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JOSÉ REYNALDO PEIXOTO DE SOUZA
PROMESSA DE DOAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito Civil, sob a orientação do
Professor Doutor Rogério Donnini.
PUC-SP
São Paulo – 2010
2
Banca Examinadora
_______________________
_______________________
_______________________
3
Agradeço ao Professor Doutor Rogério Donnini, meu orientador, pelas seguras
indicações, objetivas correções e sugestões para a elaboração desta dissertação,
especialmente suas palavras de encorajamento quando o ânimo esmorecia.
4
SUMÁRIO SUMÁRIO .............................................................................................................................................................. 4 1 DOAÇÃO ...................................................................................................................................................... 8 2 EVOLUÇÃO DA DOAÇÃO ..................................................................................................................... 16
2.1 NO DIREITO ROMANO ......................................................................................................................... 16 2.2 NO DIREITO INTERMÉDIO E O RETORNO AOS PRINCÍPIOS DO DIREITO ROMANO .................................. 28
3 A DOAÇÃO NO VIGENTE DIREITO CIVIL ....................................................................................... 41 3.1 QUEM PODE DOAR E QUEM PODE RECEBER DOAÇÃO ........................................................................... 41 3.2 FORMA DA DOAÇÃO ............................................................................................................................ 45 3.3 O OBJETO DA DOAÇÃO ........................................................................................................................ 46 3.4 A ENTREGA DA COISA E A MORA DO DOADOR ...................................................................................... 48 3.5 CLASSIFICAÇÃO DAS DOAÇÕES ........................................................................................................... 49
3.5.1 Doações inter vivos e mortis causa ................................................................................. 49 3.5.2 Doações inter vivos e suas classificações ...................................................................... 53 3.5.3 Modalidades de doações ................................................................................................. 55
3.5.3.1 Doação Pura ......................................................................................................................................... 55 3.5.3.2 Doação modal ou com encargo ............................................................................................................ 56 3.5.3.3 Doação remuneratória .......................................................................................................................... 58 3.5.3.4 Doação feita em contemplação do merecimento de alguém ................................................................. 59 3.5.3.5 Doação conjuntiva ou em comum ........................................................................................................ 60 3.5.3.6 Doação a nascituro ............................................................................................................................... 63 3.5.3.7 Doação de ascendentes a descendentes e entre cônjuges ...................................................................... 65 3.5.3.8 Doação em forma de subvenção periódica ........................................................................................... 67 3.5.3.9 Doação feita em contemplação de casamento futuro ............................................................................ 70 3.5.3.10 Doação com cláusula de reversão ......................................................................................................... 72 3.5.3.11 Doações proibidas ................................................................................................................................ 75
3.5.3.11.1 Doação a cúmplice de cônjuge adúltero .......................................................................................... 75 3.5.3.11.2 Doação de todos os bens sem reserva para subsistência ................................................................. 78 3.5.3.11.3 Doação inoficiosa ........................................................................................................................... 81
3.6 REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO ................................................................................................................... 85 3.6.1 Invalidação e suas causas .............................................................................................. 85 3.6.2 Ingratidão do donatário .................................................................................................... 87
3.6.2.1 Atentado contra a vida do doador ou homicídio doloso contra ele ....................................................... 88 3.6.2.2 Ofensa física contra o doador ............................................................................................................... 89 3.6.2.3 Recusa de alimentos ao doador ............................................................................................................ 92
3.6.3 Revogação por ingratidão só admissível nas doações puras ......................................... 93 3.6.3.1 Revogação por inexecução do encargo ................................................................................................ 94 3.6.3.2 A ação para revogação da doação ........................................................................................................ 95 3.6.3.3 A sentença da revogação ou extinção da doação e seus efeitos ............................................................ 98
3.7 FORMAÇÃO DO CONTRATO – A ACEITAÇÃO ....................................................................................... 101 4 PROMESSA DE DOAÇÃO – A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA .............................................. 105 5 O PRÉ-CONTRATO E A PROMESSA DE DOAÇÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL ..................... 114
5.1 A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS AO CÓDIGO CIVIL ................................................ 114 5.2 OS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS E AS CLÁUSULAS GERAIS COMO ELEMENTOS PARA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS ................................................................................................................... 123 5.3 O PRÉ-CONTRATO NO CÓDIGO CIVIL ................................................................................................. 130 5.4 CONTRATO PRELIMINAR E PROMESSA DE DOAÇÃO ............................................................................ 136
6 INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO PRELIMINAR DE PROMESSA DE DOAÇÃO ................ 140 7 A TUTELA JURISDICIONAL DA OBRIGAÇÃO RESULTANTE DO CONTRATO PRELIMINAR E SUA APLICAÇÃO À PROMESSA DE DOAÇÃO ......................................................... 147 8 CONCLUSÃO .......................................................................................................................................... 159 9 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................................... 164
5
RESUMO
O presente trabalho pretende estudar a promessa de doação e a sua
execução específica, de sorte a ser obtido pelo promissário donatário a entrega do
bem ou transferência de direito que lhe foi prometida em pré-contrato.
Para isto, inicialmente será enfocada a evolução da doação, desde o direito
romano, passando pelo direito intermédio e até a fase moderna das codificações em
que é aceita a natureza contratual do instituto, com mais detida análise do direito
luso-brasileiro, vale dizer, do regime das Ordenações ao dos Códigos Civis de 1916
e 2002.
Estabelecida a natureza contratual da doação, as modalidades desse
contrato, os requisitos e as formas para o seu aperfeiçoamento, a capacidade das
partes, a questão da aceitação e da revogação, apontar-se-á a controvérsia acerca
da possibilidade ou não da promessa de doação, especialmente à luz do vigente
Código Civil e dos princípios que o informam no trato dos contratos e pré-contratos.
Em seguida, será feito o exame da possibilidade jurídica da execução
específica da promessa, à luz do art. 466 B do Código de Processo Civil, ou seja, da
obtenção de uma sentença judicial que substitua a vontade sonegada daquele que
fez a promessa.
Palavras-chave: doação, promessa, exigibilidade e execução específica.
6
ABSTRACT
This work proposes to study the donation commitment and its specific
performance, whereby the committed recipient can secure delivery of the asset or
transference of the right which was pre-contractually committed to him/her.
To that end, the first section examines the evolution of donations, from Roman
Law, through the intermediary period, up to the modern codification phase, in which
the donation’s contractual character is accepted, with a more extensive analysis of
Portuguese-Brazilian law, that is, from the ancient Portuguese civil law regime
(Código Afonsino or Afonsinas, Código Manuelino or Manuelinas and Código Filipino
or Philipinas) to the Brazilian Civil Codes of 1916 and 2002.
After establishing the donation’s contractual character, as well as the
categories of such contract, its prerequisites and forms of enhancement, capability of
the parties, and the issue of acceptance and revocation, the focus shifts to the
controversy surrounding the possibility of a donation commitment, particularly in light
of the Civil Code in force and of the principles that dictate its treatment of contracts
and pre-contracts.
The next section examines the legal feasibility of the donation commitment’s
specific performance, in light of Civil Procedure Code’s art. 466 B, i.e., securing a
court order that supersedes the unfulfilled will of the committed donor.
Key words: donation, commitment, enforceability and specific performance
7
INTRODUÇÃO
A doação é considerada contrato de direito civil por excelência na medida em
que mesmo nas modalidades remuneratória ou com encargo não se faz presente o
intuito de lucro.
Seu traço marcante é a liberalidade.
Essa liberalidade, segundo a doutrina tradicional tem de estar presente no
momento em que é manifestada a vontade pelo doador o que torna incompatível
com a natureza do contrato a promessa de doação.
Sob essa ótica, até o momento em que se faz a doação será possível o
arrependimento e nenhuma medida coercitiva pode ser tomada porque ninguém
pode ser obrigado a praticar liberalidade.
Todavia, diante da moderna concepção do contrato é possível sustentar que
tal incompatibilidade não subsiste, como se tentará demonstrar.
8
1 DOAÇÃO
Estabelece o vigente Código Civil que “considera-se doação o contrato em
que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens
para o de outra” (art. 538 do Código Civil).
Dessa definição legal conclui-se que, para o direito brasileiro, a doação é
contrato, o que é aceito pela unanimidade da doutrina, seja à luz do direito anterior,
seja do vigente1.
Tanto no Código passado2, quanto no atual, a doação é disciplinada como um
contrato, unilateral e gratuito, que envolve um ato de alienação, importando na
transferência de um bem ou direito, por espírito de liberalidade (animus donandi),
1 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 9ª edição, Forense, Rio, 2009. p. 439; VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 3º volume, p. 95; DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 44. TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 214; FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luis. Curso Avançado de Direito Civil, Contratos, RT, São Paulo, 2002, Volume 3, p. 169; SILVA PEREIRA, Cáio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 245; GOMES, Orlando. Contratos, 26ª edição, Coordenador Edvaldo Brito, Revista, Atualizada e Aumentada de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 254; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 283; LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, 3ª edição, RT, /são Paulo, 2005, volume 3, p. 369; BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p. 266; ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 7; ESPÍNOLA, Eduardo. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista, Rio e Janeiro, 1956, p. 154; SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 142; WALD, Arnoldo, Curso de Direito Civil Brasileiro, Obrigações e Contratos, 11ª edição, RT, São Paulo, 1994, p. 273; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 197, e anteriormente ao Código Civil de 1916, CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no Direito Civil Brasileiro, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1957, Tomo I, p. 32. 2 O artigo 538 do Código Civil de 1916 dispunha: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.
9
acarretando redução patrimonial para o doador, que assim empobrece com o
consequente enriquecimento do donatário3.
Para PONTES DE MIRANDA, é contrato unilateral, supõe a bilateralidade do
negócio jurídico, sem bilateralidade do contrato. Quem doa contrata e o donatário,
aceitando, apenas aceita o contrato que é unilateral4. Tal bilateralidade, no entanto,
segundo RIZZARDO, restringe-se à formação do ato jurídico, não alcançando as
obrigações derivadas da convenção. Neste aspecto classifica-se como contrato
unilateral, posto criar obrigações para apenas uma das partes, que é o doador5.
A doação é, pois, negócio jurídico que precisa reunir as seguintes condições:
1º) que se verifique entre vivos; 2º) que uma das partes se enriqueça na medida em
que a outra empobrece, que esta queira enriquecer a outra às suas expensas. Os
dois últimos requisitos são, respectivamente, os elementos subjetivo e objetivo da
doação6.
A doação é contrato benéfico por excelência, como afirmava AGOSTINHO
ALVIM. Ressalva o autor que há benefícios que não empobrecem o benfeitor, como
por exemplo, um serviço gratuito. Na doação há diminuição do patrimônio, como
está dito no art. 538 do Código Civil: transfere de seu patrimônio bens ou vantagens
para o de outra. Como contrato benéfico, a doação não permite interpretação
extensiva, pois, consoante o disposto no art. 114 do Código Civil, os negócios 3 CAPANEMA DE SOUZA, Sylvio. Comentários ao Código Civil, Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, Volume VIII, p. 85. 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 197. 5 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 440. 6 GOMES, Orlando. Contratos, 26ª edição, Coordenador Edvaldo Brito, Revista, Atualizada e Aumentada de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 255.
10
jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. Na dúvida, não se
interpreta como doação e no que toca à extensão do seu objeto, admite-se o menos,
e não o mais, sendo indispensável para chegar a uma conclusão firme, sujeitar o
título de doação às regras de interpretação dos contratos. Mas esta operação, da
qual emerge a prova intrínseca, não exclui as provas extrínsecas, inclusive a
circunstancial, a fim de obter um resultado seguro sobre a verdadeira intenção das
partes7.
Ensina ainda o grande civilista que não é exato afirmar que a liberalidade
esteja presente em todas as doações. Assim como excepcionalmente pode haver
doação sem liberalidade, pode, também, haver liberalidade aceita, sem que haja
doação. A liberalidade é a intenção de bem fazer, de proteger. 8.
7 ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 8, com alteração da remissão legal ao novo Código Civil. 8 ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 8 a 10. “Em regra, o doador, levado por sentimento de amor, ou de amizade, transfere algo de seu patrimônio para o de outra pessoa, que aceita o benefício, sem nenhuma vantagem patrimonial para o primeiro, que apenas deu expansão a um daqueles sentimentos ou a um sentimento de religião ou de ética. Mas o sentido exato de liberalidade supõe maior meditação porque muitas vezes ela é apenas um rótulo. Com efeito, devemos admitir que o animus donandi, a vontade de bem-fazer, possa não existir interiormente em certos casos; e poderá até mesmo ocorrer que nem mesmo na aparência haja esse ânimo. Assim, por exemplo, no caso de que algumas pessoas façam doação a um parente que está mal de vida. Um deles pode se aborrecer por ter que doar, não o escondendo mesmo aos estranhos. Não obstante, e como noblesse oblige, a pessoa, por não querer ser exceção, acaba contribuindo. Nessa hipótese, não há vontade de bem-fazer, mas a doação existirá, de onde dizerem alguns que a verdadeira característica da doação é a gratuidade e não a liberalidade. Em alguns casos, os motivos íntimos que levam a doar são o temor da reprovação, a vaidade, ou mesmo a esperança de vantagens indiretas; e nada disto desnatura a liberalidade, bastando o seu aspecto objetivo, que é a gratuidade (DE RUGGIERO, Istituizioni do Diritto Civile, vol. III, § 118; VENZI, Manuale do Diritto Civile Italiano, n. 478). O contrário seria valorizar o motivo, que o nosso direito não leva em consideração, como elemento do contrato, o que não se deve confundir com a causa, ou objeto. O objeto, em regra é diverso, para cada um dos contraentes; será a coisa, para o comprador, e o preço para o vendedor. Na doação, o donatário objetiva o aumento do seu patrimônio e o doador objetiva isso mesmo: o aumento do patrimônio do donatário, mediante ato de liberalidade. O motivo, porém que tiver levado o doador a doar, se é amor, amizade, vaidade, ou temor da censura alheia, isso não importa, porque não constitui elemento da doação, que se contenta com o rótulo da liberalidade, externado na gratuidade do ato. Pode-se dizer que o objeto é o fato teleológico de 1º grau: Por que doas? Porque quero enriquecer alguém à minha custa (causa final). O motivo íntimo que me impele a essa liberalidade será um fator teleológico de 2º grau. Não há confundir motivo com animus donandi. A doação não precisa ter por base a beneficência. O motivo não faz parte do negócio, tanto pode ser nobre, como traduzir baixas aspirações (ENNECERUS, Derecho de Obligaciones, vol. II, §§ 106 e 120; SAVIGNY, Traité de Droit Romain, vol. IV, § 153; PUIG PEÑA, Tratado de Derecho Civil
11
Por esses motivos, não são considerados doação: a) os atos pelos quais se
efetua a entrega de uma coisa gratuitamente, porém não com o fim de adquirir o
domínio delas, como se dá no comodato, ou deixar de interromper uma prescrição;
b) a renúncia de uma herança ou legado; c) a renúncia de uma hipoteca ou de uma
fiança, ainda que o devedor se encontre insolvente; d) a omissão voluntária com o
objetivo de produzir a extinção de uma servidão predial; e) não há doação, ainda
que remuneratória, quando o serviço prestador pelo donatário seja de tal ordem que
autorize a ação civil para exigir o pagamento9. Ou ainda o cumprimento de uma
obrigação natural porque o que a cumpre não estava juridicamente obrigado a isto10.
Sem embargo, ainda que não seja possível ser considerada doação
propriamente dita, a doutrina concebe a figura da doação indireta. Às vezes, a
renúncia equivale à doação. E isto quando não tem caráter meramente abdicativo,
como, por exemplo, a de uma herança aberta em favor de um herdeiro determinado.
Nesse caso, sob a forma de uma renúncia translatícia, há doação indireta
porque o bem, que já entrara no patrimônio do renunciante desde a abertura da
sucessão, se transfere para o herdeiro favorecido11. Na chamada doação indireta,
Español, vol. IV, pág. 163), não entram em conta os motivi determinanti – acentua TITO PREDA (in Dizionario Pratico do Diritto Privato de SCIALOJA, vol. II, vocábulo donazione). Não será errôneo, porém, dizer que a doação supõe liberalidade; e isto porque geralmente se fala do que de ordinário sucede; e, normalmente, é isto que acontece. Segundo o testemunho de POTHIER, ob. e loc. cits., a jurisprudência francesa não considerava doação a que era feita por quem estava à morte, visto não haver liberalidade por quem doa aquilo “que la mort va lui enlever”. O mesmo com referência a quem ingresse na vida religiosa. Tais excessos não merecem amparo. “Liberalidade é gratuidade, dispensada a sondagem íntima” 8. 9 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, 1995, p. 346. 10 D’Abranches Ferrão, citado por Maria Helena Diniz e Agostinho Alvim, in, respectivamente Tratado Teórico e Prático dos Contratos, cit., p. 45 e Da Doação, cit., p. 12. 11 SILVA PEREIRA, Caio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, volume III, p. 248.
12
afirma SILVIO DE SALVO VENOSA, “o doador vale-se do conteúdo volitivo de
liberalidade para praticá-la. Esse fenômeno conceitua-se por exclusão. São
consideradas doações indiretas todos os atos de liberalidade que não podem ser
qualificados como doação direta, e em que se observa o empobrecimento de um
sujeito e o correspondente enriquecimento de outro. Na doação indireta, o doador
pratica a liberalidade recorrendo a diverso meio jurídico, para obter o reflexo de
gratuidade (Trabucchi, 1992:849). Exemplos típicos são a remissão de dívida, o
pagamento de débito alheio, o contrato em favor de terceiro, entre outros” 12.
Não há em doutrina conceito unitário de doação indireta, pois em sua
compreensão inserem-se várias formas de transmissão de direitos a título de
liberalidade. A fixação da natureza jurídica apresenta importância para o exame da
validade, eficácia e interpretação do negócio jurídico. Não se confunde, entretanto, a
doação indireta com a doação simulada. Nesta, o negócio jurídico é oneroso,
mascarado por uma doação13. Pode ser ainda dissimulada, quando sob a forma
aparente de contrato oneroso, oculta a liberalidade que efetivamente se realiza, mas
que se procura evitar aos olhos de terceiros. Subordinam-se às regras sobre a
simulação dos atos jurídicos14.
Merece menção, também, a possibilidade de divisar na doação um negócio
misto, ou seja, considerá-lo apenas em parte gratuito. Chama-se contrato de doação
mista o contrato segundo o qual a prestação do doador é até certo ponto
correspondida pela contraprestação do outorgado. A diferença gratuitamente
12 VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil – Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p. 99. 13 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p.99. 14 ESPÍNOLA, Eduardo. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista, 1956, p. 195.
13
prestada é elemento essencial para se pensar em doação mista. Supõe-se que se
doe o excesso e os figurantes acordem na gratuidade. É o caso apontado em
doutrina, de uma compra e venda em que o bem vale 200 e o comprador paga 250.
Esses 50 reger-se-ão pela doação, e os 200 pela compra e venda15.
Para que exista doação é necessário o elemento subjetivo, o animus donandi,
que consiste na vontade do doador de despojar-se de um bem, o que o empobrece,
para transferi-lo, sem qualquer retribuição, para o patrimônio do donatário, que, ao
contrário, enriquece16.
Se o bem é indivisível não há pensar-se em pluralidade de contratos, o
contrato é um só e misto; se o bem é divisível, há dualidade, ou mesmo outra
pluralidade de contratos (exemplo: doação e compra e venda e doação e troca). O
contrato é negócio jurídico unitário e incidem as regras jurídicas concernentes à
doação e aquelas atinentes ao outro contrato, conforme o que se refere a eles e não
se choquem com o contrato unitário. Na doação mista, o direito à devolução só se
refere à quota do valor que corresponde à doação. No tocante aos vícios do objeto,
há a indenização dos danos segundo os princípios que regem os contratos
comutativos, mas apenas no que se liga à quota que corresponde à
contraprestação. No tocante à quota a título gratuito, as regras jurídicas da doação é
que incidem17.
15 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 45, e nota 4 com citação da lição de Tullio Ascarelli, contrato misto, negócio indireto, “negotium mixtum cum donatione”, Lisboa, 1954, p. 23, que por seu turno se reporta a Trabucchi e a Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 3.p.305. 16 CAPANEMA DE SOUZA, Sylvio. Comentários ao Código Civil, Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, Volume VIII, p. 88. 17 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 207/208 anotando-se que, segundo esse autor, “chama-se essa explicação teoria da incidência respectiva, para que se distinga do que sustentam a teoria da
14
Assim, a doação, na lição de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, contrato que
é por definição legal e conceituação doutrinária, exibe desde logo seus caracteres
jurídicos:
A – Contrato gratuito, porque gera benefício ou vantagem apenas para o
donatário. Caracteriza-o especialmente, imprimindo-lhe sentido fundamental
diferenciador, o animus donandi, que repousa na liberalidade, e que sobrevive
mesmo quando tem o doador em vista contemplar o merecimento do donatário, ou
grava o benefício de um encargo imposto ao favorecido.
B – Contrato unilateral, porque cria obrigações para uma só das partes, o
doador, já que a existência de encargo eventualmente determinado constitui simples
modus, inconfundível com a obrigação. Se o encargo assume o caráter de
contraprestação, desfigura-se o contrato, que passará a constituir outra espécie,
sem embargo de usarem as partes, o nomen juris doação.
C – Contrato formal, porque tem de obedecer à forma prescrita em lei. É
comum encontrar-se, nos nossos melhores escritores (M. I. Carvalho de Mendonça,
Orlando Gomes) a sua classificação entre os contratos consensuais. À vista, porém,
do art. 541, que reproduziu o art. 1.168 do Código Civil de 1916, que estabelece a unidade, que põe sempre como básico o contrato de doação (Andreas Von Thur, Der Allgemeine Teil, III, 77) e a teoria da doação consumada (Fr. Leonhard, Besonderes Schuldrecht, 131; H. Siber, Schuldrecht, 186. Com mais forte razão tem-se de repelir a opinião, anterior a essa, que considerava distintos (Andreas Von Thur, Der Allgemeine Teil, III, 77) e a teoria pluralística da doação mista (Fr. Von Savigny, System des heutingen Römischen Rechts, IV, 99, 103; F. regelsberger, Pandekten, I, 671; W. Koeppen, Das negotium mixtum cum donatione, 26, s.; Weirauch, Die gemische Scenkung, Gruchots Beiträge, 48, 244 s,; contra isso, Wilhelm Müller, Die gemischte Schenkung, Jherings Jahrbücher, 48, 211 s.). Se se admitisse tal teoria, nula a doação, nulo seria todo o contrato; isto é a regra jurídica do art. 153 do Código Civil (atualmente 184) nunca seria invocável.”
15
forma escrita, e por exceção a verbal, subordinada, entretanto, a dois requisitos
específicos (tratar-se de bens móveis de pequeno valor e se lhe siga incontinenti a
tradição – dons manuais, presentes que se fazem por ocasião das bodas ou de
aniversários, ou como prova de estima ou homenagem, e que na ausência de
critério estimativo, a fixação de seu valor decorrerá das circunstâncias ou das
posses do doador). 18 19
18 SILVA PEREIRA, Cáio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 246, 247 e 252 No mesmo sentido o entender de Silvio de Salvo Venosa, ao afirmar que da definição legal deflui que se trata de negócio gratuito, unilateral e formal, in Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 3º volume, p. 96. Idem Maria Helena Diniz, in Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 44. 19 Anota-se a posição de Paulo Nader, para quem o contrato é unilateral, gratuito, consensual e formal, afirmando ser consensual porque basta o consentimento das partes para que se aperfeiçoe e o faz com fundamento na interpretação do artigo 538 do Código Civil, para opor a classificação a contrato real, tendo em vista a transferência do bem doado, in Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 286.
16
2 EVOLUÇÃO DA DOAÇÃO
2.1 No Direito Romano
A história da doação, como observado por BIONDO BIONDI, concebida não
como exposição inerte e erudita do ordenamento passado, verdadeira curiosidade
histórica, mas como representação ideal de uma estratificação secular de conceitos
e princípios, que superados porém não sem deixar traços significativos ou
deformações, desembocam nas codificações modernas, pode ser particularmente
vantajosa para o conhecimento do instituto moderno; ao menos poderá suscitar e
apurar das razões das dificuldades com que se debate a doutrina moderna e se
apresentam ao legislador toda a vez que se empreende uma revisão legislativa.
Mais que a dogmática abstrata, que prescinde de limite de tempo e espaço e
da comparação jurídica que pode orientar o legislador em face das exigências da
vida contemporânea, em tema de doação é útil a história, entendida do seguinte
modo: toda época traz sua contribuição de idéias e preceitos para não dizer também
de preconceitos e erros, recomendados por razões de oportunidade com o fim de
determinar um resultado, que se poderá conhecer melhor quando analisados na sua
gênese histórica e nos fatores que a determinaram. Neste processo de estratificação
preponderante se encontra o direito romano, onde o instituto moderno encontra as
raízes mais profundas. Dificilmente é possível apreender o valor e o significado de
tais princípios e ordenamentos modernos sem remontar às fontes romanas20.
20 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 225.
17
Observam ALEXANDRE CORREIA e GAETANO SCIACIA que as Institutas
de Gaio não tratam das doações; nem se pode dizer que tenha, este instituto
jurídico, definitiva configuração nos sistemas modernos. A doação pode ser
encarada quer como causa dos atos jurídicos (SAVIGNY), quer como liberalidade
entre vivos, e às vezes mortis causa, semelhante aos legados (sistema francês);
quer como contrato unilateral, isto é, ato jurídico bilateral com efeitos obrigatórios
para uma só das partes (sistema brasileiro). Na verdade, aduzem que o instituto faz
parte do setor dos direitos patrimoniais, pois importa no enriquecimento de um
sujeito (donatário) e no empobrecimento de outro (doador) e apontam a existência
de duas espécies de doações: doação entre vivos e a doação mortis causa,
deixando a doação entre cônjuges e entre noivos para o direito de família21.
Assim, o instituto da doação não tem recebido dos tratadistas o mesmo
tratamento. Os pandectistas, como DERNBURG e WINDSCHEID, no ver de
VANDICK LONDRES DA NÓBREGA, consideram a doação como um contrato ou
pacto, classificando-a entre os pactos legítimos, ao passo que, segundo outros,
VANGEROV e BRINZ, ela é colocada na parte geral. No entanto, romanistas mais
recentes como RABEL, SIBER, MITTEIS, SOHN tratam da doação na parte dos atos
jurídicos; KARLOWA, CZYHLARZ, KUNKEL preferem colocá-la entre as
obrigações22.
Os romanistas brasileiros MOREIRA ALVES, ALEXANDRE CORREIA,
EBERT CHAMOUN, SYLVIO MEIRA, tratam da matéria no direito das obrigações, 21 CORREIA, Alexandre e SCIACIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, CD Liv, s.d., p. 219. 22 NOBREGA, Vandick Londres da. Compendio de Direito Romano II, 8ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1975, volume II, p. 336.
18
destacando VANDICK LONDRES DA NÓBREGA que preferiu seguir a doutrina dos
pandectistas que consideram a doação como um pacto legítimo porque, em última
análise, trata-se de uma convenção, cujos efeitos mereceram a proteção do direito23.
MOREIRA ALVES, para justificar a sua posição, se questiona acerca da
colocação da donatio no sistema jurídico romano, bem como, sendo as doações
atos de liberalidade, mas abrangendo estes atos outros que não apenas as doações,
como distinguir-se a doação dos demais atos de liberalidade? Quanto à primeira
questão, anota ser grande a divergência entre os autores, tendo em vista,
principalmente, que as fontes não nos proporcionam orientação sistemática digna de
ser seguida e que alguns romanistas antigos – no que foram seguidos pelos
pandectistas alemães – a enquadravam entre os contratos. SAVIGNY, porém,
combateu essa colocação, salientando que a doação não era, no direito romano,
negócio jurídico típico, mas simplesmente causa de qualquer negócio jurídico
patrimonial. 24
Também no século atual não estão os romanistas de acordo a respeito do
enquadramento da doação na sistemática de suas obras; alguns a colocam no
capítulo referente aos atos jurídicos em geral, ou do negócio jurídico em particular;
outros a analisam no direito das obrigações; outros, ainda, a analisam no direito das
coisas; e há os que a examinam à parte. Prefere o ilustre jurista – tendo em vista
que, pelo menos no direito justinianeu, se encontra a doação obrigatória como pacto
23 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, capítulo XLII; CORREIA, Alexandre e SCIACIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, CD Liv, Capítulo III; CHAMOUN, Ebert, Instituições de Direito Romano, 6ª edição, Editora Rio, Rio de Janeiro, 1977, p.391; NOBREGA, Vandick Londres da. Compendio de Direito Romano II, 8ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1975, volume II, p. 336. 24 24 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.236/237.
19
legítimo – estudá-la no direito das obrigações, logo após a análise dos pactos. Com
referência ao segundo problema e invocando a lição de BIONDI, afirma que a
doação se restringe à esfera patrimonial (excluindo a manumissão de um escravo
que embora possa implicar liberalidade não é doação); a doação atribui ao donatário
um direito (esse é o motivo pelo qual a constituição do precarium a alguém não é
doação: pelo precário não se concede ao precarista qualquer direito e a doação é a
causa, que ocorre com relação a atos abstratos e não a atos típicos; por isso, o
comodato e o testamento, embora impliquem liberalidade, não são doação: são atos
típicos). 25
BIONDI divide a história da doação em três fases: a) das origens à Lex
Cincia; b) da Lex Cincia à lei de Constantino, vale dizer por toda a época clássica e:
c) da lei de Constantino até os nossos dias. Das origens e por toda a época
clássica, até Constantino, a doação é concebida não como negócio jurídico típico,
mas como causa de numerosos e variados atos jurídicos de caráter patrimonial, até
não negociais.
Tanto na jurisprudência clássica como nas leis imperiais e nos próprios atos
jurídicos se fala de agere, gerere, permittere, dare, mancipare, tradere, promittere,
acceptum ferrem iuberem remittere, excolere donationis causa. A hipótese mais
frequente e mais importante é a doação traslativa de propriedade, que ata mediante
o cumprimento dos modos em geral de transferência de domínio, como a
mancipatio, in iure cessio e traditio; mas Pompônio adverte que potest et citra
corporis donationem valere donatio (pode e sem figura de doação valer como
25 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.236/237.
20
doação). São documentados e conhecidos numerosos outros atos que se realizam
donationis causa e que se enumera apenas a título exemplificativo: stipulatio e
remissão de débito; pacto de não reclamar pagamento ante certum tempus;
pagamento do débito de terceiro; prestação de garantia real ou fiança por débito de
terceiro; novação de pagamento; reconhecimento de débito; concessão de direito de
habitação gratuita de uma casa; construção e plantação em solo alheio; cultura
gratuita em prédio alheio; venda ou locação viliore pretio; renúncia a um direito ou
abstenção de seu exercício para que se extinga ou um terceiro o adquira26.
Até o ano 204 AC as doações são submetidas ao direito comum,
especialmente do ponto de vista das suas condições de validade. Cuidando de
transferir diretamente pela doação da propriedade de coisas corpóreas se recorria à
mancipatio ou à in iure cessio para as res mancipi e à in iure cessio ou à tradictio
para as res nec manicipi. A doação de uma servidão se fazia pela mancipatio ou in
iure cessio no caso de servidões rurais; pela in iure cessio no caso de servidão
urbana ou pessoal. Para a doação de um crédito, cedia ao donatário as ações
relativas ao crédito; se a intenção era a de fazer uma novação, pedia o credor ao
seu devedor, pela delegatio, que se obrigasse perante o donatário. Se a doação
consistia numa remissão de dívida, liberava-se o donatário por uma acceptilatio ou
por uma simples convenção liberatória, ou ainda no caso em que o donatário fosse
devedor de terceiro ou pagava o débito ou o doador se obrigava perante esse
terceiro substituindo o donatário. Se o doador não quisesse se despojar da coisa
objeto da liberalidade, era utilizada a forma da stipulatio27.
26 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 225. 27 VAN WETTER, P. Pandectes contenant L’Histoire Du Droit Romain et la Legislation de Justinien, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1910, Tomo Quatro, p. 46.
21
Nessa mesma ordem de idéias e esclarecedora é a lição de BIONDO BIONDI
ao observar “que Gaio não menciona a doação por se tratar de instituto
antiquíssimo, porque não encontra onde colocá-la, e porque no sistema romano,
baseado nas actiones, não existe actio ex donatione. Sob este aspecto a doação se
coloca no mesmo plano da constituição de dote, para o qual não há ato típico e se
excluída a antiga doctis dictio tem aplicação limitada. Tudo isto foi intuído por
SAVIGNY, a quem se deve o erro não apenas de não distinguir as várias épocas,
como de apresentar uma formulação contraditória com a premissa da qual partia,
quando define a doação como “negócio jurídico quando reúna as seguintes
qualidades: ser um negócio inter vivos que deve enriquecer alguém enquanto
outrem perde alguma coisa“. A doação não é um negócio, mas a causa que está na
base de todo ato, mesmo não negocial, mas de caráter patrimonial. Em princípio, a
causa donationis não aflora no ordenamento jurídico, como não traz à tona alguma
outra causa. O ato é sempre o mesmo, sujeito ao mesmo regime, seja de forma,
seja de substância, e produz invariavelmente a mesma conseqüência jurídica
qualquer que seja a causa. Portanto, se tem regime unitário para todo o ato singular
qualquer que seja a causa, mas regime diverso segundo os diversos atos” 28.
