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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-‐SP
Carlos Eduardo Borrely Rios
Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO 2013
1
Carlos Eduardo Borrely Rios
Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, pela linha de pesquisa Processo de Criação nas Mídias, sob a orientação da Profa. Dra. Lucia Isaltina Clemente Leão.
SÃO PAULO 2013
2
BANCA EXAMINADORA:
3
4
AGRADECIMENTOS
De todo coração a minha Mãe Sueli que, apesar de todas as turbulências, sempre
esteve ao meu lado em todos os meus processos.
Aos meus alunos que me motivaram com suas questões. Em especial àqueles que
cederam suas imagens para este trabalho.
Aos amigos que ajudaram direta e indiretamente.
A minha orientadora Lucia pelo apoio e o encontro inesperado às vésperas
destas conclusões.
5
RIOS, Carlos Eduardo Borrely. Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo. Orientação: Profa. Dra. Lucia Leão. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC – SP, São Paulo. 2013.
RESUMO
Quais são as características dos processos comunicacionais que ocorrem nas
relações professor-‐aluno no contexto de oficinas livres de dança? Como estes
procedimentos podem gerar processos que propiciem o desenvolvimento de
caminhos singulares de expressão dos participantes? Como estimular
experiências com o próprio corpo através da técnica do sapateado americano?
Estas são as questões que movem a presente pesquisa. O objetivo principal foi
refletir como os processos criativos e comunicacionais, que se estabelecem no
contexto das oficinas de dança, atuam na mediação da descoberta expressiva do
movimento. As mediações e os processos criativos e cognitivos foram
fundamentados em teorias da comunicação. Os autores adotados foram Flusser,
Santaella e Vieira, entre outros. O conceito de corpomídia de Katz e Greiner, e os
estudos sobre imagem mental propostos por Damásio complementam a base de
referência. A proposta envolveu a reflexão e o diálogo com procedimentos
criados por Klauss Vianna, no desenvolvimento de seu método de expressão pelo
movimento corporal. A metodologia compreendeu a pesquisa bibliográfica;
coleta e organização dos documentos referentes aos processos de criação em
oficinas (diários, desenhos e vídeos); análises dos procedimentos à luz das
teorias de processos (Salles) e memorial reflexivo das atividades docentes.
Espera-‐se que essa pesquisa, ao documentar processos de criação de oficinas e
organizar reflexões sobre as relações comunicacionais vividas nesses contextos,
possa contribuir com os estudos da teoria do corpomídia.
Palavras-‐chave: comunicação; corpomídia; processos de criação; dança.
6
ABSTRACT
What are the characteristics of the communication process that happen
during dance workshops between teacher and students? How can those
procedures generate process in such a way that everyone involved is able
to be part of unique ways of expression? How can we stimulate body
experiences through American tap dance techniques? Those are the
questions that build this research. The principal objective was to think
about how the creative and communication processes work together
during the mediation of an expressive movement discovery. The
mediations and creative and cognitive processes are based in
communication theories. Some of the authors used are Flusser, Santaella
and Viera. The bodymedia background by Katz and Greiner, and the
mental imaged studies by Damásio improve the reference bases. The
proposal is to think and converse with other procedures by Klaus Vianna
who developed a body expression based method. The methodology
includes bibliographical research; collect and organization of documents
about the creation during the workshops (diaries, drawings and videos);
procedures analysis through the process theory view and reflexive
memorial about teaching activities. We hope this research, while we
document workshops's creative process and organize those reflections
about communication relations lived during this context, can contribute
with the bodymedia studies.
Keywords: Communication; corpomidia; creative process; dance.
7
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – As alunas deficientes visuais Gisele Aparecida e Fabiana Croccia tocando as pernas do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013. (p.63) Figura 2 – As alunas deficientes visuais Gisele Aparecida e Fabiana Croccia tocando a coxa do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013. (p.64) Figura 3 – A aluna deficiente visual Gisele Aparecida tocando a canela e o pé do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013. (p.64) Figura 4 – O professor toca a perna da aluna Marina Guimarães para reorganizar as diretrizes descritas oralmente. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013. (p.65) Figura 5 – O professor toca a aluna Marina Guimarães com a própria perna na busca de novas formas de sensibilização da informação corporal. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013. (p.66) Figura 6 – Alunas fazendo o primeiro passo denominado shuffle da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012. (p.69) Figura 7 – Alunas fazendo o segundo passo denominado “hop” da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012. (p.69) Figura 8 – Alunas fazendo o terceiro passo denominado step acrescido do movimento de rotação na sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012. (p.70) Figura 9 – Alunas liberando a perna esquerda após o término da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012. (p.70) Figura 10 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Nayara Alves durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009. (p.71) Figura 11 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Rosangela Pereira durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009. (p.72)
8
Figura 11a – Recorte “Jogando bola dentro de casa e quebrou” da Figura 12. (p.76) Figura 12 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Thais Ribeiro durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009. (p.72) Figura 12a – Recorte “Bailarinas” da Figura 12. (p.74) Figura 12b – Recorte “Música do Naruto” da Figura 12. (p.75) Figura 12c – Recorte “Quebra tudo” da Figura 12. (p.76) Figura 13 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Thayla Policarpo durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009. (p.73) Figura 13a– Recorte “Vidro” da Figura 13. (p.77) Figura 14 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Pâmela Nascimento durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009. (p.73) Figura 14a – Recorte “Balé” da Figura 14. (p.75) Figura 14b – Recorte “Naruto” da Figura 14. (p.75)
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1.0 -‐ CAPÍTULO 1 -‐ Inquietudes 16
2.0 -‐ CAPÍTULO 2 – Algumas definições 31
2.1 -‐ As possibilidades através das inquietudes 48
3.0 -‐ CAPÍTULO 3 -‐ Experiência e dança – descrição de processos nas
oficinas de Sapateado Americano 59
3.1 -‐ Associação de Balé de Cegos – o toque como forma de aprender o
movimento 62
3.2 -‐ SPFC – São Paulo Futebol Clube – percepção e meios digitais 66
3.3 -‐ Taboão da Serra -‐ música: desenho-‐audição-‐visualidade –
repertório sensível das crianças. 70
CONSIDERAÇÕES FINAIS 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 86
10
INTRODUÇÃO
Outro dia, ao ler as frases do “Panorama – Veja Essa”, uma sessão de frases de
personalidades da revista Veja, encontrei uma frase do bailarino Mikhail
Baryshnikov que instigou algumas das minhas questões enquanto professor e
bailarino que há anos estavam instigando minhas dificuldades em relação a
dança e ao processo de apreensão dos movimentos. A frase dizia: “Sou só um
instrumento na mão de outras pessoas. Não tenho o gene da criação”.
A partir desse pensamento do bailarino russo Baryshnikov, várias questões
podem ser elencadas. Uma delas: não é possível que um grande bailarino,
mesmo quando reproduz uma coreografia, não está transformando esses
movimentos – esses estímulos externos ao seu corpo – em uma obra de arte.
Acreditamos, pois, que nesse processo o artista consequentemente, traduz, de
certa maneira, esses movimentos para seu corpo. Que corpo e estímulos são
esses que se apropriam simultaneamente um do outro e são transformados de
fato numa obra coreográfica? Como acontece essa tradução de estímulos
externos e de técnicas para o corpo que configura algo, e não apenas repete?
Neste sentido, pretende-‐se com este trabalho, transportar estas questões para o
trabalho entre professor e aluno em oficinas e aulas livres de sapateado
americano em academias de danças, academias de ginástica e oficinas culturais
na cidade de São Paulo e Taboão da Serra, as quais o presente pesquisador
participou como professor.
Os estudos de casos tratam-‐se das seguintes instituições, a saber, Associação de
Balé e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, Clube Desportivo São Paulo Futebol
Clube e Prefeitura Municipal de Taboão da Serra, SP.
11
Estas dificuldades de apreensão do movimento durante as experiências pessoais
do pesquisador ganharam forças para o questionamento científico a partir do
momento em que nos deparávamos durante os estudos em dança,
inevitavelmente, com uma série de partituras coreográficas. Nestas coreografias,
surgiram os questionamentos: como faríamos para que aqueles movimentos -‐
que não caracterizavam parte do repertório do corpo – pudessem constituir
parte desse corpo, comunicar algo além da mera repetição? Como reler esses
estímulos e transformá-‐los em algo que representasse não apenas mera
repetição dos movimentos propostos pelo coreógrafo?
Posteriormente, associando as experiências pessoais do pesquisador-‐bailarino
com a urgência de novas maneiras para resolver este problema enquanto
professor de dança, surge a necessidade de buscar respostas para a seguinte
questão:
É possível iniciar um processo de instrumentalização a alunos de dança para que
estes se comuniquem, através da linguagem do corpo, diferentemente da
repetição de passos numa coreografia?
Esta questão gerou dois desdobramentos tão importantes quanto o
questionamento inicial, a saber:
Até que ponto a percepção e apreensão das coisas do mundo de um determinado
bailarino, bem como suas experiências pessoais, já não carregam os movimentos
e o diferencia dos outros corpos que dançam uma mesma coreografia?
E, por fim, ao repetir determinados movimentos de uma coreografia, o bailarino
já imprime naturalmente seu discurso pessoal estampado no seu corpo enquanto
se movimenta?
12
Ao longo da experiência do processo de aprendizado em dança do presente
pesquisador e observador, em algumas academias de dança das quais faz parte
do quadro de professores, percebe-‐se frequentemente que o condicionamento
infinito e aparentemente sem propósito pode causar várias frustrações e
aumentar as dificuldades dos alunos. O resultado seria o afastamento gradual de
um possível artista, em decorrência de uma linguagem ensinada com bases
teóricas ultrapassadas que levam em conta um modelo de movimento e técnica
de dança baseado em corpos idealizados.
Muito se tem refletido e discutido em relação aos processos de criação coletivos
e colaborativos nas áreas do teatro e dança contemporânea. Ou seja, procura-‐se
compreender como todos os participantes e co-‐autores contribuem nas
discussões e nas tomadas de decisões durante o processo. Mas é difícil
encontrarmos bibliografias que discutam a relação do processo criativo em
danças como o sapateado americano, assim como novas maneiras de se
comunicar com os alunos, meios que não se resumem, simplesmente, em adotar
metodologias importadas mal aplicadas aos bailarinos. Alguns autores que
observam a importância das experiências pessoais e do contexto dos bailarinos
para apreensão dos movimentos, como é o caso de Klauss Vianna, serão
abordados nos próximos capítulos.
É neste aspecto que este trabalho pretende, a partir de observações nas oficinas,
buscar maneiras de favorecer o aprendizado do corpo dentro dessa linguagem e
incentivar o aluno a pesquisar seu corpo como um futuro artista do sapateado
americano.
A partir de documentações do processo criativo de oficinas de sapateado
americano, orientadas pelo autor, trilhar-‐se-‐á caminhos para chegar aos
objetivos propostos, e observar como esta rede de procedimentos constituiu
parte desta observação do corpo que dança e precede suas possibilidades
através da linguagem da dança.
13
As discussões sobre dança moderna, contemporânea e dança educativa tem uma
vasta bibliografia que variam desde classificações dos movimentos até a
conceituação de dança como linguagem oculta da alma (Martha Graham).
O movimento e a funcionalidade que este movimento pode trazer para o
cotidiano dos seres humanos são pontos fundamentais na pesquisa de Rudolf
Laban (1990). O autor compara as pesquisas anteriores de dança e as
repercussões dos movimentos dos trabalhadores nas fábricas no final da
revolução industrial. A partir de então, Laban (1990) propõe uma dança
educativa moderna, a que todas as crianças em fase estudantil deveriam ser
submetidas para dominarem o movimento de tal maneira que a aplicação desses
movimentos acontecesse naturalmente em todas as atividades durante sua vida.
Alguns outros artistas de fundamental importância tiveram seus trabalhos muito
discutidos pela inovação, como Pina Bausch que buscava o discurso do corpo que
dança e por isso, em seus trabalhos coletivos, construía coreografias baseadas
nas histórias de vida de seus bailarinos.
No cenário brasileiro temos importantes contribuições, como Klauss Vianna
(2005) que propõe novas maneiras do ensino do balé clássico. O autor propõe
uma abordagem que leva em consideração os sentimentos do corpo que dança e
como isto pode ajudar na preparação deste corpo se não for ignorado; propõe
também que a sala de aula de dança é um lugar onde se questiona e se participa
inteiramente e não apenas repetimos movimentos propostos por outro corpo em
busca de uma forma inalcançável.
Todos estes autores têm em comum uma busca pelo discurso do movimento, de
certa maneira, um discurso de oposição às danças mais tradicionais, como o caso
do balé clássico, não às danças propriamente ditas, mas à maneira como elas
foram ensinadas e ainda hoje resistem em ser ensinadas. Além disso, os referidos
autores defendem o movimento e a expressividade que deve ser intrínseca a ele.
Este também é um ponto em comum com este trabalho.
14
Os pontos que diferenciam este trabalho dos outros autores citados
anteriormente, os quais acreditamos que poderiam enriquecer os estudos do
corpo nos dias atuais são: olhar a partir da percepção o processo coreográfico
como parte de um processo criativo -‐ coreografia/apreensão; e, por fim, o corpo
como possibilidade de construção do sapateado e não o corpo a serviço da
técnica do sapateado.
A percepção será a base do olhar para o corpo. Dessa forma, neste trabalho
recorre-‐se a autores como Lúcia Santaella(1993), que discute a percepção sob a
perspectiva semiótica de Charles Sanders Pierce. Cecília de Almeida Salles
(1998) discute a percepção no processo criativo relacionando-‐a com as redes de
pensamento que se entrelaçam durante o ato da criação. A autora aborda,
inclusive, algumas participações em processos criativos de dança. Essa
perspectiva será base para as questões do olhar sobre procedimentos do corpo.
Definições do corpomídia apresentadas por Christiane Greiner (2005) e Helena
Katz (2005) iluminam questões relativas aos movimentos e as apreensões de
mundo inevitavelmente mediadas pelo corpo.
O estudo do corpo e de suas linguagens, neste caso a dança, é fundamental em
qualquer época e qualquer situação, porque rodeado de tecnologias ou aparatos
eletrônicos que criam e recriam novas perspectivas e olhares de mundo está o
corpo. É ele que recebe e se modifica, que cria e usufrui de toda e qualquer nova
possibilidade. É o corpo que percebe, interage e atua no meio ambiente. É o
corpo que gera o conteúdo que pode até ser finalizado num aparato tecnológico,
mas antes de qualquer coisa este conteúdo foi corpo.
Tendo em vista os temas abordados na presente pesquisa, terá, o primeiro
capítulo, o objetivo de abordar questões relacionadas aos processos criativos da
dança e como estes são difundidos em escolas livres e de formação em dança.
Visa ainda propor reflexões relativas a expressões comumente utilizadas em sala
de aula de dança como é o caso dos termos “técnica” e “metodologia”.
15
Por meio destas definições, um paralelo será traçado, afim de destacar pontos
comunicacionais existentes entre os processos criativos e as teorias da
comunicação. A questão do corpo mídia e o trabalho do bailarino e coreógrafo
Klauss Vianna serão confrontados para elucidar as tentativas deste autor na
busca pela complexidade do movimento coreográfico. Existe no aprendizado da
dança uma separação entre técnica e corpo, tema abordado por Neves (2010) em
suas pesquisas sobre a Técnica Klauss Vianna, a qual tenta retomar a técnica do
corpo como parte da linguagem da dança e, consequentemente, do corpo.
Questões da complexidade do corpo e da dança serão discutidas neste capítulo,
objetivando propor a dança e sua apreensão como processo de comunicação.
No capítulo dois será discutida a questão relativa à dificuldade de apreensão dos
movimentos no trabalho dos bailarinos. Será traçado um paralelo entre teoria
sistêmica e as possibilidades do corpo a que cada ser vivo está possibilitado a
perceber, de acordo com os aparelhos perceptivos que lhe são característicos.
Foram escolhidos dois importantes coreógrafos no cenário da dança para
abordar pontos comuns e distintos em seus trabalhos, comparados à abordagem
proposta nesta presente dissertação. Por fim, discutiremos uma importante
contribuição sobre a Técnica Klauss Vianna. Esta técnica desenvolvida por
Vianna apresentou muitos pontos em comum com nosso processo e a partir dela
decidiu-‐se fragmentar nossos procedimentos relacionando-‐os com as instruções
de trabalho propostas por Neide Neves (2010), pesquisadora e organizadora dos
procedimentos de Klauss Vianna. Assim, no capítulo três apresentaremos nossos
processos e procedimentos, assumindo como perspectiva a proposta dos autores
supramencionados.
