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O presente trabalho oferece uma análise sociológica, antropológica, teológica e, sobretudo histórica sobre a relação entre crença e dinheiro no Ocidente, e que tem se exacerbado em um mundo capitalista como o nosso, do qual faz parte a cidade de Fortaleza.
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1ª edição – 2015 c
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
QUANTO VALE A SUA FÉ?
A TENDÊNCIA CAPITALISTA DA FÉ EVANGÉLICA FORTALEZENSE NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS
Conselho Editorial
Bethania Ribeiro de Almeida Santiliano
Mestre em Ciências Veterinárias
Daísa de Lima Pereira
Mestre em Engenharia Biomédica
Eduardo Chaves da Silva
Mestre em Psicologia Clínica e Cultura
Elysio Soares Santos Junior
Doutorando em Linguística (PPGL/LIP/UnB)
Emanuel Neto Alves de Oliveira
Doutorando em Ciências Agrárias
Fabiano Costa Santiliano
Mestre em Biociências e Biotecnologia
Flávia de Matos Rodrigues
Mestre em História Econômica
Franciele Monique Scopetc dos Santos
Doutorando em Educação
Hendrix Alessandro Anzorena Silveira
Mestre em Teologia
Jesiel Souza Silva
Doutorando em Geografia
João Olinto Trindade Junior
Mestre em Letras
Josélia Carvalho de Araújo
Doutorando em Geografia
Júlio César de Souza
Mestre em História
Luiz Antonio Corrêa
Mestre em Engenharia Mecânica
Priscilla Diniz Lima dá Silva Bernardino
Doutorado em Engenharia Química
Rafaela Sanches de Oliveira
Mestre em Ciências Médicas
Robson Lopes de Freitas Junior
Doutorando em Geografia
Verano Costa Dutra
Mestre em Saúde Coletiva
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
Duque de Caxias
2015
George Sousa Cavalcante
QUANTO VALE A SUA FÉ?
A TENDÊNCIA CAPITALISTA DA FÉ EVANGÉLICA FORTALEZENSE NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
_________________________________________________________________________
Ficha Catalográfica
C376 Cavalcante, George Sousa.
aaaQuanto vale a sua fé? A tendência capitalista da fé evangélica fortalezense
nas últimas duas décadas / George Sousa Cavalcante – Duque de Caxias, 2015.
aaa6,24 MB; il.; PDF
aaaISBN 978-85-66434-17-0
1. Protestantismo. 2. Capitalismo. 3. Teologia. 4. Prosperidade. 5. Igreja
evangélica. 6. Neopentecostalimo. 7. Fortaleza. 8. Fé. 9. Marx Weber. 10.
Ricardo Mariano. 11. Consumo. 12. Hibridismo. I. Quanto vale a sua fé? A
tendência capitalista da fé evangélica fortalezense nas últimas duas décadas. II.
Cavalcante, George Sousa.
CDD 200
_________________________________________________________________________
s Este conteúdo pode ser publicado livremente, no todo ou em parte, em
qualquer mídia, eletrônica ou impressa, desde que:
b Atribuição. Você deve dar crédito, indicando o nome do autor e da Espaço
Científico Projetos Editoriais, bem como, o endereço eletrônico em que o livro
está disponível para download.
n Uso Não-Comercial. Você não pode utilizar esta obra com finalidades
comerciais.
Autor: George Sousa Cavalcante
Revisão: Verônica C. D. da Silva
Capa: Francisco Carlos Moreira Junior
Coordenador: Verano Costa Dutra
Editora: Monique Dias Rangel Dutra
Espaço Científico Livre Projetos Editoriais é o nome fantasia da Empresa Individual MONIQUE DIAS RANGEL
11616254700, CNPJ 16.802.945/0001-67, Duque de Caxias, RJ
[email protected] / http://issuu.com/espacocientificolivre /
http://www.espacocientificolivre.com/
C 2015, Espaço Científico Livre Projetos Editoriais
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
À minha querida mãe que apesar de não saber ler e escrever sempre
me incentivou a valorizar o estudo. Sua garra em superar as
dificuldades que a vida lhe impôs me inspira.
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
9
Trechos deste livro foram publicados anteriormente no livro “Cartografia
do Sagrado e do Profano: religiões, espaço e fronteiras, organizado” por
Oneide Bobsin, Valério Guilherme Schaper e Iuri Andréas Reblin,
publicado pela ABHR (Associação Brasileira de História das Religiões) e
pela Faculdade EST de São Leopoldo RS e no artigo “Quanto vale a
sua fé? – A tendência capitalista da fé evangélica de Fortaleza nos
últimos vintes anos” publicado pela Faculdade Rifidim de Joinville SC.
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11
RESUMO
O presente trabalho oferece uma análise sociológica, antropológica, teológica e, sobretudo histórica sobre a relação entre crença e dinheiro no Ocidente, e que tem se exacerbado em um mundo capitalista como o nosso, do qual faz parte a cidade de Fortaleza. A partir do víeis da História das mentalidades – campo de pesquisa de teóricos como Marc Bloch, Georges Deby, Lucien Febvre e Robert Mandrou que se dedicaram a esse tipo de investigação (como sub especialidade da História Social); que se propuseram a pesquisar e a descrever as atitudes, os comportamentos, as necessidades, os sonhos motivadores dos seres humanos (em suas motivações conscientes ou inconscientes) de determinados grupos sociais minoritários –, procuro, então, fazer uma abordagem crítica da Tendência Capitalista da Fé Evangélica na cidade de Fortaleza nos últimos vinte anos. Minha fundamentação está apoiada em teóricos que já desenvolveram (e ainda desenvolvem) linhas de pesquisas em áreas afins: Marx Weber – que pesquisou a estrita ligação entre Protestantismo e Capitalismo desde seu nascedouro; Ricardo Mariano – que pesquisa as implicações dos aspectos sociais, culturais e econômicos no Movimento Neopentecostal com sua Teologia da Prosperidade. A hipótese levantada nesse livro é que existe uma tendência a um tipo de crença identificada com muitos aspectos do capitalismo em algumas denominações evangélicas da cidade de Fortaleza; não obstante percebermos uma prática de fé hibrida com suas contradições, conflitos e resistências a essa postura religiosa capitalista – hipótese confirmada pela pesquisa de campo. O livro está dividido em cinco proposições principais: (1) a compreensão da relação entre fé evangélica e dinheiro no contexto maior do Protestantismo; (2) a identificação dos principais perfis da Igreja Evangélica Brasileira a partir das três principais vertentes de sua formação histórica (Protestantismo de Imigração, Protestantismo de Missão e Pentecostalismo – sendo que este último se desdobrou no Neopentecostalismo, surgido nas últimas décadas com forte ênfase na Teologia da Prosperidade e no uso massificado da Mídia televisiva); (3) a constatação da tendência a um tipo de fé identificada com o Capitalismo na prática religiosa de fiéis das igrejas evangélicas escolhidas para a pesquisa de campo; (4) a tentativa de entender essa tendência Capitalista da fé relacionando-a com algumas características do nosso mundo ocidental moderno – a natureza pragmática da mídia, a obsessão da nossa sociedade pela exuberância e a dimensão sagrada do consumo; (5) e, por fim, a reflexão a respeito dos rumos que a Igreja Evangélica tem tomado, e que tem distanciado sua trajetória do Cristianismo na sua “essência”. Palavras-chave: Protestantismo. Capitalismo. Teologia. Prosperidade. Igreja evangélica. Neopentecostalimo. Fortaleza. Fé. Marx Weber. Ricardo Mariano. Consumo. Hibridismo.
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13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15
CAPÍTULO 1 – CAPITALISMO E PROTESTANTISMO: AS DUAS FACES DA
MESMA MOEDA ........................................................................................................ 21
1.1. FATORES TEOLÓGICOS QUE CONTRIBUÍRAM PARA A TENDÊNCIA
CAPITALISTA DA FÉ ....................................................................................... 21
1.2. FATORES HISTÓRICOS QUE CONTRIBUÍRAM PARA A TENDÊNCIA
CAPITALISTA DA FÉ ....................................................................................... 31
1.2.1. PROTESTANTISMO DE IMIGRAÇÃO OU ÉTNICO ...................... 32
1.2.2. PROTESTANTISMO DE MISSÃO .................................................. 34
1.2.3. PENTECOSTALISMO .................................................................... 37
A - PENTECOSTALISMO CLÁSSICO ............................................ 39
B - DEUTEROPENTECOSTALISMO .............................................. 40
C - NEOPENTECOSTALISMO ....................................................... 42
C.1. EXACERBAÇÃO DA GUERRA CONTRA O DIABO ..... 42
C.2. ÊNFASE NA TEOLOGIA DA PROSPERIDADE ............ 44
C.3. DESECTARIZAÇÃO E LIBERALIZAÇÃO DOS USOS E
COSTUMES ........................................................................... 50
C.4. ESTRUTURA ADMINISTRATIVA EMPRESARIAL E
MERCADOLÓGICA ............................................................... 54
CAPÍTULO 2 – A ONDA CAPITALISTA DA FÉ INVADE AS IGREJAS
EVANGÉLICAS DE FORTALEZA .............................................................................. 59
2.1. TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS EVANGÉLICOS EM FORTALEZA ......... 59
2.2. A TENDÊNCIA MERCADOLÓGICA DA FÉ NAS IGREJAS DE
FORTALEZA ..................................................................................................... 63
CAPÍTULO 3 – ALGUMAS POSSÍVEIS RAZÕES PELAS QUAIS A FÉ EVANGÉLICA
TEM DESENVOLVIDO A TENDÊNCIA CAPITALISTA ............................................. 71
3.1. A NATUREZA PRAGMÁTICA DA MÍDIA .................................................. 71
3.2. A OBSESSÃO DA NOSSA SOCIEDADE PELA EXUBERÂNCIA E PELO
ESPETACULAR ................................................................................................ 77
3.3. A DIMENSÃO SAGRADA DO CONSUMO ................................................ 79
14
CAPÍTULO 4 – OS POSSIVEIS DESDOBRAMENTOS DA TENDÊNCIA
CAPITALISTA DA FÉ EVANGÉLICA ........................................................................ 89
4.1. AFASTAR-SE CADA VEZ MAIS DA PROPOSTA DE JESUS................... 89
4.2. TRANSFORMAR-SE EM ALGO TOTALMENTE ALIENANTE .................. 91
4.3. DESCARACTERIZAR O CRISTIANISMO DO SEU PERFIL
REVOLUCIONÁRIO .......................................................................................... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 102
15
INTRODUÇÃO
ssa pesquisa parte da minha inquietação com relação a uma das facetas
mais cruéis do capitalismo ocidental: a utilização da religião como forma de
lucro e poder.
Entendemos que as relações mercantis, envolvendo troca e comércio, já existiam há
milhares de anos, desde o período neolítico, quando os grupos humanos passaram a
se organizar em sociedades mais complexas, constituindo-se assim as primeiras
cidades. No entanto, as relações comerciais, elaborada na forma de sistema filosófico
e ideológico, se “absolutizam” e se “sacralizam” com o Capitalismo ocidental moderno.
Nessa perspectiva comenta Max Weber: “O Capitalismo existiu na China, na Índia, na
Babilônia, no mundo clássico e na Idade Média, mas em todos esses casos, como
veremos, o ethos1 particular faltou” (2006:50). E nesse mesmo viés também comenta
François Houtart:
Durante séculos, os grandes sistemas religiosos se difundiram por meio de migrações, da expansão mercantil e das conquistas militares. Foi o caso do hinduísmo, do budismo, do cristianismo, do islamismo, dos Incas e em menor medida, de vários reinos africanos. Entretanto, a maior transformação sociocultural que afetou o status e as funções da religião teve lugar na Europa com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, mais tarde o industrial... (2003, p. 28).
Portanto, o comércio, como um sistema articulado – com sua elaboração lógica,
racional, ideológica, religiosa, materialista e consumista – passou a ganhar grandes
proporções no ocidente. É justamente sobre sua influência na religião evangélica que
pretendemos focar este assunto. Delimitamos nossa abordagem à cidade de Fortaleza
como o espaço da pesquisa realizada para a constatação desta hipótese. E as últimas
duas décadas como o recorte de tempo histórico a ser analisado. Partimos do
pressuposto daquilo que nos diz Houtart sobre o domínio do mercado como lei
fundamental do funcionamento das sociedades. E, por conta disso, vemos os
interesses econômicos se expressando também no campo religioso. Sendo que a
religião cumpre, em nosso mundo ocidental materialista, um papel importante na
1 A ethos nesse contexto significa um conjunto de práticas e de comportamentos estabelecido
pelo o sistema em questão.
E
16
transformação das estruturas sociais, principalmente na América Latina e no Caribe.
(ibid, p.13).
Antonio Flávio Pierucci, comentando sobre a primeira versão d’A Ética Protestante
de 1904, diz que a posição de Max Weber, desde o início de sua obra, no que diz
respeito à estreita ligação entre economia ocidental e religião protestante, era muito
clara e definida. Ou seja, para Weber a economia ocidental e seus diversificados
desenvolvimentos só podem ser explicados se considerarmos os aspectos essenciais
da história cultural, sobretudo da vida religiosa (2003, p. 178,179).
François Houtart nos lembra ainda que a tese contida em A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo é basicamente a seguinte: “a moral de relativa austeridade
preconizada pelo calvinismo favoreceu a acumulação, base do desenvolvimento do
capitalismo” (2003, p.79).
Questionamos, então, no presente trabalho, se a Igreja Evangélica de Fortaleza –
herdeira dos movimentos de reforma protestante na Europa dos séculos XVI e XVII,
filha do Protestantismo Missionário Norte-americano, e também fortemente
influenciada pelo movimento neopentecostal2 – incorporou de forma consistente toda
essa tendência comercial do capitalismo ocidental.
Levantamos a hipótese de que a mercantilização da fé não se restringe ao Segmento
Evangélico Neopentecostal, mas ela está presente em outras expressões da fé
evangélica de caráter mais tradicional, como por exemplo, as igrejas históricas e
pentecostais.
Essa hipótese surge em cima da constatação de que as várias tendências e
expressões protestantes podem ser encontradas não apenas em igrejas ou
denominações diferentes, mas dentro da mesma denominação. Sobre isso, comenta
Rubem Alves: “E é exatamente a presença de tipos divergentes dentro de uma mesma
organização que explica o aparecimento de conflitos no seu interior” (2005:44).
2 O movimento neopentecostal, conforme o sociólogo Ricardo Mariano, se distingue no meio
evangélico por dois aspectos principais: o cronológico, que caracteriza as igrejas evangélicas das décadas 1980 para cá; e o teológico, que estabelece posturas doutrinárias bem diferentes das demais igrejas evangélicas – como, por exemplo, a exacerbação da guerra espiritual contra o diabo, a ênfase na teologia da prosperidade, a liberalização das práticas conservadoras dos usos e costumes adotadas pelas igrejas pentecostais, e uma estrutura administrativa empresarial com a utilização massificaste dos meios de comunicação.
17
A partir de tal constatação, procuramos identificar dentro de igrejas evangélicas, que
em sua doutrina se posiciona de forma contrária à tendência do mercado religioso,
expressões de fé totalmente mercadológicas. Objetivando mostrar que o espírito
capitalista se impõe no “modus vivend” evangélico a despeito do seu corpo doutrinário.
Tentamos comprovar essa hipótese lançando mão das fontes orais, procurando assim
constatar nossa tese por meio de entrevistas com fiéis de algumas igrejas. Levando
em conta a afirmação de Ribeiro (2005:136), na qual “a história oral pretende realizar o
registro sistemático de dados coletados nos depoimentos sobre um determinado tema
em comum”, optamos dessa forma por desenvolver entrevistas temáticas, uma vez
que esse tipo de entrevista permitirá que o foco continue mantido no tema central,
considerando as cosmovisões religiosas de cada entrevistado à medida que se
vinculam ao assunto proposto pelo entrevistador.
Vale ressaltar que nestas entrevistas3 demos a preferência aos membros de igrejas
que doutrinariamente se posicionam contra o comércio da fé, com o propósito de
demonstrar que o modelo capitalista religioso que estamos considerando sobrepuja e
transcende qualquer posicionamento doutrinário, linha ideológica ou postura
denominacional.
Para esse fim, entendemos que a forma mais adequada ao tipo de investigação
proposta seria a oralidade. Como nos diz Ribeiro:
[...] A história oral se faz importante na medida em que preenche lacunas que prejudicam a análise histórica face à ausência de documentos escritos. Assim, um dos aspectos da história oral é tornar visíveis experiências individuais e coletivas (2005, p. 136).
Também queremos assinalar que apesar da análise do presente trabalho sugerir,
aparentemente, apenas uma abordagem religiosa ou teológica, isso não invalida seu
caráter sociológico, antropológico e, sobretudo histórico. Estando ela inserida dentro
do campo da história Social – mais especificamente da história das mentalidades.
Sendo que esta, por sua vez, procura descrever os pensamentos e sentimentos
religiosos manifestos ou não manifestos de determinado grupo social (nesse caso
especifico os dos evangélicos de Fortaleza), os quais se traduzem em atitudes, em
comportamentos, em necessidades e em sonhos. Atendendo dessa forma ao
3As entrevistas acima referidas se encontram no capitulo 2 do presente trabalho, no subtópico
que tem como titulo: A tendência mercadológica da fé nas igrejas de Fortaleza – pág. 56-63.
18
propósito da historia das mentalidades, conforme nos diz Michel Vovelle. Isso porque
para o citado autor a investigação desse viés histórico está mergulhada na história das
massas anônimas – quer se trate de cultura popular ou de religião popular. Para poder
assim tentar, de alguma forma, seja através da iconografia ou da pesquisa oral,
entender uma história que foge ao quadro das elites tradicionalmente levadas em
conta na história das ideias, da arte ou do sentimento religioso. Segundo Vovelle os
temas abordados pela história das mentalidades variam desde a crise da juventude
até a estrutura hierárquica das famílias de determinado lugar e época; desde atitudes
diante da morte até o tipo de crença de um grupo religioso de determinado lugar e
período (Ideologias e mentalidades: 2004 p. 15,16, 110, 113, 114, 120, 125).
O livro em si se constitui da seguinte maneira. Primeiramente, analisaremos o
nascedouro da Reforma Protestante e suas relações com o Protestantismo no Brasil.
Estarão em questão alguns fatores teológicos e históricos que contribuíram, direta ou
indiretamente, para a formatação da fé capitalista.
No que diz respeito aos fatores teológicos, abordaremos as principais ideias do
Protestantismo Reformado que germinaram uma religião do tipo mercadológica. A
saber, o ascetismo tirado dos mosteiros e levado para o cotidiano; a ideia da Eleição
Divina, relacionada ao propósito soberano que indivíduos abastados e nações
prósperas devem cumprir nesse mundo; e ainda a ideia da disciplina de vida puritana
que, inevitavelmente, levou ao acúmulo de riquezas.
Com relação aos fatores históricos que contribuíram para desenvolvimento da fé
mercantilista, procuraremos identificar e diferenciar as três principais vertentes que
compõem a Igreja Evangélica Brasileira (Protestantismo de Imigração, Protestantismo
de Missão e Pentecostalismo). Estabelecendo assim o perfil de cada uma delas,
relacionando-as com os elementos histórico-culturais responsáveis pela identidade
que cada qual assumiu. Destacaremos o Pentecostalismo, e seus principais
segmentos (principalmente o Neopentecostalismo), como a corrente do Protestantismo
que tem influenciado significativamente os novos rumos da Igreja Evangélica
Brasileira. Dessa forma, compreenderemos melhor o desenvolvimento histórico da
religião evangélica fortalezense, e a característica de mercado que ela passou a ter
em nossos dias.
19
No segundo capítulo, falaremos sobre o processo de “neopentecostalização” que vem
ocorrendo em algumas denominações protestantes de Fortaleza, cuja linha doutrinária
nada tem em comum com a proposta neopentecostal. Portanto, pelo menos em tese,
seria antagônica a postura capitalista da fé. Entretanto, elas têm, através dos seus
fiéis, assimilado os valores mercadológicos da religião “big bussines”, típicos das
igrejas neopentecostais que assumem essa posição, criando uma espécie de
subversão dos outros valores mais tradicionais do Protestantismo, na qual
percebemos ( na pesquisa de campo realizada) não um abandono completo desses
valores e conceitos originários, mas uma mistura, às vezes contraditória, com os
valores e conceitos dessa nova fé capitalista hibrida, que vem cada vez mais se
configurando no meio evangélico da nossa cidade, a qual pretendemos ao longo do
presente trabalho apresentar. Isso pode ser percebido através dos gráficos e das
entrevistas – algumas transcritas – decorrentes da pesquisa de campo. Por
conseguinte, no terceiro capitulo, procuraremos compreender os motivos dessa
incorporação das crenças neopentecostais por parte dos membros de igrejas que, no
seu credo oficial, através dos seus líderes, combatem essas mesmas crenças. As
razões apresentadas (a natureza pragmática da mídia, a obsessão da nossa
sociedade pela a exuberância, a dimensão sagrada do consumo) tentam nos levar, à
compreensão do fenômeno religioso que vem acontecendo no nosso país (refletindo
na nossa cidade) nessas últimas décadas, a saber, a tendência mercantilista de
alguns setores da Igreja evangélica como algo interdenominacional. Analisaremos
essa questão a partir da abordagem sobre a força que a mídia, o consumo e o
espetáculo exercem sobre todas as dimensões de nossa sociedade – incluindo a
religião evangélica.
E por fim, no último capitulo, apontaremos alguns riscos iminentes que corre o
segmento evangélico, no que se refere à descaracterização do Cristianismo na sua
“essência”4 – justamente por causa dessa tendência capitalista que vem absorvendo a
fé evangélica, cujos desdobramentos serão inevitáveis, caso a igreja não repense
urgentemente sua caminhada.
4 Quando utilizarmos nesse livro a colocação: Cristianismo na sua “essência”, não ignoramos o
sincretismo com outras expressões de pensamentos e crenças que caracteriza essa religião ao longo da sua história. Entendemos que vários elementos culturais dos antigos persas, gregos, germânicos, bizantinos, africanos influenciaram significativamente a Cristandade. Originando assim novas expressões cristãs resignificadas. Entretanto, entendemos que existe algo mais próximo daquilo que Jesus (o autor da fé cristã) estabeleceu como os princípios fundamentais da proposta cristã – conforme as suas principais fontes históricas (evangelhos, cartas apostólicas, manuscritos antigos).
20
Assim posto, quero convidar-lhe a uma análise crítica da relação do capitalismo com a
fé evangélica nas últimas décadas.
21
CAPÍTULO 1 – CAPITALISMO E PROTESTANTISMO: As duas faces da mesma
moeda
monetarização da relação com o sagrado que tem caracterizado a Igreja
Evangélica não se deu por acaso. Segundo apontam minhas pesquisas, esta
conexão é resultado de alguma forma, ou por assim dizer, é derivada de
outros fatores que conjuntamente atuaram na sua gestação.
Inicialmente, nossa proposta será a de analisar a possibilidade dessa interconexão
que integra a crença ao sistema de mercado capitalista.
1.1. Fatores Teológicos que contribuíram para a tendência capitalista da fé
Penso que, talvez, fosse pertinente compreendermos a tendência evangélica
articulada com os valores do mercado, partindo do contexto histórico mais amplo da fé
protestante. Sendo assim, precisamos lançar nosso olhar para o berço da Reforma há
quase 500 anos atrás.
Apesar das contradições, das discrepâncias entre os movimentos evangélicos mais
recentes e a matriz teológica reformada, não podemos desconsiderar certa
identificação de alguns desses grupos com aquele movimento que se deu na Europa
no século XVI – sendo a causa do grande cisma da Cristandade Ocidental. E que, por
sua vez, influenciou no desenvolvimento da mentalidade capitalista do mundo
ocidental.
Não queremos afirmar com isso que o protestantismo nasceu capitalista. Embora, ele
tenha sido como lembra Kivitz, “uma reação à Cristandade com suas cruzadas, seus
cofres e suas inquisições” (2006, p. 47), constituindo-se, dessa forma, como um
movimento, também, de protesto econômico. E isso pelo fato de haver no bojo da
proposta reformista um elemento “revolucionário” contra a ordem econômica vigente;
A
22
com seu sistema feudal que privilegiava apenas e sempre as mesmas camadas
sociais: a nobreza e o Clero.
Conforme Hubermam (1986, p. 82-153), a Reforma Protestante foi a primeira das três
batalhas decisivas empreendidas pela nova classe social – a burguesia – na luta longa
e dura contra o decadente Feudalismo no inicio da Idade Moderna, seguida da
Revolução Gloriosa na Inglaterra e da Revolução Francesa. Lembrando que a Igreja
Católica defendia a ordem feudal, sendo uma das principais estruturas desse sistema,
pois era detentora de cerca de um terço das terras da Europa, e sugava dos países
grande parte das suas riquezas. Portanto, antes que a nascente classe média
pudesse destruir o Feudalismo em cada país, tinha que atacar sua principal
organização – a Igreja. E foi o que ela fez. Essa luta de classes (Burguesia X Nobreza
e Clero) pela hegemonia de um sistema econômico (Capitalismo) em detrimento de
outro (Feudalismo), então, ganha uma conotação religiosa denominada de Reforma
Protestante.
A transição do Feudalismo para o Capitalismo, caracterizada pelas profundas
transformações nos meios de produção e de troca, envolveu igualmente uma nova
maneira de pensar a ciência, o direito, a educação, a política e a velha religião. Foi o
que justamente aconteceu com o ensino religioso. O mundo moderno, dominado pelos
comerciantes, fabricantes e banqueiros, exigiu um conjunto de preceitos religiosos
diferentes dos preceitos religiosos do mundo dominado por sacerdotes e guerreiros.
Em decorrência dessas mudanças, Leo Huberman diz que se Igreja Católica –
totalmente comprometida com a economia feudal e manual, na qual o artesão
trabalhava simplesmente para sobreviver – não podia modificar com rapidez seus
ensinos para corresponder à economia capitalista – onde o industrial trabalhava para
ter lucro – então a Igreja Protestante podia. “Ela dividiu-se em muitas seitas diferentes,
mas em todas, e em graus variados, o capitalista interessado nos bens materiais podia
encontrar consolo” (ibid, p. 167-168). Entretanto, não podemos incorrer no erro de
achar que a Reforma Protestante já nasceu articulando a proposta capitalista. Como
bem diz Weber:
O velho protestantismo de Lutero, Calvino e Knox e Voet tinham bem pouco a ver com o que hoje é chamado de progresso. Ele era abertamente hostil a aspectos inteiros da vida moderna que hoje não são contestados nem pelos religiosos mais ferrenhos (2006, p. 45).
23
Para exemplificar a grande diferença entre o Protestantismo no seu início e o
Capitalismo dos nossos dias basta citar a questão do trabalho. Na concepção
reformada, o trabalho visava interesse ético e religioso: trabalhar para ganhar dinheiro;
com isso, glorificar a Deus e ajudar o próximo (ibid, p.127). Já na concepção
capitalista hodierna, o trabalho atende interesses individuais de consumo e interesses
pragmáticos do próprio trabalhador. Contudo, há uma semente capitalista na Reforma
e que começou a germinar através do Movimento Puritano dos séculos XVI e XVII5.