A causa donationis passa a ser considerada e, em seguida, o instituto começa
a delinear-se como instituto autônomo quando a Lex Cincia de 204 A.C. proíbe dona
et munera excedente a uma determinada soma (modus), exceto aquelas em favor
de certos familiares expressamente indicados na lei (exceptae personae), ou que
não superasse uma determinada quantia que não é conhecida. Não se sabe com 28 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 225.
22
precisão a razão de tal proibição; talvez ligado ao espírito romano não predisposto à
liberalidade; Cícero lamenta que multi enim patrimonia effuderunt inconsulte
largiendo (por causa de liberadidades inpensadas muito patrimônio se desperdiçou)
(de off., 2, 15,54). Uma vez que a doação não era negócio jurídico, razão pela qual
era fácil declarar a nulidade, a jurisprudência foi induzida a determinar a causa
donationis para aplicar a proibição. Assim nasce a necessidade de declarar o que
seja doação. Pode-se dizer então que o ato de nascimento da doação foi de
desconhecimento e não de reconhecimento. E isto porque a lei se limitava a proibir a
doação sem declarar a nulidade do ato, e nem tecnicamente poderia fazê-lo porque
a doação não era ato típico, mas causa de variados atos e o pretor, guiado pela
sapiente jurisprudência, no intento de dar execução à proibição, terminou por
instaurar um regime, o quanto mais adequado, ainda que diferente daquele que
talvez fosse o pensamento da antiga lei. O pretor, como sempre, opera com os
meios normais inerentes à sua iurisdictio; formalmente, não se coloca em contraste
com os preceitos do ius civile, nem desconhece a pretensão que deste são
resultantes, mas, por meio do exercício de tais meios processuais, a bloqueia
tornando inativo o direito derivado do ato. É concedida ao doador uma exceptio
fundada na própria Lei Cincia, denominada por isso exceptio legis Cinciae pela qual
será compelido judicialmente para executar a doação. Portanto, se o doador fez
apenas mancipatio ou in iure cessio da coisa, sem transferir a sua posse, e o
donatário, que se tornou dominus com base no ato traslativo, reivindica a coisa que
se encontra em poder do doador.
Analogamente, se o doador fez, mediante uma stipulatio, promessa ao
donatário, este, tornando-se credor pode ingressar em juízo para buscar o
23
cumprimento da promessa do doador, o qual, opondo a exceptio, em definitivo não
executa a promessa. A par da exceptio se esta não possa ter aplicação, o pretor
concede ao doador uma restitutio in integrum e uma condictio liberationis, conquanto
a aplicação desses dois remédios não pareça ser geral. São todos estes meios que
se amoldam ao espírito da Lei Cincia, mas determinam uma situação que vai além
do espírito da lei. Do dualismo entre eficácia iure civile do ato atributivo e
oponibilidade da exceptio legis Cinciae deriva o conceito de donatio perfecta, que
constitui o centro de toda a doutrina clássica da doação. É um conceito totalmente
particular, que não corresponde ao de anulabilidade. Nas fontes se fala mais em
revocare, e uma investigação dos fragmentos do vaticano traz à luz a rubrica quando
donator intellegatur revocasse voluntatem (o doador entendesse de revogar a
manifestação de vontade). Fala-se de revocare no sentido de possibilidade deferida
ao doador de não executar a doação ou de neutralizar-lhe os efeitos dentro dos
limites das medidas jurídicas concedidas pelo pretor ao doador. Donatio perfecta
significa não apenas a formalmente completa, mas também exaurida, definitiva,
independentemente da validade do ato. Em contraposição, donatio imperfecta é
aquela que resulta de um ato atributivo regularmente praticado e, pois, sob esse
aspecto, plenamente válido, mas contra a pretensão daí derivada o doador pode
opor a exceptio legis Cinciae e exercitar os meios judiciais revocatórios que o pretor
concede para cumprimento da Lei Cincia.
Concluindo, a doação imperfecta é revogável segundo o arbítrio do doador,
somente do doador, com a consequência de que a doação conserva toda sua
eficácia com a morte deste. Ainda que a preservação do patrimônio familiar tenha
sido o móvel e o fundamento da proibição da Lex Cincia, é impregnado de um
24
significado todo particular, talvez estranho ao antigo legislador, de todo inoportuno,
uma vez que um instituto tão universal e difundido na vida não podia ser suprimido.
A antiga disposição na jurisprudência e na prática do pretor se entende como
garantia contra doações pródigas, de modo a evitar aquilo que lamenta Cícero, ou
seja, que pessoas dissipem o próprio patrimônio com prodigalidades irrefletidas29.
O nascimento da doação como negócio jurídico típico é assinalado pela
Constituição de Constantino de 316, segundo BIONDI30, ou de 323, segundo
MOREIRA ALVES31, motivada pelo declínio das formas clássicas de alienação
(mancipatio e in iure cessio) e o advento da traditio como modo geral de
transferência da propriedade. Com a abrogação da Lex Cincia cai o sistema de
limitações à doação, passando a exigir-se, para que ela se constitua, a observância
de formalidades que visam à publicidade, ou seja, a redação de ato escrito (com a
indicação do doador, do donatário e da coisa doada) na presença de testemunhas; a
tradição da coisa (corporalis traditio) realizada, em relação à coisa imóvel, ante os
vizinhos) e: a insinuatio apud acta, isto é a transcrição do ato escrito da doação em
arquivo público, pela autoridade – que tenha o ius acta conficiendi – do lugar do
domicílio do doador.
É certo, porém, como leciona MOREIRA ALVES, que os textos pós-clássicos
continuam a referir-se a expressões utilizadas com relação à lei Cíncia de donis et
muneribus: donatio perfecta, exceptio, exceptae personae. Mas o que, em verdade,
29 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 226. 30 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 229. 31 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.240.
25
ocorre é que os jurisconsultos pós-clássicos, com termos advindos do direito
clássico, exprimem idéias diversas. Com efeito, abolido o sistema de restrições
sobre o qual se construíra o conceito clássico de doação, as exigências se
concentram na forma; daí, por exemplo, ao passo que no direito clássico, donatio
perfecta é a doação de que o doador não pode se eximir de executar, ou se
executada, desfazer, no direito pós-clássico donatio perfecta é aquela feita com a
observância das formalidades legais. Com Justiniano, quando a doação não excede
o valor de 500 sólidos, não se exigem as formalidades requeridas por Constantino; e
mesmo nas que são superiores a esse valor (com exceção de alguns casos como,
por exemplo, as doações feitas pelo imperador ou pela imperatriz e as destinadas a
finalidades pias, em que se dispensam as formalidades), só há necessidade de se
observarem os requisitos da redação do ato escrito e da insinuatio, para que a
doação não seja nula no que exceder a 500 sólidos. Por outro lado, estabelece
ainda Justiniano que: a) o doador pode revogar a doação perfecta (no sentido que
esta expressão adquire no direito pós-clássico: a doação realizada com a
observância das formalidades legais), se ocorrer a ingratidão do donatário (seja
liberto ou ingênuo) para com o doador; e, b) a simples convenção entre o doador e o
donatário é pacto legítimo, e, portanto, obrigatório para o doador32.
A partir do século V da era cristã afirma VAN WETER que uma reação se
opera contra o sistema. Os imperadores Teodósio II e Valentiniano III suprimem o
requisito da redação por escrito para a validade das doações; Zenon suprime a da
presença dos vizinhos e de outras testemunhas quando da tradição da coisa doada
e, Justiniano, o da tradição real. Restava a insinuação da doação; Justiniano a
32 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.240/241.
26
restringe às doações excedentes a 500 sólidos. O mesmo imperador decide que,
salvo a formalidade da insinuação, a doação é perfeita pelo simples consentimento
das partes, sem que seja necessário empregar a forma da stipulatio. Desta maneira,
a doação assume seu lugar dentre os pactos legítimos33.
Quanto às modalidades de doação, estas poderiam ser inter vivos e mortis
causa sendo esta última subordinada à condição de o doador morrer antes do
donatário. O instituto tinha aplicação prática no caso de o doador dever enfrentar um
perigo (guerra, longa viagem etc.), pois a doação mortis causa fica sujeita à
condição resolutória da volta do doador. Mas há outros casos de aplicação.
A doação mortis causa difere da inter vivos porque caducará no caso de o
doador morrer depois do donatário e poderá ser revogada pelo doador ad nutum, ou
seja, quando este quiser. Substancialmente é como um legado, o que não escapou
aos jurisconsultos e à legislação imperial, tanto que, com o decurso do tempo, veio a
ser submetida ao mesmo regime dos legados, no tocante à capacidade de receber
do sujeito e quanto às reduções legais34.
Dentre as doações inter vivos, além daquelas puras, merece menção a
doação universal – que tem por objeto todo o patrimônio do doador ou parte dele. No
direito clássico, para que a doação fosse eficaz, era necessário que se transferisse
do doador para o donatário a propriedade de coisa por coisa, bem como se
cedessem regularmente os créditos e as ações. No direito justinianeu admite-se que
a doação universal possa realizar-se por ato único. Por essa doação não ocorria 33 VAN WETTER, P. Pandectes contenant L’Histoire Du Droit Romain et la Legislation de Justinien, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1910, Tomo Quatro, p. 56. 34 CORREIA, Alexandre e SCIACIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, CD Liv, s.d., p. 222.
27
sucessão universal, e, assim, o donatário não respondia perante terceiros pelos
débitos do doador; se, porém, se obrigasse com este a responder por seus débitos,
a menos que houvesse delegatio – quando a responsabilidade seria direta do
donatário para com o terceiro – os credores se iam contra o doador e este, por sua
vez se voltava contra o donatário. Note-se ainda que se o doador não cumprisse a
obrigação, e, por isso, fosse acionado pelo donatário, seria condenado a entregar
apenas o ativo de seu patrimônio (sendo, portanto, deduzidos os débitos – aere
alieno deducta).
A doação remuneratória é aquela que o doador realiza para recompensar
alguém que o tenha beneficiado, não se confundindo com o negócio bilateral
oneroso porque não encerra uma contraprestação, tendo em vista que se trata de
compensação a um benefício não avaliável em dinheiro, ou de remuneração que,
socialmente, não se reputa como contraprestação. Como exemplo, é apontada a
feita pelo doador a quem lhe salvou a vida, e que, no direito justinianeu, é
irrevogável.
A doação modal, ou sub modo, é aquela em que o doador, em seu favor ou no
de terceiro, impõe ao donatário um ônus (modo ou encargo). Para a realização da
doação sub modo, utiliza-se em geral – caso contrário o doador não dispunha de um
modo eficaz para compelir o donatário a cumprir o encargo –, de um pactum fiduciae
inserto na mancipatio, ou de uma stipulatio em separado, pelos quais o donatário
prometia, para a hipótese de não cumprimento do ônus, restituir a coisa doada, ou
pagar uma pena. No direito justinianeu, a doação sub modo, quando efetuada pelo
doador a prestação, se enquadrava na categoria dos contratos inominados,
28
dispondo o doador, portanto, das ações que sancionavam as obrigações deles
decorrentes. Por outro lado, quando o encargo é estabelecido em favor de terceiro,
este, para obter sua execução contra o donatário, tem uma actio utilis, sendo
discutível se isso já ocorria no direito clássico ou no justinianeu35.
No que respeita à promessa de doação, Justiniano pretende (de modo
semelhante à compra e venda) uma fusão das soluções clássica e pós-clássica e vê
de novo na doação uma causa de aquisição e separa-a da transmissão. Como
simples promessa torna-se de novo vinculativa e desligada da forma, agora escrita
da stipulatio; cfr. C. 8, 53, 35, 5 b/c; Ins, 2, 7, 2. Assim, a promessa de doação torna-
se um contractus fundado no consenso e obrigatório por si só (pactum legitimum).
Além disso, Justiniano adota a obrigação do registro introduzido por Constantino e
estende-a à promessa de doação36.
2.2 No Direito Intermédio e o retorno aos princípios do Direito Romano
Nos primeiros anos do século V, a invasão dos bárbaros, quando o Império
Romano já estava dividido em duas partes, do Ocidente e do Oriente, traz consigo
as instituições de seu direito costumeiro que vai ser amoldado paulatinamente pelo
Direito Romano.
35 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.244/244 e nota 1434 apontando que para Biondi essa actio utilis surgiu no direito clássico e para Bonfante, no direito justinianeu. 36 KASER, Max. Direito Privado Romano, trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999, p. 269.
29
Não foi o Direito Romano clássico, e sim o Direito Romano justinianeu, contido
no Corpus Juris Civilis, com as anotações e comentários dos glosadores e pós-
glosadores.
A recepção do Direito Romano foi rápida e profunda em alguns Estados e
mais demorada em outros, e não foi simultânea. Na Itália, Portugal, Espanha e sul
da França, regiões mais romanizadas, nas quais havia vigorado por longo tempo as
denominadas leis “bárbaras” (Lex Romana Visigothorum, Burgindionum e Édito de
Teodorico), a recepção do Direito Romano se deu de forma incontestada e rápida,
suprindo facilmente as lacunas do direito local vigente. Mesmo com as alterações
ocorridas com a Idade Média, a influência não havia desaparecido de todo na região.
Nos países que integravam o Sacro Império Romano-Germânico, a recepção
do Direito Romano também não encontrou obstáculos devido à obra de Irnério, que
havia descoberto um volume do Digesto na Biblioteca de Pisa e que fundara a
Escola dos Glosadores; era consultor do imperador do Sacro Império e, com a
autoridade de seu cargo, lançou a idéia de que os imperadores do Sacro Império
eram os sucessores dos imperadores romanos. Assim sendo, o Direito Romano
deveria, também, ser o direito a reger os destinos desse Império, sucessor das
glórias do primeiro.
Em contraposição, esse também foi o motivo do repúdio inicial do Direito
Romano no norte da França, norte da Alemanha e na Inglaterra, países que eram
opositores políticos do Sacro Império Romano-Germânico. Se eles recepcionassem
30
o direito dos romanos como direito comum, implicitamente estariam também
reconhecendo a soberania de seus inimigos políticos.
Esse foi o motivo pelo qual Felipe Augusto, rei de França, proibiu, em 1200, o
ensino do Direito Romano na Universidade de Paris. Felipe III, seu sucessor, em
1278, proibiu os advogados franceses de se referirem às normas do Direito Romano
em casos em que o direito consuetudinário francês estivesse em vigor.
Na Alemanha, a assimilação do Direito Romano ocorreu nos séculos XVI e
XVII e se deu mais lentamente que nos demais países europeus. O direito que vigia
em todo o seu território era o direito nacional alemão, consuetudinário e não escrito,
que resistiu um pouco mais para receber influência do “direito comum” romano. Em
1495, o Tribunal Imperial Alemão aceitou a aplicação do Corpus Juris Civilis
somente quando ele não chocasse com as leis locais. Nos países eslavos a
infiltração do Direito romano como direito supletivo foi mais lenta e difícil37.
LUIZ ANTONIO ROLIM, com apoio em GLISSEN, afirma que a Inglaterra
resistiu e não aderiu à influência do Direito romano. O direito anglo-saxão é um
direito eminentemente consuetudinário, fruto de decisões judiciais reiteradas, de
precedentes judiciais, e não de um direito escrito. “O common Law é um judge-made
Law, um direito jurisprudencial, elaborado pelos juízes reais e mantido graças à
autoridade reconhecida dos precedentes judiciários”. Salvo na época de sua
formação, a lei não desempenha qualquer papel em sua evolução. Este é um dos
37 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano, 2ª edição, RT, São Paulo, 2003, p. 120/121.
31
motivos pelo qual o Direito Romano – um direito escrito – pouca influência exerceu
sobre o direito inglês, mesmo supletivamente38.
No que toca ao Direito da Península Ibérica, o domínio da monarquia
visigótica na Espanha, por mais de um século (584-711), não podia deixar de influir
no destino histórico de seus povos.
É sabido, ensina REYNALDO PORCHAT, em lição cuja reprodução é
imprescindível para que se tenha uma perfeita visão da evolução do direito luso-
brasileiro “que os bárbaros tinham o salutar costume de deixar que os povos
vencidos se regessem por suas próprias leis. Por isso, durante o domínio dos
visigodos, enquanto eles governavam pelo direito germânico, que os acompanhava
onde quer que estivessem, conservando sua organização militar e seus costumes
tradicionais, o povo encontrado na península continuou a reger-se pelos antigos
usos romanos, e pelas leis romanas que lhe foram oferecidas em um código
organizado pelos próprios vencedores. Este Código era uma compilação, feita em
506, por ordem de Alarico II e referendada por Aniano, tendo recebido o nome de
Lex romana visigothorum ou Corpus Legum, sendo também conhecido pela
denominação de Breviario de Alarico, ou de Aniano (Breviarium Alaricianum ou
Aniani). A matéria que o compõe é toda coligida do direito romano: um resumo de
grande número de constituições imperais do código de Teodósio e de novelas desse
imperador, de Valentiniano II, de Marciano, de Majoriano e de Severo; fragmentos
dos códigos Gregoriano e Hermogiano, e de partes de obras de alguns
jurisconsultos que foram consagrados pela lei das citações, isto é, das Institutas de
38 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano, 2ª edição, RT, São Paulo, 2003, p. 121/122.
32
Gaio, das Sentenças de Paulo e de um trecho das respostas de Papiniano. Para
evitar a dualidade de direitos contemporaneamente vigentes no mesmo território –
porque enquanto os vencidos se regiam pelo Código de Alarico, os visigodos se
governavam por suas próprias leis germânicas – Leovigildo e Reccaredo
organizaram uma nova compilação, que foi depois, por Chindaswintho, consolidada
em um código (642), confirmado e aumentado por seu filho Receswintho. No 16º
Concílio de Toledo, reunido em 623, sob o reinado de Aegica, depois de revisto e
dividido em 12 livros, foi esse Código Visigótico promulgado com o nome de Codex
Legum ou Lex Visigothorum e imposto como lei obrigatória geral a todos os súditos
do império visigótico. Esse código, que parece ter sido calcado no de Teodósio, é
quase todo copiado da legislação romana, no que diz respeito às matérias de direito
privado. E embora se encontrem aí alguns preceitos divergentes produzidos pelos
costumes germânicos, como os referentes ao dote, à comunhão de bens no
casamento e à liberdade de dispor da terça, pode dizer-se acertadamente, com
Martins Junior, que nesse código se fez uma “notável fusão dos direitos romano e
bárbaro. Traduzido em espanhol com o nome de Fuero Juzgo ou Libro de los
Jueces, e conhecido também com a denominação de Forum Judicum, foi esse o
primeiro código de Espanha, destinado a regê-la por alguns séculos e formando,
segundo Maynz, a base do direito nacional da península ibérica” 39.
No princípio do século VIII, os árabes, vindos da África, desalojaram os godos
e o império visigótico cai em 711. O espírito de tolerâncias dos árabes fê-los
benignos para todos que não lhes opuseram resistência, resultando daí, fato
interessante para a história jurídica da Ibéria, de continuarem os vencidos a reger-se
39 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p.30/33.
33
por seus usos e costumes, mantendo as suas instituições e as suas leis. Graças a
isso, pode dizer-se como uma verdade, que a invasão sarracena não produziu
modificações no direito civil que os visigodos deixaram na península40.
Com a recuperação do reino de Oviedo ou de Leão, pelos ibéricos no século
VIII, e deste fazendo parte a Lusitânia, os reis vencedores conservaram, juntamente
com o sangue dos godos, os mesmos princípios de governo, as mesmas leis e os
mesmos costumes com pequenas variações, ou seja, o mesmo direito dos
visigodos, o direito de origem romana corporizado no Fuero Juzgo, que, a despeito
do domínio dos mouros, vigorava ainda quando se fez independente o reino de
Leão.
E esse era o direito dominante quando se constituiu, no século XII, a
monarquia portuguesa quando da aclamação do infante Afonso Henriques, primeiro
rei de Portugal, neto de Afonso VI.
A par da legislação dos forais vigoraram leis gerais promulgadas pelos reis da
primeira dinastia como as de D. Diniz, nos fins do século XIII, D. Afonso IV, D. Pedro
I, e D. Fernando.
40 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia. São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p.34/35, merecendo transcrição a citação que faz de Candido de Oliveira: “São quase nulos os vestígios arábicos no organismo hispano-godo. O fundo desse organismo, o direito romano, era muitas vezes secular. Nada oferece maior resistência às mutações do que a lei privada de um povo. Esboroam-se as instituições políticas, transforma-se a sociedade; o direito antigo, no entanto, perpetua-se pela tradição, e a energia vai ao ponto de eliminar, pelo desuso, a própria lei nova. E se refletirdes quês os conquistadores vindos d’Africa deixaram de pé o direito dos vencidos, não estranhareis essa perseverança do elemento romano, entranhado nas codificações bárbaras, modificado pelas normas germânicas, que ainda hoje forma parte principal das leis luso-espanholas.
34
Na segunda dinastia, embora iniciada a organização de um código único por
D. João I, Mestre de Aviz, em 1446, quando reinava D. Afonso V, foram
promulgadas as Ordenações Afonsinas, consideradas como o mais antigo código da
Europa moderna. O seu conteúdo é descrito por Coelho da Rocha, como
subdividido em cinco livros: “Para sua confecção, aproveitaram os compiladores: as
leis promulgadas desde D. Afonso II, as determinações e resoluções das Cortes
celebradas desde D. Afonso IV, assim como as concordatas de D. Diniz, D. Pedro e
D. João, cujo teor pela maior parte se transcrevem. A principal fonte, porém, foi o
Direito Romano e o Direito Canônico, dos quais os compiladores extraíram títulos
inteiros, além das muitas referências a um e a outro, que a cada passo se
encontram por todo o corpo dessa obra, Finalmente, algumas disposições se acham
ali tiradas das leis das Partidas de Castela, dos antigos costumes nacionais e dos
estilos particulares das cidades ou vilas, os quais por esta forma foram convertidos
em leis gerais” 41.
Estas ordenações vigoraram por setenta e cinco anos, até serem revogadas
por D. Manuel I, o Venturoso, que ascendeu ao trono em 1495, sucedendo a D. João
II.
Apesar de não ter havido movimento de reformas jurídicas no país, talvez
para marcar sua atividade de grande legislador, no meio das glórias com que se
deslumbrava o seu reinado, D. Manuel expediu carta régia em 1506, em virtude da
qual foram revistas as Ordenações por uma junta presidida por Ruy Botto e, revistas,
foram publicadas em duas edições sucessivas de 1513 e 1514.
41 COELHO DA ROCHA, in PORCHAT, Curso cit, p. 41.
35
Como apresentassem muitas falhas em razão da precipitação com que foi
realizada a revisão, o texto foi submetido a um novo exame por uma comissão de
desembargadores, e o resultado do trabalho, aprovado pelo rei, foi publicado como
lei permanente com o nome de Ordenações Manuelinas.
Nestas, o direito romano é mantido na mesma posição de subsidiário, mantido
o espírito e os princípios gerais da legislação, com alterações decorrentes de novas
providências, ou alterações ocorridas no intervalo entre a publicação das
ordenações, donde ter sido considerada como uma edição correta e aumentada da
compilação de 1446. Com a extinção da casa de Aviz (1580), Portugal cai sob o
domínio da Espanha, assumindo o trono o rei Felipe II de Espanha, com o nome de
Felipe I, a quem coube a iniciativa do movimento legislativo para a promulgação de
um novo código.
Motivos de ordem política e de reafirmação do poder real levaram o novo rei a
editar novas Ordenações que regeriam a vida do reino por mais de dois séculos e
seriam a base do direito civil brasileiro42.
42 PORCHAT, Reynaldo. Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p. 44. “O desejo de firmar a sua autoridade real, reforçando o direito civil, que, nos reinados de D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique tinha sofrido em seu prestígio pela influência exagerada do direito canônico sustentado pelo Concílio de Trento, ou, talvez, a preocupação de agradar o povo português com a promulgação de um código nacional, foi o que levou o rei estrangeiro a ordenar, por alvará de 5 de junho de 1595, que fosse revista, reformada e codificada toda a legislação portuguesa. Em quase oito anos de trabalho, em que tomaram parte os conspícuos jurisconsultos Pedro Barbosa, Paulo Afonso, Damião de Aguiar, e principalmente Jorge de Cabêdo, estava preparada a nova codificação, que foi decretada e publicada no dia 11 de janeiro de 1603, já no reinado de Felipe II, para todo o reino de Portugal, onde ficou vigorando com o nome de Ordenações Filipinas. “É esse” diz Martins Junior, “o código destinado a reger mais de dois séculos a nação portuguesa, e a ser ainda a pedra angular do direito civil brasileiro.”
36
Estas Ordenações conservam ainda as bases das duas primeiras e o direito
romano, tomado como fonte e mantido expressamente, no Livro 3, Título. 64, como
direito subsidiário.
Ainda na lição de PORCHAT: “O fundo dessa legislação, observa Coelho
Sampaio, “pelo que pertence ao direito particular, é todo de equidade; nela se acha
o que o direito romano, entendido segundo a Glosa, tem de melhor.” Coelho da
Rocha, confrontando as Ordenações Filipinas com as Manuelinas, chega a dizer,
com visível exagero, que “a falta de método e economia da compilação, as máximas
e espírito das leis e as matérias são as mesmas que se achavam nas Ordenações
Manuelinas; as quais os novos redatores pela maior parte copiaram, inserindo-lhes
aqui e ali as leis posteriores, principalmente as conteúdas na coleção de Duarte
Nunes de Leão; e isto com tanta incúria, que em muitas partes deixaram
obscuridade ou palpáveis contradições”. Parece-nos mais aceitável o juízo de
Candido Mendes dizendo que a compilação de D. Filipe “não obstante os seus
defeitos e descuidos, é trabalho de merecimento superior ao Código de D. Manuel,
cujos compiladores não tinham, nem podiam dispor de tantos recursos como os do
Código Filipino”.
Ensina ainda o eminente romanista que “esse interessante movimento de
codificação do direito português, que produziu as três referidas Ordenações, corria
paralelo com o desenvolvimento da jurisprudência, em que muitos jurisconsultos se
fizeram notáveis por importantes trabalhos. E quer na esfera legislativa, quer no
campo da doutrina, onde se destacaram juristas abalizados como Valasco, Caldas,
Reynoso, Pegas, Guerreiro e outros, o direito romano se impunha sempre com o seu
37
vigoroso influxo: ali recebido, e assimilado nas leis promulgadas, aqui dominando os
espíritos, e imprimindo-lhes orientação romanista pela ação empolgante das obras
de Accursio, de Bartolo e de Cujacio. A despeito da intenção das Cortes, com a
Restauração, em 1640, D. João IV, primeiro rei da casa de Bragança, não podia
aceder aos desejos populares de revogação ou a reforma das Ordenações sem por
em risco o trono, e, para isso era necessária a manutenção da obra de Felipe, que
se fundava no direito imperial” 43.
E a lei de 29 de janeiro de 1643, proclamando mais uma vez o poder absoluto
do rei, revalidou, confirmou e promulgou as Ordenações Filipinas, determinando que
fossem cumpridas e respeitadas. Em virtude desse decreto definitivo do monarca
português, as Ordenações Filipinas regeram por mais de dois séculos a nação
portuguesa e, no Brasil, durante o Império e o início da Republica Velha, o nosso
direito civil, até a entrada em vigor do Código Civil de 1916.
As Ordenações Filipinas, como ensina PORCHAT, “além de inspiradas no
direito romano, cujas instituições foram fartamente adotadas, ainda determinaram,
por expressa disposição contida no liv. 3º, tit. 64 que esse direito fosse invocado
como subsidiário, recorrendo-se na falta dele, às opiniões dos célebres romanistas
Accursio e Bartolo” 44.
43 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p 46/47. 44 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p. 48 – valendo transcrever o texto que é o seguinte: “Quando algum caso for trazido em prática, que seja determinado per alguma Lei de nossos Reinos ou Stilo de nossa Corte, ou costume em os ditos Reinos, ou em cada alguma parte deles longamente usado, e tal, que per direito se deva guardar, seja per eles julgados, sem embargo do que as Leis Imperiais acerca do dito caso de outra maneira dispõem; porque onde a Lei, Stilo ou costume de nossos Reinos dispõem, cessem todas as outras Leis e Direitos. E quando o caso, de que se trata, não for determinado por lei, Stilo ou costume de nossos Reinos, mandamos que seja julgado, segundo matéria que traga pecado, peer os Sagrados Cânones. E sendo matéria que não traga pecado, seja julgado pelas Leis Imperiais,
38
Em razão dessa disposição legal, estavam abertas as oportunidades para a
aplicação, ainda que de maneira afoita, os preceitos do direito romano segundo a
opinião desses jurisconsultos.
Tão grande importância foi dada a esse direito e à autoridade de Accursio e
Bartolo, cujas opiniões eram respeitadas como se fossem leis, com menosprezo do
direito nacional, que uma reação se fez sentir quando o Ministro de D. José I, Conde
de Oeyras, depois Marquês de Pombal, tomou a si a direção do governo da nação
portuguesa.
Relegando o direito romano a uma fonte subsidiária de interpretação e
restringindo a aplicação das glosas, foi editada, em 1769, a Lei da Boa Razão, com
a finalidade de compatibilizar os princípios do direito romano com as regras do
direito das gentes. 45
posto que os Sagrados Cânones determinem o contrário. As quaes Leis Imperiais mandamos guardar pela voa razão em que são fundadas. I – E se o caso, de que se trata em pratica não for determinado per Lei de nossos reinos, Stilo , ou costume acima dito, ou Leis Imperiais, ou pelos Sagrados Cânones, então mandamos que se guardem as glosas de Accursio, incorporadas nas ditas leis quando per commum opinião dos doutores não forem reprovadas: e quando pelas ditas Glosas o caso não for determinado, se guarde a opinião de Bartolo, porque sua opinião communmente He mais conforme à razão, sem embargo de alguns Doutores, tivessem o contrario; salvo se a commum opinião dos Doutores, que depois delle screveram, for contraria.” 45 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p. 50. “Foi então promulgada , em 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa Razão que, entre outras providências decretadas, restringiu, ou melhor, definiu o preceito das Ordenações, estabelecendo no § 9º: a) que não poderiam ser mais invocadas, por serem metafísicas e destituídas de conhecimentos científicos, as opiniões de Acursio e Bartolo; que o direito romano fosse considerado como subsidiário, não por autoridade própria, mas somente naquilo que fosse fundado na boa razão, isto é, que estivessem de acordo com os princípios primitivos, que contêm as verdades essenciais, intrínsecas e inalteráveis, que a ética dos romanos estabelecera e aos direitos divino e natural formalizaram para servir de regras morais e civis no cristianismo, ou com as regras que, por universal consentimento, estabeleceu o direito das gentes para o governo das nações civilizadas, ou com as que se encontram nas leis políticas, econômicas, mercantis ou marítimas, promulgadas pelas nações cristãs, devendo estas últimas, quanto às matérias indicadas, ter preferência sobre o direito romano. Dissemos que foi uma reação salutar, e assim o pensamos, porque, limitando-se a autoridade do direito romano àquilo que fosse fundado na boa razão, e abolindo-se as interpretações casuísticas, eivadas de artifício, de Accursio e Bartolo, evitaram-se os abusos e extravagâncias com
39
Conclui o eminente romanista: “É uma verdade incontestável o que diz o
conselheiro Ribas: “o conhecimento profundo e completo do direito pátrio é
impossível sem que se firme nas largas bases do direito romano”. E o conselheiro
Candido de Oliveira, que é um ornamento da jurisprudência, e cuja palavra se
reveste sempre de respeitável autoridade, faz a este ponto criteriosa observação
que aqui merece integralmente transcrita como remate a este capítulo: “Nem
envelhece o conselho de um dos redatores do Código (francês) recomendando ao
aspirante dos cargos de magistratura a profunda meditação sobre o imortal
monumento de sabedoria e equidade” 46.
Exemplo marcante do acerto das afirmações de PORCHAT é encontrado em
M. I. CARVALHO DE MENDONÇA que, na sua clássica obra Contratos no Direito
Civil Brasileiro, escrito antes do Código de 1916, se reporta aos textos das
Ordenações, dos Códigos modernos já vigentes, aos textos do direito romano, bem
como à Glosa e à opinião dos Doutos. Para exemplificar, basta a leitura dos trechos
relativos à aceitação da doação feita ao ausente; a crítica sobre o sistema da
insinuação, que passa, por obra do direito intermédio, de simples registro, para
verdadeira pesquisa da vontade do doador e, finalmente, a sua inutilidade ante a
adoção da transcrição para transferência da propriedade e publicidade perante
que eram invocados antigos textos já obsoletos, que a evolução da sociedade não mais admitia, e ficou mantido o elemento puro e universal do direito romano, esse que, atravessando os séculos, e adaptando-se às circunstâncias várias, foi recebido e proclamado por quase todos os códigos dos países cultos.” 46 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia. São Paulo, 1907, volume I (1ª parte), p. 52.
40
terceiros; nas doações de pai para filho; na crítica à afirmação da necessidade de
reserva de usufruto, no caso de doação universal etc. 47.
Enfim, pondera PAULO NADER, que do Direito Romano aos tempos atuais o
instituto da doação passou por amplas discussões, especialmente quanto à sua
natureza jurídica e na avaliação da sua conveniência social. Sob esse aspecto,
incompreensões levaram juristas a olharem a doação com desconfiança e até
mesmo discriminação, como chama atenção CARVALHO DE MENDONÇA:
“Ninguém ignora a espécie de antipatia que, decorrendo da legislação romana,
atingiu todas as legislações modernas, amparadas pelos mais eminentes civilistas,
contra as doações, como um meio de transferir a propriedade” 48.
