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QUANTO VALE O VALE-CULTURA? A PROPOSTA DE DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL VIA MERCADO Luiz Fernando da Silva Lamericas.org Maio de 2014

QUANTO VALE O VALE-CULTURA? A proposta … 4 Os limites do vale-cultura O vale-cultura é recebido pelos trabalhadores dentro do mesmo espírito de outros “benefícios sociais”

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QUANTO VALE O VALE-CULTURA?

A PROPOSTA DE

DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL VIA

MERCADO Luiz Fernando da Silva

Lamericas.org

Maio de 2014

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QUANTO VALE O VALE-CULTURA?

A proposta de democratização cultural via mercado

Luiz Fernando da Silva1

Introdução

No ano de 2013 apareceu com algum destaque nos meios de comunicação,

em especial nos jornais, entrevistas com a atual ministra da Cultura, Marta Suplicy,

sobre o vale-cultura instituído na Lei 12.761 que foi aprovada no Senado em

novembro e sancionada em dezembro de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff.

Com a lei foi instituído o Programa de Cultura do Trabalhador (PCT) (artigo 1). A

lei foi regulamentada em 2013 pelo decreto nº 8.084/20132.

O “vale-cultura” é opcional aos trabalhadores e empresas. Por essa razão, a

ministra Marta Suplicy realizou desde o ano de 2013 uma peregrinação em vários

estados, em audiências públicas, reuniões com entidades empresariais, e entidades

sindicais, no sentido de divulgar esse benefício social. Os principais argumentos são

os seguintes: a) possibilitará ao trabalhador o acesso à cultura por meio de sua

liberdade de opção sobre o que consumir em termos culturais, b) desta maneira,

ocorrerá a democratização cultural no país.

De fato, é forte e sedutor o argumento sobre a “democratização cultural”

por meio do acesso aos bens culturais que mais cintilem no “mercado cultural”.

Desta maneira, retira de cena que a “democratização” somente pode ocorrer com

investimentos públicos em equipamentos culturais e equipes de profissionais

preparadas nos quatro cantos do país.

Em diversos meios artísticos e culturais, como também em grande parte do

sindicalismo brasileiro, a proposta foi recebida com entusiasmo. Isso por uma

razão principal, esse setor sabe que a “cultura do vale” (vale refeição, vale

1 Docente de Sociologia, Sociologia da Arte e Cultura Brasileira na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus Bauru. Coordena o grupo de pesquisa “América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura”(CNPq) e o Portal Lamericas.org. 2 Esse decreto foi acompanhado das Instruções Normativas nº2, de o4 setembro de 2013, e nº 3, de 20 de setembro de 2013.

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alimentação, vale transporte), enquanto benefício social, apresenta-se para grande

parte dos trabalhadores brasileiros como direito social e trabalhista. Desta maneira,

ocorreria a ampliação de direitos sociais para os trabalhadores, na questionável

tecla de “cidadania” via consumo.

Na discussão sobre o vale-cultura, portanto, diversas dimensões precisam

ser elencadas, entre as quais: a) existe uma “cultura do vale” entre os trabalhadores

que considera importante o formato de “vale” como “benefício social” (salário

indireto); b) é recebido como instrumento de esperança (e ilusão) em diversos

setores culturais e artísticos porque descortina a possibilidade de atingir novos

públicos para seus trabalhos, uma vez que a estimativa do Minc propõe injetar

cerca de R$ 11 bilhões na chamada “economia criativa” (indústria cultural); c) é

uma “peça publicitária” do governo, no sentido de armar seu jogo político-

eleitoral de 2014; d) existe um falso pressuposto implícito na defesa do vale-

cultura sobre a democratização cultural via acesso ao mercado, que em termos

gerais acompanha a perspectiva neoliberal para a área cultural.

