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PROTGORAS E GRGIAS: SOBRE AS REAES FILOSFICAS
SOCRTICO-PLATNICAS
Marcos Roberto Damsio da Silva1
RESUMO: O advento dos sofistas () no cenrio intelectual do mundo antigo
o que propulsiona a filosofia de Plato cobrando dele uma sofisticada elaborao
filosfica. Propomos aqui, tecer algumas consideraes sobre a controversa figura dos
sofistas: Protgoras e Grgias e as reaes, no muito amistosas, de Scrates e Plato.
Abordaremos, ainda que de forma introdutria, os temas da verdade () e do
relativismo, da retrica () e do ceticismo, temas que julgamos fundamentais
para um contato inicial com esses pensadores que, embora vilipendiados por parte da
tradio, contriburam de forma significativa para a efervescncia cultural e poltica dos
sculos V e IV a. C., e que ainda hoje despertam interesses diversos na pesquisa
filosfica.
Palavras-chave: Scrates, Plato, Sofistas, Retrica, Relativismo.
ABSTRACT: The advent of the sophists () in the intellectual scene of the
ancient world is what propels Plato's philosophy by charging him with a sophisticated
philosophical elaboration. We propose to make some considerations about the
controversial figure of the sophists: Protagoras and Gorgias and the not very friendly
reactions of Socrates and Plato. We will approach the themes of 'truth' () and
relativism, 'rhetoric' () and 'skepticism', which we consider fundamental for an
initial contact with these thinkers who although vilified by part of the tradition,
contributed significantly to the cultural and political effervescence of the fifth and
fourth centuries BC and that still today arouse diverse interests in philosophical
research.
Key-words: Socrates, Plato, Sophists, Rhetoric, Relativism.
I. Consideraes iniciais: a figura do sofista.
A princpio, ainda em Homero e Hesodo2 os dois grandes formadores da
cultura helnica e at mesmo para o historiador Herdoto, o termo sofista
1 Doutorando em filosofia na linha de pesquisa: Filosofia Antiga e Medieval, pelo Programa de Ps-
graduao em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. 2 Para uma pesquisa mais detalhada, Alm de Diels-Kranz, conferir: UNTERSTEINER, Mario (org).
Sofisti: Testimonianze e frammenti. Frorena: La Nuova Itlia, 1967; UNTERSTEINER, Mario. La
fisiologia del Mito. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1946; CASSERTANO, Giovanni. Natura e
istituzioni umane nelle dottrine dei sofisti. Npoles-Florena, 1971; CASERTANO, Giovanni. La
103
() j fazia referncia a homens sbios3 (), tais como poetas, oradores e
at mesmo filsofos4, dos quais posteriormente, distinguir-se-ia radicalmente.
somente no final do perodo pr-socrtico5, isto , depois da atuao intelectual de
Parmnides, Herclito, Anaximandro e muitos dos naturalistas jnicos, aqueles que se
preocupavam, sobretudo com a fundamentao dos elementos primordiais ou os
princpios () da natureza (), que surgem os sofistas com um discurso
novo voltado especificamente para as questes sociais, morais e polticas.
Os sofistas estavam no centro da efervescncia intelectual dos sculos V e
IV a. C., no apogeu da cultura clssica. Foram educadores itinerantes que atuavam de
maneira independente, sendo bem remunerados por suas aulas, e tidos como os novos
educadores do mundo helnico. Foi justamente a postura em cobrar por suas aulas que
lhes trouxera m-fama e controvrsias. Xenofonte, filsofo e historiador6 grego, e que
segundo Digenes Larcio, tornou-se discpulo de Scrates aps ouvir um segue-me,
ento, e aprende ( , , .7), por exemplo, em sua
Memorabilia (), assim se refere aos sofistas: os que vendem a
sabedoria a qualquer um que aparea so chamados sofistas, que o mesmo que
prostitutos (
( ))8. Tambm Plato no Sofista afirma acerca dos sofistas: o
outro se volta para a terra e para rios de um outro tipo: rios de riqueza e juventude (
[] , 9).
Todavia, uma coisa certa e faz-se necessrio pontuar aqui. sabido, que j
com os sofistas, antes mesmo de todos, inicia-se a mudana de perspectiva da filosofia
naturalista, fortemente presente na cosmologia jnica e voltada sobre a investigao da
natureza ( ), para uma forma em que se torna comum pensar
filosoficamente as relaes sociais e polticas, ou seja, aquela que Ccero em suas
Tusculanes erroneamente atribuiu exclusivamente a Scrates, qual seja, fez descer a
nascita della filosofia vista dai greci. Npoles: Petite Plaisance, 1977 e GUTHRIE, W. K. C. Os
sofistas. Traduo de Joo Rezende Costa. So Paulo: Paulus, 1995. 3 CASERTANO. La nascita della filosofia vista dai greci. pp. 27-28. 4 Os Sete Sbios foram, por Aristteles, mais tarde, chamados de sofistas, ARISTTELES, Fr. 5 Ross. 5 Terminologia padro desde a monumental obra de Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, a
qual faremos uso aqui para citar tanto os testemunhos como os fragmentos dos pr-socrticos, citados
sempre como a abreviao DK (Diels-Kranz). 6 , . , II, 48: primeiro filsofo a
escrever obras histricas ( ). Abreviado para: DL. 7 DL, II, 48. 8 XENOFONTE, Memorabilia. 6, 13. 9 PLATO, Sofista, 222a.
104
filosofia do cu a terra10. Esta perspectiva j est de certa forma presente em outros
filsofos pr-socrticos, por exemplo, em Demcrito de Abdera, embora no to bem
pensada e articulada como na obra dos sofistas, pois boa parte dos fragmentos
democrteos de cunho tico.
