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Quatro cabeças

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UMA HISTÓRIA MARCADA POR AMBIÇÃO, CINISMO, TRÁFICO DE DROGAS E MUITO, MUITO DINHEIRO. Quatro Cabeças conta a trajetória de quatro amigos que vivem no Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1980 até os dias atuais. Trabalhando rotineiramente num hotel de luxo, um acontecimento inesperado os coloca à frente de muita grana. Surge então a oportunidade de transportar drogas entre dois países. A ideia é acolhida pelo grupo mas, aos poucos, tudo pode fugir do controle... Com inúmeras situações inusitadas, valores morais postos à prova e a lealdade que respinga no atrevimento alheio, Quatro Cabeças se constrói através de um emaranhado de fatos que se entrelaçam e surpreendem – a página seguinte pode ser a explicação do capítulo anterior. Aqui tudo é o que parece e nada é decapitado sem propósito.

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Quatro Cabeçasum pesadelo vivido

alexandre campos

São Paulo. 2013

coleção novos talentos da literatura brasileira

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Copyright © 2013 by Alexandre Campos

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Coordenação editorial

diagramação

Capa

preparação

revisão

Nair FerrazDimitry UzielMonalisa MoratoAndrea NobreCintya Milanez

DaDos InternacIonaIs De catalogação na PublIcação (cIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catalogo sistemático:1. Ficção : Literatura Brasileira 869.93

2013impresso no brasilprinted in brazil

direitos cedidos para esta edição à novo século editora ltda.

cea - Centro Empresarial Araguaia IIAlameda Araguaia, 2190 - 11º Andar

Bloco A - Conjunto 1111CEP 06455-000 - Alphaville - SP

Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

[email protected]

Campos, Alexandre Quatro Cabeças : um pesadelo vivido / Alexandre Campos. -- 1. ed. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira)

1. Ficção brasileira 2. Ficção de suspense I. Título. II. Série

13-04909 CDD-869.93

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D e D I c a t ó r I a

Aos meus pais, Milton e Vinicius. Aos meus irmãos, Rafael, Daniel e Pedro e, em especial, a minha mãe Berenice Souto Campos e a minha avó Maria Letice Souto Campos, que nunca deixaram de acreditar.

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a g r a D e c I m e n t o s

Aos meus padrinhos, Virginia e Sergio; aos tios, Vera, Marcio e Jeferson; e aos primos Marcio e Henrique pelo comprometimento, confiança e ajuda. Esse agradecimento se estende a todos os tios, primos, sobrinhos e agregados das famílias Campos, Franco e Duarte.Agradeço ao empresário e amigo Marco Medina, uma pessoa gentil e participativa.A empresária Lívia Gimenez, por sua praticidade e cooperação.A professora Emi Aparecida Macedo, por toda a sua sabedoria, e ao jornalista Gilson Monteiro por sua impecável dedicação.A roteirista Yoya Wursch, que debruçou sobre o projeto toda a sua experiência.E não poderia deixar de agradecer a todos os meus inseparáveis amigos, em particular, Antonio Decchache, Leandro Klem, Marcos Porto, Ricardo Roale e Thiago Belli que tiveram a paciência e o carinho de me ajudar neste projeto.As eternas amigas, Anna Federici, Lizie Sass e Luna Motta, chamas que não se apagam.E, finalmente, a Editora Novo Século, que continua acreditando em Novos Talentos.

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abril, 2002

O outono sempre foi minha estação predileta. A que-da da temperatura e o céu limpo, como o de verão, são ótimos anúncios de uma nova manhã. As folhas das árvores ganham cor, iluminando com brilho natural o caminhar pelas ruas. O clima fica mais ameno instigando as pessoas uma melhor con-vivência; vide o nosso intenso verão. Com isso, os que passam, nas ruas, parecem distribuir sorrisos para os encantos da natu-reza e para seus próprios encantos, uma vez que estes refletem no indivíduo ao lado. Nessa época, os cariocas se curvam à nova estação, que parece nos dar sobrevida após meses de calor in-tenso.

Quando escolhi aquela sexta-feira para negociarmos com Paolo a compra de sua fazenda no Rio Grande do Sul, não podia imaginar que, justamente naquele dia, o termômetro ba-teria todos os recordes. Em doze anos, nunca havia feito tanto calor como naquela tarde de maio, diziam os meteorologistas.

