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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PROPOSTA DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA DE GUSTAVO CAPANEMA: FUNDAMENTOS E EMBASAMENTOS TEÓRICOS CURITIBA 2008

PROPOSTA DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA DE GUSTAVO ... · da Fernanda (Puchalski) que não ... excesso de trabalho para as mulheres, ... um importante debate precedendo o texto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

PROPOSTA DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA DE GUSTAVO CAPANEMA: FUNDAMENTOS E EMBASAMENTOS TEÓRICOS

CURITIBA

2008

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IVAN LUIZ GAVIOLI

PROPOSTA DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA DE GUSTAVO CAPANEMA: FUNDAMENTOS E EMBASAMENTOS TEÓRICOS

Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Vosne Martins

CURITIBA 2007

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“Se quiseres uma imagem do futuro, imagina uma bota esmagando um rosto humano... eternamente”. George Orwell

“And you run, and you run to catch up with the sun, but it's sinking. And racing around to come up behind you again. The sun is the same in a relative way, but you're older. Shorter of breath and one day closer to death. Every year is getting shorter, never seem to find the time. Plans that either come to naught or half a page of scribbled lines. Hanging on in quiet desperation is the English way. The time is gone the song is over, thought I'd something more to say”. Mason, Waters, Wright e Gilmour. “Todo jornal que eu leio me diz que a gente já era, que já não é mais primavera. Oh Baby (...) a gente ainda nem começou”. Raul Seixas

III

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AGRADECIMENTOS

Apesar de faltar-me um pouco de praxe em agradecer formalmente e não com um simples sorriso ou com um abraço efusivo, não perderei tal oportunidade mesmo que ela seja de uma única folha.

Inicialmente, e não poderia ser diferente, mãe e pai, muito obrigado. Não somente pelos anos de apoio econômico e psicológico enquanto durou – e como durou – a faculdade; ou pela paciência, bom-humor e real interesse com que trataram minhas conquista e derrotas neste período fascinante. Agradeço por terem dado todos os preceitos morais que me deram. Foram mais importante que qualquer viagem, estudo ou trabalh. Obrigado por terem sido meus primeiros exemplos de vida. Incluo aqui você, Cindy, que como uma verdadeira irmã mais velha ensinou-me muitas coisas (desde trapaças até o valor da compreensão).

Agradeço-lhe, Ana Paula (não colocarei o nome completo e nem títulos pois é um agradecimento singelo frente tudo feito, em especial, nestes dois últimos meses). Certamente, sem sua orientação este trabalho não teria este corpo e este conteúdo – se é que teria algum corpo ou conteúdo. Agradeço também pela possibilidade de um ano como bolsista da CNPq.

Aos amigos, agradeço não só pela companhia na faculdade, no colégio ou no trabalho, mas por compartilhar noites em claro em frente ao vídeo-game, tardes inteiras de conversa no pátio, jogos amistosos e campeonatos de ogrobol, finais-de-semana de brincadeiras, passeios, viagens, lanches, jogos de futebol, jogos de rugby, jogos de eliffot, vídeos e sonhos. Evitando que isto se torne uma lista de convidados para uma festa, evitarei nomes, tratando-os por grupos. Assim, agradeço ao pessoal do escritório, aos “punk’s”, aos bagozzianos, ao Black Sheep Rugby, aos familiares dos amigos mais próximos, ao Earl, à Cúpula do Poder e à turma da Fernanda (Puchalski) que não tem um nome específico. Entretanto, tem alguns nomes que não posso deixar de citar pela relevância que têm no meu caráter. Por ordem cronológica com que surgiram na vida, agradeço-vos: Danilo, Daniel, Stahlke, Henrique, Jonathan, Claudino, Murilo, Bonato, Stadler, Victor, Fernando e Marcos (com suas respectivas, as quais já fazem parte de vocês).

Falta-me ainda agradecer àquela que, com certeza, é a pessoa que não poderia faltar: Vanessa. Cinco anos de faculdade me pareceram muito e cansativos. Entretanto, cinco anos ao seu lado compartilhando sonhos, planos, decepções, pizzas, puffs e até bicicleta, me parecem pouco e me dão a certeza que pretendo repeti-los muitas e muitas vezes. Em Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Maringá, Dublin, Firenze ou Paris. Dependendo dos nossos planos e da teoria do caos que tudo decide.

Agradeço ainda àqueles que mesmo sem me conhecer compartilharam de suas idéias incitantes e, até certo ponto, perturbadoras. Obrigado Orwell, Dostoievski, Puzo, Waters, Seixas, Thorogood, Montenegro e outros tantos que tornaram a vida mais perceptível, intrigante e interessante.

Por fim agradeço Àquele que creio ser o responsável por estarmos aqui (escrevendo, lendo ou vivendo) e que sempre esteve ao meu lado, em especial neste último mês quando a faculdade parecia alongar-se para o próximo semestre. Afinal, creio que sem ele todos que foram lembrados acima não estariam aqui.

IV

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SUMÁRIO RESUMO................................................................................................................................ VI INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 01 1 – INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA ............................................................... 07 1.1 – SOBRE A CRÍTICA AO MODELO LIBERAL............................................................ 07 1.2 – SOBRE O ABONO FAMILIAR........ ........................................................................... 12 1.3 – SOBRE A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL..................................................................................................... 15 1.3.1 – Sobre a Interpretação Feminista................................................................................... 16 1.3.2 – Sobre a Interpretação Pró-natalista.............................................................................. 18 2 – O ESTADO BRASILEIRO COMO UM ESTADO INTERVENTOR...................... 24 2.1 – SOBRE A CRÍTICA AO LIBERALISMO NO BRASIL............................................. 25 2.2 – SOBRE A INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA.............................................. 29 3 – GUSTAVO CAPANEMA E A FORMULAÇÃO DO PROJETO DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA............................................................................. 34 3.1 – SOBRE OS ESTUDOS E A PRODUÇÃO DO PROJETO........................................... 35 CONCLUSÃO........................................................................................................................ 46 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 47

V

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RESUMO Políticas Públicas de Proteção Social à Família começaram a ser formuladas no Brasil a partir da década de 1930. As razões para emprego destas políticas eram bastante diversificadas, variando de acordo com a especificidade de cada país e estilo de governo. Tal medida aborda uma gama de debates bastante extensa sobre intervenção estatal e liberalismo econômico, movimento de emancipação da mulher e paternalismo, planejamento familiar e políticas pró-natalistas. Deste modo, cada país que empregava uma política de proteção social, fazia baseando-se em pontos relativos às suas intenções e necessidades, sendo possível que países com políticas extremamente divergentes como Itália e Noruega, se utilizassem desta política. Deste modo, analisamos a produção do projeto de proteção social à família produzido pelo ministro da Educação e da Saúde do Estado Novo, Gustavo Capanema. Para tal utilizamos como fontes o vasto acervo de Gustavo Capanema sob a guarda do CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, referente ao seu envolvimento com as políticas familiares, contendo todo o material estudado ou produzido pelo ministro a este respeito. Assim, através dele, podemos atingir o nosso objetivo.

Palavras-chaves: Estado Novo; Intervenção Estatal na Família; Abono Familiar no Brasil.

VI

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INTRODUÇÃO

Quando Getúlio Vargas aprovou o decreto-lei 3200 de 19 de abril de 1941 – relativo à

proteção social à família – iniciava-se a intervenção estatal nas famílias pobres e numerosas.

Novidade no Brasil e atitude recente na Europa, correspondente à chamada “questão da

família” problematizada no interior da crítica e do debate social iniciado no século XIX, em

conseqüência da crescente desigualdade social e econômica após a consolidação do

capitalismo. Filantropos, religiosos, médicos, funcionários públicos e literatos perceberam

que o capitalismo no seu modelo liberal do século XIX não trazia igualdade de oportunidades

para todos. Pelo contrário, o capitalismo impedia a possibilidade de crescimento e

desenvolvimento dos mais pobres, causando-lhes penúria e sofrimento. A Rerum Novarum

escrita pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891 a respeito da condição dos operários

demonstra a situação da época, em que:

(...) os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião, enfim, mais avantajada em que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isso, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito1.

Era necessário, segundo o próprio Papa, defender os pobres, em especial os grupos menos

favorecidos pelo sistema capitalista como as mães, crianças, doentes e idosos.

Deste modo, as críticas ao trabalho feminino e infantil ganharam força e passaram a

ter um cunho mais político e moral. A preocupação deixou de ser apenas econômica ou social,

já que se baseava na “corrupção dos costumes”. Esta visão conservadora foi formulada a

partir da idéia de que com a necessidade do trabalho extraordinário da mulher e da inserção

prematura da prole no mercado de trabalho, a esfera do lar era abandonada antes de ser

possível incutir valores fundamentais aos jovens e futuros membros da nação.

Para corrigir isto era necessário que o pai – governador desta pequena sociedade civil

– recebesse um salário mais justo que lhe permitisse garantir não somente a sua sobrevivência

e a reposição da sua força de trabalho, mas de toda a sua família, mantendo-a unida e

1 LEÃO XVIII. Carta Encíclica Rerum Novarum: sobre a condição dos operários in www.vatican.va.

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protegida dentro do lar. No entanto, como isto parecia bastante longe da realidade, os críticos

ao sistema capitalista liberal solicitavam a intervenção estatal no lar, alegando ser dever do

Estado salvaguardar todos os seus cidadãos. Portanto, um sistema de acréscimo salarial

deveria ser instituído pelo Estado a fim de fortalecer as famílias mais pobres, protegendo-as

dos efeitos mais visíveis da pobreza como a subnutrição, miséria, excesso de trabalho para as

mulheres, a dissolução do casamento e o abandono das crianças.

Outra razão para a compensação dos encargos familiares foi o grande descenso

demográfico vivido por alguns países europeus na virada do século XIX. Como neste período

predominou a idéia de que para uma nação ser forte ela deveria ser numerosa, sendo capaz de

colonizar e guerrear, os Estados europeus viam a necessidade de incentivar o crescimento

populacional. Esta intenção fica bem demonstrada no estudo relativo ao pró-natalismo na

Espanha de Franco. Segundo Mary Nash: “[colocar um fim] à tendência de queda da taxa de

natalidade e, assim, evitar o declínio do Estado espanhol. (...) [Já que] a Espanha foi

confrontada com o dilema de aumentar a taxa de natalidade ou de renunciar à ascensão à

categoria das grandes potências”.2

O Brasil mesmo não sendo um país industrializado e longe dos combates da Primeira

Guerra Mundial acabou passando por consideráveis mudanças sociais, desde o início do

século XX, em decorrência da influência da política imperialista dos países desenvolvidos.

Tais mudanças sociais causavam certo temor na população mais pobre que não compreendia

os acontecimentos e as inovações causadas pela modernização e seu novo estilo de vida.

Nesse embate entre tradição e modernismo, o governo de Getúlio Vargas buscou a

modernização sem deixar de fortalecer as instituições tradicionalistas como a família.

A respeito dessa intenção de fortalecimento da estrutura tradicional da família, temos

um importante debate precedendo o texto constitucional de 1934 em que católicos, feministas,

políticos conservadores e liberais mobilizavam-se em questão da intervenção estatal nas

famílias. Apesar de pequenas vitórias feministas e liberais, a situação resolveu-se ao lado da

Igreja, seguindo o caráter conservador apresentado desde 1930 pelo governo de Vargas. Deste

modo, a constituição de 1934 afirmava que a família – constituída pelo casamento

2 NASH, Mary. Pró-natalismo y maternidad en la España franquista. In BOCK, Gisela & THANE, Pat (org). Maternidade y Políticas de Genero. Madrid: Ed. Cátedra, 1996. pp. 280/284. “fin a la tendencia a la baja de la natalidad y evitaría así la decadencia del Estado español. (…)España se enfrentaba al dilema de aumentar la tasa de natalidad o de renunciar a la ascensión al rango de las grandes potencias”.

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indissolúvel – era merecedora de proteção especial do Estado3. Contudo, esta proteção

especial do Estado só seria definida na Constituição de 1937, quando seria acrescido no texto

constitucional que “Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de

seus encargos”4. Influência não só da intenção moralizante do governo, mas da necessidade

brasileira de mais braços trabalhadores e que defendessem o amplo território, inclusive nas

regiões pouco povoadas.

Neste sentido, Gustavo Capanema – um intelectual católico – Ministro da Educação e

da Saúde do Estado Novo apresentou em 1938 um projeto de proteção social à família para

que o Estado pudesse suprir adequadamente a insuficiência salarial das famílias pobres e

numerosas. Como as razões para emprego destas políticas eram bastante diversificadas,

variando de acordo com a especificidade de cada país e estilo de governo, existe uma gama de

debates bastante extensa entre intervenção estatal e liberalismo econômico, movimento de

emancipação da mulher e paternalismo, planejamento familiar e políticas pró-natalistas. Para

exemplo desta variedade de razões podemos tomar os sistemas de Prestações Familiares na

Noruega e na Itália fascista. Enquanto na Itália as políticas de proteção social à família foram

formadas de maneira mais tradicional, visando manter a família patriarcal e numerosa, a

Noruega apresentava uma política de combate à pobreza e de fortalecimento do papel

materno. Assim, enquanto o governo italiano dedicava-se a promover auxílios financeiros aos

homens chefe de famílias numerosas5, a Noruega destinava seu abono ao combate da pobreza,

em especial de dois grupos que mais sofriam com a situação de penúria: mulheres e crianças.

Portanto, o Abono familiar na Noruega destinava-se às mulheres – e não aos homens – e sua

principal intenção não era o incremento da natalidade, mas o combate à miséria.

Deste modo ao analisar a construção da proposta de proteção social à família feita por

Gustavo Capanema - principal objetivo desta pesquisa – buscamos perceber como o ministro

colocou-se perante estes debates. Quais eram as suas intenções para com a questão

demográfica, com o pauperismo que atingia as famílias menos abastadas, com a emancipação

da mulher, com a transformação dos valores e a moral tradicionalista e com a necessidade de

3 MARTINS, Ana Paula Vosne. Dos Pais Pobres ao Pai dos Pobres: cartas de pais e mães ao presidente Vargas e a política familiar do Estado Novo. Relatório final de atividade de pós-doutorado apresentado ao CNPq: Rio de Janeiro, 2004. Artigo no Prelo, pp.106. 4 CAMPANHOLE, A. & CAMPANHOLE, H.L. Todas as Constituições do Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 1971, p.321. Apud MARTINS, op. cit. p. 104. 5 SARACENO, Chiara. Uma redefinición de la maternidad y la paternidad: gênero, pronatalismo y política social en la Italia fascista. In BOCK, Gisela & THANE, Pat. (org.). “Maternidad y Políticas de gênero”. Ed.Cátedra; Madrid: 1996, pp.343-347.

