raça, genética, identidades e saúde

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    RAZES PARA BANIR O CONCEITO DE RAA DA MEDICINA BRASILEIRAd o s s i

    raa, gentica,raa, gentica,raa, gentica,raa, gentica,raa, gentica,identidadesidentidadesidentidadesidentidadesidentidades

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    Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos

    Editores-convidados

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    RAZES PARA BANIR O CONCEITO DE RAA DA MEDICINA BRASILEIRA

    Srgio D. J. Pena

    Professor do Departamento de Bioqumica eImunologia, Instituto de Cincias Biolgicas

    Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)Av. Antnio Carlos, 6627

    31270-901 Belo Horizonte MG [email protected]

    Razes para banir oconceito de raa damedicina brasileira

    Reasons for banishingthe concept of race from

    Brazilian medicine

    PENA, S. D. J.: Razes para banir o conceitode raa da medicina brasileira.Histria, Cincias, Sade Manguinhos,v. 12, n. 1, p. 321-46, maio-ago. 2005.

    O conceito de raa faz parte do arcabouocannico da medicina, associado idia deque cor e/ou ancestralidade biolgica sorelevantes como indicadores depredisposio a doenas ou de resposta afrmacos. Essa posio decorre de uma visotipolgica de raas humanas. O baixo grau devariabilidade gentica e de estruturao daespcie humana incompatvel com aexistncia de raas como entidades

    biolgicas e indica que consideraes de

    cor e/ou ancestralidade geogrfica poucoou nada contribuem para a prtica mdica,especialmente no cuidado do pacienteindividual. Mesmo doenas ditas raciais,como a anemia falciforme, decorrem deestratgias evolucionrias de populaesexpostas a agentes infecciosos especficos.Para Paul Gilroy, o conceito social de raa txico, contamina a sociedade como umtodo e tem sido usado para oprimir e fomentarinjustias, mesmo dentro do contextomdico.

    PALAVRAS-CHAVE: raa; racismo; afro-descendente; gentica; DNA; medicina.

    PENA, S. D. J.: Reasons for banishing theconcept of race from Brazilian medicine.Histria, Cincias, Sade Manguinhos,v. 12, n. 1, p. 321-46, May-Aug. 2005.

    As part of medicines canonical framework, theconcept of race has been associated with the ideathat color and/or biological ancestry are relevantindicators of a predisposition to a certain diseaseor reaction to drugs. This stance derives from atypological view of human races. The low level ofgenetic variability and of structuring of the

    human species is incompatible with the existenceof races as biological entities and tells us thatcolor and/or geographic ancestry have little ornothing useful to contribute to medical practice,particularly when it comes to caring for anindividual patient. We show that even so-calledracial diseases like sickle cell anemia are reallythe product of evolutionary strategies used bypopulations exposed to specific infectious agents,whose territories have no unequivocal relationwith either color or continental origin.Furthermore, in the words of sociologist PaulGilroy, the social concept of race is toxic,contaminating society as a whole, and it hasbeen used to oppress and to foster injustice, evenwithin a medical context.

    KEYWORDS: race; racism; afro-descendent;genetics; DNA; medicine.

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    Quando eu uso uma palavra, disse Humpty Dumpty num

    tom bastante desdenhoso, ela significa exatamente o que quero

    que signifique: nem mais nem menos.A questo , disse Alice, se pode fazer as palavras significa-rem tantas coisas diferentes.

    A questo, disse Humpty Dumpty, saber quem vai mandar.S isto.

    (Lewis Carroll,Alice atravs do espelho)

    1. Introduo

    H um amplo consenso entre antroplogos e geneticistas

    humanos de que, do ponto de vista biolgico, raas huma-nas no existem (AAA, 1998; Nat Genet, 2001). Em outras palavras,as categorias raciais humanas no so entidades biolgicas, masconstrues sociais. No entanto, a bula do remdio Cozaar, um

    bloqueador do receptor da angiotensina vendido no Brasil pelaMerck Sharp & Dohme adverte:

    Com base no estudo LIFE (Losartan Intervention For EndpointReduction in Hypertension Interveno com Losartan parareduo de desfechos na hipertenso), os benefcios de COZAAR(Losartan potssico, MSD) na morbidade e mortalidade

    cardiovascular comparados aos do atenolol no se aplicam apacientes negros com hipertenso e hipertrofia ventricular esquerda.(grifos nossos)

    Nos Estados Unidos, bulas de 8% (15 entre 185) dos novos me-dicamentos introduzidos de 1995 a 1998 continham advertnciassobre diferenas raciais em sua eficcia ou efeitos colaterais (Evelynet al., 2001). No prximo ano, espera-se que a Food and DrugAdministration (FDA) dos Estados Unidos aprove o uso do medi-camento BiDil para tratamento da insuficincia cardaca

    congestiva, mas somente para negros (Henig, 2004). Isto represen-tar o primeiro exemplo de um frmaco aprovado exclusivamentepara uso em um grupo racial nos Estados Unidos ou em qual-quer outro pas. Os exemplos citados mostram que em medicina,as categorias raciais humanas ainda esto sendo vistas como cons-trues biolgicas. Existe, assim, uma situao paradoxal com re-lao ao valor que se deve dar s categorias raciais em medicinaclnica e sade pblica.

    Na verdade, provavelmente em todos os aspectos da discussosobre raa, grupo tnico ou cor ocorrem situaes controver-

    sas e paradoxais. Basta dizer que no h consenso sobre o signifi-cado exato desses vocbulos, que so freqentemente objetos demanipulao ideolgica (Munanga, 2004). Por exemplo, a palavraraa pode ser usada de muitas maneiras. Uma delas no sentido

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    morfolgico, fenotpico, denotando um conjunto de caracteres fsi-cos (por exemplo, cor da pele ou textura do cabelo) que nos permi-

    te identificar indivduos como pertencentes a um certo grupo. As-sim, fala-se da raa negra, da raa branca e assim por diante. NoBrasil, a palavra cor usada como seu sinnimo nesse contexto.Raa pode tambm denotar origem em uma regio do globo, assu-mindo o significado de ancestralidade geogrfica fala-se entode uma raa africana, raa oriental etc. Finalmente, raa pode serusada em um sentido biolgico, para caracterizar uma populaogeneticamente diferenciada, isto , uma subespcie.

