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Título: PRINCESAS : ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES Área Temática: Educação e Comunicação / Tec. Educacionais Autora: PAOLA BASSO MENNA BARRETO GOMES Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul O trabalho que estou propondo é uma teorização multidisciplinar sobre o papel das imagens produzidas pela cultura de massas, no caso as princesas criadas e comercializadas pelas Disney Corporation, na constituição da subjetividade. Estou utilizando o conceito de subjetividade encontrado em textos de Deleuze e Guattari, que a definem como território existencial inapreensível que implica em modos de ser. A subjetividade compreende instâncias corpóreas, psíquicas e sociais dos sujeitos, mas, dentro do vasto campo em que atua, o que podemos vislumbrar, nas palavras de Suely ROLNIK, “é apenas um perfil de um modo de ser”. GUATTARI, um dos teóricos inspiradores de ROLNIK, define subjetividade como território existencial auto-referencial. Neste território, acontecem as subjetivações e as sujeições que se imbricam no constante processo de formação, construção e renovação de identidades, processo que inscreve as marcas culturais na visibilidade dos corpos. Ao tratar da subjetividade na obra de FOUCAULT, DELEUZE alega que não há sujeito, e sim produção de subjetividade. Este trabalho tratará dos modos de subjetivação que se referem ao imaginário feminino, analisando representações de figuras femininas que oferecem-se como modelo identitário, não apenas pela sua vendagem na indústria cultural mas também por estarem atreladas a significados culturais que lhe conferem poder. Este poder subjetivante, presente nas imagens que figuram um tipo de modelo identitário, educa o sujeito para um tipo de olhar sobre os corpos, construindo modos de fazer julgamentos estéticos e morais sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo. Seguindo a trilha de autores como Peter MCLAREN, Stuart HALL, Henri GIROUX, Jhon KINCHELOE e Shirley STEINBERG, parto do princípio de que a educação é um processo onde a cultura é incutida dentro dos sujeitos em todos os

PRINCESAS: ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

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Page 1: PRINCESAS: ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Título: PRINCESAS : ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Área Temática: Educação e Comunicação / Tec. Educacionais

Autora: PAOLA BASSO MENNA BARRETO GOMES

Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O trabalho que estou propondo é uma teorização multidisciplinar sobre o

papel das imagens produzidas pela cultura de massas, no caso as princesas

criadas e comercializadas pelas Disney Corporation, na constituição da

subjetividade. Estou utilizando o conceito de subjetividade encontrado em textos

de Deleuze e Guattari, que a definem como território existencial inapreensível que

implica em modos de ser. A subjetividade compreende instâncias corpóreas,

psíquicas e sociais dos sujeitos, mas, dentro do vasto campo em que atua, o que

podemos vislumbrar, nas palavras de Suely ROLNIK, “é apenas um perfil de um

modo de ser”. GUATTARI, um dos teóricos inspiradores de ROLNIK, define

subjetividade como território existencial auto-referencial. Neste território,

acontecem as subjetivações e as sujeições que se imbricam no constante

processo de formação, construção e renovação de identidades, processo que

inscreve as marcas culturais na visibilidade dos corpos. Ao tratar da subjetividade

na obra de FOUCAULT, DELEUZE alega que não há sujeito, e sim produção de

subjetividade. Este trabalho tratará dos modos de subjetivação que se referem ao

imaginário feminino, analisando representações de figuras femininas que

oferecem-se como modelo identitário, não apenas pela sua vendagem na indústria

cultural mas também por estarem atreladas a significados culturais que lhe

conferem poder. Este poder subjetivante, presente nas imagens que figuram um

tipo de modelo identitário, educa o sujeito para um tipo de olhar sobre os corpos,

construindo modos de fazer julgamentos estéticos e morais sobre o mundo, sobre

os outros e sobre si mesmo.