Vale salientar, tambm, a importncia dos sofistas na educao e no
desenvolvimento intelectual dos cidados adultos no seio do povo helnico. Ora, a
educao de um jovem grego () era bastante curta, pois estes eram, desde a
infncia, educados por um escravo () ou professores de baixa condio social e
mal pagos11, sendo esta educao limitada trs reas principais: alfabetizao bsica
(incluindo, as vezes aritmtica e ensinada por ), msica e educao fsica,
e at aos dezesseis anos completava-se a educao normal. O programa de ensino
proposto pelos sofistas era de uma educao superior12, predominantemente para
filhos de homens ricos, e que completaria o currculo bsico normal, isto , tratavam de
temas os mais variados, desde questes cientficas, arte, legislao, teoria poltica e
moral, mas, sobretudo, e o que caracterizava a educao sofstica, a arte retrica. Tudo
isso com o intuito de formar jovens bem-sucedidos na vida pblica e privada, cidados
capazes de exercer funes pblicas com devida habilidade e virtude poltica
( ).
somente com Plato que o termo sofista comea a ganhar um novo
significado, mais especfico e entendido em referncia ao termo filsofo (),
ou seja, passa a ser associado negativamente retrica e ao relativismo, diferenciando
de filsofo amigo do saber embora Scrates afirmasse nada saber13 que busca
apreender a verdade e produzir um discurso verdadeiro e objetivo. a partir do sculo
IV a. C., em Atenas, que o termo passa a ser usado num sentido mais tcnico e, no
entanto depreciativo, indicando um homem de argumentaes desonestas,
descompromissado com a verdade e que cobrava fortunas para ensinar assuntos dos
quais no tinha o devido conhecimento. Nas palavras de Aristteles, Protgoras, por no
10 CCERO, Tusculanes, V, 11. Scrates foi o primeiro a convidar a filosofia a descer do cu, e instalou-
a nas cidades, introduziu-a nos lares e imps-lhe o estudo da vida, dos costumes, das coisas boas e
ms. 11 JONES, O mundo de Atenas, p. 174. 12 JONES, O mundo de Atenas, p. 178. 13 PLATO, Apologia de Scrates, 21d: aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sab-la,
enquanto eu, como no sei nada, tambm estou certo de no saber. (
, , , ).
105
est compromissado com a verdade, preocupava-se em tornar mais forte o argumento
mais fraco14. E nas palavras de Cassertano:
sinnimo de homem sagaz, pronto a sustentar uma tese ou,
indiferentemente, a tese contrria; caviloso, mais ou menos pedante e
mais ou menos algum de m-f; homem que adultera os discursos
com excessivas sutilezas, que se agarra teimosa e pedantemente a toda
palavra ou conceito expresso por um interlocutor e sobre cada um
deles tem o que falar, pelo simples gosto de contradizer; homem
fraudulento, que recorre a todos os truques da linguagem para
prevalecer na discusso, ou simplesmente para ser aplaudido pelo
pblico; enfim, um homem aborrecedor, que no tem nada a dizer e
que todavia no faz outra coisa seno falar.15
Plato escreveu diversos dilogos dedicados aos sofistas e s suas
controvrsias, os quais a tradio denominou com seus prprios nomes. Destacamos
dois, que aqui trataremos: O Grgias, com a temtica central sobre a retrica ()
e o Protgoras, sobre a virtude (), como tambm alguns outros, como Hpias
Maior e Menor e Eutidemo. Sabe-se que ambos, tanto Grgias como Protgoras,
ensinavam diversos temas, mas, como todos os sofistas, estavam comprometidos, acima
de tudo, com a arte da persuaso (), sendo os primeiros a racionalizar o
discurso16 estabelecendo norma e regras, tanto para a gramtica como para a oratria.
Embora a filosofia como pensada pela tradio no seja a principal ocupao dos
sofistas, eles se debruaram tambm sobre temas correntes de sua poca, como
epistemologia, cosmologia, fsica, matemtica e outros, tambm ensinavam mtodos de
argumentaes que suscitaram as maiores controvrsias com os filsofos. Neste mbito,
Aristteles seu maior opositor, acrescentando retrica a necessidade lgica nos
argumentos.
Destarte, a partir desse plano de fundo histrico, analisaremos, de forma
introdutria, apenas as contribuies de dois dentre os principais pensadores da primeira
gerao de sofistas, isto , a antiga sofstica ( ) como designada
14 DK 80 A 21; STEFNIO DE BIZNCIO, s. v. : ,
. Cf.
tambm ARISTTELES, Retrica II, 24; p. 1402a 23: (B 6
b) .
,
. 15 CASERTANO, Sofistas. p. 9. 16 Digenes Larcio afirma que Protgoras foi o primeiro a distinguir os tempos verbais (
) DL, IX, 52; DK 80 A1, e a distinguir quatro tipos de discursos: splica,
pergunta, resposta e comando ( , , ,
) DL, IX 53.
106
por Filostrato, gerao esta que est intrinsecamente ligada s transformaes
econmicas, polticas, sociais e culturais dos sculos V e IV a. C., e os quais exerceram
importantssimas influncias sobre o movimento sofistico posterior, denominado
tambm por Filostrato de a segunda sofistica ( ), mas, que
sobretudo causaram reaes significativas na filosofia de Plato e Aristteles, a saber,
Protgoras e Grgias.