    Para avaliar a possibilidade de se elaborar uma base objetivapara discutir o conceito de raa em medicina, devemos examinar

    essas vrias acepes e tentar mape-las na realidade biolgica esocial humana. Por exemplo, examinemos o sentido morfolgicode raa. O IBGE, com base em autodeclarao, usa os termos bran-co, pardo e preto (e no negro) como categorias estruturais.Embora esses termos aparentemente refiram-se s cor da pele, naverdade se relacionam a um complexo de pigmentao da pele, core textura do cabelo, cor dos olhos, forma do nariz e espessura doslbios, que conjuntamente compem o carter cor. Cada um des-ses traos fenotpicos controlado por um nmero bem pequenode genes diferentes, que representam uma poro nfima do genoma

    e so completamente dissociados dos genes que influenciam inteli-gncia, talento artstico, habilidades sociais, predisposio a doen-as ou metabolismo de frmacos. Isto nos leva concluso de queo termo negro na bula do medicamento Cozaar e na aprovaodo BiDil est sendo usado como sub-rogado, no lugar de umdeterminado gentipo farmacogentico. Entretanto, caractersticasraciais icnicas, como a pigmentao da pele e a aparncia fsica,no so parmetros adequados ou suficientes para escolher o tra-tamento medicamentoso de um paciente especfico; se o mdico acharque um paciente possa ter um determinado gentipo farmacoge-

    ntico ele ter de fazer os exames genmicos apropriados para tes-tar sua suspeita. Alm disso, o uso mdico de distines raciaistende a perpetuar racionalizaes pseudocientficas de diferenasentre grupos humanos. Certamente h disparidades de sade entreas ditas categorias raciais mas isso tem muito menos a ver comgentica do que com diferenas de cultura, dieta, status social, aces-so ao cuidado mdico, marginalizao social, discriminao, estressee outros fatores. As categorias raciais humanas no so entidades

    biolgicas claramente definidas e circunscritas, mas construessociais e culturais fluidas.

    Ao longo dos anos, o conceito de raas humanas tornou-separte integral do arcabouo cannico da medicina, e sua adequa-o no tem sido suficientemente questionada. Mas esse conceitotem sido usado no s para estudar e sistematizar as populaes

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    humanas, como tambm para criar um esquema classificatrio queparece justificar a ordem social e a dominao de alguns grupos

    por outros. Assim, a persistncia do conceito de raa est ligada crena atvica de que os grupos humanos existem em uma escalade valor. Nesse sentido, tal persistncia txica (Gilroy, 2000),contaminando e enfraquecendo a sociedade como um todo. Nesteartigo pretendo defender o ponto de vista de que a classificao deraa no tem um papel til na avaliao clnica do paciente indivi-dual e que a medicina brasileira s teria a ganhar banindo raa deseus cnones.

    1.1 Evoluo humana

    Uma boa maneira de comear o exame de categorias estruturaisem populaes humanas sob a perspectiva evolucionria. O ho-mem anatomicamente moderno, Homo sapiens sapiens, uma esp-cie muito jovem na terra. Trs linhas de evidncia gentica suge-rem sua origem nica e recente, h cerca de 150 mil anos, na frica.A primeira a observao de maior diversidade gentica na fri-ca do que em qualquer outro continente. A interpretao desse acha-do que as populaes mais antigas teriam tido mais tempo paraacumular variabilidade gentica. A segunda linha de evidncia vem

    das anlises filogenticas humanas. A partir do trabalho seminalde Cann et al. (1987), praticamente todos os estudos baseados emDNA mitocondrial produziram rvores com a primeira bifurcaoseparando populaes africanas de todas as outras populaes. Damesma maneira, rvores construdas a partir de marcadoresautossmicos, marcadores do cromossomo X e marcadores docromossomo Y apresentam topologias muito semelhantes. Em ter-ceiro lugar, temos as dataes com base no relgio molecular (isto, a conhecida regularidade de mutaes neutras ao longo do tem-po) que mostram datas de coalescncia para o DNA mitocondrial

    ao redor de 150 mil anos atrs.Acredita-se que cerca de 90 mil anos atrs alguns grupos hu-manos emigraram da frica para outros continentes, dizimandoe substituindo em seu trajeto os homens de Neandertal (Homosapiens neandertalensis) e outras populaes arcaicas de Homo sapiens.Nesse cenrio, todos os seres humanos atualmente vivendo naterra compartilham um ancestral africano relativamente recente.Por baixo da pele, todos ns somos africanos! As diferenasmorfolgicas que vemos na aparncia dos humanos atuais sodesenvolvimentos recentes, tendo ocorrido apenas nos ltimos

    50 mil a 40 mil anos.

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    1.2 Classificao racial do Homo sapiens

    Desde Lineu (1707-1778), muitas classificaes taxonmicas dos

    grupos humanos em raas foram feitas, mas provavelmente a maisinfluente e que surpreendentemente persiste at hoje, foi propostapelo antroplogo alemo Johan Friedrich Blumenbach em 1795,na terceira edio de seu livro De Generis Humani Varietate Nativa(Das variedades naturais da humanidade). Blumenbach descreveucinco principais raas: caucaside, mongolide, etipica, america-na e malaia. A raa que inclua os nativos da Europa, Oriente M-dio, Norte da frica e ndia foi chamada caucaside porque naopinio de Blumenbach o tipo humano perfeito era o encontradonos habitantes da Gergia, nas montanhas do Cucaso, regio queele acreditava ter sido o bero do homem (Gould, 1994). A classifi-cao de Blumenbach era calcada na origem geogrfica, masparmetros morfolgicos certamente tiveram grande importncia,que, infelizmente, s cresceu com o passar do tempo. No sculoXIX, o conceito de raa passou a basear-se primariamente nas ca-ractersticas morfolgicas e cosmticas, como a pigmentao da pele,o tipo facial, o perfil craniano e a quantidade, textura e cor docabelo. Essas caractersticas superficiais possuem fora persuasivaporque relativamente fcil distinguir pessoas com base na apa-rncia fsica. Com a crescente nfase na morfologia, as raas classi-ficadas por Blumenbach passaram a ser identificadas com refern-cia s cores da pele: caucaside tornou-se sinnimo de branco, eafricano (etipico) tornou-se sinnimo de negro. Como a classifi-cao de Blumenbach provou ser insuficiente para explicar toda adiversidade morfolgica humana, houve uma proliferao do n-mero de raas, chegando a duzentas em algumas classificaes(Armelagos, 1994)! Sem dvida, a simplicidade do paradigmatipolgico embutido nessas estapafrdias classificaes sociais

    bastante sedutora para o pblico em geral. Embora para um

    geneticista contemporneo raas possam no existir do ponto devista biolgico, no imaginrio popular elas persistem, sendoconstrudas a partir de diferenas fenotpicas como a cor da pele eoutros critrios de aparncia fsica (Munanga, 2004).

    1.3 Variabilidade gentica humana

    Subjacente enorme e facilmente identificvel individualidademorfolgica humana h uma individualidade bioqumica, moleculare genmica (Pena et al., 1995). Essa individualidade genmica hu-

    mana pode ser estudada no nvel do produto gnico (fentipo),mas na atualidade j pode ser muito mais bem caracterizada nonvel do DNA (gentipo), atravs dos polimorfismos (variaes)que existem em nosso DNA (Cavalli-Sforza, 1998; Schlotterer, 2004).

