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Título: PRINCESAS : ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Área Temática: Educação e Comunicação / Tec. Educacionais
Autora: PAOLA BASSO MENNA BARRETO GOMES
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O trabalho que estou propondo é uma teorização multidisciplinar sobre o
papel das imagens produzidas pela cultura de massas, no caso as princesas
criadas e comercializadas pelas Disney Corporation, na constituição da
subjetividade. Estou utilizando o conceito de subjetividade encontrado em textos
de Deleuze e Guattari, que a definem como território existencial inapreensível que
implica em modos de ser. A subjetividade compreende instâncias corpóreas,
psíquicas e sociais dos sujeitos, mas, dentro do vasto campo em que atua, o que
podemos vislumbrar, nas palavras de Suely ROLNIK, “é apenas um perfil de um
modo de ser”. GUATTARI, um dos teóricos inspiradores de ROLNIK, define
subjetividade como território existencial auto-referencial. Neste território,
acontecem as subjetivações e as sujeições que se imbricam no constante
processo de formação, construção e renovação de identidades, processo que
inscreve as marcas culturais na visibilidade dos corpos. Ao tratar da subjetividade
na obra de FOUCAULT, DELEUZE alega que não há sujeito, e sim produção de
subjetividade. Este trabalho tratará dos modos de subjetivação que se referem ao
imaginário feminino, analisando representações de figuras femininas que
oferecem-se como modelo identitário, não apenas pela sua vendagem na indústria
cultural mas também por estarem atreladas a significados culturais que lhe
conferem poder. Este poder subjetivante, presente nas imagens que figuram um
tipo de modelo identitário, educa o sujeito para um tipo de olhar sobre os corpos,
construindo modos de fazer julgamentos estéticos e morais sobre o mundo, sobre
os outros e sobre si mesmo.
Seguindo a trilha de autores como Peter MCLAREN, Stuart HALL, Henri
GIROUX, Jhon KINCHELOE e Shirley STEINBERG, parto do princípio de que a
educação é um processo onde a cultura é incutida dentro dos sujeitos em todos os
aspectos da vida social e psíquica. Nesta perspectiva, o processo educativo não
está restrito às instâncias tradicionalmente reconhecidas para este fim, como as
escolas, as universidades, a Igreja e a família, mas estende-se a todas as formas
de propagação da cultura, desde as práticas cotidianas de caráter doméstico até
os mais variados atos públicos. Entre estes múltiplos lugares de aprendizagem, os
meios de comunicação e a indústria do entretenimento ultimamente tem recebido
bastante atenção pelos pesquisadores em educação, não apenas por fazerem
parte efetiva do cotidiano de nosso tempo, mas também devido ao poder que
exercem como formadores e propagadores de saberes. Apoio-me na tese
defendida por minha orientadora, Rosa Maria Bueno FISCHER, que ao investigar os
discursos da mídia atestou não apenas que a esta é uma poderosa produtora e
veiculadora de verdades, mas também constatou que a mídia vem assumindo um
papel pedagógico: artigos em revistas, programas de televisão e filmes, por
exemplo, muitas vezes são considerados educativos e a informação contida
nestes, legítima. Os filmes Disney são um exemplo consagrado do que
aparentemente ensina o que é correto, como agir bem e a postura necessária para
enfrentarmos as adversidades. Em seu artigo “A Disneyzação da Cultura Infantil”,
Henri GIROUX debate o conteúdo de alguns filmes da Disney questionando as
posições de raça e de gênero apresentadas e mostrando o quanto estes filmes
colaboram para manter os lugares dominantes tradicionais. GIROUX também
discute a exorbitância dos lucros obtidos dentro desta companhia e os fins
comerciais com que são lançados todos os seus produtos, atentando para o poder
da Disney como uma onipresente fábrica de imaginário. Minha intenção é tratar
especificamente das questões da formação do imaginário, que na atualidade está
sujeito a todos produtos visuais propagados pela cultura de consumo.
