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8/16/2019 POULANTZAS N O Estado o Poder o Socialismo PDF
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P894e
Copyright
by Presses Universitaires de France, 1981
Traduzido do original em franc•s
L
état, le pouvoir, le socialisme
-
ler édition
-
1978
CIP-Brasil. Catalogaç‹o-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN-85-7038-017-8
Poulantzas, Nicos
O Estado, o poder, o socialismo
Nicos Poulantzas.
-
S‹o
Paulo:
Paz e Terra. 2000
(Biblioteca de Ci•ncias sociais; v. n. 19)
I. Socialismo I. T’tulo II. Série
80-0769
CDD-335
CDU-330.342.1S
EDI‚ Í ES GRAAL LTQA.
Rua Hermenegildo de Barros, 31 A
Rio de Janeiro
-
RJ
-
CEP 20241-040
PAZ E TERRA S. A.
Rua do Triunfo, 177
Santa Ifig•nia, S‹o Paulo,
SP-
CEP01212-010
Tel.: (011) 223-6522
E-mail:[email protected]
Home Page:www.pazeterra.com.brt
2000
Impresso no Brasil I Printed in Brazil
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êNDICE
Advert•ncia ,..................................... 7
IN'I'RODU‚ Ì O 9
I
Sobre a Teoria do Estado 9
n. Os Aparelhos Ideol› gicos:
o Estado, repress‹o
+
ideologia?............................... 26
m.
O Estado, os poderes e as lutas 33
PRIMEIR P RTE
A MATERIALIDADE INSTIrUCIONAL DO ESTADO ...... 47
I.
O trabalho intelectual e o trabalho manual:
o saber e o poder 51
n. A individualizaç‹o 60
1
- A ossatura do Estado e as técnicas do poder 60
2
-
As ra’zes do totalitarismo 67
m. A
Lei 74
1
- Lei
e Terror 74
2
-
A Lei Moderna 84
IV.
A Naç‹o
91
1
- A matriz espacial: o Territ—io 98
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PRIMEIRA PARTE
A MATERIALIDADE
INSTITUCIONAL
DOESTADO
Podemos agora voltar ao nosso problema inicial: a materiali-
dade institucional do Estado como aparelho "especial" n‹o pode ser
reduzida a seu papel na dominaç‹o pol’tica. Deve ser, antes de mais
nada, procurada na relaç‹o do Estado com as relaç› es de produç‹o
e a divis‹o social do trabalho que elas implicam. Mas esta relaç‹o
'n‹o é de ordem epistemol—ica diferente da relaç‹o do Estado com
as classes sociais e a luta de classes. Colocar o Estado em relaç‹o
com as relaç› es de produç‹o e a divis‹o social do trabalho nada
mais
é
que o primeiro momento, certamente diferenciado, de um
único e mesmo processo: o de relacionar o Estado com o conjunto
do campo das lutas. ƒ isso que tentarei mostrar aqui com refer•ncia,
mais particularmente, ao Estado capitalista, sem reportar-me, de
maneira exaustiva, a an‡lises feitas em meus textos precedentes.
Contentar-me-ei em aprofundar e completar determinados pontos,
retificar outros, ˆ luz de an‡lises que somos, agora, capazes de fazer.
A questão que tentei responder j‡ em Poder politico
e
classes
sociais era a seguinte: Por que a burguesia disp› e, para sua domina-
ç‹o polí tica, deste aparelho de Estado absolutamente espec’fico que
é o Estado capitalista, este Estado representativo moderno, este Es-
tado nacional-popular de classe? De onde provém a ossatura mate-
rial primeira deste Estado? Minhas an‡lises j‡ se situavam na se-
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guinte direç‹o: esta materialidade baseia-se na separaç‹o relativa do
.
Estado e das relaç› es de produç‹o sob o capitalismo. O fundamen-
to desta separaç‹o, princí pio organizador das instituiç› es pr—rias
do Estado capitalista e de seus aparelhos (justiça, exército, adminis-
traç‹o, polí cia etc.), de seu centralismo, de sua burocracia, de suas
instituiç›es representativas (sufr‡gio universal, parlamento etc.), de
seu sistema jurí dico, consiste na especificidade das relaç› es de pro-
duç‹o capitalistas e na divis‹o social do trabalho a que induzem: se-
paraç‹o radical do trabalhador direto de seus meios e objeto do tra-
balho, na relaç‹o de posse no pr—rio processo de trabalho.
O que me parecera caracterí stico, então,
é
um traço permanen-
te da teoria marxista do Estado que persiste ainda hoje e que est‡
relacionado, ali‡s, ˆ s profundas ambigüidades do pensamento do pr—
prio Marx a esse respeito. A esmagadora maioria dos autores mar-
,
xistas que n‹o reduziam o Estado capitalista ˆ dominaç‹o polí tica
(ˆ
"ditadura" de uma burguesia-sujeito), e colocavam ent‹o a per-
tinente quest‹ o: "Por que este Estado precisamente e n‹o um outro
que corresponda ˆ dominaç‹o polí tica burguesa?", tentou encontrar
o fundamento deste Estado no dominio da circulaç‹ o do capital e
nas trocas mercantis generalizadas .
A linha geral dessas an‡lises
é suficientemente conhecida: trocas de mercadorias entre proprietá-
rios "privados"
-
esta propriedade privada considerada apenas a
n’vel jurí dico
-,
contrato de compra e venda da força-trabalho,
troca equivalente e valor de troca abstrato etc. Este seria o terreno
de emerg•ncia da igualdade e da liberdade "formais" e "abstratas",
part’culas isoladas da sociedade de troca
-
o indiv’duo
genérico-'
instauradas como "indiv’duos-pessoas" jurí dico-polí ticos, da lei e da,
regra jurí dica formal e abstrata como sistema de coes‹o dos comer-
ciantes que trocam. A separaç‹o relativa do Estado e da economia é
tomada como separaç‹o do Estado e da famosa "sociedade civil".
Esta sociedade civil, palco de necessidades e trocas entre indiv’duos
isolados seria representada em si como uma associaç‹o contratual de
sujeitos jurí dicos individualizados, sendo a separaç‹o da sociedade
civil e do Estado reduzida a um mecanismo ideol—ico localizado no
‰mago das relaç› es mercantis, ˆ fetichizaç‹o-reificaç‹o do Estado a
partir do famoso fetichismo da mercadoria. As variantes desta con-
cepç‹o s‹o numerosas, porém a trama continua sempre a mesma.
Esta concepç‹o foi tematizada principalmente pela escola marxista
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italiana (Galvanno della Volpe, U. Cerroni etc.), Ela permanece ex-
traordinariamente viva: basta mencionar os recentes trabalhos, a n—
maispr—imos, de Henri Lefebvre sobre o Estado.
Procurei demonstrar que esta concepç‹o
é
insuficiente e par-
cialmente falsa, porque ela procura o fundamento do Estado nas re-
laç› es de circulaç‹o e nas trocas mercantis (o que é de qualquer
forma uma posiç‹o pré-marxista) e n‹o nas relaç› es de produç‹o,
que t•m um lugar determinante no conjunto do ciclo de reproduç‹o
ampliada do capital. Esta concepç‹o empobrece consideravelmente
as pesquisas sobre o Estado. E o que é mais, ao levantar a quest‹o
da especificidade institucional do Estado capitalista, torna imposs’-
vel
a articulaç‹o entre esse Estado-sociedade civil e o Estado-luta de
classes: as classes sociais t•m elas mesmas seu fundamento nas re-
laç› es de produç‹o. N‹o que esta concepç‹o n‹o encerre certos me-
canismos institucionais importantes do Estado, pois o espaço de cir-
culaç‹o do capital tem ele pr—rio efeitos sobre o Estado: mas ela
omite o essencial. Ela tem assim uma conseqü•ncia suplementar:
n‹o deixa perceber certas caracterí sticas do Estado nos paí ses do
Leste que se assemelham ˆs do Estado capitalista, ainda que as rela-
ç› es mercantis aí tenham sofrido consider‡veis transformaç› es.
Ora. esta semelhança é devida, entre outras coisas, aos "aspectos ca-
pitalistas" que marcam o Estado nesses paí ses, pois marcam igual-
mente suas relaç› es de produç‹o e sua divis‹o social do trabalho. Os
~
trabalhadores n‹o det•m nem o controle nem o dom’nio dos proces-
sos de trabalho (relaç‹o de posse), nem o poder econômico real
. sobre os meios de trabalho (relaç‹o de propriedade econômica, di-
ferente de propriedade jurí dica): trata-se de uma estatizaç‹o e n‹o de
uma verdadeira socializaç‹o da produç‹o. No plano polí tico, trata-
se de uma ditadura sobre o proletariado.
Seja como for, a discuss‹o e pesquisa sobre o Estado e o poder,
na França e no estrangeiro t•m, desde então, avançado consideravel-
mente, de maneira tal que a conjuntura ideol—ico-te—ica mudou par-
cialmente. Porém certas an‡lises recentes, me parece, reproduzem os
inconvenientes e as defici•ncias daquelas que ataquei ˆ época. Criti-
cou-se muitas vezes minhas an‡lises sob a pecha de
politicismo:
ten-
tando estabelecer o espaço polí tico pr—rio do Estado e do poder ca-
pitalistas a partir "exclusivamente" das relaç› es de produç‹o, eu n‹o
teria dado suficiente atenç‹o ˆ s relaç› es do Estado e da economia.
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A quest‹o seria ent‹o relacionar o Estado com o que alguns de-
signam como a l—gica do capital,
ou seja, sua acumulaç‹o e repro-
duç‹o ampliada. Problem‡tica que desenvolveu-se particularmente
na Alemanha Federal sob a denominaç‹o de Ableitung, na Grã-Bre-
tanha e nos Estados Unidos sob a denominaç‹o de
Derivation,
e
sobre a qual atualmente se disp› e de determinados textos em fran-
c•s. Trata-se
aí
de fazer "derivar", digamos deduzir, as instituiç› es
pr—rias do Estado capitalista das "categorias econômicas" da acu-
mulaç‹o do capital. Ora, essa problem‡tica recai numa concepç‹o
assaz tradicional do capital como entidade abstrata com l—ica
in-
trí nseca- as categorias econômicas -, e culmina em duas linhas
de pesquisa, insuficientes tanto uma como outra, para explicar a es-
pecificidade material desse Estado.
Ora
recai, como
J.
Hisrch de-
monstrou, precisamente no espaço das trocas e da circulaç‹o do ca-:
pital (troca equivalente, moeda, valor abstrato etc.), e deduz essa
especificidade dessas
"categoriasv.?
Ora ainda tenta deduzir esta es-
pecificidade e as transformaç› es hist—icas desse Estado,
de suas
funç› es econômicas em benefí cio da acumulaç‹ o ampliada do ca-
pital. Tend•ncia retomada igualmente na França e que se traduz,
particularmente para o atual Estado, em deduzir o conjunto de suas
transformaç› es institucionais de seu novo papel na superacumula-
ç‹o-desvalorizaç‹o do capital. Aqui também, esta linha de pesquisa
omite o essencial: certamente, ao me posicionar essencialmente con-
tra o economicismo, na época, eu desviara o bastão noutro sentido.
As funç› es econômicas (é preciso que se explique ainda o sentido
exato desse termo) t•m importantes efeitos em favor da acumulaç‹o
do capital, da acumulaç‹o primitiva ao capitalismo concorrencial e
o capitalismo monopolista atual, sobre a estruturaç‹o do Estado.
Isso ser‡ amplamente retomado na terceira parte deste texto, onde
mostrarei que elas s‹o essenciais para explicar a forma atual do
Estado, o estatismo autorit‡rio. Por ora, contudo, digo simplesmen-
te que essas funç› es n‹o s‹ o principais e n‹o permitem explicar, de
maneira exaustiva, as instituiç› es polí ticas. N‹o respondem ˆ ques-
t‹o fundamental: por que s‹ o elas preenchidas precisamente por esse
Estado muito particular que
é
o Estado representativo nacional-
popular, moderno e n‹o por um outro? Para colocar uma questão
aparentemente paradoxal: por que esse Estado n‹o se reproduz sob
sua forma de monarquia absolutista?
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,
Da. mesma maneira que n‹o se pode responder a esta quest‹o
pela referência exclusiva ˆ dominaç‹o pol’tica (ˆ natureza da bur-
guesia ou ˆ luta apenas polí tica burguesia/classe oper‡ria), n‹o se
pode responder pela refer•ncia
ˆ s
funç› es econômicas do Estado ou
a uma conjunç‹o das duas (funç› es econômicas + luta polí tica).
Mais exatamente, essas funç› es econômicas s‹o articuladas e basea-
das
nas'
relaç› es de produç‹o e em sua especificidade capitalista.
Estas constituem a base primeira da materialidade institucional do
Estado e de sua separaç‹o relativa da economia, que marca sua os-
satura como aparelho: s‹o a única base de partida poss’vel de uma
an‡lise das relaç› es do Estado com as classes e a luta de classes. As
transformaç› es do Estado estão ligadas, principalmente, ˆ s transfor-
maç› es das relaç› es de produç‹o capitalistas que induzem transfor-
maç› es desta separaç‹o e, da’, ˆs lutas de classes. ƒ a’ que se ins-
crevem as modificaç› es do papel e das atividades econômicas do
Estado que t•m, certamente, seus efeitos pr—rios sobre ele.
Linha de pesquisa que me orientara em
Poder polí tico e classes
sociais
porém que eu apontava os limites: esse texto, escrito antes de
maio de 1968 (publicado em maio de 68), enfatizando o papel da di-
vis‹o social
-
capitalista
-
do trabalho na medida precisamente em
.que tomava como base de partida as relaç› es de produç‹o, n‹o tra-
duzia ainda o alcance consider‡vel desta divis‹o. ƒ o maio de 68 e as
particularidades do movimento oper‡rio que se seguiu que far‹o sal-
tar toda uma série de bloqueios. Expus minhas deduç› es em
As
clas-
ses sociais no capitalismo hoje?
quanto ˆ importância da divis‹o so-
dai do trabalho na constituiç‹o das classes. Tentarei fazer aqui o
mesmo em relaç‹o ao Estado, tomando certos casos t’picos a tí tulo
de exemplo. Feito isso, cuidarei de tratar de quest› es te—icas funda-
mentais: centrar a perspectiva e o eixo da pesquisa para esta divis‹o
coloca novos problemas, porque considerar o Estado com esta divi-
s‹o n‹o é uma coisa simples, como sempre se vem acreditando.
I, O TRABALHO INTELEcruAL E O TRABALHO MANUAL:
O SABER E O PODER
Comecemos pela criaç‹o e o funcionamento do Estado bur-
gu•s na sua materialidade de aparelho. Aparelho especializado, cen-
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tralizado, de natureza especificamente polí tica, consistindo num
agrupamento de funç› es anônimas, impessoais e formalmente dis-
tintas do poder econômico, cujo agenciamento ap—a-se numa axio-
matizaç‹o de leis-regras que distribuem os domí nios da atividade,
de compet•ncia, e numa legitimidade baseada nesse corpo que
é
esse povo-naç‹o. Elementos que, todos eles, est‹o incorporados na
organizaç‹o dos aparelhos do Estado moderno. Estes se distinguem
dos aparelhos de Estado feudais, baseados em elos pessoais, na pro-
jeç‹o de todo poder sobre o poder econômico (o senhor desempe-
nhando ele mesmo o papel de juiz, de administrador, de chefe mili-
tar ao mesmo tempo que proprietário fundi‡rio), numa hierarquia.
composta de poderes estanques (a pir‰mide senhorial), cuja legiti-
midade decorre da soberania do corpo do chefe (rei-senhor) traçada
no corpo social. Especificidade portanto do Estado moderno que
est‡ ligado precisamente a esta separaç‹o relativa do polí tico e do
econômico, e a toda uma reorganizaç‹o de seus espaços e respecti-
vos campos, implicada na total espoliaç‹o do trabalhador direto nas
relaç› es de produç‹o capitalistas.
Essas relaç› es s‹o o solo de uma reorganizaç‹ o prodigiosa da
divis‹o social do trabalho
da qual elas s‹o consubstanciais, reorga-
nizaç‹o que distingue a mais-valia relativa e a reproduç‹o ampliada
do capital no est‡gio do "maquinismo" e da "grande indústria". Esta
divis‹o propriamente capitalista, sob todas as formas, representa' a
condiç‹o de possibilidade do Estado moderno. Estado que surge
assim em toda sua originalidade hist—ica: esse Estado constitui uma
efetiva ruptura em relaç‹o aos tipos de Estado pré-capitalistas (asi‡-
tico, escrav’sta, feudal), que n‹o basta para compreender exatamen-
te as concepç› es que fundamentam as relaç› es mercantis (concep-
ç› es estas que sempre existiram).
.
N‹o tomo aqui n‹o mais que um caso dessa divis‹o, qual seja
o
da divis‹o entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta divi-
s‹o n‹o pode ser concebida de maneira emp’rico-naturalista,
c0 D0
uma cis‹o entre os que trabalham com suas m‹os e os que trabalham
com sua cabeça: ela remete diretamente ˆs relaç› es polí tico-ideol—
gicas tais como ocorrem em determinadas relaç› es de produç‹o.
Ora, como Marx muito bem mostrou, h‡ uma especificidade desta
divis‹o no capitalismo, ligada ˆ espoliaç‹o completa do trabalhador
direto de seus meios de trabalho. O que tem como efeito:" a) a sepa-
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raç‹o caracterí stica dos elementos intelectuais e do trabalho realiza-
do pelo trabalhador direto, trabalho que, nesta distinç‹o do trabalho
intelectual (o saber) recobre assim a forma capitalista de trabalho
manual; b) a separaç‹o da ci•ncia do trabalho manual enquanto,
a
"serviço do capital", tende a tomar-se força produtiva direta; c) as
relaç› es particulares entre a ci•ncia-saber e as relaç› es ideol—icas,
ou seja a ideologia dominante, n‹o apenas no sentido de um saber
mais
ideologizado
que antes, nem simplesmente no sentido de
uma' utilizaç‹o polí tico-ideol—ica do saber pelo poder (isso sempre
aconteceu), mas no sentido de uma legitimaç‹o ideol—ica do poder
institu’do na modalidade da técnica cient’fica, ou seja, a legitimaç‹o
de um poder como decorrente de uma pr‡tica cient’fica racional; d)
as relaç› es org‰icas estabelecidas doravante entre o trabalho inte-
lectual assim separado do trabalho manual e as relaç› es de domina-
ç‹o polí ticas, em suma entre o
saber
e o
poder
capitalistas. O que
Marx demonstrara a respeito do despotismo da f‡brica e do papel da
ci•ncia no processo de produç‹o capitalista, ao analisar as relaç› es
da’ em diante org‰icas entre saber e poder, entre trabalho intelec-
tual (saber-ci•ncia investido na ideologia) e as relaç› es pol’ticas de
dominaç‹o, tais como existem e se reproduzem no processo de ex-
tors‹o da mais-valia.
Se esta separaç‹o capitalista, totalmente caracterí stica, entre
trabalho manual e trabalho intelectual é apenas um aspecto de uma
divis‹o social do trabalho mais geral, ela é decisiva no caso do Es-
átado. Uma das intuiç› es fundamentais dos cl‡ssicos do marxismo é
que o aspecto mais interessante, sem dúvida, da divis‹o social do
.
trabalho em relaç‹o
ˆ
emerg•ncia do Estado como aparelho "espe-
cial" consiste na divis‹o' entre trabalho manual e trabalho intelec-
tual.
O Estado encarna no conjunto de seus aparelhos.
isto é, n‹o
apenas em seus aparelhos ideol—icos mas igualmente em seus apa-
relhos repressivos ou econômicos,
o trabalho intelectual enquanto
afastado do trabalho manual: o que se torna evidente quando se sai
da
distinç‹o naturalista-positivista trabalho manual/trabalho inte-
lectual. E é no Estado capitalista que a relaç‹o org‰ica entre traba-
lho intelectual e dominaç‹o polí tica, entre saber e poder, se efetua
de maneira mais acabada. Esse Estado, afastado das relaç› es de
produç‹o, situa-se precisamente ao lado do trabalho intelectual ele
mesmo separado do trabalho manual: ele é o corol‡rio e o produto
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desta divis‹o, ao deter um papel pr—rio em sua constituiç‹o e sua
reproduç‹o.
Isso se traduz na pr—ria materialidade do Estado. Inicialmen-
te em sua especializaç‹o-separaç‹o dos aparelhos de Estado em re-
laç‹o aos processos de produç‹o: é principalmente por uma crista-
lizaç‹o do trabalho intelectual que esses aparelhos se afastam desse
processo. Esses aparelhos, em sua forma capitalista (exército, justi-
ça, administraç‹o, polí cia etc.), para n‹o citar os aparelhos ideol—
gicos, implicam exatamente
a
efetivaç‹o e o domí nio de um saber e
de um discurso (diretamente investidos na ideologia dominante ou
constitu’dos a partir de formaç› es ideol—icas dominantes) em que
as massas populares estão exclu’das. Aparelhos baseados em sua.
ossatura numa exclus‹o espec’fica e permanente das massas popu-
lares situadas ao lado do trabalho manual, que
aí s‹o subjugadas in-
diretamente pelo Estado. ƒ a monopolizaç‹o permanente do saber
por parte do Estado-s‡bio-Iocutor, por parte de seus aparelhos e de
seus agentes, que determina igualmente as funç› es de organizaç‹o
e de direç‹o do Estado, funç› es centralizadas em sua separaç‹o es-
pec’fica das massas: imagem do trabalho intelectual (saber-poder)
materializada em aparelhos, em face do trabalho manual tendencial-
mente polarizado em massas populares separadas e exclu’das des-
sas funç› es organizacionais. ƒ igualmente evidente que uma série
de instituiç› es da democracia representativa, dita indireta (partidos
polí ticos, parlamento etc.), em suma da relaç‹o Estado-massas, de-
pendem do mesmo mecanismo. Isto Gramsci pressentira, quando
via no papel geral de organizaç‹o do Estado capitalista a realizaç‹o
por excel•ncia de um trabalho intelectual separado de maneira ca-
racterí stica do trabalho manual.
ƒ
assim que Gramsci inclu’a os
agentes dos aparelhos de Estado, aí nclu’dos os aparelhos repressi-
vos (policiais, guardas, militares), entre os intelectuais (org‰icos e
tradicionais) em amplo sentido?
Esta relaç‹o saber-poder n‹o é mais que a ideologia e n‹o re-
presenta apenas a simples funç‹o de legitimaç‹o do Estado se bem
que a assegure, notadamente no terreno do pensamento polí tico ofi-
cial. Mesmo durante a transiç‹o do feudalismo para o capitalismo,
depois ao est‡gio do capitalismo concorrencial, ambos marcados
pela constituiç‹o do Estado burgu•s e pela domin‰cia, no seio da
ideologia burguesa, da ‡rea jurí dico-polí tica,esta (a polí tica, o direi-
54
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to), de Machiavel a Th. Morus até em suas conceitualizaç› es ulte-
riores, é explicitamente legitimada, na forma da técnica cient’fica e
sobre o modelo das
eptstemes apod’dicas,
como detentora de um
saber que ela op› e ˆquilo que designa como utopia. Isto ultrapassa,
ali‡s, o simples discurso oficial e estende-se a essas
formas primei-
ras de ideologia
produzidas pelo Estado, que garantem as relaç› es
internas ao aparelho (autolegitimaç‹ o interna) e a legitimaç‹o de
suas pr‡ticas para o exterior: legitimaç‹o das pr‡ticas do Estado e de
seus agentes como portadores de um saber particular, de uma racio-
nalidade intrí nseca. Tudo isto, ali‡s, n‹o faz mais que reforçar-se
atualmente, sob as formas particulares da relaç‹o ideologia-saber-
ci•ncia 'que implica a transformaç‹o da ideologia jurí dico-polí tica
em ideologia tecnocr‡tica.
Mas reafmno exatamente que essa relaç‹o saber-poder n‹o é
apenas de ordem da legitimaç‹o ideol—ica: a separaç‹o capitalista
do trabalho intelectual e do trabalho manual concerne também
ˆ
ci•ncia em si, e a engloba. A apropriaç‹o da ci•ncia pelo capital se
faz certamente na f‡brica, mas igualmente pelo Estado. Esse Estado
apresenta isso de particular quando tende a incorporar
a
pr—ria
ci•ncia organizando seu discurso, o que atualrnente
é
n’tido. N‹o se
trata de uma simples instrumentalizaç‹o da ci•ncia e de sua manipu-
laç‹o ao serviço do capital. O Estado capitalista arregimenta
a
pro-
duç‹o
da ci•ncia que se toma assim uma ci•ncia de Estado imbrica-
da, em sua textura intrí nseca, nos mecanismos de poder; o que,
é
sabido, n‹o vale tão-somente para as chamadas "ci•ncias humanas",
Mais genericamente, esse Estado reparte o trabalho intelectual por
toda uma série de circuitos e redes graças aos quais ele se substitui
ˆ
Igreja, submete-se e confí rma o
corpo de intelectuais-savants,
en-
quanto, na Idade Média, isso s—existia de maneira proteiforme. Os
intelectuais como corpo especializado e profissionalizado s‹o cons-
titu’dos em sua funcionalizaç‹o-mercenarizaç‹o pelo Estado moder-
no. Esses intelectuais portadores de saber-ci•ncia tomam-se funcio-
n‡rios (universidades, institutos, academias, diversas sociedades de
estudo) do Estado pelo pr—rio mecanismo que fez dos funcion‡rios
deste Estado intelectuais.
Se a relaç‹o saber-poder n‹o é de ordem apenas da legitima-
ç‹o,
é
igualmente, lembro, porque o discurso do Estado, cristaliza
em si essa relaç‹o; discurso que é, aqui, inteiramente espec’fico.
55
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N‹o se trata como para os Estados pré-capitalistas, de um discurso
de revelaç‹o, baseado na palavra (efetiva ou suposta) do Prí ncipe,
repetindo a inscriç‹o do corpo soberano no corpo social. Discurso
m’tico de sentido pr—rio, e que tende indevidamente a suprimir
pela narrativa
a
dist‰cia entre os começos do poder soberano e as
origens do mundo. O Estado capitalista n‹o funda sua legitimidade
em sua origem: ele comporta uma série de fundaç› es sucessivas na
soberania, constantemente renovada, do povo-naç‹o. Esse Estado
afirma assim um papel organizacional particular em relaç‹o ˆ s clas-
ses dominantes e um papel de regulaç‹o em face do conjunto da for-
,
maç‹o social: seu discurso é
um discurso da aç‹o. Um discurso da
estratégia e da t‡tica, imbricadas certamente
ˆ
ideologia dominante.
mas alimentada igualmente de uma ci•ncia-saber açambarcada pelo
Estado (os conhecimentos econômicos, polí ticos, hist—icos).
Esse discurso, se efetua por excel•ncia a junç‹o saber-poder,
n‹o tem unidade pr—ria e intrí nseca. Trata-se de um discurso seg-
ment‡rio e fragmentado segundo os objetivos estratégicos do poder
e as diversas classes ˆs quais ele se dirige. Tive oportunidade de ob-
servar que mesmo essa "linguagem totalitária" por excel•ncia, que
é o discurso fascista, apresenta uma série de deslocamentos, de tor-
ç‹o de sentido, de f—mulas id•nticas (do termo corporativismo, por
exemplo) segundo a diversidade dos objetivos ou das classes visa-
das. Esse discurso deve sempre ser compreendido e entendido,
mesmo que n‹ o deva ser de maneira uní voca e por todos: n‹o basta
que seja pronunciado de maneira encantat—ia. O que sup› e, através
dos diversos c—igos discursivos, uma sobrecodificaç‹o do Estado,
quadro referencial de homogeneizaç‹o de segmentos discursivos e
dos aparelhos que os cont•m, terreno de seu funcionamento diferen-
cial. Essa sobrecodificaç‹o est‡ inculcada, por destilaç‹o calculada,
no conjunto dos suspeitos.
ƒ
a unificaç‹o da lí ngua que instaura o
Estado capitalista ao produzir a lingua nacional e ao extinguir as ou-
tras. L’ngua nacional certamente necess‡ria para a criaç‹o de uma
economia e de um mercado nacional, porém, muito mais ainda, para
a funç‹o polí tica do Estado. Miss‹o portanto do Estado nacional de
organizar os procedimentos discursivos modelando a materialidade
do povo-naç‹o e criar a l’ngua, criaç‹o certamente situada nas trans-
formaç› es ideol—icas, mas que n‹o se reduz meramente a uma ope-
raç‹o ideol—ica.
56
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Essa relaç‹o saber-poder, fundamentada no trabalho intelec-
tual que o Estado cristaliza separando-o do trabalho manual, situa-
se na ossatura organizacional do Estado. O Estado retraça e repro-
duz em seu pr—rio corpo a divis‹o social do trabalho: ele é portanto
o decalque das relaç› es entre poder e saber tais como elas se repro-
duzem no seio do trabalho intelectual. De relaç› es hier‡rquicas,
centralizadas e disciplinares para relaç› es de escal› es e núcleos de
decis‹o/execuç‹o, de escal› es de delegaç‹o de autoridade para for-
mas de repartiç‹o-ocultamento do saber conforme esses escal› es
(segredo burocr‡tico) e para formas de qualificaç‹o e recrutamento
de agentes do Estado (qualificaç‹o escolar e recrutamento por con-
curso), a ossatura do Estado capitalista encarna, nos m’nimos deta-
lhes, a reproduç‹o induzida e interiorizada, no pr—rio seio do tra-
balho intelectual, da divis‹o capitalista entre o trabalho intelectual e
o trabalho manual. Nos seus menores detalhes: isso se propaga, por
exemplo, em toda a ritualidade material do Estado, por exemplo e
por mais que seja um detalhe, no caso da escrita.
N‹o h‡ dúvida de que sempre houve uma estreita relaç‹o entre
o Estado e a escrita, todo Estado representa uma certa forma de di-
vis‹o entre trabalho intelectual e trabalho manual. Mas o papel da
escrita é inteiramente particular no Estado capitalista, escrita que,
mais ainda que o discurso-fala representa aqui a articulaç‹o e a ven-
tilaç‹o saber-poder em seu seio. Do traço escrito, da nota, das rela-
ç› es com os arquivos, nada existe, sob certos aspectos, para esse Es-
tado, que n‹o seja escrita, e tudo que nele se faça deixa s~mpre uma
marca escrita em alguma parte. Ora, a escrita aqui é ’nte’ramente
diferente daquela nos Estados pré-capitalistas: n‹o é mais uma es-
crita de retranscriç‹o, puro decalque da fala (real ou suposta) do so-
berano, escrita de revelaç‹o e de memorializaç‹o, escrita monumen-
tal. Trata-se de uma escrita anônima, que n‹o repete um discurso
mas torna-se trajeto de um percurso, que traça os lugares e os dispo-
sitivos burocr‡ticos, percorre e figura o espaço centralizado-hier‡r-
quico deste Estado. Escrita que ao mesmo tempo espacializa e cria
espaços lineares e revers’veis nesta cadeia consecutiva e segmenta-
rizada que é a burocratizaç‹o. Papelada da organizaç‹o estatal mo-
dema que n‹o é simples detalhe pitoresco mas um traço material es-
sencial
ˆ
sua existência e funcionamento, cimento interno de seus
intelectuais-funcion‡rios, encarnando a relaç‹o deste Estado e do
57
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trabalho intelectual. Esse Estado n‹o monopoliza, n‹o retém para si
a escrita como no caso dos Estados pré-capitalistas ou da Igreja:
propaga-a (escolas) por necessidades muito concretas de formaç‹o
da força de trabalho. Mas, ao fazer isso, ele desdobra-a,
tanto mais
que
o
discurso-fala do Estado deve ser compreendido e entendido.
Tudo se passa como se nesse Estado de fala aberta e lí ngua nacional
unificada, o segredo em relaç‹o ˆs massas populares e a cristaliza-
ç‹o do saber-poder estivessem passados inteiramente na escrita do
Estado, cujo hermetismo com refer•ncia ˆs massas populares, ex-
clu’das dessa escrita, é assaz conhecido. Foi esse Estado que siste-
matizou, quando n‹o descobriu, a gram‡tica e
a
ortografia montan-
do-as em redes de poder.
Enfim, essa relaç‹o poder-saber se traduz por técnicas particu-
lares de exerc’cio do poder, por dispositivos precisos, inscritos na
trama do Estado, de distanciamento permanente das massas popula-
res dos centros de decis‹o: por uma série de rituais, de formas de
discurso, de modos estruturais de tematizaç‹o, de formulaç‹o e tra-
tamento dos problemas pelos aparelhos de Estado de maneira tal
(monopolizaç‹o do saber) que as massas populares (nesse sentido
trabalho manual) ficam de fato ˆ parte disso.
Certamente, n‹o se trata de reduzir a relaç‹o do Estado e das
relaç› es de produç‹o ˆ divis‹o trabalho intelectual/trabalho manual.
N‹o pretendo mais que ilustrar a direç‹o de pesquisa que nos faz
abandonar a esfera das relaç› es mercantis como fundamento do Es-
tado capitalista (nesse caso, pela burocracia como instância centra-
lizadora necess‡ria diante da anarquia concorrencial da sociedade
civil). Acrescento que, também nesse caso, o Estado n‹o é o simples
resultado
-da
divis‹o trabalho intelectual e trabalho manual funda-
mentada nas relaç› es de produç‹o. Ele trabalha ativamente para a
reproduç‹o desta divis‹o no pr—rio seio do processo de produç‹o
e, para além disso, no conjunto da sociedade, ao mesmo tempo por
aparelhos especiais que interv•m na qualificaç‹o-formaç‹o da força
de trabalho (escola, fam’lia, redes diversas de formaç‹o profissio-
nal) e pelo conjunto de seus aparelhos (partidos polí ticos burgueses
e pequeno-burgueses, sistema parlamentar, aparelhos culturais, im-
prensa, m’dias). Ele est‡ de antem‹o presente na constituiç‹o desta
divis‹o no seio das relaç› es de produç‹o: a divis‹o trabalho ma-
nuaVintelectual encarnada no despotismo de f‡brica remete ˆ s rela-
58
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ç› es polúicas de dominaç‹o/subordinaç‹o tais como existem nas re-
laç› es de exploraç‹o e dessa maneira, ˆ
presença do Estado nesses
últimos.
Observa-se também agora que essa relaç‹o saber-poder diz
respeito igualmente, por alguns de seus aspectos capitalistas, ao Es-
tado nos paí ses ditos de socialismo real, apesar das transformaç› es
que neles sofreram as relaç› es mercantis. A divis‹o do trabalho
in-
telectual e do trabalho manual, fundamentada nos "aspectos capita-
listas" de suas relaç› es de produç‹o, para além mesmo de uma esta-
tizaç‹o (distinta de uma verdadeira socializaç‹o) da economia, se
reproduz aí sob uma nova forma. Destaco apenas, ˆ guisa de indica-
ç‹o, pois então tudo isso se reveste de formas particulares e consi-
deravelmente diferentes que em nossas sociedades, por inúmeras ra-
z› es, inclusive pelas particularidades das classes sociais e da luta de
classes que distinguem esses paí ses.
Este relacionamento do Estado com a divis‹o trabalho intelec-
tual/trabalho manual, tal como est‡ implicada nas relaç› es de pro-
duç‹o capitalistas, n‹o é portanto sen‹o um primeiro passo para es-
tabelecer a relaç‹o do Estado com as classes e a luta de classes sob
o capitalismo. Este Estado, que representa o poder da burguesia, re-
mete ˆs particularidades da constituiç‹o desta classe como classe
dominante. Baseada num campo que implica a especializaç‹o carac-
terí stica das funç› es e do trabalho intelectual, a burguesia é a pri-
meira classe da hist—ia que tem necessidade, para se firmar como
classe dominante, de um corpo de
intelectuais org‰icos.
