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Projeto sobre a Transparência nos Critérios de Conformidade do Estado de São Paulo: do que se deseja ao que se propõe Jefferson Valentin Rodrigo Possidônio Sassaki No Estado de Direito, condutas são consideradas permitidas, proibidas ou obrigatórias visando sempre estimular ou coibir determinados comportamentos, a juízo de valor de uma sociedade. Em geral, condutas proibidas são acompanhadas de sanções, tão maiores quando mais indesejada a conduta. A função de uma sanção imposta pelo Estado, a toda ação que vá contra a lei, é retribuir ao delito perpetrado e prevenir a ocorrência de novas ações. O Direito Penal Tributário tem utilizado, normalmente, as penalidades pecuniárias como sanção, aplicando ao infrator uma multa, que torne a ação evasiva ou sonegatória, financeiramente prejudicial, na tentativa de desestimular tal comportamento. A parca estrutura estatal, somada às sempre evoluídas tecnologias sonegatórias tem feito com que o Fisco consiga identificar apenas um número ínfimo dos delitos existentes, o que faz com que o “risco de ser pego” em uma ação fiscal seja muito pequeno. Em uma análise racional, os ganhos financeiros promovidos pela sonegação muitas vezes superam o custo do risco envolvido. Some-se isso às nossas modorrentas estruturas de contencioso e às nossas ineficazes estruturas de execução fiscal e temos um percentual praticamente insignificante de contribuintes autuados dispostos a pagar o imposto devido, acrescido das penalidades e juros previstos. Para completar o cenário, o Estado de São Paulo criou uma estrutura de securitização de débitos inscritos em dívida ativa, objetos de parcelamentos especiais, que passa à sociedade o recado de que haverá, periodicamente, estes parcelamentos com remissões a todo e qualquer tipo de penalidade, independente da conduta praticada, o que, de fato, vêm ocorrendo. Acrescente-se um contexto de crise econômica, que retira a rentabilidade e a liquidez das empresas e taxas de juros elevadas em comparação com o que se pratica no resto do mundo (onde alguns concorrentes captam seus financiamentos) e temos que se criou o cenário perfeito para que as práticas evasivas ou sonegatórias sejam pensadas como decisão administrativa que gera vantagem ou equiparação competitiva. Os métodos pouco evoluídos de ações fiscais atualmente utilizados fizeram com que os poucos contribuintes efetivamente alcançados pelo Fisco sejam, na sua maioria, os que efetivamente operam com culpa, perdidos muitas vezes no emaranhado de regras, que se tornou nosso ordenamento jurídico tributário, e menos os que praticam ações criminosas com o objetivo doloso de lesar o erário. Nesse ponto, a disposição do Estado em repensar seus métodos de ação fiscal, valorizando o compliance, horizontalizando os procedimentos fiscalizatórios e tentando tornar mais efetivo o trabalho do Fisco na recuperação do imposto não entregue espontaneamente ao Estado é louvável. É louvável, ainda, que o Estado se preocupe em mudar o paradigma de uma fiscalização repressiva para um paradigma de prestação de serviço público em que o Fisco, mais do que um agente policial que coíbe práticas criminosas, no campo tributário, colabore com o contribuinte que estabeleça políticas e diretrizes para o seu negócio, que objetivem o cumprimento das normas legais e regulamentares.

Projeto sobre a Transparência nos Critérios de ...€¦ · comportamento. A parca estrutura estatal, ... o fornecedor seria classificado no grupo D. Ter como fornecedor um contribuinte

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Page 1: Projeto sobre a Transparência nos Critérios de ...€¦ · comportamento. A parca estrutura estatal, ... o fornecedor seria classificado no grupo D. Ter como fornecedor um contribuinte

Projeto sobre a Transparência nos Critérios de Conformidade do Estado

de São Paulo: do que se deseja ao que se propõe

Jefferson Valentin

Rodrigo Possidônio Sassaki

No Estado de Direito, condutas são consideradas permitidas, proibidas ou obrigatórias visando sempre estimular ou coibir determinados comportamentos, a juízo de valor de uma sociedade. Em geral, condutas proibidas são acompanhadas de sanções, tão maiores quando mais indesejada a conduta.