Tendo como arcabouço teológico as ideias Calvinistas, esse movimento lançou as
bases daquilo que Max Weber chama de “O Espírito do Capitalismo” no mundo
ocidental.
Sem a pretensão de incursionar nas elaborações teológicas do puritanismo, gostaria
de destacar algumas de suas ideias teológicas, que significativamente influenciaram
nesse “espírito capitalista” incorporado pela crença evangélica em nossos dias.
A primeira ideia do Protestantismo Reformado que incidiu sob a elaboração da fé
capitalista ocidental foi o ascetismo vivido em todas as dimensões da vida. O
ascetismo cristão medieval católico, antes isolado em mosteiros e claustro, passou a
ser desenvolvido em estreita relação com o cotidiano e em todas as atividades
ordinárias. Para o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, os teólogos puritanos, mormente
calvinistas, fizeram uma desconstrução do conceito sacramental, ritualístico,
extracotidiano e extramundano que possuía a religião cristã antes da Reforma. E
passaram, então, a construir um “novo conceito” intramundano de uma religião
exercida cotidianamente como um dever moral e ético, imiscuída num mundo dos
negócios e do trabalho, atendendo assim seus interesses utilitários (2003, p.207).
Sobre esse ascetismo protestante comenta Max Weber:
O ascetismo cristão, que de inicio se retirara do mundo para solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da igreja. Mas, no geral, tinha deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avançava para o mundo da vida, fechando atrás de si a porta do mosteiro: tentou penetrar justamente naquela rotina da vida diária, com sua
5 O movimento puritano foi uma espécie de Reforma da Reforma na Inglaterra dos séculos XVI
E XVII, pois ele se contrapõe a Igreja Anglicana. Muitos partidários desse movimento constituíam o Parlamento inglês, composto por membros da pequena, média e alta burguesia. Eles também tiveram uma participação significativa nas revoluções burguesas dessa nação, tais como: Revolução Puritana e Revolução Gloriosa.
24
metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para e nem deste mundo (2006, p.121).
Todavia, na aplicação desse novo conceito da vocação profissional, segundo André
Biéler, havia uma grande diferença entre os dois principais expoentes da Reforma.
Enquanto Lutero, preso pela tradição escolástica, é totalmente hostil ao
desenvolvimento do comércio e à prática do empréstimo a juros, Calvino, ao contrário,
é plenamente a favor das atividades lucrativas, sob todas as formas, inclusive
acompanhando de perto o desenvolvimento econômico e social da cidade de
Genebra. “É a partir dessa experiência genebrense, sustenta Troeltsch, que o
capitalismo se infiltrou na moral calvinista de todos os países” (1990, p. 628-639).
O puritanismo calvinista acreditava que o trabalho e as riquezas eram maneiras
através das quais Deus poderia ser glorificado. Diferentemente do Catolicismo
Medieval, que os concebiam como uma consequência do pecado original e o caminho
da perdição. A esse respeito, Hubermam faz a seguinte consideração:
Enquanto os legisladores católicos advertiam que o caminho da riqueza podia ser a estrada do inferno, o puritano Baxter dizia a seus seguidores que se não aproveitassem as oportunidades de fazer fortuna, não estariam servindo a Deus... Os ensinamentos de Calvino estavam particularmente dentro do espírito da empresa capitalista. Ao passo que a Igreja católica vira antes com suspeita o comerciante, como alguém cuja ‘ambição de ganho’ era um pecado, o protestante Calvino escrevia: ‘Por que razão a renda com os negócios não deve ser maior do que a renda com a propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua diligência e indústria?’ (1986, p.168-169).
O desdobramento disso foi que o trabalho passou a ser intensamente valorizado por
vários movimentos oriundos da Reforma Protestante. Os Quacres, por exemplo,
acreditavam que a prosperidade material era resultado de uma vida santa e
consagrada. Os metodistas, por sua vez, ensinavam que a verdadeira religião levava o
ser humano à produtividade, embora vissem nas riquezas um grande perigo – no que
se refere à desvirtuar o fiel do caminho da santidade. O próprio John Wesley, um dos
grandes nomes do Metodismo, dizia que “não devemos parar de alertar as pessoas
para que sejam laboriosas... devemos estimular todos os cristãos a ganhar tudo o que
puderem, e a economizar tudo o que puderem; ou seja, na realidade, a enriquecer”
(WEBER, 1930 apud WESLEY {s.d.}, {s.n.t}).
25
Esse ascetismo tirado do claustro e levado para a vida cotidiana, para o espaço mais
“profano” do mundo dos negócios e do trabalho, acabou sendo fundamental na
ideologia calvinista. Por conseguinte, na valorização do empreendimento e do lucro.
O elemento maléfico das riquezas na concepção calvinista estava no ato de fazer da
sua busca um fim em si mesmo. Como também na atitude de ganância e de avareza.
Não obstante a isso, as riquezas eram sinais da benção de Deus para os redimidos
pela fé em Cristo. Como os lembra Weber:
A avaliação religiosa do trabalho sistemático incansável e continuo na vocação secular como o maior elevado meio de ascetismo e ao mesmo tempo, a mais segura e evidente prova de redenção de genuína fé deve ter sido a mais poderosa alavanca concebível para a expansão dessa atitude diante da vida que chamamos aqui do espírito do capitalismo (ibid, p.133-134).
O movimento puritano promove uma espécie de “desencantamento do mundo” –
(PIERUCCI, 2003, p.112-133), deslocando o seu eixo do magismo, do misticismo e do
ritualismo, em torno do qual a fé Cristã gravitava, passando a girar em torno de uma
religiosidade ética, moral e racional, que agora incide diretamente sob a organização
do trabalho e sob a produção industrial.
Contrapondo-se a magia – característica da religiosidade cristã medieval – o
Protestantismo passa, então, a afirmar que a salvação não se dá pelo ritual, mas
através da obediência aos mandamentos éticos de Deus. Não se dá pelo sacrifício,
êxtase místico, ou ido ao templo, mas através de uma vida santa, disciplinada e
conectada com as atividades de cada dia (ibid, p.181).
Na leitura de Pierucci sobre a concepção weberiana, o Capitalismo Moderno é
apontado como algo decorrente desse desencantamento do mundo proporcionado
pela religião reformada, estabelecendo assim uma organização racional e disciplinada
do trabalho, sendo “uma das precondições históricas decisivas para o desdobramento
da moderna ética econômica do ocidente” (ibid, p.169).
A outra ideia da doutrina calvinista que gostaríamos de destacar, como uma semente
fecunda do “espírito capitalista”, é a predestinação. O povo eleito, privilegiado por
Deus para “ser cabeça e não cauda”. Isso, por sua vez, tem toda uma implicação no
26
conceito de enriquecimento, de dominação, de expansão e de afirmação dos países
capitalistas.
Como nos lembra Weber, o puritano Richard Baxter afirmava que a distribuição das
riquezas, dentro do conceito predestinista, era algo comandado por Deus,
beneficiando apenas alguns. André Biéler em sua obra O Pensamento Econômico e
Social de Calvino, afirma que, na concepção calvinista, a riqueza e a pobreza são
desígnios divinos. Tanto como uma forma de avaliar o caráter daquele que é rico – a
maneira de lidar com os bens materiais na relação com os mais pobres. Quanto como
uma maneira de também avaliar a postura daquele que é pobre – a forma de se
comportar diante da privação, da escassez e da consequente tentação de ceder à
fraude, à cobiça e à revolta. Citamos o próprio Calvino que diz:
Destarte, não atribuímos à sorte, quando vemos que um é rico, outro pobre, antes pelo contrário, reconheçamos que Deus assim o dispõe, e não é isto sem razão. Verdade é que nem sempre veremos claramente por que terá Deus enriquecido a um e a outro terá deixado em sua pobreza; disto não poderemos ter seguro discernimento e , dessarte, quer Deus que freqüentemente baixemos os olhos, a fim de render-Lhe esta honra, que Ele governa os homens à Sua vontade e segundo o seu arbítrio, que nos é incompreensível (...) Deus distribui desigualmente os bens transitórios deste mundo a fim de sondar qual é a disposição dos homens (...)
Eis, ademais, em que condição Deus põe os bens na mão dos ricos; é a fim de que tenham oportunidade, e recursos também, para vir em ajuda ao próximo que esteja em necessidade. O pobre – aquele que é para receber algo de outrem – é, pois, pobre por duas razões. É-o, em primeiro lugar, de modo provisório, por secreta dispensação da Providência que o colocou ao lado do rico para dele receber o que Deus lhe destina (1990, p.420-433).
No conceito calvinista, o trabalho para os eleitos era fruto de uma elaboração racional
e divina. Já para as demais pessoas (as massas) era fruto dos instintos naturais e
humanos. Os eleitos eram agraciados com as riquezas. O restante das pessoas
destinado à pobreza. Os eleitos trabalhavam para progredir e prosperar. Os que não
são eleitos trabalhavam apenas para suprir suas necessidades básicas. Como diz Max
Weber:
Calvino mesmo já emitira a opinião, muitas vezes citadas, de que somente quando o povo, isto é, a massa de trabalhadores e artesãos fosse pobre, conservar-se-ia obedientes a Deus. Na Holanda (Pieter de la Courte e outros) essa idéia foi secularizada, afirmando-se que a massa humana só trabalharia quando a necessidade a forçasse para tal. Essa formulação de uma idéia básica da economia capitalista
27
entraria mais tarde nas teorias correntes da produtividade por salários baixos (2006, p. 137).
Leland Ryken em seu livro Santos No Mundo – os Puritanos como realmente eram –
nos diz que na visão puritana do trabalho é o próprio Deus que determina cada função
do ser humano na sociedade. Sendo assim, cada indivíduo deve se contentar com seu
quinhão. Por conseguinte, não se deve ambicionar a posição daquele que é mais bem
sucedido, sob pena de cometer o pecado da inveja. Já que o sucesso é benção de
Deus apenas para alguns, e não algo conquistado por esforço (1992, p. 41-48). A
consequência inevitável dessa lógica é a legitimação dos privilégios dos ricos e o
desfavorecimento dos pobres na estratificação socioeconômica.
Este conceito de escolha divina soberana não era aplicado apenas ao indivíduo, mas
igualmente às nações. Oliwer Cromwell, general que comandou a força militar inglesa
durante a revolução puritana (1642-1649), seguiu rigorosamente essa linha de
raciocínio calvinista: a eleição de um povo escolhido em detrimento dos demais. A
propósito, essa concepção acabou servindo como justificativa moral para Cromwell
promover a violenta invasão da Irlanda e da Escócia. Assim também como foi
determinante na política de ampliação do império colonial da Inglaterra, e na
implementação de medidas favoráveis à sua burguesia.
Essa lógica calvinista da prosperidade, exclusiva aos eleitos, inspirou tanto a
expansão do imperialismo inglês, como a dos Estados Unidos das Américas –
respectivamente na idade moderna e contemporânea. Conforme o professor de
História contemporânea da USP, Osvaldo Coggiola: “O imperialismo Inglês, que
dominou o mundo durante 100 anos, abriu caminho para a supremacia dos EUA no
século XX” (História Viva, n.16, {s.d.}: 98).
Tanto o imperialismo inglês, quanto o imperialismo norte-americano foram
impulsionados por essa ideia de escolha divina – nesse caso, algumas nações foram
escolhidas em detrimento de outras para serem beneficiadas com as riquezas, o
progresso e o desenvolvimento.
É a partir dessa concepção que se elabora a ideologia norte-americana do “Destino
Manifesto.” Sob o pretexto de ser a nação predestinada por Deus para liderar as
nações da terra rumo à democracia e ao desenvolvimento, os americanos ocuparam
territórios estrangeiros e trilharam civilizações inteiras:
28
A expressão destino manifesto surgiu às vésperas da guerra do México em 1946, quando o jornalista John O. Sullivam defendeu a realização do nosso destino manifesto de nos espalharmos pelo continente que recebemos da Providência. Mas a idéia tem raízes mais antigas, que remontam aos puritanos do século 17. Em sua jornada através do atlântico, esses imigrantes se comparavam aos Hebreus do velho testamento, cruzando o deserto em busca da terra prometida... Quando os ingleses chegaram, havia 25 milhões de índios na America do Norte e cerca de 2 mil idiomas diferentes. Ao fim das chamadas guerras indígenas restavam 2 milhões, menos de 10% do total...(Aventura na História, n. 35, julho de 2006, p. 29-31).
Um exemplo mais recente desse imperialismo opressor, movido pela fé calvinista do
Destino Manifesto, foi o da Guerra do Iraque.
O presidente George W. Bush relatou algo semelhante ao falar sobre a política externa para um grupo de autoridades palestinas ‘Deus me disse para atacar a Al Qaida e eu ataquei. Então ele me deu a ordem de atacar Saddam, e foi isso que fiz’ (ibid, p. 29).
Apesar de sabermos que isso foi um pretexto para esconder outros interesses
econômicos dos EUA no Iraque, não podemos ignorar o fato de o ex-presidente Bush
ser um evangélico atuante; de essa atitude contar com o apoio de muitos pastores
evangélicos norte-americanos; e das profundas implicações da doutrina do destino
manifesto na política expansionista e imperialista dos EUA em sua história. Vale
lembrar que o número de civis mortos no Iraque desde o início do conflito com os EUA
chega a 90 mil (jornal Diário do Nordeste 2 de Fevereiro de 2009, p.18).
O conceito do Destino Manifesto gerou entre os nortes americanos um sentimento de
superioridade com relação a outros povos. Fazendo-os acreditar na escolha especial
divina; na outorga da missão de levar a democracia, o Protestantismo e os valores da
civilização ocidental ao mundo inteiro. O que, inclusive, foi usado como alegação para
justificar a anexação do Texas, Oregon e Alaska em meados do século XIX.
Gilberto Cotrim e Jaime Rodrigues nos lembram ainda que as potências europeias
também justificaram a exploração de diferentes povos africanos e asiáticos,
considerados “inferiores” aos europeus, com a ideologia da “missão civilizadora”,
através da qual se pretendia “difundir o progresso pelo mundo”. Na verdade uma
desculpa esfarrapada para respaldar a partilha e conquista da África e da Ásia
empreendidas pelo neocolonialismo no final século XIX e no começo do século XX. Os
interessados pela expansão europeia afirmavam que a suposta superioridade da
civilização ocidental baseava-se em três pontos: o primeiro eram as características
29
biológicas da “raça branca” (ou europeia); o segundo era a fé religiosa (Cristianismo –
especificamente o Protestantismo europeu); e o terceiro, o desenvolvimento técnico e
científico alcançado a partir da Revolução Industrial (2009: 184).
É significativo aquilo que o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano relata sobre
esse imperialismo presente na América do Sul – especificamente no Brasil da década
de 70. No seu livro As Veias Abertas da América Latina ele denuncia (já naquela
época) a presença de várias missões estrangeiras na Amazônia – principalmente
igrejas protestantes dos EUA – que se estabeleceram nos pontos mais ricos em
minerais radioativos, ouro e diamantes. Inclusive, desempenhando um papel de
controle de natalidade da escassa população desse território que é o maior deserto do
planeta habitável pelo homem. Impedindo, assim, a competição e ocupação
demográfica dessa região que é uma das maiores reservas de riquezas minerais,
vegetais e animais do mundo (2005, p.181).
Lembrando que quanto mais uma região for desabitada, mais ela é facilmente
explorada, saqueada e dominada, sem que isso traga tantas repercussões
internacionais.
Portanto, estabelece-se por intermédio do Protestantismo a lógica calvinista da
riqueza, do progresso, do desenvolvimento, ou seja, da prosperidade a qualquer custo
para os “escolhidos de Deus”, passando, então, germinar a semente da injustiça, da
desigualdade, da exploração e da opressão de todo esse sistema capitalista ocidental
moderno.
A terceira ideia da doutrina calvinista – dentro desses fatores teológicos analisados no
momento – que contribuiu para a gestação do capitalismo ocidental, e sua ingerência
no movimento evangélico, é aquela do capital acumulado em virtude de uma vida
regrada e disciplinada.
A ética protestante puritana ensinava aos fiéis um estilo de vida totalmente antagônico
ao vício; ao desperdício de tempo no lazer e no esporte. Gedeon Alencar nos lembra
que o Protestantismo, desde o seu nascedouro, estabeleceu essa ética do trabalho
que se contrapõe ao ócio das festas e dos feriados. “Lutero em sua recomendação à
nobreza alemã dizia que deveria suprimir as festas, feriados e romarias para que
assim o povo tivesse mais tempo para trabalhar” (2007, p. 73).
30
Na visão puritana a disciplina da vida voltada para o trabalho é ainda mais
radicalizada. O indivíduo deveria empregar suas energias e tempo para promover
interesses éticos e religiosos. O esporte, por exemplo, só deveria ser praticado com a
finalidade de ajudar em um tratamento, ou em um problema de saúde. De outra sorte
era considerado tão fútil e pecaminoso quanto frequentar tavernas e prostíbulos. Já as
atividades recreativas eram qualificadas como pecado de desperdício do tempo:
atitude que decorria das inclinações inferiores de alguém não redimido pela obra
redentora. André Biéler comentando sobre a luta encarniçada destes religiosos contra
a publicação do “livro dos desportos” de Tiago I e Carlos I – autorizando certas
recreações aos domingos –, nos informa que a censura do puritanismo era na direção
de qualquer empreendimento não útil à glória de Deus e à edificação do indivíduo
(1990:636). Para esse utilitarismo religioso toda espécie de atividade que
proporcionasse apenas prazer, contentamento, gozo e alegria como um fim em si
mesmo, sem que de alguma forma contribuísse para o desenvolvimento espiritual e
material, era algo totalmente repugnante. Biéler nos diz que:
O ascetismo profissional protestante age no desenvolvimento do capitalismo de duas maneiras convergentes e extremamente eficazes: sua moral do trabalho e do ativismo prático estimula a produção e força o enriquecimento; seu ascetismo, porém, oposto a todas as formas de luxo e de prazeres inúteis, freia o consumo de riquezas adquiridas e conduz ao acúmulo do capital. O enriquecimento certo a que esta moral conduz não é um alvo, mas uma conseqüência quase inevitável (1990, p. 637).
A historiadora Liliane Crété nos dá maiores detalhes sobre o estilo de vida dos
puritanos que colonizaram a América do Norte. Vale a pena destacar na íntegra seu
comentário:
O repouso sabbat (como eles chamavam o domingo) deveria ser rigorosamente respeitado e voltado às atividades espirituais. A legislação proibia viagens, visitas, obras, divertimentos e os infratores eram obrigados a pagar multas. Há exemplos bizarros de transgressões: Dez shillings de multa por, no dia do sabbat, ter pescado umas enguias, por colher ervilhas, por ter ido navegar, ou por levar o rebanho ao pasto. O único deslocamento autorizado era o de se encontrar na casa de orações mais próximas para louvar o Senhor. Assim que o sabbat acabava, os habitantes retomavam o trabalho. Para o povo de Massachusette, como, alias, para todo o bom protestante dessa época, o trabalho era um ‘desígnio divino’(...) Na verdade ele dava ao trabalho um valor tal que a ordem do repouso sabático lhe provocava a sensação de que era obrigatório trabalhar todos os outros seis dias... (História Viva, n.17, março de 2005, p. 65).
31
Em virtude dessa postura radical, com ralação ao lazer e ao divertimento, o trabalho
passou a ser bastante valorizado e intensificado. Quanto ao acúmulo do capital ele era
resultado de uma vida regrada e disciplinada, na qual não se tinha muito com o que
gastar o dinheiro ganho. Na rotina do dia a dia de um legítimo puritano não havia
despesas com bebidas, festas ou atividades recreativas. Hubermam nos diz que os
puritanos calvinistas que se estabeleceram na Nova Inglaterra (hoje Estados Unidos)
para colonizá-la levavam a sério a vida disciplinada, na qual a poupança e o trabalho
árduo eram louvados, enquanto o luxo, a extravagância e ociosidade eram
condenados (1986, p. 169).
Esse estilo de vida acabou favorecendo os interesses capitalistas. Na compreensão do
autor ainda pouco citado “que qualidades poderiam ser mais propícias a um sistema
econômico – no qual a cumulação da riqueza, de um lado, e os firmes hábitos de
trabalho, por outro, constituíam as pedras fundamentais – do que esses mesmos
ideais religiosos transformados em prática cotidiana pelos adeptos de Calvino?”.
De acordo com a tese Weberiana essa maneira de viver calvinista foi uma forma de
criar um “ascetismo que educava as massas para o trabalho, ou, em linguagem
marxista, para a produção da mais-valia6, e esse modo pela primeira vez tornava
possível o seu emprego na relação do trabalho capitalista” (2006, p.232).
1.2. Fatores históricos que contribuíram para a tendência capitalista da fé
A compreensão do desenvolvimento da fé capitalista no Brasil, consequentemente em
Fortaleza, perpassa pela compreensão da formação do Protestantismo com seus
principais desdobramentos em solo brasileiro. Precisamos identificar as três principais
vertentes do Protestantismo Brasileiro para podermos traçar o perfil histórico dessa
religião mercadológica que tem caracterizado o movimento evangélico em nosso país
e em nossa cidade. Para efeito didático, subdividiremos em três tipos o
Protestantismo Brasileiro: o de imigração, o de missão e o pentecostal – e seus
respectivos segmentos.
6 Segundo Karl Marx, o valor do trabalho não pago ao trabalhador é denominado mais-valia – a
parte do valor do trabalho não pago ao empregado para proporcionar um lucro exorbitante ao empregador.
32
Entretanto, lembra-nos Gedeon que não existem períodos históricos exatos, fechados
e estáticos (2007:38). Hoje em dia, por exemplo, apesar da hegemonia das igrejas
neopentecostais que se estabeleceram a partir dos anos 1980, temos ainda igrejas de
imigração ou étnicas. Como é o caso da Igreja Evangélica Árabe e da Igreja Nipo-
brasileira. Igrejas cujo período característico é o século XIX. No entanto, continuam no
século XXI marcando presença em algumas regiões do país. Levando isso em
consideração, queremos frisar que o recorte histórico da nossa abordagem é apenas
da vertente que mais se destaca em cada período.
Outra colocação que precisamos fazer, antes de identificarmos as principais vertentes
que formaram o Protestantismo Brasileiro, é que começaremos esse levantamento
historiográfico do movimento protestante aqui no Brasil a partir do século XIX. Sem
considerarmos a presença protestante no século XVI – Os huguenotes, em 1557,
vieram à procura do Pau Brasil e de refúgio religioso na missão de ocupação francesa
do Rio Janeiro, conhecida como França Antártica, comanda por Nicolau Durant
Villegaignon. Também não levaremos em conta a presença protestante holandesa no
século XVII. Por ocasião da ocupação de Pernambuco, de 1630 a 1654, foi
transplantada para o Nordeste Brasileiro a Igreja Reformada da Holanda, que veio no
esteio da Companhia das Índias ocidentais, cujo interesse era o comércio do açúcar.
Tendo feito essas considerações cronológicas, passaremos agora – dentro do nosso
propósito de compreendermos a formação da igreja evangélica atual – a identificar os
três tipos de Protestantismo.
1.2.1. Protestantismo de Imigração ou Étnico
É a partir do século XIX que a presença do Protestantismo no Brasil se torna efetiva e
cada vez mais intensa. Com o Tratado de Comércio e Navegação (Aliança e
Amizade), em 1810, entre Portugal-Ingraterra, envolvendo interesses puramente
políticos e comerciais, levas de imigrantes ingleses vieram para o Brasil, trazendo na
bagagem o Protestantismo. Sobre isso comenta a historiadora Elizete da Silva:
O Tratado de Navegação e Comércio declarava, no seu artigo 12, ‘que os vassalos de S.M. Britânica residentes nos territórios e domínios portugueses não seriam perturbados, inquietados,
33
perseguidos ou molestados por causa da religião, e teriam perfeita liberdade de consciência, bem como licença para assistirem e celebrarem o serviço em honra do Todo-Poderoso Deus, quer dentro de suas casas particulares, quer nas suas particulares igrejas e capelas...’ (Nossa História, n.38, dezembro de 2006, p.15).
Todavia, “os súditos ingleses – acatólicos, como eram chamados – podem realizar
seus ofícios religiosos sem templos, sem proselitismo e sem a presença de brasileiros”
(Alencar. 2007:39). Apenas sob essas condições eles poderiam exercer sua fé. Dessa
forma, temos um Protestantismo, literalmente, para inglês ver.
Após a independência do Brasil em 1822 vieram os imigrantes alemães, os quais se
fixaram em maior número no Rio Grande do Sul. Elben Lenz César nos diz que até
1830 já havia cinco mil deles no país, sendo que desse total dois mil e quinhentos
eram protestantes. Tendo o apoio do governo brasileiro, inclusive financeiro, levas de
imigrantes deixaram a Alemanha se estabelecendo em terras brasileiras. Com a lei de
orçamento aprovada no dia 15 de dezembro desse mesmo ano (1830), o governo
imperial cortou qualquer ajuda à imigração, diminuindo consideravelmente a vinda dos
alemães nos quinze anos seguintes. Mas, em 1845, ela recomeça de tal forma que um
ano depois chegaram mil setecentos e quarenta e nove colonos. Já no fim do século
XIX calcula-se, conforme o citado autor, que o Brasil tenha recebido,
aproximadamente, seiscentos mil imigrantes alemães, dos quais trezentos e cinquenta
mil eram protestantes (2000, p. 72-76).
Apesar da independência do Brasil ter proporcionado certa tolerância a outras
expressões de fé que não fossem católicas, a liberdade de outras religiões era
bastante restrita. A própria Constituição imperial de 1824 delimitava os outros credos
proibindo a construção de templos, negando certidões de nascimento, casamento,
óbitos e o direito de ser enterrado em cemitérios, e, ainda, vetando a ocupação de
cargos públicos de representação nacional.
O Protestantismo de Imigração não teve características expansionistas e
evangelizadoras. Isso devido às suas próprias limitações jurídicas; aos seus próprios
interesses étnicos, políticos e econômicos, restringindo-se apenas às colônias
inglesas, e principalmente alemãs que se fixaram aqui na primeira metade do século
XIX. Como nos diz Conrado: “formaram num primeiro momento, igrejas étnicas,
voltadas para a preservação da cultura de origem” (Nossa História, n.38, dezembro de
2006:31).
