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ARTIGO ARTICLE 1607 Práticas de higiene em uma feira livre da cidade de Salvador (BA) Hygiene practices in a street market in the city of Salvador, Bahia State Resumo Trata-se de compreender os significados das práticas de higiene dos alimentos em uma fei- ra livre da cidade de Salvador (BA). O estudo et- nográfico consegue apreender duas categorias cen- trais como produção simbólica das práticas higi- ênicas: o limpo como ordem e o sujo como desor- dem. Esses códigos culturais fazem correspondên- cias com os estudos de Mary Douglas e Norbert Elias e apresentam especificidades para decifrar um mundo cotidiano em que concepções e práti- cas de higiene são aspectos normalizados por per- sonagens que compartilham o espaço da feira: fei- rantes, consumidores, garis e fiscais municipais. O conhecimento técnico-científico e a legislação sanitária são tidos como estranhos ao sistema sim- bólico dos feirantes. As leis não são efetivas e não têm uma influência importante na construção das práticas higiênicas. As práticas dos fiscais muni- cipais são coercitivas e punitivas e não conside- ram os valores culturais na formação de novas práticas de higiene. Palavras-chave Higiene, Práticas de higiene, Fei- ra livre, Fiscalização, Vigilância sanitária Abstract The main objective of this research is to understand the meaning of the practices concern- ing food hygiene in a street market in Salvador, the capital of Bahia State in Brazil. The ethno- graphic study presents two main categories for symbolic production related to hygiene practices: cleanliness as order and dirtiness as disorder. These cultural codes make correspondence with the stud- ies of Mary Douglas and Nobert Elias. The codes present particularities to decode everyday life, in which concept and hygiene practices are aspects normalized, in daily activity, for persons who share the space of street market: vendors, con- sumers, street cleaners and official inspectors. The techno-scientific knowledge and sanitary legisla- tion are strange to the symbolic system of street market vendors. The laws are ineffective and their influence is of little importance in the creation of hygiene practices. Official inspectors’ attitudes are coercive and punitive and do not take into ac- count any cultural values when enforcing new hygiene practices. Key words Hygiene, Hygiene practices, Inspec- tion, Street market, Sanitary surveillance Ana Cláudia de Sá Teles Minnaert 1 Maria do Carmo Soares Freitas 2 1 Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Av. da França s/n, Comércio. 40010-000 Salvador BA. [email protected] 2 Departamento de Ciência da Nutrição, Universidade Federal da Bahia.

Práticas de higiene em uma feira livre da cidade de Salvador (BA)

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Estudo etnográfico com o intuito de apreender duas categorias centraiscomo produção simbólica das práticas higiênicas:o limpo como ordem e o sujo como desordem.

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Práticas de higiene em uma feira livre da cidade de Salvador (BA)

Hygiene practices in a street marketin the city of Salvador, Bahia State

Resumo Trata-se de compreender os significadosdas práticas de higiene dos alimentos em uma fei-ra livre da cidade de Salvador (BA). O estudo et-nográfico consegue apreender duas categorias cen-trais como produção simbólica das práticas higi-ênicas: o limpo como ordem e o sujo como desor-dem. Esses códigos culturais fazem correspondên-cias com os estudos de Mary Douglas e NorbertElias e apresentam especificidades para decifrarum mundo cotidiano em que concepções e práti-cas de higiene são aspectos normalizados por per-sonagens que compartilham o espaço da feira: fei-rantes, consumidores, garis e fiscais municipais.O conhecimento técnico-científico e a legislaçãosanitária são tidos como estranhos ao sistema sim-bólico dos feirantes. As leis não são efetivas e nãotêm uma influência importante na construção daspráticas higiênicas. As práticas dos fiscais muni-cipais são coercitivas e punitivas e não conside-ram os valores culturais na formação de novaspráticas de higiene.Palavras-chave Higiene, Práticas de higiene, Fei-ra livre, Fiscalização, Vigilância sanitária