Sobre o Vale-Cultura

O benefício poderá ser oferecido pelas empresas com personalidade jurídica

que possuem vínculo empregatício formal com seus funcionários, ou seja, regido

pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) - e que fizerem a adesão ao

Programa Cultura do Trabalhador junto ao Ministério da Cultura. Em

contrapartida, o Governo Federal isentará as empresas dos encargos sociais e

trabalhistas sobre o valor do benefício concedido, e ainda, irá permitir que a

empresa de lucro real abata a despesa no imposto de renda em até 1% do imposto

devido.

São R$ 50,00 mensais distribuídos na forma de um cartão magnético aos

trabalhadores que ganham entre 01 e 05 salários mínimos. De acordo com a Lei

do Vale-Cultura, a empresa cobre R$ 45,00 (95%) e do trabalhador poderá ser

descontado até R$ 5,00 (10%). Esse cartão tem validade em todo território

nacional, e possibilita acesso do público ao teatro, cinema, museus, espetáculos,

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shows, circo ou compra de CDs, DVDs, livros, revistas e jornais. O Vale também

poderá ser usado para pagar a mensalidade de cursos de artes, audiovisual, dança,

circo, fotografia, música, literatura ou teatro. Ele é de caráter cumulativo.

Não são beneficiários dessa lei os assalariados sem registro em carteira,

aposentados, pensionistas, servidores públicos, trabalhadores informais e

desempregados.

O mecanismo do Vale-Cultura acompanha os procedimentos do Programa

de Alimentação do Trabalhador (PAT), onde se encontra o vale-alimentação e o

vale-refeição. A diferença é que no PAT a empresa pode abater até 4% do Imposto

de Renda e 100% do que foi gasto com o benefício.

Para administrar esse mecanismo são utilizadas muitas empresas operadoras

que já realizam atividade no PAT. Elas serão responsáveis por disponibilizar os

cartões magnéticos aos trabalhadores, como também articular a rede comercial

que possibilite a viabilização do sistema. No contrato com a empresa operadora

tem o chamado “custo operacional” que a empresa contratante deve pagar, mas

que depois também é abatido no imposto de renda como “gastos operacionais”3.

A maior empresa operadora no país é a francesa Sodexo que há 14 anos

realiza operações em torno do vale-refeição e vale-alimentação. Em seu Portal, ela

apresenta o Vale-Cultura como mais um benefício ao trabalhador. Ao observarmos

os municípios na rede comercial da Sodexo, inúmeras empresas já estão

cadastradas para operarem com o vale-cultura. O exemplo da Cidade de São Paulo

é ilustrativo, embora poderíamos utilizar outras cidades e Estados. Na listagem de

comércio na cidade paulistana já constavam mais de 150 empresas, no final do

ano passado. Essas empresas estão concentradas principalmente na área de livros

(Saraiva, Cultura etc.), cinemas e megastores de vendas de CDs e DVDs. Livrarias

e salas de cinema, na atualidade, concentram-se nas regiões centrais da Cidade e

em alguns shoppings localizados em regiões periféricas que se transformaram em

regiões de classe média. Em outras palavras, não existem cinemas, livrarias e casas

de espetáculos nas regiões periféricas das cidades brasileiras!

3 Vide artigo 5º da Lei 12.761 e Instrução Normativa nº2/2013 do Minc.

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Os limites do vale-cultura

O vale-cultura é recebido pelos trabalhadores dentro do mesmo espírito de

outros “benefícios sociais”. A “cultura do vale” (vale-refeição, vale-alimentação,

vale-transporte) consolidou-se no país. Ao procurarem emprego, além dos salários

diretos os trabalhadores querem saber do salário indireto que lhes é

proporcionado por meio do vale. Atualmente se alguém criticar o vale-

alimentação ou vale-refeição será hostilizado imensamente. Possivelmente,

ocorrerá o mesmo com o Vale-Cultura.

De qualquer maneira, o governo e sua base política e sindical construiram a

necessidade do “vale-cultura” na consciência dos trabalhadores, especialmente

tornando-o como item de pauta de negociação salarial, no caso dos sindicatos.

