome (MDS), passando a assumir algumas responsabilidades em relação ao
Programa e ao cadastramento das famílias. Como também criou através do Decreto nº
11.868, de 6 de agosto de 2005, a Comissão de Coordenação Integrada do Cadastro Único,
e do Decreto de nº 11.887, de 16 de setembro de 2005, a Comissão Municipal de Controle
Social do Programa Bolsa Família (CEARÁ, 2006), que fica vinculada ao Conselho
Municipal de Assistência Social.
Posteriormente, em 2007, foi criada a Secretaria Municipal de Assistência Social
(SEMAS) e as coordenações vinculadas a SEDAS, foram reestruturadas com base no
SUAS em três Coordenadorias, a saber: a Coordenadoria da Proteção Social Básica, a
Coordenadoria da Proteção Social Especial e a Coordenadoria da Gestão do SUAS. Em
2010, houve uma reestruturação das Coordenadorias e foram constituídas sete
Coordenações, foram elas: 1) Proteção Social Básica; 2) Proteção Social Especial; 3)
Inclusão Produtiva; 4) Gestão do Sistema Único de Assistência Social; 5) Segurança
Alimentar e Nutricional; 6) Cadastro Único e Bolsa Família; 7) Administrativa Financeira
(CEARÁ, 2007).
Na primeira forma de organização da gestão da Política Municipal de Assistência
Social, o Bolsa Família ficava dentro das ações da Proteção Social Básica e o Cadastro
Único dentro da gestão do SUAS. Embora estivessem ligados a Coordenadorias diferentes,
a equipe do PBF e do CadÚnico desenvolviam suas ações em conjunto. Primeiro porque o
Coordenador Municipal do Programa Bolsa Família e do Cadastro Único era o mesmo
desde a assinatura do Termo de Adesão pelo município. Segundo porque elas dividiam o
mesmo espaço físico e materiais (sala, computadores, impressoras, dentre outros). E
terceiro porque a equipe do Programa Bolsa Família estava composta por um número
bastante reduzido de profissionais, demandando a colaboração de outras pessoas, fator que
reforçou a ligação existente desde a SEDAS, entre PBF e Cadastro Único. Provavelmente
isso influenciou na criação de uma Coordenação específica para o Cadastro Único e Bolsa
Família na reestruturação das Coordenadorias supramencionada.
No ano de 2013, com a mudança de governo municipal 11, a SEMAS é extinta e
criada a SETRA (CEARÁ, 2014). Mesmo sendo reeleito, o atual prefeito modificou os órgãos
da administração pública e criou a Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos
e Combate à Fome, constituída por diversas Coordenadorias, dentre elas a Coordenadoria
de Gestão Integrada de Assistência Social (COIAS), que permaneceu do formato
organizacional da SETRA e é a atual responsável pela gestão municipal da Política de
Assistência Social.
A COIAS está dividida em cinco Células, a saber: 1) Proteção Social Básica; 2)
Proteção Social Especial; 3) Benefícios; 4) Gestão do SUAS; 5) Gestão do Fundo Municipal
de Assistência Social. Neste organograma o Bolsa Família e o CadÚnico ficam em Células
diferentes, o primeiro é de responsabilidade da Célula Benefícios e o segundo da Célula de
Gestão do SUAS, como mostra a fala abaixo:
[...] no começo do Programa, ele tinha uma equipe centralizada tanto cadastro e Bolsa juntos aqui [...] na SEMAS antigamente. E em 2013 com a
nova gestão, isso se partiu, separaram cadastro e Bolsa, [...] a equipe diminuiu muito. [...] a gente trabalhou um bocado para poder conseguir [...] trabalhar separado, [...] qual era a responsabilidade de cada um e que hoje
a gente tem as suas responsabilidades, mas a gente trabalha muito junto porque um depende do outro para vários trabalhos que a gente realiza. (ENTREVISTADA 01)
Apesar dos órgãos gestores da Política de Assistência Social terem passado por
diversas reorganizações no município de Fortaleza, a estrutura operacional do CadÚnico e
do PBF sempre esteve dentro da Secretaria responsável pela Assistência Social, o que
revela a existência de uma estreita relação entre a Política Pública e o Programa de
Transferência de Renda. Além disso, constatou-se que as gestões do CadÚnico e do Bolsa
Família, apesar de ora juntas, ora separadas no organograma das referidas Secretarias,
sempre trabalharam articuladas, como reforçou a Entrevistada 01, pois tanto a inserção,
como o monitoramento do PBF, é realizada através do CadÚnico.
11
O Partido dos Trabalhadores permaneceu no governo da capital cearense nos anos de 2005 a 2012, sob a direção da prefeita Luizianne Lins. Em 2013, assume o prefeito Roberto Cláudio do
Partido Republicando da Ordem Social (PROS).
Os entrevistados revelaram justificativas para a operacionalização do PBF na
estrutura da Política de Assistência Social possibilitando refletir sobre a relação controvérsia
estabelecida entre essa Política e esse Programa no município de Fortaleza. Algumas
dessas reflexões são apresentadas no tópico a seguir.
3 PERCEPÇÕES DA RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA
Um ponto de consenso entre a maioria dos entrevistados foi o papel dos Centros
de Referência da Assistência Social (CRAS) no cadastramento, no atendimento e no
acompanhamento dos usuários do Programa Bolsa Família. O CRAS é o equipamento da
Proteção Social Básica da Política de Assistência Social e porta de entrada para o SUAS.
Nesse sentido, a descentralização do CadÚnico para a estrutura dos CRAS facilitou o
acesso dos usuários do PBF aos serviços, programas, projetos e benefícios garantidos pela
Política de Assistência Social. A Entrevistada 08 revela com clareza essa relação:
Desde a gestão passada a gente começou na decisão de descer os cadastros para os CRAS como mais um serviço. Há quem cons idere isso
absolutamente negativo, dizem que se atrela ao CRAS o serviço do cadastro único: as pessoas vêm ao CRAS para o cadastro. Que seja! Ela vem ao CRAS para o cadastro e eu garanto o atendimento com uma
Assistente Social, com uma Psicóloga e com uma Pedagoga a nível de PAIF que vai fazer uma acolhida com ela a nível de assistência, de política pública de assistência. Se ela me chegou com interesse de se inscrever no
cadastro único, o que me importa é que ela adentrou o equipamento da política de assistência. O NUCAD não é. Ela entra num NUCAD, faz o cadastro único e vai embora. No NUCAD eu tenho, exclusivamente, o
serviço do cadastro único, no NUCAD, no VaptVupt eu tenho o serviço do cadastro único. Dentro do CRAS eu tenho a política de assistência social se materializando
e eu tenho o serviço do cadastro único. Esse usuário entrou, ele adentrou a porta. Eu garanto uma acolhida coletiva, com uma técnica conversando com ele sobre assistência, sobre serviço PAIF, sobre serviços de convivência,
sobre benefícios eventuais, sobre acompanhamento familiar, sobre acesso à direitos, sobre empoderamento, seja o que for, ele adentrou o equipamento. Então, eu sou plenamente favorável ao cadastro único no
CRAS, não tenho ressalva nenhuma com isso.