Abstract The main objective of this research is tounderstand the meaning of the practices concern-ing food hygiene in a street market in Salvador,the capital of Bahia State in Brazil. The ethno-graphic study presents two main categories forsymbolic production related to hygiene practices:cleanliness as order and dirtiness as disorder. Thesecultural codes make correspondence with the stud-ies of Mary Douglas and Nobert Elias. The codespresent particularities to decode everyday life, inwhich concept and hygiene practices are aspectsnormalized, in daily activity, for persons whoshare the space of street market: vendors, con-sumers, street cleaners and official inspectors. Thetechno-scientific knowledge and sanitary legisla-tion are strange to the symbolic system of streetmarket vendors. The laws are ineffective and theirinfluence is of little importance in the creation ofhygiene practices. Official inspectors’ attitudes arecoercive and punitive and do not take into ac-count any cultural values when enforcing newhygiene practices.Key words Hygiene, Hygiene practices, Inspec-tion, Street market, Sanitary surveillance

Ana Cláudia de Sá Teles Minnaert 1

Maria do Carmo Soares Freitas 2

1 Agência Nacional deVigilância Sanitária. Av. daFrança s/n, Comércio.40010-000 Salvador [email protected] Departamento de Ciênciada Nutrição, UniversidadeFederal da Bahia.

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Introdução

Salvador tem uma população estimada em trêsmilhões de habitantes. A taxa de desemprego domunicípio é 22%1 da população economicamenteativa, o que impacta diretamente no crescimentodo setor informal. As insuficientes políticas pú-blicas se traduzem nas condições de exclusão so-cial da cidade e produzem efeitos no modo deviver e em aspectos da vida cotidiana. Os baixossalários, as habitações insalubres, os precáriosserviços saúde e saneamento básico são algunsdos motivos que mantêm distintos valores cultu-rais sobre a higiene do meio ambiente, objeto cen-tral deste estudo. Em particular, a higiene dos ali-mentos, na feira livre, é uma aquisição histórica ecultural que este estudo busca compreender.

Esta pesquisa mostra como os agentes so-ciais de uma feira livre da cidade de Salvador con-cebem categorias relacionadas à higiene dos ali-mentos, em que limpo e sujo são símbolos cultu-rais nem sempre associados aos conceitos técni-co-científicos. Nesse sentido, saberes e práticashigiênicas refletem realidades distintas que se con-frontam, a todo o momento, com valores e siste-mas simbólicos particularizados em seus con-textos socioculturais. Para trabalhadores da fei-ra, consumidores e inspetores sanitários entre-vistados neste estudo, há diferentes códigos so-bre os campos sanitários.

As práticas higiênicas refletem hábitos que seinstituem como códigos socioculturais e as mu-danças podem significar mais que a alteração depráticas comportamentais. As concepções sobrelimpo e sujo, em geral, estão cercadas de símbo-los que refletem saberes de uma cultura própriade quem vive, sobretudo, em precárias condi-ções materiais.

Elias2 salienta que, no Ocidente, desde muito,os processos de disciplinarização dos corpos,como as regras de higiene, são práticas de refina-mento que se diferenciavam nas classes sociais.As sensações do corpo são adestradas a partir decódigos culturais, valores sociais que garantem ainserção do indivíduo em determinado gruposocial. Cada grupo, com suas formas específicasde lidar com o corpo, transmite para as geraçõessubsequentes valores culturais e de classe3.

Enquanto sistema de valores, o que é habitualem uma feira livre se constitui como um produtoda estruturas objetivas e subjetivas de seus perso-nagens sobre o modo de ser e pensar o seu cotidi-ano do trabalho, a sua sobrevivência nesse ambi-ente. As ações dos protagonistas desse espaço serevelam relacionadas com suas capacidades cria-

tivas que tornam natural as suas condições devida e geram conhecimentos práticos em seumundo cotidiano. Trata-se de uma relação onto-lógica com o mundo, a partir das experiênciasacumuladas do passado e do presente. O habitushigiênico representa o modo como a feira se es-trutura para manter comerciantes e moradoresdo bairro em duráveis correspondências4.

