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PROCESSOS RESIDUAIS: NORDESTE CONTEM- PORÂNEO E EUROPA MEDIEVAL Cássia Alves da Silva' A cultura do Nordeste do Brasil dispõe de uma variedade de manifestações culturais que, a priori, parecem pertencer unicamente ao povo que convive com tais manifestações. Porém, ao estudar suas ori- gens ficamos sabendo que: A cultura popular do Nordeste é herdeira do modelo português da época dos descobrimentos, que emigrou para o Novo Mundo com todas as suas práticas e ca- racterísticas (...). A oralidade predominante naquele período sobrevive fixada em especial nessa região, por ser depositária do acervo cultural e social da Europa medieval. Aí permaneceu devido a múltiplas razões: por ser a mais antiga zona de colonização que prosperou; pelo isolamento prolongado em que a região perma- neceu, pelo encontro e cruzamento contínuo de raças e culturas, pela estabilidade e longa duração de uma orga- nização social semifeudal de latifúndio e patriarcalismo perpetuadora das tradições herdadas. A continuidade da literatura medievalizante no Nordeste confirma o conceito de arcaísmo atribuído a essa sociedade (VAS- SALLO, 1993, p. 69). I Doutorado em Literatura Compara pelo PPGL da Universidade Federal do Ceará. Professora-tutora do Instituo UFC- Virtual e da Rede Estadual de Ensino Básico do Ceará. Pesquisadora do GERLIC. 133

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PROCESSOS RESIDUAIS: NORDESTE CONTEM-PORÂNEO E EUROPA MEDIEVAL

Cássia Alves da Silva'

A cultura do Nordeste do Brasil dispõe de uma variedade demanifestações culturais que, a priori, parecem pertencer unicamente aopovo que convive com tais manifestações. Porém, ao estudar suas ori-gens ficamos sabendo que:

A cultura popular do Nordeste é herdeira do modeloportuguês da época dos descobrimentos, que emigroupara o Novo Mundo com todas as suas práticas e ca-racterísticas (...). A oralidade predominante naqueleperíodo sobrevive fixada em especial nessa região, porser depositária do acervo cultural e social da Europamedieval. Aí permaneceu devido a múltiplas razões: porser a mais antiga zona de colonização que prosperou;pelo isolamento prolongado em que a região perma-neceu, pelo encontro e cruzamento contínuo de raças eculturas, pela estabilidade e longa duração de uma orga-nização social semifeudal de latifúndio e patriarcalismoperpetuadora das tradições herdadas. A continuidadeda literatura medievalizante no Nordeste confirma oconceito de arcaísmo atribuído a essa sociedade (VAS-SALLO, 1993, p. 69).

I Doutorado em Literatura Compara pelo PPGL da Universidade Federal do Ceará.Professora-tutora do Instituo UFC- Virtual e da Rede Estadual de Ensino Básico doCeará. Pesquisadora do GERLIC.

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Residualidade ao Alcance de Todos

o processo descrito por Lígia Vassalo nada mais é do que ocaminho residual, ou seja, o movimento do objeto cultural que atravessalugares e tempos diversos.

Essa cultura europeia veio para a América oralmente epor escrito, embora só haja referências indiretas sobreas manifestações literárias dos primeiros séculos da co-lonização. Mas pode ser confirmada através da tradiçãoque se manteve praticamente inalterada. Tal herança,que emigrou com a memória dos colonizadores, se fazaparente em manifestações menores da literatura oral(casos, provérbios, adivinhações, etc), mas ressurge maisnítida nas novelas tradicionais, nos cordéis e nas dra-matizações ou folguedos. Apresenta temas profanos,bem como personagens, situações e estruturas formais(VASSALLO, 1993, p. 69).

Com base no exposto, desenvolvemos nosso trabalho para mos-trar como o imaginário popular do Nordeste do Brasil é fruto de umprocesso residual para o qual confluem elementos da cultura medievaeuropeia e da cultura popular do Nordeste brasileiro.

