11
REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 195 O POVOAMENTO DO . CARIRI CEARENSE TH. POMPEU SOBRINHO O povcamento de atual território do Ceará não foi uma conse- qüên:ia imediata da defecção holandesa. Esta possibilitou a expansão da criação de gado nos sertões nordestinos, dando luga a ocupação de vastos tratos dêstes ásperos rincões na Parafa, Rio Grande do Norte e Ceará. Êste proces�c foi lento e crivado de peripécias mui- tas vêzes dramáticas. Quando atingiu o vale dos Cariris-Novos, em geral, já ninguem se lembrava mais das lutas holandesas que apenas, esporàdicamente, davam lugar à criação de lendas. Desde alguns anos, provectos estudiosos dos nossos fastos dis- cutem alguns pontos interessantes do povoamento colonial do Carirí cearense: - a data em que teriam, inicialmente,. penetrado no vale os primeiros colonizadores, bem como a sua origem ou proveniência. O povoamento o Ceará começcu com gente vinda do leste nor- destino. Os pretendentes à exploração do território entravam por diversos caminhos, que se podem assinalar na linha fronteira do le- vante; chegavam do io Grande do Norte, da Paraíba e principal· mente de Pernambuco. A mais antiga estrada que conduzia às plagas cearenses era a do litoral, teatro de notáveis e dramáticos acontecimentos. Apesar de muito distante, ês . te caminho não é de desprezível influência no po- voamento do alto Jaguaribe, vale do Cariri ou cabeceiras do rio Sal- gado, como julgam alguns historiógrafos. Abria-se outra estrada de bem menor importância ao sul da terra do Apodi, e ganhava o vale do rio Figueiredo. A terceira porta é a do, Umari, na altura do baixo vale do rio Salgado; os imigrantes vinham diretamente do Rio do Peixe, na Paraíba. A sua valia no povoamento dêste rio não pode ser desrezível. Finalmente, há a considerar outras estradas através da fronteira da Paraíba e mais ao sul da de Pernambuco, palmi- lhadas por advenas do São Francisco, da Bahia, de Pernambuco e até mesmo, embora raramente, da Paraíba. A primeira sobretudo e em seguida estas últimas são as que mais diretamente interessam o povoamento coloniaL do Cariri. Alguma� destas estradas do meio dia teriam passado por Vila- Bela que fica à margem do rio Pajeú, por cujo vale subiam os agenciadores e perseguidores de indio� do São Francisco. Partindo

POVOAMENTO DO . CARIRI CEARENSE - Academia Cearense de Letras · cutem al

Embed Size (px)

Citation preview

REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 195

O POVOAMENTO DO . CARIRI CEARENSE TH. POMPEU SOBRINHO

O povcamento de atual território do Ceará não foi uma conse­qüên-::ia imediata da defecção holandesa. Esta possibilitou a expansão da criação de gado nos sertões nordestinos, dando lugar> a ocupação de vastos tratos dêstes ásperos rincões na Parafl1la, Rio Grande do Norte e Ceará. Êste proces�c foi lento e crivado de peripécias mui­

tas vêzes dramáticas. Quando atingiu o vale dos Cariris-Novos, em geral, já ninguem se lembrava mais das lutas holandesas que apenas, esporàdicamente, davam lugar à criação de lendas.

Desde alguns anos, provectos estudiosos dos nossos fastos dis­cutem alguns pontos interessantes do povoamento colonial do Carirí cearense: - a data em que teriam, inicialmente,. penetrado no vale os primeiros colonizadores, bem como a sua origem ou proveniência.

O povoamento cio Ceará começcu com gente vinda do leste nor­destino. Os pretendentes à exploração do território entravam por diversos caminhos, que se podem assinalar na linha fronteira do le­vante; chegavam do .!:tio Grande do Norte, da Paraíba e principal· mente de Pernambuco.