A feira do Japão

Entre as oito feiras livres do município de Salva-dor, a feira do Japão foi escolhida como universode estudo. Meu primeiro contato com esse espa-ço deu-se em 1999, durante o período do carna-val quando, iniciante na Vigilância Sanitária, fuiatuar como fiscal de controle sanitário.

Como profissional de saúde, ao chegar ao lo-cal, o que me chamou a atenção foram as suasprecárias condições de higiene. Água suja escorriapelas calçadas e se acumulava na rua, animais semisturavam com pessoas que circulavam naque-la via estreita, onde os alimentos eram expostosno chão, em cima de tábuas, plásticos ou jornais.

Esse espaço de conversa e proximidades co-meçou a me atrair e me fez sentir interessada empenetrar nesse ambiente tão peculiar, onde pes-soas traziam seus produtos, suas histórias, suasvidas, suas dores.

Pouco a pouco, com a convivência nessa fei-ra, meu olhar fiscalizador de controladora sani-tária foi sendo substituído por outro: o olhar depesquisadora.

Inicialmente, a minha presença na feira cau-sou certa estranheza, mas no processo em quefui desvendando os códigos do lugar, deixei deser vista como a “estrangeira”. Ao compreenderos códigos desse mundo e ao compartilhá-loscom os demais atores, passei de visitante à fre-quentadora. Como diz Da Matta5, saí da sala devisitas e adentrei na intimidade desta casa.

A feira do Japão é considerada uma feira demédio porte, formada por pequenos comerci-antes de alimentos, que têm neste tipo de comér-cio sua subsistência, e serve de apoio aos mora-dores locais. Lugar de passagem e convívio, elafaz parte da vida dos moradores da Liberdade,um bairro com predominância de grupos sociaisde baixa renda.

Muitos feirantes e consumidores moram namesma rua onde se localiza a feira. A rua é tidacomo um prolongamento das casas. Na feira,esses dois mundos se fundem e perdem os limi-tes que os separam.

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Segundo registros da Secretaria Municipal deServiços Públicos, órgão municipal responsávelpelo ordenamento e fiscalização das feiras livresdo município, e relato do presidente do Sindica-to dos Feirantes, a feira do Japão nasceu há 48anos, num largo situado no início da Rua Gon-çalo Coelho, conhecido como Largo do Japão, apartir de um grupo de japoneses que na décadade sessenta montava feiras ambulantes em di-versos pontos da cidade.

Atualmente, poucos os são os feirantes quetêm conhecimento dessa origem; muitos delesassociam o nome feira do Japão a uma metáforaque significaria a distância do bairro em relaçãoao centro da cidade, como um sentido de distan-ciamento, isolamento.

Procedimentos metodológicos

O estudo é um exercício etnográfico sobre a higi-ene dos alimentos da feira e conta com a análisedas narrativas dos agentes que convivem e vigi-am o lugar. Nesse universo, circulam feirantes,consumidores, garis que são ligados à Empresade Limpeza Urbana e são responsáveis pela lim-peza do local; fiscais de controle sanitário da Vi-gilância Sanitária (Visa), responsáveis pela fisca-lização das condições higiênico-sanitárias do co-mércio e armazenamento dos alimentos, sane-antes e cosméticos; e agentes de fiscalização domeio ambiente e serviços públicos da SecretariaMunicipal de Serviços Públicos (SESP), respon-sáveis pelo ordenamento e uso do espaço públi-co. Esses atores foram os interlocutores princi-pais deste estudo.

Com a observação participante, foi possívelconhecer códigos socioculturais como qualida-de, o que é bom ou ruim para comer, os cheiros,impressões, aspectos e particularidades que guar-dam as relações com a feira. Por meio de entre-vistas semiestruturadas e registro de cenas docotidiano, surgem as categorias mais relevantesdo estudo: limpo, sujo, higiene. A leitura de do-cumentos oficiais da vigilância sanitária permi-tiu compreender como esse sistema interage e serelaciona para manter a resistência em mudarhábitos e a formação de novos.

O projeto que originou esse trabalho foi apro-vado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Insti-tuto de Saúde Coletiva da Universidade Federalda Bahia.

Sujo e limpopara feirantes e consumidores

O que significaria o limpo e o sujo para aque-las pessoas?