34
1.2.2. Protestantismo de Missão
A segunda vertente do Protestantismo Brasileiro é tipificada como aquela que na sua
quase totalidade foi constituída por missões norte-americanas radicadas aqui na
segunda metade do século XIX. A saber, congregacionais (1855); presbiterianos
(1859); metodistas (1867); batistas (1882); episcopais (1890); adventistas (1894). O
Protestantismo de Missão, diferentemente do Protestantismo de Imigração,
desenvolveu igrejas nacionais, deixando de lado a identidade de igrejas étnicas. Com
a proposta de propagar a fé – ou as doutrinas e métodos anglo-saxões, na análise de
Leonard (2002, p. 84) – inaugurou o primeiro “serviço sistemático de evangelização do
país” (CÉSAR, 2000 apud FILHO, 198, p. 15).
Robert Reid Kelley, missionário congregacional, foi o pioneiro no que tange à
implantação da primeira igreja protestante brasileira – A Igreja Evangélica Fluminense,
matriz das igrejas congregacionais no Brasil. Em 11 de junho de 1858, três anos após
Kelley ter iniciado seu trabalho de evangelização, foi batizado o primeiro brasileiro nos
tempos modernos em uma igreja protestante – Pedro Nolasco de Andrade
(LÉONARD, 2002, p.57).
Esse acontecimento acabou deflagrando uma perseguição aos protestantes pelo fato
do convertido brasileiro pertencer à alta sociedade. Por essa razão Robert Kelley
aproximou-se dos grandes juristas da época, assim como do imperador D Pedro II.
Conseguindo, dessa forma, obter o respeito e o reconhecimento de sua atividade civil
e religiosa, pois ele desempenhava a função de médico e pastor (OLIVEIRA, 2004
apud LÉONARD, 2002, p.61).
Esse tipo de evangelização voltada para as elites, excluindo as camadas mais pobres,
estabeleceu um modelo seguido pelos missionários de outras denominações: Ashbel
Simonton (presbiteriano); Junius Newman (metodista); Zacarias Clay Taylor (batista);
Morris e Kinsolving (episcopais).
As missões protestantes instaladas no Brasil durante a segunda metade do século XIX
mantiveram seu foco nas classes mais abastadas da sociedade. Daí o
estabelecimento das escolas protestantes elitizadas como o Mackenzie em São Paulo,
e o Bannete no Rio de Janeiro. Esses colégios acabaram sendo utilizados para
35
alcançar as pessoas dessa camada social. Também, seguindo essa mesma
estratégia, foram criados jornais denominacionais – endereçados às elites nacionais –
que apresentavam a modernidade e a educação, trazidas pelos missionários norte-
americanos, como os únicos meios de tirar o país do atraso (ALENCAR, 2007, p.44). A
ideia era mostrar uma versão liberal e moderna do progresso americano trazido pelo
Protestantismo de Missão.
O sociólogo francês Emile Leonard, comentando sobre esse tipo de estratégia
educacional das missões protestantes norte-americanas desse período – diga-se, já
utilizada no Brasil colonial pelos jesuítas –, diz-nos que ela estava muito mais para
aculturação do que para evangelização (2002, p.147). Nesse caso, uma catequização
nos moldes do sistema cultural e econômico dos Estados Unidos.
Essa proposta do Protestantismo de Missão, voltada principalmente para as camadas
sociais mais favorecidas, por um lado surtiu efeito – no que se refere a garantir a
permanência dessas igrejas numa sociedade de leis civis rígidas com outras
confissões religiosas que não fossem católicas. Por outro lado foi um fiasco – no que
diz respeito à uma adesão considerável desse meio. Como bem lembra Paul Freston
que “embora as igrejas históricas tenham investido pesadamente em colégios para
alcançar a elite, o resultado em conversões foi decepcionante” (ALENCAR, 2007 apud
FRESTON, 1993, p. 53).
O que talvez seja mais grave, no que diz respeito a essa proposta elitista do
Protestantismo de Missão, é o seu distanciamento da cultura, da dor, dos anseios e da
vida do povo brasileiro na sua maioria. Algo que as igrejas pentecostais vão saber
explorar muito bem no século XX.
Precisamos também considerar alguns fatores que contribuíram para a vinda dessas
missões norte-americanas na segunda metade do século XIX. O primeiro deles está
relacionado com o fervor evangelistico decorrente do avivamento espiritual ocorrido na
Europa no século XVIII, e que se alastrou pelos EUA. O segundo está vinculado à
questão econômica. Com relação a esse fator, Elizete da Silva faz a seguinte
consideração:
As missões protestantes faziam parte de um movimento de expansão norte-americana na América Latina. Os missionários que vieram para o Brasil eram homens do seu tempo – tempo da expansão capitalista
36
dos Estados Unidos. Não por acaso, William Bagby e Ana Luther, os primeiros missionários batistas ao chegarem ao Brasil, desembarcaram no Rio de Janeiro do navio cargueiro da companhia da família Levering, batista, que aqui negociava com café (Nossa História. N. 38, dezembro de 2006:17).
O terceiro fator que trouxe o Protestantismo de Missão para o Brasil foi o sociopolítico.
A Guerra da Secessão (1861-1865) fez com que dois mil, dos dez mil sulistas que
deixaram os Estados Unidos, viessem para as terras brasileiras, trazendo consigo os
ideais de progresso, de desenvolvimento e de prosperidade a qualquer custo. Esses
missionários projetaram no Brasil a terra prometida, a Nova Canaã, na qual os
derrotados da guerra civil americana poderiam reconstruir suas vidas e suas
propriedades (ibid, pág. 16).
Leonard comenta que a Guerra da Secessão não foi apenas uma guerra civil, mas um
choque de duas concepções de vida (2002:84). De um lado, os estados do Sul,
latifundiários, que defendiam a exploração da mão de obra escrava. De outro, os
estados do Norte, industriais, que eram favoráveis à abolição da escravidão, mas
somente para ampliar o mercado consumidor – a exploração da mão de obra
assalariada. Tanto uma concepção de vida, quanto a outra eram movidas pela
ganância e pelo lucro. E ambas “concorreram para a obra missionária protestante no
Brasil” (ibid, pág.85).
Julgamos relevante a citação, na ìntegra, dos comentários de José Carlos Barbosa e
do pastor batista Marcos Davi sobre a vinda desses missionários, por ocasião da
Guerra da Secessão:
Os sulistas norte-americanos ficaram animados com o regime de grandes propriedades escravocratas vigente no Brasil (...) Para muitos, este foi o mais poderoso atrativo em sua vontade de emigrar, impelidos que vieram pelo desejo de aqui, de alguma forma, recriarem o tipo de vida que tiveram na imensa comunidade rural que era o Sul antes da guerra (2002:96). Muitos missionários do Sul dos Estados Unidos sentiam-se à vontade trabalhando no Brasil, pois aqui não eram perturbados por aqueles que achavam a escravidão de negros uma afronta contra o próprio Deus (2004:55).
37
1.2.3. Pentecostalismo
A terceira vertente que foi determinante na formação do Protestantismo no Brasil é o
movimento Pentecostal, cuja compreensão é imprescindível para entendermos a
tendência mercadológica que a fé evangélica assumiu nos últimos vintes anos.
Sua origem, como nos lembra Ricardo Mariano, remonta às primeiras décadas do
século XX, nas quais esse movimento se consolidou em nosso país. O
Pentecostalismo chegou em solo brasileiro por intermédio de missionários norte-
americanos – semelhante ao Protestantismo de Missão. Porém, distingue-se, tanto
deste tipo de protestantismo, como do Protestantismo de Imigração, pelo fato de se
propagar entre as camadas mais populares, utilizando-se, para isso, de uma grande
identificação com a classe mais pobre da sociedade: na linguagem, na liturgia, nas
estratégias de alcance (2005, p. 29-32). Essa identificação se dá em função do
nascedouro do movimento ter acontecido num bairro de Los Angeles constituído por
pessoas negras e pobres. Nascia ali, na Rua Azuza, número 312, o chamado século
pentecostal que se popularizou entre os excluídos social e economicamente através
da glossolalia7; da cura divina; e da teologia da prosperidade (nas últimas duas
décadas).
A influência pentecostal no Protestantismo Brasileiro, ou até mesmo no protestantismo
mundial, no decorrer do século XX é algo marcante e notório. De acordo com a Word
Christian Database, três de cada quatro protestante da América latina são
pentecostais. Eles são apontados pelas pesquisas como os principais responsáveis
pelo grande crescimento evangélico no Brasil, nas últimas décadas. Segundo o
sociólogo Ricardo Mariano “em 1980, eles eram cerca de três milhões de pessoas. Em
1991, quase nove milhões. Em 2000 quase 18 milhões” (Sociologia, n. 7, 2007, p. 52).
Esses dados por si só seriam suficientes para despertar a curiosidade de investigação
sobre essa importante ramificação do “protestantismo tupiniquim” 8. E que, sem
7 Experiência de batismo no Espírito Santo, na qual, durante um transe religioso, a pessoa
passa a falar em línguas estranhas. 8 Esta expressão é utilizada por Gedeon Freire de Alencar que é mestre em Ciências da
Religião (UMESP), diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneo. È membro da Associação Brasileira de História da Religião, Associação de Professores de Missões do Brasil e da Rede de Teológos e Cientistas Sociais do Pentecostalismo na América
38
dúvida, foi uma das vertentes de maior influência na sua composição atual. Além do
mais, esse segmento é determinante na configuração do “big businnes gospel” –
característico do Movimento Evangélico em nosso país nos últimos vinte anos.
Tendo em mente sua enorme relevância no cenário evangélico nacional, tentaremos
identificar e diferenciar – diga-se, tarefa bastante complexa – os três principais tipos de
pentencostalismo que se desenvolveram no Brasil, com seus respectivos perfis e
desdobramentos na formatação da fé capitalista.
Antes disso, porém, precisamos fazer algumas considerações importantes sobre as
pesquisas já realizadas a respeito dessa temática. A primeira delas é que, desde a
década de 1960, os sociólogos e pesquisadores da religião se debruçam sobre esse
assunto. A lista, apresentada por Emerson Giumbelli (2001: 91), é exaustiva: Souza
(1969); Brandão (1980); Mendonça (1989); Bittencout (1991); Cedi (1991); Freston
(1993); Mariz (1994); Monteiro (1995); Bobsin (1995); Campos Jr. (1995); Mariano
(1995-1998); Prandi (1996); Gouvêia (1996); Moreira (1996); Pierucci (1996); Oro
(1997); Queiroz (1997); Sieperki (1997); Mafra (1999); Oro e Seman (1999). E esses
são apenas os mais conhecidos. Portanto, não há nenhuma pretensão de tentar
esgotar o assunto, ou apresentar algo inusitado. Nosso objetivo é simplesmente
continuar explorando um assunto tão atual, e que está completamente longe de se
exaurir.
A segunda consideração que queremos fazer é que todos os pesquisadores acima
citados procuraram tipificar e classificar o Movimento Pentecostal no Brasil. No
entanto, muitas dessas classificações se tornaram com o tempo obsoletas devido às
transformações e inovações que se processaram nesse meio nas últimas duas
décadas – movimentos sociais são muito dinâmicos e mutáveis. Conseguintemente,
as classificações que faremos aqui estarão igualmente fadadas a se tornarem
ultrapassadas em pouco tempo. A terceira consideração é que não se pode ignorar a
heterogeneidade e complexidade no momento de classificar as principais ramificações
do Pentecostalismo, pois cada uma delas possui um conjunto de diferenças e
semelhanças, dentro de um universo religioso dinâmico, intrincado e diversificado. E
por último, queremos dizer que em virtude de toda essa dificuldade de tipificação do
movimento pentecostal, optamos pelos três segmentos mais apontados nas
Latina e Caribe. E também autor do livro Protestantismo Tupiniquim: Hipótese Sobre A (não) Contribuição Evangélica Cultura Brasileira.
39
classificações desses estudiosos. Preferimos, então, as três classificações do
sociólogo Ricardo Mariano pelo fato de serem compatíveis com as tipificações da
maioria dos pesquisadores: Pentecostalismo Clássico, Deuteropentecostalismo
(segundo pentecostalismo), e o Neopentecostalismo.
Ressaltamos que essas conceituações não correspondem a retratos literais ou
fidedignos dessas ramificações do Movimento Pentecostal, nem as traduzem
completamente; mas são, como lembra Mariano, simplesmente “instrumentos toscos e
generalizantes, pelos quais procuramos pensá-las, ordená-las e compreendê-las”
(2005, p.47).
A - Pentecostalismo Clássico
Esse se estabelece de forma absoluta entre1910 a 1950. Inicialmente, com a
implantação na cidade de São Paulo da Congregação Cristã do Brasil (1910) através
do italiano Luigi Francesco cuja mensagem, num primeiro momento, destinou-se aos
operários imigrantes vindos da Itália e radicados no país. E no ano seguinte, esse
movimento se consolida com o surgimento da Assembléia de Deus (1911) por meio
dos suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, que iniciam o trabalho em Belém do Pará,
cuja mensagem foi prioritariamente destinada a imigrantes seringueiros nordestinos –
desempregados devido à queda da produção da borracha provocada pelos mercados
asiáticos. Queremos destacar que, embora esses missionários fossem europeus,
tornaram-se pentecostais nos Estados Unidos. Vindo, em seguida, implantar igrejas
aqui no Brasil (Mariano – citado em Sociologia, n. 7, 2007, p. 55).
O perfil desse Pentecostalismo que caracteriza a primeira metade do século XX pode
ser delineado da seguinte forma: ênfase nos dons espirituais, sobretudo no dom de
línguas; postura ascética e sectária, num total desprezo e demonização do mundo
material, sendo “contracultura” – justificando dessa forma sua mensagem escatológica
direcionada apenas para o celeste porvir –, alienando as pessoas dos compromissos
com as transformações do presente. A propósito, com esse tipo de postura apolítica e
antissocial, não é de se admirar que as igrejas pentecostais identificadas com esse
perfil obtiveram grande crescimento em períodos da história do nosso país marcados
pela repressão dos regimes militares, sem que isso trouxesse nenhum incômodo ou
40
preocupação para os poderes públicos desses regimes, visto que não falavam contra
as injustiças sociais cometidas pelos detentores do poder.
Contudo, é preciso que se reconheçam as mudanças e transformações pelas quais
vêm passando as igrejas identificadas com esse primeiro segmento pentecostal,
como, por exemplo, a Assembléia de Deus.
Seu recente e deliberado ingresso na política partidária e na TV, em busca de poder, visibilidade pública e respeitabilidade social, ao lado de outras transformações internas, sinaliza de modo irrefutável sua tendência à acomodação social, à dessectarização (MARIANO, 2005, p.30).
B - Deuteropentecostalismo
O nome pode parecer estrambótico, mas se refere ao segundo momento do
Pentecostalismo no Brasil, que vai aproximadamente de 1950 até a primeira metade
dos anos 1970.
Esse segmento do Movimento Pentecostal tem como seus maiores protagonistas a
Igreja do Evangelho Quadrangular (1951); a Igreja Brasil para Cristo (1955); a Igreja
Deus é Amor (1962); a Igreja Casa da Benção e outras de menor porte. As três
primeiras se estabeleceram a partir de São Paulo. Já a última, a partir de Belo
Horizonte. Essas igrejas romperam paradigmas no meio pentecostal: “com mensagens
sedutoras e métodos inovadores e eficientes, atraíram, além de fiéis e pastores de
outras confissões evangélicas, milhares de indivíduos dos estratos mais pobres da
população” (2005, p.30).
O perfil do Pentecostalismo da segunda metade do século XX pode ser identificado
principalmente pelo evangelismo de massa centrado na mensagem da cura divina;
pelas inovações evangelísticas como o uso do rádio, de tendas, do teatro e do cinema;
estes últimos, utilizados como locais de propagação do evangelho. No rastro das
campanhas promovidas pela Cruzada Nacional de Evangelismo – braço de
propaganda da Igreja do Evangelho Quadrangular – surgiram com a mesma proposta
as demais igrejas desse período. Essas características foram preponderantes para a
41
diversificação e o crescimento do Pentecostalismo não apenas aqui no Brasil, mas em
toda América latina, Estados Unidos, África e Ásia (2005, p.31).
O antropólogo Emerson Giumbelle nos lembra que esse segundo Momento do
movimento Pentecostal (Deuteropentecostalismo) adaptou-se e aproveitou-se da
crescente urbanização, massificação e comoditizações das relações sociais
decorrentes da década de 1950, apropriando-se assim, de espaços públicos e
seculares – ruas, cinemas, estádios. Igualmente se utilizando dos meios de
comunicação de massa – rádio (2001, p. 104).
Na tipificação tanto de Paul Freston (1993), quanto de Ricardo Mariano (1995), o
critério histórico é um dos fatores decisivos para distinguir o Pentecostalismo Clássico
do Deuteropentecostalismo. Sua diferença seria apenas uma questão temporal que
marca a introdução de ambos no Brasil – o primeiro tipo introduzido no início, e o
segundo tipo introduzido na metade do século XX. Sendo, dessa forma, de acordo
com Mariano, simplesmente um corte histórico-institucional, sem, no entanto, existir
diferenças teológicas consideráveis entre os dois tipos (2005, p.31). Isso significa que
todas as igrejas pentecostais que correspondem ao primeiro e ao segundo segmento
teriam uma relativa homogeneidade teológica, excetuando-se a crença
“predestinacionista” da Congregação Cristã do Brasil, distinta da teologia arminiana9
defendida pelas outras igrejas. Essa semelhança teológica entre as igrejas
pentecostais do início e da metade do século XX se explicaria pelo fato de a Igreja
Quadrangular, pioneira do segundo momento, ter nascido nos Estados Unidos com o
mesmo corpo doutrinário importado para o Brasil pelas igrejas do primeiro momento.
Portanto, conforme Ricardo Mariano, a única diferença seria a distinção de estratégias
evangelísticas – resultado de quatro décadas que separam um tipo do outro – e a
ênfase doutrinária em algum dom espiritual. O Pentecostalismo Clássico enfatiza o
dom de línguas, a glossolalia, enquanto o Deuteropentecostalismo enfatiza a cura
divina (2005:32). É basicamente o que também diz Beatriz Muniz de Sousa ao
pesquisar esses dois segmentos do Movimento Pentecostal que caracterizam a
primeira metade do século XX: “O núcleo doutrinário permanece inalterado em
qualquer dessas duas ramificações pentecostais” (1969, p.103).
9 Corrente teológica defendida pelo teólogo protestante Arminio que ensinava a liberdade de
escolha humana na salvação. Se contrapondo assim a predestinação calvinista.
42
C - Neopentecostalismo
Esse segmento teve inicio na segunda metade dos anos de 1970, todavia, ele cresce
e se consolida nas décadas de 1980 e 1990. Seus maiores expoentes são as
seguintes igrejas: Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (Goiás, 1976); Universal
do Reino Deus (Rio de Janeiro, 1977); Internacional da Graça de Deus (Rio, 1980);
Cristo Vive (Rio, 1986); Renascer em Cristo (São Paulo, 1994); Nacional do Senhor
Jesus Cristo (São Paulo, 1994); Mundial do Poder de Deus (Sorocaba-SP, 1998).
O Neopentecostalismo se diferencia em muitos aspectos do Pentecostalismo
desenvolvido até a primeira metade do século XX – o Clássico e o
Deuteropentecostalismo. Enquanto esses mantêm uma identificação doutrinária,
diferenciando-se apenas nas ênfases dadas aos dons espirituais, o Movimento
Neopentecostal, por sua vez, apresenta inovações teológicas. Para o sociólogo
Ricardo Mariano, no primeiro e no segundo tipo de Pentecostalismo, o que temos é
apenas um corte histórico-institucional, devido à distância cronológica de um para o
outro (40 anos). Já no terceiro tipo, percebemos posturas teológicas, sociais e
comportamentais bastante diferentes (2005, p. 32-37).
Delineando seu perfil, Mariano resume suas principais características em quatro
aspectos: exacerbação da guerra contra o diabo; ênfase na teologia da prosperidade;
liberalização dos estereotipados usos e costumes; estrutura administrativa do tipo
empresarial (ibid, p.36).
Analisemos suas particularidades:
C.1. Exacerbação da guerra contra o diabo
Os ritos do exorcismo e das correntes de oração contra o diabo já eram práticas
comuns no Deuteropentecostalismo. Mariano nos diz que a Igreja do Evangelho
Quadrangular, em meados dos anos 70 – antes do surgimento de igrejas como a
Universal e a Internacional da Graça –, promovia campanhas, às sextas-feiras, para a
resolução de problemas e cura de doenças causadas por espíritos malignos (2005, p.
43
43). E onde estaria, nesse caso, a diferença do Deuteropentecostalismo
(Quadrangular) para o Neopentecostalismo (Universal e a Internacional da Graça)?
Justamente na exacerbação, por parte deste, das reuniões de libertação. Concedendo
ao diabo e aos demônios, identificados com os deuses e as entidades do culto afro-
brasileiro, destaques e importância sem precedentes.
É interessante observar a postura pluralista dessas igrejas neopentecostais diante do
catolicismo e das religiões afro. Isso pelo fato de, ao mesmo tempo, antagonizarem e
sincretizarem elementos peculiares a essas religiões rivais. Na disputa por espaço no
mercado religioso, não obstante demonizarem, acabam também incorporando,
estrategicamente, suas crenças e símbolos. Conforme o autor acima mencionado:
Basta um único programa de TV da Internacional da Graça para revelar várias práticas mágicas, similares na forma às da umbanda e de benzedeiras católicas. Citarei três delas: o Pastor Gilberto convida os telespectadores a buscar ‘sabão abençoado’ na congregação de Caxias, com o qual iriam ‘lavar a peça de roupa daquela pessoa que está internada, que está com os exus em cima, está com o tranca rua, com o omolu, alguém que colocou o seu nome lá no cemitério na cabeça do defunto fresco’. Fala ainda da cura do fiel que iria amputar a perna: ’olha a senhora vai pegar três petalazinhas dessa rosa, fazer um chá, um banho e vai durante sete dias de manhã banhar a perna em nome de Jesus com toda a fé. E ela fez isso e não precisou mais cortar a perna. ’ Em resposta a um pedido de oração para cura de epilepsia, R.R. Soares revelou: ‘Eu fui responder a carta (...) me deu uma voz que disse: manda ele colocar essa carta sete dias debaixo do travesseiro. Assim eu pus na carta (...) um tempo depois chegou à resposta (...) Colocamos a carta debaixo do travesseiro da esposa. Aos sete dias saímos para o culto, o demônio deu uma manifestação como nunca. Foi embora e minha esposa curou’ (ibid, p. 134).
Poderíamos ainda citar, como nos lembra Mariano, a prática da Igreja Universal do
Reino de Deus com os saquinhos de sal grosso, arruda, perfume do amor e outra
sorte de objetos benzidos, aos quais se atribuem poderes sobrenaturais, tal como se
vê na umbanda e no catolicismo popular (ibid, p. 134-135).
De fato! O Neopentecostalismo leva ao extremo o confronto contra as forças do mal,
sincretizando-se e rivalizando-se, ao mesmo tempo, com as práticas da umbanda e do
candomblé. Outro exemplo dessa exacerbação da guerra espiritual contra o diabo é a
Teologia do Domínio – baseada nas batalhas espirituais contra demônios hereditários
e territoriais. Essa crença pode ser igualmente identificada em outros segmentos
pentecostais. Entretanto, é no Movimento Neopentecostal que ela ganha uma nova
dimensão nunca antes vista: o enfrentamento não apenas ritualístico e espiritual, mas
44
também sociopolítico, no qual se desenvolvem “concepções de recristianização da
sociedade ‘pelo alto’, quer dizer, pela via político-partidária, e acrescentaria, pela mídia
eletrônica” (ibid, p.44).
C.2. Ênfase na teologia da prosperidade
Também conhecida como “Confissão Positiva”, “Palavra da Fé”, “Movimento da Fé”, a
teologia da prosperidade surgiu não no meio do Pentecostalismo, nem muito menos
no Protestantismo. Ela surge dentro de seitas metafísicas e ocultistas dos EUA em
meados do século XX. Portanto, é um legado não da Reforma, mas um produto do
sincretismo das concepções religiosas orientais e ocidentais, no qual se fundiu
crenças esotéricas, espíritas, ocultistas e protestantes.
Algumas perguntas são pertinentes nesse momento: em que se constitui a teologia da
prosperidade? Quais são suas raízes e suas origens?
Inicialmente, precisamos compreender seu surgimento. De acordo com o sociólogo
Ricardo Mariano e o historiador Alderi Sousa de Matos, essa doutrina surgiu entre as
décadas de 1920 e 1940, nos Estados Unidos. Ela foi elaborada por seitas metafísicas
e esotéricas, mas foi em círculos pentecostais e carismáticos que teve maior guarida,
passando, assim, a se tornar um movimento forte nesse meio durante os anos 1970.
Ganhando mais visibilidade, mais notoriedade, principalmente a partir dos anos 1980.
De acordo com estudiosos do assunto, como D.R. Mcconnell – citado por Matos e por
Mariano –, o pai do movimento teria sido Essk William kenyon (1867- 1948). Esse, por
sua vez, mudou-se em 1892 para Boston, onde estudou no Emerson College of
Oratory – uma espécie de centro de preparação transcendental, ou metafísico, que
deu origem a várias seitas, como o Teosofismo, por exemplo, fundado por Mary Baker
Eddy. Os escritos e ensinos desta senhora teriam também influenciado as doutrinas
de kenyon, autor original da Confissão Positiva – um dos princípios doutrinários da
Teologia da Prosperidade. Sobre isso comenta Mariano:
Inclinou-se aos ensinos das ‘seitas metafísicas’ derivadas da filosofia do ‘Novo Pensamento’, formulada originalmente por Phineas Quimby (1802-66). Quimby, que estudara espiritismo, ocultismo, hipnose e parapsicologia para produzir sua filosofia, inspirou e curou Mary Baker Eddy, fundadora da Ciência Cristã. E os escritos de Mary
45
Baker, por sua vez, teriam influenciado as doutrinas de Kenyon, autor original da Confissão Positiva (2005, p.151).
A identificação da Confissão Positiva com a cosmovisão pentecostal estaria
principalmente na crença no poder da palavra para alterar e controlar a ordem das
coisas (compreendido como o poder da fé). Kenyon – escritor, pregador, radialista de
sucesso nos anos 1930 e 1940 – tinha trânsito livre entre os evangélicos, pois já havia
pertencido a vários grupos protestantes: batista, metodista, pentecostal e outros sem
vínculos denominacionais. Em conformidade com que diz o historiador Aderir Sousa:
Kenyon iniciou o Instituto Bíblico Betel, que dirigiu até 1923. Transferiu-se então para a Califórnia, onde fez inúmeras campanhas evangelísticas. Pregou diversas vezes no célebre templo Ângelus, em Los Angeles, da evangeÍista Aime McPherson, fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular. Pastoreou igrejas batistas independentes em Pasadena e Seattle e foi pioneiro do evangelismo pelo radio, com sua ‘Igreja no Ar’. (...) Cunhou expressões populares do movimento da fé, como ‘o que eu confesso, eu possuo’. Antes de morrer, em 1948, encarregou a filha Ruth de dar continuidade ao ministério e publicar seus escritos (Ultimato, n. 313, julho-agosto de 2008, p. 46).
