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verdade, a morte não é um as- sunto dos mais agradáveis. Mas, se você resistiu ao ímpeto de virar esta página, é p o rque já se questionou, pelo menos uma vez, independente de sua crença ou religião, sobre o que acontece depois que morre- mos. Tudo bem, quando a morte bate à nossa porta, não sabemos exatamente como agir. Embora seja o fenômeno mais previsível do mundo, quando ela chega, incomoda e nos deixa impotentes e vulneráveis a tudo. Para acabar com a dor emocional que resulta desse despreparo em relação à perda de uma pessoa querida, muita gente recorre às religiões para matar a saudade de quem já se foi. Foi esse o caso da estudante Débora Reis, de 22 anos. Alguns meses depois de perder seu irmão Gelson Fonseca de Andrade Junior, de 17 anos, ela e a mãe procuraram a psicografia para tentar amenizar a dor. A in- tenção inicial era ir ao médium Chico Xavier, em Minas Gerais, mas como ele estava muito doente e a probabilidade de serem atendidas era mínima, foram ao encontro da médium Célia do Carmo, no bairro do Sampaio, no Rio de Janeiro. As duas freqüentaram as reuniões por um ano e meio até terem notícias de Gélson. Mas não é tão simples entrar em contato com as pessoas que já morreram, ou melhor, que desen- carnaram. Existe toda uma preparação para que o médium consiga realizá-lo. O ritual uti- lizado por Célia do Carmo é o seguinte: na primeira reunião em que os familiares comparecem, eles escrevem o nome da pessoa que morreu em um papel e colo- cam em uma caixinha. A psico- grafia não é feita nessa mesma reunião. Célia leva a caixinha com os nomes das pessoas para sua casa e, em um quarto escuro, vai pegando os papéis e vendo quais espíritos estão ali para mandar mensagens para os seus parentes. A médium sempre explica que a presença dos espíri- tos depende da energia deposita- da no papel quando o nome da pessoa foi escrito. Ou seja, de- pende do amor e da vontade de se ter notícias do além. Essa ener- gia serve como um elo de ligação entre o médium e a pessoa desen- carnada. As mensagens também podem ser orais. Nesse caso são feitas na hora das reuniões e, geralmente, apenas mandam beijos para as pessoas ali presentes. Célia faz BRUNELLA MENEZES, CARLA NEVES, LARA JOGAIB E LIVIA BRAVIN Quando nem a morte é capaz de separar A indesejada das gentes 51 A comunicação entre os mundos físico e espiritual alivia a dor da perda, mas, afinal, de onde vem essa história? Os espíritos podem se comunicar através dos médiuns ´

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verdade, a mortenão é um as-sunto dos maisagradáveis. Mas,se você re s i s t i u

ao ímpeto de virar esta página, ép o rque já se questionou, pelomenos uma vez, independente desua crença ou religião, sobre oque acontece depois que morre-mos. Tudo bem, quando a mortebate à nossa porta, não sabemosexatamente como agir. Emboraseja o fenômeno mais previsíveldo mundo, quando ela chega,incomoda e nos deixa impotentese vulneráveis a tudo. Para acabarcom a dor emocional que resultadesse despreparo em relação àperda de uma pessoa querida,muita gente recorre às religiõespara matar a saudade de quemjá se foi.

Foi esse o caso da estudanteDébora Reis, de 22 anos. Algunsmeses depois de perder seu irmãoGelson Fonseca de AndradeJunior, de 17 anos, ela e a mãeprocuraram a psicografia paratentar amenizar a dor. A in-tenção inicial era ir ao médiumChico Xavier, em Minas Gerais,mas como ele estava muitodoente e a probabilidade des e rem atendidas era mínima,

foram ao encontro da médiumCélia do Carmo, no bairro doSampaio, no Rio de Janeiro. Asduas freqüentaram as reuniõespor um ano e meio até teremnotícias de Gélson.