Sem embargo, é inegável o reconhecimento, na disciplina da doação no
direito civil brasileiro, daqueles traços do direito romano, mantidos no direito
intermédio, e que chegam até os dias atuais, em sua essência.
47 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no Direito Civil Brasileiro, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1957, Tomo I, p. 40, 45, 54/60, 51. 48 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 283.
41
3 A DOAÇÃO NO VIGENTE DIREITO CIVIL
3.1 Quem pode doar e quem pode receber doação
Quanto à capacidade do doador tem-se que, no caso da doação, além
daqueles requisitos exigidos para os atos da vida civil em geral, o nosso sistema
jurídico impõe restrições especiais.
Deste modo, os menores de 16 anos não podem doar sob pena de nulidade
absoluta, uma vez que ele não age, mas é representado pelos pais, tutor ou curador
e os pais, no exercício do poder familiar, apenas tem poderes de administração e as
liberalidades nunca se consideram como feitas no interesse do representado.
Ademais, a doação requer um animus donandi, que supõe algum amadurecimento e
sanidade mental de que carecem os absolutamente incapazes49. Os menores de 18
e maiores de 16 anos podem fazê-lo desde que regularmente assistidos por seus
representantes legais, uma vez que possuem capacidade para testar (art. 1.860 do
Código Civil). 50 O menor já autorizado a casar pode doar, em pacto antenupcial, ao
outro nubente, ficando a eficácia do pacto antenupcial condicionada à aprovação de
seu representante legal (art. 1.654 do Código Civil). 51 Também o pródigo pode
49 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.24. 50 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 100; No mesmo sentido SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 352 – contra essa posição ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.25/26, ao argumento de que quem testa nada perde, ao passo que o que doa empobrece. Invoca ainda a doutrina e a lei italiana que somente permite doar àquele que tenha a plena capacidade de dispor de seus bens, o que não se dá com o relativamente incapaz. 51 SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p.249.
42
fazer doação, desde que obtida autorização judicial52. Também se encontram nessa
situação, os excepcionais sem desenvolvimento mental completo e os ébrios
habituais, os viciados em tóxicos e os que por deficiência mental tenham o
discernimento reduzido (art. 4º, II e III do Código Civil), aos quais, do mesmo modo,
será possível a prática da doação tanto que autorizado pelo juiz. Já o cego e o
surdo-mudo poderão doar, o primeiro por instrumento público, uma vez que por este
meio pode testar (art. 1.867 do Código Civil) e o surdo-mudo que puder manifestar a
sua vontade, visto que somente é considerado incapaz aquele que, mesmo por
causa transitória, não puder manifestar plenamente a sua vontade (art. 3º, III do
Código Civil). 53
O marido e a mulher podem doar com outorga recíproca, nos mesmos casos
e condições de outras alienações de bens. Há situações legais, contudo, que tolhem
a legitimação para doar. É o que sucede com o marido, bem como com a mulher,
que estão proibidos de fazer doações individualmente com os bens e rendimentos
comuns, exceto os remuneratórios e de pequeno valor, ou as doações ou dotes
efetuados às filhas e doações feitas aos filhos para seu respectivo casamento, ou
quando estabelecem economia autônoma (art. 1.647 do Código Civil). O suprimento
judicial nesta e em outras situações de doação não pode ser dado, porque o animus
52 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 2008, 3º volume, p. 100; ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.24, justificando que o pródigo não é um privado de discernimento, nem está sujeito, só por isso, a afetos sem explicação. Pode ocorrer que ele seja rico e queira beneficiar pessoas afeiçoadas, pode querer fazer doação antenupcial, pois o casamento não lhe é impedido. Nesses casos cabe ao curador verificar se a doação é razoável ou se traduz um desejo mórbido; e dará ou não o seu assentimento, conforme o caso. Acrescente-se a isso que a proteção ao pródigo em nosso direito inexiste; não tememos fazer esta afirmação. O que há é proteção a sua família. 53 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade, Código Civil Comentado, 5ª edição, RT, São Paulo, 2007, p. 188, em comentário ao art. 3º anotam que a lei autoriza, excepcionalmente, que o incapaz que sucedeu empresário capaz ou que se tornou incapaz após exercer a empresa possa ser assistido ou representado por curador nomeado (CC. 974 e 975).
43
donandi, por sua natureza é insuprível. Ninguém pode ser forçado a fazer
liberalidade, pois a contradição é lógica e decorre de seus próprios termos54.
A doação pode ser feita por procurador, desde que o instrumento determine
claramente o bem a ser doado, ou ainda que o doador nomeie o donatário ou dê ao
procurador a liberdade de escolha de um entre os que designar55.
As pessoas jurídicas podem doar, lembrando-se que as de direito público
sofrem restrições de ordem administrativa e as privadas sofrerão restrições impostas
por sua índole (sociedades e fundações) ou por seus estatutos e atos constitutivos.
O tutor e o curador não podem doar bens do pupilo ou do curatelado, nem dar
a autorização, porque a lei lhes confia a administração dos bens, porém, nega-lhes a
sua disposição (arts. 1.749, II e 1.781 do Código Civil). Também não pode doar o
falido porque não tem a livre administração de seus bens (L. 11.101/2005, art. 99,
VI), e, pelo mesmo motivo, os administradores de instituições financeiras em regime
de liquidação extrajudicial (L.6024/74, art. 36).
Do mesmo modo, no que toca à capacidade passiva.
54 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 008, 3º volume, p. 100/101; ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.25, argumentando, no mesmo sentido, de que contra a imprescindibilidade do animus donandi não há argumentar com o suprimento do consentimento da mulher ou do marido para que se possa fazer doação de bens comuns. O juiz supre o consentimento se a recusa não for justa, e para não querer doar, basta a razão de não o querer, pois ninguém pode ser obrigado a empobrecer, par aumentar o patrimônio de outrem, por quem não nutre afeto ou simpatia – sentimentos insondáveis. 55 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008,3º volume, p. 101 e SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Riuo de Janeiro, 2004, volume III, p.249, com apoio em Espínola e M.I. Carvalho de Mendonça. SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 354, indicando que a faculdade de escolha dentre as pessoas indicadas pelo mandante corresponde a orientação do art. 733 do Código Civil italiano.
44
Como é obvio, estão aptas a receber doações todas as pessoas capazes de
praticar os atos da vida civil.
Também as pessoas jurídicas, respeitadas as restrições acima apontadas
relativamente à sua capacidade para doar, especialmente as de direito público, que
podem depender até de lei especial para tal.
Já foi apontada acima a capacidade do nascituro para receber doação, sendo
aceita por seu representante legal (art. 542 do Código Civil) e que caducará se o
gratificado nascer sem vida.
Também podem receber doações os incapazes, no caso de doações puras,
como se infere do art. 543 do Código Civil.
As pessoas indeterminadas, como os filhos que advierem do casamento em
contemplação do qual é feita a doação (art. 546 do Código Civil), ou ainda a pessoa
jurídica que ainda não se constituiu, caso em que estará subordinada a doação a
condição suspensiva, ficando sem validade se esta não se constituir regularmente
em dois anos (art. 554 do Código Civil).
Os tutores e curadores não podem aceitar doações quanto aos bens das
pessoas que se encontram submetidas à sua administração56.
56 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 448. apontando como sede da proibição o art. 1749, II e afirmando que esta se estende aos bens do curatelado a teor do art. 1174.
45
3.2 Forma da doação
O art. 541 do Código Civil estabelece que a doação far-se-á por escritura
pública ou por instrumento particular, e, na forma do parágrafo único, que a doação
verbal será valida, se versando sobre bens móveis e de pequeno valor se lhe seguir
incontinenti a tradição.
Portanto, a forma escrita é obrigatória, sendo excepcional a verbal, que, além
de ter objeto especificado, constitui contrato real porquanto a tradição da coisa deve
ser feita concomitantemente (incontinenti). 57
A exigência da solenidade encontra explicação na antiga antipatia ou
desconfiança para com a doação, quando, como apontado quando do exame do
direito romano, foi ela vedada pela Lei Cíncia, ou ainda, quando não se achava
natural o despojamento de bens, para entrega a terceiros sem qualquer
contraprestação. Temia-se que a doação resultasse de uma paixão momentânea, ou
de impulso generoso, ou da pressão do beneficiário, ou, o que é pior, da captação
da vontade, ou até mesmo de ameaças58. Observa Agostinho Alvim que, por ir de
encontro ao instinto de egoísmo, uma vez que a doação acarreta empobrecimento
sem qualquer compensação de ordem econômica, o doador está mais sujeito à
coação e às seduções de diversas ordens, ou ainda a vergonha de negar o oprime,
57 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p 64; TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p. 221. 58 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 127; ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.55.
46
donde a imposição da forma que o obriga a refletir59. Daí a necessidade da escritura
pública nos casos de doação de imóveis ou direitos reais sobre imóveis de valor
acima da taxa legal, atualmente trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País
(art. 108 do Código Civil), ou o instrumento particular nos casos em que este é o
meio hábil, restrita a doação verbal apenas nos casos dos pequenos “dons”.
Relativamente a estas se põe a questão de precisar o que venha a ser coisa móvel
de pequeno valor. Trata-se de um conceito jurídico indeterminado, devendo ser
fixado de acordo com as circunstâncias da parte, mais especificamente as condições
econômicas do doador. Se o doador é rico ou abastado, mesmo coisas de valor
elevado podem ser doadas por simples doação manual60. Enfim, somente será
possível avaliar se a coisa permite a doação manual diante do caso concreto.
3.3 O objeto da doação
Para ter validade, a doação deve ter por objeto coisas que estejam no
comércio: imóveis, bens móveis, corpóreos ou incorpóreos, direitos reais, vantagens
patrimoniais, como direito de crédito, ou ainda, partes que podem ser separadas do
corpo, sem prejuízo para a integridade física, para a saúde ou para a dignidade
humana, que apesar de serem bens fora do comércio entram no comércio no
59 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva,São Paulo, 1972, p 56/62, referindo o autor ainda a sistemas jurídicos em que a doação somente se faz por escritura pública ou ainda exige a confirmação judicial por meio da insinuação que entre nós foi obrigatória na vigência das Ordenações, com a finalidade de defender o doados, para livrá-lo da irreflexão, da leviandade. 60 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.222, com invocação das lições de San Thiago Dantas, Washington de Barros Monteiro e julgado do Superior Tribunal de Justiça; no mesmo sentido CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.131/133, destacando que o que importa é avaliar se a doação foi feita sem o menor sacrifício para o patrimônio do doador, mas recomendando prudência ao julgador que apreciará a questão caso a caso.
47
sentido de poderem ser objeto de disponibilidade pelo doador, como o leite materno,
os cabelos, o material placentário, o sêmen, o sangue (Lei 4.701/65, Decreto de
5.9.1991 e 95.721/88 que regulamenta a Lei 7.649/88). 61
Esses bens podem ser presentes ou futuros. Quanto aos primeiros não há
dificuldade porque se encontram na disponibilidade imediata do doador, já integram
o seu patrimônio. Por vezes já integram o patrimônio, são suscetíveis de
disponibilidade, mas não se encontram ainda na posse do doador, como os frutos
pendentes, a colheita, os lucros que serão distribuídos por uma sociedade, ou ainda
o proveitos de eventuais direitos como os direitos autorais etc.62 Já no tocante aos
bens futuros, o antigo direito romano os excluía como objeto de doação, porém, a
partir do direito justinianeu, quando se considera válida a doação com o simples
consentimento, passou-se a entender possível, noticiando Serpa Lopes que no
direito intermédio e em varias legislação há a vedação de doação de bens futuros,
buscando, com isso evitar a doação da universalidade ou de quota-parte da
universalidade dos bens, que o doador viesse a deixar no dia de sua morte. No
nosso direito, a partir das lições de M. I. Carvalho de Mendonça e Espínola,
entende-se impossível a doação de bens futuros na acepção dada por Carvalho de
Mendonça, “aqueles que nem real, nem parcialmente pertencem ao doador, isto é os
que não estão no seu patrimônio nem podem vir a estar por ato independente de
61 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 52/53; ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 22, aceitando a doação de sangue, mas negando ao direito real de usufruto o caráter de doação porque a coisa não se transfere definitivamente 62 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p.355.
48
sua vontade” 63. Todavia, nada obsta que o evento morte seja utilizado como termo
na doação, como adiante apontado quando do exame da doação causa mortis.
3.4 A entrega da coisa e a mora do doador
Sendo a doação contrato consensual, o doador obriga-se a entregar o objeto
do contrato, a coisa doada, ao donatário. Todavia, dado o caráter de liberalidade do
contrato, o doador não é obrigado a pagar os juros da mora, do mesmo modo não
fica sujeito às consequências da evicção e tampouco responde pelos vícios
redibitórios (art. 552 do Código Civil). Porém, isto nas doações puras64. Em se
tratando de doações onerosas, como na hipótese de doação remuneratória, onde a
liberalidade está restrita ao excesso do valor do serviço prestado pelo donatário a
responsabilidade pela evicção é de rigor, embora, pela letra da lei pareça que estaria
restrita à doação propter nupcias feita por terceiro65.
Relativamente à responsabilidade pelos vícios redibitórios, o art. 441 do
Código Civil, em seu parágrafo único, estabelece que “é aplicável à disposição deste
art. as doações onerosas”, que são as oneradas com encargo e as remuneratórias,
justificando-se a exceção porque o negócio realizado não traduz pura liberalidade66.
63 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p.356/357. 64 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, Volume 3, p. 298, destacando, em nota de rodapé, que nos contratos benéficos em geral, na forma do art. 392 do Código Civil, o benfeitor responde apelas pro dolo, enquanto que o beneficiário por simples culpa. 65 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.236, invocando os autores a lição de Clóvis Bevilacqua – se a doação é remuneratória, gravada com encaro, feita por causa de casamento, a garantia da evicção se impõe. 66 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.229.
49
Também não se deve deixar de considerar o dolo do doador, especialmente o dolo
omissivo, porquanto transfere ao donatário coisa que sabe viciada, seja no que toca
ao título aquisitivo a ensejar responsabilidade pela evicção, seja no respeitante a
sua substância ou funcionalidade causador do vício redibitório, donde a solução,
nesses casos, é a de manter a responsabilidade pela evicção e pelos vícios
redibitórios com fundamento na cláusula geral de responsabilidade contratual
prevista no art. 392 do Código Civil67.
3.5 Classificação das doações
Várias são as propostas de classificação das doações, sendo a primeira
aquela que as distingue entre inter vivos e mortis causa ou causa mortis.
3.5.1 Doações inter vivos e mortis causa
Inter vivos são as doações feitas pelo doador por ato inter vivos e para um
efeito imediato, de caráter irrevogável; a doação causa mortis, pelo contrário, é um
instituto originário do direito romano, fundada numa liberalidade nullo iure cogente in
accipientis facta (feita sem efeito cogente para o donatário), sendo o seu traço
dominante a plena revogabilidade, ad nutum do doador. Tal forma de doação, na
opinião dos nossos mais autorizados juristas não foi aceita pelo Código Civil. O que
a caracteriza não é o simples fato de a respectiva escritura declarar que se trata de
67 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.236.
50
uma doação mortis causa, ou que determinado bem doado só será transmitido ao
donatário após a morte do doador, senão o consignar-se a sua revogabilidade ao
puro arbítrio do doador, com reversão dos bens ao doador, se sobreviver ao
donatário. Tal circunstância, porém, não obsta que a morte figure na doação como
um termo, posto que incerto, em relação ao tempo, porém certo, quando ao fato68.
Em comentário ao art. 1.165 do Código de 1916, CLOVIS BEVILACQUA
afirma que as legislações modernas não repeliram toda a espécie; algumas a
conservaram. O direito francês, o italiano e o espanhol não se ocuparam dela,
embora admitam a cláusula de reversão em benefício do doador. O novo Código
Civil mexicano, art. 2.339, remete a doação causa mortis para o disposto sobre o
testamento, admitindo-a, entretanto, entre cônjuges, de acordo com o que dispõe
nos arts. 232-234, isto é, torna definitivas essas doações somente depois da morte
do doador. O português, art. 1457, submete as doações que tenham de produzir
efeito por morte do doador ao testamento, abrindo exceção para as que se fizerem
em atenção ao casamento. O Código Civil Brasileiro também seguiu essa
orientação. Não conhece a doação causa mortis, só se for propter nupcias (art. 314
do Código Civil); porém permite que a coisa doada possa, mediante cláusula
expressa volver ao patrimônio do doador (art. 1.174 do Código Civil). A operação
eliminatória foi muito fácil porque a doação mortis causa existia entre nós,
simplesmente, como persistência do direito romano69.
68 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 342. 69 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p.267.
51
Incisiva é a lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO no sentido de
que a doação é ato inter vivos, e que o Código Civil de 1916, como também o de
2002 – conforme anotado pelos atualizadores de sua obra – desconhecem doações
mortis causa, admitidas pelo direito anterior, concordando com Clóvis e Espínola,
justificando a sua posição em virtude de faltar à doação causa mortis caráter de
irrevogabilidade; como se concretiza com a morte do doador, pode ser sempre
revogada, ad nutum de seu autor70.
Todavia, no vigente Código Civil não foram reproduzidos os arts. 312 a 314 do
Código Civil de 1916, eliminando-se, pois, e a doação propter nupcias, referida por
Clóvis, obedece ao disposto no art. 546: “A doação feita em contemplação de
casamento futuro com certa e determinada pessoa, pelos nubentes entre si, que por
terceiro a um deles, a ambos, ou aos filhos que, de futuro houvessem um do outro,
não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o
casamento não se realizar”. Não foi reproduzida a parte do art. 314 do Código de
1916 relativa ao aproveitamento da doação aos filhos do donatário se este falecesse
antes do doador. Os comentaristas do direito vigente sustentam que, a exemplo do
art. 542 do Código Civil, quando cuida da doação a nascituro, trata-se de doação
sob condição suspensiva (si nuptiae sequuntur), que, na dependência de fato futuro
e incerto, somente se aperfeiçoa com o evento. O casamento é a condição.
Implementada a condição, torna-se efetiva a doação, e, ao contrário, não realizado o
casamento, ficará sem validade71.
70 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva,São Paulo, 2003, p. 136. 71 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 496/497.
52
A matéria merece reflexão a partir da ressalva de Serpa Lopes, bem como à
luz da lição de Agostinho Alvim, para quem, a par da disciplina da doação mortis
causa ressalvada no direito anterior, e na vigência dele, respondia afirmativamente
sobre a possibilidade de ser estipulada a doação sob termo inicial, valendo a morte
do doador como ponto de partida para os efeitos da doação. Argumentava que o
termo inicial suspensivo é por todos admitido, nada impedindo que a doação se faça
nessas condições, ou seja, para produzir efeito após a morte do doador. O doador
continuará com a coisa, que os seus herdeiros transferirão ao donatário. O que é
necessário é a aceitação pelo donatário, vale dizer, que o aperfeiçoamento da
doação tenha se dado em vida do doador. A objeção de que o doador poderá
arrepender-se e estará amarrado pela doação nenhum valor tem. O animus donandi
deve haver no momento da doação, e a tradição torna-se obrigatória para o doador,
ainda que arrependido esteja, em qualquer caso comum de doação. Finalmente, o
doador tem sempre a válvula de revogar a doação por ingratidão, se for o caso72.
A despeito da falta de previsão legal – ou, ainda, de vedação legal –, parece-
nos válida a classificação ante a possibilidade de ser pactuada uma doação para
produzir efeitos após a morte do doador, mediante invocação do princípio da
autonomia da vontade que informa a teoria geral dos contratos e a natureza
patrimonial da estipulação. Parece mais atual que nunca a afirmação feita em 1928
por Pontes de Miranda ao se referir à matéria em relação ao direito brasileiro: “Não
se regulou a doação mortis causa, mas alude-se a ela, no art. 314 do Código Civil, a
respeito das doações propter nupcias. Pelo fato de não se tratar delas, não se
presume que as proibiu”, chamando a doação a termo ou a condição de morte do
72 ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva,São Paulo, 1972, p. 133/134.
53
doador de doação por morte, nada obstando a sua validade. Trata-se de contrato
ordinário, a termo ou condicional73.
Desse modo é possível admitir a classificação ante a possibilidade de ser
pactuada a doação sob termo inicial suspensivo para produzir efeitos após a morte
do doador74.
3.5.2 Doações inter vivos e suas classificações
No que respeita à doação inter vivos, de acordo com os elementos
integrativos essenciais, bem como de elementos acidentais, as doações podem ser
classificadas ou discriminadas em vários tipos, segundo os autores, apontando-se,
exemplificativamente:
Pura, modal com encargo, remuneratória, feita em contemplação de
merecimento do donatário, sob condição, mista e doação indireta, negando a
73 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 218/219. 74 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 212 – As doações a causa de morte, doações mortis causa, são as doações cuja eficácia depende da sobrevivência do donatário.... (A expressão mortis causa, empregada no direito de hoje, já não se identifica com a donatio mortis causa do direito romano, porque é ato entre vivos e não de última vontade. Tem-se de admitir que o direito clássico já permitiu a donatio sem a transmissão adiada para a morte e a donatio com a transmissão adiada, cf. L.2, D., de mortis causa donationibus et capoinibus, 39, 6. Sobre isso, Fritz Schwartz, Die Grundlage der Conditio im klassischeb römischem Recht, 166, M. Amellotti, La “donatio mortis causa” in diritto romano, 1 s., que não convence ao não considerar que fora essa a espécie originária; cp. P. Simonius, Die Donatio mortis causa im kalssischen römischen Recht, c. VI). Sem razão, PEREIRA, Caio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, volume III, p. 256, ao afirmar que: “Como reminiscência romana, alguns escritores ainda falam em doação inter vivos e doações mortis causa, como classificação que as divide nesses dois grupos, e ainda há sistemas que as consideram. O nosso, como regra, não. A doação é um contrato que opera seus efeitos em vida das partes. As liberalidades mortis causa fazem-se por testamento, que é o seu instrumento adequado.”
54
qualidade de doação à simulada e refutando a classificação inter vivos e mortis
causa (SILVA PEREIRA). 75
Própria, pura, condicional, modal ou com encargo, feita em contemplação do
merecimento de alguém, remuneratória, mútuas, mistas, indiretas e dissimuladas,
conjuntiva, dos pais a filhos (SILVIO LUIZ FERREIRA DA ROCHA). 76
Pura, com encargo, remuneratória, com cláusula de reversão, de ascendente
a descendente (WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO). 77
Pura, remuneratória, com encargo, em contemplação de casamento, em
forma de subvenção periódica, com cláusula de retorno, de pais a filhos (SILVIO
RODRIGUES). 78
Pura, condicional, a termo, com encargos, remuneratória e com cláusula de
reversão (SERPA LOPES). 79
Pura, modal, remuneratória, por merecimento, conjuntiva, em contemplação
de casamento futuro (SILVIO DE SALVO VENOSA). 80
75 PEREIRA, Caio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 253/257. 76 FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil – Coordenação de Everaldo Augusto Cambler - C, RT, São Paulo, 2002, vol. 3 Contratos, p. 175/180. 77 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 140/143. 78 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, São Paulo, 1997, vol. 3, p. 189/191. 79 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 346/347. 80 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 105/108.
55
Pura, universal, condicional, a termo, modal ou com encargo, remuneratória,
em contemplação de merecimento do donatário, com cláusula de reversão, com
cláusula de usufruto, com cláusula de fideicomisso, conjuntiva, feita em
contemplação de casamento futuro, inoficiosa, de bens futuros, sob a forma de
subvenção periódica, mista (SILVIO CAPANEMA DE SOUZA). 81
3.5.3 Modalidades de doações
No direito positivo, além da doação pura, o legislador regulou a doação feita
em contemplação do merecimento do donatário, remuneratória e com encargo (art.
540 do Código Civil), a nascituro (art. 542 do Código Civil), de ascendente a
descendente e entre cônjuges (art. 544 do Código Civil), em forma de subvenção
periódica (art. 545 do Código Civil), em contemplação de casamento futuro (art. 546
do Código Civil), com cláusula de reversão (art. 547 do Código Civil).
3.5.3.1 Doação Pura
Doação pura é a celebrada sob inspiração do ânimo liberal, exclusivamente,
ou seja, envolve a atribuição do bem com o propósito de favorecer o donatário, sem
nenhuma contrapartida e sem subordinar-se a qualquer condição ou motivação
81 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 93/100.
56
extraordinária82. Mas não a desnatura a imposição das cláusulas de inalienabilidade,
impenhorabilidade e incomunicabilidade e nada impede que esses gravames sejam
cancelados pelo próprio doador, com acordo dos interessados. È apontada como
subespécie dessa modalidade a doação contemplativa, aquela na qual o doador
declara o motivo da liberalidade (art. 540 do Código Civil), mas que a lei enfatiza a
permanência do caráter de liberalidade83.
3.5.3.2 Doação modal ou com encargo
Doação modal, onerosa ou com encargo é aquela na qual a liberalidade vem
acompanhada de incumbência atribuída ao donatário, em favor doador ou de
terceiro, ou no interesse geral (art. 553 do Código Civil). 84 O modus é um ônus
imposto àquele a quem se faz a liberalidade85. Há doação com encargo quando o
autor da liberalidade sujeita o donatário a pensionar um parente do doador, ou
quando oferecendo quantia de vulto a uma universidade determina que esta deverá
conceder anualmente um certo número de bolsas de estudos86. Doa-se terreno à
Prefeitura para construção de espaço esportivo ou de lazer, ou para a instalação de
uma escola com a determinação de que esta leve o nome do doador87. O modo ou
encargo, obrigação com traços definidos, deve ser distinguido do simples conselho
82 SILVA PEREIRA, Caio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 248; no mesmo sentido, RIZZARDO, Arnaldo. Contratos Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009. p. 453. 83 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 105. No mesmo sentido RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 454, citando em abono da possibilidade de cancelamento dos vínculos desde que não prejudique terceiros e haja acordo com os interessados – RT 201/195. 84 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p. 105. 85 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, 1995, p. 346. 86 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, 1997, vol. 3, p. 190. 87 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p. 105.
57
ou recomendação do declarante. O descumprimento do primeiro, acarreta
consequências jurídicas, entre as quais a mais radical é a de revogar o ato sub
modo. Já no caso da recomendação, a reprovação é apenas moral, cabendo ser
examinada a hipótese caso a caso.
Porém, sempre que a cláusula, ou a restrição se destine a acautelar o
interesse da própria pessoa a quem confere os respectivos direitos, pode afirmar-se
que se não se trata de modo, mas de simples recomendação88. Integram esta
modalidade de doação um contrato a título oneroso e um contrato a título gratuito,
segundo mostra SALVAT: “... Del primero, em la medida em que el valor de los
bienes donados corresponde a los cargos impuestos. Del segundo, em la medida
que excede este último.” 89 Constituindo o encargo uma restrição criada ao donatário
não poderá jamais assumir o aspecto de contrapartida da liberalidade, tanto que a lei
supõe que a doação supere o encargo (art. 540 do Código Civil), e nesse caso se
cuidará de outro negócio jurídico que não doação. De resto, ninguém é obrigado a
aceitar a doação se o encargo for excessivamente oneroso, mas, se o aceitar será
obrigado a cumprir por ser inadmissível o distrato por determinação unilateral90.
Em regra, o doador estabelece certo prazo razoável para o cumprimento do
encargo e, se não o estipular, será necessário constituir o donatário em mora antes
de proceder a sua revogação por inadimplemento (art. 562 do Código Civil), salvo se
88 ESPÍNOLA, Eduardo. Dos contratos nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista, 1956, p.187, nota 4. 89 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, 2009, p. 455, 90 ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 243, afirma o autor, com apoio em D’Abranches Ferrão, à luz do direito português, que, resultando o encargo de um contrato, “o donatário não pode eximir-se ao encargo, renunciando a doação (Das Doações, vol. I, nº. 150).
58
o encargo se deu em seu próprio benefício (art. 553 do Código Civil). 91 O doador, o
terceiro ou o Ministério Público, têm legitimidade para exigir o encargo. A
legitimidade do Ministério Público se dá quando, falecido o doador este não tiver
exigido o cumprimento (art. 553, parágrafo único do Código Civil). Os sucessores do
doador também são legitimados para exigir o cumprimento do encargo92. Uma vez
cumprido o encargo, a doação não será revogada por ingratidão (art. 564, II do
Código Civil).
3.5.3.3 Doação remuneratória
A doação remuneratória é a que se efetua com a finalidade de recompensar
serviços recebidos, pelos quais o donatário não se tornara credor de uma prestação
juridicamente exigível. Não se trata de pagamento nem de contraprestação. São
ditadas não pelo espírito de liberalidade, mas pela necessidade moral de compensar
serviços que foram prestados ao doador. É o caso, por exemplo, da doação de um
objeto a um médico ou a um advogado, que tratou do doador ou patrocinou
interesse deste sem cobrar nada. Evidentemente o serviço há de anteceder a
liberalidade e só será doação quanto à parte que exceder o valor do serviço (art.
540, 2ª parte do Código Civil) 93.
91 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, 2003, 2º Volume, p. 59. 92 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p. 105. 93 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, 2003, 2º Volume, p. 60; no mesmo sentido NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, 2005, volume 3, p. 290.
59
Em contrapartida, não justificam a doação remuneratória os serviços
genéricos, não específicos, oferecidos a título de amizade ou benevolência ou
aqueles decorrentes de normas morais e sociais comuns, como no caso de
cooperação prestada pelo filho em relação ao pai94. De acordo com as
circunstâncias, há de se distinguir também entre a doação e a dação em pagamento,
esta supondo a existência de uma obrigação ajustada e cujo cumprimento se dá
pela entrega de coisa diversa95. Essas doações não são revogáveis por ingratidão
(art. 564, I do Código Civil). Questão polemica, mas atual, diz respeito à doação
remuneratória por serviços prestados por concubino, sendo afirmada a sua
possibilidade jurídica96.
3.5.3.4 Doação feita em contemplação do merecimento de alguém
Doação feita em contemplação do merecimento de alguém tem por objeto não
a recompensa de um serviço ou favor prestado, mas o apreço, a admiração nutrida
pela pessoa do doador ao donatário O doador nessa modalidade declara o motivo
da liberalidade, fá-lo porque o donatário é virtuoso, bom, dedicado aos estudos,
amigo da caridade97.
Essa intenção não desnatura a doação, que continua a ser mera liberalidade,
porque não obstante o doador declarar que a pratica em reconhecimento ou
consideração dos méritos do donatário, o doador não tem a obrigação jurídica de 94 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, 2009, p. 456. 95 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos, 11ª edição, RT, p. 281. 96 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, 2009, p. 456/459. 97 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 142.
60
satisfazer o seu impulso de gratidão ou de prestar homenagem ao merecimento do
donatário98.
A doação feita em contemplação do merecimento não se confunde com o
cumprimento da promessa de recompensa, porque a execução desta não é
liberalidade, e sim cumprimento de obrigação, ou seja, obrigação unilateral a teor do
art. 854 do Código Civil99.
3.5.3.5 Doação conjuntiva ou em comum
A chamada doação conjuntiva100ou em comum101 é disciplinada pelo art. 551
do Código Civil e parágrafo único, que, repetindo literalmente o direito anterior (art.
1.178 do Código Civil), estabelece que, “salvo declaração em contrário, a doação em
comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual”. O
parágrafo único: “Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá
na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo.” A disposição é de índole
98 FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil – Coordenação de Everaldo Augusto Cambler - C, RT, São Paulo, 2002, vol. 3 Contratos, p. 178. O autor cita como exemplo a atribuição do Premio Nobel. A importância em dinheiro se dá justamente em contemplação do merecimento intelectual, acadêmico do agraciado; RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 459, entende que neste tipo classificam-se as pequenas gratificações ou recompensas feitas para corresponder à atenção que uma pessoa tem para com outra, como por exemplo, a doação beneficiando um antigo e fiel empregado, em compensação dos cuidados e da fidelidade que revelou no desempenho de suas funções, invocando a lição de Salvat: “las donaciones de esta clase no entran en la categoria de remuneratórias, aunque las parte las califiquen como tales, sino que constituyen donaciones comunes o gratuitas, sujetas a todas las reglas de fondo y forma prescritas para las mismas, por ejemplo: ausencia de garantia de evicción; reducion por exceder la cuantidad disponible del donante. 99 FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil – Coordenação de Everaldo Augusto Cambler - C, RT, São Paulo, 2002, vol. 3 Contratos, p.178. 100 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 216, assim a denomina; no mesmo sentido NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, 2005, volume 3, p. 297. 101 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, 2003, p. 146.
61
obrigacional102, e, do que se depreende da letra da lei é permitido o estabelecimento
de desigualdade entre os donatários, porém isto dependerá de estipulação expressa
no título da doação – se o contrário não resultar do contrato – diz a lei, disto
resultando a possibilidade de o doador aquinhoar diferentemente os donatários em
comum103. Em se tratando de bens divisíveis, nenhuma dificuldade haverá na
transmissão da propriedade, todavia, em se tratando de coisa indivisível estabelece-
se o condomínio104. Neste último caso, é possível ao doador estabelecer a proibição
aos donatários de promover a extinção do condomínio, porém, tal restrição não
poderá exceder cinco anos (art. 1.320, § 2º do Código Civil) que pode ainda ser
elidida por decisão judicial, a requerimento de qualquer interessado e se graves
razões o aconselharem, caso em que o juiz pode determinar a divisão da coisa
comum antes do prazo de cinco anos ou menor imposto no título (art. 1.320, § 3º do
Código Civil). Sendo divisível a coisa doada a várias pessoas pode ser feita a
divisão105.