A mais antiga estrada que conduzia às plagas cearenses era a

do litoral, teatro de notáveis e dramáticos acontecimentos. Apesar de muito distante, ês

.te caminho não é de desprezível influência no po­

voamento do alto Jaguaribe, vale do Cariri ou cabeceiras do rio Sal­gado, como julgam alguns historiógrafos. Abria-se outra estrada de bem menor importância ao sul da terra do Apodi, e ganhava o vale do rio Figueiredo. A terceira porta é a do, Umari, na altura do baixo vale do rio Salgado; os imigrantes vinham diretamente do Rio do Peixe, na Paraíba. A sua valia no povoamento dêste rio não pode ser desf)rezível. Finalmente, há a considerar outras estradas através da fronteira da Paraíba e mais ao sul da de Pernambuco, palmi­lhadas por advenas do São Francisco, da Bahia, de Pernambuco e até mesmo, embora raramente, da Paraíba. A primeira sobretudo e

em seguida estas últimas são as que mais diretamente interessam o povoamento coloniaL do Cariri.

Alguma� destas estradas do meio dia teriam passado por Vila­Bela que fica à margem do rio Pajeú, por cujo vale subiam os agenciadores e perseguidores de indio� do São Francisco. Partindo

196 REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS

desta antiga fazenda, um. camínho ia a Belmonte, e pelo vale do rio S. Cristóvão alcançava uma garganta na extrema do Ceará, cuja altitude se ccnhece atualmente: 550 metros. Dali chegava ao riacho dos Porcos (Macapá, hoje Jati). Do Pajeú, os desbravadores diri­gi-am-se para a bacia do Piranha, ao norte, no alto sertão da Pa­raíba. Entre 1690/9!> já ali havia estado Domingos Jorge Velho, estabeleciclg no Piancó, com um considerável trôço de homens de armas, provàvelmente vindo do Piauí, volteando, ao que parece, pelo São Francisco.

É poss�vel que .Tcrge Velho, audaz sertanista, tenha obtido in­formações do vale do Cariri, ou mais particularmente das terras do riacho dos Porcos, dali distante cêrca de 120 quilómetros. Por en­gano, Joaquim Alves registra apenas 30.

Presume-se,'

com bons fundamentos, que do alto Piranhas, pcuco mais tarde, um caminho se dirigisse diretamente para o ria­cho dos Porcos pelo lugar que depois se chamou Conceição. Devia passar ao sul da serra do Cachorro-Morto, alcançava aqtlêle riacho e daí atingia o vale do Batateira.

Um dos vales secundários do São 'Francisco, por onde também os bandeirantes subiam para o norte, é o do riacho Terra-Nova, em cujas cabeceiras está o velho lugar Salgueiro. Por ali passava uma antiga estrada para o Podimirim (trecho meridional do Riacho dos Forces). Galgava a fronteira cearense, numa garganta com alti­tude de 48.0 metros e dirigia-se pelo pequeno vale do riacho Oitis para Macapá, e daí, subindo o ri<:�cho dos Porcos, alcançava a serra do Araripe.

Todos êstes caminhos concorreram para o povoamento eecun­

clário do Cariri, no comêço do século XVIII.

Parece que, realmente no últ_imo quartel do século anterior, bandeirantes que devassavam os sertões ocidentais de P�rnambuco haviam alcançado as escarpas mEridionais da serra do Araripe; no lugar Exu (velho), deixaram vestígios da sua passagem. Teriam ali chegado subindo o riacho da Brígida. Mas não há notícia positiva que tenham transposto a chapada para atingir, do outro lado, o v.ale do Cariri. As suposições de Joaquim Alves (em seu belo trabalho O VALE DO CARIRI) não se sustificam neste ponto.

O certo é que, nas últimas décadas do século XVII, os persegui­deres de índios do São Francisco que invadiram os altos sertões da Paraíba e Pernambuco, em missão, mais de guerra que de colo­nização, e sem dúvida também os bandeirantes paraíbanos (Oliveira Lêdo e Soares), não chegaram ao sul do Ceará. :ll:les ou os seus cabos, nas suas apressadas excursões ou batidas aos índios aproximaram-se muito das fronteiras do Ceará ao sul e a sudoeste. :ll:stes pioneiros do des· bravamente ocidental da Paraíba - e das terras pernambucanas nas

HEVISTA DA AÇADEMIA CEARENSE DE LETRAS 197

cabeceiras d·.::>s afluentes setentrionais do médio S. Francisco não se fi­xaram às terras violentamente conquistadas aos indígenas, salvo pcssi­velmente, casos raros, em lugares defensáveis ou que assim julgassem �er. As concessões de sesmarias no fim do XVII século, confirmam plenamente o asserto.