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    Ignorando pelo momento as migraes, a dinmica das varia-es nas caractersticas genticas das populaes governada pelas

    foras interativas de mutao, seleo e deriva gentica (Kimura,1989). Embora os conceitos de mutao e seleo sejam j conheci-dos por muitos, a compreenso da natureza da deriva gentica mais complexa e merece elaborao. Ela vem da idia de que osalelos que vo formar a gerao N+1 so uma amostra dos alelospresentes na gerao N. Assim, flutuaes estocsticas influenciamas freqncias allicas em geraes sucessivas de uma populao.Ocasionalmente, com o passar do tempo, alelos podem ser exclu-dos da populao (atingem freqncia 0) ou fixados (atingem fre-qncia 1) puramente ao acaso (Kimura, 1989). Quando o tama-

    nho efetivo da populao diminui muito (gargalo populacional)devido a epidemias, guerras ou desastres ambientais, ou quandoum pequeno grupo se separa da populao original e coloniza umanova regio (efeito fundador), podemos observar variaes mui-to importantes nas freqncias allicas de uma gerao para outra(Tishkoff & Verrelli, 2003). Esse fenmeno de flutuao nas freqn-cias allicas puramente por efeito de amostragem constitui a cha-mada deriva gentica.

    interessante notar que a seleo e a taxa de mutao so espe-cficas para cada loco, variando em diferentes regies do genoma,

    enquanto a deriva gentica depende da demografia e histriaevolucionria das populaes, conseqentemente afetando de ma-neira similar todos os locos neutros do genoma (Luikart et al.,2003). H evidncias de que a vasta maioria dos polimorfismos ge-nticos so neutros e tm freqncias allicas que dependem prin-cipalmente da aleatoriedade da deriva gentica (Kimura, 1989;Sunyaev et al., 2003).

    Em 1972, Richard Lewontin decidiu testar cientificamente a no-o, at ento amplamente aceita, da existncia de raas humanas.Para fazer o clculo de diversidade comparativa e da partio da va-

    riabilidade humana, ele compilou da literatura cientfica as freqn-cias allicas de 17 polimorfismos genticos clssicos disponveis napoca (incluindo grupos sanguneos, protenas sricas e isoenzimas)de diferentes populaes. Com base nesses dados, Lewontin agru-pou as diferentes populaes em oito grupos raciais putativos:africanos, amerndios, aborgines australianos, mongolides, in-dianos, sul-asiticos, ocenicos e caucasianos. O resultado foi sur-preendente: 85,4% da diversidade allica observada nospolimorfismos estudados ocorria dentro das prprias populaes,8,3% entre as populaes de uma mesma raa e apenas 6,3% entre

    as chamadas raas. Esses dados podem ser mais bem entendidospelo seguinte exemplo fantasioso: imaginemos que um cataclismonuclear destrua toda a populao da terra, deixando ilesa apenas apopulao da Amrica do Sul. Neste caso, 93% da diversidade

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    humana total seria preservada! Em um estudo semelhante,Barbujani et al. (1997) estudaram 109 locos autossmicos em po-

    pulaes de todo o mundo e concluram que cerca de 85% da vari-abilidade gentica humana estava concentrada dentro das popula-es.

    Provavelmente o maior estudo de variabilidade humana j rea-lizado at o momento deve-se a Rosenberg et al. (2002) utilizandopolimorfismos de DNA. Eles fizeram a tipagem de 377 microssatlitesautossmicos em 1.064 indivduos de 51 populaes definidas pelaorigem geogrfica (ver Figura 1). Na amostra total de 4.199 alelos,47% estavam presentes em todas as populaes. Apenas 7% dosalelos estavam presentes em apenas uma populao, que na quase

    totalidade das vezes, era a africana. Esses resultados so totalmentecompatveis com a origem recente do homem moderno na frica.Alm disso, os pesquisadores calcularam que 93-95% da variabili-dade gentica estava contida dentro das populaes. Os autoresdecidiram tambm averiguar a capacidade dos microssatlites dedistinguir grupos humanos sem utilizar a priori alguma informa-o de origem geogrfica. Para tal, eles usaram um programa decomputador denominado Structure, que tenta estimar, para cadaindivduo, a proporo do seu genoma que vem de uma dada po-pulao, que, por sua vez, caracterizada geneticamente pelo pr-

    prio programa. O procedimento de estimativa repetido sucessiva-mente com premissas de um nmero K crescente de populaesou aglomerados: K = 2, 3, 4 etc. Os resultados mostraram que cincopopulaes diferentes podiam ser definidas com base nas amostrastestadas, a saber: (1) frica Subsaariana; (2) Europa, Norte da fricae Oriente Mdio; (3) sia; (4) Amerndios, e (5) Oceania (Figura 1).

    Figura 1 Os pequenos crculos identificam as 52 populaes amostradas no estudode Rosenberg et al. (2002). As barreiras em cinza separam as cinco regies deagrupamentos humanos identificados pelo programa Structure: frica (1); Europa,Norte da frica e Oriente Mdio (2); sia (3); Amerndios (4), e Oceania (5).(Modificado de Excoff ier, 2003.)

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    O estudo no mostrou nenhuma vantagem em invocar um sextogrupo e freqentemente citado como uma demonstrao de que

    anlises genticas so capazes de distinguir grupos humanos deacordo com a sua origem geogrfica (Excoffier, 2003). Prima facie,poderia notar-se uma aparente correspondncia dos cinco gruposgeogrficos humanos identificados nesse estudo com as cinco ra-as humanas definidas no sculo XVIII por Blumenbach: a etipica,a caucaside, a mongolide, a americana e a malaia. Mas essa seme-lhana superficial enganadora, por vrias razes.

    Em primeiro lugar, existe um problema de amostragem no estu-do de Rosenberg et al. (2002). Os autores usaram um painel de1.064 indivduos de 51 populaes de todo o globo, cujo DNA foi

    colecionado e distribudo pela Fundao Jean Dausset (CEPH)em Paris (Cann et al., 2002). Embora o conjunto de amostras sejachamado de painel internacional, ele na verdade no representa-tivo da diversidade geogrfica humana, porque dependeu da dis-ponibilidade das amostras de DNA coletadas por vrios grupos degeneticistas. Por exemplo, h no painel 108 amostras de amerndios,distribudas da seguinte maneira: 25 Pimas do Mxico, 25 Maias doMxico, 13 Piapocos e Curripacos da Colmbia, 24 Caritianas e 21Surus do Brasil. impensvel que a diversidade gentica indgenada Amrica do Sul, que foi classificada por Cavalli-Sforza et al. (1994)

    como a maior do mundo, por causa de elevados graus de derivagentica, seja representada por apenas quatro grupos do Brasil eda Colmbia, todas habitantes do tero superior do continente.Dos mais de duzentos povos indgenas do Brasil, esto no painelapenas os Suru e Caritiana, ambos grupos Tupi da Rondnia, comuma distncia geogrfica de apenas 420 quilmetros um do outro(Ricardo Ventura Santos, comunicao pessoal). Alm disso, essasamostras contm vrios indivduos aparentados, pois so oriun-das de apenas uma aldeia Caritiana e uma aldeia Suru (Kidd et al.,1991). A frica, outra regio de altssima variabilidade gentica,

    est representada por apenas 127 amostras, das quais 51 so depigmeus da frica Central. No h no painel nenhuma amostra dafrica oriental, de onde acredita-se terem partido as ondas migra-trias que popularam o resto do mundo. Essa falta de represen-tatividade criou falsas descontinuidades, maximizando a variaogentica entre os grupos continentais e criando artificialmente sal-tos qunticos de freqncias allicas entre eles (Kittles & Weiss,2003). A alta mobilidade geogrfica da espcie humana nos fariaesperar muito menos descontinuidades geogrficas. Realmente, Serree Paabo (2004) recentemente demonstraram que quando as amos-

    tras so coletadas mais homogeneamente em todo o globo, o pa-dro de diversidade humana observado realmente de gradientesde freqncias allicas em todo o mundo, e no de agrupamentosdescontnuos em diferentes regies geogrficas.