A função de uma sanção imposta pelo Estado, a toda ação que vá contra a lei, é retribuir ao delito perpetrado e prevenir a ocorrência de novas ações. O Direito Penal Tributário tem utilizado, normalmente, as penalidades pecuniárias como sanção, aplicando ao infrator uma multa, que torne a ação evasiva ou sonegatória, financeiramente prejudicial, na tentativa de desestimular tal comportamento.

A parca estrutura estatal, somada às sempre evoluídas tecnologias sonegatórias tem feito com que o Fisco consiga identificar apenas um número ínfimo dos delitos existentes, o que faz com que o “risco de ser pego” em uma ação fiscal seja muito pequeno. Em uma análise racional, os ganhos financeiros promovidos pela sonegação muitas vezes superam o custo do risco envolvido.

Some-se isso às nossas modorrentas estruturas de contencioso e às nossas ineficazes estruturas de execução fiscal e temos um percentual praticamente insignificante de contribuintes autuados dispostos a pagar o imposto devido, acrescido das penalidades e juros previstos.

Para completar o cenário, o Estado de São Paulo criou uma estrutura de securitização de débitos inscritos em dívida ativa, objetos de parcelamentos especiais, que passa à sociedade o recado de que haverá, periodicamente, estes parcelamentos com remissões a todo e qualquer tipo de penalidade, independente da conduta praticada, o que, de fato, vêm ocorrendo.

Acrescente-se um contexto de crise econômica, que retira a rentabilidade e a liquidez das empresas e taxas de juros elevadas em comparação com o que se pratica no resto do mundo (onde alguns concorrentes captam seus financiamentos) e temos que se criou o cenário perfeito para que as práticas evasivas ou sonegatórias sejam pensadas como decisão administrativa que gera vantagem ou equiparação competitiva.

Os métodos pouco evoluídos de ações fiscais atualmente utilizados fizeram com que os poucos contribuintes efetivamente alcançados pelo Fisco sejam, na sua maioria, os que efetivamente operam com culpa, perdidos muitas vezes no emaranhado de regras, que se tornou nosso ordenamento jurídico tributário, e menos os que praticam ações criminosas com o objetivo doloso de lesar o erário.

Nesse ponto, a disposição do Estado em repensar seus métodos de ação fiscal, valorizando o compliance, horizontalizando os procedimentos fiscalizatórios e tentando tornar mais efetivo o trabalho do Fisco na recuperação do imposto não entregue espontaneamente ao Estado é louvável.

É louvável, ainda, que o Estado se preocupe em mudar o paradigma de uma fiscalização repressiva para um paradigma de prestação de serviço público em que o Fisco, mais do que um agente policial que coíbe práticas criminosas, no campo tributário, colabore com o contribuinte que estabeleça políticas e diretrizes para o seu negócio, que objetivem o cumprimento das normas legais e regulamentares.

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No entanto, nos cabe discutir se o projeto apresentado, que dispõe sobre a Transparência dos Critérios de Conformidade Tributária do Estado de São Paulo vai ao encontro dessa necessidade de repensar o paradigma de atuação do Fisco ao mesmo tempo em que premia as boas práticas tributárias.

Deixamos registrado que a atual postura da Secretaria da Fazenda em, minimamente, discutir com setores da sociedade o referido projeto revela-se um avanço democrático na forma de condução da política tributária desse Estado, no entanto, podemos verificar que algumas das mazelas que acometem nossa estrutura estatal também contaminam o próprio processo de discussão, o que pode nos levar a opiniões e conclusões carregadas de pouca base científica e de experimentação. Somos um Estado de primeiro mundo quanto às obrigações dos contribuintes em nos prestar informação, mas somos um dos piores em analisar tais dados.

Carece, para um estudo mais aprofundado sobre o Projeto de Conformidade, que tenhamos acesso a algumas informações, como, por exemplo: 1) qual o percentual das empresas paulistas que se enquadrariam, hoje, em cada uma das categorias de rating, idealizadas no projeto? 2) qual percentual do PIB paulista é representado por cada uma das classes?