A Entrevistada 08 justifica ainda que a decisão de descentralizar o CadÚnico
para os CRAS ocorreu na gestão da SEMAS, quando se percebeu que o público da Política
de Assistência Social era a mesma população de baixa renda que deveria ser inserida no
Cadastro Único para ter acesso ao Bolsa Família e outros programas sociais. Embora a
maior parte dos entrevistados não soubesse explicar o “porquê” do CadÚnico estar na
estrutura do CRAS, nenhum se opôs a essa forma de organização e vê nela uma
possibilidade de maior acesso dos usuários tanto ao cadastramento, como aos serviços dos
CRAS. As falas abaixo mostram essa perspectiva:
É eu acho positivo porque a gente consegue fazer esse acompanhamento
[...] Domiciliar ou até aqui mesmo juntos. E porque assim, otimiza o tempo delas e o nosso [...] Da família que não precisa se deslocar para um outro equipamento para poder fazer [...] Determinados tipos de atendimento,
então, eu acho positivo apesar de o cadastro, não necessariamente ter que estar dentro do CRAS [...] Mas eu acho positivo. Só faltaria realmente ele ser online [...] Aqui. (ENTREVISTADA 05)
Assim, a ideia é muito boa, mas eu acho que só tá faltando uma interação, mas a ideia é muito bom mesmo, facilita muito a vida dos usuários. Porque
são pessoas pobres que muitas vezes não tem o dinheiro da passagem, então tendo o CRAS próximo a residência dela, como a gente tem Fortaleza 27 CRAS. Então facilita muito a vida das famílias [...]. (ENTREVISTADO 09)
[...] Fica melhor de interagir como um todo. Vem atrás do benefício, coloca no PAIF, aí vem atrás de um outro benefício, sem ser o Bolsa. Também já
tá tudo no mesmo aparelho de trabalho e fica melhor de se inter-relacionar, [...] porque tem um beneficio dentro do CRAS, mas existe outros benefícios dentro do Cadastro Único. Tem o benefício do Bolsa, benefício da Coelce ,
benefício da Cagece que é baixa renda. [...] Benefício de isenção para concurso público [...] Tirar a identidade sem pagar. (ENTREVISTADO 15)
No entanto, a estrutura do CadÚnico não se limita aos CRAS. Existem Núcleos
do Cadastro Único nas setes SER, nos dois Vapt Vup e em outras Secretarias e
equipamentos municipais. E o trabalho realizado nesses Núcleos é de gestão de benefícios,
ou seja, informações referentes ao cadastramento, bloqueio ou desbloqueio de benefícios:
O Programa Bolsa Família [...] dentro do munic ípio, ele é descentralizado, eles são atendidos nos Nucad, que são os Núcleos do Cadastro Único do
Bolsa Família, dentro dos 27 CRAS e em dois Vapt-Vupt. Então tanto para inscrição do Cadastro Único como tam bém para acompanhamento das famílias beneficiadas do Bolsa. [...] os Nucads e os Vapt-Vupt não fazem o
acompanhamento das famílias, eles encaminham, caso necessário, por exemplo, descumprimento de condicionalidades para os CRAS que fazem esses acompanhamentos, mas eles fazem gestão de benefícios. Todos os
27, as seis regionais, os dois no Vapt-Vupt fazem gestão de benefício que é desbloqueio, que é bloqueio, reversão de cancelamento. E, [...] no caso de famílias que estejam passando por descumprimento de condicionalidades
ou então outras questões de benefício eventual, por exemplo, encaminha para atendimento no CRAS. (ENTREVISTADA 01)
Embora a Entrevistada 01 destaque o encaminhamento de demandas dos
Nucad para o CRAS, o que se percebeu durante os diálogos com gestores, supervisores e
codificadores do CadÚnico e do PBF é que eles conhecem superficialmente ou
desconhecem a Política de Assistência Social, com exceção dos Assistentes Sociais, ou
seja, dominam apenas as informações de funcionamento e da dinâmica do Cadastro Único
e do Bolsa Família. Os casos encaminhados para os CRAS são aqueles em que o benefício
está bloqueado devido ao descumprimento das condicionalidades ou de critério de
elegibilidade12, pois o acesso ao Sistema de Condicionalidades (Sicon) é feito apenas pelos
técnicos de nível superior. Isso cria uma relação instrumental13 entre a Política e o Programa
aqui analisados.
Já nos CRAS a possibilidade de superar essa relação instrumental é maior, pois
o usuário adentra o equipamento público, é convidado a participar das acolhidas, que
ocorrem no período da manhã e tarde antes do início das atividades, com o objetivo de
esclarecer o papel e serviços garantidos nesses Centros de Referência, pode ser
encaminhado para atendimento com técnico de nível superior, caso esteja no perfil de
alguns projetos, programas e serviços e criar um vinculo com os trabalhadores do SUAS:
[...] Ás vezes a gente tem cadastro, [...] vai fazer uma visita na casa, tem casos que a gente precisa fazer visita domiciliar ou então quando a gente
vai dar algum informativo. Então [...]. A gente convive com elas aqui [...]. No cadastro, a gente vê essas famílias no nosso dia a dia, que é nos grupos [...] De criança, de adolescente, no Paif [...]. E também a gente vai as vezes
até essas pessoas e visitam elas , ficam uma relação mais próxima [...]. (ENTREVISTADA 06)
Então, os técnicos todos os dias de manhã 8:00 e durante e 13:00 horas da tarde, a gente orienta para os profissionais façam uma acolhida. O que é isso? Que é realmente pegar um tempinho para explicar para que todo
mundo que tá ali para procurar atendimento, elas entrem na cabeça delas que não é só o Cadastro Único que não só o Programa Bolsa Família. (ENTREVISTADA 07)
Destaca-se que as condições e relações de trabalho e vínculo empregatício, os
processos de capacitação e o conhecimento que esses trabalhadores do SUAS tem da
Política de Assistência Social e do trabalho que desenvolvem interfere sobremaneira
possibilidade de superação dessa relação instrumental, como revela o Entrevistado 15
“quando eu entrei lá, era muito fechado esta questão de assistência social, porque a gente
era mecanizado mesmo. No primeiro CRAS que eu fui trabalhar a gente não tinha acesso
há algumas coisas que eu tenho hoje [...]. Vai mudando com o tempo [...] (grifos nossos). Os
codificadores disseram que receberam capacitação da Secretaria, mas para manusear os
sistemas informacionais do CadÚnico.
Apesar de haver uma diretriz nacional de priorização das famílias inseridas no
PBF no atendimento e acompanhamento dos serviços SUAS, os entrevistados reconhecem
que os usuários do Bolsa Família são o mesmo público da Política de Assistência Social.
Nesse sentido, o atendimento e acompanhamento não ocorrem pelo fato de estarem
12
Para ter acesso ao PBF as famílias tem que estar em situação de pobreza ou de extrema pobreza.
A primeira é definida como aquelas famílias que possuem renda familiar mensal per capita de R$ 85,01 até R$ 170,00 e a segunda, com renda familiar mensal per capita de até R$ 85,00.
13 Para Guerra (2007) ações instrumentais se caracterizam por serem pragmáticas, imediatistas e
terem como horizonte a eficácia e a eficiência.
inseridos no Programa, mais pela situação de pauperização 14 , como mostras as falas
abaixo:
[...] Eles são o público prioritário para acesso não só a serviços do CRAS, mas acessos a outros serviços quando a gente precisa encaminhar [...]. A
gente não faz, uma triagem pelo Bolsa família [...]. Não é assim: “Ai, aqui recebe Bolsa família, [...] vai ter a prioridade no atendimento”. Mas essa informação ela é considerada principalmente para gente poder ver, quando
a gente traça o perfil das outras famílias em acompanhamento, quem é que necessita mais para uma concessão de benefícios eventual, por exemplo. (ENTREVISTADA 05)
Nós temos um documento, chamado Protocolo de Gestão Integrada, que me diz que o público beneficiado pelos Programas de Transferência de
Renda seja ele o Bolsa Família ou o BPC ou o PETI, são meu público prioritário para o serviço de assistência social. O que eu costumo dizer sempre é que ele não é nem o meu público
prioritário, ele é o meu público majoritário. Muitas vezes a gente escuta em atividades assim: “Ah, nós vamos ter que dar uma prioridade para público do Bolsa Família”. Eu digo: “Galera, eles já são nosso público”. A gente
pensar que isso é trabalho extra, não é extra não, é o mesmo trabalho [...]. (ENTREVISTADA 08)
Eu percebo que [...] nosso público essencial que é o Bolsa Família. Porque através dele [...] A gente sabe que a família já tem a questão da vulnerabilidade da renda. Já é um público que a gente tem que tá atento
[...]. (ENTREVISTADA 14)
Isso revela a compreensão de que o PBF contribui para identificação e
focalização num público que já é da Política de Assistência Social. A criação do Bolsa
Família não trouxe um “novo” público para os serviços da Assistência Social, na verdade ele
“sinalizou” as famílias mais pauperizadas, possibilitando uma maior visualização dessas
famílias, ao mesmo tempo em que reforça o estigma da pobreza15, devido os critérios de
elegibilidade exigidos para ingresso no Programa. Isso reforça o pressuposto de que o PBF
é um programa socioassistencial, tendo características intersetorial por integrar a Política de
Assistência Social.