É possível, também, estipular o doador que, na falta de um dos donatários a
parte do que faltar acresça aos que venham ou ao que venha a sobreviver106.
Ausente estipulação no título da doação, os herdeiros do donatário sucedem na
parte deste na coisa doada. A regra do parágrafo único diz respeito às doações
feitas a marido e mulher. Consequentemente, não se aplica ao caso da doação
102 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p.215. 103 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 210, ressalvando o autor, entretanto, a possibilidade de ser necessário o recurso a provas extrínsecas, no caso de doação manual, de pequeno valor em que a prova testemunhal e outras poderão ser utilmente produzidas para a demonstração da desigualdade querida pelo doador. 104 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, 2005, Volume 3, p. 297. 105 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p 217/218. 106 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, 2003, p. 146, justificando que disposição análoga existe em relação ao direito real de usufruto.
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propter nupcias visto supor a lei que os donatários já estejam casados107. Aqui se dá
o inverso; no silêncio do título entende-se que há o direito de acrescer, porém não
se trata de preceito de ordem pública, podendo o doador excluir esse direito108. Na
omissão, a regra atua qualquer que seja o regime do casamento, pois nada impede
que, casados no regime de separação recebam doação comum, como podem
comprar algo em comum109.
Esse direito de acrescer se aproxima do fideicomisso, mas, como pondera
SILVIO CAPANEMA DE SOUZA, citando JULIO CESAR BRANDÃO, que, por seu
turno se reporta a AGOSTINHO ALVIM, seja direito de acrescer, ou que se
assemelhe a fideicomisso ou ainda que seja um direito sui generis, a verdade é que
a matéria é prevista em lei operando-se o acréscimo automaticamente, o que
dispensa a abertura do inventário110. Segundo a letra da norma, o bem de tal forma
recebido não será inventariado e permanecerá exclusivamente com o cônjuge
sobrevivente111.
107 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, 2005, Volume 3, p. 297 213, n. 4. 108 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, 2005, Volume 3, p. 298. 109 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 213. 110 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 220, com citação de jurisprudência do TJSP apontando que basta, em termos registários, a averbação do falecimento do co-donatário. 111 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, 9ª edição, Forense, 2009, p.464; no mesmo sentido ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p.211/212, lembrando que a regra tem sido esquecida na maioria dos inventários, sendo freqüente a declaração desse bem pelo cônjuge sobrevivente, para fim de ser partilhado, quando, na verdade o bem é de propriedade exclusiva do sobrevivente, e, portanto, não devendo ser inventariado.
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3.5.3.6 Doação a nascituro
A doação ao nascituro é prevista no art. 543 do Código Civil nos seguintes
termos: “A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante
legal”. Repetiu-se a disposição do direito anterior com a substituição da referência
aos pais pelo representante legal. A norma suscita algumas dúvidas, em razão de
não ser o nascituro dotado de personalidade a teor do art. 2º do Código Civil sendo
certo, entretanto que da segunda parte do mesmo art. são postos a salvo, desde a
concepção, os seus direitos.
Grande é a discussão em termos científicos acerca do momento da
concepção, valendo lembrar a recente disputa jurídica perante o Supremo Tribunal
Federal acerca da utilização das células tronco. O Código, entretanto, no art. 1597 e
incisos presume concebidos na constância do casamento os filhos: a) nascidos 180
dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; b) os nascidos nos
300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, separação
judicial, nulidade e anulação do casamento; c) os havidos por fecundação artificial
homóloga, mesmo que falecido o marido; d)havidos a qualquer tempo, quando se
tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homologa e; e)
havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do
marido112. Na verdade, o que se assegura são as expectativas de direito do
nascituro – que tem capacidade para herdar (arts. 1798 e 1799, I), criando-se,
112 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, 2008, p. 1740/1742, critica a presunção constante do inciso II sustentando a sua falta de sentido, porque em=m regra a separação judicial e as ações de nulidade e anulação do casamento são em regra precedidas de separação de fato entre os cônjuges de modo que não podem os filhos havidos trezentos dias após as sentenças respectivas ser havidos presumivelmente como sendo do marido. No tocante aos casos que versam sobre reprodução assistida a autora aplaude as normas que reconhecem o atual estádio da ciência sobre a matéria.
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inclusive, a figura de do curador ao ventre, no caso do art. 1.179 do Código Civil
para velar por seus interesses113. Indispensável, entretanto, que já esteja concebido,
tanto que a aceitação da herança é feita por seus representantes legais. Esta a
solução do nosso direito que coincide com o direito francês e com o direito espanhol,
dela divergindo o direito português e o direito italiano, a exigir que esteja viva, ao
tempo da doação, a pessoa determinada, em favor de cujos filhos a doação é
feita114.
A reforçar a conclusão de que o nosso Código, seguindo o sistema francês e
espanhol só admitiu a doação aos já concebidos, ao seu tempo, invoca-se o
comentário de CLOVIS BEVILACQUA, ao art. 1.169 do Código Civil, que cuidava da
matéria: “Se, porém, a pessoa ainda não estiver concebida, não podem os pais
aceitar a doação não podem os pais aceitar doação, que se lhe faça, salvo sob a
forma de fideicomisso convencional”. A matéria, entretanto, deve suscitar grandes
debates na jurisprudência. A doação a nascituro é negócio jurídico subordinado a
condição suspensiva, que é o nascimento com vida, do donatário, fato que lhe
confere personalidade e aptidão para adquirir o direito resultante da doação. Não se
trata de nulidade ou anulabilidade, e sim de ineficácia em razão do não implemento
da condição. Para que um ente seja pessoa e adquira personalidade jurídica será
suficiente que tenha vivido por um segundo115. Se o donatário chegou a respirar,
113 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 140, vai além, sustentando que o curador ao ventre vela pelos interesses do nascituro, quando colidem com os interesses dos pais. 114 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo, Maria Helena, Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, do Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 141/142. 115 DINIZ, Maria Helena, Tratado Teórico Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, 2003, 2º volume, p. 4; CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 146, observa que nem sempre é fácil, na prática, apurar se o nascituro chegou a respirar. Na dúvida, será indispensável que se recorra ao teste de Galeno, conhecido como “dosimácia hidrostática”, que permite atestar, com precisão, se houve
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ainda que uma só vez, tornou-se pessoa, e a doação passa a produzir todos os seus
efeitos, e caso venha a falecer, transmitirá a propriedade aos seus herdeiros, que
são seus pais, se ainda vivos ou os que se seguirem na ordem da vocação
hereditária. A doação, nesse caso, terá atingido, integralmente, o seu objetivo,
produzindo todos os seus efeitos, não retornando o bem ao patrimônio do doador,
salvo se dela constar a cláusula de reversão116.
3.5.3.7 Doação de ascendentes a descendentes e entre cônjuges
O art. 544 do Código Civil estabelece que “a doação de ascendentes a
descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe
por herança”. O dispositivo inova em relação ao art. 1.171 do Código de 1916 ao
incluir os cônjuges. Harmoniza-se com a regra do art. 1.829 do Código Civil, I, pela
qual é reconhecido ao cônjuge sobrevivente direito sucessório ou em concorrência
com os descendentes. Decorre lógica conclusão de que a doação versará sobre os
bens particulares de cada cônjuge, certo que, no regime da comunhão universal, o
acervo patrimonial é comum a ambos, o que seria ocioso doar; no de separação
obrigatória de bens, o cônjuge não concorre na sucessão, e no da comunhão
parcial, apenas concorre se o autor da herança não houver deixado bens
particulares117.
entrada de ar, nos alvéolos pulmonares do nascituro, o que demonstraria a existência de respiração. Se o nascituro não chegou a respirar, não adquiriu personalidade, não podendo ser considerado sujeito de direito, o que torna ineficaz a doação. 116 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 147. 117 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 495. No mesmo sentido CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de
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Já no tocante à doação de ascendentes a descendentes, não houve alteração
de substância. Os filhos são herdeiros necessários de seus pais (art. 1.845 do
Código Civil), a eles pertencendo, de pleno direito, a metade dos bens da herança,
constituindo a legítima (art. 1.846 do Código Civil), donde se entender que a doação
do ascendente ao descendente importa adiantamento de legítima, que é o que
constava da norma do direito anterior. Quando os pais vendem bens a seus filhos, a
alienação depende do consentimento dos demais e do cônjuge do alienante, este
dispensado se o regime de bens for o da separação obrigatória (art. 496 e parágrafo
único do Código Civil). Isto porque não se poderia, por ocasião do inventário, reparar
a injustiça que porventura tivesse havido, decorrente do baixo preço, uma vez que
os bens vendidos não vêm à colação.
O mesmo não ocorre no caso de doação porque, importando adiantamento da
herança (legítima), devem ser trazidos à colação pelo valor certo ou estimativo
constante do título ou, na omissão, que valiam ao tempo da liberalidade (art. 2.004,
§ 1º do Código Civil), e por metade, no inventário de cada um, se a doação for feita
por ambos os cônjuges (art. 2.012 do Código Civil). Se de um lado a doação exerce
relevante função social, traduzindo um gesto de altruísmo e liberalidade, ajudando a
solidificar relações de amizade e familiares, encerra riscos, até mesmo de gerar
turbulência no seio da família, o que levou o legislador a estabelecer um sistema
rígido de controle, quanto à sua forma, para que se torne claro o animus donandi e
quanto à sua extensão, para a proteção dos superiores interesses da família118.
Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 152; VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 108. 118 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 153.
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Daí a vedação das doações que ultrapassem a parte disponível do doador,
prejudicando os herdeiros necessários e pondo em desigualdade os filhos. Se isto já
era assim no direito anterior, com maior razão agora que, por disposição
constitucional, se veda qualquer discriminação em razão do estado de filiação
(Constituição Federal, art. 227, § 6º). 119 Para que a doação beneficie um filho em
detrimento dos outros é mister que o doador a inclua em sua parte disponível, com
expressa menção de que o donatário fica dispensado da colação (art. 2.005 do
Código Civil).
3.5.3.8 Doação em forma de subvenção periódica
A doação em forma de subvenção periódica, prevista no art. 545, é doação
condicional resolutiva. Em relação ao direito anterior, a modificação foi a de limitar a
doação à vida do donatário120. No direito anterior, afirmava CLOVIS BEVILACQUA
que este artigo foi inspirado pelo Código Civil alemão, apesar de que, entre nós, era
conhecida e praticada essa forma de doação, que é uma constituição de renda a
título gratuito. Determina o Código que, na falta de disposição em contrário, se
119 Nesse sentido CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 152. 120 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p.272 Esse acréscimo seria ocioso ao ver deste autor, pois que a subvenção é benefício feito a pessoa designada. Somente por disposição expressa poderia a liberalidade passar aos herdeiros do beneficiado, que, neste caso seriam beneficiários sucessores.
68
considera vitalícia, em relação ao doador, o que vale dizer que a obrigação não se
transfere aos herdeiros121.
A redação atual aproxima-se mais da do Código Civil Alemão que em seu art.
520 estabelece que “se o doador promete um auxílio consistente em prestações
repetidas, a obrigação se extingue com sua morte, desde que outra coisa não se
deduza da promessa”. A mesma limitação se encontra no direito português,
limitando o benefício à vida do donatário, sem a ressalva quanto à disposição em
contrário (art. 943). E o Código Italiano mais se aproxima do alemão e do nosso, ao
dispor, em seu art. 772, que “a doação que tem por objeto prestações periódicas se
extingue pela morte do doador, salvo se resulta do ato uma diversa vontade.”
No regime anterior, silente o texto, poderia o doador estipular, desde que
expressamente, que a liberalidade se transferiria aos herdeiros do donatário, que
passariam a receber as prestações, perdendo, assim, o seu caráter pessoal. Agora,
segundo norma cogente, não poderá ultrapassar a vida do donatário. Observa
SILVIO CAPANEMA DE SOUZA que o objetivo da alteração foi estancar, em
definitivo, as dúvidas geradas pela antiga redação e ressaltadas por CLOVIS. Como
se não bastasse, também se elimina a terrível confusão que se fazia com o direito
hereditário, para decidir se os herdeiros do beneficiário poderiam sucedê-lo,
subrogando-se na subvenção. Com a nova redação se veda, expressamente, a
121 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p.272; no mesmo sentido FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 496.
69
continuidade do benefício após a morte do donatário, o que também evita que se
perpetue a obrigação122.
Em regra, o objeto desta doação é constituído por uma determinada quantia,
mas nada obsta que se estipule outra modalidade, como a entrega de cesta básica
ou bolsa de estudos123 ou as despesas mensais do tratamento de um doente
internado num hospital particular124. É possível, também, limitar no tempo a doação,
por exemplo, até a formatura do estudante, ou pelo prazo de dez anos, ou qualquer
outro lapso temporal; mas a liberalidade não poderá ultrapassar a vida do donatário.
Bem como, caso não se tenha estipulado em contrário, cessará com a morte do
doador.
Conforme leciona AGOSTINHO ALVIM, a hipótese não é de pluralidade de
doações “e sim uma só doação, com execução prolongada”. Como consequência de
ser uma e não múltipla doação em forma de subvenção periódica, a alteração da
capacidade não influi, quer se trate de capacidade geral, como no caso do doador
que vem a sofrer interdição, quer se trate de capacidade contratual, específica para
cada contrato, como na hipótese em que o doador se case, fato esse que não
influirá no contrato de doação já firmado, a despeito da restrição que sofrem as
pessoas casadas no que respeita à capacidade ativa para doar125.
122 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 165/166. 123 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, Volume 3, p. 294. 124 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 166. 125 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 109/110.
70
Não parece que o doador possa, quando bem lhe aprouver, interromper o
cumprimento do contrato, o que seria possível apenas no caso de uma série de
doações individuais126. Entretanto, tratando-se de prestações periódicas, o contrato
se equipara aos de trato sucessivo ou de execução continuada, a ele se aplicando a
regra do art. 478 que admite a resolução por onerosidade excessiva. A alteração de
fortuna do doador, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis,
poderá ensejar o pedido de resolução do contrato. Com o empobrecimento do
doador, sendo obrigado a manter o pagamento da subvenção doada, o ato perderia
o caráter de liberalidade. Também lhe seria possível reclamar a redução da
subvenção, melhor a adaptando à sua nova realidade econômica127.
3.5.3.9 Doação feita em contemplação de casamento futuro
A doação feita em contemplação de casamento ou propter nupcias está
prevista no art. 546 que repete o art. 1.172 do Código de 1916, sem qualquer
alteração: “A doação feita em contemplação de casamento futuro com certa e
determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiro a um deles, a
ambos ou aos filhos que de futuro houverem um do outro, não pode ser impugnada
por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o casamento não se realizar.” Trata-
se de caso particular de doação condicional, em que a sua eficácia está sujeita à
celebração do casamento em contemplação do qual é realizada128.
126 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, Volume 3, p. 296. 127 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 167. 128 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.24 235; no mesmo sentido, FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da
71
Como destaca AGOSTINHO ALVIM, é necessário que esta seja feita antes do
casamento e não basta que se tenha em vista um casamento possível ou provável.
A doação para casamento supõe que o donatário esteja para casar com pessoa
certa e determinada129. O doador pode ser um terceiro ou algum dos nubentes. No
caso de doação por terceiro a doação pode ser feita para ambos os nubentes ou
para um deles, comunicando-se os bens, a não ser que o beneficiário seja apenas
um deles130. Donatário poderá ser um dos cônjuges, ambos, ou os filhos que
advierem desse casamento131. Enquanto a núpcia não é celebrada, o donatário não
adquire o bem doado132. Realizado o casamento, e sendo donatários os filhos
futuros, os pais podem usar e gozar da coisa, ainda mesmo que seja fungível, como
dinheiro, obrigados, então, a devolverem o equivalente.
Nada obsta, porém, que o doador exija garantia para segurança da prole
eventual, como ocorre com o usufruto de coisa fungível133. A transferência do
domínio, nesse caso, dar-se-á no momento em que nascer com vida o primeiro filho
do casal, sujeito a transformar-se em condômino se sobrevierem outros filhos. Se Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 496; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, Volume 3, p. 295, fundado nas lições de Clóvis Bevilacqua, João Luiz Alves e Agostinho Alvim.; CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.168. 129 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 117. 130 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 171. 131CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro., 2004, vol. VIII, p. 170, afirma que nesta peculiar modalidade de doação podem ser beneficiários pessoas de existência meramente possível, quais sejam os filhos ainda não concebidos dos nubentes, ficando, obviamente, suspensos os seus efeitos até o seu nascimento com vida. 132 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 465, com apoio em Caio Mário da Silva Pereira. 133 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 1123/124. Neste comentário, o autor sustenta a inexistência de fideicomisso, bem como da qualidade de fiduciário dos pais, afirmando tratar-se de figura sui generis, próxima do fideicomisso, inclusive no uso e gozo da coisa a que os pais tem direito e que guarda semelhança, porventura mais acentuada, com o usufruto. A exigência de garantia encontra apoio nos artigos 1392, § 1º e 1400 do Código vigente que correspondem aos artigos 726 e 729 do Código de 1916 a que se remete o autor.
72
não sobrevier a prole, o negócio desfaz-se devendo os bens retornar ao doador ou
seus sucessores. Caso a núpcia não venha a se realizar, o negócio ficará sem
efeito. Particularidade desse tipo de doação é a dispensa de aceitação, que se
considera implícita no simples fato dos donatários se casarem134 e a sua
irrevogabilidade por ingratidão (art. 564, IV do Código Civil). Sendo feita pelos
nubentes deverá observar a forma determinada para os pactos antenupciais, ou
seja, deverá ser feita por instrumento público (art. 1.653 do Código Civil). 135
3.5.3.10 Doação com cláusula de reversão
Trata-se, na verdade, de cláusula acidental na doação que a subordina a uma
condição resolutiva, com a finalidade de obstar que o bem doado passe a outras
pessoas, além do donatário, caso sua morte preceda a do doador (art. 547 do
Código Civil). Esta cláusula deve constar do título da doação, seja instrumento
particular, seja escritura pública. O donatário, neste caso, goza de direito atual
podendo exercer desde o momento da doação o direito por ela estabelecido, uma
vez que a condição é resolutiva e não suspensiva. O donatário poderá dispor da
coisa, porém a sua propriedade é resolúvel, de sorte que, resolvida a doação
resolve-se a alienação ou o direito real sobre ela constituído, bem como o eventual
compromisso de compra e venda136.
134 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 169. 135 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 465. 136 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 135; GOMES, Orlando. Contratos, 26ª edição, Coordenador Edvaldo Brito, Revista, Atualizada e Aumentada de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 260, também considera resolúvel a propriedade do donatário neste caso.
73
Resolvida a doação, extinguindo-se os efeitos da liberalidade, passa a ser
considerada como inexistente, desaparecem todos os seus efeitos e o doador
recebe a coisa livre e desembaraçada de quaisquer ônus137. Operada a reversão,
não estão os herdeiros do donatário ou os terceiro obrigados a restituir ao doador os
frutos percebidos enquanto pendia a doação, aplicando-se, por analogia, o disposto
no art. 1.214. Se isto é garantido ao possuidor, com maior razão àquele que é titular
de um domínio resolúvel.
Do mesmo modo, terão direito a indenização, inclusive com faculdade de
retenção, para haver o quanto gasto com a introdução de benfeitorias úteis ou
necessárias na coisa, sem o que ocorreria o enriquecimento sem causa do
doador138. Morrendo antes o doador, não se implementa a condição resolutiva,
passando o bem à plena e definitiva propriedade do donatário. Em relação ao direito
anterior, anota-se o acréscimo do parágrafo único a estabelecer que “não prevalece
cláusula de reversão em favor de terceiro.” O nosso Código só se refere à reversão
na hipótese do doador sobreviver ao donatário. Em outros sistemas a reversão só
opera em caso de precedência da morte do donatário e de seus descendentes139.
137 WALD, Arnoldo. de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos, 11ª edição, RT, São Paulo, 1994, p. 284. 138 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.134/135. 139 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 176. Aponta o autor o art. 951 do Código francês nesse sentido; o Código Português que no n. 2 do art. 960 estabelece que a reversão dá-se no caso de o doador sobreviver ao donatário, ou a este e a todos os seus descendentes; não havendo estipulação em contrário, entende-se que a reversão só se verifica nesse último caso”, enquanto que no item 3 determina que “a cláusula de reversão que respeite a coisas imóveis ou a coisas móveis sujeitas a registro, carece de ser registrada”. No Código italiano (artigo 791) se adota a mesma posição do direito luso, entendendo-se que à falta de previsão expressa a cláusula de reversão só produzirá seus efeitos se precederem a morte do donatário e de seus descendentes. No direito espanhol o alcance da clausula é mais amplo, dispondo o artigo 651 de seu Código que “poderá estabelecer-se validamente a reversão em favor do doador para qualquer caso e circunstâncias, mas não em favor de outras pessoas, senão nos mesmos casos s com as limitações que determina este Código para as substituições testamentárias. A reversão estipulada pelo doador contra o disposto neste artigo é nula, mas não produzirá a nulidade da doação.”
74
Questão polêmica acerca da possibilidade de ser estabelecida por meio da
cláusula de reversão um verdadeiro fideicomisso acabou por ser solucionada pela
norma do parágrafo único do art. 547 ao vedar a cláusula de reversão em favor de
terceiro, antes admitida por simetria entre a doação e o direito sucessório140.
Todavia, a norma expressa não comporta interpretação outra senão a dada por
SILVIO CAPANEMA DE SOUZA: ”querendo o doador que o bem doado passe a
terceiro, se o donatário o preceder na morte, terá de se valer da figura do
fideicomisso e não da reversão. Ou seja, somente por testamento poderá dar a
pretendida destinação à coisa objeto da doação com cláusula de reversão. A
redação atual do art. 547 reforça o caráter pessoal da doação, sem qualquer
prejuízo para os herdeiros do donatário, já que nenhuma contraprestação ofereceu
ao doador pela aquisição da coisa doada, que se opera gratuitamente. Os herdeiros
do donatário, nesse caso, quando muito deixaram de ganhar, mas nada perderam.”
141
Nada impede, entretanto, que o doador por ato posterior, renuncie a reversão,
antes da morte do donatário, ou depois dela, dado o caráter patrimonial do direito
que dela resulta, o que o torna disponível . No caso de renúncia, a propriedade do
donatário deixa de ser resolúvel e se consolida, passando aos herdeiros se for ela
manifestada após a sua morte.
142
140 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 157/158. 141 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.178/179. 142 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 109.
75
3.5.3.11 Doações proibidas
Conquanto não seja tipo ou espécie de doação, são examinadas
destacadamente duas proibições impostas ao doador: a doação ao cúmplice do
cônjuge adúltero e a doação de todos os bens sem reserva para subsistência.
3.5.3.11.1 Doação a cúmplice de cônjuge adúltero
No primeiro caso, previsto no art. 550, a doação pode ser anulada pelo outro
cônjuge, tratando-se, portando de anulabilidade ou nulidade relativa. O que se
protege é o patrimônio familiar durante a constância do casamento143. E como causa
da anulabilidade, o suposto da lei é o adultério de um dos cônjuges144. A proibição,
portanto, não atinge o cônjuge separado ou divorciado145.
O Código refere-se a adultério e a ligação ao concubinato se explicava pela
remissão legal do direito anterior ao art. 248. IV do Código Civil, ao permitir que a
mulher casada livremente reivindicasse os bens comuns doados ou transferidos pelo
marido à concubina, e esta disposição legal se remetia ao art. 1.177 do Código Civil,
ou seja, exatamente à hipótese em exame. Atualmente, embora sem remissão legal,
o art. 1.642, V do Código Civil, permite ao marido ou à mulher, livremente, reivindicar
os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao
concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço 143 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 502. 144 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 192. 145 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 146.
76
comum destes, se o casal estiver separado de fato há mais de cinco anos.
Modificada em parte a possibilidade de reivindicação, a questão ainda se põe, ou
seja, se seria necessária a existência de concubinato ou bastaria o adultério.
Analisando a matéria, à luz do direito anterior, AGOSTINHO ALVIM,
comentando o art. 1.177 do Código Civil, adota a posição de CLOVIS BEVILACQUA
para quem, dada a divergência, deveríamos subordinar o art. 1.177 ao art. 248 V do
Código Civil, cuja redação se assemelha ao art. 1642, V do Código Civil, onde se
acha o pensamento capital do legislador sobre o assunto, e, portanto, deveria haver
concubinato. Lembra também a posição contrária de PONTES DE MIRANDA, para
quem a expressão concubina deve ser entendida como cúmplice de adultério146.
No direito vigente deve ser levada em conta a ressalva posta no art. 1.642, n.
V, ao possibilitar a reivindicação, desde que provado, que os bens não foram
adquiridos pelo esforço comum destes, se o casal estiver separado de fato por mais
de cinco anos, e no art. 1.801, n. III, que veda a nomeação de herdeiro ou legatário,
do concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de
fato do cônjuge há mais de cinco anos. Estas ressalvas indicam a necessidade de
ocorrer adultério, somente possível enquanto persistente o vínculo matrimonial, e
não concubinato.
Daí o acerto da afirmação de ARNALDO RIZZARDO ao sustentar que, em tais
condições, perdura o disposto no art. 550 do Código Civil (art. 1177 do Código
revogado) unicamente às doações de um dos cônjuges ao amásio ou amante, ou à
146 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 195/197.
77
pessoa que se relaciona afetiva e sexualmente, mas mantém, nela convivendo, a
sociedade formada pelo casamento147. A norma visa a proteger o patrimônio do
casal em detrimento das relações concubinárias148.
A ação pode ser proposta pelo cônjuge ou por seus herdeiros necessários.
Pelo que se depreende do texto do art. 550 do Código Civil, legitimado é o cônjuge
traído. Se não o fizer e deixar escoar o prazo de decadência, não poderão ajuizar a
ação os herdeiros necessários. Daí se conclui que a legitimação é privativa,
enquanto viver o cônjuge inocente, só estando legitimados os herdeiros após a sua
morte. E o prazo decadencial passa a fluir a partir do momento da dissolução da
sociedade conjugal, seja para o legitimado originário, seja para os herdeiros
necessários149. Se o cônjuge inocente vier a falecer no curso da ação, poderão os
herdeiros necessários nela prosseguir. Entretanto, como observa SILVIO
CAPANEMA DE SOUZA, o novo Código, em seu art. 208, trouxe profunda
modificação ao regime jurídico da decadência, ao estabelecer que o prazo não
correrá contra os absolutamente incapazes, donde, morrendo o cônjuge inocente, e
sendo os herdeiros necessários absolutamente incapazes, em razão da idade, só
147 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 447. Mais adiante, na mesma página, cita em abono da tese a lição de Edgard de Moura Bittencourt a entender que a doação vedada pressupõe a prática do ato na vigência da sociedade conjugal. 148 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 109, citando o autor jurisprudência que não admitiu a anulação do ato, quando se trata de concubinato sólido, atualmente denominado de união estável, de companheirismo more uxório, dom o donatário ou donatária, na hipótese de o doador encontrar-se separado de fato de há muito do cônjuge. O novo direito da união estável reforça mais esse entendimento. 149 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, São Paulo, 1997, vol. 3, p. 198, afirmando que “A lei defere não só ao cônjuge inocente, como também aos herdeiros necessários, o direito de promover a anulação das doações feitas pelo cônjuge adúltero a seu cúmplice. Este direito é privativo do cônjuge inocente, enquanto ele viver. Só após a sua morte é que os herdeiros necessários ganham legitimação para a propositura da reivindicação. Aliás, isto advém não só da circunstância de seus ascendentes e descendentes só adquirirem a condição de herdeiros necessários depois de aberta a sucessão, como também em respeito ao cônjuge inocente, que pode preferir guardar sigilo sobre o adultério de seu consorte, sentimento que deve ser respeitado e que não se compreende seja perturbado pela interferência daqueles seus parentes.
78
voltará a fluir, pelo tempo que sobejar, quando eles se tornarem relativamente
incapazes150.
3.5.3.11.2 Doação de todos os bens sem reserva para subsistência
A outra figura é a da doação chamada universal sem a reserva de usufruto ou
renda suficiente para a subsistência do doador (art. 548 do Código Civil). A
proibição já estava prevista nas Ordenações (Liv. 4, Tit. 80, § 3º) e TEIXEIRA DE
FREITAS formulou a regra no art. 425 de sua Consolidação das Leis Civis dispondo:
“É nula a doação entre vivos de todos os bens sem reserva do usufruto ou do
necessário para subsistência do doador” 151.
O art. 548 do Código Civil reproduziu o art. 1.175 do Código de 1916, dispondo
que: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente
para a subsistência do doador”. O doador não pode reduzir-se à miséria ou sujeitar-
se a viver às expensas de outrem ou ainda da caridade pública em virtude da
disposição de todos os seus bens152.
A regra tem o propósito direto de proteger o doador não permitindo que, por
sua leviandade ou imprevidência, caia em penúria. E, ao mesmo tempo, o escopo
indireto de proteger a sociedade, evitando que o Estado seja compelido a prestar
150 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 211. 151 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 162. 152 SILVA PEREIRA, Caio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o Código Civil de 2002, Forense. Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 262; FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil – Coordenação de Everaldo Augusto Cambler - C, RT, São Paulo, 2002, vol. 3 Contratos, p. 182 com apoio em Silvio Rodrigues que invoca jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
79
assistência a mais um desgraçado153. A lei impõe, pois, limites ao impulso
generoso, até mesmo para coibir maquinações captatórias de donatários
inescrupulosos, que poderiam induzir alguém a lhes transferir todos os seus bens154.
AGOSTINHO ALVIM afirma que parece ser esta a razão que originou em
Roma a Lei Cíncia, embora, com apoio em ASCOLI, afirme que nunca se conseguiu
saber com certeza os motivos que deram origem a esta lei, e, no direito moderno, os
rigores da forma imposta a este contrato155. A doação será universal se o doador
dispõe de todos os seus bens, ou apenas de um, se tiver apenas esse bem156.
Saber se a reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador é
matéria de fato, sustentando a doutrina que seria o que baste para a manutenção do
doador e de sua família157, segundo a sua posição social, suas circunstâncias, e a
estimativa deve ser a contemporânea da doação. A proibição da lei consiste em
proibir o empobrecimento total atual158.
Pode ocorrer que sejam feitas doações sucessivas, em épocas diferentes.
Neste caso, as que não hajam determinado a penúria total do doador são
inatacáveis. Se as doações são simultâneas e houverem privado o doador dos
meios de subsistência, todas elas serão nulas159. Quanto à reserva, pode ser ela
consistente em parcela do patrimônio ou no usufruto da coisa ou coisas doadas, de
modo a garantir a subsistência do doador. Pode ocorrer, também, que o donatário se 153 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, São Paulo, 1997, vol. 3, p. 192. 154 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 187. 155 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 192. 156 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p.247. 157 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p.246. 158 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 164/165. 159 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 165.
80
comprometa a prestar assistência ao doador, mas isto, por si só não é suficiente
para afastar a incidência do art. 548 do Código Civil, bem como a renúncia por um
dos cônjuges, na meação de único bem ou de todos os bens constitui infração a
essa norma160.
Para a caracterização da nulidade há de ser levada em conta a situação no
momento da doação. Se, por motivos superveniente, o doador perde os bens que se
reservou e a renda destes era suficiente para a sua subsistência, a doação é válida.
Outra questão posta em doutrina é a do caso do doador que ocupe um cargo público
vitalício e lhe seja garantida pensão integral, porque, nesse caso conservaria meios
de subsistência. Quer parecer que nesse caso, sendo a doação de todos os bens,
incidiria a norma do art. 548 do Código Civil, porque o doador poderia perdê-la, por
exemplo, por ato de improbidade; ou ainda, se alterado o regime da aposentadoria,
como ocorreu em nosso País161.
Trata-se de nulidade de pleno direito, que pode ser conhecida de ofício se o
juiz a encontra suficientemente demonstrada. A nulidade há de ser declarada por
sentença em ação ajuizada, em primeiro lugar pelo doador, cujo interesse é
presumido. Também haverá legítimo interesse dos herdeiros e dos credores, quando
lesados. CLOVIS BEVILACQUA vai além quando afirma em comentário ao art.
1.175 do Código Civil que, mesmo existente reserva de renda suficiente para a
160 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p.247. 161 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.190/191; SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 357/358, indica a corrente dos que sustentam haver sempre nulidade, como Dias Ferreira e Abranches Ferrão e os que sustentam a validade se o doador tem emprego vitalício e direito à reforma ou aposentadoria, como Cunha Gonçalves, ficando com a posição intermédia de Carvalho Santos, aceitando a validade da doação se o emprego for vitalício com aposentadoria garantida.
81
subsistência do doador, deve entender-se respeitado o direito dos credores, sob
pena de poderem estes anularem o ato, por tornar o devedor insolvente, afirmação
que continua válida à luz do art. 158 do Código vigente162.
3.5.3.11.3 Doação inoficiosa
Também em matéria de invalidade da doação, porém, estabelecendo nulidade
parcial163, o legislador de 2002 repetiu o direito anterior ao reproduzir textualmente,
no art. 549 a regra do art. 1.176 do Código de 1916: “Nula também é a doação
quanto à parte que exceder a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia
dispor em testamento”. Após apontar as soluções diversas e o desvio do que
estabeleceram as legislações estrangeiras, em lição que guarda atualidade, CLOVIS
BEVILACQUA afirma que o Código brasileiro adotou uma solução radical: a doação
inoficiosa é nula no excesso de legítima; mas esse excesso se verifica no momento
da doação, como se o doador falecesse nesse mesmo dia. O doador sabe que não
pode doar mais que a metade de seus bens se tiver herdeiros necessários, se tiver
descendentes ou ascendentes; sabe que a parte excedente é nula. O donatário
também não pode alegar surpresa, se lhe impugnam o excessivo da doação164.