Enfatizaremos tambm, os dois temas que julgamos serem os principais na
relao entre Scrates, Plato e os Sofistas (Grgias e Protgoras), os problemas
relativos verdade e o relativismo e retrica e o ceticismo. Destes dois temas
desdobram-se outros diversos como a questo da linguagem, dos discursos opostos
( ), a relao nmos-phsis, a noo de eiks e, sobretudo, o problema da
verdade (). A relao entre esses pensadores d-se, a princpio, por causa da
figura controversa de Scrates e a noo de verdade. Na stira de Aristfanes, As
Nuvens17, Scrates retratado como um sofista e sua figura destorcida. Segundo Sexto
Emprico, com Plato que a retrica considerada como mera arte de persuaso, e
escreve contra os retricos: A Retrica a criadora da persuaso por meio das
palavras, tendo sua eficcia nas prprias palavras, sendo persuasiva, e no instrutiva
( , ,
, 18). O prprio Plato, por sua vez, representa Grgias como
uma pessoa preocupada em produzir um discurso convincente, visando obter apenas
seus prprios objetivos19. Ora, esta forma negativa de compreender a retrica estendeu-
se aos atomistas posteriores, como Epicuro que, por exemplo, instruiu seus discpulos a
no envolverem-se com retrica nem com discursos bajuladores na gora, como
tambm no se intrometerem na vida poltica (ode politesestai)20. A afirmao de
que o prprio Epicuro ordenara a Hermarco que se mantivesse distante dos
discursos21, , todavia confirmada por Ccero quando afirma textualmente: a arte da
discusso no existia entre eles [os epicuristas]22.
II. Protgoras: verdade e relativismo
17 As Nuvens () Comdia representada em 423 a.C., durante o festival das Grandes Dionsias
( ). Obteve o terceiro e ltimo lugar. 18 SEXTO EMPRICO, Contra os retricos, 2. 19 PLATO, Grgias, 453a. 20 Cf.: GIGANDET, Alain, et al, Ler Epicuro e os Epicuristas. p. 16. 21 DIGENES DE ENOANDA. Fr. 127 Smith. Cf: GIGANDET, Alain, et al, Ler Epicuro e os
Epicuristas. p. 13. 22 CCERO, De Fin, I, VIII, 26.
107
Protgoras reconhecido pela tradio como o primeiro mais bem
sucedido autoproclamado sofista23. Natural de Abdera, provavelmente tenha sido
discpulo de Demcrito, como nos informa Eusbio24, tornou-se muito rico25 como
professor de retrica e, segundo Plato, desenvolveu sua arte () durante mais de
quarenta anos26, e ainda ao tempo de Plato era muito famoso: e por todo esse tempo,
e ainda at o dia de hoje, no cessou absolutamente de ter excelente reputao (
)27. Se
por um lado sua fama de sbio se espalhou por toda Grcia, por outro, no faltou-lhe
quem o perseguisse. Digenes Larcio relata que por causa do seu livro Sobre os deuses
( ), muitas das suas obras foram queimadas publicamente na gora e
Protgoras fora condenado morte e teve que fugir para a Siclia, vindo a morrer num
naufrgio:
Protgoras foi banido pelos atenienses e seus livros foram queimados
na praa do mercado, depois de mandarem confiscar por um arauto
todos os exemplares de cada um de seus possuidores [...] Filcoros diz
que durante uma viagem Siclia sua nau afundou, e que Eurpides
alude ao naufrgio no Ixon. Alguns autores afirmam que o filsofo
morreu durante a viagem, aos noventa anos de idade.28
As obras de Protgoras que nos chegaram, mesmo que mutiladas pelo tempo
e no muito confiveis, so duas, segundo Untersteiner: as Antilogias () e a
Verdade ( ). Digenes Larcio foi o autor antigo responsvel
por conservar um catlogo das obras de Protgoras nas suas Vidas e doutrinas dos
filsofos ilustres. Ainda segundo Untersteiner, o catlogo de Digenes Larcio no
transcreve todas as suas obras, mas contm somente os subttulos das Antilogias29.
23 WOODRUFF, Paul. Retrica e relativismo: Protgoras e Grgias. In: Primrdios da filosofia grega. p.
367. 24 DK 80 B8; EUSBIO, Praep. Evang. XIV, 3, 7. Esta notcia controversa, pois possvel que no
haja uma relao entre discpulos, mas sim uma influncia de Demcrito sobre Protgoras, o que
depende muito das cronologias antigas, sobretudo de Apolodoro e Diodoro. Fato que tambm se
levanta hiptese do contrrio, isto , que Demcrito que tenha sido discpulo de Protgoras, cf:
ALFIERI, V. E.. Atomos Idea: Uorigine del concetto delltomo nel pensiero greco. Florena, 1953. 25 Digenes Larcio afirma ter sido ele o primeiro a cobrar por suas aulas (DL, IX, 52): ele foi o
primeiro a exigir cem minas a ttulo de honorrios ( ). 26 DK 80 A8; PLATO, Mnon. 91e. Digenes Larcio traz a mesma informao em DL, IX, 56 e
acrescenta que o filsofo estava no apogeu na 84 Olimpada (
) ocorrida em 444-441 a. C. 27 Idem. 28 DL, IX, 52-55, DK 80 A1. Sexto Emprico tambm informa o mesmo fato em Adv. Mat. IX 55-56. 29 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 37.
108
Esta obra, segundo Digenes Larcio, est dividida em duas partes (
30). Para Untersteiner as Antilogias tratam de quatro problemas fundamentais: Sobre
os deuses ( ), Sobre o ser ( ), sobre as leis e todos os problemas
que concernem ao mundo da plis que culminaria na sobre a virtude poltica (
) e por fim Sobre as artes ( ).
O relativismo protagrico pode ser observado no s no campo da
epistemologia, mas tambm no campo da tica e da poltica, campos distintos na cabea
do homem grego do sculo V a. C., Protgoras relativizava a realidade na qual o homem
est inserido e afirmava o conhecimento individual com base nos dados vindos das
experincias sensveis. Esta realidade est dada ao homem, ele no a cria, sendo apenas
capaz de transform-la, isto , de d realidade a tudo aquilo que se encontra diante
dele. O homem possui uma capacidade natural de interagir com sua realidade, sua
cultura e seus costumes e, perceb-la a condio necessria para emisso de juzos.
Sendo assim, as sensaes devem relacionar-se sempre com o entendimento
elementos constitutivos do logo, esta relao que garante os ajuizamentos,
no necessariamente juzos verdadeiros ou falsos, o que no importa ao sofista, mas sim
devendo ser til ou prejudicial, aceitvel ou no.