Segundo a noção de imaginário proposta por Hilário FrancoJúnior (2003):

Todo imaginário é um sistema, não mera acumulaçãode suas imagens. (...) Apenas em conexão com outras,cumprindo seu papel de instituidoras de discursos, desistemas semiológicos, é que as imagens - exterioriza-das sob forma verbal, plástica ou sonora - ganham sen-tido e, conscientemente ou não, expressam determina-das cosmovisões (FRANCO JÚNIOR, 2003, p.100).

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Portanto, para Franco júnior o imaginário exprime formas dedado grupo social ver, observar e entender o mundo. Destarte, "ao ex-pressar os valores coletivos, os imaginários dão aos homens a sensaçãode pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer parte de umahistória" (FRANCO ]UNIOR, 2003, p. 106). Através de um olhar maiscuidadoso dirigido ao imaginário popular do Nordeste do Brasil, verifi-camos que nele se contém a história do povo nordestino, que atravessaséculos e deve suas raízes também a outros continentes que não o nosso.

O processo residual que concorre para a constituição desse ima-ginário se constitui da seguinte forma: primeiro, a matéria cultural, quefaz parte de determinada sociedade e de determinado tempo, passa poruma hibridação em meio às fusões que são próprias à cultura. São exem-plos disso: "as fusões étnicas denominadas mestiçagem, o sincretismode crenças e também de outras misturas modernas entre o artesanale o industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagensmidiáticas" (CANCLINI, 2003, p. 7). Assim se deu com a cultura me-dieval europeia através do trânsito provocado, entre outras coisas, pelacolonização da América.

Segundo Luis Weckmann (1993), assim como o México, seupaís, o Brasil é um grande herdeiro da medievalidade europeia. O vigo-roso sentimento religioso dedicado à virgem Maria, as bases medievaisda estrutura social, os rituais sacros, as músicas, as danças, a habilidadena navegação e as diversas formas populares de devoção constituem re-sultados tardios da tradição medieval na contemporaneidade brasileira.

Em segundo lugar, é a partir de uma hibridação, que determinadomaterial cultural passa pelo processo de cristalização. Para Roberto Pontes(2006), o termo diz respeito ao polimento de um elemento cultural, atéchegar a uma nova forma. No entanto, deve-se entender esse processo derefinamento, ou polimento, como uma mudança de estado pela qual todacultura tem de passar, porém essa ação sempre traz e refaz algo do passado.Éum processo de atualização do elemento cultural. No processo de crista-lização, o resíduo é a essência que remanesce através dos anos.

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Para comprovar que a cultura do Nordeste é residual, tomemoscomo base um elemento cultural: a literatura de cordel. Nesta, podemser identificados aspectos residuais presentes em sua origem, na estru-tura e, por fim, nas temáticas que lhes são mais frequentes. A origem daliteratura de cordel tem sido motivo de inúmeras discussões. Os cor-delistas reconhecem que ela é produto de uma hibridação cultural e nãoteria se arraigado entre nós, caso o Brasil indígena não houvesse sidocaldeado pelo entrecruzamento de vários povos, a partir de europeus eafricanos. Quando se trata da origem da literatura de cordel, os autoresde folhetos informam e defendem, por meio de versos (e não de ensaios)que a origem da modalidade que praticam está na Europa medieval. Te-mos exemplo do afirmado em um folheto de José Antônio dos Santos:

Por isso, caro leitorEm versos vou relatarA História do CordelE nesse livro narrar.Onde se deu sua origemVou logo aqui lhe explicar

Na Europa MedievalSurgiram os menestréisPor serem bons trovadoresÀs musas eram fiéisE prendiam seus livrinhosPendurados em cordéis.

(...)

Na Europa MedievalJuntava-se multidãoDe pessoas que saiamPara a peregrinaçãoRumo aos lugares santosCom fé e devoção.

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De Provença, Sul da França,Iam pra JerusalémDa Lombardia pra RomaSaíam dizendo: Amém!E o terceiro lugarAgora cito também.