Daniel queria que a reunião com o italiano acontecesse em alguma suíte de hotel, e não no Forte de Copacabana, a céu aberto, como quis o gringo. Já que nosso líder não queria saber de outra fazenda a não ser aquela, não tínhamos saída.

• • •

Apesar de ser nascido e criado no Rio de Janeiro, nunca

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tinha visitado o local em que Paolo havia marcado o encon-tro. Acho que, como a maioria dos que moram em cidades com grandes ou importantes monumentos, eu não fazia muita ques-tão de conhecer lugares turísticos justamente por saber que dali eles não se moveriam. Como um bem particular que se encon-trava em minha propriedade.

A obra do Forte de Copacabana, que ocupa uma das extremidades da praia de mesmo nome, teve início cinco anos antes de sua inauguração, que ocorreu em 1919. Os canhões instalados são de tiros rápidos e de alcance longo, comparados aos da época. Os disparos costumavam ser anunciados pelo som de uma sirene para que os habitantes locais tivessem tem-po de abrir suas janelas para que os vidros não trincassem. Hoje os frequentadores do Forte buscam lazer, inspiração, cultura e marcam encontros e até festas de casamento no local.

Naldo acelerava a Mercedes classe S blindada, pela orla, cortando os carros à nossa frente em função do horário marca-do. Era possível escutar as sacolas, com duzentos e cinquenta mil reais cada uma, deslizar de um lado para o outro no porta--malas do carro. Eu estava esparramado no banco de trás meio disperso, enquanto André tentava me mostrar algum tipo de imagem em seu celular. Pouco interessado, eu concordava com o que ele dizia por não me dispor a conversar. Sentado na fren-te, Daniel nos lembrava de que chegar atrasado a um encontro é inadmissível. É como perder credibilidade antes mesmo de mostrar a que veio.

Naldo largou o carro no Valet Parking de um hotel bem próximo ao compromisso, e nós quatro saímos do carro. O ca-lor estava insuportável e nossas roupas não nos facilitavam em nada. Estávamos vestindo camisas sociais para fora e calças de linho que combinavam com os sapatos finos de bico longo que calçávamos.

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– Esse gringo filho da puta foi marcar a porra da reu-nião num lugar sem ar refrigerado nesse calor do caralho. Você que é o único que já esteve com ele podia tê-lo convencido do contrário. – Daniel apoiou sua mão direita em meu ombro e não parou de reclamar.

Atravessamos a rua debaixo de um sol quente e pro-curamos uma mesa no bar. Naldo tomou a frente e, como de costume, colocou uma nota de cinquenta na mão do garçom, que nos disponibilizou uma mesa na sombra, sob um toldo, em menos de um minuto.

Faltavam cinco minutos para o horário marcado e nem sinal do italiano. Daniel não parava de falar e gesticular sobre a alta temperatura. Naldo colocou sua pasta com os documentos necessários para a compra da propriedade em cima da mesa e fez sinal para o garçom que, nesse momento, parecia nosso me-lhor amigo.

– Naldo, ninguém vai pedir nada ainda. Vamos deixar o cara chegar e então pedimos todos juntos – disse Daniel.

– Por quê?– Por respeito a ele. – Com a resposta na ponta da lín-

gua, ele devolveu de bate-pronto.– Mas a gente nem conhece o cara ainda – disse André,

entrando no papo.– Respeito não é algo que se dá em troca de alguma coi-

sa. Você se dá ao respeito para merecer o mesmo em troca. – Com o intuito de continuar a explicação, ele quase completou o pensamento, não fosse a estranheza de seu olhar. – Se você não... puta que pariu! Só não me fala que aquele cara vindo em nossa direção é ele.

– É ele mesmo. – Virando a cabeça na direção apontada, eu confirmei a pergunta.

Paolo, como quase todo italiano, vestia-se de modo a

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causar espanto ao nosso costume. Ele estava com calça jeans azul, camisa de botão preta colada ao corpo e com a grande fivela de seu cinto Dolce & Gabbana para fora. Uns óculos es-curos de aviador tapavam metade de seu rosto e gel nos cabelos espetados completava aquele estranho figurino.

– Já não gostei desse cara.– Relaxa, cara, na Itália é assim mesmo. Eles se acham

fashion, é só isso. – Terminei de falar e levantei-me para cum-primentá-lo. – Ciao, Paolo.