Estes, for-
malmente distintos dela embora arregimentados pelo Estado, n‹o
t•m um papel simplesmente instrumental (como foi o caso dos pa-
dres para a feudalidade) mas um papel de organizaç‹o de sua hege-
monia. N‹o é por acaso que a forma original da revoluç‹o burguesa
fosse, primeiramente, a de urna revoluç‹o ideol—ica: basta imagi-
nar o papel da ftlosofia das Luzes e o do aparelho ideol—ico-cultu-
ral da ediç‹o e da imprensa na organizaç‹o da burguesia.
Mais que isso: se todo Estado capitalista apresenta a mesma
ossatura material, essa se singulariza conforme as particularidades
da luta de classes,
da
organizaç‹o da burguesia e do corpo dos inte-
lectuais em cada Estado e paí s capitalista concretas. Nada mais claro
que
0
caso franc•s: a burguesia francesa, na trajet6ria do Estado ab-
solutista e através
das
formas da Revoluç‹o de 1789, conseguiu es-
59
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pecialmente sua organizaç‹o hegemônica e a criaç‹o, sob sua égide,
da unidade nacional, ao estabelecer estreitas ligaç› es com o corpo
de intelectuais de destaque. Ela garantiu seus préstimos permanen-
tes integrando-os estreitamente nos nichos institucionais do Estado
jacobinos e sabendo recompens‡-los, por v‡rias modalidades de pa-
gamento, pelos serviços prestados.
ƒ isso que caracteriza n‹o ape-
nas as instituiç› es culturais e os aparelhos ideol—icos deste Estado,
mas igualmente as not‡veis particularidades da "intelligentsia" fran-
cesa. Ligada ˆ s instituiç› es do Estado republicano que s‹o as redes
de seu poder delegado pela burguesia, ela foi, e continua a ser, ao
mesmo tempo uma "intelligentsia" refratária ˆ ideologia e ˆ s formas
de Estado facistas, e uma "’ntell’gentsia" maciçamente distanciada
das lutas populares, quando estas assumem formas radicais que
podem vir
a
colocar em questão seu pr—rio poder. Ela oscila per-
manentemente entre o antifacismo radical-republicano e a s’ndrome
dos Versalheses. Em nenhum outro lugar se pode encontrar, encar-
nados a tal ponto nos aparelhos de Estado, os fantasmas da "intell’-
gentsia": ora no conselho dos prí ncipes, ora, ou ao mesmo tempo,
influenciando as massas pelo alto, por cima de suas pr—rias organi-
zaç› es e via aparelhos de Estado (imprensa, instituiç› es culturais,
m’dias),
em suma a tentaç‹o do populismo elitista. A esta sede de
poder intelectual, estimulada pelo lugar destinado ˆ "intelligentsia"
no Estado franc•s, corresponde, por justo motivo (se é tentado a
dizer), o antiinteletualismo assaz conhecido do movimento oper‡rio
franc•s e de suas organizaç› es que, ele também, por sua vez, marca
com seu selo esse Estado, e a caracterí stica desconfiança das mas-
sas populares com relaç‹o aos aparelhos ideol—icos.
II. A INDIVIDUALIZA‚ Ì O
], A Ossatura do Estado e as Técnicas do Poder
A especializaç‹o e centralizaç‹o do Estado capitalista, seu fun-
cionamento hier‡rquico-burocr‡tico e suas instituiç› es eletivas im-
plicam uma atomizaç‹o e parcelarizaç‹o do corpo pol’tico nisso que
se designa de "indiv’duos", pessoas jurí dico-polí ticas,e de sujeitos
das liberdades. Esse Estado sup› e necessariamente uma organiza-
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ç‹o particular do espaço polí tico sobre o qual exerce o poder. O Es-
tado (centralizado, burocratizado etc.)
instaura
essa atomizaç‹o e
representa
(Estado representativo)
a
unidade do corpo (povo-
naç‹o),
fracionando-o
em mônadas formalmente equivalentes (so-
berania nacional, vontade popular). A materialidade desse Estado é,
sob certos aspectos, constitu’da como se devendo aplicar-se, atuar e
agir sobre um corpo social fracionado, homog•neo em sua divis‹o,
uniforme no isolamento de seus elementos, cont’nuo em sua atomi-
zaç‹o, desde o exército moderno ˆ administraç‹o, ˆ justiça, ˆ pris‹o,
ˆ
escola, aos mí dias etc.
-
a lista seria imensa.
Também nesse caso, esses fracionamentos n‹o surgem primei-
ramente das relaç› es entre possuidores de mercadorias na sociedade
civil em que as figuras primeiras seriam os indiv’duos-sujeitos das
relaç› es contratuais. Embora esse mecanismo de individualizaç‹o
esteja presente nas trocas mercantis generalizadas, sua base está em
outro ponto. ƒ preciso prevenir-se contra uma outra concepç‹o
igualmente falsa que emprega os mesmos pressupostos da ,primeira,
.embora chegue a resultados opostos. Ela também situa esse proces-
so unicamente nas relaç›es mercantis, e n‹o nas relaç› es de produ-
ç‹o-relaç› es de classe; evitando, porém, fundamentar o Estado nes-
sas relaç›es, termina por negar toda pertin•ncia da individualizaç‹o
na organizaç‹o do Estado capitalista, considerando-a como simples
apar•ncia mistificadora ligada ao fetichismo da mercadoria. Ora, a
individualizaç‹o é terrivelmente real; contudo, o fundamento dessa
instauraç‹o das mônadas sociais em indiv’duos-sujeitos na esfera da
circulaç‹o mercantil e da relaç‹o primeira do Estado com seus fra-
cionamentos encontra-se nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-
cial do trabalho que estabelecem. O total desapossamento do traba-
lhador direto de seus meios de trabalho d‡ lugar ˆ emerg•ncia do
trabalhador "livre" e "nu", desligado da rede de laços (pessoais, es-
tatutários, territoriais) que antes o formavam na sociedade medieval.
Esse desapossamento imprime ao processo de trabalho uma estru-
tura determinada:
"Objetos de utilidade s—se transformam em mer-
cadorias porque s‹ o o produto de trabalhos privados executados in-
dependentemente uns dos outros." Trata-se de um modo de
articulaç‹o dos processos de trabalho que imp› e limites estruturais ˆ
depend•ncia real dos produtores introduzida pela socializaç‹o do
trabalho. Os trabalhos, num quadro imposto pelas relaç› es de produ-
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ç‹o, s‹o executados independentemente uns dos outros - trabalhos
privados
-,
quer dizer, sem que os produtores tenham de organizar
previamente sua cooperaç‹o; é ent‹o que predomina a lei do valor.
Evidentemente, essa estrutura das relaç› es de produç‹o e do
processo de trabalho n‹o cria diretamente as formas precisas
-
in-
dividualizaç‹o
-
que recobrem esse fracionamento. Ela induz um
quadro material referencial, das matrizes espaciais e temporais
que
s‹o os pressupostos da divis‹o social capitalista do trabalho, primei-
ramente no processo de produç‹o, no est‡gio que Marx chama de
mecanizaç‹o e da grande indústria. Esse quadro material primeiro é
o molde da atomizaç‹o e do fracionamento sociais incorporados nas
pr‡ticas do processo de trabalho. Ao mesmo tempo que pressuposto
das relaç›es de produç‹o e encarnaç‹o da divis‹o do trabalho, esse
quadro consiste na organizaç‹o de um espaço-tempo simultanea-
mente cont’nuo, homog•neo e parcelarizado, que é a base do taylo-
rismo. Um espaço esquadrinhado, segmentarizado e celular onde
cada parcela (indiv’duo) tem seu lugar, onde cada localizaç‹o corres-
ponde a uma parcela (indiv’duo), mas que deve apresentar-se como
homog•neo e uniforme. Um tempo linear, serial, repetitivo e cumu-
lativo, em que os diversos momentos integram-se uns aos outros,
orientando-se para um produto acabado - espaço-tempo materiali-
zado por excel•ncia na cadeia de produç‹o. Em suma, o indiv’duo,
bem mais que criaç‹o da ideologia polí tico-jurí dica engendrada pe-
las relaç› es mercantis, aparece aqui como o ponto de cristalizaç‹o
material, ponto focalizado no pr—rio corpo humano, de uma série de
pr‡ticas na divis‹o social do trabalho. A diferença da organizaç‹o na
Idade Média e no Capitalismo (individualizac‹o) corresponde a cor-
poreidades diferenciais. O desapossamento d—trabalhador de seus
meios de produç‹o no capitalismo, criando a força de trabalho como
base da mais-valia, desencadeia um processo pelo qual o corpo,
como j‡ mostrava Marx, torna-se simples "ap•ndice da m‡quina",
decomposto em "pequena quantidade de formas fundamentais nas
quais, apesar da diversidade dos instrumentos empregados, todo mo-
vimento produtivo do corpo humano deve realizar-se
...
7
ƒ
nessa individualizaç‹o que se escora a materialidade insti-
tucional do Estado capitalista. Ele inscreve em sua ossatura a re-
presentaç‹o da unidade (Estado representativo nacional) e a orga-
nizaç‹o-regulagem (centralismo hier‡rquico e burocr‡tico) dos
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fracionamentos constitutivos da realidade que é o
povo-naç‹ o.
Ao
mesmo tempo, os aparelhos do Estado s‹o moldados de
rnaneira
que exerçam o poder sobre esse conjunto assim constitu’do: reali-
zam o mesmo quadro material referencial,
ii
mesma matriz espaço-
tempo implicada nas relaç› es de produç‹o. A organizaç‹o interna
das redes e dispositivos burocr‡ticos sup› e esse quadro que torna
poss’vel o encadeamento de seus elementos, mesmo que esse qua-
dro se concretize de forma diferente na administraç‹o burocr‡tica
e no despotismo das f‡bricas, no taylorismo e cadeia de produç‹o:
reestruturaç‹o do espaço polí tico e substituiç‹o de estatutos, privi-
légios e outros laços pessoais pelo anonimato de uma organizaç‹o
de laços ao mesmo tempo cont’nuos, hornog•neos, lineares, eqüi-
distantes e segmentados, fracionados e compartimentados.
Ora, o Estado n‹ o é mero anotador dessa realidade econômi-
co-social; é fator constitutivo da organizaç‹o da divis‹o social do
trabalho, produzindo permanentemente fracionamento-individuali-
zaç‹o
social. Isso faz-se também pelos procedimentos ideol—icos:
o Estado consagra e institucionaliza a individualizaç‹o pela consti-
tuiç‹o das mônadas econômico-sociais em indlv’duos-pessoas-su-
jeitos jurí dicos e polí ticos. N‹o me refiro aqui ao discurso oficial da
filosofia polí tica, nem ao simples sistema jurí dico, mas ao conjunto
das pr‡ticas materiais do Estado (a ideologia n‹o est‡ apenas nas
idéias) e suas conseqü•ncias na esfera econômico-social. Ideologia
de individualizaç‹o que n‹o tem por
flnal’dade
apenas mascarar
e
ocultar as relaç› es de classe (o Estado capitalista jamais se apresen-
ta como Estado de classe), mas também a de contribuir ativamente
para as divis› es e isolamento (individualizaç‹o) das massas popula-
res. N‹o se trata apenas
da
ideologia constitu’da, sistematizada e
formulada pelos intelectuais org‰icos da burguesia, que nunca
passa de ideologia de segunda categoria, porém, muito mais, trata-
se de formas primeiras e "espontâneas" de ideologia secretadas pela
divis‹o social do trabalho, diretamente incorporadas aos aparelhos
de Estado e
ˆ s
pr‡ticas do poder.
O papel do Estado, porém, n‹o é o de inculcar a ideologia do-
minante, mesmo materializada em pr‡ticas; n‹o se trata simples-
mente da concretizaç‹o dos direitos e obrigaç› es, da distinç‹o pri-
vado e público etc. na vida cotidiana. O Estado contribui para
fabricar essa individualidade por um conjunto de
técnicas de saber
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(ci•ncia) e de pr‡ticas de poder, a que Foucault chamou de disci-
plinas ("que se pode caracterizar em poucas palavras dizendo que
s‹o uma modalidade do poder para o qual a diferença individual é
pertinente"), procedimento designado pelo termo normalizaç‹ o:
"Como a vigil‰cia,
a
normalizaç‹o toma-se um dos maiores instru-
mentos do poder no fim da era cl‡ssica. As marcas que significavam
status, privilégios, filiaç› es - tendem a ser substitu’das ou pelo
menos acrescidas, de um conjunto de graus de normalidade que s‹o
sinais de filiaç‹o em um corpo social homog•neo, mas que t•m em
si um papel de classificaç‹o, de hierarquizaç‹o e de distribuiç‹o de
lugares. De certa forma, o poder de normalizaç‹o obriga a homoge-
neidade, porém individualiza permitindo medir os desvios, determi-
nar os n’veis, fixar as especialidades e tomar úteis as diferenças,
ajustando-as umas ˆ s outras". Momento de normalizaç‹o "em que
nova tecnologia do poder e uma outra anatomia do corpo foram ela-
boradas", e que se cristaliza nessa forma modema do poder que Fou-
cault chama de panoptismo+ Processo no qual interv•m as formas
primeiras da ideologia dominante, j‡ materializadas em pr‡ticas es-
tatais; e ao contr‡rio do que pensa Foucault, que distingue radical-
mente inculcaç‹o ideol—ica e normalizaç‹o, considerando de certo
modo que a ideologia n‹o est‡ nas idéias e que todas as vezes que
se tratar de pr‡ticas ou de técnicas, n‹o pode ser mera quest‹o de
ideologia.
Portanto, esse mecanismo suplanta amplamente a inculcaç‹o
ideol—ica e também a simples repress‹o fí sica. Esse relacionamen-
to do Estado-poder e do corpo atesta a individualizaç‹o do corpo
social. ƒ certo que as relaç› es entre o Estado-poder e o corpo, ins-á
tituiç‹o polí tica investida pelo poder, cobrem um campo bem
amplo. Porém as relaç› es de constituiç‹o entre o Estado e as for-
mas precisas de coporeidade capitalista, em princ’pio, n‹o se ba-
seiam, conforme afirmam as an‡lises mil vezes repetidas com mais
ou menos sutilezas, sobre as relaç› es mercantis, sobre o corpo-mer-
cadoria da sociedade de consumo, sobre o corpo-espet‡culo inves-
tido pelos signos da troca, em suma, no fetichismo mercantil do cor-
po. A tecnologia pol’tica do corpo tem como base primeira o quadro
referencial das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho.
ƒ por esse caminho que se pode resolver com segurança o proble-
ma essencial para a teoria do Estado que é a individualizaç‹o do
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corpo social, solo origin‡rio das classes em sua especificidade capi-
talista. Essa individualizaç‹o n‹o é
a
realidade de um "indiv’duo
concreto", que surge na sociedade civil da mercadoria generalizada
e
que
propicia a formaç‹o de um Estado com base nesses indiv’-
duos, Estado nacional popular que se torna Estado de classe. Tam-
bém n‹o é
a
realidade genérica de um indiv’duo biol—ico sede
natural de desejos e alienado-reificado pelo Estado. Essa individua-
lizaç‹o constitui a figura material das relaç›es de produç‹o
e
da
divis‹o social do trabalho nos corpos capitalistas, e igualmente con-
seqü•ncia material das pr‡ticas e técnicas do Estado, criando e sub-
jugando o corpo (polí tico).
Nesse ponto as an‡lises de Foucault t•m grande import‰cia,
pois constituem an‡lise materialista de certas instituiç› es do poder.
Elas tanto confirmam as an‡lises marxistas, o que Foucault evita ver
ou dizer, como também enriquecem-nas em inúmeros pontos.
Sabe-se, certamente, que Foucault rejeita uma interpretaç‹o
que viria basear essa materialidade do poder, e por conseguinte do
Estado, especificamente nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-
cial do trabalho. Foi Deleuze,? sobretudo, quem se encarregou de
explicar a diferença entre o pensamento de Foucault e o marxismo.
O quadro referencial do poder seria anterior a cada campo particu-
lar
que o concretiza, constituiria um "diagrama" (o
"panoptismo"
no
caso), uma "m‡quina
abstrata
imanente
a
cada campo particular.
N‹o se basearia no "econômico" pois é "toda a economia, por exem-
plo a oficina ou a f‡brica, que pressup› e esses mecanismos do
poder ..... Observaç› es que o pr—rio Foucault retomou
a
seu favor
em
A Vontade de Saber.
ƒ evidente que n‹o se pode atribuir grande importância a esse
aspecto do pensamento de Foucault, essas observaç› es pendem para
o idealismo. Seria f‡cil inferir que esses diagramas ou m‡quinas (de
onde e como aparecem?) assemelham-se estranhamente ˆs v‡rias es-
truturas mentais e outras categorias do mesmo g•nero, essa "causa
comum imanente" que seria o diagrama, e que n‹o passa, por mais
que se queira e apesar da heterogeneidade dos campos sobre os
quais insiste, da velha homologia estrutural do estruturalismo, fato
h‡ muito verificado por
Derrida.'?
Poder-se-ia, e com justiça, repro-
var Foucault, que, com sua posiç‹o, desemboca frequentemente em
an‡lises puramente descritivas e, com mais
freqü•ncia
ainda, em um
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neofuncionalismo que retoma os pressupostos epistemol—icos do
mais tradicional funcionalismo: "O dispositivo pan6ptico n‹ o é so-
mente uma v‡lvula, um intermediador entre um mecanismo de po-
der e uma funç‹o, é um modo de fazer funcionar relaç› es de poder
numa funç‹o, e uma funç‹o por suas relaç› es de poder"." J‡ havia
observado que Malinovski e Parsons
j‡
falavam disso.
A meu entender, acho que n‹o se deve atribuir grande impor-
t‰cia ao discurso epistemol—ico de segundo grau de Foucault.
Muitas de suas an‡lises s‹o n‹o somente compatí veis com o marxis-
mo, como, mais ainda, s—a partir dele podem ser compreendidas.
Porém sob duas condiç› es:
A
primeira:
ter uma concepç‹o justa do "econômico", no qual
se fundamenta a especificidade institucional do poder moderno,
quer dizer, abdicar da idéia de Foucault, que lhe permite relacionar
(isso lhe acontece) essa especificidade ˆ economia, ou seja, freqüen-
temente, rejeitar o marxismo e o fundamento material das institui-
ç› es na economia, Nos dois casos, ele n‹o trata nunca das relaç› es
de produç‹o e da divis‹o social do trabalho nelas implí citas. No pri-
meiro caso (refer•ncia
ˆ
economia para fundamentar as institui-
ç› es), Foucault busca o essencial em dados como o crescimento de-
mogr‡fico do século
xvm
ou as necessidades utilitárias da
"produç‹o modema" para "maximizar o rendimento". No segundo
caso (refer•ncia ˆ economia para refutar o marxismo), Foucault
volta justamente, é interessante notar, ˆ sociedade mercantil das re-
laç› es de troca e de circulaç‹o: "Diz-se freqüentemente que o mo-
delo de uma soc’edade que tivesse indiv’duos como seus elementos
constitutivos seria inspirada nas formas jurí dicas abstratas do con-
trato e da troca. A sociedade seria representada como associaç‹o
contratual de sujeitos jurí dicos isolados. Talvez ... N‹o se deve es-
quecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir os
indiv’duos efetivamente como elementos correlativos de um poder
e de um saber". t2 Ora, é evidente que n‹o se pode, de modo 'algum,
relacionar a materialidade dos aparelhos de Estado e o "econômi-
cc ,
e Foucault erra quando tenta faz•-lo dessa maneira, se por isso
entendermos a demografia ou a simples revoluç‹o industrial, quer
dizer, a técnica produtiva. Também n‹o se pode faz•-lo, e
aí
Fou-
cault est‡ totalmente certo, se tomamos somente ou principalmente
66
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a esfera de circulaç‹o e das trocas mercantis, o que um certo mar-
xismo tentou fazer durante muito tempo.
A segunda condiç‹ o:
compreender a relaç‹o do Estado com as
relaç› es de produç‹o e a divis‹o social do trabalho em toda a sua
complexidade, isto é, pelo dado fundamental que s‹o as matrizes es-
paciais e temporais cuja an‡lise desenvolverei quando tratar da
naç‹o. Essas matrizes primeiras, presentes na organizaç‹o material
e nas técnicas de exerc’cio do poder, ter‹o ent‹o uma explicaç‹o di-
ferente daquela do diagrama misterioso e quase metaf’sico de Fou-
cault, sobretudo na vers‹o apresentada por Deleuze-Guattari: a de
uma m‡quina original.
Urstaat,
Estado-Déspota ideal
-
abstrato
que acossa a hist—ia dos diversos Estados e poderes ˆ procura de
sua encarnaç‹o perfeita, na mais pura tradiç‹o espiritualista.
2. As Ra’zes do Totalitarismo
De qualquer forma, a individualizaç‹o do corpo social sobre o
qual se exerce o poder do Estado moderno conduz ˆ s relaç› es de
produç‹o e
ˆ
divis‹o social do trabalho capitalistas. O Estado de-
sempenha aqui um papel decisivo, que eu tinha chamado em
Poder
polí tico e classes sociais,
de "efeito de isolamento", Porém, embo-
ra assinalando que o efeito é "terrivelmente real", tendia a limitá-lo,
'no essencial, aos mecanismos da ideologia jurí dico-polí tica e ao
papel ideol—ico do Estado, ƒ agora que se pode ver (e a’ est‡ a con-
tribuiç‹o original de Foucault) que o papel do Estado traduz-se na
materialidade de suas técnicas de exercí cio do poder, consubstancial
ˆ
sua estrutura pr—ria: técnicas que moldam os sujeitos sobre os
quais se exerce o poder até mesmo em sua corporeidade. Aproveito
a ocasi‹o para adiantar um primeiro posicionamento do problema do
fenômeno inédito do
totalitarismo moderno
em que o fascismo é
apenas uma das faces. Esse problema s—pode ser elucidado por uma
série de abordagens sucessivas, que
j‡
fiz em
Poder politico
em ter-
mos que ainda me parecem v‡lidos, embora restritivos. O que eu
bem apreendia era que, no duplo movimento pelo qual o Estado mo-
derno cria individualizaç› es e privatizaç› es auto-representando-se
corno sua unidade e homogeneizaç‹o, em suma, no duplo movimen-
ta' de criaç‹o dos isolamentos (de que se comp› em o povo-naç‹o) e
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de representaç‹o de sua unidade (Estado nacional popular moder-
no), n‹ o pode, pela primeira vez na hist—ia, existir nenhum limite
de direito
e
de princí pio
ˆ
atividade e
ˆ
invas‹ o do Estado na esfe-
ra do individual-privado.
O individual-privado é uma criaç‹o do Es-
tado, concomitante ˆ sua separaç‹o relativa da sociedade como es-
paço público, o que n‹o somente indica que essa separaç‹o é aperias
uma forma espec’fica da presença do Estado nas relaç› es econômi-
co-sociais, como também uma onipresença do Estado jamais igua-
lada em suas relaç› es. Porém eu sempre via apenas a conseqü•ncia
material dos mecanismos ideol—icos. Apresentarei como exemplo
duas passagens, significativas porque mostram o problema porém
de maneira nitidamente limitativa.
O primeiro refere-se exatamente ao relacionamento desse fenô-
meno totalit‡rio com o princí pio de legitimidade do Estado moderno:
"O Estado capitalista, em especial, retira, na verdade, seu prin-
c’pio de legitimidade do princ’pio de que se considera unidade do
povo-naç‹o tomado como conjunto de entidades id•nticas, hom› ge-
nas e disparatadas, estabelecidas pelo Estado como indiv’duos-cida-
d‹os polí ticos.
ƒ
nisso que ele difere radicalmente de outras formas
de despotismo, do poder polí tico "absoluto", por exemplo, formal-
mente semelhante, exercidos por formas de tirania baseadas na legi-
timidade divino-sagrada. Essas formas, tais quais apresentavam-se
no Estado escravagista ou feudal, encerravam contudo o poder em,
limites rigorosamente regulados. Dizendo de outra maneira, é exa-
tamente o tipo de legitimidade do Estado capitalista, representando.
a unidade do povo-naç‹o, que permite um funcionamento espec’fi-
co do Estado considerado sob o termo de
totalitarismo .
O segundo no relacionamento do fenômeno totalit‡rio com a
ideologia pol’tica burguesa:
"A funç‹o particular de isolamento e coes‹o da ideologia polí -
tica burguesa conduz a uma not‡vel contradiç‹o interna, que foi por
vezes tematizada nas teorias do contrato social, pela distinç‹o e pela
relaç‹o entre o pacto de associaç‹o civil e o pacto de dominaç‹o po-
lí tica. Essa ideologia estabelece os agentes como indiv’duos - su-
jeitos, livres e iguais, que de certa forma ela imagina em estado pré-
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social, assim determinando o isolamento espec’fico sobre as rela-
ç› es sociais. Esse aspecto designado por "individualismo burgu•s"
é súficientemente conhecido. Esses indiv’duos-pessoas, assim indi-
vidualizados, num mesmo movimento te—ico, parecem s—poder uni-
ficarem-se e alcançar exist•ncia social na interpretaç‹o de sua exis-
t•ncia polí tica no Estado. O resultado é que a liberdade do' indiv’duo
parece logo evaporar-se diante da autoridade do Estado, que encar-
na a vontade de todos. Pode-se dizer que para a ideologia polí tica
burguesa n‹o pode haver nenhum limite de direito e de princ’pio
ˆ
atividade e ˆ usurpaç‹o do Estado na assim chamada esfera do indi-
vidual-privado. Enfim, essa esfera parece apenas desempenhar a
funç‹o de constituir um ponto de refer•ncia, que
é
também um
ponto de fuga,
ˆ
onipresença e onisci•ncia da inst‰cia polí tica.
Bem que isso
é
verdade, pois 'Hobbes aparece como a verdade ante-
cipada das teorias do contrato social, e em resumo, Hegel como o
ponto de chegada
-
nesse caso o assunto é bem complexo, porém
todos os assuntos te—icos o s‹o. Lembremo-nos do caso caracterí s-
tico de Rousseau para quem "o homem ser o mais independente pos-
s’vel de todos os outros homens e o mais dependente poss’vel do
Estado". O caso
é
ainda mais n’tido no exemplo cl‡ssico dos fisio-
cratas adeptos fervorosos da n‹o-intervenç‹o na economia e tam-
bém adeptos fervorosos do autoritarismo polí tico, pedindo realmen-
te o monarca absoluto, que representaria o interesse e a vontade de
todos. Isso é igualmente caracterí stico da ideologia polí tica liberal:
nada de mais exemplar a esse respeito do que a n’tida influ•ncia, e
tão mal conhecida, de Hobbes em Locke, na corrente cl‡ssica do
li-
beralismo polí tico ingl•s, o "utilitarismo" em
J.
Bentham, J. Mills e
sobretudo em
J.
Stuart
Mill .
Embora a meu ver os dados do problema permaneçam v‡lidos,
as raí zes de sua soluç‹o, no essencial, est‹o longe. A individualiza-
ç‹o e a privatizaç‹o do corpo social residem nas pr‡ticas e técnicas
de exerc’cio do poder de um Estado, que num mesmo movimento
totaliza essas mônadas divididas e incorpora em sua ossatura insti-
tucional a unidade. O privado é apenas a réplica do público, pois se
h‡ desdobramento, inscrito no Estado e j‡ presente nas relaç› es de
produç‹o e na divis‹o social do trabalho, é porque o Estado traça os
contornos. O individual-privado n‹o é um obst‡culo intrí nseco ˆ
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aç‹o
do Estado, mas um espaço que o Estado moderno constr— ao
percorr•-lo: é o que se transforma em horizonte infinitamente retr‡ ..
til, e passo a passo, ao longo da caminhada estatal. O individual-pri-
vado é parte integrante do campo estratégico do Estado moderno, é
o alvo que
o
Estado se d‡ como ponto de impacto de seu poder; em
suma, s—existe para esse Estado. O que é claro nessa visada, inatin-
g’vel em si, é que o indiv’duo privado, sujeito que tem supostamen-
te liberdades inalien‡veis, direitos do homem, um
habeas corpus em
que justamente o corpo é inteiramente modelado pelo Estado e tam-
bém pelo conjunto dos centros de privatizaç‹o. Tomando como
exemplo a
famllia
moderna, t’pico lugar privado, ela se estabelece
somente em concomit‰cia absoluta do público, que é o Estado mo-
derno; n‹o como o exterior intrí nsecode um espaço público de fron-
teiras rí gidas, porém como conjunto de pr‡ticas materiais do Estado
que molda o pai de fam’lia (trabalhador, educador, soldado ou fun-
cion‡rio), a criança-estudante no sentido moderno, e, é claro, sobre-
tudo a m‹e. A fam’lia e o Estado modernos n‹o formam dois espa-
ços (o privado e o público) eqüidistantes e distintos, limitando-se
mutuamente, em que um seria, segundo as an‡lises agora cl‡ssicas
da Escola de Frankfurt (Adorno, Marcuse etc.), a base da outra (a fa-
m’lia, do Estado). Embora essas duas instituiç› es n‹o sejam isomor-
fas e também n‹o mantenham relaç› es de homologia, nem por isso
deixam de fazer parte de uma única e mesma configuraç‹o, pois n‹o
é o espaço "exterior" da fam’lia que se fecha em face do Estado, e,
sim, o Estado, que, ao mesmo tempo que se constr— em público,
marca, por meio de divis› es m—eis que ele mesmo desloca, o lugar
designado ˆ fam’lia,
O Estado n‹o comporta nenhum limite de princ’pio e de direi-
to a suas usurpaç› es no privado: por mais paradoxal que pareça, é a
separaç‹o público-privado, por ele institu’da, que lhe abre perspec-
tiva ilimitada de poder. A’ est‹o as premissas do fenômeno totalit‡-
rio no sentido moderno, n‹o somente para as sociedades ocidentais,
mas. igualmente para os pa’ses do Leste. O Estado nesses pa’ses
toma as formas que se conhece, sem que, porém, tenha abolido o in-
div’duo como último obst‡culo em face do poder. Baseado nos "as-
pectos capitalistas" de suas relaç› es de produç‹o e divis‹o social do
trabalho, o processo de individualizaç‹o-isolamento desenvolve-se
plenamente, embora n‹o tome, longe disso, as mesmas formas (es-
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pecialmente jurfdico-pol’ticas) e n‹o ocorra segundo os processos
que conhecemos nas sociedades ocidentais. A distinç‹o que o Esta-
do cria entre o público e o privado (os trabalhadores estando sepa-
rados da esfera pública e do poder polí tico) também se desenvolve,
embora a estatizaç‹o atinja proporç› es consider‡veis. Ora, também
nesse caso, isso n‹o significa invas‹o pelo Estado de uma esfera pri-
vada de fronteiras intrinsecas que o Estado teria rompido, mas cor-
responde a um deslocamento mais amplo desse Estado no caminho
do Estado moderno e de sua materialidade pr—ria.
Claro que essas observaç› es s‹o apenas premissas; pois o in-
dividual-privado n‹o é um limite e sim o canal do poder do Estado
moderno, embora isso n‹o queira dizer que o poder n‹o tenha limi-
tes reais, mas, sim, que esses limites n‹o se prendem a qualquer na-
turalidade do individual-privado: dependem das lutas populares e
das relaç› es de força entre as classes, pois o Estado também é a con-
densaç‹o material e espec’fica de uma relaç‹o de força, que é uma
relaç‹o de classe. Esse individual-privado aparece igualmente como
resultante dessa relaç‹o de força e de sua condensaç‹o no Estado.
Embora o individual-privado n‹o tenha ess•ncia intrí nseca e, como
tal,
crie barreiras exteriores absolutas ao poder do Estado, limita o
poder como uma das figuras privilegiadas da relaç‹o de classe no
Estado nas sociedades modernas. Esse limite é conhecido: chama-se
democracia representativa, que, por mais mutilada que seja pelas
classes dominantes e pela materialidade do Estado, n‹o deixa de ser
uma marca no seio dessa materialidade das lutas e resist•ncias po-
pulares. N‹o sendo o único limite ao poder do Estado nem por isso
é menos importante. Provavelmente n‹o tem significaç‹o absoluta,
na medida em que nasce em terreno capitalista, porém permanece
uma barreira ao poder que sem dúvida conta enquanto o Estado e as
classes durarem. O mesmo ocorre quanto aos direitos do homem e
do cidad‹o, que n‹o s‹o uma conquista do indiv’duo em face do Es-
tado e, sim, conquista das classes oprimidas.
O individual-privado exprime em sua extens‹o ou diminuiç‹o
os avanços e recuos de suas lutas e resist•ncias quando tomam essa
forma polí tica. N‹o porque se autoformulem e assim fazendo um do-
mí nio fora do Estado, (individual-privado), mas porque situam-se no
pr—rio campo estratégico do Estado, que, em sua forma moderna,
existe como espaço público-privado. Esses direitos, tanto aqui como
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no Leste, podem servir de barragem a um poder, cujas raí zes totali-
t‡rias j‡ se encontram no processo de individualizaç‹o e na separa-
ç‹o instaurada entre o público e o privado pelo Estado moderno.
Da’ decorrem outras conseqü•ncias:
a) O totalitarismo moderno, na forma fascista ou outra qual-
quer, n‹o é mero "fenômeno" que se prende unicamente ˆ conjuntu-
ra da luta das classes. Tais conjunturas podem propiciar o apareci-
mento dos totalitarismos modernos, porque as raí zes do mal s‹o
mais profundas, instaladas no seio das relaç› es de produç‹o, da di-
vis‹o social do trabalho, da ossatura material do Estado.
b) Contrariamente a todas as ideologias antigas ou novas do
totalitarismo, a emerg•ncia efetiva das formas totalitárias do Esta-
do n‹o é um mero desabrochar desses germes e n‹o pode de modo
algum ser explicada dessa maneira, pois depende da luta de classes
em toda sua complexidade. De minha parte, é o que tentei explicar
em Fascisme et Dlctature'? e em
La
crise des dictatures.w mostran-
do que essas formas totalit‡rias, quer se trate de fascismo, ditadu-
ras militares ou bonapartismo, constituem nas sociedades ociden-
tais formas espec’ficas que designei por formas de Estado de
exceç‹o, bem diferentes das formas de Estado democr‡tico-parla-
mentares.
Essas observaç› es valem igualmente,
mutatis mutandis,
para
os aspectos totalit‡rios do poder nos paí ses do Leste, os quais tam-
bém n‹o podem ser explicados reportando-se unicamente ˆ s raí zes
do totalitarismo, que entretanto existem plenamente, e aos aspectos
capitalistas desses Estados. Somente uma an‡lise hist—ica minucio-
sa poderia faz•-lo, pois essa forma de Estado apresenta consider‡-
veis particularidades, o que ali‡s n‹o constitui exceç‹o, mas regra.
Sabe-se que essa an‡lise hist—ica começa a aparecer até mesmo na
França, e devo assinalar de Jean Ellenstein e de Charles Bettelheim,
embora de perspectivas diferentes, além das an‡lises tradicionais
das correntes trotskistas, que, a meu ver, embora insatisfat—ias,
muito nos ajudaram. Cito-as em conjunto, porque tratam-se de an‡-
lises que se referem especificamente ao método marxista.