Seguindo a trilha de autores como Peter MCLAREN, Stuart HALL, Henri

GIROUX, Jhon KINCHELOE e Shirley STEINBERG, parto do princípio de que a

educação é um processo onde a cultura é incutida dentro dos sujeitos em todos os

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aspectos da vida social e psíquica. Nesta perspectiva, o processo educativo não

está restrito às instâncias tradicionalmente reconhecidas para este fim, como as

escolas, as universidades, a Igreja e a família, mas estende-se a todas as formas

de propagação da cultura, desde as práticas cotidianas de caráter doméstico até

os mais variados atos públicos. Entre estes múltiplos lugares de aprendizagem, os

meios de comunicação e a indústria do entretenimento ultimamente tem recebido

bastante atenção pelos pesquisadores em educação, não apenas por fazerem

parte efetiva do cotidiano de nosso tempo, mas também devido ao poder que

exercem como formadores e propagadores de saberes. Apoio-me na tese

defendida por minha orientadora, Rosa Maria Bueno FISCHER, que ao investigar os

discursos da mídia atestou não apenas que a esta é uma poderosa produtora e

veiculadora de verdades, mas também constatou que a mídia vem assumindo um

papel pedagógico: artigos em revistas, programas de televisão e filmes, por

exemplo, muitas vezes são considerados educativos e a informação contida

nestes, legítima. Os filmes Disney são um exemplo consagrado do que

aparentemente ensina o que é correto, como agir bem e a postura necessária para

enfrentarmos as adversidades. Em seu artigo “A Disneyzação da Cultura Infantil”,

Henri GIROUX debate o conteúdo de alguns filmes da Disney questionando as

posições de raça e de gênero apresentadas e mostrando o quanto estes filmes

colaboram para manter os lugares dominantes tradicionais. GIROUX também

discute a exorbitância dos lucros obtidos dentro desta companhia e os fins

comerciais com que são lançados todos os seus produtos, atentando para o poder

da Disney como uma onipresente fábrica de imaginário. Minha intenção é tratar

especificamente das questões da formação do imaginário, que na atualidade está

sujeito a todos produtos visuais propagados pela cultura de consumo.

Na profusão de ditos e imagens que povoam nosso cotidiano, educamos e

somos educados a determinados modos de pensar, agir e sentir, a possuirmos

modos de ser que nos colocam em lugares reconhecidos e nos constituem como

sujeitos portadores de uma identidade. Estudando alguns textos de LACAN e de

seus seguidores (KAUFMANN, FINK, NASIO e KEHL) encontrei subsídio teórico para

explicar o que empiricamente já havia percebido como professora de artes: a

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fundamentabilidade da imagem da figura humana nos processos de identificação e

na formação do “Eu”. Embora as imagens parentais e a auto-imagem no espelho

sejam a gênese da identificação, considero a continuidade deste processo ao

longo da vida do sujeito e considerar os mais diversos dispositivos imagéticos com

os quais constituímos nosso “Eu”, incluindo aqui, as personas culturais que

assimilamos ao longo de nossas histórias. A grande incidência de representações

figurativas em toda a história da arte, a insistência das imagens midiáticas no

corpo humano e mesmo a crença judaico-cristã de sermos “a imagem e

semelhança de Deus” demonstram a importância psíquica das representações

figurativas do corpo humano. Minha análise tratará destas representações

pictóricas, substâncias oculares que embasam as identificações inconscientes e

que muitas vezes ocupam o espaço do significante. Contudo, ao analisar as

representações pictóricas também abordarei as representações culturais

envolvidas nestas imagens, considerando não apenas sua relação com o “Eu”

imaginário, instância psíquica de nível inconsciente, mas também com as

identidades assumidas pelo sujeito e com a personalidade com que se reconhece

conscientemente dentro da cultura.