Entretanto, mesmo Kenyon sendo o idealizador da Confissão Positiva na versão
gospel, ele próprio nunca pregou ou escreveu especificamente sobre prosperidade.
Foi o televangelista Oral Roberts quem criou o conceito de “vida abundante”
enfatizando principalmente o aspecto material, e iniciando, dessa forma, a pregação
da doutrina da prosperidade, prometendo um retorno financeiro sete vezes maior do
que o ofertado. Mariano nos diz que “Roberts passou a dar maior ênfase a tal
mensagem a partir de 1954, quando, ao ingressar na TV, suas despesas aumentaram
consideravelmente” (2005, p.152).
Posteriormente, de acordo com o relato de Alderir, temos nos anos 1970 a
continuidade dessa proposta religiosa da prosperidade através de nomes como Allen
Lindsay, T. L. Osborn, Glória Copeland, Kenneth Hagin. Estes dois últimos
radicalizaram prometendo um retorno cem vezes maior do que fosse dizimado e
ofertado. Mas, o grande divulgador dessa teologia e da Confissão Positiva foi Kennth
Hagin. Reunindo crenças sobre cura, prosperidade e o poder das palavras, ele deu
visibilidade a esse movimento, difundindo-o para outros grupos evangélicos, inclusive
em outros países. Hagin começou seu ministério como evangelista da Igreja Batista
em 1934. Três anos depois (1937) associou-se aos pentecostais, sendo licenciado
pastor das Assembléias de Deus, pastoreando várias igrejas no Texas. Em 1949,
como ainda nos informa Alderir, tornou-se pregador itinerante unindo-se a outros
46
pregadores independentes de cura divina. Finalmente, em 1962, fundou seu próprio
ministério, estabelecendo quatro anos depois (1966) a sede de sua atividade em
Oklahoma. Ao longo dos anos, seu ministério se constituiu em um seminário
radiofônico da fé, no Centro de Treinamento Bíblico Rhema e na revista Word of Faith
(Palavra da Fé). Outros recursos foram utilizados na difusão de suas ideias, como fitas
cassetes e mais de cem livros e panfletos. Sua caminhada ministerial foi caracterizada
por transes, visões, profecias, revelações e experiências espirituais arrebatadoras. O
próprio Hagin alega ter “tido oito visões de Jesus Cristo nos anos 50, bem como
diversas outras experiências fora do corpo” (Ultimato, n.313, julho-agosto de 2008,
p.47). Ele declara que nas suas experiências místicas entre os anos de 1950 e 1959,
pelo menos em oito ocasiões, teve uma conversa pessoal com Jesus, sendo algumas
vezes no céu e outras no inferno (Mariano, 2005, p.151). Embora declare que seus
ensinos tenham sido transmitidos diretamente pelo próprio Jesus, no entanto, o D. R.
McConnell demonstrou, em sua tese de mestrado, que na verdade não passavam de
plágio dos escritos de Kenyon. Hagin, ao se explicar com relação a isso apelou para a
“jesuscidência”, dizendo que o Espírito Santo havia revelado as mesmas coisas aos
dois.
Os ensinos de Kenneth Hagin, segundo Matos (Ultimato, n.313, julho-agosto de 2008,
p.48), influenciaram muitos pregadores norte-americanos e de outros países. A
começar por Kenneth Copeland, seu herdeiro presuntivo. Foram também seus
seguidores Benny Hinn, Frederik Price, Jonh Avanzini, Robert Tilton, Robert Schüller,
Marilyn Hickey, Charles Capps, Hobart Freeman, Jery Savelle e Paul (David) Yonggi
Cho, entre outros. No final dos anos 1970, e principalmente nos anos 1980, os ensinos
da Confissão Positiva e do Evangelho da Prosperidade chegaram ao Brasil por
intermédio de alguns desses pregadores. Sendo o primeiro a difundí-lo Rex Humbard,
seguido por Marilyn Hickey, Jonh Avanzini e Benny Hinn, que participaram de
conferências promovidas pela Associação de Homens de Negócios do Evangelho
Pleno (ADHONEP). Pastores e pregadores brasileiros abraçaram essa teologia, como
o Tio Cássio do Ministério Cristo Salva, em São Paulo; o “apóstolo” Miguel Ângelo da
Igreja Evangélica Cristo Vive, no Rio de Janeiro; o missionário R.R. Soares da Igreja
Internacional da Graça – responsável pela publicação da maior parte dos livros de
Hagin no Brasil; a pastora Valnice Milhomens, líder do Ministério Palavra da Fé – que
conheceu os ensinos da Confissão Positiva quando foi missionária na África do Sul.
Algumas Igrejas, como nos lembra Alderir, também adotaram a Teologia da
Prosperidade e a Confissão Positiva como carro chefe de suas doutrinas. Dentre as
47
quais, figuram: a Igreja Universal, do bispo Edir Macedo; a Igreja Renascer em Cristo,
do “apóstolo” Estevão e da bispa Sônia Hernandes; a Comunidade Evangélica Sara
Nossa Terra, do bispo Robson Rodovalho; a Nova Vida, fundada pelo missionário
canadense Walter Robert McAlister – de onde saíram Edir Macedo e seu cunhado R.
R. Soares; e a Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada pelo apostolo Valdemiro
Santiago – oriundo da Igreja Universal do Reino de Deus, da qual foi bispo.
Importante salientar que cada um desses líderes e dessas instituições, como lembra
Mariano, adotará o “evangelho da prosperidade” de diferentes modos. Enfatizarão
certos aspectos, deixando de fora outros. Recusarão pontos doutrinários mais
controversos, no que diz respeito àqueles tradicionalmente consensuais no meio
evangélico. Aceitarão plenamente pontos doutrinários incompatíveis e estranhos à fé
protestante. Sincretizarão a Confissão Positiva com outras expressões religiosas do
Catolicismo e do culto afro (2005. p.157). Enfim, cada um, à sua maneira, e atendendo
os seus próprios interesses, dará uma cara bem particular e diversificada à Teologia
da Prosperidade aqui no Brasil.
Tendo conhecido suas origens, agora precisamos compreender em que essa doutrina,
importada dos EUA, se constitui. Basicamente seu ensino consiste na crença de que
pelo poder da palavra proferida – “o que eu confesso, eu possuo” – e pelo rito mágico
realizado – relação causa e efeito: “é dando que se recebe” – se obtém saúde,
riqueza, sucesso e poder terreno. Ficando Deus, assim, comprometido e obrigado a
conceder essas coisas. Isso porque pelas palavras pronunciadas e pelos rituais feitos
Ele fica compelido a agir. O senador Marcelo Crivella, também bispo da Universal,
afirma que Edir Macedo “nunca aceitou ensinar o povo a cantar ‘eu sou pobre, pobre,
pobre, de marré, marré, marré’” (Ultimato, n.313, julho-agosto de 2008:23). E o próprio
Edir Macedo diz:
As pessoas não devem dar ofertas para ajudar a igreja, mas para ajudar a si próprias. Quando dá está fazendo um investimento para si, na sua vida. É o que mostra a Bíblia. Quem dá tudo recebe tudo de Deus. É inevitável. É toma lá, dá cá (...) Quando alguém faz um sacrifício financeiro, Deus fica sem opção. Ele tem a obrigação de responder, porque é sua promessa. É a fé. Basta seguir o que Deus disse: ‘Provai-me nos dízimos e nas ofertas’ (O Bispo, 2007, p. 207-215).
A afirmação de que Deus tem prazer em prosperar seus filhos, a princípio, não é tão
incompatível com a ética protestante trazida pela Reforma do Século XVI e XVII,
48
através da qual o trabalho era apresentado como uma vocação que deveria ser
encarada para glória de Deus (como já vimos anteriormente). Porém, à medida que
nos aprofundamos nos conceitos e valores da Teologia da Prosperidade, percebemos
seu distanciamento da matriz protestante. Quando, por exemplo, ela estabelece como
parâmetro de espiritualidade o tamanho da conta bancária; as posses; a aquisição e
exibição de bens. Vejamos:
O pastor assevera que a oferta é espontânea. Mas, em seguida, afirma que aquele que dá, recebe multiplicado. Exemplifica com um desafio a ser imitado: uma fiel tinha pouquíssimos pertences, ainda assim deu tudo o que possuía à igreja, ao mesmo tempo que, pela fé, pediu a Deus uma casa com piscina e dois carros. Em duas semanas, milagrosamente, recebeu a visita de uma tia da Itália, a qual nem sequer conhecia, que lhe deu de presente uma casa com piscina e dois carros na garagem (proferido em um culto da Universal no dia 07/03/1989, Santa Cecília, citado em Mariano, 2005, p.170).
A distância da matriz protestante estabelecida pela Teologia da Prosperidade pode
igualmente ser percebida quando ela propõe a divinização do ser humano.
‘Quando o homem nasce de novo, ele toma sobre si a natureza divina e torna-se, não semelhante, mas igual, exatamente igual em natureza com Deus. A única diferença entre o homem e Deus torna-se a magnitude, Deus é infinitamente divino e nós ainda finitamente divinos. O crente é uma encarnação de Deus exatamente como Jesus de Nazaré’, defende Kenneth Hagin (...) ‘você não tem Deus morando dentro de você. Você é Deus’, afirma Kenneth Copeland (citado em Gondim, 1993, p. 83,85). Nós perdemos muitas bênçãos de Deus por não conhecermos a Palavra de Deus (...) se você tem a palavra de Deus, você é poderoso. Se você não é poderoso, Deus não está com você. Nós somos seres humanos, mas quando assumimos a Palavra de Deus é como se nós fossemos deuses poderosos. O crente tem que agir, operar, como se fosse um Deus (sermão do R. R. Soares, 07/12/1991, citado em Mariano, 2005, p. 155).
Esses conceitos são bastante estranhos aos ensinos tradicionais tanto dos
protestantes, como dos pentecostais, para os quais a fé não é aferida pelos bens
exibíveis, mas sim, pela reta conduta em conformidade com os mandamentos éticos e
morais do Cristianismo. E, tampouco, estes consideram os crentes como semideuses,
mas apenas como vasos ou templo do Espírito Santo. Indubitavelmente, os
pregadores da Teologia da Prosperidade e da Confissão Positiva afastaram-se
“teologicamente do Protestantismo da Reforma, para não dizer do Cristianismo” (ibid,
p.155).
49
Outro aspecto da Teologia da Prosperidade contrastante com a teologia pentecostal é
a respeito da crença de que o verdadeiro cristão deveria ser alguém materialmente
pobre, ou pelo menos desinteressado das coisas e valores terrenos. Até os anos 1960,
nos círculos pentecostais, se concebia a ideia de que as promessas divinas –
excetuando a salvação, a cura, o exorcismo, o batismo no Espírito Santo – só se
concretizariam no além. E de que o crente deveria buscar somente as coisas do alto, e
não as daqui da terra. Porém, dois fatores concorreram para a mudança de eixo
dessa proposta escatológica do celeste porvir para as benesses desfrutadas aqui e
agora.
O primeiro deles foi a modernização e urbanização do país nos anos de 1970,
trazendo mais acesso e mobilidade social para os fiéis em uma sociedade do
consumo; dos serviços de créditos; dos apelos da indústria de entretenimento e de
moda. Além disso, nas duas décadas seguintes (anos 1980 e 1990) houve a adesão
de muita gente da classe média alta, de artistas e de atletas ao Movimento Evangélico.
Consequentemente, essas igrejas que surgiram nesse período acabaram adaptando
seu discurso à nova conjuntura socioeconômica que se formava. E a Teologia da
Prosperidade, conforme Ricardo Mariano, encaixou-se como uma luva tanto para os
mais pobres – a grande maioria – como para os mais ricos – sempre a minoria. Para
estes, legitimando seu estilo de vida abastado e esbanjado. Para aqueles, oferecendo
soluções ritualísticas e imediatistas de problemas financeiros; assim como
possibilidades de satisfação dos desejos consumistas (2005, p.149).
O segundo fator que levou a Teologia da Prosperidade a mudar o foco da felicidade do
além para a felicidade no aqui e no agora foi o alto custo, crescente, da mídia
televisiva que se constitui o carro chefe do marketing neopentecostal. À medida que
aumenta a competitividade entre os televangelistas crescem também os custos, e o
horário na TV torna-se cada vez mais caro. O preço pago pelos programas sobe mais
que a audiência. O investimento pesado na mídia televisiva e radiofônica – inclusive
na compra de emissoras de rádio e de TV – faz com que a pregação intensifique mais
ainda o objetivo de levantar fundos para poder bancar toda essa mega estrutura
midiática. De modo que a Teologia da Prosperidade acaba atendendo aos interesses
financeiros de todo esse empreendimento. Só para se ter uma idéia disso, o
investimento mensal da Internacional da Graça em programação de TV chega à
fabulosa cifra de 600 mil dólares, algo em torno de US$ 7 milhões ao ano. Já a Igreja
Universal adquiriu por US$ 45 milhões de dólares a Rede Record de rádio e de TV em
50
1989 – trazendo consigo uma dívida de 300 milhões de dólares, posteriormente
quitada (MARIANO, 2005, p. 66-100). A Igreja Mundial do Poder de Deus – a igreja
evangélica que mais cresce no Brasil atualmente –, por sua vez, ocupa 22 horas
diárias na programação da Rede 21, que pertence ao grupo Bandeirantes, ao custo de
R$ 6 milhões mensais. Com mais R$ 101 mil por mês, pago à Multichoice, empresa
sul-africana distribuidora de sinal, também está no ar em Angola, Moçambique, Guiné-
Bissau, São Tomé e Príncipe, Líbia, Zimbábue e Botswana. Na África do Sul, a
Mundial possui uma hora de programação na TV Soweto, ao custo de R$ 59 mil
mensais (Revista Isto É – Fevereiro/2011, Ano 35, N° 2151, p. 54).
C.3. Desectarização e liberalização dos usos e costumes
Tanto o Pentecostalismo Clássico, quanto o Deuteropentecostalismo, adotaram
modelos estereotipados de usos e costumes por meio dos quais se reconheceriam
símbolos de conversão, prova de regeneração e sinais de santificação. A ética de
proibições legalistas “estende-se a várias formas de diversão, como cinema, televisão,
rádio, prática de esportes, participação ou assistência a jogos de futebol, boxe,
baralho, etc.” (MARIANO, 2005 apud SOUZA {s.d}, {s. n. t.} ).
Para o crente pentecostal mostrar-se santificado, ele precisa assumir posturas de
ascetismo e de sectarismo, abrangendo vários aspectos da vida social. Ricardo
Mariano nos apresenta um gráfico – resultado de uma pesquisa feita em 1992 com
cerca de 100 fiéis, pertencentes majoritariamente ao Pentecostalismo e ao
Deuteropentecostalismo – que demonstra essa realidade (2005:195). Vejamos:
51
pode Não pode depende Não
respondeu
Fumar
Beber álcool
dançar
Sexo extraconjugal
ir a festa
pular carnaval
frequentar boates
frequentar bares
ir à motel com cônjuge
ir à praia/ piscina
ir ao cinema
ir ao teatro
ver TV
4
9
7
1
30
2
6
22
19
60
20
21
34
93
87
62
95
4
94
89
72
65
32
39
31
13
-
22
-
60
-
-
-
-
-
37
43
48
3
4
9
4
6
4
5
6
16
8
4
5
5
Salientamos, como bem nota Mariano, que muitos desses grupos originários da
primeira metade do século XX, têm revisto algumas destas proibições legalistas nas
últimas duas décadas, adaptando-se aos novos valores, hábitos e gostos dos fiéis.
Caminhando, dessa forma, para uma dessectarização e liberalização em distintas
esferas da vida social. Essa flexibilização da “contracultura” pentecostal tem se dado
52
basicamente por dois motivos. Primeiro, por causa da sua interpenetração nos
estratos mais privilegiados da sociedade. E em segundo, devido às gerações de
pastores e líderes mais jovens. Podemos ver igrejas como a Assembléia de Deus, a
Quadrangular acomodando-se, adaptando-se cada vez mais aos padrões e aos
valores da sociedade hodierna. Contudo, tem sido um processo lento, tenso e
conflitante entre as velhas e as novas gerações de adeptos, prejudicando inclusive seu
crescimento nos últimos anos. E isto pelo fato de ainda carregar aquela velha herança
sectária.
Quanto aos neopentecostais, mais liberais e recentes, sequer chegaram a adotar o
tradicional legalismo pentecostal dos usos e costumes. Segundo Mariano, as pessoas
pertencentes a esse grupo vão à praia, à piscina, ao cinema, ao teatro. Decidem o
corte, o comprimento e o penteado de seu cabelo. Ouvem rádio e TV. Frequentam
festas. Praticam esportes. Usam brincos, colares, pulseiras e cosméticos, embora
continuem austeros e conservadores no que diz respeito ao uso de drogas, ao sexo
fora do casamento, aos jogos de azar e à embriaguez (2005, p.210).
No Neopentecostalismo temos uma quase total conformação aos padrões
comportamentais da sociedade. Seja por princípio religioso, seja por estratégia de
inserção social. Igrejas como a Universal, Internacional da Graça, Vida Nova, Sara
Nossa Terra, Renascer em Cristo já nasceram com uma postura totalmente contrária
àquela ética sectária, ascética e de contracultura que caracterizou as pentecostais até
a metade do século. Isso, por sua vez, teve desdobramentos em várias esferas da
vida, como, por exemplo, na musicalidade.
A propósito, a Igreja Renascer em Cristo foi responsável pelo movimento gospel aqui
no Brasil. E, por meio deste, proporcionou uma mudança radical na música evangélica
em nosso país. Transformação pela qual a música religiosa deixa de ser sacra e passa
a ganhar muitos outros ritmos: rock, funk, blues, rap, pop, reggae, jazz, baião, samba,
pagode, forró, sertanejo, lambada, balada, heavy metal, White metal, dance music. De
modo que a “gospel mania” traz consigo toda uma quebra de paradigmas no meio
evangélico a partir dos anos 1980. Concertos de rock nos templos. Bloco dos crentes
no carnaval. Funkeiros e forrozeiros de Jesus agitando e pregando nos bailes, e nas
casas de shows.
53
Outro desdobramento dessa dessectarização do Movimento Neopentecostal é sua
participação ostensiva na política partidária. Sem se ressentir do peso da tradição
sectária e apolítica do Pentecostalismo Clássico, seus líderes entraram no jogo político
para valer, não demonstrando nenhum constrangimento perante seus fiéis. A postura
de autoexclusão deliberada – marca distintiva das igrejas pentecostais até mais ou
menos 1970 – foi substituída pela postura de militância e de engajamento partidário na
década de 1990. O lema apolítico “crente não se mete em política” deu lugar ao lema
corporativista “irmão vota em irmão” (Sociologia, n. 7, 2007, 57-59). Excetuando as
igrejas Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor, que permanecem afastadas da
política partidária, as demais (pentecostais) também se politizaram. Mara Figueira nos
dá conta do aumento considerável de parlamentares evangélicos dos anos 1980 para
cá, afirmando que antes dessa década havia somente dois deputados federais
pentecostais. Duas décadas depois, 2003, formou-se uma frente parlamentar
evangélica que reuniu 60 deputados federais e 4 senadores, formando a terceira maior
bancada do Congresso Nacional (ibid, p.59). As eleições municipais da cidade de
Fortaleza, em 2008, contaram com um candidato que é pastor da Assembléia de
Deus, inclusive tendo todo apoio da sua convenção nacional.
Vale salientar, como nos lembra Mara, que esse engajamento político não tem sido
norteado por ideais nobres, mas por interesses corporativistas e ocupação de poder,
objetivando concessões de rádio e de TV, buscando privilégios fiscais e garantias
jurídicas para seus projetos religiosos, desejando participação na distribuição do bolo
da verba social – que até hoje está a cargo dos católicos –, procurando
reconhecimento na esfera pública. Enfim, movidas por essas e outras ambições
mesquinhas, as igrejas evangélicas têm adentrado cada vez mais no mundo político
(ibid, p. 59).
A Universal do Reino de Deus, por exemplo, como diz Mariano, não restringe sua
participação apenas às eleições proporcionais; procura influenciar também nas
majoritárias, utilizando-se de todo o aparato midiático, da disciplina e do carisma dos
seus pastores; e da obediência de boa parcela dos fiéis (2005. p.91). Não tem nenhum
escrúpulo em se utilizar do clientelismo, do fisiologismo e das negociatas políticas para
atender seus interesses. Não hesita um instante sequer em demonizar seus
adversários políticos. Na campanha presidencial de 1994, Edir Macedo, através da
Folha Universal – jornal semanal de circulação nacional –, além de identificar o
candidato petista com o demônio – a Universal apoiava o candidato “tucano” – fez todo
54
tipo de acusações ao partido da oposição. Acusou o PT de querer legalizar o aborto e
o casamento gay. Mostrou uma foto do Lula com a bandeira brasileira sem a
expressão ordem e progresso. E outra foto na qual o ex-líder sindical pousava ao lado
de uma mãe de santo, destacando a manchete que ele estava apelando para o
candomblé, ou seja, para o próprio diabo (ibid, p. 93-94).
Contudo, esse tipo de postura política antiética, interesseira e inescrupulosa não é
exclusividade da Igreja Universal. Podemos constatá-la em outros círculos
evangélicos. Mara Figueira nos recorda a trajetória ascendente, no entanto pontuada
por escândalos que têm marcado o meio político evangélico brasileiro. Cita escândalos
como o das sanguessugas em 2006, caracterizado por fraudes nos processos de
licitações para compra de ambulâncias. E que contou com o envolvimento de 28
deputados evangélicos – quase metade da bancada no Congresso – dentre os quais a
maioria pertencia à Universal e à Assembléia de Deus (2007, p.59). Curiosamente,
são igrejas que pertencem ao Neopentecostalismo e ao Pentecostalismo Clássico, que
têm se notabilizado nas últimas décadas pela participação ostensiva na militância de
política partidária, se contrapondo assim a postura apolítica dos pentecostais até 1970.
C.4. Estrutura administrativa empresarial e mercadológica
A performance de empresa com fins lucrativos, integrada ao sistema de marcado, é
uma das últimas características que pretendemos elencar dentro do perfil
neopentecostal delineado por Ricardo Mariano.
Nas sociedades ocidentais industrializadas, afirma Wallis (citado por Mariano), a
religião para sobreviver à concorrência e superá-la, deixa de ser um fim em si,
transformando-se num meio para atingir fins definidos por demandas e necessidades
dessas mesmas sociedades industrializadas e urbanizadas. Ficando, assim a mercê
das vicissitudes e desejos do consumidor religioso (2005, p.223). Na atual conjuntura,
como nos lembra o teólogo Valdir R. Steuernagel, a religião também sucumbe a força
do mercado no qual ela se torna um produto a mais a ser absorvido “nesse bacanal
multinacional do consumo desenfreado que vai da religião ao sorvete, do sexo ao
correio eletrônico” (2003: 19). Parece ser esse o caso, bem especifico, do
55
Neopentecostalismo que apresenta a fé religiosa muito mais como mercadoria de
consumo do que como valores espirituais.
As estratégias de crescimento adotadas por muitas igrejas evangélicas nas últimas
duas décadas, ao estilo corporativo e empreendedor, estão conferindo-lhes tremenda
vantagem na luta por participação no mercado religioso. É o que afirma Roger Frink,
professor de sociologia da Universidade da Pensilvânia – coautor de A Igreja nos
EUA, 1176-2005: vencedores e perdedores na nossa economia religiosa. Ele diz que a
expansão dessas igrejas, muitas vezes, é moldada no setor empresarial, tomando
emprestadas ferramentas que vão do marketing de nicho à contratação de
profissionais com MBA, buscando sempre um número maior de adeptos. De acordo
com o artigo “Igreja Evangélica é um grande negócio nos EUA”, escrito na
Business Week por William C. Symonds, Brian Grow e Jonh Cady, a Igreja
Comunitária de Willlow Creek, em Illínois, criou um braço de consultoria, através do
qual faturou 17 milhões em 2004, em parte com a venda de consultoria de marketing e
administração para 10.500 igrejas-membros de 90 denominações. Essa mesma Igreja,
segundo o referido artigo, está entre as 250 maiores marcas dos EUA, junto com a
Nike e a Jonh Deere. A estrutura empresarial dessas igrejas é algo tão gigantesco que
os métodos de expansão da Willow Creek viraram caso de estudo na Harvard
Business School.
Mas, esta acomodação ao sistema de mercado empresarial não é privilégio apenas
das igrejas evangélicas norte-americanas, pois no Brasil temos visto isso também
ocorrer, principalmente no meio das igrejas neopentecostais. Afinal de contas, o Brasil
é um ávido importador de modelos enlatados vindos dos Estados Unidos. Igreja como
a Universal – uma das maiores expressões do Neopentecostalismo – possui hoje a
segunda maior emissora de TV do país e várias emissoras de rádio. Além disso, nos
informa Mariano, ela conta com toda uma rede empresarial composta por: o Banco de
Crédito Metropolitano (adquirido por três milhões de dólares em 1991); o jornal A
Folha Universal (com a tiragem de mais de um milhão de exemplares); a Unimetro
Empreendimentos; Cremo Empreendimentos; New Tour (agência de viagens); Uni
Line (processamento de dados); Unitec (construtora); Uni corretora (seguradora); Line
Records (gravadora); Frame (produtoras de vídeos); Investholding Limited (uma
holding com sede nas ilhas Cayman); Gráfica Universal (editora); Ediminas S/A
(fábrica de móveis); LM Consultoria Empresarial (2005, p.67).
56
A Igreja Internacional da Graça não ficou muito atrás no que se refere a esse modelo
empresarial. Bem menor em termos de estrutura do que a Universal, porém possui,
além de canais de TV (abertos e por assinatura), gráficas e editoras – Graça Editorial,
em cujo catálogo consta quase uma centena de livros (ibid, p.99). Entrando também
no mercado fonográfico, a igreja montou sua própria gravadora: a Graça Music com
vários títulos lançados. E mais recentemente anunciou a Faculdade do Povo, que
contará com os cursos de publicidade, jornalismo, rádio e TV. A data prevista para o
funcionamento é a partir de março – de acordo com o missionário R.R. Soares no
programa exibido em 23.02.2009.
Nessa mesma linha empresarial figura ainda a Igreja Renascer em Cristo com seu
aglomerado patrimonial constituído por: emissoras de rádio; de TV UHF; RGC
(produtora); Gospel Records (gravadora que lançou mais de cem títulos); Editora
Renascer (com mais de trinta títulos); Gospel New (jornal cuja tiragem ultrapassa
sessenta mil exemplares); Instituto Renascer (colégio que oferece cursos do maternal
até o 4° ano do Fundamental I); Gospel Rock Café (casa noturna com música ao vivo,
mas desguarnecida de bebidas alcoólicas e cigarros); Cartão Gospel Bradesco Visa;
lojas de souvenires (ibid, p.102). Não podemos esquecer o faturamento da Renascer
em cima da marca patenteada Gospel, aqui no Brasil, da qual é detentora.