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fortalecer a importância do trabalho para o desenvolvimento do Brasil. Importante ressaltar

que o governo estado-novista preocupava-se muito em disseminar a idéia do trabalhador

como um verdadeiro guerreiro brasileiro. Deste modo, um sistema de Abono Familiar poderia

apresentar-se de forma negativa se mal planejado, pois o sustento da família deveria advir do

trabalho do pai e não de sua capacidade reprodutora.

Para cumprir estes objetivos, usamos como fontes o vasto acervo de Gustavo

Capanema sob a guarda do CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, referente ao seu

envolvimento com as políticas públicas e a produção do material analisado para a criação do

projeto apresentado a Getúlio Vargas em 1938, bem como as correções do projeto. Entre o

material estudado por Gustavo Capanema existem censos demográficos, análises de

especialistas sobre as questões da demografia, da pobreza, das famílias rurais, da quantidade

de filhos, comparações com a Europa – principalmente Itália e Espanha – e Argentina no

quesito demografia e taxas de fertilidade, projeções para a população brasileira, projetos de

puericultura e notícias e trabalhos científicos produzidos na Argentina e Itália sobre as formas

de proteção social à família nestes países e seus resultados diretos e esperados.

Todos estes documentos estão microfilmados e encontram-se em um único rolo, do

qual utilizamos dos fotogramas 752 até o 1004. Estes são, em sua maioria, datilografados. No

entanto, alguns documentos e correspondências encontram-se manuscritos, assim como

complementos e correções feitas aos documentos datilografados6.

Assim, devido às intenções desta pesquisa e pelas fontes utilizadas, ressaltamos que

este trabalho não produz uma análise da lei, propriamente dita, e nem mesmo das

conseqüências do emprego dela. Este trabalho restringe-se a uma compreensão dos

fundamentos e embasamentos de Gustavo Capanema na produção do projeto de proteção

social à família. Deste modo, o trabalho ficou estruturado em três capítulos.

O primeiro deles intitulado Intervenção Estatal na Família, buscamos compreender

como nasceu a crítica ao sistema capitalista liberal nos países europeus ocidentais no século

XIX; as soluções propostas pelos críticos; e como foram empregadas. Para tanto, formando a

base deste capítulo, utilizamos a encíclica papel Rerum Novarum: sobre a condição dos

operários escrita pelo Papa Leão XIII e os estudos de Mary Nash e de Chiara Saraceno a

respeito do pró-natalismo na Espanha franquista e na Itália fascista, respectivamente, para

6 CPDOC, Gustavo Capanema: ministro educação e saúde – 1934-1945. 350527-350622 – rolo 60.

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uma compreensão da crítica ao liberalismo com um caráter mais conservador. Dos estudos de

Anne-Lise Seip e Hilde Ibsen e de Pat Thane a respeito das políticas de proteção social na

Noruega e na Grã-Bretanha, respectivamente, possibilitando-nos compreender a crítica ao

liberalismo com um caráter feminista. Para determinar uma compreensão do Estado de Bem-

Estar Social que desenvolveu-se das soluções práticas aos problemas sociais, nos apoiamos no

livro de Claus Offe a respeito dos Problemas Estruturais do Estado Capitalista, juntamente

com o livro de Estanislau Fischlowitz sobre a Proteção Social à Família7.

O segundo capítulo desta monografia refere-se à nossa tentativa em demonstrar como

este mesmo processo de solicitação de um Estado protetor ocorreu no Brasil durante o século

XX. Para tanto, buscamos identificar as falhas do modelo liberal – instaurado com a república

em 1889 – e como estas falhas eram percebidas e interpretadas por médicos, juristas, literatos,

homens públicos e pela população em geral. A importância de tal análise dá-se para que

possamos traçar como o Brasil transformou-se de forma tão rápida de um Estado

descentralizado em um Estado centralizado, forte e interventor, características necessárias

para determinar um sistema de proteção à família – inserida na esfera de sociabilidade privada

– que seria institucionalizada com a lei 3200 de 19 de abril de 1941.

Para tal tarefa, além do trabalho de Fischlowitz já apresentado, mostrou-se de

fundamental importância os livros de Daniel Pecáut Os Intelectuais e a Política no Brasil –

entre o povo e a nação e de Angela de Castro Gosmes intitulado Capanema: o ministro e seu

ministério, assim como o artigo de Ana Paula Vosne Martins, Dos Pais Pobres ao Pai dos

Pobres: cartas de pais e mães ao presidente Vargas e a política familiar do Estado Novo8.

O terceiro capítulo, por sua vez, refere-se à análise dos materiais produzidos e

reunidos pelo ministro Gustavo Capanema na produção deste projeto de proteção social à

família. Além delas, entretanto, continuamos nos apoiando, em especial, nos textos de Ana

7 Respectivamente. LEÃO XIII, op. cit., NASH, op. cit., SARACENO, op. cit., SEIP, Anne-Lise & IBSEN, Hilde. “Prestaciones familiars, ¿qué política? El camino hacia el subsidio familiar en Noruega”. In BOCK, Gisela & THANE, Pat (org). Maternidade y Políticas de Genero. Madrid: Ed.Cátedra, 1996, THANE, Pat. Las ideas de género en la construcción del Estado de bienestar britânico: el caso de las mujeres del Partido

Laborista britânico y La política social, 1960-1945. In BOCK, Gisela & THANE, Pat. (org.). “Maternidad y Políticas de gênero”. Ed.Cátedra; Madrid: 1996, OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, FISCHLOWITZ, Estanislau. Proteção Social à Família. Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, 1963. 8 Respectivamente. FISCHLOWITZ, op. cit., PECÁUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil – entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990, GOMES, Angela de Castro. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, MARTINS, op. cit.

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Paula Vosne Martins, Estanislau Fischlowitz e Chiara Saraceno, para compreendermos em

que se baseou o ministro para assim apresentar o seu projeto.

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1 – INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA

1.1 – SOBRE A CRÍTICA AO MODELO LIBERAL

A Revolução Industrial iniciada na Grã-Bretanha ainda no século XVIII expandiu-se

pela Europa e Estados Unidos da América ao longo do século XIX, consolidando o sistema

capitalista. O alvoroço em torno deste novo sistema dava-se pela idéia de enriquecimento

relativamente harmonioso dentre todos os indivíduos e nações. Inserido neste pensamento,

Adam Smith em finais do século XVIII construiu uma lógica que seria intitulada a posteriori

de “causalidade circular cumulativa”. Este raciocínio dava-se da seguinte maneira:

O crescimento da produtividade do trabalho, que tem origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, ao proporcionar o aumento do excedente sobre os salários permite o crescimento do estoque de capital, variável determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por mão-de-obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital, provoca um crescimento concomitante dos salários e, pela melhora das condições de vida dos trabalhadores, da população; o aumento paralelo do emprego, salário e população amplia o tamanho dos mercados que, para um dado estoque de capital, é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento9.

De acordo com o trecho acima e dos grifos por nós determinados, podemos notar o

que esperava a teoria liberal. Inicialmente ressaltam-se as inovações técnicas e de maquinarias

possibilitadas pela industrialização, tornando o trabalho mais ágil e produtivo do que na

produção artesanal que predominava até a industrialização. Essa agilidade se dava pela

capacidade das maquinarias e pela especialização dos trabalhadores, já que não mais

precisavam saber todo o processo de produção, concentrando-se apenas na parte que lhe dizia

respeito. Conseqüentemente a essa divisão e especialização do trabalho, o sobejo de renda

sobre os salários permitiria um crescimento do acumulo de capital, já que se elevava a

produtividade. Paralelamente os salários também se exacerbariam, possibilitando aos

trabalhadores um crescimento do consumo para suprir não apenas as suas necessidades

básicas, mas, até mesmo, necessidades secundárias como o lazer e a cultura. Inerente a este

crescimento da qualidade de vida estaria o aumento populacional, o qual somado ao

9 FRITSCH, Winston. “Apresentação de Adam Smith”. In SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Vol.1. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1985. pp. XII.

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crescimento da produção, do emprego e dos salários ampliaria o mercado consumidor,

realimentando este clico do crescimento.

Outro fator importante relativo às mudanças tecnológicas é a respeito do domínio

sobre a produção. Com a superação do trabalho artesanal, o conhecimento do processo

produtivo deixou de ser privilégio dos trabalhadores. Reforçando esta nova situação está a já

comentada divisão do trabalho, que impede os trabalhadores de conhecerem todo o processo

produtivo, tornando-se responsáveis por apenas uma pequena parte da produção. Por esta

razão – do conhecimento da produção não ser singular aos trabalhadores – é que os operários

se tornaram “peças” que poderiam ser repostas com facilidade, já que as máquinas - de

propriedade do capitalista – se tornaram o centro do processo.

Essa “desvalorização” do trabalhador criou um submundo de dificuldades à sombra da

industrialização, que transpareceria ao final do século XIX. Aos pobres das cidades de maior

industrialização, de forma geral, o capitalismo legou uma sobrecarga-horária, salários

insuficientes, desestruturação da família, ausência de saneamento básico e inócuo

atendimento médico. Agravando a situação, uma multidão encontrava-se às margens do

sistema. Idosos e deficientes não faziam parte desta “causalidade circular cumulativa”, já que

sem as condições físicas necessárias para trabalharem nas fábricas, não tinham qualquer renda

que lhes permitisse o consumo e, conseqüentemente, a sobrevivência. Além deles, crianças e

mulheres também sofriam com este sistema, já que recebiam salários inferiores aos pagos aos

homens apesar de também estarem sobrecarregados pela grande quantidade de horas

trabalhadas.

Para uma real noção da situação da classe trabalhadora utilizamos uma entrevista

concedida por um trabalhador inglês nos meados do século XIX:

1. Pergunta: A que horas vão as menores à fábrica? Resposta: Durante seis semanas foram às três horas da manhã e voltaram às dez horas da noite. 2. Pergunta: Quais os intervalos concedidos durante as dezenove horas, para descansar ou comer? Resposta: Quinze minutos para o desjejum, meia hora para o almoço e quinze minutos para beber. 3. Pergunta: Tinha muita dificuldade para despertar suas filhas? Resposta: Sim. A princípio, tínhamos que sacudi-las para despertá-las e se levantarem, bem como vestirem-se antes ir ao trabalho. 4. Pergunta: Quanto tempo dormiam?

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Resposta: Nunca se deitavam antes das onze horas, depois de lhes dar algo que comer, e então, minha mulher passava toda a noite em vigília ante o temor de não despertá-las na hora certa. 5. Pergunta: A que horas eram despertadas? Resposta: Geralmente, minha mulher e eu nos levantávamos às duas horas da manhã para vesti-las. 6. Pergunta: Então, somente tinham quatro horas de repouso? Resposta: Escassamente quatro. 7. Pergunta: Quanto tempo durou essa situação? Resposta: Umas seis semanas. (...) 10. Pergunta: Suas filhas sofreram acidentes? Resposta: Sim, a maior, a primeira vez que foi trabalhar, prendeu o dedo em uma engrenagem e esteve cinco semanas no hospital de Leeds. 11. Pergunta: Recebeu o salário durante esse tempo? Resposta: Não, desde o momento do acidente, cessou o salário. 12. Pergunta: Suas filhas foram remuneradas? Resposta: Sim, ambas. 13. Pergunta: Qual era o salário em semana normal? Resposta: Três shillings por semana, cada uma. 14. Pergunta: E quando faziam horas suplementares? Resposta: Três shillings e sete pences e meio10.

Fica claro a situação de extrema dificuldade em que viviam muitos proletários. Isso

deveu-se ao fato de que apesar do “crescimento do estoque de capital”, não houve um

“crescimento concomitante dos salários” e sua conseqüente “melhora da condição de vida dos

trabalhadores” permitindo um aumento “da população” – conforme apregoara a teoria

liberal11. Em conseqüência, filantropos, religiosos, médicos, funcionários públicos e literatos

começam a prestar atenção à desigualdade inerente ao sistema capitalista vigente, buscando

compreender e modificar essa realidade.

Como parâmetro para a interpretação da realidade desses intelectuais e técnicos,

ressaltamos um trecho da encíclica papal de Leão XIII intitulada Rerum Novarum: sobre a

condição dos operários, tornada pública em 15 de maio de 1891.

O século passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles, [homens de classes inferiores], uma proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isso deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum

10 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1992. pp. 11/12. 11 FRITSCH, op. cit. pp. XII.

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pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários (...) tudo isso, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito. Por toda parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o gênio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano.12

Contemplado neste trecho está a mudança do estilo de vida dos homens de classes

inferiores devido às mudanças no sistema produtivo. Sem as corporações antigas e com as

fábricas, afirma o Papa, os trabalhadores ficaram indefesos já que não eram mais donos do

próprio trabalho que exerciam. Pelo contrário, o trabalho agora estava monopolizado junto

com o capital na mão de poucos ricos. A estes sobram críticas pelas suas atitudes,

questionando a cobrança injusta de juros e a exploração constante de outros homens,

impondo-os “um jugo quase servil à imensa multidão de proletários”. Tudo em conseqüência

da “insaciável ambição”, da ganância e da cobiça desenfreada.

Notamos, além disso, que o trecho também trata da atenção que intelectuais dão a esta

situação de pobreza e exploração, que coloca em vias de fato a eclosão de um conflito social.

Na última frase do texto isso fica bem claro quando o Papa afirma que não há no presente

uma causa que impressione mais o espírito humano. Corroborando esta declaração temos as

seis outras encíclicas produzidas pelo mesmo Papa nos onze anos precedentes à Rerum

Novarum. Abrangendo questões como o socialismo, a autoridade civil e as teorias da

liberdade humana, o Vigário de Cristo visava apontar aos católicos a posição que deveriam

tomar nesse embate social13: “de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em

auxílio dos homens de classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa

situação de infortúnio e de miséria imerecida”14.

