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cadernos de campo REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP cadernos de campo SÃO PAULO v. 20 n. 20 p. 1-360 JAN.-DEZ./2011 ISSN 0104-5679 20

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    revista dos alunos de ps-graduao em antropologia social da usp

    cadernos decampo SO PAULO v. 20 n. 20 p. 1-360 JAN.-DEZ./2011

    issn 0104-5679

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    Raa, cor, cor da pele e etnia

    Antonio srGio AlFredo GuiMAres

    Nas cincias sociais brasileiras, a raa j sofreu algumas reviravoltas, exemplificando melhor que outros, talvez, as vicissitudes polti-cas das noes e conceitos cientficos. No Bra-sil, ela foi introduzida pela gerao de 1870, que tomando-a emprestada das cincias natu-rais da poca, procurava dar uma orientao cientfica aos estudos sobre a cultura brasilei-ra, propondo, ao mesmo tempo, um progra-ma de desenvolvimento poltico para a nao ps-escravista (Skidmore 1974, ventura 1991, Schwarcz 1993). Seguia assim, grosso modo, a orientao que havia sido dada por von Mar-tius em seu clebre opsculo de 1845 (Rodri-gues e von Martius 1956).

    Para esta gerao, o conceito de raa, tal qual fora utilizado pela biologia do sculo XIX, era empregado para explicar as diferenas culturais entre os povos e o modo subordinado com que foram incorporados ao sistema mercantil glo-bal pela expanso e conquista europias. Para ser claro: abstraa-se da histria e das formas sociais, econmicas e culturais para reduzir a desigualdades de situao entre os povos a ca-racteres fsicos e biolgicos. No entanto, se certo, como apontou Manoel Bonfim (1993), em seu tempo, que a teoria racial tinha uma motivao claramente imperialista; no Brasil, os nossos cientistas introduziram teoria das raas uma motivao poltica prpria: a nova nao, como ensinara von Martius, seria o re-sultado do entrecruzamento entre trs raas (a caucasoide, a africana e a americana) mas tal produto resultaria num povo homogneo, de cultura latina. Tal processo de miscigenao, potencializado pelo estmulo novas ondas

    imigratrias de povos europeus, ficou conheci-do como embranquecimento.

    Longe de ser simples especulao de inte-lectuais, a mestiagem e o embranquecimento, como processos que dotariam a jovem nao brasileira de uma base demogrfica homog-nea, se firmaram como verdadeiras polticas raciais no Brasil (Park 1942), mesmo quando o conceito de raa e as teorias que a utilizavam caram em total descrdito no mundo cientfi-co e intelectual. Apenas para exemplificar o que digo: a revoluo de 1930 e, posteriormente o Estado Novo, assim como a Segunda Repbli-ca brasileira, dotaro a nao de uma poltica cultural explicitamente baseada nesses dois pi-lares mestiagem e hegemonia da lngua e das tradies portuguesas e latinas. O desenvolvi-mento capitalista brasileiro, depois de 1930, se far procurando homogeneizar mercados nacionais (de capitais, de circulao de mer-cadorias e de trabalho), facilitando tambm a homogeneizao cultural e racial. Entre 1940 e 1970, regies como o Norte e o Nordeste (ou alguns bolses do Sudeste) em que um quarto da populao se autodeclarava branca, sero os grandes celeiros de mo-de-obra para o Sul e o Sudeste, onde fora maior o impacto da grande imigrao europia, que se declarava branca.

    nesse perodo que ocorre o banimento do termo raa de nosso vocabulrio cientfico, poltico e social, como consequncia no ape-nas dos processos a que acabo de me referir, mas tambm por conta das tragdias causadas pelo racismo em termos mundiais, cujas principais expresses foram o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial; a segregao racial nos Estados

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    Unidos, que perdurou no ps-guerra; e o apar-theid, na frica do Sul, at bem recentemente.