14
A pobreza é entendida como expressão da questão social. Segundo Iamamoto, a questão social
“condensa o conjunto das desigualdades e lutas sociais, produzidas e reproduzidas no movimento contraditório das relações sociais, alcançando plenitude de suas expressões e matrizes em tempo de capital fetiche” (2012, p. 155 e 156).
15 A palavra pobre representa, de acordo com Telles (1994), uma figura anônima escrita em negativo pela sua carência, ou seja, simboliza aquele que carece ou necessita de algo. Essa concepção camufla as reais causas da pobreza, projetando-a como um fato natural e colocando a culpa da
situação de miséria no indivíduo e na sua família.
4 CONCLUSÃO
O estudo mostra a existência de uma relação orgânica entre a Política de
Assistência Social e o Programa Bolsa Família no nível da Proteção Social Básica, no
município de Fortaleza. A inserção dos Nucad nos CRAS e a implantação de mais
equipamentos públicos desta natureza nos territórios do município supramencionado,
facilitou o acesso ao CadÚnico, ao PBF e outros projetos, programas e serviços
socioassistenciais. Além disso, o público desse Programa é percebido como o mesmo
público da Política, o que reforça sua característica socioassistencial. No entanto, os Nucad
que ficam fora da estrutura dos CRAS criam uma relação instrumental com a Política de
Assistência Social, mesmo que em casos específicos o usuário seja encaminhado aos
Centros de Referências. Dessa forma, é um desafio para os gestores dessa Política Pública
superar a especialização do conhecimento, precarização das condições de trabalho e a
setorialização da Política de Assistência Social e do Programa Bolsa Família.
É mister destacar que vive-se um momento de desmonte da Política de
Assistência Social no país que tem afetado diretamente a operacionalização do SUAS nos
Estados e Municípios. A criação de um campo minado que busca implodir essa Política
Pública em seus pilares centrais, especialmente a sua garantia como direito do cidadão e
dever do Estado, ou seja, Política Estatal, tem levado gestores, servidores, trabalhadores e
militantes do SUAS a se organizarem e buscarem alternativas de resistências a essa
conjuntura de contrarrevolução burguesa de amplitude global, para usar termo de Florestam
Fernandes citado por Ricardo Antunes (2017).
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O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM BEBERIBE: do dispositivo legal à
realidade local
Rejane Batista Vasconcelos1
Resumo O artigo condensa parte das reflexões produzidas em estudo realizado no município cearense de Beberibe, no período de fevereiro a março de 2017. Nele, o foco analítico será a distância – ou proximidade – entre o que prescrevem a legislação e as normativas que fornecem o desenho e a dinâmica da política de assistência social e do sistema que a organiza – Sistema Único de Assistência Social (Suas) – e a realidade local. Referido estudo é parte integrante da pesquisa desenvolvida, entre 2016 e 2017, em seis municípios do estado do Ceará, com vistas à avaliação de como, neste estado, vem se dando a implementação do Suas. Palavras-chave: Assistência como direito. Assistência como
dever. Política da assistência social. Sistema único de assistência social. Abstract
The article condenses part of reflections produced in a study carried out in the city of Beberibe, from February to March 2017. In it, the analytical focus will be the span - or proximity - of what is prescribed by laws and regulations that provide the design and dynamics of social assistance policies, including the system that organizes it – The Unified System of Social Assistance – face to face with local reality. This study is an integral part of the research that was carried out between 2016 and 2017 in six municipalities in the state of Ceará, aiming at evaluating how the introduction of the unified system is being executed in the state. Keywords: Assistance as a right, Assistance as a
governmental duty, Social assistance policies, Unified System of Social Assistance.
1 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Políticas Públicas e
Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel em Serviço Social pela Uece. Professora do Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas da UFC e do Curso de Serviço
Social da Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (Fametro).
1 A TÍTULO DE INTRODUÇÃO
O estudo2 de que deriva este artigo, juntamente com o estudo produzido em
outros cinco municípios cearenses por outros pesquisadores, integra a pesquisa “Avaliando
a Implementação do Sistema Único de Assistência Social na Região Norte e Nordeste:
significado do Suas para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil”,
que, por sua vez é parte constitutiva de um estudo nacional, ainda em andamento, que
permitirá dimensionar em que medida e de que forma o Suas está situado no processo de
enfrentamento à pobreza experimentada em partes várias do território brasileiro.
A proposta do artigo é avaliar como e em que medida este sistema de
assistência e a política social correspondente estão sendo postos em funcionamento em
Beberibe, município de pequeno porte II, ou seja, cidade cuja população encontra-se entre
20.000 e 50.000 habitantes. Em síntese, o pretendido, no artigo, é dar a conhecer as
distâncias e as proximidades entre o ideal propugnado pela lei e normativas específicas e a
realidade local, no tocante ao direito e ao dever de assistência social que cabem,
respectivamente, aos cidadãos que dela necessitem, e ao Estado, ente sobre quem recai a
obrigação de asseguramento do direito daqueles.
Beberibe localiza-se a 85 km de Fortaleza. Apresenta, conforme aferição de
2010, um IDHM de 0,638 (IBGE, 2016). O turismo ocupa um lugar privilegiado na economia
local, uma vez que o município possui extensa faixa litorânea constituída por praias e
recursos naturais (falésias) de inquestionável beleza, avalizada pelo destaque e
reconhecimento internacionais que conquistou.
Seria, pois, expectável que um município com essa vocação econômica e esse
padrão de reconhecimento não registrasse um grave problema no tocante à mobilidade do
conjunto dos munícipes: ausência de serviço de transporte coletivo. Isso repercute como
problema não passível de minimização por se considerar, sobretudo, sua vasta extensão
territorial que distancia, dificulta ou mesmo impossibilita o acesso da população usuária a
bens e equipamentos sociais – ponto a ser destacado entre os elementos de análise neste
estudo. Beberibe tem uma área de 1.623,878 km² ocupada por 49.311 habitantes,
significando uma baixa densidade demográfica, 30,37 hab/km, conforme censo de 2010
(IBGE, 2016). Por outro lado, abarca uma extensão territorial um pouco mais que cinco
vezes a área territorial de Fortaleza, que é de 314,930 km². Pode-se, daí, antever as
2 A realização do estudo coube às pesquisadoras Rejane Batista Vasconcelos e Vânia Maria Vasconcelos
de Castro, mestre em Avaliação de Políticas Públicas pela UFC, bacharel em Serviço Social pela Uece.
consequências trazidas para a população que demanda os serviços, benefícios e programas
da política de assistência social.
A pesquisa social que dá origem a este artigo construiu seus dados tomando
como fonte tanto os discursos produzidos no curso da realização de três grupos focais –
com usuários e usuárias que demandam a política de assistência social; com conselheiros e
conselheiras municipais de assistência social que, legalmente, têm, além do poder de
deliberar ações e programações relativas a essa política social, o dever de realizar o
controle social nesse mesmo âmbito; com técnicos e técnicas que executam a política de
assistência social nos equipamentos de referência da assistência social: o Centro de
Referência da Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (Creas) –, quanto o discurso de gestores responsáveis pela gestão da
política municipal de assistência social naquele município.
O percurso metodológico da investigação científica contemplou pesquisa
bibliográfica e documental acerca da política de assistência social no Brasil e no município
em estudo, assim como pesquisa empírica, que além da observação sistemática, empregou
os recursos técnicos de grupo focal e de entrevista semiestruturada. A pesquisa empírica
exigiu das pesquisadoras cinco visitas ao município, que ocorreram no período de fevereiro
a março de 2017.
2 DA REALIDADE DESEJADA E PLANEJADA À REALIDADE VIVIDA: do ideal ao
real no campo da assistência social
A assistência social, não se desconhece, esteve ao longo de séculos não só no
Brasil, mas em diversos países, estreitamente vinculada a expressões de caridade,
filantropia, benesse e favor, antes de adquirir a envergadura de direito do cidadão e dever
do Estado. No Brasil, a história dessa conquista não se conta antes de três décadas. E isso,
se tomarmos como referente o plano legal tão-somente!
A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 inclui a assistência social como
ramo, um dos braços da seguridade social: assim, se lhe confere o estatuto de política de
proteção social. Passados, então, oito anos, é que sua regulamentação emerge na Lei nº
8.742 de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social).