Você quer saber o que eu acho fora do comum?Foi essa expressão que ouvi de uma feirante,

quando indaguei sobre a higiene da feira.Nos discursos acolhidos, a noção de sujo está

associada ao que é percebido pelos sentidos doolfato, da visão, do tato e traduz a perturbaçãoda ordem do lugar. O mau cheiro, a água queescorre de córregos da rua, o lixo espalhado sãosituações comuns em que os personagens da fei-ra estão habituados a conviver. Por isso, a retira-da do lixo e da sujeira não significa um afasta-mento do perigo à saúde.

Como você percebe se um lugar está limpo?O que eu acho fora do comum não está limpo.

(feirante de carne bovina)A desordem da organização social, a falta de

um ordenamento habitual é o que produz incô-modo aos personagens acostumados nessas pre-cárias condições de sobrevivência e trabalho.

Para os comerciantes, o mais importante émanter a organização dos produtos, enfileiradoscomo vitrines para a venda; os folhosos estão aolado dos temperos, os cereais ordenados em sa-cos próximos aos olhares que vigiam a mercado-ria enquanto negociam com o consumidor.

No mesmo lugar, os consumidores entendema lama do chão como sujeira. Para outros, feira elama estão no mesmo campo semântico em quenão há feira sem lama. Os sentidos se mesclam erompem os limites, circulam livremente, inva-dindo fronteiras simbólicas. Para os feirantes, alama pode significar vida, comércio, movimen-to. Lama é mistura de terra e água e, ao definirfeira como lama, se expressa a compreensão dafeira como lugar onde pessoas e objetos se mis-turam. As regiões associadas à lama se caracteri-zam como espaços periféricos escondidos, locaisde transição: limítrofes em que a presença con-junta da terra e da água demarca um espaçoambíguo6. Como a lama, a feira tem sua fluidez.

Para Douglas7, as regras de higiene evoluem àmedida que se incorporam novos conhecimentostécnico-científicos. Desse modo, a concepção so-bre sujo na feira do Japão reflete a interferência danorma científica para alguns feirantes. Eles quenos falam de sujo como presença de bactérias.Para eles, as bactérias são os morotós (larvas demoscas) que, em oposição às moscas, que fazemparte do contexto da feira e não são percebidoscomo interferência na ordem do ambiente, mas

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incorporados; os morotós simbolizam a sujeira ese associam aos humores corrompidos, que saemdas entranhas e invadem o ambiente externo.

Segundo essa autora6, “os vermes dizem res-peito ao reino da sepultura, da morte e do caos”.Simbolizam putrefação, estado de decomposi-ção, não pertencem, portanto, ao ambiente dosvivos, como a feira que requer produtos frescos,símbolos da vida e da saúde. A reflexão sobreimpureza pressupõe uma relação entre vida emorte, ordem e desordem.

Entre os feirantes, alguns associam o termolimpeza à virtude, um traço da personalidade,que diferencia e confere status dentro do seu uni-verso: Limpeza é uma qualidade da pessoa conce-dida por Deus. ( feirante de pescado)

A pessoa limpa se distingue moral e social-mente do desordeiro. O termo não faz relaçãoexclusiva com a saúde. E, ao serem questionadossobre a higiene, muitos consideram esse termocomo sinônimo de limpeza do corpo. Assim comolimpo, a categoria higiene é identificada comouma característica do modo de ser da pessoa,como conduta moral.

Cada sistema cultural possui códigos de pu-reza estabelecidos pela distinção entre privado epúblico7. As implicações sobre isto são observa-das na feira, em que a rua, o espaço público e abanca do comerciante, o espaço privado, possu-em distintas concepções para as práticas higiêni-cas. O sujo está situado no espaço público que écompartilhado com outros; e o limpo, no espaçodo sujeito, seu corpo, sua barraca.

Black8 , em seu estudo etnográfico na feira deTurin, Itália, observa que os consumidores repe-lem tudo que desconhecem. O medo da conta-minação e da sujeira pode algumas vezes ser in-terpretado como o medo pelo “outro”.