162 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p.274. 163 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 193, sustentando que a nulidade não se estende a todo o negócio jurídico, desconstituindo-o por inteiro, limitando-o à parte que excedeu o limite, permanecendo a doação, quanto ao restante. Trata-se assim, de ineficácia relativa, em que se aproveita a parte não contaminada do contrato, que continua integra na sua essência, inclusive quando ao “animus donandi”. No mesmo sentido ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 183, em comentário ao art. 1.176 do Código de 1916 afirmando que a doação é nula, na parte excessiva, com apoio em Matinho Garcez, Orlando Gomes e Washington de Barros Monteiro. 164 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p.276 observa o autor que outro sistema, que
82
Razões de proteção ao próprio doador e aos herdeiros necessários fazendo-se uma
perfeita simetria, quanto ao limite da liberalidade, entre a doação e o testamento,
razão pela qual os dispositivos devem ser interpretados em conjunto165.
Estabelece o art. 1.845 do Código Civil que são herdeiros necessários os
descendentes, os ascendentes e o cônjuge, e o art. 1.846 do mesmo Código que
pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da
herança, constituindo a legítima. Assim, tendo o doador herdeiros
necessários, só poderá doar até o limite do que se chama de sua parte disponível,
considerando-se o patrimônio no momento da liberalidade. A outra parte, a legítima,
é que se preserva, não podendo ser atingida pela doação ou pelo legado. O que se
excede, constitui a doação inoficiosa166.
A redução obedece ao disposto no art. 2.007 do Código Civil que
imperativamente estabelece: ”São sujeitas à redução as doações em que se apurar
o excesso quando ao que o doador poderia dispor no momento da liberalidade”.
Esclarece o § 1º desse artigo que esse excesso será apurado com base no valor
que os bens doados tinham no momento da liberalidade, com o que se estabelece
critério igual ao utilizado para a colação do bem doado em adiantamento de legítima.
avalia a porção disponível no momento da abertura da sucessão peca por injusto. Realmente o doador poderia ser rico e dar moderadamente, e depois empobrecer, por qualquer razão estranha à sua liberalidade. E não é razoável que os herdeiros, que tiverem herança escassa, por um acidente da vida, enriqueçam à custa de donatário de muitos anos passados. Sistema intermédio é aquele que limita a redução das liberalidades feitas, por exemplo, nos últimos dez anos da vida do doador. 165 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.192. 166 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 171, aponta o autor que outras doações excessivas existem, por isso condenadas pela lei, mas nem por isso se denominam inoficiosas, como no caso da doação de um nubente ao outro de mais de metade de seus bens, ou a doação da totalidade dos bens, e isto porque não contrariam o “ofício” do doador. Os pais que doar excessivamente a um dos filhos ou a um estranho, peca contra o estado de pai, o dever, o ofício de pai. Assim não se chama de inoficiosa a doação do cônjuge à concubina, embora contrarie o dever do marido.
83
E § 3º reproduz a regra do parágrafo único do art. 1.790 que conceituava a doação
inoficiosa, ao estabelecer que “sujeita-se a redução, nos termos do parágrafo
antecedente, a parte da doação feita a herdeiros necessários que exceder a
legítima, mais a quota disponível”, e mais, estabelece o § 4º que, sendo várias as
doações a herdeiros necessários, feitas em diferentes datas, serão reduzidas a partir
da ultimam até a eliminação do excesso. O momento em que se apura o excesso é
o da prática da liberalidade, em que se celebrou a doação, e não, por exemplo, o da
transferência da propriedade, no caso de imóvel, que se dá com o registro
imobiliário167.
Observa-se que ao dispor inteiramente sobre como se opera esta redução,
ficou facilitada sua aplicação pelo juiz, eliminando dúvidas de interpretação dos
textos. Se a doação foi feita a herdeiro necessário, está sujeita a redução a parte
inoficiosa, ou seja, de acordo com o § 3º se o respectivo valor ultrapassar a metade
dos bens do doador, mais a legítima do donatário. Assim, se o pai tem bens no valor
de 300 e possui três filhos, a legítima de cada filho equivale a 50; todavia, o pai pode
dispor livremente de sua metade, correspondente a 150. E se doa a um dos filhos
bem de valor de 200, tal doação não está sujeita a redução, pois não ultrapassou a
metade dos bens do doador (150), mais a legítima do donatário (50) 168.
167 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.196, citando, nesse sentido, acórdão do STJ, relatado pelo Min. Eduardo Ribeiro, publicado na RT 767/200. 168 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 2.182.
84
Já a regra do § 4º acompanha a solução do direito comparado e a redução
começará pela última e assim sucessivamente até a eliminação do excesso169. Se
houver ocorrido várias doações, em um só ato, ou em atos distintos, na mesma data,
a redução será feita simultânea e proporcionalmente170. Legitimados para a ação
são os herdeiros necessários, portanto os descendentes, ascendentes e o
cônjuge171 e se indaga se há necessidade de aguardar a morte do doador para o
ajuizamento da ação. Orientação jurisprudencial mais antiga entendia que se deveria
aguardar esse momento, ao passo que a orientação mais recente entende possível
a propositura da ação mesmo em vida do doador, fundada, inclusive, no argumento
de que a matéria é de ordem obrigacional e não de sucessões172.
Parece-nos mais adequada essa posição para salvaguarda dos interesses do
herdeiro necessário, de molde a assegurar a utilidade da sentença que reconheça
essa nulidade, ante a possibilidade de perecimento do bem doado ou da insolvência
do donatário em virtude dos azares da vida. O prazo prescricional é o de dez anos,
169 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 2.182, apontando que o Código Civil francês, art. 923, diz, também, que a redução será feita, neste caso “en commençant par la dernière donation, et ainsi de suíte en remontant des dernières aux plus anciennes” (começando pela última doação, e assim sucessivamente, remontando-se das últimas às mais antigas), idem nos arts. 559 do Código Civil Italiano e 2.173 do Código Civil português. 170 FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 2.182 é a interpretação e solução proposta com apoio na norma do art.2.173, 2 do Código Civil português. 171 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 252, inclui também, dentre os legitimados os credores, se, somando-se ao que deixou o falecido o em que importaram as doações, há menos do que a soma das dívidas, porque no art. 1176 (reproduzido pelo art. 549) se concebeu a regra jurídica como de nulidade 9aliter, o direito alemão, Th. Kipp, Lehrbuch, II, 3, 17ª-21ª ed.464). 172 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 195/196 se reportando a dois acórdãos do Supremo Tribunal Federal, relatados pelos Ministros Hahnemann Guimarães e Lins e Silva, portanto há mais de quarenta anos, e mais recentes do STJ e do TJRJ; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, 1964, Tomo XLVI, p.2249/251, após escorço histórico fazendo remontar a ação à querella inofficiosae donationis, que provém de rescrito de Alexandre Severo, à luz do direito brasileiro, sustenta que nascendo a ação ao ser feita a doação, nasce antes de aberta a sucessão e a nulidade pode ser decretada antes da morte do doador. A pretensão não desaparece se algum dos herdeiros necessários repudia a herança, ou algum herdeiro testamentário.
85
na falta de previsão específica do Código, a contar do ato de doação173.
Conquanto se cuide de ação de nulidade, e não de anulabilidade, como de
lege ferenda aponta a doutrina
osto175 176.
174, o importante é que, em se tratando de nulidade, a
sentença produz efeitos ex tunc, vale dizer desde o momento da doação inoficiosa, é
como se o ato nunca tivesse sido praticado, e não ex nunc, se se cuidasse de
anulabilidade, pois nesse caso o ato valeria até que desconstituído por sentença.
Parte-se da inoficiosidade como sup
3.6 Revogação da doação
3.6.1 Invalidação e suas causas
Dada a natureza contratual da doação, pode ela ser invalidada nos mesmos
casos dos contratos em geral, como no da incapacidade absoluta do doador, se o
seu objeto for ilícito ou impossível, ou ainda se não observada a forma prescrita em
173 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 196. 174 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 183, ao argumento de que não é bom que alei exagere a proteção dispensada a certas instituições ou pessoas. ; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 250, afirmando que no direito brasileiro, o Código Civil, art. 1.176, tem, pela explicitude da regra jurídica de invalidade, ação de nulidade (verbis “nula é a doação”). De iure condendo, poder-se-ia ter concebido a ação como de anulação, mas não foi isso o que se inseriu no art. 1776. Haveria, por certo, inconveniente em que se tivesse como de nulidade, por serem imprescritíveis tais ações, porém, sendo, como é, ação subsidiária, cessa com a prescrição a ação do herdeiro para haver a herança em mãos de outrem. 175 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 85. 176 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro,
86
lei177. Ou também por vícios de vontade ou consentimento, como erro, coação, dolo,
estado de perigo, lesão e fraude de credores, tornando-se anulável (art. 171 do
Código Civil) 178 .
Pode ainda ser revogada amigavelmente pelo distrato ou mútuo dissenso
(arts. 472 e 473 do Código Civil), pela morte do donatário, quando estabelecida a
cláusula de reversão (art. 547 do Código Civil), pela morte do doador, no caso da
doação sob a forma de subvenção periódica (art.545 do Código Civil).
A declaração da nulidade pode dar-se, também, por infração a normas
específicas relativas ao contrato de doação, como no caso dos arts. 548 (doação
universal sem reserva de bens ou meios que garantam a subsistência do doador),
549 (doação inoficiosa) e 550 (doação ao cúmplice de adultério do doador), acima
examinados.
177 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva,São Pauio, p. 147. 178 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 148.
87
3.6.2 Ingratidão do donatário
Sustenta SERPA LOPES que, entretanto, a seu ver e na verdade só uma
causa de extinção da doação pode ser qualificada como revogação: a ingratidão do
donatário, única que se reveste do verdadeiro sentido técnico, tendo sido este o
critério do Código Civil alemão (§ 530). 179 AGOSTINHO ALVIM, após afirmar que os
contratos, em regra, não se revogam, e sim, anulam-se, rescindem-se, resolvem-se,
conforme o caso, lembra que o único caso de revogação, que lhe ocorre, é o do
mandato, mas, na doação, ao contrário do mandato, a revogação não se opera pela
simples vontade do doador180. E a lei estabelece que a doação se revoga por
ingratidão do donatário ou pelo inexecução do encargo, na doação onerosa (art. 555
do Código Civil).
Conquanto possa ser vislumbrado na ingratidão um conceito juridicamente
indeterminado, o certo é que, no direito positivo brasileiro, para o efeito de
revogação da doação, em enumeração taxativa do art. 557 do Código Civil estão
elencadas as hipóteses em que se caracteriza a ingratidão, donde a conclusão de
que em sentido técnico jurídico a ingratidão constitui dever negativo imposto ao
donatário. Deve abster-se da prática de certos atos que constituam desapreço e
prova de ingratidão181. Essas condutas demonstram ser o donatário desmerecedor
179 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 385. 180 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.259. 181 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 148.
88
do ato de liberalidade praticado pelo doador e a sanção ou pena é a revogação da
doação182.
O Código Civil de 2002 ampliou o sentido moral das possibilidades de
revogação com a inserção do art. 558, sem correspondência no direito anterior, para
estabelecer que “pode também ocorrer revogação quando o ofendido, nos casos do
artigo antecedente, for cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou
irmão do doador”.
3.6.2.1 Atentado contra a vida do doador ou homicídio doloso contra ele
A primeira das causas previstas no art. 557 do Código Civil é o atentado
contra a vida do doador ou o homicídio doloso contra ele. A norma vigente é de
melhor técnica porquanto no direito anterior a lei previa apenas o atentado, e, sendo
a ação de revogação personalíssima, no caso de homicídio consumado, entendia-se
que neste caso não seria possível a revogação, porque os herdeiros não estariam
legitimados a promovê-la183.
182 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.239. 183 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 252, anotando que tratando-se de tentativa de homicídio fracassada o doador podia ajuizar a ação, admitindo-se apenas que os herdeiros prosseguissem na ação já aberta. Era quase um incentivo ao donatário para se certificar da morte imediata do doador para escapar da revogação. A nova redação que deu ao dispositivo legal corrigiu a falha anterior, incluindo a hipótese do homicídio doloso, e legitimando os herdeiros para o ajuizamento da ação revogatória.
89
Entretanto, apenas o homicídio doloso autoriza a revogação, e isto se o
doador não perdoou o donatário, o que pode ocorrer se a morte não se dá de
imediato (art. 561 do Código Civil). Neste caso, explicitada a legitimação ativa dos
herdeiros pelo preceito introduzido no Código vigente (art. 561 do Código Civil),
estes poderão postular a revogação184. Não há necessidade da existência de
sentença criminal condenatória transitada em julgado para o ajuizamento da ação
revogatória, em razão da independência das esferas civil e penal.
3.6.2.2 Ofensa física contra o doador
O segundo caso é o do cometimento de ofensa física contra o doador (art.
557, II do Código Civil). No conceito de ofensa física se enquadram não apenas a
lesão corporal tipificada como crime no art. 129 do Código Penal, como também
qualquer comportamento que represente lesão ou ameaça à integridade física,
psíquica ou à saúde do doador (crime de perigo de vida, crime de contágio de
moléstia grave), inclusive as pouco duradouras e que não deixem sequelas185.
Também nesta hipótese, exige-se a conduta dolosa, afastando-se a lesão culposa,
184 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p. 245. 185TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.241; CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 254.
90
que não tipifica ingratidão, mas enseja o dever de indenizar186. Do mesmo modo,
neste caso não se exige a sentença penal condenatória transitada em julgado e a
ofensa pode ser demonstrada na ação revogatória.
Injúria grave e calúnia são os casos previstos no inciso III do art. 557, e
consistem ofensas à moral, à honra do doador. Conquanto não esteja incluída a
difamação dentre os motivos para a revogação da doação, parte da doutrina, ante a
taxatividade dos motivos e em virtude de interpretação literal e restritiva da norma
entende de excluí-la. A doutrina moderna se inclina a admiti-la também como meio
de ofensa à honra do doador de molde a caracterizar a infração. O argumento no
sentido da admissão é o da frustração da completa tutela do bem jurídico que se
visa a proteger, ou seja, o bem jurídico honra, que é o fim da sanção em exame187.
Tendo presente que o conceito de injúria em direito civil tem conteúdo mais
amplo que aquele traçado pelo direito penal, parece ser aplicável à ação de
revogação da doação a violação dos deveres genericamente impostos no art. 3º e a
186 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 254/255. 187 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, vol.ume II, p.241; CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p 255 acentuando que a jurisprudência já supriu a lacuna, com sólido apoio na doutrina, não havendo a menor duvida quanto à possibilidade de se revogar a doação por ingratidão, quando o donatário difamou o doador; nesse sentido DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 65, afirmando ser possível a revogação mesmo que o donatário não sofra condenação penal, causando ao doador humilhações que representam um atentado à sua integridade moral, tais como: fazer votos para que o doador faleça brevemente (RT, 182:248, 278:821); exigir do doador vantagens superiores à doação feita (RT, 189:403); falar mal dele, comentando seus defeitos, fingir que não o conhece quando o avista, excluindo-o de suas relações (RT, 532:191). Contudo, não incorrerá nessa penalidade se não teve intenção de caluniar ou injuriar, mas de defender seus direito, como no caso, p. ex. de ter chamado o doador para prestação de contas (RT, 211:246, 199:293.
91
garantia do art. 4º do Estatuto do Idoso (L. 10.741/2003), ao priorizar o atendimento
do idoso por sua própria família, e estabelecer que “nenhum idoso será objeto de
qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo
atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”.
Considerada a independência das jurisdições civil e penal, e sustentada a
possibilidade do ajuizamento da ação revogatória independentemente da existência
de sentença criminal condenatória transitada em julgado, a questão que se põe é a
da superveniência de sentença absolutória no crime. Entendendo que a sentença
absolutória afasta a consideração da ingratidão, se pronunciam CLOVIS
BEVILACQUA e CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA. Em sentido contrário,
CARVALHO SANTOS188. Se a sentença absolutória entende que o fato não é
típico, que não é o donatário o autor da ofensa, ou ainda reconhece causa
excludente de culpabilidade (art. 65 do Código de Processo Penal) e esta transita
em julgado, isto impede a sua discussão no cível. Todavia, se a sentença
absolutória não reconhece a inexistência material do fato (art. 66 do Código de
Processo Penal), ou o faz por falta de provas ou ainda em razão da prescrição da
pretensão punitiva, nada impede o prosseguimento da ação civil. É o que decorre do
art. 935 do Código Civil quando estabelece que “a responsabilidade civil é
independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do
fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas
no juízo criminal”.
188 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p.241.
92
3.6.2.3 Recusa de alimentos ao doador
O último dos casos do art.o 557 é a recusa de alimentos de que necessitava o
doador, podendo ministrá-los o donatário (IV). No caso, os alimentos são devidos
como consequência moral da gratidão que o donatário deve ter para com o doador.
Para que se caracterize esta hipótese é necessário que o doador necessite de
alimentos, que o donatário os possa prestar sem prejuízo de sua subsistência e de
seus familiares, não existam parentes próximos capazes de prestá-los, e que o
donatário se recuse a tal189.
Sustentam MARIA HELENA DINIZ que a recusa não precisará ser formulada
em juízo, sendo bastante a negativa verbal ou expressa provada por testemunhas,
ao que se depreende na própria ação revogatória e, em sentido contrário, SERPA
LOPES, exigindo sentença condenatória à prestação de alimentos190. Com a
primeira corrente fica WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, afirmando que a
recusa não precisa ser formulada em juízo, por exemplo, numa ação de alimentos,
será suficiente a negativa, por carta, ou num pedido verbal, podendo este ser
189 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 113; DINIZ, Maria Helena, Tratado Teórico Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, 2º volume, p. 65, deixar de ministrar ao doador alimento para a sua sobrevivência, por estar ele na penúria e não ter parentes a quem reclamar pensão alimentícia (JTJ 167:82); TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 242; SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil – Contratos, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 267, destacando que o primeiro dos requisitos é o de que o donatário possa ministrá-los, sem prejuízo da própria subsistência e de seus familiares. 190 DINIZ, Maria Helena, Tratado Teórico Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, 2º volume, p. 65; SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 387.
93
provado por testemunhas, vendo nessa obrigação alimentar do donatário em relação
ao doador vestígios do beneficium competenciae do direito romano191.
3.6.3 Revogação por ingratidão só admissível nas doações puras
A revogação por ingratidão, entretanto, só é admissível quanto às doações
puras192, dispondo o art. 564 que “não se revogam por ingratidão: I – as doações
puramente remuneratórias; II – as oneradas com encargo já cumprido; III – as que
se fizerem em cumprimento de uma obrigação natural, e, IV – as feitas para
determinado casamento.”
Quanto às doações remuneratórias, em princípio o doador teria de pagar uma
remuneração em retribuição a favor ou serviço prestado pelo donatário, valendo-se
da doação para fazê-lo por meio indireto, donde não se exigir qualquer obrigação
negativa do donatário que configure a ingratidão193. No segundo caso, cumprido o
encargo estará o donatário quitado, não mais sendo possível a revogação. Na
hipótese de cumprimento de obrigação natural as razões são as mesmas para a
vedação relativamente às doações remuneratórias, acrescentando-se, ainda, a 191 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 150. 192 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p 248, invocando lição de Clovis Bevilacqua ao afirmar que as doações previstas no artigo 1.187 do Código de 1916 não são puras. São onerosas ou modificadas pelo fim, ou pelo encargo. Acentua-se, assim, a doutrina do Código: a revogação por motivo de ingratidão só é possível a respeito das liberalidades puras (Código Civil, p. 366). 193 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.295.
94
irrepetibilidade do que pago em cumprimento desse tipo de obrigação citando-se,
por exemplo, as dívidas de jogo ou ainda uma obrigação prescrita, sendo certo que
nesses casos o devedor paga impulsionado por um dever moral, e se utiliza da
doação como meio indireto para exonera-se, o que afasta a liberalidade pura194.
Quanto às doações para casamento, a intenção do doador não é propriamente
beneficiar o donatário e sim a família que se irá constituir e que seria a prejudicada
no caso de revogação e a penalidade não deve passar da pessoa a quem é
imputada a ingratidão195.
3.6.3.1 Revogação por inexecução do encargo
Também é causa de revogação da doação, de acordo com a segunda parte
do art. 555 do Código Civil, a inexecução do encargo, cuja operação é regrada pelo
art. do Código Civil 562 ao dispor que “a doação onerosa pode ser revogada por
inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o
cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando prazo
razoável para que se cumpra a obrigação assumida.” A mora decorre do simples
descumprimento da obrigação com prazo (art. 397 do Código Civil), sendo
necessária a interpelação para a constituição em mora nas obrigações sem prazo
(art. 397, parágrafo único do Código Civil). A notificação a que alude o artigo poderá
194 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p.298. 195 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p.248, interpretando lição de Carvalho Santos.
95
ser judicial ou extrajudicial (art. 397, parágrafo único do Código Civil). Não havendo
prazo fixado para o cumprimento do encargo, não se poderá considerar em mora o
donatário somente pelo fato de já ter decorrido prazo mais que razoável para o
cumprimento do encargo.
Assim já entendia AGOSTINHO ALVIM, exemplificando com uma doação de
terreno com o encargo de nele o donatário construir uma capela, anotando ser
indispensável a assinação de prazo que não fica ao arbítrio do doador, mas que
deverá ser razoável, tendo em vista o tempo necessário para a execução do
encargo, sem entretanto levar em conta as dificuldades pessoais do donatário. O
critério há de ser objetivo196. A lei, agora é explicita.
3.6.3.2 A ação para revogação da doação
A ação para revogação da doação é personalíssima, tanto no que respeita à
ingratidão, ainda que a ofensa tenha sido dirigida a membros da família enumerados
no art. 558197, como no de inexecução de encargo, como se depreende da primeira
parte do art. 560, excetuada a hipótese do homicídio doloso do doador pelo
donatário, caso em que a lei confere legitimidade aos herdeiros (art. 561 do Código
Civil). O seu procedimento é o sumário, de acordo com o disposto na letra g do
196 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 260/261. 197 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, Volume 3, p.301.
96
inciso II do art. 275 do Código de Processo Civil, acrescentado pela Lei n. 12.122, de
15 de dezembro de 2009. Após o ajuizamento da ação, a legitimidade passa aos
herdeiros, havendo sucessão processual. A presunção de perdão se ocorre a morte
do doador no curso do prazo decadencial de um ano para o ajuizamento da ação
revogatória tem merecido críticas da doutrina.
Entendem GUSTAVO TEPEDINO, MARIA HELENA BARBOZA e MARIA
CELINA BODIN DE MORAES que essa presunção não merece prosperar pelas
razões deduzidas por CARVALHO SANTOS, para quem, enquanto o prazo não
escoar inteiramente, salvo alguma manifestação tácita se conclua pelo perdão do
doador, destacando a afirmação deste: “Não se pode presumir nenhum perdão da
parte do doador que, se não iniciou a ação, foi tão somente por ignorar o próprio fato
ou quem fosse o seu autor. Pelo menos essa é a presunção que se deve admitir à
qual o Código não deu a menor importância, apegado que ficou ao caráter
personalíssimo da ação” 198. De lege ferenda, seria de ser admitida a possibilidade
de o herdeiro ajuizar a ação, no caso de falecimento do doador antes de escoado o
prazo decadencial199. Todavia, diante do direito posto há de ser interpretada
literalmente a disposição. No pólo passivo, falecido o donatário, tanto que ajuizada a
lide, vale dizer, tanto que distribuída ou despachada (art. 263 do Código de
198 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 244; CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 272 lembra que “respeitável vertente doutrinária defende tese oposta à adotada pelo Código, sustentando que não se pode presumir perdão, nos casos apontados. A presunção deveria ser inversa, ou seja, o doador iria ajuizar a ação, se lhe tivesse sido possível. Seja como for, o nosso Código preferiu reforçar o caráter personalíssimo da ação, ao contrário do Código Civil francês, que, no seu artigo 957 admite que os herdeiros do doador ajuízem a ação em face do donatário, se aquele veio a falecer, sem intentar a demanda, antes de um ano do delito imputado ao donatário”. 199 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 244.
97
Processo Civil), esta prosseguirá contra os seus herdeiros. O prazo decadencial
para o ajuizamento da ação é de um ano contado de quando chegue ao
conhecimento do doador o fato que a autorizar e de ter sido o donatário o seu autor.
O termo autor, no caso, deve ser interpretado em sentido lato, compreendendo a
autoria e a participação200.
Observam TEPEDINO, BARBOZA e MORAES que, “de acordo com a nova
redação do dispositivo, que incorporou ao CC o trecho final do artigo “e de ter sido o
donatário o seu autor”, conclui-se que o início do fluxo do prazo depende de dupla
condição: o fato chegar ao conhecimento do doador e a ciência de o donatário ter
sido o seu autor. Se o doador já tem a notícia da ocorrência do fato, mas não sabe
ainda de quem foi a autoria, não se pode pretender iniciado o prazo para revogação.
Somente começará a correr o prazo quando do efetivo conhecimento da ingratidão,
o que depende naturalmente, da ligação, do nexo de causalidade entre o fato lesivo
a bem jurídico do autor e a pessoa do donatário. O prazo para o ajuizamento da
ação, como bem observa CARVALHO SANTOS (CC, art. 450), é decadencial, que
de ordinário não se suspende, nem se interrompe (CC, art. 207). O autor também
assinalava, com apoio em LAURENT, que “não corre o prazo quando os atos de
ingratidão são contínuos, como na hipótese de se tratar de cônjuges, quando as
sevícias e as injúrias se tornam habituais; o prazo começa a correr a partir do último
ato de ingratidão” (CC, art. 450).” 201
200 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de janeiro, 2006, volume II, p. 243. 201 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 243.
98
Outrossim, o direito de pleitear a revogação por ingratidão é irrenunciável, a
teor do art. 556 dispondo que “Não se pode renunciar antecipadamente o direito de
revogar a liberalidade por ingratidão do donatário”. Será nula a cláusula do contrato
que a estipular, o que não importa, entretanto, que o doador tenha a obrigação de
propor a ação, bem como não é proibida a concessão de perdão. O que se proíbe é
que o doador renuncie antecipadamente a esse direito de ação202.
3.6.3.3 A sentença da revogação ou extinção da doação e seus efeitos
A revogação ou a extinção da doação opera-se pela sentença judicial que
reconhece a existência da ingratidão ou não cumprimento do encargo. No caso
deste último, os efeitos da sentença são ex tunc, retroagindo ao momento da
doação; já no de ingratidão ex nunc, vale para o futuro, não havendo retroação203. O
efeito ex tunc no caso do descumprimento do encargo resulta do fato de decorrer do
implemento de uma condição resolutiva, aplicando-se a regra do art. 1.359 do
Código Civil que cuida da propriedade resolúvel, e, no caso da ingratidão, por
aplicação do art. 1.360 do mesmo Código, que trata das consequências da
resolução da propriedade por fato superveniente, essa resolução se dá por
aplicação de uma pena que não produz efeitos senão do dia em que pronunciada204.
202 GOMES, Orlando. Contratos, 26ª edição atualizada por Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 263. 203 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 287. 204 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 288, com apoio na lição de Clóvis Bevilacqua.
99
Assim, o donatário não está obrigado a restituir os frutos percebidos, mas,
proposta a ação revogatória não mais terá direito de percebê-los desde a citação205.
Quanto a benfeitorias, aplica-se a regra geral do art. 1.219 do Código Civil quanto
àquelas necessárias ou úteis introduzidas até a data da citação válida, podendo
invocar o direito de retenção. Quanto às voluptuárias, se o doador não as quiser
pagar ou indenizar, poderá levantá-las, desde que isso não afete a substância da
coisa doada. Após a citação, somente será indenizado pelas necessárias, nada
podendo reclamar relativamente às úteis, que se incorporam à coisa.
Do mesmo modo, quanto às acessões, até a citação válida terá direito a
indenização pelas construções ou plantações, mas não terá qualquer direito àquelas
feitas após a citação, que passarão à propriedade plena do doador206.
Por fim, a coisa doada deverá ser restituída ao doador em espécie, devendo
ser feita no estado em que as coisas doadas foram recebidas, salvo as
deteriorações decorrentes do tempo ou de seu uso normal, respondendo, entretanto,
o donatário pelas deteriorações sofridas por sua culpa, enquanto a coisa esteve em
seu poder. Se a coisa pereceu ou se deteriorou por fato não imputável ao donatário,
ficará ele liberado de indenizar o doador, devendo indenizar, no caso inverso, pelo
meio termo de seu valor, ou seja, pela média entre o maior e o menor valor 205 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 289, argumentando que até a citação o donatário é possuidor de boa-fé. 206 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 291/292.
100
alcançado no período de titularidade do donatário, levando-se em conta o valor real,
sem computar-se a desvalorização da moeda207.
Relativamente às consequências da revogação da doação por ingratidão,
estabelece o art. 563 do Código Civil que: “A revogação por ingratidão não prejudica
os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos
percebidos antes da citação válida; mas o sujeita a pagar os posteriores, e quando
não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-lo pelo meio-termo do
seu valor.”
Até a revogação, o proprietário do bem é o donatário, sendo esta a razão de
salvaguardar o direito de terceiro que adquiriu o bem ou direitos sobre ele, como no
caso da instituição de uma servidão sobre o bem, ou ainda um usufruto em favor do
terceiro, antes da citação válida para a ação revogatória208. Nesse caso, restituída a
coisa, continuará gravada pelo direito real constituído validamente pelo donatário.
Poderá o doador, entretanto, exigir do donatário indenização se houve
desvalorização da coisa em razão do ônus que passou a gravá-la. Do mesmo modo,
se o donatário deu o bem em hipoteca, também prevalece esse direito real de
garantia, podendo o doador exigir do donatário garantia idônea para o caso desta vir
a ser excutida209.
207 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 293, com apoio em Clovis Bevilacqua e Silvio de Salvo Venosa, contrariando Carvalho Santos. 208 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p.247. 209 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 294.
101
3.7 Formação do contrato – a aceitação
Para a existência do contrato de doação, é necessário, de um lado, a
manifestação do doador de fazer a liberalidade mediante transferência gratuita de
um bem, sem contraprestação, ou seja, o animus donandi, e de outro, a aceitação
pelo donatário, com que se aperfeiçoa o contrato consensual210. A aceitação é
indispensável211 ou ainda pressuposta212.
A aceitação, segundo CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, pode ser expressa
na forma do art. 538 do Código, quando o donatário declara, por qualquer meio, que
aceita os bens ou vantagens oferecidas pelo doador; tácita, quando se pode deduzir
de uma conduta do donatário, como no caso da doação propter nupcias em que a
celebração do casamento é tida como aceitação tácita, não podendo ser impugnada
por falta de aceitação (art. 546 do Código Civil). 213 É presumida – a despeito da
opinião de CLOVIS BEVILACQUA em contrário214 – quando o doador fixar um prazo
para que o donatário declare se aceita ou não a liberalidade, presume-se a
210 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, 2004, vol. VIII, p. 92; DINIZ, Maria Helena, Tratado Teórico Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, 2003, 2º volume, p. 46; BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª parte, 34ª edição, Saraiva, 2003, p. 135; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, 1997, vol. 3, p. 186; ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p.40. 211 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 99. 212 FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil – Coordenação de Everaldo Augusto Cambler - C, RT, São Paulo, 2002, vol. 3 Contratos, p. 173. 213 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.41, após admitir a manifestação de vontade tácita, definindo-o como consentimento indireto, que supõe ato ou procedimento incompatível com a não aceitação, aponta o caso de o donatário pagas a sisa, ou ainda a prática de qualquer ato que implique aceitação. 214 BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume IV, p. 266, ao afirmar que “O Código desconhece a doação não aceita, ou cuja aceitação é presumida, ou em que o tabelião se substitui ao donatário, como admitia o direito anterior, quando a liberalidade era pura e simples”.
102
aceitação se a doação for pura ou, ao contrário, se a doação for onerosa (art. 539 do
Código Civil); ficta, no caso da doação para incapaz porque o Código dispensa a
aceitação do absolutamente incapaz nas doações puras (art. 543 do Código Civil),
justifica-se a afirmação na impossibilidade de manifestação de vontade pelo
absolutamente incapaz e o caráter benéfico da doação, tornando possível a ficção,
de um consentimento efetivo que produz os mesmos efeitos da manifestação de
vontade emitida por um donatário capaz.
Em regra, a aceitação é imediata, todavia, o Código prevê a possibilidade de
ser fixado pelo doador prazo para que o donatário declare se aceita ou não a
liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a
declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo (art.
539 do Código Civil).
O doador se encontra em posição semelhante ao do proponente, na
policitação, sustentando AGOSTINHO ALVIM a ausência de identidade de situação
porque enquanto não aceita a proposta o doador pode retirá-la, porque, a seu ver, é
dogma fundamental em matéria de doação a persistência, a atualidade, do animus
donandi.
Dessa forma, o arrependimento ou a revogação do ato é sempre possível,
antes de consumada a doação pela aceitação do donatário. Argumenta, ainda, com
a regra do art. 1080 do Código de 1916, reproduzida no art. 427 do vigente Código,
103
ao excepcionar a força vinculante da proposta em razão da natureza do negócio215.
Indaga-se ainda se o doador morrer no curso do prazo para aceitação, se a
obrigação de doar passa aos herdeiros.