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    RAZES PARA BANIR O CONCEITO DE RAA DA MEDICINA BRASILEIRA

    Apesar desses artefatos de amostragem no estudo de Rosenberget al. (2002) e em outros, no h dvida de que a variao gentica

    humana tende a se organizar geograficamente, de tal maneira que,em geral, indivduos da mesma regio geogrfica sero levementemais similares entre si do que indivduos distantes. Isto uma con-seqncia direta da existncia de uma correlao da origem geogr-fica dos casais (pessoas que nasceram e vivem mais prximas obvia-mente tm maior chance de se casarem que pessoas distantes). En-tretanto, oportuno lembrar que, como mostrado por Rosenberget al. (2002), mesmo assim, 95% da variabilidade gentica humanaest contida dentro das prprias populaes. Tambm deve-se con-siderar que para demonstrar a estratificao geogrfica das popu-

    laes humanas, Rosenberg et al. (2002) tiveram de usar mais detrezentos polimorfismos de DNA diferentes, um tour de force. Se es-tudssemos milhares de polimorfismos, provavelmente poderamosseparar mesmo populaes bastante prximas como chineses e ja-poneses (Jorde & Wooding, 2004).

    Uma interpretao dos resultados de Rosenberg et al. (2002) que se escolhermos dois indivduos ao acaso dentro da mesma re-gio geogrfica, eles sero apenas 4-5% mais similares entre si doque se comparados com um indivduo qualquer de uma outra re-gio geogrfica. Em suma, indivduos da mesma regio geogrfica

    e indivduos de regies geogrficas diferentes (at mesmo de conti-nentes diversos) so quase igualmente diferentes!Provavelmente qualquer comparao de duas populaes que

    se basear em um grande nmero de locos genticos, mesmo neu-tros, mostrar diferenas entre elas, j que as varinciasinterpopulacionais, embora pequenas, so estatisticamente signifi-cativas. Mas preciso entender que essas diferenas so principal-mente devidas deriva gentica, no tm absolutamente nada aver com a subdiviso da populao humana em grupos raciais.Devemos lembrar que a classificao racial de Blumenbach era

    tipolgica, ou seja, assumia que toda a variao humana devia-se afiliao das pessoas a um pequeno nmero de tipos platnicosideais fixos. Como vimos, na realidade a variao gentica entregrupos apenas uma proporo muito pequena da variao total e gradativa, sem descontinuidades (Barbujani et al., 1997).

    1.4 Aparncia fsica e geografia

    Assim como pode ocorrer com base em marcadores genticosmoleculares, tambm possvel fazer a partio da variabilidade

    humana usando caractersticas morfolgicas mtricas humanas. Porexemplo, Relethford (1994) mostrou que apenas 11-14% da diversi-dade craniomtrica humana ocorre entre indivduos de diferentesregies geogrficas e que 86-89% ocorre dentro das regies. Quando

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    esse mesmo autor fez a partio da variabilidade global da cor dapele, porm, ele observou um quadro diferente: 88% da variao

    ocorria entre regies geogrficas e apenas 12% dentro das regiesgeogrficas (Relethford, 2002)! A explicao que a cor da pele uma caracterstica gentica especial, porque sujeita seleo natu-ral. Dois fatores seletivos servem para adaptar a cor da pele aosnveis de radiao ultravioleta: a destruio do cido flico quandoa radiao ultravioleta excessiva e a falta de sntese de vitaminaD3 na pele quando a radiao insuficiente (Jablonski & Chaplin,2000, 2002).

    A cor da pele determinada pela quantidade e tipo do pigmentomelanina na derme. A melanina ocorre em dois tipos: feomelanina

    (cor de vermelho a amarelo) e eumelanina (marrom escuro a pre-to). Tanto a quantidade quanto o tipo de melanina so controla-dos por apenas quatro a seis genes, dos quais o mais importanteparece ser o gene do receptor do hormnio melanotrpico (Sturmet al., 1998; Rees, 2003). Esse nmero de genes insignificantemen-te pequeno no universo dos cerca de 25 mil genes estimados deexistir no genoma humano.

    Da mesma maneira que a cor da pele, outras caractersticas fsi-cas externas como o formato da face, a grossura dos lbios, o for-mato do nariz e a cor e a textura do cabelo so tratos literalmente

    superficiais. Embora no conheamos os fatores geogrficos locaisresponsveis pela seleo dessas caractersticas, razovel sugerirque, assim como a pigmentao da pele, esses tratos morfolgicosespelhem adaptaes ao clima e outras variveis ambientais de dife-rentes partes da terra. Assim como a cor da pele, essas caractersti-cas fsicas das pores expostas do corpo dependem da expressode um nmero pequeno de genes e refletem a variao em apenasalguns milhares dos bilhes de nucleotdeos no genoma humano.Em resumo, as diferenas icnicas de raas humanascorrelacionam-se bem com o continente de origem (j que so

    selecionadas), mas no refletem variaes genmicas generalizadasentre os grupos. Mesmo assim, as sociedades humanas constru-ram elaborados sistemas de privilgio e opresso baseados nessasinsignificantes diferenas genticas (Bamshad & Olson, 2003).

    2. A ancestralidade do brasileiro

    Vale a pena fazer um outro dtour para discutir aspectos do queMunanga (2004) chamou de etnossemntica brasileira. Telles(2003) dedica um captulo de seu livro classificao racial no Bra-

    sil e distingue trs grandes sistemas: (1) os censos do IBGE quedistinguem trs categorias (brancos, pardos e pretos) em um cont-nuo; (2) o discurso popular que utiliza uma nomenclatura ampla,inclusive o termo bastante ambguo moreno, e (3) o sistema do

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    movimento negro, que distingue apenas duas categorias, reunin-do pardos e pretos como negros. Duas novas expresses quase

    equivalentes esto sendo incorporadas a essa etnossemntica: afro-descendente e afro-brasileiro. Edna Roland, da ONG Fala Preta!,informa que durante os preparativos para a Conferncia MundialContra o Racismo em 2001 alguns pases latino-americanos rejeita-ram a expresso negro como tendo conotaes pejorativas, en-quanto afro-descendente foi endossada por todos como termo deescolha (Nicolau, 2003). No presente trabalho, usamos as expres-ses branco, pardo e preto, especialmente ao lidar com dadosdos censos, e a palavra negro para o conjunto mais amplo depretos e pardos. Usamos tambm o vocbulo afro-descendente para

    todas as pessoas com ancestrais escravos africanos, independente-mente da cor da pele.

