2
Antes de mais, pelo nome de Ideia compreendemos algo que está na nossa mente; logo, as marcas impressas no cérebro não são ideias, pois tenho por certo que a Mente é outra coisa que o cérebro ou que a parte mais subtil da substância do cérebro. Ora na nossa mente há muitas coisas, por exemplo, pensamentos, percepções, afectos, que sabemos não serem ideias, ainda que nãos e façam sem ideias. Para nós, a ideia não consiste em algum acto de pensar, mas numa faculdade , e dizemos ter ideia da coisa, mesmo que não pensemos nela, se podemos pensar nela quando se dê ocasião para isso. Há aqui também alguma dificuldade, pois temos a faculdade remota de pensar acerca de todas as coisas, mesmo que não tenhamos ideias disso, porque temos a faculdade de as receber; logo, a ideia requer alguma faculdade ou facilidade próxima de pensar na coisa. Mas nem sequer isso é suficiente, pois quem tem um método, se o segue, pode chegar à coisa, mas não tem por isso a ideia da coisa. Por exemplo, se enumerar com ordem as secções do cone, é certo que chegarei ao conhecimento das hipérboles opostas, ainda que não tenha ideia delas. Logo, é necessário que haja algo em mim que não só conduza à coisa, mas também a exprima. Diz-se que alguma coisa exprime quando há nela caracteres que respondem a caracteres da coisa expressada. Mas essas expressões são várias, por exemplo, o módulo da máquina exprime a própria máquina, as projecções da coisa num plano exprimem o sólido, o discurso exprime os pensamentos e as verdades, os caracteres exprimem os números, a equação algébrica exprime o círculo e qualquer outra figura. E o que todas estas expressões possuem em comum é que só pela contemplação dos caracteres de aquilo que exprime podemos chegar ao conhecimento das propriedades que correspondem à coisa expressada. de onde é manifesto que não é necessário que o que exprime seja igual à coisa expressada, sempre que se conserve alguma analogia entre os caracteres. É manifesto também que algumas expressões têm um fundamento na natureza, outras frequentemente fundam-se em parte no arbítrio, como sejam as expressões que se fazem por vozes ou caracteres. Aquelas que se fundam na natureza ou exigem alguma semelhança, como a que existe entre o

Quid Sit Idea

Embed Size (px)

DESCRIPTION

text by Leibniz

Citation preview

Page 1: Quid Sit Idea

Antes de mais, pelo nome de Ideia compreendemos algo que está na nossa mente; logo, as marcas impressas no cérebro não são ideias, pois tenho por certo que a Mente é outra coisa que o cérebro ou que a parte mais subtil da substância do cérebro.

Ora na nossa mente há muitas coisas, por exemplo, pensamentos, percepções, afectos, que sabemos não serem ideias, ainda que nãos e façam sem ideias. Para nós, a ideia não consiste em algum acto de pensar, mas numa faculdade, e dizemos ter ideia da coisa, mesmo que não pensemos nela, se podemos pensar nela quando se dê ocasião para isso.

Há aqui também alguma dificuldade, pois temos a faculdade remota de pensar acerca de todas as coisas, mesmo que não tenhamos ideias disso, porque temos a faculdade de as receber; logo, a ideia requer alguma faculdade ou facilidade próxima de pensar na coisa.

Mas nem sequer isso é suficiente, pois quem tem um método, se o segue, pode chegar à coisa, mas não tem por isso a ideia da coisa. Por exemplo, se enumerar com ordem as secções do cone, é certo que chegarei ao conhecimento das hipérboles opostas, ainda que não tenha ideia delas. Logo, é necessário que haja algo em mim que não só conduza à coisa, mas também a exprima.

Diz-se que alguma coisa exprime quando há nela caracteres que respondem a caracteres da coisa expressada. Mas essas expressões são várias, por exemplo, o módulo da máquina exprime a própria máquina, as projecções da coisa num plano exprimem o sólido, o discurso exprime os pensamentos e as verdades, os caracteres exprimem os números, a equação algébrica exprime o círculo e qualquer outra figura. E o que todas estas expressões possuem em comum é que só pela contemplação dos caracteres de aquilo que exprime podemos chegar ao conhecimento das propriedades que correspondem à coisa expressada. de onde é manifesto que não é necessário que o que exprime seja igual à coisa expressada, sempre que se conserve alguma analogia entre os caracteres.

É manifesto também que algumas expressões têm um fundamento na natureza, outras frequentemente fundam-se em parte no arbítrio, como sejam as expressões que se fazem por vozes ou caracteres. Aquelas que se fundam na natureza ou exigem alguma semelhança, como a que existe entre o círculo grande e o pequeno ou a região e o mapa que a representa; ou então por certa conexão, como a que existe entre o círculo e a elipse que o representa visualmente, pois cada ponto da elipse corresponde, segundo uma certa lei, a cada ponto de círculo. Em tal caso, o círculo seria mesmo mal representado por outra figura mais parecida. Do mesmo modo, todo o efeito íntegro representa a causa plena, e pode-se sempre a partir do conhecimento de tal efeito chegar ao conhecimento da sua causa. Do mesmo modo, as coisas que alguém fez representam a sua alma, e o próprio mundo de algum modo representa Deus. Pode também acontecer que aquelas coisas que a si próprias reciprocamente se exprimem tenham origem na mesma causa, por exemplo, os gestos e o discurso. Assim também, os surdos compreendem as pessoas que falam não pelo som, mas pelo movimento da boca.

Desta forma, dizer que a ideia das coisas está em nós não é senão dizer que Deus, autor ao mesmo tempo das coisas e das mentes, imprimiu na mente uma faculdade de pensar, de tal modo que chega, a partir das suas operações, a consequências1 que correspondem perfeitamente às que se seguem das próprias coisas. E mesmo que a ideia de círculo não seja semelhante ao círculo, no entanto podem deduzir-se verdades que a experiência confirmará sem qualquer dúvida no próprio círculo.

1 "consequências" não está no original. Foi posto para tornar o texto legível em português