Quibe Tabuleiro Baiana

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  • Quibe

    BaianaTabuleiroO no

    da

    Uma reflexo sobre a imigrao e e o turismo cultural em Ilhus

    srialibanesa

  • 1Qu ib eQu ib e

    B a ia n aB a ia n aTab u le i r oTab u le i r oO n o

    d a

  • 2Universidade Estadual de Santa Cruz

    GOVERNO DO ESTADO DA BAHIAPAULO GANEM SOUTO - GOVERNADOR

    SECRETARIA DE EDUCAOANACI BISPO PAIM - SECRETRIA

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZANTONIO JOAQUIM BASTOS DA SILVA - REITORLOURICE HAGE SALUME LESSA - VICE-REITORA

    DIRETORA DA EDITUSMARIA LUIZA NORA

    Conselho Editorial:Antnio Roberto da Paixo RibeiroDrio AhnertDorival de FreitasEronilda Maria Gis de CarvalhoFernando Rios do NascimentoFrancolino NetoLino Arnulfo Vieira CintraMaridalva Souza PenteadoMaria Laura Oliveira GomesMarileide Santos OliveiraPaulo dos Santos TerraReinaldo da Silva GramachoRosana LopesRozemere Cardoso de Souza

  • 3M a r i a L u i z a S i l v a S a n t o s

    I l h u s - B A2 0 0 6

    Qu ib eQu ib e

    B a ia n aB a ia n aTab u le i r oTab u le i r oO n o

    d a

    Uma reflexo sobre a imigrao e e o turismo cultural em Ilhus

    srialibanesa

  • 4Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ficha catalogrfi ca: Silvana Reis Cerqueira - CRB5/1122

    2006 by MARIA LUIZA SILVA SANTOS1 edio: 2006

    Direitos desta edio reservados EDITUS - EDITORA DA UESC

    Universidade Estadual de Santa CruzRodovia Ilhus/Itabuna, km 16 - 45662-000 Ilhus, Bahia, Brasil

    Tel.: (73) 3680-5028 - Fax: (73) 3689-1126http://www.uesc.br/editora e-mail: [email protected]

    PROJETO GRFICO E CAPAAdriano Lemos

    REVISOAline Nascimento / Maria Luiza Nora

    EQUIPE EDITUS

    Diretor de Poltica Editoral: Jorge Moreno; Reviso: Maria Luiza Nora, Aline Nascimento;

    Superviso de Produo: Maria Schaun; Coord. de Diagramao: Adriano Lemos;

    Design Grfi co: Alencar Jnior.

    Santos, Maria Luiza SilvaO quibe no tabuleiro da baiana : uma refl exo sobre a imigrao sria e

    libanesa e o turismo cultural em Ilhus / Maria Luiza Silva Santos. - Ilhus, Ba : Editus, 2006.

    170f. : il. ; anexos.

    Inclui catlogo de receitas da culinria rabe. Bibliografi a: f. 127-135.

    ISBN: 85-7455-104-X

    1. Turismo cultural - Ilhus (BA). 2. Libaneses - Migrao - Bahia. 3.

    Srios - Migrao - Bahia. 4. Culinria rabe. I. Ttulo.

    CDD 380.145

    S237

  • 5PREFCIO

    Este livro fala de uma epopia. Muitos j escreveram sobre empreitadas assim. Os livros de histria e os romances contm centenas delas, tendo frente soldados e profetas, reis e feiticeiros, grandes comerciantes, senhores de fbricas, escravos e exrcitos. Normalmente, h vencedores e venci-dos. A natureza aparece como cenrio da grandiosidade de projetos que devem se realizar a qualquer custo. Estes livros costumam falar de gnio humano, como a convidar o leitor a se identifi car com aqueles heris e elevar-se, assim, para alm do prosaico insignifi cante da vida cotidiana. Esta, por sua vez, seria destituda de encanto e majestade. Posta em seu devido lugar, seria o borro em que se escreve a verdadeira histria, a dos personagens em que se reconhece algum tipo de investidura que os distinguiria dos mortais.

    A autora, aqui, nos coloca diante de um heri singular. Como os outros tantos imigrantes que povoaram o Brasil a partir do fi nal do reinado, os rabes vieram apinhados na terceira classe de navios europeus, fugindo da penria e da adversidade, muitas vezes do cerco fundirio ou da perse-guio poltica e religiosa, em busca de prosperidade. Por que mesmo os dou como singulares, ento?

    Lembro o depoimento que ouvi de seu Wagih Ataya, vinte anos j faz. Este libans contava a mim e a meu pai os pormenores de seu desembarque no porto de Marse-lha, para um banho e uma refeio. Falava das bolinhas de queijo conservadas em azeite doce, em potes de vidro

  • 6cuidadosamente guardados durante a viagem maior, aquela pelo oceano.

    O que me intrigou na noite em que ouvi seu Wagih narrar sua aventura foi precisamente a continuidade entre a sada do Lbano, a entrada no navio, o desembarque em Santos, depois em Salvador, e a vida normal que logo passou a ter, graas a Deus. Em nenhum momento, percebia-se na sua narrativa a constituio de uma colnia no sentido convencional do termo. O encontro com brasileiros de Ilhus, de Sergipe e do serto, bem como o encontro com outros rabes j estabelecidos e as modestas farras depois do expediente, nas ruas hoje desertas e soturnas, que quele tempo viam pequenas turmas de amigos cantando hinos amizade. Uma destas canes dizia: salve, nossos compa-nheiros; como so belos os nossos companheiros. No, no era um hino em lngua rabe que os patrcios entoavam para lembrar a ptria. A ptria, agora, era ali, tambm porque eram muitos os patrcios de l sendo j patrcios c. Era em portugus mesmo que se cantava...

    Somente depois de muitos anos pude apreender, lem-brando do depoimento daquele fi lho do Lbano, a riqueza que exalava em virtude de sua transparncia. Lembro do seu sorriso triunfante ao ensinar como se parte uma melancia sem faca, jogando a fruta bem quente de sol no riacho bem gelado que desce das montanhas. Uma vez, a percepo desta riqueza aconteceu quase de repente, muitos anos depois, quando assistia a um documentrio na televiso. O locutor falava da chegada de forasteiros dos quatro cantos do mun-do, referindo-se ao porto de um outro pas. Lembrei-me das

  • 7histrias que ouvi dos rabes de Ilhus. Eles mesmos no se consideram forasteiros. So adventcios, jamais estrangeiros.

    Quando comecei a conhecer a pesquisa de Maria Luza, temi, por alguns momentos, que viesse a me roubar o fascnio que sempre exerceram sobre minha mente os personagens rabes de Jorge Amado. Principalmente Nacib e Fadul, mas tambm aqueles outros que fazem uma ponta aqui e ali, nas obras ambientas no centro de Salvador. Refi ro--me, principalmente, peregrinao de Nacib na primeira parte do romance procura de uma cozinheira. Os cinco sentidos do dono do Bar Vesvio so vividos com invejvel intensidade. Ele v a parte da cidade prxima do porto como a querer divisar uma possvel salvao para sua cozinha rf; ouve os meninos da rua e as conversas de dentro das casas, que lhe despertam agonias e sabores, reforadas pelos odores que escapam das cozinhas; suas mos acostumadas a contar cuidadosamente a fria do bar queriam deitar com uma nova moa do Bataclan, mas isto era indissocivel de achar logo uma nova empregada. E seu drama de comerciante desfalcado se faz mximo quando dois enterros memorveis passam em frente ao seu estabelecimento, sem que houvesse quibes, coxinhas e empadas sufi cientes para os amantes da crnica cotidiana do alheio. Pois bem, temi que uma pes-quisa sobre estas coisas lhes tirasse a magia.

    No tirou. Os rabes deste livro os gringos, como chamvamos em Ilhus, com conotaes bem distintas da-quelas que esta palavra recebe em outros lugares so heris de suas cozinhas, de seus fardos e alforjes cheios de coadores de caf, cobertores coloridos, talheres, vestidos, faces, velas,

  • 8botas, paliteiros e arreios bem polidos, tudo isto em preos muito variados, a se administrar continuamente. Afi nal, o bom prestamista sabe garantir o pagamento das prestaes de seus fregueses.

    Na pesquisa que agora apresento, percebe-se um deli-cado e complexo jogo de negociao de mundos diferentes e prximos. Como nas pginas mais saborosas de Gilberto Freyre quando se refere aos portugueses, Maria Luza acom-panha as mulheres srias e ouve-as falar das especiarias, das hortalias, do tipo de gado, do jeito de preparar. Da salsa para o coentro, do carneiro para o boi, do azeite de l para o leo daqui. E o quibe surge, vitorioso, como um monu-mento. Sua implantao na culinria de Ilhus e sua regio tem a magnitude de uma imagem eqestre em praa pbli-ca. Em vez do cavalo de bronze, podem-se ver as pequenas vitrines de madeira e vidro vendendo quibe, com os vasos de molho de pimenta ao lado, ou os modernos carrinhos que parecem vender sorvete ou gua de coco.

    o triunfo da cozinha rabe, da casa e do corpo mes-mo deste adventcio, daquilo que trouxe de mais ntimo e saboroso. Ao lado do chocolate, que produziu o fausto desta regio por algumas dcadas e se tornou sofi sticada moeda de fi neza em boa parte do mundo, o quibe como que lhe a contrapartida. o mundo que acorreu ao porto de Ilhus e fi cou. Convido o leitor, ento, a refazer esta viagem.

    Milton Moura

  • 9 N D I C E

    INTRODUO ............................................................11

    DISCUSSO CONCEITUAL: Migrao, Turismo e Globalizao ................................................23

    Migrao ......................................................................... 26

    Turismo ........................................................................... 34

    Globalizao e sujeito ps-moderno ................................ 40

    A IMIGRAO SRIA E LIBANESA ...............................53

    Breve histrico da imigrao rabe para o Brasil............... 55

    Ilhus e a imigrao rabe ................................................ 77

    A CULINRIA RABE E O TURISMO EM ILHUS .......93Gastronomia e turismo cultural ....................................... 93

    A culinria rabe em Ilhus............................................ 101

    Jorge Amado, os rabes e o perfi l gastronmico de Ilhus 105

    CONCLUSO .................................................................. 123

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................ 131

    CATLOGO DE RECEITAS ............................................ 141

  • 11

    INTRODUO

    A cidade de Ilhus, municpio baiano situado a 400 km de Salvador, capital do Estado, fi cou famosa em nvel nacional e internacional devido expanso da lavoura ca-caueira, atravs dos sculos XIX e XX, bem como das crises desse cultivo que abalaram e abalam at hoje a economia e a sociedade locais. A partir desse ponto de partida, Ilhus foi propagada por vrios espaos do globo como a Princesinha do Sul, suscitando a curiosidade e a esperana de inmeras pessoas, denominadas posteriormente de desbravadores, numa referncia ao enriquecimento.

    Com base nessa realidade, uma vasta literatura foi construda por autores originrios da regio, como Jorge Amado e Adonias Filho, contando as famosas agruras e arroubos dos coronis do cacau. Histrias verdicas e al-gumas delas com uma pitada a mais de entusiasmo para aguar a imaginao dos leitores. Como foi registrado pelo prprio Jorge Amado: de Ilhus que nasce o que de mais puro e sensvel, o que de mais belo possa ter o que escrevi.

