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Pela primeira vez sai uma edição crítica do mais famosoTl
aara muitos o mais notável, romance de Eça de QueirósTexto de Paula Morão e entrevista com Carlos Reis ri
A edição crítica dOs MaiasAcaba de ser publicada pela Imprensa Nacional, na coleção das edições críticas da Obra de Eça de Queiroz, o seu 17
o
volume, neste caso o em geral mais 'aclamado' romance do grande escritor: Os Maias - Episódios da vida Romântica.Sobre o romance e sobre esta edição escreve a prof â catedrática da Fac. de Letras da Universidade de Lisboa e ensaístade primeiro plano que a apresentou, seguindo -se uma breve entrevista com Carlos Reis, que dirige a coleção e é tambémresponsável, com Maria do Rosário Cunha, por esta mesma edição
Ilustração de Bernardo Marques (cd. 1971) O Passeio Público
A génese do texto d'OsMaias e o confrontodo texto publicadocom os testemunhos,escassos embora,permite propor umaleitura crítica dos
processos estilísticosvistos na sua génese, nasucessão de versões ena composição destas
Paula Morão
11. UMA QUESTÃOPATRIMONIALÉ bem conhecida dos estudiososde literatura uma questão que não
parecerá clara para os leitoresem geral: o que é e para que serveuma edição crítica? Pois bem,trata-se de fixar os textos com o
respeito que quem os produziudeve merecer, eliminando erros e
más leituras, tantas e tantas vezesrepetidos, mesmo se tal rigorfor contra aquilo que dedica-dos leitores fixaram (no caso daedições pessoanas, houve quem as
recusasse por não querer aceitarleituras críticas que se limita-vam a emendar versos errados).Uma edição crítica pode e deve ircontra hábitos instalados e errosreiterados em sucessivas publi-cações dos textos, e deve espe-rar que futuras edições tomemem conta o texto estabelecidoe restituído à vontade do autor.Trata- se de uma empresa difícil,mas indispensável: difícil, porqueexige dedicação, tempo, estudoe conhecimento aprofundado doautor que se estuda e do contextohistórico-literário em que este se
inscreve; e difícil também, porqueuma casa editora que se disponhaa ter no seu plano de publicaçõesprojetos de edição crítica de obrasfundamentais do património temde compreender, aceitar e acom-panhar a sua feitura por parte doscoordenadores e dos investigado-res que, por força de circunstân-cias da sua vida académica, nemsempre dispõem das condiçõesmateriais e de tempo que tarefasdeste domínio exigem.
Neste quadro, julgo ser dedestacar que, de acordo com o
previsto nos seus estatutos, a
Imprensa Nacional vem cum-prindo um papel de destaque, jáque tem no seu catálogo diver-sos projetos de edição crítica emcurso: a das obras de AlmeidaGarrett (direção de Ofélia PaivaMonteiro), a de Fernando Pessoa
(coordenada por Ivo Castro), a deCamilo Castelo Branco (tambémdirigida por Ivo Castro), e a de
Eça de Queirós (de que é respon-sável Carlos Reis). Acrescente-seainda a ainda jovem Biblioteca deLiteratura Portuguesa, que temcomo propósito dar a um públicoalargado (escolar e generalista)edições credíveis, tendo por base
o texto crítico estabelecido porinvestigadores diversos, apresen-tado por ensaístas que garantema qualidade destes volumes. Querdizer: a Imprensa Nacional vemcumprindo um desígnio essencialdo património imaterial portu-guês; é sua missão fazê-10, claro,mas é justo assinalá-lo e reconhecê -10.
Um segundo aspeto desta
questão conduz-nos à ediçãocrítica d' Os Maias, que aqui nostraz. Em 1999, Carlos Reis escreviao que vou citar, em sintonia com o
propósito das edições críticas emgeral, e da edição das Obras de Eçade Queirós em particular: "Nãoé fácil levar a cabo em Portugala edição crítica das obras de umescritor da dimensão de Eça, umatarefa longa (...), e não o é porquenem sempre se compreende o
alcance e a função de edições danatureza da que agora se publica."Eis-nos perante a dupla vertenteque assinalei, sobressaindo aquiloque Carlos Reis aqui designa porincompreensão quanto ao "al-cance" e à "função" das ediçõescríticas em geral. E acrescenta,certeiramente notando a "na-tureza" do próprio trabalho dos
investigadores da área: "Quem,contudo, olhar de perto e comatenção verificará que uma ediçãocomo esta exige muito mais do
que paciência e perseverança - o
que já não seria pouco; ela requertambém capacidade de decisão
crítica, certeira identificaçãocom as propriedades expressivasdo escritor editado e informaçãorigorosa e articulada, que é a quepermite conhecer as mais remotasorigens histórico -literárias de umtexto."
Este passo de 1999 parece-meformular de modo claríssimo o
que de essencial caracteriza o tra-balho do editor crítico, herdeirodo labor filológico. Às qualidadespessoais - "paciência" e "perse-
verança", às quais eu acrescen-taria a efetiva disponibilidadede tempo (coisa pouco evidentepara os académicos), junta-se a
preparação técnica necessária às
"decisões críticas" advenientesdo confronto de testemunhos quefoi preciso identificar e recolher,e ainda o conhecimento aprofun-dado da obra do autor que se edita,essencial para a "certeira identi-ficação" de traços de estilo, bemcomo da investigação de contextohistórico-literário.