16
1.0 -‐ Inquietudes
Neste primeiro capítulo o objetivo inicial é organizar a rede de pensamentos que
envolve o trabalho do professor e do aluno. Em seguida, definir papéis e termos
utilizados no decorrer do trabalho, que podem ajudar no entendimento global do
texto. Por fim, problematizar as questões de uma maneira geral e construir o
pensamento que levou o autor a ponderar seu trabalho na tarefa de difundir o
sapateado americano em cursos e oficinas informais de dança.
No dicionário crítico de política cultural, Coelho (2007) define o termo “oficina
cultural” como o lugar ou atividade que tem como objetivo difundir ou
disseminar informações para públicos profissionais ou não que leve à criação de
uma obra cultural, mas que não necessariamente tenha uma obra cultural como
produto final.
O termo oficina cultural é de uso relativamente recente. Foi antecedido por dois
outros, mais tradicionais, ateliê e curso, e como estes representam o espírito de
uma época. Se ateliê era um termo ligado a um momento em que o artista como
criador autônomo, isolado e sem maiores preocupações ou responsabilidades que
não sua própria arte, era visto de modo especial e privilegiado. Curso já é palavra
vinculada a um tempo em que a ideia da educação se tornou pedra de toque -‐
inclusive a educação para a cultura e para a arte e pela cultura e pela arte. Com a
palavra curso não se estava mais no momento em que o artista apenas aceitava
mostrar sua técnica a estudantes que se limitavam a observar o modo do mestre
(como Volpi, que recebia estudantes desde que se comprometessem a olhar sem
perguntar, quer dizer, sem desconcentrar o artista cujo objetivo central era
produzir e não ensinar), mas num outro instante no qual prevalecia a noção de que
cultura e arte eram passíveis de um ensino segundo procedimentos analíticos
determinados e ministrado não mais necessariamente por um artista reconhecido,
porém por qualquer um que conhecesse o como fazer embora ele mesmo não o
fizesse ou não o fizesse de modo destacado: o objetivo central deste profissional não
era mais produzir uma obra mas transmitir um conhecimento sobre como fazer
uma obra. Uma modificação considerável (COELHO, 1997:208).
17
Esta transição considerável do objetivo de produzir uma obra para transmitir um
conhecimento sobre como fazer uma obra é muito próximo do que se pretende
neste trabalho. Coelho (1997) aponta que a utilização do termo “oficina” é
recente e tomou o lugar do termo “curso”. É a tradução mais próxima do que
seriam os workshops no mundo anglo saxão, que visam ao intercâmbio de ideias
e conhecimentos de técnicas e habilidades desenvolvidas. Há ainda algumas
divisões de oficinas culturais e, neste caso específico, temos as oficinas descritas
como resultado de políticas culturais propostas por departamentos de cultura e
educação da cidade de Taboão da Serra.
Dadas estas condições, problematizam-‐se os objetivos e dificuldades de tais
condições: estas oficinas foram direcionadas a públicos de comunidades de baixa
renda dentro das escolas municipais da cidade de Taboão da Serra, durante um
período de oito meses.
Para muitos destes alunos, este foi o primeiro contato com a dança. Apesar de
todas as questões políticas envolvidas, este projeto representava para muitas
crianças uma das poucas oportunidades de ter contato com a linguagem da
dança, devido às dificuldades financeiras e o distanciamento dos grandes centros
culturais.
Outro problema bastante recorrente, e que caracteriza os resultados das oficinas,
é a volatilidade dos alunos. Há alguns alunos que estão sempre presentes,
enquanto a grande maioria falta com frequência. Outros iniciam no meio do
período, direcionando o trabalho para um objetivo diário: propostas que
começam e terminam no mesmo dia. Outro fator importantíssimo é o número
mínimo de alunos na sala de aula. Este fator é o que mais dificulta a visão
individualizada do corpo dos alunos, pois não há tempo suficiente para uma
atenção individual constante, direcionando as intenções para a totalidade do
grupo. Para que a oficina tivesse continuidade era necessário um número
mínimo de doze alunos. As salas utilizadas eram pequenas e com pouca ou
nenhuma infra estrutura necessária para aula de dança.
18
Nos outros casos relatados no terceiro capítulo, da Associação de Balé de Cegos e
do São Paulo Futebol Clube, a situação é bastante diferente, porque a infra
estrutura e o espaço das salas de aula são adequados e diferente das oficinas
culturais da Prefeitura.
O número mínimo de alunos mostrou-‐se uma questão relevante apenas para o
Clube. Vale salientar ainda que o Clube teve uma história muito representativa
do sapateado americano nos anos 90, participando de concursos, festivais e
competições de dança, sendo, eventualmente, ganhador de alguns deles.
Estas condições de trabalho serão demonstradas no terceiro capítulo, quando
será apresentada a descrição de uma prática de trabalho para cada caso.
A outra proposta deste capítulo é organizar o pensamento para entender o
porquê das escolhas dos temas abordados. Neste sentido, observa-‐se que o
trabalho da dança depende de uma série de constituintes que formam o
movimento do corpo e que todas estas características são de fundamental
importância no trabalho de aprendizado contínuo do movimento e da linguagem
do sapateado americano ou de qualquer outra dança.
O desenvolvimento do potencial expressivo dos movimentos corporais do aluno
passa por inúmeros processos comunicacionais, cognitivos, políticos, sociais e
biológicos que imprimem neste corpo a característica que só a ele pertence. Além
disso, depende de uma série de fatores para que esta apreensão do movimento
da dança em questão seja consciente e eficiente no propósito a que se destina:
seja na formação de bailarinos profissionais, seja em caráter recreativo, seja
como parte de programas culturais para levar diferentes linguagens para
comunidades carentes.
O próprio corpo resulta de contínuas negociações de informações com o ambiente e
carrega esse seu modo de existir para outras instâncias de seu funcionamento. Ou
19
seja, a ação criativa de um corpo no mundo reproduz os procedimentos que o
engendram como uma porta vai-‐vem, responsável por promover e romper contatos
(GREINER e KATZ, 2001:94).
A experiência vivida por alguém inevitavelmente interfere no movimento e no
gesto da dança produzido e na maneira como este processo de apreensão
acontece no decorrer do aprendizado dos passos formalizados. Todo corpo
evidencia uma ou várias qualidades de si mesmo nos movimentos codificados do
sapateado americano e em qualquer outra prática de dança. Ao continuar
estudando passos e combinações de passos, estas constituintes do corpo, que
passou pela experiência de se relacionar com o meio ambiente em que estava
inserido, estampam-‐se automaticamente nos movimentos e enriquecem a
experiência da dança à qual este corpo é submetido. Por isso, como qualquer
outra prática de estudo, a dança demanda um processo contínuo e interminável
de experimentações, estímulos, treinamentos musculares, práticas criativas e de
percepção corporal em diversos níveis. Todas estas constituintes integradas ao
discurso pessoal do artista e do discurso geral da obra coreográfica formam a
arte do sapateado e do artista sapateador. É evidente que nessas oficinas e
cursos livres de danças, lugares de educação informal, o objetivo não é formar
bailarinos, mas fomentar um possível pesquisador do corpo, dar alguma vivência
daquilo que poderia ser uma futura profissão que demanda todas estas questões
já mencionadas anteriormente. O objetivo dentro destas aulas é tentar subsidiar
técnicas e exercícios, incentivar o corpo que principia um treinamento a
contemplar autonomia. Possibilitando que durante esta experiência, o aluno
perceba a estrutura do próprio corpo se relacionando com as formalizações do
sapateado num contínuo construir da dança. Mesmo que este aluno não se torne
um sapateador, ele precisa passar por estas escolhas corpóreas de uma maneira
crítica e consciente daquilo que se propõe a fazer.
Cada tipo de aprendizado traz ao corpo uma rede particular de conexões. Quando se
aprende um movimento, aprende-‐se junto o que vem antes e o que vem depois dele.
O corpo se habitua a conectá-‐los. A presença de um anuncia a possibilidade de
presença dos outros (GREINER e KATZ, 2001:94).
20
Repetir, nesta medida, já agrega as experiências como habilidades.
Greiner e Katz (idem), destacam que tudo o que surge no mundo quer
permanecer e, desta maneira luta para ser capaz de produzir continuidade.
O desejo de permanecer, que leva à necessidade de fazer outro a partir de si mesmo,
pode se realizar porque no mundo em que vivemos as informações tendem a operar
dentro de um processo permanente de comunicação e, nesse movimento de trocas
constantes, enquanto se modificam, as informações vão também transformando o
meio (GREINER e KATZ ,2001:97-‐98).
A necessidade que temos de permanecer é o que nos move para a procriação e
para a criação em todos os sentidos. No conceito de comunicação desenvolvido
por Flusser (2007), isso se traduz como uma necessidade de dar sentido à
existência. Para Flusser (idem), existem dois tipos de processos
comunicacionais: o discursivo e o dialógico. O discursivo tem como meta o
registro e a manutenção de conhecimentos prévios. Na comunicação discursiva
apenas um dos polos tem espaço para se expressar enquanto que os demais
polos são ouvintes que recebem os conteúdos. A comunicação dialógica é um
processo que envolve trocas entre os participantes e se caracteriza por ser um
tipo de mediação que se estabelece a partir de diálogos e produz conhecimento.
Nas oficinas que iremos discutir, a comunicação será entendida como dialógica.
Retomando a ideia de permanência de Katz e Greiner, é possível associar esse
desejo ao sonho de transcendência, ir além dos limites do corpo e estampar no
mundo algo que está além da nossa matéria biológica. Este desejo começa a ser
fomentado a partir do momento em que o aluno cria uma relação afetiva com a
linguagem a que procura conhecer. Sem este vínculo não há vontade de
descoberta, consequentemente não há esforço para permanecer enquanto
produtor daquela linguagem. Neste sentido, os papéis do professor e do aluno
começam a se confundir, pois sugerem que a interligação que esta relação
alcança vai além de um expositor de informações e um receptor e reprodutor de
conceitos. É necessário teorizar os conceitos de produção de conteúdos da dança
21
como uma ciência que tem metodologia e percorre um caminho em busca de um
objetivo que se constrói no corpo.
Teorizar esse conhecimento -‐ em nosso caso, das artes do corpo -‐ é de suma
importância, especialmente para artistas-‐educadores, que precisam trilhar um
caminho no qual liberdade e vigilância (talvez seja melhor pensar em cuidado)
devem estar juntas quando se trata do desenvolvimento de processos formativos de
gerações futuras, aos quais a reflexão crítica, a fundamentação e a sistematização
permitem outros modos de apropriação e multiplicação do conhecimento do/no
corpo, por exemplo, em discursos, livros e textos que necessitam caminhos mundo
afora sem o corpo de seus criadores (COSTAS, 2011:166).
De acordo com a autora, um dos desafios permanentes para o artista de dança é
tomar a sensibilidade para si. A partir de experimentos e experiências com seus
alunos, ela concluiu que esta sensibilidade pode ser aprendida. Nesta medida
quer-‐se observar que o ser humano nasce com as possibilidades disponíveis em
seus aparatos sensórios, responsáveis por perceber o mundo. Porém,
sensibilizar-‐se, ou seja, tornar-‐se receptivo a receber informações que chegam
ou as que já estão presentes no corpo é tornar-‐se sensível a estes estímulos.
Ensinar a sentir é, consequentemente, uma função do professor de dança, pois é
através de exercícios e dinâmicas direcionadas por ele que observações e
experiências relevantes às diferentes modalidades sensoriais são geradas.
Aprender a sentir, estar receptivo e deixar-‐se afetar pelos estímulos é a função
do aluno, mas requer treinamento. A educação somática aparece na cena da
dança como uma ferramenta de produção do pensamento do corpo que incentiva
o saber sentir e estimula a expressividade.
Freire (1981), ao refletir a respeito do ato crítico de estudar aponta o aluno
como sujeito de uma ação frente ao texto, podemos complementar que, assim
como qualquer estudante, o aluno de dança é também um pesquisador crítico e
sua ação acontece perante ao corpo. Isso permite traçar um paralelo entre o
estudo do texto e o estudo do movimento. Para Freire (idem), quem estuda
precisa assumir um papel crítico fundamental de sujeito da ação e não deve,
apenas, “magnetizar-‐se” pela palavra do autor. É a partir do contexto de ideais
22
que é traçado no texto que o aluno constrói seu próprio contexto, constrói seu
próprio discurso. O estudante crítico não pode memorizar as afirmações do
autor para repeti-‐las. É necessário buscar as relações com os conteúdos de
outras dimensões para inventar o conhecimento. Adotando uma visão crítica,
aquele que estuda apropria-‐se da significação profunda do objeto estudado,
porque se sente desafiado por ele.
Desta maneira, pode-‐se relacionar os objetivos de quem pesquisa com o objetivo
do determinado trecho de estudo, para que o conteúdo estudado se torne
disponível às possibilidades que ele mesmo oferece. Estudar seriamente implica
ser este sujeito crítico, predisposto a descobertas em um constante estado de
inquietação. Ou, como defende Freire (1981:9), “ (...)o ato de estudar, no fundo, é
uma atitude em frente ao mundo.”
Ao estudar é necessário ter uma reação de diálogo com o autor e com a obra que
esta sendo estudada e esta relação depende da sensibilidade e percepção das
constituintes históricas, sociais e ideológicas deste autor. Este ato não se resume
em consumir ideias, mas corresponde a criar e recriá-‐las. Dessa forma, serão
discutidas, nos próximos capítulos, questões de percepção dos sentidos, para
evidenciar a importância no papel de qualificar o movimento corporal de cada
indivíduo, ou seja, como estas questões envolvem e direcionam o trajeto no
processo criativo de cada um.
Não haveria cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade,
sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta.
Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de
que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Posso não saber agora
que riscos corro, mas sei que, como presença no mundo, corro risco. E o risco é um
ingrediente necessário à mobilidade sem a qual não há cultura nem história, daí a
importância de uma educação que, em lugar de procurar negar o risco, estimule
mulheres e homens a assumi-‐lo. É assumindo o risco, sua inevitabilidade, que me
preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora e a que me
devo responder. É fundamental que eu saiba não haver existência humana sem
risco, de maior ou de menor perigo. Enquanto objetividade o risco implica a
subjetividade de quem o corre. Neste sentido é que, primeiro, devo saber que a
23
condição de existentes nos submete a riscos; segundo, devo lucidamente ir
conhecendo e reconhecendo o risco que corro ou que posso vir a correr para poder
conseguir um eficaz desempenho na minha relação com ele (FREIRE , 2000:16).
O estudante “domesticado”, a quem Freire (1981) se refere, é aquele que se deixa
invadir pela palavra do texto de estudo como se fosse uma vasilha pronta para
receber informação, e se assemelha muito com a visão de corpo recipiente que
acreditou-‐se por muito tempo ocorrer.
Novas teorias observam que todas as informações a cerca do corpo e de seu
ambiente influenciam ambos os contextos transformando-‐os. Uma dessas teorias
diz respeito a do corpomídia, a qual acredita-‐se comungar com as ideias
propostas neste trabalho. O ponto fundamental desta discussão é a questão do
quão consciente são estas interações para o corpo daquele que dança, pois é
indiscutível que alguma transformação aconteça. Outro aspecto igualmente
importante diz respeito ao “como” ela é utilizada a favor do discurso do corpo.
Essa, portanto, é a grande questão do bailarino, do ator ou de qualquer um que
utilize o corpo como instrumento de comunicação. O estudante crítico é aquele
que recebe a informação e se apropria dela de tal forma que a organiza com
todas as informações nele já existentes e reformula estas novas realidades a
serviço das suas questões individuais.
Assim como no caso do texto, para se estudar melhor o movimento do corpo é
necessário observá-‐lo com uma visão global da totalidade do movimento, ou
coreografia, possibilitando assim uma retomada para as delimitações das
questões parciais do livro ou da coreografia. Ao percorrer a trajetória, o
estudante crítico desperta para momentos de reflexão em que a própria
temática, presente no objeto estudado, recorra também no discurso próprio.
Sendo assim, utilizando do mesmo princípio, reorganiza-‐se esta maneira de
estudar para a sala de aula e procura-‐se optar por exercícios e dinâmicas que
incentivem a pesquisa corporal, ao invés da cópia de movimentos propostos pelo
professor.
24
Katz (1998) aborda uma série de aspectos muito importantes para o
entendimento deste trabalho, os quais justificam muitas das escolhas propostas
nos próximos capítulos.