  • 12

    Ilhus como tema me inspirou, marcou de forma profunda o que escrevi de alma e corpo (AMADO, In: REVISTA ILHUS, 2001).1

    Essas histrias da regio cacaueira - mais precisamente, da cidade de Ilhus - saram das pginas dos livros e alcan-aram uma repercusso ainda maior atravs das novelas televisivas, permitindo que pessoas de lugares bem distan-tes, de gostos e conceitos bem diferenciados, passassem a conhecer a cidade de Ilhus.

    Mas nem s de cacau pode viver a regio. Devido s graves e prolongadas crises, a cidade, o povo e seus repre-sentantes comearam a despertar para a possibilidade de diversifi cao da economia. Dentre as vrias alternativas, surge a opo do turismo. Como se pode constatar na revista Ilhus:

    A crise do cacau, produto que moldou profunda-

    mente a cultura e a vida ilheense, infl uenciando

    inclusive na infra-estrutura de uma cidade que se

    preparou como polo de comrcio de exportao e

    processamento no sul da Bahia, mudou em dez anos

    de ponta a cabea os rumos do desenvolvimento

    de Ilhus. A cidade descobriu novos horizontes e

    suas vocaes como centro de tecnologia, turismo

    e agroindstria (REVISTA ILHUS, 2000, p. 3).

    1 A Revista Ilhus uma publicao da Assessoria de Comunicao Social da Prefeitura Municipal de Ilhus, de periodicidade anual, que versa sobre assuntos variados tais como: economia, turismo e sociedade.

  • 13

    Essas novas opes que passaram a fazer parte da pers-pectiva econmica e social da regio ainda esto em fase estrutural e de encaminhamentos. Sob a perspectiva desta obra, a ateno est voltada para o enfoque turismo, mais precisamente o turismo histrico-cultural.

    O turismo um fenmeno global que vem atingindo grandes dimenses nas ltimas dcadas. Seu funcionamento incorpora um grande contingente de pessoas, relacionadas s reas de bens e servios, dentro e fora da localidade turstica. J foi defi nido sob enfoques variados, tais como: tempo de viagem, perodo de permanncia, local de origem dos turistas e proibio quanto atividade remunerada (LAGE, 2000). Neste enfoque, o turismo tratado de maneira j ressignifi ca-da, numa perspectiva que se estabelece a partir da dcada de 80, que chama a ateno para o viajante que necessita mais do que o lazer, que busca a realizao interior e d nfase ao meio ambiente e compreenso da cultura e da histria de outros lugares, que quer conhecer povos e se enriquecer culturalmente (AVIGHI apud LAGE, 2000, p. 104).

    A propaganda veiculada sobre o turismo profi ssional em Ilhus demonstra entender a atividade sob o enfoque acima citado. Constata-se essa afi rmao quando se l:

    O calendrio de eventos produzido pela Ilheustur

    segue normalmente, e o turismo de Ilhus fi nal-

    mente vive um momento nico desde que Ilhus

    passou a utilizar o seu talento, as suas belezas e as

    suas histrias para atrair visitantes dos quatro cantos

    do mundo (REVISTA ILHUS, 2000, p. 3).

  • 14

    Salientando a histria do lugar como sendo tambm um atrativo para o turismo cultural, encontra-se na confor-mao tnica da regio um carter hbrido, decorrente da miscigenao de origens distintas. importante ressaltar que a regio sabidamente prevalecente de infl uncias de negros, sergipanos e turcos termo genrico para as origens sria, libanesa e turca propriamente dita (SIMES, 2000, p. 03).

    Observa-se essa presena sria e libanesa quando so identifi cados os sobrenomes de famlias residentes em Ilhus, tais como: Chau, Chalhoub, Darwich, Nassiri, Medauar, Dieb, Daneu, Hage, Halla, Maron, Bichara, Rabat, Bacil, Midlej, Ganem, Ock, Zugaib, Massara, Habib, Zaidan, Baracat, Kalid, dentre outras, que chegaram principalmente por volta do fi nal do sculo XIX e incio do sculo XX. Esse marco coincide com uma das fases ureas da cacauicultura e de grandes correntes migratrias para as Amricas, como afi rma Boris Fausto:

    Entre 1881 e 1915, cerca de 31 milhes de imi-

    grantes chegaram s Amricas. Os EUA eram o

    principal pas de recepo, com 70%, em segundo

    lugar, a Argentina, com 4,2 milhes; e o Brasil, com

    2,9 milhes de imigrantes (FAUSTO, 2000, p. 25).

    Outro aspecto que refl ete o signifi cado do grupo tnico rabe na cidade de Ilhus a existncia de restaurantes com a presena de comida tpica como: Sheik, Quibe do Nacib, Vesvio, Beirute, Toca do Gringo e a presena cotidiana

  • 15

    de elementos dessa culinria na vida diria do ilheense, a exemplo do quibe. Como ressalta Simes,

    A culinria mais caracterstica de uma determinada

    regio necessariamente tem a ver com sua histria,

    com o processo de dominao (ou no) pelo qual

    eventualmente essa regio passou; com respeito a

    uma cultura local ou a uma cultura imposta pelo

    colonizador, pelo conquistador, pelo coronel (SI-

    MES, 2000, p. 4).

    Entendendo a importncia da anlise histrica dos variados povos que compem a cultura de uma localidade para o entendimento de todo processo cultural desenvolvido em um espao, esta obra traz a investigao da histria e da infl uncia/presena dos imigrantes srios e libaneses na formao cultural da cidade de Ilhus, priorizando como campo os mbitos da sociabilidade em que esses grupos mais se destacaram, podendo-se atribuir um registro signifi cativo ao aspecto gastronmico, e a articulao dessa herana com os elementos culturais reconhecidos como contemporneos, aos efeitos de praticar de maneira fundamentada o turismo histrico-cultural.

    Buscou-se entender o fenmeno turismo na perspecti-va da contemporaneidade, o que conduz a uma postura in-terdisciplinar, inclusive levando-se em conta a ausncia de conceitos especfi cos, pois como chama ateno Ansarah,

  • 16

    Dado que o estudo em turismo tem amplas re-

    laes com outras cincias, algumas vezes estes

    campos no se defi nem claramente, criando alguns

    problemas semnticos e confuses conceituais. A

    educao em turismo deve estar relacionada a uma

    refl exo multidisciplinar ao trabalho em equipe,

    contemplando contextos multiculturais em que a

    criatividade combine o saber tradicional ou local e

    o conhecimento aplicado da cincia avanada e da

    tecnologia (2002, p. 23).

    A este propsito, afi rma Ada Denker: O turismo aparece

    como objeto de estudo no ambiente de vrias disciplinas e est sujeito a infl uncias de vrios paradigmas (2001, p. 28).

    O turismo cultural, por ser um segmento especfi co do turismo, versado no aspecto da cultura, tambm encontra referncias interdisciplinares, recorrendo a conceitos relati-vos a identidade, espao e memria. Beni, um dos autores que mais parece apostar no turismo cultural, refere-se

    Infl uncia de turistas a ncleos receptores que ofe-

    recem como produto essencial o legado histrico do

    homem em distintas pocas, representado a partir

    do patrimnio e do acervo cultural encontrado nas

    runas, nos monumentos, nos museus e nas obras

    de arte (1998, p. 381).

    Neste momento da refl exo, pode-se colocar o pro-blema: como pensar a cultura atrelada a essa concepo? A

  • 17

    resposta a essa questo encontra respaldo em autores como Ortiz e Ianni. Ao longo de suas atuaes destacadas nos debates sobre a mundializao, insistem em considerar a relao entre hibridismo e cultura local. De acordo com essas consideraes, podem ser colocados alguns pontos mais relevantes de sua contribuio.

    Com os intensos debates que comearam a se desen-cadear a partir dos anos 70, a respeito da integrao global, da globalizao e da mundializao da cultura, surge o temor de que se possa vislumbrar o mundo sem fronteiras ou sem contornos, tornando os espaos sem identidade. A preservao e a memria de uma cultura passam a ser um questionamento de possibilidade. Se a globalizao um processo que se pode constatar e ao qual ningum hoje pode se subtrair, a homogeneizao cultural passaria a ser quase que uma assertiva?

    Ortiz discorda desse posicionamento, corroborando a linha deste trabalho, quando afi rma que uma cultura mundializada no implica o aniquilamento das outras ma-nifestaes culturais; ao contrrio, ela coabita e se alimenta delas. O fenmeno social total deve permear o conjunto das manifestaes culturais localizando-se e enraizando-se nas prticas cotidianas dos homens (1998).

    Estabelecendo tambm a relao da cultura mundial versus cultura local, Ianni afi rma que a cultura mundial nunca estar pronta e completa, mas lenta e indefi nidamente criada. Sua criao no signifi ca a eliminao da diversi-dade cultural, pois no pode ser criada do nada. A cultura mundial se desenvolve a partir de culturas nacionais, assim

  • 18

    como as culturas nacionais se formam a partir das velhas culturas (2000, p. 111).

    assim que se toma a anlise do conceito de cultura: numa acepo mundializada, que contempla o elemento da difuso cultural ou a sua possibilidade atravs dos fen-menos das trocas entre populaes diversas e a fuso dos elementos junto herana perpetuada atravs dos costumes nas vrias geraes.

    Nessa viso ampliada de cultura, em que so trabalha-dos esses movimentos como trnsitos inter e transculturais, torna-se interessante conhecer as origens formadoras da histria de uma regio, percebendo-se assim as mudanas sociais e o conhecimento das trocas entre culturas, material signifi cativo para o turismo histrico-cultural.

    Estabelecendo como objeto de anlise os povos srio e libans que imigraram para Ilhus, pode-se analisar um segmento desse movimento transcultural. Entende-se como referncia para esta anlise a existncia de duas categorias: os indivduos considerados autctones e os que migraram para a regio, empreendendo uma opo de vida corajosa e radical e transformando em ptria um outro local que no o de seu nascimento.

    Neste sentido, parece oportuno colocar brevemente o porqu da referncia com nfase aos estudos sobre migrao e etnicidade. Estes encontraram sua primeira fundamenta-o na teoria das relaes cclicas estabelecidas pela Escola de Chicago. A partir de uma perspectiva interacionista, concentram-se nas relaes concretas que ocorrem entre indivduos no seu cotidiano. A assimilao concebida pelos

  • 19

    representantes dessa corrente como uma fuso que permite a integrao de diferentes grupos numa vida cultural comum. Como afi rmam Park e Burgess,

    A assimilao no se resume na destruio de cul-

    turas minoritrias, no consiste, para o migrante,

    em repdio dos seus valores e de seu modo de vida

    tradicional em prol de normas culturais da socie-

    dade de acolhimento, mas tornar-se implicado em

    grupos cada vez mais amplos e inclusivos (apud

    POUTIGNAT, 1995, p. 66).

    Mais especifi camente sobre a imigrao sria e libanesa, so utilizados, dentre outros, os trabalhos de Boris Fausto, Osvaldo Truzzi e Clark Knowton, alm de autores da regio como Adonias Filho e Jorge Amado, que contextualizam a cidade de Ilhus no fi nal do sculo XIX e incio do sculo XX.