Até o momento, quem está preocupado com o vale-cultura são os setores sindicais

e base política governista, e políticos envolvidos com o tema. Outro setor

envolvido são aqueles que esperam captar fatias dos R$ 11 bilhões que, de acordo

com o Minc, a médio prazo circularão no “mercado cultural”. É a indústria cultural

com seus diversos produtos, com produção editorial, cinema, CDs e DVDs, por

um lado; e, por outro lado, as companhias circenses, os grupos de teatro, música

e dança.

Possivelmente, a necessidade comece a se incorporar entre segmentos da

classe trabalhadora a partir da intensificação da publicidade institucional. Também

em ação estarão a multiplicação de setores sindicais que apresentarão a

reivindicação em dissídios coletivos.

A reação será muito diferenciada por setores empresariais e por parte dos

trabalhadores. Muitas empresas já se incorporaram no sistema. Em outras

empresas onde existe maior poder de organização sindical faz parte da pauta de

negociação a questão do vale-cultura. Mas parte considerável de trabalhadores,

especialmente de micro, pequenas e mesmo médias empresas, onde se concentram

níveis salariais entre 01 e 03 salários mínimos, não terá essa facilidade de

incorporação ao sistema. Isto porque é exigência da lei que a isenção fiscal somente

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ocorrerá para as empresas que declarem o imposto de renda sobre o lucro real, e

não sobre o lucro estimado.

De fato, o que é divulgado como um direito social, na realidade opera com

diversos níveis de exclusão da classe trabalhadora. Pois além de excluir na prática

uma parcela de trabalhadores de micro e pequenas empresas, excluirá também

aposentados, assalariados sem registro em carteira profissional, desempregados e

trabalhadores informais.

Em audiência pública na Assembléia Legislativa de São Paulo, em meados de

2013, Marta Suplicy afirmou que a meta seria atingir cerca de 375 mil empresas

no país que somam aproximados 18,8 milhões de trabalhadores que ganham

entre 01 e 05 salários mínimos. Desse universo, cerca de 200 mil empresas

localizam-se na região Sudeste (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito

Santo) com um total de 11 milhões de trabalhadores. No entanto, são muitas as

dificuldades para implantar essa lei nas empresas. Parte considerável das empresas,

localizadas fora da região Sudeste, não faz declaração do Imposto sobre o lucro

real. Por outro lado, no universo mencionado, uma quantidade de empresas

funciona com poucos trabalhadores (01, 02, 03...), ou seja, empresas micro ou

pequenas; nestes casos dificilmente terão condições de arcar com tal despesa.

Não existe uma nítida avaliação por parte do governo sobre se a Lei irá

vingar no próximo período. O que existe de concreto, de acordo com entrevista

da ministra no Valor econômico (26/02/2013), é que no ano de 2014 o Minc

pretende atingir 1 milhão de trabalhadores, o que significaria aproximados R$ 300

milhões injetados na área cultural (“economia criativa”, de acordo com o Minc).

De início, muitas serão empresas estatais que estão respondendo mais prontamente

ao vale-cultura. Nesse universo empresarial concentram-se especialmente as

estatais e na região Sudeste. Portanto, o universo de empresas talvez termine se

localizando em trabalhadores de grandes empresas privadas e estatais, e em menor

proporção médias empresas.

A dificuldade de sua implantação nas regiões Norte e Nordeste é manifestada

por Marta Suplicy. Neste momento, as empresas receptivas ao Vale-Cultura

concentram-se na região Sudeste, especialmente empresas estatais e grandes

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empresas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, em menor proporção na

região Sul.