Da decorre a tese famosa de Protgoras, de que necessrio tornar melhor
o discurso pior31. Ora, se o conhecimento se presta a fins prticos, isto , para uma boa
atuao pblica, seja nas cortes imperiais, nos juris ou mesmo nas ruas, no dia-a-dia
com as pessoas comuns, faz-se importante desenvolver habilidades da fala ( ).
preciso competncia para convencer, logo, discursos fracos, que no demonstram
fora e confiana, no servem. Logo, tornar melhor, implica no na sua adequao
com a verdade, pois esta sempre relativa e depende sempre da percepo humana dos
fatos, mas sim, de como melhor externada no discurso, isto , trata-se de uma questo
de forma e no de contedo. Esta maneira de pensar a realidade conduziu indisposio
dos filsofos. A verdade (), como pretendida por Scrates e Plato, a verdade
ideal, apreendida apenas intelectualmente ou via reminiscncia da forma () e
legitimadora de toda realidade sensvel, mostrava-se, agora, impossvel e desnecessria
para Protgoras, antes disso, o verossmil ou a razoabilidade () uma caracterstica
fundamental.
30 DL, IX, 55. 31 DK 80 A21.
109
Desta forma, a questo visceral para os sofistas, como tambm para
Protgoras a questo dos discursos (). Ora, uma vez que a experincia sensvel
() s oferece dados particulares e o Ser () absoluto como introduzido por
Parmnides e a tradio eleata, no possvel, pois a verdade extrassensvel algo
inalcanvel, tornando-se inalienveis as questes pertinentes linguagem e assim, o
discurso ganha primazia. Destarte, para Protgoras a certeza relativa ao indivduo e
est na ordem de seu domnio (), ser verdadeira ou segura na medida em
que se torna fenmeno.
Na esfera religiosa, importantssima para o homem grego, ao falar dos
deuses, por exemplo, Protgoras afirmava ser impossvel conhec-los pelo fato de que
no podem ser objeto de conhecimento sensvel (
32), ou simplesmente mostrar-se, isto , dar-se como fenmeno. A existncia
ou a no existncia dos deuses para Protgoras algo impossvel de precisar, visto que
uma experincia () ou uma manifestao acerca dos deuses no se efetiva,
ou seja, no se manifesta na experincia humana conforme a correspondente
capacidade cognitiva33, restando ao homem contentar-se apenas com as opinies
() disseminadas pelas diversas religies.
J no mbito epistemolgico, como se pode perceber mais precisamente no
conhecidssimo fragmento do homo mensura: o homem a medida de todas as coisas
( 34), onde repousa, de forma explcita e
bastante discutida, o seu relativismo, tanto epistmico como tico. Segundo
Untersteiner, esta famosa proposio tem como objetivo construir algo de cientfico,
superando assim os conflitos nascidos das diversas opinies que se expressam nos
(discursos duplos). Neste sentido, parece-nos que Protgoras vislumbrava
um domnio pertinente e exaustivo das experincias, e o homem entendido como o
sujeito de todo () conhecimento, e isto implica, necessariamente, tanto na
esfera do (o homem individual), da opinio particular, como do (o
homem universal), uma saber universal, isto , no sentido de que qualquer homem
pode produzir um saber de qualquer coisa.
Segundo Cassertano, precisamente a questo da verdade que divide
Protgoras de Plato [e, necessariamente o sofista do filsofo], o qual critica a
32 DK 80 B4; DL, IV 51. 33 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 62. 34 DK 80 B1. O fragmento foi conservado por: PLATO, Teeteto. 151e 152b e SEXTO EMPRICO,
Adv. Mat. VII, 60; Hipotipses Pirrnicas, I, 216.
110
consequncia mais evidente do princpio do homo mensura, ou seja, que cada
representao, cada juzo, cada discurso, verdadeiro35. A natureza da verdade para
Protgoras est inteiramente ligada natureza dos sentidos () segundo B1, se
claro, entendermos no como critrio de avaliao, como entende Sexto
Emprico, mas como domnio36, tanto dos dados (fenmenos epistmicos) como
tambm dos fatos (fenmenos sociais), e como a sede das percepes
sensveis e do conhecimento (), s ele capaz de dizer o que sente de modos
distintos, cada um ao seu tempo e modo e ao seu . Para Protgoras, portanto,
diz respeito ao domnio das experincias, as quais conduzem a saberes
discursivos e legtimos.
Portanto, possvel ao homem construir discursos diferenciados a partir do
mesmo fato ou evento (). Isto acontece porque as percepes variam de
pessoa para pessoa, isto , algum pode provar de um certo alimento e ach-lo sem sal
ou muito doce, enquanto outra pode provar da mesma comida e lhe ser intragvel por
ser excessivamente salgada ou amarga. Ora, isso s possvel por causa da natureza do
ser percebido () e de como este se relaciona com a estrutura que o percebe, ou
seja, o rgo do sentido (), como por exemplo, quando a coisa vista ()
afeta a estrutura que a v, isto , o rgo da viso (). Esta relao o que
possibilita afirmar que sobre cada fato h dois discursos contrapostos entre si (
37), tese fundamental do
relativismo protagrico.
Segundo Digenes Larcio, Protgoras teria sido tambm, o primeiro a
sustentar a oposio entre dois discursos opostos. bem verdade, que esta questo dos
discursos duplos j est presente na tradio helnica. Desde Homero, por exemplo,
onde seu politesmo exacerba os conflitos dos desejos entre os deuses38, passando pelas
qualidades opostas nos pitagricos e a existncia dos contrrios () em
Herclito, como por exemplo, B1: Desta palavra, que sempre / resulta que so
incapazes de entend-las os homens / mesmo antes de t-las ouvido, como depois de t-
las ouvido primeiro ( / /
35 CASERTANO, A imagem nos pr-socrticos. in: Teoria da imagem na antiguidade. p. 135. (Colchetes
nossos) 36 O sentido de como domnio defendido por Untersteiner como o domnio da experincia. 37 DK 80 B6a, A1; DL, IX, 51. 38 HOMERO, Ilada, XI, 45; XII, 195.