ƒ
claro
que o marxismo sozinho n‹ o pode tudo explicar, porém gostaria que
nos mostrassem, entre os "antimarxistas" prim‡rios que atualmente
72
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defendem a idéia de que o marxismo n‹o pode explicar o que se
passa nos pa’ses do Leste, um único que tenha feito, ou mesmo ten-
tado, essa an‡lise hist—ica indispens‡vel.
Essa an‡lise que fundamenta
a
materialidade do Estado nas
relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho, n‹o é hetero-
gena ou complementar a uma an‡lise dessa materialidade em ter-
mos de classes e luta de classes. No que concerne ˆ individualiza-
ç‹o do corpo social sobre o qual se exerce o poder, n‹o se trata de
"deduzir" a estrutura organizadora do Estado no processamento da
individualizaç‹o e de relacion‡-la em seguida com
a
luta de classes
e a dominaç‹o polí tica. Esse processamento, relacionado justamen-
te ao processo e
ˆ
divis‹o de trabalho capitalistas, é apenas
a
con-
figuraç‹o do terreno no qual se formam as classes sociais e a luta
de classes em sua especificidade capitalista. Contrariamente ˆs
classes-castas ou estados escravagistas e medievais, classes fecha-
das em que os agentes pertencem unicamente pela sua natureza -
no capitalismo, as classes s‹o "abertas", fundamentadas na reparti-
ç‹o e na circulaç‹o de agentes individualizados em seu meio, quer
se trate da burguesia, da classe oper‡ria ou das classes no campo.
Essas classes provocam um papel do Estado até ent‹o inédito, o de
distribuir-repartir os agentes individualizados através das classes,
de formar e preparar, de qualificar e subjugar os agentes, de tal
forma que possam ocupar
talou
qual lugar de classe
ˆ
qual n‹o
estão ligados por natureza ou nascimento; papel pr—rio da escola
e também do exército, da pris‹o ou da administraç‹o. O mecanismo
de individualizaç‹o j‡ é uma marca, na materialidade do Estado, da
especificidade das classes no capitalismo, pois as técnicas de exercí -
cio do poder na escola ou no exército (disciplinas de normalizaç‹o-
individualizaç‹o) s‹o consubstartciais a seu papel de preparaç‹o-dis-
tribuiç‹o-repartiç‹o dos agentes-indiv’duos entre as classes. Enfim,
essa individualizaç‹o traçada na corporeidade capitalista apresenta
sentido e modalidades diferentes segundo as diversas classes so-
ciais. Existe uma individualizaç‹o burguesa e uma individualizaç‹o
oper‡ria, um corpo burgu•s e um corpo oper‡rio, modalidades da
individualizaç‹o e da corporeidade capitalistas, assim como existe
uma fam’lia burguesa e uma fam’lia oper‡ria, modalidades da fam’-
lia capitalista fundamentada no processo de individualizaç‹o.
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ill.ALEI
1.
Lei e Terror
o terceiro exemplo ao qual chamo a atenç‹ o refere-se ao papel
da lei., pois ele nos interessa por v‡rias raz› es: permite especialmen-
te apresentar com precis‹o a questão da repress‹o no exerc’cio do
poder,
Ora, também deste ponto de vista o Estado capitalista repre-
senta uma verdadeira ruptura em relaç‹o aos Estados pré-capitalistas.
Primeiramente porque a lei s—tardiamente, com o Estado ca-
pitalista e sua constituiç‹o hist—ica, apresentou-se como limitaç‹o
do arb’trio estatal, até mesmo como barreira a uma certa forma de
exerc’cio da viol•ncia.
ƒ
esse "Estado de direito" que foi concebido
como oposto ao poder ilimitado, criando a ilus‹o do binômio Lei-
Terror. A lei e
a
regra estiveram sempre presentes na constituiç‹o do
poder: o Estado asi‡tico ou despótico, o Estado escravagista (Roma,
Atenas), o Estado feudal foram sempre fundamentados no direito
e
na lei, desde o direito babilônico e ass’rio ao direito grego e roma-
no até as formas jurí dicas medievais. Toda forma estatal, mesmo
a
mais sanguin‡ria, edificou-se sempre como organizaç‹o jurí dica, re-
presentou-se no direito e funcionou sob forma jurí dica: sabe-se
muito bem que assim foi com St‡lin e sua constituiç‹o de 1937, re-
putada como a "mais democr‡tica do mundo". Portanto nada mais
falso que uma presum’vel oposiç‹o entre o arb’trio, os abusos, a boa
vontade do pr’ncipe e o reino da lei. Essa vis‹o corresponde ˆ con-
cepç‹o jurí dico-legalista do Estado, a da filosofia polí tica do Esta-
do burgu•s estabelecido, contra a qual levantaram-se Marx e Max
Weber,
e
que n‹o passou desapercebida pelos te—icos da gestaç‹o
sangrenta do Estado, Maquiavel e Hobbes. De qualquer forma esta
suposta cis‹o entre lei e viol•ncia é falsa, sobretudo para o Estado
moderno. ƒ este Estado de direito, o Estado da lei por excel•ncia
que detém, ao contr‡rio dos Estados pré-capitalistas, o monop—io
da viol•ncia e do terror supremo, o monop—io da guerra.
A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organizaç‹o
da vjol•nc’a exercida por todo Estado. O Estado edita a regra, pro-
nuncia
'a
lei, e por
aí
instaura um primeiro campo de injunç› es, de
interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicaç‹o e o
objeto da viol•ncia. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento
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da repress‹o f’sica, designa e gradua as modalidades, enquadra os
dispositivos que a exercem. A lei é, neste sentido, o c—digo da vio-
l•ncia pública organizada. A neglig•ncia do papel da lei na organi-
zaç‹o do poder é constante naqueles que ignoram o papel da repres-
s‹o fí sica no funcionamento do Estado; Foucault especialmente,
como se v• em sua última obra, A vontade de saber, seqü•ncia l—i-
ca de Peregrinaç› es em Vigiar e Punir.
Esquematizando, pode-se estabelecer a cadeia do racioc’nio de
Foucault da seguinte maneira: a) o binômio legalidade-terror é erra-
do, pois a lei sempre acompanhou o exerc’cio da viol•ncia e da re-
press‹o fí sica; b) o exercí cio do poder nas sociedades modernas ba-
seia-se muito menos na viol•ncia-repress‹o aberta do que nos
mecanismos, mais sutis e considerados "heter—enos" ˆ viol•ncia,
das disciplinas: "E se é verdade que o jurí dico pode servir para re-
presentar de maneira sem dúvida n‹o exaustiva um poder essencial-
mente baseado na antecipaç‹o e na morte, é totalmente heter—eno
aos novos processos de poder, que funcionam n‹o para o direito mas
para a técnica, n‹o para a lei mas para a normalizaç‹o, n‹o para
o
castigo e sim para o controle, e que se exercem em n’veis e formas
.
que ultrapassam o Estado e seus aparelhos".
J7
Exercí cio do poder
que implicaria, como o disse depois de Foucault.
R.
Castel, na pas-
sagem da autoridade-coerç‹o ˆ manipulaç‹o-persuas‹o," em uma
palavra, ˆ famosa "interiorizaç‹o" da repress‹o nas classes domina-
das. Daí se deduz inelutavelmente que h‡ em Foucault a subestima-
ç‹o do papel da lei, ao menos no exerc’cio do poder no seio das so-
, .
ciedades modernas, e também subestimaç‹o do papel do Estado,
acompanhada de desconhecimento do lugar, no Estado moderno,
dos aparelhos repressivos (exército, pol’cia, justiça etc.) enquanto
dispositivos de exerc’cio da viol•ncia f’sica. S‹o considerados so-
mente como peças do dispositivo disciplinar que molda a interiori-
zaç‹o da repress‹o pela normalizaç‹o.
O primeiro racioc’nio referente ˆ relaç‹o constitutiva entre a
lei e o exercí cio da viol•ncia é correto, porém o segundo est‡ erra-
do. Ali‡s, n‹o é exclusivo de Foucault, caracteriza igualmente uma
corrente de pensamento mais ampla, por sinal bem diferente de Fou-
cault. Esse racioc’nio tem raiz no par viol•ncia-consentimento, re-
press‹o-ideologia, que por muito tempo marcou as an‡lises do
poder. O leitmotiv é simples: o poder moderno n‹o se basearia na
75
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viol•ncia f’sica organizada mas na manipulaç‹ o ideol—ico-simb—
lica, na organizaç‹o do consentimento, na interiorizaç‹o da repres-
s‹o (o "tira" na cabeça). As origens dessa concepç‹o encontram-se
nas primeiras an‡lises da filosofia polí tico-jurí dica burguesa, que
justamente opunha viol•ncia e lei, por ver no Estado de direito e no
reino da lei a limitaç‹o intrí nseca da viol•ncia. Essa concepç‹o teve,
sob formas variadas, prolongamentos atuais: as an‡lises da escola de
Frankfurt - as famosas an‡lises de substituiç‹o da famí lia ˆ polí cia
como inst‰cia autorit‡ria - e de Marcuse e de P. Bourdieu sobre a
chamada viol•ncia simb—ica, o tema da interiorizaç‹o da repress‹o,
e em geral de uma "diminuiç‹o", digamos assim, da viol•ncia f’sica
no exerc’cio do poder tomaram-se lugar-comum. O que
é
essencial
aqui, é ao mesmo tempo a subestimaç‹o do papel da repress‹o, da
sujeiç‹o mort’fera e armada sobre o corpo, e a concepç‹o do poder
como binômio repress‹o-ideologia, constituindo esses dois termos
componentes-quantidades de soma zero. Diminuiç‹o ou retraç‹o da
viol•ncia f’sica s—poderia corresponder, no funcionamento e manu-
tenç‹o do poder, a uma acentuaç‹o ou aumento da inculcaç‹o ideo-
l—ica (viol•ncia simb—ica-interiorizaç‹o da repress‹o).
Basicamente
é
uma concepç‹o do poder pouco diferente, da
que prevalece em incont‡veis an‡lises, muito em voga atualmente,
que fundamenta o consenso no desejo das massas (as massas 'teriam
desejado o fascismo) ou no amor do Senhor. 19 T•m em comum.com
a corrente precedente o fato de ignorar o papel da viol•ncia f’sica or-
ganizada, reduzindo o poder ˆ repress‹o-interdito. Daí se deduz uma
subjetivaç‹o do exerc’cio do poder sob a forma de busca das "raz› es
de obedecer" no desejo ou no amor do Poder, que substituem o
papel, suprimido nas correntes precedentes, da ideologia como fator
de interiorizaç‹o da repress‹o. A lei nunca intervém aqui sob a
forma de codificadora da viol•ncia f’sica, mas como figura do Se-
nhor, que, s—por sua presença, enunciaç‹o ou discurso, induz o de-
sejo e o amor dos sujeitos. O binômio repress‹o-viol•ncia substitui-
se pelo binômio lei-amor, interdito-desejo, porém o papel da
viol•ncia na base do poder é sempre subestimado: s‰se consideram
as raz› es do consenso.
O que
é
inquietante nessas an‡lises n‹o
é
exatamente o fato de
apresentarem o problema do consenso ao poder, e sim que n‹o con-
siderem o papel da viol•ncia f’sica organizada na repress‹o, e que
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reduzam o poder ˆ repress‹o simb—ica ou interiorizada e ao interdi-
to. Assim n‹o podem apreender as raz› es materiais positivas (entre
outras concess› es do poder ˆ s massas) desse consenso e o funda-
mentam no amor-desejo da repress‹o, enquanto essas raz› es, além
da ideologia dominante, desempenham um papel decisivo. Por outro
lado, insistir na positividade do poder n‹o poderia significar ocultar
e a questão da repress‹o e o papel da ideologia que intervém no con-
sentimento. ƒ o que acontece com Foucault, que, diferenciando-se
das correntes precedentes ao demonstrar - e
é
esse seu mérito -
um dos aspectos das técnicas do poder que organizam materialmen-
te a submiss‹o dos dominados (as disciplinas de normalizaç‹o)
como outros, subestima constantemente, em suas an‡lises, o papel
da viol•ncia f’sica aberta, sendo a subestimaç‹o do papel da lei (n‹o
como indutora de amor-desejo mas justamente como codificadora
dessa viol•ncia) apenas um 'sintoma.
Onifuncionalidade das técnicas do poder que, em Foucault, ab-
sorve de imediato n‹o apenas o problema da viol•ncia f’sica, mas
também o do consentimento, que se toma um n‹o-problema, isto
é,
um problema n‹o tratado teoricamente, ou que cai nas an‡lises do
tipo "interiorizaç‹o da repress‹o". Quais s‹o, além das disciplinas
de normalizaç‹o, as "raz› es" do consentimento, que, entretanto n‹ o
impedem que sempre haja lutas? Se essas disciplinas bastassem para
explicar a submiss‹o,
por que permitiriam a exist•ncia das lutas?
Chega-se ˆ aporia nodal das an‡lises de Foucault, da qual voltarei a
falar: a aus•ncia de fundamento de suas famosas resist•ncias ao
poder que tanto lhe apraz. De fato, se deve haver viol•ncia f’sica or-
ganizada é pela mesma raz‹o que deve haver consentimento: porque
h‡ de iní cio e sempre lutas baseadas em primeiro lugar na explora-
ç‹o. Se essa realidade primeira e incontorn‡vel, que faz que as lutas
sejam sempre o fundamento do poder, for esquecida em favor de
uma vis‹o que faz do poder (a Lei, o Senhor) o fundamento das lu-
tas, ou de uma relaç‹o entre termos puramente equivalentes "poder-
resist•ncias", somos levados, ora a derivar o consentimento do amor
ou do desejo do poder, ora a ocultar o consentimento como proble-
ma. Nos dois casos escamoteia-se o papel da viol•ncia.
Na realidade qual é o papel da viol•ncia? O Estado capitalista,
ao contr‡rio dos Estados pré-capitalistas,
detém
o
monop—io da vio-
l•ncia fisica leg’tima. Cabe a
Max.
Weber o mérito de ter esclareci-
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do este ponto, mostrando que
a
legitimidade do Estado, que concen-
tra a força organizada, é
a
legitimidade "racional-legal" fundamen-
tada na lei:
a
acumulaç‹o prodigiosa de meios de coaç‹o corporal
pelo Estado capitalista acompanha seu car‡ter de Estado de direito.
O grau de viol•ncia f’sica aberta exercida nas diversas situaç› es de
poder "privado" exteriores ao Estado, da f‡brica ˆ s famosas micros-
situaç› es de poder. est‡ em regress‹o na exata medida em que o Es-
tado se reserva o monop—io da força f’sica leg’tima. Os Estados ca-
pitalistas europeus formaram-se quase sempre pela pacificaç‹o de
territ—ios devastados pelas guerras feudais. Com o poder polí tico
institucionalizado, que contudo detém o monop—io da viol•ncia.
nas circunst‰cias normais de dominaç‹o ela é menos usada do que
nos Estados pré-capitalistas. Se pusermos de lado:
a)
as formas, que
n‹o se pode esquecer, com a mem—ia curta e a leviandade europo-
centrista de nossos te—icos, de Estados capitalistas de exceç‹o (fas-
cismos, ditaduras militares etc.) que hoje infestam nosso mundo (os
te—icos s—se lembram da viol•ncia nos paí ses do Leste):
b)
os casos,
de terror supremo da guerra (Primeira Guerra Mundial, Segunda
Guerra Mundial, as outras ... e agora a nuclear: quem se preocupava
em dizer que o poder moderno n‹o mais funciona para a morte?); c)
a
conjuntura de exacerbaç‹o das lutas de classe, o emprego efetivo
da viol•ncia aberta fica relativamente limitado ao passado. Tudo' se
passa como se o Estado precisasse usar menos
a
força na medida em
que
detém o monop—io leg’timo.
Concluir que o poder e o dom’nio modernos n‹o mais se ba-
seiam na viol•ncia f’sica é a ilus‹o atual. Mesmo que essa viol•ncia
n‹o transpareça no exercí cio cotidiano do poder, como no passado,
ela
é
mais do que nunca
determinante.
Sua monopolizaç‹o pelo Es-
tado induz as formas de dom’nio nas quais os múltiplos procedimen-
tos de criaç‹o do consentimento desempenham o papel principal.
Para apreend•-lo devemos nos distanciar da metáfora anal—ica de
mera complementaridade entre viol•ncia e consentimento, calcada
na imagem do Centauro (metade-fera, metade-homem), de Maquia-
vel. A viol•ncia f’sica n‹ o existe somente lado a lado com consenti-
mento, como duas grandezas mensur‡veis e homog•neas que man-
t•m relaç› es invertidas, de tal como que maior consentimento
corresponderia a menos viol•ncia. Se a viol•ncia-terror tem sempre
um lugar determinante, isso n‹o se deve ao fato dela se manter cons-
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tantemente retraí da e s—se manifestar abertamente em situaç› es crí -
ticas.
A viol•ncia fí sica monopolizada pelo Estado sustenta perma-
nentemente as técnicas do poder e os mecanismos do consentimento,
est‡ inscrita na trama dos dispositivos disciplinares
e
ideol—gicos, e
molda a materialidade do corpo social sobre o qual age o dom’nio,
mesmo quando essa viol•ncia não se exerce diretamente,
Também n‹o se trata de substituir o binômio lei-terror, repres-
s‹o-ideologia, por um trinômio repress‹o-normalizaç‹o disciplinar-
ideologia, substituindo um terceiro termo numa relaç‹o de funciona-
mento inalterado: grandezas heterog•neas e distintas de uni poder
quantific‡vel ou modalidades de exerc’cio de um poder-ess•ncia.
Trata-se de apreender a organizaç‹o material do poder como relaç‹o
de classe em que a viol•ncia f’sica organizada é a condiç‹o de exis-
t•ncia e garantia de reproduç‹o. A colocaç‹o das técnicas do poder
capitalista, a constituiç‹o dos dispositivos disciplinares (o grande
"internamento"), a emerg•ncia das instituiç› es ideol—ico-culturais
(do Parlamento ao sufr‡gio universal e ˆ escola) pressup› em a mo-
nopolizaç‹o da viol•ncia pelo Estado, recoberta precisamente pelo
deslocamento da legitimidade para a legalidade e pelo reino da lei.
Esses te—icos a pressup› em tanto em sua genealogia hist—ica como
em sua exist•ncia e reproduç‹o. Para citar apenas um exemplo, o
exército nacional é consubstancial ao Parlamento e ˆ escola capita-
lista. Essa consubstancialidade repousa na materialidade institucio-
nal comum decorrente da divis‹o social do trabalho que seus apare-
lhos encarnam e também no fato de que o exército nacional,
justamente como peça do
monop—io
pelo Estado da viol•ncia f’sica
leg’tima, induz as formas de exist•ncia e de funcionamento de ins-
tituiç› es
-
parlamento, escola
-
nas quais a viol•ncia n‹o precisa
se atualizar como tal. A exist•ncia regular, a pr—ria constituiç‹o do
Parlamento como editor de leis é impens‡vel sem a instituiç‹o do
exército nacional moderno.
Enfim, falemos precisamente
da morte.
Como n‹o fazer con-
vergir as transformaç› es da maneira como se morre, mais prosaica-
mente no leito, o verdadeiro interdito que choca nas sociedades mo-
dernas, a morte e a perda pelos cidad‹ os "privados" de sua pr—ria
morte.P com o monop—io pelo Estado do terror público leg’timo?
O Estado n‹o funcionaria mais para a morte? Mesmo quando n‹o
executa (pena de morte), n‹o mata ou n‹o ameaça faz•-lo, mesmo
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quando impede de morrer, o Estado moderno gere a morte pois o
poder médico est‡ inscrito na lei modema.
A monopolizaç‹o pelo Estado da viol•ncia leg’tima permane-
ce o elemento determinante do poder, mesmo quando essa viol•ncia
n‹o
é
exercida direta e abertamente. Essa monopolizaç‹o est‡ na
base das novas formas de lutas sob o capitalismo, ˆs quais corres-
ponde o papel dos dispositivos de organizaç‹o do consentimento,
pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A con-
centraç‹o da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmi-
litarizaç‹o dos setores privados - condiç‹o para estabelecimento
da exploraç‹o capitalista - contribuem para deslocar a luta das
classes, de uma guerra civil permanente de conflitos armados peri—
dicos e regulares, para as novas formas de organizaç‹o polí tica e
sindical das massas populares, contra as quais a viol•ncia f’sica
aberta é, sabe-se, de efici•ncia relativa. Um povo "privado" da força
"pública" j‡ é um povo que n‹o vive mais o dom’nio polí tico sob a
forma de fatalidade natural e sagrada, um povo para o qual o mono-
p—io da viol•ncia pelo Estado s—é leg’timo na medida em que a re-
gulamentaç‹o jurí dica e a legalidade lhe permite esperar, e mesmo
permite formalmente e em princ’pio, o acesso ao poder. Enfim, o Es-
tado concentra a viol•ncia em seus corpos especializados, enquanto
ela cada vez mais é insuficiente para a reproduç‹o do dom’nio. Às
guerras privadas e aos conflitos armados sob forma de teodicéias re-
petitivas - incansavelmente colocadas na ordem do dia,
catarse
da
fatalidade do poder, guerras pacificadas pela concentraç‹o da-força
armada no Estado
-
sucede a permanente contestaç‹o polí tica ao
poder, conseqü•ncia da monopolizaç‹o da força f’sica pelo Estado.
Os mecanismos de organizaç‹o do consentimento instalam-se nos
postos avançados do poder: é o reino da lei capitalista que designa
este lugar aos mecanismos de consentimento, inclusive sob a forma
de inculcaç‹o ideol—ica, na exata medida em que encobre a mono-
polizaç‹o da força fí sica pelo Estado.
Embora o papel da lei (pois no ní vel geral em que me coloco
aqui n‹o faço distinç‹o entre lei e direito) mostre ser essencial no
exerc’cio do poder como organizador da repress‹o, da viol•ncia f’-
sica organizada, n‹o significa contudo que, nessa aç‹o, a l—ica da
lei seja puramente negativa, de rejeiç‹o, de barragem ou de obriga-
ç‹o de n‹o-manifestaç‹o e mutismo. O poder jamais é exclusiva-
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mente negativo, pois é algo mais que a lei. A lei em seu papel repres-
sivo comporta um aspecto de positividade elevado, pois a repress‹ o
jamais se identifica ˆ pura negatividade.
A lei n‹o passa de um con-
glomerado de interditos e de censura. Também é
a
lei, desde o direi-
to greco-romano, que emite injunç› es positivas, que pro’be ou deixa
fazer segundo a m‡xima de que é permitido o que n‹o é proibido
pela lei, mas que faz fazer, obriga
a
aç› es positivas em vista do
poder, obriga também a discursos dirigidos ao poder. A lei imp› e o
sil•ncio ou deixa dizer, é ela que freqüentemente obriga
a
dizer (a
prestar juramento, a denunciar etc.). No geral,
a
lei institucionaliza-
da nunca foi pura injunç‹o de abstenç‹o ou pura censura, de tal
modo que terí amos na organizaç‹o do Estado, de um lado a lei-cen-
sura-negatividade, e de outro lado "outra coisa" - aç‹o-positivi-
dade. Essa oposiç‹o é parcialmente errada na medida em que a lei
organiza o campo repressivo como repress‹o daquilo que se faz quan-
do a lei pro’be e também como repress‹o daquilo que n‹o se faz
quando a rei obriga que se faça. A lei sempre esteve na ordem so-
cial, no sentido em que aparece depois para pôr ordem num estado
natural preexistente, porque é constitutiva do campo pol’tico-social
como codificaç‹o de interditos e injunç› es positivas.
Portanto, a repress‹o jamais é pura negatividade: n‹o se esgo-
ta nem no exerc’cio efetivo da viol•ncia fí sica, nem em sua interio-
rizaç‹o. H‡ na repress‹o outra coisa da qual raramente se fala:
os
'mecanismos do medo.
Mecanismos materiais e nada subjetivados;
chamei-os de
teatralidade
do Estado moderno, verdadeiro Castelo
de Kafka. Teatralidade inscrita na lei modema, nos dédalos e labi-
rintos onde essa lei se materializa: que isso se baseie no monop—io
,
da viol•ncia leg’tima, é do lado Colônia Penal, sempre Kafka, que
devemos procurar como compreender.
Enfim, a lei detém um papel importante (positivo e negativo)
na organizaç‹o da repress‹o ao qual n‹o se limita; é igualmente efi-
caz nos dispositivos de criaç‹o do consentimento. Materializa a
ideologia dominante que a’ intervém mesmo que n‹o esgote as ra-
z› es do consentimento. A lei-regra, por meio de sua discursividade
e textura, oculta as realidades pol’tico-econômicas, comporta lacu-
nas e vazios estruturais, transp› e essas realidades para a cena polí -
tica por meio de um mecanismo pr—rio de ocultaç‹o-invers‹o. Tra-
duz assim a representaç‹o imagin‡ria da sociedade e do poder da
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classe dominante. A lei é. sob esse aspecto, e paralelamente a seu
lugar no dispositivo repressivo, um dos fatores importantes da orga-
nizaç‹o do consentimento das classes dominadas, embora a legitimi-
dade (o consentimento) n‹o se identifique nem se limite ˆ legalida-
de.
As classes dominadas encontram na lei uma barreira de exclus‹o
e igualmente a designaç‹o do lugar que devem ocupar. Lugar que é
também lugar de inserç‹o na rede polí tico-social, criadora de deve-
res-obrigaç› es e também de direitos, lugar cuja posse imagin‡ria
tem conseqü•ncias reais sobre os agentes.
Muitas das aç› es do Estado que ultrapassam seu papel repres-
sivo e ideol—ico, suas intervenç› es econômicas e sobretudo os com-
promissos materiais impostos pelas classes dominadas ˆ s classes do-
minantes, uma das raz› es do consentimento, v•m inscrever-se, no
corpo da lei, fazendo parte de sua estrutura interna. A lei apenas en-
gana ou encobre, reprime, obrigando a fazer ou proibindo. Também
organiza e sanciona direitos reais das classes dominadas (claro' que
investidos na ideologia dominante e que est‹o longe de corresponder
em sua aplicaç‹o ˆ sua forma jurí dica) e comporta os compromissos
materiais impostos pelas lutas populares ˆs classes dominantes.
N‹o
é
menos evidente, em oposiç‹o a toda concepç‹o jurí di-
co-legalista, e psicanal’tica também, tal como aparece em obras in-
teressantes como a de
P.
Legendre'"
que a ação, o papel do Estado
em muito ultrapassam a lei ou a regulamentaç‹ o jur’dica.
a) A aç‹o do Estado, seu funcionamento concreto nem sempre
toma a forma de lei-regra: existe sempre um conjunto de pr‡ticas e
técnicas estatais que escapa ˆ sistematizaç‹o e ˆ ordem jurí dicas.
Isso n‹o quer dizer que sejam "anômicas", arbitr‡rias, mas que obe-
decem a uma l—ica diferente da ordem jurí dica, ˆ l—ica da relaç‹o
de forças entre classes em luta cuja lei é apenas investimento a dis-
t‰cia e em registro espec’fico.
b) Frequentemente o Estado age transgredindo a lei-regra que
edita, desviando-se da lei ou agindo contra a pr—ria lei. Todo siste-
ma autoriza, em sua discursividade, delineado como vari‡vel da
regra do
jogo
que organiza, o n‹o-respeito pelo Estado-poder de sua
pr—ria lei. Chama-se a isso
raz‹ o de Estado,
que significa que a
legalidade é compensada por "ap•ndices" de ilegalidade, e que a ile-
galidade do Estado est‡ sempre inscrita na legalidade que institui: o
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stalinismo e os aspectos totalitários do poder nos pa’ses do Leste
n‹o se devem especialmente ˆ s "violaç› es da legalidade socialista".
Todo sistema jurí dico inclui a ilegalidade assim como comporta,
como parte integrante de seu discurso, vazios e brancos, "lacunas da
lei": n‹o se trata de simples descuidos ou cegueira causados pela
operaç‹o ideol—ica de ocultaç‹o que sustenta o direito, porém de
dispositivos expressamente previstos, brechas para permitir ir além
da lei, sem falar das violaç› es puras e simples que o Estado faz de
sua lei, que embora pareçam transgress› es selvagens, pois n‹o
foram previstas na lei, assim mesmo fazem parte do funcionamento
estrutural do Estado. Todo Estado é organizado em sua os satura ins-
titucional de modo a funcionar (e de modo
a
que as classes domi-
nantes funcionem) segundo a lei e contra a lei. Inúmeras leis n‹o te-
riam existido em sua forma precisa se, com o apoio do conjunto de
dispositivos estatais, uma taxa de violaç‹o das classes dominantes
n‹o houvesse sido descontada, isto é, inscrita nos dispositivos do
Estado. A ilegalidade
é
freqüentemente parte da lei, e mesmo quan-
do ilegalidade e legalidade s‹o distintas, n‹o englobam duas organi-
zaç› es separadas, espécie de Estado paralelo (ilegalidade) e de Es-
tado de direito (legalidade), e menos ainda uma distinç‹o entre
Estado ca—ico, um n‹o-Estado (ilegalidade) e um Estado (legalida-
de). Ilegalidade e legalidade fazem parte de uma única e mesma es-
trutura institucional.
No fundo, é assim que se deve entender
a
express‹o de Marx.
de que todo Estado é uma "ditadura" de classe. N‹o no sentido que
entendemos habitualmente de poder acima da lei, onde lei é consi-
derada como oposta ˆ viol•ncia e ˆ força: n‹o h‡ Estado, por mais
ditatorial que seja, sem lei, e a exist•ncia de lei e de legalidade ja-
mais impediu qualquer barb‡rie ou despotismo. H‡ que compreen-
der a express‹o na acepç‹o exata em que "ditadura" designa a orga-
nizaç‹o de todo Estado como ordem funcional única de legalidade e
de ilegalidade, de uma legalidade vazada por ilegalidade.
e) Enfim, a aç‹o do Estado sempre ultrapassa
a
lei pois o Esta-
do pode, dentro de certos limites, modificar sua pr—ria lei. O Es-
tado n‹o é a simples figura de alguma lei eterna, seja ela origin‡ria
de algum interdito universal ou de uma lei natural. Primado suposto
e, é o caso de se dizer, de direito da lei sobre o Estado que, :10 fundo,
é
a pr—ria base
da
concepç‹o jurí dica do Estado pela qual se expli-
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ca a coniv•ncia atual com a concepç‹o anal’tica (psicanal’tica) das
instituiç› es. Ora, se todo Estado é
consubstancial a uma lei, se ent‹o
na verdade a lei n‹o é uma criaç‹o utilit‡ria de um Estado pura força
prévia, é o Estado, numa sociedade dividida em classes e no seu as-
pecto de viol•ncia leg’tima, em suma, como detentor da força e da re-
press‹o f’sica, que sempre domina a lei. Pois se é verdade que a lei
organiza essa viol•ncia, n‹o h‡ nessa sociedade lei ou direito sem
aparelhagem que obrigue sua aplicaç‹o e assegure a efici•ncia, em
resumo, a exist•ncia social: a eficacidade da lei jamais é a do puro
discurso,
da
palavra e da regra emitida. Se n‹o h‡ viol•ncia sem lei,
a lei pressup› e sempre a força organizada a serviço do legiferante (o
braço secular). Mais prosaicamente: a força permanece na lei.
2, A Lei Moderna
Embora toda lei ou todo direito apresentem certas caracterí sti-
cas comuns, o direito capitalista
é
espec’fico no que forma um
sis-
tema axiomatizado, composto de conjunto de normas abstratas, ge-
rais.formais e estritamente regulamentadas.
Também um certo marxismo fundamentou essa especificidade
do sistema jurí dico capitalista na esfera de circulaç‹o do capital e
das trocas mercantis: sujeitos jurí dicos "abstratos" quando livre tro-
cadores de mercadorias, indiv’duos "formalmente" livres e iguais,
troca equivalente e valor de troca "abstrato" etc.22 Ora, n‹o é no in-
terior dessa esfera que se pode apreender a especificidade da lei e do
direito capitalistas. A especificidade (abstraç‹o, universalidade, for-
malidade), que ali‡s encobre a monopolizaç‹o da viol•ncia leg’tima
pelo Estado, que se op› e ao particularismo jurí dico que dissimula a
difus‹o dessa viol•ncia entre v‡rios portadores, deve ser procurada
na divis‹o social do trabalho e nas relaç› es de produç‹o. S‹o eles
que d‹o ˆ viol•ncia o lugar e o papel que desempenham no capita-
lismo, onde, em vista do desapossamento dos trabalhadores duetos
de seus meios de trabalho, a viol•ncia n‹o est‡ diretamente presente
como tal (como raz‹o "extra-econ—mica") no processo de produç‹ o.
Esse sistema jurí dico axiomatizado constitui o quadro de coes‹ ofor-
ma/
de agentes totalmente despojados de seus meios de produç‹o.
desenhando assim os contornos de um espaço estatal relativamente
separado das relaç› es de produç‹o. A formalidade e a abstraç‹o da
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lei est‹o em relaç‹o primeira com os fracionamentos reais do corpo
social, ,na divis‹o social do trabalho, com a individualizaç‹o dos
agentes em andamento no processo de trabalho capitalista.
, A lei modema encarna assim o espaço-tempo, o quadro refe-
rencial material do processo de trabalho: espaço/tempo serial, cumu-
lativo, cont’nuo e homog•neo. Essa lei transforma os indiv’duos em
sujeitos-pessoas jurí dico-polí ticas ao representar a unidade como
povo-naç‹o. Ela consagra e participa também em sua instauraç‹o,
nas fragmentaç› es diferenciadas dos agentes (individualizaç‹o), tra-
çando o c—igo no qual essas diferenciaç› es se inscrevem, e a partir
do qual as diferenciaç› es existem sem colocar em jogo a unidade
polí tica da formaç‹o social. Todos os sujeitos s‹o iguais e livres pe-
rante a lei: o que j‡ quer dizer, no discurso da lei (e, n‹o escondido
nele), que s‹o realmente diferentes (como sujeitos-indiv’duos), mas
na medida em que essa diferença pode se inscrever num quadro de
homogeneidade. A lei capitalista n‹o oculta apenas, como se diz fre-
qüentemente, as diferenças reais sob um formalismo universal; ela
contribui para instaurar e sancionar a diferença (individual e de clas-
se) em sua pr—ria estrutura; erigindo como sistema de coes‹o e
como organizador da unidade-homogeneizaç‹o dessas diferenças.