Quero tratar de figuras humanas que circulam nos meios midiáticos e

também na indústria de consumo, e que por sua incidência quantitativa no

decorrer das últimas décadas estabelecem visualidades que padronizam um

determinado modelo comportamental. Dentro da vastidão de nossos imaginários

culturais escolhi analisar as imagens de figuras femininas produzidas nos estúdios

Disney porque além de serem representações típicas de um protótipo de

feminilidade ideal, são produtos consumidos em grande escala, sob as formas

mais diversas. Além de serem assistidas nos cinemas e em fitas VHS, aparecem

nos mais variados espetáculos e nos mais prosaicos produtos. Estampadas em

biscoitos, mochilas, cadernos, escovas-de-dente, embalagens de xampu, peças

de vestuário, lençóis, toalhas de banho e decoração de aniversários, como

bonecas, ilustradas em jogos, adesivos, figurinhas e livros de histórias, as

personagens das histórias Disney são amplamente comercializadas, vendendo um

suposto ideal de feminilidade que é consumido globalmente. Embora meu olhar

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esteja atento para as heroínas Disney surgidas nos últimos dez anos, minha

análise será feita sobre as três princesas chamadas “clássicas”, Branca de Neve,

Cinderela e Bela Adormecida. Embora todas tenham sido criadas há mais de

quarenta anos e tenham subjetivado várias gerações, os filmes que protagonizam

são assistidos em grande escala através do comércio e locação de fitas VHS e

comercializadas na forma de diversos produtos. Antes de proceder a análise

crítica das figuras das princesas, pretendo fazer um levantamento sobre os

produtos culturais, da atualidade e das últimas décadas, que veicularam a imagem

e os discursos referentes a este tema. (ver levantamento de dados)

Os significados que a cultura atribui a estas imagens está relacionado a

um lugar de origem histórica que mitificou-se na figura social ou fictícia chamada

“princesa”. O tema de análise “princesa’ não refere-se apenas aos sujeitos do

sexo feminino que ostentam este título aristocrático, mas sim à personagens e

personalidades que apresentam-se no imaginário cultural como figuras pertinentes

a um conteúdo mítico específico. Dentro da concepção barthesiana de mito, que

analisa os sistemas semiológicos e as falas ideológicas apresentadas por

produtos e práticas sacralizados dentro da cultura de massas, considero as figuras

das princesas e suas equivalentes como mitificação de um tipo de feminilidade

conveniente para os discursos dominantes. As incidências deste mito na mídia e

no imaginário social são muitas e pretendo narrrá-las no primeiro capítulo de

minha dissertação. Além das memoráveis Grace Kelly e Lady Di, pretendo citar

exemplos como Xuxa, Angélica e a modelo Shirley Mallman, assim como os

modos glamourizados que a mídia utiliza para apresentar a vida pessoal de

mulheres famosas. Quero descrever a personagens que ocupam esta posição ou

posição similares em filmes, novelas, comerciais, assim como produtos que por

ventura reproduzam características e formas reportados à este tipo de

representação, como por exemplo, as bonecas “Barbie”, as jovens de classes

abastadas identificadas como “patricinhas”, as práticas sociais dos bailes de

debutantes, festas tradicionais de casamento, concursos de beleza e a

mistificação da carreira de modelo.

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Quero descrever tanto as personalidades da mídia como as personagens

fictícias que ocupam este lugar, embora minha análise será pormenorizada sobre

as figuras das três princesas Disney clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela

Adormecida. Aprofundarei minha análise no aspecto formal das figuras

desenhadas nos estúdios Disney: o estilo de seus traços, os cânones estéticos

que obedecem, as musas que inspiraram os desenhistas, o tipo de figurino, a

movimentação que as anima e a constituição destas figuras como personagens. O

papel que ocupam dentro da estrutura dos filmes que protagonizam, suas ações,

falas e as posturas assumidas no interior da narrativa serão observados e

descritos. Também pretendo contextualizar a época em que cada uma destas

princesas foi criada, observando os acontecimentos mundiais e a história da vida

cotidiana.