    Fausto aborda a importncia do estudo da trajetria quando explica as duas possibilidades de anlise: uma abor-dagem estrutural, em que busca melhor compreender as razes de um movimento migratrio transocenico, que diz respeito s condies scio-econmicas existentes nos pases de emisso e de recepo, bem como sob uma perspectiva micro-histrica, acompanhando trajetrias familiares das duas pontas da cadeia migratria (2000). Faz referncia ainda ao movimento fazer a Amrica, ocorrido entre 1880 e 1915, que relaciona a nsia dos imigrantes que saram de suas terras em busca de melhores condies de vida.

  • 20

    Quanto s rotas, peculiaridades, costumes e tradi-es, encontra-se em Knowton um valioso estudo das condies desse movimento transocenico, os destinos desviados e que hoje poderiam nos parecer confusos, as acepes religiosas, polticas e econmicas, a exemplo do trecho abaixo:

    A grande maioria dos srios e libaneses que entrou

    no Brasil era de mo-de-obra agrcola, com poucos

    artesos. verdade que alguns tinham ofcios e que

    os praticavam no Brasil. A maioria contudo, conhe-

    cia poucas tcnicas que lhe pudessem servir na nova

    terra e, evitando a agricultura e a indstria, comeou

    a mascatear fsforos, armarinhos e fazendas pelas

    ruas da cidade e do interior (1960, p. 186).

    Essa afi rmao vai encontrar eco em Adonias Filho, quando afi rma que a chegada dos srios e libaneses para a regio se deu por volta de 1871. Estes no atuaram conjuntamente com os desbravadores das roas de cacau; encontraram-se com as fazendas atravs da mascatagem (1976). Esta diferena, contudo, se pertinente aos efei-tos da preciso, no deveria sugerir uma diminuio da importncia da contribuio rabe para a construo da civilizao do cacau.

    Os srios e os libaneses viabilizaram populao o acesso a bens de consumo fundamentais, como querosene, velas, calados, tecido, carne seca, papel e artefatos bsicos de funilaria; ou seja, os artigos bsicos utilizados no dia-a-dia

  • 21

    de uma fazenda ou vilarejo do cacau, do ltimo quartel do sculo XIX at o meado do sculo XX.

    Esses relatos visam a contribuir para promover a di-vulgao da histria dos imigrantes srios e libaneses para os habitantes de Ilhus e para o turista que deseja conhecer a histria local, a importncia da sua culinria e as reconfi -guraes advindas dessa defrontao e conjugao, fazendo com que o fenmeno turismo se confi gure como mais rico, fascinante e prazeroso.

    No primeiro captulo, desenvolve-se uma discusso conceitual, colocando-se as acepes problematizadas no tratamento das defi nies de imigrao, cultura e turismo, bem como de outras noes conceituais que dizem respeito a esses fenmenos sociais e que vm embasar essa discusso.

    No segundo captulo, a imigrao sria e libanesa descrita de maneira geral, em termos de Brasil, o movimen-to Fazer a Amrica e a interao entre os brasileiros e o mundo rabe. Num segundo momento do mesmo captu-lo, descrita a cidade de Ilhus com suas potencialidades tursticas e suas afi nidades com as culturas sria e libanesa.

    No terceiro e ltimo captulo, so discutidas as noes de gastronomia e a importncia da culinria rabe para a cultura e o turismo de Ilhus, elencando os estabelecimentos que possuem uma relao mais estreita com essa culinria e que podem servir de suporte para um turismo gastronmico mais efetivo.

    Como anexo, foi inserido um catlogo de receitas ra-bes fornecidas por senhoras srias, libanesas ou descendentes que residem em Ilhus, apontando elementos particular-

  • 22

    mente expressivos dessa culinria. Algumas dessas receitas foram retiradas do livro de Mnica Moura Costa (1996), A Comida de Ilhus no Tempo dos Coronis do Cacau, enquanto outras foram fornecidas por imigrantes, descendentes e pessoas relacionadas ao ramo gastronmico em Ilhus.

  • 23

    S de certo tempo a esta data se tem desenvolvido os estudos sobre os grupos estrangeiros no Brasil e, em particular, sobre as relaes de cultura verifi -cadas entre eles e as populaes brasileiras de base portuguesa. Pode-se assinalar a dcada 1931-40 como o perodo em que comearam tais estudos a preocupar nossos socilogos, nossos etnlogos, nossos antroplogos; isto no exclui o fato de, anteriormente, se assinalarem infl uncias desse ou daquele grupo, a existncia ou no de assimilao dos grupos para aqui imigrados (DIEGUES JU-

    NIOR, 1980, p. 185).

    O Quibe no Tabuleiro da Baiana uma refl exo sobre a imigrao sria e libanesa e o turismo cultural em Ilhus est relacionado a esse grupo de estudos. Trata-se de um texto versado sobre as infl uncias rabes para a regio Sul da Bahia. Considera a temtica da migrao, bem como das

    DISCUSSO CONCEITUAL: Migrao, Turismo e Globalizao

    1.

  • 24

    infl uncias que o contingente migracional srio e libans tem ou pode vir a ter no segmento do turismo cultural, qui gastronmico, para a cidade de Ilhus.

    Uma discusso introdutria pautada em conceitos como imigrao, turismo e globalizao e em outros ele-mentos terico-metodolgicos inerentes a esses conceitos - interao, mudana, pluralismo, hibridismo, identidade, etnia, transculturao, espao-tempo e outros opor-tuna aqui aos efeitos de subsidiar a anlise de forma mais aprofundada.

    Esses conceitos elencados, em sua maioria, podem ser caracterizados como fenmenos sociais independentes que se permitem entrecruzar na perspectiva da Cultura e do Turismo. So ferramentas trabalhadas por ramos distintos do conhecimento e tambm por reas afi ns, com enfoques voltados para a Sociologia, a Economia, a Antropologia e a Historiografi a.

    Em se tratando da Migrao, do Turismo e da Glo-balizao, pode-se afi rmar que se tratam de fenmenos sociais de grandes dimenses, que atingem um contingente signifi cativo de pessoas. Ferrari (1983) defi ne o fenmeno social como um acontecimento observado sensivelmen-te atravs da percepo externa, inferido e suscetvel de descrio, mas que pode alterar vivncias e modifi car comportamentos e costumes, podendo se referir a pessoas e a grupos isolados, porm sendo mais caracterstico de grandes concentraes. Banducci Jr. e Margarita Barreto vo enfatizar tambm a idia de fenmeno social quando afi rmam que o turismo

  • 25

    ao mesmo tempo constitui um fenmeno social,

    dado que implica o deslocamento de grandes

    contingentes de pessoas que passam a ser habitan-

    tes temporrios de locais nos quais no residem,

    ocasionando mltiplos impactos nessa sociedade

    receptora. E um fenmeno social tambm por-

    que faz parte das necessidades criadas pelo mundo

    moderno (2001, p. 8).

    As afi nidades entre esses fenmenos, apesar de no serem de carter estrutural, colocam a possibilidade de es-tabelecer relaes entre eles, principalmente quando se trata de mudanas na perspectiva social. Sabe-se que o mundo moderno um mundo de transformaes. A sucesso rpida e s vezes quase imediata de eventos e acontecimentos, a exemplo das migraes e do turismo, viabiliza tratar dessa mudana como um acontecimento j cotidiano.

    Os indivduos de outras dcadas, mesmo nem to distantes, passaram um bom tempo acostumados a viver em um lugar e a submeter-se a uma convivncia longa e recursiva com os mesmos grupamentos, os mesmos objetos e utenslios, os mesmos trajetos e imagens. Integravam a construo da histria do lugar e se sentiam pertencentes a esse lugar, sendo considerados nativos e nutrindo uma identidade centrada naquele determinado espao, sem a efetivao de signifi cativos deslocamentos, tanto de forma temporria como defi nitiva.

    Hoje, a palavra de ordem no mais a da rigidez e fi xao do homem a um s espao. A mobilidade se tor-

  • 26

    nou praticamente uma regra. O movimento se sobrepe ao repouso. A circulao mais criadora que a produo. Os homens mudam de lugar como turistas ou como imigrantes (SANTOS, 2002, p. 328).

    Mas... de que se constituem a migrao e o turismo?

    MIGRAO

    O termo migrao, na acepo prpria das cincias hu-manas, rene uma variedade de signifi cados que apresenta como ponto comum a mobilidade dos homens. A migrao implica de forma concreta a vida entre dois universos, aquele no qual se est inserido, mas tambm aquele que se deixou defi nitivamente ou por um lapso de tempo.

    O fenmeno migratrio no caracterstico apenas dos ltimos sculos. Pode ser observado desde os tempos mais remotos, haja vista o prprio movimento do nomadismo.2 Em sculos mais recentes, XIX e XX, fi cou bem caracteri-zado o movimento Fazer a Amrica, onde contingentes de vrios pases vieram povoar ou se unir aos que j se en-contravam nas Amricas. Como evidencia Fausto,

    Grande parte dessa imigrao era a tradicional,

    composta em sua maioria de jovens e adultos do

    2 O homem viaja desde o incio dos tempos, quando seus antepassados primitivos percorriam freqentemente grandes distncias em busca de caa que lhes fornecia alimento e agasalho necessrios a sua sobrevivncia (THEBALD, 2001, p. 27).

  • 27

    sexo masculino em busca de emprego tempor-

    rio ou permanente no pas de recepo. Fazer a

    Amrica era o lema de quase todos os imigrantes

    que cruzavam o Atlntico. Para eles, a prioridade

    bsica consistia em acumular poupana com a qual

    esperavam poder desfrutar de uma vida melhor em

    seus pases de origem (2000, p. 24).

    Mas a prpria defi nio do que seria um imigrante no foi tarefa simples no Brasil. Sempre que se trabalha com essa temtica, necessrio defi nir seus atributos com clareza, devido s imprecises que envolvem o conceito. O ponto mais polmico gira em torno da identifi cao da condio de migrante. Seria por comparao entre o lugar onde reside e o lugar de nascimento? Ou o lugar da ltima resi-dncia? Ou ainda o lugar da residncia anterior numa data fi xa? (SEDUH, 2002). As defi nies mutveis tornaram confusas as prprias estatsticas. As primeiras discordncias so registradas com o termo turista, pois

    as autoridades brasileiras antes de 1934 defi niam

    como imigrantes todos os estrangeiros de terceira

    classe que desembarcavam em portos brasileiros.

    Estrangeiros viajando na primeira e segunda classe

    eram considerados turistas ou visitantes (KNO-

    WTON, 1960, p. 35).

    A partir desse perodo, acrescida a classifi cao, o argumento do exerccio profi ssional. As leis redefi nem assim

  • 28

    os termos imigrantes e no imigrantes: Imigrantes passaram a ser as pessoas entradas no Brasil para exercer um ofcio ou profi sso por mais de trinta dias. No imigrantes eram indivduos que permaneciam no Brasil at trinta dias (KNOWTON, 1960, p. 35).

    Tal classifi cao, contudo, no era considerada sa-tisfatria, pois havia quem entrasse no pas para executar atividade profi ssional cujo perodo ultrapassava o limite dos trinta dias e ao mesmo tempo no aspirasse a fi xar residncia. Mais uma vez, foram redefi nidos os termos e atriburam-se duas novas categorias em substituio aos termos imigrantes e no imigrantes, representadas pelos termos permanentes e temporrios.

