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Um assassinato. Um sequestro seguido de abusos sexuais. Tais atos hediondos me- xem com os noticiá- rios nacionais. Agora pe- gue os mesmos casos, mas estes sendo praticados por menores de idade, e você terá um dos grandes debates legislati- vos e emocionais brasilei- ros dos últimos anos. Em novem- bro de 2003, Liana Friedenbach e Fe- lipe Caffé, de 16 e 19 anos respec- tivamente, foram assassinados en- quanto acampavam no interior do Estado de São Paulo. Liana ainda sofre- ra tortura e estupro antes de sua morte. Em fevereiro de 2007, o menino de seis anos João Hélio Fernandes Vieites foi morto, ar- rastado por cerca de sete quilômetros, preso pelo cinto de segurança, no lado de fora do carro. Em ambos os casos, menores estavam di- retamente envolvidos com os delitos e são nes- ses cenários em que os ânimos encontram-se mais exacerbados e a emoção toma conta das ações, que volta à pauta de votação as ques- tões que remetem a maioridade penal no Brasil. A verificação de que adolescentes praticam ou participam de inúmeros atos infracionais e a opinião de que não há nas leis artifícios capazes de prevenir e impedir essas ações faz com que se co- gite uma série de medidas mais severas aos infra- tores, entre elas a redução da maioridade penal. A determinação do início da maiorida- de penal aos 18 anos consta no artigo 228 da Constituição Federal, do artigo 27 do Códi- go Penal e do artigo 104, caput, da Lei no 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adoles- cente. O principal critério adotado para a fixa- ção da idade é o princípio biológico, pelo qual o indivíduo que ainda não atingiu os 18 anos encontra-se em processo de desenvolvimento. Há inúmeros projetos de emenda consti- tucional buscando reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. A fundamentação básica de Se- fora de pauta n o 14/ maio de 2012 27 Quando marginais e vítimas se confundem Por: Guilherme Granêz, Guilherme Porto e Ronei da Cruz Ilustração: Latuff

Quando marginais e vítimas se confundem

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Uma análise sobre a maioridade penal no Brasil.

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Um assassinato. Um sequestro seguido de

abusos sexuais. Tais atos hediondos me-xem com os noticiá-

rios nacionais. Agora pe-gue os mesmos casos, mas estes sendo praticados por menores de idade, e você terá um dos

grandes debates legislati-vos e emocionais brasilei-

ros dos últimos anos.Em novem-

bro de 2003, Liana Friedenbach e Fe-lipe Caffé, de 16 e 19 anos respec-tivamente, foram assassinados en-quanto acampavam no interior do

Estado de São Paulo. Liana

ainda sofre-ra tortura e estupro a n t e s de sua

morte. Em fevereiro de 2007, o menino de seis anos João Hélio Fernandes Vieites foi morto, ar-rastado por cerca de sete quilômetros, preso pelo cinto de segurança, no lado de fora do carro.

Em ambos os casos, menores estavam di-retamente envolvidos com os delitos e são nes-ses cenários em que os ânimos encontram-se mais exacerbados e a emoção toma conta das ações, que volta à pauta de votação as ques-tões que remetem a maioridade penal no Brasil.

A verificação de que adolescentes praticam ou participam de inúmeros atos infracionais e a opinião de que não há nas leis artifícios capazes de prevenir e impedir essas ações faz com que se co-gite uma série de medidas mais severas aos infra-tores, entre elas a redução da maioridade penal.

A determinação do início da maiorida-de penal aos 18 anos consta no artigo 228 da Constituição Federal, do artigo 27 do Códi-go Penal e do artigo 104, caput, da Lei no 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adoles-cente. O principal critério adotado para a fixa-ção da idade é o princípio biológico, pelo qual o indivíduo que ainda não atingiu os 18 anos encontra-se em processo de desenvolvimento.