Exatamente por esta leitura da desigualdade social, como imerecida, é que os críticos

ao sistema vigente buscaram alternativas eficazes. Para tanto produziram diversos estudos

relativos à pobreza, para melhor compreendê-la e combatê-la. Dentre esses estudos

ressaltamos os de John Stevenson e Chris Cook relativos à década de 1930 na Grã-Bretanha.

12 LEÃO XIII. op. cit. 13 PIO XI. Carta Encíclica Quadragesimo Anno: sobre as restaurações e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a lei evangélica no XL aniversário da encíclica de Leão XIII ‘Rerum Novarum’. Disponível no endereço eletrônico www.vatican.va. 14 LEÃO XIII, op. cit.

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Como resultado, os dois pesquisadores perceberam que as altas taxas de desemprego e o

sistema salarial eram os principais responsáveis pela pobreza, a qual atingia principalmente as

famílias numerosas, obrigando mulheres e crianças a inserirem-se no mercado de trabalho.

Estes resultados eram ratificados pela conclusão da investigação promovida por inspetores

sociais enviados pelo governo nesta mesma década com o intuito de detectar e explicar a

pobreza15.

Tornou-se óbvio aos olhos dos críticos a necessidade de um incremento no salário dos

pais com famílias numerosas. Passou-se a cogitar a possibilidade de facultar um salário maior

aos trabalhadores de famílias grandes, no entanto esta idéia foi combatida pelos riscos

apresentados. Conforme nos demonstra o debate ocorrido a esse respeito em Oslo ainda na

década de 1920, o primeiro problema apontado era o medo de uma redução “global” do

salário. Como se considerava que o salário pago era relativo a uma família de tamanho

“padrão”, temia-se que houvesse a redução de salários dos chefes de famílias pequenas e dos

solteiros. Além desse problema, “outro argumento contra [uma política d]o salário familiar

era que este infringia o princípio de igual remuneração para trabalhos iguais”16.

Percebemos, assim, que era impraticável esta tática de incremento salarial relativo

para combater a penúria. Do mesmo modo, era inaceitável uma política de combate ao

crescimento das famílias. Primeira razão disto é que quanto menor a população, menor o

mercado consumidor e, por conseguinte, menores os lucros. Portanto, o sistema capitalista

divergia de uma política desse estilo. Além disso, o próprio Estado tinha complicadas

restrições. Como nesse período predominava a idéia de que para uma nação ser forte ela

deveria ser numerosa, sendo capaz de suprir suas necessidades de trabalhadores, soldados e

colonizadores, os Estados europeus viam a exigência de incentivar o crescimento

populacional. Podemos notar tal idéia ser reforçada com o caso francês. Sofrendo com

descenso da natalidade desde o século XVIII a França viu Alemanha e Inglaterra expandirem

suas colônias, exércitos e indústrias, tornando-se as principais potências no período final do

século XIX e início do século XX17.

15 FORREST, Colleen Margaret. “Familial Poverty, Family Allowances, and the Normative Family Structure in Britain, 1917-1945”. In Journal of Family History, vol.26 n.4, October 2001. pp. 510-513. 16 SEIP & IBSEN, op. cit. pp. 97. “Otro argumento contra el salario familiar era que infringía el principio de igual remuneración para trabajos iguales”. 17 HUSS, Marie-Monique. Pronatalism in the Inter-war period in France. In Journal of Contemporany History, vol.25, n.1, January 1990, pp. 39. A respeito da interpretação da necessidade de incremento populacional ressaltamos estudo de Mary Nash relativo ao pró-natalismo na Espanha franquista: “[colocar um fim] à tendência

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Foi no decorrer do século XIX, no entanto, que a redução demográfica deixou de ser

um problema singular na França e passou a preocupar outros países europeus. Esta questão

ligou-se à nova estrutura familiar decorrente da consolidação capitalista, já que

diferentemente da época rural e artesanal, a família deixou de apresentar-se como o centro da

produção – de um modo geral – e do consumo de costumes e idéias18. Como já vimos, nas

classes baixas as mulheres precisavam auxiliar na renda familiar trabalhando fora de casa. Do

mesmo modo, a prole inseria-se cada vez mais precocemente no mercado de trabalho. Já nas

classes médias, o homem começava a assumir cada vez mais o papel que lhe era incumbido de

provedor econômico da família. Com isso, a mulher – livre das tarefas domésticas – acabava

por reconduzir-se ao papel natural de mãe19. Esta remodelagem do papel da mulher ocorrida

ao longo dos séculos XVIII e XIX proporcionou-lhe maior tempo livre. Porém, novas

incumbências lhe foram dadas, levando-a a preocupar-se cada vez mais com o bem-estar dos

filhos e esposo. Deste modo, ter um filho não era somente dar à luz, mas sim, responsabilizar-

se pelo cuidado e educação. A paternidade, por sua vez, também sofreu modificações nesta

nova conjuntura familiar. Com as novas leis trabalhistas regulamentando a carga horária

semanal, os pais puderam destinar maior atenção e interesse ao bem-estar de sua família20.

Com o aumento da dificuldade em ser uma boa mãe ou um bom pai, a quantidade de filhos

reduziu-se, fortalecendo, assim, a queda da taxa de fertilidade. Conseqüentemente,

fortaleciam-se, também, as críticas ao sistema capitalista liberal.

1.2 – SOBRE O ABONO FAMILIAR

Conforme apresentado até então, com a pobreza ligada às famílias numerosas, pela

intenção de incrementar a quantidade da população e pela inviabilidade do incremento salarial

por ação dos capitalistas – devido ao temor de falência destes – muitos passaram a ver no

Estado a solução mais viável. Assim, a criação de asilos e a prática da benemerência para com

os idosos, a criação de creches para as crianças, a destinação de serviços de saúde e de

educação gratuitos, foram os primeiros passos dessa proposta tão abrangente, normalmente

de queda da taxa de natalidade e, assim, evitar o declínio do Estado espanhol. (...) [Já que] a Espanha foi confrontada com o dilema de aumentar a taxa de natalidade ou de renunciar à ascensão à categoria das grandes potências”. (““fin a la tendencia a la baja de la natalidad y evitaría así la decadencia del Estado español. (…)España se enfrentaba al dilema de aumentar la tasa de natalidad o de renunciar a la ascensión al rango de las grandes potencias”). In NASH, op. cit. pp. 280/284. 18 FISCHLOWITZ, op. cit. pp.32. 19 MCLAREN, Angus. História da Contracepção. São Paulo: Terramar, 1997, pp. 217/218. 20 Idem, ibid. pp. 219/253/254.

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encabeçada por particulares. No que se relaciona à família, propriamente dito, a Rerum

Novarum nos auxilia, novamente, a entender o pensamento desses críticos que colocavam a

intervenção estatal na família como fundamental para solucionar os problemas herdados do

liberalismo.

Certamente, se existe algures uma família que se encontre numa situação desesperada, e que faça esforços vãos para sair dela, é justo que, em tais extremos, o poder público venha em seu auxílio, porque cada família é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar doméstico que seja teatro de graves violações dos direitos mútuos, que o poder público intervenha para restituir a cada um os seus direitos. Não é isto usurpar as atribuições dos cidadãos, mas fortalecer os seus direitos, protegê-los e defendê-los como convém21.

Na retórica eloqüente do Papa, sempre que uma família encontrava-se em dificuldades

econômicas – como ocorria com as famílias numerosas nesse fim do século XIX – o Estado

deveria intervir. Isso não representava, aos seus olhos, uma prática indevida dos poderes

sociais do Estado – conforme se dava a leitura sobre os Estados socialistas – mas uma forma

de proteger a população. Neste sentido, o Estado tinha o dever de intervir na família – que é

uma sociedade pequena, “real e anterior a toda a sociedade civil22” – mas somente quando

esta estivesse em dificuldades, com a intenção de retirá-la desta situação injusta e de risco

para toda a sociedade civil.

Este raciocínio e determinação de “como”, “quando” e “por que” da intervenção do

Estado na família seguiu um certo padrão, indiferente se proposto por um intelectual católico

ou protestante, por um literato, filantropo ou funcionário público. A maioria solicitava – além

da prestação de serviços – um sistema de abono salarial como forma de combate à pobreza.

Basicamente porque “se reconhecia que o sistema de salários não era adequado para prover as

necessidades da família do trabalhador, portanto, cabia ao Estado não só atuar como árbitro,

mas efetuar uma política de distribuição de renda23”.

Para melhor definirmos o que vem a ser o Abono Familiar nos utilizamos da pesquisa

de Estanislau Fischlowitz - um funcionário público brasileiro que através de um trabalho

quantitativo e de caráter sintético aborda as razões das políticas públicas e suas imediatas

21 LEÃO XIII, op.cit. 22 Ibidem. 23 MARTINS, op. cit. pp. 106/107.

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conseqüências por todo o mundo, dando atenção especial à América Latina e ao Brasil. Nele

encontramos um compêndio de uma série de definições e compreensões do Abono.

Selecionamos a compreensão de 1952 da Associação Internacional de Seguridade Social que

definiu o Abono como todo benefício em espécie ou natureza com objetivo de favorecer a

constituição e o desenvolvimento da família. Complementando esta análise temos a de James

C.Vadakin que afirmou que o Abono são pagamentos sistemáticos do empregador e do

governo às famílias, visando o bem estar destas24. Apesar de voláteis, estas definições nos

levam a compreender que o sistema de Abono Familiar está inserido no Estado de Bem-Estar.

Na realidade, “O Estado de Bem Estar é o resultado de muitas soluções pragmáticas a

problemas”25. E dentre essas soluções pragmáticas está o Abono Familiar.

Para tornar essa compreensão mais nítida, buscamos analisar, inicialmente, a forma do

Estado de Bem-Estar Social conforme propõe o sociólogo da segunda geração da escola de

Frankfurt, Claus Offe. Para ele o Estado de Bem-Estar Social é uma forma pela qual se tentou

resolver os problemas de transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho

assalariado26. Este problema provém do fato do autor não acreditar que a proletarização tenha

se dado de forma passiva e natural. Ou seja, com as condições normais de trabalho destruídas

pelas inovações industriais e tecnológicas do capitalismo o trabalhador encaminhou-se para

sua nova função. Para o autor nem mesmo a questão da sobrevivência explicaria este fato em

uma análise sociológica, pois o indivíduo ainda teria outras formas alternativas de

sobrevivência, como emigrar para outra região em que a vida artesanal fosse mantida, roubar,

viver da mendicância ou em pequenas comunidades religiosas, combater a industrialização

através de ações violentas ou pela inserção em movimentos sociais. Deste modo, Offe crê que

a proletarização passiva foi induzida pelo Estado de três modos: a) motivações (ou

desmotivações) culturais, fazendo com que “por educação, tradição e uso, reconheça as

exigências daquele modo de produção como sendo leis da natureza óbvias”27; b)

institucionalização dos indivíduos improdutivos (idosos, donas-de-casa, crianças) em

24 Respectivamente, FISCHLOWITZ, op. cit. pp. 19. E, VADAKIN, James C. Family Allowances, An Analysis of their Development and Implications. Miami: University of Miami Press, 1954. pp.1-2. Apud FISCHLOWITZ, op.cit.pp.20. 25 SEIP & IBSEN, op. cit. pp. 83. – “El Estado de bienestar es el resultado de muchas soluciones pragmáticas a problemas.”. 26 OFFE, Claus & LENHARDT, Gero. Tentativa de Explicação Político-Sociológica para as Funções e os Processos Inovadores da Política Social. (1977). In OFFE, op. cit. pp. 15. 27 MARX, K. O Capital. Apud OFFE, op. cit. pp. 20.

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“subclasses” de forma a ser possível assisti-las; c) e, como as assiste, pode produzir uma

igualdade entre proletários passivos e ativos – os que se tornaram assalariados pela demanda.

Assim, para Offe, a força motriz das políticas sociais foi um equilíbrio entre as

necessidades dos proletários e os interesses do Estado. Como este precisa do processo de

acumulação de capital para se desenvolver e manter, é fundamental que todos os indivíduos

insiram-se no mercado de troca – oferecendo emprego ou oferecendo trabalho – sem excesso

ou falta. Este equilíbrio da oferta e procura no mercado de trabalho é uma das funções

normativas da política social. A outra função é suprir as necessidades proletárias (segurança,

lazer, habitação) para que estes escolham a forma “capitalista” de sobrevivência e não formas

alternativas como as já citadas28.

1.3 – SOBRE A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO DO ESTADO DE BEM-ESTAR

SOCIAL

Parecem-nos claros os interesses e as necessidades envolvidas na formação do Estado

de Bem-Estar Social. Tanto Estado como empresários buscavam melhorias para impulsionar e

reavivar o sistema e para dar aos trabalhadores – outra parte interessada – uma qualidade de

vida maior. No entanto, devemos compreender que o percurso desde a percepção das falhas

da teoria liberal capitalista até a formação do Estado de Bem-Estar Social no pós guerras, não

foi harmônico. Os grupos envolvidos em buscar soluções econômicas, sociais, políticas,

demográficas e morais eram bastante heterogêneos, criando interessantes debates a respeito de

como deveria ocorrer a intervenção e sobre o que deveria ser incentivado. Para melhor

compreender essas disputas, relembramos a definição de Bem-Estar Social da Associação

Internacional de Seguridade Social já comentada. Nela ficou explícito que o Abono seria todo

benefício em espécie ou natureza com objetivo de favorecer a constituição e o

desenvolvimento da família. Devemos atentar, no entanto, para a noção e definição que cada

nação/governo faz da família, ou o tipo de família a ser apoiada pelo governo.

São essas diferenças, portanto, que nos levam a dividir a forma da intervenção estatal

na família em dois tipos: pró-natalistas e feministas. Essa confluência dos modelos em dois

grupos, no entanto, não exime as particularidades de cada país. Além disso, devemos ter em

28 OFFE, op. cit. pp. 34-40/79.

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mente que “o Estado de Bem-Estar Social é o resultado de muitas soluções pragmáticas a

problemas e não a materialização de uma idéia ou concepção”29. Deste modo, esta divisão

proposta tem função analítica, servindo para compreendermos as bases e a forma como foram

abordadas as razões para o emprego de uma política intervencionista e do Estado de Bem-

Estar Social.