Na profusão de ditos e imagens que povoam nosso cotidiano, educamos e
somos educados a determinados modos de pensar, agir e sentir, a possuirmos
modos de ser que nos colocam em lugares reconhecidos e nos constituem como
sujeitos portadores de uma identidade. Estudando alguns textos de LACAN e de
seus seguidores (KAUFMANN, FINK, NASIO e KEHL) encontrei subsídio teórico para
explicar o que empiricamente já havia percebido como professora de artes: a
fundamentabilidade da imagem da figura humana nos processos de identificação e
na formação do “Eu”. Embora as imagens parentais e a auto-imagem no espelho
sejam a gênese da identificação, considero a continuidade deste processo ao
longo da vida do sujeito e considerar os mais diversos dispositivos imagéticos com
os quais constituímos nosso “Eu”, incluindo aqui, as personas culturais que
assimilamos ao longo de nossas histórias. A grande incidência de representações
figurativas em toda a história da arte, a insistência das imagens midiáticas no
corpo humano e mesmo a crença judaico-cristã de sermos “a imagem e
semelhança de Deus” demonstram a importância psíquica das representações
figurativas do corpo humano. Minha análise tratará destas representações
pictóricas, substâncias oculares que embasam as identificações inconscientes e
que muitas vezes ocupam o espaço do significante. Contudo, ao analisar as
representações pictóricas também abordarei as representações culturais
envolvidas nestas imagens, considerando não apenas sua relação com o “Eu”
imaginário, instância psíquica de nível inconsciente, mas também com as
identidades assumidas pelo sujeito e com a personalidade com que se reconhece
conscientemente dentro da cultura.
Quero tratar de figuras humanas que circulam nos meios midiáticos e
também na indústria de consumo, e que por sua incidência quantitativa no
decorrer das últimas décadas estabelecem visualidades que padronizam um
determinado modelo comportamental. Dentro da vastidão de nossos imaginários
culturais escolhi analisar as imagens de figuras femininas produzidas nos estúdios
Disney porque além de serem representações típicas de um protótipo de
feminilidade ideal, são produtos consumidos em grande escala, sob as formas
mais diversas. Além de serem assistidas nos cinemas e em fitas VHS, aparecem
nos mais variados espetáculos e nos mais prosaicos produtos. Estampadas em
biscoitos, mochilas, cadernos, escovas-de-dente, embalagens de xampu, peças
de vestuário, lençóis, toalhas de banho e decoração de aniversários, como
bonecas, ilustradas em jogos, adesivos, figurinhas e livros de histórias, as
personagens das histórias Disney são amplamente comercializadas, vendendo um
suposto ideal de feminilidade que é consumido globalmente. Embora meu olhar
esteja atento para as heroínas Disney surgidas nos últimos dez anos, minha
análise será feita sobre as três princesas chamadas “clássicas”, Branca de Neve,
Cinderela e Bela Adormecida. Embora todas tenham sido criadas há mais de
quarenta anos e tenham subjetivado várias gerações, os filmes que protagonizam
são assistidos em grande escala através do comércio e locação de fitas VHS e
comercializadas na forma de diversos produtos. Antes de proceder a análise
crítica das figuras das princesas, pretendo fazer um levantamento sobre os
produtos culturais, da atualidade e das últimas décadas, que veicularam a imagem
e os discursos referentes a este tema. (ver levantamento de dados)
Os significados que a cultura atribui a estas imagens está relacionado a
um lugar de origem histórica que mitificou-se na figura social ou fictícia chamada
“princesa”. O tema de análise “princesa’ não refere-se apenas aos sujeitos do
sexo feminino que ostentam este título aristocrático, mas sim à personagens e
personalidades que apresentam-se no imaginário cultural como figuras pertinentes
a um conteúdo mítico específico. Dentro da concepção barthesiana de mito, que
analisa os sistemas semiológicos e as falas ideológicas apresentadas por
produtos e práticas sacralizados dentro da cultura de massas, considero as figuras
das princesas e suas equivalentes como mitificação de um tipo de feminilidade
conveniente para os discursos dominantes. As incidências deste mito na mídia e
no imaginário social são muitas e pretendo narrrá-las no primeiro capítulo de
minha dissertação. Além das memoráveis Grace Kelly e Lady Di, pretendo citar
exemplos como Xuxa, Angélica e a modelo Shirley Mallman, assim como os
modos glamourizados que a mídia utiliza para apresentar a vida pessoal de
mulheres famosas. Quero descrever a personagens que ocupam esta posição ou
posição similares em filmes, novelas, comerciais, assim como produtos que por
ventura reproduzam características e formas reportados à este tipo de
representação, como por exemplo, as bonecas “Barbie”, as jovens de classes
abastadas identificadas como “patricinhas”, as práticas sociais dos bailes de
debutantes, festas tradicionais de casamento, concursos de beleza e a
mistificação da carreira de modelo.