Saíam lá da GalíciaRezando no breviárioE lá da Península IbéricaPara o grande santuárioSantiago CompostelaSeguindo o Itinerário

o bom poeta andarilhoDo povo seguia a pistaE funcionava comoVerdadeiro jornalistaSeus poemas de aventurasCantava como um artista.

t't.

Eis a origem da nossaPoesia PopularPro Brasil, os portuguesesTrouxeram algum exemplarE pras novas geraçõesPuderam então repassar

(SANTOS, 2007, pp. 1,2 e 3).

Santos faz referências a alguns resíduos da medievalidade pre-:entes na literatura de cordel. É o caso dos poetas provirem do estratoopular, como vem a ser o caso dos cordelistas, sendo raras as exceções .

• a última estrofe transcrita, o poeta mostra o processo residual ocorridopartir da hibridação de culturas, no caso, da portuguesa (também depecto híbrido) com a cultura local.

Para Diégues Júnior:

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Tudo conduziu para o Nordeste se tornar o ambienteideal em que surgira forte, atraente, vasta, a literaturade cordel. Em primeiro lugar, as condições étnicas: oencontro do português e do africano escravo ali se fezde maneira estável, contínua (...). Houve tempo sufi-ciente para a fusão ou absorção de influências. Depoiso próprio ambiente social oferecia condições que pro-piciavam o surgimento dessa forma de comunicação li-terária, a difusão da poesia popular através de cantoriasem grupo e de forma escrita (DIÉGUES JÚNIOR,1986, p. 39).

Não se trata, no entanto, de filiar a literatura de cordel nordesti-na à literatura de Portugal ou de outros países da Europa. O fato é que oprocesso de hibridação de culturas favoreceu a presença da literatura decordel no Nordeste do Brasil. Ressaltamos que os resíduos deixados pe-los portugueses, africanos e outros povos colaboraram para a formaçãode uma literatura de cordel distinta. É importante ressaltar que a litera-tura de cordel produzida no Nordeste do Brasil é diferente da sua con-gênere portuguesa, por exemplo. Segundo Márcia Abreu, em História decordéis efolhetos, "mesmo nas narrativas ficcionais, que oferecem maiorespossibilidades de aproximação com o cordel português, as distinções sãoimportantes. Rodolfo Coelho Cavalcante parece ter razão: 'no Brasil édiferente'" (ABREU, 1999, p. 123). O poeta José João dos Santos, co-nhecido por Mestre Azulão, também mostra o processo de hibridaçãoque resultou no vivo florescimento da literatura de cordel no Nordeste:

A região nordestinaDe poeta é toda cheiaDesde a grande cidadeA roça e a pequena aldeia

inguém foge da estética

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Quem não tem veia poéticaTem poesia na veia.

São heranças europeiasDe Espanha e PortugalE toda Península IbéricaQue tem de um modo geralOs europeus imigrantesVindo das terras distantesAo Brasil colonial

(SANTOS, 2012, p. 5).

Mas, este autor também ressalta o processo de lapidação peloqual passou o produto cultural que denominamos literatura de cordel.

Quanto à temática, essa literatura é um exemplo fecundo doprocesso residual. Alguns dos exemplos mais conhecidos são temas re-tomados de histórias do romanceiro ibérico. Segundo Manuel DiéguesJúnior, "a literatura de cordel do Nordeste recebeu a transmissão de nar-rativas tradicionais, umas de fundo histórico, sobretudo das velhas gestasmedievais, outras de criação erudita, sem dúvida, mas de longa aceitaçãopopular" (DIEGUES JR., 1986, p. 59). Hilário Franco Júnior tambémlembra que "Artur e Carlos Magno frequentemente estão presentes naliteratura nordestina de cordel, cujo espírito, temática, transmissão e re-cepção essencialmente orais prolongam a poesia europeia da Idade Mé-dia no Brasil do século XX" (FRANCO JR., 2005, p. 169).