Na feira, a idéia de limpeza está associada àconcepção de normalidade. Para o feirante de pei-xes, as escamas no chão, em torno de sua banca,com cheiros fortes, não simbolizam sujeira, masos restos de vegetais e ossos no chão próximos aoseu trabalho é que indicam o local sujo. Limpo esujo têm lugares particularizados pelos feirantescom suas mercadorias. Assim, para eles, lugar depeixe tem escamas no chão, lugar de verduras efrutas tem cascas, lugar de carnes, ossos. Isto nãorepresenta sujeira, nem desordem.

Para os consumidores desse espaço, a higieneé responsabilidade de todos e não uma caracte-rística pessoal de determinados sujeitos. A quali-dade dos alimentos não está associada às suascondições de conservação e sim às característicasdetectáveis, principalmente pela imagem e pelo

cheiro do produto. Esses sentidos funcionamcomo signos das práticas de higiene e se relacio-nam a outros códigos da linguagem.

Douglas7 diz que, quando uma criança apren-de determinado código linguístico, ela passa aperceber a linguagem a partir de um ponto devista particular. Assim, os códigos da feira vão seperpetuando em cada feirante e em seus filhos,sendo interpretados por eles e acrescidos de no-vos códigos e saberes. Nessa perspectiva, quan-do a feirante Maria diz aos seus filhos que elesdevem tratar a farinha de carimã (massa azedade mandioca, mole, reduzida a bolos secos aosol) com educação, pois ela não gosta de sujeira,seus filhos vão internalizando os termos “educa-ção” e “sujeira” como opostos. A “educação” paraeles representa algo positivo que se deve ter notrato com os alimentos e a “sujeira”, como umdesagravo. Se essas crianças vão para a escolaformal e aprendem outros significados para es-ses termos, incorporam novas interpretações econstroem seu próprio sistema de códigos. Tam-bém, o feirante Gilmário classifica as doençastransmitidas pelos alimentos como “gripe”’. Essainterpretação fala da ameaça mais próxima deseu cotidiano.

Para analisar os significados das práticas hi-giênicas, é necessário penetrar no mundo cotidi-ano, observar e sentir a linguagem, os códigos dalinguagem. Os significados estão no campo daexperiência, no repertório mesmo da gramáticaque os representa.

A higiene para os funcionários municipais

Os símbolos e os sistemas de códigos sobre ahigiene são objetos da realidade no mundo dotrabalho dos fiscais de controle sanitário, agen-tes de fiscalização do meio ambiente e garis. Paraeles, a sujeira é presente e interfere na ordem doambiente. Segundo Douglas6, “quando tivermosabstraído a patogenia e a higiene das nossas idéi-as sobre a impureza, ficaremos com a velha defi-nição nas mãos: qualquer coisa que não está noseu lugar”.

O sujo, antes mesmo de ser considerado or-gânico e patogênico, é de ordem simbólica e clas-sificatória. Varrer e lavar são as ações que colo-cam as coisas em seus devidos lugares. Para osgaris, cujo papel central é retirar a sujeira do am-biente e trazer a ordem de volta ao local, o termosujeira significa bagunça, desordem, perigo.

Nos discursos dos fiscais da Vigilância Sani-tária, a interferência do conhecimento técnico-ci-

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entífico na sua compreensão sobre limpo e sujo émais evidente. Nas falas desse grupo, o perigoinvisível dos microorganismos é traduzido comoameaça de insetos, mofo, vetores, veículos de doen-ças. Somente os fiscais municipais associam o san-gue das carnes expostas à venda à idéia de sujeirae contaminação. Para outros, o sangue faz partedesses espaços na feira, não faz mal. Um gari dizque a sujeira do bairro é diferente da feira. Cadalugar tem sua própria condição higiênica em queas sensações se assemelham ou se afastam.

O lixo é uma questão cultural em que se no-tifica a partir de símbolos individuais; o que élixo para um, pode não ser para outros, depen-dendo da utilidade que ainda tiver para determi-nados indivíduos. Os ossos após a retirada dacarne podem ser considerados lixo para uns ealimentos para outros.