    2.1 Estudos com marcadores de linhagem

    Com base nos critrios de autoclassificao do censo de 2000 doIBGE, a populao brasileira, 500 anos aps a chegada dos portu-gueses, era composta por 53,4% de brancos, 6,1% de pretos e 38,9%de pardos. O que representam esses nmeros em termos deancestralidade gentica? Ns fizemos uso de marcadores genmicos

    para mapear na populao autodeclarada branca do Brasil atual,as distribuies geogrficas das ancestralidades amerndia, euro-pia e africana (Pena et al., 2000). Para isso, amostras de DNA dapopulao do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil foram estu-dadas com dois marcadores moleculares uniparentais: ocromossomo Y para estabelecer linhagens paternas (patrilinhagens)e o DNA mitocondrial para estabelecer linhagens maternas(matrilinhagens). Nosso estudo revelou que a esmagadora maioriadas linhagens paternas da populao branca do pas veio da Euro-pa, mas que, surpreendentemente, as linhagens maternas no Brasil

    como um todo mostraram uma distribuio bastante uniformequanto s origens geogrficas: 33% de linhagens amerndias, 28%de africanas e 39% de europias. Como esperado, a freqncia rela-tiva desses trs grupos filogeogrficos variou consideravelmenteentre as quatro regies brasileiras analisadas. A maioria das linha-gens mitocondriais no Norte de origem amerndia (54%), enquantoa ancestralidade africana mais comum no Nordeste (44%) e a eu-ropia no Sul (66%). O Sudeste apresentou um equilbrio nas fre-qncias, considerando as trs origens geogrficas das linhagensencontradas.

    Pelas freqncias regionais de haplogrupos genticos africanose amerndios encontrados em brasileiros brancos e pelas propor-es populacionais das vrias regies, podemos calcular (com baseno censo de 2000) que entre os 90.647.461 autoclassificados brancos

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    do pas h aproximadamente 30 milhes que so descendentes deafricanos (afro-descendentes) e um nmero equivalente de des-

    cendentes de amerndios, pelo menos pelo lado materno.

    2.2 Cor e ancestralidade no brasileiro

    Marcadores Informativos de Ancestralidade (MIAs), tambmchamados de marcadores populao-especficos, so aqueles queapresentam uma diferena nas freqncias allicas entre duas po-pulaes com valor superior a 0,45 (Shriver et al., 1997; Parra etal., 1998). A maioria desses marcadores mantm a heterogeneidadedas freqncias allicas por estarem sujeitos a seleo natural. Nes-

    se sentido, tais genes representam uma contrapartida moleculardas caractersticas fsicas superficiais que, como j vimos, so geo-graficamente selecionadas. Para fins de pesquisa, os MIAs analisa-dos em nvel molecular apresentam muitas vantagens com relaoaos caracteres fsicos: so monognicos, permanecem constantesdurante toda a vida, so qualitativos e, como a sua expresso ge-ntica no aparente, no so levados em conta quando uma pes-soa escolhe um(a) consorte. J os caracteres fsicos superficiais, defcil observao, so polignicos (mais exatamente oligognicos),variam com a idade e com fatores ambientais, so quantitativos e

    influenciam os casamentos, que por no serem mais ao acaso, sochamados de casamentos assortativos. Uma outra vantagem dosmarcadores moleculares que ao haver migrao de grupospopulacionais, eles perdem suas vantagens seletivas da regio geo-grfica original (tornam-se neutros), mantendo, porm, suas ca-ractersticas de informao de ancestralidade genmica, que podemser resgatadas com testes em DNA.

    Em nossa pesquisa utilizamos uma bateria de dez marcadoresinformativos de ancestralidade (MIAs) para estudar a correlaoentre raa e ancestralidade etnogeogrfica no Brasil (Parra et al.,

    2003). Inicialmente estudamos 173 indivduos da populao deQueixadinha, localizada no municpio de Cara, regio nordeste deMinas Gerais, uma das regies mais pobres do estado. Todos essesindivduos so portadores de esquistossomose e fazem parte doProjeto Queixadinha, uma iniciativa clnica da Faculdade deMedicina da Universidade Federal de Minas Gerais. A equipe mdi-ca nos cedeu alquotas de sangue perifrico dos pacientes, que de-ram seu consentimento informado, e as amostras foram codifica-das e estudadas em total anonimato. No momento da coleta desangue, cada paciente foi analisado independentemente por dois

    observadores (um bilogo e um clnico) para classificao de acor-do com as seguintes caractersticas fsicas: pigmentao da pele naporo medial do brao, cor e textura do cabelo, forma do nariz edos lbios e cor dos olhos. De acordo com as suas caractersticas

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    individuais, cada um dos 173 pacientes foi classificado pelos obser-vadores como preto (30 pessoas; 17,3%), branco (29 pessoas; 16,8%)

    ou pardo (114 pessoas; 65,9%). No grupo pardo foram alocadosaqueles indivduos que claramente apresentavam caractersticasintermedirias entre pretos e brancos ou que foram motivo de di-vergncia entre os observadores. Aps extrao do DNA genmicoa partir de alquotas de sangue perifrico, cada indivduo foi tipadoindependentemente com os dez MIAs, e calculou-se estatisticamen-te um parmetro de ancestralidade africana (ndice de AncestralidadeAfricana IAA) de cada pessoa.

    Ao contrrio de uma clara separao como havia sido vista en-tre europeus (portugueses) e africanos (So Tom), os resulta-

    dos de Queixadinha mostraram uma alta variabilidade de valo-res de IAA nas trs categorias de cor, com enorme sobreposio(Figura 2). Efetivamente, isso demonstra que, na populao bra-sileira analisada, o alto ndice de mistura faz que caractersticas deaparncia fsica como cor da pele, olhos, cabelos, formatos dos lbiose do nariz sejam pobres indicadores da origem geogrfica dos an-cestrais de um individuo particular.

    Figura 2 ndices de ancestralidade africana calculados a partir da genotipagem de dez

    locos de marcadores informativos de ancestralidade em africanos de So Tom, emeuropeus do Norte de Portugal e em indivduos pretos, pardos e brancos dapopulao de Queixadinha, municpio de Cara, no nordeste de Minas Gerais. Cadasmbolo representa um indivduo estudado. O trao horizontal mostra a posio damediana. (Modif icado de Parra et al., 2003.)

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    Esses nossos resultados em uma populao rural de Minas Ge-rais foram validados para outras regies do Brasil de duas manei-

    ras diferentes. A primeira consistiu em analisar uma amostra cos-mopolita de duzentos indivduos autoclassificados como brancos,com origens em quatro das cinco regies geogrficas do pas, ouseja, Sudeste, Nordeste, Norte e Sul. Essa amostra basicamente amesma utilizada em nossos estudos j citados, com marcadores docromossomo Y (Carvalho-Silva et al., 2001). A distribuio dosvalores de IAA para o Brasil como um todo foi relativamente uni-forme, embora com interessantes diferenas regionais. importan-te ressaltar que a amostra cosmopolita do Sudeste, obtida de indi-vduos predominantemente de Belo Horizonte e autoclassificados

    como brancos, no diferiu significantemente das amostras de indi-vduos classificados clinicamente como brancos da populao deQueixadinha (z = 1,26, P > 0,10), assim validando a metodologiausada. A regio Sul do Brasil, caracterizada pelos altos ndices deimigrao europia nos sculos XIX e XX, apresentou o IAA me-diano mais baixo de todas as regies (9,11), mas aindasignificantemente maior que os valores dos portugueses (z = 3,04,P = 0,002). As tipagens realizadas nos permitem tambm fazer umaestimativa de mistura gnica a partir das freqncias allicas dosdez MIAs calculadas para cada regio, em comparao com as fre-

    qncias allicas encontradas em europeus e africanos (Parra et al.,1998). Para o clculo usamos o programa de mxima verossimi-lhana Leadmix, desenvolvido por Wang (2003). Os resultados es-to reunidos na Tabela 1. Podemos ver que os maiores nveis demistura populacional baseados em MIAs, como esperado, foramencontrados em indivduos das regies Sudeste e Nordeste onde seobservam tambm as propores mais altas de ancestralidademitocondrial africana. Estabelecemos tambm o grau de misturagnica em pretos, pardos e brancos da populao de Queixadinha. interessante notar que, em nvel populacional, o conjunto dos

    indivduos classificados como pretos apresentou uma proporode ancestralidade no-africana de 49% (ver Tabela 1). O grupo dosintermedirios revelou 44% de ancestralidade africana, mostrandomaior semelhana com os pretos do que com os brancos, observa-o que d suporte cientfico recomendao do movimento negrono Brasil de agrupar indivduos pretos e pardos com a denomi-nao de negros.