Mas seu desenho, a forma como se a pensava, o jeito com que se desejava vê-
la concebida e efetivada só vem em 2004, por meio da Resolução nº 145, de 15 de outubro
de 2004, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), que instituía a Política
Nacional de Assistência Social (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E
COMBATE À FOME; CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2004).
Em 2005, uma nova resolução – Resolução do CNAS nº 130 de 15 de julho de
2005 – apresentava a Norma Operacional Básica do Sistema Único da Assistência Social
(NOB-SUAS/2005). Ficava, a partir de então, definida a forma como a política deveria ser
planejada, organizada, efetivada, controlada (MDS; SECRETARIA NACIONAL DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2005). Esta norma vai ser substituída, em 2012, por meio da
Resolução do CNAS nº 33 de 12 de dezembro de 2012, pela NOB-SUAS/2012 (MDS;
SNAS, 2012).
A exigência de qualificação das equipes profissionais para o trato das questões
atinentes à área da política de assistência social vai ficar detalhada, definida na Norma
Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único da Assistência Social,
instituída por meio da Resolução do CNAS nº 269 de 13 de dezembro de 2006 (MDS;
SNAS, 2011).
As leis e resoluções mencionadas constituem o escopo normativo, legal que dá
forma e movimento à política de assistência social que deve ser posta em prática no
território brasileiro. Um conjunto de outras orientações foi também produzido, levando-se em
conta a necessidade inadiável e irrecusável de abolir, do terreno da assistência, as práticas
assistencialistas, aquela benemerência que subordina e subjuga os sujeitos que a ela
tenham de recorrer para assegurar o minimamente indispensável à continuação de suas
existências e as dos seus.
Mas, a despeito de bem delineada, praticamente diagramada, a política de
assistência não está imune a senões e críticas, sobretudo, de estudiosos da temática, que
denunciam, às vezes, pontos de choque, de enublação, riscos possíveis ou prováveis
decorrentes da introdução ou adoção de conceitos e de algumas perspectivas no interior de
suas práticas tanto discursivas, quanto técnico-operativas.
Um ponto de convergência em relação às críticas ou observações de alguns
desses estudiosos – entre os quais, Couto, Yazbek, Raichelis (2011) e Mota, Maranhão,
Sitcovsky (2009) –, que, de certa forma, traduzem o que ficou elencado como senões,
ponderações ou críticas são: a gradação da proteção social ou especificação de seus níveis
ou patamares de proteção (básica e especial); o risco de, ao se pôr em foco a família – de
fato, a unidade referencial do indivíduo –, e a ela direcionando todas as ações e
programações dessa política, virem a ser depositadas sobre ela também as
responsabilidades pela solução de variados problemas e situações adversas enfrentadas
por seus membros; a linha tênue que pode resvalar em instituição ou perpetuação de
processos discriminatórios, afirmadores de estigmas, quando da apropriação e propagação
acríticas dos conceitos de vulnerabilidade e riscos sociais.
De forma similar aos possíveis efeitos da indiscriminada apropriação e
propagação das categorias vulnerabilidade e risco social, a dimensão da territorialidade
pode conduzir à identificação segregante de determinados espaços, em torno dos quais
ficarão construídas barreiras físicas concretas, reais ou imateriais, mas, de modo algum,
imaginárias ou irreais, nem menos excludentes e cruéis, visto seu elevado potencial de
produção de interditos e de passaportes de trânsito a terrenos outros que se esquadrinham,
segundo a lógica que define o lugar social do sujeito, sua posição de classe. E, nesse
sentido, reclamam esses e outros estudiosos da política de assistência, a absoluta ausência
de discussão em torno da forma como na sociedade capitalista produzem-se as vidas e as
coisas. Na política de assistência social, passa ao largo a discussão de classe, da
contradição capital-trabalho, isto é, da razão que a fez – e continua a fazê-la – cada vez
mais necessária, irrecusável e urgente. Sem se tocar nas duas pontas desse nó, tudo o
mais que se faça será só e tão-somente só um jeito de ajustá-lo, apertá-lo, tornando-o, cada
vez, mais cego.
Com essa lente teórica crítica, e sob o norteamento de parâmetros legais e
regulatórios da política da assistência social, foram construídos os percursos da
investigação social levada a efeito em Beberibe. Do processo de coleta de informações à
construção dos dados para submissão dos mesmos à análise, tudo foi crivado por esse
exato entendido da política de assistência.
3 COMO SE DÃO OS PERCURSOS DA ASSISTÊNCIA EM BEBERIBE: os difíceis
caminhos de acesso à assistência
Com base no que o aparato regulatório e legal ordenador da política de
assistência social prescreve como seus princípios, diretrizes, objetivos, propósitos, eixos,
dimensões, exigências, será apresentado o resultado do cotejamento entre o que se
desenha como Suas e sua respectiva política e a realidade flagrante no município de
Beberibe. Esta, tanto narrada pelos sujeitos que propõem a política, gerenciam-na,
executam-na, controlam-na, avaliam-na e, dela, fazem uso (usuários), quanto a constituída
com base nas observações processadas in loco pelas pesquisadoras no curso das visitas ao
município e a equipamentos sociais em que são ofertados programas, benefícios e serviços
da política em análise.
O leitor fica, antemão, alertado de que nem todos os aspectos ou dimensões
serão apresentados neste momento, visto ainda encontrarem-se submetidos a processo de
análise.
3.1 Pensando a Política de Assistência no Plano Empírico: o que dizer da
universalização de direitos sociais, da igualdade de condições para acesso ao atendimento,
da participação e controle social?
A pilastra que ancora a análise trazida neste artigo está fincada no terreno de
alguns dos princípios, diretrizes ou objetivos da política de assistência.
A universalização de direitos sociais é dada como concreta, efetiva, se e
somente se o instituto do acesso ao atendimento configurar-se também como igual e
universal, porquanto as garantias de universalidade e de acesso são indissociáveis. São
princípios que não se realizam de per si.
Como, então, pensar possíveis, cumpríveis tais princípios em Beberibe,
município com IDHM 0,638, constituído por extensa área geográfica na qual, segundo
estimativa do IBGE, em 2016, distribuíam-se 52.7193 habitantes, quando a essa população
não fica garantido o direito básico a um sistema público de transporte? Põe-se, aí, a primeira
questão de várias que o estudo levantou.
Em 2010, havia no município um total de 84 ônibus e 79 micro-ônibus (IBGE,
2016). Embora, não tenha, no curso deste estudo, sido verificada a ampliação ou não desse
número de veículos, as pesquisadoras obtiveram o registro oficial (gestoras e técnicos) e o
de usuários da ainda inexistência desse serviço. Por seu turno, foi observada a destinação
desse tipo de veículo ao transporte de alunos da rede pública de ensino.
Incontestavelmente, os dados denunciam, senão a inacessibilidade, pelo menos,
o insuficiente ou precário acesso ao que a política possa vir a ofertar no que tange a seu
elenco de programas, serviços e benefícios.
Um dos princípios da assistência social propugna a “universalização dos direitos
sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas
públicas”. Admitida a indissociabilidade entre este princípio e o que se funda na defesa da
“igualdade de direitos no acesso ao atendimento” (BRASIL, 2017), a questão que emerge é:
como e em que medida pode aquele princípio ser efetivado, quando esse destinatário
encontra-se concreta e objetivamente limitado em seu direito primário de dar configuração e
direcionamento adequados a sua demanda, em face de expressos limites, dificuldades ou
mesmo inviabilidade de ele se deslocar de sua residência até uma unidade de referência da
política de assistência, local instituído para ofertar respostas ao que sua condição requisita?
3 O último censo do IBGE, realizado em 2010, registrou 49.311 habitantes no município. Para 2016, a
estimativa do instituto foi 52.719 habitantes (IBGE, 2016). A despeito dessa estimativa, o munic ípio figura como de pequeno porte II para fins de classificação no âmbito da Política Nacional de Assistência
Social, daí por que integrou o rol de municípios pesquisados.
Até aqui, não se clamou pelo atendimento ao que é demandado, mas tão-
somente foi reclamada, para o destinatário da assistência, a garantia de acesso ao direito de
exprimir sua demanda. Direito este marcado pelos já mencionados obstáculos, que se
agravam em decorrência de o município dispor de apenas quatro unidades referenciais da
assistência: três Cras – um deles, Cras Sertão, instalado na zona rural – e o Creas,
localizado no centro de Beberibe.