Paolo estava acompanhado de seu advogado. Apresen-tei-os a todos e sentamo-nos ao redor da mesa. Naldo fez o sinal para o garçom nos atender. Ele pediu uma água de coco e eu o acompanhei no pedido. O advogado do gringo pediu uma água com gás, enquanto André e Daniel pediam uma vodca – tôni-ca. Paolo, por sua vez, pediu um café, para a surpresa de meu irmão, que se aproximou de mim e cochichou ao pé do meu ouvido.

– O filho da puta vai beber café, está fazendo sessenta graus!

– Relaxa, se não vai ser brabo, hein! – respondi-lhe.Antes que o garçom levasse os pedidos ao balcão, ain-

da acrescentei uns aperitivos e mandei-o não nos importunar mais, depois que nos viesse servir.

Daniel então começou a falar e eu, simultaneamente, traduzia tudo. Naldo tirava os papéis da pasta e os passava ao advogado do dono da fazenda. O garçom trouxe nossos pedidos e se retirou. Minuto a minuto, Daniel passava a mão na testa para secar o suor, e era visível a vontade de sair dali o mais rá-pido possível. A negociação substituiu a conversa informal dos primeiros dez minutos e, pouco a pouco, chegávamos a um nú-mero de consenso. Daniel, como de costume, não interrompia quando estava escutando nem deixava que o interrompessem

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na conversa. Foi ágil, colocando todo o seu fulgor na mesa de negociação. Parecia ter nascido para fechar negócios a seu favor.

Fechamos o negócio em seis milhões e meio. Pagaría-mos em seis parcelas nos seis meses seguintes, fora a entrada de meio milhão de reais, no ato. André se levantou com o advo-gado do italiano e foi até o carro de onde tiraria as duas sacolas esportivas com o dinheiro. Qualquer troca de dinheiro era feita à luz do dia para não levantar suspeitas. Tudo muito claro aos olhos de quem estivesse passando pela rua. Daniel odiava mar-car encontros em lugares escuros ou apertados onde a chega-da de alguém poderia conturbar os ânimos, gerando uma série de reviravoltas. Ele gostava do calor humano e ficava tranquilo quando sabia que bem perto havia uma patrulha da polícia ou algo parecido. Ele fazia questão de ridicularizar o protocolo.

Após dez minutos, eles retornaram à mesa, assinaram os papéis e depois de alguns dias, no cartório, a fazenda seria nossa de uma vez por todas.

Despedimo-nos após quase uma hora de reunião, Paolo junto com seu advogado foram embora.

– Preciso ir ao banheiro – disse Naldo.– Eu vou até o bar tomar mais um drinque. – Levantando-

-se, Daniel expressou sua vontade.Junto com André fomos os três em direção ao balcão do

bar, pedi mais dois drinques iguais aos que eles consumiam e um chope para mim.

– Por que tinha que ser exatamente essa fazenda, Daniel? – perguntei.

– Essa fazenda fica num lugar estratégico, localiza-se a menos de cinco quilômetros do porto do Rio Grande do Sul e, durante o percurso, não tem nenhuma barreira policial. Eu não quero mais esperar na restinga para depois levar à Urca e de lá até o porto do Rio para só então mandar tudo para a Europa

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como sempre fizemos. Se nós mandarmos do Sul do país até o porto daqui, e apenas trocarmos de embarcação, é bem melhor. Sem contar que ainda corremos menos risco.

– Vamos chamar mais atenção também – afirmou André.– Nem tanto. Eu vou contratar umas quatro pessoas para

limpar a casa e tomar conta do jardim toda semana. Na semana que não houver entrega, a casa será usada para excursões esco-lares. Ainda vão me agradecer por não cobrar nada pelo lazer, em todo aquele espaço. Vou mandar construir duas quadras po-livalentes e um açude. Do outro lado da fazenda, vou construir um haras para André lavar dinheiro com cavalos de raça. Eu vou com Suzanna uma vez ou outra como se esse fosse um projeto dela. Com excursão escolar e projeto social de alguém como Su-zanna ninguém vai desconfiar de nada. – Bebeu o resto do drin-que e fez o gesto para que o servissem novamente. – Os cami-nhões vão descarregar tudo lá dentro, de quinze em quinze dias.

– Eles vêm com café também? – perguntei.– Não, café só é bom para exportar para a Europa. Aqui

eles usam, entre outras coisas, toras de madeira.– Vem dentro da madeira na carreta? – Quis saber dos

detalhes.– Geralmente vem embaixo da madeira, no fundo do

caminhão.– Passa tranquilo?– Claro! Se tirar sacos de cimento ou de arroz já é difí-

cil, imagina toras pesadíssimas de madeira? A polícia teria que preparar um contingente respeitável para isso e também dispo-nibilizar uma área enorme.