Quero descrever tanto as personalidades da mídia como as personagens
fictícias que ocupam este lugar, embora minha análise será pormenorizada sobre
as figuras das três princesas Disney clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela
Adormecida. Aprofundarei minha análise no aspecto formal das figuras
desenhadas nos estúdios Disney: o estilo de seus traços, os cânones estéticos
que obedecem, as musas que inspiraram os desenhistas, o tipo de figurino, a
movimentação que as anima e a constituição destas figuras como personagens. O
papel que ocupam dentro da estrutura dos filmes que protagonizam, suas ações,
falas e as posturas assumidas no interior da narrativa serão observados e
descritos. Também pretendo contextualizar a época em que cada uma destas
princesas foi criada, observando os acontecimentos mundiais e a história da vida
cotidiana.
Ao descrever as incidências deste tema na mídia e ao analisar
detalhadamente as princesas Disney, pretendo discutir a gama de significados que
envolvem estas figuras. Como posição feminina que goza de privilégios sociais, o
primeiro aspecto que analisarei refere-se ao título de nobreza que as princesas
ostentam ou acabam ostentando após unirem-se com um príncipe. Em relação a
este aspecto, gostaria de analisar os símbolos e as práticas que distinguem a
classe culturalmente dominante e levantar os elementos revestidos de significados
aristocráticos. Aqui, pretendo abordar as questões sobre o valor histórico do
sangue e pureza racial, sempre traçando paralelos com a realidade
contemporânea. Como as práticas das classes dominantes envolvem ritos que
complexificaram o cotidiano, gostaria de pontuar algumas considerações sobre
trabalho doméstico e a responsabilidade pela manutenção do lar, assim como as
posturas cerimoniais e espontâneas apresentadas por estas figuras. Um segundo
aspecto a ser discutido também parte da posição histórica ocupada pela princesa:
a moça cujo valor social é conferido por estar apta a contrair matrimônio. Este
lugar foi incrementado ao longo do século XX com características delimitadas, que
não só indicam uma idade cronológica, mas principalmente especificam a
obrigatoriedade de um tipo de beleza, enquadrada dentro das normas estéticas
vigentes. Ao discutir o ideal de beleza propagado por estas figuras, não estarei
apenas tratando de um cânone de corpo considerado perfeito, mas também a
todos os elementos e artifícios que manipulamos e usamos sobre nossos corpos
para torná-los mais “belos”. Descrevendo o padrão de beleza veiculados na mídia
e as práticas culturais que visam atingi-los, pretendo debater a imperialidade dos
corpos jovens e magros e questionar as possíveis sujeições que nos submetemos
para nos tornarmos estes corpos. A beleza nos interessa porque seus padrões
regulam os lugares onde permitimos amarmos e sermos amados e a partir deste
lugar conferido pela beleza, a figura da princesa apresenta-se como apta para
protagonizar o amor. Esta posição que lha coloca como ente desejante e
desejado, abre um último aspecto a ser discutido em relação aos significados
sociais contidos na figura da princesa: o mito do amor romântico, quase sempre
coroado pelo ritual de casamento. Não preciso trazer exemplos para atestar a
hegemonia deste mito na contemporaneidade: novelas, livros best-sellers, filmes
de grande bilheteria, reforçam a crença de a possibilidade de realização amorosa
está no encontro sentimental com alguém do sexo oposto.
Distinguimos aqui, uma subjetividade intrincada nos discursos de nobreza,
beleza e amor romântico, uma subjetividade que pode ser representada pela
figura cultural reconhecida como “princesa”. Os sujeitos, principalmente meninas,
moças e mulheres, a quem estes discursos são explicitamente dirigidos, regulam-
se dentro de padrões que envolvem a idealidade de um prestígio social (nobreza),
adequação à norma estética numa concepção dada de corpo e indumentária
corretos (beleza) e principalmente através do mito de que a realização plena só é
possível através do amor. Estes discursos permeiam um lugar marcadamente
feminino, cuja figura da princesa congrega qualidades idealizadas dos aspectos
que a cultura dominante atribui como significativos para a feminilidade.