Entretanto, os conquistadores colhiam informações mais ou menos seguras das terras da bacia do rio Salgado, no S-W do Ceará; e, certamente, divulgavam alhures as impressionantes con­dições físicas, a fertilidade do solo, a abundância da água· no verão

·e out;ãs vantagens destas paragens privilegiadas. Sabia-se que, então, o rio Salgado levava perenemente um bom contingente líquido ao Jaguaribe, fazendo-o defluir até uma grande distância, natural­mente variável com a pluviosidade do ano. As crônicas registam que ainda nc comêço do século passado o Salgado corria todo ano até o lcó.

Somente tais notícias de boas terras e dos brejos do Cariri ex­plicam a razão por que algumas sesmarias foram requeridas no ria­cho dos Porcos, no período de 1687- 1689, e mesmo depois, sem que lograssem povoamento ou ao menos a posse mesmo fictícia dos con­cessionários. Isto consta da informação dada pelo escrivão da Fa­zenda Real à petição de Bento Correia e Simão Correia solicitando, em 1704, terras do riacho dos Porcos qtle estavam, como diz aquêle escrivão, «desertas e desaproveitadas, sem rendimento nenhum a Real Corôa:.. Ora, estas terras ficavam situadas no caminho do vale do Cariri, eram férteis e de águas perenes, portanto, das mais am­bicionadas. Possuímos assim um documento inconcusso, insuspeito � expressivo que nos diz autorizadamente qu� até à penúltima década do século XVII, não existiam povoadores brancos ou seus descen­dentes no Cariri.

Relativamente à última décadc. ( 1690 a 1700), podemos, em pri­meiro lugar, invocar a circunstância i!l'l.portante de que nos registras de sesmarias do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Bahia não consta nenhuma concessão de terras no sul do Ce"trá, intere�sando o vale do Cariri.

Com a defecção forçada dos índios dos ser�ões de Piranhas e das cabeceiras dos riachos pern.:�mbucanos afluentes do São Fran­cisco, do Pajeú ao da Brígida, no último quartel do séçulo XVII, tornara-se possível o estabelecimento de algumas estâncias. ou currais na região, pro�àvelmente desde o comêço da úJtima década 01.1, mesmo um pouco antes. De 1690 a 1695,, as tropas de Jorge Velbo patru­lharam a região de Piranhas, e, antes, que estas se tivessem reti ·

rada para combater os Quilombos, chegara ali a bandeira de Teodó­sio . de Oliveira Ledo, que batera e devastara numerosas tribos in_ dígenas. Começara, então, um precário povoamento no alto Piranhas, a leste e ao sul das fronteiras do Ceará, acima da passagem�dpJ:Jmari. •

198 REVISTA DA ACADEMIA CEAR.ENSE DE LETRAS

Entretanto, esta primeira tentativa de povoamento fôra frustrada. Depreende-se êste fato da conhecida carta de 1699, do eapitão-Mor da Paraíba, Manuel Soares de Albergaria ao Rei de Portugal, divul­gada por Irineu Jófili, Refere êste documento que o Capitão-Mar das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, informara, em dezembro de 1697, do estado em que se achavam os sertões daquele distrito despovoado pelas invasões que tinha feito o gentio bárbaro Tapuia; e que se to-rnassem a pcvoar. Conseqüentemente, aquêles sertões, vizinhos do .Ceará, tinham, já em 1697, tido um comêço de povoamento, mas os povoadores não poderam resistir à reação dos índios, justamente rebelados.

