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no país das maravilhas Lewis carrol

Projeto Acadêmico

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Concept e diagramação do livro "Alice no País das Maravilhas" e "Alice Através do Espelho".

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no país

das maravilhas

Lewis carrol

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ÍndiceCapítulo I Para baixo na toca do coelhoCapítulo II A lagoa de lágrimasCapítulo III Uma corrida de comitê e uma longa históriaCapítulo IV O coelho manda Bill O LagarttoCapítulo V Conselho de uma lagartaCapítulo VI Porco e pimentaCapítulo VII Um chá malucoCapítulo VIII O jogo de críquete no campo da rainhaCapítulo IX A história da falsa tartarugaCapítulo X A dança da lagostaCapítulo XI Quem roubou as tortas?Capítulo XII O depoimento de Alice

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Capítulo 1Para baixo na toca do coelho

Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado de sua irmã e não ter nada para fazer: uma vez ou duas ela dava uma olhadinha no livro que a irmã lia, mas não havia figuras ou diálogos nele e “para que serve um livro”, pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?” Então, ela pensava consigo mesma (tão bem quanto era possível naquele dia quente que a deixava sonolenta e estúpida) se o prazer de fazer um colar de margaridas era mais forte do que o esforço de ter de levantar e colher as margaridas, quando subitamente um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de muito especial nisso, também Alice não achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer para si mesmo “Oh puxa! Oh puxa! Eu devo estar muito atrasado!” (quando ela pensou nisso depois, ocorreu-lhe que deveria ter achado estranho, mas na hora

tudo parecia muito natural); mas, quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, e olhou para ele, apressando-se a seguir, Alice pôs-se em pé e lhe passou a idéia pela mente como um relâmpago, que ela nunca vira antes um coelho com um bolso no colete e menos ainda com um relógio para tirar dele. Ardendo de curiosidade, ela correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma grande toca de coelho embaixo da cerca.

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No mesmo instante, Alice entrou atrás dele, sem pensar como faria para sair dali. A toca do coelho dava diretamente em um túnel, e então aprofundava-se repentinamente. Tão repentinamente que Alice não teve um momento sequer para pensar antes de já se encontrar caindo no que parecia ser bastante fundo. Ou aquilo era muito fundo ou ela caía muito devagar, pois a menina tinha muito tempo para olhar ao seu redor e para desejar saber o que iria ac-ontecer a seguir. Primeiro, ela tentou olhar para baixo e compreender para onde estava indo, mas estava escuro demais para ver alguma coisa; então, ela olhou para os lados do poço e percebeu que ele era cheio de prateleiras: aqui e ali ela viu mapas e quadros pendurados em cabides. Alice apanhou um pote de uma das prateleiras ao passar: estava etiquetado “GELÉIA DE LARANJA”, mas para seu grande desapontamento estava vazio: ela não jogou o pote fora por medo de machucar alguém que estivesse embaixo e por isso precisou fazer algumas manobras para recolocá-lo em uma das prateleiras. “Bem”, pensou Alice consigo mesma. “Depois de uma queda dessas, eu não vou achar nada se rolar pela escada! Em casa eles vão achar que eu sou corajosa! Porque eu não vou falar nada, mesmo que caia de cima da casa!” (O que era provavelmente verdade). Para baixo, para baixo, para baixo. Essa queda nunca chegará ao fim? “Eu adoraria saber quantas milhas eu caí até agora”, ela disse em voz alta. “Eu devo estar chegando em algum lugar perto do centro da terra. Deixe-me ver. Até aqui eu já desci umas 400 milhas, eu acho... (você vê, Alice aprendeu uma porção desse tipo de coisas na escola e pensou que seria muito boa a oportunidade de colocar para fora seu conhecimento; mesmo não havendo ninguém para ouvi-la, ainda assim era bom praticar.) ”Sim, acho que está correto, mas em que Latitude e Longitude estaría-mos?” (Alice não tinha a mais leve idéia do que Latitude era, ou Longitude tampouco, mas ela pensava que eram boas palavras para se dizer.) Logo ela começou novamente: “Eu queria saber se eu posso cair direto através da terra! Como seria engraçado surgir entre as pessoas que camin-ham com suas cabeças para baixo. Os antipáticos, eu acho... (ela estava menos triste que não houvesse ninguém ouvindo agora, porque aquela não soou como a palavra correta) mas eu tenho que pedir-lhes que digam o nome do país deles, sabe. Por favor, madame, aqui é a Nova Zelândia? Ou

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Austrália? (e ela tentou fazer uma reverência enquanto falava — tentar fazer uma reverência enquanto se cai no ar! Você acha que poderia controlar isso?) Ela iria pensar que eu sou uma garotinha ignorante por perguntar! Não, não vou perguntar nunca. Talvez eu possa ver o nome escrito em algum lugar.” Para baixo, para baixo, para baixo. Não havia nada mais a fazer, então Alice começou a falar novamente. “Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite, eu acho (Dinah era a gatinha). Espero que eles lembrem de dar-lhe leite na hora do chá. Dinah, minha querida! Eu queria que você estivesse aqui comigo agora. Não há ratos no ar, eu temo, mas você poderia pegar um morcego, e eles são tão parecidos com os ratos, você sabe. Mas será que os gatos comem morce-gos?” E aqui Alice começou a ficar sonolenta e continuou falando para si mesma, de uma maneira sonhadora. “Gatos comem morcegos?”, e às vezes “Morcegos comem gatos?” Como vocês podem ver, ela não conseguia responder nenhuma das duas questões, portanto não importava muito de que maneira ela as colocava.

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vento, exatamente a tempo de ouvi-lo dizer, quando virara a esquina: “Oh! minhas orelhas e minhas vibris-sas, como está ficando tarde!” Alice estava bem atrás dele quando dobrou a esquina, mas ainda era pos-sível avistar o coelho. A menina encon-trou-se, então, em um comprido e baixo aposento, que era iluminado por uma fileira de lâmpadas penduradas no teto. Havia portas por toda a volta do aposento, mas estavam todas tran-cadas, e depois que Alice percorreu uma a uma, tentando cada porta sem sucesso, ela voltou tristemente para o centro do quarto, pensando sobre como sairia daquela. De repente, encontrou uma pequena mesa de três pés, toda feita em vidro sólido: não havia nada sobre ela senão

Alice sentiu que estava cochi-lando, e começou a sonhar que caminhava de mãos dadas com Dinah e falava com ela, bem seriamente: “Então, Dinah, diga-me a verdade...você já comeu um morcego?”, quando subitamente, thump!thump!, caiu sobre uma pilha de gravetos e folhas secas e a queda acabou. Alice não estava nem um pouco machucada, e pôde saltar sobre os pés num instante: ol-hou para cima mas estava tudo escuro sobre sua cabeça, diante dela havia outro grande túnel e o Coelho Branco ainda estava à vista, apressado. Não havia nenhum momento a perder! lá se foi Alice como

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uma minúscula chave dourada e a primeira idéia de Alice foi de que ela deve-ria pertencer a uma das portas da sala; “mas, ai de mim!, ou as fechaduras são muito grandes ou a chave muito pequena, mas de qualquer maneira não iria abrir nenhuma das portas.” Entretanto, na segunda tentativa, Alice encontrou uma cortina que não havia percebido antes, e atrás dela existia uma pequena porta de aproximadamente 40 centímetros: a menina colo-cou a pequena chave dourada na fechadura e, para seu grande prazer, ela encaixou! Alice abriu a porta e viu que dava para uma pequena passagem, não mui-to maior que um buraco de rato: ela ajoelhou-se e avistou o mais adorável jardim que jamais vira. Como ela gostaria de sair daquela sala escura e passear por entre aqueles canteiros de flores viçosas e aquelas fontes geladas...mas ela nem mesmo conseguiria fazer passar sua cabeça pela porta; “e mesmo que a minha cabeça passasse”, pensou a pobre Alice, “teria pouca utilidade sem meus ombros. Oh! como eu desejo poder encolher como um telescópio. Eu acho que poderia, se ao menos soubesse como começar.” Vejam só, tantas coisas estranhas tinham acontecido ultimamente que Alice começara a pensar que muito poucas coisas eram na verdade real-mente impossíveis. Não havia muito sentido em ficar esperando ao lado da portinha e então Alice voltou em direção à mesa, com esperança de poder encontrar outra chave sobre ela ou, quem sabe, um livro de regras para ensinar as pessoas a encolherem como telescópios: desta vez ela encontrou uma pequena gar-rafa sobre ela (“que certamente não estava sobre aqui antes”, disse Alice) e amarrada ao redor do gargalo estava uma etiqueta com as palavras “BEBA-ME” lindamente impressa em palavras grandes. Tudo bem dizer “BEBA-ME”, mas a sábia Alice não ia fazer aquilo apressad-amente. “Não, eu vou olhar primeiro”, disse ela, “e ver se está marcado veneno ou não”; Alice já lera muitas lindas histórias sobre criancinhas queimadas ou engolidas por feras selvagens e outras coisas desagradáveis, tudo porque não tinham lembrado das regras simples que seus amigos falavam para elas. Por exemplo: um atiçador de lareira pode queimá-lo se você segurar por muito tempo, ou, se você cortar seu dedo muito fundo com uma faca, geralmente sangra; e ela nunca esquecera aquela: se você beber de uma garrafa que diz “veneno” é quase certo que isso irá prejudicá-lo, cedo ou tarde.

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Entretanto, esta garrafa não tinha gravado “veneno”, daí, Alice aventurou-se a experimentá-la e, achando o sabor muito gostoso (o conteúdo tinha, de fato, um tipo de mistura de torta de cereja, creme de ovos, leite e açúcar, abacaxi, peru assado, toffy e torradas quentes), ela bem rápido acabou com ele.

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“Que sensação estranha”, disse Alice. “Eu

devo estar encolhendo como um telescópio!”

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E daí era fato, ela estava agora com apenas 25 centímetros de altura, e seu rosto resplandeceu ao pensar que aquele era o tamanho exato para atavessar a portinha em direção ao adorável jardim. Primeiro, entretanto, ela esperou alguns minutos para ver se ainda iria encolher: ela sentiu-se um pouco nervosa em relação ao fato “porque isso pode resultar, você sabe”, disse Alice para si mesma, “em eu sumir como uma vela”. A menina ficou pensando como seria, tentando imaginar como a chama de uma vela se parece depois que a vela acaba e ela não conseguiu lembrar de ter visto alguma vez algo assim. Afinal, achando que nada mais aconteceria, ela decidiu-se a entrar no jardim, mas, pobre Alice! quando ela chegou na porta, lembrou-se que tinha esquecido a pequena chave dourada, e quando voltou até à mesa, percebeu que não era possível pegá-la: Alice podia avistá-la através do vidro e tentou o máximo possível para escalar uma das pernas da mesa, mas era muito escorregadia; e quando desistiu, a pobrezinha sentou-se e chorou. “Vamos, não há razão para chorar assim”, disse Alice. “Eu lhe aconselho deixar isso pra lá neste minuto.” Normalmente ela se dava bons conselhos (embora raramente os seguisse) e às vezes repreendia-se tão severamente que chegava a ficar com lágrimas nos olhos, e uma vez ainda lembrava-se de ter tentado boxear suas próprias orelhas por ter trapaceado consigo mesma em um jogo de críquete que jogava com ela mesma, pois essa cu-riosa criança gostava de fingir ser duas pessoas. “Mas não adianta agora”, pensou a pobre Alice, “querer ser duas pessoas! Porque é suficientemente difícil para mim ser uma pessoa respeitável.” Logo seu olho caiu sobre uma pequena caixa de vidro que jazia sob a mesa: ela abriu-a e encontrou um pequeno bolo, no qual a palavra “COMA-ME” era lindamente inscrito. “Bem, eu vou comê-lo”, pensou Alice, “e se isso me fizer crescer eu posso pegar a chave; se ele me tornar muito pequena eu passo por baixo da porta. Então, de qualquer maneira, eu vou para o jardim e não me importa o que acontecer!” Alice comeu um pedacinho e disse ansiosamente para si mesma. “E agora? E agora?”, colocando a mão no topo da cabeça para sentir se es-tava crescendo. Ela ficou surpresa ao perceber que permanecera do mesmo tamanho. Para falar a verdade, é isso o que normalmente acontece quando se come um bolo, mas Alice já estava acostumada a não esperar nada senão coisas extraordinárias acontecendo, que as coisas acontecerem de uma maneira normal parececia chatisse. Então, ela pôs mãos à obra e muito rapidamente acabou com o bolo.

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Capítulo 2A lagoa de lágrimas

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“Muito curiosíssimo e muito curio-síssimo!”, gritou Alice (ela estava tão surpresa, que por um momento quase esqueceu como falar um bom inglês). “Agora eu estou esticando como o maior telescópio que nunca houve! Adeus meus pezinhos!” Quando ela olhou para baixo, seus pés pareceram-lhe já quase fora do seu campo de visão, tão distante estavam.) “Oh! meus pobres pezin-hos, quem é que vai colocar seus sapatos e meias para vocês, queridos? Eu tenho certeza que eu não serei capaz! Eu estou muito longe para preocupar-me com vocês: vocês agora têm que se virar o melhor que puderem...mas eu preciso ser boa para eles”, pensou Alice, “ou eles podem não me levar para onde eu quiser! Deixe-me ver...Eu vou dar para eles um par de botinas todo Natal.”

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Alice começou então a planejar consigo mesma como faria isso. “As botinas poderão ir pelo correio”, pensou, “e como vai ser engraçado, mandar presentes para seus próprios pés! E como o endereço vai parecer maluco!

Ilustríssimo pé direito da Alice Tapete Felpudo perto da Lareira (com amor, Alice).

Oh! Deus, quanta bobagem estou falando!” Exatamente nesse instante a cabeça da menina bateu contra o teto da sala: ela estava com mais de dois metros e meio de altura. Alice finalmente apanhou a pequena chave dourada e apressou-se em direção à porta do jardim. Pobre Alice! Era tudo o que podia fazer, deitar-se de lado para olhar o jardim com um olho, mas ir até lá era mais difícil do que nunca: ela sentou-se e começou a chorar novamente. “Você deveria estar envergonhada de si mesma”, disse Alice, “uma menina crescida como você (ela bem podia dizer isso...) chorando desse jeito! Pare agora, eu lhe ordeno!” Mas ela continuou do mesmo jeito, derramando galões de lágrimas, até que houvesse um grande lago ao seu redor, com quase meio palmo de fundura, estendendo-se por metade da sala!

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Depois de um tempo ela ouviu pisadinhas ao longe e rapidamente secou os olhos para ver o que vinha vindo. Era o Coelho Branco voltando, muito bem vestido, com um par de luvas brancas em uma mão e um grande leque na outra: ele vinha trotando com muita pressa, resmungando consigo mesmo: “Oh! Ela vai me matar se eu a fizer esperar!” Alice sentia-se tão desesperada que estava pronta para pedir ajuda a qualquer um: então, quando o Coelho chegou perto dela, a menina começou com uma voz baixa, tímida: “Por favor, Senhor...” O Coelho parou violenta-mente, derrubando as luvas brancas e o leque, e disparou em direção à escuridão tão rápido quanto pôde. Alice apanhou o leque e as luvas, e, como a sala estava muito quente, começou a abanar-se enquanto falava: “Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é “Quem sou eu?” Ah! esta é a grande confusão!” E Alice começou a pensar em todas as crianças que ela conhecia e que tinham a mesma idade dela, para ver se tinha se transformado em alguma delas. “Eu tenho certeza que não sou Ada”, ela disse, “porque os cabelos dela são enrolados e os meus não. E eu tenho certeza que não sou Mabel porque eu sei muitas coisas e ela, oh!, ela sabe tão pouco! Além disso ela é ela e eu sou eu e...puxa, que confuso isso tudo é! Vou tentar ver se ainda sei tudo que sabia. Deixe-me ver 4 vezes 5 são 12 e 4 vezes 6 são 13 e 4 vezes 7 são...nossa! Eu nunca vou chegar a vinte desse jeito! Entretanto a tabuada não quer dizer nada: vamos tentar Geografia. Londres é a capital de Paris, Paris é a capital de Roma, e Roma é...não, não, está tudo errado. Eu tenho certeza! Eu devo ter me transformado em Mabel! Eu vou tentar recitar “A abelhinha atarefada”. Ela cruzou então as mãozinhas sobre o colo como se estivesse na escola e começou a recitar a poesia, mas sua voz soava rouca e estranha e as palavras não vinham como de costume:

Olha o pequeno crocodilo,Mexendo sua cauda brilhante,

Espalha as águas do Nilo,Que alegria!

Como ele fica feliz,Que patas bonitinhas,Bem vindos peixinhos,

Que dentões enormes!!!

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“Tenho certeza que estas não são as palavras corretas”, disse a pobre Alice, e seus olhos ficaram cheios d’água novamente. “Eu devo ser Mabel, afinal, e eu vou ter que ir e viver naquela casa tão pequena, e quase não ter brinquedos para brincar, e oh, ter sempre tantas lições para aprender! Não, não vou me convencer disso: se eu sou Mabel, eu vou ficar aqui embaixo. Não adianta eles colocarem suas cabeças para baixo e dizer, “venha para cima, querida”. Eu vou simplesmente olhar para cima e dizer “Quem sou eu? Digam-me isso primeiro e depois, se eu gostar de ser a tal pessoa, eu subirei: se não, vou ficar aqui até ser outra...mas, puxa”, e Alice começou a chorar, com uma súbita explosão de lágrimas. “Eu queria que eles olhassem para baixo! Eu estou tão cansada de estar aqui sozinha.” Enquanto dizia isso, Alice olhou para baixo em direção a suas mãos, e ficou surpresa ao notar que tinha vestido uma das luvas do coelho enquanto falava. “Como consegui fazer isso?”, ela pensou. “Eu devo estar encolhendo novamente.” Ela então levantou-se e foi em direção à mesa para medir-se em comparação a ela e descobriu que, pelas suas contas, estava agora com mais ou menos sessenta centímetros de altura e continuava a encolher rapidamente. Alice descobriu que a causa daquilo era o leque que segurava, e jogou-o fora impetuosamente, exatamente a tempo de salvar-se de encolher inteiramente. “Escapei por um triz!”, disse Alice bastante assustada com a súbita mudança, mas muito feliz por ainda existir. “E agora para o jardim!” E ela correu com toda rapidez para a portinha, mas, alas!, a pequena porta estava fechada novamente, e a pequena chave dourada estava sobre a mesa de vidro como antes, “e as coisas estão piores que nunca”, pensou a pobre criança, “porque eu

nunca fui menor que isso, nunca! E eu digo que isso é ruim, muito ruim, é sim!” Enquanto dizia essas palavras seu pé escor-regou e, num instante, splash! ela estava até o queixo na água salgada. Sua primeira idéia é que teria caído no mar, “e nesse caso eu posso ir em-bora pela ferrovia”, disse Alice para si mesma. (Alice tinha ido à praia apenas uma vez em sua vida, e tirara a conclusão que em qualquer lugar da costa inglesa que se vá, você encontra algumas cabines de troca de roupa, crianças cavando na areia com pás de madeira, e uma fila de hospedarias atrás, e mais atrás ainda a estação de trem). Mas logo percebeu que estava no lago de lágrimas que der-ramara quando estava com dois metros e meio de altura.

“Eu gostaria de não ter chorado tanto!”, disse Alice enquanto nadava tentando encontrar a saída. “Eu devo estar sendo punida por isso agora, suponho, afogando-me em minhas próprias lágrimas! Isso sim será uma coisa estranha. Entretanto, tudo está estranho, hoje. Nesse instante ela ouviu algo chapinhando no lago um pouco mais adiante e nadou para perto tentando entender o que era aquilo: inicialmente ela pensou que poderia ser uma morsa ou um hipopótamo, mas então lembrou como estava pequena e logo com-preendeu que era apenas um rato, que tinha escorregado como ela. “Será que adiantaria”, pensou Alice, “tentar falar com esse rato? Tudo é tão fora do comum aqui, que eu posso até pensar que ele pode falar: de qualquer maneira, não há mal em tentar.” Então ela começou: “Oh Rato, você conhece a saída desse lago? Estou muito cansada de nadar de lá para cá, oh Rato.” (Alice pensava que esta era a maneira certa de se falar com um rato: ela nunca fizera isso antes, mas lembrava de ter visto na Gramática do Latim de seu irmão: “Um rato...de um rato...para outro rato...um rato...Oh rato!”) O rato olhou para ela inquisitivamente e parecia piscar um dos seus olhinhos, mas não falava nada.

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“Talvez ele não entenda inglês”, pensou Alice. “É provável que seja um rato francês, vindo para cá com William o Conquistador.” (Como todo seu con-hecimento de história, Alice não tinha noção clara sobre há quanto tempo aquilo tinha acontecido) Ela começou novamente: “Où est ma chatte?”, que era a primeira frase do seu livro de francês. O Rato deu um súbito salto para fora da água e começou a tremer inteirinho, com medo. “Oh! desculpe-me”, gritou Alice apressadamente, temerosa de ter ferido os sentimentos do pobre animal. “Eu quase esqueci que você não gosta de gatos.” “Não gosta de gatos”, gritou o Rato com uma voz nervosamente aguda. “Você gostaria de gatos se fosse eu?” “Bem, talvez não”, disse Alice num tom calmo. “Não fique bravo com isso. E eu ainda queria lhe mostrar nossa gata Dinah. Eu acho que você passaria a gostar de gatos se pudesse apenas olhar para ela. Ela é uma coisinha linda”, Alice continuou, meio para ela mesma, enquanto nadava preguiçosa-mente pela piscina afora, “ela senta-se ronronando tão bonitinha ao lado do fogo, lambendo as patas e lavando o rosto...e ela é tão fofa para se criar...e ela é boa também para pegar ratos, oh, desculpe!”, gritou Alice novamente, enquanto o rato arrepiava-se todo, e ela sentiu que dessa vez realmente o ofendera. “Nós não vamos mais falar sobre isso, se preferirmos.” “Nós, realmente”, gritou o Rato, que tremia até à ponta da cauda, “como se eu quisesse falar sobre esse assunto! Nossa família sempre odiou gatos! Aquelas coisas detestáveis, baixas, vulgares! Não me faça ouvir esse nome novamente.” “Eu não faço, realmente”, disse Alice, querendo mudar rapidamente o assunto da conversa. “Você...você, gosta de cachorros?” O Rato não respondeu, então Alice continuou impacientemente: “Há um cachorrinho lindo, perto da nossa casa, eu gostaria de lhe mostrar! É um pequeno terrier de olhos brilhantes, você sabe, com oh!, com um pêlo mar-rom comprido e anelado! E ele pega as coisas quando você joga, e senta-se e pede comida, e todo esse tipo de coisas...eu não consigo lembrar de metade delas...e ele pertence a um fazendeiro, você sabe, que diz que ele é muito útil, vale mais de cem libras. Ele disse que o cachorrinho mata todos os ratos e...oh! puxa!”, gritou Alice em um tom desconsolado. “Temo que o ofendi novamente.”

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O Rato nadava para longe dela o mais rápido posível, produzindo uma grande agitação na lagoa à sua saída. Alice chamava suavemente atrás dele: “Rato querido! Volte, e nós não iremos falar de gatos, nem de cães, se você não gosta deles!” Quando o Rato ouviu isso, virou-se e nadou lentamente em direção a Alice: seu rosto ainda estava pálido (de raiva, Alice pensou) e disse, com uma vozinha baixa e trêmula. “Vamos para a praia, e então eu vou lhe contar minha história e você vai entender porque eu odeio gatos e cães.” Estava mais do que na hora de ir, pois ao lagoa estava ficando cheia de pássaros e animais que nela caíam. Havia um Pato e um Dodo, um Papagaio e uma Aguiazinha, e muitas outras criaturas curiosas. Alice seguiu o caminho e o grupo todo nadou junto para a praia.

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Capítulo 3Uma corrida de comitê e uma longa história

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Aquela era com certeza uma turma estranha que se reunia nas margens do lago: os pássaros com suas plumas arrastando, os animais com o pêlo grudado no corpo, e todos pingando, irritados e desconfortáveis. A primeira questão era, evidentemente, como se secarem: eles es-tavam reunidos em conselho para decidirem sobre isso e depois de poucos minutos parecia natural para Alice encontrar-se conversando familiarmente com eles, como se ela os tivesse conhecido toda a vida. Na verdade, ela travava uma longa discussão com o Papagaio australiano, que no final tornara-se zangado, e falara, “Eu sou mais velho que você, e devo saber mais.” E com isso Alice não podia concordar, sem saber a idade dele, e como o Papagaio recusava-se terminantemente a dizer sua idade, nada mais havia a dizer. Finalmente o Rato, que parecia ser a pessoa de maior autoridade entre eles, bradou, “Sentem-se, todos vocês, e ouçam-me! Eu vou fazê-los secar.” Eles sentaram-se então em círculo, com o Rato no meio.

Alice mantinha seus olhos fixados ansiosamente nele, pois ela tinha certeza que pegaria um resfriado se não secasse logo. “Aham!” disse o gato com um ar de importante. “Vocês estão todos prontos? Essa é a coisa mais seca que eu conheço. Silêncio na roda, por favor! William o Conquistador, cuja causa foi favorecida pelo Papa, logo submetido pela Inglaterra, que desejava líderes, acostumada à usurpação e à conquista. Edwin e Morcar, os condes de Mercia e Northumbria...” “Ugh!”, disse o Papagaio, com um calafrio. “Desculpe-me” interferiu o Rato, carrancudo, mas educadamente. “Você falou alguma coisa?” “Eu não!” respondeu o Papagaio, rapidamente. “Pensei que tivesse”, retrucou o Rato. “Prosseguindo: Edwin e Morcar, os con-des de Mercia e Northumbria, declararam para ele; e ainda Stingand, o patriótico arcebispo de Canterbury, achou que...” “Achou o quê?”, perguntou o Pato. “Achou que”, o Rato replicou irritadamente, “é claro que você sabe o que que significa.”

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“Eu sei o que que significa muito bem, quando sou eu que acho”, afirmou o Pato, “geralmente é um sapo ou uma minhoca. A questão é: o que o arcebi-spo achou?” O Rato não entendeu a pergunta, mas apressadamente foi em frente: “achou que era aconselhável conhecer William e oferecer-lhe a coroa. O procedimento de William no início era moderado. Mas a insolência dos seus normandos...como você está indo, minha querida”, ele continuou, virando-se para Alice enquanto falava. “Tão molhada quanto antes”, respondeu a menina em um tom melancóli-co, “isso não está parecendo me secar afinal.” “Nesse caso”, disse o Dodo solenemente, levantando-se, “eu proponho que a assembléia seja suspensa para a adoção imediata de medidas enérgi-cas...” “Fale inglês”, gritou o Papagaio. “Eu não sei o significado de metade dessas palavras, e mais, não acredito que você saiba.” E o Papagaio torceu a cabeça para esconder um sorriso: alguns dos outros pássaros riram às escondidas audivelmente. “O que eu estava dizendo”, retomou o Dodo em um tom ofendido, “é que a melhor coisa para nós secarmos seria uma corrida de comitê.” “O que é uma corrida de comitê?”, perguntou Alice. Não que ela quisesse mesmo saber, mas o Dodo fizera uma pausa como se pensasse que alguém deveria falar, e ninguém parecia inclinado a dizer nada. “Bem”, disse o Dodo, “a melhor maneira de explicar isso é fazendo.” (E, como talvez você queira tentar essa corrida em algum dia de inverno, vou contar como o Dodo fez.) Primeiro ele delimitou a pista de corridas como um tipo de círculo (a forma exata não importa, ele dissera) e então todo o destacamento foi distribuído pela pista, aqui e ali. Não houve o tradicional “Um, dois, três e já!”, mas todos começavam a correr quando queriam e paravam quando queriam, daí não era fácil saber quando a corrida terminava. Entretanto, quando eles já estavam correndo há mais ou menos meia-hora, e já estavam quase secos, o Dodo repentinamente gritou: “A corrida está acabada”. Então, todos se aglomeraram em torno dele, ofegando e perguntando: “Mas quem ganhou?” Essa pergunta o Dodo não poderia responder sem pensar muito, e ficou parado um bom tempo com um dedo sobre a testa (a posição na qual você normalmente vê Shakespeare nas gravuras) enquanto o resto do pessoal ficava em silêncio.

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“Todos ganharam, e todos devem ganhar prêmios.” “Mas quem dará os prêmios?”, um coro de vozes perguntou. “Ora, ela, claro”, respondeu o Dodo, apontando Alice com o dedo, e já toda a turma rodeava a menina, gritando de maneira confusa: “Prêmios! Prêmios!” Alice não tinha a menor idéia sobre o que fazer, e, em desespero, colocou a mão no bolso e puxou uma caixa de confeitos (felizmente a água salgada não entrara nela), e distribuiu as balas como se fossem prêmios. Deu na conta exata, um para cada um. “Mas ela precisa ganhar um prêmio também”, lembrou o Rato. “É claro”, replicou o Dodo solenemente. “O que mais você tem no bolso?”, e se virou para Alice. “Apenas um dedal”, respondeu a menina tristemente. “Dê-me”, pediu o Dodo. Então novamente eles a rodearam, enquanto o Dodo solenemente a presenteava com o dedal, dizendo: “Nós gostaríamos que você aceitasse esse elegante dedal”, e ao final desse pequenino discurso, todos o aplaudiram. Alice achou a coisa toda muito absurda, mas eles pareciam tão sérios que ela não ousou rir, e, como não podia pensar em nada para dizer, sim-plesmente fez uma reverência e apanhou o dedal, parecendo o mais solene possível. A próxima coisa a fazer era comer os confeitos; isso causou algum barulho e bagunça, pois os pássaros grandes reclamavam que não podiam saborear os seus e os pequenos engasgavam e tinham que levar palmadas nas costas. Entretanto, afinal todos terminaram e sentaram-se em círculo, pedindo ao Rato para lhes contar alguma coisa. “Você prometeu nos contar sua história, você sabe”, disse Alice, “e o porque você odeia G e C”, ela terminou sussurrando, com medo que ele se ofendesse novamente. “A minha é uma longa e triste história!”, disse o Rato, virando-se para Alice, suspirando. “É uma longa cauda, certamente”, replicou Alice, olhando para o rabo do Rato com admiração, “mas porque você a chama de triste?” Alice continuava confusa sobre isso enquanto o Rato estava falando, pois a história que ele contava era mais ou menos assim:

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Furioso diz para o rato, Que ele conheceu em casa, “Vamos logo para o tribunal: nós dois Eu vou te processar! —Pode, vir logo, não vou querer adiar nem um minuto o julgamento vai ser agora

Não tenho mesmo nada para fazer esta manhã.”

Disse o rato para o monstro, “Este processo, prezado senhor, sem júri ou jurados, vai ser uma grande perda de tempo.” “Eu serei o júri. Eu serei o juiz,” respondeu o esperto Furioso. “Eu vou te julgar agora e agora, vou condená-lo à morte!”

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“Você não está prestando atenção!”, disse o Rato para Alice, sev-eramente. “No que você está pensando?” “Desculpe-me”, respondeu Alice humildemente, “você já estava na quinta volta, não é?” “Eu não!”, gritou o Rato com voz aguda, muito bravo. “Você não presta atenção em nós!” “Um nó!”, disse Alice, sempre pronta para ajudar, olhando para todos os lados. “Deixe-me ajudar a desfazer esse nó.” “Eu não disse nada desse tipo”, disse o Rato, levantando-se e andando. “Você me insulta falando estas besteiras.” “Eu não quis dizer isso”, suplicava a pobre Alice. “Mas você se ofende tão facilmente!” O Rato apenas rosnou em resposta. “Por favor, volte e termine sua história!”, Alice chamava. E todos os outros juntaram-se em coro: “Sim, por favor, conte!” Mas o Rato apenas balançava a cabeça impacientemente e camin-hou ainda mais rapidamente. “Que pena que ele não queira ficar”, suspirou o Papagaio, e logo o Rato já estava longe. E uma velha Carangueja aproveitou a oportuni-dade para dizer à sua filha: “Ah!, minha querida. Que isso lhe sirva de lição para que você nunca perca o seu humor.” “Segure sua língua, Mãe”, retrucou a jovem Carangueja, de um jeito meio impertinente. “Você acaba com a paciência de qualquer ostra.” “Eu queria que nossa Dinah estivesse aqui”, disse Alice em voz alta, dirigindo-se a ninguém em particular. “Ela iria logo logo trazê-lo de volta.” “E quem é Dinah? Se é que eu posso fazer esta pergunta”, in-terveio o Papagaio. Alice replicou ansiosamente, porque ela estava sempre pronta para falar do seu animalzinho de estimação: “Dinah é a nossa gata. E ela é muito boa para pegar ratos, você nem pode imaginar...E, oh, eu queria que você a visse atrás de pássaros! Ela pode comer um pas-sarinho tão rápido quanto olhar para ele!” Esse discurso causou uma forte sensação entre o destacamento. Alguns pássaros fugiram: uma velha Matraca começou a se agasalhar

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muito cuidadosamente, observando: “Eu realmente preciso ir para casa, o sereno não cai bem para minha garganta!” E uma Canária chamou numa voz trêmula seus filhotes: “Vamos, meus queridos! Já está na hora de vocês estarem na cama!” Com diversos pretextos todos se foram, deixando Alice sozinha. “Eu acho que não deveria ter menciona-do Dinah”, ela disse em um tom melancólico. “Parece que ninguém gosta dela aqui em baixo, e eu tenho certeza que ela é a melhor gata do mundo! Oh minha querida Dinah! Eu

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queria saber se volto a vê-la algum dia! E aqui a pobre Alice começou a chorar novamente, pois se sentia muito solitária e deprimida. Em pouco tempo, entretanto, ela novamente ouviu o barulho de passos à distância e olhou ao redor impacientemente, meio que esperando que o Rato tivesse mudado de idéia e voltado para terminar a história.

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Não havia nenhuma etiqueta desta vez com as palavras “BEBA-ME”, mas, no entanto, ela desarrolhou e colocou-a nos lábios.

“Eu sei que algo interessante vai certamente acontecer”, ela disse para si mesma, “sempre que eu bebo ou como alguma coisa por aqui. Então, vou ver o que esta garrafa faz. Eu espero que me faça crescer novamente, eu estou realmente cansada de ser essa coisinha.” E a bebida fez efeito de verdade, e muito mais rápido do que Alice esperava: antes que ela tivesse bebido metade da garrafa, perce-beu sua cabeça pressionando contra o teto, e então teve que parar para salvar seu pescoço de ser quebrado. Ela rispidamente deixou de lado a garrafa, dizendo para si mesma: “É o suficiente...eu espero não crescer mais, porque se isso não acontecer, eu não vou poder sair pela porta...eu queria não ter be-bido tanto!” Nossa! Era muito tarde para desejar isso! Ela continuou crescendo e crescen-do, e logo precisou ajoelhar-se no chão. Em outro minuto não havia nem mesmo um

Capítulo 4O coelho manda Bill O Lagarto

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Era o Coelho Branco, voltando vagarosa-mente, olhando ansiosamente para trás, como se tivesse perdido algo. Alice ouvia-o resmungando consigo mesmo, “A Duquesa! A Duquesa! Oh, minhas queridas patas! Oh minha pele e bigodes! Ela irá me executar, tão certo quanto os furões são furões! Onde posso tê-los derrubado, eu queria saber!” Alice adivinhou no mesmo momento que o Coelho estava procurando pelo leque e o par de luvas brancas, e ela muito natural-mente começou a ajudá-lo na procura, mas os objetos não estavam por lugar nenhum à vista...tudo parecia ter mudado desde que ela nadara no lago; e o grande salão, com a mesa de vidro e a pequena porta desaparecera completamente. Logo o Coelho percebeu Alice, que procurava pelas luvas. Ele disse em tom en-raivecido: “O que, Mary Ann, você está fazen-do aqui fora? Vá já para casa, já, e traga-me um par de luvas e um leque! Rápido, já!”

E Alice estava tão assustada que correu na direção que ele apontava, sem tentar explicar-lhe o erro cometido. “Ele tomou-me por sua empregada”, a menina dizia para si mesma enquanto corria. “Como ele vai ficar surpreso quando descobrir quem eu sou! Mas seria melhor pegar seu leque e luvas... isto é, se eu puder encontrá-los.” Ao falar estas palavras, Alice chegou numa bonita casinha, na porta da qual havia uma placa de latão bem brilhante com o nome “C. BRANCO” gravado. Ela en-trou sem bater, e subiu apressadamente as escadas, com muito medo de que pudesse encontrar a Mary Ann verdadeira e ser expulsa da casa antes de encontrar o leque e as luvas. “Que estranho isso parece”, Alice disse para si mesma, “receber ordens de um coelho! Imagine Dinah dando-me ordens!”, e ela começou a imaginar o que poderia acontecer.

“Miss Alice! Venha cá e apronte-se para sua caminhada.” “Já vou em um minuto, ama! Mas eu tenho que cuidar desse buraco de rato até Dinah voltar, e ver se o rato não foge.” “Eu acho”, Alice continuou, “que eles não iriam deixar Dinah ficar em casa se ela começasse a dar ordens desse jeito.” Nesse instante a menina percebeu que estava dentro de um pequeno quarto ar-rumado com uma mesa em uma vitrine e sobre ela (como Alice desejara), um leque e dois ou três pares de luvas brancas limpas. Ela apanhou o leque e um par de luvas e já estava deixando o quarto quando seus olhos caíram sobre uma garrafa que estava perto da janela.

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quarto para isso, e ela tentou deitar-se com um cotovelo contra a porta e o outro braço sobre a cabeça! Alice continuava a crescer e, como último recurso, ela colocou um braço para fora da janela e um pé para dentro da chaminé, dizendo para si mesma “Agora eu não posso fazer mais nada, o que quer quer seja que aconteça. O que vai ser de mim?”

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Felizmente para Alice, a pequena garrafa mágica já fizera todo seu efeito, e ela não cresceu mais: ainda era bem desconfortável e parecia não haver nenhum tipo de chance de ela sair do quarto novamente. Não admira que se sentisse infeliz. “Era bem melhor em casa”, pensou a pobre Alice, “ninguém fica crescendo e diminuindo, e recebendo ordens de ratos e coelhos. Eu quase desejo não ter entrado na toca do coelho...mas, mas, é tão curioso, sabe, esse tipo de vida! Eu queria saber o que pode ter acontecido comigo. Quando eu lia contos de fada, ficava imaginando que esse tipo de coisas nunca acontece e agora estou aqui no meio de um! Deveria haver um livro escrito sobre mim, deveria sim! E quando eu crescer, eu vou escrever um...mas...eu já cresci...”, ela continuou com uma vozinha triste, “não há mais espaço para eu crescer aqui.” “Mas então”, pensou Alice, “eu não vou nunca ficar mais velha do que sou agora? Isso é um conforto, de qualquer maneira...nunca ficar velha...e então...ter sempre que estudar. Oh! eu não gostaria disso!” “Ah, sua bobinha”, ela respondeu para si mesma. “Como você quer es-tudar aqui? Afinal esse quarto já está tão pequeno para você, quanto mais para livros de escola!” E então ela continuou, fingindo que perguntava de um lado e respondia do outro até que alguns minutos depois ela ouviu uma voz lá fora e ficou atenta. “Mary Ann! Mary Ann!”, dizia a voz. “Traga-me minhas luvas imediata-mente!”. Então ouviu-se passadas na escada. Alice sabia que era o Coelho vindo procurar por ela. A menina tremia tanto que começou a chacoalhar a casa, quase esquecendo que ela agora era quase mil vezes maior que o Coelho e não havia razão para temê-lo. O Coelho chegou até a porta e tentou abri-la. Mas como a porta abria para dentro e o cotovelo de Alice estava contra ela, nada conseguiu. A menina ouviu uma vozinha dizendo baixinho: “Então eu vou dar a volta e entrar pela janela.” “Isso você não vai fazer”, pensou Alice e, depois de esperar que o Coelho pudesse estar embaixo da janela ela repentinamente esticou a mão e ten-tou apanhá-lo fazendo um movimento no ar. Ela não pegou nada, mas ouviu um pequeno grito e uma queda, e um barulho de vidro quebrado, de onde ela concluiu que provavelmente o Coelho caíra em uma estufa ou algo do tipo. Em seguida uma voz irada, do Coelho : “Pat! Pat! Onde está você?” E

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então uma voz que ela não ouvira ainda disse: “Eu estou aqui! Colhendo maçãs, meu senhoir.” “Colhendo maçãs, certamente”, retrucou o Coelho nervosamente. “Aqui, venha me livrar disso” (Sons de mais vidros quebrados.) “Agora diga-me, Pat, o que é isso na janela?” “Com certeza é um braço, meu senhoir!” (Ele pronunciava “Arrum”) “Um braço, seu ganso burro! Quem já viu um desse tamanho? Ele toma toda a janela!” “Com certeza, meu sinhoir! Mas que é um braço, isso é!” “Bem, de um jeito ou de outro, vá e tire-o de lá.” Houve um grande silêncio depois disso, com alguns cochichos de vez em quando, tipo “Certo, eu não gosto disso, meu sinhoir, nadinha, nadinha!” “Faça o que eu mando, seu covarde!”. No fim de uns minutos Alice esticou sua mão novamente e fez outro movimento no ar. Dessa vez foram dois gritinhos e mais som de vidro quebrado. “Quantas estufas têm lá!”, pensou Alice. “Eu gostaria de saber o que eles vão fazer! Para puxar-me para fora da janela, o que será que eles vão poder! Tenho certeza que eu não quero ficar aqui muito tempo! Ela esperou por algum tempo sem ouvir nada mais. Por fim, ouviu um barulhão de rodas de uma carroça e o som de muitas vozes falando juntas. Ela conseguiu compreender as palavras: “Onde está a outra escada...Por quê?...Eu só trouxe uma. Bill pegou a outra...Bill! Traga-me a escada aqui rapaz...Aqui, coloque-as num canto. Não, amarre-as juntas primeiro.” “Oh! eles irão fazer bem o bastante. Não seja curioso...Aqui Bill! Agarre esta corda! O teto aguentará! Cuidado com a telha solta...Lá vem ela! Oh! está caindo! Abaixem as cabeças! (um barulho de coisa quebrada) Agora, o que aconteceu? Foi Bill, eu acho...Quem vai entrar na chaminé? Eu não! Vai sim! Eu não vou também! Bill foi escolhido para descer. Aqui, Bill! O patrão diz que você é quem vai descer pela chaminé.” “Oh! Então o Bill vai descer pela chaminé, certo?” pensou Alice consigo mesma. “Eles colocam tudo pra cima do pobre Bill. Eu não gostaria de estar no lugar dele, esta lareira é estreita. Mas para dizer a verdade eu acho que posso chutar um pouco.” Ela puxou seu pé o mais longe possível da chaminé e esperou até ouvir o pequeno animal (Alice não conseguia imaginar que tipo ele seria) entrando no buraco da lareira. Então, dizendo para si mesma “Este é Bill”, ela deu um brusco chute e esperou para ver o que acontecia a seguir.