Ainda sobre a nossa ineficiência em transformar dados em informação, não fazemos uma análise comportamental dos diversos perfis de contribuintes (como fazem os Fiscos de diversos países do mundo) o que nos dificulta a atividade de prever o comportamento dos diversos segmentos, diante da alteração proposta. Essa falta de sistematização dos elementos empíricos citados nos leva a fazer uma análise “em tese”, que pode, facilmente, ser contaminada por vieses ideológicos ou de expectativas.

Como não podemos, no entanto, nos furtar da presente discussão, passemos à análise conceitual do projeto:

Em primeiro lugar é necessário separar o que, no projeto, objetiva a mudança de paradigma da atuação do Fisco para um para um paradigma de prestação de serviço público, do que objetiva a valorização das políticas de conformidade das empresas (compliance).

O rating criado (categorias A+ a E) claramente objetiva a criação de uma pirâmide de compliance para que se estabeleça incentivos para que as empresas busquem uma classificação cada vez melhor. A partir daí o projeto passa a estabelecer critérios de classificação em cada categoria e posteriormente, a definir os incentivos para que os contribuintes busquem classificações melhores.

Alguns incentivos propostos são mercadológicos, outros, referem-se à relação do Fisco com os contribuintes.

Nos causa um certo temor quando vemos o Estado querendo se propor como um player do mercado. Falta, ao Estado, o timing para acompanhar a rapidez do mercado e, sobretudo, o know how para operar em um ambiente onde o objetivo dos players é completamente distinto do seu, mas, deixando de lado esse temor, a ideia poderia prosperar, principalmente se fossem utilizados incentivos por meio dos métodos que o Estado já utiliza para intervir na economia, como gastos públicos (privilégios em licitações, por exemplo) ou subsídios (crédito subsidiado por meio de bancos de fomento, por exemplo).

O problema em utilizar incentivos mercadológicos, no entanto, é que o Estado se afasta de um dos princípios que norteiam a própria lei, a garantia de equilíbrio competitivo, senão vejamos: o projeto prevê a transmissão de informações para a Secretaria da Fazenda, que permita a comprovação da regularidade de fornecedores de fora do Estado de São Paulo. Em caso de ausência no repasse de informações, o fornecedor seria classificado no grupo D. Ter como fornecedor um contribuinte classificado na categoria D pode derrubar a própria classificação e fazer com que outras empresas evitem tê-lo como fornecedor. Uma determinada empresa (A)

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pode ter o poder de influenciar seu fornecedor de outro estado a repassar as informações necessárias enquanto uma outra empresa (B), não. Tal situação pode gerar um desequilíbrio concorrencial entre a empresa A, cujo fornecedor prestou as informações, e a empresa B, cujo fornecedor não prestou as informações. Note que a empresa paulista sofreria uma sanção por uma conduta que não é dela e sobre a qual ela não pode influenciar. Uma atitude possível é a empresa B trocar de fornecedor, nesse caso, estaríamos nos afastando de outro princípio que deveria nortear a tributação e a atuação do Fisco, a neutralidade econômica.

Outro problema que podemos verificar refere-se aos critérios de conformidade com o Fisco: inadimplência e conformidade de documentos fiscais com a escrituração.

Não nos parece razoável estabelecer a mesma sanção para a inadimplência fraudulenta e para a inadimplência sazonal, ocasionada, eventualmente, por dificuldades de fluxo de caixa. Mais do que isso: os critérios estabelecidos são binários sem qualquer estabelecimento de proporcionalidade entre as condutas possíveis. Ou seja, o devedor contumaz, com passivo milionário junto à Fazenda Estadual é tratado da mesma forma que o pequeno inadimplente, com passivo de algumas centenas de reais.

A mesma questão é observada no critério de emissão x escrituração dos documentos fiscais: não há diferença de tratamento para o fraudador que não escritura a totalidade dos documentos emitidos, para aquele que escritura 99,9% dos documentos, eventualmente deixando de escriturar um ou dois documentos por erro.