    A segunda validao dos nossos resultados baseou-se em umestudo publicado por Bydlowski et al. (2003), que estudaram umagrande amostra (916 indivduos) de brancos, pretos, pardos e des-

    cendentes de japoneses da cidade de So Paulo com 12 marcadoresdo tipo microssatlite. Embora esses marcadores no sejam to efi-cientes quanto os MIAs em permitir a determinao do grau deancestralidade africana no nvel individual, eles ainda podem ser

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    usados para esse fim, como mostram os nossos resultados aindano publicados em europeus (Portugal) e africanos (So Tom), na

    Figura 3. Na mesma figura, observa-se um grande grau desobreposio dos grupos de brancos, pretos e pardos, demonstrando

    Figura 3 ndices de ancestralidade africana calculados a partir da genotipagem de

    doze locos de microssatlites (Bydlowski et al., 2003) em africanos de So Tom, emeuropeus do Norte de Portugal e em indivduos pretos, pardos e brancos dapopulao da cidade de So Paulo. Cada smbolo representa um indivduo estudado.O trao horizontal mostra a posio da mediana. (Modif icado de Pena e Bydlowski,manuscrito em preparao.)

    Estimativa de mistura

    pelos MIAs

    Ancestralidade do mtDNA1

    Proporo de

    ancestralidade

    africana

    LC

    95% 2

    Africanos Europeus Amerndios

    Brancos 0,32 0,15-0,52 NE3 NE NE

    Pardos 0,44 0,30-0,61 NE NE NEQueixadinha

    Pretos 0,51 0,36-0,66 NE NE NE

    Norte 0,22 0,12-0,35 0,15 0,31 0,54

    Nordeste 0,29 0,15-0,48 0,44 0,34 0,22

    Sudeste 0,32 0,16-0,53 0,34 0,31 0,33

    Regies

    do Brasil

    Sul 0,13 0,01-0,34 0,12 0,66 0,22

    Valores da proporo de ancestralidade africana baseada no mtodo de mxima verossimilhana de Wang (2003) a

    partir das freqncias allicas de dez locos informativos de ancestralidade (MIAs) e estimativas da proporo delinhagens mitocondriais africanas, europias e amerndias.1 Alves-Silva et al. (2000); 2 Limites de confiana de 95%; 3 NE = no estudado.

    Tabela 1

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    a pobre correlao existente entre ancestralidade etnogeogrfica ecor nessa populao cosmopolita e confirmando os nossos resulta-

    dos anteriores com os MIAs. Os dados nos permitem calcular paraa cidade de So Paulo uma mdia de 25% de ancestralidade africanaem brancos (limites de confiana 18-31%) e de 65% em pretos (limi-tes de confiana 55-76%).

    Em concluso, os nossos estudos demonstram claramente queno Brasil a cor, avaliada fenotipicamente, tem uma correlao mui-to fraca com o grau de ancestralidade africana. No nvel individualqualquer tentativa de previso torna-se impossvel, ou seja, pela inspeoda aparncia fsica de um brasileiro no podemos chegar a nenhuma conclu-so confivel sobre seu grau de ancestralidade africana. Obviamente, esta

    constatao tem grande relevncia social e poltica, alm de enormeimportncia mdica.

    3. Raa e medicina

    Como vimos, muito da discusso da classificao racial huma-na e sua importncia social e mdica gravita em torno do binmioaparncia fsica/origem geogrfica, ou, resumidamente, cor/ancestralidade. A prpria expresso raa usada ora em umsentido, ora em outro. Essa dicotomia fica bem evidente, por exem-

    plo, quando lemos o trabalho de Oracy Nogueira (1955) que cha-mou a ateno para a distino entre o preconceito de marca e opreconceito de origem. O primeiro focaliza e vitimiza a aparn-cia, baseando-se nos traos fsicos do indivduo, enquanto o se-gundo depende da percepo de que o indivduo descende de umcerto grupo tnico. Nogueira associou o preconceito de marcacom o Brasil e o preconceito de origem predominantemente comos Estados Unidos.

    Antes de prosseguir, devemos relembrar que raas humanas noexistem do ponto de vista gentico ou biolgico (Templeton, 1999).

    Apenas 5-10% da variao genmica humana ocorre entre as cha-madas raas. Ademais, apenas 0,01% dos nucleotdeos que com-pem a seqncia do genoma humano variam entre dois indivduos.Em outras palavras, toda a discusso racial depende de 0,0005-0,001% do genoma humano! Porm, mesmo no tendo o conceitode raas nenhum embasamento biolgico, ele continua a ser utili-zado, enquanto construo social, como forma de privilegiar e di-ferenciar culturas, lnguas, crenas e grupos diferentes, os quais,na maioria das vezes, tm tambm interesses econmicos muitodiferentes (Azeredo, 1991, citado em Ribeiro, 2000). Em qualquer

    utilizao social da expresso raa deve sempre ficar claro e trans-parente que ela no embute nenhuma diviso natural ou essencialda natureza humana. Na Declarao sobre Raa da AssociaoAmericana de Antropologia consta que:

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    Dado o nosso conhecimento a respeito da capacidade de sereshumanos normais serem bem sucedidos e funcionarem dentrode qualquer cultura, conclumos que as desigualdades atuaisentre os chamados grupos raciais no so conseqncias de suaherana biolgica, mas produtos de circunstncias sociais his-tricas e contemporneas e de conjunturas econmicas, educa-cionais e polticas. (AAA, 1998)

    Voltando dicotomia cor/origem, independentemente dametodologia usada para fazer classificaes raciais, a pigmentaoda pele parece ser um elemento predominante na avaliao social deum indivduo e a principal fonte de preconceito (Tyroler & James,1978). Embora no haja evidncia de que na frica pr-colonial o

    status social estivesse ligado cor da pele, na atual sociedade norte-americana as pessoas com pele escura sofrem discriminao no ape-nas de brancos, mas tambm de afro-descendentes com a pele maisclara (Harburg et al., 1978). A situao no Brasil no diferente eteoriza-se que a conscincia de cor emergiu como produto da socia-lizao em um sistema ocidental de valores. O economista Hlio San-tos avalia que, em larga medida, o racismo tem muito a ver comaquilo que as pessoas imaginam ser a frica (Camargo & Mello,2003). Sob esse prisma, a pele mais clara seria interpretada com indi-cao de uma maior distncia do continente africano. O nosso tra-

    balho, que mostra uma baixa correlao entre cor e ancestralidade,se insere nesse contexto social mais amplo, mas tambm tem profun-das implicaes mdicas. Em Minas Gerais, 89% dos brancos tmmais de 10% de ancestralidade africana e 87% dos pretos tm mais de10% de ancestralidade europia (Pena & Bortolini, 2004).