Outra igreja neopentecostal de destaque, que também desponta como igreja empresa
S/A, é a Mundial do Poder de Deus. O programa de TV “Domingo espetacular” do dia
18 de Março de 2012, veiculado pela Rede Record, apresentou uma matéria a respeito
do abastado patrimônio que pertence a referida Igreja, na qual mostrou terras a perder
de vistas, milhares de cabeça de gado, mansões, piscinas, pistas de pouso que
constituem fazendas riquíssimas encravadas no coração do pantanal. Cuja extensão,
segundo a reportagem, chega a ser de 26. 134 hectares, avaliados, aproximadamente,
em R$ 50 milhões de reais. Documentos registrados em cartório, constando a
escritura de compra e vendas das propriedades, foram apresentados pelo o reporte
que fazia o programa. Conforme o mesmo, todo esse milionário patrimônio da Mundial
foi adquirido através de uma pequena empresa (registrada no nome do apóstolo
Valdemiro, da bispa Francileia e do bispo Josivaldo) de CDs, DVDs e livros: W. S.
Music LTDA, que conta apenas com 50 funcionários e um capital de apenas R$ 50 mil
reais – capital totalmente insuficiente para adquirir todas essas terras no pantanal
matogrossense. De acordo com a matéria apresentada pelo “Domingo espetacular”, o
valor de todo o patrimônio da Igreja Mundial é mais do que a maioria dos prêmios da
57
mega cena acumulada. Capital suficiente para comprar 20 Ferraris zero Km (o carro
mais caro do Brasil); e 10 coberturas em Nova Iorque (a cidade mais cara mundo).
Em 2010, a Revista Época já havia listado outros bens e patrimônios da Mundial do
Poder de Deus: um jato Citation Excel, avaliado em R$ 18, 5 milhões, alugado por
cinco meses; um helicóptero menor, Bell Jet Ranger 206B3, avaliado em R$ 1, 3
milhão (de acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC –, ele já
pertenceu a apresentadora Xuxa); e um helicóptero grande, Agusta A109-C,comprado
em Setembro de 2009, por R$ 5, 1 milhões ( este helicóptero é um dos mais potentes,
luxuosos, seguro; e um dos mais cobiçados do segmento)10.
Não podemos esquecer as megas igrejas que povoam as grandes capitais do nosso
país. Mesmo elas não tendo tanta notoriedade, em temos de Brasil, quanto àquelas
que acabamos de mencionar, no entanto, se caracterizam igualmente pelo
aglomerado patrimonial que vai desde hospitais até cemitérios privados; desde
grandes fazendas até condôminos de luxo; desde casa de shows até faculdades
particulares.
Indiscutivelmente o segmento Neopentecostal, incorporando métodos de publicidade e
de markentig, acabou assimilando a lógica da operação e da expansão encontrada no
mundo empresarial, estando perfeitamente conectada com os valores do mercado.
Procuramos demonstrar até aqui as fortes afinidades entre o Capitalismo e o
Protestantismo desde seu início. E vimos que a exacerbação dessa relação se dá no
Neopentecostalismo, ao ponto da Teologia da Prosperidade transformar o conceito
ascético do uso das riquezas – característico da Reforma – em algo absolutamente
consumista, individualista e materialista. Todavia, ressaltamos que o sistema
econômico Capitalista não é algo defendido, articulado e impulsionado
deliberadamente pela teologia, ou muito menos pelos religiosos.
Mesmo assim, é incontestável que a Teologia da Prosperidade, nascida nos Estados
Unidos da América “não tece uma única crítica sequer ao Capitalismo, nem à injustiça
e desigualdades sociais, nem aos desequilíbrios econômicos do mundo globalizado.
Mais pró-capitalista impossível” (ibid, p.185).
10
Telacrente org/2012/03/19/rede-record-revela-patrimonio-de valdemiro-santiago /
58
Cabem aqui algumas perguntas despretensiosas: Será que essa tendência
mercadológica de fé evangélica é algo peculiar apenas às igrejas Neopentecostais?
Como se posicionam as outras expressões do meio evangélico em face de um mundo,
inclusive religioso, cada vez mais materialista, consumista e capitalista?
Até que ponto essa influência, ou onda mercantilista da fé, tem penetrado em círculos
evangélicos que se posicionam, oficialmente, contrários a essa tendência?
Tentaremos responder essas perguntas a partir da pesquisa de campo realizada em
algumas igrejas de Fortaleza. E por meio das entrevistas feitas com os fiéis,
procuraremos compreender até que ponto vai a tendência capitalista da fé evangélica.
É o que passaremos a ver a seguir.
59
CAPÍTULO 2 – A ONDA CAPITALISTA DA FÉ INVADE AS IGREJAS
EVANGÉLICAS DE FORTALEZA
o presente capítulo, propomos levantar a questão sobre como o aspecto
capitalista da fé tem sido absorvido e reproduzido por diferentes vertentes do
Protestantismo fortalezense. Até mesmo aquelas igrejas contrárias a essa
tendência vêm se apropriando de crenças e valores que antes eram restritos quase
somente ao circuito neopentecostal. Constituindo-se, dessa forma, uma subversão
dos fiéis no que tange à doutrinação recebida dos seus líderes. Fundamentaremos
nossa hipótese em entrevistas e pesquisas de campo. Lembrando (correndo o risco
de generalizações) que a igreja evangélica de Fortaleza acaba sendo um reflexo da
Igreja evangélica brasileira.
No entanto, antes de entrarmos no mérito dessa questão precisamos registrar
resumidamente a trajetória percorrida pela Igreja Evangélica fortalezense desde o seu
principio. Salientando que esse resumo cronológico destacará apenas algumas
expressões das igrejas Históricas, Pentecostais e Neopentecostais que constituem o
Protestantismo na capital cearense.
2.1. Trajetória histórica dos evangélicos em Fortaleza
O Presbiterianismo foi a primeira denominação protestante que implementou seu
trabalho de evangelização no Ceará. No ano de 1875, o Dr. J. R. Smith visita
Fortaleza. Em 1881 manda o pregador leigo João Mendes Pereira Guerra para
desenvolver o trabalho no território cearense. Porém, a Igreja Presbiteriana neste
Estado só começa em 1882. De acordo com a Revista de História da UFC – Dossiê:
Religiosidade – os primeiros evangelizadores protestantes de Fortaleza foram
enviados para cá em setembro de 1882 (Trajetos, n.8, publicação semestral de 2006,
p.126). Já a Revista da Sociedade Cearense de Geografia e História nos diz:
O Rev. Wardlaw aportou a Fortaleza a 27 de setembro. Foi recebido pelo cap. do porto, Sr. Antônio Nunes e sua esposa, pelo chefe dos correios. Dr. José de Oliveira, e pelo Sr. José de Oliveira, e pelo Sr.
N
60
José Damião de Sousa Melo. Hospedou na pensão Rendal. Era domingo e o missionário realizou o seu primeiro culto à noite na praça dos mártires, onde estava hospedado. Estiveram presentes ao culto as pessoas que o receberam a bordo do Pará (Dezembro de 1999, p.120).
Em 8 de julho de 1883, em conformidade com a mesma revista a pouco mencionada,
o Rev. De Lacy Wardlaw batiza os primeiros conversos em terras cearenses. A igreja
de fortaleza foi organizada no dia seis de agosto de 1890. A construção do templo na
Rua Sena Madureira foi iniciada em 1898 e durou até 1919 – data da sua inauguração
(ibid, p.121).
A implantação do Protestantismo na cidade de Fortaleza, como informa a Revista da
Sociedade Cearense de Geografia e História, acontece justamente em função do
contexto político, social, econômico e religioso no qual se encontrava o país. No
aspecto político temos nesse período a religião oficial – a Igreja Católica – enfrentando
sérios problemas com o Estado. Essa crise da Igreja já vinha ocorrendo desde o final
do Governo Imperial em virtude da crença maçônica de D. Pedro II, que não fora
digerida pelo Vaticano. O conflito se agravou durante o Regime Republicano – período
em que o Protestantismo se instala definitivamente em Fortaleza – por conta da
separação entre a Igreja e o Estado. Esta separação, consequentemente, proporciona
o incentivo ao pluralismo religioso. Acrescenta-se a isso, no que diz respeito ao
aspecto religioso, o fato da organização interna do catolicismo estar em frangalhos.
Por um lado, havia uma porção do clero que reclamava mais autonomia para a Igreja
no Brasil. Por outro, lado o desprestígio e a falta de caráter atribuída aos sacerdotes
abatiam profundamente a face imponente da igreja. E ainda existia o problema da
insuficiência numérica dos padres para atender as grandes massas populacionais de
um território tão vasto: um grande número de pessoas vivia carente de assistência
espiritual. No que se refere ao fator socioeconômico, existia aqui no Brasil – de forma
retardatária – todo um processo de transição do Sistema Feudal para o Capitalismo.
Por conseguinte, o interesse de uma maior cooperação para o progresso. Foi
exatamente em um momento histórico “onde tudo o que é novo e diferente do
tradicional é o bom, que o Protestantismo se enraíza definitivamente em território
brasileiro...” (Ibid, p.112).
Apresentando o Protestantismo como antítese da cultura do atraso e da ignorância, os
presbiterianos adotaram um modelo de evangelização em Fortaleza – entre 1882-1915
– contrapondo a Igreja Católica. Dentro dessa proposta, foi fundado em 1933 o
61
Ginásio 7 de Setembro dirigido pelo presbítero Dr. Edílson Brasil Soares.
Segundo Robérico Américo de Sousa, os missionários protestantes procuravam
demonstrar que a fé católica estava:
Imersa em hábitos e comportamentos contrários não apenas ao evangelho de Jesus Cristo, mas também ao necessário progresso da sociedade (...) O protestantismo, por sua vez, irá figurar como religião de renovação, que reaproxima o homem de Cristo, sendo ainda a base da verdadeira civilização, pois estimula o desenvolvimento do conhecimento e do trabalho, entendendo-os como vontade de Deus para os homens. Dessa maneira, o discurso missionário, veiculado, sobretudo através de artigos nas páginas do jornal O Libertador, procura criar relação direta entre modernidade, civilização e liberalismo (político e econômico) com a fé protestante, ao mesmo tempo em que identifica o Catolicismo com pré-moderno, com o atraso e ignorância (Trajetos, n. 8, publicação semestral de 2006:128).
Portanto, na pesquisa sobre o Protestantismo no Ceará é necessário que se leve em
conta a inter-relação dos conceitos teológicos e doutrinários, trazidos pelos
missionários norte-americanos, com os valores de progresso e de desenvolvimento
socioeconômico das suas respectivas sociedades (Revista da Sociedade Cearense de
Geografia e História, dezembro de1999: 130). Digam-se, valores estes profundamente
anelados pela sociedade desse período.
A revista que acabamos de citar assinala também à penetração dos evangelizadores
batistas no Ceará que acontece em 1908, quando o missionário Eurico Nelson tentou
estabelecer uma igreja, sem, no entanto, conseguir atingir sua meta. Mas, 22 anos
depois dessa primeira tentativa, foi implantada a primeira Igreja Batista em nosso
Estado. Sendo inaugurada no dia 10 de agosto de 1930. Entre os membros
fundadores encontraram-se Dr. Arnoldo Hayes, Alfredo Mignac, Fernando Rodrigues,
Dessalina Melo, Sabino Pires, dentre outros. A primeira Igreja funcionava num salão
alugado na Rua Floriano Peixoto, nas proximidades da Avenida Duque de Caxias
(1999, p. 126).
Conforme Barbosa, o início da Igreja Assembléia de Deus no Estado do Ceará se dá
em 1914 com a chegada de Maria de Nazaré – vinda de Belém do Pará para visitar
seus parentes em Uruburetama (1997, p.87). Ela inicia um trabalho, meio que
despretensioso, de difusão da doutrina pentecostal. Teve a adesão de uma Igreja
Presbiteriana Independente. Em agosto de 1922, segundo o autor acima citado,
62
desembarca em Fortaleza o pastor José Texeira Rego – na época apenas um alfaiate
vindo do Rio de Janeiro. Juntamente com Antônio Borges, alugou uma casa em São
João do Tauape, onde realizavam cultos aos domingos e às quartas-feiras, das 19hs
às 20hs. Em 1923 chegaram duas missionárias suecas: Ingrid e Ester Anderson.
Alugaram uma boa casa na Avenida Tristão Gonçalves, na qual passaram a realizar
os cultos. No mesmo ano, nos relata o autor acima citado, chegou o pastor Bruno
Skolimosky, também vindo do Pará. Foi, então, alugado o primeiro salão da
Assembléia de Deus em Fortaleza, que ficava entre a Rua D. Isabel e o bonde do
Alagadiço, próximo à travessa Meton de Alencar. Em julho de 1923, são realizados os
primeiros batismos dessa igreja na lagoa do Tauape. Em fevereiro de 1933 – já como
pastor da igreja em Fortaleza – José Texeira Rego aluga um salão por cento e oitenta
mil réis mensais, na Rua Tereza Cristina n. 673; onde até hoje está localizado (ibid,
p.108 -111).
O processo de desmembramento da Assembléia de Deus em vários ministérios inicia-
se, na cidade de Fortaleza, a partir de 1962. De sorte que, como diz Barbosa, até o
ano de 1964 já havia quatro igrejas independentes: Caucaia, Oficinas, Itaoca (hoje
montese) e Bela Vista (1997, p.54). O motivo dessas emancipações, na opinião dele,
era a ambição de cada grupo pelo o poder. Em algumas ocasiões, como lembra o
referido autor, as disputas pelo patrimônio nessas divisões transformavam os cultos
em verdadeiras badernas, chegando ao ponto de os fiéis de cada partido ir aos
templos “armados de facas, revólveres e a maioria com cassetes de madeira. Muitas
vezes, a rádio patrulha foi solicitada para apartar as brigas” (ibid, p.51).
Já as igrejas neopentecostais se instalaram em Fortaleza a partir das últimas décadas.
Temos a Igreja Universal do Reino de Deus se fixando em solo alencarino em meados
de 1980, alugando um salão na Rua Dr. João Moreira em frente ao Passeio Público.
Já na década 1990 alugou um enorme galpão entre as avenidas Tristão Gonçalves e
Imperador. E a partir da década de 2000 construiu sua sede própria – a catedral da fé
– próximo ao antigo Lord Hotel, situado entre a Rua 24 de Maio e a Avenida Tristão
Gonçalves. A Igreja Internacional da Graça, por sua vez, chegou à nossa cidade no
dia 18 de maio de 1997, realizando seus cultos na Avenida Tristão Gonçalves em um
galpão onde até hoje está localizada. E a Igreja Mundial do Poder Deus se estabelece
em Fortaleza entre os anos de 2004 e 2005, alugando um galpão também na Avenida
63
Tristão Gonçalves. Posteriormente transfere sua sede para a Rua Senador Pompeu,
próximo ao hospital público conhecido como Frotão11.
2.2. A tendência mercadológica da fé nas igrejas de fortaleza
Chegamos ao ápice da nossa proposta no presente trabalho. É aqui que procuraremos
constatar a hipótese sobre as práticas e crenças da fé capitalista terem se instaurado
em outras denominações protestantes; de não ser algo apenas exclusivo das igrejas
neopentecostais, mas também ser uma tendência presente dentro de grupos históricos
e pentecostais. Tentaremos demonstrar essa realidade por meio da pesquisa oral com
membros desses mesmos grupos – atores sociais, verdadeiros protagonistas da Igreja
Evangélica. Quero salientar que procuramos ouvir nessas entrevistas pessoas comuns
e não os lideres, os pastores ou os teólogos. A propósito, é pertinente registrarmos o
que nos diz François Laplantine sobre inversão temática pela qual tem passado as
ciências humanas em vários campos: na antropologia o foco foi redirecionado das
grandes estruturas e práticas culturais para o estudo do infinitamente pequeno e
cotidiano; na arqueologia os estudos se deslocaram dos palácios, templos e túmulos
imperiais para o conjunto do meio ambiente construído (inclusive o mais humilde),
sendo este a expressão de uma cultura que se procura compreender nos seus
mínimos detalhes; na história também percebemos, sob a influência dos Annales, a
atenção se voltando do público para o privado, dos grandes personagens para os
atores anônimos, dos grandes eventos para o cotidiano. E nas ciências religiosas,
conforme Laplantine (citando Jean Delumeau), não se considera mais o Cristianismo
“ao nível das doutrinas e dos doutores, e sim das multidões anônimas” (Aprender
Antropologia, 2007, p. 155).
Não obstante ao fato de que igrejas como a Presbiteriana, a Betesda, a Batista, a
Assembléia de Deus ministério Templo Central e a Assembléia de Deus Canaã
(igrejas pesquisadas) se posicionem de forma contrária, em sua doutrina oficial, à
11
O histórico da Igreja Mundial do Poder de Deus na cidade de Fortaleza, assim como o da Universal do Reino de Deus, não foi fornecido pelos pastores das respectivas igrejas. Eles se negaram a dar qualquer tipo de informação, alegando que suas denominações religiosas sofriam perseguições da mídia. Obtivemos as informações através do cruzamento de dados por intermédio de fiéis, de ex-pastores, de vendedores ambulantes e de comerciantes que desenvolvem suas atividades comercias nas proximidades dos prédios onde essas igrejas funcionam.
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visão mercadológica da fé, compreendemos, por outro lado, que as pessoas, a
despeito de pertencerem a qualquer segmento, não são totalmente obedientes e
passivas ou totalmente conformadas ao sistema no qual estão inseridas. Como nos
lembra Michel de Certeau, toda a produção difundida ou imposta pelos dominantes,
quer seja de cunho material ou cultural, acaba sofrendo uma espécie de reapropriação
e resiginificação por parte dos dominados. Essa atitude (que Certeau chama de
antidisciplina e subversão) não ocorre de forma institucional, articulada e ideológica.
Mas de maneira sutil, silenciosa, despretensiosa, e quase que imperceptível. Ela não
rejeita ou modifica, necessariamente, o que vem das elites e do poder constituído, mas
utiliza-o para fins totalmente estranhos àquilo que julgavam obter os detentores desse
poder, com seus objetos e valores (A invenção do Cotidiano, 2007, p. 38-41).
Partindo, então, desse pressuposto buscaremos comprovar nossa hipótese através
das entrevistas temáticas realizadas com pessoas de cinco diferentes denominações
evangélicas da cidade de Fortaleza.
A pesquisa de campo indicou que os evangélicos das igrejas selecionadas, em sua
quase totalidade, mesmo seguindo os princípios doutrinários de suas denominações,
incorporaram também alguns valores neopentecostais. Nesse caso específico, não é
uma total absorção de um conjunto de crenças em detrimento de uma total negação
de outro conjunto de crenças; mas, uma espécie de resignificação e de reapropriação,
onde valores, princípios e posturas de várias crenças se misturam e se confundem. É
o que podemos ver no depoimento de Cristiano Sobrinho – membro de uma Igreja
Batista – no qual assume uma postura contundente contra a visão empresarial
adotada pelos programas evangélicos de rádio e TV:
Tem pastor que sempre criticou o fato da comercialização do cristianismo. E hoje está fazendo propaganda do Cd, está fazendo propaganda do Dvd... Onde é que está a fé dele? Será que a fé dele mudou porque ele tem que sustentar o programa? O que eu quero dizer com isso é que ninguém pode colocar tudo como se fosse um comércio. Acho que a fé tem que vir em primeiro lugar. Tudo o que for ao limite da sua crença você tem que fazer. Mas se for para o programa acabar, acho que tem que acabar. É a fé que tem que prevalecer (entrevista, 10.05.2009).
Entretanto, Cristiano é telespectador de um programa de TV evangélico, cujo formato
é totalmente no molde empresarial. Indagado sobre o tipo de programa que costuma
acompanhar, ele respondeu “– O Programa do R.R. Soares”. Embora seja um
acompanhamento que classifica como “acidental” pela falta de tempo. Já outro
65
entrevistado, José Elielde Oliveira Moreira, membro da Igreja Batista Nova Esperança,
diz não haver nenhuma relação entre a prática do dízimo e uma vida financeira
próspera. Porém, acredita que a aproximação de Deus, via conversão, leva
imprescindivelmente a pessoa a sair da miséria material.
Entrevistador – Você acha que há alguma relação entre a prática do dízimo e uma vida financeira prospera? Entrevistado – Acho que uma coisa não se relaciona a outra. Porque há pessoas que são fiéis nos dízimos, no entanto não são bem sucedidas financeiramente (...) Não acredito na relação da pessoa dá o dízimo e por causa disso se tornar próspera financeiramente. Entrevistador – Você acredita que a aproximação de Deus determina a saída da miséria? Entrevistado – Sim! Porque Deus não deixa (a Bíblia fala claramente) seus filhos mendigarem o pão. Entrevistador – Então a salvação determina também a saída da miséria? Entrevistado – Sim! Quando você é salvo já saiu da miséria espiritual. Entrevistador – E da miséria financeira? Entrevistado – Com certeza, com certeza... A Palavra de Deus é fiel, Ele jamais deixará o justo mendigar o pão (entrevista, 21.05.2009).
Outro caso típico desses paradoxos percebidos entre os fiéis de igrejas
tradicionalmente históricas foi constatado na entrevista com Cleonardo Mesquita
Goes, da Igreja Presbiteriana. Apesar das suas críticas ao comércio da fé existente
nas igrejas neopentecostais, todavia, admite e concorda com a visão empresarial
gospel empregada pela mídia televisiva e radiofônica – visão que prefere chamar,
eufemisticamente, de profissional.
Entrevistador – Qual sua opinião sobre o uso que os evangélicos fazem da mídia televisiva e radiofônica? Entrevistado – Penso que utilizam de todas as formas possíveis. De uma forma mais ética (...) Como também de forma bastante capitalista (...) Tem alguns programas, através dos seus apresentadores, que tem um único fim de tentar ajudar as pessoas, de transmitir verdadeiramente a Palavra de Deus. Têm outros que carregam a venda de produtos. Entrevistador – Qual sua análise sobre a visão empresarial que os programas evangélicos, de um modo geral, têm adotado? Entrevistado – Eu penso que eles não têm opção. Ou se adaptam a esse meio, que é um meio capitalista. E tem que ter dinheiro para bancar a programação, ou infelizmente não vai haver o programa. Aí eles têm que se prender a essa parte da comercialização do meio evangélico. Entrevistador – Então, você a considera necessária para poder sobreviver nesse meio? Entrevistado – Sim! Assim como em uma casa a gente precisa trabalhar para conseguir pagar conta de água, luz, telefone, alimentação. Eles também têm que dá os pulos deles para tentar manter suas programações.
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Entrevistador – Essa característica empresarial que os programas têm adotado, você vê como necessária para poder bancar essa realidade de um alto custo? Entrevistado – Eu tiraria a palavra empresarial e colocaria a palavra profissional. Estamos em um mundo profissional... Então, nós temos que viver de acordo com as regras que o mundo dita em determinados setores. (entrevista, 05.05.2009).
Na entrevista com Geni Martins, também da Igreja Presbiteriana, podemos, mais uma
vez, perceber essas contradições vivenciadas por aqueles que fazem parte de um
segmento do Protestantismo que nada tem a ver com o Neopentecostalismo. Isso
porque, à medida que rejeitam as posturas neopentecostais, absorvem igualmente
seus ensinos.
Entrevistador – Você costuma acompanhar programa de rádio e TV? Entrevistada – principalmente de TV. De rádio nunca. Entrevistador – Qual o de sua preferência? Entrevistada – Sem dúvida alguma é a da RiT; missionário R.R. Soares com sua pregação bem popular e simples. Entrevistador – qual sua opinião sobre o uso da mídia televisiva e radiofônica por parte dos evangélicos? Entrevistada – Acho muito positivo. Eu acho que como qualquer grupo social os evangélicos devem ter um espaço na mídia. Só não fico muito satisfeita é... [silêncio] Não sei nem se devo falar, mas vou falar. Só não fico muito satisfeita é com a forma como eles fazem à capitação dos recursos. Aquela insistência apelativa que cansa bastante. Entrevistador – Como você vê a postura empresarial que os programas evangélicos têm adotado? Entrevistada – Eu vejo esse comportamento como mercantilista (...) tem determinados programas, tem determinados pregadores que eu nem mais consigo ouvir. Porque é mais petição de fundos do que mesmo pregação. É lógico que chega um momento que isso satura (entrevista, 07.05.2009).
Essas mesmas constatações foram feitas em entrevistas com membros da
Assembléia de Deus (Templo Central), Betesda e Canaã.