Na sociedade industrial, há dois tipos de lixo,o orgânico — lixo por excelência e que causahorror pelo que evoca de morte e tanatomorfose— e o lixo inventado pela sociedade industrial,que é vida sem morte, que não volta às origens,se acumula e causa destruição: são plásticos, vi-dros, latas. Separamos o lixo que ameaça e podeproduzir enfermidades do outro menos sujo9 .

Para Douglas6, o corpo social configura omodo como o corpo físico é percebido. A limpe-za, muitas vezes, indica mais que o cuidado com ahigiene, é um cuidado estético, cujo foco é a apa-rência, antes mesmo de ser a higiene. Na feira doJapão, o significado de limpo para fiscais munici-pais reflete o papel que eles desempenham na so-ciedade e a percepção de si nesse processo social.Enquanto isso, um gari expressa que a limpezafaz as pessoas se sentirem bem, dá uma sensaçãode bem-estar, segurança, ordenamento.

As referências dos garis (funcionários da pre-feitura oficialmente responsáveis pela limpeza dasruas) sobre a noção de limpo estão associadas àspráticas dessa categoria de trabalhadores. Lim-par é colocar as coisas em ordem, organizar, re-tirar o que afeta a ordem, o que é estranho aoambiente. Nesse ponto de vista, as ações de lim-peza são simplesmente a retirada da sujeira.

Para os fiscais municipais, limpeza é assepsiado espaço. Para um deles, o shopping center sim-boliza organização e formalidade, palavras que,para ele, estão associadas à limpeza. Vigarello10

cita que a limpeza é um fator que distingue asclasses sociais; muitas vezes, o termo está associ-ado à urbanidade, ao processo civilizador, numaconotação socialmente distinta. A partir dessas

compreensões, observa-se na feira do Japão quea higiene, mais do que um reflexo da vivência dosindivíduos, denota um sistema de símbolos com-partilhados pelos atores que vivenciam o lugar.

Luckmann e Berger11 frisam que a constru-ção do nosso sistema simbólico tem origem nosprocessos de reflexão subjetiva, “os quais, depoisda objetivação social, conduzem ao estabeleci-mento de ligações explícitas entre os temas signi-ficativos que têm suas raízes nas várias institui-ções”. Assim, a forma como o indivíduo cuidados alimentos é resultado da sua história, do queaprendeu com seus pais, familiares e amigos, naescola, no cotidiano do trabalho. Para os profis-sionais, cuja ação interfere diretamente nas prá-ticas de higiene, é imprescindível compreender arede de significados dessas práticas, formaliza-das num tempo e espaço definidos, como o exem-plo da feira. Essa compreensão pode subsidiar oprocesso de educar sem a necessidade de formaspunitivas.

A intervenção dos fiscais se configura como aimposição de normas sanitárias em que se catego-rizam os feirantes. Ao lembrar estudos de Fou-cault12 sobre o poder, entende-se que os fiscaismantêm uma relação de vigília e controle sobre ocomportamento sanitário dos feirantes para a re-gularidade de uma homogeneidade do ambiente,sem qualquer pré-compreensão das questões queenvolvem o lugar. Para os fiscais, fiscalização e multaocupam seus interesses na disciplinaridade dos fei-rantes, impondo limites e comportamentos.

A norma sanitária utilizada como instrumen-to de disciplina gera no imaginário do feirante acrença de que a higiene é um saber específico dedoutores. Saber e poder mesclam-se na feira en-tre os personagens que compram, vendem, lim-pam e fiscalizam. Em nome da higienização, fis-cais controlam os indivíduos. E, ao conceberema higiene como algo formalizado, eles a afastamdo senso comum. Assim, ela pertence à ciênciaou ao saber formal dos técnicos.

A higiene distingue classes sociais, separa gru-pos entre os que possuem saber e os que nãopossuem. Segundo Foucault13, a norma comoum corpo de leis não diferencia situações e impõea oposição binária entre o permitido e o proibi-do. Por meio da normalização pela disciplina,corrigem-se comportamentos desviantes. Essassão as referências conceituais dos fiscais cuja ten-tativa discursiva para homogeneizar a feira é ne-gada pelos comerciantes que entendem a fiscali-zação como policiamento e repressão.