Há inúmeros projetos de emenda consti-tucional buscando reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. A fundamentação básica de Se-

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Quando marginais e vítimas se confundem

Por: Guilherme Granêz, Guilherme Porto e Ronei da Cruz Ilustração: Latuff

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nadores e Deputados é que os crimes cometidos nessa faixa etária estão em ascensão. O discurso midiático também revela uma preferência pela veiculação de infrações que apontam à presença de menores de idade, passando a impressão de que em números os os atos criminosos praticados por adolescentes sejam mais elevados do que aqueles praticados por indivíduos maiores de de-zoito anos.

Discutir a redução da maioridade pela lente da mídia é analisar parcialmente a sequência dos fatos e admitir um preconceito contra os jovens. A professora do curso de Direito do Centro Uni-versitário Franciscano (UNIFRA), Marília Budó, afirma que “o foco do problema não é a quanti-dade dos crimes cometidos por adolescentes, o problema vai mais no fundo. O discurso colocado é que o adolescente que não teve boa educação tem mais chances de provocar crimes. Mas se o problema é educação, por que nós vamos crimi-nalizar? Não se problematiza o fato de tudo o que está por trás da prática de um ato infracio-nal de um adolescente”.

Outra questão que vem sendo discutida e que vai de encontro à proposta é o fato de que não se está buscando uma política pública coerente com as reais necessidades existentes na sociedade brasileira. De acordo com Salvador Penteado, professor de psicologia da Universi-

dade Federal de Santa Maria (UFSM) e psicólogo do Hospital Universitário (HUSM), a sociedade hoje vive uma situação doentia, pela qual pro-cura apresentar um culpado, discutindo se deve aumentar a abrangência de punições severas a uma faixa etária menor, mas não discute o que está levando esses jovens a cometerem crimes das mais variadas gravidades.

As políticas sócio-educativas não atendem às necessidades de grande parte da população, geralmente aquela ligada aos atos infracionais. Mesmo após a aplicação da lei, esses indivíduos não recebem um tratamento adequado nas casas de recuperação a que são encaminhados. Segun-do Marília, “o que se questiona é que esses ado-lescentes têm que ser punidos e basta”.

A percepção de que grande parte dos crimes praticados hoje estão ligados à falta de punição aos jovens, faz com que a sociedade clame para a diminuição da idade penal, mas não se questiona sobre as consequências dessa aplicação. Esse reflexo seria visto no inchaço ainda maior nos presídios, que já vivem super-lotados e, principalmente, no abandono desses adolescentes misturados a criminosos comuns e que, pela falta de assistência adequada, ao cumprirem suas penas, sairiam dos presídios sem a tão falada ressocialização. Para Pentea-do, não se está discutindo o que causa e como

A evolução da maioridade penal no Brasil

O Brasil passou por várias mudanças desde a criação do primeiro Código Criminal, mas nem sempre houve a preocupação com a formação do adolescente. Em muitos casos os menores somente eram vistos como parte da sociedade quando praticavam um crime e então eram submetidos às penas criminais da época.

1830 – Criação do Código Criminal do Império: Maioridade penal absoluta a partir dos 14 anos, sendo adotado o sistema do discernimento. Menores de 14 anos não eram considerados criminosos, mas caso fosse comprovado que cometeram o crime com discernimento, ou seja, conscientes dos seus atos, seriam recolhidos à uma casa de correção.

1890 - Código Republicano: Nesse código esta-vam livres de penalidade apenas os menores de nove anos. Maiores de nove anos e menores de catorze anos somente eram livres de punição se fosse confirmada a sua falta de discernimento. Maiores de 14 anos estavam sujeitos às penas da época. Em 1921, após discussões sobre a aplica-bilidade do sistema de discernimento, o menor de catorze anos foi considerado livre de sofrer algum processo ou pena.