A questão política envolvida

Depois de tramitar por três anos no Congresso Nacional, a aprovação do

Vale Cultura (Programa Cultura do Trabalhador) deveu-se à negociação política

que a então senadora Marta Suplicy realizou com Dilma Rousseff e Lula, para

concretizar seu apoio ao candidato petista Fernando Haddad à Prefeitura de São

Paulo. Nesse momento, a Cultura entrou como moeda de troca. Marta seria

beneficiada com um ministério que teria verba duplicada e holofote midiático

constante por meio dos projetos de lei que seriam aprovados na área. O Ministério

da Cultura (Minc) seria um ótimo ministério para Marta, pois atenderia suas

exigências: duplicação do orçamento; gestão do executivo para aprovar projetos

em tramitação no Congresso; abertura do trabalho em São Paulo, tendo como

pivô um secretário da cultura que lhe fosse próximo. Marta Suplicy pretendia

disputar as eleições para o governo do Estado de São Paulo, em 2014; condição

que lhe foi frustrada, em razão da definição da candidatura do ex-ministro da

Saúde, Alexandre Padilha como candidato pelo PT ao governo de São Paulo.

Esse tipo de condução política na Área da Cultura não é algo excepcional

nos últimos dez anos, uma vez que essa Área erve como vitrine eleitoral. Esse foi

o traço principal do Ministério da Cultura, nas gestões de Gilberto Gil e Juca

Ferreira, que agora foi retomado por Marta Suplicy.

No caso de Marta é bem verdade que ela explorou até o momento à

enésima potência o que já era o Minc. A determinante principal no processo do

vale-cultura é facilmente percebida pela quantidade de aparições que a ministra

teve na mídia, especialmente nos jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais, no ano de 2013. Marta tem realizado um périplo de fazer inveja a qualquer

maratonista. Na região sudeste, reuniu-se com as federações de comércio e

indústria para discutir o Vale-cultura e, inclusive, como vai ficar a Lei Rouanet com

o projeto de lei Procultura, em tramitação no Congresso Nacional. Destacam-se

nesse périplo as reuniões com a FIESP e a Federação do Comércio.

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Existe uma base social muito grande ligada à área da cultura: grupos teatrais,

de dança, música, grupos circenses, além dos grupos culturais ligados ao gigantesco

Programa Pontos de Cultura. É uma base social que será “militante eleitoral”, nas

eleições em vários municípios e Estados. Com poucos recursos orçamentários,

muitas ilusões e expectativas, o governo conseguiu canalizar e acender ilusões em

diversos setores corporativos das áreas culturais e artísticas. Através das leis e

projetos de lei no setor cultural também canaliza uma imensidão de jovens em

várias partes do país, por meio principalmente das propostas de Pontos de Cultura.

Por outro lado tem conseguido neutralizar os setores críticos minoritários, pois

até o momento não existe um programa de cultura crítico e alternativo às

propostas da Frente Popular.

A Frente Popular via Minc não criticou ou questionou em nenhum momento

a Renúncia Fiscal via Lei Rouanet. Pelo contrário, transformou-a no principal

mecanismo de financiamento cultural no país, duplicando a isenção em relação ao

período FHC. Isso vai seguir com o projeto de lei nº nº 6722/2010 - Programa

Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura). O vale-cultura, embora

mantenha independência constitucional, encontra-se dentro do Procultura. Essa

PL visa realizar alterações na atual Lei Rouanet, ”modernizando-a” como diz

Marta Suplicy, mas mantendo sua essência. No artigo 2º do referido projeto está

escrito o seguinte: “ O Procultura será implementado por meio dos seguintes

mecanismos, entre outros: I - Fundo Nacional da Cultura - FNC; II - Incentivo

Fiscal a Projetos Culturais; III - Fundo de Investimento Cultural e Artístico - Ficart;

e IV - Vale-Cultura, criado por lei específica.” (PL 6722/2010).