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O que ela ouviu foi um coro geral de “Aí vai Bill” e depois a voz do Coelho ...“Segure ele, você aí na cerca!”, então silêncio e depois uma confusão de vozes...“Suspenda a cabeça dele...Brandy agora...Não o estrangule...Como foi isso companheiro? O que aconteceu com você? Conte-nos sobre isso!” Por último veio uma vozinha débil, chiada (“Este é o Bill”, pensou Alice) “Bem, eu não sei muito bem... Quero mais não...Estou melhor agora...mas um bocado confuso pra contar para voceis...tudo o que eu sei é que alguma coisa veio até mim como se fosse um boneco de mola e eu fui pra cima como um foguete!” “Você fez isso mesmo, velho companheiro”, disseram os outros. “Nós precisamos derrubar a casa”, disse a voz do Coelho. E Alice gritou, tão alto quanto pôde: “Se vocês fizerem isso, eu mando a Dinah atrás de vocês!” Houve um silêncio de morte no mesmo instante e Alice pensou consigo mesma: “Eu gostaria de saber o que eles vão fazer a seguir! Se eles tiverem algum juízo vão tirar o teto da casa.” Depois de um minuto ou dois eles começaram a se movimentar nova-mente, e Alice ouviu o Coelho dizer: “Um carrinho cheio é o suficiente!” “Um carrinho cheio de quê?”, pensou Alice. Mas ela não teve tempo para ficar na dúvida, pois no momento seguinte uma chuva de pequenos seixos veio bater na janela, alguns dele machucando seu rosto. “Eu vou dar um basta nisso”, ela pensou. Alice gritou: “É melhor vocês não fazerem isso novamente”, o que produziu outro silêncio de morte. Alice percebeu, com alguma surpresa, que os seixos estavam todos se transformando em pedaços de bolo ao caírem no chão, e uma brilhante idéia veio à sua mente. “Se eu comer um desses pedaços do bolo”, ela pensou, “com certeza acontecerá alguma mudança em meu tamanho, e, como não vai poder me fazer ficar ainda maior, deve me fazer diminuir, eu suponho.” Então ela engoliu um dos pedaços, e foi maravilhoso descobrir que começara a diminuir instantaneamente. Tão logo ficou pequena o suficiente para passar pela porta, Alice saiu correndo da casa, encontrando um grupo de pequenos animais e pássaros esperando lá fora. O pobre pequeno lagarto, Bill, estava no meio, sendo seguido por dois porquinhos-da-índia que lhe davam algo em uma garrafa. Todos correram em direção a Alice mas ela fugiu o mais depressa que pôde, e logo encontrou-se salva em uma densa floresta. “A primeira coisa que eu tenho que fazer”, disse Alice para si mesma, enquanto

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vagueava pela floresta, “é crescer até meu tamanho normal outra vez, e a segunda coisa é encontrar o caminho para aquele jardim adorável. Acho que este é o melhor plano.” Soava como um excelente plano, sem dúvida, bem arrumado e arranjado com simplicidade: a única dificuldade era que ela não tinha a menor idéia de como fazer isso, e enquanto Alice espreitava ansiosa-mente por entre as árvores, um pequeno latido agudo sobre sua cabeça a fez olhar para cima com um sobressalto. Era um enorme cachorrinho que olhava para ela com grandes olhos redondos e debilmente lhe estendia uma patinha, tentando tocá-la. “Pobre coisinha!”, disse Alice com um tom carinhoso, e tentou com força as-sobiar para ele; mas a menina estava tão terrivelmente assustada pensando que ele poderia estar com fome e querer comê-la a despeito de todo seu carinho. Sem saber o que fazer ela apanhou um pedaço de pau e jogou para o cachorrinho: em conseqüência o cãozinho pulou no ar com um ganido de prazer, e investiu contra o pau como se o temesse. Alice mantinha-se escondida atrás de uma moita para evitar de ser avistada e, no momento que apareceu do outro lado, o filhote deu outra corrida contra o galho acabando por tropeçar nele mesmo na sua pressa de apanhá-lo. Então Alice, como se estivesse brincando com uma carroça e esperando a qualquer momento ser esmagada sob seus pés, correu para perto da moita nova-mente. Daí, o filhote começou uma série de pequenos ataques ao galho, correndo vários pouquinhos para frente de cada

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vez e voltando para trás bastante depois, latindo rouco todo o tempo, até que acabou sentando ofegante, com sua língua para fora da boca e seus grandes olhos semi-cerrados. Aquela parecia uma boa oportunidade para Alice fazer sua escapada e ela então fugiu, correndo até estar muito cansada e sem ar, até que o latido do cãozinho soasse bastante fraco ao longe. “Mesmo assim, que lindo filhotinho ele era!”, disse Alice enquanto apoiava-se em uma flor para descansar, abanando-se com uma das luvas. “Eu gostaria de ter-lhe ensi-nado alguns truques, se ao menos tivesse o tamanho certo para isso! Oh puxa! Eu quase esqueci que tenho que crescer novamente! Deixe-me ver — como é que se faz isso? Eu acho que deveria comer ou beber alguma coisa ou outra, mas a grande questão é ‘O quê?’” A grande questão certamente era “O quê?” E Alice olhou ao seu redor para as flores e a grama mas não pôde ver nada que parecesse a coisa certa para comer ou be-ber nessa cirscunstância. Havia um grande cogumelo crescendo perto dela, quase a mesma altura de Alice e, ao dar uma olhada sob ele, de ambos os lados e ainda atrás dele, ocorreu-lhe que ela poderia também dar uma olhada sobre ele. Ela esticou-se na ponta dos dedos e olhou sobre a margem do cogumelo, seus olhos imediatamente avistaram uma enorme lagarta azul, sentada no topo da planta, com os braços cruzados calmamente fuma-ndo um narguilé, não dando bola nem para ela nem para mais nada.

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Capítulo 5Conselho de uma lagarta

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A Lagarta e Alice olharam-se uma para outra por algum tempo em silêncio: por fim, a Lagarta tirou o narguilé da boca, e dirigiu-se à menina com uma voz lânguida, sonolenta. “Quem é você?”, perguntou a Lagarta. Não era uma maneira encorajadora de iniciar uma conversa. Alice retrucou, bastante timidamente: “Eu — eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento — pelo menos eu sei quem eu era quando levantei esta manhã, mas acho que tenho mudado muitas vezes desde então.

“O que você quer dizer com isso?”, perguntou a Lagarta severamente. “Explique-se!” “Eu não posso explicar-me, eu receio, Senhora”, respondeu Alice, “porque eu não sou eu mesma, vê?” “Eu não vejo”, retomou a Lagarta. “Eu receio que não posso colocar isso mais claramente”, Alice replicou bem poli-damente, “porque eu mesma não consigo entender, para começo de conversa, e ter tantos tamanhos diferentes em um dia é muito confuso.” “Não é”, discordou a Lagarta.

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“Bem, talvez você não ache isso ainda”, Alice afirmou, “mas quando você trans-formar-se em uma crisálida — você irá algum dia, sabe — e então depois disso em uma borboleta, eu acredito que você irá sentir-se um pouco estranha, não irá?” “Nem um pouco”, disse a Lagarta. “Bem, talvez seus sentimentos possam ser diferentes”, finalizou Alice, “tudo o que eu sei é: é muito estranho para mim.” “Você!”, disse a Lagarta desdenhosamente. “Quem é você?” O que as trouxe novamente para o início da conversação. Alice sentia-se um pou-co irritada com a Lagarta fazendo tão pequenas observações e, empertigando-se, disse bem gravemente: “Eu acho que você deveria me dizer quem você é primeiro.” “Por quê?”, perguntou a Lagarta. Aqui estava outra questão enigmática, e, como Alice não conseguia pensar nen-huma boa razão, e a Lagarta parecia estar muito chateada, a menina despediu-se. “Volte”, a Lagarta chamou por ela. “Eu tenho algo importante para dizer!” Isso soava promissor, certamente. Alice virou-se e voltou. “Mantenha a calma”, disse a Lagarta. “Isso é tudo?”, retrucou Alice,engolindo sua raiva o quanto pôde. “Não”, respondeu a Lagarta. Alice pensou que poderia muito bem esperar, já que não tinha nada para fazer, e talvez no fim das contas ela poderia dizer algo que valesse a pena. Por alguns minutos a Lagarta soltou baforadas do seu cachimbo sem falar; afinal, ela descruzou os braços, tirou o narguilé da boca novamente e disse: “Então você acha que mudou, não é?” “Temo que sim, Senhora”, respondeu Alice. “Não consigo lembrar das coisas como antes — e não mantenho o mesmo tamanho nem por dez minutos!” “Não consegue lembrar que coisas?”, continuou a Lagarta. “Bem, eu tentei recitar ‘Como a abelhinha estava atarefada’, mas fiz tudo diferente!” Alice replicou numa voz muito melancólica. “Repita ‘Você está velho, Pai William’, pediu a Lagarta. Alice cruzou as mãozinhas e começou:

Você está velho, Pai Joaquim, disse o jovem,E seu cabelo está ficando branquinho,

Mas você ainda planta bananeira,Você acha, que na sua idade, isso está certo?Na minha juventude, Pai Joaquim respondeu,

Tinha medo de perder a cabeça,

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Mas agora eu sei que não posso perder,Porque não paro de plantar bananeira e estou inteiro.

Você está velho, já falei uma vez, retrucou o jovem,E está engordando demais,

Mas ainda entra aqui dando cambalhotas,Por favor, como você faz isso?

Na minha juventude, disse o velho,Eu me mantive em forma,

Usando esse ungüento — é bem baratinho,Posso vender uns dois potes para você?

Você está velho, disse o jovem, e seus dentes estão fraquinhosPara mastigar qualquer coisa dura.

Mas você ainda come um ganso com osso e tudo,Por favor, como você faz isso?

Na minha juventude, disse o velho, eu acreditava na Lei,E discutia tudo com minha mulher,

O treino que fiz naquela época,Durou para o resto da minha vida!

Você está velho, disse o jovem, e ninguém pode acreditarque você ainda enxerga bem.

Mas ainda assim você equilibra uma enguia na ponta do nariz.O que deixou você tão esperto?

Já lhe respondi três perguntas, agora chega,Disse o velho, e não pense que você me agrada!

Você acha que vou perder meu dia ouvindo suas bobagens?Pode sumir, ou vai levar um pontapé no traseiro!

“Isso não está dito certo”, disse a Lagarta. “Não bem certo, eu receio”, respondeu Alice timidamente, “algumas das palavras podem ter sido trocadas”. “Está errado do começo ao fim”, afirmou a Lagarta decididamente.

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Então fez-se um silêncio por alguns minutos. A Lagarta foi a primeira a falar. “De que tamanho você quer ser?”, ela perguntou. “Oh, eu não ligo para qual tamanho”, respondeu Alice apressadamente, “apenas um que não fique mudando sempre, a senhora sabe.” “Eu não sei”, retrucou a Lagarta. Alice não disse mais nada: ela nunca fora tão contradita em toda sua vida antes e sentia que estava perdendo a paciência. “Você está satisfeita agora?”, indagou a Lagarta. “Bem, eu gostaria de ser um pouco maior, Senhora, se não se importar”, disse Alice, “oito centímetros é um tamanhozinho meio pequeno demais.” “É um ótimo tamanho certamente!”, vociferou a Lagarta, levantando-se enquanto falava (ela tinha exatamente oito centímetros de altura). “Mas eu não estou acostumada com isso!”, alegou a pobre Alice em um tom consternado. “Você se acostumará com o tempo”, retrucou a Lagarta, e colocou o nar-guilé na boca, começando a fumar novamente. Desta vez Alice esperou pacientemente até a Lagarta querer falar nova-mente. Depois de um ou dois minutos a Lagarta tirou o cachimbo da boca, e bocejou uma ou duas vezes e espreguiçou-se. Então desceu do cogumelo e arrastou-se para longe, simplesmente observando, ao sair: “Um lado irá fazê-la crescer e o outro irá fazê-la diminuir.” “Um lado do quê? Outro lado do quê?”, pensava Alice consigo mesma. “Do cogumelo”, respondeu a Lagarta, como se Alice tivesse falado alto, e já no momento seguinte ela estava fora da vista. Alice permaneceu olhando pensativamente para o cogumelo por um minuto, tentando compreender quais eram os dois lados da planta, e, como ela era perfeitamente redonda, sentiu-se em meio a uma difícil questão. Entretanto, afinal a menina esticou seus braços o mais que pôde em torno do cogumelo e cortou um pedaço da borda com cada mão. “E agora, qual é qual?” disse Alice para si mesma, mordiscando um pouco da mão direita para sentir o efeito. No momento seguinte ela sentiu um violento golpe debaixo do queixo: ela batera no seu pé. Ela estava muito assustada com esta súbita mudança, mas sentiu que não havia tempo a perder, pois estava encolhendo rapidamente. Alice colocou mãos à obra para comer do outro pedaço. Seu queixo estava tão fortemente pressionado contra seu pé, que não havia espaço para abrir a boca; mas ela conseguiu afinal, e esforçou-se para engolir um bocado da mão esquerda.

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“Puxa, minha cabeça está livre afinal!”, disse Alice num tom de prazer, que mudou para um tom alarmado no mo-mento seguinte, quando ela descobriu que seus ombros não estavam em lugar nenhum à vista: tudo o que ela podia ver ao olhar para baixo era uma imensidão de pescoço, que parecia nascer como um caule sobre um mar de folhas verdes que se estendiam lá embaixo. “O que podem ser todas estas porcarias verdes?”, disse Alice. “E para onde foram meus om-bros? E oh, minhas pobres mãos, como é isso, eu não posso vê-las”. Ela as estava movendo enquanto falava, mas parecia que não adiantava nada, exceto por um leve chacoalhar nas distantes folhas verdes. Como parecia não haver chances de trazer suas mãos até a cabeça, Alice tentou levar a cabeça até elas e descobriu com alegria que seu pescoço podia tombar facilmente em qualquer di-reção, como se fosse uma serpente. A menina es-tava justamente conseguindo curvar seu pescoço em um gracioso zigue-zague que a levaria a um mergulho nas folhas, que ela achava serem as copas das árvores sob as quais anteriormente vagueara, quando um agudo silvo a fez retroceder rapidamente: uma grande pomba voava contra seu rosto, e batia em sua faces com as asas.

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“Serpente!”, gritou a Pomba. “Eu não sou uma serpente!”, afirmou Alice indignadamente. “Deixe-me.” “Serpente, eu digo novamente!”, repetiu a Pomba, mas em um tom mais mod-erado, e continuou, com um tipo de soluço, “Eu tentei de todas as maneiras, mas nada parece satisfazê-las.” “Eu não tenho a menor idéia sobre o que você está falando”, disse Alice. “Eu já tentei as raízes das árvores, já tentei as margens e já tentei as sebes”, a Pomba continuou, sem prestar atenção em Alice. “Mas estas ser-pentes, nada as satisfaz!” Alice estava mais e mais confusa, mas achou que não adiantava falar nada até a Pomba terminar. “Como se não houvesse problema nenhum em chocar os ovos”, disse a Pomba, “mas ainda tenho que ficar de olho nas serpentes, noite e dia! Eu não tirei uma soneca sequer nesses últimos três dias!”

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“Eu sinto muito que a senhora esteja irritada”, falou Alice, que estava começando a entender o que isso significava. “E eu escolhi a mais alta árvore da floresta”, continuou a Pomba, cuja voz se transformara num guincho, “e estava achando que estaria livre delas afinal, e elas precisam serpentear até no céu! Ugh, Serpente!” “Mas eu não sou uma ser-pente, já falei!”, insistiu Alice. “Eu sou uma...Eu sou uma...” “Bem! O que é você?”, per-guntou a Pomba. “Eu posso ver que você está tentando inventar alguma coisa.” “Eu...eu sou uma menininha”, disse Alice, um pouco em dúvida,

pois relembrava o número de mudanças pelas quais tinha passado naquele dia. “Uma história promissora, certa-mente!”, disse a Pomba, com um tom do mais profundo desprezo. “Eu tenho visto muitas menininhas em minha vida, mas nem uma com um pescoço como este. Não, não! Você é uma serpente, e não há porque negar isso. Eu suponho que agora você vai me dizer que nunca comeu um ovo!” “Eu já experimentei ovos, com certeza”, respondeu Alice, que era uma menina que não mentia, “mas menininhas comem ovos tanto quanto serpentes, sabe.” “Eu não acredito nisso”, disse a Pomba, “mas se elas comem, então elas são um tipo de serpente: isso é o que eu posso dizer.” Essa era uma idéia nova para Alice, ela ficou então um ou dois minutos em silêncio, que deu à Pomba a oportunidade de adicionar:

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“Você está procurando por ovos, eu sei disso muito bem, então o que me interessa se você é uma menininha ou uma serpente?” “Isso já é demais para mim”, falou Alice rudemente, “mas eu não estou pro-curando por ovos como parece; e, se estivesse, eu não iria querer os seus, eu não gosto de ovos crus.” “Bem, saia daqui, então”, disse a Pomba em um tom amuado, e acomodou-se novamente em seu ninho. Alice agachou-se entre as árvores o melhor que pôde, pois seu pescoço enganchava-se nos galhos das árvores e de vez em quando ela precisava parar e livrá-lo. Depois de um tempo, Alice lembrou que ainda tinha pedaços de cogumelo em suas mãos, e pôs mãos à obra bem cuidadosamente, mordiscando de uma e depois de outra mão, e crescendo um pouco e encolhendo um pouco, até que conseguiu colocar-se em seu tamanho normal. Fazia tanto tempo que ela não estava no seu tamanho normal, que sentiu-se um pouco estranha no início, mas acostumou-se em poucos minutos, começando a falar consigo mesma, como de costume: “Bem, metade do meu plano já está feito! Que estranhas todas essas mudanças são! Eu nunca tenho certeza do que vai acontecer, de um minuto para outro! Entretanto, eu voltei ao meu ta-manho de sempre: a próxima coisa é entrar no lindo jardim — como é que isso vai ser feito, eu gostaria de saber? Quando a garotinha disse isso, subitamente avistou um lugar descampado, com uma pequena casinha de mais ou menos um metros e vinte de altura. “Quem quer que viva lá”, pensou Alice, “acho que não seria apropriado entrar com esta altura. Posso assustá-los.” Então ela começou a mordiscar pedacin-hos da mão direita novamente mas não se atreveu a chegar perto da casa até chegar aos vinte e cinco centímetros de altura.

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Capítulo 6Porco e pimenta

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Por um minuto ou dois Alice pa-rou olhando para a casa, tentando imaginar o que fazer a seguir, quando repentinamente um lacaio vestido com libré apareceu correndo vindo da direção da floresta — (ela considerou que ele era um lacaio porque vestia um libré; por outro lado, julgando apenas pelo seu rosto, poderia chamá-lo de peixe) — e bateu com estardalhaço na porta com os nós dos dedos. Quem abriu foi outro lacaio de libré, com uma cara bem redonda, e olhos grandes como um sapo; e ambos os lacaios,

Alice notou, tinham os cachos dos cabelos empoados. Ela estava muito curiosa para saber o que se passava e rastejou para fora da floresta para ouvir. O Peixe-Lacaio começou por retirar por debaixo do braço uma enorme carta, quase tão grande como ele mesmo, e a esten-deu para o outro, dizendo, num tom solene: “Para a Duquesa. Um convite da Rainha para jogar críquete.” O Sapo-Lacaio repetiu, no mesmo tom solene, apenas mudando a ordem das palavras um pouquinho: “Da Rainha. Um convite para a

Duquesa jogar críquete.” Então, ambos fizeram uma reverência, e seus cachos embaraçaram-se. Alice riu tanto disso, que teve que correr de volta para a floresta de medo que eles a tivessem ouvido; e, quando ela espiou novamente, o Peixe-Lacaio já tinha ido embora e o outro estava sentado no chão perto da porta, olhando fixo estupidamente para o céu. Alice dirigiu-se timidamente até a porta, e bateu. “Não adianta nada bater”, disse o Lacaio, “e por dois motivos. Primeiro, porque estou no mesmo lado da porta que você, segundo, porque eles estão fazendo muito barulho lá dentro, ninguém vai ouvi-la.” E certamente havia um barulho muito extraordinário acontecendo lá — con-stantes uivos e espirros e de vez em quando um enorme barulho de coisa quebran-do, como se um prato ou um chaleira estivesse sendo quebrada em pedacinhos. “Por favor, então”, disse Alice, “como eu posso entrar?” “Haveria alguma razão em você bater na porta”, o Lacaio continuou, sem dar importância a Alice, “se houvesse uma porta entre nós. Por exemplo, se você es-tivesse dentro, você poderia bater, e eu poderia deixar você sair, certo?” Ele olhava para o céu durante todo o tempo que falava, e isso Alice achou decisivamente grosseiro.

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“Mas talvez ele não possa evitar”, a menina disse para si mesma, “seus olhos são tão perto do fim da cabeça. Mas de qualquer maneira ele poderia responder as perguntas. Como eu posso entrar?”, ela repetiu em voz alta. “Eu tenho que ficar aqui”, o Lacaio retomou, “até amanhã.” Neste momento a porta da casa abriu-se e um prato grande veio voando diretamente até o nariz do Lacaio, machucando seu nariz e terminando por quebrar-se em mil pedaços contra uma das árvores atrás dele. “...ou no outro dia, talvez”, o Lacaio continuou no mesmo tom, como se nada tivesse acontecido. “Como eu posso entrar?”, perguntou mais uma vez Alice, mais alto ainda. “Você ainda quer entrar?”, disse o Lacaio. “Esta é a primeira pergunta, você sabe.” Isso era, sem dúvida: apenas Alice não gostou que lhe dissessem isso. “É realmente espantoso”, murmurou para si mesma, “a maneira com que essas criaturas falam. É o suficiente para deixar qualquer um maluco!” O Lacaio parecia pensar que aquela seria uma boa oportunidade de repetir sua fala, com variações. “Eu devo sentar aqui”, disse ele, “de vez em quando, por dias e dias”. “Mas o que eu posso fazer?” disse Alice. “Nada que você goste”, disse o Lacaio e começou a assoviar. “Oh, não adianta falar com ele,” disse Alice desesperadamente, “ele é completamente idiota!” Ela então abriu a porta e entrou. A porta dava diretamente para uma grande cozinha, que estava cheia de fumaça de um lado ao outro: a Duquesa estava sentada num tamborete de três pernas bem no meio, embalando um bebê. A cozinheira estava inclinada sobre o fogo, mexendo um enorme caldeirão que parecia estar cheio de sopa. “Certamente temos muita pimenta na sopa!”, Alice disse para si mesma, ao mesmo tempo que espirrava. Havia certamente muita pimenta no ar. Mesmo a Duquesa espirrava ocasionalmente; o mesmo acontecia com o bebê, que espirrava e uivava alternadamente, sem um momento de pausa. As únicas duas criaturas na cozinha que não espirravam eram a cozinheira e um grande gato, que estava deitado no centro e sorria de orelha a orelha. “Por favor, a senhora poderia me dizer”, perguntou Alice timidamente, pois não estava muito certa se era educado falar primeiro, “porque seu gato sorri desse jeito?”

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“Porque ele é um Gato de Cheshire”, respondeu a Duquesa, “é por isso. Porco!” Ela pronunciou a última palavra com tanta violência que Alice deu um pulo; mas ela percebeu no instante seguinte que o chamado era dirigido ao bebê, e não a ela, então armou-se de coragem e tentou novamente: “Eu não sabia que os gatos de Cheshire sempre sorriam, de fato, eu nunca soube que gatos pudessem sorrir.” “Todos eles podem”, afirmou a Duquesa, “e muitos deles o fazem.” “Eu não conheço nenhum”, disse Alice muito polidamente, sentindo-se agra-decida por ter conseguido iniciar uma conversa.

“Você não sabe muito”, disse a Duquesa, “e isso é um fato.” Alice não gostou do tom da voz da Duquesa, e pensou que seria melhor introduzir um outro tema de conversa. Enquanto ela tentava encontrar um, a cozinheira tirou o caldeirão de sopa do fogo e começou a atirar sobre a Duquesa e o bebê todos os objetos que via pela frente — os atiçadores de fogo vieram primeiro, depois uma chuvarada de panelas de molho, pratos e louças. A Duquesa não ligava para nada, mesmo quando um dos utensílios a atingia: e o bebê estava uivando tanto, que era impossível dizer se os projé-teis machucavam ou não. “Oh, por favor, veja o que a senhora está fazendo!”, gritou Alice, pulando de um lado para outro com agonia e terror. “Oh, lá vai seu precioso nariz” pois um enorme caçarola voou bem perto do bebê, e por muito pouco não o carregou.

“Se cada um se preocupasse com seus próprios negócios”, disse a Duque-sa, rosnando roucamente, “o mundo giraria mais rápido do que gira.” “O que não seria uma vantagem”, respondeu Alice, que sentia-se muito feliz pela oportunidade de mostrar um pouco do seu conhecimento. “Eu fico pensando que trabalho deve ser fazer o dia e a noite! A senhora vê, a terra leva vinte e quatro horas para girar em torno do seu eixo...” “Falando em eixos”, disse a Duquesa, “cortem a cabeça dela!” Alice olhou de soslaio ansiosamente para a cozinheira, para ver se ela iria seguir a sugestão; mas a cozinheira estava muito ocupada emxendo a sopa e parecia não ouvir nada; então, ela continuou: “Vinte e quatro horas, eu acho, ou seriam vinte? Eu...” “Ora, não me amole”, falou a Duquesa, “eu nunca tolerei números!” E começou a embalar o bebê novamente, cantando um tipo de canção de ninar, dando no bebê um violento chacoalhão ao final de cada linha:

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Fala bruto com o bebezinhoDá-lhe firme quando ele espirra

Sem dó torce-lhe o focinhoEle faz isso só de birra.

Coro(com a cozinheira e o bebê)

Urra! Urra! Urra!

Enquanto a Duquesa cantava o segundo verso da canção, ela começou a balançar violentamente o bebê para cima e para baixo, e a pobre coisinha berrava tanto que Alice quase não conseguia ouvir as palavras:

Fala bruto com seu bebêBate nele quando espirra

Ele só quer encher a paciênciaPorque é mesmo um chatinho!

Falo bruto com meu meninoBato nele quando espirra

Torço bem seu narizEle adora uma pimentinha!

“Tome aqui! Você pode embalá-lo um pouco se quiser!” a Duquesa disse para Alice, arremessando o bebê para ela enquanto falava. “Eu preciso estar pronta para jogar críquete com a Rainha”, e apressou-se para fora da cozinha. A cozinheira atirou contra ela uma frigideira com óleo fervente, mas não conseguiu atingi-la. Alice apanhou o bebê com alguma dificuldade, pois a pequena criatura tinha uma forma estranha, esticando seus braços e pernas para todas as direções, “como uma estrela do mar” pensou Alice. A pobre pequena coisinha bufava como uma máquina a vapor quando ela o pegou, e continou se retorcendo e se esticando e se dobrando todo o tempo, de modos que, no primeiro minuto ou dois, isso foi o muito que ela poderia fazer para segurá-lo. Tão logo ela pôde compreender a maneira correta de embalar o bebê (que consistia em enrolá-lo em uma espécie de nó bem apertado entre sua orelha

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direita e seu pé esquerdo, para impedir que ele se desatasse). “Se eu não afastar esta criança de mim”, pensou Alice, “tenho certeza que vou acabá-la matando em um dia ou dois. Não seria um crime deixá-la aqui?” Ela falou as últimas palavras em voz alta, e a pequena coisinha grunhiu em resposta (ela já tinha parado de espirrar). “Não grunha”, disse Alice. “Não é uma maneira muito apropriada de se expressar.” O bebê grunhiu novamente e Alice olhou ansiosamente para seu rosto para tentar ver o que se passava com ele. Não havia dúvidas de que ele tinha um nariz muito virado para cima, muito mais um focinho que um nariz de verdade: também seus olhos estavam se tornando muito pequenos para um bebê, Alice realmente não gostava do olhar da coisinha. “Mas talvez ele esteja apenas soluçando”, ela pensou, e olhou mais uma vez para seus olhos, para ver se havia alguma lágrima. Não, não havia lágrimas. “Se você está se transformando em um porco, meu querido”, disse Alice, seriamente, “eu não posso fazer nada por você. Entenda!” A pobre coisinha soluçou novamente (ou grunhiu, era impossível dizer o que, e os dois ficaram em silêncio por algum tempo). Alice começou a pensar consigo mesma,“Agora, o que posso eu fazer com essa criatura, quando eu voltar para casa?”. Nesse momento ele grunhiu mais uma vez, tão violentamente, que ela olhou para seu rosto alar-mada. Dessa vez não podia haver nenhuma dúvida: ele não era nada mais nada menos que um porco, e ela percebeu o quão absurdo era ela carregá-lo para qualquer lugar. Então, soltou a pequena criatura e percebeu bastante aliviada que ele fugiu calmamente em direção à floresta. “Se ele crescesse”, continuou ela, “ia se tornar uma criança extremamente feia, mas vai ser um porco bonito, eu acho.” E ela começou a pensar em outras crianças que ela conhecia, que poderiam muito bem ser porcos, e estava justamente dizendo para si mesma “se apenas soubesse a maneira certa de mudá-los...” quando levou um pequeno susto ao ver o Gato de Cheshire sentado sobre o ramos de uma árvore a pouca distância. O Gato apenas sorriu quando viu Alice. Ele parecia bem natural, ela pen-sou, e tinha garras muito longas e muitos dentes grandes, assim ela sentiu que deveria tratá-lo com respeito. “Gatinho de Cheshire”, começou, bem timidamente, pois não tinha certeza se ele gostaria de ser chamado assim: entretando ele apenas sorriu um pouco mais. “Acho que ele gostou”, pensou Alice, e continuou. “O senhor poderia me

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dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?” “Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Gato. “Não me importo muito para onde...”, retrucou Alice. “Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato. “...contanto que dê em algum lugar”, Alice completou. “Oh, você pode ter certeza que vai chegar”, disse o Gato, “se você caminhar bastante.” Alice sentiu que isso não deveria ser negado, então ela tentou outra pergunta. “Que tipo de gente vive lá?” “Naquela direção”, o Gato disse, apontando sua pata direita em círculo, “vive o Chapeleiro, e naquela”, apontando a outra pata, “vive a Lebre de Março. Visite qualquer um que você queira, os dois são malucos.” “Mas eu não quero ficar entre gente maluca”, Alice retrucou. “Oh, você não tem saída”, disse o Gato, “nós somos todos malucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Como você sabe que eu sou louca?”, perguntou Alice. “Você deve ser”, afirmou o Gato, “ou então não teria vindo para cá.” Alice não achou que isso provasse nada afinal: entretanto, ela continuou: “E como você sabe que você é maluco?” “Para começar”, disse o Gato, “um cachorro não é louco. Você concorda?” “Eu suponho que sim”, respondeu Alice. “Então, bem”, o Gato continuou, “você vê os cães rosnarem quando estão bravos e balançar o rabo quando estão contentes. Bem, eu rosno quando estou feliz e balanço o rabo quando estou bravo. Portanto, eu sou louco.” “Eu chamaria isso de ronronar, não rosnar”, disse Alice. “Chame do que você quiser”, disse o Gato. “Você vai jogar críquete com a Rainha hoje?” “Eu gostaria muito”, respondeu Alice, “mas ainda não fui convidada.” “Você me verá lá”, disse o Gato, e desapareceu. Alice não ficou muito surpresa com isso, ela estava se acostumando com coisas estranhas acontecendo. Enquanto ela ainda estava olhando para o lugar onde o Gato estivera, ele reapareceu repentinamente. “A propósito, no que se transformou o bebê?”, perguntou o Gato. “Eu quase esqueci de perguntar.” “Transformou-se num porco”, Alice respondeu calmamente, como se o Gato tivesse voltado da maneira mais natural possível. “Eu pensei que ele iria”, disse o Gato, e desapareceu novamente.

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Alice esperou um pouco, meio que esperando vê-lo novamente, mas ele não apareceu, e depois de um minuto ou dois ela começou a caminhar na direção de onde foi dito que a Lebre de Março morava. “Eu já vi Chapeleiros antes”, disse ela para si mesma, “a Lebre de Março será bem mais in-teressante, e talvez, como é Maio ela não estará delirante — pelo menos não tão loucamente como ela deve ficar em Março.” Ao dizer estas palavras ela olhou para cima e lá estava o Gato novamente, sentado no galho de uma árvore. “Você falou porco ou figo? (pig or fig)”, disse o Gato. “Eu disse porco”, retrucou Alice, “e eu gostaria que você parasse de aparec-er e desaparecer repentinamente: você deixa a gente tonta!” “Tudo bem”, disse o Gato, e desta vez ele desapareceu bem lentamente, começando pelo final do

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rabo e ter-

minando pelo sorriso,

que permaneceu por algum tempo

depois do resto ter ido embora.

“Bem! Eu tenho visto muitos gatos sem sorriso”, pensou Alice,

“Mas um sorriso sem um gato! É a coisa mais curiosa que já vi em toda minha vida!”

Ela não tinha ido muito longe antes antes de avistar o que imaginou ser a casa da Lebre de

Março: ela achou que deveria ser a casa certa porque as chaminés eram feitas com a forma de orelhas e o teto

era coberto com peles. A casa era tão grande que Alice não queria se aproximar até mordiscar um pedaço da mão esquerda

do cogumelo, e crescer para mais ou menos 70 centímetros: mesmo depois disso ela caminhou em sua direção timidamente, dizendo para si

mesma: “Suponhamos que ela esteja delirante afinal! Eu quase desejo que tivesse ido ver o Chapeleiro!”

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Capítulo 7Um chá maluco

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Havia uma mesa arrumada embaixo de uma árvore, em frente à casa, e a Lebre de Março e o Chapeleiro estavam tomando chá; um Leirão estava sen-tado entre os dois, dormindo profundamente, e os outros dois o usavam como almofada, descansando sobre ele e conversando sobre sua cabeça. “Muito desconfortável para o Leirão”, pensou Alice, “mas já que ele está dormindo, acho que não se importa.” A mesa era bem grande, mas os três amontoavam-se num canto. “Não tem lugar! Não tem lugar!”, eles gritaram ao ver Alice chegando. “Tem muito lugar!”, disse Alice com indignação, e sentou-se em uma grande poltrona numa das cabeceiras da mesa. “Tome um pouco de vinho”, a Lebre de Março ofereceu em um tom encorajador. Alice olhou ao redor por sobre a mesa e não havia nada senão chá. “Eu não vejo nenhum vinho”, ela observou. “Não tem nenhum mesmo”, retrucou a Lebre de Março. “Então não é muito educado de sua parte oferecer”, respon-deu Alice com raiva. “E não é muito educado de sua parte sentar-se sem ser convidada”, disse a Lebre de Março. “Eu não sabia que era sua mesa”, insistiu Alice, “ela está arrumada para muito mais que três convidados.” “Seu cabelo está precisando ser cortado”, disse o Chapeleiro. Ele estivera olhando para Alice por algum tempo com grande curiosidade e esta fora sua primeira intervenção. “Você deveria aprender a não

fazer esse tipo de comentário pessoal”, Alice retrucou com severidade. “Isso é muito grosseiro.” O Chapeleiro arregalou os olhos ao ouvir isso, mas, tudo que ele disse foi: “Por que um corvo se parece com uma escrivan-inha?” “Legal, vamos ter diversão agora!”, pensou Alice. “Fico feliz que ele tenha começado a propor charadas — acho que posso adivinhar essa”, ela completou em voz alta. “Você acha que pode encontrar a resposta dessa?” perguntou a Lebre de Março. “Exatamente”, respondeu Alice. “Então você pode dizer o que acha”, a Lebre de Março continuou. “E vou”, Alice replicou rapidamente,

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“pelo menos — pelo menos, eu acho o que digo — o que é a mesma coisa, você sabe.” “Não é a mesma coisa nem um pouco!”, disse o Chapeleiro. “Senão você também poderia dizer”, completou a Lebre de Março, “que ‘Eu gosto daquilo que tenho’ é a mesma coisa que ‘Eu tenho aquilo que gosto.’” “Seria o mesmo que dizer”, interrompeu o Leirão, que parecia estar fa-lando enquanto dormia, “que ‘Eu respiro enquanto durmo’ é a mesma coisa que ‘Eu durmo enquanto respiro!’”

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“Isso é a mesma coisa para você”, disse o Chapeleiro, e nesse ponto a conversa parou e a reunião ficou em silêncio por um minuto. Enquanto isso Alice tentava lembrar tudo que ela sabia sobre corvos e escrivaninhas, que não era muito. O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar o silêncio. “Que dia do mês é hoje?”, perguntou, virando-se para Alice: ele tinha tirado seu relógio do bolso e olhava para ele ansiosa-mente, chacoalhando-o de vez em quando e levantando-o no ar.

Alice pensou um pouco e então falou: “É dia quatro.” “Dois dias errado”, sus-pirou o Chapeleiro. “Eu falei pra você que a manteiga não ia adiantar nada”, ele com-pletou, olhando raivosamente para a Lebre de Março. “Era a melhor manteiga”, a Lebre de Março replicou mansamente. “Sim, mas algumas migalhas devem ter caído”, o Chapeleiro rosnou.

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“Você não deveria ter passado com uma faca de pão.” A Lebre de Março apanhou o relógio e olhou para ele melancolicamente; então afundou-o na sua xícara de chá, e olhou novamente para ele: mas parecia que não encontrava nada melhor para dizer que o que já dissera: “Era a melhor manteiga, você sabe.” Alice estivera olhando por cima dos ombros com curiosidade. “Que reló-gio engraçado!”, ela observou. “Ele diz o dia do mês e não diz a hora!” “Porque deveria?”, resmungou o Chapeleiro. “Por acaso o seu relógio diz o ano que é?” “É claro que não”, Alice replicou rapidamente, “mas é porque o ano per-manece por muito tempo o mesmo.” “Este é exatamente o caso do meu”, disse o Chapeleiro. Alice sentiu-se terrivelmente perturbada. O comentário do Chapeleiro parecia para a menina completamente sem sentido, e ainda assim era inglês. “Eu não estou entendendo nada”, ela disse, o mais educadamente que pôde. “O Leirão está dormindo novamente”, disse o Chapeleiro, e despejou um pouco de chá quente sobre seu nariz. O Leirão balançou a cabeça impacientemente e disse, sem abrir os olhos: “É claro, é claro, é justamente o que eu ia dizer.” “Você já adivinhou a charada?”, perguntou o Chapeleiro, virando-se nova-mente para Alice. “Não, eu desisto”, Alice respondeu. “Qual é a solução?” “Eu não tenho a mínima idéia”, disse o Chapeleiro. “Nem eu”, disse a Lebre de Março. Alice suspirou enfastiadamente. “Eu acho que você deveria fazer coisa melhor com seu tempo”, ela disse, “ao invés de gastá-lo com charadas que não têm resposta.” “Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço”, o Chapeleiro falou, “não falaria em gastá-lo como se fosse uma coisa. Ele é uma pessoa.” “Eu não sei o que você está dizendo”, disse Alice. “Claro que não!”, o Chapeleiro disse, sacudindo a cabeça desdenhosa-mente. “É muito provável que você nunca tenha falado com o Tempo!” “Talvez não”, Alice replicou cautelosamente, “mas eu sei que tenho que marcar o tempo quando aprendo música.” “Ah! Isso explica”, concluiu o Chapeleiro. “Ele não vai ficar marcando compasso para você. Agora, se você ficar numa boa com ele, poderá fazer

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o que quiser com o relógio. Por exemplo, suponha que são nove horas da manhã, bem a hora de começar a fazer as lições de casa, você apenas tem que insinuar no ouvido do Tempo e o ponteiro dá uma virada num piscar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!” (“Eu queria que fosse”, a Lebre de Março disse para si mesma num sus-surro.) “Isso seria ótimo, com certeza”, disse Alice pensativamente; “mas en-tão...eu poderia ainda não estar com fome, você sabe.” “A princípio não, talvez”, retomou o Chapeleiro, “mas você poderia ficar na uma e meia da tarde tanto tempo quanto você quisesse.” “É assim que você faz?”, perguntou Alice. O Chapeleiro balançou a cabeça com ar de lamento. “Eu não”, ele replicou. “Eu e o Tempo tivemos uma disputa março passado...um pouco antes dela enlouquecer, você sabe...” (apontando a Lebre de Março com a colher de chá) “...foi no grande concerto dado pela Rainha de Copas e eu tinha que cantar

Pisca, pisca, pequeno morcego!Como eu queria saber onde você está!

“Você conhece a canção, por acaso?” “Já ouvi alguma coisa parecida”, disse Alice. “Ela continua, você sabe”, o Chapeleiro prosseguiu, dessa maneira:

Muito acima do mundo você voa,Parece uma bandeja de chá no céu,

Pisca, pisca...”