Mas não é tão simples entrarem contato com as pessoas que jámorreram, ou melhor, que desen-c a rnaram. Existe toda umapreparação para que o médiumconsiga realizá-lo. O ritual uti-lizado por Célia do Carmo é oseguinte: na primeira reunião emque os familiares comparecem,eles escrevem o nome da pessoaque morreu em um papel e colo-cam em uma caixinha. A psico-grafia não é feita nessa mesmareunião. Célia leva a caixinha

com os nomes das pessoas parasua casa e, em um quarto escuro,vai pegando os papéis e vendoquais espíritos estão ali paramandar mensagens para os seusp a rentes. A médium sempreexplica que a presença dos espíri-tos depende da energia deposita-da no papel quando o nome dapessoa foi escrito. Ou seja, de-pende do amor e da vontade dese ter notícias do além. Essa ener-gia serve como um elo de ligaçãoentre o médium e a pessoa desen-carnada.

As mensagens também podemser orais. Nesse caso são feitas nahora das reuniões e, geralmente,apenas mandam beijos para aspessoas ali presentes. Célia faz

BRUNELLA MENEZES, CARLA NEVES, LARA JOGAIB E LIVIA BRAVIN

Quando nem a morteé capaz de separar

A indesejada das gentes51

A comunicação entre os mundos físico e espiritual alivia a dorda perda, mas, afinal, de onde vem essa história?

Os espíritos podem se comunicar através dos médiuns

´

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suas reuniões em um galpãoenorme, onde comparecem cercade 600 pessoas. Como a médiumjá é uma pessoa idosa, as reu-niões que costumavam ser rea-lizadas uma vez por semana,hoje só acontecem em datas festi-vas, como o Natal, por exemplo.

Contatos com o alémJá o advogado M. P., 36 anos,

que não quis se identificar, afir-ma ser “um crente a Deus, porém

não praticante de nenhumareligião”. Ele vê com ressalvas asmanifestações espirituais, emqualquer doutrina re l i g i o s a .Porém, num período de sua vida,decidiu freqüentar um centroespírita. Com a morte recente etrágica da mãe, M. P. estavamuito abalado e precisando dealguma resposta. Até que con-seguiu, três meses depois.

M. P. conta que não chegou areceber cartas da mãe. Foi oespírito de seu pai que se mani-festou.

– Mesmo não acreditando pia-mente, é uma situação emocio-nante: a forma de escrever e seexpressar contida na mensagem,era semelhante à dele.

Para o advogado, isso não temexplicação lógica. Apenas ocorrepor causa da fé. Ele relata tam-bém que o pai explicou atravésda psicografia que a esposa esta-va em tratamento espiritual, porisso não poderia enviar a men-sagem. Finalizou, dizendo aofilho que ele nasceu para vencer.

– Isso me impressionou, pois eunão estava numa fase muito boae me fez bem. Meu pai fez umabreve análise sobre sua passagemna Terra e, a meu ver, a narrativafoi coerente. Ele falava várias lín-

Julho/Dezembro 200452

Compreendendo a mediunidadeSegundo Allan Kardec, o

“codificador” da doutrinados Espíritos, toda pessoaque sente, em qualquergrau, a influência dos es-píritos é chamada de médi-um. A mediunidade é, por-tanto, uma sensibilidadeexistente em todos os sere svivos, e os torna suscetíveis areceber influências das di-mensões espirituais. Em al-guns casos e em certas con-dições pode ser utilizada co-mo elo de ligação entre omundo físico e o mundo es-piritual. Veja na tabela aclassificação de alguns ti-pos de médiuns:

TIPO COMO SE MANIFESTA

Médiuns sensitivos ou

i m p re s s i o n á v e i s

São pessoas suscetíveis a sentirem a presença dos espíri-tos por uma vaga impressão da qual não podem se darconta. Um bom espírito produz sempre uma impressãosuave e agradável, já um mau espírito impressiona deforma penosa, desagradável

Médiuns audientes

Podem estabelecer conversação com os espíritos. Porterem o hábito de se comunicar com esses seres, eles osreconhecem imediatamente pela natureza da voz. Ofenômeno pode se manifestar como uma voz interior ouexterior, semelhante a de uma pessoa viva.

Médiunsvidentes

São dotados da faculdade de ver os espíritos. Algunspossuem essa faculdade quando acordados, e conser-vam a lembrança precisa do que viram. Outros só a pos-suem em estado próximo do sonambulismo. É muitorara a faculdade da vidência se mostrar permanente.Quase sempre é efeito de uma crise passageira.