Aí a fonte das caracterí sticas de universalidade, formalidade e abs-
traç‹o da axiom‡tica jurí dica. Sup› em agentes liberados de seus
"elos" territoriais-pessoais das sociedades pré-capitalistas, ou mesmo
escravocratas, na base de um direito constitu’do, no essencial, de es-
tatutos, de privilégios 'e de costumes de castas-Estados onde o polí -
tico e o econômico estariam estreitamente ligados. N‹o é
a
lei que
libera esses agentes: ela intervém num processo de desconex‹o e de
separaç‹o dos agentes dos elos que os diferenciavam por castas-Es-
tados, classes fechadas nas quais estavam originariamente encastra-
dos, fontes de signos, de s’mbolos, de significaç› es. A lei nisso se
empenha, contribuindo para instaurar e sancionar a nova grande di-
ferença: a individualizaç‹ o. Ali‡s o direito moderno trabalha para
que essa individualizaç‹o seja paralelamente (e em relativa contra-
diç‹o com) a outras técnicas e pr‡ticas do Estado (as disciplinas de
normalizaç‹o), seja encobrindo-as e nelas se moldando,
A lei e o sistema jurí dico capitalistas apresentam igualmente,
porém, particularidades no seu aspecto de materializaç‹o da ideo-
logia dominante. A legitimidade desloca-se em direç‹o ˆ legalida-
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86
de,
o
que a distingue da legalidade organizada com base no sagra-
do. A lei,
j‡
encarnaç‹o do povo-naç‹o, toma-se a categoria funda-
mental da soberania do Estado: a ideologia jurí dico-polí tica insta-
la-se em regi‹o dominante da ideologia e suplanta a ideologia
religiosa. Se essas modificaç›es englobam a monopolizaç‹o da
força leg’tima por parte do Estado, t•m contudo raí zes bem mais
profundas, A funç‹o de legitimidade desloca-se em direç‹o ˆ lei,
inst‰cia impessoal e abstrata, ao mesmo tempo em que, no seio
das relaç› es de produç‹o, os agentes "desatam" e se liberam de
seus elos territoriais-pessoais. Tudo se passa como se essa lei, gra-
ças a sua abstraç‹o, formalidade e generalidade, se tomasse aqui o
dispositivo mais apto a preencher a
funç‹ o-m—
de toda ideologia
dominante: a de cimentar a unidade de uma formaç‹o social (sob a
égide da classe dominante).
ƒ especialmente a lei que, em suas caracterí sticas capitalistas,
pode, além do quadro formal de coes‹o que imp› e aos agentes,
re-
presentar
sua unidade, investindo-a no imagin‡rio social, e cimen-
tar os processos de individualizaç‹o. Tudo se passa como se a lei,
que se organiza no modo do
puro signo
(abstraç‹o, universalidade,
formalidade), pegasse um lugar privilegiado no mecanismo ideol—
gico de representaç‹o imagin‡ria, a partir do momento em que os
agentes s‹o atomizados e separados de seus meios naturais de traba-
lho. Enquanto nas formaç› es pré-capitalistas era o modo de simbo-
lizaç‹o pr—rio
ˆ
religi‹o (a religi‹o une) que permitia sancionar as
ligaç› es de agentes
j‡
encastrados na terra, na fam’lia, nas castas e
nos estados. Ligaç‹o que originavam uma série de simbolizaç› es
primeiras do tipo sagrado, as quais eram registradas pelo Estado que
da’ tirava sua legitimidade como encarnaç‹ o, no topo da pir‰mide
significante, da palavra e do corpo soberano. Era a esses modos
de produç‹o que correspondia, segundo Marx, o papel dominante da
ideologia, enquanto no modo de produç‹o capitalista o econômico,
em raz‹o de suas relaç› es de produç‹o espec’ficas, tem ao mesmo
tempo o papel determinante e o papel dominante. ƒ necess‡rio com-
preend•-lo no sentido de que a lei, em sua forma capitalista, toma-
se a encarnaç‹o do mecanismo ideol—ico fundamental, a partir do
momento em que o ciclo de reproduç‹o do capital e n‹o das "raz› es
extra-econômicas" que aceleram a extraç‹o do sobre trabalho (a
mais valia), a partir do momento em que s‹o esmagadas as subsim-
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bolizaç› es que cimentam os elos territoriais pessoais dos agentes. O
reino da -lei capitalista está fundamentado no vazio do significante
que a envolve.
Esta especificidade da lei e do sistema jurí dico est‡ inscrita na
ossatura institucional pr—ria do Estado capitalista. O arcabouço
centralizador-burocr‡tico-hier‡rquico desse Estado s—é poss’vel em
si porque se calca num sistema de normas gerais, abstratas, formais
e axiomatizadas, sistema esse que organiza e regula as relaç› es entre
os escal› es e aparelhos impessoais de exerc’cio do poder. O que se
designa sob o termo "direito administrativo" corresponde exatamen-
te a esta lei em seus efeitos de estruturaç‹o do Estado. A lei e o re-
gulamento estão na base do recrutamento dos agentes do Estado
(concursos e exames impessoais), do funcionamento do texto escri-
to e da dogm‡tica do discurso interno ao Estado. Discurso que n‹o
encarna, nem revela, nem interpreta a Palavra Divina (real, senho-
rial) por uma relaç‹o m’stica mais ou menos direta e pessoal de todo
servidor de Deus (do Rei, do Senhor): ele pretende concretizar por
segmentos e patamares a lei abstrata e formal para sua aplicaç‹o
concreta, num encadeamento l—ico-dedutivo (a "l—ica-jur’dica")
que n‹o passa do percurso de uma ordem de dominaç‹o-subordina-
ç‹o, de um trajeto de decis‹o-execuç‹o interna ao Estado.
Se ent‹o se pensar que essa ossatura do Estado est‡ em relaç‹o
com a divis‹o capitalista trabalho intelectual/trabalho manual, e que
ela reproduz o trabalho intelectual, vai se compreender a relaç‹o
entre essa divis‹o e a lei capitalista, Na legitimidade do sagrado, to-
do sujeito do poder
é
tido como detentor, em si, de uma parte da ver-
dade (divina), um limite intrí nseco ao poder terrestre (uma alma): a
inscriç‹o do corpo do Rei (divino) que ele traz gravada em si n‹o se
apaga nunca. Os estatutos e os privilégios s‹o de direito natural. A
lei moderna realiza a relaç‹o capitalista do poder e do saber, con-
densada no trabalho intelectual capitalista: nenhum saber nem ver-
dade nos indiv’duos-sujeitos fora da lei. A lei torna-se a encarnaç‹o
da Raz‹o: é nas formas do direito e da ideologia jur’dica que se con-
duz a luta contra a Religi‹o, e nas categorias jurí dicas é que se pen-
sam as ci•ncias f’sicas da Idade da Luz. A lei abstrata, formal, uni-
versal, é a verdade dos sujeitos, é o
saber
(a serviço do capital) que
constitui os sujeitos jurí dico-polí ticose que instaura a diferença en-
tre o privado e o público. A lei capitalista traduz assim o despoja-
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mento total dos agentes da produç‹o de seu "poder intelectual" em
proveito das classes dominantes e de seu Estado.
Ali‡s, que tal aconteça, se pode igualmente ver na relaç‹o da
lei e da sistematizaç‹o jurí dica com a especializaç‹o dos aparelhos
de Estado, relaç‹o que se manifesta na emerg•ncia do
corpo de ju-
ristas especializados.
Quando se trata de entender esse corpo em
amplo sentido, v•-se que provavelmente é ele que melhor repre-
senta, como rede "separada" da sociedade, o trabalho intelectual
incorporado no Estado, Todo agente do Estado em amplo sentido,
parlamentar, polí tico, policial, oficial, juiz, advogado, funcion‡rio,
assistente social etc.
é
um intelectual na medida em que
é
um
homem da lei.
que legisla, que conhece a lei e o regulamento, que
concretiza-os, que aplica-os. Ninguém é considerado ignorante da
lei, m‡xima fundamental de um sistema jurí dico moderno onde nin-
guém, salvo os representantes do Estado, pode conhec•-la. Este co-
nhecimento requisitado a todo cidad‹o n‹o é objeto de uma discipli-
na particular na escola, como se, ao se pretender exigir que ele
conheça a lei, tudo se fizesse para que ele a ignore. Esta m‡xima ex-
pressa assim a depend•nCia-subordinaç‹o em face dos funcion‡rios
do Estado, ou seja, aos fazedores, os guardi‹es e os aplicadores da
lei, das massas populares cuja ignor‰cia (o segredo) da lei
é
uma
caracterí stica desta lei e da pr—ria linguagem jurí dica. A lei moder-
na é um segredo de Estado, fundadora de um saber açambarcado
pela raz‹o de Estado.
Esta especificidade da lei e do sistema jurí dico capitalista tem
portanto seus fundamentos nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-
cial capitalista do trabalho: ela se relaciona assim com as classes so-
ciais e com a luta de classes, tais como elas existem sob o capitalis-
rno.>
Classes abertas e n‹o mais castas fechadas, o que é da maior
import‰cia quanto
ˆ
sua reproduç‹o: reproduç‹o ao mesmo tempo
de seus lugares (extens‹o, diminuiç‹o, extinç‹o) e de seus agentes
(qualificaç‹o-adestramento espec’fico dos agentes para que eles
ocupem
talou
qual posiç‹o de classe).
ƒ
evidente que o sistema ju-
r’dico-capitalista (abstrato, formal, geral) é aquele que pode regula-
mentar a relaç‹o entre os lugares de classes sociais (capital, trabalho
assalariado) e dos agentes que n‹o lhe s‹o formalmente "ligados".
ƒ
ele que pode regular ao mesmo tempo a ventilaç‹o permanente de
agentes das classes dominadas entre os lugares de classes sociais
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(campesinato, classe oper‡ria, pequena burguesia), que n‹o é mais
que o papel da lei na
submiss‹ o
real ampliada do Trabalho ao Capi-
tal,
e
a
separaç‹o relativa desses lugares, e de seus agentes, na rela-
ç‹o classes dominantes/classes dominadas. No fundo, para esta
axiom‡tica jurí dico-burguesa, efetivo direito nacional-popular de
classe, todos s‹o livres e iguais diante da lei sob
a
condiç‹o de que
todos sejam e tomem-se burgueses, o que a lei ao mesmo tempo per-
mite e interdita,
. Mas esse sistema jur’dico corresponde igualmente ˆ s coorde-
nadas espec’ficas das
lutas polittcas
sob o capitalismo:
a)
A sistematizaç‹o axiom‡tica do direito como quadro de coe-
s‹o formal recobre uma funç‹o estratégica: o capitalismo apresenta
uma reproduç‹o ampliada. Enquanto as sociedades pré-capitalistas
apresentavam apenas uma reproduç‹o simples, repetitiva e, por
assim dizer, cega, esta reproduç‹o ampliada implica aqui, j‡ ao n’vel
do processo de produç‹o, um c‡lculo estratégico por parte de diver-
sas fraç› es do capital e seus portadores. Esse c‡lculo exige, por sua
vez, a possibilidade de uma determinada previs‹ o fundada num m’-
nimo de estabilidade das regras do jogo. ƒ isso que permite a axio-
matizaç‹o do direito: seu car‡ter sistem‡tico, com base em normas
abstratas, gerais, formais e estritamente regulamentarizadas, consis-
te entre outras coisas em comportar suas pr—rias regras de transfor-
maç‹o, fazendo assim com que suas modificaç› es se tomem trans-
formaç› es reguladas no seio de seu sistema (papel notadamente da
Constituiç‹o).
b) A lei regula o exercí cio do poder polí tico pelos aparelhos de
Estado e o acesso a esses aparelhos por meio precisamente desse
sistema de normas gerais, abstratas, formais. Em relaç‹o a uma do-
minaç‹o espec’fica, ou seja a um bloco de poder composto de v‡-
rias classes e principalmente de v‡rias fraç› es da burguesia, esse di-
reito controla uma certa ventilaç‹o do poder entre elas e regulariza
suas relaç› es no seio do Estado. Ele permite assim que
a
modifica-
ç‹o das relaç› es de força no seio da aliança no poder se traduza no
Estado sem a’ provocar reviravoltas, A lei capitalista é de qualquer
maneira o
amortizador
e o
canalizador
de crises polí ticas, de tal
modo que elas n‹o provocam efetivas crises do Estado. De manei-
ra mais geral, a lei capitalista surge como a forma necess‡ria de um
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Estado que deve ter uma autonomia relativa em relaç‹o ˆ essa ou
ˆquela fraç‹o do bloco no poder para que possa organizar sua uni-
dade sob a hegemonia de uma classe ou de uma fraç‹o. Isso est‡ li-
gado ˆ separaç‹o relativa do Estado e das relaç› es de produç‹o, ou
seja ao fato de que os agentes da classe economicamente dominan-
te (a burguesia) n‹o se confundam diretamente com os mantenedo-
res e agentes do Estado.
ƒ
ali‡s assim que a lei modema se constituiu historicamente.
Suas origens remontam ao Estado absolutista. ou seja ˆs monarquias
européias a partir do século
xvn.
Estado absolutista que constitui
nem mais nem menos que um Estado com dominante capitalista,
verdadeiro Estado de transiç‹o para o capitalismo. Estado absolutis-
ta que devia, ent‹o, fazer face a problemas espec’ficos de organiza-
ç‹o referentes ˆ s relaç› es entre a nobreza rural e a burguesia. A mo-
nopolizaç‹o da guerra pelo Estado que corresponde aqui ˆ
pacificaç‹o que ele opera entre as forças sociais em quest‹o C'guer-
ras privadas") a partir do século XVI, que lhe serve de preparaç‹o
para bem conduzir esta primeira grande guerra que ele travou com
suas fontes batismais: o sangrento processo de acumulaç‹o primiti-
va do capital em favor da burguesia.
Mas o direito capitalista regula igualmente o exerc’cio do po-
der frente ˆ s classes dominadas. Em face da luta da classe oper‡ria
no plano polí tico, esse direito organiza o quadro de um equil’brio
permanente de compromisso imposto ˆs classes dominantes -pelas
classes dominadas. Esse direito regula também as formas de exerc’-
cio da repress‹o f’sica: esse sistema jurí dico, essas liberdades "for-
mais" e "abstratas" s‹o também, cumpre destacar, conquistas das
massas populares.
ƒ
nesse sentido, e apenas nesse sentido, que a lei
modema coloca os limites do exerc’cio do poder e da intervenç‹o
dos aparelhos de Estado. Esse papel da lei depende da relaç‹o de
força entre as classes, e esboça também uma barreira ao poder das
classes dominantes imposta pelas classes dominadas, o que se ob-
serva claramente no caso da aboliç‹o desse papel do direito nas for-
mas de Estado capitalista de exceç‹o (fascismo, ditaduras militares).
ƒ assim que a lei no sentido moderno interveio n‹o contra a viol•n-
cia de Estado (lei contra terror), mas por um papel organizador, no
seu pr—rio texto, do exerc’cio da viol•ncia, considerando-se a resis-
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tência das massas populares. A axiom‡tica jurí dica permite a previ-
s‹o polí tica das classes dominantes, eu afirmara, quando exprime
uma relaç‹o de força entre classes, ela constitui igualmente o supor-
te
de um c‡lculo estratégico pois inclui, nas vari‡veis de seu siste-
ma, o fator resist•ncia e luta das classes dominadas.
Afinal, por parte das classes e fraç› es dominantes, o direito
como posiç‹o de limites expressa as relaç› es de força no seio do
bloco no poder. Ele se concretiza particularmente ao delimitar os
campos de competência e de intervenç‹o de diversos aparelhos onde
dominam as classes e diferentes fraç› es desse bloco.
IV.
A NA‚ Ì O
o último caso ao qual vou me referir é o da naç‹o. Caso com-
plexo esse, que concentra de toda maneira, o conjunto das aporias
de um certo marxismo tradicional. ƒ necess‡rio se ater a essa evi-
d•ncia: n‹o existe teoria marxista da naç‹o, Dizer que existe n‹o
obstante os apaixonados debates a esse respeito no seio do movi-
mento oper‡rio, subestimaç‹o pelo marxismo da realidade nacional
é'
ainda muito pouco.
1.
Uma primeira indicaç‹o parece se destacar da reflex‹o mar-
xista e do debate no seio do movimento oper‡rio em tomo da
, naç‹o:
a naç‹o n‹o se identifica com a Naç‹o moderna e com o Es-
tado nacional, tal como se observa na emerg•ncia do capitalismo no
Ocidente. Existe "alguma coisa" designada sob o termo naç‹o, ou
.
seja, uma unidade particular de reproduç‹o do conjunto de relaç› es
sociais, bem antes do capitalismo. Sua constituiç‹o coincide com a
passagem das sociedades sem classes (de linhagem) para sociedades
classistas, quando ela desenha novas fronteiras, novos laços e tem-
poralidades de reproduç‹o social.
Mas esta questão das origens é, nesse caso também, a menos
interessante. O que é mais significativo é que os cl‡ssicos do mar-
xismo, por insistirem sempre nas relaç› es entre a naç‹o e as classes
sociais, admitem clara e explicitamente a perman•ncia da naç‹o
mesmo ap— a extinç‹o do Estado na sociedade "comunista" sem
classes. Um problema de vulto: eis uma realidade, a naç‹o, exami-
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nada como objeto econômico-polí tico e cultural em sua relaç‹o fun-
damental com as classes sociais, que remete permanentemente ˆ
quest‹o polí tico-estratégica essencial do internacionalismo proletá-
rio, e da qual se admite a perrnan• ncia mesmo ap— o desapareci-
mento do Estado e o fim da divis‹o de classes. Problema tanto mais
espinhoso que se poderia usar, a seu prop—ito, do mesmo modo que
para o Estado, do argumento da reversibilidade hist—ica, mas se
procura evitar referir-se a ele. A naç‹o, como o Estado, n‹o existiu
nas sociedades sem classes mas se evita apresentar assim, diferente-
mente do que se faz a prop—ito do Estado, por pretender que ela n‹o
mais existiria ap— o fim da divis‹o em classes.
Certamente enfatiza-se o fato de que n‹o se trataria mais então
da mesma naç‹o, mas isso n‹o tem nada que se possa comparar aqui
ˆ s an‡lises referentes ˆ extinç‹o do Estado: o internacionalismo pro-
letário ap— o
fim
da divis‹o de classes n‹o podendo se empenhar para
a extinç‹o da naç‹o como a "substituiç‹o do governo dos homens pela
administraç‹o das coisas" se empenha para o desaparecimento do Es-
tado. Como compreender esse objeto, te—ico e real, que é a naç‹o,
de quem se admite a irredutibilidade transist—ica? Questão cujo tra-
tamento passa, de toda maneira, pela an‡lise da naç‹o moderna,
2. A segunda indicaç‹o, relacionada ˆ primeira, diz respeito
ˆ dissociaç‹o, no pr—rio quadro do capitalismo, entre o
EStado
e a
naç‹ o.
A idéia que se firma progressivamente, sobretudo com as
discuss› es referentes ˆ s an‡lises do austro-marxismo (O. Bauer,
K. Renner erc.), é de que, mesmo no quadro do Estado nacional, o
Estado n‹o poderia encobrir exaustivamente a naç‹o: um único e
mesmo Estado capitalista pode compreender em seu seio v‡rias na-
ç› es (era o caso do Estado multinacional austro-húngaro). Inversa-
mente, uma naç‹o que n‹o conseguiu ainda (sob o capitalismo) for-
jar
seu pr—rio Estado n‹o é no entanto uma naç‹o enfraquec’da, e
n‹o deixa por isso de ter menos direitos que uma outra possa dispor.
Isso é o que funda a originalidade e a radicalidade do princ’pio leni-
nista dos povos e naç› es se autodeterminaram. Esse direito de auto-
determinaç‹o n‹o se reduz para Lenin, como para os austro-marxis-
tas, a um simples direito ˆ "autonomia cultural", porém estende-se
ao direito que essas naç› es t•m de fundar seu pr—rio Estado. O Es-
tado pr—rio e distinto n‹o é necess‡rio para que uma naç‹o exista e
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seja reconhecida como tal, porém, por sua pr—ria exist• ncia, ela
tem direito a um Estado pr—rio (autodeterminaç‹ o). Decerto, os
problemas começam a partir do momento em que a aplicaç‹o desse
princ’pio, para o pr—rio Lenin, mas principalmente depois dele,
est‡ subordinada aos "interesses da revoluç‹o mundial", em suma a
partir do momento em que "o direito ao div—cio" de uma
-naç‹o
com o Estado que o engloba n‹o significa "obrigaç‹o de divorciar"
e que, reconhecendo o princ’pio desse direito, s—se deveria l.utar por
ele
quando
estivesse em conformidade aos interesses da classe ope-
r‡ria e do "proletariado internacional". Sabe-se o que foi nesse as-
pecto a polí tica stalinista, ocasi‹o da ruptura dram‡tica entre Lení n,
ˆ s
vésperas de sua morte (1923), e Stálin. Mas o que nos importa
aqui,
é
o princ’pio reconhecido e a dissociaç‹o relativa que ele esta-
belece entre a naç‹o e o Estado.
3. Dito isso, a terceira indicaç‹o diz respeito ˆ an‡lise da naç‹o
modema. Admite-se, ao mesmo tempo. a especificidade da naç‹o
nas formaç› es sociais capitalistas e a estreita relaç‹o que existe entre
esta naç‹o e o Estado. Mesmo se a naç‹o n‹o reafirma exatamente o
Estado, o Estado capitalista apresenta a particularidade de ser um Es-
tado nacional: a modalidade nacional vem a ser pela primeira vez
pertinente quanto ˆ materialidade do Estado. Este Estado apresenta
a
tendencialidade histôrica
de açambarcar uma e mesma naç‹o, no
sentido moderno do termo, de se empenhar ativamente para o esta-
belecimento da unidade nacional: as naç› es modernas apresentam a
tendencialidade hist—ica de formar seus pr—rios Estados. Os luga-
res e os elos de reproduç‹o ampliada das relaç› es sociais, as forma-
ç› es sociais tendem a recortar os limites do Estado-naç‹o ao se tor-
narem formaç› es sociais nacionais. O desenvolvimento desigual,
caracterí stica do capitalismo desde seus in’cios, tende a ter como
pontos de sustentaç‹o os Estados-naç› es dos quais precisamente ele
fundamenta a relaç‹o.
ƒ
esta última série de indicaç› es, ali‡s, confirmadas, como se
sabe, pelo conjunto da pesquisa econômica, polí tica. hist—ica atual,
que vai me ocupar logo de in’cio. A explicaç‹o dessa tendencial ida-
de (englobando do Estado e da naç‹o) remete
ˆ
quest‹o da especifi-
cidade da naç‹o no sentido moderno. ƒ precisamente a’ que as ca-
r•ncias da pesquisa marxista
j‡
desenvolvida tomam-se patentes.
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E principalmente no que concerne aos denominados funda-
mentos econômicos dessas realidades hist—icas. A principal ex-
plicaç‹o a que se chegou, e que permanece ainda, remete sempre ˆ
famosa esfera de circulaç‹o do capital e ˆ s trocas mercantis. A uni-
dade econ› m’ca, elemento essencial da naç‹o modema, visaria ba-
sicamente ˆ unificaç‹o do mercado dito interno. A generalizaç‹o
das trocas mercantis, o valor de troca tal como se realiza na circu-
laç‹o da moeda necessitam da aboliç‹o de entraves internos, adua-
neiros e outros, para a circulaç‹o das mercadorias e para a unidade
monet‡ria. O Estado cuida ele mesmo da constituiç‹o da naç‹o mo-
dema em sua dimens‹o econômica ao homogeneizar. sob a égide
do capital mercantil, o espaço de circulaç‹o das mercadorias e do
capital, o que constitui o essencial de sua aç‹o no estabelecimento
da unidade nacional. ƒ ali‡s nessa mesma linha que s‹o encaminha-
das, de maneira a mais sutil, as relaç› es entre a naç‹o modema e o
Estado, conforme as particularidades do Estado nacional. A mate-
rialidade pr—ria do Estado, considera-se que resida no fato de
que ele instaura os intercambiadores de mercadoria e os possu’do,
res
de,
capital como indiv’duos-sujeitos polí ticos formalmente li-
vres e iguais,
e
de que ele representa-cristaliza a unidade desses
indiv’duos. A naç‹o modema é tida como proveniente no essencial,
e pelo menos em sua dimens‹o econôrn’ca, de uma homogeneiza-
ç‹o do espaço no qual se movem esses indiv’duos concorrenciado-
res-trocadores de mercadorias, o "povo-naç‹o". A an‡lise que se d‡
disso em termos de classe est‡ calcada sobre essa explicaç‹o: a
naç‹o, assim como o Estado moderno. seria a criaç‹o do capital
mercantil. remontando ˆ burguesia mercantil desde o in’cio do ca-
pitalismo.
Embora forçosamente, eu esquematizo: trata-se de uma tradi-
ç‹o dominante, extremamente tenaz, no marxismo. Ora, n‹o s—esta
explicaç‹o é muito parcial, mas também funciona como obstáculo
para uma verdadeira an‡lise da naç‹o modema, e apresenta uma
série de conseqü•ncias graves:
a) A generalizaç‹o das trocas mercantis n‹o pode ser respon-
s‡vel pela criaç‹o da naç‹o modema: se ela acentua a necessidade
de unificaç‹o do mercado dito "interno" e a supress‹o dos entraves
para a circulaç‹o das mercadorias e do capital,
e/a não explica em
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nada por que esta unificaç‹ o se localiza precisamente ao n’vel da
naç‹ o.
Unificaç‹o do mercado interno certamente, mas
o
que
é
que
defme esta noç‹o de "interno". o que torna poss’vel a emerg•ncia de
um espaço pr—rio cujos contornos designam um exterior e um in-
terior? Por que esses limites-fronteiras obedecem a esse recorte (a
naç‹o) e n‹o um outro, e ainda, por que e como esta designaç‹o de
limites, esse traçado de um campo no interior do qual vai se assen-
tar
o problema da unificaç‹o? Tanto
é
verdade que
a
homogeneiza-
ç‹o do mercado interno sup› e o fechamento de um espaço que trata-
se precisamente de unificar.
b) Esta refer•ncia-fuga ˆs coordenadas das trocas mercantis
traduz. no geral, uma concepç‹o profundamente emp’rica e positi-
vista relativa ao conjunto de elementos considerados como consti-
tuidores da naç‹o: o territ—io comum. a lí ngua comum, a tradiç‹o
hist—ica e cultural comuns. N‹ o entrarei aqui na disputa que consis-
te em saber quais elementos devem ser considerados exatamente
como constitutivos da naç‹o, disputa que dividiu o movimento ope-
r‡rio. O que me importa aqui
é
mostrar claramente a concepç‹o que
subentende o conjunto de elementos enunciados no geral. Eles s‹o
considerados alguma coisa como essenciais.
transist—icos,
de na-
tureza imutável: o territ—io, a lí ngua, a tradiç‹o. A emerg•ncia na
naç‹o modema, sua relaç‹o espec’fica com o Estado s‹o entendidas
ainda como resultante de .um princ’pio (generalizaç‹o das trocas
mercantis) que teria por efeito a adiç‹o-acumulaç‹o desses diversos
elementos detentores de uma ess•ncia intr’nseca (o territ—io. a lí n-
gua. a tradiç‹o): acumulaç‹o configurada pelo Estado-naç‹o que
dela seria o efeito. Explicaç‹o que. sem dúvida, omite a quest‹o es-
sencial j‡ colocada pelo mercado interno. Por que e como o territ—
rio, a tradiç‹o hist—ica, a l’ngua designam através do Estado esta
nova configuraç‹o que éa naç‹o moderna? O que é que torna pos-
s’vel a articulaç‹o desses elementos, aparentemente transist—icos,
nesse n—focal que é a naç‹o modema? Por que esses elementos fun-
cionam de maneira diferente ao se tornarem as balizas dessa paliça-
da que é a naç‹o modema?
N‹o colocar essas quest› es leva forçosamente a subestimar-se
o peso atual da naç‹o. Se o territ—io, a l’ngua, a tradiç‹o apresen-
tassem sempre uma mesma ess•ncia como no passado, onde o papel
da naç‹o era menos importante, se a tend•ncia do capitalismo
é
na
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verdade a de uma internacionalizaç‹o do mercado do capital, se
pode deduzir facilmente um afastamento do papel da naç‹o na atual
fase do capitalismo (o que fazem muitos autores contempor‰eos),
assim como uma subestimaç‹o de seu peso espec’fico na transiç‹o
para o socialismo (como foi pensado pela corrente dominante no
seio do marxismo).
A atual internacionalizaç‹o do mercado e do capital, como
j‡
demonstrei, n‹o modifica em nada a import‰cia espec’fica da
naç‹o. Isso acontece porque os elementos que entram em jogo na
constituiç‹o da naç‹o modema t•m uma significaç‹o inteiramente
diferente da que tinham no passado. Para ater-se apenas ao territ—io
e
ˆ
tradiç‹ o hist—ico-cultural, dois elementos aparentemente muito
"naturais", eles encerram, sob o capitalismo, um sentido totalmente
diferente que no passado. Diferença que situa precisamente a ques-
t‹o do mercado como problema de unidade do mercado "interno", e
que ali‡s produz o desenvolvimento desigual do capitalismo como
desigualdade entre momentos hist—icos e espaços diferenciados, di-
vididos e distintos
-
as naç›es, as formaç› es sociais nacionais. Di-
ferença que aparece como um pressuposto do desenvolvimento ca-
pitalista.
A tese que tentarei desenvolver
é
que se esses elementos
_
o territ—io, a tradiç‹ o
-
t•m aqui um sentido inteiramente diferen-
te do que tinha no passado,
é
porque eles se inscrevem em modi-
ficaç› es mais fundamentais ainda: as das matrizes de espaço. é tempo
que os subentendem. O espaço e o tempo capitalista n‹o s‹o ab-
solutamente os mesmos que tinham no passado. Isso implica modi-
ficaç› es consider‡veis na realidade e no sentido do territ—io e da
historicidade, que ao mesmo tempo permitem e implicam a consti-
tuiç‹o da naç‹o modema. Essas modificaç› es delineiam uma nova
organizaç‹o da lí ngua
e
uma nova relaç‹ o do Estado com o rerrit—
rio e com a historicidade, e induzem assim a naç‹o modema e o Es-
tado nacional.
Poderia me referir nesta pesquisa a algumas indicaç› es que
podem ser encontradas em alguns historiadores franceses da ƒcole
des Annales: Febvre, Vidal-Naquet, Vernant, Lév•que, Braudel,
Mandrou, Le
GOff.
25
Mas essas indicaç› es concernem no essencial
ao espaço e principalmente ao tempo na Antiguidade e na feudalida-
de medieval: n‹o se estendem ao capitalismo e n‹o se relacionam
96
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1.
A Matriz Espacial: o Territ—io
relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho. Esse funda-
mento n‹o deve ser entendido segundo uma causalidade mec‰ica
designando relaç› es de produç‹o j‡ dadas, dando lugar, em seguida,
a essas matrizes espaciais e temporais. Essas, implicadas pelas rela-
ç› es de produç‹o e pela divis‹o social do trabalho, aparecem ao
mesmo tempo como seus pressupostos, no sentido que Marx dava
ao termo prius l—gico (Voraussetzung) distinguindo-o do termo
"condiç› es hist—icas"
(historische Bendingungen).
As transforma-
ç› es dessas matrizes sublinham assim as transformaç›es de diversos
modos de produç‹o. Elas estão presentes, por isso mesmo, na ossa-
tura material do Estado (deste ou daquele Estado) e traçam as mo-
dalidades de exerc’cio de seu poder. N‹o se trata então, pois, nesta
presença de matrizes espaço-temporais no Estado, de simples rela-
ç‹o de homologia estrutural entre o Estado e as relaç› es de pro-
duç‹o, O Estado capitalista tem a especificidade de açambarcar o
tempo e o espaço social, intervir na organizaç‹o dessas matrizes,
uma vez que ele tende a monopolizar os procedimentos de organi-
zaç‹o do espaço e do tempo que se constituem, para ele, em rede de
dominaç‹o e de poder. A naç‹o moderna surge assim como um pro-
duto do Estado: os elementos constitutivos da naç‹o (a unidade eco-
nômica, o territ—io, a tradiç‹o) modificam-se pela aç‹o d’reta do
Estado na organizaç‹o material do espaço e do tempo. A naç‹o mo-
dema tende a coincidir com o Estado no sentido em que o Estado in-
corpora a naç‹o, e a naç‹o se corporifica nos aparelhos de Estado:
tomam-se o sustent‡culo de seu poder na sociedade, designando-lhe
seus contornos. O Estado capitalista funciona como naç‹o ..
Para começar com o espaço, por qualquer ‰gulo que se abor-
de O problema, observa-se que existe, segundo os diferentes mo-
dos de produç‹o, matrizes diferenciais do espaço, pressupostas exata-
mente pelas formas de apropriaç‹o e de consumaç‹o hist—ico-social
do espaço. Mostrar a exist•ncia dessas matrizes n‹o pode se reduzir
a retraçar o encadeamento das formas de apropriaç‹o hist—ica do
espaço social. Desde as cidades e a urbanizaç‹o até as fronteiras, aos
limites e o territ—io, passando pelas comunicaç› es, o transporte, o
aparelho e a estratégia militar, todos t•m sua funç‹o enquanto dis-
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positivos de organizaç‹o do espaço social. Ora, toda vez que se tenta
fazer a hist—ia desses dispositivos e de suas transformaç› es trope-
ça-se sempre com o mesmo problema: esses dispositivos n‹o pos-
suem natureza intrí nseca, suas transformaç› es hist—icas n‹o s‹o
simples variaç› es dessa natureza. As descontinuidades s‹o decisi-
vas: as cidades, as fronteiras, o territ—io n‹o se at•m absolutamen-
te ˆ mesma realidade e ao mesmo sentido nos modos de produç‹o
pré-capitalista e sob o capitalismo. Mesmo supondo-se que se evite
a inconveni•ncia de uma historiografia linear e emp’rica, que con-
siste em retraçar o desenvolvimento desses dispositivos em seu pr—
prio n’vel (a evoluç‹o das cidades, das fronteiras e dos territ—ios),
permanece a questão: como resolver as descontinuidades?
Conhece-se a tend•ncia atual da pesquisa mais avançada nesse
dom’nio: é a de colocar em relaç‹o direta esses dispositivos de apro-
priaç‹o e de consumo do espaço social com as particularidades dos
diferentes modos de produç‹o, ainda que o verdadeiro problema
seja outro; essa transformaç‹o de dispositivos se inscreve numa
trama, mais profunda. O caso n‹o é simplesmente de modos diferen-
ciados de organizaç‹o, de apropriaç‹o e de consumaç‹o de alguma
coisa que teria uma natureza intrí nseca, o "espaço", nem de percur-
sos e enquadramentos diferentes de um mesmo espaço. A distinç‹o,
decisiva aqui, entre cidades e campo, é inteiramente diferente se-
gundo os diversos modos de produç‹o, n‹o apenas porque as coor-
denadas hist—icas modifiquem os dois termos da relaç‹o (modifica-
ç‹o das cidades - antiga, medieval, modema - e do campo -
antigos, feudais, comunais, modernos), porém, mais profundamen-
te, porque sua pr—ria relaç‹o se inscreve num lugar diferente de
acordo com esses modos. Se esses dispositivos produzem o espaço,
n‹o é porque enquadrem ou esquadrinhem diferentemente um mes-
mo espaço que consomem socialmente, mas porque materializam
essas matrizes primeiras e diferenciais de espaço, j‡ presentes em
sua ossatura. A genealogia da produç‹o do espaço é principal em re-
laç‹o
ˆ
hist—ia de sua apropriaç‹o.
Se existem importantes diferenças entre as matrizes espaciais
das sociedades antigas e sociedades feudais, elas apresentam, ao
ní vel mais geral onde me coloco aqui, pontos comuns em sua rela-
ç‹o com a matriz espacial do capitalismo. N‹o repisarei a particula-
ridade das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho pré-
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capitalistas, onde o trabalhador direto n‹o está ainda separado, nas
relaç› es de posse, de seus meios de produç‹o, e em que a divis‹o do
trabalho n‹o induz as dissociaç› es pr—rias ˆ divis‹o capitalista,
nem a particularidade do poder polí tico e dos Estados pré-capitalis-
tas. Mas isso implica um espaço espec’fico:
um espaço continuo,
homog•neo, simétrico, reversivel e aberto.