De acordo com Katz e Greiner (2001), os estudos do corpo nos últimos vinte
anos têm ganhado uma nova configuração a partir dos cruzamentos inter-‐
teóricos. Estas relações corpo e ambiente configuram os processos cognitivos do
corpo e interferem no desenvolvimento da dança.
Para Katz (1998), as ciências são saberes que se relacionam entre si. Sendo
assim, para olhar a dança e o corpo que dança não se pode negar esta correlação
nem os conhecimentos desenvolvidos em outras áreas, como a biologia,
medicina, sociologia, antropologia, psicologia, semiótica, vertentes das ciências
cognitiva e estética. É através deste olhar correlacionado que se promove novas
percepções, a fim de discutir velhos problemas. Neste sentido, uma ciência
alimenta a outra com novas possibilidades de resolver problemas a partir de
recentes descobertas. Anos de evolução e desenvolvimentos da espécie humana
e das ciências entram em negociação com o meio ambiente e resultam nos
nossos movimentos e adaptações em relação ao mundo. Assim, uma gama de
aspectos influenciam o aprendizado e a dança que é praticada
contemporaneamente.
Damásio (2010) propõe que os movimentos que acontecem nos braços e pernas,
antes de serem movimentos já existem na mente em forma de mapas mentais.
Katz (1998) estende essa noção para o corpo do bailarino e aponta que a dança,
antes de estar no corpo, existe como mapa no cérebro e vai além, indicando que
todas as ciências que tratam o movimento devem fazer parte do estudo daqueles
que tratam com dança.
E, podemos nos perguntar, qual o papel do professor nestes contextos? Para
Ranciére (2002), a tarefa do mestre vai muito além da mera transmissão de seus
conhecimentos para os alunos. Não se trata de simplesmente bombardear os
25
alunos com informações para que estes sejam capazes de repetir
mecanicamente. O mestre deve propor e organizar caminhos para que o aluno
distinga o princípio da consequência. O princípio é o ponto de partida e a
consequência é aonde ele quer chegar com aquela informação transformada.
Sobre esta questão de bombardeio com informações, um paralelo pode ser
traçado na medida que professores lançam movimentos de dança para seus
alunos tentarem repetir o mais fidedignamente possível, sem considerar o
desenvolvimento deste movimento no corpo de cada aluno.
Em uma aula de dança tradicional, copiar o movimento do professor é o modo
predominante de aprendizagem. Frequentemente, o objetivo é copiar seus
movimentos o mais precisamente possível (FORTIN e LONG, 2003:21).
Fortin e Long (2003) observam que este procedimento de copiar os movimentos
do professor o mais precisamente possível é um caminho há muito vivenciado
por bailarinos e professores ao longo dos anos. O advento da educação somática
e as constantes discussões em melhoria dos processos de aprendizado da dança
têm discutido em função de trazer melhorias a estes procedimentos.
Fortin (2011) defende também que o discurso dominante dos corpos dos artistas
de dança profissionais tende a ser aquele que promove o corpo idealizado, no
qual prevalecem critérios de magreza, virtuosidade, devoção e aceitação
silenciosa das dores e lesões. O autor baseou-‐se em entrevistas com coreógrafos,
intérpretes e dançarinos pré-‐profissionais de Montreal para definir este
comportamento como o discurso artístico dominante na aérea de dança. Neste
comportamento predomina-‐se a importância da obra artística e ultrapassam-‐se
os limites físicos e psicológicos do artista.
Em contrapartida, Fortin (2011) indica que a educação somática, que baseando-‐
se na experiência do “eu” percorre caminhos que tem como objetivo melhorar a
técnica, desenvolver as capacidades expressivas e evitar possíveis lesões,
aparecem frequentemente no cenário da dança de uma maneira tímida e sob
26
críticas, por abafar o autoritarismo qu as práticas institucionalizadas pelos
meios profissionais e pré-‐profissionais aplicam até hoje, valorizando corpos
dóceis que são treinados para uma imagem estética que não leva em
consideração o bem estar dos bailarinos.
Observa-‐se então que este funcionamento e atitude são instaurados desde a
formação dos alunos que pretendem ou não se profissionalizar como artistas de
dança. Salles (1998), como relataremos nos próximos capítulos, indica que, ao
observar o processo criativo de uma companhia de dança de São Paulo, os
bailarinos apresentaram dificuldades em trilhar caminhos diferentes daqueles
que o corpo já conhecia, limitando-‐os aos movimentos restritos ao repertório
corporal e evitando arriscar-‐se em movimentos não vivenciados.
Neste sentido, um aspecto importante da educação somática, que influencia na
quebra de paradigmas e de processos lineares de aprendizado, é o fato de alguns
direcionamentos parecerem contraditórios no sentido que trabalham o
relaxamento para a descoberta da força, movimentos lentos em busca dos
rápidos etc.
Sob esta perspectiva, o autoritarismo e a autoridade do professor que permeiam
o discurso dominante da dança desde sua instauração formal vai dando lugar a
um professor que direciona seus alunos a caminhos singulares de observação do
seu próprio corpo e não impõe sequências de movimentos que, às vezes, não
dialogam com o corpo do aluno.
Sobre as repetições de movimentos frequentemente propostas em metodologias
tradicionais, baseadas no discurso dominante, Fortin (2011) observa:
Nas inúmeras oficinas das quais participamos nos primeiros três dias, estivemos
talvez em contato com hábitos muito ancorados em nós e resistentes à mudança.
Faz-‐se dispensável dizer: todo hábito perceptivo também é um hábito motor. Os
hábitos, quando protegem de esquemas familiares limitantes, tornam-‐se
infelizmente armaduras que impedem novas experiências de vida. Na educação
somática, uma vez que os hábitos sejam reconhecidos, eles serão explorados por
27
múltiplas variações, e, aos poucos, se a pessoa se sentir em segurança para tal,
novas percepções, novos comportamentos e novos pensamentos poderão ser
integrados ao cotidiano do indivíduo, o que de maneira inevitável alimentará o
trabalho de criação do artista (FORTIN, 2011:33).
Soter (1998) indica que o maitre de dança (figura mitológica do bailarino que
torna-‐se professor) gradativamente é substituído pelo professor de dança
formado em escolas e universidades, pois nesta nova visão de dança dominar a
arte não significa que necessariamente se tenha a capacidade de transmitir as
informações de dança. Por outro lado, é esta experiência de viver a prática
cotidiana da dança que constrói a capacidade de ensinar. “É no cruzamento entre
conhecimentos teóricos, prática sólida e reflexão sobre esta prática, que o ‘saber-‐
fazer’ se ‘molda’ em ‘saber-‐aprender’ para, enfim, se transformar em ‘saber-‐
ensinar’” (SOTER ,1998: 143-‐144).
De maneira geral, a educação somática é uma ciência teórico–prática que aborda
o movimento do corpo através da consciência e das experiências relativas a ele.
O corpo enquanto experiência é um dos pontos fundamentais desta ciência, e o
professor que aplica a educação somática como forma de aprendizado utiliza-‐se
de estratégias pedagógicas que levam em consideração a percepção, o
aprendizado pela vivência e a sensibilização.
A educação somática pode beneficiar as danças fundamentalmente em três
elementos principais: ampliação da capacidade expressiva, otimização
progressiva da técnica do dançarino e a prevenção de lesões.
No contexto da aula de educação somática, mais importante do que o fim, do que o
resultado formal do movimento, é o processo, o percurso do gesto. Portanto, o como
se torna prioritário (SOTER , 1998:144).
O percurso é o ponto fundamental do processo de aprendizado na educação
somática, logo, a sensibilidade de entender o caminho que o aluno pode
percorrer e desenvolver dinâmicas que ajudem nesta trajetória singular é de
28
fundamental importância para o professor. Neste sentido, a proposta deste
trabalho dialoga com as ideias defendidas por Fortin e Long (2003) quando
abordam a questão do professor “facilitador”:
(...)o facilitador de uma experiência educacional deve desenvolver uma
compreensão das necessidades, das atitudes e dos pontos de partida dos alunos. Do
mesmo modo, deve criar oportunidades de interações entre o conhecimento prévio
e a experiência, permitindo a emergência de múltiplos modos de conhecimento
(FORTIN e LONG, 2003:20).
Nesta medida, cabe ao professor identificar possíveis conexões entre o material
apresentado pelo aluno e as novas informações que ele pretende relacionar.
Freire (1981) também aponta para a mesma direção, quando defende que o
estudante crítico relaciona as suas questões ao objeto de estudo. Aqui, cabe ao
professor identificar os pontos de contatos iniciais por se tratar de
particularidades muitas vezes subjetivas.
Repetir desatentamente ou sem uma consciência geral das particularidades do
movimento pode gerar sequências coreográficas mecânicas, movimentos que se
resumem ao ato de mover-‐se e não carregam este fenômeno da carga expressiva
que ele pode conter. Sob este ponto de vista, faz-‐se necessário distinguir
“movimento” de “gesto”.
Sobre a capacidade expressiva do gesto, Godard (2011) faz as seguintes
observações:
A percepção de um gesto se dá de forma global e dificilmente permite que o ator ou
observador distinga os elementos e as etapas que fundam a carga expressiva desse
gesto. Cada indivíduo, cada grupo social, em ressonância com seu ambiente, cria e é
submetido a mitologias do corpo em movimento que constroem quadros de
referências variáveis da percepção. Conscientes ou não estes quadros são sempre
ativos (GODARD, 2001:11).
Perceber o gesto é um quadro de referências que aquele que o promove é ativo
em sua construção. Porém, dificilmente possibilita que tanto quem observa
29
quanto quem atua neste gesto distinga a carga expressiva das etapas deste gesto.
Este indivíduo, que em seu grupo social relaciona-‐se com seu meio ambiente, é
submetido a uma “mitologia pessoal” do gesto. É na dança que se apresentam as
afrontas das questões culturais do passar do tempo até as danças codificadas há
séculos, como no caso do balé clássico que não escapam de serem produzidas e
percebidas de maneiras muito distintas de uma época para outra. É exatamente o
que acontece com o sapateado americano que conserva movimentos e passos
codificados, mas se apresentam com as características da época e dos corpos que
a produzem.
De acordo com Godard (2001), a figura ou forma do gesto não nos ajuda a
entender ou compreender a dinâmica de execução, tão pouco a percepção deste
gesto pelo bailarino ou pelo espectador. Esta dificuldade acaba por formar
tendências dos estudos de dança relativos a épocas históricas, escolhas estéticas ,
ou seja, delimitam bem o contexto externo do campo e acabam por dissociá-‐los
dos limites internos e da dinâmica interior do gesto.
Dessa forma, o autor distingue movimento e gesto:
Movimento é aqui compreendido como um fenômeno que descreve os
deslocamentos estritos dos diferentes segmentos do corpo no espaço, do mesmo
modo que uma máquina produz movimento. Já gesto se inscreve na distância entre
esse movimento e a tela de fundo tônico-‐gravitacional do individuo, isto é, o pré-‐
movimento em todas as suas dimensões afetivas e projetivas. É exatamente aí que
reside a expressividade do gesto humano, expressividade que a máquina não possui
(GODARD, 2001:17).
Nesta medida, a presente dissertação de mestrado se distancia de outros estudos
que focam em questões históricas e estéticas, às vezes, até mesmo das questões
técnicas do sapateado americano. Tal distanciamento parte em busca de um
olhar reflexivo que compreenda os intrincados caminhos dos processos
comunicacionais e dos diálogos, que atuam na construção de uma expressividade
do gesto de dançar. Está caracterizado aqui uma busca pela construção de um
pensamento do corpo, uma construção de espaços dialógicos, como diria Flusser
30
(2007), que abriguem as complexidades de cada aluno, a técnica da dança e a
sensibilidade do professor.
31
2.0 – Algumas definições
Toda arte está submetida a regras e metodologias que a constroem e
possibilitam sua comunicabilidade. A arte do Ballet Clássico, ao passar dos anos
em que se estruturou, construiu bases sólidas de formalização de seus passos e
movimentos, o que é apresentado para os estudantes como a técnica do Ballet
Clássico.
A palavra arte vem do latin “ars” que corresponde ao termo “techne”, técnica,
significando o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a
regras. (CHAUÍ, 2000:405)
Na dança isto também não é diferente, principalmente quando se trata de danças
em que a forma, a estrutura, e a técnica, são formalizadas. O ballet desenvolveu,
ao longo de sua estruturação enquanto linguagem, um conjunto de regras que
compõe sua estrutura enquanto ballet clássico, por exemplo: a pirouette será
sempre igual, independente do país ou escola que a execute; evidentemente que
há alguma pequena variação de posicionamento de braço e pernas, porém,
estruturalmente, a técnica de fazê-‐la será sempre a mesma. No sapateado
americano, por exemplo, o step é um passo para qualquer direção com
transferência total do peso de uma perna para outra. O step, no caso do
sapateado americano, deve ser o mesmo aqui ou em qualquer outra parte do
mundo.
O problema não está presente na formalização de técnicas, movimentos e
metodologia, ele aparece quando a arte da dança se transpõe a servir uma
automatização de formas e repetições de movimentos propostos por estas
metodologias que acabam por distanciar o corpo da técnica.
32
Com a melhoria nas pesquisas médicas, os treinamentos físicos para esportistas
e bailarinos, cada vez mais efetivo, a seleção dos integrantes das grandes
companhias de danças é baseado em modelos de corpos que serão,
supostamente, aptos para a realização do movimento proposto pela dança em
questão. Para fazer parte do Royal Academy of Dance na Inglaterra, meninas e
meninos a partir de sete anos passam por rigorosos testes de seleção que são
baseados principalmente num corpo adequado para a forma do ballet. Este
“corpo possível”, não é o corpo do bailarino, mas sim o corpo da forma ou, pelo
menos, um corpo que possibilite a forma.
Desta maneira, a dança acaba por contaminar-‐se por uma dúvida: é o ballet que
padroniza o corpo ou são os corpos padronizados que compõem a imagem do
ballet? A dúvida ganha proporções e, em um senso comum, alguns institutos de
dança e escolas espalhadas pelo mundo optam por seguir um modelo destas
instituições importantes do ballet clássico e acabam por praticar esta automação
e padronização do corpo do bailarino, às vezes sem fundamentos, por uma
definição estética apenas. Esta é uma questão que pode e é discutida por
inúmeras vertentes, mas não vem ao caso neste trabalho. O fato que queremos
ressaltar é que não escapamos da questão mimética da dança. Mais cedo ou mais
tarde o “faça como eu faço” aparecerá e, deve-‐se fazê-‐lo o mais próximo ao que
alguém algum dia já o fez , só assim seu movimento dentro da “suposta” técnica
estará certo.
Ao estudarmos a dança são difundidas algumas terminologias, utilizadas em um senso comum com significados obscuros, e, às vezes, muito cristalizadas, a ponto
de se perderem na própria indefinição do seu significado. Este é o clássico caso
da palavra ‘’técnica” que muitas vezes tem a sua aplicação de uma maneira
desmedida e pouco definida, desprendida de uma funcionalidade real.
Técnicas são dispositivos que promovem diferenças nos corpos. São operadores de
33
comunicação do corpo com o ambiente. Agem por contaminação, promovendo
comunicação entre as novas informações e as já existentes no sistema corpo, em
processos adaptativos.
As diferenças entre as diversas técnicas de dança podem ser olhadas deste mesmo
ponto de vista. Algumas reconhecem os processos de comunicação no corpo e com o
ambiente e buscam estratégias para trabalhar a capacidade de compreender,
realizar e utilizar estes mecanismos. Outras se definem pela intenção de moldar o
corpo de acordo com determinadas formas e linguagens estéticas e não fazem uso
intencional destes processos de geração de subjetivação e comunicação (NEVES,
2010:113,114).
Como observa Neves (2010), uma das pesquisadoras que organizou o método
Klauss Vianna no Brasil, compreender as palavras “técnica” e “método” é a base
para um o desenvolvimento e estudo de metodologias na área de dança no
cenário brasileiro.
Atualmente a dificuldade observada nas pesquisas sobre técnica de dança tem
sido primordialmente a separação da técnica e o corpo como duas instituições
separadas. Mesmo percebendo que técnica e corpo são pontos constituintes da
linguagem da dança, inevitavelmente inseparáveis, as abordagens tendenciam
um direcionamento que separa corpo e técnica, evidencia Neves (2010).
Esta separação das constituintes que se observa no ensino da dança, no que diz
respeito a técnica e corpo, tem um possível histórico baseado em nossas próprias
experiências de educação em todos os níveis. Esta linha de pensamento
discursivo, constituída desde nossa formação escolar, em que as ciências são
separadas, concorrem para que as relações obedeçam sequências cartesianas, de
ordem que acabam por simplificar a complexidade em que as questões do
mundo estão imersas.