Submetidas às normas e às leis sancionadas no interior destes discursos,
as figuras de Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, foram criadas pela
Disney dentro de padrões determinados pela sociedade onde está inserida a
corporação que as produziu. A vigência de suas imagens na cultura de massas ao
longo de no mínimo quatro décadas, confere a estas figuras um importante papel
subjetivador na vida de meninas de várias gerações. Muitas imagens da indústria
do entretenimento, principalmente os desenhos da Disney e da Warner, povoam o
cotidiano infantil, contudo estas princesas, principalmente por serem desenhadas
em proporções compatíveis com a anatomia humana, apresentam-se como
modelos potenciais para os processos identificatórios.
Nas imagens das princesas podemos vislumbrar o que Guattari chamou
de “cristalização de um modelo de identidade”, o que faz com que eu aborde estas
figuras como material empírico diretamente relacionado com a propagação do que
Suely ROLNIK chamou de “kits de perfis-padrão”, referências identitárias
produzidas “de acordo com cada órbita do mercado para serem consumidos pelas
subjetividades”. Ao tratar destes modelos identificatórios trabalho com o conceito
de estereótipo para designar a imagem reproduzida exaustivamente, sempre
obedecendo a um padrões formais delimitados pelo fácil reconhecimento. Além de
debater o papel dos clichês visuais na produção de subjetividade, o conceito de
estereótipo fundamenta a discussão sobre a recorrência das figuras míticas e as
formas iconológicas, estáticas e mutantes, que estas assumem dentro de uma
cultura. Quando falo de figuras míticas, não estou apenas me referindo às
personalidades mitificadas pela mídia e pela cultura de massas, mas também a
mitos arcaicos e a todas as figuras que, de um modo ou de outro, consagraram-se
em lugares de idealidade, como santos, personagens históricos, personagens da
indústria cultural, personalidades sociais e as personas da mídia.
A recorrência de temas e representações nas mais variadas épocas e
culturas chamou a atenção da psicanálise na medida que possuem inegável força
psíquica. Partindo de uma base psicanalítica, mas rompendo com a concepção de
que o conteúdo destas forças era apenas de ordem libidinal, JUNG denominou-as
arquétipos. O conceito de arquétipo é útil na identificação de representações
culturais arcaicas de arraigado poder psíquico, pois aponta matrizes simbólicas,
como as posições parentais, por exemplo, que incidem nas estruturas culturais
dos mais diferentes povos ao longo da história da humanidade. Contudo as
representações destas matrizes arcaicas apresentam manifestações específicas
que variam de acordo com o contexto. O historiador das religiões, Mircea ELIADE,
concebe os mitos e símbolos como criações culturais elaboradas e veiculadas
dentro da sociedade, mesmo quando seus significados tangem a forças de ordem
natural. O lugar arquetípico de uma determinada figura juntamente com a
representação formal estereotipada que esta figura assume dentro de um dado
contexto são pontos relevantes na reflexão sobre os modelos identitários e a
produção de subjetividades.
A figura arquetípica da jovem heroína de um conto oriundo da tradição
popular oral é revestida de formas diversas no transcorrer dos processos
históricos e dos deslocamentos que sofre. As versões Disney destas heroínas
além de estarem submetidas a versões condicionadas a determinadas situações
culturais (como transcrições de PERRAULT durante o absolutismo aristocrático na
França do século XVIII ou os balés criados por PETIPA dentro dos ideais
românticos do século XIX), produzem um tipo específico de princesa, subordinada
aos discursos vigentes durante a situação em que emergiram. As princesas que
proponho analisar são criações oriundas da industria cinematográfica, que a partir
da década de cinqüenta promoveu a reprodução, com fins explicitamente
comerciais, de imagens evocativas dos filmes. Os personagens tornaram-se
ícones de acesso fácil, vendáveis não só através de um eficiente sistema
mercadológico, mas devido aos significados culturais imbuídos em suas
figurações.
Analisando as personagens Disney que representam uma potência
identificatória específica, pretendo evidenciar quais os significados que são
mantidos e que novos significados são construídos no transcorrer destas quatro
décadas, de 1959 a 1999, em que foram e são consumidas como ícones de uma
feminilidade idealizada. Esta análise pretende embasar a reflexão sobre as
seguintes questões: A eficácia destas imagens envolve um possível conteúdo
arquetípico? A estandardização destas imagens esvazia ou reforça sua força
psicológica? Até que ponto uma figura considerada arquetípica reforça um
representação dominante? Que tipo de modelos identificatórios a estereotipia
produzida por uma representação formal de grande reprodutividade nos submete?