O espaço antigo no Oci-
dente é um espaço que tem um centro, a polis (que tem ela mesma
um centro, a ‡gora) mas n‹o tem fronteiras no sentido moderno do
termo. ƒ um espaço conc•ntrico mas aberto no sentido que ele n‹o
tem, a bem dizer, exterior. Esse centro (a
polis
e a sede desta) se ins-
creve num espaço cujas caracterí sticas essenciais s‹o a homogenei-
dade e a simetria, e n‹o a diferenciaç‹o e a hierarquia. Orientaç‹o
geométrica que se reproduz por outro lado na organizaç‹o polí tica
da cidade e na estrutura de "isonomia" entre os cidad‹os.
Esses pontos (as cidades) disseminados no espaço n‹o s‹o me-
ramente separados porque fechados para o exterior, e sim porque se
voltam para seu pr—rio centro, n‹o como elos de uma série, e sim
como dispers› es de um elo üní co.>Esse centro, seu foco, "os ho-
mens, escreve ainda L. Gernet, ordenam-no a seu modo, arranjo ma-
tem‡tico de um territ—io que pode ser qualquer um: o centro é arbi-
tr‡rio, sen‹o te—ico". Nesse espaço (representado por Euclides e
pelos pitag—icos) n‹o se desloca, mas circula-se nele. Sempre se vai
ao mesmo local, cada ponto do espaço é a repetiç‹o exata do prece-
dente: coloniza-se somente para fundar réplicas de Atenas ou Roma,
toda trajet—ia n‹o passa nunca de um retorno ao centro original,
e n‹o existe percurso poss’vel. As cidades s‹o "abertas" aos campos,
n‹o existe territ—io cujos limites possam se estender ou se retrair
em relaç‹o a outros segmentos. Os gregos e os romanos s› se esten-
dem ao recuar suas fronteiras e incluindo nelas pedaços ou fatias de
espaço, pois n‹o se trata de assimilar segmentos heterog•neos: eles
se propagam sobre um campo homog•neo, pois se existe delimita-
ç› es, n‹o existe restriç‹o no sentido moderno. Esse ordenamento
topogr‡fico demarca, até nos menores meandros, os lugares de ex-
ploraç‹o e as formas de direç‹o pol’tica: espaço homog•neo e indi-
ferenciado pois o espaço do escravo é também o do senhor; os pon-
tos de exerc’cio de poder s‹o as réplicas do corpo do soberano.
ƒ
esse corpo que unifica o espaço e que aloja o homem público no
homem privado: esse corpo n‹o tem em si nem lugar nem frontei-
100
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para este centro umbilical que é Jerusalém. As relaç› es de produç‹o
feudais, dizia Marx, fazem com que a religi‹o detenha, nas forma-
ç› es sociais feudais, o papel dominante: diretamente presente nas
formas de exerc’cio do poder, ela regula por sua posiç‹o o espaço ao
marc‡-lo com o selo da cristandade. Mas trata-se desde j‡ da matriz
de um espaço cont’nuo e homog•neo. Aqui também n‹o se desloca:
entre o feudo, o burgo, as cidades de Jerusalém e suas diversas en-
carnaç› es terrestres, entre a Queda e a Salvaç‹o, n‹o h‡ fratura, nem
fissura, nem percurso. As fronteiras e os entre-lugares que separam
as muralhas, as florestas, os desertos n‹o s‹o brechas que se atraves-
sa para passar de um segmento para outro (de uma cidade para outra),
mas encruzilhadas de um único e mesmo caminho. O peregrino ou o
cruzado, e todos os viajantes o s‹o ˆ sua maneira, n‹o v‹o aos luga-
res santos ou
a
Jerusalém, pois esses lugares
j‡
estão traçados em seu
corpo (isso vale também para o Islam). O corpo polí tico de cada so-
berano encarna
a
unidade desse espaço como corpo do Cristo-Rei e
o espaço é balizado pelos caminhos do Senhor. As delimitaç› es se
entrecruzam, se sobrep› em, desviam-se e movimentam-se constante-
mente: os sujeitos se deslocalizam, mesmo permanecendo no mesmo
lugar, ao sabor da vontade dos senhores e soberanos aos quais eles
est‹ o pessoalmente ligados. A pir‰mide do poder polí tico medieval
tem um solo movediço como a luz de um farol ele mesmo m—el, e
toda ;essa suserania efetiva-se numa superf’cie com orientaç› es re-
vers’veis: as cartografias antigas e medievais n‹o s‹o ali‡s funda-
mentalmente diferentes. Aqui também o que faz as vezes de territ—
rio é definido pela relaç‹o com um n‹o-lugar, ainda que o sentido
deste n‹ o seja o mesmo que na Antiguidade: os descrentes, os infiéis.
As diferenças s‹o n’tidas em relaç‹o ao capitalismo. Mas n‹o
se quer aqui retraçar
a
constituiç‹ o hist—ica do espaço social capi-
talista. O problema continua a ser sempre o das relaç› es entre a ma-
triz espacial propriamente capitalista e as relaç› es de produç‹o, a di-
vis‹o social do trabalho "propriamente capitalista": o que importa
ent‹o
é
o papel do
territ—io
na constituiç‹o da naç‹o modema.
O trabalhador direto, o oper‡rio, é aqui totalmente separado
dos meios de trabalho, o que est‡ na base da divis‹o social do traba-
lho no maquinismo e na grande indústria. Isso implica uma matriz
espacial totalmente diferente que surge algo assim como um pressu-
posto: um espaço
serial, fracionado, desconttnuo, parcel‡rio, celu-
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sencialmente pol’tico no sentido em que o Estado tende a monopo-
lizar os procedimentos de organizaç‹o do espaço. O Estado moder-
no materializa nesses aparelhos (exército, escola, burocracia cen-
tralizada, pris› es) esta matriz espacial. Ela adapta por sua vez os
sujeitos sobre os quais exerce seu poder: a individualizaç‹o do cor-
po polí tico em mônadas id•nticas, porém separadas diante do Es-
tado, releva da ossatura do Estado inscrita na matriz espacial im-
plicada pelo processo de trabalho. Os indiv’duos modernos s‹o os
componentes do Estado-naç‹o moderno: o povo-naç‹o do Estado
capitalista é o ponto de converg•ncia de um espaço cujas fronteiras
s‹o os contornos pertinentes das tomadas de poder materiais e de
seus sustent‡culos. A cadeia segmentada desses elos individualiza-
dos esboça o interior do territ—io nacional como decupagem estatal
de exerc’cio do poder. O territ—io nacional n‹o passa da figura po-
lí tica do balizamento ao n’vel do Estado total e as cidades tornam-
se cidades "dominadas" e "disciplinadas" pelo Estado de que fala
Braudel. Os trabalhadores diretos s‹o liberados do solo apenas para
serem certamente enquadrados nas f‡bricas, mas também pelas fa-
m’lias no sentido moderno, escolas, pris› es, cidades, enfim pelos
territ—ios das naç› es. O que se verifica até nas modalidades de
exercí cio de poder do Estado capitalista de exercer: os campos de
concentraç‹ o s‹o uma invenç‹o moderna, no sentido em que mate-
rializam a mesma matriz espacial de poder que o territ—io nacio-
nal. Esses campos s‹o
a
forma de reclus‹o dos fora-das-naç› es,
antinacionais exatamente,
no seio do pr—rio territ—io nacional,
a interiorizaç‹o das fronteiras no seio do espaço nacional:
é
isso
que permite
a
noç‹o moderna de inimigo "interno". Se esse territ—
rio acompanha
talou
qual configuraç‹o e topografia exatas, isso
depende de toda uma série de fatores hist—icos (econômicos, polí -
ticos, lingü’sticos etc.): mas o que importa aqui, é o surgimento des-
ses territ—ios e dessas fronteiras no sentido moderno. Esse territ—io
toma-se nacional e constitui assim um elemento da naç‹o modema
sob o ‰gulo do Estado.
Para compreender essa última proposiç‹o, é preciso levar em
conta o fato de que esse territ—io é apenas um dos elementos da
naç‹o modema e a relaç‹o do Estado capitalista com a tradiç‹o his-
t—ica e com
a
lí ngua. Consideremos por hora que esse espaço-terri-
t—io serial, descont’nuo e segmentado, se implica as fronteiras, le-
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vanta também o novo problema de sua
homogeneizaç‹ o
e de sua
unificaç‹ o: seria também
o
papel do Estado na unidade nacional.
As fronteiras e o territ—io nacional n‹o s‹o anteriores ˆ unificaç‹o
disso que lhes enquadram: n‹o existe previamente alguma coisa que
esteja dentro e que é preciso unificar depois. O Estado capitalista
n‹o se
limita
a aperfeiçoar a unidade nacional, ele se constitui quan-
do fundamenta essa unidade, ou seja a naç‹o modema. O estado es-
tabelece as fronteiras desse espaço serial no pr—rio movimento que
unifica e homogeneiza o que essas fronteiras delimitam. ƒ dessa
maneira que esse territ—io toma-se nacional, que ele tende a se con-
fundir com o Estado-naç‹o e que a naç‹o modema tende a encobrir
o Estado, e isso em duplo sentido: encobrir o Estado existente ou
instituindo-se como Estado autônomo e constituir-se como naç‹o
modema ao criar seu pr—rio Estado
(jacobinismo
e
separatismo,
dois aspectos do mesmo fenômeno, da relaç‹o espec’fica da naç‹o
modema com o Estado). O Estado nacional realiza a unidade dos
indiv’duos do povo-naç‹o no mesmo movimento pelo qual forja
sua individualizaç‹o. Ele institui a homogeneizaç‹o polí tico-pública
(o Estado-naç‹o) de dissociaç› es "privadas" no mesmo movimento
pelo qual contribui para sua instauraç‹o, e a lei torna-se a express‹o
da vontade e da soberania nacionais, Esse Estado n‹ o acontece para
unificar um mercado "interno" prévio, mas instaura um mercado na-
cional unificado ao estabelecer as fronteiras disso que toma-se um
dentro em relaç‹o a um fora. Processo que se pode acompanhar no
conjunto dos aparelhos de Estado (econômico, militar, escolar etc.)
e que
j‡
permite uma primeira resposta, embora parcial, a um pro-
blema talvez incontorn‡vel, que Pierre Vilar, melhor que ninguém
formulara: por que o desenvolvimento desigual do capitalismo tem
exatamente como pontos de sustentaç‹o e núcleos principais as for-
maç› es sociais nac’onais?
Se pelo mesmo movimento que o Estado estabelece as frontei-
ras nacionais e unifica o interior, é também por esse movimento que
ele se volta para o exterior dessas fronteiras neste espaço irrevers’-
vel, delimitado embora sem fim, sem horizonte último: extens‹ o de
mercados, do capital, dos territ—ios. Estabelecer fronteiras equivale
a poder desloc‡-las: nesta matriz espacial s—h‡ avanço poss’vel pela
homogeneizaç‹o, assimilaç‹o e unificaç‹o, apenas pela delimitaç‹o
de um interior que continua no entanto tendencialmente em condi-
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ç› es de estender-se ao infmito. Essas fronteiras s—s‹o portanto es-
tabelecidas como as de um territ—io nacional a partir do momento
em que se trata exatamente (para o capital, para as mercadorias) de
franque‡-las. S— se pode deslocar-se neste espaço atravessando
fronteiras: o imperialismo é consubstancial ˆ naç‹o modema na me-
dida em que ele n‹o é mais que inter, ou antes transnacionalizaç‹o
de processos de trabalho e do capital. Esta matriz espacial est‡ an-
corada no processo e na divis‹o social do trabalho: o capital é uma
relaç‹o (capital-trabalho), dizia Marx, e se, por mais desterritoriali-
zado e a-nacional que possa parecer sob suas diversas formas, ele s—
pode se reproduzir ao se transnacionalizar,
é
porque move-se sobre
a
matriz espacial dos processos de trabalho e de exploraç‹o que é
em
si
mesma
intemacional.
Assim, a extens‹o tendencialmente infmita do Estado moder-
no, que se confirma com a posiç‹o das fronteiras nacionais, s—pode
recobrir um deslocamento de fronteiras que significa a assimilaç‹o
e homogeneizaç‹o. As conquistas modernas tomaram um sentido
inteiramente diferente do que no passado: n‹o mais propagaç› es
num espaço cont’nuo e homog•neo que se agrega, mas expans› es
através de brechas que se preenche. Sabe-se o que esse preenchi-
mento quer dizer: homogeneizaç‹o, pelo Estado nacional; de dife-
renças, supress‹o das nacionalidades "no interior" das fronteiras do
Estado-naç‹o, eliminaç‹o das asperezas materiais do terrenoinseri-
do no territ—io nacional. Os genocfdios s‹o, eles também, uma in-
venç‹o modema ligada ˆ espacializaç‹o espec’fica dos Estados-
naç› es: forma de exterminaç‹o pr—ria ˆ constituiç‹o-limpeza do
territ—io nacional que se homogeneiza quando se delimita. As ex-
pans› es e conquistas pré-capitalistas n‹o assimilam nem digerem:
os Gregos e os Romanos, o Islam e as Cruzadas, Átila e Tamerl‹o
matam para abrir caminho num espaço aberto, cont’nuo e j‡ homo-
g•neo, e s‹o assim os massacres indiferenciados pr—rios ao exercí -
cio do poder dos grandes impérios ambulantes. O genoc’dio s—se
toma poss’vel pelo fechamento dos espaços nacionais para aqueles
que se tomaram ent‹o corpos
estrangeiros
no interior das frontei-
ras. S’mbolo? O primeiro genoc’dio da hist—ia moderna, o dos
Ar-
m•nios,
acompanha a fundaç‹o do jovem Estado-naç‹o turco por
Kemal Ataturk, a constituiç‹o de um territ—io nacional sobre os
destroços do império otomano, a obstruç‹o da Porta Sublime, exa-
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tamente. Os genoc’dios e os campos se inscrevem num mesmo es-
paço concentracion‡rio.
V•-se, aqui também, o esboçar-se das ra’zes desse fenômeno
propriamente moderno que
é
o
totalitarismo.
Separar e dividir para
unificar, fracionar para enquadrar, celularizar para englobar, seg-
mentar para totalizar, estabelecer balizas para homogeneizar, indivi-
dualizar para suprimir as alteridades e as diferenças, as ra’zes do to-
talitarismo estão inscritas na matriz espacial materializada pelo
Estado-naç‹o moderna, j‡ presente nas suas relaç› es de produç‹o e
na divis‹o social capitalista do trabalho.
2. A Matriz Temporal e a Historicidade: a Tradiç‹ o
o segundo elemento que entra em linha de conta na constitui-
ç‹o da naç‹o modema diz respeito ao que se designa geralmente sob
o termo "tradiç‹o hist—ica comum". Aqui serei mais breve. Dispo-
mos, ˆ respeito da matriz temporal e da noç‹o de historicidade, de
an‡lises bem mais desenvolvidas por parte dos historiadores. Aqui
também, a questão é a do elo entre essas transformaç› es
e
as das re-
,
laç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho. A tradiç‹o n‹o
é
absolutamente a mesma, nem tem o mesmo sentido nem a mesma
funç‹o, nas sociedades pré-capitalistas e nas sociedades capitalistas.
A matriz temporal antiga difere certamente daquela da feuda-
lidade medieval, mas elas apresentam pontos fundamentalmente co-
muns. Essas sociedades, nas quais a posse dos meios de produç‹o
pertence sempre ao trabalhador direto e nas quais n‹o ocorre a divi-
s‹o propriamente capitalista do trabalho, cristalizam modos de pro-
duç‹o (escravistas, servil) que apresentam uma reproduç‹ o simples
e n‹ o uma reproduç‹ o ampliada,
espec’fica do modo de produç‹o
capitalista. Suas matrizes temporais s‹o certamente de tempos plu-
rais e singulares: mas cada um desses tempos é continuo, homog•-
neo, reverstvel e repetitivo. Tempo agrí cola, cí vico e polí tico, mili-
tar, senhorial ou clerical, esses tempos múltiplos apresentam as
mesmas caracterí sticas matriciais: fluidos e correntes, sua medida
n‹o é universaliz‡vel pois eles n‹o s‹o, estritamente falando,
men-
sur‡veis, sendo a medida n‹o mais que a codificaç‹o das irregulari-
dades entre segmentos. Nesse continuum temporal homog•neo, se
as seqü•ncias se dividem e se surgem momentos privilegiados (n‹o
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se tratam de sociedades primitivas com filiaç‹o de linhagem), é no
essencial ao sabor do "acaso" (sociedades antigas) ou de presença
da eternidade (cristandade medieval). N‹o existe nem sucess‹o, nem
conex› es, nem acontecimentos.
ƒ
o tempo
presente
que atribui seu
sentido ao
antes
e ao
depois.
Tempo plenamente circular do eterno
retorno do mesmo nas sociedades antigas: o passado se reproduz
sempre no presente que n‹o
é
mais que seu eco, e o decorrer ao
longo do tempo n‹o é um percurso que se afasta do presente porque
o passado é parte integrante do Cosmos. Memorizar pela anamnesis
é reencontrar outras regi› es do ser, a ess•ncia que manifesta o atual,
O presente aqui, nesse tempo homog•neo, revers’vel e contí nuo,
est‡ inserido nas origens, em que a cronologia continua ainda, sen‹ o
um decalque geneal—ico, uma repetiç‹o da g•nese. Retomar, as ori-
gens n‹o é retraçar o hist—ico de uma acumulaç‹o (de experi•ncias,
saberes, acontecimentos) ou de um progresso que levam ao presen-
te, mas atingir a omnisci•ncia primeira. Isso n‹o porque a dimens‹o
de um futuro esteja ausente, mas se esse te/os dos pitag6ricos, se ele
d‡ fim ˆ espiral de ciclos sempre recomeçados, é sim porque ele une
os elos e reúne os começos.
As coisas n‹o se mostram fundamentalmente diferentes na
feudalidade medieval: mais que a depend•ncia de temporalidades do
"tempo natural" pr—rio das sociedades essencialmente agrí colas (as
estaç› es, os trabalhos nos campos etc.) o que importa é a matriz es-
pacial subjacente aos diversos tempos, agrí cola, artesanal, militar,
clerical, que surgem concomitantemente ao tempo singular. Se cada
um desses tempos comporta dataç› es, essas cronologias n‹o s‹o or-
denadas ao longo do tempo divis’vel como segmentos iguais e
o
quadro de refer•ncia de diversos momentos n‹o é o do número. Tra-
tam-se de cronologias significantes de um tempo cont’nuo que é,
sob a égide da religi‹o, um tempo da eternidade esc‰dido pelas sig-
nificaç› es sagradas, pelos atos de piedade e pelo som dos sinos das
missas. Por certo, ancorada nessa matriz temporal,
parecedestacar,
se uma materialidade linear do tempo, diferente daquela, c’clica, do
tempo antigo: a hist—ia tem um iní cio e um fim, situados entre a
Criaç‹o e
O
Julgamento final. Mas trata-se sempre de um tempo
presente: o in’cio e o fim,
o antes
e o
depois
estão inteiramente
co-
presentes na ess•ncia sempre atual do divino. Verdade imut‡vel ou
verdade progressivamente revelada, predeterminaç‹o ou n‹o da sal-
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vaç‹o
individual, trata-se apenas sempre de uma repetiç‹o ou atua-
lizaç‹o das origens. Atingir o fim, é sempre reunir o in’cio e a ir-
reversibilidade do tempo, o que n‹o é mais que uma perspectiva
ilus—ia.
Matrizes temporais presentes nas formas e técnicas do poder
polí tico pré-capitalistas calcadas no corpo do soberano. Esse corpo
polí tico n‹o faz hist—ia, ele est‡ imerso numa hist—ia cont’nua e
homog•nea na qual os sujeitos do poder se identificam ao decalc‡-
la. N‹o existe, propriamente falando, sucess‹ o desses soberanos da
mesma maneira que acontecimentos encadeados, mas uma circula-
ç‹o por transferência de um poderio ininterrupto, por constante rea-
tualizaç‹o do passado:
é
a
translatio imperii.
Esta hist—ia-rememo-
raç‹o n‹o é nunca mais que um desenrolar de genealogias, de
divindades, her—s, dinastias e a representaç‹ o, desta feita, da hist—
ria se faz sobre o modo da crônica. Entre o passado e o presente n‹o
existe percurso mas propagaç‹o por eco, esse presente n‹o passa do
perpétuo anúncio de um futuro que reunir‡ os in’cios. Esta hist—ia
n‹o se faz, mas comemora-se. Historicidade polí tica que n‹o pode
ter relaç› es constitutivas com um territ—io no sentido moderno, na
medida em que esse territ—io-fronteiras n‹o existe ainda em que as
matrizes espaciais pré-capitalistas t•m o mesmo fundamento que
as matrizes temporais pré-capitalistas: esta historicidade polí tica está
calcada no corpo do soberano que n‹o é, em si, soberano de um ter-
rit—io-fronteiras. N‹o existe historicidade nem territ—io no sentido
moderno: os territ—ios pré-capitalistas n‹o t•m historicidade pr—
pria pois o tempo polí tico é o do corpo principesco extens’vel por si
mesmo, retratável e m—el num espaço cont’nuo e homog•neo. Em
outros termos os caracteres pr—rios da matriz espacial e da matriz
temporal de um modo de produç‹o, implicados por suas relaç› es de
produç‹o e por sua divis‹o social do trabalho, determinam as rela-
ç› es que essas matrizes entret•m entre si, o que se designa por um
termo cuja conjunç‹o n‹o é uma soluç‹o mas um problema, o do
"espaço-tempo".
A matriz temporal capitalista é inteiramente diferente, pressu-
posto de novas relaç› es de produç‹o e consubstancial da divis‹o so-
cial capitalista do trabalho. O maquinismo e a grande indústria, o
trabalho em série implicam um tempo
segmentado, serial, dividido
em momentos iguais, cumulativo
e
irreversivel pois orientado para
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o produto e, através dele, para a reproduç‹o ampliada, a acumulaç‹o
capital: em suma, um processo de produç‹o e de reproduç‹o que tem
uma orientaç‹o e uma finalidade, mas n‹o tem fim. Um tempo men-
sur‡vel e estritamente control‡vel pelos rel—ios, cronômetros dos
contramestres, pelos rel—ios de ponto e calend‡rios precisos.
Tempo que, aqui também, estabelece, por sua segmentaç‹o e seria-
Iizaç‹o,
um problema novo, o de sua unificaç‹o e sua universaliza-
ç‹o: dominar o tempo ao relacionar as temporalidades múltiplas
como uma medida homog•nea e única, que n‹o reduz as temporali-
dades singulares (tempo oper‡rio e tempo burgu•s, tempo do econô-
mico, do social, do polí tico) salvo se codifica seus intervalos. Mas
cada temporalidade traduz as caracterí sticas de uma mesma matriz:
e mais ainda (e é isso que escapa a inúmeros autores que insistem na
"universalizaç‹o" do tempo capitalista), é esta matriz temporal que
estabelece, pela primeira vez, as temporalidades singulares como
temporalidades diferenciais, ou seja como variaç› es de ritmo e de
escans‹o de um tempo serial, segmentado, irrevers’vel e cumulati-
vo. Tempo cujos momentos se encadeiam e se sucedem, se totalizam
num resultado, sendo o presente uma transiç‹o do antes para o de-
pois. A historicidade modema é assim de tipo evolutivo e progressi-
vo, a de um tempo que transcorre na medida em que ele se percor-
re, cada momento produzindo o outro num sentido irrevers’vel, num
encadeamento de acontecimentos voltados para um futuro sempre
renovado.
Antes de chegar ao Estado-naç‹o nesse contexto, abrirei um
par•ntesis. O que est‡ em questão aqui é a matriz material do tempo
capitalista, e n‹o de sua representaç‹o. Esta matriz d‡ lugar a repre-
sentaç› es te—ico-ideol—icas do tempo e da hist—ia, mais particu-
larinente ˆ teorizaç‹o do tempo na filosofia da hist—ia (que nasce,
no sentido exato, na sociedade burguesa) e nas ditas ci•ncias huma-
nas. O que levanta por seu lado um duplo problema.
1. Se essa matriz temporal do capitalismo engendra diversas
representaç› es ideol—icas da Hist—ia, a historicidade unilinear,
evolucionista, progressiva e teleol—ica da filosofia burguesa da his-
t—ia, ela permite também, pela primeira vez,
a construç‹ o de um
conceito cientifico da hist—ia, o que foi pr—rio do pensamento de
Marx e, também, de inúmeros historiadores modernos. J‡ observa-
110
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se o conhecid’ssimo problema que surge aqui: um campo epistemo-
l—ico fundado numa materialidade hist—ico-social determinada,
que é aqui a matriz temporal implicada nas relaç› es de produç‹o ca-
pitalistas, permite a emerg•ncia de elementos cient’ficos de conhe-
cimento que, como tais, transcendem esse campo. O capitalismo
permitiu a constituiç‹o de uma ci•ncia da hist—ia que n‹o se limita
ao conhecimento exclusivo do capitalismo. O marxismo n‹o
é
ex-
clusivamente teoria do capitalismo, assim como a psican‡lise n‹ o é
exclusivamente teoria do inconsciente na sociedade capitalista, pois
os elementos e o objeto da ci•ncia n‹o se reduzem ˆs suas condi-
ç› es, quaisquer que sejam, de possibilidade e de constituiç‹o. Por
que precisamente o capitalismo, fundamentado na extraç‹o da mais-
valia, permitiu a construç‹o do conceito cient’fico da hist—ia, é uma
questão exaustivamente abordada e que n‹o tratarei aqui. embora
me pareça que ela exige mais atenç‹o quanto ao papel da matriz
temporal do capitalismo, no sentido aqui entendido, como condi-
ç‹o de possibilidade da ci•ncia da hist—ia. Ora, da mesma maneira
que n‹o abordo aqui as representaç› es te—ico-ideol—icas da Hist—
ria, n‹o trato do conceito cient’fico da hist—ia, mas da materialida-
de desta matriz temporal.
2. Se o conceito e o objeto da hist—ia como ci•ncia, logo do
marxismo, n‹o
é,
da mesma maneira que qualquer outra ci•ncia, um
campo de validade estritamente circunscrito por suas condiç› es de
emerg•ncia hist—icas,
é
porque eles n‹o se reduzem ˆs representa-
ç› es ideol—icas ambientes - ˆ filosofia da Hist—ia, Das Luzes ˆ
Hegel - que t•m no entanto, também elas, as mesmas condiç› es, e
fazem parte, portanto, da mesma configuraç‹o epistemol—ica. Po-
rém, sabe-se também hoje em dia,
o corte ci•ncia-ideologia est‡
longe de possuir a natureza radical que lhe tEnhamosatribuido h‡
alguns anos. A teoria da hist—ia mesmo no Marx da "maturidade"
apresenta certos elementos comuns com
a
representaç‹o ideol—ico-
filos—ica da Hist—ia de sua época. O investimento da matriz tem-
poral capitalista como evolucionismo escatol—ico. como progressi-
vismo racionalizante, como linearidade un’voca, como historicismo
humanista, e fico por aqui, n‹o est‡ simplesmente presente nos arre-
dores do "núcleo" da teoria da hist—ia de Marx, e n‹o s‹o por outro
lado simples desvios e pervers› es desta teoria pelos ep’gonos (a 2'
e a 31 Internacional) : elas estão presentes na teoria de Marx.
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A quest‹o vai mais além: n‹o apenas como Marx conseguiu
construir sua teoria da hist—ia a partir do campo epistemol—ico de
sua época, mas como distinguir, no seio de sua teoria, os funciona-
mentos e a articulaç‹o da ci•ncia da hist—ia e das representaç› es
ideol—icas.
Pois problema,
e
de monta, há
contra a tend•ncia atual que,
ora (com os "novos fil—ofos") n‹ o v• em Marx mais que uma répli-
ca do racionalismo e do positivismo das Luzes; ora, ainda, com Fou-
cault, reduz a validade, o objeto e o campo de toda ci•ncia ˆs suas
condiç› es, quaisquer que sejam, de emerg•ncia; no caso do marxis-
mo a determinadas modalidades de exerc’cio de poder - as disci-
plinas - que, para Foucault, é o que substitui as "condiç› es". Con-
tra, em seguida, os pretendidos guardi‹es do dogma marxista que se
recusam a ver o problema na pr—ria teoria de Marx.
Retomemos o nosso problema: a matriz temporal capitalista,
esse tempo segmentado, serial e dividido, está
j‡
implicado na ossa-
tura institucional especí fica do Estado e seus diversos aparelhos
(exército, escola, burocracia, pris› es). O Estado moderno materiali-
za igualmente essa matriz na adaptaç‹o dos sujeitos sobre os quais
seu poder se exerce e nas técnicas de exerc’cio de poder, notada-
mente nos procedimentos de individualizaç‹o do povo-naç‹o. Ora,
esse tempo segmentado, serial e dividido levanta o novo proble-
ma de sua unificaç‹o: aqui ainda, esse ser‡ o papel do Estado. O
Estado moderno deve assegurar o domí nio e o controle do: tempo
ao estabeiecer a norma e a medida, em suma o quadro referencial
das variaç› es das temporalidades singulares: ele regulaos diversos
avanços e recuos e enquadra seus desvios. O desenvolvimento desi-
gual pr—rio a cada formaç‹ o (no econômico, na polí tica, no ideol—
gico, e entre elas) do Estado. O Estado unifica os setores da forma-
ç‹o capitalista no sentido de que também é o c—igo' de suas
medidas decaladas. A formaç‹o social capitalista, o Estado-naç‹o, é
também um processo homogeneizado pelo Estado.
Pode-se compreender assim o sentido novo da tradiç‹o hist—
rica na constituiç‹o da naç‹o moderna, a relaç‹o desta tradiç‹o com
o Estado e o fato de que esta naç‹o tende a coincidir com o Estado
moderno sempre em duplo sentido: coincidir com o Estado existen-
te ou organizar-se como Estado autônomo e constituir-se como na-
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ç‹o modema ao criar seu pr—rio Estado, sendo o jacobinismo e se-
paratismo, aqui também, dois aspectos de uma mesma realidade, da
relaç‹o particular da naç‹o moderna com o Estado, A "tradiç‹o" n‹o
tem absolutamente o mesmo sentido que no pré-capitalismo, pois
o
antes
e o
depois
situam-se em matrizes inteiramente diferentes.
Aqui, o presente hist—ico n‹o passa de transiç‹o entre o antes e o
depois, o passado n‹o est‡ copresente no atual mas pedaços reuni-
d— que v•m a ter um sentido novo no futuro. A tradiç‹o n‹o é mais
que a comemoraç‹o de um passado que inclui o depois. verdade de
uma historicidade revers’vel e orientada para o grande começo, re-
petiç‹o
e recomeço das origens. A tradiç‹o torna-se ora o que acele-
ra, ora o que freia: ela recobre uma sucess‹o de momentos que pro-
duzem uma hist—ia irrevers’vel escandida pelo Estado. A unidade
desses momentos hist—icos, a orientaç‹o de sua sucess‹o, s‹o
açambarcados pelo Estado moderno que n‹o tem
legitimaç‹o
de ori-
gem no corpo soberano, mas uma série de fundaç› es sucessivas no
povo-naç‹o cujo destino ele representa. Esse Estado realiza um tra-
balho de individualizaç‹o e unificaç‹o, constitui o povo-naç‹o no
sentido também em que representa sua orientaç‹o hist—ica, desig-
na-lhe objetivo e traça o que vem a ser uma via. Nessa historicida-
de orientada embora sem termo, o Estado representa uma eternida-
de que ele produz por auto-engendrarnento. Esse Estado organiza a
naç‹o em marcha e tende assim a monopolizar a tradiç‹o nacional
quando cria o momento de um futuro que ele designa, e ao estocar
.a mem—ia do povo-naç‹o. Uma naç‹o na era capitalista sem Esta-
. do pr—rio é uma naç‹o dissipada de sua tradiç‹o e de sua hist—ia,
pois o Estado-naç‹o 'moderno significa também diluiç‹o das tradi-
ç› es, hist—ias e mem—ias das naç› es dominadas inclu’das em seu
processo.
ƒ
dessa maneira que se tem de entender as observaç› es
(sem dúvida amb’guas) de Engels, segundo as quais as naç› es que
n‹o t•m Estado pr—rio tomam-se, na era capitalista, "povos sem
hí st› ria . Esse Estado instaura a naç‹o modema ao eliminar os ou-
tros passados nacionais e ao fazer variaç› es de sua pr—ria hist—ia:
o imperialismo moderno é igualmente homogeneizaç‹o de seqü•n-
cias temporais, assimilaç‹o de hist—ias pelo Estado-naç‹o. As rei-
vindicaç› es de autonomia nacional e de Estado pr—rio da era mo-
dema significam, na historicidade capitalista, reivindicaç› es de uma
hist—ia pr—ria.
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Certamente, n‹o é o Estado que é o sujeito da hist—ia real:
esta é um processo sem sujeito, o processo da luta de classes. Mas o
que se pode compreender disso é por que essa hist—ia real, no en-
tanto universaliz‡vel e mundializ‡vel sob o capitalismo, tem preci-
samente como núcleos e como momentos .fundamentaí s os Estados-
naç› es modernas, por que a hist—ia do proletariado internacional é
segmentada e escandida pelas hist—ias das classes oper‡rias nacio-
nais. O que n‹o se depreende de mecanismos ideol—icos mas do
papel desses Estados-naç› es na organizaç‹o material da historicida-
de capitalista. ƒ poss’vel assim retraçar as raí zes desse fenômeno
propriamente moderno que é o totalitarismo. Dominar e unificar o
tempo ao constitu’-lo como instrumento de poder, totalizar as his-
toricidades ao apagar as diferenças, serializar e segmentar os mo-
mentos para orient‡-los e reuni-los, dessacralizar a hist—ia para
englob‡-Ia, homogeneizar o povo-naç‹o ao forjar e ao apagar seus
pr—rios passados: as premissas do totalitarismo moderno existem
na matriz temporal inscrita no Estado moderno,
j‡
implicada pelas
relaç› es de produç‹o e pela divis‹o social capitalista do trabalho.
Isso se toma mais n’tido se se constata que
é
esse Estado que
instaura a relaç‹o particular entre a
hist—ia
e o
territ—io,
que opera
uma relaç‹o particular entre a matriz espacial e a matriz temporal
em que a naç‹o modema permite a interseç‹o e é também sua en-
cruzilhada. O Estado capitalista estabelece as fronteiras ao constituir
o que est‡ dentro, o povo naç‹o, quando homogeneiza o antes e o
depois do conteúdo desse enclave. A unidade nacional, a naç‹o mo-
dema, toma-se assim a historicidade de um territ—io e territorializa-
ç‹o de uma hist—ia, em suma a tradiç‹ o nacional de um territ—io
materializado no Estado-naç‹o: as balizas do territ—io tomam-se re-
ferenciais da hist—ia traçadas no Estado. As limitaç› es implicadas
na constituiç‹o do povo-naç‹o moderno n‹o s‹o tão terrí veis porque
s‹o ao mesmo tempo fragmentos de uma hist—ia totalizada e capi-
talizada pelo Estado. Os genoc’dios s‹o eliminaç› es do que vem a
ser "corpos estranhos" no territ—io e na hist—ia nacional, exclus› es
fora do espaço e fora do tempo. O grande conf'mamento s—se toma
assim porque ele é também divis‹o e unificaç‹o de um tempo serial
e segmentado: os campos de concentraç‹o s‹o uma invenç‹o moder-
na no sentido também que a capa-fronteira se fecha sobre os "anti-
nacionais" que est‹o suspensos no tempo, suspensos da historicida-
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de nacional. As reivindicaç› es nacionais, na era moderna, de um Es-
tado pr—rio, s‹o reivindicaç› es de um territ—io pr—rio que signi-
ficam assim reivindicaç› es de uma hist—ia pr—ria. As premissas do
totalitarismo moderno existem n‹o apenas na matriz espacial e na
matriz temporal que se consolidam no Estado moderno, mas tam-
bém, e principalmente, em sua relaç‹o concentrada pelo Estado.