    Indivduos classifi cados como temporrios so tu-

    ristas, viajantes comerciais, passageiros em trnsito,

    tcnicos, cientistas, etc, que entram no Brasil por

    vrios perodos sem a inteno de residncia defi -

    nitiva. Permanentes so pessoas vindas ao pas em

    busca de um lar defi nitivo. S esses so considerados

    imigrantes (KNOWTON, 1960, p. 36).

    Vale ressaltar que essa classifi cao no alcanou uni-formidade em todos os estados, verifi cando-se variaes quanto sua aceitao, adoo e ao entendimento.

    Cada um dos conceitos possui vantagens e limitaes, sendo mais adequado a algumas situaes que a outras, pois o nmero de migrantes diverso segundo cada um deles. Se a defi nio legal permaneceu incerta, o objetivo

  • 29

    da viagem no segue o mesmo caminho, ou seja, no deixa margem para dvidas. A migrao implica sempre o fen-meno do deslocamento da sociedade de origem para um novo espao. A migrao constitui o terceiro elemento da dinmica populacional. Tem como caracterstica bsica o fato de implicar necessariamente na mudana de lugar de residncia (SEDUH, 2002).

    Permanecem sempre as duas pontas da relao: os pases de emisso e os pases de recepo, que muitas vezes podem apresentar comportamentos e costumes bastante diversos daqueles do seu local de origem. Essa mudana estrutural, em termos individuais e mais precisamente nos descendentes, suscita a construo de novas identidades e a integrao com pases receptores, podendo ocasionar, de forma pacfi ca, o processo de assimilao.

    Uma questo que se coloca : por que as pessoas mi-gram? Vrios podem ser os fatores de atrao ou expulso,3 ou at do equilbrio entre eles, mas, segundo Fausto, uma constatao j foi feita: A migrao no comea at que as pessoas descubram que no conseguiro sobreviver com seus meios tradicionais em suas comunidades de origem (2000, p. 13).

    Fatores como difi culdades extremas de sobrevivncia, perseguio poltica e religiosa, difi culdades econmicas e confl itos em termos de etnicidade e/ou nacionalidade

    3 Os termos fatores de atrao e fatores de expulso, to comumente utilizados na literatura especializada e nos meios de comunicao em geral, so creditados a Everett Lee, em 1995 (PEREIRA, 2000, p. 05).

  • 30

    podem apontar na direo da expulso. Em contrapartida, o movimento de atrao se d em funo de lugares onde essas pessoas possam viver de forma tranqila, sem perse-guies, ou onde exista a possibilidade de obter terra barata ou empregos, e a mo-de-obra seja escassa.

    De maneira genrica, os imigrantes que deixam seus lugares originrios em funo de alguns dos constrangi-mentos acima aceitam qualquer trabalho, mesmo que esta ocupao no seja de prestgio, desde que os salrios sejam superiores queles pagos em seus pases ou que outros fa-tores, quais sejam a segurana ou a prpria sobrevivncia, estejam assegurados. Em funo dessa estratgia, muitos conseguem retornar aos seus lugares de origem; outros, mais preocupados com a acumulao para investimento, ou seja, um processo de prosperidade, terminam por se inserir na teia de uma nova cultura, integrando-se respectiva economia, e decidem pela permanncia.

    Esses movimentos de idas e vindas descritos no par-grafo anterior so, talvez, o que mais ateno chama neste contexto. Ocorrem devido ao deslocamento efetuado entre os migrantes, que levam e trazem consigo experincias, costumes e tradies, mesclando culturas e realando o entendimento do hibridismo entre as naes. Sobre o carter hbrido das identidades, Stuart Hall enfoca os Versos Satnicos, de Salman Rushdie, corroborando as observaes anteriores:

    O livro Versos Satnicos celebra o hibridismo, a

    impureza, a mistura, a transformao, que vem de

    novas e inesperadas combinaes de seres humanos,

  • 31

    culturas, idias, polticas, fi lmes, msicas. O livro

    alegra-se com os cruzamentos e teme o absolutismo

    puro [...]. a grande possibilidade que a migrao

    de massa d ao mundo (HALL, 1997, p. 100).

    No decorrer desse processo de hibridizao e trans-formaes, pode ser percebido um outro processo, visto de forma atenta, carregada s vezes de concernimento, por autores que se debruam sobre a temtica da construo de identidades (IANNI, 2000; HALL,1997). Trata-se dos processos sociais da assimilao e da transculturao entre povos, movimentos que se devem internalizao de valores com os quais os indivduos no foram inicialmente endo-culturados, e que passam ento a assimil-los.

    Antes de passar a tematizar o processo de assimilao, geralmente caracteriza-se o processo de acomodao, que pode vir a dar origem ao primeiro e que se pode tomar aqui como contraponto.

    A acomodao pode se constituir em um primeiro passo mediante o qual o imigrante passa a aceitar os co-nes mais sobressalientes e emblemticos da nova cultura, criando bases para uma modifi cao profunda nas atitudes, sentimentos e valores. Tende a remover as caractersticas de estranho que distinguem o imigrante do autctone, como o traje, a lngua e os maneirismos. Como ressalta Pearson, medida que essas caractersticas so removidas, os membros do grupo em que o imigrante veio viver tendem a trat-lo cada vez mais como um dos seus (1975, p. 208). Caso contrrio, enquanto os elementos culturais diversos

  • 32

    se mantiverem bem enraizados nos hbitos dos imigrantes, cada novo grupo constituir um nicho cultural estranho.

    A assimilao vir se efetuar quando os imigrantes se desfi -zerem dos elementos peculiares sua cultura e incorporarem em seus prprios hbitos e costumes aqueles da nova cultura, dissolvendo os nichos culturais e integrando-se nova so-ciedade. Visto dessa forma, o processo de assimilao parece simples. Cabe, porm, o questionamento: seria, assim, pos-svel e simples essa profunda assimilao? Pearson esclarece:

    talvez certo dizer que, mesmo nas mais favorveis

    circunstncias, a assimilao nunca se completa

    nos imigrantes de primeira gerao; completa-se,

    porm, muitas vezes, nos de segunda e quase sempre

    nos de terceira (1975, p. 209).

    Esse movimento de acomodao e assimilao, correspon-dente probabilidade de idas e vindas por parte dos migrantes ou de sua fi xao, demonstra inicialmente o entendimento do diferente que pode se transformar no semelhante. Evidencia a transculturao que atravessa os tempos e os povos, presen-tes, recentes e remotos (IANNI, 2000, p. 97), suscitando a princpio a idia da diferena, podendo incorrer posteriormente em um processo de relativa homogeneizao. Relativa porque em termos culturais, mais precisamente de trocas culturais, os efeitos causados pelo processo migracional ou turstico no podem ser aferidos de forma absoluta, como ressalta Barreto (2001), ao enfatizar a possibilidade da no ocorrncia dos processos de acomodao ou de assimilao:

  • 33

    A migrao, muito mais que o turismo, tem sido

    responsvel pela pluralizao das culturas e pela

    negociao de espaos culturais para a identifi cao

    (formao da identidade). A concluso a que se

    chega na atualidade que imigrantes e morado-

    res chegam a um acordo, sem que haja perda das

    respectivas identidades, colocam um alerta para as

    possibilidades do turismo como fenmeno acultu-

    rador, uma vez que, se a convivncia permanente,

    por vrias geraes, no provoca mudanas radicais,

    poder-se-ia estar superestimando os efeitos dos

    contatos provocados pelo turismo (BARRETO,

    2001, p. 19).

    Numa perspectiva ps-moderna, contudo, a identidade entendida como algo mvel, em permanente construo, a ser constantemente (re)moldada a partir do contato com o outro. O contato que se efetiva entre turistas e residentes, entre a cultura das pessoas nativas e a cultura do turista, desencadeia algumas contradies, curiosidades e tenses que, pelo carter transitrio da atividade turstica, pode provocar a transculturao ou o fortalecimento da identi-dade e da cultura dos indivduos da sociedade receptora e muitas vezes do prprio turista.

    Essas contradies e curiosidades passam pelo entendi-mento do local do eu poder-se-ia dizer o lugar originrio - e do local do outro no contexto turstico cultural. As tenses se evidenciam quando turistas e residentes se questionam se determinado elemento cultural pertence cultura nativa,

  • 34

    a alguma das culturas formadoras daquela sociedade ou de um outro local turstico. Hall vai denominar de crise de identidade essas tenses:

    Esta perda de um sentido de si estvel chamada,

    algumas vezes, de deslocamento - descentrao do

    sujeito. Esse duplo deslocamento descentrao

    dos indivduos tanto de seu lugar no mundo social

    e cultural quanto de si mesmos constitui uma

    crise de identidade (1997, p. 9).

    Mesmo entendendo a existncia de uma crise de iden-tidade, permanece a complexidade do objeto da anlise, uma vez que se trata de um conceito de difcil articulao pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na cincia social contempornea para ser defi nitivamente posto prova (HALL, 1997, p. 9). Trata-se de conceitos cujo declnio se pode observar, como o de sujeito unifi cado. Esse movimento oportuniza a emergncia do conceito de indivduo ps-moderno, contemporneo ou sujeito frag-mentado, perfi l que abala referncias estticas que vigiram por longos perodos.

    TURISMO

    O turismo no um processo de fcil apreenso em suas mltiplas caractersticas. Com suas novas propostas, abrangncia e segmentaes, pode ser considerado um

  • 35

    fenmeno complexo e mutvel que aparece em formas e circunstncias diversas, sendo difcil apreend-lo por meio de uma nica perspectiva terica ou mesmo de uma nica cincia (BARRETO, 2001, p. 23).

    O turismo exercido pelo viajante que abre caminhos, que busca o novo e o outro, no s quando desbrava o des-conhecido, porm quando redesenha tambm o conhecido (IANNI, 2000). Ao mesmo tempo em que sua sada promo-ve uma libertao de vcios e tradies que se enrazam com as vivncias cotidianas, vai acumulando novas experincias por onde passa.

    Da mesma forma que considerado intruso, marginal, desconhecido, reforador de costumes, pois a chegada de estrangeiros em grande nmero tem como contra-ofensiva atos de reforo da coeso social local4 (GENNEP, 1978, p. 34), pode ser considerado como intermedirio, aquele que coloca os lugares em comunicao e que aproxima unidades diferentes.

    De acordo com essa tica, o turismo tem sido con-siderado como um fenmeno global que vem atingindo grandes dimenses nas ltimas dcadas. Seu funcionamento incorpora um grande contingente de pessoas, relacionadas s

    4 Essa posio de Gennep pode ser associada viso de Flusser sobre o imigrante: o imigrante para o enraizado algum ameaador, pois expe a fragilidade do lar sagrado. O arrivista algum que j est no lugar, mas no inteiramente, uma aspirante residncia, taxado de recm--chegado pelos locais, para que estes possam se sentir mais seguros na sua moradia (www.hemi.unirio.br).

  • 36

    reas de bens e servios, dentro e fora da localidade turstica. J foi defi nido sob enfoques variados, tais como: tempo de viagem, perodo de permanncia, local de origem dos turistas e proibio quanto atividade remunerada (LAGE, 2000, p. 26).

    Remontando ao seu processo histrico, evidencia-se que, apesar de a viagem ser uma experincia que se pode encontrar desde os tempos pr- histricos, o turismo um fenmeno da modernidade. At meados do sculo XIX, s uma categoria de pessoas, correspondentes s elites, podia desfrutar dessa atividade, especialmente por motivos de lazer, o que evidenciava uma marca de status.