1.3.1 – Sobre a Interpretação Feminista

A primeira interpretação que apresentamos é a feminista. Nela destacam-se os países

do norte da Europa, mais precisamente os países escandinavos e a Grã-Bretanha. Baseamos

nossa análise a Grã-Bretanha através da pesquisa de Pat Thane, e da Noruega, através da

pesquisa de Anne-Lise Seip e Hilde Ibsen. O ponto de partida para esta análise será,

exatamente, o ponto de partida da formação do Estado de Bem-Estar Social nesses países. Ou

seja, a interpretação das causas dos problemas sociais nesses países.

Na Noruega a preocupação com a insuficiência dos salários deu-se somente na década

de 1910, quando na cidade de Oslo uma comissão foi criada para averiguar a pobreza. Nestes

estudos evidenciou-se o fato das mães sem maridos serem as que mais sofriam com a pobreza

devido seus baixos salários. Como solução foi proposto pelas mulheres do Partido Trabalhista

– e aceito em 1915 – que todas as mulheres solteiras recebessem auxílio financeiro do

município. Surgiu, nesse momento, um conflito importante na nossa análise, o conflito moral.

Em um debate político-ideológico, conservadores alegavam que somente as mães viúvas é

que deveriam ser compensadas. Esta alegação se baseava na intenção da manutenção da

estrutura familiar, já que acreditavam que mulheres solteiras eram imorais. Além disso, em

um lar sem pai e com o Estado provendo as crianças, este substituiria o pai, agravando a

desestruturação da família.

Apesar desses debates de cunho moral a decisão do município de Oslo foi favorável às

trabalhadoras, criando um auxílio econômico para todas as mães solteiras com mais de um

filho. No entanto, este auxílio seria apenas um complemento à renda, já que consideravam que

um ou dois filhos permitiriam que a mãe ainda trabalhasse30.

29 SEIP & IBSEN, op. cit. pp.83. – “El Estado de bienestar ES el resultado de muchas soluciones pragmáticas a problemas y no La materialización de uma Idea o concepción.”. 30 Idem, ibid. pp.83-88.

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Quando, finalmente, em 1919 o Estado norueguês passou a auxiliar os municípios no

sistema de abono, a interpretação modificou-se. Somado a isso houve dois outros fatores: a

queda das taxas de natalidade intensificou-se na década de 1930 e o nível de desemprego

atingiu níveis históricos devido à recessão econômica pós 1929. Conseqüentemente, o foco da

preocupação com a pobreza deixou de ser a mãe solteira, passando a ser as famílias pobres.

Assim a intervenção do Estado deixou de ter como objetivo auxiliar as mães solteiras e passou

a beneficiar as famílias pobres numerosas através de serviços e de um pecúlio pago às mães31.

Podemos notar aqui uma das principais características dessa tendência interpretativa: o papel

central da mulher. Conforme demonstrado neste caso, percebemos que mesmo quando a mãe

deixa de ser o foco da política de abono, ela continua sendo a responsável pelo recebimento

do abono. Além disso, durante todo o processo as mulheres do movimento trabalhista tiveram

grande influência nas decisões, podendo defender seus pontos de vista e suas intenções.

A participação política das mulheres evidencia-se, também, no caso britânico. Apesar

de desde o início do século XX existirem centros sociais particulares em áreas urbanas dando

conselhos, alimentos, tratamento médico e aulas de cozinha, de costura e de economia

doméstica para as mães, o início do processo intervencionista do Estado, resultante no Estado

de Bem-Estar Social, se deu com as mulheres inseridas no Partido Trabalhista. Essas

mulheres consideravam que a pobreza era uma das principais causas da injusta distribuição

dentro da casa, dificultando a igualdade entre os dois gêneros. Conseqüentemente, o processo

contou com participação das intenções das mulheres do partido, já que foram fundamentais

para a elaboração da legislação a este respeito. Dentre seus objetivos ressaltamos a função da

mulher na sociedade e o valor do trabalho materno, conforme o trecho transcrito do Labour

Woman de fevereiro de 1945:

O que nós queríamos era uma valorização do trabalho em casa, dando ao maior grupo de trabalho no país, o das donas de casa, a possibilidade de se expressar publicamente, para fazerem ouvir a sua voz na política e, assim, reforçar as suas causas e das condições de vida, na proporção dos seus números na sociedade32.

31 Idem, ibid. pp. 94. 25 THANE, op. cit. pp. 177. “A lo que aspiraban era a una valoración del trabajo en el hogar, dando al grupo laboral más amplio del país, el de las amas de casa, la possibilidad de expresarse públicamente, de hacer escuchar su voz en la política y, de este modo, potenciar sus causas e condiciones de vida, proporcionalmente a su importancia numérica en la sociedad”.

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Este trecho mostra a compreensão da vanguarda feminina do Partido Trabalhista sobre

o papel da mulher e das mães na sociedade. Para elas, a função maternal em casa é tão

importante que ao compararem com o trabalho remunerando alegavam que a única diferença

era que o labor doméstico era mais longo e árduo. Por este entendimento, a mulher deveria ser

tratada em par de igualdade com os homens. Assim, exigiam se desse às mulheres mais tempo

ao ócio, à educação, à política e ao voluntarismo. Apesar de alguns radicalismos devido ao

crescimento da “voz ativa” feminina na sociedade, como da solicitação de pecúlio pago a

todas as mulheres – inclusive aquelas sem filhos – como compensação financeira pelo seu

trabalho em casa, as mulheres do Partido Trabalhista souberam intercalar as suas solicitações

com as necessidades da sociedade em geral. Desta forma, garantiram um sistema de abono

pago às mulheres33.

Com este breve panorama do caso britânico e norueguês, comprovou-se a importância

das mulheres dos partidos na formulação do Estado de Bem-Estar social nesses países. Ficou

claro, além disso, que apesar de uma grande preocupação após a década de 1930 com o

incremento da taxa de natalidade, a questão demográfica não foi primordial e superestimada

pelos governos desses países que preocuparam-se mais com a situação de penúria das

famílias. Ressaltamos, ainda, que esta preocupação com a família teve a mulher–mãe como

ponto de partida e ponto de chegada, conforme fica comprovado devido o pagamento dos

pecúlios às mães, em detrimento de um pagamento aos pais. O fato de a quem é pago torna-se

fundamental porque demonstra uma compreensão de família e das relações de gênero. Neste

caso podemos afirmar que mesmo considerando uma família patriarcal como o padrão, as

mulheres obtinham certa expressão, reconhecimento da sua importância social e parcial

liberdade, sendo aceitas no mercado de trabalho ou no lar.

Estas características, no entanto, se tornarão mais evidentes ao conhecermos o

desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social nos países inseridos na outra corrente

interpretativa: a pró-natalista.

1.3.2 – Sobre a Interpretação Pró-natalista

33 Idem, ibid. pp. 200/210.

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Esta tendência interpretativa deu-se em países com fortes partidos ou movimentos

fascistas como a França, Espanha e Itália. No entanto não podemos afirmar que esta tendência

fosse característica do fascismo, já que sua real aproximação era com o conservadorismo,

característico do fascismo, do catolicismo e até mesmo do populismo, como em países com

uma participação ativa da Igreja Católica, como no caso brasileiro.

Para os teóricos e defensores dessa tendência crítica ao capitalismo liberal, além dos

problemas de baixos salários e queda demográfica – já apresentados – a corrupção dos

costumes era outro problema preocupante. Esta visão conservadora de questão moral foi

formulada a partir da idéia de que com a necessidade de trabalho da mulher fora do lar, assim

como a inserção prematura da prole no mercado de trabalho, os valores e princípios que

deveriam ser incutidos nas crianças em casa perdiam-se facilmente, trazendo sofrimento e

degradação à toda a sociedade. O discurso do Lord Ashley à Câmara dos Comuns em março

de 1844, conforme apresentado por Frederich Engels no seu livro relativo à situação da classe

trabalhadora inglesa no século XIX explicita muito bem esta interpretação:

Sobretudo o trabalho das mulheres desagrega completamente a família; porque, quando a mulher passa cotidianamente 12 ou 13 horas na fábrica e o homem também trabalha aí ou em outro emprego, o que acontece às crianças? Crescem,entregues a si próprias como a erva daninha, entregam-nas para serem guardadas fora (...), e podemos imaginar como são tratadas. É por essa razão que se multiplicam de uma maneira alarmante, nos distritos industriais, os acidentes de que as crianças são vítimas por falta de vigilância. (...) As mulheres voltam à fábrica muitas vezes três ou quatro dias após o parto, deixando,bem entendido, o recém-nascido em casa34

Este trecho nos mostra que enquanto nos países do norte europeu a preocupação era

com a situação da mulher pelo excesso de trabalho, pelo retorno prematuro ao emprego após o

parto e pelas dificuldades financeiras que passavam apesar de tamanho esforço nas fábricas;

nos países com uma tendência interpretativa pró-natalista sobre os problemas sociais, a

preocupação recaia na desestruturação familiar que a ausência da mãe no lar configurava. Pois

para aqueles que assim interpretavam, sem a figura materna em casa as crianças não recebiam

valores fundamentais para o convívio social harmônico e correto.

Aparentemente esta interpretação em nada se opõe aos ideários e às razões propostas e

acatadas nos países escandinavos e na Grã-Bretanha. Porém, como veremos, essa visão

34 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global, 1986. pp. 170/171.

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conservadora foi fundamental para uma lógica notoriamente distinta da interpretação

feminista. A razão disto é o fato desta interpretação de necessidade de manutenção das

tradições compreender a estrutura patriarcal da família como padrão e modelo a ser

perpetuado, tornando-se um obstáculo à emancipação feminina. Na França, por exemplo, a

queda populacional estava, indiscutivelmente, atrelada à falta de saúde e condições de higiene

da mulher e das crianças, no entanto, entendiam essa queda da fertilidade como uma falha

masculina, conforme aponta o discurso de Antoine Rédier, ao chamar os homens com poucos

filhos de:

“egoístas” que deixaram a França em decadência e guerra. Tais como “desertores” e “sensualistas” que de forma egoísta confiaram nos filhos dos verdadeiros patriotas para lutar a guerra deles (...) [a qual] “desprezou o nome da França” (...). Condenando a doutrina republicana do individualismo [a qual o partido] acreditava ter trazido a desordem intelectual, ele convocava os pais – os verdadeiros líderes – a tomarem o lugar dos legisladores solteiros e com poucos filhos para estabelecer novos estatutos que dariam suporte e reedificariam a família35.

Podemos notar que uma nova interpretação da paternidade era solicitada. O pai – líder

da família, segundo Leão XIII36 - deveria exercer sua função com responsabilidade e

patriotismo, trabalhando oito horas diárias, auxiliando a esposa nos afazeres domésticos e

educando seus filhos, de forma a incutir-lhes valores morais e a desenvolver a sua habilidade

de governar. Esta estrutura, acreditavam os militantes e teóricos desta noção interpretativa,

retornaria ao estado natural determinado à família37.

No entanto, não é apenas a paternidade que é redefinida e reestruturada. Uma nova

definição da maternidade também era construída. Afinal, como o trecho do Lord Ashley

deixou claro, o papel feminino nessa estrutura familiar corrompida era fundamental. Para

melhor expormos esta situação usamos o texto de Mary Nash a respeito do pró-natalismo e da

35 RÉDIER, Antoine. Les Nouveaux Patriarches. Paris: Editions de la Revue Française, 1923. Apud KOSS, Cheryl A. “Fascism, fatherhood, and the family in interwar france: the case of Antonie Rédier and the Légion”. In Journal of Family History, vol.24 nº3, July 1999. pp. 322. “(…) “egoists” who had led France into decadence and war. Such “deserters” and “sensualists” who had selfishly relied on true patriarchs’ sons to fight their war were (…) “unworthy of the French name” (…). Condemning the republican doctrine of individualism that had led to intellectual disorder, he exhorted fathers – the true leaders – to take the place of the bachelor and childless legislators and establish new statutes that would support and re-edify the family”. 36 LEÃO XIII, op. cit. “A família (…) é uma sociedade propriamente dita, com sua autoridade e o governo paterno”. 37 CHILDERS, Kristen Stromberg. Paternity and the politics of citizenship in the interwar France. In Journal of Family History, January, 2001. pp. 97/98.

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maternidade na Espanha franquista. A autora afirma que “A ideologia franquista relegou as

mulheres a uma espécie diferente, identificando-as apenas como mães cujos filhos deveriam

por fim à tendência de queda da taxa de natalidade e, assim, evitar o declínio do Estado

espanhol”38.

Esta visão determinista da mulher como mãe era a forma do governo combater a nova

estrutura social. Como inerente à necessidade do trabalho fora de casa por questões

econômicas estava a emancipação feminina, um novo universo abriu-se à sua frente. E mesmo

que para as classes mais baixas essa nova possibilidade fosse assustadora, para as classes mais

elevadas isso permitiu uma certa liberdade, ou, no mínimo, o desejo dessa liberdade. Exemplo

disso é o que vimos no caso norueguês e no britânico: a mulher lutando pelos seus direitos,

vendo-se como merecedora de mesmos privilégios que os homens e solicitando auxílio do

Estado para com o seu bem-estar. No caso britânico isso fica bem claro quando reivindicação

das mulheres do Partido Trabalhista por auxílio financeiro do Estado para que as mulheres

tivessem mais tempo para praticarem sua liberdade de expressão pública, o ócio e o prazer39

No caso Espanhol, durante a II República – período anterior ao governo de Franco – a busca

feminina por liberdade também era notável. No entanto, diferentemente, o Governo decidiu

por repreender essa visão, considerando as mulheres culpadas pela queda de natalidade, por

terem perdido o seu caráter feminino, ou seja, o de mãe40.

O mesmo ocorria na Itália, com o incentivo ao papel maternal das mulheres dando-se

pela repressão – forma contrária à norueguesa e britânica que “protegiam” as mães. Dessa

forma mulheres italianas sofriam com diversas proibições e obstáculos impostos pelo governo

fascista, conforme crítica de Chiara Saraceno:

Qualquer experiência que pudesse distanciar, por pouco que fosse, a mulher de suas tarefas foi considerada suspeita, desde o trabalho fora do lar até o ensino superior. (...) O acesso ao ensino superior para as filhas de famílias de classe média e sua incorporação ao mercado de trabalho foram pejados de obstáculos, embora de eficácia limitada. Exemplos de tais obstáculos foram a propaganda que ridicularizava as intelectuais, a proibição das mulheres de ingressar em determinadas profissões, incluindo o ensino em institutos, e sua exclusão de concursos para o funcionalismo público. (...) [Tudo porque] para que as mulheres se casassem jovens e tivessem

38 NASH, Mary, op. cit. pp. 280/284. “La ideología franquista relegó a las mujeres a una especie diferente, identificándolas exclusivamente como madres cuya descendencia pondría fin a la tendencia a la baja de la natalidad y evitaría así la decadencia del Estado español”. 39 THANE, op. cit. pp. 177. 40 NASH, op. cit. pp.292.