Outro problema é que não há um critério de conformidade a ser observado que incentive que os documentos fiscais reflitam com exatidão as situações fáticas a que eles se refiram ou que reflitam a correta aplicação da legislação, ou seja, mesmo que uma empresa emita a totalidade de seus documentos fiscais em desconformidade com a legislação ou que esses documentos fiscais não reflitam com exatidão o fato gerador, tais empresas não sofreriam nenhum tipo de punição, seja por aplicação de penalidade pecuniária, seja por reclassificação no rating, bastando, para tanto, o pagamento do quantum eventualmente apurado pelo Fisco, dentro do prazo. Imaginemos uma empresa classificada na categoria A que faça parte de um grande esquema de fraude estruturada, implicando diversos crimes contra a ordem tributária. Bastaria essa empresa pagar o valor apurado pelo Fisco, sem nenhuma penalidade, para manter sua classificação A.

O problema descrito no parágrafo acima poderia gerar uma desconfiança do próprio mercado quanto a qualidade do rating, afinal, como uma empresa que utiliza práticas sonegatórias de forma contumaz pode ser classificada pelo Estado como categoria A?

Outro problema que será criado a partir da situação acima descrita é que o contribuinte que pratica a inadimplência fraudulenta (que é critério para reclassificação no rating) passar à prática sonegatória (que não é, por si só, critério para reclassificação no rating).

Estaríamos, ainda, criando a situação inadmissível de tratar com maior rigor o inadimplente eventual do que o contribuinte que age com dolo, fraude ou simulação, estimulando, em última análise, os métodos sonegatórios em detrimento à inadimplência. Como dissemos no início do texto, as sanções são tão gravosas quanto mais indesejadas as condutas. Ao tratar com maior rigor o inadimplente estamos dizendo à sociedade que o não pagamento do tributo é mais grave do que a prática de um crime: a sonegação.

Quando passamos à análise do projeto, quanto à tentativa de estabelecer um novo paradigma de fiscalização, então, encontramos outro sem número de problemas.

Precisamos identificar os motivos pelo qual o Fisco age como age. A atividade do Fisco, administrativa que é, é vinculada, ou seja, obedece cegamente à Lei. Então a única forma de se modificar a maneira de o Fisco atuar é modificar a lei e nesse sentido, o projeto não avança, ao contrário, ele afasta de alguns contribuintes a atuação fiscal (e a aplicação da lei) e impõe essa

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atuação a outros, como forma de penalidade. Isso nada mais é do que a institucionalização da máxima “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”.

Pelo projeto, uma mesma conduta sonegatória (idêntica) praticada por um contribuinte classificado na categoria A+ teria um tratamento completamente diferente de uma conduta sonegatória praticada por um contribuinte classificado na categoria D. Imaginemos um contribuinte classificado na categoria A+ que seja pego praticando 50% das suas saídas de mercadoria desacobertadas de documentação fiscal (e, consequentemente, sem pagamento do imposto). O Fisco faria a Análise Fiscal Prévia (AFP) e o contribuinte teria o direito de recolher “espontaneamente” o imposto sonegado, sem nenhuma penalidade, e manteria, dessa forma, sua classificação A+. Enquanto isso, o contribuinte classificado na Categoria D, teria lavrado contra si um Auto de Infração e Imposição de Multa com cobrança de penalidade pecuniária. É um tratamento completamente desigual entre contribuintes que praticaram a mesma conduta delituosa, motivado por critérios que fogem ao campo do Direito Penal Tributário.

Imaginemos, ainda, que o Fisco se depare com uma situação de infração à legislação tributária na qual não se possa comprovar dolo (um erro na composição da base de cálculo, por exemplo). Um contribuinte classificado como A+ teria a prerrogativa de pagar o imposto sem acréscimo de penalidade pecuniária, enquanto o contribuinte classificado como D, teria que pagar o imposto acrescido de multa punitiva.

Perceba que podemos ter a absurda situação de um contribuinte A+ ter o direito de pagar o imposto dolosamente sonegado sem nenhuma penalidade enquanto o classe D pode ter que pagar o imposto pago a menor por erro, com multa punitiva. É uma clara violação dos princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade!

É prestação de serviço público a orientação ao bom contribuinte sobre como proceder, assim como é prestação de serviço público a ação do Fisco no sentido de coibir práticas tributárias delituosas que tenham o condão de gerar vantagens competitivas para quem as pratica. Esse combate às práticas delituosas não deve resultar em tratamento diferenciado a um determinado contribuinte a depender da classificação que ele ocupa no rating. Ou seja, um bom contribuinte não é um bom contribuinte se pratica o que há de mais repulsivo no campo do Direito Penal Tributário.