Os índios perseguidos, escorraçados das suas terras e escravi­zados pelos bandos armados vindos do São Francisco ou pelas ban_ deiras paraíbanas e baíanas não· tardaram a reagir, organizando uma curiosa e admirável confederação de tribos e nações. Esta ação defensiva fôra muito bem combinada e executada, demonstran­do que êstes selvagens nordestinos já possuíam boas qualidades pclíticas, não inferiores às dos Tamóios, senão, talvez superiores. A reação dEsenvclve-se num vastíssimo campo, sobretudo na Pa­r:aíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

No sertão das Piranhas, fôra fácil aos índios a destruição da incipiente coloniz<'!_ção, esparsa e longe das zonas de onde poderiam. cs novéis povoadores receber auxílios. Tornara-se porém árdua. e cruel mais ao norte, no Rio Grande, baixo Jaguaribe e litoral do Ceará, inclusive o Açu.

· A guerra dos «bárbaros» não podia deixar de abrir um hiato no ritmo do povoamento nordestino.

A reaçãc dos índios, porém, surgia cerno um excelente pretexto para que fossem definitivamente liquidados a ferro e a fogo e tam­bém a traição. Não se pouparam esforços para levar iníqua guerra <'justa», destinada à exterminação de uma raça.

Estas tremendas lutas de extermínio, .sensivelmente coroadas de êxito, -foram, como, era de esperar, mortíferas e demoradas.

As fôrças que se podiam organizar em Pernambuco ou no Nor­deste em geral não bastavam. Foram chamados os paulistas, eméritos sertanistas e ferozes preadores de índios. Matias da Cunha, Gover­

nador Gerai da Bahia, mandou buscar trepas em São Paulo. Mas c._tas s.õmente chegaram no tempo do seu suc6ssor, Frei Manuel da Ressurreição, também interessado na paciflcaçãc da região con� vulsionada.

O cabo expedicionário, Matias Cardoso de Almeida, com larga experiência nEste mister, organizou o seu bando em 1689, e, mesmo antes de completar o efetivo projetado, marchou para o São Fran­cisco, onde aguardou a chegada do restante da tropa, conduzida por João Amaro Maciel Parente e outros. Daí a expedição foi ao Rio Grande

REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 199

e uma parte seguiu para o Ceará, indo acampar na foz do ric· Ja­guaribe, onde levantou o arraial, futura cidaqe do Aracati. Maciel e o próprio Matias Cardoso fizeram terríveis chacinas no território cearense, deixando da sua passagem tristes lembranças, fixadas em alguns topônimos.

O mais expressivo é o de Ria.cho-do-Sangue, onde o sangue das batalhas desiguais fêz tingir de vermelho as águas do Rio das Pedras que, poc êste fatc,, passou a ser conhecido com nome que ainda hoje conserva, recordando o bárbaro trucidamento dos nat:vos que se defendiam.

A guerra devastadora, que recrudecera nos ultimas anos da penúltima década do século, devia ser terminada com a solicitaçãc ele paz formulada em 1692 pelos Tapuias, já muito dizímadns, ao Go­vernador Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, que lh'a concedeu, pelas capitulações de 1.0 de abril daquele ano. Assinaram o curioso documento, além do Governador Coutinho, Bernardo Vieira Ravasco, Rocha Card-oso, André Cusais, os representantes do chefe indígen:l Canindé e Joãc Pais Florian, genro putativo do principal dos tapuias, Nhongugê. ·

Prometiam-se aos índios solenemente a liberdade das suas aldeias e que «nunca em tempo algum possa ser pessoa de qualquer sexo, maior ou menor, escrava nem vendida por qualquer título, motivo, cu ocasião que seja, passada, presente ou. futura». Os indígen.as concordavam no repovoamento das regiões devastadas. A cláusula 7 .a começava assim: «Que todos os currais que estavam na Capita­nia do Rio Grande, nas terras que êles pcssuiam até o tempo da guerra, êle, e ditos principais, são contentes que se tornem a povoar».

Apesar disto, porém, as hostilidades não cessaram em tôda parte. Os índios, confiados r..a p;;1z, tão categoricamente prometida, aproximaram-se com o esfôrço também confiante de alguns missio­nários. Entretanto, não tardaram as insidias e perseguições aos po­bres- selvícolas, mesmo daqueles que estavam sob a prcteção ime­diata dos Padres e do Rei. Nas regiões mais distantes, feriam-se combates .sangrentos, a procura de escravos era móvel sério e su­ficiente para manter a luta mais cu menos disfarçada. Esta situa_ ção prolongou-se até o fim do sééulo,. quando as autcridades mais esclarecidas conseguiram adotar providências adequadas.