    De acordo com alguns historiadores,5 esse quadro come-a a se alterar na Inglaterra, durante a Revoluo Industrial, com a ascenso da classe mdia e o advento dos meios de transportes relativamente baratos. Os deslocamentos passam a ser feitos com mais facilidade e pessoas de classes menos abastadas comeam a ser tambm denominadas turistas.

    Tal denominao, contudo, no entendida unanime-mente. Fontes diferentes apontam signifi cados diferentes para essa atividade. Por exemplo, no Websters New Univer-sity Dictionary, o turista defi nido como aquele que viaja por prazer.6 Ao mesmo tempo que essa defi nio possui fundamento, torna-se precria quando se evidenciam na classifi cao da demanda turstica segmentos como: 1. Lazer,

    5 Como por exemplo, Theobald em seu artigo Signifi cado, mbito e di-menso do turismo, in: Turismo Global, 2001.

    6 In: Theobald, 2001.

  • 37

    recreao e frias; 2. Visitas a amigos e parentes; 3. Negcios e motivos profi ssionais; 4. Tratamento de sade; 5. Religio e peregrinaes (THEOBALD, 2001).

    Em bibliografi a especfi ca de turismo (THEOBALD, 2001), as unidades bsicas referem-se a indivduos ou famlias que realizam atividades tursticas. O termo viajante refere-se a todos os indivduos que viajam entre duas ou mais locali-dades geogrfi cas, quer em seu pas de residncia (viajantes domsticos), quer entre pases (viajantes internacionais).

    Pode-se, entretanto, encontrar ainda a conceituao de turistas como visitantes temporrios que permaneam pelo menos por 24 horas no local visitado, e excursionistas, que se caracterizam como visitantes temporrios, permane-cendo menos de 24 horas no destino visitado, no vindo a pernoitar. Essas distines alcanam signifi cado especial no mbito mais pragmtico de discusses administrativas, relacionadas sobretudo ao item hospitalidade. Percebe-se, assim, que tais denominaes no podem ser simplesmente tomadas como dados ou como classifi caes consensuais ou universais. Dada a relevncia desse ponto, contudo, convm registrar aqui a relatividade da prpria terminologia.

    Em todas as classifi caes estatsticas, concentra-se porm a principal caracterstica da viagem: o movimento em crculo de uma pessoa que parte e regressa ou pretende regressar ao ponto inicial.

    Neste trabalho, tem-se a idia do turista como viajante integrado, como aquele que aprende atravs da viagem e promove trocas recprocas, surgindo at a denominao de ps-turistas, como evidencia Urry:

  • 38

    Temse argumentado que esse determinado conjunto

    de turistas est sendo substitudo por ps turistas mais

    sofi sticados, que procuram ter uma variedade de

    experincias e de encontros diretos com as popula-

    es locais. Alguns deles no se preocupam de modo

    algum com o fato de que aquilo que se lhes apresenta

    a simulao de uma cultura local. Esto interessados

    em toda parafernlia daquilo que est por detrs das

    cenas bem como na construo do desempenho e no

    cenrio (apud FEATHERSTONE, 1997, p. 166).

    Esse modelo de turismo est agregado respectiva cul-tura ou talvez seja mais apropriado dizer, s especifi cidades culturais. Remete formao histrica de uma localidade, bem como suscita a curiosidade de sua identidade cultural e de suas mltiplas infl uncias. Talvez o segmento corres-pondente ao turismo cultural seja o que mais se aproxime desse modelo de turismo e que contemple as aspiraes dos turistas, o que, por outro lado, demanda cuidados devido ao perigo das padronizaes e pasteurizaes culturais. Mas no que se constituem as segmentaes?

    Segmentar o mercado identifi car clientes com

    comportamentos homogneos quanto a seus gostos

    e preferncias a segmentao possibilita o conhe-

    cimento dos principais destinos geogrfi cos, dos

    tipos de transportes, da composio demogrfi ca

    dos turistas e de sua situao social e estilo de vida,

    entre outros elementos (ANSARAH, 2001, p. 27).

  • 39

    Convm passar, neste momento, caracterizao da segmentao do turismo cultural. Este pode se referir

    infl uncia de turistas a ncleos receptores que ofe-

    recem como produto essencial o legado histrico do

    homem em distintas pocas, representado a partir

    do patrimnio e do acervo cultural, encontrado nas

    runas, nos monumentos, nos museus e nas obras

    de arte (BENI, 1998, p. 381).

    O turista que busca conhecer o diferente detm um interesse crtico nos elementos culturais de uma outra so-ciedade, tendendo a respeitar, de maneira ativa e refl exiva, os valores e tradies diferentes dos seus. Interessa-se pelas origens, visita museus e stios histricos, procura conhecer as representaes sociais locais atravs da literatura, da culi-nria, do teatro e da interao com as pessoas da localidade receptora.

    Esse novo modelo de turista, que no se destaca completamente do modelo convencional de turista con-sumista, promove uma defrontao entre referncias locais e referncias mais amplas. Coloca o global frente ao local, ou pelo menos em integrao, procurando entender as questes ligadas s migraes, miscigenaes e hibridismos. Expande-se e desenvolve-se mediante o prprio fenmeno da globalizao, uma vez que propicia uma signifi cativa interao entre pessoas e a veiculao dos lugares em forma de propagandas e revistas especializadas, podendo servir de atrativo ou no a grupos de turistas.

  • 40

    Nesse contexto de mudanas em que se inserem o fenmeno da migrao e aquele do turismo, no se percebe s a mudana do homem. Essa mudana traz, imbricada, a modifi cao de produtos, imagens, comportamentos e culturas, colocando-se a o problema da dimenso ter-ritorial das prticas associadas ao universo do turismo. Trata-se, assim, de um fenmeno que ser percebido pelo homem que se desloca e se depara com novas realidades que no ajudou a construir, com novos modelos de vida de que passa a ser aprendiz, cuja necessidade o induz a assimilar, que serve de alicerce para um outro fenmeno, a globalizao.

    GLOBALIZAO E SUJEITO PS-MODERNO

    A globalizao implica um movimento de distancia-mento da idia originria de sociedade, preconizando uma quebra de barreiras. Pode ser visualizada como

    aqueles processos atuantes numa escala global, que

    atravessam fronteiras nacionais, interligando e co-

    nectando comunidades e organizaes em novas

    combinaes de espao tempo, tornando o mundo,

    em realidade e em experincia, mais interconectado

    (MCGREW, apud HALL, 1997, p. 71).

    interessante ressaltar que, apesar de o termo globali-zao conotar geralmente um tratamento na rea econmi-

  • 41

    ca, tambm assimilado no sentido de mundializao, ou seja, relativo ambincia cultural. Autores como Renato Ortiz (1998) distinguem global de mundial, relacionan-do o primeiro aos aspectos econmicos e tecnolgicos e o segundo, ao domnio especfi co da cultura. O autor pontua que a categoria mundo encontra-se articulada a duas dimenses; vincula-se primeiro ao movimento de globalizao das sociedades, mas signifi ca tambm uma viso de mundo, um universo simblico especfi co ci-vilizao atual.

    S se pode falar em cultura mundializada ou mundia-lizao numa nao cuja territorialidade esteja globalizada; por outro lado, a cultura nunca ser totalmente globalizada, uma vez que se fundamenta nas culturas locais e nas velhas culturas.

    O que fi ca caracterizado no processo global a dife-rena na compreenso espao-tempo, pois o mundo passa a ser entendido de forma bem mais acelerada, as distncias tornam-se bem mais curtas e os eventos ocorridos numa localizao se refl etem imediatamente em outros lugares. A nova maneira de ver o tempo rompe com a perspectiva cronolgica sobre o espao; comea ento a se desenvolver o que Castells (1999) denomina cultura da virtualidade, em que a simultaneidade e a intemporalidade passam a ser uma constante.

    A confuso quanto percepo do tempo e do espao passa a ser defi nida ou compreendida como o desenrolar de barreiras que separavam tradicionalmente as comunidades. A rigidez do que se entendia como local ou nacional e a

  • 42

    contraposio entre a aparente fi xidez dos conhecimentos tradicionais e o acesso a informaes acerca do que estava intramuros e alm desses faz com que se assista instaura-o dessa interconexo mundial. Com toda essa rapidez e infl uncia de um espao sobre o outro, o movimento citado da transculturao7 encontra terreno frtil para se propagar.

    Em localidades as mais diversas, os indivduos passam a absorver e desenvolver costumes semelhantes, tenden-cialmente uniformes. Roupas, alimentao, entreteni-mento, literatura, cinema, msica passam a fazer parte da cultura de uma mesma tribo universal. A mdia, atravs principalmente da TV e da Internet, uma das principais responsveis por essa rpida uniformizao.

    As pessoas que moram em aldeias pequenas, apa-

    rentemente remotas, em pases pobres do terceiro

    mundo, podem receber, na privacidade de suas

    casas, as mensagens e imagens das culturas ricas,

    consumistas, do Ocidente, fornecidas atravs dos

    aparelhos de TV ou de rdios portteis que as pren-

    dem aldeia global das novas redes de comunicao

    (HALL, 1997, p. 79).

    7 Transculturao aqui entendida como um processo de troca, um processo em que ambas as partes da equao resultam modifi cadas (IANNI, 2000, p. 106). Numa dinmica de reciprocidade cultural, ocorrem contribuies que podem concorrer para uma nova realidade, rica em seus diversos aspectos.

  • 43

    Ressalta-se da a rapidez telecomunicacional em detrimento dos processos de acomodao e assimilao anteriormente explicitado quando se colocava o fenmeno imigrao. Surge ento a preocupao de alguns tericos no sentido de que esses processos globalizantes tenham como efeito geral o enfraquecimento das formas nacionais de identidade cultural, colocando o global acima das iden-tidades nacionais.

    Em contrapartida, ao tempo em que se percebe de maneira to forte o vigor do processo de globalizao, existe um outro movimento concomitante no sentido de preser-vao da diferena. Seria uma articulao entre o nacional e o global. Kavin Robin observa que, ao lado da tendncia em direo homogeneizao global, h tambm uma fas-cinao diante da diferena e da mercantilizao da etnia e da alteridade (apud HALL,1997, p. 83).

    De acordo com esse entendimento, a globalizao passa a caminhar em paralelo ao reforamento das identidades locais. Ao mesmo tempo que se tornou interessante para o mundo a quebra de fronteiras econmicas e culturais, mediante a qual todos poderiam ter acesso aos mesmos bens de consumo e conhecimento sobre outros hbitos e costumes, no interessante para o globo que todos sejam iguais e que a cultura seja uniforme.

    Vale ressaltar que, apesar de essa atrao e ao mesmo tempo repulso frente ao diferente se constituir numa incoerncia, so movimentos identifi cados na modernidade pela caracterstica prpria de uma sociedade em constantes mudanas. Outro aspecto a ser esclarecido que, quando se

  • 44

    fala em aspectos culturais diferentes, no se trata de algo corres-pondente sua pureza, e sim maneira como so organizados e do forma a um signifi cado de pertena, pois, por mais hbridas que sejam suas origens, as pessoas ainda necessitam de refe-rncias. Tais referncias muitas vezes so aspectos peculiares de cada local, que suscitam o desejo de que sejam conhecidos, explorados e preservados por outras pessoas.