Katz (2005) observa o “corpo que dança” como “corpo da dualidade”. O corpo –
máquina, aquele que é o corpo da física clássica, simétrico e preciso o qual todas
as leis da física agem de maneira regular; e o corpo biológico que se constitui da
instabilidade do caos. Estes dois modelos, mundo-‐máquina e mundo causal, é
que constitui o corpo que dança. Corpo este que é construído em eventos
34
contínuos que formam uma unidade de corpo que se manifesta em si mesmo. A
dança, à qual se remete, é a dança que vive na tensão dualidade lei/evento. É esta
dança que abordaremos aqui também, a dança como conjunto de acontecimentos
num corpo onde as questões do homem estão presentes e se moldam em sua
carne e movimentos. O corpo é o lugar do trânsito entre a cultura e a natureza,
entre o biológico e o físico, entre a ordem da técnica e o caos da criação. Logo, a
dança, precisa ser vista com toda complexidade que lhe é natural e não de
maneira segmentada, discursiva e cartesiana.
Em seu artigo “Complexidade e Conhecimento Científico” Vieira (2006) aborda,
entre outras questões, como nosso século propõe problemas mais complexos
para criar ferramentas, a fim de resolver as questões relacionadas a esta época
que tem como característica a crescente complexidade. É também uma realidade
da apreensão da linguagem da dança criar novos caminhos para transitar por
esta complexidade que o corpo e sua relação com o mundo apresenta.
Em contraposição, estamos imersos neste mundo complexo com um
conhecimento clássico e discursivo que não alcança esta rede de problemas,
caraterística dos sistemas abertos. Esta nossa dificuldade de lidar com a
dinâmica dos sistemas abertos do mundo pode ser um condicionamento que é
sustentado pela construção do conhecimento, já que o sistema cultural e o
sistema educacional tem fundamental importância no que se refere a garantir a
permanência dos demais sistemas humanos, ou seja, nas questões de produzir
material humano, informações características da mente do homo sapiens
sapiens.
Para se adequar ao meio ambiente do qual faz parte, o sistema necessita criar um
estoque de informação que ajude a elaborar este meio ambiente, a fim de
permanecer num contexto de informações.
A dificuldade encontrada nos sistemas de ensino e culturais é como esta
informação é elaborada, qual é a qualidade desta informação disponível para a
apreensão do sistema e como esta informação o influencia.
35
Faremos agora uma breve revisão da teoria geral dos sistemas proposta por
Vieira (2006), com o objetivo de, posteriormente, adotar essas considerações no
pensamento a respeito do corpo que dança. Segundo Vieira, para que o sujeito
consiga permanecer no espaço e tempo no qual está inserido é necessário que
ele possua algumas habilidades:
• Sensibilidade – acolhimento – a capacidade de estruturação do
fluxo de informação do sistema para que este seja hábil de reagir
conforme necessário às variações ou diferenças presentes no
ambiente e no próprio sistema aberto.
• Função memória – a capacidade de armazenar informações em
forma codificada, relacionando com suas experiências passadas e
presentes.
• Elaboração – a capacidade de utilizar as informações armazenadas
para resolver questões relacionadas às novas informações e
experiências, habilitando-‐o para permanecer e sobreviver.
A apropriação de uma determinada técnica caracteriza o momento em que corpo
e mente se comunicam. Estas adaptações que o corpo pratica relacionando as
novas informações com as presentes, assim como as constituintes do meio
ambiente em que está inserido, acontecem da seguinte maneira, quando
observamos através de uma visão sistêmica: Além desta comunicação entre
corpo e mente, o sujeito, a fim de se comunicar através da linguagem, deve ser
sensível para reagir através do estímulo proposto pela linguagem em questão.
Sensível a este estímulo, o sujeito abriga esta experiência, codificando–a com
suas informações adquiridas em outros momentos passados e presente. Este
ciclo em que a informação age e interage com o sujeito o capacita a elaborar
todas as informações apreendidas de tal maneira que ele adquira autonomia
para transitar entre técnica, movimento e linguagem através do corpo.
36
Berthoz propõe um esquema segundo o qual o cérebro trata o movimento segundo
dois modos, um conservador, que funciona continuamente como um sistema cativo
e outro, projetivo, mais recente na evolução, que simula o movimento para predizer
suas consequências e escolher a melhor estratégia de ação no momento. O cérebro
não calcula mas simula para encontrar novas soluções adaptativas. No primeiro
modo, o cérebro funciona como um controlador e no segundo, como um simulador.
O funcionamento do cérebro segundo este esquema permite compreender como, a
partir de possibilidades de movimento já existentes, o corpo simula novas
combinações, além de garantir a recuperação do que se tornou estável. O modo de
simulação funciona segundo a qualidade de predição do cérebro no tratamento do
movimento, conferindo à percepção o seu caráter de ação simulada e permitindo a
adaptação às circunstâncias presentes na ação. Isto permite compreender o espaço
da criação como reorganização ou recombinação dos fatores que constituem o
movimento – motores, sensoriais e cognitivos -‐ na comunicação com os ambientes
externo e interno, no presente.
A dinâmica própria da percepção e seu aspecto de adaptabilidade evidenciam o
aspecto dinâmico e relacional da criação de movimentos. Sendo assim, o novo não
deve ser confundido com novidade, mas uma nova organização num processo de
contaminação com o ambiente (NEVES, 2010:96-‐97).
Pode-‐se observar na proposição de Berthoz apontada por Neves que o
funcionamento do cérebro possui um esquema similar à sistematização das
informações na teoria geral dos sistemas. Para ter autonomia é necessário que o
cérebro reconheça as informações apreendidas, relacionando-‐as com as
informações que lá estão para compor uma simulação do movimento, adaptada
às circunstâncias presentes neste possível movimento.
Nesta medida, este estudo pretende direcionar a atenção para o corpo,
corpomídia da linguagem da dança, de forma a buscar uma melhor compreensão
entre as relações corpo e técnica, construindo uma visão de técnica que não seja
estagnada como usualmente ouvimos nas salas de aulas de dança, mas
contemple a complexidade das relações em que o corpo e a técnica estão
inseridas, levando em consideração meio ambiente e experiências adquiridas, de
37
modo que se amplie as possibilidades deste corpo para além de movimentos
mecânicos e reproduções de passos.
Neves (2006) discute como a técnica, durante o aprendizado de dança, pode ser
comumente deparada como artefato afastando ainda mais a técnica do corpo.
Mesmo compreendendo que a definição de artefato cognitivo não se restringe a
objetos externos ao corpo uma vez que inclui a linguagem, definir técnica de dança
como um artefato envolve o risco de mantê-‐la fora do corpo. A proposta de
funcionamento deste artefato em looping causal implica em um entrelaçamento não
linear entre artefato/técnica e corpo, que os modifica, mas ainda assim faz pensar
em uma distância entre ambos, devido à carga metafórica presente no termo
‘artefato’. A técnica como artefato cognitivo, a despeito da explicação de Clark, corre
o risco de ser compreendida como material não-‐biológico acoplado ao corpo,
sugerindo uma confirmação do estereótipo tradicional, na dança, da técnica como
algo que se coloca no corpo e do qual se lança mão quando necessário, numa visão
utilitária, como se esta fosse uma ferramenta e o corpo um recipiente (NEVES,
2010:23 24)
Sob este ponto de vista propõe-‐se fazer um paralelo da teoria geral dos sistemas
com a teoria dos processos criativos, com enfoque do método científico aplicado
ao conhecimento do corpo na linguagem da dança, com a finalidade de visualizar
como todo este sistema educativo, baseado na educação discursiva à qual
estamos inseridos, influencia nesta dificuldade de perceber outras maneiras de
conhecimentos corporais e de movimentos. E como este conhecimento
discursivo está presente dentro da forma de ensino nas quais as danças são
ensinadas em grande parte das escolas, diminuindo a complexidade e
segmentando técnica e corpo.
Na busca por encontrar metodologias que incentivem a expressividade do corpo
e a apropriação da técnica este trabalho foi em busca de pontos de contatos com
o trabalho do pesquisador, coreógrafo e bailarino Klauss Vianna.
O processo de apreensão da dança, para Klauss Vianna (2005), depende de uma
desestruturação do corpo. Segundo Viana, existe uma tendência de se acomodar
38
dentro dos padrões em que somos criados e acabamos por deixar o corpo
adormecido. Para que o corpo saia desse estado de entorpecimento, é necessário
desestruturar o corpo através de estímulos incomuns, ou seja, exercícios que
trabalhem com a relação corpo e mente. Através da prática desse tipo de
exercício, é possível que a percepção do próprio corpo se altere e se expanda.
Nesse sentido, o método de Vianna tem por objetivo estimular as relações corpo
e mente e, com isso, a percepção do corpo é expandida para uma descoberta de
novos caminhos.
Para Klauss (2005), a sala de aula deve ser um ambiente de questionamento,
discussão e interação, diferentemente de como estamos acostumados a observar
na tradicional escola de dança, onde a repetição de formas costuma acontecer,
principalmente no ensino do Ballet Clássico. O autor argumenta que processos
de treinamento com uma disciplina militar resultam na anulação da
individualidade.
Klauss inaugurou no Brasil uma nova maneira de ver o corpo e o corpo cênico com
base em um determinado modo de entendimento do funcionamento do corpo, com
o objetivo de desenvolver as possibilidades de comunicação (NEVES, 2010:25)
Para Vianna (2005), mesmo em contextos em que corpos trabalham a mesma
coreografia eles comunicam individualmente: “(...)o corpo de baile tem que ser
constituído por pessoas completamente diferentes, para que os gestos saiam
semelhantes; a intenção é o que importa.” (Vianna 2005:32)
O corpo de baile no balé clássico é formado por bailarinos que, geralmente,
repetem uma coreografia simultaneamente, formando uma fila ao fundo ou
grupos no palco que se movimentam praticamente juntos. Neste sentido, Vianna
(2005) direciona os artistas para a sua intenção pessoal do movimento,
transcendendo a repetição.
Movimentos nunca são reproduções exatas mesmo que aprendidos previamente.
Não há repetição possível, uma vez que, como nos ensina o neurologista Gerald
Edelman (2001), as conexões em rede entre neurônios acionadas para a execução
39
de um movimento nunca são exatamente as mesmas (NEVES, 2010:24).
Dançar é “estar inteiro”, o que quer dizer que não se pode ignorar as próprias
emoções e as experiências que trago no meu interior enquanto danço ou
enquanto estou na sala de aula. O aluno não pode estar anestesiado enquanto faz
(repete) um exercício como um operário numa linha de montagem. Ficar sempre
no mesmo lugar, ouvir sempre as mesmas músicas, repetir sempre os mesmos
passos são constantes que, de tão constantes, se regularizam, tornam-‐se hábitos.
É preciso vivenciar os movimentos muitas e muitas vezes, mas vivenciar é
diferente de repetir. A repetição é necessária se ela for acompanhada de
consciência e sensibilidade, de tal forma que o gesto amadureça e torne a ser
próprio. Repetir o movimento em sala de aula deveria levar à observação de
nossas dificuldades. Os bailarinos precisam colocar suas personalidades a
serviço da dança. “Cada um deve usar sua musculatura dentro do processo
próprio, seguindo uma estrutura de movimentos propostos por mim, mas cuja
utilização é pessoal.” (Vianna 2005:82)
Sobre a questão professor/aluno, coreógrafo/bailarino Vianna (2005) acredita
que o aluno, a partir do momento em que se dispõe a aprender a técnica da
dança, e o professor não têm competência para se comunicar e conseguir
objetivar seu trabalho: o problema é exclusivamente do professor e não do
aluno. A tentativa do trabalho do professor deve ser recuperar a percepção da
totalidade do corpo e tornar os gestos mecanizados pelas práticas do cotidiano
em movimentos conscientes.
O balé clássico pressupõe um modelo rígido, composto por um ideal estético e
uma disciplina cotidiana capaz de produzir apuramento técnico. Assim, muitos
alunos se submetem a um massacre físico e psicológico em busca da forma ideal.
Deveríamos fazer exatamente o contrário: partir do corpo que temos e não do
modelo. Assim, com disciplina e organização, moldamos um ideal próprio, a
partir do nosso próprio corpo. Nesse sentido, (Vianna 2005:73) defende que “a
técnica na dança tem apenas uma finalidade: preparar o corpo para responder à
40
exigência do espírito artístico”.
Vianna (2005) ainda defende que o trabalho coreográfico só resultará em uma
criação original se fugirmos da repetição mecânica das formas vazias e pré
fabricadas e utilizarmos a técnica como meio e não fim; “a técnica só tem
utilidade quando se transforma em uma segunda natureza do artista” (Vianna
2005:73).
É preciso chegar ao ponto em que o aprendizado se torne um hábito e que a
naturalidade do gesto transcenda os limites do próprio aprendizado. A partir da
observação e percepção dos movimentos elementares Vianna (2005) procura
criar um código com o corpo para começar a sensibilizar as partes mortas e
liberar articulações.
Observa-‐se que a percepção é o ponto fundamental para a criação dessas
informações e possibilidades do corpo. Quanto maior a gama de experiências
relativas ao movimento, exigido pela dança em questão, maior a possibilidade do
corpo se identificar e organizá-‐lo de maneira mais natural.
Na visão do neurocientista Damásio (2010), essas questões se relacionam com a
ideia de "sentimentos de conhecimento". Na visão do autor, esses sentimentos
estabelecem uma relação de distinção entre o eu e o não-‐eu. O fato da percepção
gerar emoções e sentimentos permite que a mente tenha conhecimentos
dos domínios que lhe são próprios (corpo, mente, experiências,
estados físicos, sensações etc). Consequentemente, essa percepção faz com que
este corpo se aproprie ou não destas experiências, separando aquilo que lhe
interessa e construindo seu eu através da experiência apropriada. Quando neste
fluxo mental surgem conteúdos relativos a esta apropriação, a este eu,
a consequência é a criação de marcadores que se unem ao fluxo em forma de
imagem justaposta: a imagem que a desencadeou, num ciclo interminável
de criação de imagens a partir das imagens já criadas.
41
2.1 – Rede de Percepções
Neste momento vamos propor uma rede de relações entre os conceitos de
percepção, processo criativo e experimentação, a fim de subsidiar nosso
raciocínio, bem como contrastar nossa visão particular com a dos demais autores
pesquisados. Pretende-‐se discutir neste trabalho como o processo de apreensão
e apropriação do movimento técnico transcende vários níveis de conhecimento,
permeia entre linguagens próprias e se apropria de outras. E, também, como
estas relações entre alunos e professores, estão imersas de possibilidades e tem
na comunicação um viés de observação que nos parece indissociável. A
experiência da dança é um processo comunicacional em que, para os envolvidos
no processo criativo, tudo é mediado pelo próprio corpo e pelas linguagens que
traduzem sensações, experiências, textos em movimentos. Movimentos que são
linguagem deste corpo que o produz e que chega ao outro corpo que assiste e se
transforma simplesmente pelo fato de reconhecê-‐lo como corpo humano, de
percebê-‐lo em outro tipo de processo comunicativo: o momento da apresentação
coreográfica.
O corpo participa de todas as experiências do homem. É através do corpo que ele
se relaciona com o mundo, transformando-‐o. Essas experiências sócio-‐culturais
são impressas ao longo das gerações e das experimentações inerentes ao ser
desde seu surgimento. Consequentemente, tais impressões estão presentes na
totalidade deste ser que as carrega e apresenta estampada nos seus gestos,
movimentos, escolhas, entre outros.
Os olhos, ouvidos, nariz, boca e pele são modos de exploração, investigação e
orientação, modos de atenção a tudo que é constante na estimulação mutável,
capazes de isolar a informação pertinente. Longe de serem mutuamente exclusivos,
sobrepõem-‐se e, na maior parte das vezes, estão focados no mesmo tipo de
informação, isto é, a mesma informação pode ser captada por uma combinação de
42
sistemas perceptivos trabalhando juntos (GIBSON, 2004: 128).
Como propõe Gibson (2004), podemos entender que a exploração do homem
está diretamente relacionada às suas experiências sensoriais. O corpo interage
com estas informações através de um meio físico, seja ele o ouvido, o nariz, a
língua, a pele ou o olho. Em seguida, transforma-‐as em impulso elétrico que
chega ao cérebro e, por sua vez, é traduzido em experiência sensória inteligível.