111
39). A arte de apresentar discursos
opostos est diretamente conectada com a proposio, atribuda por Aristteles a
Protgoras: tornar mais forte o argumento mais fraco40. Isto , tem a ver com a
natureza da percepo sensvel, a ambiguidade das palavras e a impossibilidade da
contradio ( 41), esta ltima apreendida por Antstenes. Plato, no
Teeteto, parece ilustrar bem, a impossibilidade da contradio relacionada com a
percepo: Ento, minha percepo para mim verdadeira, j que em todos os casos
trata-se de uma percepo que sempre parte de meu ser. E sou como afirma
Protgoras o juiz da existncia das coisas que so para mim e da no-existncia
daquelas que no so para mim (
,
.42).
III. Grgias: retrica e ceticismo
Grgias, era natural de Leontino na Siclia43, foi contemporneo e discpulo
de Empdocles44, tendo ambos estilos muito semelhantes, ostentavam riquezas,
vestiam-se pomposamente e eram dados aos discursos e as viagens45. A ligao com seu
mestre pode ser percebida pelo uso da retrica, pois nos informa Sexto Emprico, que
Empdocles foi o primeiro a introduzir a arte retrica46. Assim como Protgoras,
tambm fez fortunas com sua profisso47, se intitulava apenas professor de retrica e
no de virtude (), fato que levou alguns especialistas, e at mesmo alguns
filsofos antigos, a no inclu-lo entre os sofistas. No Mnon, por exemplo, Plato
parece nos informar atravs de Scrates, que Grgias no se enquadraria na categoria de
mestres [de virtude] (), diz Scrates ao indagar Mnon: ento, pelo visto,
no te parece ser mestres os sofistas? ('
;48). J era bastante idoso quando, de forma natural faleceu, cento e
39 DK 22 B1. (Traduo nossa) 40 ARISTTELES, Retrica, II, 24, 1402a23. 41 DK 80 A1; DL, IX, 53 42 PLATO, Teeteto, 160c. 43 DK 82 A1; FILOSTRATO, Vite dei Sofisti, I, 9. 44 DL, VIII, 58 e 59. 45 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 150. 46 DK 31 A 19; SEXT. EMP.. Adv. Mat. VII, 6; QUINT., III, 1, 8. 47 DK 82 A 4; DIOD., XII, 53, 2. 48 PLATO, Mnon, 95c.
112
nove anos, talvez, tomado por uma fraqueza difusa, e porque caa, pouco a pouco, em
um estado de sonolncia, devido ficar deitado49.
Da vasta produo bibliogrfica de Grgias sobreviveram dois discursos
completos, embora questionados quanto a suas autenticidades: o Elogio de Helena
( ) e a Apologia de Palamedes ( ), ambos
editados por Diels50, e parte de um terceiro, a Orao fnebre ()51,
documentos fundamentais para a compreenso da retrica gorgiana e a importncia das
figuras retricas herdadas da cultura trgica. H tambm o Tratado sobre o No-ser ou
Sobre a Natureza ( 52). O ttulo deste tratado uma
referncia aos textos dos pr-socrticos, particularmente obra de Melisso, Sobre a
Natureza ou Sobre o-que- ( ), um importante trabalho
crtico acerca da concepo parmenidiana de Ser (), apresentando uma crtica
ideia de identidade entre ser e pensar j esboada no Sobre a Natureza ( )
de Parmnides e expressa em 28 B3: portanto, o mesmo pensar e ser (
53).
O que aqui indico como ceticismo e embora seja comum encontrarmos
assim designado o pensamento de Grgias algo bastante questionvel. Na verdade
trago baila tal tema mais a ttulo de provocao. Diferentemente de Protgoras, onde
so evidentes suas teses relativistas, as teses de Grgias mais se assemelham a um
pragmatismo do que um ceticismo stricto sensu, sobretudo quando este se associa ao
ceticismo pirrnico ou mesmo ao de Sexto Emprico, ao que corrobora Victor Brochard:
seu esprito est inteiramente voltado para a prtica54. No encontramos em Grgias,
por exemplo, o exerccio da dvida nem da suspenso dos juzos (), todavia, o
encontramos dissertando no Tratado sobre o No-ser, que: (1) nada ; (2) mesmo que
fosse, no seria compreensvel; (3) caso fosse compreensvel, no seria possvel
comunic-lo a outros55. Ora, o que se demonstra aqui, como tambm em o Elogio de
49 DK 82 A 13. 50 DK 82 B11. 51 DK 82 B6. 52 DK 82 B3; Conservado em: SEXTO EMPIRICO, Adv. Mat. VII, 65ss. e PSEUDO-ARISTTELES,
De Melisso Xenophane Gorgia 979 11-980b21. 53 DK 28 B3. (Traduo nossa). Concorda com a proposta de traduo de Gabriel Trindade: [...] pois o
mesmo pensar e ser. 54 BROCHARD, Victor, Os cticos grego, p. 34. 55 So dois os contextos em que essa obra de Grgias conservada, alm da que transcrevo aqui, o
pargrafo 65 de Sexto Emprico Adv. Mat. VII, 65ss, h um outro no Pseudo-Aristteles do De Melisso
Xenophane Gorgia, 979a 11-980b21:
, .
113
Helena e a Apologia de Palamedes , antes de tudo, uma afirmao por meio da
negao e nunca uma suspenso do juzo.