Ainda em 4.de agôsto de 1699, feria-se uma tremenda ação, não · de guerra, mas de traição inominável, perpetrada pelo cabo pau­

lista Manuel de Morais Navarro centra os Tapuias cearenses do chefe Jenipapoaçu. Armou êste astuosioso Navarro uma infame cilada para ·exterminar aos Tapuias, que acusava de perfídia. Prometera aos índioil buscá-los debaixo de tcda amizade e pedir-lhe socorro para atacar outros inimigos. Navarro, foi, então, ao encontro de Jení-

. \

200 REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS

papoa!,;ú com a sua gente já bem instruída no plano indigno. Ao encontrá-lo disse que vinha como amigo e fizera, para disfarçar qual­quer suspeita, os seus índios mansos, danças e bailados entre os seus novc·s amigos do Ceará. Enquanto isso, o paulista preparou a sua infantaria «em boa ordem, como relatou ao Governador, em carta de 25 de agõsto. em título de a ver, tocandO-lhe caixa, dizendo-lhe ser festejo». Na ocasião azada, o cruel Mestre de Campc ordenou o ataque inopinado aos indefesos Paiacús; morto o Chefe Jenipa­poaçú e seu irmão, começou a horrível chacina. Navarro foi pro­cessado por esta felonia inominável, e algum tempo depois pôsto em liberdade.

Está claro que durante esta úl t" ma década do século XVII, o povoamento ao envés de prosseguir, devia" est,acicnar nas zonas menos afetadas pela luta e sofrer graves revezes nas que mais se avizinha­vam das hostilidades.

Todo o éste riograndense, do litorai à bacia super:or do rio Piranhas, na Paraíba, bem como o vale do Jaguaribe, no Ceará, estiveram convulsionados e, pc·rtanto, sujeitos a uma enorme estase no processo do povcamel'.�O.

Esta situação explica per que sàmentr ao XVIII século se fizeram as primeiras concessões eficientes de sesmarias no alto rio Salgado, inclusive no vale do Cariri. Desde então, começara ali o- povoamento, que não mais devia sofrer apreciável interrupção. Os sertões do alto Piranhas, do Açú, do baixo Jaguaribe repovoaram-se ràpidamente, sobretudo depois de 1707, ano em que se fizeram as mais numero­sas concessões de sesmarias.

No Ceará, entretanto, os índios fugiam para lugares màis escusos, se abrigavam nas serras menos ambicionadas pelos colonos criadores c'e gado, ·ou rendiam-se à discreção dos invasores, senão ficavam em aldéias, sob a proteção dos missionários que lhes angariavam terras e ferramentas para o sustento- dos habitantes; alguns índ_ios se fize­ram agregados dos fazendeiros, a quem prestavam bons serviços no trato do gadc.

Como se depreende fàcilmente, esta situação não era absolu­tamente segura para os coloncs que, aqui e ali, precisavam erigir casas fortes a fim de enfrentar qualquer ataque dos nativos. Isto, porém, não ccnstituia obstáculos sérios ao desenvolv:mento do po­voamento, apenas tinha ação moderadora.

O pcvoamento nem sempre se fazia continuamente, mas com saltos mais ou menos grandes e lacunas deixadas pelos sesmeiros que não conseguiam tomar posse das suas concessões, o que não era raro.

Tal circunstância deu lugar à convergência de novos povoadores para o vale Jaguaribe, vindes ordinàriamente do Rio Grande do Norte ou já do litoral cearense, raros da Paraíba e Pérnambuco, êstes principalmente oriundos de Goiânia,

REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 201

Por tal motivo compreende-se a razão por que, quando ocorreu o povoamento do Cariri, ainda o do baixe e médio Jaguaribe e o de �eus grandes afluentes se processava; tornara-se, assim, simultâneo, no comêço, ou melhor, na primeira metade do século XVIII. Esta cir­cunstância, a princípio mal elucidada, ocasionou certa confusão estre alguns cronistas.