O Cras Sertão, instalado no distrito denominado Serra do Félix, dista,
aproximadamente, 45 km da sede do município. Compete a esta unidade de referência
assegurar, com sua equipe mínima, a cobertura assistencial de vasta área geográfica na
qual se encontram, de forma dispersa, pequenos povoados. Desse modo, na área territorial
a ser assistida pelo Cras Sertão, recrudesce a dificuldade de garantir ao destinatário da
assistência o acesso, tanto à expressão e ao direcionamento adequado de sua demanda,
quanto ao elenco de programas, serviços e benefícios ofertados pela política de assistência.
E, do usuário habitante deste território, que vivencie situações ou problemáticas inscritas no
patamar da proteção social especial, sem dúvida alguma, será exigido esforço maior para
que sejam transpostos os obstáculos que o distanciam do acesso a seus direitos.
O fato é que esforços individuais ou coletivos, efetivamente envidados pelas
equipes dos Cras e Creas, sob tais condições, revelam-se exíguos para garantir ao
destinatário da assistência social o acesso tanto à expressão e direcionamento de suas
demandas, quanto a seu efetivo atendimento, seja no âmbito da assistência social, seja no
campo extensivo às demais políticas públicas.
Como veículo de inclusão do usuário da assistência no terreno das demais
políticas públicas, o princípio da universalização dos direitos sociais perde força, decai, à
medida que não caminha, pari passu, com instituto do acesso pleno a esses direitos,
expresso na garantia da materialidade desses, em sua substancialização que exorciza essa
aura que os circunda, essa natureza abstrata que os faz cativo nos discursos, à proporção
que se distanciam da vida cotidiana e abandonam o plano da realidade.
Em um cenário crivado pelos obstáculos como os elencados aqui, não se
configura surpresa alguma que o controle social e a participação popular apresentem-se de
modo incipiente.
No tocante ao controle social ao qual a política de assistência social deve
encontrar-se permanentemente submetida, a análise preliminar dos dados – construídos
com base nas falas de segmentos de usuários e usuárias, de conselheiros e conselheiras,
de técnicos e gestores – revelou tratar-se de uma questão que reclama atenção e esforços
redobrados, tendo em vista que este eixo da política é irrecusável para a garantia da
obtenção do propósito para o qual a política de assistência social emergiu no texto da
Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.
Em Beberibe, trazendo como referente o laborioso processo a que, às vezes, os
destinatários da assistência social têm de submeter-se para, até mesmo, construir suas vias
de acesso ao atendimento no âmbito da política de assistência social, sequer seria razoável
alimentar, de pronto, a expectativa de que tais sujeitos tomem – ou houvessem tomado –
para si, e em conjunto com outros segmentos, a tarefa de controlar o modo como, no
município, a assistência social ganha forma, dimensão e alcance.
A distância territorial – em si mesma, um dificultador – fabrica uma série
enumerável de outros obstáculos que podem responder, entre outras coisas, tanto pela débil
manifestação organizativa do coletivo, quanto pela, às vezes, insuficiente e acanhada
participação popular nos espaços constituídos, entre os quais, o conselho. A forma com que
os sujeitos se distribuem – ou são, forçosamente, distribuídos – nos espaços, nos territórios
pode promover ou impedir a constituição de laços sociais de organização e força, essenciais
à luta pela conquista, consolidação e continuidade do direito a direitos sociais. Eis a razão
por que, neste artigo, a problemática da mobilidade dos munícipes é traçada com força, é
descrita com contundência; ela responde, pelo menos, em parte, pela condição embrionária
e insuficiente em que ainda se situada a participação popular no âmbito da política de
assistência social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi dito, o propósito que este artigo reserva é o de apresentar parte dos
resultados de uma investigação social realizada, entre fevereiro e março de 2017, em
Beberibe, um dos 184 municípios do estado do Ceará.
O estudo empreendido naquele município possibilitou dar a conhecer em que
medida e de que forma a política de assistência social, cujas ações ficam organizadas e
gerenciadas pelo Sistema Único de Assistência Social, instituído em âmbito nacional, em
2005, está fazendo frente à pobreza naquela região. Assim sendo, como propósito
derradeiro pretende avaliar a implementação deste sistema, após uma década de sua
implantação.
Especificamente, para este artigo, foram eleitos aspectos ou dimensões da
realidade local, que ficaram destacados, ressaltados, tanto pela via da observação
sistemática realizada pelas pesquisadoras, durante o período de sua permanência no
município, quanto nas falas de gestores, técnicos ou usuários da política de assistência
social.
A vastíssima extensão territorial do município foi elemento que interceptou todas
as análises, aqui, processadas; ela foi pano de fundo tanto na discussão do princípio da
universalização dos direitos sociais e no de igualdade de direitos no acesso ao atendimento,
quanto na discussão da participação popular e do controle social. Bem assim, foi
evidenciada, quando se tratou da questão do escalonamento ou grau de complexidade das
situações e problemáticas que inscrevem as ações responsivas da política social em níveis
ou gradações que requerem uma proteção mais ou menos complexa, mais ou menos
especializada: proteção social básica ou proteção social especial – de média ou alta
complexidade.
A dimensão territorial de Beberibe é fator central na discussão de qualquer
política pública que venha a ser desenvolvida no município, daí, ela ter figurado como vetor
das análises, aqui, tecidas. Isso porque, em uma extensão territorial dessa proporção, os
equipamentos sociais instalados parecerão – isso, se não o forem, de fato – insuficientes.
Até porque, como infere a densidade demográfica do município, 30,37 hab/km, a população
parece dispersa em um vasto território, isso pode conduzir a uma distribuição absolutamente
desigual de bens e serviços ofertados pelo Estado, além da acentuação da desigualdade de
acesso ao atendimento ou mesmo a negativa desse atendimento.
Tal realidade é agravada pela inexistência de um sistema de transporte público,
condição que sentencia um contingente considerável de munícipes ao isolamento, à
subtração de seu direito ao direito de igualdade de acesso a serviços, programas e
benefícios ofertados pela política de assistência social e por outras políticas públicas. O
isolamento, ademais, inabilita o sujeito para o exercício de seu direito de organização, de
reivindicação e protesto; nega a plenitude de seu direito de participação nas decisões que
lhe afetam a vida e a dos seus; impossibilita-o de exercer controle sobre as ações,
programas e serviços das políticas públicas, como é seu direito e dever fazê-lo. Restringe-
lhe a vida na esfera pública; torna-o cativo da vida privada.
O desenho da política de assistência social em Beberibe está, assim,
emoldurado.
Neste momento, é imperativo deixar assinalado que este artigo trouxe tão-
somente um recorte específico do estudo desenvolvido no município de Beberibe; há outros
elementos, outras dimensões e sujeitos que agregaram informações para compor a análise
realizada pelas pesquisadoras, que, aqui, não foram destacados, visto que tal não era o foco
analítico deste trabalho.
Mas, um registro há que se fazer: a abertura, a anuência dada pelo município
para que as pesquisadoras adentrassem o espaço institucional com liberdade para realizar o
estudo, somada, tanto à disponibilidade e disposição do conjunto de trabalhadores do Suas
e de usuários da assistência social no sentido de colaborar no processo de obtenção de
informações para entendimento da realidade, quanto à garantia de transporte e estrutura
para o trabalho das pesquisadoras, propiciaram grande parte do êxito do empreendimento
científico levado a efeito em Beberibe.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 2015.
_____. Lei Federal nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993 (Lei orgânica da assistência social). 4. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, 2017.
COUTO, Berenice Rojas; YAZBEK, Maria Carmelita; RAICHELIS, Raquel. A política de assistência social e o suas: apresentando e problematizando fundamentos e conceitos. In: COUTO, Berenice Rojas; YAZBEK, Maria Carmelita; SILVA e SILVA, Maria Ozanira; RAICHELIS, Raquel (Orgs.). O sistema único de assistência social no Brasil: uma realidade em movimento. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
IBGE. Beberibe. Disponível em:<https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/beberibe>. Acesso em 20 jun. 2017.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME; SECRETARIA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Resolução nº 145 de 15 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Assistência Social. Política nacional de assistência social. Brasília: MDS; CNAS, 2004.