Sustenta AGOSTINHO ALVIM, fundado na necessidade do animus donandi
atual, que a obrigação se extingue216. No mesmo sentido, CLOVIS BEVILACQUA,
citado por GUSTAVO TEPEDINO217. Em sentido contrário, e com apoio em JOÃO
LUIZ ALVES, entende CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA que a morte do doador,
depois de fixado prazo ao donatário, mas antes da aceitação deste, não impede a
formação do contrato, porque a declaração de vontade do doador já foi feita e o
vínculo obrigacional aguardava apenas a aceitação do donatário. Se a oferta não foi
retirada, sobrevive para o aperfeiçoamento do contrato. Ao contrário, se o donatário
morre antes de declarar sua aceitação, o ato não prevalece, porque a presunção de
acordo não existe senão depois de esgotado o prazo sem manifestação, mas não
antes de findo ele218.
No direito comparado, apontam TEPEDINO, BARBOZA e MORAES, a regra
do Código Civil português, a acatar a orientação de CLOVIS BEVILACQUA,
estabelecendo que “a proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do
215 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 42/43. 216 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p.44. 217 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 219.; no mesmo sentido da caducidade da doação no caso da morte do doador antes da aceitação pelo donatário SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 351. 218 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 348.
104
doador” (art. 945º, n. I). 219 Nesta posição se coloca SILVIO CAPANEMA DE
SOUZA, para quem, falecendo o doador, antes da aceitação, se entende resolvida a
oferta, que não guarda a força vinculante, em relação aos seus herdeiros, que não
podem ser compelidos a fazer liberalidade220. Nas doações com encargo, na
medida em que este representa um ônus para o donatário, cuja repercussão
econômica pode ser desinteressante ao donatário, não é de se admitir a presunção
de aceitação em virtude da ausência de resposta (art. 539 do Código Civil). Todavia,
essa exceção não se aplica aos casos de doação com reserva de usufruto, ou ainda
no caso de doação condicional ou a termo, onde é admitida a aceitação presumida
em virtude do silêncio do donatário, após decorrido o prazo fixado pelo doador221.
Após a conclusão do contrato, o doador não pode desfazer, a seu arbítrio, o
ato de liberalidade, afirmando ORLANDO GOMES que, “conquanto seja levado a
doar por impulso generoso, propondo-se a dar sem nada receber, contrai
indeclinável obrigação no momento em que o contrato se torna perfeito e acabado,
ficando adstrito a entregar o bem doado. É essa a obrigação fundamental que se
origina do contrato de doação: a efetiva entrega da coisa do donatário com o ânimo
de transferir-lhe a propriedade” 222.
219 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 220. 220 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 121. 221 CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 121/122. 222 GOMES, Orlando. Contratos, 26ª edição atualizada por Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 261.
105
4 PROMESSA DE DOAÇÃO – A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA
A partir da definição de doação posta no art. 538 do Código Civil, adverte
MARIA HELENA DINIZ que “é preciso lembrar que não se poderá falar em
promessa de doação, que é o compromisso de praticar liberalidade em benefício de
determinada pessoa (compromissário-donatário ou terceiro). Não pode ser admitida
porque o compromissário passaria a ter a possibilidade de reclamar sua execução,
hipótese em que se teria, então, uma doação coativa, que se converteria em perdas
e danos, o que seria incompatível com a natureza do instituto, que requer
espontaneidade. Logo essa promessa de doação seria nula; não se pode impor um
benefício, visto que ato e liberalidade não comportaria execução forçada. Só se
poderá fazer promessas de contratos onerosos (RT 602:269; RTJ 58:153, 68:499 e
103:327).
Todavia, em que pese tal opinião, há quem entenda que esta tese não poderá
prevalecer porque a espontaneidade se dará quando o compromitente comprador
fizer livremente a sua promessa de doar, sendo cabível ao compromissário-
donatário aquela indenização” 223.
223 DINIZ, Maria Helena, Tratado Teórico Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003, 2º volume, p. 43.
106
Acompanha a ilustre jurista a posição de AGOSTINHO ALVIM para quem,
como apontado acima, ser dogma fundamental em matéria de doação, a
persistência do animus donandi, apontando ser a necessidade o animus donandi o
óbice à promessa de doação. “E isso porque entre a promessa e a sua efetivação
pode haver arrependimento. É possível coagir a entregar a coisa doada, não a doar”
224.
Já SERPA LOPES, sustenta que, por ser a doação um contrato gratuito, isto
torna inadmissível poder constituir-se em objeto de uma promessa de contrato.
Entende, com apoio em julgado do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal, ser
impossível a execução coativa da obrigação a título gratuito ou uma indenização por
perdas e danos. Afirma ser impossível qualquer das duas soluções porque, nas
obrigações a título gratuito, só por dolo responde aquele a quem o contrato não
favoreça, citando o art. 1057 do Código Civil de 1916 que corresponde ao art. 392 224 ALVIM, Agostinho. Da doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 42 e nota 1 e 60, nota 1- lembra o autor que há casos ilusórios, mas que bem examinados, não amparam a tese da promessa de doação. “Assim, se alguém, para caçar em minhas terras, prometer doar-me uma parte do que caçar, não haverá aí doação, e sim pagamento. Onde o empobrecimento do pretenso doador, que sai enriquecido? Onde o ânimo de liberalidade? Se doador houvesse, seria o dono das terras. Outros casos há que denunciam complemento de ordenado, promessa de recompensa, impropriamente chamados de promessa de doação. O Código das Obrigações suíço, no art. 242, fala em promessa de doação, mas no sentido de doação promissória, que não se confunde com promessa de doação (Schneider et Fick). O nosso Código Civil, no art. 1.122, usa da expressão se obriga a transferir (futuramente), o que não significa que esse texto se ocupe da promessa de venda, senão, que a venda em nosso direito é promissória. Assim expõem os alemães o seu Código em matéria de venda e doação. Com sobra de motivo, quando a doação é causa mortis (BGB, § 2.301) porque essa espécie de doação sempre repugnou o enriquecimento atual do donatário (nosso Código, art. 314). A promessa de doação, no sentido de doação futura (e não de simples execução diferida), “é nula e do nium effeto” (Buttera, Códice Civile Italiano Commentato, Successioni, Donazioni, pág. 494). Ver ainda, comentário n. 12 ao art. 1.168.” E na pag. 60, nota 1, esclarece: “O Código suíço, nos lugares citados, fala em promessa de doar, mas não no sentido de doação que se promete fazer, futuramente, e sim no de doação promissória, ou obrigatória, em contraposição a doação real; por outras palavras: promessa de doação no sentido de doação, só que desacompanhada da tradição simultânea. Como entre nós as que se fazem por escrito, para depois entregar (Schneider et Fick). Também Clóvis empregou essa linguagem em seu projeto, onde fala da promessa de doação para significar a própria doação. Assim: promessa de doação quando feita por escrito (ar. 1308); doação, quando há tradição simultânea (parágrafo único desse artigo). No direito alemão, igualmente, a promessa de doação tem esse mesmo sentido de doação promissória, em contraposição à doação real”.
107
do Código Civil, e se reporta à doutrina de DANTE CAPORALI que, considerando
ser a doação um ato espontâneo, isto torna incompatível qualquer medida
compulsória tendente a uma execução in natura.
Além disso, ainda que a promessa de doação se revestisse de todos os
requisitos formais de doação, ainda assim não poderia ter qualquer eficiência, por
faltar a atualidade do destaque da coisa do patrimônio do promitente-doador, o que,
entretanto, não impede que se possa assumir a obrigação de pagar um débito.
Invoca ainda a lição de GABBA para quem a doação é o único contrato unilateral
consensual insuscetível de constituir objeto de uma promessa bilateral de contratar,
enfatizando não existir qualquer contradição, nem mesmo no direito romano, pois
que a promissio dotis se apresenta naquele direito como uma verdadeira
constituição de dote do mesmo modo que a prestação da coisa prometida não passa
de uma execução da doação dotal já perfeita225.
A seguir, invoca também a lição de LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL que,
à luz do Código de Processo Civil de 1939, nega à promessa de doação a qualidade
de pacto preliminar pelo que não poderá o beneficiário da promessa pedir ao juiz um
pronunciamento que valha por instrumento de doação, em virtude do requisito da
espontaneidade, inseparável da idéia de doação226.
225 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 347/348. 226 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 348.
108
Refuta a posição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO que a admite
em face do direito alemão (BGB § 2.301), da possibilidade desse pacto em desquite
amigável e em beneficio dos filhos do casal, bem como dos casos específicos de
promessa de doação previstos na Lei n. 2.378/54 em que se dispôs que o Governo
faria doação de uma casa residencial à família do expedicionário falecido, e do art.
18 do Código de Caça (Decreto-lei n. 5.894, de 20/10/1943) determinando que as
sociedades de tiro possam abater pombos domésticos, em qualquer época do ano,
desde que se obriguem a doar a casas de caridade parte das aves abatidas.
No primeiro caso vê uma doação remuneratória em que o Governo se obriga
a dar a casa residencial à família do falecido com o objetivo de ministrar mais uma
vantagem, um correspectivo pelo esforço de guerra do soldado morto e no segundo
uma doação com encargo em benefício de terceiro – as casas de caridade.
Finalmente, com relação ao art. 2.301, com apoio em SALLEILLES e ENNECERUS,
aponta que o caso é de doação causa mortis, e essa promessa não é nem pode ser
um contrato preliminar, capaz de uma execução coativa pela aplicação do art. 1.006
do Código de Processo Civil (de 1939).
Finalmente, afirma: “Não somos, contudo, intransigentes. Desde que a
natureza jurídica do negócio realizado permita uma execução in natura, não temos
dúvidas em admitir a exequibilidade de uma promessa de doação. Tal somente pode
ocorrer, ao que nos parece, em relação aos herdeiros do promitente doador. Se este
falece sem ter dado execução à doação, esta pode ser exigida dos herdeiros,
109
porque, em tal caso, já não se cogita de obrigar o promitente a doar, senão impor
aos seus herdeiros o cumprimento de uma obrigação assumida pelo de cujus” 227.
Do mesmo modo, e com apoio nas lições de CAPORALI, GABBA e SERPA
LOPES, CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA nega a possibilidade de ser exigido o
cumprimento da promessa de doação pura porque esta seria coativa, doação por
determinação da Justiça, liberalidade por imposição do juiz e ao arrepio da vontade
do doador. Em sendo impossível a prestação em espécie haveria a sua conversão
em perdas e danos e o beneficiário lograria reparação judicial, por não ter o benfeitor
querido efetivar o benefício. Isto não se coadunaria com a essência da doação, e,
por isso a doação pura não pode ser objeto de contrato preliminar. Reconhece que a
jurisprudência tem atribuído eficácia à promessa de doação efetivada por cônjuges
no acordo de separação judicial ou divórcio em favor dos filhos, casos em que tem
sido admitida a adjudicação compulsória dos bens objeto de promessa de doação
aos filhos, mesmo que o cônjuge proprietário dos bens se recuse a concretizá-la.
Ressalva, entretanto, a possibilidade de demanda do cumprimento da promessa no
caso de doação modal228.
Compartilhando do pensamento de AGOSTINHO ALVIM, SILVIO
RODRIGUES sustenta a impossibilidade da promessa de doação, quando pura, por
não ser ela vinculativa, uma vez que até a formalização é lícito o arrependimento do
227 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1995, p. 348/350. 228 SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil – Contratos, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 257/258.
110
doador. Após enumerar as opiniões de SERPA LOPES e CAIO MARIO DA SILVA
PEREIRA, registra apenas uma em sentido contrário, de PHILAPELPHO AZEVEDO,
e sustenta que no caso das promessas de doação feita pelos separandos nos
desquites amigáveis, o cônjuge não está prometendo doar, mas sim a efetuar um
pagamento, e a matéria se disciplina na forma das obrigações de doar coisa
certa229.
SILVIO LUIZ FERREIRA DA
ROCHA segue a doutrina de AGOSTINHO ALVIM230.
a essa promessa, à qual, aliás, alguns textos legais fazem
referência231.
Entre os autores atuais, e pelos mesmos motivos
Ainda na vigência do Código Civil anterior, se pronunciava pela possibilidade
da promessa de doação, ARNOLDO WALD, em virtude do princípio da liberdade das
formas dos contratos atípicos, entendendo não haver razão para não dar efeitos
obrigacionais
SILVIO DE SALVO VENOSA, após resumir a controvérsia e citar o
entendimento de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA SERPA LOPES, com apoio em
PONTES DE MIRANDA, entende não ser suficientemente convincente o argumento
usado para negar eficácia à promessa de doação, ou seja, se o doador pretende
229 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 24ª edição, Saraiva, São Paulo, 1997, volume 3, p. 198/199. 230 FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luís. Curso Avançado de Direito Civil, Coordenação de Everaldo Augusto Cambler, RT, São Paulo, 2002, volume 3, p. 174. 231 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos, 11ª edição, RT, São Paulo, 1994, p. 286.
111
fazer liberalidade, que o faça logo e não em momento posterior. Acrescenta que a
vida prática ensina que várias razões podem determinar o pré-contrato, como no
caso da separação conjugal em que os consortes prometem fazer doações entre si
ou para a prole. A manifestação da vontade já se torna cristalina no momento da
promessa unilateral. Inadmitir a exigibilidade dessa promessa é criar entrave
embaraçoso para os outorgados e para terceiros. Em suma, a promessa de
contratar doação, no seu entender, deve ser admitida quando emanar de vontade
límpida e sem vícios e seu desfecho não ofender qualquer princípio jurídico.
Ressalva, entretanto, corrente jurisprudencial que resiste a este entendimento sob o
argumento de que não há como coagir alguém a cumprir uma doação, sendo este
ato de pura liberalidade232.
ções expressas, admite o contrato preliminar
de doação, nos arts. 518, 523 e 2.031.
Para justificar a validade da promessa de doação, PAULO NADER argumenta
que a espontaneidade deve estar presente no pactum de contrahendo, qualquer que
seja a modalidade contratual por ser este o momento em que as partes se vinculam
jurídica e moralmente. O contrato definitivo é mera decorrência do ajuste anterior e
não importa se a declaração de vontade não coincide com a razão íntima das partes
no momento e seja uma consequência da pressão do contrato anterior. Aduz ainda
que o Código Civil alemão, por disposi
232 VENOSA, Silvio de Salvo. Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, 3º volume, p. 115/116.
112
Com maior desenvolvimento e apoio em PONTES DE MIRANDA e CUNHA
GONÇALVES, afirma ROBERTO SENISE LISBOA a possibilidade da promessa de
doação se houver pacto de donando. Em razão do caráter consensual da doação,
nada impede que o ajuste de vontades entre doador e donatário se limite à
promessa de firmar contrato sem qualquer modalidade, no período ajustado. Anota
ainda a situação que ocorre quando a promessa de doação é feita em benefício de
terceiro, ou seja, em que ambos os promitentes concordam em dar o bem a terceiro.
Sustenta que a tese da coatividade da doação prometida há de ser afastada, porque
o contrato decorre da vontade das partes, manifestada por ocasião da celebração do
negócio jurídico consensual.
s
A alegação de coação sobre a vontade do promitente doador é inconsistente,
porque ele se torna devedor desde a celebração da avença, e, portanto, deve se
submeter à exigibilidade decorrente do vínculo jurídico. A adoção da tese da
coatividade, a seu ver, poderia levar a equívocos inadmissíveis, como o de se supor
que um devedor fosse injustamente coagido ao cumprimento normal da sua
obrigação, em qualquer negócio jurídico. Em seguida, destaca que “a promessa
bilateral de doação é cláusula inserida em um negócio jurídico de conteúdo mais
amplo pelo qual as partes deliberam que um terceiro será por elas beneficiado.
Admite-se a promessa de doação aos filhos, em caso de separação ou divórcio,
incumbindo a defesa dos interesses dos menores contemplados com o benefício
advindo do acordo de dissolução da sociedade conjugal não somente aos seus
genitores (que, na verdade, tornam-se genuínos devedores perante os filho
113
contemplados), como também do Ministério Público (que atua na defesa dos
interesses individuais indisponíveis dos filhos incapazes) e do Poder Judiciário”. 233
Disso resulta que, a favor da validade da promessa de doação, como pré-
contrato, se colocam a autonomia da vontade e o princípio da liberdade das formas
os contratos atípicos, a suficiência da vontade manifestada no momento da
promessa e a possibilidade de sua execução específica.
No sentido da invalidade, o argumento central é o da possibilidade de
arrependimento entre a promessa e o contrato definitivo, inerente ao contrato que
exige a atualidade da intenção de doar no momento da celebração da doação, bem
omo a impossibilidade de ser exigida a execução coativa da promessa pela via
judicial.
d
c
3 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil – Contratos e Declarações Unilaterais: Teoria
Geral e Espécies, 3ª edição, RT, São Paulo, 2005, volume 3, p. 376. 23
114
5 O PRÉ-CONTRATO E A PROMESSA DE DOAÇÃO À LDO CÓDIGO CIVIL
UZ
, partir
os anos sessenta, os cultores do direito privado incluem a Constituição entre as
fontes de direito privado, desprezando, por assim dizer, uma antiga divisão entre
“sociedade civil” e “sociedade política” e possibilitando o diálogo entre a terminologia
e os conceitos originários da Constituição e os institutos de direito privado" .
5.1 A aplicação dos princípios constitucionais ao Código Civil
Adverte ROSA MARIA ANDRADE NERY ser “... inevitável que, no início do
enfrentamento de qualquer tema relacionado com a introdução ao estudo do direito
e com a metodologia jurídica, se imponha uma pergunta sobre as fontes do direito e,
na sequência dessa investigação, se ponha o analista a indagar sobre o papel
dogmático da Constituição em face do direito privado. As constituições mais
recentes são sensíveis a aspectos específicos da vida humana, e por isso a
d
234
234 NERY, Rosa Maria Andrade. Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado, RT, São Paulo, 2008, p. 58.
115
Em nota, justifica com GHERSI, que, “por isso é que os princípios devem ser
observados com muita atenção, pois não podemos ser ingênuos: a estrutura da
ordem normológica interna de um sistema jurídico, frequentemente, cede a certos
grupos de poder (econômico, cultural, tecnológico) de origem distinta, que
ral não atende às
aspirações da sociedade atual porque não se pode mais admitir que uma relação
usência de boa-fé e com prestações
pressionam constantemente para que as leis tendenciosamente favoreçam seus
interesses” 235.
O liberalismo marcante até a metade do século XX, fez do contrato, como
observa DONNINI, o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre
pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma ética, e,
relativamente aos contratos entre particulares o modelo libe
contratual iníqua, celebrada com a
desproporcionais suportadas por uma das partes, seja considerada válida, sob o
argumento da autonomia privada e da liberdade de contratar236.
235 NERY, Rosa Maria Andrade. Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado, RT, São Paulo, 2008, p. 58, nota 169. 236 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 2001, p. 4/8: “Há quem sustente que o contrato ou o direito contratual é a parte do direito que menos sofreu alterações ao longo de séculos, estando distante de todas as mudanças sociais, o que, todavia, não corresponde à realidade, pois a sociedade mudou, e com isso as relações contratuais passaram a ter um enfoque diverso. É o que se verifica dos contratos de consumo, que serão aqui analisados. Independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares, não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportadas por uma das partes seja considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada e as partes são livres para contratar. Aliás, há muito tempo que esse modelo liberal de contrato causa perplexidade àqueles que buscam justiça, pois situações absolutamente desiguais e desproporcionais, que causavam prejuízos a um dos contratantes, eram consideradas legais, embora evidentemente imorais. De fato, esse modelo de contrato “é inadequado aos atos negociais existente na atualidade, porque são distintos os fundamentos, constituindo obstáculo às mudanças sociais. O conteúdo concepctual e material e a função do contrato mudaram, inclusive para adequá-lo às exigências de realização da justiça social, que não é só dele mas de todo o direito”. Chegou-se mesmo a declarar a morte do contrato. Mas o que se vê é a sua transformação e constante evolução. No final do século XIX e início deste, autonomia privada passou a ser contida
116
A doutrina se utiliza da expressão princípios constitucionais do direito privado
para se referir a determinados valores ou princípios que foram adotados pela
Constituição Federal e se referem especificamente a temas que são próprios do
direito privado, quer da tradicional prática disciplinar do direito privado (família,
sucessões, obrigações, contratos, coisas) quer dos temas relacionados com o
chamado direito da empresa, cujas regras fundamentais estão hoje inseridas no
Código Civil (CC 996 a 1195). Tratar desse tema é versar a principiologia do direito
constitucional na formação estrutural do direito privado237.
Em virtude da proliferação de microssistemas jurídicos como o dos direitos
autorais, do direito do consumidor, da criança e do adolescente, o Código Civil deixa
de ser o centro das relações de direito privado. Este centro se desloca para a
Constituição, base única dos princípios fundamentais do ordenamento, a partir da
pela interferência do Estado nas relações contratuais. Esse fato, em verdade, já se havia iniciado
tes, s Mu
redução da liberdade de contratar em benefício da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado reforço, e tanto que Josserand chega mesmo a considera-lo a “publicação do contrato”.
com acentuada tônica sobre o princípio de ordem pública, que
an com a Revolução Industrial, mas se tornou mais evidente entre a Primeira e a Segunda Guerra ndiais, surgindo, assim, a expressão dirigismo contratual. Houve, assim, uma limitação à liberdade de contratar, para que fossem evitados abusos nas relações contratuais. Caio Mário da Silva Pereira ensina que “o jurista não pode desprender-se das idéias dominantes no seu tempo, é a
Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade de faze-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como a regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresárias; a regulamentação dos meios de produção e de distribuição; e sobretudo a proclamação da efetiva preeminência dos interesses coletivos sobre os de ordem privada,sobreleva ao respeito pela intenção das partes, já que a vontade destas tem de submeter-se àquele.” 237 NERY, Rosa Maria Andrade. Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado, RT, São Paulo, 2008, p. 59.
117
consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes
normativas238.
Aceita a unidade do
ordenamento como característica da estrutura e função
do sistema jurídico decorrente da existência pressuposta da norma fundamental
como fator determinante de toda a ordem jurídica, a relação entre a norma
tituição estão
presentes em todos os recantos do tecido normativo, donde ser inadmissível uma
contraposição rígida de direito público a direito privado. Cada vez mais se encontram
fundamental e a Constituição, quanto à questão do fundamento de validade do
ordenamento, possibilita que esta seja considerada como um conjunto de normas
objetivamente válidas e a coloca como a instância a que foi dada a legitimidade para
revalidar a ordem jurídica.
Dessa construção da unidade do ordenamento jurídico decorre a
consequência de sustentar que os valores propugnados pela Cons
pontos de confluência entre o público e o privado, não havendo mais uma
delimitação precisa, fundindo-se, ao contrário, o interesse público e o interesse
privado. Acrescente-se a isto o fenômeno do intervencionismo estatal, que se tornou
um dos principais instrumentos de realização de justiça distributiva239.
238 MORAES, Maria Celina Bodin. A Caminho de um Direito Civil Constitucional, in WWW.idcivil.com.br/pdf/biblioteca 4.pdf, artigo publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991, publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC - Rio. 239 MORAES, Maria Celina Bodin. A Caminho de um Direito Civil Constitucional, in WWW.idcivil.com.br/pdf/biblioteca 4.pdf, artigo publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991, publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC - Rio.
118
Diante de tantas alterações, “direito privado e direito público tiveram
modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da
vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do
cidadão. A divisão do direito, então, não pode permanecer ancorada àqueles antigos
conceitos e, de substancial – isto é, expressão de duas realidades herméticas e
opostas traduzidas pelo binômio autoridade-liberdade – se transforma em distinção
meramente “quantitativa”: há institutos onde é prevalente o interesse dos indivíduos
estando presentes, contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que
prevalece, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre
funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses individuais e
existenciais dos cidadãos. Mais: no Estado Democrático de Direito, delineado pela
Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, o antagonismo público-
privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção
de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a
pessoa humana – isto é, os valores essenciais – no vértice do ordenamento jurídico
brasileiro, de modo que tal é o valor que conforma todos os ramos do direito” 240.
Justa é a observação de RENAN LOTUFO de que “o novo Código Civil veio
como instrumento de concretização de valores constitucionais, genéricos e
abstratos. É o veículo para que haja a operatividade do direito, que é um dos
princípios que nortearam o Prof. MIGUEL REALE na condução dos trabalhos da
comissão elaboradora do projeto do código. A maior proximidade do código com o
240 MORAES, Maria Celina Bodin. A Caminho de um Direito Civil Constitucional, in WWW.idcivil.com.br/pdf/biblioteca 4.pdf, artigo publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991, publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC - Rio.
119
fato social precisa passar, todavia, por maior concreção ainda e atingir a
individualização do caso concreto, o que se dará com a atividade judicial. A
alteração dos princípios fundamentais, com a introdução da eticidade, da
socialidade, da operatividade, referidos pelo Prof. MIGUEL REALE, resulta nas
formulações legais relativas à boa-fé objetiva no âmbito dos negócios jurídicos,
como na função social do contrato e da propriedade, o que se concretizará na
e 1988 no domínio
das relações civis, a partir da colocação da dignidade da pessoa humana como um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil e que, ao contrário dos juristas
medida em que o juiz, mediante a prévia atividade da parte suscitando o
pronunciamento judicial, ao valorar os fatos comprovados, venha a dar efetividade
às novas formulações. Ao dar conteúdo concreto aos valores ideais previstos, da
dignidade do ser humano, quanto da solidariedade social, a atividade judicial terá um
papel muito maior do que o que lhe fora conferido no sistema da mera exegese” 241.
Após demonstrar a participação eminente da Constituição d
alemães denominados pandectistas que pretendiam resolver todos os problemas
jurídicos somente diante de categorias jurídicas – tal como se dá com o Código Civil
alemão de 1900 (BGB) – o Prof. MIGUEL REALE acentua que os elaboradores do
vigente Código optaram pela compreensão do Direito em função de princípios
jurídicos e metajurídicos, como os da eticidade e da socialidade.
241 LOTUFO, Renan. A responsabilidade civil e o papel do juiz, in Responsabilidade Civil – Estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo de Camargo Viana, Coord. Rosa Maria Andrade Nery e Rogério Donnini, RT, São Paulo, 2009, p. 459.
120
Da aplicação concreta desses princípios e mudança de perspectiva, e em
razão dessa complementaridade se explica a crescente convergência do Direito
Público e Privado, “não tendo razão de ser o primado de um ou de outro, pois ambos
compõem o processo dialético da positividade jurídica através da história,
E no domínio da liberdade de contratar, arremata: “Cumpre ainda observar um
ponto relevante que é a proclamação pela Constituição logo no Art. 1º da “livre
iniciativa” como um dos fundamentos da República, ao mesmo tempo que, no Art.
37, exige que o exercício do poder pela administração pública deve obedecer aos
rincípios de moralidade, legalidade e impessoalidade. Essa dupla exigência
obedecendo a diretrizes emergentes dos valores eminentes que caracterizam cada
civilização, e que formam o que denomino “invariantes axiológicas”. A principal delas
é a idéia da pessoa humana, em meus livros apresentada como “valor fonte” de
todos os valores. Nada de extraordinário que seja ela o valor básico de todo o
ordenamento jurídico, sobretudo do civil” 242.
p
repercute no Código Civil, cujo art. 421 consagra a “liberdade contratual”, mas
condicionada à “função social do contrato” e pela “boa-fé por parte dos contratantes.
Dessarte, a ambivalência da liberdade e dos seus limites ético-jurídicos está
na base da Constituição e do Código Civil, em uma sintonia que constitui apanágio
do ordenamento civil pátrio.
242 REALE, Miguel. A Constituição e o Código Civil, artigo publicado em 8.11.03 in. http://www/miguelreale.com.br/artigos/constcc.htm, cópia obtida em 28.11.2009.
121
Como observa ROGÉRIO DONNINI, com apoio em MIGUEL REALE, a função
social do contrato é consectário das determinações constitucionais relativas à função
social da propriedade e o ideal de justiça deve estar presente na ordem econômica.
O princípio superior da Constituição Federal – a dignidade da pessoa humana, ou,
como preconiza esse jurista, a cláusula geral de dignidade da pessoa humana, nada
mais é que o respeito à dignidade de todas as pessoas e impõe um comportamento
a atitude compatível com a concepção social, seja no contrato
(art. 421 do Código Civil), seja na propriedade (art. 1.118, § 1º do Código Civil). O
princípio da igualdade deve ser visto como um princípio de justiça social e tem por
finalidade realizar a igual dignidade do ser humano para que seja efetivada a justiça
social estabelecida na cabeça do art. 170 da Constituição Federal. Os princípios de
correto, equânime, proporcional, ético, na realização de qualquer negócio jurídico.
Desse princípio resulta a cláusula geral de boa-fé objetiva constante do art. 422 do
Código Civil a ordenar um comportamento ético entre os contratantes, atos que não
transgridam a boa-fé, a probidade e função social do contrato. Agir de acordo com o
princípio da dignidade da pessoa humana, é, a seu ver, o mesmo que atuar baseado
na ética243.
Decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana, segundo DONNINI,
os princípios da solidariedade e da igualdade que são verdadeiros instrumentos da
efetiva proteção da dignidade humana. A solidariedade, prevista no art. 3º, I da
Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro está
vinculada às cláusulas gerais, uma vez que buscam o comportamento solidário entre
as partes, ou seja, um
243 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, São Paulo, 2004, p. 116.
122
solidariedade e da igualdade tem por finalidade o desenvolvimento e o respeito à
pessoa humana. Portanto, não há justiça social com a ruptura, numa relação
jurídica, dos deveres impostos nas cláusulas gerais de boa-fé objetiva e função
social do contrato244.
Gradativamente, de acordo com a aguda observação de LUIZ TADEU
BARBOSA SILVA, “a sociedade moderna vem rompendo com certos dogmas,
nascendo uma concepção social do contrato, como tendência moderna, inclusive no
âmbito constitucional. É o direito como instrumento de conformação social, como
ilustra CANOTILHO. Para essa nova concepção, não só o momento da
manifestação da vontade (consenso) é o que importa; importam também os efeitos
do contrato na sociedade. Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado
nas relações contratuais, no intuito de relativiz
ar o antigo dogma da autonomia da
vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo
paradigma, notadamente o princípio da boa-fé objetiva. Tem sido uma constante a
revisão dos contratos, tanto para coibir abusos quanto para adequá-lo à sua função
social. Lembra HELOISA CARPENA que ao indivíduo serão reconhecidos direitos,
poderes e faculdades na medida em que venham a contribuir com o bem estar da
coletividade, que sejam socialmente úteis” . 245
O novo Código Civil, segundo esse autor, “reflete um direito contratual
reestruturado. Celebra a primazia dos chamados valores plurais ou coletivos em
244 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, São Paulo, 2004, p. 117. 245 SILVA, Luiz Tadeu Barbosa. Da Ação de Adjudicação Compulsória resultante do Contrato Preliminar de Compromisso de Compra e Venda, in Revista dos Tribunais, RT, São Paulo, 2006, vol. 845, p. 54.
123
face dos equivalentes axiológicos do plano individual. Está concentrado na função
social do contrato (art. 421 do Código Civil) e na proteção do hipossuficiente na
relação contratual (art. 423 do Código Civil). Em sua nova concepção, diz MIGUEL
REALE ser o contrato um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele
que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato
vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida. O poder da
ontade humana, criadora de obrigações, sempre se pautou no princípio da
aqueles que o
zeram”, mereceu de RIPERT a crítica de parecer extraordinariamente forte a
5.2 Os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais
indicassem, também de forma precisa, todas as suas conseqüências formando uma
espécie de sistema fechado. A técnica legislativa moderna se faz por meio de
v
autonomia da vontade. O Código Civil Francês de então, ao dispor em seu art. 1.134
que “as convenções legalmente formadas tem o valor de leis para
fi
fórmula preconizada por seu legislador” 246.
como elementos para interpretação dos contratos
Em apontamentos gerais sobre os contratos no Código Civil, e após
esclarecer que não mais se discute a necessidade da manutenção de um direito civil
codificado porque isto traz unidade e ordenação ao sistema jurídico do Direito Civil,
observa NELSON NERY JÚNIOR que, em pleno século XXI não seria mais
admissível legislar por normas que definissem precisamente certos pressupostos e
246 SILVA, Luiz Tadeu Barbosa. Da Ação de Adjudicação Compulsória resultante do Contrato Preliminar de Compromisso de Compra e Venda, in Revista dos Tribunais, RT, São Paulo, 2006, vol. 845, p. 54.
124
conceitos legais indeterminados e cláusulas gerais que dão mobilidade ao sistema,
flexibilizando a rigidez dos institutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo.
omo um Código Civil, pela sua magnitude, não pode fundar-se apenas em
áusu
las gerais para poder entender-se a dinâmica de funcionamento e
o regramento do Código Civil no encaminhamento e nas soluções dos problemas
C
cl las gerais, o método casuístico também foi bastante utilizado, notadamente no
direito das obrigações, de modo que podemos afirmar que o Código Civil seguiu
técnica legislativa mista, com base nos métodos da casuística, dos conceitos legais
indeterminados e das cláusulas gerais247.
O Código Civil está impregnado de cláusulas gerais, que se caracterizam
como fonte de direito e de obrigações. É necessário, portanto, conhecer-se o
sistema de cláusu
d
que o direito privado apresenta. Há verdadeira interação entre cláusulas gerais, os
princípios gerais de direito, os conceitos legais indeterminados e os conceitos
determinados pela função. A solução dos problemas reclama a atuação conjunta
desse arsenal248.