O projeto não acaba com o paradigma do Fisco policial, que reprime com rigor a conduta do contribuinte independente de dolo, ele apenas restringe a aplicação desse paradigma a uma determinada classe de contribuintes. Enquanto isso, ele propõe a aplicação do paradigma de Fisco orientador (prestador de serviço público) a quem eventualmente tenha praticado condutas pelas quais deveria ser severamente punido.

A criação da AFP é desnecessária. Se se deseja que o Fisco deixe de aplicar penalidade para condutas não dolosas, basta alterar a lei para que assim o seja, estipulando penalidade pecuniária apenas para casos em que vislumbre o concurso de dolo, fraude ou simulação. Se se avalia que a inadimplência é reduzida quando não está presente a penalidade pecuniária, defina-se um desconto de 100% da multa em caso de pronto pagamento. O mero lançamento tributário de imposto não pago não é penalidade. Lembramos, ainda, que a lei 16.497/17, recentemente aprovada, reduziu substancialmente o valor das penalidades aplicáveis.

Se o Estado pretende, ainda, com o projeto, tornar-se um player do mercado, ele deve, minimamente, agir de acordo com algumas exigências do mercado. Uma das principais exigências é a transparência e outra, a eficiência.

A falta de eficiência fica evidente na criação do desnecessário Comitê de Garantia da Estabilidade na Aplicação da Legislação Tributária (CGEALT), órgão responsável pelo julgamento do desnecessário relatório de AFP. Na prática, esse comitê será apenas mais uma instância de

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contencioso administrativo que, somadas às outras instâncias administrativas e judiciais disponíveis tornará ainda mais remota a possibilidade de recuperação de um crédito tributário de um contribuinte que, efetivamente, não queira recolher o imposto uma vez que torna ainda mais longínqua a execução fiscal.

Quanto à transparência, o projeto peca ao não avançar na divulgação de informações sobre inadimplência e sobre autuações do Fisco. Não só o mercado, mas a sociedade, tem o direito de saber quais empresas cumprem com suas obrigações tributárias e quais não cumprem.

Outra vertente da transparência, que não é observada pelo projeto é a falta de adoção, na lei, de todos os critérios objetivos na escolha dos Agentes do Fisco que comporão o CGEALT. A nossa atual conjuntura impôs à sociedade (e ao mercado) uma total falta de confiança na capacidade de os agentes políticos escolherem os membros de qualquer órgão, utilizando exclusivamente critérios técnicos. Sempre pairará sobre esse novo comitê a dúvida de que seus membros podem ter sido escolhidos por indicação política, tanto partidária, quanto de grupos econômicos eventualmente interessados nas suas decisões.

O projeto peca, ainda, ao não estabelecer um Regime Disciplinar Diferenciado a contribuintes e sócios que pratiquem fraudes reincidentemente, ele apenas reserva à pior categoria de contribuintes a possibilidade de uma atuação fiscal nos moldes atuais, com todas as suas limitações.

A criação de mais um órgão de controle interno, o CGEALT, mesmo desconsiderando os eventuais problemas conceituais já discutidos, gera, em tempos de necessidade de otimização da estrutura estatal, mais um gargalo nos processos da já burocrática administração tributária que já conta com as Delegacias Tributárias de Julgamento, com o Tribunal de Impostos e Taxas e com a Consultoria Tributária.

Mais do que isso, talvez crie um gargalo impossível de ser contornado, pois atualmente o TIT conta com 16 câmaras para julgamento e ainda assim os processos levam meses, às vezes anos, para serem julgados. Considere-se ainda que os Autos de Infração submetidos ao TIT são apenas uma fração dos Autos de Infração julgados procedentes em primeira instância (apenas aqueles onde o crédito discutido é superior a 5.000 UFESPs), que os Autos de Infração julgados procedentes em primeira instância são apenas uma fração do total de Autos julgados em primeira instância, que por sua vez são apenas uma fração dos Autos lavrados (apenas aqueles em que houve apresentação de defesa), que por sua vez representam apenas uma fração das fiscalizações efetuadas.