Como situar o “eu” dentro desta paisagem imaginária colonizada pelas imagens
fabricadas na cultura dominante? E como se sentem os sujeitos femininos ou com
identidades sexuais femininas que não se enquadram no padrão de idealidade
que estas imagens impõem?
Formulei estas questões para debater o problema teórico que esta
temática suscita: a ressonância psicológica, portando subjetivadora, evocada
pelas imagens que espelhamos nossos “eus". Conceituá-las em estereotipadas ou
arquetípicas auxilia-me na abordagem dos significados portados por estas
imagens, se estas figuras possuem força simbólica ou são apenas significantes de
um dado lugar social. Este problema teórico inclui problemas empíricos que dizem
respeito a vida de todos nós, na medida em um modelo de feminilidade,
amplamente figurado na mídia, é imposto como “certo, correto”.
Tratando deste modelo de mulher, que se apresenta sempre jovem, clara,
dócil, esguia, sem ventre proeminente, pretendo refletir os significados que a
cultura tem privilegiado em relação a feminilidade. Por exemplo, assisti na semana
anterior algumas propagandas comerciais da véspera do dia das mães e observei
que as mães representadas eram todas magras e jovens, sendo que uma delas a
figura da filha adolescente e de sua mãe eram propositadamente confundidas.
Este anúncio me fez lembrar de um texto de minha orientadora que falava da
“jovem mulher de quarenta anos”, que suscitou em mim o desejo de discutir o mito
da “eterna juventude” e suas implicações subjetivas. Por que a mídia e a indústria
cultural investem de positividade este aspecto da existência feminina, tão bem
representado pela figura das princesas? Observando a insistência de nossa
cultura nos signos da juventude suponho que o papel este seja um lugar
adequado para protagonizar o que instituímos como amor, esta instância
indefinida e etérea que mobiliza mercados e norteia as diretrizes da grande
indústria do entretenimento. O amor é instituído como ideal de felicidade, o
discurso do amor romântico é imperante em nossa cultura, não apenas sendo
consumido como entretenimento mas também fazendo circular inúmeras crenças,
práticas e saberes, ocupando uma parte significativa de nossas buscas e histórias
pessoais. As representações mais vigentes em torno do amor, muito bem
exemplificadas pelas figuras das princesas Disney, reforçam as situação
dominante onde os sujeitos do gênero feminino dependem do afeto e da atenção
masculinas para se realizarem como mulheres, o que exige o disciplinamento do
corpo e da aparência com vistas de atrair e conquistar o outro. A aparência
adequada para o amor é inexoravelmente subordinada à modas, estilos, cânones
estéticos e hábitos culturais em relação à higiene corporal. Muitas são as
situações onde percebemos o poder da aparência no que se refere às estratégicas
posições de amar e ser amado. Em seu livro de memórias, Zélia GATTAI conta que
convenceu Jorge Amado a “arrumar os dentes quebrados da personagem Teresa
Batista”, alegando que ninguém ia gostar de ler um romance em que a heroína
abria a boca e aparecesse um buraco. Após assistir ao filme americano “O
Guarda-costas”, com Withney Houston e Kevin Costner, perguntei para minha
falecida avó o que ela tinha achado, ela respondeu hesitante:
- O filme é bom, mas não sei, não gostei muito.
- Por quê?- perguntei.
- Porque ela é meio negrinha para ele.
Nestes exemplos cotidianos estão inscritos os preconceitos que
estabelecem formas não só para os modos de amar, mas também estereótipos
em relação a quem pode amar quem, a quem merece amor, a quem é digno ou
não digno de viver o amor. Aos excluídos do amor, o que resta, se o amor
instaura-se como esperança compensatória de todas as outras exclusões? Com
este trabalho quero atentar não apenas para as estereotipias dos modos de ser e
de vivermos o amor, mas também para a rigidez de um lugar social marcadamente
feminino e regulado por normas estéticas que sancionam quais são as mulheres
passíveis de serem amadas ou odiadas. Investigando se estes estereótipos são
naturalizados devido à força psíquica de um suposto conteúdo arquetípico ou se
estabelecem seu poder dentro de uma complexa rede de submetimento
imaginário, pretendo atentar para a maneira de como operam as forças e
constituem os padrões que marcam nossas subjetividades, inscrevendo em
nossos corpos as possibilidades ou a impossibilidade de gozo.