Nesse instante o Leirão estremeceu e começou a cantar dormindo “Pisca, pisca, pisca, pisca...” e continuou repetindo tantas vezes a palavras que tiveram que lhe dar um beliscão para que ele parasse. “Bem eu mal tinha acabado de cantar o primeiro verso”, disse o Chapeleiro, “quando a Rainha berrou ‘Ele está matando o tempo! Cortem-lhe a cabeça!’” “Que selvageria”, exclamou Alice. “E desde então”, o Chapeleiro continuou num tom de lamento, “ele não faz nada do que eu peço! É sempre seis da tarde agora!” Uma idéia brilhante veio à mente de Alice. “Esta é a razão de tantas coisas para o chá colocadas na mesa?” ela perguntou.

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“É, é isso”, respondeu o Chapeleiro com um suspiro, “é sempre hora do chá, e nós não temos tempo de lavar as coisas entre um chá e outro.” “Então vocês ficam rodando em volta da mesa, não é?”, disse Alice. “Exatamente”, disse o Chapeleiro, “à medida que as coisas vão ficando sujas.” “Mas o que acontece quando vocês chegam ao início outra vez?”, Alice aventurou-se a perguntar. “Eu proponho que mudemos de assunto”, a Lebre de Março interrompeu, bocejando. “Estou ficando cansada disso. Eu voto para que a jovem senhorita conte-nos uma história.” “Eu temo que não conheço nenhuma”, disse Alice, um pouco alarmada com a proposta. “Então o Leirão contará!”, os outros dois gritaram.“Acorde, Leirão!” E beliscaram-no dos dois lados. O Leirão abriu os olhos lentamente. “Eu não estava dormindo”, ele falou numa voz rouca, fraquinha, “eu ouvi cada palavra que meus amigos falavam.” “Conte-nos uma história!”, disse a Lebre de Março. “Sim, por favor!”, implorou Alice. “E seja rápido”, comple-tou o Chapeleiro, “ou você poderá dormir novamente

an-tes

de acabar.”

“Era uma vez três

irmãzinhas”, ele começou

apressadamente, “e seus nomes eram

Elsie, Lacie e Tillie, e elas viviam no fundo de

um poço...” “E o que elas comiam?”,

perguntou Alice, que sempre se interessava pelas questões sobre

comida e bebida. “Elas comiam melado”, respondeu o

Leirão, depois de pensar por um minuto ou dois.

“Elas não poderiam viver só de melado, você sabe”, Alice observou gentilmente. “Elas ficariam doentes.”

“E ficaram”, disse o Leirão, “muito doentes.” Alice tentou um pouquinho imaginar quão extraordinário seria este modo de vida, mas ficou muito confusa e assim, continuou: “Mas porque elas viviam no fundo de um poço?” “Tome mais um pouco de chá”, ofereceu a Lebre de Março para Alice, com um ar sério. “Mas eu ainda não tomei nada”, replicou Alice em um tom ofendido, “por-tanto eu não posso tomar mais.” “Você quer dizer que não pode tomar menos”, disse o Chapeleiro, “é mais fácil tomar mais do que nada.” “Ninguém perguntou sua opinião”, disse Alice. “Quem está fazendo observações pessoais agora?”, o Chapeleiro perguntou triunfalmente.

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Alice não tinha o que responder no momento, daí, aproveitou para tomar um pouco de chá com torradas. Virou-se então para o Leirão e repetiu sua pergunta: “Porque elas viviam no fundo de um poço?” Mais uma vez o Leirão demorou um minuto ou dois para responder e então disse: “Era um poço de melado.” “Isso não existe!”, Alice estava ficando muito brava, mas o Chapeleiro e a Lebre de Março começaram a fazer psiu e o Leirão com um ar amuado observou: “Se você não consegue se comportar civilizadamente, é melhor que acabe a história por conta própria.” “Não, por favor, continue!”, disse Alice humildemente. “Eu não vou mais interromper. É muito provável que existe mesmo um poço assim.” “Um, certamente!”, retomou o Leirão indignadamente. Entretanto, ele continuou. “Bem, daí as três irmãzinhas...elas estavam aprendendo a ex-trair, sabe...” “O que elas extraíam?”, perguntou Alice, já esquecendo da promessa. “Melado”, respondeu o Leirão, sem levar em conta a quebra da promessa, dessa vez. “Eu quero uma xícara limpa”, interrompeu o Chapeleiro, “vamos mudar de lugar.” Ele avançou um lugar enquanto falava, e o Leirão o seguiu, a Lebre de Março ficou no seu lugar e Alice com má vontade ficou com o lugar da Lebre de Março. O Chapeleiro foi o único que ficou com a xícara limpa e Alice ficou em um lugar bem pior do que estava antes, pois a Lebre de Março tinha acabado de derramar leite no prato. Alice não queria ofender o Leirão novamente, por isso começou a falar com cautela: “Mas eu não entendi. De onde elas extraíam o melado?” “Você pode extrair água de um poço de água”, disse o Chapeleiro, “portanto eu acho que pode extrair melado de um poço de melado, não é, imbecil?” “Mas elas estavam dentro do poço”, Alice disse para o Leirão, como se não tivesse ouvido o último comentário. “É claro que estavam”, respondeu o Leirão, “bem no fundo”. Esta resposta confundiu de tal forma a pobre Alice, que ela deixou o Leirão prosseguir por algum tempo sem interrompê-lo. “Elas estavam aprendendo a extrair”, continuou o Leirão, bocejando e esfregando os olhos, pois estava ficando com muito sono, “e elas extraíam todo tipo de coisas...tudo o que começava com M...” “Por que com M?”, disse Alice.

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“Por que não?” respondeu a Lebre de Março. Alice ficou em silêncio. O Leirão aproveitou para fechar os olhos e já estava começando a cochilar, mas, ao ser beliscado pelo Chapeleiro, acordou novamente com um gritinho e continuou, “...que começava com M, como mouse-traps (ratoeira) e moon (lua) e memory (memória, lembranças) e muchness (advérbio de in-tensidade)... você sabe, quando você diz que as coisas são um monte de muitão... você já pensou nisso como um extração de muitão?” “Realmente, agora que você me pergunta”, disse Alice, bem confusa, “eu acho que não...” “Então você não deveria falar nada”, disse o Chapeleiro.

Esse tipo de grosseria era mais do que Alice conseguia suportar: ela levantou-se muito brava e foi saindo. O Leirão caiu no sono imediatamente e nenhum dos outros dois deu a mínima para sua saída, embora ela tenha ol-hado para trás uma ou duas vezes, meio que querendo que eles a chamassem. A última vez que Alice os avistou eles es-tavam tentando enfiar o Leirão dentro do bule de chá. “Eu não volto lá de jeito nenhum!”, disse Alice, enquanto abria caminho em direção à floresta. “Foi o mais estúpido chá do qual participei em toda minha vida!”

Ao dizer isso ela percebeu que uma das árvores tinha uma porta que dava para seu interior. “Que curioso!”, ela pensou. “Mas tudo está tão curioso hoje. Eu acho que posso muito bem entrar nessa árvore.” E entrou. Uma vez mais ela encontrou-se naquela sala comprida e com a pequena mesa de vidro. “Desta vez já sei como fazer”, ela disse para si mesma, e começou por apanhar a pequena chave dourada, depois abriu a porta que dava para o jardim. Só então ela começou a mordiscar o cogumelo (que ela mantivera em seu bolso) até que estivesse com mais ou menos 30 centímetros de altura: daí ela atravessou a pequena passagem e então... ela estava em um lindo jar-dim entre canteiros de flores resplandecentes e fontes de água fresca.

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Capítulo 8O jogo de críquete no campo da rainha

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Uma grande roseira imperava na entrada do jardim: as rosas que nela cresciam eram brancas, mas havia três jardineiros que se ocupavam em pintá-las de vermelho. Alice achou que aquilo era uma coisa estranha e aproximou-se para ver melhor. Justamente na hora que chegou perto deles, ouviu um dos jardineiros dizer: “Cuidado, Cinco! Não jogue tinta em mim!” “Eu não tive culpa”, disse o Cinco em um tom aborrecido. “O Sete empurrou meu cotovelo.” Nisso o Sete olhou para cima e retrucou: “Muito bem, Cinco! Sempre colocando a culpa nos outros!” “É melhor você não falar nada!”, disse o Cinco. “Ontem mesmo eu ouvi a Rainha dizer que você merecia ser decapitado!” “Por quê?”, disse aquele que tinha falado primeiro. “Não é de sua conta, Dois!”, disse o Sete. “É sim, é da conta dele!”, disse o Cinco. “E eu vou dizer pra ele... é porque

você levou raízes de tulipa ao invés de cebolas para a cozinheira.” O Sete jogou o pincel fora, e estava começando a falar “Bem, de todas as injustiças...”, quando seus olhos caíram sobre Alice, que os estava observando. Ele calou-se subitamente: os outros olharam ao redor e todos curvaram-se em respeitosa reverência. “Vocês poderiam dizer-me, por favor”, disse Alice, um pouco timida-mente, “por que estão pintando estas rosas?” O Cinco e o Sete não disseram nada, mas olharam para o Dois. O Dois começou, em um tom baixo:

“Porque, de fato, você vê, Sen-horita, esta deveria ser uma roseira vermelha, e nós plantamos uma roseira branca por engano, e, se a Rainha descobrir, nós todos ser-emos decapitados, sabe. Portanto, você vê, Senhorita, estamos fa-zendo o melhor possível, antes que ela chegue para...” Neste exato momento, o Cinco, que estivera todo o tempo olhando ansiosamente para o jardim, gritou: “A Rainha! A Rainha!” E os três jardineiros atiraram-se instanta-neamente de bruços no chão. Havia o som de muitas passadas, e Alice

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olhava ao redor, doida para ver a Rainha. Em primeiro lugar chegaram dez soldados carregando clavas: eles eram todos da mesma forma que os jardineiros, retangulares e achatados, com as mãos e os pés saindo dos quatro cantos; depois vinham dez cortesãos, que eram ornamentados com diamantes e caminhavam de dois em dois, como os soldados. Depois desses vinham as crianças reais, dez delas, e as gracinhas iam saltitando alegremente de mãos dadas, em duplas também. A seguir vinham os convidados, a maior parte de Reis e Rainhas, e entre estes Alice reconheceu o Coelho Branco, falando apressadamente de um jeito nervoso, sorrindo para tudo o que era dito. Ele seguiu sem reconhecer Alice. Finalmente vinha o Valete de Copas, que carregava a coroa do Rei sobre uma almofada de veludo escarlate, antecipando o final do grande cortejo, que trazia O REI E A RAINHA DE COPAS. Alice estava em dúvida se deveria ou não atirar-se ao chão de bruços como os três jardineiros, mas não conseguia se lembrar se já tinha ouvido falar sobre tal regra em cortejos, “e além disso, qual seria a utilidade de um cortejo”, pensou, “se as pessoas ficam de bruços e não podem vê-lo?” Então ela ficou como estava e esperou. Quando o cortejo passou por Alice, todos pararam e olharam para ela. A Rainha disse, severamente: “Quem é isso?”, dirijindo-se ao Valete de Copas, que apenas curvou-se e sorriu em resposta. “Idiota!”, disse a Rainha, balançando a cabeça impacientemente, e, dirigindo-se para Alice, prosseguiu: “Qual é o seu nome, criança?” “Meu nome é Alice, às suas ordens Majestade”, disse Alice bem educada-mente, mas acrescentou, para si mesma, “Oras, afinal de contas eles não passam de um baralho de cartas. Eu não preciso ter medo deles!” “E quem são esses?”, perguntou a Rainha, apontando para os três jardi-neiros que estavam ainda estendidos ao lado da roseira. Isso porque, vocês sabem, como eles estavam de bruços e a parte de trás do baralho era igual a todo o resto do baralho, ela não poderia dizer se eles eram jardineiros, ou soldados, ou cortesãos ou três das crianças reais. “Como é que eu poderia saber?”, disse Alice surpreendida por sua cor-agem. “Não é da minha conta.” A Rainha ficou vermelha de raiva e depois de encará-la por um momento como uma fera selvagem, começou a gritar: “Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe...” “Besteira!”, retrucou Alice, em tom alto e decidido, e a Rainha calou-se. O Rei pousou sua mão sobre o braço da esposa e disse timidamente:

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“Deixe pra lá, minha querida: ela é apenas uma criança!” A Rainha afastou-se dele com raiva e disse para o Valete: “Vire-os!” O Valete os virou, muito delicadamente, com um pé. “Levantem-se!”, disse a Rainha com uma voz estridente e alta, e os três jardineiros instantaneamente saltaram e começaram a fazer reverências para o Rei, a Rainha, as crinças reais e todo o resto do pessoal. “Parem com isso”, gritou a Rainha. “Vocês me deixam tonta.” Então, virando-se para a roseira, ela continuou falando: “O que vocês estavam fazendo aqui?” “Para servir à Sua Majestade”, disse o Dois, humildemente, ficando sobre um joelho enquanto falava, “nós estávamos tentando...” “Eu entendo!”, disse a Rainha, enquanto examinava as rosas. “Cortem-lhe as cabeças!” e o cortejo prosseguiu, com três dos soldados ficando para trás para executar os desafortunados jardineiros, que correram na direção de Alice em busca de proteção. “Vocês não serão decapitados!”, disse Alice, colocando-os dentro de um grande jarro de flores que estava por perto. Os três soldados ficaram con-fusos por um minuto ou dois, procurando por eles e então voltaram para o final do cortejo. “As cabeças já foram cortadas?”, berrou a Rainha. “Suas cabeças se foram, para servi-la, Majestade!”, os soldados grita-ram em resposta. “Muito bem!”, gritou a Rainha. “Você sabe jogar críquete?” Os soldados permaneceram em silêncio e olharam para Alice, pois a pergunta era evidentemente dirigida a ela. “Sim!”, gritou Alice. “Então venha”, rugiu a Rainha e Alice juntou-se ao cortejo, doida para saber o que aconteceria a seguir. “É um...é um belo dia!” disse uma vozinha tímida ao seu lado. Ela estava caminhando bem ao lado do Coelho Branco, que ficava olhando o tempo todo para ela. “Muito”, disse Alice. “Onde está a Duquesa?” “Psiu!Psiu!”, disse o Coelho em voz baixa, assustado. Ele olhava ansiosa-mente por sobre os ombros enquanto falava e então ergueu-se na ponta das patinhas, colocando a boca bem perto dos ouvidos de Alice e cochichou: “Ela foi condenada.”

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“A que pena?” perguntou Alice. “Você disse ‘Que pena!’?”, o Coelho perguntou. “Não, eu não disse”, retrucou Alice. “Não acho que seja uma pena. Eu disse ‘A que pena?’!” “Ela deu um murro nos ouvidos da Rainha...”, o Coelho começou a contar. Alice disparou a rir. “Oh, psiu!”, o Coelho murmurou em um tom assustado. “A Rainha irá ouvi-la! Mas você entende, a Duquesa chegou muito tarde e a Rainha falou...” “Tomem seus lugares!”, gritou a Rainha em uma voz de trovão, e as pes-soas começaram a correr em todas as direções, batendo umas nas outras. Entretanto, em um minuto ou dois estavam todos em seus lugares e o jogo começou. Alice pensou que ela nunca em sua vida vira um campo de críquete tão curioso: ele era todo cheio de saliências e sulcos, as bolas de críquete eram ouriços vivos e os tacos eram flamingos também vivos. Os soldados curvavam-se e colocavam as mãos no chão para fazer os arcos do jogo.

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A principal dificuldade que Alice encon-trou no início foi como segurar seu flamingo: ela poderia manter o corpo dele sob seu braço com razoável conforto, com as per-nas da ave penduradas. Mas, geralmente quando conseguia esticar o pescoço do flamingo e ia fazê-lo chutar o ouriço com a cabeça, ele virava-se e olhava para Alice com uma expressão tão confusa que ela não conseguia parar de rir. Depois, quando desvirava a cabeça dele e se preparava para começar tudo de novo, era irritante perceber que o ouriço tinha se desenro-scado e fugia. Além disso, sempre havia uma saliência ou sulco no caminho em que ela queria mandar o ouriço e os soldados-arcos estavam sempre se levantando e mudando de lugar. Alice logo chegou à conclusão que aquele era

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realmente um jogo muito difícil. Os jogadores jogavam todos ao mesmo tempo, sem esperar sua vez, discutindo o tempo todo, brigando pelos ouriços; logo a Rainha estava furiosa e batia com os pés no chão, gritando: “Cortem a cabeça dele!”, ou “Cortem a cabeça dela!” o tempo todo. Alice começou a sentir-se muito mal: para dizer a verdade, ela ainda não tinha discutido nenhuma vez com a Rainha no jogo mas sabia que poderia acontecer a qualquer minuto, “e então”, ela pensou, “o que irá acontecer comigo? Eles são loucos para cortar as cabeças por aqui. A grande dúvida é como ainda existe alguém vivo!” Ela estava procurando alguma maneira de escapar, imaginando se daria para fugir sem ser vista quando percebeu uma curiosa aparição no ar: aquilo a confundiu muito no início, mas depois de olhar por um minuto ou dois percebeu que era um sorriso e ela disse para si mesma: “É o Gato de Cheshire: agora eu tenho alguém com quem falar.” “Como você está se saindo?”, perguntou o Gato, tão logo ele teve boca o suficiente para falar. Alice esperou até que seus olhos surgissem e então cumprimentou-o com a cabeça. “Não adianta falar com ele”, ela pensou, “até que suas orelhas apareçam, ao menos uma delas.” Em um minuto toda a cabeça apareceu e então Alice colocou seu flamingo no chão e começou a comentar o jogo, sentindo-se muito feliz por ter alguém para ouvi-la. O Gato parecia achar que já havia parte suficiente sua aparente e nada mais surgiu. “Eu não acho que eles joguem de maneira muito certa”, Alice começou em um tom de queixa, “e discutem de um jeito tão maluco que você não consegue ouvir ninguém falar...e parece que eles não têm nenhuma regra. Finalmente, se têm, ninguém parece respeitar...você não faz idéia de como é confuso jogar com todas essas coisas vivas. Por exemplo, o arco sob o qual deveria passar minha bola mudou-se para o outro lado do campo...e quando eu deveria atingir o ouriço da Rainha agora há pouco, ele saiu correndo ao ver o meu se aproximando!” “O que é que você acha da Rainha?”, perguntou o Gato em uma voz baixa. “Nada em especial”, respondeu Alice, “ela é tão extremamente...” Ex-atamente neste instante ela percebeu que a Rainha estava bem ao seu lado, ouvindo, “...boa nesse jogo que vai ser muito difícil chegar ao final da partida.”

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A Rainha sorriu e seguiu em frente. “Com quem você está falando?”, perguntou o Rei, vindo em direção de Alice e olhando para a cabeça do Gato com muita curiosidade. “É um amigo meu...o Gato de Cheshire”, respondeu Alice. “Deixe-me apresentá-lo.” “Eu não gosto do jeito dele”, disse o Rei. “Entretanto ele pode beijar minha mão, se quiser.” “Eu prefiro não beijar”, o Gato retrucou. “Não seja impertinente”, disse o Rei, “e não me olhe dessa maneira!”, escondendo-se atrás de Alice enquanto falava. “Um gato pode olhar para um rei”, disse Alice. “Eu já li isso em algum livro, mas não me recordo qual.” “Bem, ele tem que retirar-se daí”, disse o Rei decidido, e chamou a Rainha, que passava por ali naquele momento: “Minha querida! Eu gostaria que você mandasse retirar esse gato daqui!” A Rainha só tinha uma maneira de remover todas as dificuldades, grandes ou pequenas. “Cortem-lhe a cabeça!”, ela ordenou sem nem mesmo olhar para os lados. “Eu mesmo vou buscar o carrasco”, disse o Rei impacientemente e apressou-se. Alice pensou que seria melhor voltar e ver como andava a partida, quando ouviu ao longe a voz da Rainha gritando enlouquecidamente. Ela já ouvira por três vezes a sentença de execução para jogadores que tinham perdido sua vez e não estava gostando nada disso, pois com o jogo con-fuso como estava ela nunca sabia se era sua vez ou não de jogar. Daí, ela saiu procurando seu ouriço. O ouriço estava engalfinhado com outro ouriço, o que pareceu para Alice uma excelente oportunidade para atirar um contra o outro: a única dificul-dade foi que o seu flamingo tinha corrido para o outro canto do campo, onde Alice podia vê-lo tentando, sem grandes resultados, levantar vôo até uma árvore. Quando finalmente ela conseguiu apanhar o flamingo e trazê-lo nova-mente de volta, a luta entre os ouriços tinha terminado e os dois animais tinham sumido: “Mas isso não importa”, Alice pensou, “pois todos os arcos se foram desse lado do campo.” Então ela novamente colocou o flamingo debaixo do braço para que ele não escapasse novamente, e voltou para conversar um pouquinho mais com seu amigo.

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Quando ela voltou para onde estava o Gato de Cheshire, surpreendeu-se com uma multidão ao seu redor: havia uma discussão entre o carrasco, o Rei e a Rainha, todos falando ao mesmo tempo, enquanto o resto permanecia em silêncio, parecendo bastante con-strangidos. No momento em que Alice apareceu, foi chamada pelos três para decidir a questão. Eles repetiram seus argu-mentos, mas, como todos falavam ao mesmo tempo, ela achou muito difícil entender exatamente o que diziam. O carrasco argumentava que não se pode cortar uma cabeça ao menos que ela não esteja presa a um corpo. Que ele nunca fizera uma coisa dessas na

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vida e não seria desta vez que ele começaria. O Rei argumentava que qualquer coisa que tivesse cabeça poderia ser decapitada, e que aquela conversa era besteira. A Rainha argumentava que, se alguma coisa não fosse feita rapidamente, ela iria mandar executar todo mundo em volta. (Esta última observação é que deixara o grupo com aquele tom sério e ansioso.) Alice não encontrou nada mel-hor para dizer que “Ele pertence à Duquesa: seria melhor perguntar para ela sobre isso.” “Ela está na prisão”, a Rainha disse ao carrasco. “Vá buscá-la.” E o carrasco saiu disparado como uma flecha. A cabeça do Gato começou a desaparecer bem no momento em que ele se foi e na hora que o carrasco voltou com a Duquesa já tinha sumido totalmente. O Rei e o carrasco começaram a procurá-lo desesperadamente por todo lado, enquanto o restante do grupo voltou ao jogo.

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Capítulo 9A história da falsa tartaruga

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“Você não pode imaginar como eu estou feliz em vê-la novamente, minha queridinha”, disse a Duquesa, tocando afetuosamente o braço de Alice, passando a caminhar junto com ela. Alice ficou feliz por encontrá-la de bom humor, e pensou consigo mesma que talvez fosse a pimenta que a deixava tão selvagem como quando as duas se conheceram na cozinha. “Quando eu for uma Duquesa”, ela disse para si mesma (não em um tom muito esperançoso), “não vou usar pimenta em minha cozinha de jeito nenhum. Sopa cai muito bem sem isso talvez seja a pimenta que deixe as pessoas mal-humoradas”, ela continuou, bem feliz de ter descoberto um novo tipo de regra, “e o vinagre as deixa azedas...e a camomila as deixa amargas...e...e as balas de cevada e este tipo de coisas é que deixam as crianças tão doces. Eu queria que as pes-soas soubessem disso: então, eles não seriam tão sovinas com doces, sabe...” Ela quase se esqueceu da Duque-sa nessa hora e levou um pequeno susto quando ouviu sua voz perto dos ouvidos.

“Você está pensando em alguma coisa, minha querida, e isso faz você esquecer de falar. Eu não posso lhe dizer agora qual é a moral disso mas vou lembrar num instante.” “Talvez não haja nenhuma”, Alice aventurou-se a observar. “Ora, ora, criança!”, retrucou a Duquesa. “Tudo tem uma moral, se você encontrá-la.” E foi se apertando contra Alice enquanto falava. Alice não gostou muito de estar tão perto dela, em primeiro lugar porque a Duquesa era muito feia, e em segundo lugar porque era do tamanho exato para apoiar o queixo sobre o ombro de Alice, e possuía um queixo muito pontudo. Entretanto, Alice não queria ser rude e por isso agüentou o quanto pôde.

“O jogo parece estar bem melhor agora”, disse para manter a conversa. “Perfeito”, respondeu a Duquesa, “e a moral disso é...‘Oh!, é o amor, é o amor que faz o mundo girar!’” “Alguém disse”, Alice murmurou, “que ele gira quando cada um cuida dos seus próprios negócios.” “Ah! Bem! Isto quer dizer quase a mesma coisa”, disse a Duquesa enfiando o queixo pontudo nos ombros de Alice, completando,

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“e a moral disso é...‘Tome conta do sentido e os sons tomarão conta de si mesmos.” “Como ela gosta de achar uma moral em tudo!”, Alice pensou con-sigo mesma. “Aposto como você está pensando porque eu não coloco meu braço na sua cintura”, a Duquesa falou, depois de uma pausa. “A razão é: tenho dúvidas em relação ao humor do seu flamingo. Posso experimentar?” “Ele pode bicar”, Alice cautelosamente replicou, não se sentindo nem um pouco a fim de que ela tentasse. “Bem verdade”, disse a Duquesa, “flamingos e a mostarda bicam. E a moral disso é...‘Pássaros da mesma plumagem voam juntos’.” “Só que a mostarda não é um pássaro”, Alice observou. “Certo. Como sempre”, disse a Duquesa, “você tem uma maneira muito clara de colocar as coisas!” “É um mineral, eu acho”, disse Alice. “É claro que é”, disse a Duquesa, que parecia pronta para con-cordar com tudo que Alice dissesse. “Há uma grande máquina de mostarda perto daqui. E a moral disso é...‘Quanto mais tenho para mim, menos sobra para os outros’.” “Ah!, já sei!”, exclamou Alice, que não tinha prestado atenção à última observação da Duquesa. “É um vegetal. Não parece com um mas é.” “Eu concordo com você”, disse a Duquesa, “e a moral disso é...‘Seja o que você parece ser’...ou, se você prefere colocar isso de um jeito mais simples...‘Nunca se imagine diferente do que deveria parecer para os outros o que você fosse ou poderia ter sido não seja diferente do que você tendo sido poderia ter parecido para eles ser diferente’.” “Eu acho que poderia entender melhor”, disse Alice polidamente, “se eu tivesse isso por escrito: não consigo seguir com você falando.” “Isso não é nada em comparação com o que eu poderia dizer, se quisesse”, replicou a Duquesa num tom de prazer. “Por favor, não se dê ao trabalho de dizer isso mais complicado que já disse”, falou Alice. “Oh, não fale em dar trabalho”, disse a Duquesa. “Dou-lhe de pre-sente tudo o que já falei até agora.”

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“Um tipo de presente bem barato!”, pensou Alice. “Fico feliz que as pessoas não costumem dar presentes de aniversário como esses!”. Mas ela não se aventurou a dizer issso em voz alta. “Pensando novamente?”, perguntou a Duquesa, com outro cutucão do seu queixo pontudo. “Eu tenho o direito de pensar”, disse Alice asperamente começando a se sentir aborrecida. “Tem tanto direito”, disse a Duquesa, “quanto os porcos têm de voar, e a mo...” Mas nesse instante, para grande surpresa de Alice, a voz da Duquesa sumiu, bem no meio da sua palavra favorita, moral, e o braço que estava grudado no seu começou a tremer. Alice olhou para cima e lá estava a Rainha diante dela, com os braços cruzados, franzindo o cenho como uma tempestade de raios e trovões. “Um belo dia, não é, Majestade?”, a Duquesa começou, com uma vozinha débil, frágil. “Agora, eu vou lhe dar um aviso sincero”, gritou a Rainha, batendo

os pés no chão enquanto falava, “ou você ou a sua cabeça devem sair daqui, e já! Faça sua escolha!” A duquesa fez sua escolha e sumiu no mesmo instante. “Vamos continuar com o jogo”, a Rainha disse para Alice, e a menina estava assustada demais para dizer qualquer coisa, por isso seguiu-a lentamente em direção ao campo de críquete. Os outros convidados tiraram vantagem com a ausência da Rainha e estavam descansando na sombra: entretanto, tão logo a avistaram correram apressados para o jogo, pois a Rainha tinha reforçado que um minuto sequer de atraso iria lhes custar a vida. Todo o tempo em que eles estiveram jogando a Rainha não parou nem um minuto de discutir com os jogadores e gritar “Cortem a cabeça dele!”, ou “Cortem a cabeça dela!”. Aqueles que eram sentenciados ficavam sob custódia dos soldados, que, é claro, tinham que deixar seus postos de arcos do jogo para isso, daí, lá pelo final da primeira meia-hora de jogo, já não havia mais arcos e todos os jogadores, com exceção do Rei, da Rainha e de Alice estavam presos e sob sentença de execução. Então a Rainha abandonou o jogo, quase sem fôlego e perguntou

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para Alice: “Você já viu a Falsa Tartaruga?” “Não”, respondeu Alice. “Eu nem mesmo sei quem é a Falsa Tar-taruga.” “É com o que se faz a Sopa de Falsa Tartaruga”, completou a Rainha. “Nunca vi uma, nem mesmo ouvi falar”, disse Alice. “Venha, então”, disse a Rainha, “e eu vou lhe contar a história dela.” Como todos caminhavam juntos, Alice ouviu o Rei dizer em voz baixa para os condenados: “Vocês estão todos perdoados.” “Bem, isso é uma boa coisa!”, Alice disse para si mesma, pois estava se sentindo muito triste com as execuções que a Rainha ordenara. Logo eles chegaram junto a um Grifo, que jacarezava ao sol. (Se você não sabe o que é um Grifo, olhe a figura) “Levante-se, preguiçoso!”, disse a Rainha. “E leve esta senhorita para ver a Falsa Tartaruga e ouvir sua história. Eu preciso voltar para verificar algumas execuções que ordenei”, e afastou-se, deixando Alice sozinha com o Grifo. Alice não gostou muito do visual da criatura, mas ela pensou que no fim das contas estaria mais a salvo ficando com ele do que seguindo com a selvagem Rainha. Pelo menos era o que esperava. O Grifo sentou-se e esfregou os olhos, olhando a Rainha até que ela sumisse de vista. Então começou a rir por entre os dentes. “Qual é a graça?”, perguntou Alice. “Ela”, disse o Grifo. “Tudo é fantasia dela. Eles nunca executam ninguém, sabe. Vamos!” “Todo mundo diz ‘vamos’ por aqui”, pensou Alice, ao mesmo tempo que começou a segui-lo lentamente. “Eu nunca fui tão mandada em toda minha vida antes, nunca!” Eles ainda não tinham ido muito longe, quando avistaram a Falsa Tartaruga ao longe, sentada triste e solitária sobre a pequena saliência de uma pedra e, ao chegarem mais perto, Alice pôde ouvi-la suspirar como se seu coração estivesse partido. Alice sentiu uma grande pena dela. “Porque ela está triste?”, perguntou ao Grifo. E o Grifo respondeu com quase as mesmas palavras que dissera em relação à Rainha: “É tudo fantasia dela, ela não tem pelo que entristecer, sabe. Vamos!” Eles foram então na direção da Falsa Tartaruga, que olhou para

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eles com seus grandes olhos cheios de lágrimas, mas não disse nada. “Esta jovem”, disse o Grifo, “quer saber sua história, quer sim.” “Eu vou lhe contar”, disse a Tartaruga, com uma voz profunda, cavernosa. “Sentem-se os dois, e não digam nenhuma palavra até eu terminar.” Então eles sentaram-se e ninguém falou nada por alguns minutos. Alice pensou consigo mesma. “Eu não sei como ela pode terminar se nem mesmo começa.” Mas esperou pacientemente. “Uma vez”, disse a Falsa Tartaruga afinal, com um suspiro pro-fundo. “Eu era uma Tartaruga de verdade!” Estas palavras foram seguidas de um grande silêncio, quebrado apenas por uma ocasional exclamação “Hjckrrh!”, vindo do Grifo e os constantes e fortes soluços da Falsa Tartaruga. Alice já estava a ponto de levantar e dizer “Obrigada, Senhora, pela sua interessante história”, mas ela não podia deixar de pensar que deveria haver mais algo a ser dito e então ficou sentada e não disse nada. “Quando nós éramos pequenos”, a Falsa Tartaruga continuou afinal, mais calmamente, embora ainda soluçando um pouquinho, “ía-mos para a escola no mar. O professor era uma velha Tartaruga. Nós costumávamos chamá-la Tartenruga. “E por que chamá-la de Tartenruga se ela era uma Tartaruga?”, perguntou Alice. “Nós a chamávamos assim porque tinha rugas”, a Falsa Tartaruga respondeu com irritação. “Você é mesmo muito tonta!” “Você deveria envergonhar-se de fazer uma pergunta tão boba”, completou o Grifo, e então os dois sentaram-se e ficaram em silêncio olhando para a pobre Alice, que sentiu-se a ponto de enfiar a cabeça no chão de vergonha. Finalmente o Grifo disse para a Falsa Tartaru-ga: “Vai em frente, velha amiga! Não vamos ficar aqui o dia inteiro!”. Ela então prosseguiu: “Sim, nós íamos para a escola no mar... mas parece que você não acredita mesmo...” “Eu não disse nada!”, interrompeu Alice. “Disse sim!”, retrucou a Falsa Tartaruga. “Segure sua língua”, completou o Grifo, antes que Alice pudesse

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retrucar. A Falsa Tartaruga continuou: “Nós tivemos a melhor educação...na verdade, nós íamos à escola diariamente...” “Eu também ia à escola todos os dias”, falou Alice, “você não tem porque ficar orgulhosa disso.” “Com aulas extras?”, perguntou a Falsa Tartaruga um pouco ansiosa. “Sim”, respondeu Alice, “nós aprendíamos Francês e música.” “E lavagem?”, mais uma vez perguntou a Falsa Tartaruga. “É claro que não”, disse Alice indignadamente. “Ah! Então a sua escola não era realmente boa”, acrescentou a Falsa Tartaruga em um tom de grande alívio. “Agora, na nossa tinha, afinal, ‘Francês, música e lavagem’...extra.” “Vocês não precisavam muito disso”, retomou Alice, “vivendo no meio do mar.” “Eu não tinha recursos para pagá-los”, insistiu a Falsa Tartaruga com um suspiro. “Eu só freqüentava os cursos regulares.” “E quais eram?” indagou a menina. “Enrolação e Contorção, é claro, para começar”, a Falsa Tartaruga replicou, “e depois os diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Dis-tração, Enfeiação e Derrisão.” “Eu nunca ouvi falar em ‘Enfeiação’”, Alice atreveu-se a dizer. “O que é isso?” O Grifo levantou as patas em sinal de surpresa. “Nunca ouviu falar em ‘Enfeiação’!”, exclamou, “Você sabe o que é embelezamento, acredito eu!” “Sim”, respondeu Alice sem muita certeza, “significa...fazer...alguma coisa...mais bonita...” “Bem, então”, o Grifo continuou, “se você não sabe o que é en-feiação, você é muito boba mesmo.” Alice não teve coragem de perguntar mais nada sobre o assunto. Virou-se então para a Falsa Tartaruga e disse: “O que mais você aprendeu?” “Bem, havia Mistério”, e a Falsa Tartaruga começou a enumerar as matérias nas patas. “Mistério antigo e moderno, com Marografia: também Arrastamento...o professor de Arrastamento era um velho congro, que vinha uma vez por semana. Ele nos ensinava Arrastamen-

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to, Esticamento e ainda Desmaios em Bobinas.” “E como é isso?”, disse Alice. “Bem, eu não vou poder mos-trar para você”, completou a Falsa Tartaruga. “Ando meio fora de forma. E o Grifo não aprendeu isso.” “Não tive tempo”, disse o Grifo. “Eu estudei com o mestre das Clássicas. Ele era um velho caranguejo, se era.” “Nunca tive aulas com ele”, retomou a Falsa Tartaruga com um suspiro. “Ele ensinava Risando e Desgosto, dizem.” “É isso mesmo, isso mesmo” disse o Grifo, suspirando também. Os dois esconderam as caras nas patas. “E quantas horas vocês es-tudavam por dia?”, perguntou Alice, apressando-se em mudar de assunto.

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“Dez horas no primeiro dia”, respondeu a Falsa Tartaruga, “nove no segundo e assim por diante.” “Que coisa estranha!”, exclam-ou Alice. “É por isso que chamávamos as aulas de lições (lessons)”, o Grifo explicou, “porque elas diminuíam (lessen) cada dia.” Aquela era uma idéia nova para Alice, e ela parou para pensar um pouco antes da sua próxima observação. “Então o décimo-primeiro dia tinha que ser feriado?” “Claro que era”, respondeu a Falsa Tartaruga. “E como era no décimo-segun-do?”, perguntou com vivacidade Alice. “Chega de lições”, o Grifo interrompeu em um tom decidido. “Conte a ela sobre os jogos agora.”

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Capítulo 10A dança da lagosta

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A Falsa Tartaruga suspirou profunda-mente e enxugou os olhos com o dorso de uma patinha. Ela olhou para Alice e tentou falar, mas, durante um ou dois minutos, soluços impediram-na de dizer qualquer coisa. “Parece que ela tem um osso na gar-ganta”, disse o Grifo e pôs-se a caminhar mexendo-se pra lá e pra cá, lançando-se para trás. Afinal a Falsa Tartaruga recobrou a voz e, com lágrimas escorrendo pelas faces, recomeçou: “...Você talvez não tenha vivido muito no fundo do mar...” (“Não mesmo”, disse Alice) “...e talvez não tenha sido apresentada ja-mais a uma lagosta...” (Alice começou a dizer “Uma vez eu experimentei...” mas conteve-se

rapidamente e respondeu “Não, nunca”) “... daí você não deve ter idéia de que coisa deliciosa que a Dança da Lagosta é!” “Não, realmente”, disse Alice. “Que tipo de dança é?” “Bem”, disse o Grifo, “você primeiro forma uma fila na praia...” “Duas filas!”, gritou a Falsa Tartaruga. “Focas, tartarugas, salmões, e todo o resto então, depois de tirar todas as água-vivas do caminho...” “O que normalmente leva

um bom tempo”, interrompeu o Grifo. “... você dá dois passos para frente...” “Cada qual com sua lagosta fazendo par!”, gritou o Grifo. “Exatamente”, disse a Falsa Tartaruga, “dá dois passos para frente, vira-se para seu par...” “...troca de lagosta e anda dois passos para trás...”, continuou o Grifo. “Então, sabe”, a Falsa Tartaruga continuou, “você atira as...” “As lagostas!” o Grifo exclamou, com um salto no ar. “...o mais para longe no mar que você possa...” “E nada atrás delas!”, gritou o Grifo. “E dá um salto mortal no mar!”, gritou desta vez a Falsa Tartaruga, dando cambalhotas para todos os lados. “E troca de lagosta novamente”, berrou o Grifo o mais alto que pôde.

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“Daí volta para a terra de novo, e... assim completa-se a primeira figura”, terminou a Falsa Tartaruga, repentinamente abaixando a voz; e as duas criaturas, que estavam pulando como dois malucos antes, sentaram-se muito tristes e quietinhas, olhando para Alice. “Deve ser uma dança muito bonita”, disse Alice timidamente. “Você gostaria de ver um pedacinho dela?”, perguntou a Falsa Tartaruga. “Claro, gostaria muito”, respondeu Alice. “Venha, vamos tentar fazer a primeira figura!”, disse a Falsa Tartaruga para o Grifo. “Nós não podemos fazer isso sem as lagostas, você sabe muito bem. Quem iria cantar?” “Oh, você canta”, disse o Grifo. “Eu esqueci as palavras.” Então eles começaram a dançar solenemente ao redor de Alice, às vezes pisando na ponta dos seus pés quando passavam muito perto dela, e agitando as patas dianteiras para marcar o tempo da música. A Falsa Tartaruga começou, então, a cantar esta música, muito lenta e triste:

“Não dá pra ir mais rápido?” disse a enchova para o caracolTem um delfim atrás de mim, e ele está me empurrando.

Olha só as lagostas e as tartarugas, todo mundo tá andando!O pessoal tá esperando lá na areia — quer vir e juntar-se à

nossa dança?

Você quer, ou não quer, você quer, ou não quer, você quer sejuntar à nossa dança?

Você quer, ou não quer, você quer, ou não quer, você quer sejuntar à nossa dança?

“Você não pode acreditar como vai ser bom,Eles vão nos pegar e nos rodar e vão nos atirar com as lagostas

para o mar!”Mas o caracol respondeu:

“Muito longe, muito longe!” E deu umaolhadela de lado...

Agradeceu o gentil convite mas não, ele não queria se juntar ànossa dança.

Não queria, ou não podia, não queria, ou não podia se juntar ànossa dança!

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Não queria, ou não podia, não queria, ou não podia se juntar ànossa dança!

“E daí que seja longe?” disse a amiga enfastiada,Tem outra praia, você sabe, outra praia do outro lado,

Quanto mais longe da Inglaterra, mais perto se está da França.Não fique nervoso, querido caracol, e sim venha e se junte à

nossa dança.Você quer, ou não quer, você quer, ou não quer, você quer se

juntar à nossa dança?Você quer, ou não quer, você quer, ou não quer, você quer se

juntar à nossa dança?

“Muito obrigada, é uma dança muito interessante para se assistir”, disse Alice bastante aliviada por tudo ter acabado afinal, “e também achei muito curiosa esta canção sobre a enchova!” “Oh, a enchova”, retrucou a Falsa Tartaruga, “elas...você já viu uma delas, não?” “Sim”, respondeu Alice, “eu sempre as vejo no jan...” e calou-se na hora. “Eu não sei onde fica este Jan”, disse a Falsa Tartaruga, “mas, se você as vê lá sempre, é claro que você sabe como elas são.” “Acho que sim”, Alice replicou pensativamente. “Elas têm o rabo na boca...e são cobertas de farinha de rosca.” “Você está errada sobre a farinha de rosca”, disse a Falsa Tartaruga. “Iria se dissolver toda no fundo do mar. Mas elas têm o rabo na boca, e a razão para isso é...”, aqui a Falsa Tartaruga bocejou e esfregou os olhos. “Conte para ela a razão e tudo o mais”, finalmente a Falsa Tartaruga disse para o Grifo. “A razão é”, disse o Grifo, “que elas queriam de qualquer maneira ir dan-çar com as lagostas. Daí elas foram atiradas ao mar. Daí a queda foi muito longa. Daí elas colocaram os rabos nas bocas. Daí elas não conseguiram tirá-los mais. Isso é tudo.” “Obrigada”, disse Alice, “isso é muito interessante. Eu nunca aprendi tanto sobre enchovas antes.” “Eu posso contar mais, se você quiser”, disse o Grifo. “Você sabe porque elas são chamadas de enchovas?” “Eu nunca pensei nisso. Por quê?”