Dito isso, o presente projeto prevê que todas as Análises Fiscais Prévias dos contribuintes classificados como A+ ou A poderão ser submetidas ao CGEALT. Apenas após discussão do relatório de não conformidade, concordância por parte do CGEALT, notificação ao contribuinte para regularização e desatendimento a esta notificação é que o Fisco poderá constituir o devido crédito tributário por meio do lançamento de ofício, dando início a todo processo de contencioso administrativo.

Quanto à figura da Análise Fiscal Prévia, cabe, ainda, destacar a sua incompatibilidade com o próprio Código Tributário Nacional e seu artigo 138, in verbis:

Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração. (grifo nosso)

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Como se vê, qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização relacionada com a infração tem o condão de suprimir a espontaneidade da denúncia, não prevendo, o CTN, quaisquer exceções a esta regra, tornando clara a antinomia de normas que se criará caso o instituto da AFP seja instituído dessa forma. Tal incompatibilidade vai contra os próprios objetivos do projeto de lei, que visa trazer mais segurança jurídica ao ambiente negocial.

A criação da AFP e do CGEALT gera, ainda, um sério problema em relação à DECADÊNCIA dos créditos tributários. Uma vez que o projeto prevê a AFP como direito do contribuinte (portanto uma obrigação a ser observada pelo Estado), não pode o Fisco lançar o crédito apurado enquanto se discute relatório de não conformidade.

Não há qualquer previsão legal para suspensão de prazos decadenciais em Direito Tributário e boa parte da doutrina e dos tribunais entende que, via de regra, o prazo decadencial não se suspende nem se interrompe.

Assim, em casos em que o relatório de não conformidade se refira a períodos próximos à decadência restará um impasse: o potencial crédito sendo discutido poderá estar em vias de decair, sem que a Fazenda possa proceder ao lançamento. Ou seja, à autoridade fiscal restará obedecer ao comando legal deste projeto, desobedecendo ao artigo 142 do CTN1, ou; constituir o crédito tributário discutido, evitando a decadência, em desconformidade com o que prevê o projeto de lei.

Uma alternativa viável para atender às necessidades motivadoras do projeto (valorização do compliance e mudança de paradigma do Fisco) sem incorrer em ilegalidades, seria abandonar a ideia do instituto da Análise Fiscal Prévia e o CGEALT, permitindo a ação fiscal e o lançamento de ofício e prever a possibilidade de a multa punitiva ser relevada, em caso de pagamento, desde que, no mínimo:

1. Não haja qualquer indício de dolo, fraude ou simulação; 2. O contribuinte não seja reincidente em relação àquele tipo infracional nos últimos 5

anos em relação a qualquer um de seus estabelecimentos; 3. Não hajam débitos tributários estaduais exigíveis, inscritos ou não em dívida ativa; 4. O tributo apurado seja pago no prazo de 30 dias da notificação do lançamento.

O objetivo de se promover uma horizontalização dos procedimentos de fiscalização seria atingido, ainda, se o Fisco passasse a notificar os contribuintes sobre indícios de irregularidades verificados em suas curvas de comportamento. O uso intensivo da Tecnologia da Informação permitiria que os indícios levantados fossem cada vez mais precisos e específicos. Esse procedimento, realizado antes do início de qualquer ação Fiscal, daria a oportunidade de o contribuinte resolver, aí sim espontaneamente, as desconformidades existentes, sem que o Fisco tenha que dispor da sua já escassa mão de obra para realizar trabalhosos procedimentos de auditoria fiscal. A mão de obra fiscal ficaria disponível para o combate às fraudes estruturadas, garantindo, dessa forma, um melhor ambiente de competitividade.

Trazer o Fisco para perto da sociedade, desempenhando o papel de prestador de serviço público, valorizar o compliance e horizontalizar os procedimentos de fiscalização, mais do que ideias, são necessidades. E consideramos inadmissível que boas ideias sejam sepultadas por uma execução mal planejada e mal realizada, que é exatamente o que se verifica na minuta de projeto ora analisada.

1 Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.