1927 - Código de Mello Mattos: É o primeiro código que passa a dispensar atenção especial à crianças e adolescentes. Formula-se políticas que passem a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional. Nesse código, ha-viam três limites de idade: Menores de catorze anos eram considerados ir-responsáveis, não podendo ficar sujeitos a medida alguma de natureza penal;- Maiores de 14 anos e menores de 16 anos ainda

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mudar esse comportamento violento, mas, sim, se “posso prender ou não posso prender” e isso ao invés de trabalhar como fator de correção funcionará como um artifício de negação desse jovem na sociedade.

A professora Marília Budó ainda levanta a discussão sobre a atual condição do sistema pri-sional brasileiro, afirmando que, “com a redução da maioridade penal, se nós colocamos lado a lado com a situação dos presídios, veremos que o Brasil não tem condições estruturais de corres-ponder. Se nós formos ver, por exemplo, a situ-ação dos adolescentes nas FASES (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo) e nas Fundações Casa (Fundação Centro de Atendimento Socioe-ducativo ao Adolescente), que são as instituições que substituíram a FEBEM, se poderá constatar que são piores que as prisões. O Estado não só não garante educação para esses meninos e me-ninas que estão cumprindo medidas sócio-edu-cativas, como, além disso, impõe a eles a uma situação humilhante e degradante”.

Um exemplo muito claro e interessante é o Instituto São Lucas, localizado em São José (SC), que foi interditado por causa das denúncias de espancamento e morte que havia lá dentro. O “centro educacional” se tratava, na verdade, de um cadeião em péssimas condições sanitárias e estruturais. “O fato é que não existe estrutura

para reprimir assim como não existe estrutura para educar”, complementa Marília.

A seletividade também é um dado muito importante na questão da criança e do adolescen-te. As normas penais são aplicadas para alguns e não para todos. Essa seleção sempre acaba recru-tando pessoas de um grupo social muito específi-co, geralmente são jovens, provindos de bairros pobres, que possuem pouca escolaridade e, na maior parte das vezes, são negros ou pardos.

Compreendendo as diferentes questões que estão envolvidas no debate sobre a maiori-dade penal, e sua redução ou não, e colocando os pesos certos nos elementos sociais, estrutu-rais e psicológicos, acender essa questão em momentos de emoção inflamada não pode ser o mais correto, sendo necessária sempre uma análise crítica das situações. Ao invés de abor-dar a redução da maioridade penal como uma forma final e resolutória para o problema dos menores infratores, o Estado, o Poder Público, a família e a sociedade, quem tem por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente, não podem se prender em uma única ação para cobrir algumas de suas falhas e faltas, e devem voltar-se para o debate sobre os processos de execução das medidas aplicadas aos menores, que acontecem muitas vezes de maneira arbitrária, dissimulada e paliativa.

1940 – Código Penal: Passou-se a adotar o critério biológico e então menores de dezoito anos não são mais responsabilizados pelos seus atos. O código penal vigente segue esse modelo, com algumas ajustes no decorrer dos anos.

1988 - Constituição Federal: Solidificou as garantias de proteção à criança e ao adolescente, garantindo direitos de assistência diferenciada em caso de transgressão comportamental ou social. Adota-se o critério biológico como padrão para sanções de pena e o menor de dezoito anos é considerado inapto a responder criminalmente por seus atos.

eram considerados irresponsáveis, mas se compro-vado seu ato criminal seriam impostas medidas de assistência, às vezes de perda da liberdade, mas nunca aplicação de penas do código penal comum;– Entre os 16 e 18 anos o menor era considerado responsável pelos seus atos, sofrendo penas pre-vistas no código penal. Porém sua pena deveria ser cumprida em estabelecimento especial ou em seção especial de presídios comuns, mas separado dos apenados de maior idade.

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1927 - Código de Mello Mattos: É o primeiro código que passa a dispensar atenção especial à crianças e adolescentes. Formula-se políticas que passem a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional. Nesse código, ha-viam três limites de idade: Menores de catorze anos eram considerados ir-responsáveis, não podendo ficar sujeitos a medida alguma de natureza penal;- Maiores de 14 anos e menores de 16 anos ainda