    Como se explica, ento, o retorno da raa nossa linguagem atual? O termo to pre-sente, inclusive no cotidiano, que o IBGE o introduziu nos censos demogrficos em 1991, transformando a antiga pergunta Qual a sua cor? em Qual a sua cor/raa?. Temos que reconhecer, primeiro, que o termo no havia desaparecido de todo, passando mais por uma submerso que um desaparecimento. Em pri-meiro lugar, a expresso que passou a definir o nosso ideal de homogeneidade nacional, nosso hibridismo demogrfico e o reconhecimento da importncia cultural de todos os povos para a nossa formao foi o de democracia racial. Em segundo lugar, no uso burocrtico e popu-lar, o termo cor substitui o de raa, mas deixou mostra todos elementos das teorias racistas cor, no Brasil, mais que cor de pele: na nossa classificao, a textura do cabelo e o formato de nariz e lbios, alm de traos culturais, so ele-mentos importantes na definio de cor (preto, pardo, amarelo e branco). Terceiro, o termo etnia, cunhado para dar conta da diversidade cultural humana, passou tambm a ser usado no cotidiano das sociologias vulgares como marcador de diferenas quase-irredutveis, ou seja, como sinnimo de raa. Suprimia-se o termo raa sem que o processo social de mar-cao de diferenas e fronteiras entre grupos humanos perdesse o seu carter reducionista e naturalizador.

    Mas, o mais importante para o ressurgi-mento da raa, enquanto classificador social, se deu com sinal invertido, isto , como estratgia poltica para incluir, no para excluir, de rei-vindicar e no de sujeitar. So os movimentos sociais de jovens pretos, pardos e mestios, pro-fissionais liberais e estudantes, que retomaram o termo, para afirmar-se em sua integridade corprea e espiritual contra as diversas formas de desigualdade de tratamento e de oportuni-

    dades a que estavam sujeitos no Brasil moder-no, apesar e talvez pour cause da democracia racial. Os movimentos sociais a que me refiro tm trajetria longa na histria brasileira, des-de as sociedades e jornais de homens de cor, no comeo do sculo XX, passando pelo o Movi-mento Negro Unificado, dos anos 1970, at as ONGS negras dos nossos dias.

    A raa retorna, portanto, no mais como mote do imperialismo ou colonialismo, mas como glosa dos subordinados ao modo infe-riorizado e desigual com so geralmente inclu-dos e tratados os negros, as pessoas de cor, os pardos. Para os cientistas sociais, assim como para os ativistas polticos, a noo de raa tem vantagens estratgicas visveis sobre aquela de etnia: remete imediatamente a uma histria de opresso, desumanizao e oprbio a que esti-veram sujeitos os povos conquistados; ademais, no processo de mestiagem e hibridismo que sofreram ao logo dos anos, a identidade tnica dos negros (sua origem, seus marcadores cultu-rais, etc.) era relativamente fraca ante os mar-cadores fsicos utilizados pelo discurso racial.

    Renascido na luta poltica, a noo recu-perada pela sociologia contempornea como conceito nominalista isto , para expressar algo que no existindo, de fato, no mundo f-sico, tem realidade social efetiva (Guimares 1999). Sem ele, ficaria impossvel explicar a longa trajetria que culmina na mobilizao de smbolos, temas e repertrios dos movimentos sociais contemporneos. Raa, enquanto con-ceito analtico, permite, por exemplo, exami-nar a acusao feita por alguns antroplogos (Maggie 2005) segundo a qual a insistncia do movimento negro atual em classificar como ne-gros aqueles que se declaram nos censos pardos e pretos seria uma atitude anti-modernista de retomar um racialismo que marcara brevemen-te os intelectuais naturalistas da gerao dos 1870. No restante desse breve artigo procurarei demonstrar como o nosso sistema de classifi-

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    cao por cor no se sustenta sem o recurso sub-reptcio noo de raa e teoria do em-branquecimento.