Médiunscuradores

Este gênero de mediunidade consiste no dom que cer-tas pessoas possuem de curar pelo simples toque, peloolhar ou mesmo por um gesto, sem o uso de qualquermedicação.

A médium sempreexplica que a

presença dos espíritosdepende da energiadepositada no papel

quando o nomeda pessoa foi escrito

Trecho de carta psicografada

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guas e era um homem culto. Semcontar que na mensagem elelembrou de uma história nossa.Com dados que apenas nós doispoderiam saber – conta pensati-vo, como se relembrasse o ocorri-do. – O encontro me ajudou arever conceitos, mas não a pontode me converter a uma sóreligião. Prefiro o mundo palpá-vel, dos vivos. Claro que fiqueitranqüilo em saber que os doisestão bem. Mas não sei se supor-to tanta emoção de novo.

Emoção também sentiu DéboraReis ao receber a primeira men-sagem do irmão, Gelson Fonsecade Andrade Junior. Levou um anoe meio até ter a primeira re s p o s t a .

– Quando meu irmão desencar-nou, minha mãe escolheu umaestrela para ser ele. Desde entãoela rezava e conversava todas asnoites com essa estrela. Ela sem-pre dizia para mim e para o meuoutro irmão que a tal estrela ac o rrespondia brilhando maisquando ela falava, como se es-tivesse respondendo. E para nos-

sa surpresa, na primeira mensa-gem que recebemos do meuirmão, ele dizia assim: “mãe, eurealmente sou a estrela que bri-lha toda noite no seu céu. Comamor, seu filho Gelson Fonsecade Andrade Junior, o Juninho desempre” – contou a estudante.

Essa foi a primeira de muitasmensagens que a família re c e b e ue recebe até hoje. Mas os espíritosd e s e n c a rnados, como são deno-minados pela doutrina kard e-

cista, não se manifestam apenasatravés de cartas ou mensagensorais intermediadas pelos médi-uns. Eles também podem entrarem contato telefônico com seusf a m i l i a res como aconteceu no diado aniversário da tia de Débora.

– Minha tia estava na cozinhafazendo um bolo e estava tristep o rque já tinha passado da meia-noite e ninguém tinha ligado paradar parabéns. Na minha família,temos o costume de ligarmos unspara os outros à meia-noite nosaniversários. Quando ela olhoupara o relógio do aparelho dem i c roondas, estava marc a n d o12h08. Então ela pensou: “nin-guém me ligou até agora”. Derepente tocou o telefone e era a vozdo meu irmão perguntando sepodia falar com ela. Ele falou: “tia,posso falar com você?”.

O susto fez com que a tia deDébora desligasse o telefone ime-diatamente, já que tinha reco-nhecido a voz do sobrinho. Ao sedar conta do que tinha feito,resolveu pegar o telefone de no-

A indesejada das gentes 53

Os espíritos desencarnados não

se manifestam apenas através de

cartas ou mensagensorais intermediadaspelos médiuns. Eles

também podementrar em contato

telefônico com seusfamiliares

Francisco Cândido Xavier nasceu em 2 de abrilde 1910, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais. Suamediunidade manifestou-se quando tinha quatroanos de idade, pela clarividência e clariaudiên-cia, pois via e ouvia os espíritos. Aos 17, aderiu aoespiritismo e começou a promover reuniões emsua própria casa até fundar o Centro EspíritaLuís Gonzaga, onde desenvolveu a faculdade deescrever mensagens dos espíritos.

Ao longo de sua atividade ele psicografou epublicou mais de 400 livros, traduzidos em 15idiomas, com mensagens de espíritos. Muitos deseus textos eram poemas notáveis de famosospoetas mortos, ao todo 56 entre os quais váriosportugueses, como Antero de Quental, AntónioNobre e Guerra Junqueira. Embora não soubes-sem explicar o fenômeno, os literatos das acade-

mias e universidades do Brasil,afirmavam que o estilo dos poe-mas psicografados era o mesmode quando estavam vivos. O di-n h e i ro das vendas das publi-cações era revertido para obrasde caridade, pois o médium sem-pre alegou que não era ele queescrevia os livros, e sim os espíritos.