Em 1703, Manuel Rodrigues Ariosa e Manuel Carneiro da Cunha, que já possu·am terras por compra no baixo Jaguaribe, obti­veram uma �esmaria de seis léguas «nas cabeceiras 'do rio Salgado, adonde abita uma r.'lção de gentio de norr1e carirí», começando da

'«cachoeira <;los carirís>' (Missão Velha) pelo riacho acima até entestar com o fim da lagoa dos cariris. Êstes sesmeiros eram originários de Goiânia. O segundo não veio povoar a sua concessão, mas Ariosa fê-lo se-licitamente. Chegaram os interessados pouco depois, não do São Francisco, mas do baixo Jaguaribe, onde possuíam bens va­liosos. Esta foi a primeira concessão de terras do vale do Bata­teira, isto é, no coração dos Cariris-Novos.

Em 1704, muitos moradores de Goiânia requereram e obt:verarn terras no riacho dos Porcos; nesse mesmo tempo, poucos foram os do rio São Francisco que se interessaram pelo Cariri cearense. Sabe-se que ainda com dificÚldades sérias procuraram apossar-se de terras no riacho <<Podi-mirim» apenas 4 sesmeiros além de outros tantos, oriundos de Pernambuco, membros da família Lara. Da

própria capitania do Ceará, demandaram aquelas paragens (riacho dos_ Porcos). sete sesmeiros e da Paraíba apenas um. Vários dêstes pioneiros não conseguiram fazer posse, perdendo a concessão; cer­tos requerem novamente as mesmas terras, anteriormente solici­tadas, ccmo o Capitão Bento Correia Lima que, impedido pelos Tapuias de povoar as terras da sesmaria obtiçla em 2 1 de março de 1703, voltou a requerê-las em janeiro de !707.

Somente depois de 1714, cs colonos alcançaram melhor firmeza na posse das suas terras ali, graças, especialmente, à ação evan­gelizadora de dedicados missionários. Muito pouco até então se tinha logrado no sentido do povoamento.

Famílias do baixo São Francisco, como a dos Lobatos de Pe­nedo, deram notável incremento ao povoamento do Cariri, depois disto. Os Lobatos adquiriram a rnaiofia das terras do vale e outras ras suas ilhargas bem corno no riacho dos Porcos, qLler por con­ce�são de sesrnarias- quer por ccrnpra.

O primeiro povoador, Manuel Ro·drigues Ariosa, instalou-se no lugar que é agora o sítio São José, (antiga lagoa do Ariosa), entre Juazeiro _e Cratc; mas, antes de um século, seus descendentes já ha­viam vendido a diversos as terras herdadas, inclusive ao Capitão Antônio Mendes Lobato.

202 REVISTA DA ACADEMIA CEARE:NSE DE LETRAS

O companheiro de Ariosa, o Mestre-de-Campo Manuel Carneiro da Cunha, cuja sesmaria se enquadrava de certo, ponto abaixo da Cachoeira dos Cariris (Missão Velha) até a lagoa do Aricsa, tomou apenas posse da sua concessão e algum tempo depois passou-a a outros, inclusive a Antônio Brito Siqueira.

Não há dúvida, pois, que, ao contrário do que pensavam alguns • dos nossos historiógrafos, a gente do rio São Francisco que entrou

!'el;;s estrarlas do sul, das Piranhas ou dos 8e:ctões pernambucanos. tiveram fraquíssima influência no povoamento inicial do Carirí, em eomparação com a dos colonos que, perlongando o vale de Jagua­ribe, alí chegaram, quer fossem moradores d·a própria Capitania, quer oriundos de Pernambuco ou Pa:caíba ou mesmo do baixo São Francisco, como eram os Lobatos e Montes.

Concorria para isso o pencso repovoamento das Piranhas nesse mesmo tempo.

Realmente, no fim do século XVII não podia o povoamento do Cariri operar-se, sobretudo provindo do sul, em vista do desassossêgo consequente das lutas que reinavam na região intermediária, c alto Piranhas e as cabecE>iras dos afluentes do grande r-io, a leste e ao sul do Cariri.