Conceitos legais indeterminados são definidos por NELSON NERY JUNIOR
como “palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente
vagos, imprecisos e genéricos, e por isso mesmo esse conceito é abstrato e
lacunoso. Sempre se relacionam com a hipótese de fato posta em causa. Cabe ao
juiz, no momento de fazer a subsunção do fato à norma, preencher os claros e dizer
247 NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais – in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p. 422/423. 248 NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p.425/426.
125
se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o conceito legal
indeterminado (unbestimmte Gesetzbegriffe), a solução já está preestabelecida na
própria norma legal, competindo ao juiz apenas aplicar a norma, sem exercer
nenhuma função criadora. Distinguem-se das cláusulas gerais pela finalidade e
eficácia. A lei enuncia o conceito indeterminado e dá as consequências advindas.
Como exemplos aponta o autor: ordem pública e bons costumes, para caracterizar a
ilicitude da condição que os ofenda (CC, 122); atividade de risco, para caracterizar
responsabilidade objetiva (CC, 251, parágrafo único); perigo iminente, como
exclusão de ilicitude do ato (CC, 188, II); divisão cômoda, como critério para
alienação de imóvel em condomínio que não a comportar (CC, 2.019); coisas
necessárias à economia doméstica, que dispensam a autorização conjugal para
erem compradas, ainda que a crédito (CC, 1643, I); necessidade imprevista e
de previsão, pois o juiz deverá dar concreção aos referidos conceitos, atendendo às
s
urgente, como causa autorizadora da suspensão, pelo comodante, do uso e gozo da
coisa emprestada (CC, 581). O preenchimento de sua indeterminação será feito pelo
juiz por meio de valores éticos, morais, sociais e jurídicos, o que transforma o
conceito legal indeterminado em conceito determinado pela função249.
Os conceitos legais indeterminados se transmudam em conceitos
determinados pela função que tem de exercer no caso concreto. Servem para
propiciar e garantir a aplicação concreta. Servem para propiciar e garantir a
aplicação correta, eqüitativa do preceito ao caso concreto. Nos conteúdos das idéias
de boa-fé (CC, 422), bons costumes (CC, 187), ilicitude (CC, 186), abuso do direito
(CC, 187) etc., está implícita a determinação funcional do conceito, como elemento
249 NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p. 427/428.
126
peculiaridades do que significa boa-fé, bons costumes, ilicitude ou abuso de direito
no caso concreto. Vale dizer, o juiz torna concretos, vivos, determinando-os pela
nção, os denominados conceitos legais indeterminados. E conclui NELSON NERY
ao juiz vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão
berdade para decidir. São formulações contidas na lei, de caráter significativamente
fu
JÚNIOR com apoio em LARENZ, que são, na verdade, o resultado da valoração dos
conceitos legais indeterminados, pela aplicação e utilização, pelo juiz, das cláusulas
gerais250.
Já as cláusulas gerais são normas orientadoras, sob forma de diretrizes,
dirigidas precipuamente
li
genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz, autorizado para
assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem
natureza de diretriz251.
Para JUDITH MARTINS COSTA, as cláusulas gerais constituem o meio
legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de
princípios valorativos expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de
standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das
normativas constitucionais e de diretivas econômicas sociais e políticas, viabilizando
a sua sistematização no ordenamento positivo. Explicitando mais o conceito, aduz a
autora: “Estas normas (cláusulas gerais) buscam a formulação da hipótese legal
mediante o emprego de conceitos cujos termos tem significados intencionalmente
250NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p.428. 251 NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p.428.
127
imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados. Em outros
casos, verifica-se a ocorrência de normas cujo enunciado, ao invés de traçar
punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é intencionalmente desenhado
omo uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a
stabelecer uma melhor precisão lógico analítica. E em nota de rodapé, afirma
ue, nesse sentido parece convergir o pensamento de GUSTAVO TEPEDINO
c
incorporação de valores, princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente
estrangeiros ao corpus codificado, bem como a constante formulação de novas
normas, são as chamadas cláusulas gerais” 252.
Observa ALBERTO GOSSON JORGE JUNIOR que para alguns juristas, a
aplicação dos princípios poderia ser feita independentemente da existência de uma
norma legal de caráter genérico, como as cláusulas gerais, consoante opinião de
CLOVIS DO COUTO E SILVA, no que diz respeito ao princípio da boa-fé objetiva.
Para outros não há que se confundir a norma que contém um princípio em seu bojo
(caso da boa-fé) com a identificação pura e simples da cláusula geral com as
normas de princípios ou simplesmente com os princípios. Tudo isto faz parecer,
todavia, que a assimilação recíproca entre cláusulas gerais e princípios, desde que
respeitada a hierarquia normativa, vem facilitar a tarefa do intérprete, já bastante
dificultada na identificação e dimensionamento dos valores da norma, não
parecendo aconselhável estabelecer distinções conceituais, ainda que a pretexto de
se e
q
quando denomina o princípio fundamental de dignidade da pessoa humana,
p. 40. 252 Apud JORGE JUNIOR, Alberto Gosson, Cláusulas Gerais no Novo Código Civil, Saraiva: São Paulo, 2004,
128
insculpido no inciso III do art. 1º da Constituição Federal de 1988, “cláusula geral”
253.
Com apoio na doutrina alemã, NELSON NERY JUNIOR afirma que a função
das cláusulas gerais é de dotar o sistema interno do Código Civil de mobilidade,
mitigando as regras mais rígidas, além de atuar de forma a concretizar o que se
encontra previsto nos princípios gerais de direito e nos conceitos legais
indeterminados. Prestam-se, ainda, para abrandar as desvantagens do estilo
xcessivamente abstrato e genérico da lei. Para tanto, as cláusulas gerais passam
ex officio” pelo juiz. Com essa
plicação de ofício não se coloca o problema de decisão incongruente com o pedido
xtra,
e
necessariamente pelos conceitos determinados pela função. O juiz exerce papel de
suma importância no exercício dos poderes que derivam das cláusulas gerais,
porque ele instrumentaliza, preenchendo com valores, o que se encontra
abstratamente contido nas cláusulas gerais254.
E mais adiante destaca afirmando que “cláusula geral não é princípio,
tampouco regra de interpretação; é também norma jurídica, isto é, fonte criadora de
direitos e obrigações. Tem função instrumentalizadora. É norma de ordem pública
(v.g. CC, 2035, parágrafo único), deve ser aplicada “
a
(e ultra ou infra petita), pois o juiz, desde que haja processo em curso, não
depende de pedido da parte para aplicá-la a uma determinada situação. Cabe ao
253 JORGE JUNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas Gerais no novo Código Civil, Saraiva: São Paulo,
ndes, Gilmar rreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p.429.
2004, p. 41. 254 NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, MeFe
129
juiz, no caso concreto, preencher o conteúdo da cláusula geral, dando-lhe a
conseqüência que a situação completa reclamar” 255.
De outra parte, vaticina ALBERTO GOSSON JORGE, parecer muito provável
que a doutrina e a jurisprudência venham a estender o conteúdo da regra do art. 422
do Código Civil para as fases pré-contratual e pós-contratual. Na esteira da
experiência alemã, positivada no § 242 do BGB, a disposição poderá ter a sua
incidência ampliada para todo o direito obrigacional e não ficar restrita apenas ao
campo dos contratos256.
Nesse sentido, a justificação de MENEZES CORDEIRO, ao ponderar que “a
enumeração dos factos-fonte dos deveres de actuar de boa-fé resulta dos estudos
efectuados: o início de negociações preliminares, a existência de um contrato, ou da
sua aparência, a conexão de terceiro com uma obrigação ou o desaparecimento de
um negócio. Todos eles tem em comum a verificação de um relacionar entre duas
ou mais pessoas, através duma dinâmica que pressupõe uma conjugação de
esforços que transcende o estrito âmbito individual. O Direito obriga, então, a que,
nessas circunstâncias, as pessoas não se desviem dos propósitos que, em
ponderação social, emerjam da situação em que se acham colocadas: não devem
assumir comportamentos que a contradigam – deveres de lealdade – nem calar ou
falsear a actividade intelectual externa que informa a convivência humana – deveres
de informação. Na constância de um contracto, o dever de informação poderá ser
255NERY JUNIOR, Nelson, Contratos no Código Civil, Apontamentos Gerais, in O Novo Código Civil, Homenagem ao Professor Miguel Reale, Coordenadores Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, Martins Filho, Ives Gandra da Silva, 2ª. Ed. LTR, São Paulo, 2006, p.429. /430 256 JORGE JUNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas Gerais no ovo Código Civil, Saraiva, 2004, p. 85 e nota 217 em que noticia Projeto de Lei de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, dando nova redação ao art. 422 para estender a cláusula geral de boa-fé às fases pré e pós contratual.
130
mais intenso do que in contrahendo ou post factum finitum. Mas nesta base, não se
alcança a materialidade desta fenomenologia. O contrato é fonte efectiva dos
everes contratuais; no entanto, para os efeitos da aplicação da boa-fé – art. 762º, 2
cia de um contrato comum. Os critérios para a
eterminação material dos deveres de comportamento devem ser procurados
outras latitudes” 257.
A partir desse entendimento da cláusula geral de boa fé, torna-se inegável a
5.3 O pré-contrato no Código Civil
Conquanto já admitida a figura do pré-contrato no direito anterior,
d
– ele funciona como mero facto jurídico em sentido estrito. Daí que, por hipótese, em
negociações delicadas, os deveres de lealdade e informação possam ser bem mais
intensos do que na vigên
d
n
sua aplicação nas fases pré e pós contratual, para fazer valer a confiança que deve
existir entre os contratantes.
especialmente a partir do Dec. Lei n. 58, de 1937 que regulou a eficácia do contrato
de compromisso de compra e venda de imóvel loteado, e a doutrina dele se
ocupasse258, o certo é que, no direito positivo brasileiro o seu tratamento normativo
em caráter geral se dá com os arts. 462 a 466 do Código Civil, sob o título “Do
contrato preliminar”.
257 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa-Fé no Direito Civil, 3ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2007, p. 646/647. 258 AZEVEDO, José Osório de. Compromisso de Compra e Venda, 4ª edição, Malheiros, São Paulo, 1988; CREDIE, Ricardo Arcoverde. Adjudicação Compulsória, 9ª edição, Malheiros, São Paulo, 2004, exemplificativamente.
131
Em estudo de direito comparado, ALFREDO CALDERALE, observa que “o
contrato preliminar já era disciplinado em algumas leis especiais relativas ao setor
imobiliário, e, tendo em conta essa experiência, o legislador, ao generalizar o
instituto, estabeleceu que esse, contendo os requisitos de substância e forma do
contrato definitivo (art. 462) se desprovido de cláusula de arrependimento (art. 463)
e se transcrito no registro competente (art. 463, parágrafo único) dá a qualquer das
partes o direito de exigir a outorga do definitivo (art. 463). Consequentemente, o juiz,
rovocado por um dos contraentes, com sua sentença “pode substituir a vontade da
mais adequado seria chamá-lo contrato-promessa ou contrato
romessa de negócio. Aponta, também, o entendimento de JOÃO CALVÃO DA
tais definições com o art. 410º do Código Civil português, ao estabelecer que o
p
parte da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar”,
salvo se isto não for possível pela natureza da obrigação (art. 464), um mecanismo
que respeitada a diversidade de formulação da norma confere substancialmente
coercibilidade ao contrato preliminar pela forma específica, como claramente emerge
do art. 292 do Código Civil italiano” 259.
Em recente trabalho, VALTER FARID ANTONIO JUNIOR pondera que para
distingui-lo das tratativas ou puntuazione a que se referia GABBA, com apoio em
ANA PRATA sugere que o contrato preliminar melhor seria denominado de
“promessa de contrato” enquanto tradução mais precisa da expressão pactum de
contrahendo, donde
p
SILVA, que na mesma direção do pensamento de ANTUNES VARELA, acrescentou
ao conceito a possibilidade de sua celebração na forma unilateral, coadunando-se
259 CALDERALE, Alfredo. Diritto Privato e Codificazione in Brasile,, Dott. Giuffrè Editore, Milão, 2005, p. 355/356, em tradução livre. Em nota de rodapé destaca que a primeira parte do art. 2932 do Código Civil italiano dispõe: “se aquele que se obrigou a concluir um contrato descumpre a obrigação, a outra parte, se isto for possível e não seja excluído do título, pode obter uma sentença que produza os efeitos do contrato não firmado.”.
132
contrato-promessa corresponde à “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar
certo contrato” 260 .
Mais adiante, cita ANTUNES VARELA, afirmando que “o contrato promessa
cria a obrigação de contratar, ou mais concretamente, a obrigação de emitir a
declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. A obrigação
assumida por ambos os contratantes, ou por um deles se a promessa é unilateral,
tem assim por objeto uma prestação de fato positivo, um facere oportere. E o direito
correspondente atribuído à outra parte traduz-se numa verdadeira pretensão”. A
existência do contrato preliminar, a seu ver, tem por fundamento a autonomia
privada das partes contratantes. Sua tipicidade que se mostra presente, v.g., nos
Códigos Civis italiano, português, espanhol e brasileiro, não constitui óbice à sua
celebração. Desde que as partes observem as normas de ordem pública vigentes,
os requisitos gerais de validade do negócio jurídico, capacidade das partes, licitude
de seu objeto e forma prescrita em lei, quando exigida) e específicos do contrato
rojetado gozam de legitimidade par auto-regulamentar seus interesses, de acordo p
com as necessidades negociais, Baseadas na liberdade de contratar poderão
estabelecer pactos obrigatórios voltados à celebração de um futuro negócio jurídico
que, pelas mais variadas razões, não pode ser celebrado naquele dado momento”
261.
Desse entendimento não discrepa ARNALDO RIZZARDO, lembrando que,
embora introduzido no Código Civil de 2002, a sua previsão já constava do antigo
260 ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de Compra e Venda, Atlas, São Paulo, 2009, p. 7. 261 ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de Compra e Venda, Atlas, São Paulo, 2009. p. 8/9.
133
anteprojeto do Código das Obrigações. No entanto, era admitido no direito,
considerado mais como uma declaração unilateral de vontade, tanto que os arts.
466- B e 466 – C do Código de Processo Civil, na redação da Lei n. 11.232, de
22.12.2005, se dirigem a qualquer promessa de vontade, ou de concluir uma relação
rídica de fundo patrimonial. Já o contrato preliminar relativamente à aquisição de
o pactum de contraendo, pelo qual se assume a obrigação de
ontratar em um certo momento e em determinadas condições, criando o contrato
preliminar uma ou várias obrigações de fazer, mesmo quando o contrato definitivo
originar obrigação de dar.” Todavia, não cria uma situação definitiva, porque outro
ju
imóveis está regulado pelo direito positivo, através de leis especiais e do Código
Civil, como o Decreto Lei n. 38, de 1937 (promessa de venda de imóveis não
loteados), a Lei n. 6.766, de 1979 (promessa de compra e venda de imóveis
loteados), e os arts. 1417 e 1418 do Código Civil (direito real do promitente
comprador). 262
Afirma ser comum essa forma de emitir a vontade para produzir efeito jurídico
e exemplifica com a promessa de contratar um seguro, de adquirir um bem, de
efetuar uma doação, de se alugar um imóvel, de se arrendar uma área de terras, de
se efetuar um empréstimo, de se prestar uma garantia, ou qualquer outro fato, enfim,
de concluir um negócio num prazo pré-estabelecido263.
A promessa é conceituada como o contrato no qual as partes se obrigam a
realizar posteriormente um contrato definitivo, sendo correta a definição de MARIA
HELENA DINIZ: “É
c
262 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de
o, Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de aneiro, 2008, p. 191.
Janeiro, 2008, p. 191. 263 RIZZARDO, ArnaldJ
134
contrato surgirá, que consolidará as estipulações feitas nesse contrato preliminar,
feito mais no sentido de manifestação de intenções, vinculando as vontades a um
objeto comum264.
Dentro da ampla liberdade de estabelecer disciplina de seus interesses
comuns, afirma PAULO NADER que “as partes podem firmar uma promessa de
contrato, que é manifestação bilateral de vontade e que não se confunde com a
policitação, que é negócio jurídico unilateral. Pela promessa, duas ou mais partes se
obrigam à celebração de um contrato futuro, devendo constar do ato negocial os
dados essenciais que haverão de ser observados no negócio jurídico. Se as partes
prometem, reciprocamente, a prática de um contrato de compra e venda, mas sem a
indicação do objeto, tal promessa não produzirá qualquer efeito jurídico. Para a
alidade da promessa de contrato é essencial a indicação da natureza do negócio a
a obter o suprimento
dicial. Faz parte da liberdade contratual, entretanto, a adoção de cláusula de
v
ser realizado, bem como as suas condições básicas. Um dos requisitos de validade
dos negócios jurídicos em geral, segundo dispõe o art. 104 do Código Civil, é a
determinação ou determinabilidade do seu objeto.
Se, todavia, as partes se acham vinculadas e na obrigação de celebrarem, no
momento previsto, o contrato definitivo. Negando-se uma das partes a cumprir a
promessa, à outra caberá o ajuizamento de ação, visando
ju
arrependimento, mediante arras penitenciais (art. 420 do Código Civil). Embora a
264 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 191.
135
promessa de compra e venda seja a modalidade mais usual, outras poderão ser
praticadas, como as de comodato, permuta, locação etc.”265.
O contrato preliminar é, pois, um contrato em espécie, completo e perfeito,
No tocante aos requisitos ante o direito positivo, sem divergir da exposição de
ecessárias autorizações, se o caso, e ainda o seu objeto há de ser lícito, possível e
determinado ou determinável267.
tendo superado a fase das tratativas, o que cria uma relação obrigacional própria.
Nele se apresenta o fenômeno da unidade da vontade contratual a que se refere
RUGGIERO, para quem o fundamento da obrigatoriedade está na perda da
autonomia da vontade manifestada por cada uma das partes, porque fundindo-se
dão lugar a uma nova vontade unitária, ou seja, a vontade contratual 266.
CALDERALE acima transcrita, acrescenta que dispensa-se unicamente a forma
destinada para o contrato definitivo e esta há de ser observada quando da
celebração deste. As partes hão de ter capacidade, devem ser concedidas as
n
Relativamente à obrigatoriedade do registro prevista no art. 463 do Código
Civil, entende a doutrina que este não é requisito essencial do contrato preliminar,
ou promessa de contratar, sendo necessário apenas para valer contra terceiros268.
265 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 16. 266 RUGGIERO, Roberto, Instituições de Direito Civil, v. 3,.p. 303, apud SILVA, Luiz Tadeu Barbosa. Da Ação de Adjudicação Compulsória resultante do Contrato Preliminar de Compromisso de Compra e Venda, in Revista dos Tribunais, RT, São Paulo, 2006, vol. 845, p. 55. 267 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 192/193. 268 BDINE JUNIOR, Hamid Charaf. Compromisso de Compra e Venda em face do Código Civil de 2002: Contrato Preliminar e Adjudicação Compulsória. in Revista dos Tribunais, RT, São Paulo, 2006, vol. 843, p. 68.
136
5.4 Contrato preliminar e promessa de doação
Incisiva é a afirmação de EDUARDO ESPÍNOLA: “a promessa de doação é
admitida como nos contratos, em geral; mas em algumas legislações como a alemã
e a suíça, que a consideram especialmente, pode deixar de ser cumprida quando se
verifiquem determinadas circunstâncias” e em notas de rodapé explicita que o
Código alemão admite que o doador recuse a execução de uma promessa de
doação, quando, em consideração de suas obrigações, se vê impossibilitado de
cumpri-la, sem por em risco a sua manutenção, ou a execução das obrigações
alimentares que lhe incumbem legalmente (art. 519), o mesmo ocorrendo,
250 do Código suíço das Obrigações a
269
caráter real do contrato com base do art. 1.165 do Código de 1916270,
substancialmente com o disposto no art.
prever a revogação da promessa e a recusa de sua execução quando existam
motivos para exigir a restituição de bens no caso de doação manual; ou se depois
da promessa sua situação financeira se modifique de tal sorte que a doação torne-se
extraordinariamente onerosa para o doador; ou, se sobrevenham, depois da
promessa, novos deveres de família ou se tornem sensivelmente mais onerosos .
PONTES DE MIRANDA, ao cuidar da matéria, enfatizando a necessidade de
estabelecer precisões, afirma que promessa de doação é promessa de contrato de
doação e que promessa de doação é contrato consensual de doação, e defende o
269 ESPINOLA, Eduardo. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista, Rio de Janeiro, 1956, p. 170/171. 270 Código Civil de 1916 – Art. 1.165 – Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita. – Código
s ou vantagens para o de outra. Civil de 2002 – Art. 538 – Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, pó liberalidade, transfere do seu patrimônio ben
137
substancialmente reproduzido no art. 538 do Código vigente271. E mais adiante, ao
cuidar da manifestação da vontade, volta a afirmar: “quem doa não promete doar:
á. Não há pretensão do outorgado por inadimplemento por parte do outorgante.
-se numa
oação coativa, se obrigado o promitente doador a dar cumprimento ao contrato
d
Quis dar, deu. Por isso mesmo, somente por dolo responderia em caso de vício do
direito ou do objeto. Se há promessa de doar, há pré-contrato. Tal solução do direito
brasileiro, que não afasta a doação consensual, mas promessa de doação, no direito
brasileiro, é promessa de contrato de doação272.
Após enumerar os argumentos e posições de autores contrários, acima
apontados, sustenta ARNALDO RIZZARDO que fortes razões surgem a favor da
admissibilidade da promessa de doação, mostrando ser falho o argumento de que
nesse caso a doação perderia a natureza de liberalidade, transformando
d
preliminar. Isto porque a liberalidade, como elemento essencial da doação, se
consuma justamente quando o proprietário promete doar livremente, sendo esse o
momento em que se forma o consenso quanto ao ânimo de liberalidade, ou ânimo
de doar pelo promitente doador e de aceitar, pelo promitente donatário273.
Esse autor, embora penda para a solução da indenização no caso do
descumprimento do pré-contrato, mas admitindo a execução específica nos casos
de promessa feita em acordos de separação de casal, destaca com KARL LARENZ,
que “este contrato, por criar uma obrigação de cumprir uma prestação, é um contrato
271 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 201/202. 272 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 229. 273 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 446.
138
obrigacional, unilateralmente vinculante. A doação está, nesta hipótese, já na origem
do crédito, como atribuição de um direito; esta atribuição se faz com
omprometimento do patrimônio do promitente porque cria uma obrigação que
E, com apoio em HEDEMANN, acena que no direito alemão, pelo menos é
imento. E
e conformidade com a regra geral dos pré-contratos, terá o promitente-doador
assumido uma obrigação de fazer, ficando o promitente-donatário com o direito de
c
deverá ser cumprida com esse patrimônio. A prestação do objeto prometido não é
uma doação renovada, senão o cumprimento de uma obrigação; é, não obstante,
uma “atribuição gratuita” porque a relação de causa jurídica sobre a qual se baseia
sua validade jurídica (no sentido das normas sobre o enriquecimento injusto) é uma
doação” 274.
admissível a indenização pelo descumprimento do contrato. E conclui: “de modo que
se apresenta perfeitamente normal a promessa de doação de um bem, formando-se
um vínculo unilateral do promitente relativamente ao compromissário. Ao assumir a
avença, cria-se o liame da responsabilidade, que permite ao donatário impor o
cumprimento, ou, pelo menos, a indenização” 275.
Todavia, mais segura parece ser a posição de NATAL NADER, citado por
RIZZARDO: “Se o objeto de todo contrato preliminar é a celebração de um contrato
definitivo, nada impede que se faça um pactum de contrahendo, visando à
consecução de uma futura doação, eis que isto não ofende qualquer princípio de
ordem publica, nem existe qualquer preceito legal proibitivo de tal proced
d
274 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 446. 275 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos – Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 452/453.
139
exigir o seu cumprimento, em caso de inadimplemento. Quanto à característica da
espontaneidade, indispensável à doação, não se poderá dizer ter ela deixado de
configurar-se, mas sim que a sua manifestação já se havia operado, quando o
promitente-doador, livremente, se obrigou através da promessa feita” 276.
No mesmo sentido, a lição de PAULO NADER, para quem a espontaneidade
eve estar presente no pactum de contrahendo, qualquer que seja a modalidade
Outro enfoque, à vista da promessa de doação feita em acordo de separação
Disto resulta que havendo perfeita individuação do objeto, as condições para
d
contratual. É aquele momento que as partes se vinculam jurídica e moralmente. O
contrato definitivo é simples decorrência do ajuste anterior e não importa se a
declaração de vontade não coincida com a razão íntima das partes no momento ou
seja uma consequência da pressão do contrato anterior277.
consensual, é dado por SÍLVIO RODRIGUES, que admite a sua validade ao
argumento de que não se está prometendo doar, mas sim a fazer um pagamento, e
a matéria se disciplina na forma das obrigações de dar coisa certa (arts. 233 e
seguintes do Código Civil). 278
a sua execução, a aceitação que torna perfeito o contrato preliminar, existe
–
ovo Código Civil, Saraiva, São Paulo, 2002, volume 3, p. 211.
276 NADER, Natal. Promessa de Doação – Doação inoficiosa, in AJURIS, n. 16, Revista da Associação dos Juízes do RGS, Porto Alegre, 19179, p. i26, cit in RIZZARDO, Arnaldo. ContratosLei n. 10.406, de 10.01.2002, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 453. 277 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 289. 278 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade, 28ª edição atualizada de acordo com o n
140
plenamente a obrigação de celebração do contrato definitivo de doação, ressaltando
6 INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO PRELIMINAR DE
seja, quando os seus
teresses não estiverem sendo levados em consideração ou quando o
que a forma não é solene e o registro não se faz necessário279.
PROMESSA DE DOAÇÃO
Nos comentários ao art. 538 do Código e se reportando a trabalho
monográfico, MARIA CECILIA BODIN DE MORAES sugere que, “ao se examinar a
doação, se abandone a concepção moral, quase poética, de “ato de favor”, de
benemerência ou generosidade e se passe a pensá-la em termos contratuais, ou
seja, em situações nas quais o doador tem interesses concretos a realizar” 280.
A partir de tal postura, propõe que a promessa de doação deve ser vista como
relação jurídica patrimonial, à luz dos princípios constitucionais que permeiam a
atividade econômica privada e o regime contratual, dos quais decorrem os princípios
da boa-fé objetiva e da função social do contrato. O doador tem interesses
relevantes na doação, tanto é verdade que só se pode revogá-la nos casos
expressos em lei, de inexecução do encargo ou ingratidão, ou
in
comportamento do donatário atingir os direitos fundamentais do doador ou de sua
família. Disto resulta que o descumprimento da promessa de doação associa-se não
279
Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VIII, p. 105, anotando que de acordo com o Desembargador gaúcho Décio Antonio Erpen, a promessa de doação não pode ser registrada,
CAPANEMA DE SOUZA, Silvio. Comentários do Código Civil – Coordenação Sálvio de Figueiredo
porque inadmissível, na medida em que não encerra um direito real. E não amoldada ao elenco do inciso I do art. 167 da Lei 6.015/73. 280 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 217.
141
à vontade do doador, mas à vontade declarada no momento em que foi celebrada a
promessa vinculativa, suscitando a legítima confiança no donatário quanto ao seu
cumprimento e avocando a cláusula geral de boa-fé objetiva.
Admitir a possibilidade de descumprimento da promessa em virtude da
necessidade de permanência do animus donandi no momento em que se celebra o
ontrato prometido, e, consequentemente admitir a possibilidade de arrependimento,
c
parece a MARIA CECILIA BODIN DE MORAES, que “dar guarida a promessas
descumpridas, quando a configuração é toda ela contratual, não parece, na
atualidade, um comportamento eticamente adequado, ou moralmente aceitável” e
mais adiante conclui: “juridicamente, parecerá estranho afirmar que não há
manifestação de vontade de doar quando se manifestou essa mesma vontade no
momento da celebração do contrato preliminar. Não por isso a vontade deixou de
ser espontânea; ela o foi quando da declaração.” 281
Indaga ainda essa jurista, se seria necessário garantir ao promitente doador a
faculdade do arrependimento e se a liberalidade seria compatível com a coatividade
ínsita aos contratos preliminares, respondendo: “Não houve coatividade, pois
quando o promitente-doador expressou a sua vontade, o fez livremente e sem
nenhuma coação, nullo iure cogente, e de livre e espontânea vontade decidiu que o
promissário-donatário deveria receber, seja pelo motivo que for, mais tarde, em um
momento futuro, uma atribuição patrimonial sem contraprestação. Quis o doador,
então desistir: pensou melhor e não obstante tenha declarado, por escrito, sua livre
vontade de enriquecer o donatário, voltou atrás. Deve o ordenamento jurídico dar
281 In, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 218.
142
garantia a este seu arrependimento? Se o contrato preliminar tiver previsto a
cláusula, tudo estará resolvido. Mas se não houver cláusula de arrependimento, é
porque as partes decidiram que ela não seria necessária, porque não haveria
arrependimentos. O doador é agente capaz, pessoa adulta. De outro lado, está o
onatário, confiante de que receberá bem que lhe foi prometido. Fez planos, já
icidade, em torno do qual devem gravitar todas as relações jurídicas
brigacionais, permitir a alguém que, conscientemente assumiu uma obrigação de
d
decidiu o que fará com a coisa, cumprirá o encargo estipulado no interesse do
doador, se for necessário. Estará ele recebendo algo “de graça”? dificilmente alguém
recebe uma doação “à toa”, sem que algo tenha sido feito em prol do doador. Os
motivo do doador podem ser os mais diversos, mas a causa da doação é sempre
única, como são as causas de cada um dos contratos: a obrigação de transferir um
bem, ou um direito, por liberalidade, isto é, sem uma contraprestação patrimonial”
282.
FÁBIO OLIVEIRA DE AZEVEDO, após traçar minudente estudo sobre a
corrente negativista da promessa de doação, poderá não parecer compatível com o
paradigma de et
o
realizar um futuro contrato de doação em proveito de alguém, venha a negar e
recusar o seu cumprimento, frustrando a legítima expectativa criada na pessoa que
acreditou que se tornaria donatária, o que atinge a sensibilidade ética e jurídica,
especialmente se considerado um cenário constitucional e civil pós-positivista. O
exercício dos direitos subjetivos encontra limites no ordenamento jurídico positivo,
282 MORAES, Maria Celina Bodin de, Notas sobre a Promessa de Doação, p. 21, in, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 218.
143
um dos quais o respeito ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 187 do
Código Civil283.
Para este autor, o abuso no exercício dos direitos subjetivos pode surgir de
três maneiras: por um desleal exercício de direitos, por um desleal não exercício dos
direitos e pela desleal constituição de direitos. A terceira forma de exercício abusivo,
ou seja, a desleal constituição de direitos justifica a impossibilidade daquele que
prometeu realizar uma doação recusar o cumprimento da promessa, em razão da
deslealdade que caracteriza a frustração da expectativa que criou para o outro
contratante. E conclui “consiste o tu quoque num importante corolário da boa-fé
objetiva (teoria dos atos próprios) onde quem viola uma determinada norma jurídica
ão pode exercer situação jurídica de vantagem que essa norma lhe atribuiu. Ele
as
obrigações e a decadência do voluntarismo jurídico fundado nas teorias da vontade
n
diferencia-se do venire contra factum proprium, pois neste não há qualquer
irregularidade nos dois comportamentos, ao menos se considerados isoladamente,
surgindo a irregularidade na ruptura da confiança despertada em terceiros e
frustrada pela contradição. No tu quoque a primeira conduta é irregular, ou seja,
alguém fere um comando legal, como prometer algo em tese inexequível para
posteriormente pretender exigir de outrem o seu acatamento, justificando o
descumprimento de sua promessa284.
Nos idos de 1967, discorrendo sobre as transformações do direito d
283 AZEVEDO, Fábio Oliveira de. Algumas questões de direito civil e de direito processual civil sobre o contrato preliminar, in Direito Contratual, temas atuais, Coord. De Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, São Paulo, 2008, p. 409. 284 AZEVEDO, Fábio Oliveira de. Algumas questões de direito civil e de direito processual civil sobre o contrato preliminar, in Direito Contratual, temas atuais, Coord. De Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, São Paulo, 2008, p. 409/410.
144
e da declaração ORLANDO GOMES aponta como reação a ele a teoria da confiança
ponto de
e admitir a responsabilidade de quem, por seu comportamento, suscitou em outra
gumento
entral da corrente que nega a possibilidade da promessa de doação reside, pois, do
contrário. E isto é congruente com a
láusula geral de boa-fé que resguarda a segurança das relações jurídicas.
lidades de doação acima examinadas.
no pensamento de GRÓCIO, para quem a vontade que se exteriorizou
suficientemente mediante palavras constitui declaração que se tem como verdade
frente ao declarante e com apoio em LEHMANN, sustenta que o elemento social,
representado pela confiança, cobra significação cada vez mais extensa, a
s
pessoa a justificada expectativa no cumprimento de determinadas obrigações285.
A par desses fundamentos, o ponto fulcral para o abandono do ar
c
ponto de vista do direito positivo, na excepcional e necessariamente estabelecida no
contrato preliminar, cláusula de arrependimento (art. 463 do Código Civil).