    Para comear, lembro que chamar de anti-modernista a atitude do movimento negro se-ria apropriado apenas para se referir Frente Negra Brasileira dos anos 1930. De fato, que-la poca, enquanto em So Paulo os negros se mobilizavam politicamente em torno da iden-tidade racial negra, aproveitando o clima geral de racializao da poltica que soprava da Euro-pa, aqui mesmo, e em todo o Brasil, os intelec-tuais modernistas e regionalistas, muitos deles mestios, gestavam a reinveno da nacionali-dade brasileira em torno do ideal da mistura de raas. H que se lembrar que este ideal de mestiagem e hibridismo algo vem de tempo mais recuado, j captado por von Martius em seu clebre opsculo Como escrever a histria do Brasil. Certamente, a descoberta de que a nao brasileira tinha um povo mestio data da campanha abolicionista. Releiam Nabuco, em O erro do imperador, e encontraro l, com todas as letras:

    Os nobres e aristocrticos adversrios do sr. Dan-tas, descendentes quase todos de senhores de en-genho e fazendeiros, quando chegavam s janelas da Cmara e viam uma dessas manifestaes populares, no descobrindo chapus altos nem sobrecasacas, mas, num relance, ps no cho e mangas de camisa, diziam somente: Aquilo no vale nada, a canalha. Talvez, mas o nosso povo isso mesmo, um povo de ps no cho e man-gas de camisa, e no um povo branco.

    Que a opinio de Nabuco, corrente entre abolicionistas negros, no era, at os anos 1930, inteiramente partilhada nos meios acadmicos basta lembrar o seu conterrneo Oliveira Lima, divido entre considerar se compunham o povo os fazendeiros ou apenas a ral, o povo pro-priamente:

    No Brazil, como em toda a America Hispani-ca, faltava povo. Num dos seus officios para a chancellaria anstriaca o encarregado de negocios Mareschal observa que mesmo que o paz viesse a soffrer dos horrores da revoluo, o povo se canaria da anarchia mais cedo do que na Euro-pa, porque elle se compunha na sua totalidade de fazendeiros e no havia a ral que se torna nas mos dos agitadores cgo instrumento. A ral existia, mas era um elemento inteiramente fra da vida politica: o gro de ignorancia, a condi-o de falta de cultura, vedava ao povo propria-mente qualquer participao na vida consciente da communidade.

    Pois, bem, j mostrei em Racismo e Anti--racismo no Brasil que o nosso sistema de clas-sificao de cor se origina da intrincada teoria de embranquecimento que a nossa gerao naturalista moldou a partir das diversas teorias raciais ento vigentes. Esta origem est expli-citada por Oliveira vianna (1959 [1932]: 45). Nesta teoria, cor no redutvel a cor da pele, a simples tonalidade. Cor apenas um, o prin-cipal certamente, dos traos fsicos junto com o cabelo, nariz e lbios que junto com traos culturais boas maneiras, domnio da cultu-ra europeia, formavam um gradiente evolutivo de embranquecimento. Preto, pardo, branco. No grupo branco nunca se hesitaria em clas-sificar algum de pele escura, mas traos finos (europeus) e boa educao. Entre os pardos, estavam certamente aqueles de traos fsicos negrides, mas claros e bem educados.

    este sistema de classificao racial por cor mas no por cor da pele que vem sendo paulatinamente modificado no Brasil, medida que o ideal de embranquecimento vai perdendo fora. De um lado, a organizao poltica dos negros, que rejeita frontalmente o embranquecimento, e tenta impor uma noo histrica, poltica ou tnica de raa. Quando se remete histria, a noo rene pessoas que

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    vivenciaram uma experincia comum de opres-so; quando se remete poltica, cria uma as-sociao em torno de reivindicaes; quando, se remete etnia, quer criar um sentimento de comunidade a partir da cultura. Em todos os casos, os gradientes de cor seriam contrapro-dutivos, se no fossem reagrupados para tornar pretos e pardos uma nica categoria discreta (no-contnua), que bem poderia ser batizada de afrodescendentes ou negros.

    Do outro lado, a cor vem sendo substituda pela cor da pele, como princpio classificatrio. Nesse modo de classificar, vigente na Europa atual, e muito utilizada no senso comum jor-nalstico, mesmo nos Estados Unidos, a cor da pele seria apenas o nico critrio na classi-ficao. Ou seja, alguns brancos poderiam ser chamados de morenos, dark, foncs, brown, sem serem negros. Porque tal forma de classificar es-taria se expandindo entre ns, no Brasil? Seria puro efeito da intensidade de nossos contatos com a Europa e os Estados Unidos?