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muitos filhos era preciso não ‘distraí-las’, ou seja, oferecer oportunidades por mais tímidas que fossem, que colocassem em prática outros desejos e atividades [além da maternidade] 41.

São notáveis as formas repressivas do Governo contra a possibilidade de emancipação

feminina; ignorando os seus direitos o Estado podava-lhes a oportunidade de escolha,

determinando o seu papel. Este era, inclusive, o novo caráter do Estado italiano perante a

família, de companheiro forte e exigente – em especial no que condiz à procriação – o qual

tinha o fim da queda de natalidade como principal objetivo de suas críticas à mulher. Portanto,

o Estado e a sociedade deveriam obstaculizar outras possibilidades às mulheres como estudo e

o trabalho fora de casa, mantendo-as no seu caminho natural, a maternidade.

Interessante notar, conforme ressaltou Saraceno e Nash – para Itália e França,

respectivamente – que o apoio da Igreja Católica neste caso era aberto. Isso porque, conforme

já vimos na Rerum Novarum, a Igreja acreditava que os costumes e a moral deveriam ser

restauradas através da reestruturação da família42. Para tanto, esses três Estados combateram o

aborto, o neo-malthusianismo, incentivaram os nascimentos, lutaram contra a mortalidade

infantil, melhoraram a proteção social à infância e ajudaram economicamente as famílias

numerosas.

Todas essas formas interventoras do Estado visavam proteger a família, compensando

os pais pelos seus esforços em prol do desenvolvimento e crescimento da nação. Neste

sentido, tomando a Itália como exemplo, podemos notar o desenvolvimento cronológico da

intervenção estatal na família. Em 1925 criou-se a assistência às mães e crianças; cobrou-se

41 SARACENO, op. cit. pp. 345/346. “Cualquer experiencia que pudiese alejar, por poço que fuese, a La mujer de sus tareas se consideraba sospechosa, desde el trabajo fuera del hogar hasta La enseñanza superior. (...) El acceso a La enseñanza superior de las hijas de famílias de classe media y su incorporación al mercado profesional, estaban plagados de obstáculos, aunque de eficácia limitada. Ejemplos de dichos obstáculos era La propaganda que ridiculizaba a las intelectuales, La prohibición a las mujeres del ejercicio de determinadas profesiones, incluída La enseñanza en los institutos, y su exclusión de los concursos a La administración pública. (...) para que las mujeres se casasen jóvenes y tuviesen muchos hijos era preciso no ‘distraerlas’, es decir, no ofreceles oportunidades por muy provisionales que fuesen, de poner em práctica otros deseos y actividades”. 42 Idem, ibid. pp. 345 afirma: “É igualmente verdade que a forte presença de uma cultura católica organizada e incentivada pelo Vaticano desde a Concordata de 1929 em diante, desenvolveu e manteve o padrão assimétrico de divisão de trabalho e poder entre os sexos”. (“Es igualmente cierto que la fuerte presencia de una cultura católica organizada y del Vaticano alentó desde el Concordato de 1929 en adelante, el desarrollo y continuación del modelo de division asimétrica del trabajo y del poder entre los sexos”); NASH, op. cit. pp.296, por sua vez, indica que: “Na educação católica romana que recebiam as mulheres, a família e a procriação eram componentes decisivos da propaganda persuasiva do regime. (...) A Igreja apoiava abertamente ao regime franquista em matéria de procriação e maternidade”. (“En La educación católica romana que recebián las mujeres, La familia e la procreación eram componentes decisivos de la propaganda pronatalista persuasiva del regímen. (..) La Iglesia apoyaba abiertamente Al régimen franquista em matéria de procración y maternidad.”); LEÃO XIII, op. cit.

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impostos sobre solteiros a partir de 1927; ofereceu-se proteções fiscais relativas ao tamanho

das famílias desde 1933; institui-se subsídios familiares em 1936 e um bônus fertilidade aos

casais com maior número de filhos em 1939, bônus que só seriam tributados aos casais e

filhos legítimos43.

Enquanto a interpretação feminista visava a redução da penúria dando às famílias e às

mulheres uma maior qualidade de vida, os sistemas de Abono Familiar conservadores tinham

como principal função o incremento populacional. Obviamente que ambas as formas não

eram contraditórias e acabaram seguindo um rumo bastante parecido até consolidar-se no

Estado de Bem-Estar Social. No entanto, é importante compreender as diferenças entre estes

modelos para que possamos notar qual deles fundamentou o projeto de Gustavo Capanema,

ao menos, poder comparar com qual deles os objetivos de sua proposta para a família se

relacionavam.

43 SARACENO, op. cit. pp. 342. e NASH, op. cit. pp. 302.

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2 – O ESTADO BRASILEIRO COMO UM ESTADO INTERVENTOR

Podemos notar que nos Estados europeus ocidentais houve um processo longo e

gradual até que a intervenção estatal em aspectos da vida privada fosse consolidada. No caso

da família, percebemos que a intervenção começou com propostas pontuais aos problemas da

sociedade, até que na década de 1930 teorizou-se a intervenção estatal e ao final da Segunda

Guerra Mundial empreendeu-se o Estado de Bem-Estar Social. Para o caso brasileiro, no

entanto, esse processo da intervenção do Estado em aspectos que não fossem de

administração pública ocorreu em maior velocidade. Apesar de escassos debates nas décadas

de 1910 e 1920, as discussões e ações mais intensas a esse respeito surgiram na década de

1930. E mesmo com este início tardio, já no Estado Novo (1937-1945), evidenciou-se a

intervenção estatal na vida privada através da propaganda e da censura em assuntos como o

trabalho e a família. Para termos uma melhor noção do quanto se avançou neste ponto durante

o governo de Vargas, vale sabermos que durante a república pré-Vargas o Congresso só

recebeu permissão para votar leis trabalhistas em 1926. Até então, a única referência do

governo ao trabalho era a da constituição de 1891 garantindo o livre exercício de qualquer

profissão44. Em contrapartida, como característica desse avanço, Levine nos indica que já no

Estado Novo, com a expansão do governo centralizado, um pesado sistema de censura

coexistia com propagandas exaltando a nova mentalidade do país e prometendo melhoras na

qualidade de vida da população. Isto tudo era feito através da figura de Vargas, um

governante atento e em contato com o povo45.

Percebido este extremo avanço do papel do Estado na vida privada, cabe-nos

compreender como se deu este processo que transformou o Estado brasileiro de um governo

descentralizado para um Estado Interventor – ou, na linguagem do próprio governo estado-

novista, protetor. Para tal empreitada, assim como feito com os Estados europeus, devemos

compreender como nasceu a crítica ao sistema liberal que vigorava até a ascensão de Vargas.

44 RIBEIRO, José Augusto. As Primeiras Leis Trabalhistas. In “A Era Vargas, volume 1: 1882-1950: o primeiro governo Vargas”. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2001. pp. 89. 45 LEVINE, Robbert M. Pai dos Pobres? O Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Cia das Letras, 2001. pp. 90/92.

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2.1 – SOBRE A CRÍTICA AO LIBERALISMO NO BRASIL

Quando de forma um tanto quanto tardia – em comparação até mesmo com seus

vizinhos platinos – o Brasil proclamou-se um país republicano pondo fim ao governo Imperial

de D. Pedro II, o qual um ano antes havia abolido a escravidão. A escolha pelo liberalismo

parecia ser inevitável, sendo vista como a forma de modernizar a nação. Esta inevitabilidade

se dava pelo fato de a Europa, os Estados Unidos da América e até mesmo os vizinhos latino-

americanos terem aderido a esta política e apresentarem resultados impressionantes de

desenvolvimento econômico, cultural e social. Sabemos, no entanto, que no final do século

XIX já surgiam as primeiras críticas ao sistema liberal na própria Europa, como

comprovamos no primeiro capítulo. Porém, esta crítica não era aceita ou percebida pelos

republicanos, devido à intenção de fazer o Brasil avançar após ter ficado tanto tempo inerte

sob o governo régio. Optaram, portanto, pelo oposto do que até então se empregara: o

liberalismo.

Entretanto, logo ficou claro que o sistema liberal não conseguia cumprir todas as

expectativas, como se evidenciou na cidade do Rio de Janeiro. Sendo a capital do país,

tornou-se ponto de chegada de ex-escravos e imigrantes estrangeiros em busca de melhoria de

vida. Como não havia um planejamento para a cidade, em pouco tempo estabeleceu-se uma

situação de inchaço populacional, causando problemas estruturais como na habitação, na

saúde e no urbanismo46. A falta de moradia decente para toda esta onda migratória que

invadia a cidade no início do século XX levou à formação de cortiços, nos quais as condições

básicas sanitárias e de higiene estavam longe de serem cumpridas. Somado ao fato da cidade

ser litorânea com um importante porto de grande movimentação, a saúde pública sofria

constantemente com epidemias que se espalhavam com velocidade devido à grande densidade

demográfica. Deste modo, percebia-se a necessidade de uma reestruturação urbanística da

cidade, a qual ainda sofria com ruas estreitas nas proximidades do porto, atrapalhando o

comércio através dele47.

46 PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Políticas Sociais e Corporativismo no Brasil: o departamento nacional da criança no Estado Novo. Niterói: 1992. pp. 11/12. 47 CUNHA, Eliel Silveira (org.). Brasil 500 anos. São Paulo: Editora Abril, 1999, pp. 622/623.

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Eram necessárias medidas drásticas para modernizar o país. Dentre elas, acreditavam

alguns segmentos intelectualizados da sociedade, era preciso dar ao país uma nacionalidade,

formada por características singulares. No entanto, o governo vigente em nada auxiliava neste

quesito, por praticar uma “política de governadores” em que o poder do governo nacional

alternava conforme acordos oligárquicos regionais. Conseqüentemente, o poder

descentralizava-se já que em estados com forte regionalismo esses presidentes eleitos pela

elite oligárquica paulista e mineira não eram reconhecidos na prática. Esta situação

atrapalhava uma compreensão do Brasil de forma unitária. Deste modo, considerando o

governo incapaz de modernizar o Brasil, alguns intelectuais brasileiros – em especial aqueles

relacionados à arte – começaram a solicitar um Estado forte, centralizado e nacional,

afastando-se do governo liberal. Entretanto, estes intelectuais negaram um completo

isolamento, utilizando-se de suas produções em favor da modernização e da definição da

nacionalidade brasileira.

Esta busca por características singulares do povo brasileiro contrariava a idéia de que,

para progredir, o Brasil deveria copiar ou importar tudo o que era produzido na Europa e nos

Estados Unidos. Este sentimento nacionalista fortaleceu-se na década de 1920 devido ao

advento da Primeira Guerra Mundial e com a visível fragilidade do sistema liberal

estrangeiro, que proporcionou esta temível guerra48. Tal entendimento acelerou o apoio dos

intelectuais pelo nacionalismo em detrimento do liberalismo, conforme o trecho a seguir de

Pecáut deixa transparecer:

Oliveira Viana (...) [em 1922 afirma que] “os elementos liberais (...) inspiram-se em teorias e idéias exóticas e refletem as campanhas políticas que agitam então o cenário europeu e o americano”. Diz ainda: “Entre nós, liberalismo significa, praticamente, e de fato, nada mais do que caudilhismo local ou provincial”. Em obra posterior, publicada em 1930, afirma que “a reverência à Democracia (...) não pode estar no espírito de qualquer homem com dois dedos de senso comum”49.

Nota-se aqui não só a crítica ao liberalismo, mas a solicitação de que se forme uma

classe dirigente capacitada. Isso fica claro na última frase do trecho em que Viana desdenha

48 PECÁUT, op. cit. pp. 23. e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Sinais de Modernidade na Era Vargas: vida literária,

cinema e rádio. In FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia A. Neves. “Brasil Republicano: o tempo do nacional-estadismo. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp. 326/327. 49 PECÁUT, op. cit. pp. 28.

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da democracia como governo do povo pelo povo, já que “a arte de governar relaciona-se com

o saber científico”50. Essa busca pelo elitismo não foi defendida somente pelos intelectuais

católicos – decididamente favoráveis à intervenção estatal de forma limitada, conforme

moldes da Rerum Novarum – e pelos intelectuais nostálgicos de um Estado forte. Estava

presente, inclusive, nos intelectuais “liberais”, os quais compartilhavam a idéia da

necessidade de um Estado presente e forte para ser capaz de unificar a população em uma

única nação, possibilitando a modernização e o desenvolvimento.

Fica evidente que a modernização e o desenvolvimento eram as principais intenções

dos intelectuais, os quais só viam possibilidade disto através da formação de um Estado forte

com uma classe dirigente ativa. Porém, como os governos republicanos anteriores a Vargas

não favoreciam estes acontecimentos, os intelectuais se afastaram do governo e só se

reaproximaram com a política do governo varguista, que invocava que os intelectuais

deixassem sua posição de meros homens da literatura e se posicionassem como homens de

ação. Para facilitar isto – que seria concretizado em 1937 durante o Estado Novo – Vargas

colocou diversos intelectuais em cargos políticos ou ministérios. Como exemplo desta

inserção apresentamos Francisco Campos, Gustavo Capanema e Oliveira Viana que tomaram

posse de cargos públicos. Além disso, Vargas ingressou na Academia Brasileira de Letras já

em 1934, fortalecendo o vínculo entre Estado e classe intelectual. E, deste modo, a classe

dirigente formava-se e exercia o seu papel: de coordenar idéias e valores de forma a construir

uma vida intelectual através da população, de incutir valores que ressaltassem o papel do

Estado, de exaltar as figuras do Estado e de Vargas, confundindo-as51.