    O cuidado que se deve manter no trato de aspectos quanto resistncia ao hibridismo remete a alguns perigos: o primeiro seria propor o outro extremo - o fundamentalismo exacerbado, o nacionalismo particularista ou um absolutismo tnico e religioso; o segundo estaria associado ao entendimen-to da nova percepo espao/tempo.

    Neste mundo de movimento e de mudanas, de alte-ridades e resistncias, as noes de residncia, de lugar, de passado, podem ser alteradas em detrimento da facilidade e da rapidez frente aos deslocamentos. Segundo Lowenthal (1975),

    O passado um outro pas... Digamos que o passa-

    do um outro lugar, ou ainda melhor, num outro

    lugar. No lugar novo, o passado no est; mister

    encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em

    seguida necessidade de orientao. Para os migran-

    tes, a memria intil. Trazem consigo todo um

    cabedal de lembranas e experincias criado em

    funo de outro meio e que de pouco lhe serve para

    a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de

    entendimento da cidade. Suas experincias vividas

  • 45

    fi caram para trs e nova residncia obriga novas

    experincias. Trata-se de um embate entre o tempo

    da ao e o tempo da memria (LOWENTHAL,

    apud SANTOS, 2002, p. 328).

    Talvez a afi rmao de que a memria e as antigas expe-rincias se constituam em um arsenal intil seja um tanto quanto exagerado. Na verdade, antigas vivncias podem ajudar em um novo espao e em um novo tempo, mas a necessidade de encontrar o que Lowenthal denomina de uma terceira via procede no sentido da adequao dessas antigas experincias ao novo que se apresenta.

    Isso se observa quando se percebe que, aps o momento de impacto e atordoamento frente ao novo espao ou ao novo tempo, chegado o momento de se reformular a idia anteriormente elaborada das coisas, ambientes e pessoas para encarar a nova realidade. No novo momento e no novo espao, sero efetivadas as trocas entre os chegantes e os considerados autctones, seja no papel de migrante, seja no papel de turista. Nesse momento, o homem busca aprender o que nunca lhe foi ensinado, e pouco a pouco vai substituindo a sua ignorncia do entorno por um conheci-mento ainda que fragmentrio (SANTOS, 2002, p. 329).

    A vivncia e a convivncia em um novo meio ambiente iro permitir, aps os primeiros registros e impresses, o incio da assimilao dos novos espaos, desconstruindo um primeiro processo de alienao, gerando, ao contrrio, o surgimento de processos de integrao e de entendi-mento. Essa velocidade de adaptao frente ao mundo de

  • 46

    mudanas no permite que o homem permanea com seus pensamentos em repouso por muito tempo. O exerccio do repensar assume um carter de urgncia. O homem passa a se entender como um ser que deve estar sempre em constante disposio, renovando suas foras diariamente.

    Esse homem de movimentos e mudanas pode ser entendido como o indivduo que absorve o choque das novidades e, com isso, passa a realizar as construes e descontrues de seus conhecimentos culturais com maior facilidade. As novas formulaes efetivadas se constituem como um suporte de vivncias mais poderoso para esse indivduo, permitindo uma operacionalizao efi caz de descobertas e um papel signifi cativo na produo da histria dos novos espaos.

    Dessa nova percepo de homem pode surgir o com-promisso com a idia de um pluralismo cultural, uma vez que no se deve entender a cultura, seja na acepo de cultura de origem, seja na acepo de cultura que se abraa ou se quer descobrir, como uma entidade hermeticamente fechada e sim permeada de aberturas, de possibilidades de infl uncias de uma sobre as outras. Cuellar afi rma que

    As culturas encontram-se em um estado constante

    de fl uxo, conduzidas por foras internas ou externas.

    Tais foras podem produzir efeitos benfi cos de aco-

    modao e harmonia baseados em aes voluntrias,

    ou, ao contrrio, podem gerar reaes involuntrias

    de confl ito violento, de dominao e de exerccio

    ilegtimo de poder (1999, p. 69).

  • 47

    A partir das consideraes acima, poderamos proble-matizar, numa linguagem mais prxima da antropologia fi losfi ca, a condio humana numa sociedade cada vez mais globalizada.

    Inicialmente, pode-se colocar um axioma que, por si s, j contm uma questo dramtica: a necessidade de conviver deveria engendrar, dadas as premissas acima, o princpio do respeito entre as culturas ou pelo menos um nvel de tolern-cia e respeito que favorea uma boa convivncia entre povos. Dito de outra forma, nos tempos ps-modernos, o grau de globalizao alcanado pelas diversas sociedades deveria dar suporte a padres de convivncia em que a alteridade no signifi casse estorvo, e sim possibilidades sempre novas de intercmbio e crescimento.

    O pluralismo emerge para valorizar o tesouro acumu-lado de experincias, de sabedoria humana. As culturas se benefi ciam do contato e da defrontao quando se percebe nesses movimentos suas caractersticas e peculiaridades. Esse respeito e essa tolerncia evidenciados so elementos imprescindveis no relacionamento entre pases, seja no fenmeno da migrao ou do turismo.

    Em se tratando de uma aproximao respeitosa entre grupos, seja de migrantes, seja de turistas, a identidade t-nica no ser um aspecto importante para ponderaes, mas poder ocorrer em um movimento turstico ou migratrio um desencadeamento gerador de confl itos em detrimen-to de diversidades tnicas, uma vez que, como evidencia Poutignat,

  • 48

    A identidade tnica constri-se a partir da diferena.

    A atrao entre aqueles que se sentem como de uma

    espcie indissocivel da repulsa diante daqueles

    que so percebidos como estrangeiros. Esta idia

    implica que no o isolamento que cria conscincia

    de pertena, mas ao contrrio, a comunicao das

    diferenas das quais os indivduos se apropriam para

    estabelecer fronteiras tnicas (1995, p. 40).

    Vale salientar ainda o registro de Werner no sentido de que a prpria noo de identidade tnica de uma pessoa determinada por vrios fatores, tais como descendncia, idioma, costumes e a pessoa que est fazendo a identifi cao (1992, p. 138). Com base nessas prerrogativas, a caracters-tica principal registrada uma conscincia de distino e ao mesmo tempo de formas de interao que s podem surgir num contato social compartilhado. Assim, a etnicidade no pode ser identifi cada e relacionada a apenas um grupo ou um determinado tipo de indivduo, mas a todos os grupos que transitam de alguma forma nessa complexa interface de relaes, entendendo que a importncia desse debate ir variar de acordo com as pocas e as situaes.

    Quando desses contatos entre diferentes populaes resulta o confl ito - aqui entendido como uma interceptao do caminho atravs da realizao de seus desejos, surgindo rivalidade, antipatias, crticas de forte tonalidade emotiva e assim tornando-se comuns as retaliaes pessoais ou grupais (PEARSON, 1975, p. 188) - , o fenmeno do reforo das identidades tnicas pode ocorrer. Segundo Cuellar,

  • 49

    Ocorre particularmente quando o processo de mi-

    grao gera a competio pelo controle do acesso

    riqueza econmica, ao poder poltico e ao status

    social. Isso tambm ocorre quando existe uma

    forte noo de etnicidade territorial, na qual certos

    grupos tnicos se consideram enraizados no espao

    fsico como fi lhos da terra ou quando a migrao

    gera bruscas mudanas no equilbrio demogrfi co

    e na mistura entre grupos tnicos (1999, p. 81).

    Fenmenos como a xenofobia e o racismo podem anteceder ou causar os confrontos e os confl itos. A xeno-fobia consiste no temor, na averso ou mesmo no dio aos estrangeiros que podem advir de expectativas frustradas de desenvolvimento, das ameaas a valores culturais e principal-mente de uma retrica de proteo da identidade nacional, no havendo a a noo de uma sociedade multicultural. J o racismo pode ser entendido como preconceito ou antagonismo frente a outros grupos, com base na crena da sua prpria superioridade (cf. CUELLAR, 1999). Esses fenmenos no iro permitir o contato entre grupos, invia-bilizando a idia de um pluralismo cultural.

    * * * * *

    Em sntese, estabelecendo a relao entre os conceitos de migrao, turismo e globalizao, percebem-se similari-dades e contradies entre esses fenmenos. Na anlise do processo migratrio, identifi cam-se os diferentes, que

  • 50

    aportam numa determinada localidade de iguais: uma vez assimilados os costumes, tornam-se tambm iguais. Em processo inverso, quando se refere globalizao, os diferentes tendem a homogeneizar e posteriormente, em defesa de uma preservao cultural, tendem a levantar a bandeira do resgate das tradies.

    Como no caso da imigrao, o turismo consiste na mo-bilidade e no deslocamento. pensado em termos dos locais de origem e de recepo que iro acolher de forma positiva ou negativa o migrante ou o turista. Convm lembrar, contudo, que o carter turstico implica o aspecto do transitrio e re-versvel, enquanto em termos de migrao pode-se pensar em deslocamentos defi nitivos. O migrante, vindo a fazer parte em defi nitivo do local de recepo, no pode deixar de participar da dinmica do hibridismo. Transplanta ento seus hbitos e costumes, dando origem a atrativos regionais que podem, por sua vez, infl uenciar a escolha do turista.

    O viajante migrante, diferentemente do viajante tu-rista, se prope ou no est obrigado a completar o crculo da viagem, num processo de retorno. Essa etapa poder ser cumprida ou no. Algumas correntes migratrias e tambm migrantes individuais promovem seu deslocamento com o in-tuito de retorno, principalmente quando o motivo da viagem passa por questes econmicas. Nem sempre a inteno pode ser concretizada. No meio da viagem, fatores no previstos podem ocorrer, desvirtuando-se o projeto original.

    Enquanto o turista passa, o migrante fi ca. Mesmo no se sabendo ao certo o tempo da viagem, o processo de aco-modao de costumes ocorre em ambos os casos. Hbitos e

  • 51

    maneiras tendem a ser adequados aos novos costumes para que se vivencie um pouco de outra cultura e ao mesmo tempo no se ofenda ou agrida o receptor.

    Nesta era to marcada pela globalizao, o turismo confunde os prprios turistas em relao s suas identidades. Observa-se a a fora com que se processa a tenso entre o local do eu e o local do outro, entre o que faz parte da pr-pria cultura e o que faz parte da cultura do outro, tornando indispensvel um conhecimento ainda maior a respeito de questes como invases, colonizaes e imperialismo. O descaso com relao a essa questo poderia levar, indesejavel-mente, a conceber e planejar o turismo de forma a fortalecer o vetor da homogeneizao cultural, que, segundo alguns autores, poderia advir ou ser reforado com a globalizao. Ficariam assim ameaados a identidade e os patrimnios culturais local, regional e nacional, podendo ocorrer uma superposio de valores de uma cultura mundializada, como tambm a falncia das tradies.

    Ao mesmo tempo, pode-se atestar que foi o processo de globalizao que alavancou o desenvolvimento do turismo, quebrando barreiras societais e culturais, estimulando e facili-tando o seu crescimento. Com o encurtamento das distncias atravs do desenvolvimento tecnolgico dos transportes e das mdias, as curiosidades foram sendo estimuladas, acelerando o processo turstico. O turista passa a ser compreendido como um ser participante, um cliente que requer aporte pessoal, mental e cultural que atenda a suas expectativas e desejos, cada vez mais provocados pela informao globalizada (AVIGHI apud LAGE, 2000, p. 104).