A constituiç‹o da naç‹o modema reside enfim na relaç‹o entre
o Estado moderno e a lingua.
Basta indicar simplesmente que a
construç‹o, pelo Estado moderno, de uma l’ngua nacional, n‹o se
reduz nem ao problema da utilizaç‹o social e polí tica desta lí ngua
nem ao problema de sua normatizaçao e regulamentaç‹o, pelo Esta-
do, nem ao da destruiç‹o que ela implica ˆ s lí nguas dominadas no
seio do Estado-naç‹o. A l’ngua nacional
é
uma l’ngua profundamen-
te reorganizada pelo Estado em sua pr—ria estrutura. Lí ngua rearti-
culada pela relaç‹o com as matrizes espaciais e temporais capitalis-
tas vazadas do molde institucional do Estado que cristaliza o
trabalho intelectual em sua divis‹o capitalista com o trabalho ma-
nual. Em suma, a lí ngua comum como elemento constitutivo da
naç‹o moderna n‹o é uma simples decis‹o pelo Estado de uma l’n-
gua que sofre, por isso, simples distorç› es instrumentais. mas signi-
fica uma recriaç‹ o da l’ngua pelo Estado. O imperialismo
lingü’sti-
co pr—rio da l’ngua oficializada de uma naç‹o modema n‹o reside
apenas nas formas de sua 'utilizaç‹o, porém
j‡
est‡ presente na sua
estruturaç‹o.
3. A Naç‹ o e as Classes
o
que se trata de considerar agora, como nos casos preceden-
tes, é a articulaç‹o dessas an‡lises com uma an‡lise da naç‹o em ter-
mos de luta de classes.
Ora, n‹o se trata, nesse caso também, de duas perspectivas dis-
tintas pois trata-se de objetos realmente heterog•neos. As matrizes
espacial e temporal s‹o pressupostos de relaç› es de produç‹o ape-
nas porque elas se materializam a’ como luta de classes: surgem his-
toricamente como produto desta luta. Mas, sob esse aspecto, elas
n‹o s‹o o produto de uma classe-sujeito da hist—ia, elas s‹o a re-
sultante de um processo: a hist—ia é o processo da luta de classes.
A naç‹o modema n‹o
é
portanto a criaç‹o da burguesia, mas a re-
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sultante de uma relaç‹ o de forças entre as classes sociais "moder-
nas", na qual est‹o igualmente
em jogo
diversas classes.
Aqui surge um segundo problema: a configuraç‹o hist—ica
concreta de talou qual naç‹o e de
tal
ou qual Estado modernos, as
formas de sua relaç‹o dependem das particularidades hist—icas de
talou
qual processo de luta de classes e relaç‹o de forças. Elas sur-
gem do mesmo modo como variantes do Estado e da naç‹o moder-
nas, logo também de suas matrizes espacial e temporal, sob a condi-
ç‹o entretanto de precisar que n‹o se trata, em todos esses casos, de
uma ess•ncia realmente preexistente e simplesmente diversificada
em suas manifestaç› es singulares, de um tipo ideal diversamente
concretizado. Essas matrizes, assim como o Estado e a naç‹o mo-
dernas, s—existem materializadas nas formaç› es sociais concretas.
Mas se essas formaç› es e processos de luta de classes apresentam
alguma coisa em comum (a mesma matriz espaço-temporal), é por-
que se situam, até o ponto de ruptura, no terreno de um .mesmo
modo de produç‹o cujas modificaç› es s‹o igualmente momentos de
sua reproduç‹o ampliada.
Assim, n‹o apenas essas matrizes espacial e temporal reco-
brem, como no caso da naç‹o modema, uma
significaç‹ o
diferente
conforme as diferentes classes em luta, mas existem da mesma ma-
neira como variantes nas pr‡ticas diferenciadas dessas classes. Exis-
te uma espacialidade e uma historicidade burguesas, uma espaciali-
dade e uma historicidade oper‡rias. No entanto elas s‹o variantes de
uma mesma matriz no sentido, desta vez, que surge como a resultan-
te hist—ica do processo de luta de classes e da relaç‹o de forças, e
que esse processo
é
(e como é) um processo de luta numa socieda-
de capitalista. Certamente, isso
é
bastante conhecido, as relaç› es de
produç‹o e a divis‹o social do trabalho fazem da classe oper‡ria isso
que comumente se designa como classe "portadora" da positivida-
de, do futuro hist—ico. Suas pr‡ticas,
j‡
no capitalismo, trazem isso
que se apresentam como "germes" de outras relaç› es sociais, de ou-
tras matrizes espacial e temporal, de uma outra naç‹o,
e
a hist—ia
caminha sempre ao lado da classe oper‡ria. Mas o que importa aqui,
é
um problema diferente: a luta da classe oper‡ria n‹o
é
um autode-
senvolvimento de um circuito fechado, mas existe somente como
termo de uma relaç‹o, a de sua relaç‹o com a burguesia. A hist—ia
da classe oper‡ria,
é
a hist—ia de sua luta contra burguesia: colocar-
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se do ponto de vista da classe oper‡ria é colocar-se do ponto de vista
de sua luta contra a burguesia.
Tudo isso permite explicar inicialmente a relaç‹o constitutiva
de cada burguesia com a naç‹o, relaç‹o que segue ao mesmo tempo
os ritmos e as fases da acumulaç‹o e da reproduç‹o ampliada do ca-
pital, e as grandes linhas de modificaç‹o da polí tica da burguesia.
A naç‹o moderna porta o selo e a marca do desenvolvimento da bur-
guesia e das relaç› es entre suas fraç› es. Isso se liga ao mesmo tem-
po
ˆ
transiç‹o do capitalismo na acumulaç‹o primitiva do capital e
ao papel da burguesia mercantil na formaç‹o da naç‹o,
o,
est‡gio do
capitalismo concorrencial e o est‡gio do imperialismo inclusive em
sua fase atual de internacionalizaç‹o do capital. As transformaç› es
das relaç› es de produç‹o capitalistas marcam as transformaç› es da
naç‹o, e igualmente as do nacionalismo burgu•s. Ora, mesmo na
fase atual caracterizada entretanto pela internacionalizaç‹o do capi-
tal, a naç‹o modema, decerto transformada, continua contudo, para
a burguesia, a focalizaç‹o de sua reproduç‹o que toma ex atam ente
a forma de uma inter ou transnacionalizaç‹o do capital. Esse núcleo
s—ido da naç‹o moderna reside no núcleo invari‡vel das relaç› es de
produç‹o capitalistas exatamente.
A relaç‹o da burguesia com a naç‹o difere segundo suas diver-
sas fraç› es (burguesia nacional, burguesia internacionalizada e bur-
guesia interior) e estabelece-se pela perspectiva do Estado,
Esse
Estado não
é
um Estado qualquer: é um Estado que possui uma na-
tureza de classe, um Estado burgu• s que constitui a burguesia como
classe dominante. Porém, também nesse caso. n‹o existem dois Es-
tados, um primeiro Estado antes de sua natureza de classe, que or-
ganiza uma naç‹o modema prévia
ˆ
relaç‹o desta naç‹o com a bur-
guesia, sobre o qual viria enxertar-se um segundo Estado de classe.
o Estado burgu•s, açambarcando esta naç‹o em proveito da burgue-
sia. Situar os fundamentos desse Estado e da naç‹o modema nas
relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho, é mostrar que
esse Estado possui uma materialidade pr—ria e que é por isso
que ele tem uma natureza de classe.
ƒ
precisamente um Estado na-
cional que é um Estado burgu•s, n‹o simplesmente, nem somente,
porque a burguesia usa-o a fim de instrumentalizar a naç‹o a seu
proveito, mas porque a naç‹o modema, o Estado nacional, a burgue-
sia t•m o mesmo solo de constituiç‹o que determina suas relaç› es.
117
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N‹o h‡ dúvida de que a polí tica burguesa com respeito ˆ naç‹o n‹o
seja submetida aos acasos de tais ou quais de seus interesses preci-
sos: a hist—ia da burguesia oscila permanentemente entre a identifi-
caç‹o com, e a traiç‹o da, naç‹o, pois esta naç‹o n‹o tem o mesmo
sentido para ela que tem para a classe oper‡ria e as massas popula-
res. Mas a naç‹o modema n‹o é alguma coisa que a burguesia possa.
a seu bel-prazer. recuperar ou deixar abandonar por "seu" Estado.
Esta naç‹o est‡ inscrita nesse Estado. e é esse Estado nacional que
organiza
a
burguesia como classe dominante.
Mas. seguramente, o verdadeiro problema é
o da relaç‹o da
classe oper‡ria com a naç‹o modema: relaç‹o profunda, largamente
subestimada, pelo marxismo, que tendeu permanentemente a exa-
min‡-la ora sob o ‰gulo da simples dominaç‹o ideol—ica da bur-
guesia (esse foi particularmente o caso da 3
1
Internacional), ora sob
o ‰gulo da participaç‹o de cada classe oper‡ria na cultura nacional
(austro-marxismo). Ora, n‹o
é
o caso de se colocar em dúvida os
efeitos ideol—icos do nacionalismo burgu•s sobre a classe oper‡ria,
mas de considerar que eles n‹o s‹ o mais que um dos aspectos, muito
parcial, do problema. Se a exist•ncia e as pr‡ticas da classe oper‡ria
trazem j‡ em
si
um defasamento hist—ico da naç‹o em seu sentido
moderno, elas s—podem se materializar sob o capitalismo como va-
riante oper‡ria desta naç‹o. A especialidade e a historicidade de
cada classe oper‡ria s‹o uma variante de sua pr—ria naç‹o, igual-
mente porque compreendidas em suas matrizes espacial e temporal,
e porque s‹o parte integrante desta naç‹o como resultante da relaç‹o
de força entre a classe oper‡ria e a burguesia.
ƒ
na medida em que
existem classes oper‡rias que ocorre a internacionalizaç‹o da classe
oper‡ria
e,
também, internacionalismo oper‡rio: começa-se a com-
preender isso, e h‡ que entender essa proposiç‹o num sentido radi-
cal. N‹o porque haja um internacionalismo-internacionalizaç‹o ope-
r‡rios primeiros que revestem em seguida formas nacionais. uma
ess•ncia supra- ou a-nacional que se manifesta num quadro nacional
ou que simplesmente se concretiza em singularidades nacionais.
O processo de trabalho capitalista que implica a cooperaç‹o ampliada
(a internacionalizaç‹o da classe oper‡ria) pressup› e a materialida-
de nacional e estabelece assim as bases objetivas desta cooperaç‹o
como
internacionalismo
oper‡rio. A tend•ncia atual ˆ mundializa-
.
ç‹o dos processos e da divis‹o social do trabalho é sempre, como é
118
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se oper‡ria, mas também da classe oper‡ria contra a burguesia.
Assim como a cultura, a l’ngua ou a hist—ia nacionais, o Estado é
um campo estratégico revolvido, de lado a lado, por lutas e resist•n-
cias oper‡rias e populares que nele est‹o inscritas, ainda que de ma-
neira deformada, e que irrompem sempre a capa de sil•ncio que o
Estado coloca sobre a mem—ia oper‡ria. O Estado nacional como
meio e objetivo das lutas oper‡rias, é também reapropriaç‹ o pela
classe oper‡ria de sua pr—ria hist—ia. O que certamente n‹o pode
ser feito sem a transformaç‹o do Estado, mas que coloca a quest‹o
de uma determinada perman•ncia desse Estado, sob seu aspecto na-
cional, na transiç‹o para o socialismo; perman•ncia n‹o apenas no
sentido de uma sobreviv•ncia lamentável, mas no sentido também
de uma necessidade positiva para uma transiç‹o para o socialismo.
Essas observaç›es est‹o longe de esgotar as quest› es, e restam
ainda inúmeras, particularmente:
a) a relaç‹o, muito particular, com
a naç‹o das outras classes sociais de uma formaç‹o capitalista (a
pe-
quena burguesia antiga e nova, as classes do campesinato) e catego-
rias sociais tais como a burocracia de Estado; b) o sentido polí tico
concreto que, conforme as fases do capitalismo e est‡gios, confor-
me as diversas conjunturas também, reveste a naç‹o para a classe
oper‡ria, e sua luta, especialmente o papel crucial que encobre, na
fase atual do imperialismo, a luta pela independ•ncia nacional nos
pa’ses dominantes, a luta de libertaç‹o nacional nos pa’ses domina-
dos; c) a ideologia nacional oper‡ria como express‹o justa do inter-
nacionalismo e como efeito sobre a classe oper‡ria do nacionalismo
burgu•s: esse nacionalismo burgu•s n‹o poderia ter no entanto sobre
a
classe oper‡ria os maciços e terrí veis efeitos ocorridos, conduzin-
do-a aos massacres das guerras nacionais-imperialistas, se n‹o re-
pousasse na materialidade da constituiç‹o e da luta da classe oper‡-
ria, e se n‹o se articulasse no aspecto autenticamente oper‡rio da
ideologia nacional.
N‹o entrarei no exame dessas quest› es: as observaç› es prece-
dentes indicam o caminho a seguir para seu tratamento. Elas permi-
tem explicar a extraordin‡ria perman•ncia e resist•ncia da naç‹o
modema, através de todas as modificaç› es de diversos sistemas de
organizaç‹o do espaço polí tico.A naç‹ o modema s—pode, devido a
seu alicerce nas matrizes materiais, ser superada pela subvers‹o ra-
dical das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho que
120
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induzem essas matrizes. O que ajuda a explicar as formas pelas
quais se reveste a questão nacional nos pa’ses do Leste: n‹o que a
naç‹o possa, ou deva, ser abolida sob o socialismo, mas porque as
fabulosas formas de
opress‹ o nacional que caracterizam tanto as re-
laç› es entre esses paí ses (a URSS e as outras democracias popula-
res) e cada um desses paí ses (opress‹o de suas minorias nacionais),
apenas remeteriam, por um lado embora indubitavelmente funda-
mental, aos "aspectos capitalistas" de suas relaç› es de produç‹o, de
sua divis‹o social de trabalho, de seus Estados.
121
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NOTAS
1. E. Pashukanis, La théorie générale du droit et le marxisme, 1970
(ed. franc.); G. Della Volpe, Rousseau e Marx, 1964; U. Cerroni, Marx e
ii
diritto moderno, 1963; H. Lefêbvre, Dei I Etat, obra em diversos volumes
editados a partir de 1976. Certamente, n‹o pretendo com isso subestimar o
valor da obra de Lefêbvre: seu último livro, especialmente, comporta an‡-
lises not‡veis. Enfim. esta linha de pesquisa
é
também a dos trabalhos de
J.
Baudril/ard.
2. J. H’rsch, Staatsapparat und Reproduktion des Kapitals, 1974, e
sua contribuiç‹o na obra coletiva, A crise do Estado, Graal, 1978, editado
sob minha direç‹o. A problem‡tica da Ableitung na Alemanha Federal
é
bastante antiga e encontra-se alguns de seus representantes na obra coleti-
va
L' Etat contemporaine et le marxisme,
1975, editado sob a orientaç‹o de
J.M. Vincent.
ƒ
mais recente na Inglaterra e nos Estados Unidos: ver a
quantidade de contribuiç› es para as revistas Kapitalistate, Insurgent Sacio-
logist (Estados Unidos), Capital
and
Class (Inglaterra), e também os recen-
tes trabalhos de Holloway, Piccioto, Hindess, Hirst etc. Observo, afinal,
que, na França, as crí ticas de "politicismo" com refer•ncia a minhas obras
prov•m principalmente da parte dos autores agrupados em tomo da revis-
ta
Economie Politique.
3. Le Seuil, 1974.
4. Reafirmo o que disse na Advert•ncia: n‹o farei, a menos que o cite
expressamente, refer•ncias precisas aos cl‡ssicos do marxismo.
A
esse res-
peito. elas est‹o presentes em meu texto, Classes Sociais
...
5.
Principalmente em Gli
lntellettuali
e l'organizzazione de//a Cultu-
ra, Einaudi, 1966,
6. K. Marx, Le capital, Ed. Sociales, 1. I, p. 8.5.
7.
Ibid,liv.
I,
p. 990. Destaco, entre outras, as not‡veis obras de J. M.
Brohrn,
Corps et politique,
1975, e
Sociologte politique du sport.
8.
M. Foucault, Vigiar e Punir, Editora Vozes, Surveiller et Punir,
1975, pp. 194, 195 et passim,
9.
Artigo citado
in Critique,
p. 1.210.
,.
10. Em sua
cr’tica
da Hist—ia da loucura, in
L'
écriture et la diffe-
rence.
122
II.
Vigiar e Punir
(Surveiller et Punir, p. 208).
12. Ibid (p. 208).
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13. Pouvoir Politique,
IA
ediç‹o, p. 317; Poder pol’tico.
14. Ibid
(p.
237).
15. Maspero, 1970.
16. Maspero, 1975.
17. A vontade de saber (pp. 117-,118).
18. R. Castel, O psicanalismo, Ediç› es Graal (p. 288),
19. De Fr. Lyotard: (L'economie libidinale, 1974) a
P.
Legendre
(L'amour du censeur" 1974), passando por R. Scherer, a lista seria longa.
20. Ph. Arí és. Histoire de la mort en Occident, 1975, e os trabalhos
de L.
V.
Thomas.
21.
Jouir du pouvoir,
1976.
22. Foi também o meu caso. em meu primeiro texto: Nature des cho-
ses et droit,
LGDJ, 1966. Texto esgotado h‡ muito tempo. N‹o se inquie-
tem, pois n‹o tenho intenç‹o de reeditá-lo.
23. Ver igualmente. na França, os trabalhos de M. Chemillier-Gen-
dreau, E.; Pí sier-Kouschner, M. Miaille, Fr, Dernichel, J.-P. Collin, G. La-
bica etc.
24. Na França, os trabalhos de G. Haupt, M. Lowy, M. Revérioux,
M. Rodinson, P. Villar, etc.
. 25. L. Febvre, La
terre et
I
evolution humaine,
1922; P. Lév•que e
P.
Vidal-Naquet, Clisthéne l'Athénien, 1964; P. Lévéque,
L'aventure grec-
que.
1964; J.-P. Vemant,
Mythe et pensée chez les Grecs,
1974; J, Le Goff,
LA civilisation de I'Occidente médiéval, 1972;
R.
Mandrou,/ntroducrion ˆ
la France moderne, 1961; F. Braudel, Civilisation matérielle et capitalis-
me,
1967; por fim, destaco os trabalhos da equipe da revista
Hérodote,
e a
obra de Fr. Chatelet,
LA naissance de /' histoire,
1975, "10/18".
26. M. Serres, Discours et parcours, in Critique, abril 1975.
27. O
anti-ƒdipo, op. cit. (p. 239).
28. Em sua contribuiç‹o ˆ obra coletiva,
Faire l'Histoire,
1974. sob
a direç‹o de
J.
Le Goff e P. Nora,
t I
29. Die Polendebatte in Frankfurt, in Neue Reinische Zeitung,
sept.
3, 1848. Aus dem literarischen Nachlass von K. Marx. Fr. Engels und
F.LAssale,
editado por Fr. Mehring (1902),
Ill,
238.
123
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SEGUNDA PARTE
AS LUTAS POLêTICAS:
O ESTADO, CONDENSA‚ Ì O
DE UMA RELA‚ Ì O DE FOR‚ AS
Consideramos até aqui a necessidade de relacionar o arcabou-
ço institucional do Estado com as relaç› es capitalistas de produç‹o e
sua divis‹o social do trabalho. O estabelecimento dessa relaç‹o
j‡
era
uma primeira aproximaç‹o do Estado com as classes sociais e a luta
de classes.
ƒ esse último ponto que desenvolverei agora. fazendo uma an‡-
lise do Estado em termos de
dominaç‹ o politica
e de
luta
politica.
Uma teoria do Estado capitalista n‹o poderia construir seu objeto pela
refer•ncia apenas ˆ s relaç› es de produç‹o, como se a luta de classes
s—interviesse nas formaç› es sociais como simples fator de variaç‹o
ou de concretizaç‹o desse, Estado, tipo ideal, em
talou
qual Estado
concreto. Se essa teoria n‹o for um simples percurso ou traçado da ge-
nealogí a do Estado capitalista, ela s—é poss’vel se explicar a reprodu-
ç‹o hist—ica desse Estado: Estado de tal ou qual estágio ou fase do
capitalismo (Estado liberal, Estado intervencionista, estatismo autori-
tário atual), formas de Estado de exceç‹o (fascismos, ditaduras mili-
tares, bonapartismos), formas de regime desse Estado. Uma teoria do
Estado capitalista deve poder explicar as metamorfoses de seu objeto.
Isso traz, inicialmente, ˆ baila as transformaç› es das relaç› es
de produç‹o. Estabelecer a relaç‹o do Estado com essas relaç› es
significa desde
j‡
que as transformaç› es do Estado em sua periodi-
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zaç‹o hist—ica fundamental (est‡gios e fases do capitalismo: est‡-
gios concorrencial e imperialista - capitalista monopolista, fases
desse último) levam a substanciais modificaç› es das relaç› es de
produç‹o e da divis‹o social do trabalho capitalistas. Se seu núcleo
persiste. que
é
o que faz com que o Estado continue capitalista, n‹o
impede que eles passem por importantes transformaç› es ao longo da
reproduç‹o do capitalismo.
Mas essas transformaç› es sugerem ent‹o modificaç› es na
constituiç‹o e reproduç‹o das classes sociais, de sua luta e da do-
minaç‹o polí tica. Isso
é
v‡lido para a periodizaç‹o fundamental do
Estado segundo os est‡gios e fases do capitalismo: essas transfor-
maç› es implicam em importantes modificaç› es no campo da domi-
naç‹o polí tica. Isso
é
v‡lido igualmente para as formas e regimes
precisos de que se reveste o Estado no seio de um mesmo estágio
ou de uma mesma fase do capitalismo, segundo as diversas forma-
ç› es sociais:
talou
qual forma de parlamentarismo, de presidencia-
lismo, de fascismo ou de ditadura militar. As relaç› es de cl‡sse
est‹o presentes assim tanto nas transformaç› es do Estado segundo
os est‡gios ou fases do capitalismo, ou seja nas transformaç› es das
relaç› es de produç‹o/divis‹o social do trabalho que elas implicam,
como nas formas diferenciais de que se reveste o Estado num est‡-
gio ou fase marcados pelas mesmas relaç› es de produç‹o.
Da’ o problema: construir uma teoria do Estado capitalista que,
a
partir das relaç› es de produç‹o, explique, pela pr—pria estrutura
de seu objeto, sua reproduç‹o diferencial em funç‹o da luta de clas-
ses. Se dou tanta •nfase a esses pontos, n‹o é por acaso: é que o teo-
ricismo formalista na teoria do Estado pode tomar diversas formas.
Pelo momento afastamos uma delas; a que consiste em construir o
objeto de uma teoria do Estado capitalista colocando-a em relaç‹o
unicamente com as relaç› es de produç‹o no sentido de uma estrutu-
ra econ—mica, na qual a luta de classes e a dominaç‹ o polí tica s6 in-
terv•m
a posteriori,
para explicar as concretizaç› es
-
singularida-
des secund‡rias desse Estado no real hist—ico. Concepç‹o que leva
a negligenciar as formas espec’ficas desse Estado.
Mas o teoricismo formalista pode tomar igualmente uma
forma diferente, que leva ao mesmo resultado. Esta forma nos inte-
ressa muito particularmente, pois ela envolve, desta vez, o relacio-
namento do Estado com a dominaç‹o pol’tica. Ela trata as proposi-
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ç› es gerais dos cl‡ssicos do marxismo sobre o Estado como uma
"teoria
I geral" (a Teoria "marx’sta-leninista") do Estado, e reduz o
Estado capitalista a uma simples concretizaç‹o do "Estado em
geral". No que se refere
ˆ
dominaç‹o polí tica, ela s—leva a banali-
dades dogm‡ticas do g•nero: todo Estado é um Estado de classe;
toda dominaç‹o pol’tica é uma ditadura de classe; o Estado capita-
lista é um Estado da burguesia; o Estado capitalista em geral, e todo
Estado capitalista em particular, s‹o uma ditadura da burguesia. Isso
foi observado ainda recentemente, no debate sobre a ditadura do
proletariado no seio do PCF e nos argumentos colocados por alguns
dos defensores da "manutenç‹o" dessa noç‹o, especialmente E. Ba-
libar em seu último livro,
Sur la dictadure du prolétariat.
ƒ evidente que uma tal an‡lise n‹o poderia fazer a pesquisa
avançar nem um passo. Ela é totalmente inoperante na an‡lise de si-
tuaç› es concretas, pois é incapaz de induzir a uma teoria do Estado
capitalista que explique as formas diferenciais e as transformaç› es
hist—icas desse Estado, de maneira tautol—ica.
As car•ncias dessa an‡lise t•m conseqü•ncias polí ticas incal-
cul‡veis: resultado e efeito concomitante da simplificaç‹o-dogmati-
zaç‹o estaliniana sobre a questão do Estado, esta an‡lise conduziu a
,
desastres polí ticos, especialmente no perí odo do entre-guerras, quan-
to ˆ estratégia adotada em face da ascens‹o do fascismo. Ela se tra-
duziu na estratégia do Komintern, dita do "social-fascismo", funda-
mentada exatamente nesta mesma concepç‹o do Estado, incapaz de
distinguir entre a forma de Estado democr‡tico-parlamentar e essa
forma especí fica de Estado que é o Estado fascista. Quest‹o que j‡
tratei anteriormente, tanto que n‹o voltarei a ela, salvo para indicar
incidentalmente que, a esse respeito, se poderia reconhecer esta con-
cepç‹o stalinista do Estado em A. Glucksmann, que, em seu texto
Le
facisme qui vient d' en haut, t
identificava o Estado franc•s em 1972
com um fascismo de tipo novo; Glucksmann que, como se sabe,
passou do neo-estalinismo para o antimarxismo mais barato, pen-
sando provavelmente que suas elucubraç› es de agora fossem "o que
faltava em Marx". Eu observaria entretanto que a necessidade de
uma teoria do Estado capitalista que conseguisse explicar suas for-
mas diferenciais n‹o vale apenas para essas grandes diferenças que
s‹o o Estado democr‡tico-parlamentar e o Estado de exceç‹o, mas
vai ainda mais longe.
ƒ
necess‡rio explicar as diferenças no pr—rio
127
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seio do Estado capitalista de
exceç‹o:
tentei mostrar, em A crise
das
ditaduras,
que as diferenças entre fascismo e ditadura militar s‹ o de-
cisivas quanto
ˆ
estratégia polí tica a seguir. Questão que foi capital
para a Espanha, Portugal e Grécia e que n‹o é de menor importân-
cia, como o testemunha a discuss‹o na esquerda sul-americana, para
certos regimes atuais na América Latina. Mas é necess‡rio eatabele-
cer igualmente as diferenças entre as pr—rias formas democr‡ticas
- parlamentares desse Estado: quem n‹o se lembra das derrotas po-
lí ticas ˆs quais conduziu, durante algum tempo, a impossibilidade de
compreender a especificidade do Estado gaullista na França?
A urg•ncia te—ica é ent‹o a seguinte: compreender a inscriç‹ o
da luta de classes, muito particularmente da luta e da dominaç‹ o
politica, na ossatura institucional do Estado
(no caso a da burgue-
sia no arcabouço material do Estado capitalista) de maneira tal que
ela consiga explicar as formas diferenciais e as transformaç› es his-
t‡ricas desse Estado. Aqui também, o Estado tem um papel org‰i-
co na luta e na dominaç‹o polí ticas: o Estado capitalista constitui a
burguesia como classe politicamente dominante. Certamente luta
de classes detém o primado sobre os aparelhos, no caso sobre o apa-
relho de Estado: mas n‹ o se trata de uma burguesia j‡ institu’da
como classe politicamente dominante fora ou antes de um Estado
que ela criaria para conveni•ncia pr—ria, e que funcionaria apenas
como simples ap•ndice dessa dominaç‹o. Essa funç‹o do Estado
est‡ igualmente inscrita na sua materialidade institucional: trata-se
da natureza de classe do Estado. Para estud‡-la seriamente é preci-
so ter clareza dessa funç‹o do Estado tanto a respeito das classes do-
minantes como das classes dominadas. .
ƒ o que tentarei fazer permanecendo sempre num plano bas-
tante geral: as consideraç› es que se seguem serão destacadas, quan-
do da an‡lise da atual forma do Estado, o estatismo autoritário, em
seu devido tempo.
I. O ESTADO E AS CLASSES DOMINANrES
Em relaç‹o principalmente ˆ s classes dominantes, em particu-
lar a burguesia, o Estado tem um papel principal de
organizaç‹ o.
Ele
representa e organiza a ou as classes dominantes, em suma represen-
128
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ta, organiza o interesse polí tico a longo prazo do
bloco no poder,
composto de v‡rias fraç› es de classe burguesas (pois a burguesia é
dividida em fraç› es de classe), do qual participam em certas cir-
cunst‰cias as classes dominantes provenientes de outros modos de
produç‹o, presentes na formaç‹o social capitalista: caso cl‡ssico,
ainda hoje em dia, nos pa’ses dominados e dependentes, dos gran-
des proprietários de terra. Organizaç‹o, na perspectiva do Estado, da
unidade conflitual da aliança de poder e do equil’brio inst‡vel dos
compromissos entre seus componentes, o que se faz sob a hegemo-
nia e direç‹o, nesse bloco, de uma de suas classes ou fraç› es, a clas-
se ou fraç‹o hegemônica.
O Estado constitui portanto a unidade polí tica das classes do-
minantes: ele instaura essas classes como classes dominantes. Esse
papel fundamental de organizaç‹o n‹o concerne ali‡s a um único
aparelho ou ramo do Estado (os partidos polí ticos), mas, em diferen-
tes graus e g•neros, ao conjunto de seus aparelhos, inclusive seus
aparelhos repressivos por excel•ncia (exército, polí cia etc.) que,
também eles, desempenham essa funç‹o. O Estado pode preencher
essa funç‹o de organizaç‹o e unificaç‹o da burguesia e do bloco no
poder, na medida em que detém uma
autonomia
relativa em relaç‹o
a tal ou qual fraç‹o e componente desse bloco, em relaç‹o a tais ou
quais interesses particulares. Autonomia constitutiva do Estado ca-
pitalista: remete ˆ materialidade desse Estado em sua separaç‹o re-
'lativa das relaç› es de produç‹o, e ˆ especificidade das classes e da
luta de classes sob o capitalismo que essa separaç‹o implica.
An‡lises que j‡ fiz anteriormente e as quais n‹o retomarei.
Lembraria simplesmente que essas an‡lises n‹ o se aplicam apenas,
como algumas vezes se pode pensar, a uma determinada forma do
Estado capitalista, particularmente o "Estado liberal" do capitalismo
concorrencial. Elas abrangem o núcleo estrutural desse Estado, e
portanto também sua forma na presente fase do capitalismo mono-
polista. Esse Estado,
agora como no passado.
deve representar o in-
teresse polí tico a longo prazo no conjunto da burguesia (hipotetica-
mente o capitalista coletivo) sob a hegemonia de uma de suas
fraç› es, atualmente o capital monopolista.
a) A burguesia se apresenta sempre como que constitutivamen-
te dividida em fraç› es de classe: capital monopolista e capital n‹ o-
129
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monopolista (pois o capital monopolista n‹o é uma entidade integra-
da, mas designa um processo contradit—io e desigual de "fus‹o"
entre diversas fraç› es do capital), fracionamentos desdobrados se se
consideram as atuais coordenadas de internacionalizaç‹o do capital;
b)
Essas fraç› es burguesas em seu conjunto, se situam, se bem
que em graus cada vez mais desiguais, no terreno da
dominaç‹o po-
lí tica, fazendo parte portanto do bloco do poder. Indo de encontro a
determinadas an‡lises do PCP sobre o Capitalismo Monopolista de
Estado, n‹o é apenas o capital monopolista que ocupa o terreno da
dominaç‹o polí tica.
c) O Estado detém sempre uma autonomia relativa em relaç‹o
a essa ou ˆquela fraç‹o do bloco no poder (inclusive em relaç‹o a tal
ou qual fraç‹o do pr—rio capital monopolista) a
fim
de assegurar a
organizaç‹o do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma
de suas fraç› es. De encontro ainda a certas an‡lises do Capitalismo
Monopolista de Estado, n‹ o se trata aqui nem de uma "fus‹o" do Es-
tado e dos monop—ios (an‡lise abandonada pelo PCp), nem tam-
bém, e no sentido rigoroso da palavra, de sua "reuni‹o" (mesmo
contradit—ia) num "mecanismo único";
d)
Tudo isso ainda é verdadeiro mesmo se as formas atuais do
processo de monopolizaç‹o e a hegemonia particular do capital mo-
nopolista sobre o conjunto da burguesia imp› em incontestavelmen-
te uma restriç‹o da autonomia do Estado em relaç‹o ao capital mo-
nopolista e do campo de compromissos deste com as outras fraç› es
da burguesia.
Como se estabelece concretamente essa polí tica do Estado em ~
favor do bloco burgu•s no poder? ,1
Ao precisar algumas de minhas formulaç› es anteriores, diria
que o Estado, no caso capitalista, n‹o deve ser considerado como
uma entidade intrí nseca mas, como ali‡s é o caso do "capital", como
uma relaç‹ o, mais exatamente como a condensaç‹ o material de uma
relaç‹ o de
forças
entre classes e
fraç› es
de classe, tal como ele ex-
pressa,
de maneira sempre especfjica, no seio do Estado?
Todos os termos da formulaç‹o precedente t•m uma importân-
cia pr—ria, e devem ser examinados. Principalmente no aspecto do
Estado como condensaç‹o de uma
relaç‹ o:
compreender o Estado
desse modo
é
evitar os impasses do eterno pseudodilema da discus-
130
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s‹o sobre o Estado, entre o Estado concebido como Coisa-instru-
mento e o Estado concebido como Sujeito. O Estado como Coisa: a
velha concepç‹o instrumentalista do Estado, instrumento passivo,
sen‹o neutro, totalmente manipulado por uma única classe ou fra-
ç‹o,
caso em que nenhuma autonomia
é
reconhecida ao Estado.
O Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui
como absoluta. é submetida a sua vontade como instância racionali-
zante da sociedade civil. Concepç‹o que remonta a Hegel, retoma-
da por Max. Weber e a corrente dominante da sociologia pol’tica (a
corrente "institucionalista-funcionalista"). Ela relaciona esta auto-
nomia ao poder próprio que o Estado passa por deter e com os por-
tadores desse poder e da racionalidade estatal: a burocracia e as eli-
tes polí ticas especialmente.
Mas o Estado n‹o é pura e simplesmente uma relaç‹o, ou a
condensaç‹o de uma relaç‹o; é a condensaç‹o material e especifica
de uma relaç‹o de forças entre classes e fraç› es de classe.