Era para esta vasta região inóspita que primeiramente fugiam dos índios acossados pelos fazendeiros do São Francisco, ao encalço dos quais seguiam as bandeiras repressoras. A perseguiÇão dos na­tivos lá, como nas zonas mais vizinhas do litoral, . de Paraíba ao Ceará, provocara em seguida aquela notável- rebelião dos Tapuias, cuja confederação fizera grande e decisivo mal aos colonos que se tinham estabelecido por aquelas paragens.

Por sua vez, a reação armada dos Goverljladores da Bahia e Per­nambuco e Capitães-Mores da Paraíba e Ceará, ante a desesperada situação. daqueles colonos, muitas vêzes tomados de justo pânico, deu lugar à guerra dos bárbaros, por -irrisão tidr geralmente por «justa», até mesmo pelas autoridades eclesiásticas !

. Isto aliás era necessário para que os aventureiros da guerra, os p<;!ulistas e terços da Bahia e de Pernambuco, podessem fa!:er esc

-ravos c.om que se pagarem das canseiras, despesas e perigos das

grandes caminhHdas, da fome e da sêde que sofriam e das batalhas nos ínvios se-rtões, agrestes e secos,_ os quais, mesmo assim, se deviam tomar dos n:ativos, sem nada lhes dar.

Quando as terras do alto Piranhas e do norte de Pernambuco, nas vizinhanças do Cariri, ou do médio Jaguaribe, pude!'am ser, com relativa segurança, ocupadas pelos ·colonizadores bra�cos, não tardou pmito que, também, as dos Cariris-Novos o fôssem� mas, então, havia

REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 203

na zona intermediária (Piranhas, etc.) muita terra desocupada que C'umpria povoar preferencialmente pela gente do São Francisco e paraíbanos.

Nãb se deve, entretanto, confundir, ccmo já se tem feito, o conhe­cimento das terras ou região do Cariri, através de informações, com o verdadeiro povoamento. As primeiras informações não lograram notável repercussão em vista das lutas e perigos. Depois, dos obs­táculos sobrevieram: o repovoamento das Piranhas e a ocupação precoce do sul do Ceará inclusive do Cariri, por gente que descia do norte. Isto parece muito claro.

A gente de armas que antes de 1700 se aproximava do Carirí, sem lhes transpor as raias geralmente, o que somente teria acon­tecido, rarc e eventualmente, e isto mesmo com pouca profundidade nas ilhargas orientais do riacho dos Pcrcos, colhera, entretanto, in­formes mais ou menos pormenorizados da região e, certamente, di_ vulgara as impressionantes qualidades e condições das terras tão 8uperiores e diferentes, das que habitualmente encontrava nos ser­tões de São Francisco e das Piranhas.

As primeiras not.ícias do vale de· Carirí, com os seus magní­ficos brejos datam seguramente das últimas décadas do XVII sé­culo; da parte nuclear, através dos indígenas; da circunvizinhança em grande parte dêstes, e porventura de elementos das tropas dire­tamente, mercê de incurções rápidas à vertente oriental do r<iacho .dos Porcos.

Por mais sedutores que fôssem tais informes, as condiçõ�s de insegurança entãc verificadas naquela região não permitiam nem aos mais ambiciosos e ousados qualquer apropriação de terras. Li­mitaram-se os homens de mais prestígio d� Paraíba ou São Francisco a uma aventurosa solicitação de sesmarias, como se verificou em 1692, quando Fra�cisco Pence de Leão e mais 4 companheiros re­quereram 20 l�guas, . entre o rio das Piranhas e 9 Jaguaribe, distrito do Ceará-Grande. Doadas em São Salvador, na Bahia pelo Gover­nadcr Geral, esta!' terra!', situadas no riacho «Podi» (ou dos Porcos), não foram ocupadas oú apossadas. Nas Piranh;;s já. então começava a posse regular de terras. Até mesmo o chefe mais célebre das ban­deiras paraíbanas, Teodósio de Oliveira Ledo, somente julgcu con­veniente pedir alí uma sesmaria, depois da pacificação geral, em 1707, a qual lhe fci concedida pelo Governador Geral do Bra­sil, por alvará de 19 de janeiro daquele ano. Todavia outros aventureiros o precederam no repovoamento da região, mas de pou­e:os ·anos apenas.