Ao descrever as incidências deste tema na mídia e ao analisar

detalhadamente as princesas Disney, pretendo discutir a gama de significados que

envolvem estas figuras. Como posição feminina que goza de privilégios sociais, o

primeiro aspecto que analisarei refere-se ao título de nobreza que as princesas

ostentam ou acabam ostentando após unirem-se com um príncipe. Em relação a

este aspecto, gostaria de analisar os símbolos e as práticas que distinguem a

classe culturalmente dominante e levantar os elementos revestidos de significados

aristocráticos. Aqui, pretendo abordar as questões sobre o valor histórico do

sangue e pureza racial, sempre traçando paralelos com a realidade

contemporânea. Como as práticas das classes dominantes envolvem ritos que

complexificaram o cotidiano, gostaria de pontuar algumas considerações sobre

trabalho doméstico e a responsabilidade pela manutenção do lar, assim como as

posturas cerimoniais e espontâneas apresentadas por estas figuras. Um segundo

aspecto a ser discutido também parte da posição histórica ocupada pela princesa:

a moça cujo valor social é conferido por estar apta a contrair matrimônio. Este

lugar foi incrementado ao longo do século XX com características delimitadas, que

não só indicam uma idade cronológica, mas principalmente especificam a

obrigatoriedade de um tipo de beleza, enquadrada dentro das normas estéticas

vigentes. Ao discutir o ideal de beleza propagado por estas figuras, não estarei

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apenas tratando de um cânone de corpo considerado perfeito, mas também a

todos os elementos e artifícios que manipulamos e usamos sobre nossos corpos

para torná-los mais “belos”. Descrevendo o padrão de beleza veiculados na mídia

e as práticas culturais que visam atingi-los, pretendo debater a imperialidade dos

corpos jovens e magros e questionar as possíveis sujeições que nos submetemos

para nos tornarmos estes corpos. A beleza nos interessa porque seus padrões

regulam os lugares onde permitimos amarmos e sermos amados e a partir deste

lugar conferido pela beleza, a figura da princesa apresenta-se como apta para

protagonizar o amor. Esta posição que lha coloca como ente desejante e

desejado, abre um último aspecto a ser discutido em relação aos significados

sociais contidos na figura da princesa: o mito do amor romântico, quase sempre

coroado pelo ritual de casamento. Não preciso trazer exemplos para atestar a

hegemonia deste mito na contemporaneidade: novelas, livros best-sellers, filmes

de grande bilheteria, reforçam a crença de a possibilidade de realização amorosa

está no encontro sentimental com alguém do sexo oposto.

Distinguimos aqui, uma subjetividade intrincada nos discursos de nobreza,

beleza e amor romântico, uma subjetividade que pode ser representada pela

figura cultural reconhecida como “princesa”. Os sujeitos, principalmente meninas,

moças e mulheres, a quem estes discursos são explicitamente dirigidos, regulam-

se dentro de padrões que envolvem a idealidade de um prestígio social (nobreza),

adequação à norma estética numa concepção dada de corpo e indumentária

corretos (beleza) e principalmente através do mito de que a realização plena só é

possível através do amor. Estes discursos permeiam um lugar marcadamente

feminino, cuja figura da princesa congrega qualidades idealizadas dos aspectos

que a cultura dominante atribui como significativos para a feminilidade.

Submetidas às normas e às leis sancionadas no interior destes discursos,

as figuras de Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, foram criadas pela

Disney dentro de padrões determinados pela sociedade onde está inserida a

corporação que as produziu. A vigência de suas imagens na cultura de massas ao

longo de no mínimo quatro décadas, confere a estas figuras um importante papel

subjetivador na vida de meninas de várias gerações. Muitas imagens da indústria

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do entretenimento, principalmente os desenhos da Disney e da Warner, povoam o

cotidiano infantil, contudo estas princesas, principalmente por serem desenhadas

em proporções compatíveis com a anatomia humana, apresentam-se como

modelos potenciais para os processos identificatórios.