O falso pressuposto da democratização cultural via mercado

Com o Vale-Cultura, a ministra da Cultura alardeia aos quatro cantos que o

trabalhador terá a opção de escolher o que mais vai lhe satisfazer. Para ela seria

uma inversão do que até hoje foi realizado com os incentivos culturais, pois a

partir de agora o que determinaria a produção cultural seria a “demanda” e “não

mais a oferta “de determinados produtos e serviços”. Isso é uma grotesca

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falsidade. O que ela está dizendo é que a democratização cultural vem por meio

do mercado! É o mesmo princípio neoliberal que até agora acompanha a Frente

Popular, com um grau de sofisticação superior ao período FHC.

O pressuposto implícito na defesa do vale-cultura é o da democratização

cultural. Com o vale-cultura o trabalhador teria a “opção e liberdade” de escolha

daquilo que ele quer consumir via mercado. Ou seja, no argumento de defesa do

vale-cultura a idéia central é que a democratização cultural pode ocorrer através

da liberdade e possibilidade de consumo no mercado (da indústria cultural). Esse

argumento não é estranho à Frente Popular pois é isso que ela vem defendendo

nos últimos 11 anos. Para a Frente Popular a democracia social ocorreria por meio

do acesso da população ao consumo: eletrodomésticos, roupas, computador,

carro, casa, educação e, na linha final, cultura. Secundariza a discussão sobre a

oligopolização da indústria cultural e meios de comunicação de massa, como

também secundariza a discussão sobre a concentração de equipamentos culturais

nas regiões centrais das capitais e nas regiões Sul e Sudeste do país, além da

discussão sobre a privatização de equipamentos culturais no país. Em seu lugar

apresenta o argumento do acesso ao mercado cultural. A democracia ocorreria,

como os teóricos estadunidenses da década de 1950 afirmavam, por meio da

possibilidade e liberdade de consumo.

O problema do Vale-Cultura é a renúncia fiscal, mas não somente. Também

não é somente porque exclui dessa lei os aposentados, pensionistas, servidores

públicos e assalariados sem registro em carteira profissional, trabalhadores

informais e desempregados. Também não é somente o problema de que, na

prática, o Vale-Cultura vai atingir, na melhor das hipóteses, no máximo 5 milhões

de trabalhadores que ganham entre 01 e 05 salários mínimos, mas não atingirá

18.8 milhões de trabalhadores, nem próximo disso. O problema de fundo é que a

democratização cultural não ocorrerá via mercado.

As ditas “opções” por meio da “demanda” não pela oferta, me parece uma

falácia que necessita questionar. Márcio Poshmann (professor de economia da

Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -

Ipea), chegou a dizer que os trabalhadores poderão escolher via demanda e não

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mais ficarão submetidos ao que a Lei Rouanet lhes impõe. Se concordássemos

(não concordo) com a tal democratização cultural via mercado, ainda assim seriam

inúmeras as debilidades da Lei. São reduzidas as alternativas e opções de escolha.

Quantas livrarias têm nas regiões periféricas? Quantas salas de cinema, teatro e

dança? Nos cinemas, quais de fato são as opções de produção cinematográfica?

Existe uma enorme massificação da produção hollywodiana que invade

literalmente as salas de exibição, seja nas regiões centrais das capitais ou nos

shopping centers. Todos conhecem a rede Cinemark e sabemos o que ela significa.

Cultura como mercadoria não é “alimento da alma”. Existe um equívoco e

fetichização sobre a dimensão cultural. Esta se apresenta como fenômeno da

indústria cultural que se encontra à disposição no mercado. Por outro lado, chama

a atenção apresentá-la como demanda de um produto como outro qualquer. No

tal “mercado” apresenta-se uma série de produtos que o trabalhador terá a

“opção” de escolher, dentro de suas possibilidades. Quem acompanha a discussão

sobre a construção de necessidades, compreende que os meios de comunicação e

publicidade impõem o padrão estético (gosto, sensibilidade e apuramento). Não

é necessário mais do que um exemplo. Basta citar os brinquedos, a moda e os

alimentos voltados para o “nicho” infantil, tão publicizados pelos meios de

comunicação. As formas de violência, individualismo e futilidades que são

incorporados no cotidiano das programações das Tvs abertas é outra amostra

desta lógica. Que opções de fato o trabalhador e sua família têm?