Disto decorre ser, em regra, irrevogável a promessa de doação, porque, não
há norma de ordem pública que disponha em
c
E mais, não se vislumbra razão relevante para distinguir entre a promessa de
doação pura e as demais moda
5 GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das Obrigações, 2ª edição, RT, São Paulo, 1980, p. 15/16 “Encontram-se as origens da teoria da confiança no pensamento de Grotius, para quem a vontade que se exteriorizou suficientemente mediante palavras constitui declaração que se tem como verdade frente ao declarante. Funda-se, assim, a teoria do negócio jurídico sobre as condições de compreensão e confiança (treu und glauben) que intervêm entre os homens. Observa Wieacker que se baseia na Ética social aplicada em vez de se fundar numa dogmática ou em
28
causalidades psicológicas. O elemento social, representado pela confiança, cobra significação cada vez mais extensa, a ponto de se admitir a responsabilidade de quem, por seu comportamento, suscitou em outra pessoa a justificada expectativa no cumprimento de determinadas obrigações. A própria invalidade do negócio jurídico, anulado em razão de vício de consentimento, decorre da confiança de que a ordem das relações jurídicas representa uma medida sensata ou exata sob o ponto de vista de uma comunidade. Desloca-se, em suma, o eixo da teoria do negócio jurídico, reduzindo-se o valor da vontade. O que decide, em suma, para os partidários dessa teoria, é a confiança determinada pela declaração. Ela é, segundo Santoro Passarelli, a aplicação consequente da predominância do momento social na admissão da autonomia privada.”.
145
Evidentemente, se, após a celebração da promessa de doação, restar caracterizada
alguma das hipóteses que levam à revogação ou à caducidade da doação, isto
impede a celebração do contrato prometido.
Do mesmo modo, em se tornando impossível a entrega do bem prometido em
virtude de sua perda ou perecimento, não há como exigir, por falta de objeto, o
umprimento da promessa de doação.
os e imprevisíveis que autorizam o devedor a pedir a resolução do
ontrato.
do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato
ue gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele
c
E aqueles casos apontados no direito comparado, relativos à impossibilidade
por mudança de fortuna ou superveniência de um agravamento de obrigações
familiares, encontram solução, no direito vigente, na resolução por onerosidade
excessiva (art. 478 do Código Civil), na medida em que se cuida de fatos
extraordinári
c
De acordo com o Enunciado n. 175, aprovado na III Jornada de Direito Civil
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em
dezembro de 2004, “a menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas
no art. 478
q
produz” 286.
Alternativamente pode o devedor, nos termos do art. 317 do Código Civil,
quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor
286 ALVES, Jones Figueiredo. FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 441.
146
da prestação devida e do momento de sua execução, ser corrigido pelo juiz, a
pedido da parte, de modo que assegure, tanto quanto possível, o valor real da
prestação.
Na mesma ordem de idéias, o art. 437º, 2, do Código Civil português também
za: “Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando
ceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.” Permite dar
olução diversa ao problema da onerosidade excessiva, por iniciativa do réu,
ibindo a resolução do contrato. Serve de efetividade ao princípio de boa-fé que
eve acompanhar a execução dos contratos, em desproveito de enriquecimento sem
ausa pela parte que recepciona, supervenientemente, vantagem excessiva. A
odificação será feita segundo juízos de equidade” 287.
Essa redução pode ser feita, também voluntariamente, com amparo no art.
479 do Código Civil, evitando-se a resolução, pela oferta do réu de modificar
equitativamente as condições do contrato. Em comentário a esse artigo do Código,
JONES FIGUEIREDO ALVES, afirma que “o dispositivo repete a inteligência da
parte final do art. 1.467 do Código Civil italiano: “A parte contra a qual foi pedida a
resolução poderá evitá-la oferecendo modificações equitativas das condições do
contrato”.
re
a
s
in
d
c
m
287 ALVES, Jones Figueiredo. FIGUEIREDO ALVES, Jones. Código Civil Comentado, coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, 6ª edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 443, valendo lembrar o teor do Enunciado n. 176 das mesmas Jornadas: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002, deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.” (p. 442).
147
RESULTANTE DO CONTRATO PRELIMINAR E SUA APLICAÇÃO À PROMESSA DE DOAÇÃO
7 A TUTELA JURISDICIONAL DA OBRIGAÇÃO
Já se apontou acima que a promessa de doação, como a doação, embora
aceita por ambas as partes é unilateral na medida em que apenas uma das partes, o
doador está obrigado a fazer alguma coisa e essa vinculação não pode ser
indefinida, razão pela qual o art. 466 do Código Civil estabelece que “Se a promessa
de contrato for unilateral, o credor, sob pena de ficar a mesma sem efeito, deverá
manifestar-se no prazo nela previsto, ou, inexistindo este, no que for razoavelmente
assinado pelo devedor”. Não se trata, pois, de arrependimento ou revogação, e sim
de ineficácia, na ausência da tempestiva manifestação do credor.
Portanto, uma vez irrevogável o pactum de contrahendo em virtude da
aceitação, surge para o credor uma pretensão ao cumprimento da obrigação de
celebrar o contrato definitivo. E parece flagrante a possibilidade do Estado captar a
vontade originária do contratante inadimplente, no sentido de concluir o contrato, e
que se reduz, ao mais das vezes, à assinatura de uma escritura pública, pois tal
vontade foi livre e eficazmente emitida no pactum de contrahendo, para alcançar
ontrato definitivo, e emitir sentença que produza o mesmo efeito do novo estágio, o c
148
contrato a ser firmado. Esse efeito é exclusivamente jurídico, com total respeito à
incolumidade física do executado288.
Em determinada época, prevaleceu a idéia de ser inadmissível a substituição
a vontade omitida por ato judicial, supostamente agressivo à liberdade do cidadão,
e está o dogma da intangibilidade da vontade humana, decorrente da
tra do art. 1.142 do Código Civil Francês, ao dispor que toda obrigação de fazer ou
caracteres), a tese ainda padecia de terrível enfermidade:
utorizava simplesmente o descumprimento contratual, privilegiando a parte mais
d
razão pela qual ao prejudicado restaria apenas uma pretensão de haver perdas e
danos.
Long
le
de não fazer se resolve em perdas e danos no caso de inexecução por parte do
devedor.
Como observa FREDIE DIDIER JUNIOR: “Imaginava-se, de um lado, que toda
espécie de obrigação poderia ser convertida em dinheiro, acaso descumprida. A par
do manifesto equívoco deste pensamento, que olvidava os hoje inquestionáveis
direitos não-patrimoniais, como os personalíssimos e trans-individuais (estes últimos
de avaliação pecuniária bastante difícil exatamente em razão do caráter difuso dos
seus elementos e
a
rica da relação, apta a arcar com as perdas e danos – se existentes, pois danos não
se presumem” 289.
288 ASSIS, Araken de. Manual de Execução, 9ª edição, RT, São Paulo, 2004, p. 502/503. 289 DIDIER JUNIOR, Fredie. Tutela Específica do Adimplemento Contratual. Revista dos Formandos em Direito da UFBA n. 2001.2, Salvador, s/ ed., 2001, p. 322, apud PAMPLONA FILHO, Rodolfo, A Disciplina do Contrato Preliminar no Novo Código Civil Brasileiro, in Questões Controvertidas do Novo Código Civil, Coord. Mario Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves, Editora Método, São Paulo, 2008 p. 362, nota 10.
149
Esse entendimento já não podia ser acolhido na vigência do Código de
Processo Civil de 1939, cujo art. 1.006 dispunha: “Condenado o devedor a emitir
eclaração de vontade, será esta havida por enunciada logo que a sentença de d
condenação passe em julgado”. E o seu parágrafo segundo que “nas promessas de
contratar, o juiz assinará prazo ao devedor para executar a obrigação, desde que o
contrato preliminar preencha as condições de validade do definitivo”.
Tal dispositivo mereceu de JORGE AMERICANO objetivo comentário ao
ponderar que, “como via de regra, a propriedade imóvel não se transfere sem a
transcrição e a transcrição não podia fazer-se sem que o alienante outorgasse a
escritura de alienação de alienação, a simples recusa em assinar a escritura tornava
inexeqüível a obrigação, da natureza das que só pelo doador pode ser prestada.
Então, como a lei não podia forçar ninguém a assinar uma escritura, de vez que a
assinatura coacta não tem valor, e, quando se chegasse à coação, teríamos uma
declaração de vontade viciada e anulável, a solução até agora dada pelos tribunais
tinha sido sempre a de resolver a obrigação ou perdas e danos. Em uma tese para a
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, LUIZ EULÁLIO VIDIGAL
demonstrou que mesmo no direito anterior ao Código havia a possibilidade de suprir-
se a declaração de vontade. Seu raciocínio foi o seguinte: Se na execução por
perdas e danos nesse caso, pode penhorar-se o mesmo imóvel que seria objeto da
declaração de vontade recusada, e, levando-o à praça, pode arrematá-lo ou
adjudicá-lo o próprio credor da declaração da vontade denegada, e vale como se tal
vontade tivesse sido outorgada. Sendo assim, o próprio sistema anterior autorizava
a sentença a substituir-se à declaração recusada, tendo igual valor ao da escritura
150
de alienação, para ser levada a registo. Daí a possibilidade de, ab initio, a sentença
substituir-se diretamente à vontade recusada, sem a necessidade de tão longos
aminhos. O Código fez exatamente isso. Recusada a declaração de vontade, a que
Em comentário a esse art. 1.006 do Código Civil, destacava J.M. CARVALHO
O Código de 1939, no dizer de HUMBERTO THEODORO JUNIOR, “em boa
c
o executado estivesse obrigado, a sentença supre-a. Ou o devedor a cumpre, ou,
passada em julgado, executa-se a própria sentença, levando-a a registo. É o que
resulta evidente do art. 1.006 e seu parágrafo 2º” 290.
SANTOS que o princípio que domina a matéria é o de que todas as obrigações
devem ser fielmente cumpridas e o texto abrange todas as promessas de
contratar291.
hora, rompeu com a injustificada tradição e esposou a tese contrária, isto é, no
sentido da fungibilidade dessas prestações, admitindo o suprimento da declaração
de vontade omitida por uma manifestação judicial equivalente (art. 1.006 e §§)” 292.
Escrevendo antes da edição do Código Civil, PEDRO HENRIQUE TÁVORA
NIESS, em erudito e completo estudo, e aludindo ao cerne da questão à luz do
revogado art. 639 do Código de Processo Civil que dispunha: “Se aquele que se
comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo
isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o
290 AMERICANO, Jorge. Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, Saraiva, São Paulo, 1943, volume 4º, p. 362. 291 CARVALHO SANTOS, J. M. Código de Processo Civil Interpretado, 6ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1964, volume X, p. 231/233. 292 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de Execução, 14ª edição, LEUD, São Paulo, 1990, p. 226.
151
mesmo efeito do contrato a ser firmado.”, lembra, em primeiro lugar, que a embora a
lei não esclareça não tem dúvida de que se cuida de pré-contrato. Em seguida aduz
que, ser possível deve referir-se a direitos disponíveis, a contrato válido (passível de
ser concluído) e a declaração de vontade (prestação juridicamente infungível). E,
citando LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL: “de um modo geral, toda e qualquer
declaração de vontade, obrigatória em virtude de um contrato preliminar, pode ser
substituída pela sentença. De um modo geral, dizemos, porque há casos de
contratos preliminares insuscetíveis de execução direta específica e considera-os:
compromisso de fazer doação, promessa de casamento, promessa de assumir
obrigação cambial, proibição legal, quando a pessoa obrigada for de direito público.”
E, além disso, a letra da lei exige que o pedido de sentença que produza o mesmo
efeito do contrato a ser firmado não seja excluído pelo título, vale dizer, não pode
onter cláusula de arrependimento, ou se tratar de obrigação em que a substituição
stentando a possibilidade de aplicação da regra do
rt. 639 ao pacto de donando se coloca PONTES DE MIRANDA, afirmando não
terem razão LOPES DA COSTA e BUENO VIDIGAL argumentando que o artigo se
c
estatal na vontade do devedor é impossível, como no caso de promessa de
casamento. No contrato preliminar deverão estar presentes, à exceção da forma, a
capacidade das partes e o objeto lícito293.
Em sentido contrário, su
a
aplica mesmo às promessas unilaterais e a esta por não estar excluída pela lei ou
pena finalidade do contrato294.
293 NIESS, Pedro Henrique Távora. Da Sentença substitutiva da declaração de vontade, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 24/25. 294 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio de Janeiro, 1976, Tomo X, p. 121 e mais adiante, comentando o art.641 do Código de Processo Civil afirmava que: “Uma das maiores precisões técnicas do Código é a desse ar. 641, que proveio do Código de 1939, art. 1006, e em que se rompe com o princípio a que, em momentos de
152
Como observa CALMON DE PASSOS, “a execução específica deve ser
perseguida sempre, e somente afastada quando impossível. Não é a recusa
arbitrária do devedor, negando-se a prestar aquilo a que se obrigou, que leva a
excluir-se a execução específica, sim a impossibilidade prática de obter-se, por esse
odo a prestação” 295.
tem um direito,
do aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” 296.
m
No mesmo sentido observa CÂNDIDO DINAMARCO, que “o direito moderno
vem progressivamente impondo a tutela específica a partir da idéia de que na
medida em que for possível na prática, o processo deve dar a quem
tu
As obrigações de fazer consistentes na emissão de declaração de vontade de
que é espécie a de concluir contrato são infungíveis, se considerada apenas do
ponto de vista da atividade do obrigado ou devedor. Nessas obrigações, há uma
particularidade anotada por TEORI ALBINO ZAVASCKI, que as assemelha às de
natureza fungível: “em ambas o interesse do credor situa-se exclusivamente no
resultado, nos efeitos decorrentes da prestação, pouco importando o modo como
foram produzidos ou a identidade de quem os produziu. “O que o credor quer
conseguir – e isso o satisfará por completo – é a formação de uma situação jurídica
ausência de regra jurídica, se chamava da infungibilidade jurídica da prestação consistente em declaração de vontade. Esse princípio predominava na maioria dos países, a despeito do esforço de
tal apriorismo, com a tradição do direito lusitano. Precisamos de uma vez por todas, evitar erros que alguns juristas para lhe atenuarem a rijeza e a vastidão. Não é verdade, porém, que fosse acorde, em
provêm de não se estudar o direito luso-brasileiro e o brasileiro e estar-se a importar dúvidas, discussões e defeitos de sistemas jurídicos estrangeiros, às vezes inferiores ao brasileiro. Lembre-se cada um de nós 295 PASSOS, J.J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio de Janeiro, 1974, volume III, p. 163. 296 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros, São Paulo, 2001, volume I, p. 153.
153
igual à que surgiria se o devedor emitisse a declaração de vontade a que estava
obrigado”, como observou BARBOSA MOREIRA. Em se tratando de promessa de
contratar, o que interessa ao credor é o efeito jurídico decorrente do contrato
prometido, pouco lhe importando terem eles sido ou não produzidos mediante
participação voluntária do devedor. Conforme escreveu CHIOVENDA, “as partes não
estipulam contratos pelo prazer de permutar declarações de vontade, mas em vista
de certas finalidades, para cuja consecução estabelecem a relação entre si. Ora,
quando for possível alcançar a finalidade almejada, ainda que por via alternativa,
dependentemente do concurso da atividade do próprio devedor, a obrigação
Relativamente à natureza da sentença, há debate na doutrina, merecendo
in
assume contornos de fungibilidade. Estar-se-á, sob este aspecto, diante de um fazer
fungível, já que o resultado prático, ou seja, o efeito jurídico do querer, é conseguido
mediante uma atividade diversa da do obrigado” 297.
Com isso, a efetividade do processo fica plenamente atendida, porque o efeito
da sentença é o de proporcionar ao credor idêntica situação jurídica que ostentaria
se a declaração devida tivesse sido emitida pelo devedor298.
prevalecer a classificação proposta por ARAKEN DE ASSIS:
constitutivo/condenatória. Possui força executiva. Opera imediatamente a
subrogação e fornece um título que substituirá o contrato definitivo299.
297 ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição, RT, São Paulo, 2003, volume 8, p. 452/453. 298 YARSHELL, Flávio, L. Tutela específica nas obrigações de prestar declaração de vontade, tese de mestrado defendida junto ao Departamento de Direito Processual da universidade de São Paulo, p. 60, apud FERNANDES, Wanderley e OLIVEIRA, Jonathan Mendes, Contrato Preliminar: Segurança de Contratar, in Contratos Empresariais, Wanderley Fernandes Coordenador, Saraiva, São Paulo, 2007, p. 301. 299 ASSIS, Araken de. Manual de Execução, 9ª edição, RT, São Paulo, 2004, p 504/505 – “o título mencionado, porque desprovido de eficácia condenatória em caráter principal, escapa ao gabarito do
154
A despeito da revogação dos arts. 639 e 641 do Código de Processo Civil pela
Lei 11.232, de 2005, o arts. 463 e 464 do Código Civil suprem a sua falta e
estabelecem:
“Art. 463 – Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no
artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento,
qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando
prazo á outra parte que o efetive. Parágrafo único – O contrato preliminar deverá ser
levado ao registro competente.”
“Art. 464 – Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a
vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar,
salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação.”
art. 584, I, Em outras palavras, na sentença do art. 639 não há título executivo que dê início à execução do Livro II, no caso totalmente desnecessária. Na verdade, a fórmula do art. 639, referindo
CC italiano e 810 do CC português, superando o texto do § 894 do ZPO que recorre à ficção de se ter que a sentença produzirá “o mesmo efeito do contrato a ser firmado” acompanha os arts. 2.923 do
por emitida a vontade. A dificuldade dos que ignoram a classificação quinaria das sentenças, nesse passo, se revela no seu doloroso alcance. Por exemplo: Liebman, na monografia dedicada à execução, outorgou natureza condenatória ao provimento judicial em casos que tais, enquanto no seu torrão natal a classe das sentenças constitutivas com a ação contemplada no art. 2.923 do CC italiano, que ostenta a peculiaridade de ter sido transplantado, quase verbum ad verbum, no art. 639 do CPC pátrio. Adepto da tripartição – ações declaratória, constitutiva e condenatória – Theodoro Jr. rejeita o enquadramento da ação nas duas primeiras classe, e, sobrando apenas a última, aponta-a como condenatória, conquanto sui generis, pois dela não se origina a actio judicati; logo seria “auto executável”. Ora, se as ações se limitam àquelas três, antes catalogadas, e surge uma quarta, dita “auto executável” a classificação primitiva deveria, a rigor da lógica, ampliar-se para abranger a novel categoria. Recentemente, retomou o assunto Cândido Dinamarco, e aliando-se a Pedro Henrique Távora Niess, rejeito as posições de Vidigal e de Calamandrei, quanto à exclusão da ação de classe das constitutivas, e sustenta, ao revés, cuidar-se de uma sentença constitutiva, muito embora a lei a trate como se fora condenatória”. Essas fórmulas híbridas, e, no caso inversão da esposada por James Goldschmidt, tem a duvidosa virtude de condensarem defeitos, o que bastaria para por a tese de quarentena. Ademais, parece mais produtivo descobrir a verdadeira natureza do novo gênero “constitutivo/condenatório” do que se acomodar ao enigmático modelo atípico. Como quer que seja, o título obtido mediante a sentença baseada no art. 639 do CPC equivale ao contrato definitivo ou, genericamente, à declaração de vontade omitida.”
155
E a cabeça do art. 461 do Código de Processo Civil estabelece que: “Na ação
que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer o juiz
oncederá a tutela específica da obrigação, ou, se procedente o pedido, determinará
ante da
plicação dos dispositivos revogados do Código de Processo Civil, ou seja, a
ódigo Civil e que reproduz,
ubstancialmente, a ressalva “sendo isto possível” que constava do art. 639 do
isto porque, como anotado acima, a faculdade de se arrepender ou ainda a negativa
c
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”
300 301.
Portanto, estamos, substancialmente, diante da mesma situação result
a
possibilidade de obtenção de uma sentença que substitua a vontade sonegada e
produza os efeitos do contrato a que a parte devedora se obrigou a celebrar.
A questão que se coloca quanto à promessa de doação é a da adequação à
natureza do contrato posta no art. 464 do C
s
Código de Processo Civil, e isto porque, o arrependimento, como se vê do art. 463
do Código Civil, deve ser pactuado expressamente.
É neste passo que se deve invocar e aplicar a cláusula de boa-fé objetiva. E
300 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por acórdão relatado pela Des. Walda Maria Melo Pierro concluiu pela aplicabilidade desse dispositivo a caso de promessa de doação, como se vê da ementa: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEPARAÇÃO JUDICIAL CONSENSUAL. EXECUÇÃO DE ACORDO.”’ Promessa de doação, pelo varão, de sua meação em favor dos filhos do casal. Possibilidade. Execução de obrigação de fazer, nos termos do art. 461, do CPC. Apelo parcialmente provido. (Agravo de Instrumento 70009195439, Sétima Câmara Cível, j. 18.08.2004); 301 Embora por meio de ação cominatória, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais admitiu a execução específica em acórdão de sua 10ª Câmara Cível, como se vê da ementa: “AÇÃO DE EXECUÇÃO - ACORDO EM PROCESSO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL - PROMESSA DE DOAÇÃO - AÇÃO COMINATÓRIA – EXIGIBILIDADE. É exigível, por meio de ação cominatória, o acordo celebrado em processo de separação judicial, no qual há promessa de doação dos pais em favor dos filhos. Apelação provida e cassada a sentença”. (APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0625.06.062377-8/001, j. 01.07.2008).
156
pura e simples da eficácia do contrato preliminar de doação frustra a expectativa
legítima daquele a quem foi prometida a liberalidade, não sendo suficiente a
ondenação em perdas e danos, que pode ser inócua se estes danos não forem
aquela reconhecidamente pode atuar para fazer valer declarações unilaterais de
os julgados mais recentes admitem a
alidade das doações celebradas entre cônjuges como condição da separação ou
divórcio contemplando os filhos do casal.
c
provados.
O ânimo de praticar a liberalidade foi afirmado na promessa, o doador o faz
espontaneamente, criando para si próprio a obrigação de emitir uma futura
declaração de vontade. Como acentuam WANDERLEY FERNANDES e
JONATHAN MENDES OLIVEIRA, com apoio em ALEXANDRE FREITAS CÂMARA,
“não gera tal contrato-promessa, porém, a obrigação de praticar uma liberalidade,
isto porque a liberalidade já terá sido praticada quando da celebração da promessa.”
Dessa forma, nada impediria que a vontade do promitente doador, que já praticou a
liberalidade quando da celebração da promessa, tivesse os seus efeitos substituídos
por uma sentença judicial. Nas palavras do Professor FLÁVIO LUIZ YARSHELL, “A
“coação” estatal existente em tais casos não poderia ser substancialmente diferente
d
promessa de recompensa, conforme previsão do art. 1.512 do Código Civil...” 302 303.
No Superior Tribunal de Justiça,
v
302 FERNANDES, Wanderley e OLIVEIRA, Jonathan Mendes, Contrato Preliminar: Segurança de Contratar, in Contratos Empresariais, Wanderley Fernandes Coordenador, Saraiva, São Paulo, 2007, p. 308. 303 O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua Quinta Câmara de Direito Privado, em acórdão relatado pelo Des. Silveira Neto, por unanimidade, acatou a tese como se vê da ementa: DOAÇÃO - Promessa – Instrumento particular - Pedido, que em última análise, corresponde à outorga de escritura - Possibilidade - Inexigência de atualidade do animus donandi, considerada a data da escritura, mas sim aquela em que se efetivou o compromisso - Recurso provido. (Apelação Cível n. 185.954.4/9, j. 29.03.2001).
157
Relativamente à eficácia do ato, uma vez doado o imóvel ao filho do casal por
ocasião do acordo realizado em autos de separação consensual, a sentença
homologatória tem a mesma eficácia de escritura pública, pouco importando que o
em esteja gravado por hipoteca304.
e ato de mera
beralidade pode ser exigida pelos filhos, beneficiários desse ato306.
jurídico perfeito e não mera promessa307. Ou, o acordo celebrado quando do
b
Nesse caso, vale e é eficaz se feita como condição de negócio jurídico e não
como mera liberalidade305, ou ainda, considerando não se tratar d
li
Sendo o ato devidamente homologado por sentença passada em julgado,
inclusive com recolhimento de sisa, é contrato perfeito e acabado configurando ato
304 DIREITO CIVIL – SEPARAÇÃO CONSENSUAL – PARTILHA DE BENS – DOAÇÃO PURA E
r ocasião do acordo realizado em autos de separação
cio jurídico, e não como mera liberalidade, vale e é eficaz.
por isso, pode ser exigida,
ARGOS DE TERCEIRO. NOR IMPÚBERE. FALTA
o se submete ao crivo especial.
SIMPLES DE BEM IMÓVEL AO FILHO – HOMOLOGAÇÃO – SENTENÇA COM EFICÁCIA DE ESCRITURA PÚBLICA – ADMISSIBILIDADE. Doado o imóvel ao filho do casal, poconsensual, a sentença homologatória tem a mesma eficácia da escritura pública, pouco importando que o bem esteja gravado por hipoteca. Recurso especial não conhecido, com ressalvas do relator quanto à terminologia. STJ REsp 32895/SP, 3ª Turma, rel. Min. Castro Filho, j. 23.4.2002, DJ 1.7.2002, p. 335. 305 PROCESSO CIVIL. INVENTÁRIO. SENTENÇA DE PARTILHA. A sentença de partilha é rescindível, mas para esse efeito o interessado deve propor a ação prevista no art. 1.030, III, do Código de Processo Civil. 2. CIVIL. PROMESSA DE DOAÇÃO. A promessa de doação, como obrigação de cumprir liberalidade que se não quer mais praticar, inexiste no direito brasileiro; se, todavia, é feita como condição de negóRecursos especiais não conhecidos. STJ REsp 853133/SP, 3ª Turma, rel. para o acórdão Min. Ari Pargendler, j.6.5.2008, DJe 20.11.2008. 306 CIVIL. PROMESSA DE DOAÇÃO VINCULADA À PARTILHA. ATO DE LIBERALIDADE NÃO CONFIGURADO. EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA. A promessa de doação feita aos filhos por seus genitores como condição para a obtenção de acordo quanto à partilha de bens havida com a separação ou divórcio não é ato de mera liberalidade e, inclusive pelos filhos, beneficiários desse ato. Precedentes. Recurso Especial provido. REsp. 742048/RS, 3ª Turma, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 14.4.2009, DJe 24.4.2009. 307 PROCESSUAL CIVIL RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. CIVIL. EMBBEM. DOAÇÃO. SEPARAÇÃO CONSENSUAL. DONATÁRIO. FILHA. MEDE REGISTRO DO ATO. IRRELEVÂNCIA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1 - Violação a dispositivo constitucional nã2 - Não decidida pelo tribunal de origem a matéria suscitada no recurso, a falta de prequestionamento é evidente (súmulas 282 e 356 do STF).
158
desquite amigável, homologado por sentença, que contem promessa de doação de
bens do casal aos filhos é exigível em ação cominatória308.
Entendeu ainda o Superior Tribunal de Justiça, em caso de promessa de
doação dessa espécie, não ser possível impedir a execução de transação
devidamente homologada coberta pelo manto da coisa julgada e que não sofreu
qualquer ataque pela via judicial própria, 309 bem como ser inaceitável cláusula
constante de separação que submeta a doação aos filhos de imóveis de propriedade
do casal à condição de ser desfeita a qualquer tempo, pela vontade única dos
doadores310.
3 - A doação de imóvel à filha menor, por ocasião da separação consensual de seus pais, sendo o ato devidamente homologado por sentença passado em julgado, com, inclusive, recolhimento da sisa, configura ato jurídico perfeito e acabado e não mera promessa. A eventual falta do registro imobiliário não exclui o oferecimento dos embargos de terceiro. 4 - Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido para, acolhendo os embargos, manter a recorrente na posse do bem. 5 - Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. STJ REsp 416340/SP, 4ª Turma, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 4.3.2004, DJ 22.3.2004, p. 310 308 CIVIL. DESQUITE. PROMESSA DE QUE OS BENS DO CASAL SERIAM DOADOS AOS FILHOS. A promessa de doação obriga, se não foi feita por liberalidade, mas como condição do desquite. Recurso especial conhecido e provido. STJ EREsp 125859/RJ, Segunda Seção, Rel. Min. Rui Rosado de Aguiar, j.26.6.2002, DJ 24.3.2003, p. 136 309 Transação. Execução. Agravo contra despacho que determinou a execução. Promessa de doação. 1. Não é possível impedir a execução de transação devidamente homologada, coberta pelo manto da coisa julgada, e que não sofreu qualquer ataque pela via judicial própria. 2. Recurso conhecido e provido. STJ Resp 35928/rs, rel. Para o acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 13.5.1997, DJ 22.9.1997, p. 46440. 310 Separação. Doação. Revogação. É inaceitável a cláusula constante do acordo de separação, que submete a doação aos filhos, de imóveis de propriedade do casal, à condição de poder ser desfeita a qualquer tempo, pela vontade única dos doadores. Art. 115 do CCivil. Recurso não conhecido. STJ Resp 220608/SP, 4ª turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 4.12.2001, dj. 20.05.2002, p. 145.
159
8 CONCLUSÃO
Com base nos elementos coligidos nesta dissertação é possível afirmar que a
doação é contrato bilateral benéfico que se distingue de outros atos gratuitos ou de
disposição patrimonial em favor de outrem. Também não pode ser confundido
com o cumprimento de obrigação natural.
Ainda que no sistema do direito romano a doação não tivesse sido
considerada um contrato e sim um meio de transferência da propriedade, parte dos
romanistas acabaram por incluí-la no rol dos pactos legítimos sendo admitida a
promessa de doação ou “pacto de donando”.
A visão do direito justinianeu contido no Corpus Juris Civilis com as anotações
e comentários dos glosadores e pós glosadores foi absorvida especialmente pelas
regiões mais romanizadas da Europa, suprindo as lacunas do direito local.
No direito luso-brasileiro, esta recepção se dá desde a fundação da
monarquia portuguesa consolidando-se nas Ordenações Afonsinas em 1446 que
teve como principais fontes o Direito Romano e o Direito Canônico. Os seus
fundamentos permaneceram nas Ordenações Manuelinas e Filipinas vindo a
informar o direito civil brasileiro do Império, mantidos nas Consolidações de Leis
Civis que precederam o Código Civil de 1916.
No vigente direito positivo, a disciplina do instituto, conquanto tenha
reproduzido parcela substancial das normas do direito anterior há de ser interpretada
160
segundo os princípios de eticidade, socialidade e operacionalidade que informam o
Código Civil de 2002.
A liberdade de contratar ou liberdade contratual está condicionada atualmente
à função social do contrato e à boa-fé objetiva dos contratantes.
Há uma ambivalência da liberdade e dos limites ético-jurídicos que está na
base da Constituição Federal e do Código Civil como apontou Miguel Reale em lição
antes invocada.
Esses elementos devem ser levados em conta para determinar o alcance e as
consequências do negócio jurídico.
A cláusula geral de boa-fé objetiva não é apenas um princípio ou regra de
interpretação, mas, também, norma jurídica que cria direitos e obrigações. Daí a sua
função instrumentalizadora, e, sendo norma de ordem pública deve ser aplicada de
ofício pelo juiz.
Em negociações mais delicadas como as que envolvem a liberalidade, os
deveres de lealdade e informação são mais intensos que no trato dos contratos
comuns.
Há de ser lembrada ainda a regra do art. 112 do Código Civil a estabelecer
que nas declarações vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas
do que ao sentido literal da linguagem.
161
E no que respeita aos contratos benéficos não pode a interpretação conferir
maiores vantagens que as pretendidas pelo beneficiador, todavia estas devem ser
atribuídas ao beneficiário sendo inequívoca a vontade do beneficiador.
A doação como contrato consensual admite a promessa ou pré-contrato que
deve conter todos os elementos do contrato a ser concluído (art. 462 do Código
Civil) se desprovido de cláusula de arrependimento (art. 463 do Código Civil),
dispensado o requisito do registro porque inexigível no caso.
Uma vez aceita a promessa pelo donatário este tem direito ao seu
aperfeiçoamento por meio do contrato definitivo.
A liberalidade está presente no momento da aceitação da promessa pelo
beneficiário.
A conclusão do contrato definitivo com a observância dos requisitos de forma
do ato jurídico prometido dizem respeito ao aperfeiçoamento do ato jurídico perfeito.
Para a obtenção dessa manifestação de vontade porventura negada pode o
donatário obter uma sentença que a substitua conferindo perfeição ao negócio
jurídico.
162
A coação estatal nesse caso não é substancialmente diferente daquela
reconhecida como legítima para fazer valer declarações unilaterais de vontade de
promessa de recompensa.
Na medida do que for praticamente possível o processo deve propiciar a
quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem.
Este o sentido do processo civil de resultado, ou seja, a tutela jurisdicional há
de ser útil a quem tem razão.
Necessária, pois, a tutela da confiança, da correção, da firmeza da declaração
de vontade emitida. E isso se faz mediante a aplicação das cláusulas gerais da
função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Releva notar que a possibilidade de retratação que se concebia possível até o
momento da efetivação da liberalidade – o que a aproximava do contrato real em
razão do momento da entrega real ou simbólica do bem ou vantagem transmitida,
atualmente, diante do disposto no art. 463 do Código Civil não pode mais ser
admitida em razão da regra geral da irretratabilidade da promessa ou contrato
preliminar válido. A possibilidade de arrependimento deve ser expressamente
pactuada, o que constitui ponto relevante para a afirmação da exigibilidade da
promessa de doação no regime do novo Código.
163
Estes os motivos que, sob uma nova ótica, se sustenta a possibilidade jurídica
e a obrigatoriedade da promessa de doação mesmo quando se trate de doação pura
e não seja condição de outro negócio jurídico.
164
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Os julgados citados nas notas foram obtidos em consulta direta aos sítios eletrônicos
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