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“Por causa das botas e sapatos”, o Grifo replicou solenemente. Alice estava totalmente confusa. “Por causa das botas e sapatos?”, ela repetiu em um tom interrogativo. “Ora, como você dá lustre em seus sapatos?”, perguntou o Grifo. “Eu quero dizer, o que os faz brilhar?” Alice olhou para os sapatos e pensou um pouco antes de dar sua res-posta. “Acho que são lustrados com uma escova, eu acho. São escovados.” “Botas e sapatos no fundo do mar”, o Grifo continuou com uma voz profunda, “são enchovados. Agora você sabe.” “E do que são feitos os sapatos no mar?”, Alice perguntou com grande curiosidade. “Linguados e enguias, é claro”, o Grifo retrucou um pouco impaciente-mente, “qualquer camarão poderia lhe dizer isso.” “Se eu fosse a enchova”, disse Alice, cujos pensamentos ainda estavam passeando pela canção que ouvira, “teria dito ao delfim...Vá embora, por favor. Não queremos você conosco...” “Mas elas eram obrigadas a aceitá-lo”, a Falsa Tartaruga disse. “Nenhum peixe sensato vai a lugar nenhum sem um delfim.” “Não, de verdade?”, disse Alice em um tom surpreso. “É claro que não”, disse a Falsa Tartaruga. “Por exemplo, se um peixe vem a mim e diz que vai fazer um passeio, e digo logo ‘Com que delfim?’” “Você não está querendo dizer ‘com que fim?’” “Eu quero dizer o que disse”, a Falsa Tartaruga replicou em um tom ofendido. E o Grifo completou, “Venha, agora queremos ouvir algumas das suas aventuras.” “Eu posso contar-lhes minhas aventuras...começando por esta manhã”, disse Alice um pouco timidamente. “Mas não adianta contar desde ontem, porque eu era uma pessoa diferente ontem.” “Explique isso melhor”, disse a Falsa Tartaruga. “Não, não! As aventuras primeiro”, disse o Grifo em um tom impaciente. “Explicações tomam um tempo louco!” Então Alice começou a contar suas aventuras desde a primeira vez que viu o Coelho Branco. Ela estava um pouco nervosa porque logo que começou a falar as duas criaturas sentaram-se bem perto da menina e abriam os ol-hos e e boca de uma maneira tão enorme...mas ela ganhou coragem e seguiu em frente.Os ouvintes estavam em perfeito silêncio até que ela chegou na parte sobre ela recitar Você está velho, Pai Joaquim para a Lagarta, e as

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palavras vindo todas diferentes, e então a Falsa Tartaruga soltou um longo suspiro e disse: “Que curioso!” “Tão curioso quanto poderia ser”, disse o Grifo. “Saiu tudo diferente”, a Falsa Tartaruga repetiu pensativamente. “Eu gos-taria de ouvi-la tentar repetir agora.” “Diga a ela para começar”, e olhou para o Grifo como se pensasse que ele tinha algum tipo de autoridade sobre Alice. “Levante-se e recite Esta é a voz do malandro”, disse o Grifo. “Como as criaturas gostam de mandar aqui, e fazer-nos recitar lições!”, pensou Alice. “Parece que estou na escola, afinal”. Apesar de reclamar, ela levantou-se e começou a recitar, mas sua mente estava tão repleta da Dança da Lagosta, que mal sabia o que estava dizendo; e as palavras saíram real-mente muito estranhas: Essa voz é da lagosta. Eu a ouvi declarar:

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“Você me deixou muito bronzeada, preciso açucarar meus cabelos.”

Como um pato cuidando das sobrancelhas, ela cuida do nariz

Arruma o cinto e os botões, e revira seus sapatos.

Quando a maré está baixa, ela canta uma canção,Vai falando com a voz forte de tubarão,

Mas, quando a maré enche e os tubarões aparecem,Sua voz fica fininha e trêmula.

“É bem diferente do que eu costumava dizer quando era criança”, disse o Grifo. “Bem, eu nunca ouvi isso antes”, disse a Falsa Tartaruga, “mas soa sem pé nem cabeça.” Alice não disse nada, apenas sentou-se com o rosto entre as mãos, pensando se alguma coisa aconteceria de maneira normal novamente. “Eu gostaria que isso fosse ex-plicado”, disse a Falsa Tartaruga.

“Ela não pode explicar nada”, o Grifo retrucou rispidamente. “Siga para o segundo verso.” “Mas e os botões?”, insistiu a Falsa Tartaruga. “Como é que ela poderia tê-los arrumado com o nariz, você sabe?” “Esta é a primeira posição na dança”, Alice respondeu. Mas ela estava tão confusa com a coisa toda que queria mudar logo de assunto. “Siga para o segundo verso”, o Grifo repe-tiu. “Ele começa com ‘Ao passar pelo jardim’”.

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Alice não pensou em desobedecer, embora sentisse que tudo iria dar errado, e começou com uma vozinha trêmula...

Eu passava pelo jardim e vi, com uma olhada de um só olho,Que a Pantera e o Mocho estavam dividindo uma torta;

A Pantera comia a massa, o molho e a carne,Já ao Mocho o prato é que sobrava no trato.

Quando a torta estava finda, ao Mocho, com muita educação,Ofereceu a Pantera uma colher.

Já a Pantera ficou com o garfo e a faca,E assim pôde completar o banquete...

“Qual é a graça de ficar repetindo esta besteira toda?”, a Falsa Tar-taruga interrompeu. “Se você não explica enquanto vai dizendo? Esta é, de longe, a coisa mais confusa que eu já ouvi na vida!” “Sim, acho melhor você parar”, disse o Grifo e Alice estava muito feliz por isso. “Vamos tentar outra figura da Dança da Lagosta?”, continuou o Grifo. “Ou você preferia que a Falsa Tartaruga cantasse outra canção?” “Ah, outra canção, por favor, se a Falsa Tartaruga não se incomodar”, Alice replicou, tão em cima que o Grifo disse, com uma cara de ofendido: “Gosto não se discute! Cante a Sopa de Tartaruga, você poderia, velha amiga?” A Falsa Tartaruga suspirou profundamente, e começou com uma voz entrecortada por soluços, a cantar isso:

Que bela sopa, tão rica e verde,Esperando no caldeirão a ferver!Quem consegue parar de comer?

Sopa do jantar, bela sopa!Sopa do jantar, bela sopa!

Que be....la so....pa!Que be....la so....pa!

Soooo...pa do jantar!Bela, bela sopa!

Que bela sopa, quem liga para um peixe,Carne ou outro prato?

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Quem não daria tudo o que tivesse por essa bela sopa?

Sopa do jantar, bela sopa!Sopa do jantar, bela sopa!

Que be....la so....pa!Que be....la so....pa!

Soooo...pa do jantar!Bela, bela sopa!

“O coro novamente!”, gritou o Grifo, e a Falsa Tartaruga estava justamente começando a repeti-lo quando ouviu-se um grito à distância: O julgamento está começando!. “Vamos”, berrou o Grifo, pegando na mão de Alice e saiu apressado, sem esperar pelo fim da canção. “Que julgamento é esse?”, Alice ofegava enquanto corria. Mas o Grifo apenas respondeu: “Venha!” e correu mais rápido ainda, enquanto cada vez mais longe, trazido pela brisa, ouvia-se o mel-ancólico estribilho:

Soooo...pa do jantar!Bela, bela sopa!

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Capítulo 11Quem roubou as tortas?

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O Rei e a Rainha de Copas estavam sentados em seus tronos quando eles chegaram, com uma multidão em volta...todo tipo de pequenos pássaros e animais além de todas as cartas do baralho: o Valete estava parado na frente deles, acorrentado, com um soldado em cada lado o guardando; e perto do Rei estava o Coelho Branco, com uma trombeta em uma mão e um pergaminho na outra. Bem no meio da corte havia uma mesa, com um grande prato de tortas sobre ela: elas

pareciam tão deliciosas que Alice ficou com fome só de olhá-las e pensou “Tomara que o julgamento termine logo e eles sirvam o lanche!”. Mas parecia que a coisa não tinha chance e então, para passar o tempo, ela começou a olhar para tudo em volta. Alice nunca estivera numa corte de justiça an-tes, mas já tinha lido sobre elas nos livros e estava satisfeita por perceber que sabia o nome de quase tudo em volta. “Aquele é o juiz”, ela disse para si mesma, “por causa da sua grande peruca.” O juiz, aliás, era o Rei, que vestia a coroa sobre a peruca (vejam o frontipício do livro, se vocês quiserem ver como ele fazia isso).

Ele não parecia muito confortável e com certeza não estava muito charmoso também. “E aquele é o lugar destinado aos jurados”, pensou Alice, “e aquelas doze criaturas” (ela foi obrigada a pensar “criaturas”, sabe, porque algumas eram ani-mais e outras eram pássaros), “suponho que sejam os jurados”. Ela repetiu a última palavra duas ou três vezes para si mesma, bastante orgulhosa disso: pois pensava, com razão, que muito poucas meninas da sua idade sabiam o significado dessa pala-vra. Entretanto se ela tivesse dito “membros do júri” também estaria certa. Os doze jurados estavam es-crevendo muito ocupados em suas lousas.

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“O que eles estão fazendo?”, Alice sussurrou para o Grifo. “Eles não tem nada para escrever ali, antes de o julgamento começar.” “Eles estão colocando seus nomes”, o Grifo sussurrou em res-posta, “pois estão com medo de esquecê-los antes do julgamento terminar.” “Que estúpidos!”, Alice começou a falar de alto e bom som, mas logo parou pois o Coelho Branco gritou “Silêncio na corte!” e o Rei colocou seus óculos para olhar ansiosamente em volta, procurando quem estava falando. Alice podia ver, tão bem como se estivesse olhando por cima dos ombros, que todos os jurados tinham escrito “Que estúpidos!” em suas lousas e pôde ver também que um deles estava em dúvida sobre a grafia correta de “estúpidos” e tinha pedido para seu vizinho dizer para ele. “Uma bela bagunça vão estar as lousas até o final do julgamento!”, Alice pensou consigo mesma. Um dos jurados tinha um giz que rangia. Isso, é claro, Alice não agüentava, e então ela deu a volta na corte até chegar atrás dele e na primeira oportunidade arrancou-lhe o giz. Alice fez isso tão rápido que o pobre pequeno jurado (era Bill o Lagarto) não pôde perceber o que tinha acontecido: então, depois de procurar por toda parte ele foi obrigado a escrever com o dedo o resto do dia. É claro que não adiantava nada, pois não deixava marca nenhuma na lousa. “Arauto, leia a acusação!”, ordenou o Rei. Nesse momento, o Coelho Branco assoprou três vezes a trombeta e a seguir desenrolou o pergaminho, lendo o que se segue:

“A Rainha de Copas fez algumas tortas,Em um dia de verão:O Valete de Copas roubou todas elas,E levou embora sem hesitação.”

“Pensem no veredito”, disse o Rei para o júri. “Ainda não, ainda não!”, o Coelho interrompeu com pressa. “Há muito o que fazer antes disso!” “Chame a primeira testemunha”, o Rei disse, e o Coelho Branco assoprou três vezes sua trombeta, chamando a seguir: “Primeira testemunha!”

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A primeira testemunha era o Chapeleiro. Ele chegou com uma xícara de chá em uma das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra. “Eu peço-lhe desculpas sua Majestade”, ele começou, “por trazer estas coisas, mas eu ainda não tinha terminado meu chá quando fui chamado.” “Você deveria ter terminado”, disse o Rei. “Quando você começou?” O Chapeleiro olhou para a Lebre de Março, que o tinha seguido até à corte de braços dados com o Leirão. “Catorze de março, eu acho que era”, ele respondeu. “Quinze”, disse a Lebre de Março. “Dezesseis”, disse o Leirão. “Escrevam isso” o Rei disse para o júri; e os jurados apressaram-se em escrever as três datas em suas lousas, somando-as e che-gando a uma conta maluca que incluía valores em dinheiro. “Tire seu chapéu”, o Rei ordenou ao Chapeleiro. “Não é meu”, respondeu o Chapeleiro. “Roubado!”, o Rei exclamou, virando-se para o júri, que no mesmo instante anotaram o fato. “Eu os tenho para vender”, o Chapeleiro continuou com sua expli-cação. “Nenhum deles é meu. Eu sou um chapeleiro.” Nesse instante a Rainha colocou seus óculos e começou a encarar o Chapeleiro, que empalideceu e inquietou-se. “Faça seu depoimento”, disse o Rei, “e não fique nervoso, ou eu mandarei executá-lo imediatamente.” Essa frase parece que não encorajou a testemunha, que começou a ficar sobre apenas um pé, alternando, olhando inquietamente para a Rainha. Na confusão acabou mordendo um pedaço da sua xícara de chá ao invés de morder seu pão com manteiga. Exatamente nessa hora Alice teve uma curiosa sensação, que a perturbou bastante até que ela percebesse o que se estava passan-do: Alice estava começando a crescer novamente. No início ela achou que deveria levantar-se e deixar a corte, mas depois decidiu ficar enquanto houvesse espaço para ela. “Eu queria que você não me espremesse tanto”, disse o Leirão, que estava sentado ao seu lado. “Eu quase não consigo respirar.” “Eu não posso ajudá-lo. Eu estou crescendo.”

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“Você não tem o direito de crescer aqui”, disse o Leirão. “Não fale bobagens”, respondeu Alice destemidamente, “você sabe que você está crescendo também.” “Sim, mas eu estou crescendo em uma velocidade razoável”, retru-cou o Leirão, “e não desse jeito ridículo.” A seguir ele levantou-se com irritação e atravessou a sala até chegar do outro lado da corte. Todo o tempo a Rainha não tirou os olhos do Chapeleiro e, no instante que o Leirão atravessou a corte, ela ordenou a um dos ofi-ciais da corte: “Tragam-me a lista dos cantores no último concerto!”. O coitado do Chapeleiro começou a tremer tanto que seus sapatos escorregaram dos pés.

“Eu sou um homem pobre”, o Chapeleiro continuou, “e quase tudo começou a cintilar depois que...e a Lebre de Março disse...” “Eu não disse nada”, a Lebre de Março interrompeu rapidamente. “Disse”, replicou o Chapeleiro. “Eu nego isso!”, disse a Lebre de Março. “Ela nega”, disse o Rei. “Deixemos o tema de lado.” “Bem, de qualquer maneira, o Leirão disse...”, e o Chapeleiro contin-uou, olhando ansiosamente ao redor para ver se ele iria negar também; mas o Leirão não negou nada, já que dormia a sono solto. “Depois disso”, continuou o Chapeleiro, “eu cortei algumas fatias de pão...” “Mas o que o Leirão disse?”, um dos jurados perguntou. “Isso eu não lembro”, disse o Chapeleiro. “Você precisa lembrar”, observou o Rei, “ou você será executado.” O coitado do Chapeleiro derrubou sua xícara de chá e o pão com manteiga e colocou-se de joelhos.

“Dê seu depoimento”, o Rei repetiu muito bravo, “ou você será decapitado, esteja você nervoso ou não.” “Eu sou um homem po-bre, Majestade”, o Chapeleiro começou com uma voz trêmula, “e eu nem bem tinha começado a tomar meu chá... há mais ou menos uma semana... e como a fatia de pão estava ficando tão fina...e a cintilação do chá...” “A cintilação do quê?”, per-guntou o Rei. “Ela começa com C”, o Chapeleiro retrucou. “É lógico que cintilação começa com C”, disse o Rei agudamente. “Você acha que eu sou burro? Vá em frente!”

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“Eu sou um homem pobre, Majestade”, ele começou. “Você é um muito pobre orador”, disse o Rei. Nesse instante um dos porcos-da-índia começou a aplaudir, mas imediatamente foi abafado pelos oficiais da corte. (Como essa palavra abafar pode ser difícil para alguns, eu vou explicar como eles fizeram a coisa. Eles tinham um grande saco de lona, com a boca que fechava com cordões: eles enfiaram lá dentro o porco-da-índia, de cabeça para baixo e depois sentaram sobre ele). “Eu estou muito feliz de ver como eles fazem isso”, pensou Alice. “Já tinha lido tantas vezes no jornal, que no fim dos julgamentos...Houve uma tentativa de aplauso, que foi imediatamente abafada pelos oficiais da corte...e nunca tinha entendido direito o que isso significava.” “Se isso é tudo o que você sabe a respeito do caso, pode descer”, continuou o Rei. “Eu não posso descer mais”, disse o Chapeleiro. “Eu já estou no chão, como o senhor pode ver.” “Então pode sentar-se”, replicou o Rei. Outro porco-da-índia começou a aplaudir e também foi abafado. “Bem, com isso se acabam os porcos-da-índia”, pensou Alice. “Vamos ver se agora melhora.” “Eu preferia terminar meu chá.”, disse o Chapeleiro, olhando ansi-osamente para a Rainha, que estava lendo a lista dos cantores. “Você pode ir embora”, disse o Rei. E o Chapeleiro deixou a corte apressadamente, sem nem mesmo esperar para calçar seus sapatos. “...e cortem-lhe a cabeça lá fora”, a Rainha complementou para um dos oficiais; mas o chapeleiro já sumira de vista antes que o oficial chegasse até à porta. “Chamem a próxima testemunha!”, ordenou o Rei. A próxima testemunha era a cozinheira da Duquesa. Ela trazia a pi-menteira na mão, e Alice adivinhou quem era antes mesmo dela entrar na corte, pois as pessoas perto da porta começaram a todas a espirrar. “Faça seu depoimento”, disse o Rei. “Faço não”, disse a cozinheira. O Rei olhou ansiosamente para o Coelho Branco, que disse, em voz baixa: “Vossa Majestade deve o senhor mesmo submeter essa testemunha ao interrogatório.”

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“Bem, se é necessário, eu faço”, o Rei respondeu com ar melancóli-co, após cruzar os braços e franzir as sombrancelhas até que seus olhos quase sumissem. Ele perguntou então, com uma voz profunda: “De que são feitas as tortas?” “Principalmente de pimenta”, respondeu a cozinheira. “Melado”, disse uma voz sonolenta atrás dela. “Prendam esse Leirão!”, a Rainha gritou esganiçada! “Retirem esse Leirão da corte! Sufoquem esse Leirão! Abafem! Cortem-lhe os bigodes!”

Começou então a maior confusão, e até que eles consegui-ssem expulsar o Leirão e todos se sentassem novamente, a cozinheira sumira. “Não importa!”, disse o Rei, com um ar de alívio. “Chamem a próxima testemunha”. Ele completou, à meia-voz para a Rainha, “Realmente, minha querida, você precisa interrogar a próxima testemunha. Isso tudo está me dando a maior dor de cabeça!”

Alice estava olhando para o Coelho Branco, que remexia na lista de testemunhas, curiosa para saber quem seria a próxima, “pois até agora ainda não consegui entender nada do caso”. Imaginem sua surpresa quando o Coelho Branco leu bem alto, com sua vozinha esganiçada o nome “Alice!”.

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Capítulo 12O depoimento de Alice

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“Presente”, gritou Alice, es-quecendo na excitação do mo-mento o quanto tinha crescido nos últimos minutos. Ela saltou com tamanha pressa que acabou virando o banco do júri com a barra da saia, deixando os jurados de cabeça para baixo, esperneando. Alice lembrou-se muito do aquário de peixinhos dourados que tinha virado acidentalmente na semana anterior. “Oh, eu peço mil perdões!”, ela exclamou consternada, e começou a levantá-los o mais rapidamente que podia, pois o acidente com os peixinhos ainda estava em sua mente e ela estava com a sensação de que se não os recolocasse nos seus lugares eles poderiam mor-rer.

“A audiência não poderá prosseguir”, disse o Rei, com uma voz grave, “até que os jurados estejam de volta a seus lugares... todos”, ele repetiu com grande ênfase, olhando duramente para Alice ao falar. Alice olhou para o banco dos jura-dos e percebeu que, em sua pressa, tinha colocado o Lagarto de cabeça para baixo e a pobre coisinha estava lá, agitando melancolicamente a cauda, incapaz de se mover. Ela apan-hou-o novamente e colocou o pobre de cabeça para cima. “Não que isso mude alguma coisa”, disse para si mesma, “eu penso que de uma maneira ou de outra ele tem a mesma utilidade.” Tão logo o júri recuperou-se do choque e que suas lousas e lápis

foram encontrados e devolvidos, eles senta-ram-se e começaram a trabalhar diligentemente

no relato do acidente. Todos, exceto o Lagarto, que pare-cia muito chocado para fazer outra coisa que ficar com a boca

aberta, olhando para o teto da corte com os olhos esgazeados. “Que você sabe a respeito do caso?”, o Rei perguntou a Alice. “Nada”, respondeu Alice. “Nada de nada?”, insistiu o Rei. “Nada de nada”, disse Alice. “Isso é muito importante”, disse o Rei, voltando-se para o júri. Os jurados estavam começando a escrever em suas lousas quando o Coelho interrompeu: “Desimportante, é o que Vossa Majestade quer dizer, claro”, ele disse, em um tom respeitoso, mas franzindo o cenho e fazendo caretas. “Desimportante, é claro, foi o que eu quis dizer”, o Rei retomou rapidamente,

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e continuou falando consigo mesmo a meia-voz “importante... desimpor-tante... desimportante... importante...” como se estivesse procurando qual palavra soava melhor. Alguns dos jurados escreveram “importante” e alguns “desimportante”. Alice pôde ver porque estava perto o suficiente para ver as lousas. “Mas isso não tem a menor importância”, ela pensou consigo mesma.” Nesse momento o Rei, que estivera ocupado por algum tempo escrev-endo alguma coisa em um caderno de anotações, gritou: “Silêncio!” e leu o que estava escrito. “Artigo Quarenta e dois. Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio de altura devem abandonar o tribunal.” Todo mundo olhou para Alice. “Eu não tenho mais de um quilômetro e meio”, disse Alice. “Tem sim”, disse o Rei. “Quase três quilômetros”, completou a Rainha. “Bem, de qualquer jeito, não vou embora”, disse Alice. “Além do mais, esse artigo não é legal, pois vocês acabaram de inventá-lo.” “É o artigo mais antigo do código”, retrucou o Rei. “Então deveria ser o Número Um”, argumentou Alice. O Rei empalideceu, fechando seu livro de notas rapidamente. “Façam seu veredito”, o Rei ordenou ao júri, com uma voz baixa e trêmula. “Por favor, Vossa Majestade, ainda há evidências a serem examinadas”, disse o Coelho Branco, levantando-se apressado. “Esse papel acabou de ser descoberto.” “O que há nele?”, perguntou a Rainha. “Eu ainda não abri”, respondeu o Coelho Branco, “mas parece ser uma carta, escrita pelo prisioneiro para...para alguém.” “Para quem ela é endereçada?”, perguntou alguém do júri. “Não está endereçada a ninguém”, disse o Coelho Branco. “Na verdade, não tem nada escrito do lado de fora.” Ele foi abrindo o papel enquanto falava e completou: “Não é uma carta, afinal, são apenas versos.” “E é a letra do prisioneiro?”, perguntou outro jurado. “Não, não é”, respondeu o Coelho Branco, “e isso é o mais estranho.” (Os jurados pareciam confusos.) “Talvez ele tenha imitado a letra de outra pessoa”, disse o Rei. (O júri ficou alegre novamente.) “Por favor, Vossa Majestade”, pediu o Valete. “Eu não escrevi isso e nin-

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guém pode provar que fui eu: não há nenhum nome assinado no final.” “Se você não assinou”, disse o Rei, “apenas torna a situação pior para você. Com certeza você estava fazendo alguma coisa errada, senão teria assinado seu nome como um homem honesto.” Houve um aplauso geral: aquilo fora a primeira coisa inteligente que o Rei tinha falado naquele dia. “Isso prova sua culpa, logicamente”, continuou a Rainha, “portanto, cortem-lhe a...” “Isso não prova coisa alguma”, gritou Alice. “Vocês nem ao menos sabem o que dizem os versos!” “Leia-os”, ordenou o Rei. O Coelho Branco colocou seus óculos. “Por onde devo começar, se Vossa Majestade permite?”, ele perguntou. “Comece pelo começo”, disse o Rei com muita gravidade, “e siga até o fim: daí pare.” Fez-se um silêncio mortal na corte enquanto o Coelho Branco lia estes versos:

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Eles falaram que você chegou perto delaE de mim para ela falou

Ela achou que eu era um bom caráterMas não me deixou nadar ainda assim.

Ele deu sua palavra que não tinha sido eu(E todos sabemos, isso é verdade)

Se ela quisesse mesmo saberO que aconteceria com você?

Eu dei para ele um, eles lhe deram então dois,Você para nós deu três ou maisEles todos devolveram os seusMas todos eram meus antes

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Se houvesse chance de ela ou euEstarmos envolvidos nesse problemaEle pediria a vocês para libertá-los

E fomos libertados.

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Eu achava que era o que tinha sido(Antes de ela dar seu estrilo)Um obstáculo que apareceu

Entre ele, nós e aquilo.

Não o deixe ver que ela a eles tem amadoPara sempre deve ser

Um segredo, de todos mantido a parteEntre você e eu.

“Esta é a prova mais importante que já ouvimos aqui”, disse o Rei es-fregando as mãos, “portanto, vamos agora aos jurados...” “Se algum deles for capaz de entender os versos”, disse Alice (a menina tinha crescido tanto nos últimos minutos que não estava com medo nen-hum de interromper o Rei), “eu lhe darei seis pence. Eu acho que não há um mínimo de sentido em nada.” Todo o júri escreveu, em suas lousas. “Ela acha que não há um mínimo de sentido em nada”. Mas nenhum deles se habilitou a explicar os versos. “Se não há sentido neles”, disse o Rei, “isso livra o mundo de um incômodo, você sabe, não precisamos procurar um. E eu não sei não”, ele continuou des-dobrando o papel sobre os joelhos, olhando para ele de rabo de olho, “eu até diria que há algum sentido neles, afinal de contas ‘...Mas disse que eu não sei nadar...’ Você não sabe nadar, sabe?”, ele perguntou virando-se para o Valete. O Valete balançou a cabeça tristemente. “Eu pareço com alguém que sabe nadar?”, ele respondeu (Certamente que não, pois ele era uma carta de baralho feita de papelão.) “Tudo bem por enquanto”, disse o Rei, que continuou a falar sobre os versos para si mesmo: “E isso, nós sabemos, é verdade...isso é o júri, claro...Porém, se ela quisesse ir ao fim...isso deve ser a Rainha...Que seria de ti, saber quem há de?...O quê, afinal?...Deram duas a ele, a ela dei uma...ora,

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isso deve ser o que ele fez com as tortas, certo?” “Mas os versos continuam com Todas voltaram, não faltou nenhuma”, disse Alice. “Certo, lá estão elas!”, disse o Rei com ar de triunfo, apontando para as tortas sobre a mesa. Nada poderia ser mais claro que isso. Depois vem...Antes dela dar seu estrilo... você nunca deu estrilo algum, não é, minha querida?“, ele disse para a Rainha. “Nunca!”, respondeu a Rainha furiosamente, jogando um tinteiro em cima do Lagarto enquanto falava. (O infeliz pequeno Bill tinha parado de escrever na lousa com o dedo, pois percebera que de nada adiantava; mas depois do ataque começou a escrever novamente usando a tinta que lhe escorria pela cara, enquanto não secava.) “Então suas palavras têm estilo”, disse o Rei olhando para o tribunal com um sorriso. Havia um silêncio de morte. “É um trocadilho!”, o Rei completou com raiva, e então todo mindo começou a rir. “Deixemos o júri considerar seu veredito”, disse o Rei, mais ou menos pela vigésima vez no dia. “Não, não!”, disse a Rainha. “A sentença primeiro...depois o veredito.” “Que disparate!”, disse Alice em voz alta. “Que idéia imbecil esta da sentença antes!” “Dobre sua língua”, gritou a Rainha, vermelha de raiva. “Não dobro não!”, respondeu Alice. “Cortem-lhe a cabeça!”, a Rainha berrou o mais alto que pôde. Ninguém se mexeu. “Quem se importa com você?”, disse Alice (que acabara de voltar ao seu tamanho normal). Vocês não passam de um baralho de cartas!” Nesse instante todo o baralho voou no ar, começando depois a cair sobre Alice; ela deu um gritinho, meio com medo, meio com raiva, tentando rebatê-las. A menina achou-se então deitada no barranco com a cabeça no colo da irmã, que gentilmente afastava algumas folhas secas que tinham caído da árvore sobre elas. “Acorde, Alice querida!!”, disse a irmã. “Nossa, que sono pesado você teve!” “Puxa, que sonho estranho que eu tive!”, disse Alice. Então ela contou para a irmã, tão bem quanto pôde lembrar, as estranhas Aventuras que vocês acabaram de ler. Então, depois que terminou, sua irmã deu-lhe um beijo e disse “Foi um sonho curioso, querida, certamente; mas agora apresse-se, é hora do chá: está ficando tarde.” Alice levantou-se e saiu correndo, pensando enquanto corria que aquele tinha mesmo sido um sonho maravilhoso.

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Mas sua irmã ficou lá mesmo, com a cabeça entre as mãos, pensando na pequena Alice e em suas maravilhosas Aventuras, até que ela mesma começou a sonhar e este foi seu sonho... Primeiro, ela sonhou com a pequena Alice: mais uma vez sua mãozinhas estavam pousadas nos joelhos e seus olhos brilhantes olhavam para ela...ela podia até mesmo ouvir os diferentes tons da sua vozinha e ver aquele jeito só dela de atirar a cabeça para trás e afastar as mechas de cabelo que sempre teimavam em lhe cair sobre os olhos...e enquanto escutava, ou parecia que escutava, todo o espaço en volta dela ia ficando repleto daque-las estranhas criaturinhas do sonho da irmãzinha. A grama farfalhava sob os pés do apressado Coelho Branco...o Rato assustado espalhava água para fora da lagoa...ela podia ouvir o tilintar das xícaras de chá enquanto a Lebre de Março e seus amigos partilhavam da sua refeição que nunca acabava, e a vozinha aguda da Rainha ordenando a execução dos seus infelizes convidados...mais uma vez o bebê-porco estava espirrando no colo da Duquesa, enquanto pratos e travessas se espati-favam em volta...e mais uma vez o guincho do Grifo, o ranger do giz do Lagarto e os tais aplausos sufocados dos porcos-da-índia enchiam o ar, misturados com os soluços distantes da miserável Falsa Tartaruga. Sentada, com os olhos fechados, quase acreditou estar ela mesma no País das Maravilhas, mesmo sabendo que quando abrisse os olhos nova-mente tudo voltaria a ser a chata realidade de sempre...a grama se mexeria apenas com o vento e a lagoa estaria se movimentando apenas com os juncos...o tilintar da xícaras novamente seria o badalar dos sinos pen-durados nos pescoços dos carneiros...os gritos agudos da Rainha seriam apenas os berros do pastor...o espirro do bebê, o guincho do grifo, e todas as outras coisas esquisitas iriam transformar-se (ela sabia) no confuso clamor da vida no campo...assim como o mugir do gado à distância iria tomar lugar dos pesados soluços da Falsa Tartaruga. Finalmente, ela imaginou como sua irmãzinha, no futuro, transformar-se-ia em uma mulher adulta: e como ela iria manter, através da sua matu-ridade o mesmo coração simples e afetuoso da sua infância: como também ela sempre estaria cercada de criancinhas e faria os olhos delas brilharem com muitas histórias estranhas, talvez até mesmo com o sonho do País das Maravilhas de há muito tempo atrás; como ela adoraria compartilhar com suas tristezas simples e alegrar-se com suas brincadeiras ingênuas, lembrando-se da sua própria infância e daqueles felizes dias de verão.

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Produção EditorialThaissa Lages do Carmo

IlustraçõesMarcus Pedro de Barros

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confortavelmente no chão, um cotovelo no tapete e o queixo na mão, para observar os gatinhos. “Diga-me, Dinah, você virou Humpty

Durnptyi” Acho que sim... Mas não deve mencionar isso com seus amigos por enquanto, porque não tenho certeza.”

“A propósito, Kitty, se você tivesse estado realmente comigo no meu sonho, de uma coisa teria gostado muito: recitaram para mim

uma quantidade tão grande de poesia, todas sobre peixes! Amanhã de manhã você vai ter um verdadeiro regalo. Durante todo o tempo em que estiver tomando seu café da manhã, vou recitar ‘A Morsa e

o Carpinteiro’; assim você poderá fazer de conta que está comendo ostras, querida!”

“Agora, Kitty, vamos pensar bem quem foi que sonhou tudo isso. É uma questão séria, minha querida, e você não devia ficar lambendo

a pata desse jeito... Como se a Dinah não tivesse lhe dado banho esta manhã! Veja bem, Kitty, ou fui eu ou foi o Rei Vermelho. Ele fez

parte do meu sonho, é claro ... mas nesse caso eu fiz parte do sonho dele também! Terá sido o Rei Vermelho, Kitty? Você era a mulher dele,

minha cara, portanto deveria saber ... Oh, Kitty, me ajude a resolver isto! Tenho certeza de que sua pata pode es-

perar!” Mas a implicante gatinha só fez começar com a outra pata, fingindo não ter ouvido a pergunta.

Quem você pensa que sonhou?

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Capítulo 12Quem Sonhou?

Vossa Vermelha Majestade não devia ronronar tão alto”, disse Alice, esfregando os olhos e dirigindo-se à gatinha de maneira respeitosa, mas com certa severidade. “Você me acordou de um ... oh, um sonho

tão lindo! E esteve junto comigo, Kitty... Por todo o mundo do Es-pelho. Sabia disso, querida?”

Os gatinhos têm o hábito muito inconveniente (Alice comentara uma vez) de sempre ronronar, seja o que for que se lhes diga. “Se pelo

menos só ronronassem para dizer ‘sim’ e miassem para dizer ‘não’, ou alguma regra desse gênero”, ela dissera, “seria possível manter uma

conversa! Mas como se pode conversar com uma pessoa se ela diz sempre a mesma coisa?”!

Nessa ocasião a gatinha só ronronou - e era impossível saber se isso significava “sim” ou “não”.

Em seguida Alice procurou entre as peças de xadrez sobre a mesa até encontrar a Rainha Vermelha. Então ajoelhou-se no tapete junto à

lareira, e pôs a gatinha e a Rainha face a face. “Agora, Kitry!” ex-clamou triunfante, batendo palmas: “Confesse que foi nela que você

se transformou!” (“Mas ela não olhava para a Rainha”, disse, quando estava explicando

a coisa mais tarde para sua irmã; “virara a cabeça para outro lado, e fingia que não a via: mas pareceu um pouco envergonhada, de modo

que acho que ela deve ter sido a Rainha Vermelha.”) “Aprume-se um pouco mais, querida!” Alice exclamou com uma risada

alegre. “E faça uma reverência enquanto pensa no que... no que ron-ronar. Poupa tempo, lembre-se!” E levantou a gatinha e deu-lhe um

beijinho, “só em honra ao fato de ter sido uma Rainha Vermelha”. “Snowdrop, minha bichinha” continuou, olhando por sobre o ombro

para a Gatinha Branca, que ainda estava se submetendo paciente-mente à sua toalete, “quando será que a Dinah vai terminar o banho

de Vossa Branca Majestade? Devia haver alguma razão para você estar tão desmazelada no meu sonho... Dinah! Sabe que está es-

fregando uma Rainha Branca? Realmente, que falta de respeito da sua parte!”

“E que será que a Dinah virou?” ia ela tagarelando, espichando-se

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Capítulo 11Despertar

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... E afinal de contas era mesmo uma gatinha.

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Capítulo 10Sacudida

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Arrancou-a da mesa enquanto falava e sacudiu-a para trás e para frente com toda a força.

A Rainha Vermelha não ofereceu nenhuma resistência; só seu rosto foi ficando muito pequeno, e os olhos ficando grandes

e verdes, e cada vez mais, enquanto Alice continuava a sacudi-la, ia ficando menor e mais gordinha... E mais macia ...

E mais redonda... E...

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de juncos com fogos de artifício na ponta. Quanto às garrafas, cada uma se apossou de um par de pratos, ajeitando-os rapidamente como se fossem asas, e assim, usando garfos como pernas, saíram esvoaçando para todo lado - “e se pareciam muito com pássaros”, Alice pensou consigo mesma,

tanto quanto isso era possível na terrível confusão que se estava armando. Nesse momento ela ouviu uma risada rouca ao seu lado e virou-se para

ver o que estava se passando com a Rainha Branca; mas em vez da Rainha Branca viu a perna de carneiro sentada na cadeira. “Aqui estou!”, gritou uma voz da terrina de sopa, e Alice se virou de novo a tempo só de ver o

rosto largo e bonachão da Rainha sorrindo para ela por um segundo sobre a borda da terrina, antes que ela desaparecesse na sopa.”

Não havia um minuto a perder. Vários convidados já estavam estendidos nos pratos, e a concha da sopa estava caminhando pela mesa em direção à cadeira

de Alice, acenando- lhe impacientemente para que saísse do seu caminho. “Não posso mais suportar isto!” ela gritou, dando um pulo e agarrando a

toalha da mesa com as duas mãos: um bom puxão, e travessas, pratos, convidados e velas vieram abaixo num estrondo e se amontoaram no chão.

“Quanto a você”, ela continuou, virando-se enfurecida para a Rainha Vermel-ha, a quem considerava a causa de todo aquele transtorno - mas a Rainha

já não estava ao seu lado: reduzira-se subitamente ao tamanho de uma bonequinha, e agora estava sobre a mesa, correndo alegremente em voltas

e mais voltas à procura do seu xale, que se arrastava atrás dela. Em qualquer outra ocasião Alice teria ficado surpresa com isso, mas agora estava

alvoroçada demais para se surpreender com qualquer coisa. “Quanto a você”, repetiu, agarrando a criaturinha como se saltasse sobre uma garrafa que acabara

de aparecer sobre a mesa, “vou sacudi-la até que vire uma gatinha, ah, se VOU!”

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É fácil, porque lá já estava antes. “Traga-o cá, deixe-me provar!”

É fácil pôr tal prato sobre a mesa. “Queira o prato destapar!”

Ah, não sou capaz de tamanha proeza! Porque como cola a tampa ele segura:

Está agarrada ao prato, não quer se desentalar Qual seria a tarefa menos dura,

Destampar o peixe ou o enigma decifrar?

“Pense um minuto, depois tente adivinhar”, disse a Rainha Vermelha. “En-quanto isso, vamos beber à sua saúde... à saúde da Rainha Alice!” gritou a

plenos pulmões, e todos os convidados começaram a beber imediatamente, e de maneira muito esquisita: alguns punham os copos sobre as cabeças como apagadores.!” e bebiam tudo que lhes escorria pelo rosto ... outros

emborcavam as garrafas e tomavam o vinho que escorria pelas beiradas da mesa ... e três deles (que pareciam cangurus) passaram a mão no prato de

carneiro assado e começaram a lamber avidamente o molho, “exatamente como porcos num cacho!” pensou Alice!

“Deve agradecer os cumprimentos com um discurso caprichado”, disse a Rainha Vermelha, franzindo o cenho para Alice.

“Temos de apoiá-la, a Rainha Branca cochichou quando Alice se levantava para fazê-lo, muito obedientemente, mas um pouco amedrontada.

“Muito obrigada”, ela sussurrou de volta, “mas posso me sair muito bem sem isso.”“Isso não seria o correto em absoluto”, disse a Rainha Vermelha, muito

categoricamente. Assim, Alice tentou se submeter àquilo de bom grado. (“E elas empurraram tanto!” ela disse mais tarde, quando contava para a

irmã a história do banquete. “Parecia que queriam me achatar!”)De fato, foi bastante difícil para Alice se manter em seu lugar enquanto fa-zia seu discurso: as duas Rainhas a empurravam tanto, uma de cada lado,

que quase a fizeram subir pelos ares. “Ergo-me para agradecer... “ Alice começou - e realmente se ergueu enquanto falava, vários centímetros, mas

se segurou na beirada da mesa e conseguiu se puxar para baixo de novo. “Tome muito cuidado!” berrou a Rainha Branca, agarrando o cabelo de Alice

com as ambas as mãos. “Alguma coisa vai acontecer!”Então (como Alice descreveu mais tarde) todo tipo de coisas aconteceu ao

mesmo tempo. As velas cresceram todas até o teto, parecendo um canteiro

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ice... Pudim. Levem o pudim!” e os garçons o levaram tão depressa que Alice não pôde retribuir sua mesura.

Seja como for, não entendia por que a Rainha Vermelha devia ser a única a dar ordens, e assim, para fazer um teste, chamou “Garçom! Traga o pudim

de volta!” e num segundo lá estava ele de novo, como num passe de mágica. Era tão grande que não pôde deixar de se sentir um pouco embaraçada com ele, como havia ficado com o carneiro. Contudo, venceu seu embaraço e, com

grande esforço, cortou uma fatia e a serviu à Rainha Vermelha. “Que impertinência!” disse o Pudim. “Será que gostaria se eu cortasse uma

fatia de você, sua criatura?” Falava com uma voz grossa, untuosa, e Alice não teve o que dizer em res-

posta. Só conseguiu ficar imóvel e olhar para ele boquiaberta. “Faça um comentário!” disse a Rainha Vermelha.