A formação de uma classe dirigente foi fundamental para a formação de um Estado tão

presente na vida privada como ocorreu durante o Estado Novo. Primeiramente, porque

determina que a população não necessite mais agir, pensar ou expressar-se publicamente, já

que estas serão tarefas da elite dirigente. Portanto, as idéias de representação, de proteção e de

intervenção tornam-se comuns ao Estado e aos seus cidadãos. Segundo fato que torna esta

elite importante na nossa análise deve-se ao momento histórico brasileiro. Apesar do Brasil

não ser um país industrializado como os países europeus, acabou passando por consideráveis

mudanças sociais desde o início do século XX, em decorrência da influência da política

imperialista nos países desenvolvidos. Essas mudanças sociais, conseqüentes do novo

50 Idem, ibid. pp. 30. 51 Idem, ibid. pp.153.

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dinamismo da economia mundial, causavam certo temor na população mais pobre que não

compreendia os acontecimentos e as inovações desses tempos modernos. Servindo-nos como

exemplo desta disputa entre modernização e tradicionalismo, lembramos de algumas revoltas

populares no período, como o conflito de Canudos no interior baiano na última década do

século XIX e a Revolta da Vacina ocorrida no Rio de Janeiro em 190452. Novamente, assim

como com os intelectuais, aquele que conseguiu controlar esta situação foi Getúlio Vargas,

que caracterizou sua política pela intenção de modernizar o Brasil sem deixar de fortalecer as

instituições tradicionais. Para tanto, Vargas preocupou-se, em especial, com dois pontos

fundamentais: o trabalho e a família.

As mudanças do início do século XX reestruturaram a forma de trabalho no Brasil,

conforme o ocorrido na Europa. Relembramos aqui a teoria de Claus Offe apresentada já no

primeiro capítulo, em que ele aponta a necessidade do Estado intervir para solucionar os

problemas de transformação duradoura de trabalho não-assalariado em trabalho assalariado.

Assim, segundo Offe, o Estado tem que estar apto a tornar o trabalho mais seguro, de forma

com que os trabalhadores não tenham medo de oferecer sua força de trabalho em troca de

salários53. Como a industrialização foi uma das bases do desenvolvimentismo de Vargas,

houve a necessidade de o Estado tomar estes cuidados em relação à criação de seguranças aos

trabalhadores. Neste sentido, foram criadas leis de proteção ao trabalho e de previdência. O

exemplo mais notável e aclamado pelos pró-getulistas desta preocupação do governo foi a

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 01 de maio de 1943 em que Vargas unificava

toda a legislação trabalhista existente no Brasil. Importante ressaltar que todas essas leis

consolidadas referiam-se aos últimos treze anos, já que só com Vargas no poder é que se

criaram leis a este respeito54.

No entanto, um governo legitimado a intervir em questões além da administração

pública só foi possível pelo novo papel do Estado que se desenhou ao longo da década de

1930. Esta nova função só foi possível pela utilização de políticas sociais, que além de

proteger os trabalhadores, no que se referia à previdência e aposentadoria, protegia aspectos

específicos da esfera privada de sociabilidade. Dentre elas, o casamento, a maternidade, a

infância e a família. Esta, por sua vez, considerada o princípio da sociedade, era outra maneira

52 SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord. Geral) “História da vida privada no Brasil”. Vol. 3. República: da Belle époque à era do rádio. SEVCENKO, Nicolau (Org. do vol.). São Paulo: Cia. Das Letras. 1998. 53 OFFE & LENHARDT, op. cit. pp. 15/22/23. 54 RIBEIRO, op. cit. pp. 89.

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do Estado manter a tradição enquanto se modernizava. Portanto, considerando que “a

propaganda e as políticas sociais contribuíram eficazmente para a construção da imagem do

presidente como líder da nação e defensor dos trabalhadores brasileiros e de seus

interesses55”, conforme afirmou a historiadora Martins, cremos na necessidade de atentarmos

para como estas políticas sociais relativas à família confabularam com a constituição de um

Estado autoritário.

2.2 – SOBRE A INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA

A década de 1930 representa o marco na trajetória da política social brasileira, uma vez que a ‘questão social’ passa a receber um tratamento bastante diferenciado em relação ao período da República Velha, transformando-se em área de interesse prioritária do governo getulista56.

Esta citação de Angela de Castro Gomes nos confirma o que temos percebido até

então da ausência de medidas governamentais até a década de 1930 no que se refere às

questões sociais. Porém, exatamente como ocorrido na Europa, esta questão preocupou

particulares, os quais agiam mesmo sem o auxílio do Estado ou, ao menos, requeriam a

intervenção deste. No caso brasileiro, no entanto, esta preocupação surgiu com os juristas e

com os médicos já no início do século XX.

O papel dos juízes, advogados e chefes de polícia ficou exatamente no campo da

jurisdição. Preocupados com a necessidade do poder público proteger a infância e a

juventude, criaram e regularizaram a imagem do “menor” de idade. Esta medida, no entanto,

não rendeu de imediato os frutos esperados. Isso porque de nada adiantava determinar que o

“menor” era incapaz de responsabilizar-se pela própria vida, se não existia um Estado que se

preocupava com eles. Por esta razão, teve mais valor a atitude dos médicos, que reunidos em

associações privadas e preocupados com a maternidade e a infância, distribuíam roupas,

55 MARTINS, op. cit. pp. 101. 56 GOMES, op. cit. pp. 221.

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alimentos e conselhos de higiene para mães pobres necessitadas. Segundo Martins, esta era a

forma encontrada pelos médicos enquanto não obtinham o Estado interventor57.

Esta pressão por uma política de proteção social – promovida por estes homens da

ciência – foi acatada pelo governo de Vargas, criando já em 1930 o Ministério da Educação e

da Saúde Pública. Apesar de demonstrar a preocupação do Governo com esta questão, a

contribuição efetiva deste ministério ocorreu no campo dos debates, promovendo a

Conferência Nacional de Proteção à Infância que ocorreu no Rio de Janeiro em 1933 e

resultou na criação da Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância no ano seguinte58.

Interessante notar que neste início da década de 1930 o Estado praticava uma política

nos moldes da preocupação médica, ou seja, com a maternidade e a criança, aproximando-se

da tendência interpretativa feminista. No entanto, no ano de 1934 esta preocupação transfere-

se para a família, conforme podemos notar no texto da constituição deste mesmo ano:

Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. (...) Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento. Parágrafo único - Será também gratuita a habilitação para o casamento, inclusive os documentos necessários, quando o requisitarem os Juízes Criminais ou de menores, nos casos de sua competência, em favor de pessoas necessitadas. Art 147 - O reconhecimento dos filhos naturais será isento de quaisquer selos ou emolumentos59.

Este trecho selecionado apresenta três dos quatro artigos que a Constituição destinou à

família. Verdadeiramente, é um trecho pequeno e que traz delimitações muito amplas. No

entanto, podemos destacar alguns pontos que apresentam características essenciais no que se

refere à compreensão da família pelo Estado e da sua intenção interventora. No que se refere à

57 Respectivamente, PEREIRA, op. cit. pp. 13. e MARTINS, op. cit. 58 GOMES, op. cit. pp. 223. 59 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (16 de julho de 1934). Retirada do endereço eletrônico: www.planalto.gov.br.

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família, fica claro a predominância tradicionalista, conforme a visão da Igreja Católica, ao

determinar o casamento como indissolúvel e ao considerar civilmente válido o casamento

proferido por qualquer ministro religioso devidamente autorizado. Esta aproximação do

Estado com a Igreja é representativa porque aproxima o Brasil da interpretação pró-natalista,

da “luta contra os males da civilização moderna, como o divórcio, o neomalthusianismo, o

trabalho feminino fora do lar e os costumes liberalizantes da vida urbana”60. No entanto, o

trecho acanhado e pouco esclarecedor nada determina como aconteceria a proteção do Estado

brasileiro às famílias. A única determinação, na realidade, é o de oferecer favorecimentos com

a isenção de taxas para o ato do casamento e do registro dos filhos, conforme os artigos 146 e

147.

Apesar destes poucos esclarecimentos, o trecho não se torna menos importante ou

determinante de um descaso do Estado com a questão. Pelo contrário, como se trata de uma

Constituição, ou seja, do conjunto de normas supremas de todo o ordenamento jurídico de um

país, delimitando o poder do Estado através de uma definição de seus direitos e deveres, a

presença de uma questão devidamente da esfera privada aponta que o Estado, definitivamente,

tornara-se interventor.

Seguindo esta tendência, são criados novos órgãos que possibilitassem a intervenção

do Estado na família, protegendo a infância e a maternidade. Neste contexto, são criadas

creches, hospitais infantis, jardins de infância, maternidades, a Junta Municipal da Infância e

os Postos de Puericultura. Esta junta era formada por médicos, professores, “senhoras da

sociedade”, religiosos e autoridades públicas com o intuito de debater e apresentar as

melhores formas de lidar com esta importante questão. Pela sua formação é evidente a

presença conservadora através dos religiosos e das senhoras da sociedade. E isso, novamente,

aproximava o Estado brasileiro do viés interpretativos pró-natalista. Os postos de puericultura,

por sua vez, ofereciam diversos serviços destinados à manutenção do bem-estar das mães e da

primeira infância. Neles ofertavam-se exames preventivos desde a gestação até o final da

infância, e educação sanitária e moral para as mães61. E, neste sentido, aproximava o Estado

das formas de proteção da interpretação feminista62.

60 MARTINS, op. cit. pp. 106. 61 PEREIRA, op. cit. pp. 16/17. 62 Esta “mescla” de atitudes tomadas pelo Estado brasileiro no que refere-se à proteção à família exemplifica o fato desta divisão ter fins analíticos e da intervenção dos Estados na vida privada não ter sido planejada e materializada.

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Como podemos perceber, cada vez mais o Estado inseria-se na questão de proteção

familiar. No entanto, faltavam-lhe parâmetros para determinar o caminho a ser tomado. Neste

sentido, o médico, músico e crítico de arte gaúcho Olímpio Olinto de Oliveira, atendendo

pedidos do governo varguista, visitou em 1937 a Europa recolhendo informações a respeito de

experiências de emprego de um sistema de Abono Familiar63.

No entanto, ainda sem conhecimento dos estudos de Olinto de Oliveira, no mesmo ano

o Estado apresentava o novo texto constitucional brasileiro, contendo novidades a respeito da

proteção social à família. Dentre estas novidades, a idéia de compensações financeiras.

Art 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos. Art 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. Art 126 - Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais. Art 127 - A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provê-las do conforto e dos cuidados indispensáveis à preservação física e moral. Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação da sua prole64.

A reprodução integral do trecho relativo à família da constituição de 1937 pareceu-nos

necessária para determinarmos os caminhos que tomava o Estado brasileiro – agora sob o

epíteto de Estado Novo, um Estado autoritário, forte, centralizado, nacional e interventor –

para com aquela que era tratada como a célula-máter da sociedade: a família. Iniciando pelo

artigo 124, percebemos que houve uma complementação do artigo 144 da constituição

anterior, determinando que além da proteção do Estado às famílias legitimadas pelo

casamento indissolúvel, as famílias numerosas receberiam compensações na proporção de

suas incumbências com a infância. No entanto, apesar desta determinação, não definiu-se

63GOMES, op. cit. pp. 224-226. 64 Constituição dos Estados Unidos do Brasil (10 de novembro de 1937). Retirado do endereço eletrônico: www.planalto.gov.br.

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como se daria este auxílio e, nem mesmo, o que viria a ser uma família numerosa. Estas

ausências, no entanto, são compreensíveis ao considerarmos que ainda faltavam estudos a

esse respeito e que a constituição servia de ponto de partida, determinando as intenções do

Estado, e que deveria, portanto, ser complementada por decretos.

Outra novidade do texto constitucional é a determinação presente no final do trecho,

de que as famílias miseráveis também estariam passíveis do apoio Estatal, no que se referi-se

às necessidades das crianças. Além disso, os artigos 125 e 127 apresentam que o Estado vê-se

como responsável por oferecer auxílios parcial ou total à educação e à integridade física e à

moral dos futuros cidadãos brasileiros. Todas estas medidas incrementam a imagem do Estado

como pai: protetor, responsável e forte. Deste modo, o Estado se tornaria membro ativo na

educação e criação de seus cidadãos.

Porém, apesar das intenções do Estado estarem bem definidas na Constituição, não era

compreensível como elas seriam colocadas em prática. A causa disso, já falamos, era a falta

de estudos relativos a esta questão e tudo que a tangenciava. Neste sentido, determinou-se que

Gustavo Capanema, o então ministro da educação e da saúde, elaborasse um projeto relativo

às medidas práticas que seriam tomadas pelo Estado. Para tanto, o intelectual deveria ter

conhecimento de estudos, análises prévias e posteriores do emprego destas políticas em outros

países, buscando um equilíbrio entre as necessidades da população e as intenções do governo,

para que a nação pudesse crescer e se desenvolver.

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3 – GUSTAVO CAPANEMA E A FORMULAÇÃO DO PROJETO DE PROTEÇÃO SOCIAL À FAMÍLIA

Conforme a Constituição de 1937 indicara, o Estado Novo – centralizado sob a figura

de Getúlio Vargas e com caráter autoritário – propunha-se a oferecer compensações às

famílias numerosas. Faltava, entretanto, delimitar exatamente o que vinha a ser uma família

numerosa e como seria esta compensação. Para tanto era preciso conhecer as necessidades das

famílias brasileiras, supor as conseqüências de um sistema de bonificação e defini-lo. Pois,

por exemplo, um sistema de abono que acabasse por substituir o salário, transformando um

trabalhador em mero reprodutor, atrapalharia as intenções do governo de ter cada vez mais

braços trabalhadores. Além disso, este sistema não poderia ferir a dignidade daqueles que o

recebessem e, principalmente, jamais deveria suprir a ausência de um pai. Somado a estas

necessidades, ainda era preciso ter conhecimento do tamanho médio das famílias brasileiras,

do tamanho médio das famílias em condição de miséria, o tamanho da população brasileira,

os custos que um sistema de abono traria ao Estado, como estes custos seriam cobertos, a

quantidade de trabalhadores existentes, a quantidade de trabalhadores que seriam beneficiados

por este sistema e uma infinidade de questões técnicas a esse respeito.

Devido a estas necessidades, Gustavo Capanema pôs-se a pesquisar a respeito desta

questão. Solicitou estudos demográficos, solicitou análises das conseqüências ocorridas em

outros países, produziu leituras a este respeito, debateu com médicos e juristas, questionou as

falhas sociais brasileiras até chegar ao ponto de criar um projeto que seria apresentado ao

presidente Getúlio Vargas. Felizmente, todo este material reunido e produzido pelo ministro

foi conservado por ele mesmo e hoje se encontra sob a guarda do CPDOC – Fundação Getúlio

Vargas, no acervo Gustavo Capanema.