DELEUZE pergunta: “A subjetividade moderna reencontraria o corpo e seus
prazeres contra um desejo tão submetido à Lei?” . O que é incutido através da
mídia e das grandes corporações produtoras de imaginário tem resultados
esmagadores, tamanha as imposições hipnotizadoras de algumas imagens. A
hipnose talvez seja irreversível dentro de sujeitos que cresceram aprendendo a
adorar o Mickey Mouse e que depositaram nos ícones aparentemente inofensivos
de sua infância as crenças que consideram elevadas? Como romper com o
encantamento que fábricas de imaginário, tão poderosas como a Disney,
promovem? Como buscar modos de ser não submetidos aos padrões
globalizadores que colonizam nossos territórios existenciais? Como não levar
nossas vidas de forma estereotipada, não nos deixando levar pelos apelos da
hiper-realidade? Como vivermos a realidade sem sermos “bonecos de
marionetes”, manipulados por redes de poder que se auto regulam de acordo com
nossos movimentos involuntários?
Ao trabalhar com o princípio de que somos assujeitados pelos significados
dominantes e pelas formas imaginárias pelas quais estes significados se
revestem, tenho a intenção de descrever a hegemonia de determinadas
representações, representações que se apresentam em formas de estereótipos.
As versões estereotipadas que revestem certas identidades culturais precisam ser
combatidas a fim de que formas diversificadas de subjetividade possam ser
aceitas e as variadas formas de identidade possam ser respeitadas.
Em autores de escolas diferentes, como GUATTARI e KINCHELOE, encontro
o argumento de que a arte é o instrumento mais eficaz no que se refere a
“produção de novos modos de subjetivação” (GUATTARI, 1998), pois como
“epistemologia alternativa” (KINCHELOE, 1997, p. 72) é um campo onde podem ser
operadas possibilidades de reversão e subversão dos saberes produtores de
estereotipias. As possibilidades de reconstrução do imaginário e criação do que
GUATTARI chamou de “subjetividades mutantes” serão o foco final de minha
dissertação, onde pretendo trazer exemplos de trabalhos artísticos
contemporâneos que trazem outros olhares sobre a feminilidade. Na medida em
que a produção do imaginário hegemônico envolve elaborações formais advindas
da arte popular e erudita, é através da arte como estratégia de mobilização que
poderemos desconstruir os modelos estéticos vigentes, as formas que cristalizam
o olhar em padrões que servem aos discursos dominantes.
Como professora de artes, sei o quanto as questões que estou propondo
dissertar atravessam o cotidiano de sala de aula, onde a bagagem imagética dos
alunos está muito distante das novas linguagens da arte contemporânea e minada
de referências da cultura de massas midiática, onde a subjetividade dos alunos
reproduz padrões estereotipados ao invés de manifestar as singularidades, onde a
diferença é rechaçada em prol de comportamentos homogêneos e invisíveis. Com
vistas de trazer o que tenho elaborado conceitualmente para os problemas
concretos enfrentados no ensino das artes e na conflituosa relação do grande
público com a arte contemporânea, inclui, no texto da minha proposta de
dissertação, um complemento da pesquisa que envolveria a participação de outras
professoras de artes, onde colheria depoimentos sobre os filmes e debateria
questões sobre o tema em que estou trabalhando. Devido a brevidade do tempo
disponível para a conclusão da dissertação e a complexificação de dados que este
procedimento acarretaria, tenho reconsiderado esta parte do trabalho, pensando
em reduzir a extensão desta questão, que por si poderia desenvolver outra
dissertação, em um capítulo sobre artistas locais que abordam temas pertinentes
à minha análise. Minha intenção é mostrar que as imposições imaginárias podem
ser reinventadas e reconstruídas na medida em que são absorvidas por outras
culturas, que artistas e pessoas sensíveis aos movimentos artísticos podem
expressar outras formas de representação feminina e revertendo assim, as
posições tradicionais, a iconologia estanque e os padrões estereotipados.