Entrevistador – O que fazer para a Igreja ser bem sucedida? Entrevistado – A igreja hoje tem que tomar uma nova postura diante da sociedade... Qual é o setor de marketing da mocidade? Quais são os consultores da mocidade? Então, a gente tem que mudar alguns padrões dentro da própria igreja para acompanhar a sociedade... As pessoas que trabalham no mercado de vendas, de tele marketing têm um jargão que diz: “A propaganda é a alma do negócio.” Não que a igreja seja um negócio voltado para a questão financeira. Mas se nós não cuidarmos da imagem da Igreja e a divulgarmos, as pessoas não serão atraídas para vir. Então, tem que ter marketing na Igreja –
67
Humberto Araújo: Igreja Assembléia de Deus (entrevista, 10.05.2009). Entrevistador – Uma campanha de oração proporciona uma vida financeira prospera? Ela tem efeito nesse aspecto? Entrevistada – acho que sim! Acontece de o irmão estar passando por uma dificuldade. Nem todos os crentes vivem financeiramente bem. E aí eu acho que é necessário a pessoa fazer uma campanha de oração para melhorar sua vida financeira. Acho que Deus ajuda sim! Entrevistador – Na sua compreensão Deus sempre premia com saúde e com prosperidade àqueles que o servem, que o seguem, que o amam? Entrevistada – Acho que sempre! Sempre, sempre, sempre... Entrevistador – Por quê? Entrevistada – Por experiência própria. Desde que eu entrei na igreja só tenho recebido bênçãos – Deyvia Silvia: Igreja Assembléia de Deus (entrevista, 06.06.2009). Entrevistador – o que é preciso fazer para a pessoa prosperar economicamente? Entrevistada – primeiro de tudo ser fiel a Deus. Em tudo o que ganha separar aquilo que é do Senhor em primeiro lugar. Fazendo isso não há como a pessoa não ser abençoada, não ser próspera. Além do dízimo, da oferta alçada, a gente deve abençoar com ofertas especiais. Entrevistador – A senhora acha que uma pessoa que serve a Deus é sempre premiada com a saúde e a prosperidade? Entrevistada – Com certeza. Aquele que realmente é fiel a Deus, é dedicado, voltado para Deus, Ele sempre dá o seu prêmio. Sempre honra e sempre está dispensando uma benção para cada uma dessas pessoas – Fátima Holanda: Igreja Betesda (entrevista, 19.05.2009). Entrevistador – Há alguma relação entre dá o dízimo e uma vida financeira próspera? Entrevistado – Tem! Até porque Deus diz: “Fazei prova de mim, se eu não abrir as janelas do céu...” Isso quer dizer também que Deus vai abrir as portas em relação ao financeiro da pessoa... O que Deus promete é dar em dobro naquilo que a pessoa está sendo fiel de coração ali naquele momento... Uma pessoa que é fiel a Deus, eu acredito que de nada ela tem falta. Até porque o salmo 23 relata: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará.” Isso engloba tudo – Paulo Magalhães: Igreja Betesda (entrevista, 17.05.2009). Entrevistador – O senhor acha que uma campanha de oração tem algum efeito, no sentido de melhorar a situação financeira de alguém? Entrevistado – Eu creio que sim! Eu acredito plenamente nisso aí. Por que senão o que adiantaria eu estar dentro de uma igreja? Para que adiantaria as pessoas me pedirem oração? Para que orar? Eu oro para que o Senhor venha abençoar as pessoas, tipo: em uma cura, em uma resolução da situação financeira de alguém que está completamente falido. Entrevistador – o que o senhor acha da ideia daqueles que servem a Deus sempre serem premiados com a cura e com a prosperidade? Entrevistado – também creio! Não vou dizer para você que nós como cristãos, como servos de Deus somos livres de tudo. Vivemos em um mundo em que todos vivem. Então, estamos sujeitos a tudo
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isso aí. Mas, com certeza estamos sob proteção divina. Eu sinto dores, passo por problemas, tenho enfermidades normalmente. Mas, minha fé está sempre firmada no Senhor; nesse propósito que Deus vai me curar, vai me proteger, vai me livrar. Então, se eu creio em Deus, tenho que acreditar nessas coisas – Aroldo Oliveira: Igreja Canaã (entrevista, 19.05.2009). Entrevistador – Você acha que Deus sempre premia com saúde e com prosperidade àqueles que o servem e que o amam? Qual sua opinião sobre isso? Entrevistado – Sim, sim! Porque você está obedecendo a Palavra de Deus. E com certeza virão bênçãos: abrir portas de empregos... E em todas as áreas você é abençoado. Entrevistador – Você vê alguma relação da miséria material com forças do mal que precisam ser exorcizadas? A miséria, a favela, estão relacionadas com algum mal espiritual? Têm relação, ou não há nenhuma relação? Entrevistado – Tem! Tem que expulsar mesmo o mal, não é? Tem uma força maligna que prende a pessoa na miséria. Em diversos bairros existe essa miséria. Pessoas que não buscam a Deus. Estão sempre no pecado, no pecado... Com certeza isso acaba tendo relação com a miséria. Não só aqui no Brasil, mas também na África, na Etiópia, nos Camarões... São lugares muito idólatras que oferecem suas ofertas a um demônio, às entidades malignas. E tem que expulsar mesmo. Entrevistador – Então você acha que os locais onde a miséria impera, seja em bairro ou em países, estão debaixo da influência de forças malignas? Seria isso? Entrevistado – Seria isso! Porque existem as forças do bem e as forças do mal. Então nossa luta não é contra carne e o sangue, e sim contra principados e potestades do mal no mundo tenebroso. Então precisam ser expulsos em nome de Jesus. Porque há poder no nome de Jesus – Fernando de Oliveira: Igreja Canaã (entrevista, 16.06.2009).
Diante desse quadro, podemos perceber que a Igreja Evangélica de Fortaleza – um
retrato da Igreja Evangélica brasileira – apresenta uma nova feição. De forma que
suas desaprovações e aprovações das práticas, dos valores neopentecostais se
misturam e se confundem nessa nova tendência da fé dos crentes. Diga-se, uma fé
que cada vez mais assume contornos e perfis capitalistas.
Os gráficos abaixo – resultado da pesquisa realizada em 2009 com cerca de quarenta
membros das igrejas acima citadas – demonstram essa realidade.
69
Aprova Não aprova
Não aprova, mas acha necessário.
Não respondeu
Aprovação da postura empresarial pela mídia evangélica.
18 15 6 1
Total Parcial Nenhuma relação
Não respondeu
Crença na relação entre a prática do dizimo e uma vida financeira prospera.
8 22
10 -
Total Parcial Nenhuma relação
Não respondeu
Crença na relação entre a pobreza e forças espirituais malignas que precisam ser exorcizadas.
6 11 21 2
Regularmente Esporadicamente Acompanha programas, mas não de igrejas neopentecostais
Não acompanha nenhum tipo de programa
Acompanhamento da mídia televisiva neopentecostal.
14 5 6
17 3
Baixos Razoáveis Abusivos Não respondeu
Opinião sobre os preços dos artigos evangélicos no mercado.
- 16 22 2
Regularmente Esporadicamente Nunca consome
Não respondeu
Consumo desses artigos evangélicos.
12 23 5 -
Pedidos por si mesmo
Pedidos pelos outros
Pedidos por si mesmo e pelos outros
Não respondeu
Prioridades nos pedidos de orações.
15 6 17 2
70
Prospera materialmente e
profissionalmente
Prospera na área moral, espiritual e
na relacional
Prospera em todas as dimensões da vida
Não respondeu
Definição de uma pessoa abençoada por Deus.
- 27 9 4
71
CAPÍTULO 3 – ALGUMAS POSSÍVEIS RAZÕES PELAS QUAIS A FÉ EVANGÉLICA
TEM DESENVOLVIDO A TENDÊNCIA CAPITALISTA
omo temos constatado até então, o Protestantismo nas suas mais diferentes
vertentes vem apropriando-se, reproduzindo à sua maneira novas crenças e
posturas que eram identificadas apenas no meio neopentecostal. Não
obstante as diferenças – o que também podemos perceber na pesquisa – esse
processo de “neopentecostalização” nas igrejas vai brevemente “diluir muitas das
diferenças agora existentes entre elas” (2005, p.39). E esta “neopentecostalização” no
meio evangélico ocorre, possivelmente, por algumas razões. No presente capítulo,
apresentamos pelo menos três delas.
3.1. A natureza pragmática da mídia
É a primeira razão desse fenômeno. Por pragmatismo queremos dizer a concepção
filosófica que estabelece seus valores na perspectiva da utilidade e da funcionalidade.
Para William James – um dos grandes expoentes em torno do qual esse movimento
se originou (final do séc. XIX) – o conceito de verdade, por exemplo, é algo totalmente
instrumental, ou seja, relacionado com sua operacionalidade (2005, p.52-53). Ele
define o pragmatismo como “a atitude de olhar além das primeiras coisas, dos
princípios, das ‘categorias’, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas
coisas, frutos, consequências e fatos” (ibid, p.48). Portanto, não são valores morais e
éticos que definem as ações, nesse caso. Mas a funcionalidade, a praticidade e a
utilidade.
E a mídia, principalmente a radiofônica e a televisiva, que surgiu no final da primeira
metade do século XX, absorve muito desse pragmatismo. Há quase meio século
Marshall McLuhan, um dos magos das comunicações nos Estados Unidos, escreveu:
“Hoje em dia, quando a tecnologia do poder dominou todo o ambiente global para
manipulá-lo como material de arte, a natureza desapareceu com a poesia da natureza.
Passamos agora da produção de artigos empacotados para o empacotamento de
C
72
informações” (2001, p. 38). Essa veiculação de informação por parte da mídia tem um
compromisso muito maior com fatores econômicos do que com a verdade, tornando-
se também um produto comercializado no mercado. E como qualquer produto de
consumo acaba procurando atender aos interesses pragmáticos.
Sobre o poder que a mídia possui, e sua natureza pragmática, ninguém melhor para
falar do que Genésio Lopes. Jornalista há vinte e cinco anos, escritor, colunista,
articulista do jornal Última hora, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Participou
ativamente da vida política do país nos últimos cinquenta anos, lutando
obstinadamente pela sua redemocratização. Chegou a conhecer a censura e o cárcere
militar durante a Ditadura. Em seu livro O Superpoder – o raio X da Rede Globo –
Genésio faz uma crítica social ao império da ganância e da lucratividade midiática aqui
no Brasil. Ele classifica a mídia como um quarto poder, tendo inclusive proeminência
sob os outros poderes.
E a Nação, que sempre identificara nos Três Poderes da República a imagem mais clara do equilíbrio institucional e da força da Cidadania, espanta-se agora ao ver suas pulsações políticas e econômicas reguladas por algo estranho, insólito, e com o cinismo de todo usurpador: Um Superpoder (...) Contudo, se os verdadeiros Poderes da República dobram-se diante do Tacão Global, abdicando legitimidade, deveres e responsabilidades históricas, quem poderá reavivar a força desses valores morais e institucionais no coração da nossa gente? (ibid, 17-21).
O citado autor ainda nos diz que a mídia (Rede Globo) estabelece seu domínio sob
todas as esferas da vida social: da política ao futebol; da magistratura ao
empresariado; das elites às classes populares (ibid, p.16-17). Também critica a forma
inescrupulosa e voraz com que ela veicula as informações. Quase sempre visando à
lucratividade e à popularidade. E quase nunca à verdade e à ética. Sobre isso ele
comenta:
Como um Baal Fenício, que se alimentava de crianças de colo, esse complexo de comunicação devora dinheiro, costumes, tradições, inclusive a inata capacidade de reflexão das pessoas, despejando-lhes diária e repetidamente ‘pacotes de informações’ sobre a origem das quais sua consciência interrogativa jamais terá acesso... E nesse diapasão, movido pela impiedade política e publicitária, ‘a mentira acaba transformando-se na mais pura verdade’ como reflexo puro das táticas ‘goebellsianas’ (ibid, p. 49).
A natureza da mídia é absolutamente pragmática. E quanto à mídia evangélica? Ela
também se enquadra nesse perfil? De acordo com a análise do sociólogo Alexandre
73
Brasil Fonseca, parece-nos que sim. No seu artigo sobre Lideranças Evangélicas na
Mídia: Trajetórias na Política e na Sociedade Civil, ele analisa o trajeto do pastor Caio
Fábio D’Araújo Filho, uma das principais lideranças evangélicas do Brasil nos últimos
cinquenta anos. A relação de Caio Fábio com a mídia evangélica é bastante
emblemática pelo fato dela ser divisora de águas no que tange a um envolvimento e
participação maior do protestantismo histórico e pentecostal na televisão – espaço que
antes era ocupado apenas pelos neopentecostais. É a partir dessa relação que a visão
midiática empresarial se estabelece também entre outros segmentos do
Protestantismo. Vale ressaltar que isso ocorre no final da década de1980, e vem se
consolidando nas últimas duas décadas. Conforme Alexandre, o pastor Caio desponta
na mídia através da Vinde (Visão Nacional de Evangelização), entidade que mais
tarde se torna uma holding de outras sete organizações, algumas empresas e outras
sem fins lucrativos. Com uma emissora de rádio, uma revista e uma TV a cabo ela se
consolida, em pouco tempo, como uma empresa na área de comunicações. O referido
autor traça a trajetória do pastor acima citado da seguinte forma:
Seu início em Manaus (1974-1980) e desenvolvimento pessoal na televisão e rádio; sua mudança para o Rio de Janeiro com a consolidação de sua liderança entre ‘evangélicos de esquerda’ (1980-1987); sua aproximação com um público melhor situado economicamente (1988-1992), o que ocorre principalmente após o período que reside nos Estados Unidos; por fim, seu envolvimento em uma série de movimentos de cidadania, iniciando projetos sociais de vulto, tornando-se significativa figura da sociedade civil organizada (1993-1998). O ano de 1999 será um ano central na trajetória de Caio Fábio, pois demarca o início de uma nova etapa após seu envolvimento na divulgação do ‘Dossiê Cayman’ (1998, p. 95).
Ariovaldo Ramos, uma espécie de braço direito do presidente da Vinde na época,
aponta mudanças na ênfase do discurso de Caio Fábio depois da sua ida para os
Estados Unidos:
Ele ganha a filosofia empresarial por meio da convivência com Leighton Ford, Billy Graham Ministries e outros ministérios americanos personalistas... O Caio, até 87, era um cara assumidamente de esquerda. Com aquela visão que nós temos de mudar, promover justiça nesse país, a situação tem que mudar, a igreja tem que se engajar... E a TV era vista como grande difusora dessas idéias... Nos anos 90 começa uma nova fase no ministério do Caio, se aproximando de muitos empresários... Tudo começa a mudar, a perspectiva dos congressos muda. Nós tínhamos aquela visão de que você tinha que fazer uma coisa com custo baixo para trazer mais pastores e vender a mensagem da Vinde, que era uma mensagem bem Lausanne, bem evangelical... Caio agora fala uma linguagem mais empresarial e menos social – Ariovaldo Ramos, 3/3/1997 (citado em Fonseca, 1998, p. 99-101).
74
A mudança da “visão romântica” para a “visão empresarial”; do “Kibutz judaico” para a
“missão-empresa” – nas palavras de Ariovaldo – acaba ocorrendo. Isso porque dos
quinze funcionários que a Vinde possuía até 1990, em 1997 ela multiplica para
quatrocentos. Alterando também significativamente toda estrutura dos seus
congressos, passando a ser realizados em hotéis de cinco estrelas com custos
elevadíssimos. E coincidentemente ou não, isso se dá à medida que vários homens de
negócios e setores economicamente bem situados foram se achegando a Caio Fábio,
levando a Vinde a mudar o target de sua ação. O que nas próprias palavras de Caio
significa: “Vamos fazer uma missão que seja gerida empresarialmente e vamos fazer
empresas que tenham uma visão missionária. O lado missionário vai ser gerido
empresarialmente, e o lado empresarial vai carregar um coração e um objetivo
missionário” (ibid, p. 100 apud Caio Fábio 10/4/1997).
Por um lado, o pastor Caio Fábio dimensionou muito bem seu ministério midiático. Já
que – conforme Ortiz (1988) – a mentalidade empresarial é imprescindível tanto na
mídia eletrônica, quanto nas empresas de marketing e publicidade, pois sem ela seria
impossível se perpetuar nas selvas das comunicações. Por outro lado, o pastor não
calculou o custo moral e ético desse empreendimento empresarial. Como bem lembra
Debord, o desenvolvimento de qualquer empresa depende necessariamente de
técnicas, valores e meios da sociedade do espetáculo. E que a desonestidade faz
parte desse jogo não como opção, mas como necessidade de sobreviver no mercado
(2007, p. 222- 223). Ou ainda como nos diz Houtart:
Um empresário que desconsiderasse a concorrência não continuaria por muito tempo como diretor de uma empresa, e um banqueiro que não procurasse obter o melhor rendimento dos capitais a ele confiados não teria a confiança de seus clientes. Uma grande montadora de automóveis que priorizasse o bem-estar de seus trabalhadores no processo da produção seria rapidamente superada no processo da concorrência. Tudo isso tem muito pouco a ver com a excelência moral dos seus atores individuais que, além disso, com muita frequência encontram inúmeras razões para legitimar suas práticas. Podemos acrescentar que não há nada pior que um mau sistema operado por atores eticamente corretos – grifo meu (2003:60).
O sistema capitalista no qual vivemos não se importa muito com o que é certo, ou
errado; com o bem ou o mal. Mas unicamente com aquilo que pode gerar lucro. Essa é
a natureza pragmática do mundo empresarial ao qual a mídia pertence, e que foi
absorvida, de certa forma, pela Vinde – primeiro modelo de missão-empresa não
75
neopentecostal – no fim dos anos oitenta. Esse mesmo modelo tem sido reproduzido
pela igreja evangélica nos seus programas de rádio e de TV. Vale ressaltar a pesquisa
de campo, demonstrada nesse trabalho, realizada com pessoas que não fazem parte
de igrejas neopentecostais, na qual a maioria aprovou essa postura empresarial.
Talvez sem se dá conta dos comprometimentos éticos e morais que envolvem esse
meio.
É no mínimo curioso observar como os programas evangélicos de TV que, pelo menos
em tese, não são identificados com o Neopentecostalismo, têm adotados posturas e
práticas totalmente comerciais e mercantilistas. É o caso do televangelista, pastor da
Igreja Assembléia de Deus, Silas Malafaia. No programa Vitória em Cristo, exibido no
dia 13 de junho de 2009, ele entrevistava outro pastor que comentava sobre como
adquirira certa propriedade, cujo valor era bem acima de suas condições. O referido
pastor atribuía essa aquisição a uma oferta que tinha destinado ao programa do Silas.
Na verdade a atitude tinha sido da sua esposa, sendo que apenas, dizia o pastor, “–
peguei carona na sua fé”. Esse gesto, segundo ele, estava resultando em vários
benefícios materiais e espirituais, tanto para sua própria vida, quanto para sua igreja.
Durante toda sua fala foram enfatizadas e repetidas as seguintes expressões: “– É
preciso que você semeie para ter uma grande colheita...” “Quem semeia uma semente
recebe várias vezes mais...” “Faça como eu: dei o meu melhor para Deus e Ele deu o
melhor para mim...” “Talvez com esse dinheiro aí você nem consiga resolver seu
problema, então invista no Reino de Deus (entenda-se com isso investir nos projetos
ministeriais e no programa de TV do pastor Silas Malafaia)”.
Obviamente isso contou com a total aprovação do pastor Malafaia. Que vez por outra
interferia com frases: “– Eu concordo! amém!”, aproveitando para sensibilizar os
telespectadores falando dos altos custos que mantinham seu programa no ar, e que
ele não tinha ajuda de nenhuma igreja. Inclusive, prometendo criar um novo quadro na
programação com depoimentos desse tipo para mostrar como Deus está
“abençoando” (entenda-se prosperando materialmente) as pessoas que tem lhe
ajudado a custear as despesas com a TV, e com as suas megas cruzadas
evangelísticas.
76
Há uma matéria de capa da revista Época, agosto de 2010, sobre Os novos
evangélicos12, na qual é mencionado um vídeo na internet “em que o pregador
americano Moris Cerullo, no programa do pastor Silas Malafaia, prometia uma ‘unção
financeira dos últimos dias’ em troca de quem ‘semear’ um ‘compromisso’ de R$
900...” (2010: 91 e 92).
E no programa de Silas exibido no dia 8 de janeiro de 2011, o pregador, também
americano, Mike Murdock dizia que iria pedir a Deus 1189 milagres para aqueles
próximos 15 minutos. Garantia um dos 1189 milagres (segundo ele o número de
capítulos da Bíblia) aos que ligassem para o programa fazendo determinada
contribuição financeira. Dizia também, sob forma de uma suposta revelação
sobrenatural, que havia telespectadores envolvidos em uma transação imobiliária, e
que precisariam, conforme Mike Murdock, “semear” algo em torno de 10 a 25 mil reais
para que a transação imobiliária lhe fosse favorável. Na ocasião ele também – com a
corroboração do Pr. Malafaia – divulgava seu livro Sabedoria para Vencer,
enfatizando frases do livro como: “decisões decidem riquezas”; “riquezas é uma
recompensa divina para aqueles que seguem suas leis”; “você pode ter uma vida sem
dívidas”; “eu tenho uma casa linda e não devo um centavo”; “um homem certa vez me
disse: quando eu oro não espero nada de Deus. Então eu lhe disse: você é um
homem estúpido”.
Vale salientar que em meio a essas frases, pontuadas em sua fala, durante o
programa, Murdock desafiava as pessoas a se filiarem ao clube de um milhão de
almas – projeto evangelístico do Pr. Silas Malafaia –, contribuindo com mil reais.
E por mais que o pastor Silas tenha tentado remediar no final do programa, afirmando
que não estava pregando uma “prosperidade louca e inconsequente”, fica patente que
o discurso e a postura daqueles que não se identificam doutrinariamente com o
neopentecostalismo, acabam se misturando e se confundindo com suas principais
ideias. É o preço da natureza absolutamente pragmática da mídia – até mesmo da
mídia evangélica.
É interessante notar a semelhança entre os discursos dos programas de TV como
esses do pastor Silas Malafaia, e aqueles discursos dos programas de TV da Igreja
12
Um movimento de fiéis que critica o consumismo, a corrupção e os dogmas das igrejas, e propõe uma nova reforma protestante.
77
Universal, da Igreja Mundial e da Igreja da Graça. Qualquer semelhança não é mera
coincidência e sim a necessidade de pagar os altíssimos custos da televisão. E
também, como diz Mariano, a grande influência exercida pelas igrejas neopentecostais
sob as outras; no que diz respeito à obtenção do sucesso, da visibilidade, do domínio
da mídia e das práticas que agradam as massas (2005:39).
Queremos esclarecer que a razão de termos mencionado o pastor Silas Malafaia
nessa argumentação foi única e exclusivamente o fato de nossa pesquisa mostrar sua
grande audiência ao lado do programa do missionário R.R. Soares na preferência dos
crentes entrevistados de várias igrejas evangélicas da nossa cidade. Sendo assim, a
intenção foi demonstrar, através disso, o surgimento, nas últimas décadas, de uma
tendência evangélica na mídia cada vez mais identificada com os valores capitalistas
da fé. Seja por meio dos programas de televisão tipicamente neopentecostais (como o
do R.R. Soares), ou por meio daqueles programas (como o do Silas) que não se
identificam doutrinariamente com essa linha. Porém, cujo discurso e postura se
misturam e se confundem com aqueles praticados no neopentecostaslismo.
3.2. A obsessão da nossa sociedade pela exuberância e pelo espetacular
Tal obsessão consiste a segunda razão dessa onda capitalista da fé – ou
“neopentecostalização” – que tem invadido as igrejas evangélicas. Guy Debord, um
dos mais importantes pensadores do século para a imprensa francesa, faz uma
análise crítica da moderna sociedade de consumo na sua célebre obra A Sociedade
do espetáculo. Nela, ele diz que nunca a tirania das imagens e a submissão alienante
ao império da mídia – fiéis promotoras do capitalismo e do consumismo – foram tão
fortes como agora. Debord fala do sistema de dominação espetacular da nossa
sociedade. Comenta que a lógica da sociedade do espetáculo, fundamentada no
capitalismo, se alastra e se afirma em toda parte: Da política ao crime organizado; da
ciência à tecnologia; do comércio à crença; das ideologias aos valores morais; da
cultura à mídia. E afirma que “já não existe nada na cultura e na natureza que não
tenha sido transformado e poluído segundo os meios e os interesses da indústria
moderna” (2007, p.173). Lembra-nos ainda que essa sociedade prefere a exuberância
do que a simplicidade; a ficção ao invés da realidade. A respeito disso nos diz:
78
A lógica do espetáculo comanda em toda parte as exuberantes e diversas extravagâncias da mídia (...) Aquilo que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não existisse. Ele fala, então, de outra coisa, e é isso que, a partir daí, afinal, existe (...) O juízo de Feurbach a respeito de sua época que preferia ‘a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade’ foi inteiramente confirmado pelo século do espetáculo (ibid, p.171-207).
Nessa sociedade, o mundo evangélico passa a supervalorizar cada vez mais as
celebridades que volta e meia surgem em seu reduto; os megas templos suntuosos
que despontam pela cidade; os grandes eventos religiosos com todo o aparato da
publicidade e do marketing; as gigantescas cruzadas evangelísticas com a estrutura
das melhores empresas de eventos do país; e os excepcionais shows da fé com seus
“milagres’’ que impressionam as multidões. E tudo isso sob o pretexto de que “Jesus
merece o melhor”. E de que “temos que fazer coisas grandes para Deus”.
Consequentemente, o que passa ser prioridade é a imagem, a aparência, a
visibilidade – que possam impressionar de forma espetacular. A realidade, então,
acaba sendo confundida com aquilo que é mostrado. A fé com aquilo que pode ser
visto. E a credibilidade com aquilo que é evidenciado (ou que está em evidência). É
aquilo que o pensador e historiador francês Michel de Certeau diz no seu livro A
Invenção do cotidiano. Quando fala que as instituições (inclusive as religiosas) de
nossos dias tentam compensar a falta de credibilidade diante da qual se encontram
com técnicas de marketing, e tentando falsear a realidade com aparências (2007: 279,
280,281). Em decorrência disso, afirma Certeau que a crença na modernidade não é
algo mais invisível; que se esconde por detrás dos signos e do inacessível. Mas algo
que precisa ser visto, tocado e comprovado: “A invisibilidade do real, postulado antigo,
cedeu lugar à sua visibilidade (...) O visto é identificado com aquilo que se deve crer...”
(ibid, p.288- 289).
Numa sociedade da exuberância e do espetáculo a concepção antiga da crença – crer
naquilo que não vê – é substituída pela concepção contemporânea – crer apenas
naquilo que pode ser mostrado de forma impressionante. E é nesse contexto que os
valores neopentecostais do sucesso, da visibilidade, da presença ostensiva na mídia,
da prosperidade e da cura imediata e sensacional (ou sensacionalista) se estabelecem
e se afirmam no meio evangélico.
79
3.3. A dimensão sagrada do consumo
É a terceira e última razão que apresentamos aqui para tentarmos entender essa
tendência capitalista que tem tomado conta da crença evangélica. Antes de explicar
esse fenômeno, temos que compreender como nasceu essa sociedade do consumo.
Entendemos que a natureza do consumo não é algo exclusivo da sociedade moderna
industrial, pois, como nos lembra a antropóloga Diana Nogueira, “em todas as
sociedades e em todos os momentos da história os homens consomem e consumiram
objetos” (2010, p. 7). A antropóloga nos mostra que a atividade humana de adquirir,
dar, receber e retribuir objetos não é algo apenas ligado a fatores de ordem econômica
e material, mas algo, muitas vezes, carregado de significados socialmente
construídos. A prática de consumo não pode ser entendida apenas pelo viés
socioeconômico, mas também deve ser compreendida pelo viés sociocultural. E isso
pelo fato, conforme a autora acima citada, da constatação de que “a troca e uso de
objetos são práticas que criam e mantêm vínculos entre os membros de uma
sociedade e que, ao mesmo tempo, operam para fornecer sentido e ordenar a vida
coletiva em uma totalidade” (ibid,p.8-9).
Entretanto, é notório que o consumo de bens assume uma forma desproporcional na
sociedade ocidental moderna e industrializada. Tanto no volume, quanto na
diversidade de produtos – conforme nos diz Diana. E essa forma de consumo
exagerado está ligada diretamente à Revolução Industrial – transformações ocorridas
na Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX relacionadas à substituição da
manufatura pela maquinofatura; da produção artesanal pela produção fabril. Com isso
a produção que antes era em pequena escala passa a ser em grande escala. E ganha
proporções mundiais por meio de uma nova compreensão política e econômica, na
qual a propriedade privada consolida o capitalismo pela livre iniciativa da oferta e da
procura; e pela exploração do trabalho da classe operária – considerado apenas mais
uma mercadoria. E isso se dá no esteio de um liberalismo político e econômico
fundamentado pelos seus teóricos como John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-
1790), Thomas Malthus (1766-1834), David Ricardo (1772-1823). Só que em pouco
tempo surge o problema da superprodução, ou seja, dos bens excedentes produzidos.