Tomando este material como fonte, buscamos compreender tudo aquilo que ficou nas

entrelinhas deste sistema proposto por Gustavo Capanema. Ou seja, suas intenções,

expectativas, influências e parâmetros.

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3.1 – SOBRE OS ESTUDOS E A PRODUÇÃO DO PROJETO

Gustavo Capanema, nascido em Pitangui – Minas Gerais – no ano de 1900 e tornado

ministro da Saúde e da Educação em 193465, enviou em dezembro de 1938 dois anteprojetos

relativos à delimitação do intervencionismo estatal na família. O primeiro deles referia-se ao

sistema de impostos sobre celibatários e casais sem filhos e o segundo sobre a concessão às

famílias numerosas brasileiras, compensando-as pela quantidade de filhos.

O projeto relativo ao imposto visava criar fundos “para atender a encargos da União,

decorrentes da concessão de benefícios às famílias numerosas e da manutenção da Obra

Nacional de Proteção às Famílias Numerosas”. Ou seja, um imposto direto sobre os

celibatários e os casais sem filhos, incidente aos homens e mulheres improdutivos entre 25 e

64 anos com proventos anuais superiores à seis contos de réis. Além deles, viúvos e viúvas

que se enquadrassem nessas mesmas condições ou casais sem filhos que tivessem renda

agregada superior a nove contos de réis anuais. Conforme o artigo 4º deste projeto, estavam

isentos desse encargo os religiosos com votos de castidade e os que prestavam,

obrigatoriamente, alimentos de acordo com a lei civil. O valor pago por aqueles que se

enquadravam no 2º artigo deveriam pagar 20, 30 ou 40 réis por ano, variando pela idade e

seriam acrescidos de 2% sobre as partes dos proventos que excedessem o piso decretado66.

O segundo projeto relacionado às compensações era mais extenso e complexo.

Restringia as compensações às famílias brasileiras pobres com mais de cinco filhos legítimos

menores de 18 anos de idade. Por família brasileira o primeiro parágrafo do artigo um

determinava que eram assim compreendidas todas as famílias em que pai, mãe ou mais de

cinco filhos vivos tivessem a naturalidade brasileira. Apesar de exigir uma comprovação de

pobreza, o projeto não previa parâmetros para isso. Já quanto à legitimidade dos filhos, o

parágrafo terceiro do mesmo artigo, determinava que somente filhos vivos, legítimos e

naturais – excluindo-se os adotivos – seriam computados67.

As compensações planejadas por Capanema nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º e 6º seriam

destinadas ao chefe de família – compreendido como o pai, exceto quando de sua ausência –

65 Retirado do endereço eletrônico: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_gustavocapanema.htm. 66 CPDOC, op. cit. fotograma 642. 67 CPDOC, op. cit. fotograma.643.

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da seguinte maneira: redução de cinco a dez por cento dos impostos diretos e sobre moradia e

trabalho (federais, estaduais e municipais) para cada filho que excedesse o número de cinco;

isenção total desses mesmos impostos quando o casal tivesse mais de dez filhos; pensão anual

para aqueles que tivessem mais de cinco filhos menores de quatorze anos, sendo concedido

entre 180 e 360 réis para o caso de seis filhos e um acréscimo de 90 a 180 réis por filho

excedente; concessão de lotes nas terras federais, estaduais ou municipais além de distribuição

de instrumentos de utilização agrícola; redução em 20% das taxas de matrícula, freqüência e

exames em escolas particulares ou públicas de nível primário, secundário ou

profissionalizante para cada dois filhos matriculados no mesmo estabelecimento, desde que o

chefe de família tenha a seu encargo mais de cinco filhos menores de vinte e um anos de

idade; preferência nas nomeações e promoções em funções públicas ou de estabelecimentos

mantidos ou administrados pelo poder público68.

O projeto ainda abrange todos os noivos menores de trinta anos que não tiverem renda

anual conjunta superior a seis contos de réis. A eles, prevê-se a concessão de empréstimo no

montante inicial relativo à um ano de salário, resgatável em dez anos, com juros que não

superaram o porcentual anual de cinco. Além disso, o nascimento de cada filho prevê a

redução progressiva do saldo devedor em um valor/porcentual não estipulado69 A justificativa

deste vinha da legislação italiana que considerava o “empréstimo matrimonial como ´lo

strumento piú efficace per la constituzione della famiglia´70”.

Todas essas concessões financeiras seriam pagas pela União em 60%, pelo Estado em

30% e pelo município em 10% - sendo que o distrito federal arcaria com 40%. Além de todas

essas questões aqui anunciadas, o decreto determinava os crimes contra a família, dentre os

quais encontravam-se desvios de pensão e fraudes de declarações para efeito desta lei71.

Exatamente um ano depois, este ante-projeto relativo às compensações às famílias

numerosas foi reapresentado à Getúlio Vargas, devido críticas de Ataulfo Nápoles de Paiva –

presidente do Conselho Nacional de Serviço Social – em fevereiro de 1939, estudos

demográficos de Antonio Siqueira de Almeida e críticas de Oswaldo Aranha e Francisco

Campos. As suas principais mudanças foram o fato de o número da quantidade de filhos

menores necessários para receber o abono ter passado de cinco para oito; uma família

68 CPDOC, op. cit. fotogramas 643/644. 69 CPDOC, op. cit. fotograma 644. 70 CPDOC. op. cit. fotogramas 644 e 764. 71 CPDOC, op. cit. fotograma 644.

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brasileira seria considerada toda aquela que tivesse ou pai, ou mãe ou 50% dos filhos

brasileiros; os impostos sobre moradia e profissão não mais sofreriam reduções ou isenções;

os impostos diretos sofreriam redução de 25% por filho excedente ao número de oito; e a

isenção seria entregue àqueles que tivessem mais de onze filhos72.

O ante-projeto relativo ao imposto sobre os celibatários e os casais sem filhos, as duas

únicas mudanças foram relativas à análise da legislação italiana. Primeiro, a faixa etária seria

entre 24 e 68 anos e, segundo, viúvos e casados sem filhos não seriam responsabilizados, já

que poderiam não ter tidos filhos por razões que iriam além de seus interesses. Como

justificativa informa que “a legislação italiana, tão vigilante e exigente neste terreno do

incremento familiar, não estende o imposto além do solteiro” 73.

Nesse período de um ano, devido às críticas de Francisco Campos e Oswald Aranha ao

projeto apresentado, Capanema deixou registradas diversas respostas ou “defesas” de suas

idéias. Fundamental dentre elas temos um documento remetido à Vargas em que o ministro

demonstra como e porque considera tais atitudes fundamentais para o governo. Primeiro

ponto que ressaltamos desses documentos do acervo de Gustavo Capanema é a preocupação

do ministro em atender os interesses políticos de Vargas, quando formulou as políticas

familiares do Estado Novo. Além, é claro, da óbvia intenção de resposta do Estado às

inquietações de natureza social e moral.

Sendo a família considerada o princípio da sociedade civil e o principal meio de

transmissão de valores e idéias, o governo preocupava-se com a nova “ordem familiar”. Como

as dificuldades financeiras provocavam ou intensificavam o trabalho extraordinário da mulher

e acelerava a inserção dos filhos no mercado de trabalho, o abandono prematuro do ambiente

do lar desfavorecia a manutenção e fortalecimento da família74. Como a política no Estado

Novo era voltada ao trabalhismo, essa derribada da estrutura familiar não seria, a princípio,

um problema real para o Estado. Isso porque poderia definir seus valores e sua hierarquia sem

depender da família. No entanto, como o Estado Novo alinhava-se ideologicamente ao

catolicismo e ao conservadorismo político, a modernização da sociedade podia parecer a

muitos defensores da ordem e da tradição uma ameaça e até mesmo uma desmoralização.

72 CPDOC, op. cit. fotograma 645. 73 CPDOC. op. cit. fotograma 764. 74 FISCHLOWITZ, op. cit. pp. 31.

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Desta forma, a emancipação feminina, o neomalthusianismo e outras transformações sociais

que pudessem ameaçar a família deveriam ser combatidas pelo governo.

Nesse sentido, Gustavo Capanema acreditava ser necessário fortalecer a autoridade do

pai como chefe de família e tornar os vínculos conjugais mais sólidos, afirmando – conforme

em carta para Getúlio Vargas que:

Se o Estado quer, na verdade, proteger a família, se quer evitar a desmoralização a que a sujeitou o direito soviético, se quer dar-lhe caráter sagrado, coloca-la como base da vida moral e portanto como base de todo o progresso da nação, então é preciso que fortaleça os vínculos familiares.75

Para este ministro ligado à Igreja Católica e suas doutrinas desde cedo o

fortalecimento dos vínculos familiares necessitada do retorno do elogio da família patriarcal,

mantendo a esposa dentro de casa para educar os filhos. Apesar de não apresentar nenhum

discurso contrário ao movimento feminista – já enfraquecido na época, mas de grande

influência no início da década de 1930 – Gustavo Capanema apresentou-se em diversos

momentos contrário à emancipação feminina e, principalmente, favorável a uma política

paternalista. Neste quesito, a visão de Capanema corresponde às políticas de proteção social

fascistas e de outros governos autoritários, diferindo das nações liberais européias. Por

exemplo, no caso dos subsídios familiares na Noruega, o abono em dinheiro era entregue à

mãe, conforme a intenção do governo em incentivar a maternidade e apoiando a emancipação

econômica das mães. Posição oposta encontramos na Espanha franquista na qual além do

abono ser pago ao pai, a mulher e sua emancipação que ocorrera durante a II República –

governo anterior ao de Francisco Franco em que o controle de natalidade era comum e o

aborto permitido na Catalunha -, era considerada culpada pelo enfraquecimento da nação, por

masculinizar-se e ocupar funções e empregos que deveriam ser dos homens76.

No Brasil, mesmo com a força de trabalho feminina representando mais do que a

metade da força de trabalho geral, o Departamento de Imprensa e Propaganda “elogia as

mulheres como donas-de-casa, enfatizando que o trabalho era território dos homens”77. Essa

mesma idéia era compartilhada por Gustavo Capanema, porém de forma muito mais

75 CPDOC. op. cit., fotograma 765. 76 NASH. op. cit.pp. 282/292. 77 LEVINE, op. cit. pp. 103.

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segregacionista. Em carta a Getúlio Vargas de junho de 1939 o Ministro afirma a necessidade

de:

(...) educar a juventude para a família. É preciso incutir nela desde cedo o amor e o respeito para com a família, o desejo da vida familiar, a concepção da vida feliz como vida no lar e pelo lar (...) Aos homens deve ser dada uma educação moral que os prepare para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será dada, em todos os seus aspectos, educação doméstica, que as torne amantes do casamento, desejosas da maternidade, aptas à criação dos filhos, capazes da administração da casa78

Notamos, portanto, que Capanema visava, a qualquer custo, reforçar os papéis

femininos e masculinos na sociedade, rompendo – se preciso fosse – com a Constituição,

impondo o voto familiar, o que era inconstitucional pelo princípio do sufrágio universal da

Constituição de 193779. O voto familiar – defendido com vigor na Espanha – representava aos

ideólogos da proteção familiar uma real compensação, já que o peso do voto de um pai de

família seria maior que de um homem solteiro.

Entretanto, a ênfase no fortalecimento familiar por parte de Gustavo Capanema não

deve ser associada somente à manutenção dos valores sociais e morais. Nem mesmo o

intelectual católico mais militante buscaria promover tamanhas mudanças para a pura e

simples manutenção da tradição. Capanema visava, desde que iniciou a elaboração do

decreto-lei de Proteção Social à Família, combater a pobreza, promover a imagem de Getúlio

Vargas como pai da nação, moralizar e restaurar a família. Ou seja, precisamos levar em

consideração suas motivações políticas no contexto do Estado Novo.

Ao defender a maternidade, a infância e a família, o Estado Novo chamava para si a

responsabilidade por assuntos ou problemas que até então eram considerados como exclusivos

da esfera familiar e da autoridade paterna, ou então, nos casos de incapacidade ou ausência da

figura paterna, atribuição da filantropia. Conseqüentemente, a intervenção do Estado na

família com o objetivo de salvar a infância e melhorar a qualidade da população brasileira,

contribuiu para a divulgação de um modelo normativo de maternidade e paternidade, bem

como do próprio regime ao consolidar a imagem de Vargas como pai protetor dos desvalidos

78 CPDOC. op. cit. fotogramas 767/768. 79 CPDOC. op.cit. fotograma 767.

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e também a imagem do Estado Novo, como sendo inaugurador de uma nova era para o país e

em especial para os pobres. Portanto, Vargas consegueria através desta proteção fortalecer

uma imagem de pai dos pobres. Capanema demonstrava já em março de 1938 a importância

política de interferir na infância, ao concordar com o evolucionista John Fiske, de que “uma

infância prolongada é uma característica da espécie humana propícia à sua evolução, por isso

que a plasticidade extraordinária desse período abre uma grande possibilidade à educação80”.

Portanto, momento extremamente propício de incutir-se valores familiares, os quais estão

incutidos de interpretações do governo.

Quanto à visão de Capanema a respeito das mulheres, não podemos afirmar que era

um anti-feminista. As fontes nos mostram que ele valorizava a mulher, desde que associada à

maternidade. Deste modo, mesmo afirmando que somente do pai “é que depende a

continuidade da nação” pela sua capacidade de comando, Capanema ressalta que “se o Estado

quer que as famílias sejam fecundas, deve considerar a maternidade como o mais grave dos

deveres, e deve cercá-la de toda a proteção: proteção jurídica, proteção moral e proteção

material81”. Assim, Capanema não demonstra em nenhum momento considerar o homem

superior ou inferior à mulher. Demonstra, isto sim, que acreditava nas diferenças naturais

entre os dois sexos, e que a homogeneização promovida pela nova ordem social era

desfavorável para ambos. Afirma, inclusive, que em relação às mulheres solteiras, a ausência

em casa não produz nenhum mal. Porém, as casadas “são para os seus lares o princípio da

ordem, da economia e do bem estar. É da sua presença contínua e vigilante que depende a boa

criação e a regular educação dos filhos”82, os quais são o objetivo maior da família.