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Considerações finais

A prática de compra e venda de alimentos ocupafunções culturais desses agentes sociais, cujas fa-las são ressignificadas para mostrar a relaçãoentre alimentos, trabalhadores, feirantes e demaispersonagens da feira. Cada sujeito, com sua his-tória, significa a higiene e as práticas apropriadasde um saber comum. Entre os distintos atoresque circulam na feira do Japão, o limpo e o sujosão as categorias principais que se associam aocaráter estético e não, necessariamente, ao cuida-do com a saúde.

As racionalidades sobre os riscos para a saú-de geram uma estrutura, uma concepção, umarranjo, uma ordenação da feira que afeta a tra-dição, as crenças e interfere na significação dahigiene como uma prática social. No código cul-tural da feira, o familiar e o estranho justificamas práticas de higiene e sustentam as noções so-bre sujo e limpo. A sujeira é estranha porque nãopertence ao ambiente. O limpo é o familiar, oreconhecido e pertencente ao feirante.

O enfoque sobre a limpeza tem duas situa-ções: o limpo vem de dentro da pessoa, para aordenação do mundo cotidiano. Em outro mo-mento, o sentido vem de fora da feira, efeito dopoder da fiscalização e da multa. A limpeza é,então, polissêmica, significa asseado, tratamen-to pessoal, educação, ordem e cada coisa em seudevido lugar.

Para muitos feirantes, o sujo está no outro enão em si. O limpo é atribuído ao lugar comume o impuro, ao incomum. De outro modo, osque pensam a idealidade da norma não enten-dem as construções socioculturais e punem. Fei-ra, lugar de bagunça, desordenado são algunstermos que se assemelham para o fiscal. Para ofeirante, feira é liberdade, afetividade, concilia-ção; e para os funcionários municipais, a infor-malidade da feira afeta a saúde.

A sujeira da feira enunciada por fiscais repre-senta mais que a presença de sujidade. Para eles,a sujeira é a própria feira, pois ela está fora doseu sistema de classificação, da ordem que a leiestabelece para as coisas. Desse modo, limpar afeira significa acabar com a sua característica deinformalidade, dando ordem ao lugar, padroni-zando não apenas as barracas, mas as formas decomportamento.

Para os fiscais, a feira é um espaço que agrideseu senso estético; é abominável (fala de um fiscalda Visa) e deve ser extinta. Ao negar o reconheci-mento de seu próprio objeto de trabalho, tam-bém não se sente valorizado. Apesar de a lei asse-

gurar que a comercialização e a exposição de ali-mentos in natura para o consumo humano sóserão permitidas com prévia autorização por ór-gãos competentes, apesar dos critérios sanitári-os que tentam assegurar condições de conserva-ção, higiene, limpeza e proteção do alimento, nacompreensão das autoridades sanitárias, a feiranão faz parte de seu foco de ação formal, pois écategorizada como uma atividade do comércioinformal.

Feirantes e consumidores desse universo re-produzem em suas falas a sua compreensão dascategorias analisadas, com base na sua vivência ena forma como interpretam as informações quelhes são passadas em cursos ministrados poragentes do governo ou diretamente durante a fis-calização na feira. Essas informações são com-preendidas a partir de códigos que utilizam parainterpretar os fenômenos de sua realidade.

O saber popular é um saber fragmentadoentre a tradição e a apreensão do novo; ele é cons-tituído por fragmentos que as classes popularesconseguem absorver das informações da mídia,dos fiscais e das classes mais abastadas. Assim, osaber se constrói e se molda ao cotidiano comouma adaptação à ordem referencial. Conformenarrativas dos feirantes, o que eles sabem sobreseu ofício e a forma de lidar com os alimentosforam aprendidos com seus pais, como conheci-mentos herdados que vão se incorporando nohabitus4 feirante. Nesse contexto, as práticas ha-bituais de higiene, mais que práticas herdadas etransmitidas por gerações de feirantes, são fru-tos da recodificação feita por eles e, por vezes,das normas que lhes são impostas. Ainda assim,normas, cursos esporádicos oferecidos por agen-tes do governo, ações coercitivas de fiscalização econtrole têm pouca influência na construção daspráticas higiênicas.