Nas imagens das princesas podemos vislumbrar o que Guattari chamou

de “cristalização de um modelo de identidade”, o que faz com que eu aborde estas

figuras como material empírico diretamente relacionado com a propagação do que

Suely ROLNIK chamou de “kits de perfis-padrão”, referências identitárias

produzidas “de acordo com cada órbita do mercado para serem consumidos pelas

subjetividades”. Ao tratar destes modelos identificatórios trabalho com o conceito

de estereótipo para designar a imagem reproduzida exaustivamente, sempre

obedecendo a um padrões formais delimitados pelo fácil reconhecimento. Além de

debater o papel dos clichês visuais na produção de subjetividade, o conceito de

estereótipo fundamenta a discussão sobre a recorrência das figuras míticas e as

formas iconológicas, estáticas e mutantes, que estas assumem dentro de uma

cultura. Quando falo de figuras míticas, não estou apenas me referindo às

personalidades mitificadas pela mídia e pela cultura de massas, mas também a

mitos arcaicos e a todas as figuras que, de um modo ou de outro, consagraram-se

em lugares de idealidade, como santos, personagens históricos, personagens da

indústria cultural, personalidades sociais e as personas da mídia.

A recorrência de temas e representações nas mais variadas épocas e

culturas chamou a atenção da psicanálise na medida que possuem inegável força

psíquica. Partindo de uma base psicanalítica, mas rompendo com a concepção de

que o conteúdo destas forças era apenas de ordem libidinal, JUNG denominou-as

arquétipos. O conceito de arquétipo é útil na identificação de representações

culturais arcaicas de arraigado poder psíquico, pois aponta matrizes simbólicas,

como as posições parentais, por exemplo, que incidem nas estruturas culturais

dos mais diferentes povos ao longo da história da humanidade. Contudo as

representações destas matrizes arcaicas apresentam manifestações específicas

que variam de acordo com o contexto. O historiador das religiões, Mircea ELIADE,

concebe os mitos e símbolos como criações culturais elaboradas e veiculadas

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dentro da sociedade, mesmo quando seus significados tangem a forças de ordem

natural. O lugar arquetípico de uma determinada figura juntamente com a

representação formal estereotipada que esta figura assume dentro de um dado

contexto são pontos relevantes na reflexão sobre os modelos identitários e a

produção de subjetividades.

A figura arquetípica da jovem heroína de um conto oriundo da tradição

popular oral é revestida de formas diversas no transcorrer dos processos

históricos e dos deslocamentos que sofre. As versões Disney destas heroínas

além de estarem submetidas a versões condicionadas a determinadas situações

culturais (como transcrições de PERRAULT durante o absolutismo aristocrático na

França do século XVIII ou os balés criados por PETIPA dentro dos ideais

românticos do século XIX), produzem um tipo específico de princesa, subordinada

aos discursos vigentes durante a situação em que emergiram. As princesas que

proponho analisar são criações oriundas da industria cinematográfica, que a partir

da década de cinqüenta promoveu a reprodução, com fins explicitamente

comerciais, de imagens evocativas dos filmes. Os personagens tornaram-se

ícones de acesso fácil, vendáveis não só através de um eficiente sistema

mercadológico, mas devido aos significados culturais imbuídos em suas

figurações.

Analisando as personagens Disney que representam uma potência

identificatória específica, pretendo evidenciar quais os significados que são

mantidos e que novos significados são construídos no transcorrer destas quatro

décadas, de 1959 a 1999, em que foram e são consumidas como ícones de uma

feminilidade idealizada. Esta análise pretende embasar a reflexão sobre as

seguintes questões: A eficácia destas imagens envolve um possível conteúdo

arquetípico? A estandardização destas imagens esvazia ou reforça sua força

psicológica? Até que ponto uma figura considerada arquetípica reforça um

representação dominante? Que tipo de modelos identificatórios a estereotipia

produzida por uma representação formal de grande reprodutividade nos submete?

Como situar o “eu” dentro desta paisagem imaginária colonizada pelas imagens

fabricadas na cultura dominante? E como se sentem os sujeitos femininos ou com

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identidades sexuais femininas que não se enquadram no padrão de idealidade

que estas imagens impõem?