“Ê absurdo deixar toda a conversa nas mãos do pudim!” “Sabe, recitaram-me tanta poesia hoje”, Alice começou, um pouco amedrontada ao constatar

que, no instante em que abrira os lábios, fizera-se silêncio absoluto, e todos os olhos haviam se fixado nela, “e é uma coisa muito curiosa, acho ...

todos os poemas tratavam de peixes de algum modo. Sabe por que gostam tanto de peixes por aqui?”

Dirigiu-se à Rainha Vermelha, cuja resposta fugiu um pouco à questão. “Quanto aos peixes”, disse ela, de maneira muito lenta e solene, pondo a

boca junto ao ouvido de Alice, “Sua Majestade Branca sabe uma linda adi-vinhação... toda em versos... toda sobre peixes. Quer que ela a recite?” “Sua Majestade Vermelha é muito gentil ao mencionar isso”, a Rainha

Branca murmurou no outro ouvido de Alice, numa voz que parecia o arrulho de um pombo. “Seria um prazer tão grande! Posso?”

“Por favor”, disse Alice, muito polidamente. A Rainha Branca riu encantada e deu um tapinha na bochecha de Alice.

Em seguida começou:

“Primeiro é preciso o peixe pescar.” É fácil: até um bebê, acho, poderia apanhá-lo.

“Depois é preciso o peixe comprar.” É fácil: um pêru, acho, poderia comprá-lo.

“Agora, trate de o peixe cozinhar!” É fácil, e só vai levar dois instantes. “Ponha-o numa travessa circular!”

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Este privilégio ímpar de jantar e tomar chá Com a Rainha Vermelha, a Branca... E eu!”

Então o coro recomeçou:

De melado, tinta e grude encham todos os copos Ou de qualquer outra delícia que lhes agradar, À cidra misturem areia, farofa ou lã em flocos,

E noventa vezes nove vivas à Rainha Alice vamos dar.

“Noventa vezes nove!” Alice repetiu, desalentada. “Oh, isso não vai acabar nunca! Eu devia entrar logo...” e fez-se um silêncio pesado no instante em

que ela apareceu. Alice deu uma olhada nervosamente para a mesa, enquanto penetrava no

grande salão, e percebeu que havia cerca de cinqüenta convidados, de todos os tipos: alguns eram animais, outras aves, e havia até algumas flores

entre eles. “Fico contente que tenham vindo sem esperar convite”, pensou. “Eu nunca teria sabido quais eram as pessoas certas a convidar!”

Havia três cadeiras na cabeceira da mesa; as Rainhas Vermelha e Branca já ocupavam duas delas, mas a do meio estava vazia. Alice sentou-se ali, bastante contrafeita com o silêncio, e ansiosa para que alguém falasse.

Por fim a Rainha Vermelha começou. “Perdeu a sopa e o peixe”, disse. “Sirvam o assado!” E os garçons puseram uma perna de carneiro diante de Alice,

que a contemplou bastante aflita, pois nunca tivera de trinchar uma perna de carneiro antes.

“Parece um pouquinho embaraçada; permita que lhe apresente esta perna de carneiro”, disse a Rainha Vermelha. “Alice... Carneiro; Carneiro... Alice.” A

perna de carneiro se levantou no prato e fez uma pequena mesura para Alice, que a retribuiu, sem saber se ficava com medo ou achava graça. “Posso lhes servir uma fatia?” perguntou, pegando a faca e o garfo e

olhando de uma Rainha para a outra. “Ê claro que não”, respondeu a Rainha Vermelha, peremptória. “Fere a

etiqueta cortar alguém a quem você foi apresentada. Levem o assado!” E os garçons o levaram e trouxeram um grande pudim de passas no lugar.

“Não quero ser apresentada ao pudim, por favor”, Alice se apressou a dizer, “ou não vamos ter nada para jantar. Posso lhes servir um pouco?”

Mas a Rainha Vermelha pareceu aborrecida e resmungou: “Pudim... Alice; Al-

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noso. Alice virou-se, pronta para criticar meio mundo. “Onde está o criado cuja

obrigação é atender à porta?”, começou, zangada. “Que porta?” perguntou o Sapo.

Alice quase sapateou de irritação com a voz arrastada com que ele falava. “Esta porta, é claro.”

O Sapo contemplou a porta com seus olhos grandes e lerdos por um minuto, depois chegou mais perto e esfregou-a com o polegar, como se es-

tivesse experimentando para ver se a tinta iria sair; depois olhou para Alice. “Atender à porta?” disse. “Ela vem pedindo o quê?”

Era tão rouco que Alice mal podia ouvi-lo. “Não sei o que quer dizer”, falou.

“Eu falar inglês, não falar?” o Sapo continuou. “Ou você é surda? O que a porta lhe pediu?”

“Nada!” disse Alice, impaciente. “Andei batendo nela!” “Não devia ter feito isso... não devia...” murmurou o Sapo. “Ela se irrita,

sabe.” Adiantou-se então e deu um chute na porta com um de seus grandes pés. “Deixe ela em paz”, disse ofegante, enquanto coxeava de volta para sua

árvore, “e ela deixará você em paz.”Nesse instante a porta se abriu com violência e ouvi-se uma voz estridente cantando:

Ao mundo do Espelho Alice então proclamou: Coroa na cabeça e cetro na mão, agora convido

Todas as criaturas que o Espelho jamais espelhou A cear com a Rainha Vermelha, a Branca, e comigo!

E centenas de vozes se uniram no refrão: Encham pois suas taças, duas se preciso for,

Salpiquem a mesa toda com flores a desabrochar, Ponham gatos no café, camundongos no licor,

E trinta vezes três vivas à Rainha Alice vamos dar!

Seguiu-se um alarido de congratulações, e Alice pensou: “Trinta vezes três são noventa. Será que alguém está contando?” Um minuto depois fez-se

silêncio novamente, e a mesma voz aguda cantou outra estrofe:

“Criaturas do Espelho”, Alice chama, “venham cá! É uma honra, uma graça que a sorte lhes concedeu,

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Dorme, dorme, senhora, sua boa sesta, Há tempo de sobra até a hora da festa. Depois as três Rainhas irão se esbaldar

E pela noite adentro alegres bailar!

“Agora você já sabe a letra”, acrescentou, pousando a cabeça no outro ombro de Alice. “Cante-a toda para mim agora. Estou ficando com sono também.” E num instante as duas Rainhas estavam dormindo profunda-

mente, e roncando alto. “O que posso fazer?” exclamou Alice, olhando em volta atônita, quando

primeiro uma cabeça redonda, depois a outra rolaram dos seus ombros e pousaram como um bloco pesado no seu colo. “Acho que. jamais aconteceu

antes de alguém ter de tomar conta de duas Rainhas adormecidas ao mesmo tempo! Não, não em toda a História da Inglaterra... não teria sido possível, porque nunca houve mais de uma Rainha ao mesmo

tempo. Levantem-se, suas coisas pesadas!”, continuou, num tom impa-ciente; mas só recebeu por resposta um ronco suave .

O ronco tornava-se mais distinto a cada minuto, soando cada vez mais como uma melodia. Por fim ela conseguiu entender até as palavras, e ouviu tão sofregamente que, quando as duas grandes cabeças sumiram do seu

colo, mal deu por falta delas. Estava parada diante de uma porta em arco, sobre a qual se liam as

palavras RAINHA ALICE em letras grandes, e de cada lado do arco havia uma campainha; numa estava escrito “Campainha das Visitas” e na outra,

“Campainha dos Criados”. “Vou esperar que a canção termine”, pensou Alice, “e depois tocar a ... que

campainha devo tocar?” continuou, muito confusa com os nomes. “Não sou uma visita, e não sou uma criada. Deveria haver uma com a inscrição ‘Rainha’...” Nesse exato momento a porta se abriu um pouquinho; uma criatura com um

bico comprido pôs a cabeça de fora por um instante e disse: “Não se pode entrar até a semana após a próxima!” - e fechou novamente a porta, com

estrondo. Alice bateu e tocou em vão por um longo tempo, mas finalmente um Sapo muito velho, que estava sentado sob uma árvore, levantou-se e veio cox-

eando na sua direção: usava uma roupa de um amarelo vivo e calçava botas enormes.

“Qual é o problema agora?” perguntou o Sapo num sussurro rouco e caver-

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veio até a minha porta, com um saca-rolha na mão...” “O que queria?” indagou a Rainha Vermelha.

“Disse que iria entrar”, a Rainha Branca continuou “porque estava procuran-do um hipopótamo. Ora, acontece que não havia tal coisa na casa, naquela

manhã.“Geralmente há?” Alice perguntou, espantada.“Bem, só nas quintas-feiras”, disse a Rainha.

“Sei para que ele foi”, disse Alice; “queria castigar o peixe porque ... “Nessa altura a Rainha Branca recomeçou: “Foi uma tal tempestade, nin-

guém poderia imaginar!” (“Ela nunca conseguiu, sabe?” disse a Rainha Verrnelha.) ‘E parte do telhado desabou, e caíram tantos trovões lá dentro...

E ficaram rolando pela sala aos borbotões... e batendo nas mesas e nas coisas... Até que fiquei com tanto medo que não conseguia lembrar meu

próprio nome!”Alice pensou consigo: “Nunca tentaria lembrar meu nome no meio de um

acidente! De que adiantaria. mas não falou isso alto, temendo ferir os sentimentos da pobre Rainha.

“Deve desculpá-la, Majestade”, a Rainha Vermelha disse a Alice, tomando uma das mãos da Rainha Branca na sua e dando-lhe palmadinhas gentis:

“ela tem intenção, mas não consegue deixar de dizer tolices de modo geral.”A Rainha Branca olhou timidamente para Alice que sentiu que devia dizer

alguma coisa delicada, mas realmente não conseguiu pensar em nada na hora. “Ela nunca teve realmente uma boa educação, a Rainha Vermelha prosseguiu,

“mas tem um bom gênio espantoso! Dê-lhe uns tapinhas na cabeça, e veja gosta!”Mas Alice não tinha coragem para tanto.

“Um pequeno agrado... e prender-lhe os cabelos em papelotes... isso faz maravilhas com ela...!

A Rainha Branca deu um suspiro profundo e pousou a cabeça no ombro de Alice. “Estou com tanto sono!” gemeu.

“Está cansada, coitadinha!” disse a Rainha Vermelha. “Alise seus cabelos... empreste-lhe sua touca de dormir... e cante-lhe uma cantiga de ninar relax-

ante.” “Não tenho uma touca de dormir comigo”, disse Alice, tentando obedecer à

primeira instrução; “e não sei nenhuma cantiga de ninar relaxante.” “Nesse caso, eu mesma tenho de fazê-lo”, disse a Rainha Vermelha, e

começou

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país”, comentou, “os dias da semana vêm um de cada vez.”

A Rainha Vermelha disse: “É uma maneira lastimável de fazer as coisas. Aqui, geral-mente os dias e as noites vêm em dois ou

três por vez, e no inverno de vez em quando temos até cinco noites juntas... para

aquecer mais, sabe.” “Então cinco noites são mais quentes que

uma?” Alice se arriscou a perguntar. “Cinco vezes mais quentes, é claro.”

“Mas deviam ser cinco vezes mais frias, pela mesma regra...”

“Precisamente!” exclamou a Rainha Ver-melha. “Cinco vezes mais quentes e cinco

vezes mais frias... assim como eu sou cinco vezes mais rica que você e cinco vezes mais

inteligente’” Alice suspirou e desistiu. “É exatamente como um enigma sem resposta!” pensou.

“Humpty Dumpty viu isso também”, a Rainha Branca continuou em voz baixa, mais como se estivesse falando consigo mesma. “Ele

“Mas quem disse que era?” retru-cou a Rainha Vermelha.

Alice achou que dessa vez tinha uma maneira de e safar do aperto. “Se me disserem de que língua ‘fiddle-de-dee’ é, eu lhes direi a palavra em francês para

isso!” exclamou triunfante. Mas a Rainha Vermelha emper-

tigou-se toda e disse: “Rainhas nunca barganham.”

“Gostaria que Rainhas nunca fiz-essem perguntas”, Alice pensou

consigo. “Não vamos discutir”, disse a

Rainha Branca, aflita. “Qual é a causa do relâmpago?”

“A causa do relâmpago”, Alice respondeu muito decidida, pois dessa vez se sentia totalmente segura, “é o trovão... não, não!”

emendou-se rapidamente. “Quis dizer o contrário.”

“É tarde demais para corrigir”, disse a Rainha Vermelha; “depois

que se diz uma coisa, ela está dita, e você tem de arcar com as

conseqüências.”? “Isso me lembra... “ disse a

Rainha Branca baixando os olhos e apertando e soltando as mãos

nervosamente, “que tivemos tal tempestade terça-feira passada

... quero dizer, uma da última série de terças-feiras.”?

Alice ficou pasma. “No nosso

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“Acho que essa é a resposta.” “Errada como de costume”, disse a Rainha; “restaria a fúria do cachorro.”

“Mas não entendo como...” “Ora, olhe aqui!” gritou a Rainha Vermelha. “O cachorro teria um ataque de

fúria, não teria?” “Talvez tivesse”, respondeu Alice, cautelosa.

“Então se o cachorro desaparecesse, a fúria restaria!” a Rainha exclamou triunfante.

Com a maior gravidade que pôde, Alice disse: “Poderiam seguir caminhos diferentes.” Mas não pôde deixar de pensar com seus botões: “Que terríveis

absurdos estamos dizendo!” “Ela não sabe nadinha de aritmética!” as Rainhas disseram juntas, com

grande ênfase. “E você sabe?” Alice falou, virando-se de repente para a Rainha Branca, pois

não gostava de ser tão criticada. A Rainha respirou fundo e fechou os olhos. “Eu sei Adição”, disse, “se você

me der algum tempo... mas não sei subtrair sob nenhuma circunstância.” “Naturalmente sabe o ABC?” perguntou a Rainha Vermelha.

“Mas é claro”, disse Alice. “Eu também”, sussurrou a Rainha Branca, “costumamos recitá-lo todinho

juntas, minha cara. E vou lhe contar um segredo: sei ler palavras de uma letra só! Isso não é impressionante? Mas não desanime, com o tempo você

chega lá.” Nesse momento a Rainha Vermelha recomeçou.

“Sabe responder perguntas úteis?” disse. “De que é feito o pão?” “Isso eu sei!” Alice exclamou, animada. “Pega-se um pouco de farinha ... “

“Onde se colhe a farinha?” perguntou a Rainha Branca. “Num jardim, ou nas cercas-vivas?”

“Bem, ela não é colhida”, Alice explicou; “é moída...” “De pancada?” disse a Rainha Branca. “Não devia omitir tantas coisas.”

“Abane-lhe a cabeça!” interrompeu aflita a Rainha Vermelha. “Vai ficar com febre depois de tanta reflexão!” Não perderam tempo e a abanaram com

tufos de folhas até ela ter de implorar que parassem, tanto o seu cabelo esvoaçava.

“Agora ela está bem de novo”, disse a Rainha Vermelha. “Sabe línguas? Como é fiddle-de-dee em francês?”

“Fiddle-de-dee não é inglês”, Alice respondeu gravemente.

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Vermelha interrompeu-a com impaciência. “É exatamente disso que me queixo! Devia ter querido! De que acha que

serviria uma criança que não quer dizer nada? Até uma piada tem de querer dizer alguma coisa... e uma criança é mais importante que uma piada,

espero. Você não conseguiria negar isso, nem que tentasse com as duas mãos.”

“Não nego coisas com minhas mãos”, Alice objetou. “Ninguém disse isso”, observou a Rainha Vermelha. “Eu disse que não con-

seguiria se tentasse.” “Ela está naquele estado de espírito”, disse a Rainha Branca, “em que quer

negar alguma coisa... só que não sabe o quê!” “Um temperamento desagradável, vicioso”, observou a Rainha Vermelha;

seguiu-se um silêncio incômodo por um ou dois minutos. A Rainha Vermelha quebrou o silêncio dizendo à

Rainha Branca: “Eu a convido para o jantar de Alice esta tarde.” A Rainha Branca sorriu debilmente e disse: “E eu a convido.”

“Não tinha a menor idéia de que haveria um jantar”, disse Alice; “mas se vai haver um, acho que eu deveria chamar os convidados.”

“Nós lhe demos oportunidade para isso”, observou a Rainha Vermelha; “mas estou certa de que você não teve muitas aulas de boas maneiras, não é?”

“Boas maneiras não se ensinam em aulas”, disse Alice. “Aulas ensinam a fazer contas de somar, e coisas desse tipo.”

“E sabe Adição?” perguntou a Rainha Branca. “Quanto é um mais um mais um mais um mais um mais um mais um mais um mais um mais um?”

“Não sei”, disse Alice. “Perdi a conta.” “Não sabe Adição”, a Rainha Vermelha interrompeu. “Sabe fazer Subtração?

Subtraia nove de oito.” “Nove de oito não posso”, Alice respondeu muito rapidamente; “mas... “

“Não sabe Subtração”, disse a Rainha Branca. “Sabe fazer Divisão? Divida um pão por uma faca: qual é o resultado

disso?” “Suponho... “ Alice estava começando, mas a Rainha Vermelha respondeu por ela. “Pão com manteiga, é claro. Tente outra Subtração. Tire um osso de um

cachorro; resta o quê?” Alice refletiu. “O osso não restaria, é claro, se o tirei... e o cachorro não

restaria: viria me morder... e tenho certeza de que eu não restaria!” “Então acha que não restaria nada?” disse a Rainha Vermelha.

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Capítulo 9 Rainha Alice

Bem, isto é magnífico!”exclamou Alice. “Nunca esperei ser uma Rainha tão cedo... e, vou lhe dizer uma coisa, Majestade”, continuou num tom severo

(sempre gostava muito de ralhar consigo mesma), “não convém de maneira alguma você estar esparramada na grama desse jeito!

Rainhas devem ter dignidade!”Assim, levantou-se e andou por ali - muito empertigada a princípio, como se

temesse que a coroa pudesse cair; mas tranquilizou-se com a idéia de que não havia ninguém para vê-la, “e se sou realmente uma Rainha”, disse ao se

sentar de novo, “serei capaz de conduzir isso muito bem com o tempo.” Tudo estava acontecendo de maneira tão esquisita que Alice não ficou nem

um pouquinho surpresa ao se deparar com a Rainha Vermelha e a Rainha Branca sentadas perto dela, uma de cada lado: teria gostado muito de lhes perguntar como tinham chegado ali, mas receou que isso não fosse

muito cortês. Mas não haveria nenhum mal, pensou, em perguntar se o jogo terminara. “Por favor, poderia me dizer... “ começou, olhando timidamente

para a Rainha Vermelha. “Fale quando lhe falarem!” a Rainha atalhou-a rispidamente.

“Mas se todo mundo obedecesse a essa regra”, disse Alice, sempre pronta para uma pequena discussão, “e se você só falasse quando lhe falassem, e

a outra pessoa sempre esperasse você começar, veja ninguém nunca diria nada, de modo que... “

“Absurdo!” gritou a Rainha. “Ora, você não entende, criança... “ aqui ela fez uma pausa com uma careta e, após pensar um minuto, mudou bruscamente

de assunto. “O que quer dizer com ‘Se sou realmente uma Rainha’? Que direito tem de se chamar assim? Não pode ser uma Rainha até ter passado

pelos exames apropriados. E quanto mais cedo começarmos isso, melhor.” “Eu só disse ‘se’!” defendeu-se a pobre Alice num tom que dava dó.

As duas Rainhas se entreolharam, e a Rainha Vermelha comentou, com um pequeno arrepio: “Ela diz que só disse ‘se’...”

“Mas disse muito mais que isso!” resmungou a Rainha Branca, torcendo as mãos. “Oh, tão mais que isso!”

“De fato”, a Rainha Vermelha disse a Alice. “Fale sempre a verdade... pense antes de falar. .. e depois escreva o que falou.”

“Tenho certeza de que não quis dizer...” Alice ia começando, mas a Rainha

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só precisa andar alguns metros”, disse, “morro abaixo e transpor aquele riachinho, e então será uma Rainha...

Mas antes vai ficar e me ver partir?” acrescentou, quando Alice se virou muito animada para a direção que ele apontara.

“Não vou demorar. Vai esperar e acenar com seu lenço quando eu chegar àquela curva da estrada? Acho que isso me daria coragem, sabe.”

“Claro que vou esperar”, disse Alice, “e muito obrigada por ter vindo tão longe... e pela canção... gostei muito dela.”

“Espero”, disse o Cavaleiro, sem muita convicção. “Mas não chorou tanto quanto pensei que choraria.”

Assim, apertaram-se as mãos e em seguida o Ca- valeiro rumou lentamente para o interior do bosque. ‘’Não vou demorar muito para vê-Ia cair, tenho

certeza”, Alice disse de si para si. “Pronto! Bem de ponta-cabeça, como de costume! No entanto, monta de novo com muita facilidade... isso porque

tem tantas coisas penduradas em torno do cavalo ... “Assim ficou, falando consigo mesma, enquanto olhava o cavalo a marchar pachorrento pela

estrada e o Cavaleiro a levar trambolhões, primeiro de um lado, depois do outro. Após o quarto ou quinto tombo ele chegou à curva, e então ela lhe

acenou com seu lenço e esperou até que sumisse de vista.’“Espero que isso o tenha encorajado”, disse, enquanto se virava para correr

morro abaixo. “E agora para o último riacho, e ser uma Rainha! Como soa grandioso!” Alguns poucos passos a levaram à beira do riacho.

“Finalmente a Oitava Casa!” gritou, enquanto o transpunha num salto, =

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e se jogou para descansar num gramado macio como musgo, com pequenos canteiros de flores salpicados aqui e ali. “Oh, como

estou contente por estar aqui! E o que é isso na minha cabeça?”exclamou assombrada ao erguer as mãos

e pegar algo muito pesado e bem ajustado em volta da sua cabeça. “Mas como isso pode ter vindo parar aqui sem que eu percebesse?” per-

guntou-se, enquanto a erguia e a punha no colo para tentar entender como aquilo fora possível. Era uma coroa de ouro.

gr 230

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E muito prazer teria em brindar À sua saúde e ao seu bem-estar.”

Dessa vez eu o ouvi, pois meu plano, Eu já o terminara inteirinho:

Como proteger pontes da ferrugem Ferventando-as no vinho.

Agradeci-lhe muito por me contar Sua maneira de fortuna acumular.

Mas sobretudo pelo desejo expressado De beber ao meu bom estado.

E agora, se por acaso no grude Enfio o meu dedo

Ou loucamente meto um pé Direito num sapato esquerdo,

Ou se por outra razão me Atrapalho ou me excedo,

Choro, pois isso me faz lembrar Aquele velhinho e seus segredos.

Cujo rosto era brando e a fala mansa,

Cuja cabeça era como a neve mais branca, Que lembrava uma gralha e uma criança,

Que tinha olhos de brasa, incandescentes,Que parecia sofrido após suas andanças,

Que balançava o corpo, indolente,

E murmurava baixinho, dentes serrados, Como se tivesse a boca cheia de melado, Que resfolegava como um cão danado ...

Naquela tarde de verão, tão fagueira, Sentado numa porteira.

Ao cantar as últimas palavras da balada, o Cavaleiro empunhou as rédeas e virou a cabeça do seu cavalo para a estrada pela qual tinham vindo. “Você

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Para o que o velho dizia, gritei: “E como fatura um trocado?” E uma paulada no coco lhe dei.

Com VOZ suave, ele retomou seu relato, Disse: “Sou um homem muito teimoso, E quando acaso encontro um regato,

Boto-lhe fogo no ato; Com isso fazem uma pomada,

Óleo de Macássar de Rowland é chamada...Mas para mim, no arranjo todo,

Sobram dois pence e mais nada.”

Enquanto isso eu pensava como se poderia Viver só comendo grude,

E ir assim, dia a dia, Ganhando peso e saúde.

Dei um sacolejo no velho, de lado a lado, Até vê-lo ficar com o rosto azulado: “Então, como fatura um trocado?”

Gritei, “Vamos, dê seu recado!” Ele disse: “Caço olhos de hadoque

No meio do brejo ventoso, Deles faço botões de fraque,

À noite quando tudo é silencioso. E esses não vendo por prata Tampouco por ouro lustroso, Mas por meio pêni de cobre,

A dúzia, se está curioso.”

“Às vezes escavo à busca de bolachas, Ou uso visco para pegar caranguejos;

Às vezes examino colinas baixas Em busca de rodas, bancos e molejos.

E é assim” (piscou um olho) “Que minha fortuna provejo...

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seria capaz de evocar toda a cena, como se tivesse acontecido na véspera: os meigos olhos azuis e o sorriso gentil do Cavaleiro... A luz do poente

cintilando através do cabelo dele, e iluminando-lhe a armadura num esplen-dor de luz que a deixava inteiramente ofuscada... o cavalo andando calma-mente em volta, com as rédeas pendendo soltas do pescoço, mordiscando o capim a seus pés ... e as sombras negras do bosque ao fundo... Tudo isso ela absorveu como um quadro, quando, com uma mão protegendo os olhos encostou-se numa árvore, observando o estranho par e ouvindo, como num

sonho, a música triste da canção.“Mas a melodia não é invenção dele”, disse para si mesma, “é ‘Eu lhe darei tudo, mais não posso dar’.” Ficou quieta e ouviu, com muita atenção, mas

nenhuma lágrima lhe veio aos olhos.

Nada vou lhe esconder, Não há muito a ser contado.

Vi um dia um ancião, Numa porteira sentado.

Quem é você, meu bom velho?Eu disse, “E como fatura um trocado?”

Mas à resposta não dei ouvidos, Em outros pensamentos ocupado.

Ele disse, “Caço as borboletas Que dormem no meio do trigo,

Com elas faço costeletas, Que vendo depois aos gritos. Vendo-as para os estafetas ,

Sempre a correr afobados E assim ganho o meu pão ...

Pois nunca vendo fiado.”

Mas eu pensava então num plano De pintar de verde minhas suíças,

Depois, usar sempre um abano p’ra impedir que fossem vistas.

Assim, não tendo resposta

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dia seguinte. Na verdade”, continuou, mantendo a cabeça baixa e com uma voz cada vez mais fraca, “não acredito que o pudim tenha sido algum dia

assado! Na verdade, não acredito que o pudim vá ser assado algum dia! E, no entanto foi uma invenção muito engenhosa.”

“De que ele seria feito?” Alice perguntou na esperança de animá-lo, pois o pobre Cavaleiro parecia abatido com aquilo.

“Começava com mata-borrão”, o Cavaleiro respondeu com um gemido. “Temo que isso não seja muito gostoso...”

“Não muito gostoso sozinho”, ele interrompeu, muito impaciente. “Mas não faz idéia da diferença que faz se misturado com outras coisas... como pólvora e lacre. E neste ponto devo deixá-la.” Tinham acabado de chegar à

orla do bosque. Alice só pôde ficar perplexa; estava pensando no pudim.

“Parece triste”, disse o Cavaleiro, aflito. “Deixe- me cantar uma canção para consolá-la.” “É muito comprida?” Alice perguntou, porque já tinha ouvido um bocado de

poesia aquele dia. “É comprida”, disse o Cavaleiro, “mas muito, muito bonita. Todos os que me

ouvem cantá-la ... ficam com lágrimas nos olhos, ou ... “ “Ou o quê?” quis saber Alice, pois o Cavaleiro fizera uma súbita pausa.

“Ou não, é claro. O nome da canção é chamado ‘Olhos de hadoque’.” “Oh, esse é o nome da canção, não é?” disse Alice, tentando se interessar.

“Não, você não entendeu”, disse o Cavaleiro, um pouco irritado. “É assim que o nome é chamado. O nome na verdade é ‘O velho homem velho’.”

“Nesse caso eu devia ter perguntado: ‘É assim que a canção é chamada?” corrigiu-se Alice.

“Não, não devia: isso é completamente diferente! A canção é chamada ‘Mo-dos e meios’, mas isso é só como é chamada, entende?”

“Bem, então qual é a canção?” perguntou Alice, que a essa altura estava completamente atordoada.

“Estava chegando lá”, disse o Cavaleiro. “A canção é realmente ‘Sentado na porteira’ e a melodia é uma invenção minha.”

Assim dizendo, parou seu cavalo e soltou as rédeas sobre o pescoço dele; depois, marcando o compasso lentamente com a mão, e com um sorriso

bobo iluminando-lhe o rosto bondoso e amalucado, como se gostasse da música de sua canção, começou.

De todas as coisas estranhas que Alice viu em sua viagem através do Es-pelho, esta foi a de que sempre se lembraria mais nitidamente. Anos depois

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Com orgulho, o Cavaleiro olhou para seu elmo, pendurado na sela. “É”, respondeu, “mas inventei um melhor que este... parecido com um pão de

açúcar. Quando o usava se caía do cavalo ele tocava o chão num instante. Assim eu tinha uma queda muito curta, entende... Mas havia o perigo de cair

dentro dele, sem dúvida. Isso me aconteceu uma vez... E o pior da história foi que, antes que eu conseguisse sair dali, o outro Cavaleiro Branco chegou

e pôs o elmo na cabeça. Pensou que fosse o dele.” O Cavaleiro falava daquilo com tanta solenidade que Alice não se atreveu a rir. “Re-ceio que o tenha machucado”, disse numa voz trêmula, “ficando no cocuruto dele”. “Tive de chutá-lo, é claro”, disse o Cavaleiro, muito sério. “Então ele tirou o elmo de novo... mas levaram horas e horas para me tirar. Eu estava engas-

gado lá como se tivesse um osso na garganta.” “Mas são dois tipos diferentes de engasgo”, Alice objetou.

O Cavaleiro sacudiu a cabeça. “Comigo, eram engasgos de todo tipo, posso lhe garantir!” disse. Ergueu as mãos num certo arrebatamento ao dizer

isso, e instantaneamente rolou da sela e caiu de cabeça num fosso fundo. Alice correu para a borda do fosso para procurá-lo. Estava muito espanta-da com a queda, pois por algum tempo ele se saíra muito bem, e temia que

dessa vez estivesse realmente machucado. Contudo, embora só pudesse ver as solas dos seus sapatos, ficou muito aliviada ao ouvi-lo falar no tom

habitual: “Todos os tipos de engasgo”, ele repetiu, “foi negligência dele pôr o elmo de outro homem... Com o homem dentro, ainda por cima.”

“Como consegue continuar falando tão calmamente de cabeça para baixo?” Alice perguntou, enquanto o puxava pelos pés e o deitava num monte na

borda do fosso. O Cavaleiro pareceu surpreso com a pergunta. “Que me importa onde está o meu corpo?” disse. “Minha mente continua trabalhando do mesmo jeito. Na

verdade, quanto mais de cabeça para baixo estou, mais invento coisas novas.” “Veja, a coisa mais engenhosa desse tipo que já fiz”, continuou após uma

pausa, “foi inventar um novo pudim enquanto a carne estava sendo servida.” “A tempo de tê-lo assado para ser o prato seguinte?” disse Alice. “Puxa, foi

um trabalho rápido, com certeza.” “Bem, não para ser o prato seguinte”, disse o Cavaleiro numa voz lenta,

pensativa; “não, certamente não para ser o prato seguinte.” “Nesse caso, teria de ser para o dia seguinte. Suponho que não comeria

dois pudins num jantar só?” “Bem, não para o dia seguinte”, o Cavaleiro repetiu como antes; “não para o

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terminou, tão subitamente quanto começara, pois o Cavaleiro desabou de cabeça pesadamente bem na trilha em que

Alice estava andando. Dessa vez ela ficou muito apavorada, e disse num tom agoniado, enquanto o erguia: “Espero que não tenha quebrado nenhum osso!”

“Nenhum que valha a pena mencionar”, disse o Cavaleiro, como se não se importasse de quebrar uns dois ou três. “A nobre arte da equitação, como

eu ia dizendo, está em manter o equilíbrio adequadamente. Assim, sabe” Soltou a rédea e estendeu os dois braços para mostrar a Alice o que tinha

em mente, e dessa vez caiu de costas, bem debaixo das patas do cavalo. “Bastante prática!” continuou repetindo, durante todo o tempo em que

Alice tentava pô-lo novamente de pé. “Bastante prática!” “É absurdo demais!” exclamou Alice, perdendo toda a paciência dessa vez.

“Deveria ter um cavalo de pau, com rodinhas, isso sim!” “Esse tipo tem uma andadura suave?” o Cavaleiro perguntou com grande

interesse, abraçando o pescoço do cavalo enquanto falava, justo a tempo de escapar de mais um trambolhão.

“Muito mais suave que a de um cavalo vivo”, disse Alice, soltando uma risadinha apesar de todo o seu esforço para contê-la.

“Vou arranjar um”, disse o Cavaleiro pensativamente para si mesmo. “Um ou dois... vários.” Em seguida fez-se um breve silêncio e depois o Cavaleiro recomeçou. “Tenho

muito pendor para inventar coisas. Certamente você percebeu, da última vez que me levantou que eu parecia bastante pensativo, não?”

“Estava um pouco sério”, disse Alice. “Bem, exatamente naquele instante estava inventando uma nova maneira de

passar por cima de uma porteira... gostaria de ouvi-ia?” “Gostaria sim, muito”, disse Alice com polidez.

“Vou lhe contar como a idéia me ocorreu”, disse o Cavaleiro. “Sabe, disse para mim mesmo: ‘A única dificuldade é com os pés, pois a cabeça já está

numa altura suficiente. Ora, primeiro ponho a cabeça sobre a porteira - en-tão a cabeça já está numa altura suficiente - depois planto uma bananeira - assim os pés chegam a uma altura suficiente - aí já estou do outro lado.” “Sim, suponho que estaria do outro lado depois disso”, disse Alice, pensa-

tiva, “mas não acha que seria um pouco difícil?” “Como ainda não experimentei”, disse gravemente o Cavaleiro, “não posso

lhe dizer ao certo... mas temo que seria um pouquinho difícil.” Pareceu tão contrariado com a idéia que Alice mudou de assunto rapidamente.

“Que elmo curioso, o seu!” disse alegremente. “É invenção sua também?”

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sela, que já estava carregada com molhos de cenouras, atiçadores e muitas outras coisas.

“Espero que seu cabelo esteja muito bem preso”, ele continuou ao partirem. “Apenas como o uso sempre”, Alice disse, sorrindo.

“Isso não vai ser suficiente”, ele disse, aflito. “Sabe, o vento é muito forte aqui. É forte como sopa.”

“Inventou algum truque para impedir o cabelo de esvoaçar?” Alice perguntou. “Ainda não”, disse o Cavaleiro. “Mas tenho um truque para impedir que caia.”

“Gostaria de ouvi-lo, muito mesmo.” “Primeiro você pega uma vara reta”, disse o Cavaleiro. “Depois faz o seu

cabelo ir trepando por ela acima, como uma árvore frutífera. Ora, os cabelos caem porque estão pendurados para baixo... as coisas nunca caem para

cima, sabe? O método é uma invenção minha. Pode experimentar, se quiser.”Não parecia muito conveniente, pensou Alice, e por alguns minutos camin-hou em silêncio, ruminando a idéia, e parando vez por outra para ajudar o

pobre Cavaleiro, cujo forte com certeza não era a equitação. Sempre que o cavalo empacava (o que fazia com muita freqüência), ele caía

para a frente; e sempre que recomeçava a andar (o que em geral fazia de maneira bastante brusca), ele caía para trás. Afora isso, cavalgava bastante

bem, não fosse pelo hábito que tinha de cair de lado de vez em quando, e como geralmente era para o lado em que Alice estava andando, ela logo descobriu

que o melhor método era não andar muito perto do cavalo.“Parece-me que não tem muita prática de cavalgar”, arriscou-se a dizer,

enquanto o ajudava a se levantar do seu quinto tombo. O Cavaleiro pareceu surpresíssimo e um pouco ofendido com a observação. “Por que diz isso?” perguntou ao se aboletar de novo na sela, agarrando o

cabelo de Alice com uma mão para evitar cair para o outro lado. “Porque as pessoas não caem tanto quando têm muita prática.”

“Tenho bastante prática”, disse o Cavaleiro, muito gravemente, “bastante prática!”

Alice não achou nada melhor para dizer que “É mesmo?”, mas o fez da maneira mais entusiástica que pôde.

Depois disso seguiram em silêncio por um pequeno trecho, o Cavaleiro com os olhos fechados, resmungando consigo mesmo, e Alice aflita, alerta para

o próximo tombo. “A nobre arte da equitação”, começou o Cavaleiro de repente, falando alto,

acenando o braço direito enquanto o fazia, “está em manter...” Aqui a frase

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carrego-a de cabeça para baixo, assim não entra chuva.”“Mas as coisas podem sair”, Alice observou gentilmente. “Sabe que a tampa

está aberta?” “Não sabia”, disse o Cavaleiro, o aborrecimento lhe anuviando o rosto.

“Nesse caso, todas as coisas devem ter caído. E a caixa é inútil sem elas.” Desprendeu-a enquanto falava e estava prestes a jogá-la entre as moitas

quando, parecendo ter sido assaltado por uma súbita idéia, pendurou-a cuidadosamente numa árvore. “Consegue adivinhar por que fiz isso?” per-

guntou a Alice. Ela sacudiu a cabeça.

“Na esperança de que abelhas possam fazer sua colméia aí... nesse caso eu teria o mel.”

“Mas o senhor já tem uma colméia... ou coisa parecida... pendurada na sela”, disse Alice.

“É verdade, é uma ótima colméia”, disse o Cavaleiro num tom desgostoso, “da melhor qualidade. Mas até agora nem uma única abelha chegou perto dela. E a outra coisa é uma ratoeira. Suponho que os ratos afugentam as abelhas... ou

são as abelhas que afugentam os ratos, não sei qual dos dois.” “Eu estava pensando para que servia a ratoeira”, disse Alice. “Não é muito

provável aparecer algum rato no dorso de um cavalo.” ‘’Não muito provável, talvez”, disse o Cavaleiro; “mas, se aparecerem, prefiro

que não fiquem correndo para todo lado.” “Sabe”, continuou, após uma pausa, “o melhor é estar preparado para tudo.

É por isso que o cavalo tem todos esses grilhões em volta das patas.” “Mas para que servem?” Alice perguntou com grande curiosidade.

“Para proteger contra mordidas de tubarões”, o Cavaleiro respondeu. “É uma invenção minha. E agora ajude-me a montar. Vou com você até o fim do bosque...

Para que é o prato?” “Era para um bolo de passas”, respondeu Alice.

“Melhor levá-lo conosco”, disse o Cavaleiro. “Virá a calhar se encontrarmos algum bolo de passas. Ajude- me a metê-lo neste saco.”

Essa operação exigiu um longo tempo, embora Alice segurasse o saco ab-erto com muito cuidado, tal foi a atrapalhação do Cavaleiro para enfiar nele

o prato: nas primeiras duas ou três vezes em que tentou, ele próprio caiu no saco. “Ficou bastante apertado, como vê”, ele disse quando finalmente

conseguiram colocar o prato dentro. “Há uma quantidade tão grande de castiçais no saco.” E pendurou-o na

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“Vai respeitar as Regras de Batalha, não?” observou o Cavaleiro Branco, pondo seu elmo também.

“Sempre respeito”, disse o Cavaleiro Vermelho, e começaram a se bater com tal fúria que Alice foi para trás de uma árvore para escapar dos golpes.

“O que eu queria saber agora é quais são as Regras de Batalha”, disse para si mesma enquanto observava a luta, espiando timidamente do seu escon-

derijo. “Uma Regra parece ser que, se um Cavaleiro atinge o outro, ele o der-ruba do seu cavalo, e, se erra o golpe, ele mesmo cai... e outra Regra parece

ser que seguram as clavas com os braços, como se fossem marionetes... Que barulho fazem quando caem! Parece que todos os atiçadores estão caindo de uma vez sobre o guarda-fogo! E como os cavalos são mansos!

Deixam que montem e desmontem como se fossem mesas!” Outra Regra de Batalha, que Alice não percebera, parecia ser que sempre caíam de cabeça, e a batalha terminou com ambos caindo dessa maneira,

lado a lado. Quando se levantaram, apertaram-se as mãos e em segui- da o Cavaleiro

Vermelho montou e partiu a galope. “Foi uma vitória gloriosa, não?” disse o Cavaleiro Branco, aproximando-se

ofegante. “Não sei”, disse Alice, hesitante. “Não quero ser prisioneira de ninguém.

Quero ser uma Rainha.” “E será, quando tiver transposto o próximo riacho”, disse o Cavaleiro

Branco. “Vou levá-la em segurança até a orla do bosque... e depois tenho de voltar. É o fim do meu movimento.”

“Muito obrigada”, disse Alice. “Posso ajudá-lo a tirar o elmo?” Evidente-mente aquilo era demais para ele fazer sozinho; mas finalmente ela con-

seguiu livrá-lo do apetrecho. “Assim fica mais fácil respirar”, disse o Cavaleiro, jogando seu cabelo

desgrenhado para trás com as duas mãos e voltando para Alice seu rosto bondoso e seus olhos grandes e meigos. Ela pensou que nunca tinha visto

um soldado tão estranho em toda a sua vida. Ele vestia uma armadura de lata, que parecia lhe servir muito mal, e trazia presa entre os ombros uma caixinha de pinho de formato esquisito, de ca-

beça para baixo e com a tampa pendendo, aberta. Alice olhou-a com grande curiosidade.

“Vejo que está admirando minha caixinha”, disse o Cavaleiro em tom amis-toso. “É uma invenção minha... para guardar roupas e sanduíches. Como vê,

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Capítulo 8 “É uma invenção minha”

Após certo tempo o barulho pareceu desaparecer pouco a pouco, até que tudo mergulhou em profundo silêncio, e Alice levantou a cabeça, um pouco

assustada. Não havia ninguém à vista e seu primeiro pensamento foi que devia ter

estado sonhando com o Leão e o Unicórnio e aqueles esquisitos Mensagei-ros Anglo-Saxões. No entanto, o enorme prato em que havia tentado cortar o bolo de passas ainda estava a seus pés. “Então eu não estava sonhando,

afinal de contas”, disse para si mesma, “a menos... a menos que sejamos todos parte do mesmo sonho.