_____. Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social nº 130 de 15 de julho de 2005. Norma operacional básica do sistema único da assistência social (NOB-SUAS/2005). Brasília: MDS; CNAS, 2005.
_____. NOB-RH anotada e comentada. Brasília: MDS; SNAS, 2011.
_____. Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social nº 33 de 12 de dezembro de 2012. Norma operacional básica do sistema único da assistência social (NOB-SUAS/2012). Brasília: MDS; SNAS, 2012.
MOTA, Ana Elizabete; MARANHÃO, Cezar Henrique; SITCOVSKY, Marcelo. As tendências da política de assistência social, o suas e a formação profissional. In: MOTA, Ana Elizabete (Org.). O mito da assistência social: ensaios sobre estado, política e sociedade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
OS PERCURSOS QUE REVELAM OS EMBATES ENTRE O SISTEMA ÚNICO DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL E AS PRÁTICAS ASSISTENCIALISTAS
Vânia Maria Vasconcelos de Castro
1
Resumo
Este artigo resulta de um esforço inicial de inserir um município de pequeno porte II, localizado na macrorregião Sertões de Canindé do estado do Ceará, em uma pesquisa intitulada “Avaliando a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na Região Norte e Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil”. A proposta descreve os percursos da pesquisadora que, movida pelo propósito de ver este município incluído na pesquisa nacional, as diversas investidas nessa direção, se deparou como embates entre o Sistema Único de Assistência Social e as práticas assistencialistas perpetuadas naquele município. Palavras-chave: Política da assistência social. Práticas
assistencialistas. Sistema único de assistência social. Abstract
This article is an upshot from an initial effort to insert a small municipality, classified as size II, located in the hinterlands of Canindé, a large region of the State of Ceará, in a research entitled "Evaluating Insertion of the Unified System of Social Assistance (SUAS) in the North and Northeast: The Meaning of SUAS for Confronting Poverty in the Poorest Regions of Brazil". The proposal describes the pathways of the researcher who, due to her effort to inserting this municipality in the national research, in face of several initiatives in this direction, witnessed crashes between the Unified System of Social Assistance and welfare practices carried out in that region. Keywords: Social assistance policies, Welfare practices,
Unified system of social assistance
1 INTRODUÇÃO
Este artigo foi gestado a partir de um esforço inicial de inserir um município de
pequeno porte II, localizado na microrregião dos Sertões de Canindé e mesorregião do norte
do estado do Ceará em uma proposta de pesquisa nacional que pretendia realizar uma
1 Mestra em Avaliação em Política Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Bacharel
em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
avaliação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) após dez anos de sua
implementação.
A partir da abertura inicial que foi um momento realizado no auditório da
Universidade Estadual do Ceará para apresentação da pesquisa, foram convidados
gestores, técnicos e técnicas das secretarias municipais de assistência social do estado do
Ceará com o objetivo de explicar do que se tratava a pesquisa e, consequentemente, ouvir a
manifestação dos presentes, que em tese, estavam representando os municípios que, por
ventura, desejariam participar da referida pesquisa. Assim, este município ficou, então, entre
os sete do estado do Ceará selecionados a participarem da pesquisa nacional.
Começa-se todo um esforço de duas pesquisadoras 2 , para estabelecer um
contato com o município no propósito de realizar a pesquisa de campo para o que se
pretendia naquele momento que era proceder a uma avaliação da implementação do SUAS
após dez anos depois de sua instituição no estado do Ceará. As diversas investidas via
telefone com a responsável legal pela Secretaria de Assistência Social não foram exitosas.
Isso determinou a ida das duas pesquisadoras ao município na tentativa de estabelecer,
presencialmente, contato com o poder executivo municipal, supondo haver algum problema
na comunicação. Assim, a visita se deu de forma inesperada ao município e teve com o
objetivo de dirimir essa suposta dificuldade na comunicação telefônica e de possibilitar a
realização da pesquisa no município.
Com aproximadamente 95km de distância da capital de Fortaleza, as
pesquisadoras chegaram ao município de Caridade no dia 30 de maio de 2016. Já no
município, a iniciativa se deu, primeiramente, pela procura da Prefeitura Municipal de
Caridade com o propósito de falar com a prefeita objetivando apresentar a proposta da
pesquisa nacional. Assim, se dirigiram ao centro da cidade em busca da sede da prefeitura
e, ao chegarem, se depararam com algo inusitado: não havia nenhuma placa que
identificasse aquela estrutura como órgão público.
Ao se identificarem na recepção, as informações dadas pelos assessores da
prefeita davam conta de que a mesma estava em reunião em Fortaleza. Assim, partiram
para outra investida a fim de pudessem se dirigir a um dos órgãos ou equipamentos da
assistência social com o propósito de procurar alguém para avalizar a entrada das
pesquisadoras naquela cidade. Começa-se, então, um percurso pela cidade.
2
Vânia Maria Vasconcelos de Castro, autora deste texto e a pesquisadora Rejane Batista Vasconcelos, doutora em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e professora da
Faculdade Metropolitana de Fortaleza (Fametro).
2 Dos Percursos e dos Esforços como Experiência para Iniciar a Intenção da
Pesquisa no Município de Caridade
Ao começar a fazer um percurso pela cidade, o município foi expondo uma visão
panorâmica das pessoas diante da dificuldade em localizar os órgãos públicos, sobretudo,
os órgãos e os equipamentos públicos da assistência social. Ao interpelarem as pessoas
que circulavam nas ruas às quais se dirigiam, perceberam que os munícipes tinham
dificuldade em responder. As pessoas não sabiam, com precisão, onde os órgãos públicos
estavam localizados ou do que se tratavam os mesmos; não sabia onde localizava onde se
localizava a Secretaria de Assistência Social, como também, o Centro de Referência da
Assistência Social (CRAS).
Na busca de encontrar os equipamentos da assistência social foi aventada a
possibilidade de uma escola municipal que, de algum modo, pudessem informá-las o órgão
pela qual estavam a procurar. E, para a singular surpresa, ao interpelarem uma professora
que estava a passar pelo portão principal da referida escola, a mesma informou que não
sabia localizar e que não tinha conhecimento do que se tratavam estes órgãos. Apenas um
senhor que, ouvindo aquela movimentação em frente ao portão da escola, interrompeu e
apontou para uma casa de frente à mesma escola, indicando que, talvez, seja aquela, o
espaço que estavam a procurar.
Partindo para o outro lado da rua, pois ainda se pensava a ser este o município
como campo da pesquisa, algumas indagações se irromperam: como as pessoas tinham
acesso a seus direitos, aos serviços e aos benefícios que cabe à política de assistência
social garantir se os munícipes tinham dificuldade em informar e de saber do que se tratava
o órgão gestor da assistência social?
Ao passo em que estavam a se aproximar do que seria a sede da secretaria de
assistência social, cuja estrutura semelhante a uma residência, também nenhuma placa que
a identificasse como órgão público existia. Adentrando àquele espaço estava uma pessoa
atrás de um birô, manuseando alguns documentos, que se identificou como coordenadora
da assistência social. Mesmo não apresentando pouca desenvoltura para o cargo que
informou ocupar, a coordenadora informou que a secretária da pasta não se encontrava
como também nenhum profissional técnico da área social, pois a única assistente social
servidora estava gozando de sua licença maternidade.
A coordenadora entrou em contato telefônico com a própria secretária e, como
se não obtivesse êxito, indicou às pesquisadoras se dirigirem até a casa da secretária.
Mesmo ponderando a inconveniência de procurá-la em sua residência, a coordenadora de
modo muito tranquilo, informou as pesquisadoras que não haveria problema, pois, a gestora
não se dirigia à secretária e que despachava em casa.
Embora estando em um curto tempo, dois pontos foram observados no entorno
daquele espaço que chamou a atenção das pesquisadoras: um certificado afixado na
parede que divulgava que o município tinha ganho um Prêmio 2015 de “Melhores Práticas
de Assistência” e um altar com a imagem do santo padroeiro da cidade. Na ocasião, não
havia movimento pessoas circulando naquele recinto, apenas a presença da auxiliar de
serviços gerais e da coordenadora.