Várias histórias, personagens e contos populares que permeiamo imaginário da população do Nordeste, como as histórias da mula--sem-cabeça e das sereias são documentos que atestam ser a culturanordestina e brasileira residual. Além disso, as festas populares tambémreforçam a mesma compreensão dessa residualidade.

Segundo Joseph M. Luyten:

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PERGAMUMUFC/BCCE

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Em todos os países, houve fortes e duradouras mani-festações em forma de contos. Na realidade, porém, emmuitos casos não se sabe quando esses contos foramtranscritos da poesia para a prosa. Os Edda (as sagasgermânicas e escandinavas) foram longamente perpe-tuados em forma poética, depois passados para a prosa,registrados no século XIX por folcloristas e desaparece-ram como tradição popular. No vale do Reno, ficaramfamosas histórias de Rhijnhaert de Vos, a raposa, quejuntamente com o lobo e o urso, infernizava as florestasda região. Ninguém pode esquecer 7hijl Uilenspiegel, oherói popular de Flandres - hoje Bélgica e Holanda.Ele é equivalente, em malandragem, ao nosso PedroMalazartes - que é Pedro Urdem ales na Espanha e que,por sua vez, tem origens árabes (LUYTEN, 2005, p. 32e 34).

Neste caso tem-se um bom exemplo de remanescência. A figurado pícaro foi cristalizada na literatura, e repassada a seguidas geraçõespor meio da oralidade ou da escrita. Assim chegou ao ordeste brasilei-ro. E nessa região ainda é um resíduo que dá origem a um novo objetocultural. Este é o caso de João Grilo e Chicó, personagens de O auto da

compadecida, de Ariano Suassuna. O próprio autor é que nos revela tersua literatura um remanescente mais próximo nos contos populares doBrasil, e num plano mais distante, nas histórias que permeavam o imagi-nário europeu medieval. Assim também os contos populares medievaistêm remanescentes ainda mais longínquos. Há também diversos cordéisque trazem o pícaro como personagem. É o caso do cordel As aventurasde Pedra Malazartes, no qual os autores J. O. de Lima e Manoel Ca-boclo mostram esse personagem cheio de malandragem como aqueleindivíduo astuto que nunca perde uma batalha, porque sabe sempre seaproveitar das situações. É o pícaro no melhor estilo de um tremendo

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espertalhão, um "quengo", como é chamado o artimanioso no Nordestedo Brasil. Malazartes é cultuado como exemplo de sujeito sabido, modopelo qual é caracterizado nos cordéis, como nos versos que a seguir sãoreproduzidos, uma invocação à Musa, a fim de que esta o favoreça anarrar com eficiência as peripécias do herói faceto:

Oh! musa santa dos mestresDai-me força, rima e artePra contar as aventurasDe um tal Pedro MalazarteN os truques e palhaçadasNunca perdeu uma parteOs planos todos acertadosNem um cálculo ele perdiaTinha conversa bonitaNos negócios que traziaTinha ciladas bem feitasQpe até o diabo sorria

(LIMA & SILVA, 2010).

Assim como o pícaro europeu 1hijl que não se cansa de se darbem por meio da desgraça alheia e convence um bando de doentes a fu-gir do hospital ao se passar por médico, mesmo oferecendo tratamentosassustadores, Pedro Malazarte não teme nada e é capaz de tudo paraconseguir dinheiro:

Na porta de uma casaOuviu a mulher chamar- Negra cuida do almoçoTeu senhor vem almoçarE guarde comida das boasPra quando meu bem chegar

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Pedro ouviu a mulherDizer com muita atenção- Guarde a carne da galinhaArroz e o macarrãoE guarde o vinho do PortoPara a minha refeição

Pedro conheceu a tramaFicou bastante animadoCom o urubu no braçoFicou distante sentadoEsperando o dono da casaQue chegava do roçado

Pedro botou-se pra láCom o passarinho na mãoDisse: - Bom dia, senhor!Quero pedir ao patrãoPra descansar um pouquinhoO homem disse: - Pois não

Ele amarrou o pássaroBem na perna da mesaPorque ficava mais fácilSua janta com certezaE na hora da comidaFazia a sua defesa

Chamaram para o almoçoPedro sentou-se entãoOlhou os pratos e só viuA farinha com feijãoBateu com o pé no urubuFoi a maior confusão

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Ele nesta mesma horaLevantou-se e foi dizendo:- Se sabes, fique caladoTanto que te recomendo!Perguntou o homem: O que éQIe esse bicho está dizendo?