A intenção de proteger a maternidade em todos os aspectos é fundamental para

compreendermos como Capanema situava o Brasil na questão da proteção familiar. Ciente

dos estudos e experiências européias com sistemas de Abono Familiar, devido à pesquisa

promovida por Olinto de Oliveira em 193783, o ministro encontrou no Brasil as mesmas

necessidades das nações européias analisadas por Oliveira. Portanto, percebeu que o tamanho

da família tinha relação direta com a miséria, já que uma mesma renda que sustentava um

casal deveria ser empregada para alimentar a prole. Era necessário, portanto, proteger as

80 CPDOC, op. cit. fotogramas 708/709. 81 CPDOC. op.cit. fotograma 766. 82 CPDOC. op.cit. fotograma 768. 83 GOMES, op.cit.

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famílias pobres e numerosas se o governo desejasse tornar o Brasil um país digno para seus

cidadãos, os quais formam a verdadeira força de qualquer nação.

Deste modo, cada vez mais Capanema passa a defender em seus escritos a idéia de que

uma nação forte é formada por uma população grande e saudável. Analisando as políticas de

proteção familiar européias que se caracterizavam – de modo geral – pelo combate à pobreza,

queda da natalidade e desemprego, sendo que as políticas fascistas adotavam uma medida

basicamente pró-natalista e moralista, o ministro acabou formulando para o Brasil um modelo

que correspondia a outra realidade, já que a Itália, inserida em um longo processo de queda

das taxas de fertilidade, redução do crescimento vegetativo e enorme emigração, nada parecia

com a realidade brasileira.

A política fascista de proteção familiar fora definida apenas em 1942, apesar da

movimentação social e legislativa ter se iniciado em 1926. Nestes anos intermediários, a

principal fraqueza da Itália – acreditava o governo de Mussolini – era a queda das taxas de

fertilidade, iniciadas no século XIX. Deste modo, assistência às mães e filhos, impostos sobre

solteiros, reduções fiscais de acordo com o tamanho da família, subsídios familiares e “bônus

fertilidade” foram inseridos na política fascista entre os anos de 1926 e 1939. Visando mais o

pro-natalismo do que o bem-estar da população, o Estado posicionou-se como companheiro

protetor e exigente da família, a qual tem como dever a procriação. Utilizando-se dos auxílios

e compensações financeiras, o Estado italiano utilizava-se também da propaganda em prol da

família numerosa e censurava a ausência materna em casa84.

Entretanto, Capanema não adotou simplesmente o modelo fascista sem antes estudá-

lo. No início de junho de 1939 o ministro recebeu um estudo estatístico bastante completo

referente à demografia brasileira. O trabalho apresentava dados sobre a evolução

demográfica; época prevista para que o Brasil atingisse cem milhões de habitantes; número

médio de filhos das famílias brasileiras; e número de nascimentos, óbitos, casamentos ao

longo de alguns anos no Brasil. O trabalho direcionava-se, ainda, para a questão do Abono

Familiar e apresentava estudos sobre fixação do tipo médio de família e abono familiares,

produzidos por Clodoveu de Oliveira e Paulo de Sá85.

84 SARACENO. op. cit. pp. 339-347. 85 CPDOC. op. cit. fotogramas 724-742.

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Comparando alguns dados da documentação de Capanema aos dados atuais do

IBGE86, podemos perceber a qualidade do estudo. Por exemplo, estimou-se no trabalho uma

população de cem milhões de habitantes para o ano de 1980. Número próximo ao

119.002.706 que corresponde à população em 1980, sendo que a marca dos cem milhões de

habitantes foi atingida em fins da década de 1970. Mais importante ainda, é o fato dos dados

do IBGE corresponderem aos do estudo recebido por Capanema referente ao tamanho da

população brasileira para os anos de 1920 (30.635.605) e 1890 (14.333.915); e serem bastante

próximos nos anos de 1900 (estudo demonstra 17.318.556 contra 17.438.434 do IBGE) e

1872 (10.112.061 contra 9.930.478)87.

No entanto, seguindo a visão ideológica sobre a importância do crescimento

populacional conforme apregoavam os teóricos fascistas, Capanema apresentava uma visão

temerária sobre os dados brasileiros, acreditando que o Brasil seguiria o mesmo caminho que

a Itália e a vizinha Argentina, sobre a qual recebeu dados estatísticos sobre a demografia em

fins de maio de 1939. Estes estudos publicados no final de abril de 1939 continham

informações sobre a população argentina (12.958.217); seu crescimento relativo, vegetativo e

imigratório relativos ao ano anterior; forma de imigração; saldo imigratório divididos por

nacionalidade e região de instalação; número de casamentos; de nati-mortos; e muitos outros

dados demográficos88.

Porém, do mesmo modo que a Itália, a Argentina encontrava-se em situação bastante

diferente da brasileira. Enquanto o Brasil era um país exclusivamente rural e com níveis de

desenvolvimento humano baixíssimos, a Argentina era bastante urbanizada e já apresentava

características de seu processo desenvolvimentista como queda das taxas de crescimento

médio e de altos níveis de desenvolvimento até a década de 1950, década na qual o Brasil,

finalmente, começaria a equiparar-se ao país platino. Além disso, enquanto a Argentina

começava a apresentar taxas baixas de crescimento vegetativo, 15% da população era formada

por imigrantes, percentual quase oito vezes maior que a participação de imigrantes na

realidade brasileira: 2%89.

86 Retirados do endereço eletrônico: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico.shtm. 87 CPDOC. op.cit. fotograma 725 e endereço eletrônico: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1872_1920.shtm 13 CPDOC. op.cit. fotogramas 710-715. 89 MERRICK, Thomas W. “A População da América Latina, 1930-1990”. in BETHELL, Leslie (org.). “História da América Latina, vol. 6: A América Latina após 1930”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005, pp. 260.

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Entretanto, Capanema tinha uma visão bastante temerária sobre o futuro e considerava

fundamental a necessidade de “braços para povoar o imenso território brasileiro90”, já que

seus dados apresentavam que 64,32% do território nacional tinham densidade inferior a 1

hab/Km2, sendo que regiões como a central amazônica obtinha densidade de 0,15 hab/Km291.

Apesar das preocupações do ministro a situação demográfica brasileira era bastante segura. A

queda da taxa de natalidade só ocorreria após a Segunda Guerra Mundial, como resultado

comparativo ao período de enorme imigração recebida desde 1870 até 1930. As taxas de

mortalidade se reduziriam em conseqüência dos investimentos na saúde, na puericultura, no

combate às epidemias e pelo controle da saúde dos imigrantes desde 1937. O uso irrisório de

anticoncepcionais dava ao Brasil um crescimento parecido ao resto da América Latina92.

Crescia, no entanto, a preocupação de Capanema com a necessidade de incremento da

natalidade no Brasil, levando-o a produzir projetos de proteção familiar com caráter

claramente pró-natalistas. E essa era a razão para que celibatários e casais sem filhos fossem

taxadas para auxiliarem economicamente nas políticas de proteção à família, conforme o

primeiro projeto de decreto lei enviado à Vargas em 1938.

Percebemos, portanto, que o Abono Familiar promovido por Gustavo Capanema tinha

uma visão muito mais pró-natalista do que de combate à pobreza, exatamente como eram as

legislações italiana, alemã e espanhola a este respeito93. Assim, o ministro encarava esta

política de proteção social à família como uma compensação aos cidadãos trabalhadores

pobres pela sua contribuição à nação com a reprodução dos braços que fomentariam o

progresso futuro da nação. No entanto, a intenção geral do governo era auxiliar os pobres,

conforme Ataulfo Nápoles de Paiva lembrou Gustavo Capanema em carta datada de fevereiro

de 193994. Capanema alegaria, no entanto, que a função do auxílio às famílias pobres ficaria

por conta dos serviços prestados nas clínicas de maternidade e postos de puericultura, sendo

responsabilidade do sistema de abono não só combater a penúria, como promover a natalidade

de famílias bem constituídas pelo casamento, mas desafortunadas.

Interessante ressaltar, entretanto, que tamanha preocupação com o incremento da

natalidade através do Abono Familiar não teve sucesso. Ignorando a existência de dados sobre

90 CPDOC, op. cit, fotograma 652. 91 CPDOC, op. cit. fotograma 725. 92 MERRICK, op. cit., pp. 232,236,242,251. 93 FISCHLOWITZ. op. cit. pp. 56-58. 94 CPDOC. op. cit. fotograma 655.

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o período italiano com políticas pró-natalistas como entre 1928 e 1932 em que a taxa de

natalidade sofreu queda de 10%95, Capanema foi influenciado pela carta de Ataulfo Nápoles

de Paiva que apresentava os resultados do emprego do abono familiar em Paris, onde as taxas

de natalidade cresceram 63% entre as famílias beneficiadas, a mortalidade geral foi 69%

menor e a mortalidade infantil reduziu-se à metade96. Como Paiva não apresentou a

peculiaridade francesa na qual as taxas anteriores haviam atingido um dos níveis mais baixos

já existentes e, portanto, facilmente superadas, Capanema pôde enganar-se perfeitamente em

relação à potência demográfica do abono.

Quanto à influência da Igreja Católica sobre Capanema – inegável pelo fato de ele

considerar-se um intelectual católico – não encontramos nenhuma referência direta aos

documentos pontifícios. Porém, notoriamente, todo o seu discurso e a intenção moralizante

assemelham-se à retórica de Leão XIII na Rerum Novarum97 como a importância da família

patriarcal e hierárquica e da necessidade de um sistema financeiro que auxiliasse as famílias

numerosas. Obviamente não podemos afirmar que Capanema elaborou seu projeto a partir das

recomendações da encíclica, afinal, as idéias pronunciadas pela Igreja Católica a partir de

maio de 1891 já estavam difundidas entre os intelectuais conservadores e também liberais, em

especial pela justificativa de negação do socialismo presente no documento pontifício.

Quanto à preocupação de Capanema com a demografia, surpreendeu-nos a quantidade

de material reunido pelo ministro a este respeito e a escassez de dados econômicos. Apesar de

saber-se da “ênfase do decreto-lei [que] foi no incremento da natalidade”98, não

imaginávamos que Capanema tivesse se preocupado tanto a respeito desta questão no Brasil, a

ponto de solicitar um trabalho bastante extenso e completo sobre a demografia brasileira e de

solicitar pesquisa sobre a demografia argentina.

Deste modo, diferentemente do que Fischlowitz afirmara sobre o abono familiar na

América Latina, que visava o amparo social às famílias de classe mais pobre e o

fortalecimento dos laços familiares99, o projeto de Capanema visava muito mais o incremento

95 FISCHLOWITZ. op. cit. pp. 58. 96 CPDOC. op. cit., fotograma 656. 97 LEÃO XIII. op.cit. 98 MARTINS, op. cit. pp. 109. 99 FISCHLOWITZ, op. cit. pp. 223/224.

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da natalidade do que o combate ao pauperismo, o qual, segundo Oliveira Viana era o principal

obstáculo para o casamento no Brasil100.

Como vimos, esta preocupação com a demografia é herança das legislações fascistas

da Itália e Espanha que inspiraram Capanema, corroborando a análise desenvolvida por

Martins, de que “inspirado nas políticas familiares fascistas em curso na Itália e na Espanha,

Capanema formulou uma proposta de intervenção” estatal101. Importante ressaltar, no entanto,

que enquanto a legislação italiana foi citada de forma direta e constante pelo ministro, a

espanhola serve muito mais de parâmetro para análises a respeito da política familiar do

Estado Novo, apesar de ser certamente influente.

100 MARTINS, op. cit. pp. 108. 101 MARTINS, op. cit. pp. 107.

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CONCLUSÃO Ao término deste trabalho cremos ter formulado respostas aos objetivos prévios geral e de

cada capítulo. No primeiro capítulo pudemos perceber como ocorreu a transformação do Estado

nos países europeus ocidentais. Assim, explicitamos as razões da crítica aos governos liberais e a

solicitação por um Estado que “salvaguardasse seus cidadãos (...) do infortúnio da miséria

imerecida102”. Deixamos claro, ainda, que a crise era interpretada de duas formas distintas, apesar

de solicitar as mesmas atitudes do Estado. Estas duas interpretações, a saber, a feminista e a pró-

natalista, estiveram presentes em todos os países debatendo como se daria a proteção do Estado.

Deste modo, o fator determinante para que cada país direciona-se sua política interventora de

acordo com uma dessas duas interpretações foi a legitimação que os sujeitos que as defendiam

obtinham na sociedade. Assim, países com forte cultura católica, paternalista e conservadora

privilegiaram a interpretação pró-natalista da crise. Por outro lado, países menos conservadores,

com movimentos feministas mais organizados e emancipados, privilegiaram a interpretação

feministas.

O caso brasileiro, como notamos no segundo capítulo, apesar de iniciar a sua intervenção

na família baseada nos moldes da intenção dos médicos – ou seja, protegendo a infância e a

maternidade – não seguiu o mesmo caminho de países como a Noruega e Grã-Bretanha. Isto está

ligado à escassa expressão feminista a nível nacional, ao forte conservadorismo da população e,

principalmente, ao caráter autoritário e paternalista do Estado Novo de Getúlio Vargas. Assim,

como a intervenção na família ficou bem definida somente no período estado-novista, apesar de

ter se iniciado na década de 1930 e estar presente nas constituições de 1934 e 1937, ela acabou

privilegiando a manutenção da tradição, dos valores e dos costumes e o incremento populacional,

deixando em segundo plano – mas não ignorando – o combate à penúria e aos problemas sociais.

Importante nas definições do Estado a respeito de seu papel interventor, como vimos, foi o

ministro da educação e da saúde, Gustavo Capanema. Apesar de seu projeto ter sofrido mudanças

estruturais até ser empregado como decreto-lei em 1941, foi este intelectual católico que se

debruçou sobre como produzir um sistema de proteção à família que fosse congruentes às

intenções do Estado, à doutrina católica e às necessidades da população. Ficou claro, no entanto,

que esta sua visão deliberadamente aproximou o Brasil de países como Itália, França, Espanha e

Alemanha neste quesito. Esta aproximação ficou explícita ao encontrarmos citações da legislação

italiana no que se refere à família e pela quantidade de material relacionado à questão

demográfica.

102 LEÃO, op. cit.

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