Na tentativa de encontrar a secretária em sua residência, as pesquisadoras se
dirigiam ao endereço fornecido e ao chegar na residência indicada, outro fato as
surpreendeu: o portão de acesso ao interior da casa encontrava-se aberto. Ao serem
atendidas por uma jovem que se apresentou como pessoa que trabalhava naquela
residência, ao ser interpelada sobre a procura da secretária de assistência social, a jovens
dirigiu o olhar como se não soubesse informar se a mesma estaria ou não em casa. Ao
retornar do interior da casa, permitiu a entrada das pesquisadoras pois a avó da secretária
poderia recebê-las.
Aqui, então, começa-se a estruturar a proposta deste artigo, a partir da figura
dessa senhora, da avó da secretária de assistência social e também sogra da prefeita do
município de Caridade. Ela, a avó, desvenda como que a Assistência Social no município se
encontra, pois, todo o percurso realizado na cidade se remetia àquilo que tem de modelo
das práticas assistencialistas, certamente, um pouco antes do modelo filantrópico: as
práticas coronelistas.
2.1 Da Vista à “Casa-Grande”
Revisitar o passado – um passado não vivido pela autora deste artigo – porém,
conhecido por meio da história – ao observar aquele cenário se fez descortinar diante de
seus olhos o que havia nos livros de um tempo que se pensava ter sido sepultado: a
imagem e semelhança da “Casa-Grande”.
Da cena nítida de uma varanda, uma espécie de alpendre, extenso na lateral da
casa, onde havia duas grandes mesas: sobre a primeira, estavam dispostos copos, uma
garrafa com café, jarra com água e biscoitos; e na outra, nada sobre a mesa – porém mais
imponente que a primeira. Para a segunda mesa, foram conduzidas as pesquisadoras e, de
imediato, oferecido café, água, biscoito e doces.
Enquanto aguardava a avó da secretária atendê-las, a observação continuava
sendo o melhor método para uma posterior análise: um fluxo – de entra e sai de pessoas
naquela casa, um movimento, não visto nos outros espaços que passaram.
Sentadas em torno da primeira mesa, três mulheres se serviam e conversavam,
a impressão de que também aguardavam alguém. Na outra mesa, as pesquisadoras eram
servidas com um cuidado diferenciado em relação as outras pessoas que, na outra mesa, se
serviam.
Decorrido algum tempo, uma senhora aparece na varanda, a avó da secretária.
Muito reticente em se apresentar não revelou seu nome enquanto as pesquisadoras
dissessem de onde eram e do que se tratava a presença delas ali. A referida senhora
aparentava ter mais de sessenta anos, de personalidade forte e com vigor de quem tem um
domínio muito grande da situação seu entorno.
Ainda em pé, resistente em falar seu nome até que concluíssem o objetivo da
visita e da importância de contatar a secretaria de assistência social, revelou seu nome e se
apresentou como avó da secretária. Saiu para entrar em contato via telefone com a neta e,
ao retornar, nos informou que ela estava a resolver uma questão particular e que retornava
para o almoço. Assim, pediu às pesquisadoras a aguardassem.
Sentou um pouco à mesa e começou a desvelar sobre sua trajetória na política.
Chegou a reclamar que a família não se interessava muito por política como ela! Relatou
que seu marido tinha sido vereador da Câmara Municipal de Canindé – município do qual
Caridade emancipou-se pela interveniência de um deputado estadual, a pedido de seu
marido –, e que foi o primeiro prefeito de Caridade.
Falou que, ela mesma já tinha sido vereadora, chegando também a integrar a
chapa de uma candidatura à prefeitura como vice-prefeita, tendo sido derrotada à ocasião.
Relatou que seu filho, esteve à frente do executivo municipal por dois mandatos
consecutivos, e agora, sua esposa, nora da referida senhora, é quem estava assumindo a
prefeitura. A secretária de assistência social, sua neta, sobrinha legítima do ex-prefeito,
além de ocupar a pasta da secretaria de assistência social, a mesma também acumulava
mais outra pasta: a Secretaria de Educação e de Cultura.
Enquanto a conversa se dava com a referida senhora, a todo instante, a mesma
era abordada por pessoas, que pareciam ser da comunidade como também por servidores
de órgãos da prefeitura (Secretarias de Saúde, Educação e Guarda Municipal) que pareciam
prestar-lhe informações. Pela forma como se relacionavam – a senhora e os servidores –
deu a impressão de que é prática corriqueira a prestação de contas do que se passa no
interior dessas instituições, inclusive, de pedir-lhes a bênção.
Falou da origem de daquele espaço, quando se referiu que a localização da
casa foi muito bem pensada e que Deus a tinha colocado ali. Orgulhava-se em dizer que a
própria estrutura favorecia essa recepção dos munícipes, ressaltando que aquela casa
estava aberta para isso. Ao observar aquele movimento, foi possível perceber que, dentre
as pessoas que aguardavam, algumas delas pediam de modo muito discreto, gêneros
alimentares.
Algumas indagações irromperam as pesquisadoras: quem é essa senhora, uma
figura expressiva neste município, que possui não só um domínio da política como exerce
um modelo de gerir a coisa pública? Quem é essa senhora, sogra da prefeita, cujo filho foi
prefeito por dois mandatos consecutivos, alternadas por membros de sua família? Sua neta,
a secretária de assistência social que acumulava também as pastas da Secretaria de
Educação e da Secretaria da Cultura, cujo o pleito eleitoral realizado em outubro de 2016,
viria a ser a nova prefeita do município de Caridade?
Ela pareceu dar a direção das práticas não só assistencialistas – como também
as nuances políticas estruturais existentes no município. Trazer para a análise, o termo
“Casa-Grande” é dessepultar o conceito de Freyre como referência expressa do modo de
organização social e política perpetuada neste município onde a figura de uma matriarca
transforma sua casa como sede do poder do executivo.
Legalmente, a referida senhora não tem nenhuma ligação com o executivo, a
não ser a ligação de parentesco. Entretanto, o modo como coloca o seu espaço privado em
que o acesso dos munícipes parece franqueado, uma vez que os portões abertos, onde
visitantes chegando àquele município, nenhuma autoridade da república federativa presente
para responder questões sobre o município, sobretudo, pessoas na condição de agentes
públicos dirigirem terceiros até a “Casa-Grande” quando lá não era um órgão público, se
torna, no mínimo, questionável.
Este quadro assemelha-se em muito a um modelo que se pensava, de algum
modo, pelo menos, já ter sido debelado – o modelo coronelista. Tudo parece passar pela
análise – para anuência ou não – da referida senhora. Isso levou a inferir que a inexistência
de visível identificação (placa) dos órgãos municipais públicos não é despretensiosa: havia
nessa prática um propósito claro, objetivo, que é o de submeter o atendimento, a
seletividade de todas as demandas comunitárias ao controle, à subordinação de um modus
operandi de gerir a coisa pública para o plano privado.
Na história das práticas assistencialistas que, se pensava também estarem
diluídas, a atuação das primeiras-damas no Brasil, enquanto representação social no âmbito
do assistencialismo, a filantropia e a benesse fortaleceram no imaginário coletivo da
população um estreito vínculo e direção dos pobres para os serviços da assistência social.
Conforme Torres (2002, p. 93), as primeiras-damas “representaram papéis que
evocaram a generosidade e caridade humana”. Foram representações marcadas por
sentimentos isentos de criticidades em uma experiencia de dependência e de passividade.
Evidentemente que, não se trata de analisar o primeiro-damismo neste
município, porém há semelhanças nas práticas assistencialistas observadas de forma
estruturante que mantém o controle e a dependência da população a um modelo que
permite a perpetuação de uma família no poder político.
O movimento observado naquele espaço privado, em que as pessoas exercem
uma prática de se dirigirem até a “Casa-Grande”, onde aquela senhora passa a mediar
questões que se diz respeito a coisa pública, da res-pública, remete às práticas
assistencialistas como modelo de dominação política dos pobres.
Como afirma Torres (2002, p.95) a relação de dominação que as primeiras-
damas mantêm com os usuários das práticas assistencialistas “constitui uma face cruel da
opressão que conduz à passividade tratando esses usuários como seres dependentes
desse tipo de serviço”.