Chico se tornou extremamente popular e atraium i l h a res de fiéis não só no seu estado, como emtodo o país. Entre os seus admiradores estavamcelebridades como Roberto Carlos, Antônio Fa-gundes e Nair Belo. Por conta dos problemas desaúde, no final da vida ele parou de psicografar ese afastou da atividade religiosa. Chico Xavierm o rreu em 2002, tão pobre quanto nasceu.

O médium mais famoso do Brasil

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vo, mas já estava dando linha.Muito surpresa, ela foi chamar omarido e contar o que tinhaacontecido.

– Ela disse para o meu tio que oJuninho tinha ligado e ele nãoa c reditou. Para ele aquilo era im-possível. Quando voltaram à co-zinha, o relógio do micro o n d a sainda marcava 12h08, mas játinha passado algum tempo.Então ela perguntou ao meu tioque horas ela tinha dito que o

Juninho tinha ligado e ele falou12h08. Nisso ela mandou ele olharpara o microondas que continua-va marcando a mesma hora.Assim que ele acabou de confir-mar o horário para minha tia, om i c roondas ficou piscando comose tivesse faltado luz. O mais im-p ressionante dessa história é quequem tinha trazido o micro o n d a sdos EUA para a minha tia tinhasido o meu irm ã o .

A artista plástica Sonia Deve-

cchi ficou impressionada ao vero médium Paulo Giraldes pintaroito telas de artistas consagradosda História da Arte, com impre s-sionante semelhança nos traçose na assinatura, em uma tard e .A pintura mediúnica, como échamada, ficou intern a c i o n a l-mente famosa na década de1970 através do médium LuizG a s p a retto, que incorporava osgrandes gênios da pintura. Soniaestava em uma reunião benefi-cente. Ela viu Paulo se concen-trar e pintar com os dedos, emcinco minutos, um quadro deVincent Van Gogh.

– Quando ele começou a pintarsabia que era Van Gogh, o estilo erao mesmo. Mas foi quando ele assi-nou que tive certeza, afirma ela.

A artista plástica sempre quisum quadro de Van Gogh, o queparecia ser um sonho distante atéaquela tarde, quando a obra foisorteada e o número escolhido, odela. Paulo não ganha nada comas pinturas, todos os seus quadrostêm como objetivo angariar fun-dos para a assistência social.

Nem todas as religiões acreditam na comuni-cação entre os vivos e os que já se foram. A maioriadelas discute a credibilidade desse diálogo com oalém. Segundo o Frei Marino, da Igreja Porciún-cula de Sant´Ana, em Niterói, a psicografia é in-viável.

– Nós, como cristãos, católicos, imaginamos quepossa haver uma escrita, mas não que seja atravésde algum ser estranho, mas sim o próprio médium.A própria pessoa tem uma qualidade, uma maneirade ela mesma fabricar essa escrita que para nós,muitas vezes, é ininteligível, mas que para ela temlá um significado. De maneira nenhuma atribuí-mos isso a algum espírito, mesmo porque se fosse deespírito, ele não teria como grafar coisa nenhumap o rque espírito não tem corpo – explica o Frei.

O pastor Marcelo Martins da Igreja Universal doReino de Deus também não acredita nessa práticade se comunicar com quem já se foi.

– A palavra de Deus nos mostra na parábola dorico e do mendigo que a pessoa que morre, se estácom Deus, vai para um lugar de descanso. Querdizer, quando ela morre, não vem mais para aTerra. Essa é a visão da palavra de Deus – opina.

Para a o pastor Sérgio Luiz Fonseca Cruz da IgrejaPresbiteriana, a psicografia não encontra respaldona doutrina bíblica.

– Para a igreja evangélica, a igreja re f o rmada, aBíblia é a única regra que tem prática para nós. Aindaque eu respeite outras linhas doutrinárias, a nossavisão é de que a psicografia não é possível porque nósnão a adotamos em nossas práticas – explica.

Como a psicografia é encarada por algumas religiões

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Quino