Também, conforme nossa observação, a lim-peza do lugar é utilizada como estratégia de ma-rketing e não como um aspecto da saúde. Paraeles, deve-se manter a limpeza, conforme a de-manda dos fiscais, para atrair fregueses e nãoporque a falta de higiene contamina o alimento eprovoca doenças. Em outras palavras, a idéia cen-tral de contaminação está associada à alteraçãoestética do produto e não à presença de um con-taminante, seja ele físico, químico ou biológico,conforme o discurso técnico-científico. No dia adia desses homens e mulheres, o alimento é fontede renda para matar a fome e esse lugar nomeadofeira é encontro, parentesco e conversas.

As práticas dos fiscais municipais não são edu-cativas, mas coercitivas e punitivas, em busca de

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uma ordenação que não leva em consideração osenso comum enquanto pano de fundo para aformação das práticas de higiene. São imposiçõesdo discurso oficial e não são eficazes na constru-ção das práticas dos sujeitos. Os feirantes da feirado Japão são atores e atrizes ativos, inseridos emsuas realidades, detentores de conhecimento epráticas próprias, constituintes do habitus4 fei-rante que vem se construindo desde muito.

É impossível pensar em qualquer mudançade comportamento sem pensar em mudança designos. Para intervir nas práticas de higiene, osprofissionais de saúde devem se inteirar dos có-digos que compõem a cena e seus personagens.

A correspondência entre os significantes dasfalas desses agentes sociais traz resultados quejustificam a necessidade de mudanças da práticadisciplinar sanitária. Não será a punição a rever-ter códigos, conceitos, estruturas, mas, antes, aobservância dos valores culturais sobre a feira esua estética que irá definir a higiene dos alimen-tos e a saúde.

A história da higiene na feira é construída noprocesso de configuração das práticas dos diver-sos atores desse espaço, movendo-se entre a tra-dição e os novos saberes de suas realidades de

Colaboradores

ACST Minnaert elaborou o projeto de pesquisa,coletou e analisou os dados que serviram de basepara este artigo e MCS Freitas participou da con-cepção do projeto que originou o artigo e da aná-lise dos dados. Todos os autores participaramda elaboração e revisão deste texto.

Agradecimentos

A realização desta pesquisa contou com apoiofinanceiro da Agência Nacional de Vigilância Sa-nitária, através do Centro Colaborador em Vi-gilância Sanitária do Instituto de Saúde Coletivada Universidade Federal da Bahia.

feirantes, garis, fiscais e consumidores. O que levaos feirantes a significarem suas condições de higi-ene está relacionado ao contexto socioeconômicoem que vivem e seus habitus4. Esses têm suas raí-zes no conhecimento que vai passando de gera-ção em geração e pouco a pouco se transforman-do na história inscrita no corpo desses atores4.

Com base nessas considerações, compreen-demos que as práticas de higiene são formadas apartir da interação de diversos sistemas simbóli-cos, em que os saberes se mesclam e se dividementre o êmico e o ético, o popular, tradicional e otécnico-científico. Convive-se com o estranho eo familiar, a norma e outros códigos. A feira éum espaço de significações que necessita ser com-preendido para que as intervenções sanitárias seviabilizem. E isto só é possível pela via dialógicaentre os distintos saberes e práticas.

Os feirantes sentem os efeitos do poder da lei,tentam modificar ou não suas práticas popularesde higiene e mantêm as repostas representacionaisde sua condição humana, em seu lugar, o mundoda feira, para sentir sua identidade sociocultural.As respostas estão na prática, com os acordos nemsempre dizíveis, entre as pessoas desta cena diária eantiga, a feira do Japão, na Liberdade da Bahia.

Page 8: Práticas de higiene em uma feira livre da cidade de Salvador (BA)

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Referências

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Artigo apresentado em 23/11/2007Aprovado em 11/01/2008Versão final apresentada em 02/04/2008

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