– Vem lá no fundo, então? – perguntou André.– Exatamente. E imagina o tempo que eles perderiam na

tentativa de achar a mercadoria.– Nesse tempo perdido, ainda passariam centenas de

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outros caminhões despercebidos. Ele concordou com a cabeça e continuou. – Eu e André seremos os únicos a frequentar o local,

nesse período. A gente chega dois dias antes, espera o contato e, no dia seguinte, embarca tudo em um navio da frota do amigo de Sam. O fiscal aduaneiro de lá é conhecido do Sam de outros carnavais. Então, além de não termos problemas com isso, re-ceberemos ajuda. Naldo fica aqui para trocar a mercadoria de navio que vai chegar no mesmo dia, à noite. E Bê fica de stand--by caso algo de errado aconteça. A gente vai pagar 60% a menos do que se paga do Sul para o Rio em relação ao transporte via continentes. E ainda vamos ganhar 40% a mais, a cada quinze dias. Se você, que é economista, for fazer as contas vai perceber que estaremos ganhando bem mais e ainda por cima seremos mais absolutos. – Bateu carinhosamente no ombro de André.

– Como assim absolutos? – perguntei.– O caminho era Peru – Uruguai, Uruguai – sul do Bra-

sil, sul do Brasil – a gente e a gente – Europa. Certo? – Concor-damos com o balançar de nossas cabeças. – Vocês sabem que quanto menos gente envolvida mais feliz fica Sam, certo? – Mais uma vez, afirmamos com o gesto. – Então, a partir de agora, o Brasil não terá mais um presidente, e sim quatro. Tudo o que Sam manda para o resto do mundo e passa pelo Brasil a gente controla e ganha em cima.

Daniel continuou falando, e eu perdi aquela linha de pensamento em seguidos chopes. A cobiça de meu irmão co-meçou a desvirtuar sua forma de agir. O que antes era dinhei-ro e oportunidade fáceis mudava rapidamente de figura. Assim como um político, ele tomava gosto pelo poder.

Vejo Naldo saindo do banheiro com uma cara de quem tinha acabado de ver um fantasma. Quase correndo, ele chega ao balcão esbaforido.

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– Vocês não têm ideia de quem eu acabei de ver saindo do banheiro.

– Quem? – perguntou Daniel.– Jordão! O filho da puta está bem ali com aquela pira-

nha. – Olhando para André, ele nos deu a notícia.Eu não podia acreditar. Eu não via o Jordão desde que

trabalhei no hotel. E pensar que, naquele tempo, ainda morava nas Laranjeiras com meu irmão.

Jordão Bilac da Silva era quase nosso primo. Ele era afilhado de papai. Nossos pais eram amigos de longa data. No enterro de papai, o seu Ivan, como o pai dele era chamado, foi um dos que carregou o caixão e fez um discurso muito emo-cionado no final. Jordão, por várias vezes, brincou conosco na rua, e nós ainda visitamos sua casa de praia, que ficava em Cabo Frio, em algumas oportunidades. Convivíamos juntos com cer-ta frequência até que ele, inexplicavelmente, cometeu um erro atrás do outro.

André teve uma só namorada em toda a sua adolescên-cia. Lizzy era uma menina linda e sempre foi cobiçada por todos os que moravam no bairro. Ele era um mês mais velho que ela e foi seu primeiro namorado. Como sempre foi muito tímido e educado era o xodó dos pais da moça. Ela até então era sapeca e não queria nada na escola. Depois que começou a namorar, ela se aquietou e desabrochou sua inteligência em sala de aula e não mais aprontava com professores e alunos.

Jordão guardava em segredo uma grande paixão por ela. Ninguém desconfiava de nada até que ele revelou seu caráter em alguns episódios marcantes.

No dia anterior ao aniversário de dezessete anos de Lizzy, ele pagou uma garota para dizer que tinha perdido sua virgin-dade com André. Na noite seguinte, a garota entrou na festa e começou a gritar o nome de André e chamá-lo de meu amor.

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Dizia em voz alta que eles estavam juntos há meses e que estava decepcionada com ele por manter dois relacionamentos ao mes-mo tempo. A comemoração foi um fracasso, e André foi expulso da festa pelos primos da aniversariante. Lizzy ficou inconsolável naquela noite e desolada por dias. André jurou que aquilo era mentira e que jamais a trairia. Passou dias batendo em sua porta e gritando embaixo de sua janela dizendo que a amava.