Para, então, poder preencher essa lacuna entre produção e consumo, sem com isso
diminuir os lucros, a indústria passa a incentivar a aquisição desses bens além do que
era necessário. É o que nos diz Osvaldo Coggiola – professor de história
80
contemporânea da USP: “A expansão do modelo mundial, na segunda metade do
século XIX deu vazão ao capital supérfluo inglês...” (2007,p.98).
A partir dessas transformações sociais, políticas e econômicas surge o consumismo
como uma ferramenta da produção industrial para escoar os excedentes do capital
amealhado. Dessa forma, a indústria tem garantido até hoje o escoamento do que ela
produz. Seja pelas estradas de ferro do início da Revolução Industrial. Seja pela
internet, ou pela mídia dos nossos dias. Não importa! Ela sempre sobreviveu da
exploração do proletariado e do consumo exacerbado. Nesse diapasão, passa a ser
elaborado todo um conceito da felicidade proporcional ao acúmulo de bens
consumidos. Por conseguinte, todas as empresas de marketing e propaganda passam
a existir. Um artigo interessante da revista Christianity Today (Cristianismo Hoje) cita
um trecho do que se chamou Thompson Red Book on Advertising (O Livro Vermelho
sobre a Propaganda por Thompson), de 1901. Nele, há uma pequena frase que
descreve a propaganda na virada do século XX: “A propaganda tem o objetivo de
ensinar as pessoas que elas têm desejos que não reconheciam antes, que esses
desejos podem ser supridos”. Portanto, como nos lembra Gondim, o Capitalismo tem a
necessidade não apenas de gerar nas pessoas a compulsão para comprar, mas
também meios de concretizar seus desejos (1996, p. 39).
Essa sociedade do consumo consequentemente influencia o meio evangélico. O
crescimento do número de fiéis em todas as classes sociais nos últimos anos tem
permitido a expansão e diversificação de um mercado direcionado para esse público
consumidor. Fazendo com que floresça um novo ramo na cadeia produtiva brasileira: a
indústria gospel. Nesse mercado, nos diz Marcos Stefano, é possível encontrar, além
dos consolidados livros e CDs – imbatíveis nas vendas – produtos como bonés,
chaveiros, canetas, pulseiras, porcelanas, imãs de geladeiras, broches, quadros,
porta-retratos, adesivos e uma infinidade de artigos para todos os gostos e idades. E
apesar do discurso religiosamente correto do anúncio da Palavra de Deus através
desses meios, conforme Marcos, grande parte dos empresários evangélicos procura
mesmo é garantir seu “santo lucro”. Eles próprios admitem que exploram
comercialmente essa dimensão sagrada do consumo. “Vivemos numa sociedade de
consumo, que prioriza essa comercialização”, reconhece Samuel Eberle dos Santos,
superintendente da empresa Luz e Vida, detentora dos direitos do Smilinguido e sua
turma – a formiguinha mais famosa do mundo gospel aqui no Brasil (Eclésia, n. 67,
junho de 2001, p.36). Até mesmo empresários não evangélicos já perceberam que é
81
um bom negócio investir nesse segmento. É o caso da empresária nacionalmente
conhecida Marlene Matos que transformou a Xuxa – a rainha dos baixinhos – numa
mina de ouro. Ela criou a Amém Records, produtora musical, que fazia parte do
megagrupo Xuxa Produções, e que passou a investir na rentável música gospel. “Não
me preocupo com questões religiosas, o meu interesse nesse tipo de música é apenas
financeiro”, admite Marlene (Vinde n. 9, julho de 1996:22). No que diz respeito aos
consumidores evangélicos, eles não são exclusivamente da classe média abastada. E
nem poderiam ser. “Cerca de 70% dos crentes brasileiros têm renda mensal de até
cinco salários mínimos. É gente que só dispõe de uns poucos reais quando sai às
compras” (Eclésia, nº. 67, junho de 2001, p.38).
Parece-nos que esse mercado gospel está aí mesmo para ser explorado. Nossa
pesquisa revelou que a maioria dos entrevistados, mesmo considerando abusivos os
preços dos artigos evangélicos disponíveis na praça, costuma comprá-los
regularmente ou esporadicamente. É perceptível que o consumismo tem se tornado
um estilo de vida do povo evangélico brasileiro. Como denuncia o pastor José Pontes:
“Somente com brindes, CDs, camisas, decalques e etc., os crentes brasileiros gastam
três bilhões de reais por ano” (Revista ISTO É, nº. 314, Set. de 2003 citada em Todos
Nós, n.2, {s.d}). É pertinente também citar, na íntegra, o comentário feito pelo
sociólogo Ricardo Mariano sobre o grande filão que se tornou o consumo de artigos
religiosos nesse meio.
Além da ampliação do número de gravadoras, surgiram produtoras de programas de TV, empresas de Software, fábrica de brinquedos, agências de turismo (para a ‘terra santa’), emissoras de rádio. Multiplicaram-se as confecções, com camisetas, estamparias, e demais peças de vestuário, e as lojas de instrumentos, CDs e partituras musicais. Diversificou-se a variedade de material escolar e de objetos de uso pessoal e doméstico com mensagens cristãs. Surgiram bonecos de brinquedos do pastor Davi, do profeta Moisés e da Arca de Noé, bonés, fitas de vídeo com desenhos animados, CD-ROM com jogos interativos para crianças e adultos e videogames com histórias e personagens bíblicos. Em 1988, a Beleza Cristã, do grupo Embeleze, baseada numa pesquisa com 800 crentes, lançou 180 produtos da linha cristã para o mercado evangélico, entre os quais xampus, colônias, cremes, potes de gel, loções, desodorantes, óleos aromáticos para unção, balas e drops (2005, p. 213-214). O Brasil está em segundo lugar no ranking dos países que mais consomem música gospel norte-americana. Ultrapassou diversos países de língua inglesa. O mercado brasileiro só perde mesmo para os EUA, líder mundial do segmento, não só em consumo, mas também em produção (Vinde, nº. 17, abril de 1997).
82
Com o estabelecimento da sociedade consumista, os desejos e sonhos se
multiplicaram de tal forma que o supérfluo toma o lugar do essencial; a insatisfação
sobrepuja o contentamento. Nasce, então, a necessidade de experimentar o maior
número possível de opções para não frustrar a necessidade do consumo. É o que
Gondim chama de “estado de supermercado”:
Como o homem pós-moderno passou a acreditar que merecia o maior número de produtos, criou-se juntamente com o mercado o sentimento que ele tem que viver em ‘estado de supermercado’, como um consumista compulsivo. Da mesma maneira, necessita igualmente que as idéias, sistemas, e religiões estejam ao seu inteiro dispor. Quando lhe são oferecidas todas essa opções, elas chegam sem um valor intrínseco superior. Todas são válidas e passíveis de serem escolhidas, dependendo apenas da percepção subjetiva do indivíduo (1996, p.40-41).
Esse desejo intenso de consumir que impregna nossa sociedade, de experimentar
todas as opções possíveis – inclusive as opções religiosas –, tem implicação direta na
“neopentecostalização” das igrejas evangélicas não neopentecostais. De que forma
isso ocorre?
Primeiro através das identidades múltiplas. Stuart Hall, dissertando a respeito da
identidade cultural na pós-modernidade, diz que diferente do homem da sociedade
moderna – com sua identidade bem definida e localizada no mundo social e cultural –
hoje, vemos uma espécie de fragmentação que desloca cada vez mais as identidades
centradas e fechadas. Tornando, dessa forma, as fronteiras cada vez menos definidas,
provocando certa crise de identidade. Ele aponta a globalização como o principal
fenômeno responsável pela fragmentação de códigos culturais; pela multiplicidade de
estilos e pela exacerbação do efêmero, do flutuante e do “impermanente”. Segundo
Stuart, quanto mais a vida social estiver sendo mediada através do mercado global,
das viagens internacionais, da mídia e dos meios de comunicação globalmente
interligados, mais “as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de
tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente...”.
Somos, então, confrontados por uma variedade de identidades, “cada qual nos
fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós, dentre as quais
parece possível fazer uma escolha...”. Lembra-nos ainda que:
Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre as pessoas que estão
83
bastantes distantes umas das outras no espaço e no tempo (...) Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de ‘supermercado cultural’. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou moeda global, em torno das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas (2007, p.73-76).
Em um mundo de consumo globalizado as identidades são partilhadas por pessoas
que fazem parte de grupos, de culturas, de tradições e de lugares diferentes. No
entanto, como afirma Hall, são consumidoras dos “mesmos bens, clientes para os
mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens...”. É significativo o fato do
nosso gráfico de pesquisa ter demonstrado que a maioria dos evangélicos
entrevistados – não filiados às igrejas neopentecostais – acompanha a mídia
neopentecostal: “... público (diferente) para as mesmas mensagens.” O que confirma
ainda mais essa tese das identidades terem se tornado, nesse mundo pós-moderno,
cada vez menos centradas, fechadas, unificadas, e cada vez mais diversificadas,
abertas, pluralizadas.
Entretanto, Stuart nos lembra que não devemos pensar esse fenômeno da identidade
na pós-modernidade como algo simples e dualístico do tipo: triunfo do global e
derrocada do local. Ou algo como: heterogeneidade e assimilação em detrimento da
homogeneidade e tradição. Isso porque a sociedade pós-moderna é contraditória e
confusa, pois à medida que constatamos as fronteiras desaparecendo pela
globalização e pluralização, as presenciamos ressurgindo intensamente pelo
fundamentalismo e etnocentrismo; à medida que as distâncias se encurtam, as
relações se tornam superficiais; à medida que as etnias se redescobrem, os conflitos
étnicos se multiplicam. Em outras palavras, por um lado, um avião a jato, a TV ou a
internet encurtam as distâncias entre pessoas, aproximam etnias distantes e
dissolvem fronteiras. Por outro lado, um Hezbollah, uma Al Qaeda, um Taleban, um
grupo de skinreds, uma torcida organizada ou um “inglesismo13” separam os
indivíduos e criam novas fronteiras.
Portanto, o que temos não é o desaparecimento total das identidades locais ou
grupais. E sim, o surgimento daquilo que Stuart classifica como identidade híbrida –
13
Inglesismo: movimento étnico inglês que procura resgatar e unificar a identidade britânica “ameaçada” pela presença ostensiva de imigrantes, principalmente da Ásia e do Oriente médio, dentro dos seus territórios.
84
constituída de diversos tipos de identidades resignificadas e traduzidas, sem que com
isso ocorra uma total assimilação das novas identidades proporcionadas pela
globalização. E também, sem que haja uma plena desintegração das identidades de
origem. O que faz com que essa identidade híbrida do homem pós-moderno seja “o
produto de várias histórias e culturas interconectadas”, pertencendo assim, “ao mesmo
tempo, a várias casas e não a uma casa particular” (ibid, p. 88-89).
Nestor Garcia (em seu livro Culturas Hibridas) também explora essa ideia de
hibridismo sobre a qual se refere Stuart Hall. Ele explica que esse termo – transferido
da biologia para as análises socioculturais – remete a um conceito de mestiçagem (em
questões antropológicas), de sincretismo (em questões religiosas) e de fusão (em
questões musicais). Entretanto, assinala o autor acima citado, que não se deve pensar
em hibridação14 como se fosse algo sem contradições, sem conflitos e sem
resistências no processo de mistura e de interculturalidade. Garcia faz uma afortunada
observação de que uma compreensão não ingênua desse fenômeno classificado
como hibrido é inseparável de uma consciência critica dos seus limites, ou seja, do
que não se deixa, ou não quer ou não pode ser hibridado. Também considerou que a
intensificação das interculturalidades migratórias, econômicas e midiáticas nesse
mundo globalizado nos leva a perceber cada vez mais a prática da hibridação como
um acontecimento, muitas vezes, não planejado e não previsto; sendo decorrente da
criatividade individual e coletiva – aquilo que Michel de Certeau denomina da
“invenção do cotidiano”. De forma que, para Garcia, os membros de cada grupo se
apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos
circuitos estabelecidos por essas relações interculturais e geram novos modos de
produções, de representações, de significações e de saberes. Assim, nos lembra que
a hibridação relativiza em nossos dias a noção de identidades “puras” ou “autênticas”.
Sugerindo deslocar o objeto do estudo da identidade para heterogeneidade e
hibridação interculturais. Portanto, é necessário atentar, como explicam François
Laplantine e Alexis Nouss (citados por Nestor Garcia), que não há somente “a fusão, a
coesão, a osmose e, sim, a confrontação e o dialogo” (2001, p. XVII – XL).
Algo semelhante ao que acontece em termos culturais também ocorre, pontua Nestor
Garcia, com a passagem das misturas religiosas a fusões mais complexas de crenças.
É o que nos mostra mais claramente Jaqueline Hermann em seu livro Virando
14
Um processo sociocultural no qual estruturas e práticas discretas, que existem de forma separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
85
Séculos: 1580-1600 – o sonho de salvação. No qual ela discorre sobre a hibridação
resultante do encontro entre os elementos culturais e religiosos dos portugueses e dos
tupis no Brasil colonial. Isso é bem emblemático, segundo a citada autora, no
Movimento de Santidade, organizado no interior do Recôncavo baiano no inicio dos
anos de 1580. Percebe-se nesse caso, assinala Jaqueline, uma combinação dos
aspectos da fé católica pregada nos aldeamentos (juízo final, céu, inferno) com os
aspectos da mitologia tupi (terra sem mal; terra de fortuna; de felicidade e juventude
eterna; terra de homens-deuses, habitadas pelos heróis ancestrais).15 E tudo isso
misturado com elementos religiosos de um movimento messiânico português
conhecido como Sebastianismo (crença milenarista de alguns portugueses que
projetavam o retorno triunfante de D. Sebastião – rei de Portugal – que desaparecera,
por ocasião de um confronto com os mulçumanos no Norte da África na batalha de
Alcácer Quibir, em 1578, onde os portugueses foram derrotados em uma tentativa
frustrada de retomar antigas possessões coloniais).16 Nos diz ainda, a historiadora
acima citada, que uma simples análise nos documentos inquisitoriais do Santo Oficio
de 1591 nos faz perceber “... um complexo e impressionante amálgama das crenças
católicas e tupinambás, forjando um compósito hibrido e em muitos aspectos
indecifrável.” E também nos remete a compreensão de que “da mistura de elementos
de culturas e religiosidade europeia e gentílica surgiu o que se pode caracterizar como
catolicismo-tupinambá, hibridismo forjado no trópico e que nos remete à complexidade
dos dilemas e impasses da colonização.”
Esse tipo de hibridação de crenças pôde ser constatado na nossa pesquisa de campo.
Onde observamos que os valores, os conceitos e práticas dos grupos que não são
classificados como Neopentecostais, muitas vezes se misturam; se contrapõem e se
confundem com os valores; com os conceitos e com as práticas do
Neopentecostalismo. Como demonstramos anteriormente, os entrevistados, em alguns
15
Essa crença tupinambá sofreu transformações com a chegada dos portugueses. E através de todo o flagelo imposto pela colonização – escravidão indígena, catequese dos jesuítas, extermínio pelas doenças dos brancos - ela acabou sendo resignificada. De modo que as expectativas da utopia nativa de um mundo melhor ganharam a urgência daquele momento histórico para os tupis, reordenando o deslocamento deles para o interior do território brasileiro (se bem que não existia ainda Brasil) na busca da terra sem mal. Já que o litoral onde eles habitavam se tornou lugar de perseguição, escravidão, doenças e morte.
16
Segue-se a esse trágico acontecimento para os portugueses a União Ibérica na qual Portugal passa a ser dominado pela Espanha em um período que durariam 60 anos (1580-1640). Isso, por sua vez, vai contribuir significativamente para a construção das expectativas messiânicas pela quais os portugueses passam a acreditar em um retorno triunfante do rei sumido (D. Sebastião) para libertar e restaurar o reino Lusitano, estabelecendo-o como um grande Império Mundial, ou, o Quinto grande Império na História.
86
momentos, mantinham-se fiéis às doutrinas de seus respectivos grupos
denominacionais, apresentando certa resistência diante de algumas posturas da
vertente Neopentecostal identificada com a tendência capitalista da fé. Porém, em
outros momentos, revelaram-se identificados com as doutrinas neopentecostais,
embora apresentando, às vezes, contradições entre as duas concepções
amalgamadas. Isso, por sua vez, nos faz perceber o surgimento de uma nova prática
religiosa hibrida da Igreja evangélica, que mesmo rejeitando (em alguns dos seus
círculos) a mercantilização da fé, no entanto acaba desenvolvendo um modelo de
crença com feições ortodoxamente capitalista. São as contradições típicas da pós-
modernidade.
Numa sociedade assim já não há mais identificação denominacional tão criteriosa. Em
função disso nos diz Kivitz :
Os movimentos da missão integral e da espiritualidade, da Teologia da Prosperidade e da batalha espiritual, as ondas de igrejas em células e o badalado G 12 se espalharam por igrejas locais e conquistaram líderes cristãos, independente de sua identidade (ou falta de identidade) denominacional (batista, metodista, presbiteriana, entre outras). (2006, p.209).
Na luta pela sobrevivência no mercado religioso as igrejas se adaptam rápida e
constantemente às novas tendências que vão surgindo para poder atender o gosto do
cliente, que por sua vez muda também rapidamente. E neste “supermercado” da fé, os
indivíduos se percebem como consumidores predispostos a comprar qualquer nova
ideia adaptável às suas necessidades e desejos, sem levar tão a sério valores como
compromisso, fidelidade, constância e pertencimento. Enfim, devido a esse fenômeno
das identidades múltiplas a “Igreja Evangélica é hoje uma grande Babel que reflete um
espírito de época, e se organiza tal e qual qualquer mercado: pela via da
segmentação” (ibid, p. 209).
O outro fator pelo qual a sociedade do consumo contribui para a tendência
mercantilista da fé evangélica é o imediatismo. A atitude consumista se encaixa no
mundo do instantâneo, no qual os cartões de créditos possibilitam às pessoas
comprarem o que quiserem, adquirindo instantaneamente, para pagar depois. Por que
esperar? Compre o que você quer agora! Vivemos em um mundo onde a TV
estabelece que tudo o que realmente importa é o agora. John Benton aponta para um
aspecto da televisão, como o “Mundo do Instante”, que merece nossa ponderação:
87
Tudo é imediato. Os filmes e a televisão se concentram na faculdade da visão. Naturalmente, a única coisa que podemos ver é este exato momento. Tudo que podemos ver é o agora. Com nossos olhos, não podemos ver o ontem nem o que acontecerá daqui a dois anos. Tudo o que podemos ver é este momento. Podemos nos lembrar do que aconteceu ontem, mas a lembrança não é o que vemos. A visão é uma faculdade do ‘agora’. Daí, a televisão tem uma segunda mensagem subliminar: ela está sutilmente dizendo que agora é o único momento que importa (2002, p.61-62).
E esse imediatismo é também um elemento que tem construído a crença evangélica
nesses últimos vinte anos. A Teologia da Prosperidade surge, então, para atender as
expectativas e os interesses de uma sociedade ávida pelo consumo imediato: do
agora e não do depois, do aqui e não do além. Para Ricardo Mariano ela “se encaixa
como uma luva tanto para a demanda imediatista de resolução ritual de problemas
financeiros e de satisfação de desejos de consumo dos fiéis mais pobres... como para
a demanda dos que almejam legitimar seu modo de vida, sua fortuna e felicidade”
(2005, p. 149).
Por último, temos ainda o utilitarismo como outra forma pela qual a sociedade de
consumo influencia na neopentecostalização das igrejas evangélicas. Por utilitarismo
queremos falar do conceito que condiciona o valor de algo à sua utilidade. Tudo,
então, passa a ser instrumentalizado para atingir fins pessoais. Como nos lembra
Ruben Alves – citando e comentando o livro do filosofo Martin Buber “Eu-Tu” –, a
nossa relação com as pessoas, inclusive com o próprio Deus, não é mais interpessoal
(eu e tu). Mas sim instrumental e utilitarista (eu e isso). Ele diz:
Há um tipo de relação que transforma tudo em objetos mortos. Uma mulher que se transforma em objeto para o homem que faz uso dela para ter prazer. Um homem se transforma em objeto para a mulher que o usa para obter status ou segurança. Uma criança se transforma em objeto quando seus pais a manipulam para realizar seus sonhos. Para um professor que só pensa no cumprimento do programa, todos os seus alunos são objetos. Para quem está atrás de milagres, Deus é um objeto que faz milagres. O eleitor é um objeto que o político usa para ganhar poder. Um doente, para o médico, pode ser apenas ‘um portador de uma doença’. (Ah! Os professores e alunos, à volta de um doente sobre quem nada sabem, nem mesmo o nome, numa enfermaria de hospital! Ali não está um ser humano! Ali está um caso interessante...) Buber deu a esse tipo de relação o nome de ‘eu-isso’. Tocadas pela relação eu-isso, todas as coisas, pessoas, animais, árvores, Deus se transformam em coisas que eu uso para atingir os meus propósitos. Eu sou o centro do mundo. Tudo o que me cerca são utensílios que eu uso para os meus propósitos (2003, p.96).
88
Nesse conceito utilitarista a contemplação do divino acaba se perdendo, surgindo em
seu lugar a instrumentalização divina. A aproximação do sagrado deixa de ser algo
envolvido em mistério, espanto e reverência, tornando-se apenas técnicas de como
acionar e manipular Deus.
Esse tipo de relação utilitária, como bem colocou Ruben Alves, “transforma tudo em
objetos mortos”. Inclusive Deus! Talvez sem se aperceber a igreja evangélica O
matou. Nem tanto como Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra”, negando a sua
existência. Mas, de outra forma, os evangélicos também mataram Deus,
transformando-O em um mero objeto para atingir seus propósitos mais mesquinhos e
egoístas. Isso porque quando nós transformamos pessoas em objetos, a natureza em
objeto, o trabalho em objeto, Deus em objeto, acabamos assim destruindo os
sentimentos, o meio ambiente, a vocação e a verdadeira espiritualidade.
89
CAPÍTULO 4 – OS POSSIVEIS DESDOBRAMENTOS DA TENDÊNCIA
CAPITALISTA DA FÉ EVANGÉLICA
ual o futuro da Igreja Evangélica? Mesmo sabendo dos riscos de previsões
alarmistas e equivocadas – típicas de futurólogos e adivinhos –,
apontaremos algumas posturas que o Movimento Evangélico poderá assumir
nas próximas décadas.
4.1. AFASTAR-SE CADA VEZ MAIS DA PROPOSTA DE JESUS
Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto os evangélicos estão se
afastando dos ensinos de Cristo. Basta tomar como exemplo o conceito de felicidade.
De acordo com aquilo que Jesus ensinou no Sermão da Montanha, felicidade se
consiste em um viver piedoso no caminho da retidão. A palavra que ele utiliza no
Evangelho de Mateus (cap. 5) para “bem-aventurados” – felizes – é a palavra hebraica
Ashréi. Essa palavra que se repete 43 vezes na Bíblia, e que aparece em várias
passagens do Antigo Testamento, tem como significado “conduzir-se pelo caminho
reto”. No livro de Provérbios, esse conceito é bastante difundido: “Não siga pela
vereda dos ímpios, nem ande pelo caminho dos maus” (cap. 4. 14 – NVI). E também
diz: “Ouça meu filho e seja sábio, guie seu coração pelo bom caminho” (cap. 23. 19 –
NVI). Os verbos “seguir”, “andar” e “guiar” que aparecem nestas referências é o
mesmo verbo hebraico “ashar”, do qual deriva a palavra “Ashréi”, utilizada por Jesus
no Sermão da Montanha.
Portanto, o conceito de felicidade ensinado por Cristo nada tem em comum com o
nosso conceito de felicidade. Isso porque no mundo ocidental em que vivemos, a
felicidade é proporcional ao acúmulo de bens de consumo e realização imediata –
Inclusive esse é o conceito de felicidade que tem sido propagado em muitas igrejas
evangélicas. Já na concepção oriental de Jesus, felicidade é uma caminhada no Reino
de Deus, afastando-se sempre do mal, mantendo-se constantemente na trilha do bem.
No nosso conceito materialista, consumista e capitalista a felicidade é um lugar aonde
Q
90
conseguimos chegar: no que se refere à posição, ao status, a condição econômica e à
realização pessoal. Porém, de acordo com os ensinamentos de Jesus nas “bem-
aventuranças” a felicidade não é um lugar aonde se chega, mas sim o jeito como se
caminha pela vida. Como bem lembra Kivitz, esta é a “felicidade mais simples e
singela, menos hollywoodiana (...) felicidade de andar sempre, não desistir nunca,
seguir a trilha que Jesus deixou e conduz ao Reino eterno” (2006:192).
Em nossa compreensão a felicidade está ligada apenas ao prazer biológico, orgânico
e fisiológico. No entanto, na proposta de Cristo, articulada nas “bem-aventuranças” e
registrada em Mateus capítulo 5, a felicidade tem a ver com a humildade; com a
sensibilidade; com a mansidão; com a justiça; com a misericórdia; com a santidade;
com a paz; com o ser coparticipante nos sofrimentos dos profetas e de Cristo – estes
sofreram pelo fato de se oporem ao “status quo” dominante dos seus respectivos dias.
Na nossa elaboração ocidental moderna, a felicidade se resume basicamente em
eliminar o sofrimento, e satisfazer-se plenamente em todo tempo; a qualquer preço.
Entretanto, Jesus entendia felicidade como viver prioritariamente para fazer a vontade
do Pai celeste. Mesmo quando essa vontade incluir a dor, o sofrimento e a renúncia da
nossa própria vontade. Pois, ao contemplar o seu sofrimento que estava preste a se
manifestar, em um momento de intensa angústia, Jesus orou da seguinte forma: “...
Pai, tudo te é possível. Afasta de mim esse cálice; contudo não faço o que eu quero,
mas sim o que tu queres” (Marcos cap. 14.36 – NVI).
Para Jesus, o mais importante no final da jornada de cada ser humano não é o quanto
ele conseguiu amealhar, ou quantos bens conseguiu acumular, ou quantos momentos
prazerosos conseguiu desfrutar, ou quantas conquistas conseguiu efetivar, ou ainda
quantas posições conseguiu galgar. Mas sim o que ele fez da sua vida; que tipo de
pessoa se tornou; o que fez com as pessoas à sua volta; o que fez com as pessoas
que o amam; que contribuição deixou para o bem-estar da raça humana; e qual rastro
deixou na sua caminhada. Isto, de fato, segundo os evangelhos, é o que define para
Jesus a felicidade. Felicidade centrada no “ser” e não no “ter”. E a diferença entre
essas duas lógicas não se trata apenas do choque de valores entre culturas diferentes
(oriental x ocidental), mas de acordo com Fromm é a “diferença entre uma sociedade
centrada em torno de pessoas e outra centrada em torno de coisas” (1982: 38,39).
91
4.2. TRANSFORMAR-SE EM ALGO TOTALMENTE ALIENANTE
Ao longo da história, o Cristianismo tem levado a pecha de instrumento de alienação.
Em alguns momentos, este rótulo foi um tanto quanto injusto; porém, algumas vezes
foi totalmente merecido. E isso porque as conformações históricas do cristianismo, em
muitas ocasiões, afastaram os fiéis da realidade social à sua volta, colocando-os em
mundo de ilusão.