Pacificados cu expul:?OS os índios, as concessões se multiplicam, tanto na bacia do Piranhas como no Cariri.

204 REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS

Algumas pessoas prestigiosas e sobretudo ambiciosas, da ParaL ba, não contentes com o que por lá conseguiam, requereram, tam­bém terras no Cariri. Entre estas, cumpre referir o esperto Conde Alvcr, do Conselho Ultramarino do Reino de Portugal que, elo seu proéurador, obteve muitas concessões com irritantes preferências. Depreende-se da falta de precisão dcs requerimentos dêstes preten­dentes a terras no sul do Ceará uma desconcertante ignorância do Cariri, do qual, ao que parece, pouco mais sabiam além da existência dos grandes brejos. De certo não é verdade o que, em geral, alegam nas suas petições a respeito do fato de haverem mandado ali des­cobrir terras. Isto teria ocorrido quando já Ariosa e o prepostc de Carneiro da Cunha se tinham apossado- do vale do Batateira, lugar especialmente visado. O Conde Alvor diz ter mapdado descobrir no sertão, «nos brejos das fraldas da serra do Araripe, da parte do ncrte, águas vertentes para o rio _Jaguaribe». Pedia e lhe foi concedida, pelo governadcr da Paraíba, Fernando Ramos Vascon­celos, aos 26 dias do mês de outubro de 1705, três léguas de terra de comprido e uma de largo para «criar seus gados e bestiadas.»

Bartolomeu Barbosa Pereira também refere que· mandou des­cobrir _terra nos brejos das fraldas da serra. do Araripe, na parte de Norte, só povoado dos bárbaros, e pede uma légua em quadro das ditas terras, como heréo do Conde Alvor. O seu requerimento é de 25 de outubro de 1705. Ainda o Conde Alvor, agora com outros companheiros, volta em junho do ano seguinte, a pedir mais terras entre as ilhargas do sertão do

-Jaguaribe e das Piranhas, onde

tinham (nas Piranhas. seus gados e criações, no riacho e lagôa do �Pedi-mirim>'. :tstes magnatas, sem o saber, solicitavam terras já a outros concedidas.

«O Jaguaribe fica, diz o curioso documento, para a parte do norte de tais terras e as Piranhas para a parte do Sul. . . As quais terras devolutas e só nelas habitavam gentios de Caicó (?). Parece incrível tamanha ignorância das terras que pretendiam.

Destas observações, um tanto desordenadamente alinhadas, con­clui-se logicamente :

1.0) - Que o Cariri cearense somente começou a ser povoado

no começo do XVIII século, sobretudo depois de 1707;

2.0) - Que antes já ia bem adiantado o povoamento do baixe Jaguaribe;

3.0) - Que o Cariri não fôra povoado inicialmente por gente vinda de leste ou do sul mas simplesmente por colonizadores que subiram sucessivamente os rios Jaguaribe e Salgado;

REVISTA DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS 205

4.0) - Que êstes primeiros habitantes brancos do Cariri eram originárics do litoral, entre Pernambuco (inclusive Alagoas) e o Ceará, ou então do baixo São Francisco, salvo raras exceções;

5.0) - Que os bandeirantes paulistas, baianos ou pernambu­canos não perlustrar�m o vale do Cariri ao norte da serra do Ara­r;pe, mas apenas dele tiveram vagas notícias pelos índios;

6.6) - Que é provavel que elementus das ditas bandeiras ou das tropas de repressão aos indígenas reacionários, tenham pene­tradc no Ceará eventualmente as incursões ãpressadas, somente até à bacia do riacho dos Porcos;

75') - Que só depois da defecção prática dos 'índios rebelados, foi pcssível o início do pcvoamento do Cariri e de povoamento da bacia das Piranhas e das regiões devastadas do Açú e do médio Ja­guaribe;

. 8.0) - Que o povoamento do Cariri, conseqüentemente, ocorreu simultâneamente com o repovoamento destas regiões, bem como do vale do Rio Salgado ,intensificando-se depcis#e 1714.