Só espero que o sonho seja meu, e não do Rei Vermelho! Não gosto de pert-encer ao sonho de outra pessoa”, continuou, num tom bastante queixoso.

“Sinto uma enorme vontade de ir acordá-lo e ver o que acontece!” Nesse instante seus pensamentos foram interrompidos por um grito alto

de “Olá! Olá! Xeque!” e um Cavaleiro envergando uma armadura carmesim veio galopando na direção dela, brandindo uma grande clava. Assim que a

alcançou, o cavalo parou de repente. “Você é minha prisioneira!” o Cavaleiro gritou, enquanto caía do cavalo.

Espantada como estava, Alice ficou com mais medo por ele do que por si própria naquele instante, e observou-o com certa aflição enquanto montava

de novo. Assim que se instalou confortavelmente na sela, ele recomeçou: “Você é

minha... “ mas nesse momento uma outra voz se fez ouvir. “Olá! Olá! Xeque!” e Alice olhou em volta um tanto surpresa, à procura do novo inimigo.

Desta vez era o Cavaleiro Branco. Parou ao lado de Alice, e caiu do cavalo exatamente como o Cavaleiro Vermelho fizera; em seguida se levantou e os

dois Cavaleiros ficaram se olhando por algum tempo sem falar. Alice olhava de um para outro, um tanto atordoada.

“Ela é minha prisioneira, saiba!” disse por fim o Cavaleiro Vermelho. “Certo, mas nesse caso, eu vim e resgatei-a!” respondeu o Cavaleiro Branco. “Bem, então temos de lutar por ela”, disse o Cavaleiro Vermelho, pegando o elmo (que estava pendurado na sela e cuja forma lembrava a cabeça de um

cavalo) e enfiando-o na cabeça.

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Alice se sentara à margem de um riachinho, com o grande prato sobre os joelhos, e serrava diligentemente com a faca. “Isso é muito irritante!”

disse, em resposta ao Leão (estava ficando perfeitamente acostumada a ser chamada de “o Monstro”). Já cortei várias fatias, mas elas sempre se

juntam de novo!”“Você não sabe lidar com bolos do Espelho”, observou o Unicórnio. “Primeiro

sirva-o e depois corte-o.”Parecia absurdo, mas Alice levantou-se muito obedientemente e passou o prato pela roda, e quando o fez o bolo se dividiu a si mesmo em três ped-

aços. “Agora corte- o”, disse o Leão quando ela voltou para o seu lugar com o prato vazio.

“Isso não foi justo!” gritou o Unicórnio quando Alice se sentava com a faca na mão, muito embaraçada quanto à maneira de começar. “O Monstro deu

para o Leão duas vezes mais do que para mim!”!”“De qualquer maneira, não guardou nada para si mesma”, disse o Leão.

“Gosta de bolo de passas, Monstro?” Mas antes que Alice pudesse responder-lhe, os tambores começaram.

De onde vinha o barulho, ela não conseguia distinguir: o ar parecia repleto dele, e ressoava em toda a sua cabeça até deixá-la completamente surda.

Aterrorizada, levantou-se de um pulo e saltou o riachinho=

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e só teve tempo de ver o Leão e o Unicórnio se le-vantarem, parecendo furiosos por terem seu banquete

interrompido, antes de cair de joelhos e tapar os ouvidos com as mãos, tentando em vão calar a medonha barulheira.

“Se esse ‘toque de tambor’ não os expulsar da cidade”, pensou consigo mesma, “nada o fará!”

Page 112: Projeto Acadêmico

“Feito, se lhe agrada”, disse Alice. “Vamos, vá buscar o bolo de passas, meu velho!” continuou o Unicórnio,

voltando-se para o Rei. “Não me venha com pão preto!” “Certamente... certamente!” murmurou o Rei, e acenou para Haigha. “Abra a

sacola!” sussurrou. “Rápido! Essa não... está cheia de húmus.”Haigha tirou um grande bolo de dentro do saco e o deu a Alice para segurar,

enquanto tirava um prato e uma faca de trinchar. Como tudo aquilo pôde sair dali, Alice não tinha a menor ideia. Era uma espécie de mágica, pensou.

Nesse meio tempo, o Leão se juntara a eles: parecia muito cansado e so-nolento, e tinha os olhos semicerrados, “O que é isso?” disse, lançando um

olhar preguiçoso para Alice e falando num tom cavernoso que soava como o badalar de um grande sino.”

“Ah, e então? O que é isso?” o Unicórnio exclamou, animado. “Nunca vai adivinhar! Eu não consegui.”

O Leão olhou para Alice enfadado. “Você é animal... vegetal... ou mineral?”!’ disse, bocejando entre uma palavra e outra.

“É um monstro fabuloso!” o Unicórnio gritou, antes que Alice pudesse responder.

“Então sirva o bolo de passas, Monstro”, disse o Leão, deitando-se e pou-sando o queixo sobre as patas. “E sentem-se, vocês dois!” (para o Rei e o

Unicórnio). “Jogo limpo com o bolo, veja lá!” O Rei estava evidentemente bastante constrangido por ter de se sentar

entre aquelas duas criaturas, mas não havia outro lugar para ele. “Que luta poderíamos ter pela coroa agora! disse o Unicórnio, olhando dis-simuladamente para a coroa, que o pobre Rei, de tanto que tremia, estava

prestes a arremessar fora da cabeça. “Eu venceria facilmente”, disse o Leão.

“Não estou tão certo disso”, disse o Unicórnio. “Ora, eu o bati pela cidade inteira, seu frangote!” o Leão respondeu furioso,

quase se erguendo ao falar. Nessa altura o Rei os interrompeu, para impedir que a briga fosse adiante;

estava muito nervoso e sua voz tremia: “Por toda a cidade?” disse. “É muito chão. Passaram pela ponte velha, ou pelo mercado? A melhor vista é a que

se tem da ponte velha.” “Não tenho ideia”, rosnou o Leão, deitando-se de novo. “Havia poeira demais

para se ver qualquer coisa. Mas quanto tempo esse Monstro leva para cortar esse bolo!”

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Por um minuto ou dois, Alice ficou calada, observando-o. De repente, iluminou-se: “Vejam, vejam!” exclamou, apontando animada: “Lá vai a Rainha

Branca, correndo pelos campos! Veio voando daquele bosque... Como essas Rainhas

correm rápido! “Há algum inimigo em seu encalço, certamente”, disse o Rei, sem nem

mesmo olhar em volta. “Esse bosque está cheio deles.” “Mas não vai correr para ajudá-la?” Alice perguntou, muito surpresa com a

calma que mantinha. “É inútil, inútil!” disse o Rei. “Ela corre terrívelmente depressa. Seria o

mesmo que tentar agarrar um Capturandam! Mas vou fazer uma anotação sobre ela, se você quiser... É uma boa e querida pessoa”, repetiu suavemente para si mesmo, enquanto abria seu bloco de anotações. ‘’’Pessoa’ se escreve

com cedilha?”Nesse momento o Unicórnio passou perambulando por eles, as mãos nos

bolsos. “Levei a melhor desta vez?” perguntou ele ao Rei, lançando-lhe só um olhar de relance.

“Um pouco... um pouco”, o Rei respondeu, bastante nervoso. “Mas não devia tê-lo atravessado com seu chifre.”

“Não o machucou”, disse o Unicórnio, negligentemente, e estava se afastan-do quando deu com os olhos em Alice: fez meia-volta no mesmo instante e ficou olhando para ela um longo tempo, aparentando o mais profundo

desagrado. “O que... é... isso?” disse finalmente.

“Isto é uma criança!” Haigha respondeu animadamente, passando à frente de Alice para apresentá-la e esticando as duas mãos bem abertas em

direção a ela com suas maneiras anglo-saxãs. “Nós só a encontramos hoje: tamanho real e duas vezes mais natural.

“Sempre achei que elas eram monstros fabulosos!” disse o Unicórnio. “É viva?”

“Sabe falar”, disse Haigha, solenemente. O Unicórnio lançou para Alice um olhar sonhador e disse: “Fale, criança.”

Alice não conseguiu conter um sorriso ao começar: “Sabe, sempre pensei que os Unicórnios eram monstros fabulosos também! Nunca vi um vivo

antes.” “Bem, agora que nos vimos um ao outro”, disse o Unicórnio, “se acreditar

em mim, vou acreditar em você. Feito?”

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Como Alice já não tinha fôlego para falar, seguiram correndo em silên-cio, até que avistaram uma grande multidão, no meio da qual o Leão e o

Unicórnio estavam lutando.Estavam envoltos por tal nuvem de poeira que a princípio, Alice não pôde distinguir qual era qual: mas logo conseguiu identificar o Unicórnio, pelo

chifre. Puseram-se perto de Hatta, o outro Mensageiro, que estava de pé assist-indo à luta com uma xícara de chá numa das mãos e o pedaço de pão com

manteiga na outra. “Ele acabou de sair da prisão e não tinha termina- do seu chá quando o

chamaram”, Haigha cochichou para Alice. “E lá eles só lhes dão conchas de ostras... por isso

sentem muita fome e sede. Como vai você, meu querido?” continuou, abraçando afetuosamente o pescoço de Hatta.

Hatta olhou em volta, assentiu com a cabeça, e voltou ao seu pão com manteiga.

“Sentia-se feliz na prisão, meu querido?” perguntou Haigha. Hatta olhou em volta de novo, e dessa vez uma lágrima ou duas lhe rolaram

pelas faces; mas não disse uma palavra. “Fale, não pode?” Haigha gritou, impaciente. Mas Hatta só continuou masti-

gando e tomou mais um pouco de chá. “Fale, vamos!” gritou o Rei. “Como eles estão se saindo na luta?”

Hatta fez um esforço desesperado e engoliu um grande pedaço de pão com manteiga.

“Estão se saindo muito bem”, disse numa voz engasgada. “Cada um foi der-rubado cerca de oitenta e sete vezes.”

“Então, suponho que logo vão trazer o pão branco e o preto?” Alice se atreveu a observar.

“O pão está à espera deles agora”, disse Hatta. “É um pedacinho dele que estou comendo.”

Exatamente nesse momento houve uma pausa na luta, e o Leão e o Unicó-mio sentaram-se, arfando, enquanto o Rei proclamava “Dez minutos para a merenda!” Haigha e Hatta puseram mãos à obra imediatamente, trazendo

bandejas redondas cheias de pão branco e preto. Alice pegou um pedaço para experimentar, mas era muito seco.

“Acho que não vão lutar mais hoje”, o Rei disse a Hatta. “Vá e mande que os tambores comecem.” E lá se foi Hatta, saltitando como um gafanhoto.

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nada como isso.” O que Alice não se aventurou a negar.“Por quem passou na estrada?” continuou o Rei, esticando a mão para o

Mensageiro a pedir mais hortaliças. “Ninguém”, disse o Mensageiro.

“Correto”, disse o Rei, “esta senhorita o viu também. Nesse caso, evidente-mente Ninguém anda mais devagar que você.

“Faço o que posso”, o Mensageiro respondeu, aborrecido. “Tenho certeza de que ninguém anda muito mais depressa do que eu!”

“Não pode andar”, disse o Rei, “ou teria chegado aqui primeiro. Mas agora você já recobrou o fôlego, pode nos contar o que aconteceu na cidade.”

“Vou cochichar”, disse o Mensageiro, pondo as mãos em concha sobre a boca e curvando-se de modo a se aproximar do ouvido do Rei. Alice ficou

sentida, pois queria ouvir as notícias também. Contudo, em vez de susurrar, ele simplesmente gritou a plenos pulmões: “Começaram de novo!”

“Chama isso de cochichar?” exclamou o pobre Rei, dando um pulo e estrem-ecendo. “Se fizer tal coisa de no o vou mandar amanteigá-lo! Abalou minha

cabeça inteira como um terremoto!” “Deve ter sido um terremoto bem pequenininho. pensou Alice. “Quem

começou de novo!” arriscou-se a perguntar. “Ora, o Leão e o Unicómio, é claro”, disse o Rei.

“Lutando pela coroa!” “Sem dúvida”, disse o Rei; “e o melhor da piada é que é sempre pela minha

coroa! Vamos correr até lá para vê-los.” E lá se foram, Alice repetindo para si mesma enquanto corria, as palavras da velha canção:

O Leão e o Unicórnio pela real coroa pelejaram:

Deram um belo espetáculo para todos que assistiram. Com pão branco, preto e bolo de passas os regalaram. Até que, cansados, a toque de tambor os expulsaram.

“Aquele... que... vence... fica com a coroa!” ela perguntou, o melhor que pôde, pois a corrida a estava deixando completamente sem fôlego.”

“Vossa Majestade se importaria de parar um mi- nuto... só para... recobrar-mos um pouco o fôlego!”

“Não me importaria nada”, disse o Rei, “só não tenho força para tanto. Veja, um minuto passa tão terrivelmente rápido. Seria o mesmo que tentar parar

um Capturandam!

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(Pronunciou-o de modo a rimar com “mayor”.)“Amo meu amor com um H,”s Alice não resistiu a começar, “porque é Ha-

bilidoso. Detesto-o com um H porque é Horroroso. Alimento-o com... com... Hadoque com pão e Hortaliças. Seu nome é Haigha, e ele mora... “

“Mora na Hospedaria”, observou o rei ingenuamente, sem a mínima ideia de que estava entrando no jogo, quando Alice ainda hesitava entre nomes de

cidade começando com H. “O outro mensageiro chama-se Hatta. Preciso ter dois... para vir e ir. Um para vir e um para ir.”

“Perdão?” disse Alice. “Não há o que perdoar”, disse o Rei.

“Só quis dizer que não tinha entendido”, disse Alice. “Por que um para vir e outro para ir?”

“Não lhe disse?” o Rei repetiu, impaciente. “Tenho de ter dois: para trazer e levar. Um para trazer e um para levar.”

Nesse momento o Mensageiro chegou; estava esbaforido demais para dizer qualquer coisa, e só conseguia acenar as mãos e fazer as mais pavorosas

caretas para o pobre Rei. “Esta senhorita o ama com um H”, o Rei disse, apresentando Alice na

esperança de desviar de si a atenção do Mensageiro - mas não adiantou... As maneiras anglo-saxãs só ficavam ainda mais estrambóticas a cada

momento, enquanto os grandes olhos rolavam freneticamente de um lado para outro.

“Está me assustando!” disse o Rei. “Acho que vou desmaiar... dê-me um hadoque!”

Ante o que o Mensageiro, para grande divertimento de Alice, abriu uma sacola que trazia enrolada no pescoço e entregou um hadoque ao Rei, que o

devorou sofregamente. “Mais um hadoque!”

“Agora só sobraram hortaliças”, disse o Mensageiro, espiando pela boca da sacola.

“Hortaliças, então”, o Rei murmurou num débil sussurro.Alice ficou satisfeitíssima ao ver que aquilo o revigorava muito. “Não há

nada como comer hortaliças quando se está desfalecendo”, ele observou para ela, enquanto mascava.

“Diria que lhe jogar um pouco de água fria seria melhor”, Alice sugeriu, “ou sais.”

“Não disse que não havia nada melhor”, o Rei respondeu. “Disse que não há

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Capítulo 7 O Leão e o Unicórnio

Um instante depois surgiram soldados correndo pelo bosque, de início em pares, ou em três, depois em bandos de dez ou vinte, e por fim em massas tão grandes que pareciam encher toda a floresta. Alice se escondeu atrás

de uma árvore, com medo de ser pisoteada, e ficou vendo-os passar. Pensou que em toda a sua vida nunca tinha visto soldados tão trôpegos: tropeçavam o tempo todo em uma coisa ou outra, e sempre que um caía vários outros caíam sobre ele, de tal modo que o chão logo ficou coberto

com montinhos de homens. Depois vieram os cavalos. Com quatro patas, saíam- se bem melhor que os

soldados; mas até eles tropeçavam vez por outra; e parecia ser norma geral que, sempre que um cavalo tropeçava, o cavaleiro caía imediatamente. A

confusão piorava a cada momento, e Alice ficou feliz de sair do bosque para um descampado, onde encontrou o Rei Branco sentado no chão tomando

notas atarefadamente em seu bloco de anotações. “Mandei-os todos!” o Rei exclamou deliciado, ao ver Alice. “Por acaso encon-

trou soldados, minha cara, ao passar pelo bosque?” “Encontrei”, disse Alice, “vários milhares, eu diria.”

“Quatro mil duzentos e sete, é o número exato”, disse o Rei consultando o bloco. “Não pude mandar todos os cavalos, sabe, porque dois deles são

necessários para o jogo. ‘ Também não mandei os dois Mensageiros.Foram ambos à cidade. “Dê uma olhada na estrada, e diga- me se pode ver

algum deles.”“Ninguém à vista”, disse Alice.

“Só queria ter olhos como esses”, observou o Rei num tom irritado. “Ser capaz de ver Ninguém! E à distância! Ora, o máximo que eu consigo é ver

pessoas reais, com esta luz!” Alice não ouviu nada disto, absorta que ainda estava em olhar a estrada,

protegendo os olhos com uma das mãos. “Estou vendo alguém agora!” exclamou finalmente. “Mas vem muito devagar... e que maneiras curiosas

tem!” (Pois o Mensageiro saltitava e se retorcia como uma enguia o tempo todo enquanto avançava, com suas grandes mãos abertas como leques de

cada lado.) “Em absoluto”, disse o Rei. “Ê um Mensageiro Anglo-Saxão... e essas são as

maneiras anglo-saxãs.’ Só as exibe quando está feliz. Seu nome é Haigha.

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o polegar) “nariz no meio, boca embaixo. É sempre a mesma coisa. Agora, se você tivesse os dois olhos do mesmo lado do nariz, por exemplo... ou a boca no alto...

isso seria de alguma ajuda.” “Não ficaria bonito”, Alice objetou. Mas Humpty Dumpty só fechou os olhos e

disse: “Espere até experimentar.” Alice esperou um minuto para ver se ele falaria de novo, mas como não voltou a abrir os olhos nem tomou o menor conhecimento dela, disse “Adeus” mais uma vez e, não obtendo nenhuma resposta, foi-se em silêncio. Mas não pôde deixar

de dizer para si mesma ao partir: “De todas as pessoas insatisfatórias ... “ (repetiu isto alto, pois era um grande consolo ter uma palavra tão comprida

para dizer) “de todas as pessoas insatisfatórias que já encontrei.;.” Nunca terminou a frase, porque nesse momento um enorme estrondo sacudiu o bosque

de ponta a ponta.

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Alguém então me disse, sorrindo: “Psss! Os peixinhos estão dormindo!”

Respondi alto, sem pestanejar: “Ah é? Pois trate de os acordar.”

Falei bem claro, com voz de trovão, E ele ficou ali, como pregado no chão.

Humpty Dumpty elevou a voz quase num enquanto recitava esta estrofe, e Alice pensou num arrepio: “Eu não teria sido o mensageiro por mundo!”

Depois, emproado e atrevido, Exclamou: “Não me arrebente o ouvido. -

Tão petulante ele era, que disse: “Certo, vou acordá-los, se... “

Num saca-rolha então passei a mão E fui eu mesmo acordá-los com decisão.

Encontrei porém a porta trancada, Girei a maçaneta, mas nada ...

Fez-se uma longa pausa. “Acabou?” Alice perguntou timidamente.

“Acabou”, disse Humpty Dumpty. “Até logo.” Aquilo era muito brusco, Alice pensou; mas depois de uma insinuação

tão forte de que devia ir embora sentiu que não seria polido ficar. Assim, levantou-se e estendeu a mão.

“Adeus, até a próxima!” disse no tom mais jovial que pôde. “Eu não a reconheceria se nós nos encontrássemos”, Humpty Dumpty re-

spondeu num tom desgostoso, dando- lhe um de seus dedos para apertar “você é tão exatamente igual às outras pessoas.”

“Em geral é o rosto que conta”, Alice observou, pensativa. “É justamente do que me queixo”, disse Humpty Dumpty. “Seu rosto é igual

ao de todo mundo... os dois olhos, tão...” (marcando o lugar deles no ar com

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“Muito obrigada”, disse Alice.

No verão, quando é tão longo o dia, Talvez você entenda esta melodia;

No outono, estando as folhas a tombar, Trate de tudo isto no papel registrar.

“Vou registrar, se conseguir me lembrar até lá”, disse Alice. “Não precisa ficar fazendo comentários desse tipo”, disse Humpty Dumpty,

“não têm cabimento e me confundem.”

Uma mensagem aos peixes fiz chegar; Expressando-lhes meu desejar.

E os peixinhos do mar A resposta me deram sem tardar

Era isto que tinham a dizer: “Isto não podemos, Sir, porque ... “

“Acho que não estou entendendo muito bem disse Alice. “Depois fica mais fácil”, Humpty Dumpty respondeu.

De novo mandei lhes dizer: “Que tratassem de obedecer.”

A resposta chegou, insolente: “Ora vejam! Que gênio mais quente!”

Disse-lhes uma, disse-lhe duas vezes Mas empacaram como rezes.

Então uma chaleira nova peguei Própria para um fim que engenhei.

Meu coração pela boca quis sair Quando a chaleira até a borda enchi.

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“Mas é claro. Chamam-se assim porque ali os gafanhotos cortam a verde grama... “

“Com os dentes”, Alice acrescentou. “Exatamente. Depois, ‘triscitumo’ é triste, taciturno e noturnal (mais uma

palavra-valise para você). E ‘gaiolouvo’ é uma ave magricela de aspecto andrajoso com as penas espetadas para todo lado... lembra muito um

esfregão vivo.” “E os ‘porverdidos’? perguntou Alice. “Receio estar lhe dando um trabalhão.”

“Bem, ‘porverdidos’ são porcos verdes que perderam o caminho de casa.” “E que significa ‘estriguilavam’?”

“Ora, ‘estriguilar’ é algo entre estridular, guinchar, cricrilar, estrilet e as-sobiar, com uma espécie de espirro no meio - mas você terá oportunidade

de ouvir isso, talvez... lá no bosque distante... e quando tiver ouvido uma vez vai ficar completamente satisfeita. Quem andou recitando esta coisa

complicada para você?” “Li num livro”, disse Alice. “Mas andaram recitando para mim um pouco de

poesia, bem mais fácil que esta... foi o Tweedledee, acho.” “Por falar em poesia, sabe”, disse Humpty Dumpty, estendendo uma de suas

grandes mãos, “posso recitar poesia melhor que ninguém... ““Oh! Não tenho a menor dúvida!” Alice disse mais que depressa, na

esperança de detê-lo. “A peça que vou recitar”, ele continuou sem notar esta última observação,

“foi inteiramente escrita para seu divertimento.” Achando que, nesse caso, devia realmente ouvi-la, Alice se sentou e disse

um “Obrigada” desconsolado.

No inverno, quando tudo é alvo como leite, Canto esta canção só para o seu deleite...

“Só que não estou cantando”, acrescentou, à guisa de explicação. “Estou vendo”, disse Alice.

“Se consegue ver se estou cantando ou não, tem olhos mais penetrantes que a maioria das pessoas”, Humpty Dumpty observou severamente. Alice

ficou calada.

Na primavera, quando os bosques verdejam, Tentarei lhe dizer o que estes versos ensejam.

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“sempre lhe pago um adicional.” “Oh!” disse Alice. Estava perplexa demais para fazer qualquer outra ob-

servação. “Ah, precisava vê-Ias vindo me visitar num sábado à noite”, Humpty Dumpty

continuou, balançando a cabeça gravemente de um lado para outro, “para receber seus salários, sabe?”

(Alice não se atreveu a perguntar com que as pagava; por isso, como vê, não posso lhe contar.)

“Parece muito habilidoso para explicar palavras, Sir”, disse Alice. “Faria a gentileza de me dizer o significado do poema chamado ‘Pargarávio’?”

“Vamos ouvi-lo”, disse Humpty Dumpty. “Posso explicar todos os poemas que já foram inventados - e muitos que ainda não o foram.”

Como isso soava muito auspicioso, Alice repetiu a primeira estrofe:

Solumbrava, e os lubriciosos touvos Em vertigiros persondavam as verdentes;

Triscitumos calavam-se os gaiolouvos E os porverdidos estriguilavam fientes.

“Isso basta para começar”, Humpty Dumpty interrompeu-a, “há um bocado de palavras difíceis aí. ‘Solumbrava’ quer dizer que a tarde caía: é aquela

hora em que sol vai baixando e as sombras se alongam.” “Isto explica direitinho”, disse Alice. “E lubriciosos?”

“Bem, ‘lubriciosos’ significa Iúbricos que é o mesmo que escorregadios, e operosos ágeis. Entende, é uma palavra-valise... há dois sentidos embalados

numa palavra só.”!’ “Agora entendo”, Alice comentou pensativa; “e que são ‘touvos’l”

“Bem, os ‘touvos’ são um tanto parecidos com os texugos... têm um pouco de lagartos... e lembram muito um saca-rolha.”

“Devem ser criaturas de aspecto muito estranho.” “E são”, disse Humpty Dumpty, “além disso, fazem seus ninhos sob relógios

de sol... ah, e se alimentam de queijo.” “E que é ‘vertigiros’ e ‘persondavam’?”

“’Vertigiro’ é o giro vertiginosamente rápido de uma verruma. ‘Persondar’ é perfurar perscrutando.”

“E ‘verdentes’ são os canteiros de grama em volta de um relógio de sol, não é?” disse Alice, surpresa com a própria sagacidade.

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Humpty Dumpty pegou a caderneta e examinou-a atentamente. “Parece estar correto...” começou.

“Está segurando de cabeça para baixo!” Alice interrompeu. “Claro que estava!” Humpty Dumpty disse jovialmente, enquanto ela desvi-rava para ele. “Pareceu-me um pouco estranho. Como eu ia dizendo, parece

estar correto - embora eu não tenha tido tempo de examiná-la a fundo neste instante - e isso mostra que há trezentos e sessenta e quatro dias

em que você poderia ganhar presentes de desaniversário... “ “Sem dúvida”, disse Alice.

“E só um para ganhar presentes de aniversário, vê? É a glória para você!” “Não sei o que quer dizer com ‘glória’”, disse Alice.

Humpty Dumpty sorriu, desdenhoso. “Claro que não sabe... até que eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você?”?

“Mas ‘glória’ não significa ‘um belo e demolidor argumento’”, Alice objetou. “Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante

desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos.”

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”!’

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar - só isto.”Alice estava perturbada demais para dizer o que quer que fosse, de modo que, após um minuto, Humpty Dumpty recomeçou. “São temperamentais,

algumas... em particular os verbos, são os mais orgulhosos... com os adje-tivos pode-se fazer qualquer coisa, mas não com os verbos... contudo, sei

manobrar o bando todo! Impenetrabilidade! É o que eu digo!” “Poderia me dizer, por favor”, disse Alice, “o que isso significa?”

“Agora está falando como uma criança sensata”, disse Humpty Dumpty, parecendo muito satisfeito. “Quero dizer com ‘impenetrabilidade’ que já nos fartamos deste assunto e que seria muito bom se você mencionasse o que

pretende fazer em seguida, já que presumo que não pretende ficar aqui pelo resto da sua vida.”

“É um bocado para fazer uma palavra significar”, disse Alice, pensativa. “Quando faço uma palavra trabalhar tanto assim”, disse Humpty Dumpty,

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pensar melhor, “uma bela gravata, eu devia ter dito... não, um cinto... quero dizer... perdoe-me!” acrescentou assustadíssima, pois Humpty Dumpty

parecia extremamente ofendido e ela começou a desejar não ter escolhido aquele assunto. “Se eu pelo menos soubesse”, pensou consigo, “o que é

pescoço e o que é cintura!”Era evidente que Humpty Dumpty estava muito zangado, embora não tenha

dito nada por um minuto ou dois. Quando falou de novo, foi num rosnado rouco.

“É uma... coisa extremamente... irritante”, disse por fim, “que uma pessoa não saiba distinguir uma gravata de um cinto!”

“Sei que é muita ignorância minha”, disse Alice, num tom tão humilde que Humpty Dumpty abrandou.

“É uma gravata, criança, e uma bela gravata, como você diz. Foi um presente do Rei e da Rainha Brancos.

Que me diz agora?” “Foi mesmo?” perguntou Alice, muito contente ao ver que tinha escolhido

um bom assunto afinal de contas. “Deram-me a gravata”, Humpty Dumpty continuou, pensativo, enquanto

cruzava os joelhos e punha as mãos em volta deles, “deram-me ... como um presente de desaniversário.”

“Perdão?” Alice perguntou, perplexa. “Não estou ofendido”, disse Humpty Dumpty.

“Quero dizer, o que é um presente de desaniversário?” “Um presente dado quando não é seu aniversário, é claro.”

Alice refletiu um pouco. “Gosto mais de presentes de aniversário”, declarou finalmente.

“Não sabe do que está falando!” exclamou Humpty Dumpty. “Quantos dias há no ano?”

“Trezentos e sessenta e cinco”, disse Alice. “E quantos aniversários você faz?”

“Um.” “E se diminui um de trezentos e sessenta e cinco, resta quanto?”

“Trezentos e sessenta e quatro, claro.” Humpty Dumpty pareceu duvidar. “Preferiria ver essa conta no papel”, disse.

Alice não pôde conter um sorriso enquanto pegava sua caderneta e armava a subtração para ele.

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tom mais calmo. “É o que vocês chamam uma História da Inglaterra, é isso. Ora, olhe bem para mim! Sou um daqueles que falou com um Rei, eu sou:

pode ser que você nunca veja outro. E para lhe mostrar que não sou orgul-hoso, pode apertar a minha mão!’? Abriu um sorriso quase de uma orelha à outra enquanto estendia a mão (e por um triz não caiu do muro ao fazê-lo

e a oferecia a Alice. Ela olhou para ele um pouco aflita enquanto a apertava. “Se abrisse mais o sorriso os cantos da sua boca poderiam se encontrar

atrás”, pensou, “e nesse caso não sei o que aconteceria com a sua cabeça. Seria capaz de saltar fora!”

“Sim, todos os seus homens e todos os seus cavalos”, Humpty Dumpty continuou.

“Eles me levantariam de novo num segundo, levantariam sim! Mas esta conversa está avançando um pouco depressa demais. Vamos voltar para

sua penúltima observação.” “Temo não poder lembrar qual foi”, disse Alice, muito polidamente.

“Neste caso, vamos recomeçar do zero”, disse Humpty Dumpty, “e é minha vez de escolher o assunto...” (“Ele fala exatamente com se fosse um jogo!”

pensou Alice.) “Portanto, aqui está uma pergunta para você. Quantos anos disse que tinha?”

Alice fez um rápido cálculo e respondeu: “Sete anos e seis meses” “Errado!” Humpty Dumpty exclamou, triunfante.

“Você nunca disse tais palavras!” “Pensei que queria dizer ‘Quanto anos você tem? ‘” Alice explicou.

“Se tivesse querido dizer isso, teria dito isso”, disse Humpty Dumpty. Não querendo começar outra discussão, Alice não disse nada.

“Sete anos e seis meses!” Humpty Dumpty repetiu, pensativo. “Uma idade muito incômoda. Se tivesse pedido o meu conselho, eu teria dito: ‘pare nos

sete’... mas agora é tarde.” “Nunca peço conselho sobre crescimento”, Alice disse indignada.

“Orgulhosa demais?” o outro perguntou. Essa sugestão deixou Alice ainda mais indignada. “Quero dizer que uma

pessoa não pode evitar ficar mais velha.” “Uma não pode, talvez”, disse Humpty Dumpty, “mas duas podem. Com a

devida assistência, você teria podido parar em sete.”“Que cinto bonito o seu!” Alice observou de repente. (Já tinham falado mais

que o bastante sobre idade, ela pensou; e se realmente iam revezar na escolha de assuntos, agora era a sua vez. “Pelo menos”, corrigiu-se, após

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para ela pela primeira vez, “melhor me dizer seu nome e atividade.” “Meu nome é Alice, mas... “

“Um nome bem bobo!” Humpty Dumpty a interrompeu com impaciência. “O que significa?”

“Um nome deve significar alguma coisa?” Alice perguntou ambiguamente. “Claro que deve”, Humpty Dumpty respondeu com uma risada curta. “Meu

nome significa meu formato... aliás, um belo formato. Com um nome como o seu, você poderia ter praticamente qualquer formato!”

“Por que fica sentado aqui sozinho?” disse Alice, não querendo iniciar uma discussão.

“Ora, porque não há ninguém aqui comigo!” exclamou Humpty Dumpty. “Pen-sou que não teria resposta para isso? Pergunte outra.”

“Não acha que ficaria mais seguro no chão?” Alice continuou, não com qualquer ideia de propor um outro enigma, mas movida pela simples ansie-dade benévola que a estranha criatura despertava nela. “Esse muro é tão

estreitinho!”

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“Que enig-mas absurdamente fáceis você

propõe!” Humpty Dumpty res-mungou. “Claro que não acho! Se por acaso eu caísse - o que não

tem a menor chance de acontecer - mas se eu caísse...” Aqui franziu

os lábios e pareceu tão solene e majestático que Alice mal pôde

conter o riso. “Se eu caísse”, con-tinuou, “o Rei me prometeu... ah,

pode empalidecer, se quiser! Não esperava que eu fosse dizer isto, esperava? O Rei me prometeu da

sua própria boca ... que ... que “ “Mandaria todos os seus cavalos e todos os seus homens”, Alice interrompeu,

de maneira muito imprudente. “Francamente, isto é horrível!” Humpty Dumpty gritou, lançando-se numa fúria

repentina. “Andou escutando atrás das portas ... E atrás das árvores... E pelas chaminés... Ou não poderia saber disso!”

“Não andei, verdade!” Alice disse muito gentilmente. “Está num livro.” “Ah, bem! Podem escrever coisas assim num livro”, disse Humpty Dumpty num

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Capítulo 6‘Humpty ‘Dumpty

O ovo, porém, foi só ficando cada vez maior, e cada vez mais humano. Quando chegou a alguns metros dele, Alice viu que tinha olhos, nariz e boca. E quando

chegou bem perto, viu claramente que era HUMPTY DUMPTY1 em pessoa. ‘’Não pode ser mais ninguém!”disse para si mesma. “Tenho tanta certeza

quanto se ele tivesse o nome escrito na cara. ‘ Teria sido possível escrevê-Ia uma centena de vezes, facilmente, naquela cara

enorme. Humpty Durnpty estava sentado, de pernas cruzadas como um turco. ‘ em cima de um muro alto - tão estreito que Alice se perguntou assombrada como con-seguia manter o equilíbrio’ - e como ele mantinha os olhos fixos na direção oposta,

não tomando conhecimento dela, pensou que, afinal, devia ser um presunçoso. “Parece um ovo sem tirar nem pôr!” disse alto, com as mãos prontas para

segurá-Ia pois temia que caísse a qualquer momento. “É muito irritante”, Humpty Dumpty disse após um longo silêncio, sem olhar

para Alice enquanto falava, “ser chamado de ovo... muito!” “Disse que parecia um ovo, Sir”, Alice explicou gentilmente. “E há ovos muito bonitos, sabe”, acrescentou, na esperança de transformar seu comentário

numa espécie de elogio. “Certas pessoas”, disse Humpty Dumpty, desviando os olhos dela como sem-

pre, “parecem não ter mais juízo que um bebê!”Alice não soube responder. Aquilo não se parecia nada com uma conversa,

pensou, pois ele nunca dizia nada para ela; na verdade, seu último comentário foi evidentemente dirigido a uma árvore - assim, ficou quieta e repetiu suave-

mente para si mesma:”

Humpty Dumpty num muro se aboletou, Humpty Dumpty lá de cima despencou.

Todos os cavalos e os homens do Rei a arfar Não conseguiram de novo lá para cima o içar.

“Este último verso parece longo demais para o poema,” acrescentou, quase em voz alta, esquecendo que Humpty Dumpty a ouviria.

“Não fique aí falando sozinha desse jeito”, Humpty Dumpty disse, olhando

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“Gostaria de comprar um ovo, por gentileza”, disse timidamente. “Como os vende?”

“Cinco pence por um... Dois pence por dois”, a Ovelha respondeu. “Então dois custam menos que um?” perguntou Alice surpresa,

pegando a bolsa. “Só que, se comprar dois, tem de comê-los”, disse a

Ovelha. “Nesse caso quero um, por favor”, disse Alice, pondo o dinheiro no balcão. Pois pensou consigo mesma:

“Os dois não devem ser grande coisa.”!”A Ovelha pegou o dinheiro e o guardou numa

caixa. Depois disse: “Eu nunca ponho coisas nas mãos das pessoas... não é

conveniente... você mesma terá de pegá-lo.” E assim dizendo foi para

o outro canto da loja’? e pôs um ovo em pé numa prateleira.

“Pergunto-me por que seria inconveniente?” pensou

Alice, enquan-

to tentava se deslocar

por entre as mesas e cadeiras,

pois o fundo da loja era muito escuro.

“Quanto mais ando em direção ao ovo, mais longe

ele parece ficar. Deixe-me ver... isto é uma cadeira? Ui! Ela tem

galhos, tem sim! Como é estranho ter árvores crescendo aqui! E de fato

aqui está um pequeno riacho! Bem esta é a loja mais esquisita que já vi!“

Assim foi ela, espantando-se mais e mais a cada passo, pois todas as coisas

viravam árvore tão logo às alcançava, e ela estava certa de que o ovo faria o mesmo.

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ela se debruçava sobre a borda do barco, só as pontas do cabelos emara-nhados mergulhando na água ... E, com olhos faiscantes e sôfregos, apan-

hava feixe após feixe dos encantadores juncos perfumados.“Espero que o barco não vire!” disse para si mesma. “Oh, que lindo é aquele. Só que não consegui alcançá-lo.” E certamente parecia um pouco enervante (“quase como se fosse de propósito”, ela pensou) que, embora conseguisse

colher quantidades de lindos juncos a medi- da que o bote deslizava, houvesse sempre um mais lindo que não podia alcançar. “Os mais bonitos estão sempre mais longe!” disse por fim, com um suspiro ante a teimosia dos juncos em crescerem tão afastados, enquanto, faces

afogueadas e cabelo e mãos pingando, tentava voltar a seu lugar e começa-va a arrumar seus recém-descobertos tesouros.

Que lhe importava naquele momento que os juncos tivessem começado a murchar e a perder seu perfume e beleza, desde o momento em que os

colhera’” Até juncos perfumados reais, como você sabe, duram só por pouco tempo... e esses, sendo juncos de sonho, derretiam quase como neve en-

quanto repousavam em feixes aos pés dela ... mas Alice mal percebeu isso, tantas outras coisas curiosas tinha para pensar.

Não tinham ido muito longe quando a pá de um dos remos emperrou firme na água e se recusou a sair (assim Alice explicou isso mais tarde); e a

conseqüência foi que o punho dele acertou-a sob o queixo, e, apesar de uma série de “ai, ai, ai” da pobre Alice, derrubou-a do

assento e a afundou no monte de juncos. Mas ela não se machucou nadinha e logo estava de pé de novo. Enquanto

isso a Ovelha continuava com seu tricô, como se nada tivesse acontecido. “Que belo remo você enforcou!” ela observou, quando Alice voltava ao seu

lugar, bastante aliviada por ainda estar no barco. “Enforquei? Nesse caso foi sem querer”, disse Alice espiando a água escura

sobre a borda do barco cautelosamente. “Espero que não tenha sofrido muito, não gosto de

enforcar nada!” Mas a Ovelha só riu com desdém e continuou tricotando. “Há muitos remos enforcados aqui?” perguntou Alice.

“Remos enforcados e todo tipo de coisas”, disse a Ovelha. “Coisas para todo gosto, é só decidir. Diga-me, o que você quer comprar?”

“Comprar!” Alice repetiu num tom entre espantado e aterrorizado - pois os remos, o barco, o rio, haviam todos desaparecido num instante, e ela

estava de novo na lojinha escura.

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mãos e ela descobriu que estavam num barquinho, deslizando entre riban-ceiras - de modo que só lhe restava remar o melhor que podia.

“Nivelar:”!’ gritou a Ovelha, pegando um outro par de agulhas. Como esta observação não parecia requerer nenhuma resposta, Alice nada disse e continuou remando. Havia algo de muito estranho na água, ela pen-

sou, pois volta e meia os remos emperravam e só a custo saíam da água. “Nivelar! Nivelar!” a Ovelha gritou de novo, pegando mais duas agulhas. “Já,

já vai acabar enforcando o remo.”“Por que faria isso?” pensou Alice. “Tão cruel.”

“Não me ouviu dizer ‘Nivelar?’” gritou a Ovelha, furiosa, pegando um pun-hado de agulhas.

“Ouvi, de fato”, admitiu Alice: “disse isso várias vezes... e muito alto. Por favor, como se enforcam remos?”

“Com corda, é claro!” disse a Ovelha, espetando algumas das agulhas na lã, pois já não cabiam nas mãos.

“Nivelar, estou dizendo!”“Por que fica dizendo ‘nivelar’ o tempo todo?” Alice finalmente perguntou,

um tanto irritada. “Não estou desnivelada!” “Está sim”, disse a Ovelha, “você é uma patinha pateta.”

Como isso deixou Alice um pouco ofendida, não houve mais conversa por um minuto ou dois, enquanto elas deslizavam suavemente, às vezes entre ilhas

de algas (que faziam os remos resistirem ainda mais à água), e às vezes sob árvores, mas sempre com as mesmas ribanceiras sobre suas cabeças.

“Ah, por favor! Há uns juncos perfumados!” Alice exclamou, subitamente enlevada. “Há mesmo... e são tão lindos!”