  • 52

    Atualmente, essa tenso entre reafi rmao de espao identitrio versus homogeneizao est estimulando a cria-o de um novo modelo de cidadania, que tem contribudo para uma viso de pluralidade cultural. Tal modelo resgata valores tradicionais e difunde as culturas locais atravs dos instrumentos da comunicao, bem como favorece a procura de novas confi guraes e novos estilos, melhor apropriados aos contextos regionais e locais, e envolve o patrimnio cultural suscitando refl exo e compreenso.

    Pode-se afi rmar que, atravs das grandes correntes migratrias ocorridas nos sculos passados, povos diferentes passaram a ter conhecimento de que existiam outros mo-dos de vida diferentes dos seus. Essas descobertas geraram preconceitos, rivalidades e desconfi anas. Contudo, a partir do advento da globalizao, o medo do diferente passa a declinar, tornando-se mais constante o contato com a cul-tura do outro.

    No fi nal do sculo XIX e no incio do sculo XX, o Brasil foi uma das opes para os povos do Oriente, mais precisamente srios e libaneses, aportarem em busca de me-lhores condies de vida. Algumas hipteses so discutidas em funo dessa opo e dos locais escolhidos dentro do territrio brasileiro para sua fi xao. Quanto integrao entre esses povos e os brasileiros, so quase unnimes, na literatura pesquisada e nos depoimentos colhidos, as con-sideraes sobre a facilidade de interao entre eles, sendo poucos os exemplos de rivalidades e preconceitos agudos entre os mesmos.

  • 53

    O medo do diferente no foi uma caracterstica evidenciada no processo migratrio dos srios e libaneses para o Brasil. Um nmero signifi cativo de depoimentos e parte considervel da literatura atestam uma receptividade amigvel entre o pas de recepo e os imigrantes srios e libaneses. Objeto de curiosidade, sim, pois trata-se de pessoas de linguagem e costumes diferentes, que souberam conviver de forma integrada com exceo de algumas dissenes entre eles prprios com outros grupos tnicos no territrio brasileiro. Pode-se evidenciar como exemplo o depoimento abaixo:

    O Brasil ocupa um lugar eminente no corao dos

    libaneses, sendo um pas que a partir de meados do

    sculo passado acolheu grupos de imigrantes oriun-

    dos do Pas dos Cedros. O Brasil abriu os braos

    para os acolher, num clima de liberdade e hospitali-

    A IMIGRAO SRIA E LIBANESA

    2.

  • 54

    dade, sendo-lhes permitido e aos seus descendentes,

    participar de uma vida agradvel, tornando-se fi lhos

    fi is de sua nova ptria. Os libaneses contriburam

    para a construo do pas, participando ativa-

    mente da sua vida, tanto patritica como social,

    adaptando-se as suas tradies, costumes e cultura

    (HRAOU apud Khatlab, 1999, p. 10).

    Difi cilmente se poderia falar do Brasil sem considerar a importncia de fortes traos de miscigenao ou encontros tnicos em sua formao histrica. A populao brasileira em grande medida formada por imigrantes de vrias origens e seus descendentes.

    Uma discusso contempornea a respeito das relaes internacionais est intimamente relacionada ao processo de mudana pelo qual passam as diversas sociedades. Seu rpido processo de transformao, aliado diminuio das distncias entre as naes, conseqncia de fenmenos como o avano e desenvolvimento dos meios de transporte e das comunicaes, que levaram pases geografi camente distantes a serem mais prximos uns dos outros.

    Este captulo reporta-se imigrao sria e libanesa, dividindo-se entre um olhar mais geral, a partir de estudos historiogrfi cos, e um outro olhar, mais preciso, sobre essa mesma imigrao no caso de Ilhus.

  • 55

    BREVE HISTRICO DA IMIGRAO RABE

    PARA O BRASIL

    Numa perspectiva mais antiga e menos contempo-rnea (est-se falando de fi ns do sculo XIX e incio do sculo XX), coloca-se a imigrao como uma realidade que aproximou contingentes de pessoas semelhantes e diferentes, estreitando por vezes laos de amizade, acor-dos e cooperaes polticas internacionais ou gerando confl itos que deram origem a guerras tnicas, polticas e religiosas. Vale ressaltar que a imigrao dos povos rabes no se efetiva em apenas um determinado momento. Autores como Fausto (2000) subdividem esse fenmeno em algumas etapas:

    No Brasil, a imigrao de srios e libaneses comeou

    a avolumar-se s vsperas do sculo XX, atingiu seu

    auge no pr-guerra (1913: 11.101 entradas) para

    interromper-se durante o confl ito, estabilizou-se nos

    anos vinte ao redor de cinco mil entradas anuais e

    arrefeceu no incio da dcada de trinta, combalida

    pela depresso econmica e pelo sistema de cotas

    adotado pelo governo brasileiro, inspirado em seu

    congnere americano (TRUZZI apud FAUSTO,

    2000, p. 318).

    Destaca-se, ento, o intervalo compreendido entre o fi nal do sculo XIX e incio do sculo XX como o perodo das grandes migraes. Por volta de 1880, uma grande leva

  • 56

    de imigrantes rabes chegou ao Brasil.8 So considerados, hoje, como uma das maiores comunidades no exterior, estimados em mais de 6 milhes de pessoas, formada por srios e libaneses e seus descendentes.9 Truzzi esclarece que equivocada a expresso srio-libaneses (com trao de unio), muitas vezes encontrada, na medida em que, sobretudo aps a Primeira Guerra Mundial, as dissenses entre os dois gru-pos, trazidas do Oriente Mdio, foram recriadas no Brasil, como se pode constatar no relato abaixo:

    Os srios sempre reclamaram da arrogncia e da

    presuno de superioridade dos libaneses, pois na

    verdade, para eles, a grande Sria sempre fora um

    nico territrio que inclua o Monte Lbano em

    suas fronteiras. Para revidar a vaidade libanesa,

    lembraram-se de que o Lbano, por ser montanho-

    so, sempre acolhera fugitivos e ladres ao longo de

    sua histria. Os libaneses, por sua vez, trataram de

    marcar enfaticamente suas distines entre os srios.

    O Lbano tem, como vimos, 80% de alfabetizados.

    A Sria, 20%. No Lbano, onde predominam os

    8 A imigrao rabe para as Amricas, nas suas vrias etapas histricas, no se deu a partir dos pases rabes em geral, mas basicamente de trs pases. A maioria proveio do Lbano, com aproximadamente 65%, da Sria, por volta de 30% e fi nalmente da Palestina, com 5% (atualmente 65% so provenientes do Lbano, 25% da Sria e 10% da Palestina (ZAIDAN, 2001, p. 75).

    9 A populao libanesa no Brasil compreende 6% da populao brasileira (KHATLAB, 1999, p. 19).

  • 57

    cristos, a civilizao que l teve seu bero, no tem-

    po dos fencios, continua encontrando um campo

    propcio a sua expanso. Na Sria, a maioria mu-

    ulmana esmagadora: 90%. Ningum ignora que

    os muulmanos so conservadores ao extremo [...].

    Os libaneses autodenominam-se mais industriosos

    do que os srios, um eufemismo sutil que sugere

    serem eles mais empreendedores, mais vinculados

    s atividades industriais e fi nanceiras, enquanto as-

    sociam os srios mais ao comrcio e, portanto, mais

    ao passado de mascates (TRUZZI apud FAUSTO,

    2000, p. 338).

    Essas dissenes internas, que sempre existiram entre esses dois povos e que terminaram por se reproduzir no Brasil, no refl etem a imagem que deles fazem os brasileiros. Tal rivalidade se torna de menor repercusso quando se analisa o fenmeno das grandes migraes, deslocamento efetuado pelos dois povos em razo de problemas de maior vulto, relacionados s dominaes de que foram vtimas e da sua prpria sobrevivncia.

    Nem os srios nem os libaneses encontravam-se satisfei-tos com a situao do Oriente; encontravam-se afl itos por viajar em busca de uma vida prspera. Desejavam livrar-se de um cotidiano de sofrimentos, pobreza e inimizades, acarretado pela guerra civil.

    A maior parte daqueles aqui chegados decidiu pela imigrao devido precria situao econmica da terra de origem e inferioridade scio-religiosa dos cristos que

  • 58

    constituram a maioria dos imigrantes numa sociedade de maioria islmica. Estimativas variam muito; contudo, mais libaneses do que srios emigraram, e muito mais cristos do que no cristos (KNOWTON, 1960, p. 17). Do ponto de vista econmico-demogrfi co, as causas da imigrao esto relacionadas aos aspectos conjunturais, uma vez que, proporo que as redes de transportes em expanso integravam territrios mais abrangentes, bens manufaturados mais baratos invadiram os mercados rurais, passando a minar a produo de artesos independentes ou de trabalhadores rurais que se engajavam na produo de pequena escala domiciliar, com o intuito de complementar suas rendas. Tambm o rpido crescimento das cidades criou um novo mercado de grandes propores para uma produo agrcola comercial de maior escala, que acabou deslocando a produo de subsistncia.

    As invases, a violncia e a prpria necessidade de so-brevivncia levaram um contingente signifi cativo de srios e libaneses a emigrar. Com a escassez de possibilidades em seu local de origem, comearam a dispersar-se pelo mundo em busca de um novo espao. Ademar de Barros Filho res-salta que, na segunda metade do sculo XIX, as condies de vida eram difceis, havendo poucas terras e muita luta em torno da irrigao. As populaes cresciam e comeava o xodo das montanhas para o litoral. A insegurana po-ltica sob o domnio turco, as difi culdades econmicas e problemas religiosos entre muulmanos e cristos levaram ao processo migratrio (apud KHATLAB, 1999, p. 61). A princpio, o objetivo era constituir riquezas e retornar. Essas

  • 59

    pessoas partiam cheias de esperana de voltar abarrotadas de dinheiro e construir um bangal com tetos cobertos de telhas vermelhas10 (ZAIDAN, 2001, p. 56).

    Situada entre a sia, a frica e a Europa, herdeiros da antiga Fencia, a regio da Sria e do Lbano foi, por diver-sos e vastos perodos, invadida por diversos povos: hititas, egpcios, assrios, persas, macednios, gregos, romanos, dentre outros, e conquistados pelos rabes (KHATLAB, 1999, p. 26). Passou depois ao domnio dos francos (1098-1289), dos mamelucos do Egito (at 1516) e, em seguida, ao governo turco. A Turquia retirou-se dali no incio da I Guerra Mundial (1914), aps a vitria das foras aliadas sobre as tropas turcas e alems. Sria e Lbano, a partir desse momento, passaram a ser submetidos ao mandato francs (cf. KHATLAB, 1999).

    Em 1918, ao fi m da I Grande Guerra Mundial,

    com a derrota da Alemanha e da Turquia, o Orien-

    te, j cobiado, foi dividido entre as duas grandes

    potncias da poca: Inglaterra e Frana, fi cando

    Palestina, Jordnia e Iraque sob o domnio cha-

    mado de Protetorado, da primeira, e o Lbano e a

    Sria sob o domnio da segunda. Assim, em 1919,

    a Frana encontrava-se em territrio libans e, em

    10 As casas cobertas com telhas vermelhas demonstravam que eram moradias de migrantes que voltaram para a terra natal trazendo algum dinheiro, ou que remeteram numerrio para suas famlias no Lbano (ZAIDAN, 2001, p. 56).