Formulei estas questões para debater o problema teórico que esta

temática suscita: a ressonância psicológica, portando subjetivadora, evocada

pelas imagens que espelhamos nossos “eus". Conceituá-las em estereotipadas ou

arquetípicas auxilia-me na abordagem dos significados portados por estas

imagens, se estas figuras possuem força simbólica ou são apenas significantes de

um dado lugar social. Este problema teórico inclui problemas empíricos que dizem

respeito a vida de todos nós, na medida em um modelo de feminilidade,

amplamente figurado na mídia, é imposto como “certo, correto”.

Tratando deste modelo de mulher, que se apresenta sempre jovem, clara,

dócil, esguia, sem ventre proeminente, pretendo refletir os significados que a

cultura tem privilegiado em relação a feminilidade. Por exemplo, assisti na semana

anterior algumas propagandas comerciais da véspera do dia das mães e observei

que as mães representadas eram todas magras e jovens, sendo que uma delas a

figura da filha adolescente e de sua mãe eram propositadamente confundidas.

Este anúncio me fez lembrar de um texto de minha orientadora que falava da

“jovem mulher de quarenta anos”, que suscitou em mim o desejo de discutir o mito

da “eterna juventude” e suas implicações subjetivas. Por que a mídia e a indústria

cultural investem de positividade este aspecto da existência feminina, tão bem

representado pela figura das princesas? Observando a insistência de nossa

cultura nos signos da juventude suponho que o papel este seja um lugar

adequado para protagonizar o que instituímos como amor, esta instância

indefinida e etérea que mobiliza mercados e norteia as diretrizes da grande

indústria do entretenimento. O amor é instituído como ideal de felicidade, o

discurso do amor romântico é imperante em nossa cultura, não apenas sendo

consumido como entretenimento mas também fazendo circular inúmeras crenças,

práticas e saberes, ocupando uma parte significativa de nossas buscas e histórias

pessoais. As representações mais vigentes em torno do amor, muito bem

exemplificadas pelas figuras das princesas Disney, reforçam as situação

dominante onde os sujeitos do gênero feminino dependem do afeto e da atenção

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masculinas para se realizarem como mulheres, o que exige o disciplinamento do

corpo e da aparência com vistas de atrair e conquistar o outro. A aparência

adequada para o amor é inexoravelmente subordinada à modas, estilos, cânones

estéticos e hábitos culturais em relação à higiene corporal. Muitas são as

situações onde percebemos o poder da aparência no que se refere às estratégicas

posições de amar e ser amado. Em seu livro de memórias, Zélia GATTAI conta que

convenceu Jorge Amado a “arrumar os dentes quebrados da personagem Teresa

Batista”, alegando que ninguém ia gostar de ler um romance em que a heroína

abria a boca e aparecesse um buraco. Após assistir ao filme americano “O

Guarda-costas”, com Withney Houston e Kevin Costner, perguntei para minha

falecida avó o que ela tinha achado, ela respondeu hesitante:

- O filme é bom, mas não sei, não gostei muito.

- Por quê?- perguntei.

- Porque ela é meio negrinha para ele.

Nestes exemplos cotidianos estão inscritos os preconceitos que

estabelecem formas não só para os modos de amar, mas também estereótipos

em relação a quem pode amar quem, a quem merece amor, a quem é digno ou

não digno de viver o amor. Aos excluídos do amor, o que resta, se o amor

instaura-se como esperança compensatória de todas as outras exclusões? Com

este trabalho quero atentar não apenas para as estereotipias dos modos de ser e

de vivermos o amor, mas também para a rigidez de um lugar social marcadamente

feminino e regulado por normas estéticas que sancionam quais são as mulheres

passíveis de serem amadas ou odiadas. Investigando se estes estereótipos são

naturalizados devido à força psíquica de um suposto conteúdo arquetípico ou se

estabelecem seu poder dentro de uma complexa rede de submetimento

imaginário, pretendo atentar para a maneira de como operam as forças e

constituem os padrões que marcam nossas subjetividades, inscrevendo em

nossos corpos as possibilidades ou a impossibilidade de gozo.