No século XIX, por exemplo, devido às condições sociais perversas da Europa, nas
quais o trabalhador vivia uma situação um pouco melhor do que a do escravo, Karl
Marx rotulou o Cristianismo como o “ópio do povo”. Por que esse rótulo? Pelo fato do
Cristianismo da época, aliado a aristocracia europeia, ter desempenhado um papel
alienante, no que diz respeito a prometer um mundo melhor apenas para a vida Além
Túmulo, anestesiando assim as pessoas quanto à opressão social. Roubando-lhes a
condição de lutarem para a transformação da realidade opressora do presente. Era
praticamente o que ocorria com os usuários de ópio17 (droga mais usada na época).
Eles ficavam entorpecidos e anestesiados a qualquer tipo de dor. Tendo essa
realidade em mente, Marx cunhou sua célebre frase: “A religião é o ópio do povo”.
A partir dessa ideia, o teólogo contemporâneo Ricardo Gondim reflete sobre as
práticas de fé alienantes que a Igreja Evangélica Brasileira tem desenvolvido – no que
tange à alienação que a tendência capitalista da fé tem provocado. Ele diz que o
Movimento Evangélico está mais para a “cocaína do povo” do que para o ópio do
povo. Argumenta:
No ocidente, a proposta religiosa vem crescentemente se tornando mais parecida com outro tóxico: a cocaína. O Neoliberalismo, pai desse materialismo consumista tão bem expressado no fascínio pelos shoppings e pelas grifes, entorpece como o ópio. Por outro lado, a religião como é praticada hoje procura excitar e produzir sensações de poder parecidas com a da cocaína. Assim, o crente que frequenta os cultos da prosperidade recebe semanalmente uma injeção de cocaína espiritual no sangue, fazendo que se sinta o dono do mundo. Mesmo que apenas por alguns minutos de culto, sonham com tudo o
17
Droga extraída de uma planta denominada papoula, que afeta o sistema nervoso de quem consome, deixando-o em um estado de entorpecimento e anestesiados a qualquer tipo de dor real. Essa planta foi muito cultivada nas colônias inglesas da Índia e da então Birmânia, da qual era extraída a droga vendida aos chineses. Quando as autoridades do governo chinês decidiram reprimir o comércio ilegal do ópio, os ingleses entraram em guerra contra a China – a Guerra do Ópio (1840-1842).
92
que seus olhos gulosos viram as empresas de marketing anunciarem na televisão (...) E, depois de espoliados, são devolvidos à dura realidade da vida, obrigados a encarar a rebordosa da segunda-feira. Dependurados nos trens suburbanos ou numa fila burocrática sofrem tristes e deprimidos, assim como foliões do carnaval voltam para o seu destino na madrugada da quarta-feira de cinzas. Enfrentam sozinhos a dura realidade de que não são reis, nem rainhas, apenas subempregados, com a tarefa de viverem com um salário miserável (...) Por isso, fé e cocaína se parecem muito; dão uma falsa sensação de poder e geram pessoas artificialmente soberbas. Mas, a ressaca da cocaína, como da fé pós-moderna é horrível, pois vem sempre acompanhada de depressão e desengano (...) E se algum outro filósofo ateu afirmar que essa religião pragmática que se espalha no ocidente combina com o narcótico da moda, também seremos obrigados a concordar (2004: 40,41).
Esta longa e oportuna citação expressa muito bem o caminho que a fé evangélica tem
tomado nas últimas décadas, a saber, a trilha da alienação e, consequentemente, da
frustração. Onde as pessoas, através da negação, são levadas a fugirem de uma
realidade existencial, social e econômica da qual não querem admitir.
4.3. DESCARACTERIZAR O CRISTIANISMO DO SEU PERFIL REVOLUCIONÁRIO
Uma das marcas bem distintas da proposta de Jesus de Nazaré é justamente seu
caráter subversivo, no que se refere a uma postura de ruptura, de contestação e de
enfrentamento do “status quo” opressor. Podemos ver isso, por exemplo, na sua
apresentação de um “novo” Reino no qual Ele se diz Senhor. Talvez alguns entendam
esse discurso do Reino de Deus apenas como uma forma de expressão poética
utilizada por Jesus. Acontece que essa era uma declaração profundamente
comprometedora e que confrontava a autoridade opressora da época – o Império
Romano. Naqueles dias, Roma se constituía e se estabelecia como o maior poderio
político, militar, cultural e econômico. Apresentava-se como um reino “indestrutível”,
“eterno” e para o qual toda história deveria convergir. Todo esse poder era
reivindicado pelo senhorio absoluto dos césares – títulos atribuídos aos imperadores
que assumiam o trono. “Kúrios Kaiser”, ou “César é Senhor” significava lealdade
política exigida de um modo não muito diferente do “Heil Hitler” exigido durante os
anos de 1930 e início de 1940 na Alemanha nazista.
É nesse contexto que surge um anônimo carpinteiro judeu, sem credenciais, sem
posição social, sem um exército, sem uma milícia ou mesmo uma arma. Sem título de
nobreza ou riquezas. Sem nem mesmo um pedaço de terra ou casa própria. Tendo
93
como seguidores um grupo de homens igualmente anônimos e inexpressivos. Alguns
deles pescadores rústicos e iletrados. Acompanhado também por um séquito
considerável de mulheres que não tinham vez e não tinham voz – nem mesmo nas
mais desenvolvidas sociedades da época, como na polis grega. E esse judeu, com
esse tipo de seguidores, proclama um reino que prevalece não pela força das armas,
mas pela força do amor; que se caracteriza não pela opressão e privilégios, mas pela
liberdade e igualdade; que avança não pela violência e nem pelo o derramamento de
sangue, mas pela fé e pela justiça, como fermento na massa, como semente no solo.
Um Reino eterno que transcenderia o tempo e o espaço, do qual ele reivindica ser o
verdadeiro Senhor – “Kúrios Yeshua” ou “Jesus é o Senhor”. Por conseguinte, isso era
politicamente revolucionário pelo fato de dizer que há um poder em Jesus mais
importante do que o poder do líder da superpotência daqueles dias. Dizer que “Jesus é
o Senhor” era afirmar a autoridade de um rabino judeu sem nenhuma expressão, sem
poder, pobre e marginalizado, sobre o poder do próprio César com todas as suas
riquezas, status, exércitos, espadas, lanças, carruagens e cruzes.
Este perfil revolucionário de Jesus Cristo se revela não apenas perante o poder
político dos seus dias, mas igualmente diante do poder religioso. Podemos perceber
isso quando ele decide romper com as barreiras étnicas, morais e religiosas impostas
pelo judaísmo, acompanhando-se de prostitutas, publicanos18 e pecadores. Inclusive
fazendo refeições com eles19·. Ou mesmo quando ele curou alguns gentios20,
chegando a declarar que alguns deles exerciam uma fé maior que a dos judeus.
Esse tipo de comportamento e de declarações, na compreensão de John P. Méier,
incomodou a maioria dos grupos religiosos dos seus dias, como, por exemplo, os
fariseus. Estes “insistiam na completa separação entre judeus e gentios. Eram
provavelmente hostis a Jesus e não deviam entender porque ele comia na mesma
mesa dos impuros” (Super Interessante, n° 234, dezembro de 2006:88).
A outra maneira através da qual Jesus contrariou o sistema religioso dos seus dias foi
através das curas que realizou. De acordo com muitos historiadores e pesquisadores,
havia, naqueles dias, uma estreita ligação dos males do corpo (doenças) com os
males do espírito (pecados). Ou seja, a causa das doenças era atribuída aos pecados.
18
Fiscais do Estado romano que extorquiam os judeus nos impostos. 19
Ato considerado na cultura judaica como demonstração de intimidade e companheirismo. 20
Pessoas que não eram de Israel e professavam a religião pagã.
94
Isso, por sua vez, acabava favorecendo a elite judaica, pois a cura do corpo e da alma
passava pela mediação ritualística dos sacerdotes no templo em Jerusalém. Essa
casta sacerdotal detinha o monopólio de conduzir os fiéis aos rituais de purificação –
que, na época, incluía o sacrifício de animais, vendidos no templo para este fim.
Garantindo, dessa forma, uns trocados para os sacerdotes. “Afinal, para se curar, o
doente tinha que pagar mais taxas e oferecer mais sacrifícios no templo”, diz o
historiador John Dominic Crossan. “Isso gerava para o doente um ciclo interminável de
sofrimento e dívidas” (ibid, pág.88).
Portanto, não é difícil imaginar como os lideres religiosos judeus se sentiram
afrontados quando tomaram conhecimento de que um carpinteiro pobre e rude andava
curando (salvando) as pessoas das suas doenças com um simples toque, ou com uma
simples palavra, sem a necessidade de sacerdotes, de animais (sacrifícios) e de taxas
extras. “Hoje é difícil de entender como um ato desses era radicalmente subversivo”,
comenta o historiador Richard Horsley. A maioria dos pesquisadores concorda que
atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.
A postura revolucionária de Jesus, frente à religião de seus dias, caracteriza-se ainda
pela resignificação da concepção de Messias. Os judeus alimentavam a expectativa
da vinda de um messias que libertasse Israel da dominação política, militar e
econômica estabelecida pelos romanos. Na verdade, fazia séculos que lutavam contra
o domínio de povos estrangeiros. Antes dos romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles
haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e
ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca (Messias) forte,
vitorioso e conquistador como o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurou um
tempo de conquistas e de prosperidade para o povo de Israel. Esta expectativa,
misturada com nostalgia, tornou-se tão intensa ao ponto de produzir certa resistência
inútil, diga-se de passagem, à subjugação romana – o que seria equivalente em
nossos dias, mais ou menos, ao Iraque resistir à dominação norte americana. E essa
resistência aos romanos se dava por meio de vários movimentos, dentre os quais se
destacavam: os zelotes, que se apresentavam como um movimento messiânico
militarmente armado; os essênios, que esperavam o messias de forma mais pacífica,
reunidos em comunidades monásticas isoladas das “impurezas” dos grandes centros;
e os movimentos apocalípticos que o aguardavam através de uma intervenção
sobrenatural e iminente de Jeová. Todos estes grupos sonhavam com o dia em que
95
Deus enviaria o seu messias para trazer prosperidade, justiça e paz à região. Portanto,
aguardavam um messias forte, guevarista, vencedor, libertador e conquistador.
Mas, então Jesus se manifesta anunciando que Ele é o Messias Prometido e
esperado. No entanto, seria derrotado, condenado e morto pelo Império Romano,
provocando uma mudança drástica na compreensão messiânica, na qual se concebia
um herói com vitórias retumbantes, fantásticas e supra-humanas. A figura do Messias
é, então, redesenhada. Passando a ser, segundo Jung Mo Sung, caracterizado não
mais pelas suas vitórias, ou por proporcionar bem-estar político, econômico e social,
“mas sim pela sua fidelidade plena à missão recebida de Deus de anunciar a
dignidade radical de todos os seres humanos e em nome dessa verdade enfrentar até
à morte as forças idolátricas dos impérios”. (1998:41).
Diante disto não dá para conceber Jesus como aquela figura que geralmente é
apresentada na escola dominical, ou nas aulas de catequese. Aquele cara legal, fino,
gentil, calmo, frágil e que agrada a todos. Suas palavras e atitudes, como diz Brian D.
Maclaren, ”vão muito além das reivindicações de um típico sacerdote, poeta ou filósofo
– e até mesmo além das ousadas palavras de um profeta ou de um reformador
comum. Estas são as palavras e as atitudes fundamentais de um revolucionário, que
inspiram, provocam rupturas, aterrorizam, chocam e enchem de esperança; que têm
por objetivo derrubar a ordem estabelecida em praticamente todas as esferas
imagináveis” (2007:50,51).
A mensagem revolucionária de Jesus é percebida claramente nas suas reivindicações,
nas suas afirmações e na sua proposta de uma sociedade alternativa (Reino de Deus)
em um sistema opressor, que se considerava a única forma possível de mundo. Ela é
identificada na maneira como ele desconstruiu ideias religiosas que excluíam,
monopolizavam, alienavam e geravam nas pessoas falsas expectativas,
proporcionando, assim, uma leitura mediocrizada e amesquinhada do Reino de Deus,
reduzindo-o a um mero reino humano.
Indubitavelmente, o Cristianismo na sua essência é subversivo e revolucionário.
Principalmente quando se encontra diante de uma conjuntura social, política,
econômica e religiosa opressora, monopolizadora, alienante e que rouba da vida
humana sua dignidade.
96
Onde entra, neste caso, a descaracterização do Cristianismo promovido pela
tendência capitalista da fé evangélica? Quem melhor responde essa pergunta é o
teólogo católico Jung Mo Sung em seu livro Desejo, Mercado e Religião, no qual,
numa abordagem muito consistente, ele afirma que o Capitalismo sacraliza a injustiça,
a exploração, a desigualdade e o desejo ilimitado que se confunde com necessidade,
onde sempre falta e nunca sobra para partilhar. Legitimando assim a exclusão social,
o sofrimento dos desempregados e a fome de milhares como “sacrifícios necessários”
exigidos pelas leis do mercado (1998:98).
Por estas razões, o Capitalismo se constitui hoje como um sistema opressor, injusto,
alienante, desumano e que rouba das pessoas sua dignidade e seus diretos básicos.
Diante de tal sistema qual seria a postura de Jesus? De conformação ou de
contestação? Deixo com você a resposta.
Mas, talvez, alguém possa perguntar: como pode um sistema econômico
descaracterizar o Cristianismo? O que tem a ver economia com religião? E
especificamente com a religião evangélica?
Outra vez Jung responde esses questionamentos quando diz que é ingenuidade
pensar que a secularização das sociedades modernas aboliu a presença do sagrado
das esferas política e econômica. E que, o fato do fundamento da ordem social deixar
de ser tradicionalmente religioso, não significa que o novo fundamento (o Capitalismo)
não reivindique para si as características antes atribuídas à esfera religiosa e sagrada.
Segundo o referido autor, a dessacralização da sociedade moderna não pode ser
entendida como a eliminação do sagrado, mas apenas como um deslocamento de
eixo da esfera da Igreja para a esfera mercadológica (ibid, pág. 63,64). Inclusive, com
uma promessa de paraíso. Só que não mais como algo para além da história e
intermediado pela Igreja; e sim, como uma realidade dentro da história, resultado do
progresso, do desenvolvimento econômico, do acúmulo ilimitado das riquezas que
satisfarão todos os desejos. E tudo isso mediado pelo mercado, contendo ainda todo
um sistema sacrificial como nas religiões. Sistema esse que está escondido por trás
da cultura do consumo exacerbado. Sacrificando o meio ambiente; sacrificando os
valores humanos; sacrificando os mais fracos; sacrificando os mais pobres;
sacrificando os menos adaptáveis à concorrência. Esta lógica perversa acaba por
depredar a natureza, excluir e exterminar seres humanos. E tudo em nome do
“desenvolvimento econômico”. Ressaltamos que, como nos lembra Jung, a ciência
97
econômica não possui apenas o nível da operacionalidade, “mas ela possui também
implicitamente uma filosofia e, portanto, uma ética” (ibid, pág. 21).
É importante também destacar que existe toda uma cultura de insensibilidade gerando
certa conformação das pessoas a essa realidade opressora produzida pela “idolatria”
do Capitalismo. Vale a pena, mais uma vez, fazer uma longa citação do autor acima
mencionado:
Essa cultura de insensibilidade, que beira o cinismo, não nasceu e nem cresce por acaso. È fruto de diversos fatores históricos e sociais, além de outros de ordem antropológica (...) Existe, nas nossas sociedades, uma ideia da inevitabilidade das desigualdades e exclusões sociais (grifo meu). Esta tese recebeu um grande impulso com a queda do bloco comunista. Com a falência do modelo alternativo, a tese de que o Capitalismo, com sua ideologia neoliberal, representava o “fim da história” ganhou um impulso antes não imaginado. Com a disseminação da tese de que não há nenhuma alternativa possível, a atual situação social passou a ser vista como inevitável. Não só inevitável, mas também justa. Cresce entre nós o que Galbraith chamou de “cultura do contentamento”: a noção de que os “bem” integrados no mercado “não estão fazendo mais do que auferir o seu justo merecimento” (grifo meu) e que, portanto, “se a boa fortuna é merecida ou se é uma recompensa do mérito pessoal, não há justificativa plausível para qualquer ação que possa vir a prejudicá-la ou inibi-la – que venha a reduzir aquilo que é ou poderá ser usufruído”. O outro lado da moeda é que os pobres são vistos como culpados da sua pobreza e tendo justo merecimento (grifo meu). Assim, os atuais mecanismos concentradores e excludentes do mercado são vistos como “encarnações” de um juiz e de uma justiça transcendentais. Esta é uma versão secularizada da Teologia da Retribuição (grifo meu), “uma doutrina que é cômoda e tranquilizadora para quem possui grandes bens neste mundo, e ao mesmo tempo, consegue uma resignação com sentido de culpa dos que carecem de bens”, e que foi tão criticada por Jesus e pelos reformadores através da Teologia da Graça. Para ambientes mais eclesiásticos, existe a versão religiosa moderna da Teologia da Prosperidade – grifo meu. (ibid, pág.95,96).
É pertinente dizer que não se trata aqui de uma “demonização” do Capitalismo, pois
como diz Jung “não é possível, principalmente em sociedades complexas, organizar a
economia sem relações mercantis”. Mas, uma constatação do “processo de
absolutização, sacralização, de uma instituição humana que exige sacrifícios de vidas
humanas em troca de promessas redentoras” (ibid, pág. 99,100). Também não se trata
de uma apologia contra o progresso, e contra o desenvolvimento da economia, mas,
um protesto contra um programa de crescimento econômico voltado apenas para a
acumulação da riqueza nas mãos de uma elite, e não para a superação da pobreza,
98
possibilitando uma vida digna para toda a população. Cabe, nesse momento, uma
pergunta despretensiosa: seria possível um crescimento econômico que possibilitasse
a superação da miséria no mundo? Segundo o Relatório sobre o Desenvolvimento
Humano da ONU21, de 1997, a erradicação da pobreza no mundo tem um custo menor
do que muita gente imagina: em torno de 1% da renda global e não mais do que 2% a
3% da renda dos países não-pobres (ibid, pág.17). Estes recursos poderiam vir, por
exemplo, do corte nos bilhões de dólares gastos anualmente com as Forças Armadas
do mundo. Ou dos 25 trilhões de dólares movimentados com desenvolvimento
tecnológico – fator causador de muito desemprego. Ou ainda dos 15 trilhões de
dólares em torno dos quais gira o mercado financeiro, sendo que apenas uns 15%
deste total estão ligados ao sistema produtivo.
Contudo, o que mais preocupa é ver o Cristianismo, através do segmento evangélico,
conformar-se com toda essa lógica perversa e desumana do Capitalismo. A
“neopentecostalização” que vem ocorrendo nas igrejas evangélicas é um claro
exemplo dessa conformação, sobre a qual falamos continuamente neste livro. No
entanto, vale ressaltar a ideia da “retribuição” comentada por Jung no texto ainda a
pouco citado, que pode ser encontrada tanto no capitalismo, quanto na Teologia da
Prosperidade. Ambas fundamentadas em um “justo merecimento” de uma
concorrência, na qual somente os “mais capazes”, os “mais fortes”, os “mais
competentes”, os “mais perspicazes”, os que “mais investem (ofertam)”, os que “usam
melhor sua fé” obterão o lucro, ou, na linguagem evangeliquê, a “benção”. Isso acaba
sendo uma forma de legitimação e de sacralização dos privilégios de uma minoria.
Assim também como uma maneira de culpar as massas, excluídas das riquezas (ou
das bênçãos), pelo seu fracasso, digo, pela sua “falta de fé”. Entretanto, o Deus da
Graça não está por trás dessa lógica cruel de sofrimento, de injustiças, de privilégios,
de retribuição, de exclusão, de concorrência, de merecimento conforme o que se
investiu. A Graça de Deus significa: favor imerecido.
Lembramos ainda que, assim como no Capitalismo, essa tendência mercadológica da
fé evangélica deslocou o eixo da proposta escatológica do celeste porvir para as
benesses desfrutadas aqui e agora, em uma clara identificação com o paraíso
terrestre prometido pelo Capitalismo, no qual se desfrutará do desenvolvimento
21
Sigla pra designar a Organização das nações Unidas – fundada após a Segunda Guerra Mundial (1945) e que teve como objetivo instituir uma entidade de abrangência mundial, que pudesse intervir diplomaticamente na mediação de conflitos entre os países, evitando que as guerras viessem a ocorrer. .
99
econômico, e do acúmulo ilimitado das riquezas que, por sua vez, satisfarão todos os
desejos.
Pouco a pouco, Capitalismo e religião evangélica se confundem e se misturam ao
ponto de se tornar cada vez mais difícil distinguir um do outro. Consequentemente,
nós temos uma desfiguração do perfil revolucionário da mensagem de Jesus Cristo,
pelo simples fato do Reino que Ele veio trazer ser incompatível com as condições
desumanas, perversas, excludentes e opressoras desse tipo de “religião econômica”;
desse tipo de “tendência capitalista da fé”.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
inalizamos esse trabalho deixando bem claro que nossa intenção, abordando
a tendência capitalista da fé evangélica em Fortaleza nas últimas duas
décadas, não foi tecer uma crítica mordaz ao Movimento Evangélico. Muito
menos atribuir qualquer juízo de valores a essa nova maneira de expressão da fé
evangélica. Como bem lembra Max Weber, “não cabe a aquele que se dedica à
atividade da investigação acadêmica formular critérios valorativos últimos com relação
à sua pesquisa22”. Nosso propósito foi apenas poder contribuir com uma reflexão
sobre os rumos que Igreja Evangélica fortalezense tem seguido nos últimos anos,
procurando, assim, focar alguns aspectos. Primeiro, no que se refere ao aspecto
teológico, ajudar a identificar uma proposta extremamente capitalista e mercadológica
que se infiltrou, se instaurou e se escondeu de maneira intensa por detrás da teologia
cristã evangélica nos últimos anos. Já que é uma estratégia do sistema capitalista,
desde o seu início, utilizar-se de questões éticas e religiosas para se legitimar nas
suas injustiças, privilégios, exclusões e desigualdades. Em segundo lugar, quanto ao
aspecto sociológico, mostrar todas as influências sociais e culturais desse sistema
capitalista, o qual tem sido absorvido pela prática de fé evangélica (alguns setores da
Igreja), principalmente nos últimos vinte anos, e especificamente na cidade de
Fortaleza. E como resultado disso, chamar a atenção para a verdadeira vocação social
da Igreja de Jesus aqui na terra – que não é a de ensinar as pessoas como ser bem
sucedidas, ou como prosperar, mas como construir uma sociedade mais fraterna, mais
justa, mais humana para todos. Uma sociedade onde a economia deve existir em
função da vida de todas as pessoas, e não as pessoas em função de leis econômicas
cujo propósito é apenas a ostentação e a acumulação de riquezas.
E por último, tentar contribuir com uma análise histórica sobre a relação entre crença e
dinheiro no Ocidente; relação esta que tem se exacerbado em um mundo capitalista
como o nosso, do qual faz parte nossa cidade, e no qual a fé em Deus tem adquirido
feições – para alguns segmentos religiosos – cada vez mais consumista, individualista
e materialista.
22
CARVALHO, Alonso Bezerra de. Educação E Liberdade Em Max Weber. Ijuí – RS, Editora Unijuí. 2004, p. 269.
F
101
Espero que todo esforço empreendido nesse sentido tenha alcançado tais objetivos.
102
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Jornais Diário do Nordeste (02/02/2009)
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CAVALCANTE, George Sousa. Quanto vale a sua fé? A tendência capitalista da fé evangélica fortalezense nas últimas duas décadas. 1ª edição: Duque de Caxias: Espaço Científico Livre Projetos Editoriais, 2015.
ESPAÇO CIENTÍFICO LIVREprojetos editoriais
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Quanto vale a sua fé? Com esse instigante questionamento o autor George Sousa Cavalcante nos
convida a refletir sobre os intrincados (des)caminhos entre o capitalismo e o protestantismo. Em busca
de respostas percorre o universo de sua pesquisa: as igrejas evangélicas da cidade de
Fortaleza/Ceará. Nesse trajeto, dialoga com os sujeitos em foco, os fiéis que depositam sua fé na
chamada teologia da prosperidade. Admitindo ser este um cenário complexo e, portanto passível de
contradições e paradoxos o autor desvela o papel da mídia evangélica; o processo de mercantilização
da fé e as múltiplas e híbridas identidades em jogo. Leitura bem-vinda e necessária em tempos de
debates e embates político-religioso.
Vera Regina Rodrigues da Silva Professora adjunta no Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB- Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-brasileira. Membro do Grupo de Pesquisa Oritá e Coordenadora da Linha de Pesquisa
"Identidades e Políticas Públicas". Doutora em Antropologia Social pela USP - Universidade de São
Paulo (2012); Mestre em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006) e Bacharel
em Ciências Socias (2004).
O presente texto de George Cavalcante se alia a um grupo significativo de estudiosos da religião que
nestas últimas décadas buscaram explicar a performance e as transições no quadro religioso brasileiro.
Os leitores encontrarão nas páginas seguintes um conteúdo que une de um lado a análise sociológica
ancorada em categorias acadêmicas amplamente reconhecidas e em pesquisa de campo; mas também
identificarão a inserção de preocupações de inconfundível natureza teológica. De modo geral a
discussão das ideias aqui contidas se situa no campo de estudos da relação entre religião e economia,
tema, diga-se desde já, inspirou e desafiou os estudiosos da religião desde Max Weber. Se nestes
últimos anos os estudos sobre a religião no Brasil têm constituído um caminho amplamente percorrido e
em razão da soma de esforços tenha ficado como legado um acervo valioso de análise e contribuições,
sobretudo no campo empírico, o mesmo não se pode dizer acerca do protestantismo no Ceará e
particularmente de Fortaleza. Nesse aspecto o presente texto – Quanto vale sua fé? A tendência
capitalista da fé evangélica fortalezense nas últimas duas décadas consiste singular contribuição. O
texto possui uma linguagem agradável e amplamente acessível e, além disto, aborda um quadro
contemporâneo de interesse geral.
Alexandre Carneiro de Souza Atualmente é professor da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza, da Faculdade Cearense e da Faculdade
Farias Brito. Área de pesquisa: sociologia da religião com ênfase nas categorias: política, cultura,
pentecostalismo, mercado e transição religiosa. Doutorado em Sociologia pela UFC – Universidade Federal do
Ceará (2003). Mestrado em sociologia pela UFC - Universidade Federal do Ceará (1996). Graduado em Ciências
Sociais pela UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1990).
QUANTO VALE A SUA FÉ?
A TENDÊNCIA CAPITALISTA DA FÉ EVANGÉLICA FORTALEZENSE NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS
George Sousa Cavalcante