“Não precisa me dizer ‘por favor’ por causa disso”, a Ovelha respondeu sem tirar os olhos do seu tricô. “Não fui eu quem os pus ali, não sou eu quem

vou tirá-los.”“Não, mas o que eu quis dizer foi, por favor, podemos esperar e colher al-

guns?” Alice suplicou. “Se não se importa de parar o barco por um minuto.” “Como posso eu pará-lo? ‘ perguntou a Ovelha. “Se você parar de remar, ele

para por si mesmo.” Assim deixou-se o barco seguir pelo ribeirão a seu bel-prazer, até que

deslizou suavemente para o meio dos juncos oscilantes. Então as manguin-has foram cuidadosamente arregaçadas, e os bracinhos mergulhados até

os cotovelos para pegar os juncos bem mais abaixo antes de quebrá-los... e por algum tempo a Ovelha e seu tricô sumiram da cabeça de Alice, enquanto

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poltrona tricotando, e vez por outra parando para fitá-la através de um grande par de óculos.

“O que deseja comprar?” perguntou a Ovelha, erguendo os olhos do seu tricô por um instante.

“Ainda não sei muito bem”, Alice respondeu, muito gentilmente. “Gostaria de dar uma olhada em tudo à minha volta primeiro, se me permite.”

“Pode olhar para a sua frente, e para os dois lados, se quiser”, disse a Ovelha, “mas não pode olhar para tudo à sua volta... a menos que tenha

olhos na nuca.” Acontece que isso Alice não tinha; assim, contentou-se em dar um giro,

olhando as prateleiras enquanto as percorria. A loja parecia cheia de toda sorte de coisas curiosas... Mas o mais estra-

nho de tudo era que, cada vez que fixava os olhos em alguma prateleira para distinguir o que havia nela, essa prateleira específica estava sempre

completamente vazia, embora as outras em torno estivessem completa-mente abarrotadas. ‘

“As coisas aqui são tão fugidias!”!’ comentou por fim num tom queixoso, depois de ter passado cerca de um minuto perseguindo em vão uma coisa

grande e lustrosa, que às vezes parecia uma boneca e outras vezes uma caixa de costura, e sempre estava na prateleira acima da que estava

olhando. “E isto é o mais irritante de tudo... mas vou lhe mostrar...” acres-centou, assaltada por um súbito pensamento. “Vou segui-Ia até a prateleira

mais alta de todas. Vai se ver em apuros para atravessar o teto, imagino!”

Mas até esse plano malogrou: a “coisa” atravessou o teto na maior tran-quilidade possível, como se estivesse muito acostumada a isso.

“Você é uma criança ou um pião?” disse a Ovelha enquanto pegava outro par de agulhas. “Vai me deixar tonta já, já, se continuar girando desse jeito.”

Agora estava trabalhando com catorze pares de agulha ao mesmo tempo e Alice não conseguia despregar os olhos dela,

espantadíssima.“Como consegue tricotar com tantas?” pensou a atônita criança consigo

mesma. “A cada minuto ela se parece mais e mais com um porco-espinho!” “Sabe remar?” a Ovelha perguntou, estendendo- lhe um par de agulhas de

tricô enquanto falava. “Sei, um pouco... mas não no seco... e não com agulhas ... “ Alice estava

começando a dizer, quando, de repente, as agulhas viraram remos em suas

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“Oh, não fique assim!” exclamou a pobre Rainha, torcendo as mãos em desespero.

“Considere a menina grande que você é. Considere a longa distância que percor-reu hoje. Considere que horas são. Con-sidere qualquer coisa, mas não chore!”

Alice não pôde deixar de rir disso, mesmo em meio às suas lágrimas. “Você con-

segue parar de chorar fazendo consider-ações?” perguntou.

“É assim que se faz”, disse a Rainha com muita decisão; “ninguém pode fazer duas

coisas ao mesmo tempo, não é? Para começar, vamos considerar a sua idade...

quantos anos tem?” “Exatamente sete anos e meio.”

“Não precisa dizer ‘exatualmente”’, a Rainha observou. “Posso acreditar sem

isso. Agora vou lhe dar uma coisa em que acreditar. Tenho precisamente cento e

um anos, cinco meses e um dia.” “Não posso acreditar nisso!” disse Alice. “Não?” disse a Rainha, com muita pena. “Tente de novo: respire fundo e feche os

olhos.”

Alice riu. “Não adianta tentar”, disse; “não se pode acreditar em coisas

impossíveis.” “Com certeza não tem muita prática”,

disse a Rainha. “Quando eu era da sua idade, sempre praticava meia hora

por dia. Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em

até seis coisas impossíveis antes do café da manhã.” Lá se vai meu xale de

novo!”O broche se abrira enquanto ela falava, e uma súbita lufada de vento carregara

o xale da Rainha para a outra margem de um pequeno riacho. A Rainha abriu os

braços de novo, e saiu voando em busca dele?

Dessa vez conseguindo agarrá-lo por si mesma.

“Peguei-o!” gritou num tom triunfante. “Agora você vai me ver prendê-lo de

novo, sozinha!” ‘’Nesse caso, seu dedo está melhor

agora, não é?” Alice disse muito polida-

mente, enquanto saltava o riachinho atrás da Rainha.” “Oh, muito melhor!” gritou a Rainha, a voz se elevando a um guincho à medida

que falava. “Muito melhor! Me-lhor! Me-e-e-elhor! Me-e-é!” A última palavra terminou num longo balido, tão parecido com o de uma ovelha que Alice real-

mente levou um susto.Olhou para a Rainha, que parecia ter se enrolado em lã de repente. Esfregou

os olhos e olhou de novo. Não conseguia entender nada do que tinha acon-tecido. Estaria numa loja? E era mesmo... Era mesmo uma ovelha que estava

sentada do outro lado do balcão? Por mais que esfregasse os olhos, tudo que conseguia entender era: estava numa lojinha escura,” com os cotovelos apoiados no balcão, e diante de si estava uma velha Ovelha, sentada numa

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“E isso só lhe fez bem, eu sei!” disse a Rainha, triunfante. “Sim, mas eu tinha feito as coisas pelas quais fui punida”, disse Alice, “isso

faz toda a diferença.” “Mas se não as tivesse feito”, continuou a Rainha, “teria sido melhor ainda;

melhor e melhor e melhor!” Sua voz foi ficando mais aguda a cada “melhor”, até que por fim se trans-

formou num guincho.Alice ia dizendo “Há alguma coisa errada...”, quando a Rainha começou a

guinchar tão alto que ela teve e deixar a frase incompleta. “Ai, ai, ai!” gritava ela, sacudindo a mão como se quisesse fazê-Ia voar fora. “Meu dedo está

sangrando! Ai, ai, ai, ai!” Seus guinchos eram tão exatamente iguais ao apito de uma locomotiva que

Alice teve de tapar os ouvidos com as duas mãos. “O que aconteceu?” quis saber, assim que teve uma chance de se fazer

ouvir. “Furou o dedo?” “Não ainda,” a Rainha disse, “mas vou furar logo, logo... ai, ai, ai!”

“Quando espera fazer isso?” Alice perguntou, com muita vontade de rir. “Quando prender meu xale de novo!” a pobre Rainha gemeu; “o broche vai se

abrir já. Ai, ai!” Enquanto dizia isso o broche se abriu e a Rainha o agarrou desvairadamente, tentando fechá-lo de novo.

“Cuidado!” exclamou Alice. “Você está segurando o broche todo torto!” E o agarrou; mas era tarde demais: o alfinete escorregara e a Rainha furara o

dedo. “Isso explica o sangramento, vê?” disse ela a Alice com um sorriso. “Agora

você entende como as coisas acontecem aqui.” “Mas por que não grita agora?” Alice perguntou,

com as mãos em posição para tapar os ouvidos de novo. “Ora, já gritei o que tinha de gritar”, disse a Rainha. “Qual seria o proveito

de repetir tudo?” A essa altura, estava clareando. “Acho que o corvo deve ter voado para

longe”, disse Alice. “Estou tão contente que tenha ido embora. Pensei que era a noite chegando.”

“Gostaria... de conseguir ficar contente!” a Rainha disse. “Só que nunca lembro a regra. Você deve ser muito feliz, vivendo neste bosque e ficando

contente quando lhe apraz!” “Só que isto aqui é tão solitário!” disse Alice, melancólica; e à idéia de sua

solidão duas grossas lágrimas lhe rolaram pelas faces.

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de quarto!”“Eu contrataria você com prazer!” propôs a Rainha. “Dois pence por semana

e geleia em dias alternados.” Alice não pôde deixar de rir, enquanto dizia: “Não quero que me contrate... e

não gosto muito de geleia.” “É uma geleia muito boa”, disse a Rainha.

“Bem, de todo modo, não quero nenhuma hoje.” “Mesmo que quisesse, não poderia ter”, disse a Rainha. “A regra é: geleia

amanhã e geleia ontem... mas nunca geleia hoje.” “Isso só pode acabar levando às vezes a ‘geleia hoje”’, Alice objetou.

“Não, não pode”, disse a Rainha. “É geleia no outro dia: hoje nunca é outro dia, entende?”

“Não a entendo”, disse Alice. “É horrivelmente confuso!” “É isso que dá viver às avessas”, disse a Rainha com doçura: “sempre deixa

a gente um pouco tonta no começo” ... “Viver às avessas!” Alice repetiu em grande assombro. “Nunca ouvi falar de

tal coisa! ‘” “... mas há uma grande vantagem nisso: a nossa memória funciona nos dois

sentidos.” “Tenho certeza de que a minha só funciona em um”, Alice observou. “Não

posso lembrar coisas antes que elas aconteçam.” “É uma mísera memória, essa sua, que só funciona para trás”, a Rainha

observou. “De que tipo de coisas você se lembra melhor?” Alice se atreveu a perguntar. “Oh, das que aconteceram daqui a duas semanas”, a Rainha respondeu num

tom displicente. “Por exemplo, agora”, ela continuou, enrolando uma larga atadura no dedo enquanto falava, “há o Mensageiro do Rei.” Está na prisão agora, sendo punido, e o julgamento não vai nem começar até quarta-feira

que vem, e, é claro, o crime vem por último.” “E se ele nunca cometer o crime?” disse Alice.

“Tanto melhor, não é?” a Rainha retrucou, prendendo a atadura em volta do dedo com um pedacinho de fita.

Alice achou que isso era inegável. “Claro que seria muito melhor”, disse, “mas não seria muito melhor para ele ser punido.”

“Nisso você está completamente errada”, disse a Rainha. “Já foi punida alguma vez?”

“Só pelo que fiz de errado”, respondeu Alice.

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Capitulo 5Lã e Água

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Alice agarrou o xale enquanto fa-lava e olhou em volta à procura da dona; um instante depois a Rainha

Branca apareceu correndo fre-neticamente pelo bosque, os dois braços abertos totalmente esti-

cados, como se estivesse voando, e Alice, muito polidamente, foi ao

encontro dela com o xale. “Foi uma sorte eu estar no camin-

ho”, disse, enquanto a ajudava a pôr o xale de novo.

A Rainha Branca olhou-a com uma expressão de incontrolável pavor e

ficou repetindo para si mesma, num sussurro, algo que soava como “pão

com manteiga, pão com manteiga’? e Alice percebeu que,

se era para haver alguma conversa, ela mesma tinha de se encarregar

disso. Assim, começou bastante tímida: “Estou me endereçando à

Rainha Branca?”“Bem, sim, se você chama isto de

adereçar”, a Rainha disse. “Não é a minha ideia da coisa, em absoluto.”

Alice, pensando que não convinha dis-cutir logo no início da conversa, sorriu

e disse: “Se Vossa Majestade tiver a bondade de me dizer qual é a maneira

certa de começar, farei isso da melhor maneira.”

“Mas não quero que seja feito de ma-neira alguma!” gemeu a pobre Rainha. “Faz duas horas que estou me desa-

dereçando.” Teria sido muito melhor, pareceu a Alice,

se ela tivesse trazido uma outra pes-soa para adereçá-Ia, tão terrivelmente

desalinhada estava. “Todos os adereços estão tortos”, Alice pensou, “e tudo está pregado com alfinete!... Posso endireitar

seu xale?” acrescentou em voz alta. “Não sei o que há de errado com ele!” lamentou a Rainha. “Está de

mau humor, acho. Eu o preguei com alfinete aqui e ali, mas nada o

contenta!” “Ele não pode ficar direito se o

prende todo de um lado só”, disse Alice, enquanto o endireitava gen-

tilmente para ela, “e, nossa! em que estado está o seu cabelo!”

“A escova ficou enganchada nele”, suspirou a Rainha. “Perdi o pente

ontem!” Alice desprendeu cuidadosamente

a escova e fez o que podia para lhe ajeitar o cabelo.

“Veja, está com uma aparência muito melhor agora!” disse após mudar a maior parte dos alfinetes de lugar.

“Mas realmente devia ter uma criada

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demorada”, disse Tweedledum. “Que horas são agora?” Tweedledee con-

sultou seu relógio e disse: “Quatro e meia.” “Vamos lutar até as seis, e depois

jantar”, disse Tweedledum. “Muito bem”, o outro concordou um tanto cabisbaixo. “E ela pode assis-

tir... só não deve chegar muito perto”, acrescentou; “costumo acertar tudo

que vejo pela frente ... quando fico realmente empolgado.”

“E eu acerto tudo que está ao meu alcance”, exclamou Tweedledum, “quer

possa vê-lo ou não!” Alice riu. “Imagino que acertem as

árvores com muita freqüência”, disse. Tweedledum olhou à sua volta com um sorriso satisfeito. “Tenho a im-

pressão”, disse, “de que não vai sobrar

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uma só de pé, por todo este trecho, quando a batalha tiver

terminado!”“E tudo por causa de um chocal-

ho!” espantou-se Alice, ainda com esperança de deixá-los um pouco

envergonhados de lutarem por tal bagatela.

“Eu não teria me importado tanto”, disse Tweedledum, “se não fosse um chocalho novo.”

“Gostaria que o corvo monstruo-so chegasse!” pensou Alice.

“Há só uma espada, você sabe”, disse Tweedledum ao irmão. “Mas você pode usar o guarda-chuva... é quase tão pontudo quanto ela.

Só que temos de começar rápido. Está escurecendo a olhos vistos.”

“E a olhos fechados”, disse Tweedledee.

Estava escurecendo tão de repente que Alice achou que uma tempestade

devia estar chegando. “Que nuvem grossa e negra aquela!” disse. “E como vem depressa! Uí, parece que tem

asas’”? “É o corvo!” Tweedledum gritou com uma voz estridente de susto. E os dois

irmãos saíram em disparada e num instante tinham sumido de vista. Alice correu um pouco mais para dentro do bosque e parou debaixo de uma

grande árvore.“Aqui ele nunca vai me pegar”, pensou, “é grande demais para se espremer entre

as árvores. Mas gostaria que não batesse tanto as asas... provoca um verdadeiro furacão no bosque - olha, ali vai o xale de alguém, soprado pelo vento!”

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voz se elevou num verdadeiro guincho. Todo esse tempo, Tweedledee estava fazendo o que podia para fechar o guarda-chuva consigo dentro: o que era uma proeza tão extraordinária

que desviou completamente a atenção de Alice do irmão enraivecido. Mas não teve sucesso e acabou caindo, enrolado no guarda-chuva, só a cabeça

de fora: e lá ficou abrindo e fechando a boca e os olhos graúdos ... “mais parecendo um peixe que qualquer outra coisa”, Alice pensou.

“Naturalmente você concorda com uma batalha?” indagou Tweedledum num tom mais calmo.

“Acho que sim”, respondeu o outro, amuado, rastejando para fora do guarda-chuva; “só que ela tem de ajudar a nos vestirmos.”

E lá se foram os dois irmãos de mãos dadas pelo bosque, e num minuto estavam de volta com os braços carregados de coisas... Como travesseiros,

cobertores, tapetes, toalhas de mesa, abafadores e baldes de carvão. “Espero que você tenha uma boa mão para alfinetar e dar laços!” Tweedledum

observou. “É preciso encaixar cada uma destas coisas, de um jeito ou de outro.” Alice contou mais tarde que nunca vira tanto barulho feito por nada em toda a sua vida: o alvoroço daqueles dois... E a quantidade de coisas que puseram sobre si... E a trabalhadeira que lhe deram para amarrar cordões e abotoar... “Realmente, quando ficarem prontos vão estar mais parecidos com trouxas

de roupa velha que com qualquer outra coisa!” disse consigo mesma, enquanto ajeitava uma almofada roliça em volta do pescoço do Tweedledee, “para evitar

que sua cabeça fosse cortada fora”,” como ele disse. “Sabe”, ele acrescentou muito gravemente, “essa é uma das coisas mais graves que podem acontecer numa batalha... ter a cabeça cortada fora.”

Alice não conseguiu conter o riso, mas deu um jeito de transformá-lo numa tosse, receando ferir-lhe os sentimentos.

“Estou muito pálido?” perguntou Tweedledum, aproximando-se para que seu elmo fosse preso. (Ele chamava aquilo de elmo, embora certamente mais parecesse uma caçarola.)

“Bem... está... um pouco”, Alice respondeu gentilmente. “Sou muito corajoso em geral”, ele continuou em voz baixa; “só que logo hoje

estou com dor de cabeça.”“E eu com dor de dente!” disse Tweedledee, que conseguira ouvir o comen-

tário. “Estou muito pior que você!” “Nesse caso não deveriam lutar hoje”, disse Alice, vendo ali um bom pre-

texto para as pazes. “Temos de lutar um pouquinho, mas não faço questão de uma luta muito

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impedir de dizer: “Psss! Receio que vá acordá-lo se fizer tanto barulho.” “Bem, não adianta você falar sobre acordá-lo”, disse Tweedledum, “quando não passa de uma das coisas do sonho dele. Você sabe muito bem que não

é real.” “Eu sou real!” disse Alice e começou a chorar.

“Não vai ficar nem um pingo mais real chorando”, observou Tweedledee. “Não há motivo para choro.”

“Se eu não fosse real”, disse Alice - meio rindo por entre as lágrimas, tão absurdo aquilo tudo parecia -, “não conseguiria chorar.”

“Espero que não imagine que suas lágrimas são reais!” Tweedledum inter-rompeu-a, num tom de profundo desdém.

“Sei que estão falando absurdos”, Alice pensou consigo, “e é tolice chorar por causa disso.”

Assim, enxugou as lágrimas e continuou, no tom mais alegre que pôde. “Seja como for, tenho de ir embora do bosque, pois está ficando muito

escuro. Acham que vai chover?” Tweedledum, que abriu um enorme guarda-chuva sobre ele e o irmão, olhou

para cima e disse: “Não, não acho que vai. Pelo menos... não aqui embaixo. De maneira alguma.”

“Mas será que pode chover aqui fora?” “Pode... se escolher”, disse Tweedledee; “não fazemos nenhuma objeção. Ao contrário.”

“Criaturas egoístas!” pensou Alice e já ia dizer “Boa noite” e deixá-los quando Tweedledum saltou fora do guarda-chuva e a agarrou pelo pulso.

“Está vendo aquilo?” perguntou, numa voz embargada pela emoção, e seus olhos ficaram grandes e amarelos de repente, enquanto apontava um dedo

trêmulo para uma coisinha branca caída sob a árvore. “É só um chocalho”, disse Alice, após cuidadoso exame da coisinha branca. “E não

está na ponta do rabo de nenhuma cascavel, sabe?” deu-se pressa em acrescentar, achando que ele estava apavorado. “Só um chocalho velho... bem velho e quebrado.”

“Sabia que era!” exclamou Tweedledum, começando a bater o pé furiosa-mente para todos os lados e a puxar o cabelo. “Está estragado, é claro!”

Aqui olhou para Tweedledee, que imediatamente se sentou no chão e tentou se esconder debaixo do guarda-chuva.

Alice pousou a mão no seu braço e disse em tom apaziguador: “Não precisa ficar tão zangado por causa de um chocalho velho.”

“Mas não é velho!” gritou Tweedledum, mais furioso que nunca. “É novo, estou lhe dizendo... comprei-o ontem... meu lindo CHOCALHO NOVO!” e sua

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“Gosto mais da Morsa”, disse Alice. “Porque, veja, ela teve um pouco de pena das pobres ostras.”

“Mas comeu mais que o Carpinteiro”, disse Tweedledee. “Repare, ela segurou o lenço na sua frente, para o Carpinteiro não poder contar quantas comia:

ao contrário.”“Isso foi mesquinho!” Alice exclamou indignada.

“Se é assim gosto mais do Carpinteiro... se é que não comeu tantas quanto a Morsa.“Mas ele comeu o mais que pôde”, disse Tweedledee.

Aquilo era perturbador. Depois de uma pausa, Alice começou: “Bem! Eram ambos tipos muito desagradáveis... “ Neste ponto calou-se, um tanto assus-

tada, ao ouvir algo que lhe lembrava o resfolegar de uma locomotiva a vapor perto deles no bosque, embora temesse que, mais provavelmente, fosse um

animal selvagem. “Há leões ou tigres por aqui?” perguntou timidamente.“É só o Rei Vermelho roncando”, disse Tweedledee.

“Venha ver!” gritaram os irmãos. Cada um pegou uma das mãos de Alice e a levaram até onde o Rei dormia.

“Não é uma visão encantadora?” disse Tweedledum.Para ser sincera, Alice não podia concordar. O Rei usava uma touca de

dormir vermelha e alta, com um pompom, estava encolhido como uma trouxa mal- ajambrada e roncando alto... “Esse ronco é capaz de lhe arrancar a

cabeça fora!” comentou Tweedledum.“Receio que pegue um resfriado, deitado assim no capim úmido”, disse Alice,

que era uma menininha muito atenciosa.“Agora está sonhando”, observou Tweedledee.

“Com que acha que ele sonha?”Alice disse: “Isso ninguém pode saber.”

“Ora, com você!” Tweedledee exclamou, batendo palmas, triunfante. “E se parasse de sonhar com você, onde acha que você estaria?”

“Onde estou agora, é claro,” respondeu Alice.“Não, não!” Tweedledee retrucou desdenhoso.

“Não estaria em lugar algum. Ora, você é só uma espécie de coisa no sonho dele’”? “Se o Rei acordasse”, acrescentou Tweedledum, “você sumiria... puf ... exata-

mente como uma vela!”“Não sumiria!” Alice exclamou indignada. “Além disso, se sou só uma espécie

de coisa no sonho dele, gostaria de saber o que vocês são?” “Idem”, disse Tweedledum.

“Idem, ibidem’’, gritou Tweedledee. E gritou tão alto que Alice não pôde se

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“Mas não vão nos jantar!” as Ostras gritaram Perdendo um pouquinho a cor.

“Após tanta gentileza, Oh, é tão desolador!”

“É uma bela noite”, disse a Morsa, “Apreciam esta beleza?”

“Foram tão gentis conosco!Não criaram um só embaraço!”

O Carpinteiro disse apenas:“Corte-me mais um pedaço!

Minha fome é tamanhaQue todo este pão hoje eu traço.”

“É uma vergonha”, a Morsa disse,“Lhes fazer uma falseta dessa,

Depois que as trouxemos tão longe E as fizemos andar tão depressa!”

O carpinteiro disse só:“Vamos à primeira remessa!”

“Choro por vocês”, a Morsa disse.“Tenho o coração contristado.”E entre soluços e lágrimas, foi

Puxando as graúdas p’ro seu lado.Depois, levou o lenço aos olhos,Que ainda estavam marejados.

Ó Ostras”, disse o Carpinteiro.“Fizeram uma bela corrida!

Que tal correr de volta pra casa?”Mas nenhuma resposta foi ouvida...

E não era de estranhar, porqueOstra por ostra tinha sido comida.

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Sapatos nos trinques e rabo de cavalo.E isso era estranho, se bem pesado,

Porque tinham o coco rapado.

Quatro outras Ostras as seguiramE depois mais, de par em par.Por fim aos bandos chegaram,

E foi um não mais acabar.Todas saltando na espuma das ondas,

E voltando à praia a bracejar.

A Morsa e o CarpinteiroAndaram um bom estirão.

Depois descansaram numa pedraJeitosa que havia no chão.Então as ostrinhas todas

Puseram-se em fila, de prontidão.

“É chegada a hora” , disse a Morsa, “De falar de muitas coisas:

De sapatos... e barcos... e vazas ... De repolhos. “e reis... e lousas...

E por que o mar tanto ferve E se os porcos têm asas. “

“Só um minutinho”, as Ostras gritaram, “Antes da nossa conversa; Estamos tão esbaforidas,

Viemos em tal correria!” “Temos tempo!” disse o Carpinteiro,

Rindo, num gesto de galhardia.

“Um naco de pão”, a Morsa disse, “É o que vem a calhar;

Depois pimenta e vinagreNão são de se dispensar...

Já estão prontas, Ostrinhas queridas?“Vamos dar início ao jantar.”

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O mar estava molhado; mais não podia estar. A areia estava seca a não poder mais secar.

Nuvem, não se via uma só, porque Não havia nenhuma no céu a flutuar. Nenhum pássaro cortava os ares ... Pois não havia pássaros para voar.

A Morsa e o Carpinteiro Caminhavam lado a lado

Choravam copiosamente ao ver

O chão assim, tão de areia forrado:“Se ao menos fizessem uma faxina,” diziam,

“Isto poderia ficar em bom estado!”

“Se sete criadas com sete esfregõesPor um ano isto aqui esfregassem,

“Acha possível”, a Morsa perguntou,“Que toda esta areia limpassem?”

“Duvido”, disse o CarpinteiroE uma lágrima sentida derramou.

Ó Ostras, venham fazer um passeio!”Disse a Morsa suplicante.

“Uma boa conversa, um belo recreio,Pelas praias verdejantes:

Mas apenas quatro em cada volteioPara as mãos lhes dar adiante. “

A Ostra mais velha o relanceouMas a boca não disse palavra.

Deu apenas uma Piscadela,E a pesada cabeça meneou...A sugerir: “Deixar a ostreira

Paraflanar? “Ai, isso não vou.”

Quatro ostrinhas, porém, acorreram,Muito sôfregas pelo regalo:

Todas de vestidinho limpo, rosto lavado,

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pararam de dançar tão de repente quanto haviam começado. A música cessou no mesmo instante.

Soltaram as mãos de Alice e ficaram um minuto olhando para ela; foi uma pausa um tanto contrafeita, pois Alice não sabia como entabular uma con-versa com pessoas com quem acabara de dançar. “Não caberia dizer ‘Como

vai você? ‘ agora”, pensou com seus botões; “de algum modo, parece que fomos além desse ponto.”

“Espero que não estejam muito cansados!” disse por fim. “De maneira alguma. E muito obrigado por perguntar”, disse Tweedledum.

“Gratíssimo!” acrescentou Tweedledee. “Gosta de poesia?” “Gosto, bastante... de algumas poesias,” Alice respondeu hesitante. “Pode-

riam me dizer que estrada tomar para sair do bosque?”“Que posso recitar para ela?” disse Tweedledee, voltando para Tweedledum

uns olhos arregalados e solenes, sem fazer caso da pergunta de Alice. “’A Morsa e o Carpinteiro’ é a mais comprida”, Tweedledum respondeu,

dando um afetuoso abraço no irmão. Tweedledee começou imediatamente:

O sol brilhava...

Nesse ponto Alice arriscou interrornpê-lo. “Se é muito comprida”, disse o mais polidamente que pôde, “poderiam, por favor, me dizer primeiro qual é a estrada... “

Tweedledee sorriu gentilmente, e recomeçou.”

O sol brilhava sobre o mar,

Com raios certeiros, pujantes. Aplicava sua melhor arte

A tornar as ondas coruscantes. E isso era estranho porque

Batera meia-noite pouco antes.

A lua brilhava mofina, Porque pensava que o sol, Depois que o dia termina,

Devia se retirar. “É muita indelicadeza”, dizia,

“Vir aqui me ofuscar.”

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Mas os homenzinhos gordos apenas se entreolharam e sorriram. Pareciam tão exatamente um par de colegiais balofos que Alice não pôde evitar apontar o dedo para Tweedledum e dizer: “O Primeiro da Classe!’?

“De maneira alguma!” Tweedledum exclamou rapidamente, e fechou a boca de novo com um estalo.

“O Segundo!” disse Alice passando para Tweedledee, embora tivesse certeza de que ele iria apenas gritar “Ao contrário!”, e foi o que fez.

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“Você fez tudo errado!” exclamou Tweedledum. “A primeira coisa numa visita é dizer ‘Como vai? ‘ e dar um aperto de mão!” E aqui os dois irmãos se deram um abraço e estenderam as duas mãos que

tinham livres para ela apertar.Alice não queria apertar a mão de qualquer dos dois em primeiro

lugar, temerosa de ferir os sentimentos do outro; assim, a melhor saída lhe pareceu apertar ambas as mãos ao mesmo tempo; um instante depois eles estavam dançando em círculo. Isso pareceu perfeitamente natural (ela lembrou depois), e não ficou surpresa

nem quando ouviu uma música: parecia vir da árvore sob a qual dançavam, e era produzida (pelo que pôde entender) pelos galhos

se esfregando uns contra os outros, como rabecas e arcos. “Mas sem dúvida foi divertido” (Alice disse mais tarde, quando estava contando toda esta história à irmã) “me ver cantando

‘Ciranda, cirandinha’. Não sei quando comecei, mas a minha im-pressão era que estava cantando aquilo havia muito tempo!”

Os outros dois dançarinos eram gordos e logo ficaram sem fôlego. “Quatro voltas é o bastante para uma dança”, bufou Tweedledum, e

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Page 145: Projeto Acadêmico

Capítulo 4 Tweedledum e Tweedledee

“Estavam de pé’ sob uma árvore, um abraçando o pescoço do outro, e Alice soube no mesmo instante qual era qual porque um deles tinha “DUM” bor-

dado na gola e o outro, “DEE”.“Imagino que ambos têm “TWEEDLE” escrito na parte de trás da gola”, disse

para si mesma. Estavam tão quietos que ela esqueceu por completo que estavam vivos

e, justamente quando ia espichando o olho para ver se havia a palavra “TWEEDLE” escrita na parte de trás das duas golas, teve um sobressalto

ao ouvir uma voz vindo do que tinha a marca “DUM”. “Se pensa que somos bonecos de cera”, ele disse, “devia pagar ingresso,

não é? Bonecos de cera não são feitos para serem vistos de graça, de maneira alguma!”

“Ao contrário”, acrescentou o que tinha a marca “DEE” , “se acha que somos vivos, devia falar.”

“Lamento muito, acreditem”, foi tudo que Alice conseguiu dizer; pois as palavras da velha canção insistiam em ecoar na sua cabeça como o tique-

taque de um relógio, e mal conseguiu evitar repeti-Ia em voz alta.

Tweedledum e Tweedledee Andam em grande ralho;

Pois, disse Tweedledum, Tweedledee Desafinara seu chocalho.

Iam os dois se engalfinhar, Quando um corvo imenso, escuro,

Veio nossos heróis espantar, E os dois fugiram, em grande apuro.

“Sei no que está pensando”, disse Tweedledum; “mas não é isso, de maneira alguma.” “Ao contrário”, continuou Tweedledee, “se era assim, podia ser; e se fosse

assim, seria; mas como não é, não é. Isto é lógico.” “Estava pensando”, disse Alice muito cortês, “qual será o melhor caminho para

sair deste bosque; está ficando tão escuro! Poderiam me dizer, por favor?”

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Page 146: Projeto Acadêmico

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Mas isso não parecia provável. Andou e andou por um longo

tempo, mas sempre que a estrada se dividia lá estavam

as duas setas, apontando a mesma direção, uma com os

dizeres “POR AQUI - CASA DE TWEEDLEDUM” e a outra “CASA

DE TWEEDLEDEE – POR AQUI”.“Desconfio,” disse Alice por

fim, “que eles moram na mesma casa! Não sei como não pensei

nisso antes... Mas não posso ficar muito tempo lá. Vou só

dar uma chegadinha, dizer ‘olá, como vão?’ e lhes perguntar o caminho para sair do bosque.

Se pelo menos eu chegar à Oi-

tava Casa antes do anoitecer!” Assim foi divagando, falando

consigo mesma enquanto caminhava, até que, numa curva

fechada, deu de encontro com dois homenzinhos gordos, tão

de repente que não pôde evitar dar um salto para trás, mas

logo se recobrou, certa de que só podiam ser’”

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Page 147: Projeto Acadêmico

da árvore. “Como é que isto se chama, afinal? Acredito que não tem nome... ora, com certeza não tem!”

Ficou em silêncio um minuto, pensando. Depois, de repente, recomeçou. “Então, no fim das contas a coisa realmente aconteceu! E

agora, quem sou eu? Vou me lembrar se puder! Estou decidida!” Mas estar decidida não ajudou muito, e tudo que conseguiu dizer, depois

de quebrar muito a cabeça, foi: “L, eu sei que começa com L!”Nesse instante apareceu uma Corça” vagando por ali; olhou para Alice

com seus olhos grandes e meigos, mas não se assustou nadinha. “Venha cá! Venha cá!” dis-

se Alice, esticando a mão e tentando afagá-la; mas a Corça só recuou um pouco e voltou a olhar para Alice.

“Como você se chama?” finalmente a Corça perguntou. Que voz doce e suave tinha!

“Quem me dera saber!” pensou a pobre Alice. Respondeu, um tanto acabrunhada: ‘’Nada, por enquanto.”

“Pense bem”, a Corça disse, “esse não serve.” Alice pensou, mas não adiantou coisa alguma. “Por favor, poderia me

dizer como você se chama?” disse timidamente. “Acho que isso pode-ria ajudar um pouco.”

“Vou lhe dizer se vier um pouco adiante comigo”, disse a Corça. “Aqui não consigo me lembrar.”

Assim, saíram caminhando juntas pelo bosque, Alice abraçando afetuosamente o pescoço macio da Corça, até que chegaram a um

outro campo aberto; então a Corça deu um súbito pinote no ar e se desvencilhou dos braços de Alice. “Sou uma Corça! “gritou radiante, “e, oh! você é uma criança humana!” Uma expressão de susto tomou de repente seus bonitos olhos castanhos e no instante seguinte ela

fugiu como um raio. Alice ficou procurando-a, prestes a chorar de frustração por ter

perdido sua querida companheira de viagem tão de repente. “De todo modo, agora sei meu nome”, disse, “é algum consolo. Alice... Alice ...

não vou esquecer de novo. E agora, qual dessas setas devo seguir?” Não era uma pergunta muito difícil, já que uma única estrada

atravessava o bosque, e as duas setas apontavam para ela. “Vou resolver a questão”, disse Alice consigo, “quando a estrada se dividir

e elas apontarem rumos diferentes.”

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“Isso nunca daria certo, tenho certeza”, disse Alice. “Nunca passaria pela cabeça da governanta me dispensar do estudo por causa disso. Se ela não lembrasse do meu nome, me chamaria de ‘Senhora!’, como

as governantas fazem.” “Bem, se ela dissesse só ‘Senhora”’, o Mosquito observou, “você diria que está sem hora e não iria estudar... É uma piadinha. Gostaria que

você a tivesse feito.” “Por que desejaria que eu a tivesse feito?” Alice perguntou. “É um

trocadilho infame.” O Mosquito limitou-se a suspirar profundamente, enquanto duas

grossas lágrimas lhe rolavam pelas faces. “Não devia fazer piadas”, disse Alice, “se isso o deixa tão infeliz.”

Seguiu-se mais um daqueles suspirozinhos tristonhos, e dessa vez o pobre Mosquito pareceu realmente ter se desfeito em lágrimas,

porque quando Alice levantou os olhos não encontrou mais nada no galho e, como já estava sentindo um pouco de frio por ficar tanto

tempo sentada quieta, levantou-se e saiu andando. Logo chegou a um campo aberto, com um bosque do outro lado; pare-cia mais escuro que o último bosque e Alice sentiu um pouco de medo

de entrar nele. Refletindo melhor, no entanto, resolveu ir em frente, “pois para trás é que não vou, com certeza”, pensou, e aquele era o

único caminho para Oitava Casa. “Este deve ser o bosque”, disse pensativamente, “em que as coisas

não têm nomes. O que será que vai ser do meu nome quando eu entrar nele? Não gostaria nada de perdê-lo... porque teriam de me dar

outro, e é quase certo que seria um nome feio. Mas, nesse caso, o en-graçado seria tentar encontrar a criatura que ficou com meu antigo nome! Igualzinho àqueles anúncios, sabe, quando as pessoas perdem

cachorros: ‘Responde pelo nome ‘Dash’ usava uma coleira de latão ... ‘ Imagine ficar chamando todas as coisas que eu encontrasse de ‘Alice’ até que uma delas respondesse! Só que elas não responderiam nada,

se fossem espertas.” Assim divagava quando chegou ao bosque: parecia muito fresco e

sombrio. “Bem, de todo modo é um grande alívio”, disse ao entrar sob as árvores, “depois de sentir tanto calor, entrar sob... o quê?” con-

tinuou bastante surpresa de não conseguir lembrar a palavra. “Quero dizer entrar sob... sob as... sob isto, entende!” pondo a mão no tronco

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Page 149: Projeto Acadêmico

continuou. “Há também a libélula.”

“Olhe para o galho em cima da sua cabeça”, disse o Mosquito, “e vai ver uma Libélula-de-natal. Seu corpo é de pudim de passas, as asas

de azevinho, e a cabeça é uma passa flambada ao conhaque.” “E ela come o quê?” perguntou Alice, como antes.

“Manjar-branco e pastel de carne”, o Mosquito respondeu; “e faz seu ninho na árvore de Natal.”

“Então há a Borboleta, Alice continuou, depois de ter dado uma boa olhada no inseto com a cabeça em chamas e pensado consigo mesma:

“Desconfio que é por isso que os insetos gostam tanto de voar para as velas... Vontade de

virar libélulas-de-natal!”“Rastejando aos seus pés”, disse o Mosquito (Alice encolheu os pés um tanto assustada), “você pode observar uma Borboleteiga. Suas asas são fatias finas de pão com manteiga, o corpo é de casca de

pão, a cabeça é um torrão de açúcar.”“E o que ela come?”

“Chá fraco com creme.” Uma nova dificuldade surgiu na cabeça de Alice:

“E se ela não conseguisse encontrar nenhum?” sugeriu. “Nesse caso morreria, é claro.”

“Mas isso deve acontecer com muita freqüência”, Alice observou, pensativa.

“Sempre acontece”, disse o Mosquito. Depois disso, Alice ficou em silêncio por um minuto ou dois, refletin-do. Nesse meio tempo o Mosquito se divertia dando voltas e voltas

em tomo da cabeça dela, zumbindo. Finalmente sossegou e fez um comentário:

“Você não quer perder o seu nome, não é?” “Não, de jeito nenhum”, disse Alice, um pouco agoniada.

“No entanto, não sei”, continuou o Mosquito num tom displicente: “pense só como seria conveniente se você conseguisse ir para casa

sem ele! Por exemplo, se a governanta quisesse chamá-la para estudar, ela diria “venha cá... “e

teria de parar por aí, porque não teria nenhum nome para chamá-la - e, é claro, você não teria de ir, entendeu?”

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Page 150: Projeto Acadêmico

Mas a barba pareceu se dissolver quando ela a tocou, e Alice se viu sentada tranqüilamente sob uma árvore... Enquanto o Mosquito (pois

esse era o inseto com quem estivera conversando) se balançava num ramo bem em cima da sua

cabeça e a abanava com as asas. Era certamente um Mosquito muito grande: “mais ou menos do

tamanho de uma galinha”, Alice pensou. Mesmo assim, não podia se sentir nervosa com ele, depois de terem estado conversando por

tanto tempo. “... então não gosta de todos os insetos?” continuou o Mosquito,

tranqüilo como se nada tivesse acontecido. “Gosto deles quando sabem falar”, disse Alice. “Lá de onde eu venho,

nenhum deles jamais falou.” “Que tipo de inseto lhe agrada mais, lá de onde você vem?” o Mos-

quito indagou. “Insetos não me agradam”, Alice explicou, “porque tenho bastante

medo deles... pelo menos dos grandes. Mas posso lhe dizer os nomes de alguns.”

“Claro que eles atendem pelo nome, não é?” o Mosquito comentou irrefletidamente.

“Nunca soube que o fizessem.” “De que serve terem nomes”, disse o Mosquito, “se não atendem por

eles?”“Não serve de nada para eles”, disse Alice, “mas é útil para as pes-

soas que lhes dão nomes, suponho. Senão, para que afinal as coisas têm nome?”

“Isso eu não sei”, respondeu o Mosquito. “Lá longe, no bosque, elas não têm nome nenhum... seja como for, diga lá sua lista de insetos -

está perdendo tempo.” “Bem, tem a mosca”, Alice começou, contando os nomes nos dedos. “Certo”, disse o Mosquito, “no meio daquele arbusto ali você vai ver uma ‘moscavalo’, se olhar bem. Não sossega, passa o dia se balan-

çando de galho em galho.” “Ela come o quê?” Alice perguntou com grande curiosidade.

“Seiva e serragem”, disse o Mosquito. “Prossiga com a lista.” Alice olhou para a moscavalo, muito interessada, e concluiu que

tinha acabado de ser repintada, tão reluzente e pegajosa parecia; e

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Page 151: Projeto Acadêmico

pelo resto da viagem “ e assim por diante. Mas o cavalheiro vestido de papel branco curvou-se e lhe sussur-

rou no ouvido: “Não ligue para o que estão dizendo, minha cara, mas compre uma passagem de volta cada vez que o trem parar.”

“De jeito nenhum!” disse Alice, um tanto impaciente. “Nem sei o que estou fazendo nesta viagem de trem... agora mesmo estava num

bosque... e gostaria de poder voltar para lá!” “Você poderia fazer uma piada com isso”, disse a vozinha ao pé do seu ouvido;

“algo como ‘queriils mas não podiils’, não é?”

“Pare de caçoar assim”, disse Alice, olhando em volta sem conseguir descobrir de onde vinha a voz; “se está tão aflito por uma piada, por

que você mesmo não faz uma?” A vozinha deu um suspiro profundo.” Estava muito infeliz, evidente-mente, e Alice lhe teria dito uma palavra de consolo, “se pelo menos

suspirasse como as outras pessoas!” ela pensou. Mas aquele foi um suspiro tão assombro, samente pequenininho que nem o teria escuta-

do se não tivesse sido dado bem junto do seu ouvido. A conseqüên-cia foi que sentiu muita cócega no ouvido, e a infelicidade da pobre

criaturinha desapareceu da sua cabeça. “Sei que você é uma amiga”, a vozinha continuou: “uma amiga querida e uma velha amiga.