A questão é de importância e merece ser examinada, pois refe-
re-se a recentes evoluç› es te—ico-polí ticas do Partido Comunista
franc•s. Essa an‡lise do Estado como condensaç‹o material de uma
relaç‹o de classe, eu a opunha ˆ concepç‹o do Estado nas an‡lises
comunistas da época em refer•ncia ao CMB, Capitalismo Monopo-
lista de Estado. O que eu criticava no essencial nesta concepç‹o era
, que levava a uma vis‹o do Estado "fundido" ao capital monopolis-
ta, Estado que n‹o possuiria nenhuma autonomia pr—ria e estaria a
serviço exclusivo dos monop—ios, em suma de participar da con-
cepç‹o instrumentalista do Estado. Mas fazia igualmente uma outra
crí tica: tentava mostrar que essa vis‹o de um Estado manipul‡vel,
no limite, ˆ vontade pelos monop› lí os, podia articular-se perfeita-
mente com uma vis‹o descurada da materialidade pr—ria do Esta-
do. A materialidade de um Estado entendida como ferramenta ou
instrumento n‹o tem pertin•ncia polí tica pr—ria: reduz-se ao poder
de Estado, ou seja, ˆ classe que manipula esse instrumento. O que
implica, enfim, que esse mesmo instrumento (que passa por diver-
sas modificaç› es, embora secundárias) poderia ser utilizado de
outra maneira mediante uma mudança do poder do Estado, pela
classe oper‡ria numa transiç‹o para o socialismo.
Nesse primeiro ponto, as an‡lises do PCF evolu’ram. Esse en-
caminhamento pode ser constatado na obra coletiva de
J.
Fabre, Fr.
131
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pr—rias. Uma mudança na relaç‹o de forças entre Classes certa-
mente tem sempre efeitos no Estado, mas n‹o se expressa de ma-
neira direta e imediata: ela esgota a materialidade de seus diversos
aparelhos e s—se cristaliza no Estado sob sua forma refratada e di-
ferencial segundo seus aparelhos. Uma mudança de poder do Esta-
do n‹o basta nunca para transformar a materialidade do aparelho de
Estado: essa transformaç‹o provém, sabemos, de uma operaç‹o e
aç‹o' espec’ficas.
Voltemos ˆ relaç‹o entre o Estado e as classes sociais. Tanto na
concepç‹o do Estado como Coisa e do Estado como Sujeito, a saber
portanto, do Estado como entidade intrí nseca,
a
relaç‹o Estado-clas-
ses sociais e, em particular, Estado-classes e fraç› es dominantes,
é
compreendida como
relaç‹ o de exterioridade.
Ora as classes domi-
nantes se submetem ao Estado (Coisa) por um jogo de "influ•ncias"
e de grupos de press‹o, ora o Estado (Sujeito) se submete ˆ s classes
dominantes. Nessa relaç‹o de exterioridade, Estado e classes domi-
nantes s‹o considerados sempre como entidades intrí nsecas "con-
frontadas" entre si, uma em "face" da outra, e assim uma possuiria
tanto poder que a outra nada deteria, conforme uma tradicional con-
cepç‹o de poder como
quantidade
dada numa sociedade:
a
concep-
ç‹o do poder
soma-zero.
Ora a classe dominante absorve o Estado
esvaziando-o de seu pr—rio poder (o Estado-Coisa), ora o Estado re-
siste ˆ classe dominante e lhe retira seu poder em seu pr—rio bene-
f’cio (o Estado-Sujeito e ‡rbitro entre as classes sociais, concepç‹o
cara ˆ social-democracia).
Mais ainda: segundo a primeira tese, a do Estado-Coisa, a po-
lí tica do Estado em favor da burguesia se estabelece pelo simples
r
controle exercido sobre o Estado-instrumento, de uma única fraç‹o
da burguesia, atualmente o capital monopolista, passando ela mes-
ma por comportar uma unidade polí tica em qualquer sentido prévia
ˆ aç‹o estatal. O Estado n‹o desempenha uma fraç‹o pr—ria na or-
ganizaç‹o do bloco de poder burgu•s, e n‹o possui
nenhuma auto-
nomia em relaç‹o ˆ classe ou fraç‹o dominante ou hegemônica. Na
tese do Estado-Sujeito, em troca, é o Estado dotado de uma vontade
racionalizante, de poder pr—rio e de uma
autonomia tendencial-
mente absoluta
em relaç‹o ˆs classes sociais, sempre exterior a elas,
que imporia "sua" polí tica, a da burocracia ou das elites polí ticas,
aos interesses divergentes e concorrentes da sociedade civil.
133
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Essas duas teses n‹o podem assim explicar o estabelecimento
da polí tica do Estado em favor das classes dominantes, e n‹o levam
igualmente ˆ compreens‹o de um problema decisivo, o das contra-
diç› es internas do Estado.
Em sua perspectiva comum de uma rela-
ç‹o de exterioridade entre Estado e classes sociais, o Estado apare-
ce forçosamente como um bloco monolí tico sem fissuras. No caso
do Estado-Coisa, onde o Estado parece dotado de uma unidade ins-
trumental intrí nseca, as contradiç› es em seu seio existem apenas
como contrafaç› es externas (inflU•ncias, press› es) de peças e eri-
grenagens do Estado-m‡quina ou instrumento, em que cada fraç‹o
dominante ou grupo de interesses particulares ficam com a melhor
parte para si. Portanto contradiç› es claramente secund‡rias, simples
falhas da unidade quase metaf’sica do Estado, n‹o influindo na de-
fmiç‹o de sua polí tica. Elas s‹o consideradas mesmo como elemen-
tos que perturbam, ainda que provisoriamente, o centralismo instru-
mental do Estado, devido ao controle exercido sobre ele de uma
classe ou fraç‹o, que se reativa sempre,
é
o caso dizer, de maneira
mec‰ica. No caso do Estado-Sujeito, a unidade do Estado
é
a ex-
press‹o necess‡ria de sua vontade racionalizante,
faz
parte de sua
ess•ncia em face dos fracionamentos da sociedade civil. As contra-
diç› es internas do Estado mant•m-se manifestaç› es secund‡rias,
acidentais e epis—icas, devido no essencial ˆ s fricç› es ou antago-
nismos entre diversas elites polí ticas ou grupos burocr‡ticos que en-
carnam sua vontade unificadora. U, as contradiç› es de classe s‹o
exteriores ao Estado; c‡, as contradiç› es do Estado s‹o exteriores ˆs
classes sociais.
Ora, o estabelecimento da polí tica 'do Estado em favor do
bloco no poder, o funcionamento concreto de sua autonomia relati-
va e seu papel de organizaç‹o s‹o organicamente ligados a essas fis-
suras, divis› es e contradiç› es internas do Estado que n‹o podem re-
presentar simples acidentes disfuncionais.
O estabelecimento da
politica do Estado deve ser considerado como a resultante das con-
tradiç› es de c/asse inseridas na pr—pria estrutura do Estado (o Es-
tado-relaç‹o). Compreender o Estado como a condensaç‹o de uma
relaç‹o de forças entre classes e fraç› es de classe tais como elas se
expressam, sempre de maneira espec’fica, no'seio do Estado, signi-
fica que o Estado
é
constitu’do-dividido de lado a lado pelas contra-
diç› es de classe. Isso significa que uma instituiç‹o, o Estado, desti-
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nado a reproduzir as divis› es de classe, n‹o é, n‹o pode ser jamais,
como nas concepç› es do Estado-Coisa ou Sujeito, um ,bloco mono-
lí tico sem fissuras, cuja polí tica se instaura de qualquer maneira a
despeito de suas contradiç› es, mas é ele mesmo dividido. N‹o basta
simplesmente dizer que as contradiç› es e as lutas atravessam o Es-
tado, como se se tratasse de manifestar uma substância j‡ constitu’-
da
ou de percorrer um terreno vazio. As contradiç› es de classe cons-
tituem o Estado, presentes na sua ossatura material, e armam assim
sua.organizaç‹o: a polí tica do Estado é o efeito de seu funcionamen-
to n—seio do Estado.
. As contradiç› es de classe, examinadas momentaneamente ape-
Das
as que existem entre as
fraç› es
do bloco no poder, assumem no
seio do Estado a forma de contradiç› es internas entre os diversos
ramos e aparelhos do Estado, e no seio de cada um deles, conforme
as linhas de direç‹o ao mesmo tempo horizontais e verticais. Se isso
acontece dessa maneira, é porque as diversas classes e fraç› es do
bloco no poder s—participam da dominaç‹o polí tica na medida em
que est‹o presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho de Estado,
cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles s‹o muitas
vezes, sob sua unidade centralizada, desdobrados e obscurecidos),
cada patamar de cada um deles constitui muitas vezes a sede do
poder, e o representante privilegiado, desta ou daquela fraç‹o do
bloco no poder, ou de uma aliança conflitual de algumas dessas fra-
ç› es contra as outras, em suma a concentraç‹o-cristalizaç‹o especí -
fica de
tal
ou qual interesse ou aliança de interesses particulares.
Executivo e parlamento, exército, magistratura, diferentes ministé-
rios, aparelhos regionais municipais e aparelho central, aparelhos
ideol—icos. eles mesmos divididos em circuitos, redes e trincheiras
diferentes, representam com freqü•ncia, conforme as diversas for-
maç› es sociais, interesses absolutamente divergentes de cada um ou
de alguns componentes do bloco no poder: grandes proprietários de
terra (caso de numerosas formaç› es sociais dominadas e dependen-
tes), capital n‹o-monopolista (e uma ou outra fraç‹o deste: comer-
cial, industrial ou banc‡rio), capital monopolista (e uma ou outra
fraç‹o deste: capital monopolista com domin‰cia banc‡ria ou in-
dustrial), burguesia internacionalizada ou burguesia interna.
As contribuiç› es no seio das classes e fraç› es dominantes, as
relaç› es de forças no seio do bloco no poder, que incitam precisa-
135
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mente a organizaç‹o da unidade desse bloco na perspectiva do Esta-
do, existem portanto como relaç› es contradit—ias estabelecidas no
seio do Estado. O Estado, condensaç‹o material de uma relaç‹o con-
tradit—ia, n‹o organiza a unidade do bloco polí tico no poder desde
o exterior, como que resolvesse pela sua simples exist•ncia, e a dis-
t‰cia, as contradiç› es de classe. Bem ao contr‡rio, é
o jogo dessas
contradiç› es na materialidade do Estado que toma poss’vel, por mais
paradoxal que possa parecer, a funç‹o de organizaç‹o do Estado.
Dessa maneira é preciso abandonar definitivamente uma vis‹o
do Estado como um dispositivo unitário de alto a baixo, fundamen-
tado numa repartiç‹o hier‡rquica homog•nea dos centros de poder,
em escala uniforme, a partir do ‡pice da pir‰mide para a base. A ho-
mogeneidade e a uniformidade do exerc’cio do poder estariam ga-
rantidas pela regulamentaç‹o jurí dica interna ao Estado, pela lei
constitucional ou administrativa que estabeleceria os limites desse
dom’nio de compet•ncia e de
aç‹o
dos diversos aparelhos. Imagem
inteiramente falsa: o que n‹o quer dizer, certamente, que o Estado
atual n‹o possua uma trama hier‡rquica e burocr‡tica, nem também
que n‹o apresente essa caracterí stica de centralismo, mas que essa
n‹o se assemelha em nada
ˆ
sua imagem jurí dica (tanto na França,
pa’s do jacobinismo centralizador na tradiç‹o da monarquia absolu-
tista, quanto alhures).
Entende-se assim por que o estabelecimento pelo Estado atual
do interesse polí tico geral e a longo prazo do bloco no poder (sua
funç‹o de organizaç‹o no equil’brio instável dos compromissos) sob
a hegemonia de tal ou qual fraç‹o do capital monopolista, o funcio-
namento concreto de sua autonomia relativa e também dos limites
desta diante do capital monopolista, em suma, a polí tica atual do Es-
tado, é a resultante dessas contradiç› es interestatais entre setores e
aparelhos de Estado e no seio de cada um deles. Portanto rata-se
exatamente de:
1. Um mecanismo de seletividade estrutural da informaç‹o
dada por parte de um aparelho e de medidas tomadas, pelos outros.
Seletividade implicada pela materialidade e hist—ia pr—ria de cada
aparelho (exército, aparelho escolar, magistratura etc.) e pela repre-
sentaç‹o especí fica em seu seio de
tal
ou qual interesse particular,
em suma por seu lugar na configuraç‹o da relaç‹o de forças;
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2. Um trabalho contradit—io de decis› es, mas também de "n‹o-
decis› es" por parte dos setores e segmentos de Estado. Essas n‹o de-
cis› es, ou seja um certo grau de aus•ncia sistem‡tica de
aç‹o
do Es-
tado, que n‹o s‹o um dado conjuntural porém est‹o inseridas em sua
estrutura contradit—ia e constituem uma das resultantes dessas con-
tradiç› es, s‹o igualmente necess‡rias ˆ unidade e ˆ organizaç‹o do
bloco no poder assim como ˆ s medidas positivas que ele toma;
3. Uma determinaç‹o presente na ossatura organizacional de
talou qual aparelho ou setor do Estado segundo sua materialidade
pr—ria e tais ou quais interesses que eles representam, prioridades
mas também contraprioridades. Ordem diferente, para cada apare-
lho e setor, rede ou patamar de cada um deles segundo seu lugar na
configuraç‹o da relaç‹o de forças: séries de prioridades e contra-
prioridades contradit—ias entre si;
4. Uma filtragem escalonada por cada ramo e aparelho, o pro-
cesso de tomada de decis› es, de medidas propostas pelos outros ou
de execuç‹o efetiva, em suas diversas modalidades, de medidas to-
madas pelos outros.
5. Um conjunto de medidas pontuais, conflituais e compensa-
t—ias em face dos problemas do momento.
A polí tica do Estado se estabelece assim por um processo efe-
tivo de contradiç› es interestatais, e é precisamente por isso que,
num primeiro ní vel e a curto prazo, em suma do ponto de vista da
fisiologia micropol’tica, ela parece prodigiosamente incoerente e
ca—ica. Se uma determinada coer•ncia se estabelece ao fim do pro-
cesso, a funç‹o de organizaç‹o que cabe ao Estado é bem marcada
por limites estruturais. Esses demonstram o car‡ter especialmente
ilus—io das concepç› es de um atual capitalismo "organizado", ou
seja que consegue superar suas contradiç› es na perspectiva do Esta-
do; ilus› es que se embricam com as referentes ˆ s possibilidades
reais de uma planificaç‹o capitalista. Esses limites do papel organi-
zacional do Estado
não lhe s‹ o impostos somente do exterior.
Eles
n‹o se referem unicamente ˆ s contradiç› es inerentes ao processo de
reproduç‹o e acumulaç‹o do capital, mas igualmente ˆ estrutura e
ossatura material do Estado que, ao mesmo tempo, fazem dele o
lugar de organizaç‹o do bloco no poder e lhe permitem uma autono-
mia relativa em relaç‹o a tal ou qual de suas fraç› es.
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Essa autonomia n‹o é, assim, uma autonomia do Estado
fren-
te ˆ s fraç› es do bloco no poder, ela n‹o advém da capacidade do Es-
tado de se manter exterior a elas, mas a resultante do que se passa
dentro do Estado. Essa autonomia se manifesta concretamente pelas
diversas medidas contradit—ias que cada uma dessas classes e fra-
ç› es, pela estratégia espec’fica de sua presença no Estado e pelo
jogo de contradiç› es que resulta disso, consegue introduzir na polí -
tica estatal, mesmo que sob a forma de medidas negativas: a saber,
por meio de oposiç› es e resist•ncias ˆ tomada ou execuç‹o efetiva
de medidas em favor de outras fraç› es do bloco no poder (é particu-
lannente o caso, hoje em dia, das resist•ncias do capital n‹o-mono-
polista frente ao capital monopolista). Essa autonomia do Estado em
relaç‹o a
talou
qual fraç‹o do bloco no poder existe pois concreta-
mente como autonomia relativa de tal ou qual setor, aparelho ou
rede do Estado em relaç‹o aos outros.
Certamente isso n‹o significa que n‹o existam projetos polí ti-
cos coerentes por parte dos representantes e do pessoal polí tico das
classes dominantes, nem que a burocracia de Estado n‹o desempe-
nhe um papel pr—rio na orientaç‹o da polí tica do Estado. Mas as
contradiç› es no seio do bloco no poder atravessam, segundo as li-
nhas de clivagem complexas e segundo os diversos ramos e apare-
lhos de Estado (exército, administraç‹o, magistratura, partidos polí -
ticos, igreja etc.), a burocracia e o pessoal de Estado. Muito mais
que com um corpo de funcion‡rios e de pessoal de estado unit‡rio e
cimentado em tomo de uma vontade polí tica
un’voca,
lida-se com
feudos, cl‹s, diferentes facç› es, em suma com uma multid‹o de mi-
cropolí ticas diversificadas. Essas, por coerentes que possam pare-
cer consideradas isoladamente, n‹o s‹o menos contradit—ias entre
si, consistindo a polí tica do Estado no essencial na resultante de seu
entrechoque e n‹o na aplicaç‹o
-
mais ou menos perfeita
_
de um
esboço global de objetivos do Estado. O fenômeno espantoso, e
constante, de reviravoltas da polí tica governamental, feita de ace-
leraç› es e freadas, de recuos, de hesitaç› es, de permanentes mu- ,
danças, n‹o é devido a uma incapacidade de qualquer maneira ca-
racterí stica dos representantes e do alto pessoal burgu•s, mas é a
express‹o necess‡ria da estrutura do Estado.
Resumindo, entender o Estado como condensaç‹o material de
uma relaç‹o de forças, significa entend•-lo como
um campo e um
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processo estratégicos.
onde se entrecruzam núcleos e redes de poder
que ao mesmo tempo se articulam e apresentam contradiç› es e deca-
lagens uns em relaç‹o aos outros. Emanam daí táticas movediças e
contradit› rias, cujo objetivo geral ou cristalizaç‹o institucional se
corporificam nos aparelhos estatais. Esse campo estratégico
é
trans-
passado por táticas muitas vezes bastante explí citas ao ní vel restrito
onde se inserem no Estado, táticas que se entrecruzam, se combatem,
encontram pontos de impacto em determinados aparelhos, provocam
curto-circuito em outros e configuram o que se chama a polí tica" do
Estado, linha de força geral que atravessa os confrontos no seio do Es-
tado. Nesse ní vel, essa polí tica é certamente decifr‡vel como c‡lcu-
lo estratégico, embora mais como resultante de uma coordenaç‹o con-
flitual de micropolí ticas e táticas explí citas e divergentes que como
formulaç‹o racional de um projeto global e coerente.
, O Estado n‹ o constitu’ no entanto um simples conjunto de,
peças descartáveis: ele apresenta uma
unidade de aparelho,
isso que
se designa comumente pelo termo de centralizaç‹o ou
centralismo,
ligada desta vez ˆ unidade, através de suas fissuras, do poder de Es-
tado.
Isso se traduz por sua polí tica global e maciça em favor da
classe ou fraç‹o hegernônica, atualmente o capital monopolista. Mas
essa unidade de poder n‹o se estabelece por uma penhora f’sica dos
donos do capital monopolista sobre o Estado e por sua vontade coe-
rente. Essa unidade-centralizaç‹o está inscrita na ossatura hier‡rqui-
ca-burocratizada do Estado capitalista, efeito da reproduç‹o no seio
do Estado da divis‹o social do trabalho (inclusive sob a forma tra-
balho manual - trabalho intelectual) e de sua separaç‹o espec’fica
das relaç›es de produç‹o. Ela resulta também de sua estrutura de
condensaç‹o de uma relaç‹o de forças, logo do lugar preponderante
em seu seio da classe ou fraç‹o hegemônica sobre as outras classes
,
e fraç› es do bloco no poder. N‹o apenas essa hegemonia na relaç‹o
de forças está presente no seio do Estado, mas, da mesma maneira
que o bloco no poder s—pode funcionar a longo prazo sob a -hege-
monia e direç‹o de um de seus componentes que o unifique diante
do inimigo de classe, o Estado reflete essa situaç‹o. Sua organiza-
ç‹o estratégica leva-o a funcionar sob a hegemonia de uma classe ou
fraç‹o em seu pr—rio seio. O lugar privilegiado dessa classe ou fra-
ç‹o é, ao mesmo tempo, um elemento constitutivo de sua hegemo-
nia na constelaç‹o da relaç‹o de forças.
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A unidade-centralizaç‹o do Estado, em favor atualrnente do
capital monopolista, se estabelece portanto por um complexo pro-
cesso: por transformaç› es institucionais do Estado de tal ferma que
alguns centros de decis‹o, dispositivos e núcleos dominantes s—
podem ser perme‡veis aos interesses monopolistas instaurando-se
como centros de orientaç‹o da pol’tica de Estado e como pontos de
estrangulamento de medidas tomadas "alhures" (porém dentro do
Estado) em favor de outras fraç› es do capital. A relaç‹o de causali-
dade tem ali‡s aqui duplo sentido: a classe ou fraç‹o hegemônica
n‹o instaura apenas como aparelho dominante aquele que
j‡
tenha
cristalizado por excel•ncia seus interesses, mas também todo apare-
lho dominante de Estado (dominaç‹o, que pode advir de muitas ra-
z› es, e corresponde particularmente a relaç› es de hegemonia prece-
dentes e
ˆ
hist—ia concreta em questão) tende a longo prazo a ser a
sede privilegiada dos interesses da fraç‹o hegemônica e a encarnar
as modificaç›es da hegemonia. Essa unidade se estabelece por toda
uma cadeia de subordinaç‹o de determinados aparelhos a outros, e
pela dominaç‹o de um aparelho ou setor do Estado (o Exército, um
partido polí tico, um ministério etc.), o que cristaliza por excel•ncia
os interesses da fraç‹o hegemônica sobre outros setores ou apare-
lhos, centros de resist•ncia de outras fraç› es do bloco no poder. Esse
j
processo pode tomar assim a forma de toda uma série de subdeter-
,
minaç› es e de dissimulaç›es de alguns aparelhos em outros: deslo-
~
camento das funç› es e esferas de compet•ncia entre aparelhos e de- 1
calagens constantes entre
poder real
e
poder formal;
a forma de uma
efet’va rede transestatal que sobrepuja e provoca curto-circuito em
todos os n’veis, os diversos aparelhos e setores do Estado (é o caso
da DATAR na França atualmente), rede que cristaliza por excel•n-
cia, e por sua natureza, os interesses monopolistas; enfim pela sub-
vers‹o da organizaç‹o hier‡rquica tradicional da administraç‹o de
Estado, a dos circuitos de formaç‹o e de funcionamento de corpos-
destacamentos especiais de altos funcion‡rios de Estado, dotados de
um alto grau de mobilidade n‹o apenas interestatal mas igualmente
entre o Estado
e
os neg—ios monopolistas (X, ENA) e que, sempre
pela estratégia de importantes transformaç› es institucionais (atual
funç‹o dos famosos gabinetes ministeriais, do Comissariado de Pla-
nificaç‹o etc.), s‹o encarregados de (e levados a) colocar em aç‹o a
polí tica e em favor do capital monopolista.
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.Essas an‡lises permitem colocar agora um importante proble-
ma referente ˆ ascens‹o das massas populares e de suas organiza-
ç› es polí ticas ao poder, numa perspectiva de transiç‹o para o socia-
lismo. Certamente esse processo n‹o pode se deter na tomada do
poder de Estado e deve se estender ˆ
transformaç‹o dos aparelhos
de Estado: mas isso sup› e sempre a tomada do poder de Estado.
a)
Dada a complexidade de articulaç‹o dos diversos aparelhos
de Estado e de seus setores, o que com frequ•ncia se traduz em uma
distinç‹o entre poder real e poder formal (este, aparente, da cena po-
lí tica), o fato de a esquerda ocupar o governo n‹o significa forçosa
nem automaticamente que
a
esquerda controle realmente os, ou
mesmo alguns, aparelhos de Estado. Tanto mais que essa organiza-
ç‹o institucional do Estado permite
ˆ
burguesia, no caso do acesso
das massas populares ao poder, permutar os lugares do poder real e
poder formal.
b
Mesmo no caso em que a esquerda no poder, além de ocu-
par o governo, controle realmente os setores e aparelhos de Estado,
nem por isso ela controla forçosamente aqueles, ou um entre eles,
que det•m o papel dominante no Estado, que constituem o pivô cen-
tral
do poder real. A unidade centralizada do Estado n‹o reside numa
pir‰mide na qual bastaria ocupar o cume para garantir seu controle.
H‡ mais: a organizaç‹o institucional do Estado toma poss’vel ˆ bur-
guesia permutar o papel dominante de um aparelho por outro, no
caso em que a esquerda ocupando o governo conseguisse controlar
o aparelho que, até ent‹o, desempenhasse o papel dominante. De
outra maneira, essa organizaç‹o do Estado burgu•s lhe permite fun-
cionar por deslocamentos e substituiç› es sucessivas, dando condi-
ç› es para o deslocamento do poder da burguesia de um aparelho
para outro: o Estado n‹o é um bloco monolí tico, mas um campo es-
tratégico. Essa permutaç‹o do papel dominante entre os aparelhos
dada a rigidez dos aparelhos de Estado que os toma refratários
ˆ
uma simples manipulaç‹o por parte da burguesia, n‹o se faz certa-
mente do dia para a noite mas acompanha um processo mais ou
menos longo: essa rigidez e aus•ncia de maleabilidade também
podem assumir um papel desfavor‡vel
ˆ
burguesia e deixar um es-
paço para a esquerda no poder. Mas esta permutaç‹o n‹o tende
a
reorganizar a unidade centralizada do Estado em torno do novo apa-
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II. O ESTADO E AS LUTAS POPULARES
relho dominante, centro-refúgio por excel•ncia do poder burgu•s no
seio do Estado, mecanismo constantemente em marcha ao longo de
uma situaç‹o na qual a esquerda tenha o poder. Mecanismo comple-
xo que pode encobrir v‡rias formas algumas das quais aparentemen-
te paradoxais: particularmente a funç‹o decisiva que assumem re-
pentinamente aparelhos-instituiç› es que até ent‹o tinham um papel
perfeitamente secund‡rio sen‹ o simplesmente decorativo; a C‰mara
dos Lordes na Inglaterra derrotando recentemente os projetos de na-
cionalizaç‹o por parte do governo trabalhista, magistratura-tribunais
onde se descobrem repentinamente vocaç› es irrepreens’veis de ga-
rantia da "legalidade" (Allende), diferentes conselhos constitucio-
nais etc.
c)
Isso n‹o é tudo: as contradiç›es internas e os deslocamentos
entre poder real e poder formal n‹ o se situam unicamente entre os
diferentes aparelhos e setores do Estado, mais igualmente no seio de
cada um deles, no sentido em que o centro real de poder em torno
do qual cada aparelho se organiza n‹o se situa igualmente no cume
de sua hierarquia tal como se apresenta na cena da funç‹o pública:
isso vale tanto para a administraç‹o, polí cia ou exército. Do mesmo
modo, sen‹o mais, que em termos de aparelhos verticalmente cen-
tralizados,
é
preciso raciocinar aqui em termos de núcleos e focos de
poder real situados em lugares estratégicos dos diversos setores e
aparelhos de Estado. Mesmo quando a esquerda no poder consegue
controlar, em sua hierarquia formal, os devidos cumes, ou aparelhos
dominantes do Estado, resta saber se ela controla realmente seus nú-
cleos de poder real.
As divis› es internas do Estado, o funcionamento concreto de
sua autonomia e o estabelecimento de sua polí tica através das fissu-
ras que caracterizam-no, n‹o se reduzem ˆs contradiç› es entre as
classes e fraç› es do bloco no poder:
dependem da mesma maneira,
e mesmo principalmente, do papel do Estadofrente ˆ s classes
domi-
nadas. Os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemo-
nia ao estabelecer um
jogo
(vari‡vel) de compromissos provis—ios
entre o bloco no poder e determinadas classes dominadas. Os apare-
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lhos de Estado organizam-unificam o bloco no poder ao desorgani-
zar-dividir continuamente as classes dominadas, polarizando-as para
o bloco no poder e ao curto-circuitar suas organizaç› es polí ticas es-
pec’ficas. A autonomia relativa do Estado diante de tal ou qual fra-
ç‹o do bloco no poder
é
necess‡ria igualmente para a organizaç‹o
da hegemonia, a longo termo e de conjunto, do bloco no poder em
relaç‹o ˆ s classes dominadas, sendo imposto muitas vezes ao bloco
no poder, ou a uma ou outra de suas fraç› es, os compromissos ma-
teriais indispens‡veis a essa hegemonia.
Mas esse papel do Estado diante das classes dominadas, tanto
como seu papel frente ao bloco no poder, n‹o deriva de sua raciona-
lidade intrí nseca como entidade "exterior" ˆ s classes dominadas.
Ele está igualmente inscrito na ossatura organizacional do Estado
como condensaç‹o material de uma relaç‹o de forças entre classes.
O Estado concentra n‹o apenas a relaç‹o de forças entre fraç› es do
bloco no poder,
mas também a relaç‹ o de forças entre estas e as
classes
dominadas.
Se as an‡lises precedentes que se referem ˆ relaç‹o do Estado
e classes dominantes parecem facilmente aceit‡veis, existe em ge-
ral, e na esmagadora maioria dos casos, a tend•ncia de considerar que
o Estado constitui, em relaç‹o ˆ s classes dominadas, um bloco mo-
nolí tico que lhes é imposto de fora, e sobre o qual elas s—atuam cer-
cando-o e assediando-o de fora, como uma fortaleza imperme‡vel e
isolada delas. As contradiç› es entre classes dominantes e classes do-
minadas permaneceriam contradiç› es entre o Estado e as massas po-
pulares exteriores ao Estado. As contradiç› es internas do Estado n‹o
passariam de decorr•ncias das contradiç› es entre classes e fraç› es
.dominantes, a luta das classes dominadas n‹o seria uma luta presen-
te no Estado, consistindo simplesmente em press› es sobre o Estado.
Na realidade, as lutas populares atravessam o Estado de lado a lado,
e isso n‹o acontece porque uma entidade intrí nseca penetra-o do ex-
terior. Se as lutas polí ticas que ocorrem no Estado atravessam seus
aparelhos, é porque essas lutas estão desde j‡ inscritas na trama do
Estado do qual elas esboçam a configuraç‹o estratégica.
Certamen-
te, as lutas populares, e mais geralmente os poderes, ultrapassam de
longo o Estado:
mas por mais que elas sejam (e elas o s‹o) propria-
mente polí ticas, n‹o lhe s‹o realmente exteriores. Rigorosamente fa-
lando, se as lutas populares estão inscritas no Estado, n‹o é porque
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sejam absorvidas por uma inclus‹o num Estado-Moloch totalizante,
mas sim antes porque é o Estado que está imerso nas lutas que o sub-
mergem constantemente. Fica entendido no entanto que até as lutas
(e n‹o apenas as de classe) que extrapolam o Estado n‹o est‹o no
entanto "fora do poder", mas sempre inscritas nos aparelhos de
poder que as materializam e que, também eles, condensam uma re-
laç‹o de forças (as f‡bricas-empresas, a famí lia numa certa medida
etc.). Em raz‹o do encadeamento complexo do Estado com o con-
junto de dispositivos do poder, essas lutas mesmas t•m sempre efei-
tos, "a dist‰cia" desta feita, no Estado.
Assim a estrutura material do Estado em sua relaç‹o com as re-
laç› es de produç‹o, sua organizaç‹o hier‡rquica-burocr‡tica, repro-
duç‹o em seu seio da divis‹o social do trabalho, traduzem a presen-
ça especí fica, em sua estrutura, das classes dominadas e sua luta.
Elas n‹o t•m por simples objetivo afrontar, cara a cara, as classes
dominadas, mas manter e reproduzir no seio do Estado a relaç‹o do-
minaç‹o-subordinaç‹o: o inimigo de classe está sempre no Estado.
A configuraç‹o precisa do conjunto dos aparelhos de Estado, a or-
ganizaç‹o deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado concre-
to (exército, justiça, administraç‹o, escola, igreja etc.) dependem n‹o
apenas da relaç‹o de forças interna no bloco no poder, mas igual-
mente da relaç‹o de forças entre este e as massas populares, logo da
funç‹o que eles devem exercer diante das classes dominadas. O que
explica a organizaç‹o diferencial do exército, da polí cia, da igreja,
nos diversos Estados e que funciona como a hist—ia de cada um
deles, hist—ia que é também a marca impressa em seu arcabouço
pelas lutas populares.
Tanto
é
assim que
o
Estado, trabalhando para a organizaç‹o da
hegemonia, logo para a divis‹o e desorganizaç‹o das massas popu-
lares, faz de algumas delas, especialmente a pequena burguesia e as
classes populares camponesas, verdadeiras classes-de-apoio do
bloco no poder e curto-circuita sua aliança com a classe oper‡ria.
Essas alianças-compromissos, essa relaç‹o de forças, incorporam-se
no arcabouço de talou qual aparelho de Estado que desempenha
exatamente essa funç‹o. O aparelho escolar na França, por exemplo,
n‹o pode ser compreendido sem essa relaç‹o, nele concentrada, da
burguesia e da pequena burguesia, nem o exército sem a relaç‹o
entre burguesia e classes populares do interior. Enfim, se tal ou qual
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aparelho detém o papel dominante no seio do Estado (partidos polí -
ticos, parlamento, executivo, administraç‹o, exército), n‹o
é
apenas
porque ele concentre o poder da fraç‹o hegemônica, mas porque
ele consegue da mesma maneira, e ao mesmo tempo, cristalizar a
funç‹o polí tico-ideol—ica do Estado diante das classes dominadas.
Mas geralmente, as divis› es e contradiç› es internas do Estado, den-
tre seus diversos setores e aparelhos, no seio de cada um deles, no
pessoal de Estado, ocorrem também devido ˆ exist•ncia de lutas po-
pulares no Estado.
Ora, a exist•ncia das classes populares n‹o se materializa no
seio do Estado da mesma maneira que as classes e fraç› es dominan-
tes,
mas de maneira espec’fica.
As classes e fraç› es dominantes se constituem no Estado me-
diante aparelhos ou setores que, certamente sob a unidade do poder
de Estado da fraç‹o hegemônica, n‹o deixam de cristalizar um
poder pr—prio
dessas classes e fraç› es. N‹o é mediante aparelhos
que concentram um
poder pr—prio
das classes dominadas que elas
se constituem no Estado mas, no essencial, sob a forma de focos de
oposiç‹o ao poder das classes dominantes. Seria falso - deslize
com conseqü•ncias polí ticas graves
-
concluir que a presença das
classes populares no Estado significariam que elas a’ detenham
poder, ou que possam a longo prazo deter,
sem
transformaç‹ o
radi-
cal desse Estado.
As contradiç› es internas do Estado n‹o implicam,
como particularmente acreditam certos comunistas italianos," uma
"natureza contradit—ia" do Estado no sentido em que ele apresenta-
ria, atualmente, uma real situaç‹o de
duplo poder em seu pr—prio
seio:
o poder dominante da burguesia e o poder das massas popula-
res. Se esse poder das classes populares no seio de um Estado capi-
talista inalterado é imposs’vel, isso acontece n‹o apenas em raz‹o da
unidade do poder de Estado das classes dominantes, que deslocam
o centro do poder real de um aparelho para outro t‹o logo a relaç‹o
de forças no seio de um deles pareça oscilar para o lado das massas
populares, mas também em raz‹o do arcabouço material do Estado.