Na semana seguinte, Jordão forjou bilhetes de amor en-tre André e a suposta nova namorada e os colocou na caixa de correio de Lizzy que, depois desse dia, nunca mais olhou para a cara de André. Nem os pais dela sabiam mais em quem acreditar.

Foi então que Daniel, sempre muito desconfiado e atento a tudo que se passava ao seu redor, descobriu que o falso amigo tinha bolado tudo.

André, quando soube da armação, foi tomado por um impulso nervoso que misturava ódio e revolta. Pouco depois, foi tirar satisfação com ele e acabou tomando uma surra. Jordão é dois anos mais velho, o que, nessa idade, faz uma enorme dife-rença. Naldo queria revidar, mas Daniel o convenceu de que o tempo certo para isso não era aquele. Jordão nunca conquistou Lizzy e acabou casando com a mesma garota que havia pagado para destruir o relacionamento de André.

André acabou passando três semanas no hospital devi-do à tamanha violência das pancadas recebidas. Ele teve duas costelas fissuradas, um tornozelo esmagado e ainda precisou fazer implante de alguns dentes. Lembro-me nitidamente dos momentos horríveis nas noites mal dormidas no corredor do hospital onde ele estava. André gemia de dor e eu pouco podia fazer. O hospital público em que ficou internado tinha uma es-trutura pífia, como quase todos no Brasil, e contava apenas com um quinto da equipe médica necessária para o funcionamento do local. Eu tive que dar banho, organizar suas refeições, correr

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atrás dos remédios e ainda vender rifas nas ruas para ajudar o seu tratamento. Daniel, como é mais velho e já tinha emprego fixo, trabalhou horas extras para ajudar o financiamento dos novos dentes.

– Hoje eu vou matar esse filho da puta – disse André.– Calma, porque ninguém vai fazer nada à luz do dia.

– Daniel centralizou a conversa e lançou um plano à frente. – Naldo, ele te reconheceu?

– Nem me viu. Mas eles entraram no museu do Forte. Não estão mais aqui fora – respondeu.

– Ótimo. Naldo, você vai ficar aqui e depois que eles sa-írem siga os filhos da puta e descubra onde eles moram. Eu, Bê e André vamos para o apartamento. Assim que você descobrir, entra em contato.

– O que você tem em mente? – perguntei ao mesmo tempo em que deixava o dinheiro no balcão para pagar o que tínhamos consumido.

– Calma. Eu sei exatamente o que estou fazendo.Disso eu nunca tive a menor dúvida.

• • •

Daniel estava preparando o jantar e parou o que estava fazendo para atender o celular. Eu abaixei o volume da música, e André olhava fixamente para Daniel, pois sabia que do outro lado da linha estava Naldo. Após alguns minutos, ele desligou o telefone e nos avisou o que pretendia fazer.

– O negócio é o seguinte: Naldo está na porta da casa do Jordão. Nós vamos jantar, e eu saio daqui antes das nove.

– Seja lá o que você for fazer, eu vou também.– André, você é o único que não pode ir. Bê vai ficar aqui

com você, durante o tempo em que eu resolvo tudo com Naldo.

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André concordou calado, e Daniel finalizou o preparo do jantar desligando o fogo e regando com um pouco mais de azeite em uma grande panela, enquanto eu arrumava os pratos e os talheres para nós três.

O que todos esqueceram foi perguntar a mim se eu também estava satisfeito com tudo o que havia sido dito ante-riormente. Antes mesmo de dar a primeira garfada, eu coloquei tudo para fora.

– Dessa vez, eu não vou ficar esperando isso ou aquilo. Dando telefonema para lá ou para cá. Porra nenhuma. Eu irei com você. – Apontei para Daniel com firmeza no olhar.

– Que porra é essa? Tá ficando maluco agora? – Sentindo--se ofendido com o meu ultraje, ele revidou.

– Com todo o respeito, fui eu que passei mais de três semanas na pocilga daquele hospital cuidando de André como se fosse pai e mãe ao mesmo tempo. Você tinha que trabalhar para nos ajudar, e Naldo ficou sem coragem de ver o primo fo-dido estendido numa maca, no meio de um bando de leprosos no corredor daquele hospital. Se André não vai por questões de segurança, eu entendo. Mas nesse caso, eu serei o seu represen-tante. Porque ninguém depois dele sofreu tanto na pele quanto eu com esse episódio. – A firmeza do meu olhar demonstrava o ímpeto da minha vontade através de minhas palavras. Pela primeira vez, não fui contestado fazendo valer o meu direito, naquele instante.