Este processo perceptivo é uma via de mão dupla, em que as informações se
entrelaçam por meio de uma complexa rede que envolve o corpo, o meio
biológico e o meio social em que o homem está inserido. O corpo não consegue
isolar um sentido e perceber apenas o som, por exemplo, mas sim captar a
informação, utilizando toda sua combinação de meios perceptivos, para
selecionar a informação que lhe é pertinente. Esta informação é processada por
um corpo que passou por outras experiências sensórias durante toda sua vida.
Consequentemente, esta tradução de informação não será exatamente igual à
outra, mesmo que a informação inicial seja a mesma. Em outras palavras, isto
significa: se eu cheiro uma mesma maçã duas vezes ela já não é exatamente igual,
se eu como um chocolate (do mesmo lote, fabricado no mesmo dia) em
momentos distintos, ele terá gostos diferentes, porque esta máquina sensória
humana não é precisa. Ela depende de constantes físicas e químicas que a
regulam de maneira cruel.
Para o bailarino e o coreógrafo, perceber o próprio corpo e o corpo do outro é o
ponto inicial do seu trabalho. Olhar e apreender os movimentos que serão
utilizados no processo coreográfico, nesta medida, significa que todas estas
constituintes, que tendenciam a percepção, devem ser levadas em consideração e
assumidas no trabalho coreográfico. Isto significa que, inevitavelmente, estas
percepções do movimento pelo corpo do outro sofrem, durante este processo de
apreensão, uma série de influências, perdas e ganhos pela própria natureza
43
tradutória deste processo e, ainda, que estas constituintes adquiridas
naturalmente podem caracterizar este movimento “carregado” como parte do
discurso deste corpo que a produz.
A percepção é relativa à mudança e está diretamente relacionada às experiências
e sensibilidade do corpo que a contempla. A percepção é a tradução das
informações recebidas pelos sistemas perceptivos em experiências sensoriais.
Para Damásio (2010), perceber é o resultado das possibilidades que o cérebro
tem de criar imagens mentais. Estas imagens mentais estão diretamente
relacionadas à percepção, independentemente se esta imagem é visual, sonora,
tátil etc. Ela sempre será, no cérebro, um mapeamento mental.
Consequentemente toda experiência do homem é uma experiência mediada pelo
corpo. O conceito de corpomídia descrito por Greiner e Katz (2005) corresponde
à noção de mídia de si mesmo, onde o corpo é um meio em que a informação
entra e se relaciona com as que já estão. A mídia a que ele se refere é a que diz
respeito ao processo evolutivo de selecionar informações para a constituição do
próprio corpo. Nesta medida, observar um acontecimento é participar com o
corpo daquele acontecimento; participar deste acontecimento é transformar o
seu corpo em outro corpo, um corpo carregado deste novo acontecimento.
Katz (2005) sugere que o corpo indica a transitividade no lugar. Todo corpo é
corpomídia de si mesmo, sendo corpomídia daquele estado momentâneo,
juntamente com todas as informações colecionadas por ele e que o constitui. A
noção de mídia empregada aqui é a de que a informação que fica no corpo se
torna corpo. Essa visão é diferente da teoria de corpo-‐máquina, em que a
informação entra, é processada e devolvida apenas. A mídia do corpomídia
identifica um estado do corpo sendo o corpo mídia do próprio estado. Todo
histórico de informações que foram apreendidas pelo corpo, e que o constituem,
são apresentadas através dele mesmo naquele exato momento. Dessa forma,
44
novas informações entram em interação com as que ali já estão, criando novas
relações e, com isso, nova mediação do corpo através dele mesmo. Na presente
pesquisa, pretende-‐se investigar o corpo no processo coreográfico, a partir deste
conceito de corpomídia desenvolvido por Greiner (2005) e Katz (2005).
Este trabalho também recorre aos fundamentos teóricos propostos por Pierce
com a finalidade de discutir questões que abordam a interação. Na visão deste
autor, aquilo que percebemos é algo que impositivamente insiste em aparecer
para nós. Não é algo que é criado pela nossa mente. É a partir de algo que está
fora de nosso corpo e que se força sobre nós que voltamos nosso olhar
(adotamos a partir de agora o olhar como a conciliação de todos os sentidos do
corpo, não limitando-‐o apenas a visão), e percebemos àquele objeto. A partir
deste ponto, neste ato perceptivo, em que o olhar se volta para o objeto
começamos um julgamento de percepção, este nada mais é que uma mediação
daquilo que representa este objeto e, nesta mediação é onde ocorrerão as
inferências lógicas deste processo. Ocorrerão esquemas mentais e
interpretativos se relacionando com essas mediações do objeto e que
caracterizarão os juízos perceptivos.
Evidentemente todas as etapas aqui descritas estão presentes em um contínuo
inconsciente que vai acontecendo conforme estamos presentes neste estado de
apreensão.
Para que sejamos capazes de traduzir este objeto em julgamentos, estes tem que
ser reconhecidos de alguma experiência anterior. Este fluxo mental aproxima o
que está fora aos demais julgamentos perceptivos que fazemos, e para que ele
não seja rejeitado é necessário ser reconhecido neste contexto interpretativo em
que ele interpreta e ao mesmo tempo é produzido.
Chega-‐se ao um ponto em que a percepção é o ponto fundamental para a criação
dessas informações e possibilidades do corpo. Quanto maior a gama de
experiências relativas ao movimento exigido pela dança em questão, maior a
possibilidade do corpo se identificar e organizá-‐lo de maneira mais natural.
45
Sob este aspecto, observa Katz (2005) em relação às experiências do corpo e à
repetição do movimento:
Quem observa o corpo, percebe que nele ocorrem tanto os aprimoramentos
graduais quanto emergenciais. Qualquer pessoa que tenha experimentado praticar
tecnicamente com o corpo -‐ seja dançando, pulando corda, andando de bicicleta,
jogando bola, etc -‐ já sentiu as duas formas de ocorrência. A habilidade que se
repete melhora gradualmente através do treinamento que burila o exercício. No
entanto, eventualmente, interrompem novas circuitações que surpreendem o
controle. Como se o corpo desenvolvesse uma solução inteligente não prevista pela
consciência.
Isto ocorre, muito provavelmente, porque um processo de repetição não se dá sem
minúsculas diferenças, a certa altura produz uma diferença que se nota. As várias
qualidades de informação que um corpo produz e abriga não são compartimentadas
e estanques, mas se comunicam e se relacionam. Assim, um processo de repetição,
também está modificando todo o resto, que não está sendo especificamente
repetido (KATZ, 2005:38).
Para Damásio (2010), os sentimentos que estabelecem
uma relação de distinção entre o eu e o não-‐eu são "sentimentos de
conhecimento". O que permite que a mente tenha conhecimentos
dos domínios que lhe são próprios (corpo, mente, experiências,
estados físicos, sensações ) é o fato da percepção fazer gerar emoções e
sentimentos, o que faz com que este corpo se aproprie
ou não destas experiências, separando aquilo que lhe interessa e construindo seu
eu através da experiência apropriada. Quando neste fluxo mental
surgem conteúdos relativos a esta apropriação, a este eu, a consequência é
a criação de marcadores que se unem ao fluxo, em forma de imagem justaposta
àquela que a desencadeou, num ciclo interminável de criação de imagens, a
partir das imagens já criadas.
Os processos de interpretação e organização desta informação são integrados e
seguem uma rede de acontecimentos mentais num processo sígnico ou de
46
semiose, em que a capacidade de operar e perceber ou vice-‐versa determinam
um ao outro. As experiências são carregadas de outras experiências.
As percepções são construídas através de outras percepções, num ciclo sem fim
de informações que se relacionam inevitavelmente e surgem a partir uma das
outras.
A definição do “eu material”, o eu enquanto objeto para Damásio (2010) é: um
agrupamento dinâmico de processos neurais integrados, centrado
na representação do corpo vivo, que encontra expressão num agrupamento
dinâmico de processos mentais integrados.
Refiro-‐me ao termo imagens como padrões mentais com uma estrutura construída
com os sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais -‐ visual,
auditiva, olfativa, gustatória e sômato-‐sensitiva. A modalidade sômato-‐sensitiva (a
palavra provém do grego sôma, que significa 'corpo’ inclui várias formas de
percepção: tato, temperatura, dor, e muscular, visceral e vestibular. A palavra
imagem não se refere apenas a imagem 'visual', e também não há nada de estático
nas imagens... As imagens de todas as modalidades 'retratam' processos e entidades
de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também 'retratam' as
propriedades físicas das entidades e, às vezes imprecisamente, às vezes não, as
relações espaciais e temporais entre entidades, bem como as ações destas. Em
suma, o processo que chegamos a conhecer como mente quando imagens mentais
se tornam nossas, como resultado da consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e
muitas delas se revelam logicamente inter-‐relacionadas. O fluxo avança no tempo,
rápido ou lento, ordenadamente ou aos trambolhões, e às vezes segue não uma, mas
várias seqüências. Às vezes as seqüências são concorrentes, outras vezes
convergentes e divergentes, ou ainda sobrepostas. Pensamento é uma palavra
aceitável para denotar esse fluxo de imagens (DAMÁSIO, 2000: 402-‐403).
O que estamos tentando fazer aqui é evidenciar através destas teorias da
percepção as possibilidades que o corpo tem naturalmente de traduzir e
produzir conteúdos. Podemos observar em ambas teorias descritas acima que a
questão da informação já experienciada pelo corpo tem fundamental
importância na construção de novas informações para este corpo, pois ela
47
direciona o olhar e estabelece relações. Mais adiante veremos que, de acordo
com a teoria de Salles (1998) e dos processos de criação, a maneira como são
estabelecidas essas redes de informação durante a produção artística é que
indicam a tendência e a individualidade de cada artista.
Neste trabalho, esta questão da individualidade presente no movimento do
corpo é o ponto que interliga estas teorias num interesse em comum. Tal
questão, leva-‐nos a questionamentos do tipo: como estas traduções aparecem
para o coreógrafo durante o processo de apreensão da coreografia? Como
trilhamos um caminho que possa gerar um reconhecimento para o aluno, de
modo que a técnica não seja rejeitada logo no início e que o processo possibilite
a vazão de informações e não crie frustrações, devido à própria potencialidade
falível, que é da natureza do processo de percepção?
Tentaremos demonstrar como fizemos para que, durante as oficinas de
sapateado americano, a utilização de procedimentos priorizassem as
possibilidades do corpo dos bailarinos, independentemente da quantidade de
informação técnica apreendida. O que podemos observar nestas teorias é que
elas concordam que perceber é um processo contínuo em que dificilmente
vamos achar um início, um meio e um fim. É um ciclo de assimilações. Uma
experiência em que as informações chegam por todos os lados, produzindo
conteúdos. Utilizar estes conteúdos no processo criativo da dança, ou moldar as
possibilidades que o corpo já apresenta em possibilidades dentro da linguagem
técnica envolvida é um caminho menos árduo e traumático que pode facilitar aos
envolvidos uma trilha comum aos objetivos finais. Olhar o aluno como um artista
em potencial é uma das bases do trabalho. A tentativa aqui é fazer com que este
aluno possa ter acesso a ferramentas que o ajudem na investigação do seu
próprio movimento.
48
2.2 As possibilidades através das inquietudes
Salles (2008) em sua apresentação sobre o processo de criação de “Todos os 12”,
da extinta Companhia 2 do Balé da Cidade de São Paulo, faz importantes
observações, as quais se mostram relevantes a este trabalho. A autora aponta
questões sobre o papel do crítico, como parte do processo das redes de criação.
Salles (2008) esclarece ainda que, por se tratar de um projeto de um órgão
público, havia uma constante discussão sobre o comprometimento de todos, já
que o percurso era direcionado por uma proposta que sustentava uma forte
vertente ética. A seguir, a autora menciona um trecho da discussão proposta
pelas diretoras da Companhia, que ilustra bem a preocupação em torno dessa
questão: "(...)no seu entendimento, que outras ações semelhantes a essa é
possível esperar de uma companhia oficial de dança, que entende seu papel
político no cenário nacional da dança?" (Salles 2008: 84)
Estes questionamentos, com o objetivo de levar ao comprometimento, eram
fundamentais para a proposta estética do projeto, cujo propósito era romper
modelos de atuação dos bailarinos ou, segundo Salles (2008: 85) “romper com
uma matriz codificada ou um corpo com memória cristalizada.”
Fundamentalmente o projeto tinha a proposta de abalar os moldes e a tradição
vivenciados pelos corpos dos bailarinos, através de diálogos múltiplos. Isso nos
leva a crer que ainda hoje uma companhia importante do cenário paulista de
dança, fomentada por verba pública, enfrentando dificuldades para que os
bailarinos se apropriem de diferentes qualidades de movimentos, como diz
Salles (2008:84) “apropriar-‐se de seu corpo sem as máscaras e incertezas do
conhecido”. É evidente que os bailarinos vivenciam uma dificuldade durante seu
trabalho como artista. Tal dificuldade pode ter sido proporcionada por um
treinamento corporal “cristalizador”, de tradições que assumem tamanha
49
importância, a ponto de calar o discurso corporal do artista que representa o
movimento.
Outra questão abordada pelas diretoras da Companhia de Dança da cidade de
São Paulo era “que dança o meu corpo dança?”. Na perspectiva de Salles (2008),
os propósitos deste projeto chegavam a abalar estruturas supostamente
inquestionáveis, como a tradição das aulas e ensaios. Dentro de uma companhia
de dança contemporânea, em busca de linguagens, movimentos e discursos
novos, um projeto dessa magnitude significa abalar estruturas rígidas.
Neste presente trabalho, assumimos a perspectiva de que abordagens
estruturalmente rígidas acabam por abafar qualquer questão discursiva que o
bailarino possa ter, e mais, treina desde sua formação inicial o artista bailarino a
não ter um discurso pessoal para ceder seu corpo ao movimento técnico, ao
movimento coreográfico perfeitamente reproduzido. Assim como também
observa Salles na emergência de abalo a estas estruturas no trabalho da
Companhia 2.
Chega-‐se, então, a um dos pontos relevantes desta pesquisa: o problema e as
dificuldades que se apresentam no trabalho de apropriação dos movimentos,
mesmo em bailarinos profissionais, gerados principalmente pelas estruturas
inquestionáveis de aulas e dissociação do ensaio e a apresentação. Sendo assim,
podemos tentar olhar o treinamento dos bailarinos durante sua formação, ou no
nosso caso, em oficinas de dança, onde possivelmente encontraremos bailarinos
em potencial?
Acredita-‐se que sob o ponto de vista da comunicação, com suas inúmeras
pesquisas relacionadas à cognição, percepção e teorias do conhecimento, estas
questões de “sentir” o movimento, aparentemente metafísicas, possam encontrar
conceituações teóricas mais palpáveis e emergirem do mundo do inexplicável
para uma estruturação científica, que explique e possibilite soluções e reflexões
aos artistas.
50
Propor um paralelo com a teoria dos sistemas parece ser um bom princípio. Este
paralelo servirá como uma catapulta para o que vem a seguir: a discussão da
teoria dos processos de criação em dança.
Em seu artigo “A teoria de Umwelt de Jakob Von Uexkull”, Thure Von Uexkull
(2004), explica como funciona as delimitações das possibilidades e
impossibilidades de cada ser vivo, diretamente relacionadas com seu aparato
perceptivo-‐operacional. Este grande conceito é chamado de “Umwelt” e tem
como premissa epistemológica uma visão sistêmica de mundo, isto é, o processo
vital é entendido como um sistema círculo-‐funcional coerente, em que código e
contexto, sujeito e objeto são elementos de um todo maior que tendem a se
relacionar de tal maneira funcional para que o ser biológico se adapte ao seu
meio e consiga sobreviver. Neste aspecto, ambos fazem parte de um sistema
aberto, porque interagem com o seu meio ambiente e entre si. Observar estes
sistemas significa participar deste sistema. Tais interações entre observador e
sistema observado geram uma mudança no contexto em que se apresentam.
Neste trabalho, é por esta abordagem que recai o olhar sobre a dança na sala de
aula de sapateado americano. Observar o aluno para entender os processos que
seu corpo encaminha em direção à apreensão do movimento e pensar em
propostas para direcioná-‐lo para o objetivo do professor. Este “Unwelt” da dança
é a forma que o corpo encontra para se adaptar e permanecer em uma estrutura
(sistema) que lhe causa algum sentido vital de permanência.