Esse arcabouço consiste em mecanismos internos de reproduç‹o da
relaç‹o dominaç‹o-subordinaç‹o: ela assegura a presença de classes
dominadas em seu seio, embora exatamente como classes domina-
das. Mesmo no caso de uma mudança da relaç‹o de forças e da mo-
dificaç‹o do poder de Estado em favor das' classes populares, o Es-
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tado tende, a curto ou longo prazo, a restabelecer sob nova forma,
algumas vezes, a relaç‹o de forças em favor
da
burguesia. E o remé-
dio para isso n‹o seria, como se diz freqüentemente, a "tomada" dos
aparelhos de Estado pelas massas populares, como se fosse o caso
de penetrar em alguma coisa
afinal
que seria até ent‹o externo a elas
e de fazer com que tudo mudasse apenas pela virtude de sua súbita
presença no interior da fortaleza. As classes populares sempre esti-
veram presentes no Estado, sem que isso tenha modificado jamais
alguma coisa no núcleo essencial desse Estado. A aç‹o das massas
populares no seio do Estado é a condiç‹o necess‡ria para sua trans-
formaç‹o, mas n‹o é o bastante.
Se as lutas populares est‹o constitutivamente presentes nas di-
vis› es do Estado sob as formas mais ou menos diretas da contradi-
ç‹o Classes dominantes-classes dominadas, elas o est‹o sob uma
forma mediatizada: isso devido ao impacto das lutas populares nas
contradiç› es entre classes e fraç› es dominantes em si mesmas. As
contradiç› es entre bloco no poder e classes dominadas interv•m di-
retamente nas contradiç› es no seio do bloco no poder. Para n‹o
tomar mais que um exemplo, a baixa tendencial da taxa de lucro,
elemento primordial de divis‹o no seio da classe capitalista (parti-
cularmente na medida em que uma contratend•ncia nesta baixa re-
side na desvalorizaç‹o de determinadas fraç› es do capital) n‹o
passa afinal da express‹o da luta das classes dominadas contra a ex-
ploraç‹o.
As diversas fraç› es do capital (capital monopolista, capital n‹o-
monopolista, capital industrial, banc‡rio ou comercial) n‹o tem pois
sempre as mesmas contradiç› es com as classes populares (ou uma
ou outra dentre elas), e suas atitudes polí ticas nesse aspecto n‹o s‹o
sempre id•nticas. As diferenças de
t‹tica,
ou mesmo de estratégia
polí tica, numa conjuntura dada ou a mais longo prazo, frente ˆ s
massas populares,
s‹ o um dos fatores primordiais de divis‹ o no seio
do pr—prio bloco no poder.
Isso se verifica ao longo da hist—ia do
capitalismo, e n‹o se pode deixar de mencionar as diferentes pol’ti-
cas seguidas, frente aos mesmos problemas, pelos diferentes Esta-
dos. Se é verdade que existe um acordo de fundamento entre as clas-
ses e fraç› es dominantes quanto ˆ sustentaç‹o e reproduç‹o da
dominaç‹o e exploraç‹o de classe, seria falso acreditar em um acor-
do sobre uma polí tica un’voca, a todo momento, diante das massas
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populares.
ƒ igualmente falso acreditar que as viradas da pol’tica
burguesa se reduzam aqui a uma simples questão de periodizaç‹o
hist—ica, como se, segundo os diversos perí odos e conjunturas, a
burguesia se alinhasse em bloco a tal ou qual soluç‹o polí tica. As
contradiç› es no seio do bloco no poder s‹o permanentes: elas se re-
ferem tanto a problemas relativamente secund‡rios quanto ˆs gran-
des opç› es polí ticas, inclusive as pr—rias formas de Estado a ins-
taurar frente ˆs massas populares, as escolhas entre formas de
Estado de exceç‹o (de guerra aberta contra as massas populares: fas-
cismos, ditaduras militares, bonapartismos) e formas de "democra-
cia parlamentar", ou entre essas últimas (por exemplo regimes de di-
reita cl‡ssicos ou regimes social-democratas). Nesse caso também,
a burguesia n‹o adere em bloco, e de maneira un’voca, a
talou
qual
soluç‹o (fascismo ou democracia parlamentar, regime de direita
cl‡ssico ou social-democracia).
Tanto é assim que, desta vez em sentido contr‡rio, as diversas
fraç› es do bloco no poder procuram muitas vezes, segundo suas pr—
prias contradiç› es com as massas populares. assegurar-se, por diver-
.
sas polí ticas, de seu apoio contra outras fraç› es do bloco. Ou seja.
utiliz‡-las em suas relaç› es de forças com as outras fraç› es desse
bloco, com o fim quer de impor soluç› es mais vantajosas para si,
quer de resistir mais eficazmente ˆs soluç› es que as prejudicam em
relaç‹o a outras fraç› es: compromissos do capital monopolista com
certas parcelas da classe oper‡ria ou com a nova pequena burguesia
(as camadas médias assalariadas) contra o capital n‹o-monopolista.
compromisso deste com a classe oper‡ria ou a pequena burguesia
tradicional (comerciantes, artes‹os) contra o capital monopolista.
Tudo isso que se condensa nas divis› es e contradiç› es internas do
Estado, entre seus diversos segmentos. redes e aparelhos, e no seio
de cada um deles.
Em resumo, as lutas populares est‹o inscritas na materialidade
institucional do Estado, mesmo se n‹o se esgotam a’, materialidade
que traz a marca dessas lutas surdas e multiformes. As lutas polí ti-
cas desencadeadas sobre o Estado n‹o est‹o, tanto quanto qualquer
luta frente aos aparelhos de poder, em posiç‹o de exterioridade fren-
te ao Estado, mas derivam de sua configuraç‹o estratégica: o Esta-
do, como é o caso de todo dispositivo de poder,
é
a condensaç‹o ma-
terial de uma relaç‹ o.
147
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III. PARA UMA TEORIA RELACIONAL DO PODER
Podemos considerar agora, no contexto mais geral da proble-
m‡tica do poder, a relaç‹o, ao mesmo tempo de converg•ncia e de
oposiç‹o, dessas an‡lises com as provenientes de horizontes dife-
rentes, particularmente as de Foucault. Quando Foucault estabelece
sua pr—ria concepç‹o de poder, ele toma como alvo de oposiç‹o ora
um certo marxismo que molda a seu jeito, caricaturando-o, ora o
marxismo particular ˆ 31 Internacional e ˆ concepç‹o stalinista que
muitos de n— critic‡vamos j‡ h‡ muito tempo. E continuaria a dis-
correr aqui em meu pr—rio nome: as observaç› es apresentadas até
agora retomam, desenvolvem e sistematizam an‡lises j‡ presentes,
através de suas evoluç› es, em meus textos de antes
da
publicaç‹o de
Vigiar
e
Punir
(1975) e A
vontade de Saber
(1976) de Foucault. Al-
guns de' n— n‹o esperaram Foucault para propor an‡lises do poder
com as 'quais, em alguns pontos, suas an‡lises coincidem agora, o
que s—é motivo de júbilo
Retomarei aqui apenas (anteriormente j‡ considerei outros as-
pectos) as an‡lises de Foucault referentes ao poder. Conhecemos as
grandes linhas. Elas prop› em uma concepç‹o do poder como situa-
ç‹o estratégica das relaç› es de forças numa sociedade dada: "O
poder n‹o é alguma coisa que se adquire, se subtrai ou se divide, al-
guma coisa que se guarde ou que se deixe escapar ... Sem dúvida h‡
que ser nominalista: o poder, isso que n‹o é uma instituiç‹o, n‹o é
uma estrutura, n‹o é uma determinada capacidade da qual alguns se-
riam dotados: é o nome que se d‡ a uma situaç‹o estratégica com-
plexa numa determinada sociedade ...
Aí
onde h‡ poder, h‡ resist•n-
cia e no entanto, ou até por isso mesmo, ela n‹o est‡ jamais em
posiç‹o de exterioridade em relaç‹o ao poder".
6
Essas posiç› es me
parecem justas por um lado:
1.
As an‡lises que fiz até aqui mostram que o poder em si n‹o
é
uma quantidade ou coisa que se possua, nem uma qualidade liga-
da
a
uma ess•ncia de classe, a uma classe-sujeito (a classe dominan-
te). J‡ insistia sobre esses pontos em Poder politico e classes so-
ciais,
especialmente no cap’tulo referente ao conceito de poder: nele
eu examinava certamente o poder apenas sob seu aspecto de reco-
brimento do campo da luta de classes, pois esse era meu objeto fun-
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damental, embora o importante
é
o que foi dito do poder nesse
campo. Por poder se deve entender a capacidade, aplicada ˆs classes
sociais, de uma, ou de determinadas classes sociais em conquistar
seus' interesses espec’ficos. O poder referido ˆ s classes sociais é um
conceito que designa o campo de sua luta, o das relaç› es
e
forças
e das
relaç› es
de uma classe com uma outra: os interesses de classe
designam o horizonte de aç‹o de cada classe em relaç‹o ˆ s outras.
A capacidade de uma classe em realizar seus interesses est‡ em opo-
siç‹o ˆ capacidade (e interesses) de outras classes:
o campo do
poder é portanto estritamente relacional.
O poder de uma classe (da
classe dominante por exemplo) n‹o significa uma subst‰cia que ela
tenha em m‹os: o poder n‹ o é uma grandeza quantific‡vel que as di-
versas classes partilhariam ou trocariam entre si segundo a velha
concepç‹o de poder-soma-zero. O poder de uma classe significa de
iní cio seu lugar objetivo nas relaç› es econômicas, polí ticas e ideo-
l—icas, lugar que recobre as pr‡ticas das classes em luta, ou seja as
relaç›es desiguais de dominaç‹o/subordinaç‹o das classes estabele-
cidas na divis‹o social do trabalho, e que consiste desde ent‹ o em
relaç› es de poder. O lugar de cada classe, portanto seu poder, é de-
limitado, ou seja ao mesmo tempo designado e delimitado, pelo
lugar das outras classes. î poder n‹o é portanto uma qualidade ima-
nente a uma classe em si no sentido de uma reuni‹o de agentes, mas
depende e provém de um sistema relacional de lugares materiais
Ocupados por tais ou quais agentes.
Mais particularmente o poder polí tico, cujo referencial é fun-
damentalmente o Estado, relaciona-se com a organizaç‹o de poder
.de uma classe e a posiç‹o de classe na conjuntura (entre outros fa-
.
tores, organizaç‹o em partido), com as relaç› es de classes constitu’-
das como forças sociais, logo com um campo estratégico propria-
mente falando. O poder polí tico de uma classe, sua capacidade de
concretizar seus interesses polí ticos, depende n‹o apenas de seu
lugar (de sua determinaç‹o) de classe em relaç‹o ˆs outras, mas tam-
bém de sua posiç‹o e estratégia diante delas, o que denominei como
estratégia do advers‡rio.
2. Contra a concepç‹o que Foucault e Deleuze atribuem ao
marxismo, eu também insistia sobre o fato de que o Estado n‹o é
uma coisa ou uma entidade com ess•ncia instrumental intrí nseca
149
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que deteria um poder-grandeza quantific‡vel, mas que reflete as re-
laç› es de classes e forças sociais. S—se pode entender por poder de
Estado o poder de algumas classes (dominantes), ou seja o lugar
dessas classes na relaç‹o de poder frente ˆs outras (dominadas), e,
ainda mais, na medida em que trata-se aqui de poder polí tico, a es-
tratégica relaç‹o de forças entre essas classes e suas posiç› es. O Es-
tado n‹o é nem o deposit‡rio instrumental (objeto) de um poder-es-
s•ncia que a classe dominante deteria, nem um sujeito que possua
tanta quantidade de poder que, num confronto face a face. o toma-
ria das classes: o Estado é o lugar de organizaç‹o estratégica da clas-
se dominante em sua relaç‹o com as classes dominadas. ƒ um lugar
e um centro de exercí cio do poder, mas que n‹o possui poder pr—
prio. Eu insistia no fato de que as lutas polí ticas, que se referem ao
Estado e que atuam sobre eles (pois as lutas populares n‹o se esgo-
tam nunca no Estado) n‹o lhes s‹o exteriores mas est‹o inscritas em
seu arcabouço, motivando conclus› es polí ticas. Essas an‡lises t•m
igualmente implicaç› es consider‡veis quanto ˆ questão da transiç‹o
para o socialismo, e é ali‡s a raz‹o pela qual nela me detenho.
Isso n‹o impede que subsistam diferenças fundamentais tam-
bém aqui entre o marxismo e as an‡lises de Foucault:
1 Se o poder tem por campo de constituiç‹o uma relaç‹o de-
sigual de relaç› es de forças, sua materialidade pelo menos n‹o se es-
gota nas modalidades de seu exerc’cio. O poder tem sempre umfun-
damento preciso; no caso de uma divis‹o das classes e quanto ˆ sua
luta: a) a
exploraç‹ o,
a extraç‹o da mais-valia no capitalismo; b) o
lugar das classes nos diversos aparelhos e dispositivos de poder, e
n‹o apenas no Estado; lugar que
é
essencial na organizaç‹o dos apa-
relhos fora dos pr—rios Estados; c) o aparelho de Estado que. se n‹o
inclui certamente o conjunto de aparelhos e dispositivos de poder,
n‹o fica no entanto insens’vel ˆqueles que estão fora de seu pr—rio
espaço. O campo relacional do poder referente ˆs classes está liga-
do por um sistema material de distribuiç‹o de lugares no conjunto
da divis‹o social do trabalho, e é determinado fundamentalmente .
(ainda que n‹o exclusivamente) pela exploraç‹o. De onde a divis‹o
em classes e, em decorr•ncia,
a luta
de classes e as
lutas
populares.
Por isso mesmo se pode considerar que
toda luta,
mesmo heterog•-
nea ˆ s lutas de classe propriamente ditas (luta homens-mulheres por
150
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exemplo), sem dúvida s—tem seu sentido numa sociedade em que o
Estado utiliza todo poder (a falocracia ou a famí lia no caso) como
dispositivo de poder de classe, na medida em que as lutas de classe
existem e permitem assim que outras lutas se desenrolem (o que
deixa intacta a questão da articulaç‹o, efetiva ou n‹o, desej‡vel ou
n‹o, dessas lutas com as lutas de classe).
Ora, para Foucault, a relaç‹o de poder n‹ o tem outro funda-
mento que n‹o ela mesma, tomando-se simples "situaç‹o" na qual o
poder é sempre imanente e a questão qual poder e para qu• lhe é ab-
solutamente perfunct—ia. O que tem em Foucault um resultado pre-
ciso, aporia nodal e absolutamente incontorn‡vel de sua obra: as fa-
mosas resist•ncias, elemento necess‡rio a toda situaç‹o de poder,
s‹o para ele asserç‹o propriamente gratuita no sentido em que n‹o
t•m' nenhum fundamento: elas s‹ o pura afirmaç‹ o de principio,
Como se diz freqüentemente, se pode deduzir de Foucault apenas
uma guerrilha e simples desgastes esparsos frente ao poder, porque
n‹o h‡, a partir de Foucault, nenhuma resist•ncia poss’vel. Se o
poder está desde então sempre a’, se toda situaç‹o de poder é ima-
nente a si mesma,
por que haveria resist•ncia?
De
onde
viria essa re-
sist•ncia e
como ela seria possivel?
Velha quest‹o
ˆ
qual, sabemos,
a filosofia polí tica tradicional respondia por meio dos direitos natu-
rais e do pacto social; mais pr—imo de n—, est‡ Deleuze, por meio
do desejo-fundador, o que n‹o é decerto a boa resposta, mas pelo
menos é uma. Para Foucault esta quest‹o continua sem resposta.
Por mais que se queira, essa absolutizaç‹o do poder que se re-
fere sempre a si mesma induz inelutavelmente ˆ idéia de um Senhor-
Poder, fundador primeiro de toda luta-resist•ncia. As lutas s‹o ent‹o
originalmente e constitutivamente pervertidas pelo poder do qual
s‹o apenas uma simples recapagem, sen‹o uma legitimaç‹o. Entre
a imposs’vel naturalidade da resist•ncia em Foucault e a atuaI con-
cepç‹o de um poder (Estado) como perenidade do Mal radical, a dis-
tância
é
menor que se pode pensar. Toda luta s—pode assim alimen-
tar o poder sem jamais subvert•-lo, pois essa luta n‹o tem nunca
outro fundamento que n‹o sua pr—ria relaç‹o com o poder, ou seja
nenhum outro fundamento que n‹o o pr—rio poder. Nossos "novos
fil—ofos", especialmente B. H. Lévy, podem legitimamente se re-
clamar de Foucault ao despontarem, mais que como sua última con-
seqü•ncia, como sua última verdade.
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ç›es
eletivas, s‹ofisicamente mantidas a dist‰cia de aparelhos tais
como a polí cia, a magistratura ou a administraç‹o.
Mas, nesses últimos casos, as lutas pol’ticas n‹o ficam real-
mente exteriores ao campo estratégico do Estado. Mesmo nos casos
em que as massas estão fisicamente exclu’das de certos aparelhos,
essas "lutas sempre t•m efeito em seu seio, ainda que esses efeitos se
manifestem, aqui, de qualquer maneira a dist‰cia e entremeados
por pessoas (o pessoal do Estado). Esses contornos de exclus‹o f’si-
ca das massas populares do Estado n‹o devem, também aqui, ser en-
tendidos como trincheiras e muralhas de isolamento de um Estado-
fortaleza assediada apenas do exterior, em suma, como barreiras que
formam uma verdadeira barragem do Estado diante das lutas popu-
lares, segundo duvidosas metáforas topogr‡ficas. Trata-se antes de
uma
série de painéis que comprovam ser anéis de repercuss‹ o das
lutas populares no Estado. Isto é observado, hoje mais do que nunca,
em aparelhos tais como a polí cia, a magistratura ou a administraç‹o,
divididas e atravessadas por lutas populares. ƒ observado de manei-
ra mais n’tida ainda em determinadas formas de Estado, em que se
constata um fenômeno aparentemente paradoxal e inexplic‡vel se
n‹o se leva em conta que as lutas populares est‹o de qualquer ma-
rieira, e sempre, inscritas no Estado. Constatou-se isso nos casos de
ditaduras militares que grassavam, ainda h‡ pouco tempo, em Por-
tugal, na Grécia e na Espanha. Contrariamente aos regimes fascistas
tradicionais que, inclu’am certas classes populares em seu pr—rio
seio por meio dos partidos e sindicatos fascistas de massas, elas fi-
caram sempre distanciadas dessas massas ou foram mantidas a dis-
tância por elas. Ora, elas n‹ o s—n‹o ficaram verdadeiramente afas-
tadas
das
lutas populares, mas também foram mais atingidas por
isso como nunca o foram os regimes fascistas. Por sinal, elas n‹o
foram abatidas a golpe de ataques frontais, abertos e maciços, como
as organizaç› es de resist•ncia a esses regimes tinham preconizado,
mas a golpe de suas
contradiç› es e divis› es
internas, das quais as
massas populares foram, ainda que a dist‰cia, o fator principal.
2. Fazer ou n‹o o jogo do poder, integrar-se ou n‹o ao Estado,
depende portanto da estratégia polftica seguida, mesmo que, para
Foucault é o fato da "plebe" estabelecer para si uma estratégia que
a "integra" no poder substancializado, que a faz abandonar o fora-
..
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de-lugar absoluto do poder, n‹ o-lugar de fato, para reintegr‡-la em
suas linhas. Contudo:
a)
ƒ sabido que essa estratégia deve ser fundamentada na au-
tonomia das organizaç› es das massas populares: mas atingir essa
autonomia n‹ o significa para as organizaç› es sair do terreno estra-
tégico da relaç‹o de forças que é o Estado-poder, assim como para
as outras organizaç› es (sindicais ou qualquer outra) colocar-se fora
dos dispositivos de poder correspondentes, como se isso fosse pos-
s’vel, segundo a velha ilus‹o anarquista, no melhor sentido do
termo. Organizar-se no campo do poder n‹o significa, tanto num
caso como noutro, que essas organizaç› es devam inserir-se direta-
mente no espaço f’sico das instituiç› es (isso depende das conjuntu-
ras), nem, o que também acontece, que elas devam reproduzir sua
materialidade (muito pelo contrário).
b) ƒ sabido igualmente que as massas populares devem, para-
lelamente a sua eventual presença no espaço f’sico dos aparelhos de
Estado, manter e desenvolver permanentemente focos e redes a dis-
t‰cia desses aparelhos: movimentos de democracia diretamente na
base e redes de autogest‹o. Mas estes n‹o se situam, por mais que
visem aos objetivos polí ticos, nem fora do Estado nem, de qualquer
maneira, fora do poder, conforme as ilus› es simplistas de uma pu-
reza antiinstitucional. E ainda: colocar-se a qualquer preço fora do
Estado quando se pensa em situar-se por isso fora do poder (o que é
ent‹o imposs’vel) pode ser muitas vezes exatamente o melhor meio
de deixar o campo livre para o estatismo, em suma, recuar nesse ter-
reno estratégico diante do advers‡rio.
IV.
O PESSOAL DO ESTADO
Essas an‡lises tornam-se mais n’tidas ainda se considerarmos
agora
o
pessoal do Estado. Seu caso mostra que as lutas de classe si-
multaneamente atravessam e constituem o Estado, revestindo-o de
uma forma especí fica, e que essa forma está relacionada com a os-
satura material do Estado.
As contradiç› es de classe se inscrevem no seio do Estado por
meio também das
divis› es internas no seio do pessoal de Estado em
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amplo sentido
(diversas burocracias estatais, administrativa, judici‡-
ria, militar, policial etc.). Mesmo se esse pessoal constitui uma
ca-
tegoria social detentora de uma unidade pr—ria, efeito da organiza-
ç‹o do Estado e de sua autonomia relativa, ele n‹o deixa
di
deter um
lugar de classe (n‹o se trata de um grupo social
ˆ
parte ou acima das
classes) e
é,
ent‹o, dividido. Lugar de classe diferente da origem de
classe (ou seja das classes de onde esse pessoal se origina) e que est‡
relacionado
ˆ
situaç‹o desse pessoal na divis‹o social do trabalho tal
como ela se cristaliza no arcabouço do Estado (inclusive sob a
forma de reproduç‹o espec’fica da divis‹o trabalho intelectual/tra-
balho manual no pr—rio seio do trabalho intelectual concentrado no
Estado): incumbência ou lugar de classe burguesa para as altas esfe-
ras desse pessoal, pequena-burguesia para os escal› es intermedi‡-
rios' e subalternos dos aparelhos de Estado.
As contradiç› es e divis› es no seio do bloco no poder repercu-
tem portanto no seio das altas esferas do pessoal do Estado. Mais:
uma vez que amplas parcelas desse pessoal s‹o da pequena bur-
guesia, as lutas populares forçosamente afetam-no, As contradiç› es
classes dominantes-classes dominadas repercutem como distancia-
mentos dessas parcelas do pessoal de Estado com a cúpula especifi-
camente burguesa, e se manifestam como fissuras, rupturas e divi-
s› es no seio do pessoal e aparelhos de Estado. Certamente essas
divis› es n‹o se referem apenas
ˆ
relaç‹o geral de forças, mas igual-
mente ˆs reivindicaç› es especí ficas desse pessoal na divis‹o do
trabalho no seio do Estado. Seguramente, também, as contradiç› es
classes dominantes-classes dominadas se refletem no seio do pes-
soal do Estado de maneira complexa, devido
ˆ
especificidade desse
pessoal enquanto categoria social diferente. Isso n‹o impede que as
contradiç› es de classe existam de algum modo em seu seio. As lutas
das massas populares n‹o atingem o pessoal do Estado apenas quan-
do as massas est‹o fisicamente presentes nos aparelhos de. Estado,
ou apenas nos aparelhos dos quais elas façam parte: esse seria o caso
se se tratasse de fazer, por simples press› es e contatos, pender para
seu lado grupos e grupamentos acima ou
ˆ
parte das classes. A luta
de classes est‡ presente nos aparelhos de Estado, mesmo quando se
expressa a distância: o pessoal de Estado est‡ desde ent‹o, em raz‹o
do seu ser-de-classe, na luta de classes. A luta das diversas classes
populares atravessa ali‡s o Estado de maneira diferenciada: visto
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serem da pequena-burguesia os escal› es intermedi‡rios e subalter-
nos do pessoal dos aparelhos de Estado. s‹o as contradiç› es e posi-
ç› es da pequena-burguesia, em suas relaç› es com as classes domi-
nantes, que os atingem diretamente. As lutas da classe oper‡ria a’
repercutem geralmente através das relaç› es desta (conflituais ou de
aliança) com a pequena burguesia.
As lutas das massas populares regulam de maneira permanen-
te a unidade do pessoal de Estado a serviço do poder e da fraç‹o he-
gemônica. Essas lutas se revestem de formas espec’ficas: moldam-
se no arcabouço material do Estado. segundo a trama de sua
autonomia relativa e n‹o correspondem, ponto por ponto, nem de
maneira un’voca,
ˆs divis› es na luta de classes. Elas tomam fre-
qüentemente a forma de "querelas" entre membros de diversos apa-
relhos e setores do Estado, devido ˆs fissuras e reorganizaç› es do
Estado no contexto geral das contradiç› es de classe, a forma de fric-
ç› es entre cliques, facç› es ou diversos corpos do Estado no seio de
cada setor e aparelho. Mesmo quando as posiç› es de classe repercu-
tem no seio do pessoal de Estado através de uma politizaç‹o direta
e mais n’tida desse pessoal, isso é sempre encaminhado por vias par-
. ticulares, em raz‹o da maneira pr—ria pela qual a divis‹o social do
trabalho se reproduz no seio deste ou daquele aparelho de Estado
(esse processo toma formas diferentes, por exemplo, no exército, no
sistema escolar, na polí cia ou na Igreja) mas em raz‹o igualmente
dos mecanismos ideol—icos no seio dos aparelhos.
A ideologia, dominante, que o Estado reproduz e inculca, tem
igualmente por funç‹o constituir o
cimento interno
dos aparelhos de
Estado e da unidade de seu pessoal. Esta ideologia é precisamente a
do Estado neutro, representante da vontade e do interesse gerais, ‡r-
bitro entre as classes em luta: a administraç‹o ou a justiça acima das
classes, o exército pilar da naç‹o, a pol’cia garantia da ordem repu-
blicana e das liberdades dos cidad‹os, a administraç‹o motor da efi-
ci•ncia e do bem-estar geral. ƒ a forma que reveste a ideologia do-
minante no seio dos aparelhos de Estado: mas esta ideologia n‹o
domina inteiramente pois os subconjuntos ideol—icos das classes
dominadas estão também cristalizados, sob a domin‰cia desta
ideologia, nos aparelhos de Estado. Esses temas da ideologia domi-
nante s‹o freqüentemente entendidos por amplas camadas do pes-
soal de Estado como o que lhes compete no estabelecimento da jus-
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tiça social e da "igualdade de chances" entre os cidad‹os, no resta-
belecimento de um "equil’brio" em favor dos "fracos" etc. As lutas
populares, que forçosamente revelam a natureza real do Estado aos
olhos de agentes predispostos, por sua origem de classe, a enxergar
mais claramente, acentuam assim consideravelmente as divis› es,
contradiç› es e clivagens no seio do pessoal de Estado. Ainda mais
que essa luta se articula, no mais das vezes, com as reivindicaç› es
espec’ficas do pessoal de Estado.
Tudo isso é verdadeiro a despeito dos limites da politizaç‹ o
do pessoal do Estado
devido
ˆ
maneira pela qual
a
luta de classe se
reflete em seu seio.
Os agentes do pessoal de Estado que pendem para as massas
populares vivem comumente suas revoltas nos termos da ideologia
dominante, tal como ela se corporifica na os satura do Estado. O que
quase sempre coloca-os contra as classes dominantes e as esferas su-
periores do Estado, é que a dominaç‹o de grandes interesses econô-
micos sobre o Estado
põe
em quest‹o seu papel de garantia da
"ordem" e da "eficacidade" socioeconômica, destr— a "autoridade"
estatal e o sentido das tradicionais 'hierarquias" no seio do Estado.
Eles interpretam o aspecto, por exemplo, de uma democratizaç‹o do
Estado n‹o como uma intervenç‹o popular nos neg—ios públicos,
mas como uma restauração de seu pr—rio papel de ‡rbitros acima
das classes sociais. Eles reivindicam uma "descolonizaç‹o" do Es-
tado em relaç‹o aos grandes interesses econômicos, o que, a seu ver,
significa o retomo a uma virgindade, supostamente poss’vel, do Es-
tado que lhe permita assumir seu pr—rio papel de direç‹o polí tica.
Assim, mesmo os grupos do pessoal de Estado que se inclinam
para as massas populares n‹o apenas n‹ o colocam em quest‹o
a
re-
produç‹o da divis‹o social do trabalho no seio do aparelho estatal
-
'a burocratizaç‹o hier‡rquica
-
mas, além disso, geralmente n‹o
d‹o importância
ˆ
divis‹o polí tica dirigentes-dirigidos enraizada no
Estado. Ou seja, n‹o levam até ˆ s últimas conseqü•ncias seu pr—rio
papel e lugar diante das massas populares. Nada mais evidente que
a profunda desconfiança que as iniciativas das massas de tipo auto-
gestoras ou de democracia direta despertam nesses grupos do pes-
soal de Estado, ali‡s favor‡veis ˆ sua democratizaç‹o.
Esses limites da politizaç‹o do pessoal de Estado n‹o passam
de efeitos do arcabouço material do Estado sobre ele, e s‹o conse-
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qüentemente consubstanciais ao lugar pr—rio desse pessoal na divi-
s‹o social do trabalho. Esses limites inerentes ˆs pr‡ticas do pessoal
de Estado s—podem ent‹o ser transpostos sob a condiç‹ o única de
uma transformaç‹ o radical deste arcabouço institucional, e na pro-
porç‹o desta transformaç‹o. De encontro a toda uma série de ilu-
s› es, a tend•ncia esquerdizante de apenas uma parte do pessoal de
Estado n‹o basta, longe disso, para a transformaç‹o da relaç‹o Es-
tado-massas populares. A soluç‹o para esse problema n‹o está na
simples substituiç‹o do pessoal de Estado, quer sob a forma de ocu-
paç‹o de postos-chave do Estado por militantes "devotados ˆ causa"
das massas populares, quer, mais prosaicamente, sob a forma de
democratizaç‹o do recrutamento desse pessoal favor‡vel a agentes
de
origem de classe
popular. Essas medidas n‹o s‹o in—uas, mas
tomam-se secund‡rias diante do problema mais fundamental, que é
o da transformaç‹o do Estado em suas relaç› es com as populares.
Na aus•ncia de uma tal transformaç‹o, quase se pode dizer que esse
novo pessoal certamente acabar‡, ou começará, colocando-se
ˆ
altu-
ra de sua funç‹o e reproduzindo as pr‡ticas decorrentes da estrutura
do Estado: os exemplos hist—icos abundam.
Se é preciso transformar o Estado a
fim
de poder modificar as
pr‡ticas de seu pessoal, em que medida se pode contar, nessa trans-
formaç‹ o do aparelho de Estado. com o pessoal que se inclina para
as massas populares?
E, é claro, h‡ que observar-se aqui as resist•n-
cias desse mesmo pessoal de Estado, para n‹o dizer do pessoal que
continua fiel a seu papel de c‹o de guarda do bloco no poder. Em
raz‹o de seu lugar na divis‹o social do trabalho personificada pelo
Estado, esse pessoal s—tende, no mais das vezes, para as massas po-
pulares (pelo menos num primeiro momento) apenas sob a condiç‹o
de uma determinada continuidade que sustente o Estado. E ele até
mesmo tende muitas vezes para as massas populares para que esta
continuidade do Estado seja assegurada, continuidade que preserve
o Estado. E mais ainda: ele tende muitas vezes para o lado das mas-
sas populares para que esta continuidade do Estado seja assegurada,
continuidade que lhe parece ser colocada em questão pela influ•n-
cia dos grandes interesses ou "feudalidades" econômicas sobre o Es-
tado, e as rupturas e revoltas que ela provoca no corpo social ou "na-
cional". Esta atitude, constantemente verificada, n‹o se atém apenas
ˆ defesa de privilégios corporativistas ali‡s evidentes. Se a burocra-
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cia de Estado tem igualmente interesses pr—rios, os da sua ‡rea, a
defender. a tal ponto que se possa falar de um "interesse pela esta-
bilidade'" do Estado pr—rio do conjunto de seu pessoal, isso n‹o
é
o essencial. Paralelamente ˆ consider‡vel, nos dias de hoje, exten-
s‹o desse pessoal de Estado. os privilégios da funç‹o pública s‹o
postos em questão por uma importante parcela desse pessoal. Mas
se esta situaç‹o favorece incontestavelmente sua politizaç‹o para
a
esquerda, parece certamente apontar sempre os limites relativos ao
arcabouço material do Estado. Todas essas coisas t•m incid•ncias
pol’ticas no que tange a uma transiç‹o para um socialismo democr‡-
tico: como apoiar-se nesse fator, hoje em dia decisivo, de politiza-
ç‹o esquerdizante de amplas parcelas do pessoal de Estado, consi-
derando esses limites e "preparando" esse pessoal sempre suscet’vel
a tender para a direita, sem perder de vista porém as necess‡rias
transformaç› es do Estado? ƒ o que remete, é claro, ao problema das
formas, dos meios e ritmos de
.transformaç‹o
deste aparelho.
Para fechar esta parte: apenas essa concepç‹o te—ica do Esta-
do, apenas essa teoria do Estado capitalista pode explicar as formas
diferenciais e as transformaç› es deste Estado. Ela, unicamente,
pode articular os efeitos no Estado, ao mesmo tempo das modifica-
ç› es das relaç› es de produç‹o/divis‹o social do trabalho e modifi-
caç› es nas lutas de classes, mais particularmente lutas polí ticas. So-
mente quando se percebe a inserç‹o da dominaç‹o polí tica no
arcabouço material do Estado enquanto condensaç‹o de uma relaç‹o
de força
é
que se pode romper com a formaç‹o dogm‡tica de g•ne-
ro "todo Estado capitalista é um Estado da burguesia", e compreen-
der o complexo papel da luta polí tica na reproduç‹o hist—ica desse
Estado. Eu me satisfaria em evocar os campos que a aplicaç‹o das
an‡lises precedentes pode contribuir para esclarecer.
1.
De iní cio, a especificidade, por meio de sua reproduç‹o his-
t—ica e suas transformaç› es, do Estado e de seus diversos aparelhos
e setores num dado paí s: o Estado franc•s, por exemplo. Se esse Es-
tado efetiva as determinaç› es gerais do Estado capitalista em suas
relaç› es com as relaç› es de produç‹o e com suas transformaç› es,
ele n‹o deixa de apresentar particularidades pr—rias que caracteri-
zam-no ao longo de suas transformaç› es. Essas particularidades n‹o
podem ser compreendidas, por sua vez, sen‹o quando se considera
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a.
Entre as formas do Estado.segundo os est‡gios e fases do ca-
pitalismo: Estado liberal do capitalismo mercantilista, Estado inter-
vencionista do capitalismo monopolista-imperialista, Estado da fase
atual do Capitalismo monopolista.
b.
Entre o Estado democr‡tico-parlamentar
e
o
Estado de ex-
ceç‹o (fascismos, ditaduras militares, bonapartismos), segundo
esses estágios ou fases.
c. Entre as diversas formas deste Estado democr‡tico-parla-
mentar (presidencialismo, parlamentarismo etc.), e entre as diversas
formas do Estado de exceç‹o.
3. Apenas essa linha de pesquisa permite ent‹o analisar a atual
forma do Estado nos paí ses capitalistas desenvolvidos: o
estatismo
autorit‡rio.
Esse ser‡ o objeto da última parte desse texto.