    Observando mais de perto essa forma de classificar, alguns fatos sobressaem. Primeiro, ge-ralmente o termo branco etnicizado para signi-ficar o europeu de bero, ou seja, sem origem colonial ou imigrante de fora da Europa. Segun-do, tal classificao parece conviver com outras classificaes nativas. Por exemplo, Obama con-tinua a ser referido como negro na Europa e no Brasil, pelo fato de ser negro nos Estados Uni-dos; ou um capoeirista mestio brasileiro negro tambm na Europa, pois portador da cultura africano-brasileira. Terceiro, tal classificao no se aplica a povos orientais, como chineses, japo-neses ou coreanos. A cor da pele se refere a um gradiente entre branco e preto.

    Podemos concluir, provisoriamente, que esta forma de classificar ainda menos consis-tente que a anterior, que levava em considera-o outros traos fsicos, alm da cor da pele, possibilitando um gradiente mais extenso. Uma outra concluso, aparentemente parado-

    xal, que, apesar de mais fluda no gradien-te, a classificao por cor da pele discrimina melhor o grupo branco, ou seja, o distingue de todas as outras cores sem os riscos de con-fuso possibilitados pelo embranquecimento. Evita-se e nega-se formas raciais de classifica-o, entendendo que a tonalidade da pele um dado natural. No entanto, pode-se muito bem, voltar-se a uma dicotomia antiga: bran-cos versus pessoas de cor.

    Se assim , porque tantas pessoas no Brasil insistem em falar em cor da pele ao invs de apenas em cor, como nossa tradio? De fato, pesquisa recente do IBGE (2008) mostra que a nossa forma tradicional de classificar en-contra-se em plena vigncia. Na tabela abaixo, pode-se ver que outros traos fsicos, origem familiar, cultura e posio socioeconmica so igualmente mobilizados para definir a catego-ria censitria cor/raa.

    Tabela 1: Brasil, proporo de pessoas de 15 anos ou mais de idade, por dimenses pelas quais definem a prpria cor ou raa, 2008

    Cor da pele 82,3

    Traos fsicos 57,7

    Origem familiar, antepassados 47,6

    Cultura, tradio 28,1

    Origem scio-econmica 27,0

    Opo poltica /ideolgica 4,0

    Outra 0,7

    Fonte: IBGE (2008)

    Em plena vigncia, mas modificado. Mi-nha sugesto que nosso sistema tradicional de classificao est sendo modificado pela perda de sentido do ideal de embranquecimen-to. Alguns outros fatos podem ser recolhidos para fortalecer tal linha de raciocnio. De fato, a partir do censo de 2000 a populao branca comea a declinar mais que o esperado pelas tendncias demogrficas, enquanto a parda, a preta e a amarela voltam a crescer. Essas mu-

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    danas sugerem, nitidamente, que est em cur-so um processo de reclassificao racial, posto que as tendncias demogrficas (fecundidade, mortalidade e migraes) no a explicam.

    Talvez por isso a tabela 1 acima merea ser inquirida de modo mais agressivo. No estaro as influncias da origem familiar e antepassa-dos, da cultura e da tradio, totalmente em desacordo com o que ensinam os estudos dos anos 1960, realizados, entre outros, por Har-ris (1970), Azevedo (1953), Nogueira (1954), Sanjek (1971) e Wagley (1952)? Nesses, como vimos, apenas traos fsicos e posio social importavam. Agora, segundo esta pesquisa do IBGE, cresce a importncia de fatores que defi-nem as etnias (origem e cultura).

    Ademais, comparando dois surveys reali-zados pelo DataFolha, o primeiro em 1995, e o segundo em 2008, as respostas s mesmas perguntas captam uma diminuio de 18% no nmero de pessoas que se declaram espontane-amente brancas e um aumento de 18% dos que se declaram morenas ou morenas claras (ver Ta-bela 2). Poderiam estes dados serem interpreta-dos como uma renncia brancura por parte daqueles brancos de cor mais escura, aqueles que se consideram espontaneamente morenos? o que sugiro. Tal renncia no poderia ser feita se fatores outros como origem familiar (seus antepassados), ou sua tradio cultural, no ganhassem importncia, na construo da identidade racial de cor, sobre ideais de em-branquecimento.