De acordo com Uexküll (2004), cada espécie tem atividades receptoras e efetoras
específicas, é isto que regula cada uma das interações entre objetos e sujeitos. A
percepção e a operação são o que definem estas capacidades específicas de cada
espécie. Cita-‐se como exemplo o morcego, que emite ultra sons e tem receptores
que o fazem ter a capacidade de se movimentar sem necessidade da visão. Há
também os gatos, que ao cair de determinada altura tem a capacidade de girar o
corpo, a fim de direcionar suas patas adaptadas ao impacto em direção ao solo
etc.
51
Esta relação do corpo com seu meio ambiente é o que vai determinar os limites
de suas possibilidades, assim como o “Umwelt” determina as possibilidades
perceptivas dos seres vivos. Nesta medida, observar-‐se-‐á processos criativos de
alguns coreógrafos e pensadores da dança, para que os pontos em comum com
seus trabalhos possam objetivar a busca pelo aumento da gama de
possibilidades em relação ao corpo que dança.
Vieira (2006) faz importantes relações para esta discussão a partir do trabalho
de Laban. Observa-‐se que a gramática de mundo, que condiciona a existência do
“Umwelt” humano, depende da evolução e das internalizações que o nosso corpo
faz, de um modo perceptivo mediado da realidade de mundo, operada pelas leis
físicas.
Além dessa possibilidade, Laban também nos fala da dança como sistema aberto
para um meio ambiente que além de físico é também cultural. E de fato, podemos
cogitar acerca de um Umwelt não só físico-‐químico-‐biológico, mas também cultural,
uma condição que cremos não antevista por Uexkull, mas cada vez mais
estabelecida na Etologia e Biosemiótica; uma interface onde, além de códigos
poderosos, como genético ou imunológico, temos aqueles culturais (VIEIRA,
2006:122).
De acordo com Vieira (2006) Laban percebe a sutileza dos sistemas de
movimentos que conectam o observador e o observado em leis sistêmicas.
É através do Umwelt que vivenciamos essa realidade parcial, mas nosso Universo
particular teve raízes reais em leis reais. O dançarino tem limitações físicas em seus
movimentos e posturas, que dependem do campo gravitacional da Terra e da noção
de equilíbrio: sabemos que este é regido pelo sistema de labirinto, em nossos
ouvidos, que nada mais é que um "medidor de nível", como projetado pelos nossos
tecnólogos. "A bolha de nível" não é invenção humana, é a tomada da consciência de
um processo de internalização, muito primitivo, de leis reais do mundo físico; da
mesma forma, sabemos que "ver" é o resultado de uma complicada transição entre
a realidade e nosso cérebro, por meio de uma cadeia elaborada de semioses
(VIEIRA, 2006:122).
52
Como se pode notar, na perspectiva do autor a arte representa a maneira de
permanecer num sistema que favorece a aquisição de conhecimentos. Pode-‐se
confirmar tal perspectiva quando este se refere à memória primitiva, o processo
de interação real entre o sistema e o seu meio ambiente, que se esforça para
harmonizar-‐se, por meio de mapas e internalizações de experiências que se
relacionam o tempo todo no corpo que dança.
Laban (1990) propõe uma dança educativa moderna, que deve ser
disponibilizada a todos os alunos durante os anos escolares, para que desde o
ensino fundamental haja também uma apreciação do movimento, pois, para ele, a
felicidade futura depende de uma vida de movimento intenso.
Em seus escritos sobre a dança educativa moderna, o autor ainda propõe uma
nova concepção dos elementos do movimento. Este conceito principal de nova
dança tem por base a ideia de que as ações, em qualquer atividade humana, seja
ela na dança ou nas atividades cotidianas, se constituem por uma sucessão de
movimentos, onde um esforço específico do sujeito acentua cada uma dessas
ações.
De acordo com Laban (1990), esta diferenciação do esforço específico da ação
acontece porque fatores do movimento como peso, espaço, tempo, fluxo e toda
uma combinação de elementos de esforço são constituintes das ações das
pessoas quando se movem.
A arte do movimento é aquela que se utiliza no palco, seja como balé ou qualquer
outra dança, no teatro e todos os tipos de eventos em que a atuação do corpo
está envolvida, como também as danças sociais, bailes campestres, jogos etc.
Além de estar presente também em cerimônias e rituais, nos comportamentos
das atividades cotidianas na escola.
A técnica do movimento para Laban (1990) tem diversos aspectos: um deles é o
domínio do movimento específico e individual. Isto recorre, principalmente,
sobre a técnica tradicional para determinados estilos de dança. Isto quer dizer
53
(no entendimento do autor) que cada movimento é uma parte isolada da dança e
deve ser apreendido baseado em um modelo fora do corpo que o realiza: quanto
maior a aproximação do movimento técnico modelo, melhor a técnica.
Esta nova proposta de dança moderna e cênica estimula o domínio do
movimento em todos os aspectos corporais e mentais. A grande diferença entre
as danças tradicionais e a dança moderna é que as tradicionais são formadas
basicamente por passos e a dança moderna se vale do fluxo do movimento que
acontece e se estende por todas as articulações do corpo. O estudo da dança
moderna pretende compreender e praticar o princípio do movimento e seus
elementos, ao invés de estudar cada movimento, o que seria impossível neste
caso, já que esta dança tem a possibilidade de abranger o fluxo de movimento
humano e suas infinitas variações de passos e posturas.
Nas escolas onde se fomenta a educação artística, o que se procura não é a perfeição
ou a criação e execução de danças sensacionais, mas o efeito benéfico que a
atividade criativa da dança tem sobre o aluno. A questão referente à apresentação
de danças nas escolas deve ser abordada, portanto, com extrema delicadeza e ter-‐
se-‐á que seguir ideias e procedimentos definidos, que devem ser analisados
detalhadamente. O instrumento que se pode oferecer ao educador na dança
moderna é a perspectiva universal sobre os princípios do movimento (LABAN,
1990:18).
A prática desta nova técnica busca reforçar o impulso nato de realizar
movimentos similares aos das danças e incentivar as faculdades naturais e
individuais de expressão. Para isto, é necessário tomar conhecimento de
princípios que governam o movimento, bem como manter a espontaneidade do
movimento e mantê-‐la viva, fomentando a expressão artística, para que o aluno
seja mais expressivo e criativo e, futuramente, possa representar danças
adequadas aos seus dons naturais, de acordo com seu desenvolvimento. Esta
nova técnica também pretende integrar o conhecimento intelectual à habilidade
criativa.
54
Há alguns pontos observados por Laban (1990) que dialogam com a proposta
deste trabalho e outros não. A questão do modelo fora do corpo ainda está
presente nos escritos de Laban, e por este motivo tentar-‐se-‐á um diálogo com
outros pesquisadores do movimento, principalmente os que partem do princípio
de que o corpo é o próprio subsídio para o seu movimento.
De acordo com a sistematização proposta por Neves (2010), a partir do trabalho
de Vianna (2005), observa-‐se uma rede de relações e pontos em comum com as
observações e com o trabalho desenvolvido nas aulas de sapateado Americano,
durante o processo de apreensão do movimento. Tais observações, em paralelo à
sistematização, vão servir de subsídio para embasar os procedimentos e
processos propostos para obtenção de um objetivo: o movimento como forma de
conhecimento e não como repetição da forma. Neste sentido, tomar-‐se-‐á
emprestado alguns princípios de instrução da Técnica Klauss Vianna para traçar
um rumo em comum com os exercícios propostos durante as aulas em questão.
É comum, nas salas de aulas de dança, observar certa obsessão desmedida no
que diz respeito à aplicação da força muscular. É uma constante ouvir-‐se:
“prenda o abdômen!”, “estique a perna”, como se essas diretrizes fizessem algum
tipo de efeito na totalidade do movimento. Pode até ser que um corpo,
plenamente consciente daquilo que esteja fazendo, consiga transportar tais
diretrizes para o movimento que vem a seguir. Porém, esta diretriz funciona para
um pequeno momento durante o movimento. Por ser tão constante nas aulas, ela
se apresentará constantemente no corpo e, consequentemente, enrijecerá o
gesto.
Os procedimentos e instruções de uma técnica são inseparáveis de um pensamento
e uma compreensão do corpo e sua expressão assim como de uma estética. A
Técnica Klauss Vianna pesquisa instruções para o desbloqueio das tensões
musculares e articulares que permitem colocar o corpomente em um estado de
maior disponibilidade para o uso dos recursos expressivos de cada indivíduo. As
instruções trabalhadas para o desbloqueio também são utilizadas para provocar e
servir de caminho para a exploração, pesquisa e criação de movimentos. Todo o
trabalho está embasado e utiliza o modo de funcionamento do corpo, valorizando e
55
salientando a relação corpo-‐ambiente (NEVES, 2011: 33).
A aplicação da técnica é um fluxo de tensão e relaxamento muscular em
comunicação com o meio ambiente em que se apresenta. A intenção do bailarino,
como pensador daquele movimento, é a busca de uma forma externa, através da
potencialidade interna do corpo que a produz. Neste sentido, observamos na
descrição de Neves (2010), sobre a Técnica Klauss Vianna, importantes pontos
de contato:
Observa-‐se neste trecho a importância ao movimento consciente proposto por
Vianna (2005), a forma “fria” a qual ele se refere é aquela forma pela forma, a
repetição sem fim e inconsciente.
Quando uma técnica artística não tem um sentido utilitário, se não me amadurece
nem me faz crescer, se não me livra de todos os falsos conceitos que me são jogados
desde a infância, se não facilita meu caminho em direção ao autoconhecimento –
então não faço arte, mas apenas um arremedo de arte....Conheço apenas a forma,
que é fria, estática e repetitiva e nunca me aventuro na grande viagem do
movimento, que é vida e sempre tenta nos tirar do ciclo neurótico da repetição
(VIANNA, 2005:72).
O trabalho de sistematização da Técnica Klauss Vianna foi iniciado em 1984 por
Neide Neves e Rainer Vianna, a partir da vivência prática com Klauss Vianna.
Neves (2010) enuncia da seguinte maneira as instruções trabalhadas na Técnica
Klauss Vianna:
• Dança é vida
A dança é um modo de permanecer, de existir enquanto ser humano cultural. O
corpo só dança enquanto vive. A dança acontece desde os processos
comunicacionais que envolvem os neurônios e os sistemas internos do corpo até
a sua forma maior que é o movimento. A dança é a especialização do movimento
a fim de se comunicar enquanto necessidade do ser, nem que seja uma mera
questão estética.
56
• Cada um possui a sua dança
Cada um é dono de seu próprio movimento. Este movimento é carregado de suas
experiências e histórias estampadas no corpo e consequentemente no
movimento.
• A dança está dentro de cada um, não deve ser buscada fora, na cópia de
atitudes e passos.
Todos têm uma potencialidade dentro de si para se movimentar como dança. O
professor deve ter a percepção e sensibilidade de conseguir orientar o aluno a
manifestar esta potência de acordo com a dança à qual ele se propõe a aprender.
A dança não está lá e sim a potência para ela acontecer, ela precisa de novas
informações para ser combinada e adequada à linguagem.
• O que conduz à dança não é decorar passos, formas, mas aprender caminhos
para a criação de movimentos.
O caminho que a dança deve percorrer é o caminho de dentro para fora e não o
reverso. Não se deve decorar passos e formas e sim entender como o movimento
acontece. Entender com o pensar do corpo é o que gerará autonomia no trabalho
corporal e no processo de criação através da dança.
• Não há separação corpo mente – a mente é encarnada:
Os movimentos acontecem a partir de uma rede de conexões neurais que
envolvem o sistema nervoso e o sistema sensório motor. Nesta relação entre
sistemas, o corpo aciona função memória, pensamentos, sensações e emoções, o
que caracteriza o movimento individual de cada corpo na dança.
57
• O autoconhecimento e o autodomínio são necessários para a expressão
pelo movimento:
Para se comunicar através do movimento é necessário dominar o corpo e
entender como este se organiza. É através do autoconhecimento e do
autodomínio que o corpo se formaliza dentro da dança por meio da qual
pretende se comunicar.
• A forma deve ser resultado do autoconhecimento e não o inverso:
O que deve guiar o aprendizado do movimento não deve ser a busca da forma
pronta, codificada e sim a maneira como o movimento se constrói. A partir desta
construção, que envolve todos os aspectos do movimento -‐ motor, sensorial,
cognitivo, emocional -‐ chega-‐se a formas ou linguagens estéticas em que todo o
corpo está conectado e se expressa a partir de diferentes dinâmicas. É importante
entender que não há uma ordem temporal de acontecimentos, em que a forma, ou
uma linguagem pessoal, seria o resultado do autoconhecimento, de forma linear.
Não se trata de relação causa-‐efeito. Como todo o funcionamento corporal, os
processos são complexos, enredados e se dão ao longo do tempo, no trabalho
evolutivo do dançarino (NEVES, 2010:38 -‐39).
• A atenção é necessária para o autoconhecimento:
Para que o corpo se autoconheça é necessário focar a atenção durante todo o
percurso do trabalho. Parece uma observação óbvia, porém nosso olhar sobre o
corpo é adormecido, observa-‐se em grande parte dos alunos uma inércia, a
repetição inconsciente do movimento.
• A repetição deve ser consciente e sensível:
Para Klauss (2005) não é possível repetir um movimento. Mesmo quando se
tenta reproduzir um movimento novamente, este já apresenta um novo agregado
de informações. O problema acontece quando nos movimentamos sem atenção e
acabamos por repetir automaticamente o movimento de maneira desatenta,
desconectando o corpo do momento. O estado de atenção, ao se movimentar
58
conscientemente, faz com que percebamos as novas informações agregadas do
ambiente e do movimento do corpo, no momento em que este acontece.
• A busca do novo:
Ao perceber as novas informações do movimento, novas relações são percebidas
e geradas como, por exemplo, sensações, sentimentos e intenções. O novo está
em como as memas informações se reorganizam com o que já está presente no
corpo.
Além destes direcionamentos, outros são enumerados no trabalho de Neves
(2010). Porém, não serão discutidos no presente trabalho. A seguir os tópicos
para conhecimento:
• O direcionamento ativo do peso nos apoios do corpo gera economia de
esforço, espaços internos e presença;
• Na presença de apoios ativos, estão presentes no movimento três aspectos:
sustentação, resistência e projeção;
• O movimento nasce das oposições;
• O alinhamento ósseo é feito a partir do acionamento ativo dos apoios.
59
3.0 -‐ Experiência e dança – descrição de processos nas oficinas
de Sapateado Americano
O objetivo deste terceiro capítulo é discutir as percepções relacionadas à
aplicação de alguns exercícios propostos pelo professor pesquisador durante as
aulas livres de sapateado americano em oficinas ou aulas regulares. Três casos
diferentes serão abordados, em cada um deles será observado um exercício
diferente os quais acreditou-‐se ajudar na pesquisa dos movimentos, levando em
consideração questões como: a utilização de diferentes modalidades sensoriais
utilizados para o mesmo propósito; observação através de meios digitais e as
peculiaridades de cada aluno.
É importante salientar que os exercícios estavam presentes no contexto de aulas
e estavam conectados a outras dinâmicas já vivenciadas durantes as aulas. Toda
a construção de conhecimento do movimento é parte de um processo contínuo
interminável que se funde e depende da prática e da observação. Este
treinamento consciente da pessoa que dança tem o movimento como pesquisa
do corpo e precisa favorecer o autoconhecimento, utilizando-‐se das
possibilidades sensórias e motoras possíveis.
Os exercícios propostos serão apresentados a seguir. É importante lembrar que
esses exercícios foram recortados de seus contextos de acordo com os objetivos
da presente pesquisa. Acredita-‐se que, através dessas descrições, seja possível
observar as relações que os corpos estabeleceram com o ambiente, a mente e o
corpo.
Os exercícios propostos serão apresentados a seguir. É importante lembrar que
esses exercícios foram recortados de seus contextos de acordo com os objetivos
da presente pesquisa. Acredita-‐se que, através dessas descrições, seja possível
60
observar as relações que os corpos estabeleceram com o ambiente, a mente e o
corpo.
A ideia não é apenas olhar os processos e refletir sobre seus elementos
constituintes, mas observar pontos recorrentes em diferentes processos que,
particularmente, chamaram a atenção e definiram o trabalho do professor,
compartilhar experiências que, naqueles momentos, fizeram com que o
direcionamento do grupo seguisse por este ou aquele caminho, afinal é inevitável
que nossas escolhas naquele momento levaram nossa coreografia para um
determinado destino. Caso escolhêssemos outros caminhos, provavelmente
teríamos outros destinos.