Os dois se entreolharam e, por um minuto, nada disseram. André aproximou-se de mim, agarrou meu braço e recomendou.

– Demonstre ódio. Apenas ódio.Concordei com a cabeça e servi-me de espaguete ao

molho funghi. Daniel tinha grande costume de picotar salsinha por cima de tudo que cozinhava. Combinando ou não, ele ado-rava. Joguei uma mão cheia de queijo parmesão ralado por cima

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do prato e não me manifestei durante o jantar. Assim que termi-namos, eu e Daniel pegamos o elevador em direção à garagem e fomos conversar com Jordão em sua residência.

• • • Jordão morava no Recreio dos Bandeirantes. Sua casa

era no final de uma rua sem saída. Mal iluminada, a via nos pro-tegia de olhares curiosos. Entramos na rua a menos de dez por hora e logo avistamos Naldo, que nesse momento piscou o farol do carro em nossa direção. Estacionei embaixo de uma árvore, e ele saltou de seu carro, aproximando-se de nós. Eu então baixei o vidro do motorista.

– O que você está fazendo aqui?– Sem pergunta idiota, cara. Entra na porra do carro

para trocarmos uma ideia – respondeu Daniel. Naldo entrou no carro e nos explicou detalhadamente

tudo o que havia visto até aquele exato instante. A casa de Jor-dão ficava menos de dez metros à frente do carro, no mesmo lado direito. Estávamos prontos.

– Tudo certo, então. Bê, você tem certeza de que não quer ficar no carro? – perguntou-me Daniel.

– Se você me perguntar isso de novo, eu vou sozinho.Saímos do automóvel e abrimos o porta-malas do carro

que Naldo estava dirigindo. Tiramos dois tacos de beisebol e uma caixa de pizza aparentemente vazia. Naldo abriu a caixa e dentro havia um boné vermelho com a mesma marca da pizza-ria da caixa.

– A gente anda pela cidade com isso dentro do carro pra cima e pra baixo há quanto tempo?

– Se você me perguntar isso de novo, eu vou sozinho. – Devolvendo-me a pergunta, Daniel me encarou com a resposta dada.

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Naldo sorriu, vestiu o boné e caminhou em direção à casa com a pizza nas mãos. Eu e Daniel voltamos para o nosso carro e esperamos o sinal. Parado em frente ao portão, ele tocou a campainha. No minuto seguinte, uma janela da casa se abriu e, dentro do volvo blindado em que estávamos, nenhum som foi escutado.

Percebi que minhas mãos não suavam e que inexpli-cavelmente eu torcia para que o momento chegasse rápido. O episódio em que dei um tiro pela culatra tinha funcionado exatamente como meu irmão havia descrito, ou decifrado. Eu olhei para Daniel que me fitou como se também não suportasse aquela demora. Olhei pelo retrovisor à procura de alguém nas ruas e nada. Nenhuma folha caía das árvores. Nenhuma luz na vizinhança alterou o seu padrão. Nenhum morcego sobrevoava o carro para nos intimidar e até os meus batimentos pareciam se abrandar ao longo dos segundos que precediam a tensão da-quele ato. Eu sequer piscava.

Naldo fez o gesto positivo. Abrimos as portas dianteiras do carro e, com tacos de beisebol nas mãos, andamos cuida-dosamente para perto do portão de entrada, logo ao lado do falso entregador de pizza. O portão da casa se abriu e eu conheci meus demônios, reconhecendo a cara do carrasco de André.

• • •

Nós que somos avessos à lei usamos o discernimento para justificar atos abomináveis. O estado psicológico que nos acolhe deixa a todos estarrecidos pela simplicidade com que julgamos o certo e o variável. O nosso sentimentalismo revela--se na compaixão por coisas pequenas, diante de uma sociedade consumista que estabelece padrões nada semelhantes aos nos-sos. Bem diferentes da maioria, somos apaixonados por canetas

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de estimação, por garrafas de bebidas vazias que há anos habi-tam o fundo da prateleira empoeirada ou até por gestos benévo-los a nós mesmos. Fomos uns dos maiores traficantes do Brasil por escolha e somos diferentes por vocação.

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