Protgoras admite a possibilidade do conhecimento, o qual est no
domnio do homem diante das relaes expressas na vivncia dos fatos, ou seja, h
uma tese positiva, e, segundo Digenes Larcio, para ele tudo verdadeiro (
56). Logo, pode-se concluir, prprio do homem o ato de conhecer. Grgias
introduz a impossibilidade do conhecer, pois para ele, em primeiro lugar, nada (
57), o que aparentemente pode levar uma confuso com
teses fundamentalmente cticas. Na realidade, o ceticismo encontra-se tanto na no
afirmao como na no negao, ou seja, o ato de afirmar ou negar peremptoriamente
exclui qualquer tese ctica, visto que tanto a afirmao como a negao de algo da
ordem do dogmtico. O pragmatismo gorgiano, que ora se admite, coaduna-se tambm,
nas palavras de Untersteiner, muito mais com um irracionalismo trgico:
Grgias no ctico, no relativista, mas um trgico e um
irracionalista. A conscincia da fora prpria da irracionalidade
constitui a superao do trgico. [...] Em um crescendo angustiado,
todas as experincias humanas, dramatizam-se, imobilizam-se diante
da razo, que no pode mais decidir nada e por isso acaba por negar
qualquer relao, com base racional, entre homem e homem, bem
como qualquer coerncia interna ao prprio indivduo.58
Grgias se distingue dos outros sofistas, quando, por exemplo, alega no ter
interesse em ensinar a virtude (), pois entende no ser possvel tal ensino. ele tinha
uma concepo bem particular sobre esta questo. Para ele, embora seja impossvel
ensinar a virtude a outras pessoas, possvel auxiliar os homens para um
despertamento, ou melhor, para o hbito de buscar as virtudes, isto , uma vez
reconhecendo a inclinao para uma determinada virtude, percebida pelas habilidades
que se demonstram, ensinava-se seu exerccio prtico (). Em outras palavras,
tambm era possvel entender e desenvolver as virtudes naturais que se manifestavam
diferentemente nos jovens, nos velhos, nos homens, nas mulheres59, ou seja, no se
espera de um idoso excelncia no campo de batalha, dada sua fragilidade natural, nem
,
, , ,
, . (itlico nosso). 56 DK 80 B 4; DL, IX, 51. 57 DK 82 B3; SEXT. EMP., Adv. Mat. VII, 65. 58 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 253. 59 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 268.
114
de um jovem sabedoria suficiente nos tribunais dos jris. Neste sentido, Grgias se
mantm fiel a sua gnosiologia quando afirma a impossibilidade de uma virtude absoluta.
Ora nada mais alinhado ao pragmatismo tico prprio do pensamento gorgiano.
Fato que Grgias era um habilssimo orador ()60 e um homem dado
vida poltica61, fazendo jus a sua excelncia profissional demonstrvel na prtica
poltica. Ele era capaz de falar bem () e no momento apropriado ( ),
sobre qualquer tema proposto por qualquer dos seus ouvintes62. Ora, os gregos, desde
Homero e Hesodo eram fascinados por exibies pblicas de retrica, e talvez por isso
Grgias tenha ganhado rpida notoriedade na Grcia do sculo V a. C., ao pondo dos
atenienses desejarem falar como um verdadeiro Grgias63 (). Muitos
estadistas excelentes, como Pricles e Temstocles, devem sua fama e suas conquistas
arte retrica e, uma vez que no havia advogados ou representantes legais nas sees
dos juris era de extrema importncia habilidades oratrias somadas a conhecimentos
prticos. O prprio Grgias no ano de 427 a. C., encarregado de propor uma aliana aos
atenienses contra as ameaas dos siracusanos, fez na gora da cidade de Atenas um
famoso discurso que comoveu os atenienses, que eram muito dotados e afeioadas s
letras( 64).
A retrica , para Grgias, a manifestao do lgos, e este entendido como
exposio, o conjunto de palavras e significados que transmitem ideias distintas, pois
diferem entre povos, culturas e lnguas. Ele (o lgos) refere-se tambm a uma palavra
isola () que carrega um conceito muitas vezes mais complexo, como uma
proposio logicamente construda65. Este lgos-retrico , portanto, segundo Plato,
o Criador da persuaso ( 66), ele cria habilidades destinadas a
superaes de contedos contrrios o que bem demonstrado no Tratado Sobre o No-
Ser, onde o prprio Grgias levanta o contraditrio para desfaz-lo em trs teses
fundamentais: 1. Que nada , 2. Mesmo se algo fosse seria impossvel compreender e 3.
Mesmo que se algo fosse compreensvel seria incomunicvel a outrem. No h
propriamente, no Tratado, uma tese proposta, o que se percebe uma negao tanto da
ontologia como da epistemologia eleticas, isto , Grgias, nesse tratado, demonstra o
60 DK 82 A1; FILOSTRATO, Vite dei Sofisti. I, 9.2. 61 DK 82 A4; DL, VII, 53.1. 62 DK 83 A1a; PLATO, Mnon, 70b; PLATO, Grgias, 447c. Ccero compartilha a mesma afirmao:
CCERO, Da Orat., 1, 22, 103.
63 ROGUE, Christophe. Compreender Plato, p. 8. 64 DK 82 A4. 65 UNTERSTEINER. A obra dos sofistas, p. 285. 66 PLATO, Grgias, 453a.
115
que mais sabe fazer, usar os recursos da linguagem habilidosamente sem pretenso de
verdade irrefutvel ou absoluta. Ora, se o problema da verdade para Protgoras est
relacionado com o relativismo, exposto no argumento do homo mensura, para Grgias a
verdade era incognoscvel, demonstrado no Tratado Sobre o No-Ser, fazendo jus
segunda tese, logo, resta apenas a persuaso () retrica, a capacidade em produzir
um discurso capaz de convencer a outros.
IV Reaes socrtico-platnicas
As reaes negativas contra os sofistas, apenas para fazer justia, no
partem exclusivamente de Scrates e Plato. Como vimos acima, outros
contemporneos de Plato, como Xenofonte os acusam de prostitutos ().