    Tabela 2: Declarao de cor espontnea em 1995 e 2008 (em %)

    Qual a sua cor? 1995 2008 D

    Branca 50 32 -18

    Moreno 13 28 15

    Parda 20 17 -3

    Negro 7 7 0

    Moreno claro 2 5 3

    Preta 1 4 3

    Amarela 1 2 1

    Mulato 1 1 0

    Clara 0 1 1

    Outras 1 3 2

    No sabe 4 1 -3

    Total em % 100 100 0

    Fonte: DataFolha

    Ou seja, minha sugesto de que a cor da pele pode estar se destacando entre os elemen-tos considerados na nossa classificao, justa-mente porque o ideal de embranquecimento tem-se enfraquecido. Para dizer de outro modo: medida que a ideologia do embranquecimen-to perde importncia, tambm o sistema de classificao em tipos raciais, que considera traos fsicos e posio social, perde salincia. Do antigo sistema racial, a cor da pele passa, portanto, a destacar-se.

    H tambm que se levar em conta, para explicar a fora que a cor da pele ganha na percepo das pessoas, que esta forma de classificao social (a que faz referncia ex-plcita apenas cor da pele), no somente corrente na Europa ocidental, como tem cur-so livre na nossa imprensa e na sua sociologia espontnea, tendo hoje o respaldo de cien-tistas sociais e geneticistas de renome. As-sim, os intelectuais que assinam o manifesto Cento e treze cidados anti-racistas contra as leis raciais reafirmam a inexistncia de raas humanas, mas ignoram a existncia de grupos sociais de cor, para enfatizar apenas a variao individual da cor da pele, realidade objetiva e natural:

    Raas humanas no existem. A gentica com-provou que as diferenas icnicas das chamadas raas humanas so caractersticas fsicas super-ficiais, que dependem de parcela nfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptao evolutiva aos nveis de

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    radiao ultravioleta vigentes em diferentes re-as do mundo, expressa em menos de 10 genes!

    At mesmo na sociologia de lngua inglesa, antes to imbuda da realidade social das ra-as, esta teoria naturalista e individualista da cor tem seus defensores. Por exemplo, Michael Banton, um dos socilogos ingleses mais des-tacados no campo da relaes raciais, passa tambm a adotar a estratgia discursiva1 de que o antdoto ao racismo a afirmao da cor como uma realidade natural, objetiva e indivi-dual, e descarta o uso poltico ou analtico da noo de raa, que seria apenas um produto da imposio de uma linha de cor.

    Este exemplo mostra que no apenas raa, mas tambm cor e cor da pele podem ser usados no mesmo contexto carregado de ide-ologia e de poltica, podendo ser manipulados como conceitos naturais na luta anti-racista ou na impostura racista. Podem tambm servir de marcadores para um discurso de solidariedade e de sentimento de pertencimento comunit-rio, que , ao fim e ao cabo, o que distingue o discurso tnico a referncia a uma origem co-mum ou nacionalista de compartilhamento de um mesmo destino societrio e poltico.

    No caso da identidade negra, no Brasil, vrios marcadores j foram utilizados pelo dis-curso mobilizador lembrem-se que, segundo Barthes (1994), a formao tnica tambm um empreendimento poltico : a cor (as pes-soas de cor), a raa (raa negra) e a posio so-cial (o negro um lugar como dizia Guerreiro Ramos (1995)). Sem dvida, as duas primeiras formas de mobilizao, apesar de imprecisas e incorretas cientificamente, foram as mais efica-zes. Infelizmente, etnias, raas e cores humanas revelam-se refratrias s formas de esclareci-mento pela razo. como se fosse impossvel ao ser humano, no apenas fugir sociedade, mas ultrapassar formas de solidariedades gru-pais mais estreitas. As utopias individualistas,

    como lembrava Marx, so invenes possveis apenas em sociedades complexas, formadas por classes sociais e outras formas de pertenas ele-mentares.

    Notas

    1. O artigo, no prelo, aparecer em breve no Ethnic and Racial Studies.

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    autor Antonio Srgio Alfredo Guimares Professor do Departamento de Sociologia / USP

    Recebido em 15/09/2011Aceito para publicao em 15/09/2011