  • 60

    1920 invadiu Damasco. Na Sria, as duas dcadas

    e meia de colonizao foram repletas de revoltas,

    sendo a mais violenta a corrida na montanha dos

    drusos, chefi ada por Sultan El Atrash, na qual

    muitos libaneses drusos e intelectuais cristos

    participaram. Em 1943, cristos e muulmanos

    libaneses se rebelaram contra o domnio francs,

    exigindo sua independncia (ZAIDAN, 2001, p.

    30).

    Por ocasio do marco das grande migraes, a invaso era liderada pelo Imprio Turco Otomano, que no oferecia liberdade e segurana aos habitantes dos dois territrios. Nessa poca, muitos jovens desertores do exrcito otomano vieram para o Brasil. Para esses jovens, servir ao exrcito otomano era indigno e a eles restava a alternativa de migrar (cf. HAJJAR, 1985).

    Com a derrota dos turcos na Primeira Guerra mundial, a Frana assumiu o controle poltico da regio. Sob o regime de protetorado francs, o Lbano, cuja capital Beirute, ganhou autonomia em relao ao restante da Sria, cuja capital Damasco. Esses pases s vieram a atingir a plena independncia em 1943 e 1946, respectivamente.

    Duas foram as rotas de emigrao abertas aos srios e aos libaneses. A primeira e mais antiga conduzia ao Egito, Sudo e s colnias francesas e britnicas na frica Oriental e Central. A segunda e mais recente leva s Amricas e da Austrlia, Nova Zelndia e s ilhas do Pacfi co. Em geral, os cristos preferiam a segunda e os no-cristos, a primeira.

  • 61

    Em princpio, os srios e os libaneses emigraram para o Egito procura de trabalho ou para estabelecer negcios ou indstrias; mais tarde, ento, alaram vos mais arro-jados, chegando Europa e s Amricas. Segundo Truzzi, a maior parte dos muulmanos preferiu o Egito ou ainda outros pases da frica, ao passo que os cristos praticamente constituram a totalidade dos que buscaram a Amrica antes da Segunda Guerra (TRUZZI, 1997, p. 23).

    A sada para o Egito se deu a partir de 1856. Esse pas ligava-se ao Lbano por terra e apresentava um campo promissor de trabalho agrcola e industrial, principalmente na regio de Alexandria. Para os pases e continentes mais longnquos, os deslocamentos eram mais difceis, deman-dando mais coragem e recursos, mas nem por isso deixaram de ser escolhidos pelos srios e pelos libaneses. Muitos deles afi rmavam com freqncia o desejo de ter a Amrik Am-rica. Sobre o deslocamento, Knowton afi rma que,

    De Marselha e Gnova, os mascates srios e libane-

    ses penetraram em todas as partes da Europa com

    alguns pacotes de mercadoria. s vezes acumulavam

    dinheiro sufi ciente para abrir pequenos negcios ou

    prosseguir para outros pases com um bom capital.

    Alguns trabalhavam como agentes das companhias

    de navegao e faziam-se passar por emigrantes de

    torna-viagem para persuadir os seus patrcios a to-

    mar uma certa linha ou uma determinada direo

    (KNOWTON, 1960, p. 28, 29).

  • 62

    As difi culdades quanto sada desses migrantes de sua terra de origem11 eram ainda acentuadas pela explorao de que eram vtimas. Primeiramente, eram extorquidos em suas aldeias pelos agentes de imigrao. Ao chegar ao Porto de Beirute, eram hospedados em albergues imundos, onde esperavam os navios e eram explorados pelos intermedirios do trfi co e do embarque clandestino.

    Esses homens, no Lbano, eram denominados de Simssar. Quando o navio atracava no Porto de Beirute, mandavam seus empregados (ghulmans), que faziam papel de leiloeiros de gargantas gritantes, anunciarem a chegada e a partida dos navios. Os anncios chegavam ao conhe-cimento dos que tinham planos de migrar, transmitidos pelos burriqueiros que faziam o transporte dos produtos agrcolas entre os vilarejos e as cidades. Os que estavam prontos para viajar imediatamente partiam para os portos com suas economias juntadas pela venda de seus poucos pertences (ZAIDAN, 2001, p. 57).

    Aps a explorao em Beirute, tambm eram vtimas de abuso na primeira estao de viagem em Marselha ou Gnova, pois o agente de navegao primeiramente verifi cava o saldo de dinheiro no bolso de cada um. O passageiro que tinha um pouco mais de moedas, o agente colocava em um pensionato de sua propriedade, aludindo que no havia mais

    11 Notadamente a polcia das autoridades turcas dominava o pas, pois o sultanato otomano no permitia a emigrao, especialmente dos homens de 18 a 30 anos que eram obrigados ao alistamento no exrcito. A sada era, assim, considerada ilegal (ZAIDAN, 2001, p. 66).

  • 63

    lugares no navio, com a fi nalidade de ganhar dinheiro com as dirias, at que acabassem suas economias. Ao que tinha pouco dinheiro, o agente mandava no primeiro navio, no importando qual destino o passageiro queria tomar.

    O Simssar recebia a gorjeta do imigrante e dividia com o policial, que o levava por trs da aduaneira e o jogava no poro, de onde no saa at que o navio partisse do porto. s vezes, usavam o migrante como carregador; assim, ele levava a primeira carga e no retornava, fi cando escondido, no permitindo a inspeo legal (ZAIDAN, 2001, p. 66).

    Viajavam sem proteo alguma do Estado, geralmen-te de maneira individual, contrariamente aos migrantes de naes europias como Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda, que gozavam de certa proteo e subsdio do governo. Nessa poca, no seria mesmo possvel que os governos dos pases rabes participassem de algum acordo, uma vez que seus Estados no eram ainda soberanos. Os rabes se destacaram por sua fi xao nas cidades e pelo fato de no integrarem a corrente de imigrao subsidiada (TRUZZI, 1997, p. 11). Chacur tambm corrobora essa afi rmao quando diz que,

    Alm disso, o srio em geral, vamos dizer libans,

    jordaniano, palestino, todos vieram por conta

    prpria. Alguns que no tinham posses pediram

    dinheiro emprestado para a passagem. Mas, nin-

    gum veio por conta do governo daqui como, por

    exemplo, os que vieram trabalhar na agricultura:

    poloneses, italianos, portugueses, espanhis. No.

  • 64

    Tudo por conta prpria. Espontnea, particular

    (apud GREIB et al., 1998, p. 29).

    Viajavam com passaporte turco,12 ou seja, do Imprio Otomano, do qual no gozavam benefcio poltico e ainda recebiam a mesma denominao turcos nos pases de recepo, alcunha que feriu e aborreceu muitos libaneses, srios e palestinos, por terem que assumir a nacionalidade do dominador.

    Os imigrantes que chegaram ao Brasil entre os anos

    de 1860 e 1914 traziam nas mos um passaporte, ou

    outro documento de identidade indicando cidadania

    turca. Entretanto na realidade, eram fugitivos do

    domnio turco-otomano, cujo jugo estendeu-se desde

    1516 a 1919 (ZAIDAN, 2001, p. 73).13

    O sonho de fazer a Amrica era direcionado principal-mente para a Amrica do Norte, mais precisamente para

    12 Todos os imigrantes do Oriente Prximo foram classifi cados como tur-cos at 1892, quando os srios passaram a ser inscritos separadamente. Como o Lbano era considerado parte da Sria at a Primeira Guerra Mundial, todos os libaneses foram includos como srios. Os libaneses foram alistados parte pela primeira vez em 1926; a grande maioria dos migrantes registrados como turcos eram de fato srios e libaneses, junto a um pequeno grupo de armnios (KNOWTON, 1960, p. 37).

    13 Chegando s Amricas, os imigrantes rabes eram rotulados com as mais variadas denominaes. No Brasil, foram chamados de turcos. Na Amrica do Norte, receberam o nome de srios. Em outros lugares, foram chamados de rabes ou srio-libaneses. Essa balbrdia de nomenclaturas se deveu instabilidade scio-poltica.

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    os Estados Unidos. Muitos chegavam ao Brasil sabendo que seria mais fcil neste pas tirar o visto de entrada para os Estados Unidos da Amrica (BARROS FILHO apud KHATLAB, 1999, p. 61). Os imigrantes ouviam falar das facilidades existentes no Novo Mundo e procuravam partir em sua direo. Os turistas americanos que passaram a entrar no pas aps 1860 eram bastante benevolentes quanto aos salrios e gorjetas, fortifi cando a idia estereotipada de que a Amrica era uma terra de inesgotvel riqueza. Alguns nativos terminavam por trabalhar para os turistas como guias e familiarizavam-se com os seus hbitos e modos de vida. Os que sabiam falar o ingls e o francs detinham mais perspectivas em relao a empregos e negociantes estrangei-ros. Zaidan ratifi ca esse comportamento quando assinala:

    Outro motivo que atraa a imigrao para as Am-

    ricas eram os trajes fi nos e a vultuosa quantia gasta

    pelos peregrinos em suas excurses para a Terra

    Santa. A diferena econmica entre os peregrinos

    e a populao local era tanta que s vezes uma ge-

    nerosa gorjeta de um peregrino valia por um ano

    de salrio de um cidado local. As principais con-

    versas que circulavam entre habitantes locais eram

    mais ou menos as seguintes: estes estrangeiros so

    muito ricos, esto cheios de ouro e na terra deles

    (Amrica) deve-se encontrar ouro no meio da rua.

    Assim, surgiram as primeiras emigraes s Amri-

    cas e tambm a fama de que se encontrava ouro no

    meio da rua (ZAIDAN, 2001, p. 34).

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    No Novo Mundo, Estados Unidos, Brasil e Argentina e, secundariamente, Mxico e Canad foram os pases que mais receberam imigrantes srios e libaneses. Muitos dos que se estabeleceram no Brasil pretendiam na verdade dirigir--se aos Estados Unidos. Desembarcavam acreditando estar chegando na Amrica do Norte, sendo enganados pelas companhias de navegao que os traziam para a Amrica do Sul. Entre os primeiros grupos de srios e libaneses a entrar nos Estados Unidos, houve muitos que, devido a doenas nos olhos e analfabetismo, no puderam fi car. As companhias de navegao foram legalmente solicitadas a lev-los de volta a seu pas de origem. Ao invs de levarem de volta para Sria e Lbano, desembarcavam-nos no Rio de Janeiro (KNOWTON,1960, p. 34). queles que recla-mavam dizendo que estavam na Amrica errada, ouviam: Tudo Amrica! Sem outra opo, permaneciam onde eram deixados.

    Uma outra hiptese atribui a atrao, pelo Brasil, desses imigrantes ao vicejamento das culturas agrcolas.14 Nessa poca, chamava a ateno o desenvolvimento do ciclo da borracha no Norte,15 dos minrios no Centro e do caf no

    14 No caso paulista, grande parte deles foi atrada pela pujana de uma lavoura cafeeira em desenvolvimento, que semeava estmulos e opor-tunidades aos recm-cheg