Pedro disse: - É porque eleÉ um pássaro que adivinhaEle agora disse a mimQIe lá dentro na cozinhaTem vinho, arroz, macarrãoCarne de porco e galinha

A mulher ficou suspensaQuase morre nesta horaGritou pela negra e disse:- O que tu mereces agora?A negra logo botou

Toda comida pra foraE depois que almoçaramO homem falou pra ele:- Quer me vender este pássaro?Diga quanto quer por ele- Lhe dou por cem mil réisPode tomar conta dele

Contou todo mistérioQIe o passarinho tinhaE disse: - Preste atençãoToda essa história minhaSe alguém mijar-lhe a cabeçaNunca mais ele adivinha

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o homem passou-lhe as notasE Pedro se retirouAntes do homem ir pra roçaO passarinho amarrouCom pouco tempo o amanteDa mulher também chegou

(LIMA & SILVA, 2010).

Pedro Malazartes consegue enganar a todos usando de sua es-perteza e também atingindo as pessoas, de forma que no conjunto desuas artimanhas algum indivíduo sai perdendo. O mesmo acontece com1hijl, personagem dos contos populares medievais:

Conta-se que 1hijl chegou a uma cidadezinha da épocae o burgomestre queixou-se de que muitos malandrosse aproveitavam da benevolência local e, fingindo-sedoentes, passavam meses no hospital à custa da comu-nidade. 1hijl, fazendo-se passar por médico, percorreuas salas do hospital e, em voz alta, ia enumerando asoperações e tratamentos, que pretendia oferecer aosdoentes a partir do dia seguinte. O falso médico foitão convincente, e os tratamentos tão arrepiantes que,na madrugada seguinte, boa parte dos pacientes haviafugido. Os outros, que eram doentes mesmo, tinhammorrido de medo. Assim, o hospital deixou de dar pro-blemas para a cidade e 1hijl Uilenspiegel saiu acarician-do um saco de moedas de ouro que havia recebido doburgomestre (LUYTEN, 2005, p. 34).

Note-se que ambos os malandros beneficiam alguns, mas pre-judicam outros. Mas, isso não importa, pois o que eles querem é apenaso próprio benefício. Os exemplos mostrados fundamentam a ideia deum Nordeste residual e demonstram o impacto da cultura mediévica

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europeia no Brasil, especialmente sobre a região Nordeste de nosso país.Cabe-nos, noutro momento, continuar esse processo investigativo a fimde encontrar outros elementos residuais e, dessa forma, aprofundar osestudos literários, históricos e culturais sobre o país em que somos parte.

Referências bibliográficas

ABREU, Márcia. História de cordéis efolhetos. Campinas: Mercado deLetras, 1999.CASCUDO, Luís da Câmara. Os cinco livros do povo: introdução ao estu-

do da novelística no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1953.FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente.São Paulo: Brasiliense, 2005.

___ o "O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu. Reflexões sobreimaginário e mentalidade". Signum Revista da ABREl\1 (AssociaçãoBrasileira de Estudos Medievais), n? 5, p. 73-116,2003.LIMA, J. O. de e Silva; CABOCLO, Manuel. As aventuras de Pedro

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Tupynanquim Editora, 2007.~ANTOS, José João dos. O que é literatura de cordel? Fortaleza: Tupy-nanquim Editora, 2012.'ASSALLO, Lígia. O sertão medieval· origens europeias do teatro deAria-o Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

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