Ora estes pressupostos, queCarlos Reis sintetizou a propósitod' A Ilustre Casa de Ramires, de-senham um programa de traba-lho para qualquer obra incluídanum projeto de publicação de
edições críticas - a das Obras de
Eça de Queirós, nomeadamente(17 volumes até ao presente). Aexperiência deste professor nestaárea não precisa de demonstração,mas vale a pena assinalar a práticareiterada da co-edição, no casod' Os Maias de novo com Maria doRosário Cunha.2. A EDIÇÃO CRÍTICAD'OS MAIAS - EPISÓDIOSDA VIDA ROMÂNTICAO volume dado à estampa comdata de dezembro de 2017 é o
17- do plano das obras de Eça de
Queirós, e o texto crítico estáenquadrado por uma "Notaprefaciai" curta, seguida de uma"Introdução" extensa (40 pági-nas), dando conta das vicissitudesda escrita, da publicação e dafortuna crítica coetânea da obraque, publicada em dois volumesem 1888, começa a ser esboçadaprimeiro e escrita depois cer-ca de dez anos antes. Ficamosassim a conhecer detalhadamen-te a história de uma das obras
primas de Eça, do século XIX e
de toda a literatura portugue-sa: são descritos extensamenteos procedimentos de escrita, aretícula de textos preparatóriose suas versões, as peripécias da
passagem de manuscrito a umaatribulada e morosa composiçãotipográfica, as edições que hojechamaríamos de pré-publicação,servindo de reclame, ou em folhe-tim. São descritos os testemunhos.escassos aliás, que documentam o
trabalho de composição literáriae o processo, comum em Eça, de
campanhas de emendas sobre
provas tipográficas - tudo isso do-cumentado em anexos que o leitorconsulta com proveito.
Conhecemos ainda, por cru-zamento desses testemunhos e
por circunstanciado da corres-pondência do escritor, muitos
aspetos importantes de tipologiadiversa não só do processo de
trabalho, com versões, rasuras,emendas, acrescentos e revisões,numa "incessante procura do
termo justo e da forma perfeita"(p. 24). Nas páginas 27 a 34, al-guns exemplos tornam literal-mente visível o laboratório de
Eça, ilustrando os procedimentostão minuciosos e tão exigentesdo seu trabalho de um modo queo leitor tecnicamente preparadoapreciará sobremaneira, mas quequalquer amante da obra de Eçaacompanhará na perfeição. No
processo de criação d' Os Maiaspodemos seguir o motivo do
incesto, comum mas muito dife-renciado na inacabada Tragédiada Rua das Flores e no romance de
1888, assim como a migração de
personagens antes esboçadas ou aaproximação em termos de géne-ro entre estes dois livros e outrosmais, num processo que mostra aoficina e o pensamento do autor,passando dos projetos mais oumenos elaborados à concretiza-ção em textos de grande fôlego,como Os Maias mostram no maisalto grau (pp. 34-39).
Em toda esta introdução os
processos estudados permitemvalorar o que chegou ao leitor em1888. Mas, além disso, o que aquise vê é a mão de quem trabalhatecnicamente com os textos paraos interpretar mais fundamente;ficam demonstrados os pontosenumerados na já atrás citadaintrodução de A Ilustre Casa de
Ramires, e muito especialmente a
sensibilidade critica que permi-te a "certeira identificação comas propriedades expressivas do
escritor", bem como a "informa-ção rigorosa e articulada", dandoa "conhecer as mais remotasorigens histórico-literárias de umtexto." Estas operações, note-se,nem sempre estão presentes nasedições deste tipo: muitos inves-tigadores seguem uma espéciede regra de abstenção quanto a
apreciações sobre o estilo e outrasqualidades literárias dos textos.No caso em apreço, não é que se
faça ensaísmo literário, mas acompetência dos estudos literá-rios largamente experimentadapermite o desenho de linhas de
leitura, tornadas consistentes pre-cisamente pelo grau de aprofun-damento da construção narrativa.
A génese do texto d' Os Maiase o confronto do texto publicadocom os testemunhos, escassos
embora, permite propor umaleitura crítica dos processosestilísticos vistos na sua génese,na sucessão de versões e nacomposição destas. Os textospreparatórios e o trabalho de
montagem, rasura, acrescentoou corte, tudo mostra e põeem relevo, nestas páginas de
introdução, Eça a escrever,literalmente a compor; a
propósito, veja-se com atençãoo anexo dap. 708, magníficoexemplo de prova tipográficacom emendas autografas. As
páginas sobre a publicação em1888 (pp. 39-46), incluindo aanálise de um lapso no episódiodo Hotel Central, e as que estudama primeira fortuna crítica d' OsMaias (pp. 46-56) completam estautilíssima e rigorosa introdução.
Resta- nos ler o livro, munidosdestas informações ou sem elas- mas, com elas, certamentecom proveito e gozo acrescidos.
Mário de Carvalho diz alguresque lê Os Maias uma vez por ano;sigamos o exemplo de humildadedeste grande: demos lugar ao
património que a todos pertence,e de caminho encontraremoso esplendor do estilo sem par,a língua portuguesa que se nosdá em espectáculo de riso ede sombras, a inteligência dos
"episódios da vida romântica",espelho de Portugal sem tempoporque fala de aqui, de agora e decada um de nós. jl
44A competência dosestudos literárioslargamenteexperimentadapermite o desenhode linhas de leitura,tornadas consistentes
precisamente pelo graude aprofundamento daconstrução narrativa
> Eça de Queirós
OS MAIAS -EPISÓDIOS DA VIDAROMÂNTICAEdição de Carlos Reis e Mariado Rosário Cunha, imprensaNacional, 720 pp., 40 euros