É muito claro que cada aluno é único, singular e que cada corpo tem suas
peculiaridades. O corpo de alunos em oficinas livres de dança são
completamente diferentes dos corpos dos artistas bailarinos na cena paulista de
dança, por exemplo. O objetivo da aula é cultivar a pesquisa do corpo através de
estímulos propostos pelo professor em qualquer situação, ou seja, olhar o aluno
e perceber que ali está o material que deve ser pesquisado e não um objeto a ser
moldado, afinal, o corpo não é um barro que se molda ou um diamante bruto a
ser lapidado. O corpo do aluno, em seu potencial expressivo, é o corpo do
possível futuro artista, e percebê-‐lo é, de certa maneira, estimular este artista a
reconhecer seu próprio corpo em seu contexto. É dar ferramentas para que este
corpo possa se comunicar de um modo mais efetivo em seu propósito. É
valorizar suas questões pessoais e instrumentalizar este aluno na percepção do
próprio e dos corpos em movimento dos demais colegas. Estimular este corpo
para que ele tenha uma autoridade discursiva é aproximar os alunos dos
procedimentos geradores das ações. Neste contexto, que “experiência” é esta a
qual nos referimos?
A experiência a qual nos atentamos é aquela que Bondía (2002) apresenta em
seu artigo sobre o saber e o saber de experiência.
De acordo com o autor, para que a experiência gere o saber é necessário
61
diferenciá-‐la do experimento, assim como tentamos diferenciar a repetição
mecânica e a repetição consciente. O experimento/repetição mecânica é
repetível, gera desatenção porque carrega algo previsível. Ele procura a
homogeneidade entre os sujeitos. Já a experiência/movimento consciente busca
a pluralidade do ato, produz diferença. Ela carrega uma dimensão de incerteza e
desconhecido.
A experiência exige um foco de atenção e consciência.
A experiência (...) requer parar para pensar, parar para olhar, parar para
escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar,
parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-‐se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo
da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a
arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-‐se tempo e espaço
(BONDÍA, 2002:24).
O que se pretende ressaltar é que o sujeito da experiência precisa estar aberto a
sua própria transformação, as experiências desatentas geram conhecimentos
inconscientes, porém, no caso da dança, a busca é a sensibilidade consciente. É
claro que todo contexto em que o corpo está inserido participa ativamente das
mudanças do tempo, do espaço e do próprio corpo. Porém, para a dança e para
que se comunique e se atente ao gesto é necessária a reflexão. É esta a
experiência que se busca na sala de aula.
Bondía (2002) ainda aponta que esta experiência é carregada de paixão e isto
pode-‐se referir a muitas coisas, como um sofrimento passivo, uma liberdade
dependente, uma tensão insatisfeita, uma autonomia vinculada. Na concepção
desse autor, “O saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a
vida humana” (BONDÍA, 2002:26).
Este sujeito da experiência, sujeito passional, constrói o seu saber e tem sua força
em forma de práxis. Esta experiência, por sua vez, funda uma ordem ética e
62
epistemológica. A importância da experiência está em como ela vai construindo
as peculiaridades e a personalidade do indivíduo. Sendo assim, ela é
exclusivamente do sujeito que as carrega.
3.1 -‐ Associação de Balé de Cegos – o toque como forma de aprender o
movimento
A Associação de Balé de Cegos foi fundada em 1995 e tem como objetivo formar
uma companhia de dança. Esta associação oferece gratuitamente aulas de balé
clássico, dança de salão e outras danças para deficientes de todas as idades. Nos
últimos dois anos tive a oportunidade de instaurar o programa de sapateado
americano para deficientes visuais na associação.
A primeira turma formada no início do ano de 2010 era composta por duas
alunas, uma com baixa visão e outra com cinco a sete por cento da vista em um
olho. No decorrer dos meses outros alunos entraram na turma. Atualmente,
desde o inicio do ano letivo de 2013 até fevereiro, temos seis integrantes, entre
cegos e baixa visão. As aulas são ministradas duas vezes por semana, com
duração de uma hora cada.
As aulas são constituem-‐se em um período inicial de aquecimento, que dura em
torno de quinze minutos, em que preparamos a musculatura para a demanda
necessária ao sapateado americano. Os exercícios são formados por variações do
mesmo passo, propondo diferentes combinações rítmicas. Seguindo o percurso
das aulas, fazemos diversas dinâmicas individuais e em grupo para percepção
espacial e apropriação dos movimentos. Ao final, a aula é composta por uma
combinação coreográfica de passos.
63
A maior dificuldade no ensino de dança para o deficiente visual consiste na
elaboração de um procedimento que possibilite a mímese do movimento. Neste
caso o aprendizado é feito principalmente através do toque. É através do tocar o
corpo do professor que os alunos deficientes percebem o posicionamento do
próprio corpo para a construção do movimento. Por exemplo, para entender
como é feito o movimento denominado shuffle, o aluno deve tocar em todos as
partes do corpo em que o passo está envolvido, criando uma imagem mental da
totalidade do movimento, como observa-‐se nas figuras 1, 2, 3, 4 e 5:
Na Figura 1, observa-‐se uma aluna cega tocando a perna do professor com o
objetivo de codificar o passo, criando uma imagem mental que corresponda ao
movimento do sapateado americano.
Figura 1 – As alunas deficientes visuais Gisele Aparecida e Fabiana Croccia tocando as pernas do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, Setembro 2012.
O professor repete o movimento dizendo o nome do passo e a aluna vai tocando
em toda a perna do professor até chegar no pé onde acontece o shuffle, como
podemos observar na Figura 2.
64
Figura 2 – As alunas deficientes visuais Gisele Aparecida e Fabiana Croccia tocando a coxa do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, setembro 2012.
Durante o toque o professor descreve a qualidade de movimento de acordo com
a musculatura que está sendo tocada. Por exemplo: o ponto inicial do movimento
é realizado a partir da musculatura da coxa. Conforme o aluno escorrega a mão
pela perna em direção ao joelho, as coordenadas são relaxar toda a musculatura
que não seja da coxa para evitar tensões na musculatura do resto da perna e dos
pés. Observamos esta sequência de toques nas figuras 2 e 3.
Figura 3 – A aluna deficiente visual Gisele Aparecida tocando a canela e o pé do professor para codificar um passo de sapateado americano. Associação de Balé de Cegos, setembro 2012.
65
Depois de “sentir” o movimento, o aluno tenta mimetizar aquilo que entendeu
em seu próprio corpo. Só então são direcionadas as orientações orais mais uma
vez, muito parecidas com as que aconteceram durante o toque.
O terceiro momento do entendimento do movimento é o toque do professor no
corpo do aluno. É neste momento que o toque do professor afina o entendimento
corporal do aluno, dialogando com a intenção do aluno ao desenvolver
determinado movimento e descrevendo o que está acontecendo, para assim
chegar a um consenso sobre eventuais tentativas e potenciais realizações, como
podemos observar nas Figuras 4 e 5.
Todos estes procedimentos visam a uma futura construção da técnica do
sapateado. Estes movimentos iniciais são encarados como um caminho para
chegar à técnica consciente.
Figura 4 – O professor toca a perna da aluna Marina Guimarães para reorganizar as diretrizes descritas oralmente. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013.
66
Figura 5 – O professor toca a aluna Marina Guimarães com a própria perna na busca de novas formas de sensibilização da informação corporal. Associação de Balé de Cegos, fevereiro 2013.
3.2 – SPFC – São Paulo Futebol Clube – percepção e meios digitais
No ano de 2012 este professor-‐pesquisador foi convidado para substituir uma
professora de sapateado americano no Clube Desportivo São Paulo Futebol Clube,
localizado na Cidade de São Paulo, no bairro do Morumbi. Para ter acesso às
aulas os alunos precisam ser sócios do clube, sendo que a grande maioria mora
nas redondezas do bairro. A classe relatada era formada por adultos de idades
variadas.
O interessante neste caso de estudo é exatamente o fato de ter que dar aula para
alunos que já tinham feito alguns anos de treinamento do sapateado americano
com outro professor. Alguns dos alunos já estavam praticando o sapateado
americano há mais de cinco anos com a antiga professora do clube. Vale salientar
também que muitos dos alunos já haviam participado de aulas de outras técnicas
de dança, formando um grupo bastante heterogêneo de idades e experiências
anteriores em dança.
67
Propusemos que as aulas fossem realizadas com objetivo recreativo e com a
intenção de apresentarmos coreografias em espetáculos e festivais livres de
dança. Logo, nosso objetivo era aumentar o repertório coreográfico e as
habilidades de improviso.
Durante as primeiras aulas constatamos que uma das grandes dificuldades da
turma era a de se adaptar aos novos direcionamentos propostos pelo professor.
Se era proposta uma sequência básica de passos, com um compasso de música
diferente das que eles já conheciam, a memorização e o desenvolvimento da
mesma só era possível se repetíssemos muitas vezes a sequência. Além disso, os
alunos só se sentiam confortáveis se o professor os acompanhasse, fazendo a
sequência na frente deles para que pudessem copiar.
Percebemos que a urgência nesta turma era o trabalho relativo à autonomia,
criatividade e percepção de movimentos. Escolhi para observar, neste presente
trabalho, alguns exercícios propostos para esta turma em que se fez uso de
mídias digitais. Doravante, este exercício será denominado de “o olhar através do
vídeo”. O exercício citado foi proposto com as seguintes orientações: dada uma
determinada sequência básica, e de no máximo um compasso de música, os
alunos eram direcionados a repetir ininterruptamente esta sequência em uma
determinada música. Enquanto repetiam a sequência, o professor gravava a
execução com uma filmadora. Após estes procedimentos foi proposto um círculo
de discussões. Durante a primeira exibição do vídeo, as observações foram
pontuadas pelo professor-‐pesquisador. A partir da segunda exibição, as
observações ressaltadas partiram dos alunos.
Ao anunciar que o exercício seria gravado, alguns alunos demonstraram certa
apreensão e uma leve resistência em relação ao processo. Após explicar que esta
ação seria para propósitos didáticos e observatórios, os ânimos se acalmaram.
Mesmo assim, ainda percebia-‐se, por parte de alguns alunos, uma relutância em
observar a própria imagem no vídeo.
68
Observou-‐se ao longo das aulas que os adultos têm uma exigência maior sobre o
que estão fazendo. Em outras palavras, eles lutam consigo mesmos para
organizar a dialética certo-‐errado do movimento, baseado em experiências
anteriores ou referências de movimentos de outros corpos dançando sapateado
americano.
A grande questão das aulas é como o movimento do aluno vai se organizando e
se desenvolvendo enquanto técnica de sapateado a partir dos exercícios
propostos. Como a maior parte dos alunos não consegue aceitar este tempo de
desenvolvimento e continuidade que exige a construção do movimento, nota-‐se
uma preocupação voltada apenas para o resultado imediato, a partir de um
movimento vivido pela primeira vez.
Estas discussões em torno do vídeo apresentado geraram comentários como:
“achei que fosse pior!”; “olha, estamos conseguindo uma certa uniformidade”; “os
sons estão melhores”.
Apesar da dificuldade de observar seu próprio corpo, os alunos, depois de
algumas exibições do vídeo, começavam a perceber questões mais refinadas,
como posicionamento de pernas e pés, expressões faciais, tensões em alguma
parte do corpo na qual não era exigida tanta força. A diferença entre este
exercício e qualquer outro, em que se repete várias vezes a mesma sequência, é
exatamente este olhar para o corpo. Diferente da aula clássica, na qual o objetivo
é a própria repetição, neste caso o vídeo apresenta para o aluno uma
representação daquilo que ele está fazendo, aproximando-‐o do seu próprio
corpo e distanciando-‐o do corpo referencial do professor.
Nas imagens abaixo, observa-‐se a sequência de passos shuffle, hop, step. Esta é
uma combinação clássica do sapateado americano denominada “carryover”. O
carryover é composto por um shuffle com a perna direita (por exemplo), seguido
de um “hop” com a perna oposta ao shuffle. Termina-‐se com um step com a
mesma perna no shuffle, liberando assim a perna esquerda (neste caso). O
movimento é feito avançando para a frente. Neste exercício foram adicionados
69
outros três novos elementos na terceira repetição do carryover, sendo dois steps
a mais e um giro, formando a seguinte sequência:
Shuffle, hop, step;
Shuffle, hop, step;
Shuffle, hop, step, step, step.
Estes últimos três steps foram feitos girando o corpo num movimento de rotação
(em torno de si mesmo).
Figura 6 – Alunas fazendo o primeiro passo denominado shuffle da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012.
Figura 7 – Alunas fazendo o segundo passo denominado hop da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012.
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Figura 8 – Alunas fazendo o terceiro passo denominado step acrescido do movimento de rotação na sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012.
Figura 9 – Alunas liberando a perna esquerda após o término da sequência carryover do sapateado americano. São Paulo Futebol Clube, agosto 2012.
3.3 -‐ Taboão da Serra -‐ música: desenho-‐audição-‐visualidade – repertório
sensível das crianças.
Acredita-‐se que um exercício que ajudaria na observação das possibilidades das
crianças de mimetizar as sensações é o exercício “desenhando a música”. Este
exercício foi aplicado numa turma com integrantes entre sete e doze anos de
71
idade que estavam tendo o primeiro contato com a dança. Um ou outro já havia
feito anteriormente alguma aula de dança em oficinas propostas pela prefeitura.
O exercício “desenhando a música” consiste em sentar em roda na sala de aula e
ouvir a música. Enquanto ouve a música, o aluno desenha imagens que esta
música possa representar para ele.
Depois de fazer aquecimentos relacionados ao sapateado, pediu-‐se para que os
alunos sentassem em roda. Uma folha de papel sulfite foi entregue para cada
aluno e as seguintes coordenadas foram dadas: dividam a folha sulfite em três
partes; três músicas serão tocadas e vocês irão desenhar em um dos espaços
qualquer coisa que passar na cabeça de vocês quando escutarem esta música.
Nas Figuras 10, 11, 12 13 e 14 abaixo observa-‐se alguns dos desenhos dos
alunos:
Figura 10 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Nayara Alves durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009.
72
Figura 11 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Rosangela Pereira durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009.
Figura 12 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Thais Ribeiro durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009.
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Figura 13 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Thayla Policarpo durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009
Figura 14 – Tradução das músicas em forma de desenho feita pela aluna Pâmela Nascimento durante o exercício “desenhando a música”. Taboão da Serra, setembro 2009.
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As três músicas escolhidas para o exercício foram:
A. The Nutcracker, Op. 71 -‐ Pas De Deux-‐ Tchaikovsky.
Por ser uma música clássica bastante difundida em desenhos e programas
voltados para o público infantil, esta música foi escolhida com o propósito de
causar algum tipo de reconhecimento dos alunos.
B. Música de abertura do desenho Naruto.
Esta música foi escolhida por ser parte de um desenho infantil muito popular na
época com o propósito de causar um reconhecimento imediato.
C. Trashin' the Camp – música do filme Tarzan-‐ Phill Collins.
Esta música foi escolhida por ser parte de um filme infantil razoavelmente
difundido e por ter sons que podem ser facilmente reconhecidos.
A primeira música tocada foi um clássico bastante recorrente por ser usado em
desenhos e filmes relacionados a natal e balé. Além disso, trata-‐se de um tema
muito conhecido, por se tratar de uma música presente em um balé de repertório
direcionado ao público infantil com tema natalino. Observa-‐se nos recortes das
Figuras 12 e 14 que alguns dos alunos indicaram em seus desenhos
representações de bailarinas e cenas relacionadas a dança.
Figura 12a – Recorte “Bailarinas” da Figura 12
75
Figura 14a – Recorte “Balé” da Figura 14. É possível identificar que alguns dos alunos conheciam a música de abertura do
desenho Naruto, pois fica claro com as citações do nome e dos desenhos que se
parecem muito com o personagem em questão apresentados nos recortes das
Figuras 12 e 14.
Figura 12b – Recorte “Música do Naruto” da Figura 12.
Figura 14b – Recorte “Naruto” da Figura 14.
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Já a terceira música tocada é de um filme dos estúdios Walt Disney que conta a
história do Tarzan. Em um determinado momento do filme, no qual a música é
usada como trilha sonora, os macacos da floresta invadem o acampamento dos
humanos e fazem uma grande bagunça, quebrando instrumentos, copos etc.
Podemos perceber que alguns alunos reconhecem a trilha sonora e outros
identificaram os sons de bagunça, de briga e confusão como demonstra os
recortes das Figuras 11, 12 e 13.
Figura 11a – Recorte “Jogando bola dentro de casa e quebrou” da Figura 12.
Figura 12c – Recorte “Quebra tudo” da Figura 12.
77
Figura 13a– Recorte “Vidro” da Figura 13.