A considerar que após três décadas, a Constituição Federal de 1988 já havia
sido reconhecido no seu texto no Art. 203, a Assistência Social como direito do cidadão e
dever do Estado, inscrita no patamar de uma política de proteção social, perceber que o
modelo adotado pelo município de Caridade, conforme o texto constitucional que consagra a
Política da Assistência Social enquanto política pública, parecia pôr, de algum modo, a
apontar na direção no desuso em detrimento às práticas assistencialistas.
2.2 O município de Caridade: análise de um breve resgate histórico à realidade local
A história do surgimento deste município não se difere da maioria da origem dos
municípios cearenses. O topônimo Caridade é uma alusão a uma instalação de missionário
religiosos que, por volta de 1880, edificaram uma capela ao padroeiro da cidade Santo
Antônio e que decidiram também mudar o nome daquela localidade – à época chamada de
Fazenda Cágado – passando a ser chamada Caridade.
Como distrito, criado por ato provincial em 04 de janeiro de 1911 e por ato
estadual nº 1039, de 04 de agosto de 1911, foi subordinado ao município vizinho, Canindé,
distante apenas 20 km. Foi elevado à categoria de município mantendo o mesmo topônimo
Caridade pela lei estadual nº 4157 em 06 de agosto de 1958.
Legalmente emancipado há 59 anos, sua população estimada pelo IBGE em
2016 está em torno de 22.065 habitantes, com área em unidade territorial de 846,505 km² e
densidade demográfica de 23,65 (hab/km²).
Dados gerais retirados do IBGE, PNUD e IPECE de 2010, dão conta de que o
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) está em torno de 0,592. A renda per
capita é de R$ 213,18. A desigualdade de renda descrita pelo Índice de Gini, em 2010, está
em torno 0,50. A mortalidade infantil está em torno de 21,70% por mil nascidos-vivos.
Das pessoas ocupadas na faixa etária de 18 anos ou mais do município, 32,63%
trabalhavam no setor da agricultura, 7,85% na indústria de transformação, 10,29% no setor
de construção, 0,82% nos setores de utilidade pública, 9,53% no comércio e 36,77% no
setor de serviços.
Do poder público municipal, a marca do poder local se dá pela alternância no
poder executivo, apenas, com os membros de uma única família que passa por sucessões
eletiva de seus membros como se fosse herança. Hoje, a atual prefeita eleita no pleito
eleitoral de 2016 é a neta da senhora da “Casa-Grande”, a ocupante das duas pastas da
gestão anterior de sua tia onde uma das pastas era a Secretaria de Assistência Social.
Para a análise deste cenário, é possível elencar três pontos relevantes. Primeiro,
a chegada da missão religiosa em 1880 e que muda o nome para Caridade não só instalou
como lá ficou. Um dos elementos que chama a atenção das pesquisadoras refere-se à
dificuldade de laicização do Estado. Todos os órgãos públicos observados no percurso
realizado pelas pesquisadoras, havia um espaço dedicado às imagens do padroeiro do
município bem como imagens de outros santos.
Se nos espaços que deveriam exercer a coisa pública a marca da religiosidade
era latente na “Casa-Grande”, no espaço privado, não seria diferente. Já na entrada de
acesso à casa era perceptível o apelo a essa questão da religiosidade. Assim, é possível
inferir que municípios onde não se vê a ruptura do estado com a Igreja se torna
problemático no que se diz respeito a execução das políticas públicas.
Segundo, a ingerência da coisa pública. A instauração de um modelo de gerir a
coisa pública no âmbito do espaço privado de uma única família. A começar pela não
necessidade de se tornar dispensável a identificação dos órgãos públicos, uma vez que, as
questões públicas são tratadas no plano privado: na “Casa-Grande”.
Um dos elementos graves observados trata-se de que o município se revela
impermeável a nenhuma comunicação. Há uma impermeabilidade para que nenhuma
visitação de terceiros seja feita para análise do município. Um modus operandi de gerir a
coisa pública em que não há preocupação alguma com a transparência pública e o controle
social que possa ser feito por meio de instituições de pesquisa.
Terceiro, a institucionalidade da política de assistência social e do seu
mecanismo de gestão o SUAS, conforme as impressões das pesquisadoras, apontam para
um completo desuso neste município.
Em verdade, nem os princípios previstos na Lei Orgânica da Assistência Social –
promulgada há vinte e quatro anos – no que se referem, à universalização do acesso para
os que necessitam da assistência; o respeito à dignidade, à autonomia, aos serviços de
qualidade; a igualdade de direitos; a dimensão pública dos serviços, como também, as
diretrizes necessárias para implantação da política de assistência social – onze anos depois
em que ganha sua configuração e seu desenho – a descentralização político-administrativa;
a participação da população e a primazia da responsabilidade estatal, não se faz ser
sinalizada enquanto política pública neste município.
O modelo estrutural implantado pelo poder político local aponta para um quadro
grave da assistência social neste município que gira em torno de práticas assistencialistas
assentadas no modelo em que, aquele que ganha a eleição – rodízio em torno da mesma
família – para o cargo executivo, rateia para aqueles que entendem os benefícios e as
concessões possíveis e passíveis de serem entregues.
A política de barganha, aquela onde prêmio de “Boas Práticas na Assistência
Social de 2015”, recebida pela Secretaria de Assistência Social, trata-se de uma revista de
municípios que financiam o próprio prêmio.
É que, ainda há, antes da gente conseguir avaliar a própria Assistência Social, a
gente tem que avaliar se ela já é política. Se ela se desenha enquanto política. O embate
ainda parece muito mais longe do que se possa imaginar, pois avaliar um sistema – o SUAS
– que incorpora essa política, que põe essa política em movimento, primeiro se faz
necessário analisar se ela se desenha enquanto política pública naquele município.
Conforme a experiência da intenção de pesquisa neste município, é possível
constatar que a Assistência Social ainda é um grande seleiro de controle e de manipulação
da pobreza que se põe como uma luva na perpetuação de um modelo arcaico, porém tão
presente, que é o modelo coronelista de se fazer a pequena política.
A política de assistência social não transformada em Política ainda se torna um
terreno fértil de perpetuação da miséria e um seleiro propício para a manutenção do status
quo. O embate não se faz, ainda, discutir as melhorias ou a sua consolidação. O embate é
transformar a Assistência Social em política pública naquele município.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os percursos e os esforços impressos para uma possível realização de uma
pesquisa revelaram para as pesquisadoras um embate fundante entre o Sistema Único de
Assistência Social e as práticas assistencialistas perpetuadas neste município: o modus
operandi de gerir a coisa pública.
A manipulação e o controle sempre fizeram parte do exercício de poder para a
manutenção do status quo. Porém, a perpetuação de uma única família no poder executivo
municipal sem o compromisso algum com a coisa pública e a manipulação da população
pobre por meio do controle e da dependência revelam que este município ainda nem se
“laicizou” e nem se “estatizou”.
O modelo instaurado nesse município que mantém os pobres sobre o controle,
não permite aos mesmos ter um outro olhar daqueles que se perpetuam no poder para além
de “generosos”. Para descortinar essa situação, a população pobre precisa entender que
enquanto política pública, eles podem, no mínimo, questionar.
O embate parece ser mais profundo: confrontar a casta sucessória e persistente
naquele município e esclarecer para a população que existe uma política pública de
proteção social que assegura direitos e deveres no âmbito da Assistência Social e que deve
ser garantido pelo Estado.
Os percursos na direção de dar a conhecer como o SUAS em Caridade se
encontra, a emblemática constatação é de que não chegamos ao SUAS. Não é que não
exista, o que se pode constatar é que os percursos da Assistência Social no município de
Caridade estão fincados ainda em um modelo de política que se assemelha às práticas
assistencialistas.
O fato de existir uma sede de uma secretaria, dois equipamentos da proteção
social básica e um da proteção social especial não significa dizer que funcione. Por vezes se
torna obrigatório a existência de um equipamento para se dizer que exista uma determinada
política, mas não significa dizer que, necessariamente, este equipamento esteja em
funcionamento para aquilo que ele se destina ou que tenha qualquer outro funcionamento.
O embate crucial não parece ser a identificação da melhoria ou a diminuição dos
entraves para a implantação de um sistema que deveria pôr em movimento a política de
assistência social, o embate está, exatamente, fincado na instauração da condição de
política pública para a Assistência Social.
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