    3.1 Ancestralidade geogrfica e doenas monognicas

    Sabemos que populaes diferem muito em seus padres deprevalncia de doenas e mortalidade. Freqentemente, dentro de

    um mesmo pas, subpopulaes tambm exibem quadros heterog-neos de susceptibilidade e resistncia. Por exemplo, nos EstadosUnidos a hipertenso arterial e o cncer de prstata so mais co-muns em afro-americanos, enquanto o cncer de mama maiscomum em mulheres de ancestralidade europia. Seriam essasdisparidades explicveis por diferenas em parmetros scio-cultu-rais (renda, status social, educao, nutrio etc.), por racismo, pordiferenas genticas, ou por todas elas? Vimos h pouco que existeuma certa estruturao da diversidade humana de acordo com ageografia. Paralelamente, h uma distribuio heterognea de

    doenas em diferentes regies geogrficas, com freqncia refletindoadaptaes genticas da populao aos fatores ambientais. Isto bem exemplificado por algumas doenas monognicas, individual-mente infreqentes.

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    Por exemplo, a anemia falciforme, causada pela homozigosedo alelo S do gene da b-globina, uma doena grave, muitas

    vezes associada com morte nas duas primeiras dcadas de vida. Jo heterozigoto para o alelo bS no s sadio, como tambm apre-senta aumento da resistncia malria causada pelo Plasmodium

    falciparum, especialmente uma melhor chance de sobrevida na faseaguda da doena. Conseqentemente, a mutao falciforme (isto, a troca de glutamato por valina na posio 6 da b-globina) uma mutao adaptativa em regies endmicas de malriafalciparum e o alelo bS comum na frica, sobretudo nas regiesonde a malria endmica. Cinco diferentes mutaes bS

    (identificadas por hapltipos de marcadores flanqueadores) alcan-

    aram altas freqncias e foram encontradas em populaes hu-manas, sendo chamadas por nomes geogrficos: mutao tipoSenegal, tipo Camares, tipo Benin, tipo Repblica Centro-Afri-cana (tambm chamada tipo Banto) e tipo rabe-Indiano(Bortolini & Salzano, 1999). Deve-se destacar que apenas as qua-tro primeiras mutaes so africanas, pois a quinta s ocorre nasia Menor e na ndia. No s a anemia falciforme ocorrefreqentemente em populaes no-negras e fora da frica, mastambm observou-se que a mutao bS no vista em muitas po-pulaes da prpria frica, coincidindo com as regies geogrfi-

    cas nas quais a malria no endmica. Por exemplo, Hiernaux(1975) lista que o alelo bS est ausente nas populaes das regiesaltas da Etipia (Tigre, Falasha, Amhara e Galla), nos Masai,Kamba e Chaga do Qunia e da Tanznia, nos bosqumanos ehotentotes da parte sul da frica e nos Shona, uma populao delngua banto do Zimbbue. Todas essas populaes vivem em reaslivres da malria falciparum. Deve ficar bem claro, ento, que aanemia falciforme no uma doena de Negros nem uma doen-a africana, mas sim uma doena eminentemente geogrfica, pro-duto de uma bem sucedida estratgia evolucionria humana para

    lidar com a malria causada pelo Plasmodium falciparum.Da mesma maneira, as talassemias e a deficincia da glicose-6-fosfato desidrogenase so doenas geogrficas que afetam popula-es da frica, do Mediterrneo e/ou da sia, e que representamoutros estratagemas evolucionrios para lidar com a malria. Po-demos, com estes exemplos, perceber o papel fundamental das do-enas infecciosas na evoluo do genoma humano. Analogamente,a fibrose cstica (mucoviscidose) representa uma doena geogrficaeuropia que emergiu como uma provvel estratgia evolucionriade resistncia febre tifide, enquanto a doena de Tay-Sachs, ca-

    racterstica dos judeus asquenazes, pode estar ligada resistncia tuberculose (Dean et al., 2002). Alm disso, altas freqncias dafibrose cstica foram observadas em algumas populaes da fricae do Oriente Mdio (Rotimi, 2004) e a doena de Tay-Sachs vista

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    em elevada freqncia em Canadenses Franceses do Quebec(Hechtman et al, 1990).

    3.2 Ancestralidade geogrfica e farmacogentica

    A fauna e a flora dependem muito da geografia. Assim, diferen-tes origens geogrficas significam diferentes exposies a elemen-tos txicos do meio ambiente e a diferentes dietas. As substnciastxicas (xenobiticos) encontradas e ingeridas pelas populaeshumanas tambm variam muito nas diferentes regies geogrficas.O metabolismo humano faz uso de duas estratgias para aumentara solubilidade e a excreo desses xenobiticos: introduo de

    hidroxilas por oxidao atravs do sistema de citocromo P450 (faseI) e conjugao com compostos qumicos solveis como oglucuronato, a glutationa e grupos N-acetila (fase II). Como con-seqncia, emergiram variaes nos genes desses sistemasenzimticos, que representam adaptaes genticas ao padro geo-grfico de elementos txicos da dieta local. Esses polimorfismosesto hoje em dia sendo detectados pelos seus efeitosfarmacogenticos, j que o nosso corpo usa os mesmos sistemasenzimticos para metabolizar medicamentos (Evans & Johnson,2001; Roses, 2001). Como um exemplo relevante, podemos mencio-

    nar o polimorfismo do gene de resistncia mltipla a drogas (MDR1).Esse gene codifica a glicoprotena-P, uma bomba de efluxo depen-dente de energia que transporta xenobiticos hidrofbicos docitoplasma para fora das clulas. A glicoprotena P tambm ex-pressa na superfcie apical dos entercitos, onde bloqueia a absor-o de xenobiticos do lmen intestinal, promovendo a extrusoativa do interior da clula. O geneMDR1 polimrfico, e um SNPnesse gene, o polimorfismo C3435T no exon 26, correlaciona-se

    bem com a expresso da glicoprotena P no intestino. A freqnciado alelo C foi de 91% nos africanos de Gana e de apenas 51% em

    europeus, provavelmente refletindo diferenas geogrficasadaptativas, que podem estar relacionadas a componentes da dietaou a toxinas bacterianas (Schaeffeler et al., 2001). O importante que esse polimorfismo parece influir no metabolismo dos inibidoresde protease do HIV (por exemplo, nelfinavir, ritonavir, saquinavir),que fazem parte do regime trplice de tratamento da Aids. Fellay etal. (2002) demonstraram significantes diferenas de concentraoplasmtica do inibidor de protease nelfinavir entre pessoas com osgentipos CC, TT e CT. Os indivduos doentes com Aids comgentipo CC e tratados com nelfinavir apresentavam significativa-

    mente menos linfcitos CD4 que pessoas TT. A interpretao destesachados foi que indivduos CC tinham maior atividade deglicoprotena P e menores concentraes intracelulares, teraputi-cas, do inibidor de protease. Sabe-se, tambm, que a glicoprotena