DELEUZE pergunta: “A subjetividade moderna reencontraria o corpo e seus

prazeres contra um desejo tão submetido à Lei?” . O que é incutido através da

mídia e das grandes corporações produtoras de imaginário tem resultados

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esmagadores, tamanha as imposições hipnotizadoras de algumas imagens. A

hipnose talvez seja irreversível dentro de sujeitos que cresceram aprendendo a

adorar o Mickey Mouse e que depositaram nos ícones aparentemente inofensivos

de sua infância as crenças que consideram elevadas? Como romper com o

encantamento que fábricas de imaginário, tão poderosas como a Disney,

promovem? Como buscar modos de ser não submetidos aos padrões

globalizadores que colonizam nossos territórios existenciais? Como não levar

nossas vidas de forma estereotipada, não nos deixando levar pelos apelos da

hiper-realidade? Como vivermos a realidade sem sermos “bonecos de

marionetes”, manipulados por redes de poder que se auto regulam de acordo com

nossos movimentos involuntários?

Ao trabalhar com o princípio de que somos assujeitados pelos significados

dominantes e pelas formas imaginárias pelas quais estes significados se

revestem, tenho a intenção de descrever a hegemonia de determinadas

representações, representações que se apresentam em formas de estereótipos.

As versões estereotipadas que revestem certas identidades culturais precisam ser

combatidas a fim de que formas diversificadas de subjetividade possam ser

aceitas e as variadas formas de identidade possam ser respeitadas.

Em autores de escolas diferentes, como GUATTARI e KINCHELOE, encontro

o argumento de que a arte é o instrumento mais eficaz no que se refere a

“produção de novos modos de subjetivação” (GUATTARI, 1998), pois como

“epistemologia alternativa” (KINCHELOE, 1997, p. 72) é um campo onde podem ser

operadas possibilidades de reversão e subversão dos saberes produtores de

estereotipias. As possibilidades de reconstrução do imaginário e criação do que

GUATTARI chamou de “subjetividades mutantes” serão o foco final de minha

dissertação, onde pretendo trazer exemplos de trabalhos artísticos

contemporâneos que trazem outros olhares sobre a feminilidade. Na medida em

que a produção do imaginário hegemônico envolve elaborações formais advindas

da arte popular e erudita, é através da arte como estratégia de mobilização que

poderemos desconstruir os modelos estéticos vigentes, as formas que cristalizam

o olhar em padrões que servem aos discursos dominantes.

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Como professora de artes, sei o quanto as questões que estou propondo

dissertar atravessam o cotidiano de sala de aula, onde a bagagem imagética dos

alunos está muito distante das novas linguagens da arte contemporânea e minada

de referências da cultura de massas midiática, onde a subjetividade dos alunos

reproduz padrões estereotipados ao invés de manifestar as singularidades, onde a

diferença é rechaçada em prol de comportamentos homogêneos e invisíveis. Com

vistas de trazer o que tenho elaborado conceitualmente para os problemas

concretos enfrentados no ensino das artes e na conflituosa relação do grande

público com a arte contemporânea, inclui, no texto da minha proposta de

dissertação, um complemento da pesquisa que envolveria a participação de outras

professoras de artes, onde colheria depoimentos sobre os filmes e debateria

questões sobre o tema em que estou trabalhando. Devido a brevidade do tempo

disponível para a conclusão da dissertação e a complexificação de dados que este

procedimento acarretaria, tenho reconsiderado esta parte do trabalho, pensando

em reduzir a extensão desta questão, que por si poderia desenvolver outra

dissertação, em um capítulo sobre artistas locais que abordam temas pertinentes

à minha análise. Minha intenção é mostrar que as imposições imaginárias podem

ser reinventadas e reconstruídas na medida em que são absorvidas por outras

culturas, que artistas e pessoas sensíveis aos movimentos artísticos podem

expressar outras formas de representação feminina e revertendo assim, as

posições tradicionais, a iconologia estanque e os padrões estereotipados.