E você não vai me ferir, embora eu seja um inseto.”

“Que tipo de inseto?”, Alice indagou um pouco apreensiva. O que real-mente queria saber era se picava ou não, mas lhe pareceu que essa

não seria uma pergunta muito polida.“Ora então você não... “, começou a vozinha, quando foi abafada por um apito

estridente da locomotiva, e todos deram um pulo de susto, inclusive Alice. O Cavalo, que tinha posto a cabeça para fora da janela, recolheu-a

calmamente e disse: “É só um riacho que temos de saltar.” Todos pareceram satisfeitos com a explicação, embora Alice tenha se sen-

tido um pouco nervosa à simples idéia de trens saltando. “De todo modo, ele vai nos levar para a Quarta Casa, já é um consolo!” disse para si mesma. Um instante depois sentiu que o vagão estava sub-

indo pelos ares e, no seu pavor, agarrou o que estava mais perto da sua mão, que calhou ser a barba da Cabra.

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Page 152: Projeto Acadêmico

“Vamos lá! Mostre sua passagem, criança!” prosseguiu o Guarda, olhando irritado para Alice.

E uma porção de vozes exclamou ao mesmo tempo (“como o refrão de uma canção”, pensou Alice): “Não o faça esperar, criança! Ora, o tempo dele vale mil libras o minuto!”

“Sinto muito, mas não tenho passagem”, Alice disse atemorizada; “não havia guichê lá de onde vim.” E o coro de vozes recomeçou: “Não havia lugar

para uma pessoa lá de onde ela veio. A terra lá vale mil libras o centímetro! ““Não me venha com desculpas”, disse o Guarda; “devia ter comprado uma do maquinista.” E de novo o coro de vozes se ergueu com: “Com o maquini-

sta. Ora, só a fumaça vale mil libras a baforada!?Alice pensou consigo: “Se é assim, não adianta nada falar.” Dessa vez as vozes não a acompanharam, já que ela não falara, mas, para sua grande surpresa, todas pensaram em coro (espero que você entenda o que sig-

nifica pensar em coro... porque devo confessar que eu não entendo): “Melhor não dizer nada. A fala vale mil libras a palavra!”

“Vou sonhar com mil libras esta noite, tenho certeza!” pensou Alice.“Durante todo esse tempo o Guarda estava olhando para ela, primeiro através de um telescópio, depois com um microscópio e depois com um binóculo.” Final-

mente disse: “Você está na direção errada”, fechou a janela e foi embora. “Uma criança tão pequena”, disse o cavalheiro sentado diante dela (a roupa

dele era de papel branco), “deveria saber em que direção está indo, mesmo que não saiba o próprio nome!”

Uma Cabra, que estava sentada junto ao cavalheiro de branco, fechou os olhos e disse alto: “Ela devia saber como chegar ao guichê, mesmo que não saiba o bê-á-bá.”

Havia um Besouro sentado perto da Cabra (tratava-se de um vagão com passage-iros muito esquisitos), e, como a regra parecia ser que cada um falasse de uma vez, ele continuou com: “Ela vai ter de ser despachada de volta como bagagem.” Alice não podia ver quem estava sentado na frente do Besouro, mas em

seguida uma voz rouca falou, num tom grosseiro: “Trocar de locomotivas ... “ - e nesse ponto engasgou e foi obrigado a parar.

“Parece que é um cavalo”, Alice pensou. E um fiozinho de voz disse, perto do seu ouvido: “Você podia fazer uma piada sobre isso... algo sobre ‘cavalo’ e ‘cavalice’, não é?”

Depois uma voz muito meiga disse à distância: “Será preciso lhe pregar uma etiqueta ‘Mocinha. Cuidado, é frágil’.”?

Depois dessa, outras vozes se fizeram ouvir (“Quanta gente neste vagão!” pensou Alice), dizendo: “Deve ir pelo correio, pois está selada “Deve ser

enviada como uma mensagem pelo telégrafo” “Deve puxar o trem ela própria

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Page 153: Projeto Acadêmico

Capítulo 3 Insetos do espelho

“Passagens, por favor!” disse o Guarda, enfiando a cabeça pela janela. Num instante todos estavam empun-hando passagens: eram mais ou menos do tamanho das pessoas e

pareciam encher completamente o vagão.

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Evidentemente a primeira coisa a fazer era um levantamento completo da região que iria atravessar. “É muito parecido com estudar geografia”, pensou Alice, erguendo-se nas pontas dos pés na esperança de conseguir ver um pouco mais longe. “Rios

principais... não há nenhum. Montanhas principais... estou em cima da única, mas não me parece que tenha nome. Cidades principais... ora, o que são aquelas criaturas

fazendo mel ali? Abelhas não podem ser... quem já enxergou abelhas a um quilômetro de distância?” E ficou em silêncio por algum tempo, observando uma delas que se

alvoroçava entre as flores, fincando-lhes o proboscídeo, “exatamente como uma abelha comum”, pensou Alice.

No entanto, aquilo era tudo menos uma abelha comum: na verdade era um elefante... como Alice logo descobriu, embora de início a idéia a tenha deixado

completamente sem fôlego. “E que flores enormes devem ser aquelas!” foi o que pensou em seguida. “Como se fossem cabanas sem teto e com hastes... e que

quantidade de mel devem produzir! Acho que vou descer e ... não, ainda não”, continuou, contendo-se quando já começava a correr morro abaixo, tentando

arranjar alguma desculpa para ficar tão precavida de repente. “Não vai adian-tar nada descer até eles sem um galho jeitoso, comprido, para tangê- los, e

como vai ser engraçado quando me perguntarem se gostei do meu passeio. Vou dizer: ‘Ah, gostei muito... ‘” (aqui deu sua sacudidela de cabeça favorita), ‘’’só

que estava tão quente e poeirento, e os elefantes incomodavam tanto! ‘” “Acho que vou descer pelo outro lado”, disse após uma pausa; “e talvez possa visitar

os elefantes mais tarde. Além disso, quero tanto chegar à Terceira Casa!”Com essa desculpa, desceu o morro correndo e saltou por sobre o primeiro dos seis riachinhos.

Page 154: Projeto Acadêmico

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‘“Não, obrigada”, recusou Alice; “um foi o bastante!”

“Matou a sede, espero”, disse a Rainha. Alice não soube o que responder,

mas felizmente a Rainha não esperou resposta, continuando: “Ao fim de três metros vou repeti-Ias... para o caso de

você as ter esquecido. Ao fim de quatro, vou dizer adeus. E ao fim de cinco, vou-

me embora!” A essa altura tinha fincado todas as

estacas, e Alice olhou-a com muito interesse enquanto ela voltava para a

árvore e em seguida começava a camin-har lentamente ao longo da fila.

Junto à estaca dos dois metros a Rainha virou o rosto e disse: “Um peão

avança duas casas em seu primeiro movimento, como você sabe. Assim, você vai avançar muito rápido para a Terceira

Casa... de trem, eu acho... e num in-stante vai se ver na Quarta Casa. Bem,

essa casa pertence a Tweedledum e Tweedledee ... a Quinta é quase só água ... a Sexta pertence a Humpty Dumpty ... Mas você não faz nenhum comentário?”

“Eu... eu não sabia que devia fazer al-gum... bem nesse ponto”, Alice gaguejou.

“Devia ter dito”, prosseguiu a Rainha em tom de grave censura, “’é extremamente

gentil de a sua parte me falar tudo isto’... mas vamos supor que isso foi dito... a

Sétima Casa é toda no bosque, contudo, um dos Cavaleiros lhe mostrará o caminho

e na Oitava Casa, nós as Rainhas, estaremos juntas; é tudo festa e

diversão!” Alice se levantou, fez uma reverência e se sentou de novo.

Na estaca seguinte a Rainha se virou e, desta vez, disse: “Fale

em francês quando a palavra em inglês para alguma coisa não lhe

ocorrer... ande com as pontas dos pés para fora e lembre-se de quem

você é.” Não esperou que Alice fizesse uma reverência dessa vez,

caminhando rápido para a outra estaca, onde se virou por um in-

stante para dizer “Adeus” e correu para a seguinte.

Como aquilo aconteceu, Alice nunca soube, mas exatamente ao chegar à última estaca, a Rainha desapareceu.!”Se sumiu no ar ou

se correu veloz para o bosque (“e ela é capaz de correr muito

rápido!” pensou Alice), não havia como saber, e Alice começou a se lembrar de que era um Peão e de que logo seria hora de se mover.

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Page 155: Projeto Acadêmico

ressem, não pareciam ultrapassar nada. “Será que todas as coisas estão se movendo conosco?” pensou atônita, a pobre Alice. E a Rainha pareceu lhe

adivinhar os pensamentos, pois gritou “Mais rápido! Não tente falar!” Não que Alice tivesse a menor intenção de fazer isso. Tinha a impressão de que nunca conseguiria falar de novo, tão sem fôlego estava ficando; mesmo

assim, a Rainha gritava “Mais rápido! Mais rápido!” e a arrastava consigo. “Estamos chegando?” Alice conseguiu arquejar finalmente.

“Chegando!” a Rainha repetiu. “Ora, passamos por lá dez minutos atrás! Mais rápido!” E correram em silêncio por algum tempo, o vento assobiando

nos ouvidos de Alice e, imaginou, quase lhe arrancando fora os cabelos. “Vamos! Vamos!” gritou a Rainha. “Mais rápido! Mais rápido!” E correram tão depressa que por fim pareciam deslizar pelo ar, mal roçando o chão com os

pés, até que de repente, bem quando Alice estava ficando completamente exausta, pararam, e ela se viu sentada no chão, esbaforida e tonta.

A Rainha a recostou contra uma árvore e disse gentilmente: “Pode descan-sar um pouco agora.”

Alice olhou ao seu redor muito surpresa. “Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore o tempo todo! Tudo está exatamente como era!”

“Claro que está”, disse a Rainha, “esperava outra coisa?” “Bem, na nossa terra”, disse Alice, ainda arfando um pouco, “geralmente

você chegaria em algum outro lugar. .. se corresse muito rápido por um longo tempo, como fizemos.”

“Que terra mais pachorrenta!” comentou a Rainha. “Pois aqui, como vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. ‘ Se quiser ir

a alguma outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido!”“Prefiro não tentar, por favor!” suplicou Alice. “Estou muito satisfeita de

estar aqui... só que estou com tanto calor e com tanta sede!” “Sei do que você gostaria!” disse a Rainha bondosamente, tirando uma

caixinha do bolso. “Aceita um biscoito?” Alice achou que seria pouco educado dizer “Não”, embora aquilo não fosse

nem de longe o que queria. Pegou o biscoito e fez o possível para comê- lo: era sequíssimo, e pensou que nunca ficara tão engasgada em toda a sua vida.

“Enquanto você se revigora”, disse a Rainha, “vou tirando as medidas.” E sacou uma fita métrica do bolso e pôs-se a medir o terreno e a fincar

pequenas estacas aqui e ali. “Ao fim de dois metros”, disse, cravando uma estaca para marcar a distân-

cia, “eu lhe darei suas instruções... aceita mais um biscoito?”

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“Não, não fariam”, disse Alice, surpresa por finalmente tê-la contestado: “um morro não pode ser um vale. Isso seria um absurdo... “

A Rainha Vermelha sacudiu a cabeça. “Pode chamar de ‘absurdo’ se quiser”, disse, “mas já ouvi absurdos que fariam este parecer tão sensato quanto

um dicionário!”? Alice fez mais uma reverência, pois temia, pelo tom da Rainha, que estivesse

um pouco ofendida. E as duas saíram andando em silêncio até chegar no alto do pequeno morro.

Por alguns minutos Alice ficou sem falar, olhando a região em todas as direções... E que região curiosa era aquela. Havia uma quantidade de ri-

achinhos minúsculos cortando-a de lado a lado, e o terreno entre eles era dividido por uma porção de pequenas cercas verdes, que

iam de riacho a riacho.“Veja só! Está demarcado exatamente como um grande tabuleiro de xadrez!” Alice disse por fim. “Deve haver algumas peças se mexendo em algum lugar... ah, lá estão!” acrescentou encantada, e seu coração começou a disparar de

entusiasmo enquanto continuava. “É uma partida de xadrez fabulosa que está sendo jogada... no mundo todo... se é que isso é o mundo. Oh, como é

divertido! Como eu gostaria de ser um deles. Não me importaria de ser um Peão, contanto que pudesse participar... se bem que, é claro, preferiria ser

uma Rainha.”Ao dizer isso, olhou de rabo de olho, um tanto acanhada, para a verdadeira

Rainha, mas sua companheira apenas sorriu amavelmente e observou: “É fácil arranjar isso. Você pode ser o Peão da Rainha Branca, se quiser, pois

Lily!’ é muito novinha para jogar; você está na Segunda Casa; quando chegar

à Oitava Casa, será uma Rainha... “ Exatamente nesse instante, sabe-se lá por quê, as duas começaram a correr.

Alice nunca conseguiu entender direito, refletindo sobre isso mais tarde, como tinham começado: tudo que lembrava é que estavam correndo de

mãos dadas, e a Rainha corria tão depressa que ela mal conseguia acom-panhá-la. Mesmo assim, a Rainha não parava de gritar “Mais rápido! Mais

rápido!”, mas Alice sentia que não podia ir mais rápido, embora não lhe sobrasse fôlego para dizer isso.

O mais curioso nisso tudo era que as árvores e as outras coisas em volta delas nunca mudavam de lugar: por mais depressa que ela e a Rainha cor-

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cabeça mais alta do que ela própria! “É o ar fresco que faz isso”, disse a Rosa, “temos um ar maravilhosamente

puro aqui fora.” “Acho que vou ao encontro dela”, disse Alice, pois, embora as flores fossem

bastante interessantes, sentiu que seria muito mais sensacional ter uma conversa com uma Rainha de verdade. “Isso você não vai conseguir”, disse a

Rosa. “Eu a aconselharia a ir ao contrário.” Como isso lhe soou absurdo, Alice não disse nada e partiu imediatamente

em direção à Rainha Vermelha. Para sua surpresa, num instante a perdeu de vista e se viu entrando pela porta da frente de novo.

Um pouco irritada, recuou e, depois de olhar para todos os lados à procura da Rainha (que finalmente avistou, bem longe dali), pensou que daquela vez

podia tentar o estratagema de caminhar na direção oposta. “Sucesso total.” Não andara nem um minuto quando se viu cara a cara com

a Rainha Vermelha, com o morro que tanto desejara alcançar bem à vista.“De onde vem?” perguntou a Rainha Vermelha.

“E para onde vai? Levante os olhos, fale direito e não fique girando os dedos o tempo todo?”

Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou o melhor que pôde, que perdera seu caminho.

“Não sei o que você quer dizer com seu caminho”, disse a Rainha; “todos os caminhos aqui pertencem a mim... mas afinal, por que veio até aqui?” acres-

centou num tom mais afável.“Enquanto pensa no que dizer, faça reverências, poupa tempo.”

Alice ficou um pouco surpresa com aquilo, mas estava fascinada demais pela Rainha para duvidar dela. “Vou tentar quando voltar para casa” pensou,

“da próxima vez que estiver atrasada para o jantar.”“J á está na hora de você responder”, disse a Rainha, olhando seu relógio;

“abra um pouco mais a boca quando fala, e diga sempre ‘Vossa Majestade’.”“Só queria ver como era o jardim, Vossa Majestade... “

“Está bem”, disse a Rainha, dando- lhe tapinhas na cabeça, do que Alice não gostou nada, “se bem que, quando você diz ‘jardim’... já vi jardins que fariam

este parecer um matagal.” Alice não se atreveu a contestar e continuou: “... e pensei em tentar chegar

até o alto daquele morro... “ “Quando você diz ‘morro”’, a Rainha interrompeu, “eu poderia lhe mostrar

morros que a fariam chamar esse de vale.”

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“Não sei o que uma coisa tem a ver com a outra.” “Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio-tigre, “fazem os canteiros fofos

demais ... por isso as flores estão sempre dormindo.” Parecia uma excelente razão, e Alice gostou mui- to de ouvi-la. “Nunca pen-

sei nisso antes!” disse. “Na minha opinião, você nunca pensa em coisa alguma”, disse a Rosa num

tom bastante ríspido. “Nunca vi ninguém com ar mais bronco”, comentou uma Violeta,” tão de

repente que Alice deu um pulo, pois ela não tinha falado antes. “Dobre sua língua!” exclamou o Lírio-tigre. “Como se você já tivesse visto al-guém! Enfia a cabeça sob as folhas e fica lá roncando, até saber tão pouco

do que se passa no mundo quanto um botão!”“Há mais pessoas no jardim além de mim?” Alice perguntou, preferindo não

levar em conta a última observação da Rosa.“Há uma outra flor no jardim que é capaz de andar como você”, disse a Rosa.

“Pergunto-me como fazem isso... (“ Você está sempre se espantando”, inter-rompeu o Lírio-tigre), “mas ela é mais folhuda que você.”

“É parecida comigo?” Alice perguntou ansiosa, pois lhe ocorrera a idéia: “Há uma outra menininha em algum canto do jardim!”

“Bem, tem a mesma forma desajeitada que você”, a Rosa disse, “mas é mais vermelha... e tem as pétalas mais curtas, acho.”

“Tem as pétalas mais próximas, quase como uma dália”, o Lírio-tigre inter-rompeu; “não descaídas em redor como as suas.”

“Mas isso não é culpa sua”, a Rosa acrescentou delicadamente. “Você está começando a fenecer, sabe... e nesse caso é impossível evitar que nossas

pétalas fiquem um pouco desalinhadas.” Alice não gostou nada dessa idéia; assim, para mudar de assunto, pergun-

tou: “Ela vem aqui de vez em quando?” “Provavelmente logo a verá”, disse a Rosa. “E do tipo que tem nove espigas.”?

“Onde as usa?” Alice perguntou com certa curiosidade. “Ora, em volta da cabeça, é claro”, respondeu a Rosa. “O que me admirou foi

que você não tivesse algumas também. Pensei que fosse a norma geral.” “Lá vem ela!” gritou a Esporinha. “Estou ouvindo os passos dela, chump,

chump, chump, no cascalho’” Alice olhou em volta aflita e descobriu que era a Rainha Vermelha. “Como ela

cresceu!” foi sua primeira observação. De fato: quando Alice a encontrara entre as cinzas, tinha só sete centímetros de altura... E cá estava, meia

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“Pois podemos”, falou o Lírio-tigre, “quando há alguém com quem valha a pena conversar.” Alice ficou tão espantada que perdeu a voz por um minuto; quase pôs o coração pela boca. Por fim, como o Lírio-tigre apenas continu-

ava a balançar, falou de novo, numa voz tímida... Quase um sussurro: “E todas as flores podem falar?”

“Tão bem quanto você”, respondeu o Lírio-tigre. “E bem mais alto.” “Seria pouco delicado da nossa parte começar, sabe”, disse a Rosa, “e eu

realmente estava me perguntando quando você falaria! Disse comigo: ‘O semblante

dela me diz alguma coisa, embora não seja uma coisa inteligente!’ Apesar de tudo, você tem a cor certa, e isso já é meio caminho andado.”

“Não me importo com a cor”, observou o Lírio-tigre. “Se pelo menos suas pétalas se encrespassem um pouco mais, tudo estaria bem com ela.”

Não gostando de se ver criticada, Alice começou a fazer perguntas: “Não sentem medo às vezes de ficar plantados aqui fora, sem ninguém para

cuidar de vocês?” “Há a árvore no meio”, disse a Rosa. “Para que mais ela serve?”

“Mas o que poderia ela fazer se surgisse algum perigo?” perguntou Alice. “Abrir o berreiro!” gritou uma Margarida. “É por isso que os salgueiros são

chamados chorões!” “Você não sabia disso?” espantou-se outra Margarida, e então todas

começaram a gritar ao mesmo tempo, até que o ar pareceu repleto de vozes esganiçadas. “Silêncio, todas vocês!” gritou o Lírio-tigre agitando-se ar-

rebatadamente de um lado para outro, com frêmitos de excitação. “Sabem que não posso alcançá-las!” disse entre arquejos, inclinando a cabeça

trêmula para Alice, “ou não se atreveriam a fazer isso.” “Não faz mal!” Alice disse num tom apaziguador; e curvando-se para as

margaridas, que estavam recomeçando naquele instante, sussurrou: “Se não calarem a boca, eu as colho!”

O silêncio foi imediato, e várias das margaridas cor-de-rosa ficaram brancas.“Muito bem”, falou o Lírio-tigre. “As margaridas são as piores. Quando

uma fala, começam todas ao mesmo tempo, fazendo um alarido que deixa qualquer um murcho.”

“Assim vai saber por quê.” “Como é possível que vocês todos possam falar tão bem?” disse Alice, na esperança de melhorar o humor dele com um elo-

gio. “Estive em muitos jardins antes, mas nenhuma flor podia falar.” “Ponha a mão na terra e sinta”, disse o Lírio-tigre.

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Capítulo 2 O Jardim das Flores Vivas

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Eu veria o jardim muito melhor”, disse Alice para si mesma, “se pudesse che-gar ao topo daquele morro, e cá está uma trilha que leva direto para lá ... pelo

menos - não, não tão direto... “ (depois de seguir a trilha por alguns metros e dar várias viradas bruscas) “mas suponho que por fim chega lá. É interes-

sante como se enrosca! Mais parece um saca-rolha que um caminho! Bem, esta volta vai dar no morro, suponho... Não vai! Vai dar direto na casa de novo!

Bem, neste caso vou tentar na direção contrária.”E assim fez: ziguezagueando para cima e para baixo, e tentando volta após volta, mas sempre voltando para a casa, fizesse o que fizesse. Na verdade,

certa vez, quando deu uma virada bem mais rápido que de costume, não pôde evitar uma trombada nela.

“É inútil falar sobre isso”, disse Alice, olhando para a casa e fingindo estar dis-cutindo com ela. “Não vou entrar ainda. Sei que deveria atravessar o espelho de

novo ... de volta à sala ... e seria o fim de todas as minhas aventuras! “Assim, dando as costas para a casa com determinação, lá se foi mais uma vez pela trilha,

decidida a avançar sem trégua até chegar ao morro. Por alguns minutos tudo correu bem e ela acabava de dizer “Desta vez realmente vou

conseguir...” quando a trilha deu uma guinada repentina, chacoalhou (segundo a de-

scrição que fez mais tarde), e no instante seguinte ela se viu

de fato entrando porta adentro. “Oh, mas que azar. Nunca vi casa

tão intrometida! Nunca!” No entanto, lá estava o morro, bem à vista, de modo que não havia outra coisa a fazer senão

começar de novo. Dessa vez topou com um grande canteiro, orlado de margaridas, e um salgueiro crescendo no meio. O Lírio-tigre!’?

Chamou Alice, dirigindo-se a um que ondulava graciosamente ao vento, “gostaria que

pudesse falar!”

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“Parece muito bonito”, disse quando terminou,”mas é um pouco difícil de entender!” (Como você vê, não queria confessar nem para si mesma que não entendera patavina.) “Seja como for, parece encher minha cabeça de idéias ... só que não sei exatamente que idéias são. De todo modo, alguém matou

alguma coisa: isto está claro, pelo menos.“Mas, oh!” pensou Alice dando um pulo de repente, “se não me apressar vou

ter de passar pelo espelho de volta sem ter visto como é o resto da casa!

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Vou dar uma olhada no jardim primeiro.” Saiu da sala como um raio e correu escada abaixo - ou melhor, não se tratava exatamente de correr, mas de uma nova invenção dela para

descer escadas de maneira rápida e fácil, como dizia para si mesma: mantinha apenas as pontas dos dedos sobre o cor-rimão e descia flutuando suavemente, sem sequer roçar os

pés nos degraus. Atravessou o vestíbulo ainda flutuando, e teria saído porta afora do mesmo jeito se não tivesse se

agarrado ao umbral. Estava ficando um pouco tonta com tanta flutuação, e sentiu-se bastante satisfeita ao se ver

andando de novo da maneira natural.

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PARGARÁVIO

Solumbrava, e os lubriciosos touvos Em vertigiros persondavam as verdentes;

Triscitumos calavam~se os gaiolouvos E os porverdidos estriguilavam fientes.

“Cuidado, ó filho, com o Pargarávio prisco! Os dentes que mordem, as garras que fincam!

Evita o pássaro ]úbaro e foge qual corisco Do frumioso Capturandam.”

O moço pegou da sua espada vorpeira: Por delongado tempo o feragonista buscou. Repousou então à sombra da tuntumeira,

E em lúmbrios reflaneios mergulhou.

Assim, em turbulosos pensamentos quedava Quando o Pargarávio, os olhos a raisluscar, Veio flamiscuspindo por entre a mata brava.

E borbulhava ao chegar!

Um, dois! Um, dois! E inteira, até o punho, A espada vorpeira foi por fim cravada!

Deixou-o lá morto e, em seu rocim catunho, Tomou galorfante à morada.

“Mataste então o Pargarávio? Bravo! Te estreito no peito, meu Resplendoroso

Ó gloriandei! Hosana! Estás salvo!” E na sua alegria ele riu, puro gozo

Solumbrava, e os lubriciosos touvos Em vertigiros persondavam as verdentes;

Triscitumos calavam-se os gaiolouvos E os porverdidos estriguilavam fientes

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quanto lhe ajeitava o cabelo e o punha sobre a mesa ao lado da Rainha. O Rei tombou de costas imediatamente? e assim ficou, absolutamente es-

tático. Um pouco alarmada com o que fizera, Alice saiu pela sala para ver se conseguia encontrar um pouco de água para borrifar nele. Mas não achou

nada, a não ser um tinteiro, e quando chegou de volta com ele viu que o Rei se recuperara e conversava com a Rainha em sussurros aterrorizados... Tão

baixinho que Alice mal pôde ouvir o que falavam. O Rei dizia: “Eu lhe asseguro, minha cara, fiquei gelado até as pontas das

minhas suíças!” Ao que a Rainha respondeu: “Você não usa suíças.” “O hor-ror daquele momento”, continuou o Rei, “eu nunca, nunca vou esquecer!” “Vai

sim”, a Rainha disse, “a menos que faça uma anotação.” Alice ficou observando com grande interesse o Rei tirar um enorme bloco de anotações do bolso e começar a escrever. Ocorreu-lhe uma idéia de repente e segurou a ponta do lápis, que ultrapassava de algum modo o ombro do Rei, e começou a escrever por ele?O pobre Rei pareceu confuso e infeliz, lutando com o lápis por algum tempo sem

dizer nada; mas Alice era forte demais para ele, que finalmente disse, resfolegando: “Minha cara! Realmente preciso arranjar um lápis mais fino. Não estou tendo o

menor controle sobre este; escreve todo tipo de coisas que não pretendo...” “Que tipo de coisas?” perguntou a Rainha, dando uma espiada no bloco (em

que Alice escrevera: “O Cavaleiro Branco está escorregando pelo atiçador. Equilibra-se muito mal.”) “Isto não é uma anotação das suas sensações!”

Havia um livro sobre a mesa, perto de Alice, e, enquanto observava o Rei Branco (pois ainda estava um pouco apreensiva com relação a ele, e pronta a lhe jogar a tinta, caso voltasse a desmaiar), folheou suas páginas, encontrando um trecho

que não conseguia ler - “é todo em alguma língua que não sei”, disse para si mesma. Era assim:

PARGARÁVIOSolumbrava, e os lubriciosos touvos

Em vertigiros persondavam as verdentes; Triscitumos calavam~se os gaiolouvos E os porverdidos estriguilavam fientes.

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Quebrou a cabeça por algum tempo, mas por fim lhe ocorreu uma idéia luminosa. “Ora, este é um livro do Espelho, claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras

vão aparecer todas na direção certa de novo!” Este foi o poema que Alice leu:

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certeza de que não podem me ver. Alguma coisa me diz que estou invisível.” Nessa altura algo começou a guinchar na mesa atrás de Alice e a fez virar a

cabeça bem a tempo de ver um dos Peões Brancos cair e começar a espernear. Observou-o, muito curiosa para saber o que iria acontecer em seguida. “Ê a voz da minha filha!” exclamou a Rainha Branca passando pelo Rei, apressada e com

tanto ímpeto que o derrubou entre as cinzas. “Minha preciosa Lily! Minha gatinha imperial!” e começou a escalar freneticamente um lado do guarda-fogo.

“Desatino imperial!” disse o Rei, esfregando o nariz, que machucara na queda. Tinha direito a estar um bocadinho aborrecido com a Rainha, pois estava coberto de

cinzas da cabeça aos pés. Alice estava ansiosa por ser útil e, quando a pobrezinha da Lily estava a ponto de ter um ataque de tanto berrar, passou a mão na Rainha

rapidamente e a depositou sobre a mesa junto de sua escandalosa filhinha. A Rainha se sentou, arquejante: a rápida viagem pelo ar lhe tirara o fôlego por

completo e por um minuto ou dois nada pôde fazer senão abraçar a pequenina Lily em silêncio. Assim que recobrou um pouquinho de alento, gritou para o Rei Branco,

que estava sentado entre as cinzas, mal-humorado: “Cuidado com o vulcão!” “Que vulcão?” perguntou o Rei, olhando aflito para a lareira, como se jul-

gasse aquele o lugar mais provável para encontrar um. “Ele... me... expeliu”, arquejou a Rainha, que ainda estava um pouco sem ar.

‘’Trate de subir... da maneira normal... Não se deixe expelir!”Alice observou o Rei Branco transpor lenta e laboriosamente obstáculo por obstáculo,”

até que finalmente disse: “Ora, nesse ritmo você vai levar horas e horas para chegar em cima da mesa. Seria muito melhor eu ajudá-lo, não é?” Mas o Rei não tomou con-

hecimento da pergunta: estava perfeitamente claro que não a podia ouvir nem ver. Diante disso Alice o apanhou com muita delicadeza e o ergueu muito mais lentamente do que erguera a Rainha, tentando não lhe tirar o fôlego. Mas, antes de o pôr na mesa, pensou que não seria má idéia dar-lhe uma espa-

nadinha, tão coberto de cinzas estava. Mais tarde, contou que nunca em toda sua vida vira uma cara como a que

o Rei fez ao se ver erguido e espanado no ar por uma mão invisível. Ele ficou espantado demais para gritar, mas seus olhos e sua boca foram ficando

cada vez maiores, e cada vez mais redondos, até que a mão da Alice tremeu tanto com a gargalhada que ele quase caiu no chão.“Oh! Por favor, não faça essas caretas, meu caro!” gritou, esquecendo por

completo que o Rei não a podia ouvir. “Você me fez rir tanto que mal consigo segurá-lo! E não fique com a boca tão escancarada! As cinzas vão entrar todas nela... pronto, agora acho que está apresentável!” acrescentou, en-

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nossos livros diante do espelho e eles seguraram um na outra sala.” “O que você acharia de morar na Casa do Espelho, Kitty? Será que lhe dariam leite lá? Talvez o leite do Espelho não seja gostoso... mas, oh, Kitty! agora chegamos ao corredor. Só se consegue dar uma espiadinha no corredor da Casa do Es-

pelho deixando a porta da nossa sala de estar escancarada: é muito parecido com o nosso corredor, até onde se pode ver, só que adiante pode ser complet-amente diferente. Oh, Kitty, como seria bom se pudéssemos atravessar para a

Casa do Espelho! Tenho certeza de que nela há há tantas coisas bonitas!Vamos fazer de conta que é possível atravessar para lá de alguma maneira,

Kitty. Vamos fazer de conta que o espelho ficou todo macio, como gaze, para podermos atravessá-la Ora veja, ele está virando uma espécie de bruma agora,

está sim! Vai ser bem fácil atravessar... “Estava de pé sobre o console da

lareira enquanto dizia isso, embora não tivesse a menor idéia de como fora parar lá. E sem dúvida o espelho estava começando a se desfazer lentamente,

como se fosse uma névoa prateada e luminosa. No instante seguinte Alice atravessara o espelho” e saltara lepidamente na sala

da Casa do Espelho. A primeira coisa que fez foi verificar se havia fogo na lareira, e ficou muito satisfeita ao constatar que havia um fogo de verdade, crepitando tão alegremente quanto o que deixara para trás. “Assim vou ficar tão aqueci da

aqui quanto estava lá na sala”, pensou; “ou mais aquecida, porque aqui não vai haver ninguém mandando que eu me afaste do fogo. Oh, como vai ser engraçado

quando me virem aqui, através do espelho, e não puderem me alcançar!”Em seguida começou a olhar em volta e notou que o que podia ser visto da

sala anterior era bastante banal e desinteressante, mas todo o resto era tão

diferente quanto possível. Por exemplo, os quadros na parede perto da lareira pareciam todos vivos, e o próprio relógio sobre o console (você sabe que só

pode ver o fundo dele no espelho) tinha o rosto de um velhinho, e sorria para ela. “Esta sala não é tão arrumada como a outra”, Alice pensou, ao notar várias

peças do jogo de xadrez caídas no chão entre as cinzas; mas no instante seguinte, com um pequeno “Oh!” de surpresa, estava de gatinhas, observan-

do-as. As peças do xadrez estavam andando, duas a duas! “Aqui estão o Rei Vermelho e a Rainha Vermelha”, Alice disse (num sussurro, com medo de assustá-los), “e ali estão o Rei Branco e a Rainha Branca, sentados na

borda da pá da lareira... e aqui vão duas Torres, andando de braço dado... Acho que não podem me escutar”, continuou, baixando mais a cabeça, “e tenho quase

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e os campos que beija tão docemente? Depois ela os agasalha, sabe, com um manto branco; e talvez diga: ‘Durmam, meus queridos, até o verão voltar.’ E quando eles

despertam no verão, Kitty, se vestem todos de verde, e dançam ... onde quer que o vento sopre ... oh, isso é muito lindo!”exclamou Alice, soltando o novelo da lã para bater palmas. “E eu gostaria tanto que fosse verdade! O que sei é que os bosques parecem

sonolentos no outono, quando as folhas estão ficando castanhas.” “Sabe jogar xadrez, Kitty? Não, não sorria, meu bem, estou perguntando a sério. Porque, quando estávamos jogando há pouco, você observou exatamente como se

entendesse; e quando eu disse ‘Xeque!’ você ronronou! Bem, foi um belo xeque, Kitty, e eu realmente poderia ter ganho, não tivesse sido por aquele cavaleiro desa-

gradável, que veio se insinuar ziguezagueandoê entre minhas peças. Kittv, querida, vamos fazer de con ... “ E aqui eu gostaria de ser capaz de lhe contar a metade das coisas que Alice costumava dizer a partir da sua expressão favorita: “Vamos fazer

de conta”. Ela tivera uma discussão bastante longa com a irmã ainda na véspera, tudo porque começara com “Vamos fazer de conta que somos reis e rainhas”; e a

irmã, que gostava de ser muito precisa, retrucara que isso não era possível porque eram só duas, até que Alice finalmente se vira forçada a dizer: “Bem, você pode ser só um deles, eu serei todos os outros.” E certa vez assustara realmente sua velha

governanta, gritando-lhe de repente ao pé do ouvido: “Vamos fazer de conta que eu sou uma hiena faminta e você é uma carcaça!”

Mas isto está nos desviando da fala de Alice para a gatinha. “Vamos fazer de conta que você é a Rainha Vermelha, Kitty! Sabe, acho que se você sentasse e

cruzasse os braços ficaria igualzinha a ela. Vamos, tente minha fofura!” E Alice pegou a Rainha Vermelha da mesa e a pôs em frente à gatinha como um modelo. Porém a coisa não deu certo - sobretudo, Alice disse, porque a gatinha não cru-

zava os braços direito. Assim, para puni-la, segurou-a diante do Espelho, para que visse o quanto estava intratável... “e se não consertar essa cara já”, acres-centou, “eu lhe faço atravessar para a Casa do Espelho. O que acharia disso?”

“Bem, se você ficar só ouvindo, sem falar tanto, vou lhe contar todas as minhas idéias sobre a Casa do Espelho. Primeiro, há a sala que você pode ver através do espelho, só que as coisas trocam de lado.” Posso ver a sala toda quando

subo numa cadeira ... fora o pedacinho atrás da lareira. Oh! Gostaria tanto de poder ver esse pedacinho! Gostaria tanto de saber se eles têm um fogo aceso no inverno: a gente nunca pode saber, a menos que o nosso fogo lance fumaça, e a fumaça chegue a essa sala também... Mas pode ser só fingimento, só para

dar a impressão de que têm um fogo. Agora, os livros são mais ou menos como os nossos, só que as palavras estão ao ‘contrário; sei porque segurei um dos

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três voltas da lã em tomo do pescoço da gatinha, só para ver como ficaria: isso provocou uma

balbúrdia, pois o novelo rolou para o chão e metros e metros dele se

desenrolaram de novo. “Sabe, fiquei tão zangada, Kitty”,

Alice continuou assim que estavam confortavelmente instaladas de novo,

“quando vi toda a travessura que você aprontou que estive a ponto

de abrir a janela e jogá-la na neve! E teria sido merecido, minha traquinas

querida! Que tem a dizer em sua defesa? Agora não me inter-rompa!” continuou, dedo em riste.

“Vou lhe dizer todas as suas faltas. Número um: reclamou duas vezes enquanto a Dinah estava lavando seu rosto esta manhã. Ora, isso

você não pode negar, Kitty: eu ouvi! Que está dizendo?” (fingindo que

a gatinha estava falando). “A pata dela entrou no seu olho? Bem,

a culpa é sua, por ficar de olhos abertos: se os fechasse, apertando

bem, isso não teria acontecido. Não, não me venha com outras desculpas, ouça!

Número dois: você puxou Snowdrop’ pelo rabo bem na hora que eu tinha posto o

pires de leite diante dela! Ah, você estava com sede, é? Como sabe que ela não

estava com sede também? Agora, número três: você desenrolou a lã inteirinha

quando eu não estava olhando!” “São três faltas, Kitty, e você não foi

castigada por nenhuma delas. Sabe que estou acumulando todos os seus cas-

tigos para daqui a duas quarta-feiras... Imagine se tivessem acumulado todos os meus castigos!” ela continuou, mais para

si mesma que para a gatinha.“Qual seria o resultado no fim de um ano?

Seria mandada para a prisão, suponho, quando o dia chegasse. Ou... deixe-me ver...

se cada castigo fosse ficar sem um jantar, então, quando o dia terrível chegasse, eu

teria de ficar sem cinqüenta jantares de uma vez! Bem, não me importaria tanto! Antes

passar sem eles que comê-los!” Está ouvindo a neve contra as vidraças,

Kitty? Soa tão agradável e suave! Como se alguém estivesse beijando a janela toda do

lado de fora. Será que a neve ama as árvores

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Capítulo 1Casa do Espelho

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Uma coisa era certa: a gatinha branca nada tivera a ver com aquilo; a culpa fora toda da gatinha preta. Pois no último quarto de hora a cara da gatinha branca estivera

sendo lavada pela gata velha (o que, apesar de tudo, ela suportara bastante bem); como você vê, ela não teria podido meter sua patinha na travessura.

Era assim que Dinah lavava a cara dos filhotes: primeiro, erguia o pobre bichano pela orelha com uma pata, depois, com a outra, esfregava-lhe a cara toda ao

contrário, começando pelo focinho; e, neste momento mesmo, como disse, es-tava muito atarefada com a gatinha branca, que se mantinha bastante sosse-

gada e tentando ronronar - sem dúvida sentindo que aquilo tudo era para o seu bem. Mas a faxina da gatinha preta terminara mais cedo aquela tarde, e assim, enquanto Alice enroscava-se num canto da poltrona grande, meio conversando

consigo mesma e meio dormindo, ela se esbaldava com a bola de lã que Alice tentara enovelar, rolando-a para cima e para baixo até desmanchá-la toda de novo; e lá estava a lã, espalhada sobre o tapete, cheia de nós e emaranhados,

com a gatinha cor- rendo no meio atrás do próprio rabo. “Oh, sua coisinha travessa!” exclamou Alice, agarrando-a e dando-lhe um bei-jinho para fazê-la compreender que estava frita. “Francamente, a Dinah devia

ter lhe ensinado maneiras melhores! Você devia, Dinah, sabe que devia!” acrescentou, com um olhar de censura para a gata velha e falando no tom mais zangado de que era capaz ... Em seguida escalou de novo a

poltrona, levando a gatinha e a lã consigo, e pôs-se a enrolar a bola de novo. Mas o trabalho não rendia muito, pois conversava o tempo todo,

às vezes com a gatinha, às vezes consigo mesma. Kitty ficou sentada muito recatadamente em seu joelho, fingindo acompanhar o progresso do enovelamento, e de vez em quando esticando uma pata e tocando

delicadamente a bola, como a dizer que teria prazer em ajudar, se pudesse. “Sabe que dia é amanhã, Kitty?” começou Alice. “Você adivinharia, se tivesse ficado na janela comigo... só que a Dinah estava fazendo sua toalete, por isso você não pôde. Fiquei olhando os meninos catarem

gravetos para a fogueira e é preciso muito graveto, Kitty! Só que ficou tão frio, e nevava tanto, que eles tiveram de parar. Não faz mal, Kitty, nós vamos ver a fogueira amanhã.” Nesse ponto Alice passou duas ou

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Índice Capítulo I A Casa do Espelho Capítulo II O Jardim das Flores Vivas Capítulo III Insetos do Espelho Capítulo IV Tweedledum e Tweedledee Capítulo V Lã e Água Capítulo VI Humpty Dumpty Capítulo VII O Leão e o Unicórnio Capítulo VIII “É uma Invenção Minha” Capítulo IX Rainha Alice Capítulo X Sacudida Capítulo XI Despertar Capítulo XII Quem Sonhou?

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através

do espelho

Lewis carrol