Estas observações feitas pelos alunos são fundamentais, porque compõem o
imaginário relativo àquela música e são carregadas de intenções e expectativas
que subjetivam todo trabalho relacionado àquela determinada música, isto é,
caso alguma delas fossem eleitas para uma coreografia, estes registros seriam
um rico ponto de partida, cheio de possibilidades já fomentadas pelos próprios
alunos.
O exercício também serviu para incentivar o aluno na investigação sonora,
fazendo com que ele refletisse por alguns momentos sobre o que ouve e como
consegue transportar para um outro meio de comunicação, como o desenho, por
exemplo. Esta reflexão é uma maneira de exercitar a tradução dos sentidos em
alguma mensagem registrável. O papel do professor aqui é oferecer meios
possíveis para a pesquisa do próprio corpo, voltar o olhar para seus sentidos e
usar estes para a criação da mensagem artística. Este é o treinamento sensível e
crítico o qual nos referimos nos capítulos anteriores apontados por Costas
(2011) e Freire (1981) respectivamente.
Em um outro momento das oficinas livres de sapateado americano na prefeitura
Municipal de Taboão da Serra ocorreu o seguinte fato. Lembro com riquezas de
detalhes porque pude observar importantes questões relativas ao olhar voltado
para o próprio corpo e a motivação necessária para a pesquisa corporal.
78
Uma de minhas alunas que tinha grande dificuldade de assimilação dos
movimentos propostos vivia dizendo para mim: “-‐ Eu não consigo!” E seguida da
frase ela sempre desistia de tentar fazer o movimento. A aluna percebia uma
diferença na apreensão do movimento por ela e pelos outros alunos.
Quando me deparava com este comportamento eu sempre a incentivava: “Claro
que você consegue, a gente só consegue se continuar tentando!” depois de falar
com ela procurava buscar diferentes caminhos e estímulos para que aquele
movimento proposto acontecesse.
Em todas as aulas a aluna apresentava certa dificuldade em algum novo
movimento. Um dia esta mesma aluna escutou outro companheiro de classe
dizer: “-‐ Eu não consigo!” E eu respondi: “-‐ Você consegue!” E ela imediatamente
completou minha frase: “-‐ É verdade, outro dia eu estava brincando com meu
irmãozinho e ele não conseguia fazer direito uma coisa que o jogo pedia e eu
disse para ele: -‐ Você consegue, é só tentar e tentar mais uma vez. E então ele
conseguiu.”
O que me chamou atenção neste relato não é o apelo positivista que ele possa
carregar, mas sim como o olhar para as próprias possibilidades e dificuldades
tem fundamental importância no processo comunicativo entre o corpo e o
movimento; tal qual o processo que compreende a relação entre corpos. Esta
aluna conseguiu observar suas próprias dificuldades e, de alguma maneira,
organizou o seu corpo e seu raciocino de tal forma que o objetivo dela fosse
alcançado. Tal processo, provavelmente, proporcionou-‐lhe algum sucesso, pois
ao provar este caminho de pesquisa e descoberta ela sentiu-‐se confortável em
compartilhar esta experiência com o irmão em um contexto completamente
diferente, e com o colega de classe em uma situação parecida com a que ela
vivenciou.
Em casos como o relatado, é importante incentivar a pesquisa corporal e o
processo, do qual se participa no decorrer da aula, evitando dicotomias que
visam apenas estabelecer o certo ou o errado. Demonstrações de frustração
79
perante o aluno que enfrenta uma grande dificuldade também são
desanimadoras e podem levar à desistência do mesmo. Incentivar o processo,
neste sentido, é dar maior valor ao movimento do aprendizado em vez da
simples valorização do movimento final. O processo de construção da técnica
pode demorar anos e visualizar este ponto longínquo de alcance como o único
objetivo. Isso pode representar uma frustrante experiência para a trajetória
rumo ao impossível, pois o referencial estará sempre fora do corpo que está
aprendendo.
Outro exercício que se costuma utilizar bastante em nossos processos é a roda de
habilidades/improviso. Nos casos de primeiro contato com alunos crianças e
pré-‐adolescentes faz-‐se o exercício de modo livre e descompromissado com
qualquer técnica de dança, para observar o repertório de movimentos do aluno.
Já nos casos de adultos e adolescentes que já tiveram algum contato com o
sapateado americano, utilizamos a roda de improviso em que se propõe criar
sequências coreográficas no centro da roda.
O exercício chamado de “roda das habilidades” é simples e tem o caráter de
reconhecimento. Neste exercício fazemos uma roda e o professor propõe que
uma pessoa entre no meio da roda e dance como quiser uma música previamente
escolhida. O professor pode não conhecer os alunos ainda. A timidez e a ressalva
do aluno em entrar na roda é grande. Para que isto não atrapalhe o processo, as
músicas escolhidas são sempre atuais e de grande aceitação no momento
(tocadas frequentemente nas rádios e televisão). Caso ninguém entre na roda, o
professor entra e faz movimentos engraçados e divertidos para descontrair e
assim libertar gradativamente os alunos de seu próprio julgamento. Caso isto
também não funcione, utilizamos o exercício de siga o mestre, para que cada um
proponha algum movimento corporal. Aos poucos os alunos entram um a um e
mostram os movimentos que lhes são familiares. Aqueles que não entram ficam
para o final. O professor, percebendo que alguns ficaram de fora, propõe a
entrada em duplas ou trios até que todos tenham contribuído para a roda de
habilidades. Este exercício é dado no primeiro dia de aula e repetido sempre em
algum momento de cada aula. No caso dos adultos e adolescentes da “roda de
80
improviso”, costuma-‐se aplicar o exercício depois que alunos e professor tenham
uma certa intimidade, após alguns meses de trabalho em que questões como
improvisação e exposição individual já tenham sido abordadas.
Em ambos os casos a intenção é ir além da coreografia. Durante este exercício os
alunos improvisam com movimentos e propostas de dança as quais eles já
experimentaram no corpo em algum outro momento. Estes movimentos farão
parte do aprendizado de pelo menos duas formas diferentes.
A primeira é compor uma parte do esquema coreográfico da turma, ou seja, o
professor não cria movimentos que serão repetidos, mas organiza os
movimentos propostos pelos alunos como uma coreografia.
A segunda maneira é que, a partir destes movimentos descompromissados e
orgânicos daquele corpo o professor pode identificar similaridades com os
movimentos da técnica do sapateado americano para direcionar este movimento
em repertório técnico. A apreensão da técnica acontece de maneira inversa. É a
partir do movimento que já está lá que se constrói o movimento que pode vir a
ser, isto é, o movimento apresentado se parece de alguma forma com o
movimento técnico do sapateado. Então, estimula-‐se a construção da técnica a
partir desse estímulo que o aluno dá ao professor.
Este exercício gerou uma maneira de criar contatos a partir dos movimentos do
cotidiano. Às vezes para o aluno é mais simples entender através de associações
do que copiar um movimento do corpo do professor. Por exemplo, para um
mesmo movimento utilizam-‐se exercícios e diferentes formas de associação
visando a um mesmo objetivo. No sapateado é necessário que o peso do corpo
seja distribuído na meia ponta (tarsos e metatarsos), praticamente sem apoiar os
calcanhares no chão. A ideia de andar de “salto alto” com o salto quebrado parece
ser mais próxima do cotidiano que a ideia de “distribuir o peso do corpo sobre os
tarsos e metatarsos”.
O principal objetivo desde exercício para o professor é visualizar nos
81
participantes da oficina possibilidades de utilização do material que eles trazem
para a sala de aula. Utilizar os movimentos que eles aprendem no dia a dia e
montar uma coreografia a partir destes movimentos propostos pelos alunos.
Para o professor é importante observar todos os alunos durante todo o exercício,
pois muitos movimentos interessantes e peculiaridades dos alunos são expostas
principalmente durante o momento antes de entrar no meio da roda. É neste
momento que o aluno testa algum movimento, observa o aluno no centro da
roda, procura ser inovador ou engraçado, ou tenta perder a timidez e criar
coragem para entrar na roda, empolga-‐se com algum movimento inesperado ou
grandioso do aluno que está dançando. É um momento de conflito, tensão
interna e pesquisa para o aluno.
Tais exercícios têm como objetivo estimular no aluno o processo de criação, para
que a obra final faça parte de todo seu contexto e que a construção dela seja feita
de maneira investigativa por ele. É importante que a criação da obra deste aluno
apresente um caráter de investigação própria e incentive um futuro artista na
linguagem da dança.
A maior busca pessoal deste autor, enquanto professor, é de fato oferecer
possibilidades de caminhos para o aluno, fazer com que ele descubra
ferramentas que podem ajudá-‐lo em seu processo de criação. É evidente que
para alguns deles determinados procedimentos funcionam de uma maneira mais
efetiva que para outros. Porém, durante as aulas faz-‐se necessário permear pela
mais variada gama de exercícios com diferentes funcionalidades, para que cada
aluno possa descobrir as ferramentas de criação que serão mais efetivas para
cada objetivo. A ideia de deixar de ser um operário da ação que repete o
movimento não é o que acredito fazer parte do processo de dança. Estar inserido
num contexto e possibilitar que este ator da ação participe, interaja e modifique
este processo significa criar discursos e permear a linguagem, influenciando
diretamente na produção, confundindo os papéis do professor e do aluno.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho uma série de autores foram chamados para dialogar
com as ideias aqui propostas. A partir dos encontros com os autores estudados,
procurou-‐se tecer uma reflexão a respeito dos processos comunicacionais no
contexto das oficinas de dança na busca de caminhos singulares para a expressão
criativa do corpo.
Foi possível constatar que as pesquisas em dança e corpo tem proposto relações
com diferentes ciências nos últimos anos, como propõe os autores Costas, Fortin,
Greiner, Godard, Katz, Long e Soter. Questões que envolvem o conhecimento do
corpo e a linguagem da dança têm sido exploradas de maneira cada vez mais rica,
discutindo pontos de contatos com outras ciências que antes eram dissociados
dos trabalhos relativos ao corpo como apontam Greiner e Katz.
Pode-‐se observar que esta interdisciplinaridade, à qual os fenômenos humanos
estão inseridos, vem compor e explicar os fenômenos que antes eram tidos como
subjetivos e separados da fisicalidade. Caem por terra antigos procedimentos
sobre o ensino da dança, como a repetição desatenta de passos de uma técnica
específica, o sofrimento silencioso em função da arte, o corpo dócil e apático
pronto para repetir sequências de movimentos de um coreógrafo. Ganham
espaço as ciências que tratam o corpo e a dança como uma rede de processos
sensíveis, que podem ser treinados e aprendidos em função da linguagem que se
pretende desenvolver.
Hoje existe uma tendência positiva que discute física, biologia, semiótica,
cognição, neurociência, psicologia, sociologia ao tratar de assuntos relativos ao
corpo, porque todo processo comunicacional em que o homem está inserido faz
83
parte de uma rede de fenômenos que traz consigo toda gama de conexões com o
meio ambiente no qual se habita.
Nesta medida, é indissociável perceber a potencialidade das experiências vividas
como fonte de material para a construção da linguagem da dança, pois toda
experiência que o corpo vivencia se torna corpo e interage com as experiências
que ali estão para criar novas informações.
O saber da experiência é aquele que procura o conhecimento a partir das
descobertas pessoais dentro do contexto pesquisado. Este saber da experiência
no qual nos detemos é um saber sensível que tem um grau de consciência e
atenção. Esta sensibilidade consciente faz parte do trabalho do professor e esta
relação professor aluno é o que subsidia a experiência criativa para um caminho
de pesquisa e consciência.
Como aponta Costas (2011), aprender algo depende de uma rede de conexões
importantes que geram relações e agregam estas novas experiências ao discurso
daquele que aprende. E, podemos complementar afirmando que este discurso
precisa estar presente na ânsia de aprender do aluno, para que o desejo de
aprender possibilite que as relações aconteçam.
O trabalho do professor precisa incitar neste aluno direcionamentos para que ele
tenha autonomia e perceba nas suas próprias descobertas maneiras de construir
novas informações.
Não é possível limitar o aprendizado da dança a uma visão dualista de certo ou
errado e, durante a aula, evitar estes conceitos, pois tudo está sendo construído
em um processo contínuo de organização das informações do corpo.
As hipóteses aqui levantadas foram confirmadas. O corpo tem suas
peculiaridades e toda história desse ser do corpo se apresenta estampada e
presente em sua matéria. É inevitável que este corpo apresente o potencial
discursivo de questões que estão implícitas no ser, mas quando a busca da forma,
84
através da cópia de movimentos, sobressai à expressividade do movimento, do
gesto, o potencial interno é abafado por uma arbitrariedade violenta que gera
neste corpo uma tensão, um sufocamento, uma morte lenta e cruel. A morte da
individualidade e da expressividade do movimento que todo corpo tem em
potencial. O que faz o diferencial dos grandes bailarinos é a capacidade que eles
têm de se apropriar com sensibilidade e consciência daquilo que fazem.
Quando o bailarino percebe que a potencialidade do seu discurso está dentro
dele, as possibilidades se multiplicam. Ao passo que, de forma contrária, caso ele
se limite na busca da repetição de modelos e de formas externas, o corpo se
estabelece no estático. Este cultivo à repetição de modelos estáticos nasce
durante a formação deste futuro bailarino na sala de aula, na oficina e qualquer
lugar que ele passe que não tenha como base um sistema de ensino dialógico.
Sob este aspecto o professor é o mediador destes processos que buscam a
singularidade do aluno incentivando a utilizar suas experiências como ponto de
partida para a construção da linguagem da dança.
Sacks (2010) observa, em seus relatos sobre doenças neurológicas, que o ser
humano ao se deparar com uma falha em determinada modalidade sensorial
como a visão, por exemplo, imediatamente seu corpo se organiza de uma nova
maneira, criando novas conexões a fim de substituir o sentido afetado, para que
o corpo consiga ganhar uma nova autonomia, mesmo estando defasado em
relação ao que era. São estas situações de “risco” que desestabilizam os sentidos
e provocam mudanças e novas percepções através da busca de novas
possibilidades, utilizando outras ferramentas. É neste sentido que metodologias
de aprendizado que padronizam corpos, exercícios, músicas e elementos da
dança podem ao longo de sua aplicação gerar um estado de apatia em que o
hábito de fazer sempre o mesmo desestimulam a atenção e a consciência do
movimento.
Nestes casos relatados observamos procedimentos de processos e relatos das
experiências vividas em cada um dos contextos. Os exercícios propostos tiveram
o objetivo de abarcar toda esta rede de conexões, as quais propusemos no
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decorrer deste trabalho. No ponto de vista do autor, as questões pessoais de cada
aluno são os materiais mais importantes na apreensão dos movimentos, pois
direcionam o corpo para um discurso que transcende a técnica da dança. Além
disso, é importante que as oficinas criem espaços de diálogos e, assumindo uma
busca por processos comunicacionais dialógicos, como diria Flusser, estimule a
produção de conhecimento. Portanto, discutir o sapateado americano, o balé
clássico ou a dança contemporânea passa a ser um pretexto para teorizar os
fenômenos que envolvem os processos de dança e apreensão dos movimentos.
Cada caso, com a sua especificidade, deve inserir o aluno-‐pesquisador no
contexto em que pretende se aprofundar e subsidiar maneiras de autonomia,
para este aluno permear por entre a linguagem, imprimindo seu próprio
discurso, distanciando-‐se dos modelos a serem seguidos.
Quando passamos pela experiência de participar de uma oficina de dança, na
maioria das vezes, nos colocamos numa posição de receptor das informações ali
trazidas pelo professor, propomos aqui um caminho cíclico em que todos os
participantes contribuem de alguma maneira no desenvolvimento destas
oficinas e ao observar as questões trabalhadas durante o processo, o professor
pôde perceber novas problemáticas e novas possibilidades para futuras oficinas.
As respostas corporais dos alunos relativas aos estímulos propostos vem
confirmar as questões tratadas na teoria do corpomídia, comprovando que as
experiências vividas anteriormente fazem parte daquele corpo e, quando se
comunicam com novas informações, tecem uma rede de relações que se
transformam em corpo. Aquele corpo que sapateia não é um corpo em função da
técnica do sapateado aquele corpo é o próprio sapateado naquela circunstância.
Neste sentido as oficinas são um lugar de pesquisa e produção de conhecimento
muito diversificado porque unem pessoas de locais e circunstâncias variadas.
Esta rede de experiências é um material muito importante nestas relações e a
reflexão proposta neste trabalho é fundamental na construção de novas oficinas.
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