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    P responsvel pelo efluxo de inibidores de protease do sistemanervoso central. Assim, indivduos CC podem ter menores con-

    centraes dos anti-retrovirais no sistema nervoso central, circuns-tncia que favoreceria que esse ambiente se tornasse propcio paraagir como um reservatrio de HIV. Com certeza, a relevncia dopolimorfismo deMDR1 para o tratamento da Aids precisa ser mais

    bem estudada. Mas o exemplo reala um ponto importante: que ospolimorfismos farmacogenticos, como o do geneMDR1, emergi-ram h muitos sculos como adaptaes genticas ao meio ambien-te e s agora adquiriram importncia clnica por causa de variabi-lidade individual na capacidade de metabolizar medicamentos. Po-rm, bvio que embora a diferena da freqncia do alelo C em

    Gana e na Europa seja significativa, o alelo est presente em ambasas populaes. Assim, o simples fato de um indivduo ter nascidoem Gana ou na Europa seria um indicador extremamente grossei-ro e muitssimo pouco confivel da sua resposta a inibidores deprotease anti-retrovirais e, na ausncia de testes farmacolgicosespecficos, teria pouca utilidade clnica.

    Espera-se que em breve a farmacogentica seja capaz de fornecertestes genmicos que permitam escolher o medicamento mais com-patvel com a constituio gentica de cada paciente individual-mente, evitando assim efeitos colaterais indesejados (Tate &

    Goldstein, 2004). Para que testes farmacogenticos sejam teis, elesdevem ter sensibilidade e especificidade individual. bvio e evi-dente que parmetros populacionais como ancestralidade geogrfi-ca e rtulos tais como raa e etnicidade no constituem indica-dores farmacogenticos aceitveis.

    3.3 Cor e medicina

    Uma pergunta que se impe : podemos usar em medicina clni-ca a aparncia fsica, e mais particularmente a cor da pele, como um

    substituto dos testes genmicos especficos? A nossa resposta no,especialmente no Brasil, onde nossos dados mostram que a corre-lao entre cor (ou aparncia fsica) e ancestralidade muito fraca.Alm disso, temos de lembrar que em medicina clnica estamos li-dando com um paciente isolado, uma pessoa nica, e no com gru-pos. Pela importncia do tema, vale a pena revisar a controvrsiaem torno dele, intensa nos ltimos trs anos nos Estados Unidos eque pode ser acompanhada por uma sucesso de artigos publica-dos no New England Journal of Medicine (NEJM).

    Em 3 de maio de 2001, o NEJM publicou dois interessantes arti-

    gos: Race and the response to adrenergic blockade with carvedilolin patients with chronic heart failure (Yancy et al.. 2001) e Lesserresponse to angiotensin converting enzyme inhibitor therapy in

    black as compared with white patients with left ventricular

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    RAZES PARA BANIR O CONCEITO DE RAA DA MEDICINA BRASILEIRA

    dysfunction (Exner et al., 2001). Esses artigos foram acompanha-dos de um editorial, assinado por Robert S. Schwartz, que critica-

    va severamente os autores por usarem expresses como raa, gru-pos raciais, diferenas raciais e background tnico sem oferecerqualquer justificativa biolgica plausvel para isso (Schwartz, 2001).O bem escrito editorial tambm enfatizou que a atribuio deheterogeneidades clnicas a diferenas entre raas no s era impre-cisa, mas tambm desprovida de valor no tratamento do pacienteindividual. Seguiram-se artigos contrrios (Risch et al., 2002;Burchard et al., 2003) ou favorveis (Cooper et al., 2003; Feldmanet al., 2003; Haga & Venter, 2003) posio de Schwartz,incrementando uma controvrsia que julgamos ser da mais alta

    importncia mdica.Esses srios debates j esto ocorrendo nos Estados Unidos, umpas onde h uma correlao significativa entre cor e ancestralidade,mesmo dentro das categorias de cor (Shriver et al., 2003). Qual noser, ento, a importncia desse tpico para o Brasil, onde nossosdados mostram que a correlao entre cor e ancestralidade muitofraca, mesmo entre categorias de cor, e onde a proporo deancestralidade africana em brancos no Sudeste de 32% e a propor-o de ancestralidade europia em pretos no Sudeste chega a 49%?Podemos afirmar, com confiana, que em nosso pas a avaliao

    fenotpica de cor tem pouco ou nenhum valor na clnica mdica.

    Concluses

    No consultrio mdico, o que se est examinando um pacien-te individual e no um grupo populacional. A autoclassificao oua avaliao mdica do grupo racial de um paciente no tem ne-nhum valor em decises sobre o diagnstico, tratamentofarmacolgico ou outras terapias. Com os avanos da farmacoge-ntica espera-se que possamos em breve ter disposio testes

    genmicos que nos permitam traar o perfil farmacogentico dopaciente e usar esse perfil na deciso clnica. At l, devemos nosconter de usar raa como substituto dos testes farmacogenticos.Feldman et al. (2003) alertaram corretamente que confundir cor eancestralidade pode ser potencialmente devastador para a prticada medicina. Isto ainda mais crtico no Brasil, onde se demons-trou que a correlao individual entre cor e ancestralidade prati-camente inexistente. Alis, toda a pesquisa mdica j feita no Brasilcom base na avaliao puramente fenotpica de cor deve ser consi-derada de valor discutvel, devendo ser urgentemente reavaliada

    sob a luz destes novos conhecimentos genmicos.Uma vigorosa controvrsia tem grassado na literatura cientfi-

    ca e mdica internacional sobre o valor do conceito de raa emmedicina. Embora haja praticamente consenso de que raas

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    de variveis no-genticas sociais e culturais, e que abrir mo des-sa classificao significaria perda de correlaes ambientais e preju-zo para a medicina e a populao. Mas essa utilidade hipottica daclassificao racial deve ser considerada no contexto dos seus pos-sveis riscos, sob uma tica de relao risco-benefcio, como tudoem medicina. Temos de tomar cuidado para no dar legitimidade afalsos indicadores e, tambm, fazer todo o esforo para abandonaressas tnues correlaes, atacando com firmeza as verdadeiras va-riveis genticas e ambientais que afetam sade e doena (Collins,2004).

    O conceito de raa carregado de ideologia e sempre traz consi-go algo no explicitado: a relao de poder e dominao (Munanga,2004). Assim, o conceito social de raa txico, como nos ensinao socilogo Paul Gilroy (2000), contamina a sociedade e tem sidousado para oprimir e fomentar injustias, mesmo dentro do con-texto mdico. As raas existem porque esto dentro das cabeas daspessoas, no esto dentro da cabea das pessoas porque existem(Kaufman, 1999). Como disse Munanga (2004), a partir dessasraas fictcias ou raas sociais que se reproduzem e se mantm osracismos populares (Munanga, 2004). Assim, na nossa opinio, a

    medicina brasileira teria muito a ganhar, e pouco ou nada a perder,banindo de seus cnones o conceito de raa.

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