A questão cultural não é diferente dos exemplos anteriormente

mencionados. O problema não é sobre a liberdade de opção e escolha porque, na

atualidade, a publicidade e a indústria cultural impõem quais opções devem ser

escolhidas!

Quais são as propostas então?

A “cultura do vale” está impregnada entre os trabalhadores como dimensão

importante das relações trabalhistas. Assim ocorre com o vale-refeição, vale-

alimentação e vale-transporte. São incorporados pela população como direito

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social e trabalhista. Neste sentido, é possível que movimento semelhante ocorra

com o “vale-cultura”. De qualquer maneira, importa destacar os limites dessa

proposta no sentido de possibilitar a “democratização cultural” no país. Isso é uma

afirmação falsa, em razão dos motivos que já expusemos.

As propostas que são apresentadas abaixo não estão em discrepância com os

argumentos que até agora foram explorados neste texto. Como eixo dessas

propostas encontra-se a seguinte tese: O vale-cultura não possibilita a

democratização cultural, pois esta somente ocorrerá com o Estado, em uma

perspectiva democrática e social (não dirigista ou autoritária), ampliando

equipamentos públicos, equipes profissionais preparadas e possibilitando a

produção, circulação, fruição e experimentação artísticas e culturais com acesso

gratuito para a classe trabalhadora, juventude e população em geral, nas regiões

periféricas e centrais das capitais e grandes cidades, como também nas diversas

regiões do país. No entanto, embora o vale-cultura não sinalize nessa direção, ele

pode se incorporar como direito e benefício social para os trabalhadores. Neste

sentido, cabe compreender o limite do vale-cultura nele próprio e ultrapassar suas

limitadas perspectivas, com as seguintes propostas:

Não seja excludente, mas sim um direito social universal, portanto

atinja todos os trabalhadores, inclusive aposentados, servidores

públicos, assalariados sem carteira assinada, trabalhadores informais,

desempregados e estudantes em geral.

Só vale quando o trabalhador tem de fato uma real possibilidade de

escolha. Para isso, é necessário rede de equipamentos culturais

descentralizados para as regiões periféricas onde se localizam e

trabalham a maior parte dos trabalhadores. Salas de cinema, teatro e

música, em formato de centros culturais com bons e aparelhados

equipamentos e equipes de profissionais que possibilitem a

apresentação da diversidade estética e artística, nacional e

internacional, com ingressos gratuitos ou baratos.

Deve privilegiar a rica diversidade cultural e artística (grupos teatrais,

dança, cinema, espetáculos circenses etc.); não deve estar

condicionado (limitado) aos produtos da indústria cultural

monopolista, ao exemplo da Abril Cultural, Rede Globo e outros.

O vale deve acompanhar os reajustes salariais e inflacionários de cada

período. Além disso, não deve estar ligado a nenhum esquema de

isenção ou renúncia fiscal, como é a proposta de abatimento de até

100% dos gastos da empresa com o benefício. Mas sim deve ser um

subsídio público.

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Considerações finais

Neste texto procurei dimensionar aspectos principais do que significa a Lei nº

12.761,de 27.12.2012 , que cria o Vale-Cultura. Além disso aponta os limites dessa

proposta no sentido de “democratização cultural” no país. Essa democratização

somente se torna possível com políticas culturais públicas que enfrentem o

problema estrutural da carência de equipamentos culturais e equipes de

profissionais em parte significativa do território nacional, que permita o fluxo de

produções artístico-culturais e o acesso aos trabalhadores, juventude e população

em geral. Por último questiona a idéia de liberdade de opção que essa lei venha a

oferecer, uma vez que a estrutura da indústria cultural está hegemonicamente

monopolizada.