Tambm Aristteles tece contundentes crticas afirmando que a sofstica , portanto,
sabedoria aparente, e no real; e o sofista um vendedor de sabedoria aparente, e no
real ( ,
67). Aqui se pe, portanto, um problema de
praxis sofista, ou seja, questiona-se a conduta do homem (sofista), como tambm o
tratamento dado por este s questes filosficas, e no se questiona o termo usado por
estes pensadores para se auto referir.
As reaes que aqui evidenciamos so aquelas que Plato em seus dilogos,
direto ou indiretamente, suscitam pertinentemente ao universo intelectual dos sofistas.
Scrates, por sua vez, o personagem central de quase todos eles, e sempre o
responsvel por desconstruir os argumentos sofsticos. Pouco se sabe da relao
verdadeiramente histrica entre Scrates e os sofistas68, mas o que realmente nos
interessa aqui como Plato se utiliza dessa relao para combater tanto a postura tica
com a filosofia dos Sofistas. Ora, muitos so os dilogos platnicos dedicados a temas
da primeira sofstica e em todos Scrates o seu porta-voz, o responsvel por
introduzir, mediante um mtodo (socrtico), em parte muito semelhante ao dos prprios
67 ARISTTELES, Refutao Sofista. 165b. 6. 68 A figura histrica de Scrates no aquela dos dilogos platnicos, antes, para uma considerao
histrica, consultar: XENOFONTE, Memorveis. Traduo do grego, introduo e comentrio: Ana
Elias Pinheiro. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2009 e XENOFONTE, Banquete.
Apologia de Scrates. Traduo do grego, introduo e notas: Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Centro de
Estudos Clssicos e Humansticos, 2008.
116
sofistas69, a sua filosofia. Seu mtodo o dialtico () e sua finalidade a
verdade () que s se atinge por reminiscncias () das formas, bem
demonstrada no paradoxo de Mnon: SO. Mas, recuperar algum a cincia, ele mesmo
em si mesmo, no rememorar? MEN. Perfeitamente (.
; . 70). J os ofistas
valem-se da erstica () e no almejando uma realidade ltima e universal,
evocam a linguagem e comprometem-se com a fenomenicidade, com o aparente
().
Quase nada da vasta produo intelectual dos sofistas chegaram aos nossos
dias. Muito do que se conhece acerca desses pensadores deriva quase toda de Plato o
que no pouco , o qual sempre desdenha-os e ridiculariza-os nos debates. Nos
dilogos onde h um sofista, este sempre derrotado por Scrates, quando no, posto
em contradio. Exemplo disso acontece no Eutidemo, quando Scrates e Ctesipo
questionando Eutidemo e Dionisodoro acerca da impossibilidade do falso e sobre o
ensino da virtude como suas profisses:
Se pois no erramos, nem agindo, nem falando, nem pensando, vs,
por Zeus! se assim , vieste para c como professores de qu? Ou no
verdade que afirmastes ainda agora que a virtude, melhor que
qualquer outro dos homens, podereis transmitir a quem estivesse
disposto a aprender? [
, , , ,
; '
;].71
A anlise que Plato faz dos sofistas tem, entre outros propsitos,
basicamente dois: o primeiro, distinguir o filsofo () da figura do sofista72,
e, segundo, demonstrar que Scrates no um sofista como muitos o acusava. Esta
anlise platnica dos sofistas fica clara nos dilogos, como j vimos, onde aparecem os
sofistas: no Protgoras, no Grgias, no Eutidemo, no Mnon e no prprio Sofistas.
Embora Plato seja um crtico ferrenho do movimento sofstico, seu testemunho
demasiado necessrio para compreenso das atividades e do pensamento desses
69 Ao ponto do prprio Digenes Larcio em IX, 53, afirma ter Protgoras, introduzido o mtodo de
discusso chamado socrtico ( ). Cf.:
PLATO, Eutidemo, 286c, onde se diz que: De fato, tambm os seguidores de Protgoras usavam
largamente dele [os argumentos], e ainda mais antigos. 70 PLATO, Mnon, 85d. 71 PLATO, Eutidemo, 287b. 72 O Eutidemo , talvez, o dilogo platnico que melhor contribui para esta distino entre Scrates e os
sofistas. Cf.: CASSERTANO, Sofistas, pp. 29-34.
117
intelectuais estrangeiros. nos dilogos de Plato que sobrevive a imagem, mesmo que
distorcida de forma proposital, para fazer sobressair a sua, de pensadores que
transformaram uma gerao de jovens e adultos e f-los grandes personalidades
polticas dos tempos ureos da Grcia clssica.
A atuao sofstica est no limiar da tradio pr-socrtica, o que no
significa dizer que esto, cronologicamente, antes de Scrates, como o prefixo pre-
pode sugerir. Antes tomamos a expresso pr-socrticos num sentido tipolgico, para
usar o termo de Andr Laks, isto , em termos de uma orientao intelectual73.
Destarte, a figura de Scrates divisora, pois a partir dele que, segundo Plato, a
filosofia se orienta no mais pela investigao sobre a natureza ( ...
74), mas sim pelas coisas humanas ( ), da sua filosofia se ocupar
com temas prprios da primeira sofstica, com a virtude, a justia, a coragem, e outros.
Em uma palavra, pr-socrtica por que voltada a um tipo de investigao, qual seja,
aquela que se debrua sobre a . Segundo Aristteles, por exemplo, Anaxgoras e
Tales... no estavam interessados nas coisas boas para os homens (
... 75).
As principais acusaes contra os sofistas e, sobretudo, as quais
inocentariam Scrates, so de duas naturezas, primeiro, so acusados como j vimos
acima de se prostiturem (), isto , tanto Xenofonte, como Plato e Aristteles,
enfatizam textualmente o interesse financeiro e os exacerbados lucros, e com isso,
defende que Scrates no poderia ser um sofista, pois no viaja de cidade em cidade
cobrando altos valores por suas conversaes nas praas e mercados. Segundo, o que
deriva necessariamente da primeira acusao, a verdade passa a ser desinteressante para
os sofistas, pois demonstrar eficcia na arte da persuaso () e vencer o
debate mais importante, diferentemente de Scrates que alegava haver um
conhecimento ideal para alm dos sentidos, apresentado, por exemplo, na ocasio da
teoria das ideias no Fdon: Dizemos que h algo a que damos o nome de igualdade.
No me refiro igualdade entre dois pedaos de madeira [...]. Refiro-me a algo que
ultrapassa isso, digamos a igualdade ela mesma ( ,
[...]. , 76). Assim, segundo
73 LAKS, Andr. Introduo Filosofia pr-socrtica. p. 24. 74 PLATO, Filebo, 54 a. 75 ARISTTELES, Etica a Nicmaco, VI. 1141 b. 76 PLATO, Fdon, 74a.
118
Plato, eles se utilizavam de argumentos desonestos e raciocnios falaciosos com o fim
de adquirir seus objetivos.
A acusao contra Scrates, a qual o levou a morte em 399 a. C., qual seja:
de negar-se a reconhecer os deuses da cidade e introduzir outros deuses novos (
,
77), no o caracteriza necessariamente
como um sofista, visto que tais acusaes so tambm comuns contra os sofistas,
lembremo-nos, pois, que Protgoras fora tambm condenado morte tendo que fugir de
Atenas78. Os sofistas, muitos deles, eram estrangeiros que no reconheciam os deuses
locais e que instruam jovens polticos, alguns desses tiranos. Tais acusaes no so de
um todo absurdos, embora tenham sido veementemente negadas por ele em sua defesa.
Ora, o que pode pesar sobre esta acusao, o fato que ele teve entre seus alunos, por
exemplo, o oportunista79 Alcibades, a quem Plato reserva um lugar de destaque em O
Banquete, como tambm Crtias, um traidor declarado que se tornou lder do malfadado
Conselho dos Trinta, e instituiu um reinado de terror contra seus inimigos polticos e
pessoais80.
V Consideraes finais
Se desde o sculo V a. C., os sofistas so considerados os charlates
intelectuais devido m fama propalada, sobretudo por Plato em seus dilogos. A
partir do sculo XIX os sofistas ganham novos olhares e um novo lugar na histria da
filosofia antiga, ou seja, passam a ser considerados, no mais em relao depreciativa
com Scrates e Plato, mas sim a partir de suas prprias fontes, contidas em seus
prprios fragmentos e nos testemunhos de diversos pensadores e historiadores antigos.
A pesquisa sobre os sofistas ganha flego nos ltimos dois sculos com uma produo
bibliogrfica vastssima e em diversos idiomas, transformando os sofistas em
pensadores independentes, homens de vastos conhecimentos e acima de tudo, trataram
de temas atuais para o homem contemporneo.
77 XENOFONTE, Memorabilia, 1.1.1. 78 DL, IX, 52 79 JONES, O mundo de Atenas, pp. 34-34. 80 JONES, O mundo de Atenas, p. 41.
119
Na antiguidade, a nica obra voltada histria dos sofistas e que sobrevive
at hoje Vida dos Sofistas ( ) de Flvio Filostrato81, sofista da segunda
gerao e natural provavelmente de Atenas. A vida e obra dos filsofos ilustres (
) de Digenes Larcio82 no
exatamente uma obra de histria da filosofia, nem est voltada exclusivamente para os
sofistas, mas tambm contribui de alguma forma com informaes concernentes s
obras e vida desses pensadores, embora muitas informaes ou notcias (),
como a tradio habituou-se a classificar, sejam bastante questionveis. Por fim, temos
os dilogos de Plato, que resguardam muitos fragmentos e testemunhos como tambm
uma interpretao bem particular dos temas presentes no discurso sofstico. As leituras
platnicas passam a ser consideradas deformaes do pensar dos sofistas, isto porque
a filosofia de Plato intenta, veementemente, combat-lo.
Por fim, h uma srie de estudos modernos e contemporneos que
reabilitam a figura dos sofistas. Hegel, em Lies sobre histria da filosofia, publicada
em 1833, o primeiro a reinterpretar o papel dos sofistas na histria da filosofia,
seguido por Nietzsche que tambm retorna aos sofistas com bons olhos, ao que conclui:
Nele [Tucdides] a cultura sofstica, quer dizer, a cultura dos realistas, alcanou a sua
expresso plena83. Hermann Diels, em sua monumental edio de Os fragmentos Pr-
Socrticos (Die Fragmente der Vorsokratiker), texto inalienvel para a pesquisa
sofistica, tem uma seo dedicada exclusivamente aos sofistas, inicia-se com Protgoras
(DK 80) e finda nos Duplos Discursos (DK 90). Talvez a obra mais significativa e que
retira definitivamente os sofistas da galeria dos charlates da filosofia a obra I Sofisti
de Untersteiner de 1949. Esta obra de Untersteiner no consta de um estabelecimento de
fragmentos e testemunhos84 dos sofistas, mas de uma reinterpretao filosfica do
pensamento dos sofistas como ele mesmo testifica no prefcio sua primeira edio:
este meu escrito pretende ser um estudo sobre os sofistas, reinterpretados em suas
fontes85.
81 Consultamos a edio de Maurizio Civiletti: FILOSTRATO, Vite dei Sofisti. Introduzione, Traduzione
e note di: Maurizio Civiletti, Milano: Bompiani, 2002. 82 Para Larcio fizemos uso de LARTIOS, Digenes. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres. Traduo:
KURY, Mrio da Gama. Braslia: Editora UnB, 1988 e , .
. (ed. H S Long, Oxford 1964). [online] Disponvel na Internet via:
. 83 NIETZSCHE, Crepsculo dos dolos, p. 128. 84 H, portanto, uma obra especfica para este propsito: UNTERSTEINER, Mario (org), I sofisti.
Testimonianze e Frammenti. Florena, 1966. 85 UNTERSTEINER, A obra dos sofistas, p. 18.
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