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Adriana Conceição de Sousa Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva Rio de Janeiro 2012

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII)

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Adriana Conceição de Sousa

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise

comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do

bispo Julian de Toledo (século VII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História

Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva

Rio de Janeiro 2012

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Adriana Conceição de Sousa

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita

Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século

VII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História

Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Banca Examinadora: Prof. Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (PPGHC/UFRJ - orientadora)

Prof. Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PPGHC/UFRJ) Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)

Rio de Janeiro 2012

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________________________________________________________ SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII) / Adriana Conceição de Sousa – 2012. 96 p. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Rio de Janeiro, 2012. Orientadora: Profª Drª Leila Rodrigues da Silva 1. Reino visigodo 2. Hagiografia e santidade

3. Historiografia medieval 4. Península Ibérica

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Agradecimentos

A cada etapa da vida que se encerra, da vida intelectual inclusive, convém olhar

para trás, para os lados, e prestar, pelo menos uma bendita vez, a atenção devida a todos

aqueles que contribuíram de algum modo para que as coisas sejam enfim o que são. Não

me alongarei muito, e não porque deva pouco ou porque não deva nada ninguém, muito

pelo contrário: os aliados neste caminho foram muitos, o valor do seu apoio, inefável.

Assim, deixo registradas desde já as minhas desculpas a todos aqueles que infelizmente

não citarei e também àqueles que vou citar, porque não vou conseguir oferecer a

nenhum deles um agradecimento à altura da gratidão que sinto e que eles merecem.

Em primeiro lugar, à família: pai, mãe, irmão, (futura) cunhada, tios, primada...

Sei que foi duro lidar com o mau humor, à intolerância ao barulho, a falta de tempo e

disposição pros encontros, pros passeios e para as viagens necessárias. Foi por uma boa

causa – espero – e pretendo retribuir-lhes a compreensão com juros.

Devo agradecimentos sinceros também aos colegas “bárbaros” do PEM/UFRJ,

valentes graduandos (Juliana Raffaeli, Guilherme Marinho, Nat(h)álias Lacerda e

Xavier, Bruno Garcia, Ingrid Assunção, Vanessa, Bárbara, Izabella, Priscila.... esqueci

alguém?), companheiros mestrandos (Rodrigo Ballesteiro, Bruno Uchoa, e outros

companheiros de martírio pelo PPGHC afora), e inspiradores doutorandos (Rita Diniz,

Jaque Calazans, Rodrigo Rainha, Alex Oliveira, Paulo Duarte): suas dicas, seu

interesse, sua disposição para o debate intelectual franco – e para um ainda mais franco

happy hour no bar da esquina ou piadas non-sense no Facebook, por que não dizer –

tudo isso teve uma contribuição inestimável no meu desenvolvimento e na construção

desta dissertação. Há muito de vocês nas linhas e entrelinhas dela, acreditem!

E é claro que a pessoa que, a despeito da imensa importância das demais, terá

um parágrafo só pra ela será minha grande mentora Leila Rodrigues. Agradeço

muitíssimo pela tolerância, pela paciência, pela dedicação, pelas chacoalhadas

oportunas e pela sensibilidade incrível para dar os conselhos e as direções que eu

precisava sempre que eu as pedia, ou quando eu estava perdida demais até pra conseguir

perguntar o que quer que fosse. Eu, como todos os seus orientandos, concluo esta etapa

com a certeza de ter entregado a minha alma a alguém que cuidou muito bem dela,

obrigada!

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RESUMO SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Este trabalho tem como foco o discurso que relaciona realeza, santidade e tirania

nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, escritas no reino visigodo do século

VII. O objetivo é verificar os vínculos que podem ser identificados entre tal discurso e

as relações de poder naquele reino romano-germânico, relações que envolviam

monarcas, bispos e aristocratas, de uma forma muito mais complexa do que a ideologia

da centralização e do consenso defendida pela monarquia e pelo episcopado visava

sugerir.

Discute-se aqui o modo como conflitos entre reis e aristocratas, entre reis e

bispos, entre reis, bispos e aristocratas, no caso das duas narrativas selecionadas para

análise, são representados de acordo com um esquema que resumia todas essas

divergências, suas diferentes naturezas e motivações, a um único embate: a oposição

entre Virtude e Vício, entre fé e impiedade. Demonstramos como tal discurso serve a

estratégias ideológicas de legitimação no interior das disputas políticas que permeavam

a Igreja e o reino visigodos, estratégias levadas a cabo pelo monarca no primeiro dos

casos, pelo arcebispo de Toledo no segundo.

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ABSTRACT SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

This work focuses on the discourse that relates royalty, holiness and tyranny in

the narratives Vita Desiderii and Historia Wambae, written in the seventh century

Visigothic kingdom. Our goal is to verify the connections that can be identified between

this discourse and the power relations in the roman-barbarian kingdom; relations

involving monarchs, aristocrats and bishops, in a much more complex way than that

which the ideology of centralization and consensus held by the monarchy and the

bishops sought to suggest.

We discuss how conflicts between kings and aristocrats, between kings and

bishops, between kings, bishops and aristocrats are represented, in the case of the two

selected narratives, according to a scheme that summarized all these struggles, their

different natures and motivations, to a single collision: the opposition between Virtue

and Vice, between faith and impiety. We demonstrate how such discourse serves the

ideological strategies of legitimacy within the political disputes that permeated the

Visigothic Church and realm, strategies carried out by the monarch in the first case, and

by the Archbishop of Toledo in the second.

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Índice

APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................................1

CAPÍTULO 1: CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS......................................................................3

1. PROBLEMÁTICA E HIPÓTESES DE TRABALHO.........................................................................................4

2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS .......................................................................................7

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOCUMENTAÇÃO.......................................................................................11

CAPÍTULO 2: DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA .................................................................................17

1. MONARQUIA E REALEZA NA IDADE MÉDIA.........................................................................................18

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A VITA DESIDERII..........................................................................................24

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTORIA WAMBAE.....................................................................................33

CAPÍTULO 3: AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DO SÉCULO VII E A

CONSTRUÇÃO DA VITA DESIDERII E DA HISTORIA WAMBAE ................................................38

1. AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DOS SÉCULOS VI E VII: ASPECTOS DAS ASSOCIAÇÕES E

CONFLITOS ENTRE REIS, ARISTOCRACIA E EPISCOPADO IBÉRICO .............................................................39

1.1. ASPECTOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MONARQUIA VISIGODA TOLEDANA ...........39

1.2. SISEBUTO E A TEORIZAÇÃO POLÍTICA DE ISIDORO DE SEVILHA (570-636) .......................................45

1.3. REBELIÕES NOBILIÁRQUICAS NO REINO VISIGODO APÓS A MORTE DE SISEBUTO (621-693).............49

1.4. DISPUTAS DE PODER EM TORNO DA MONARQUIA, ATIVIDADE CONCILIAR E O PAPEL DE JULIAN DE

TOLEDO ..................................................................................................................................................54

2. ANÁLISE DOCUMENTAL ......................................................................................................................58

2.1. HUMILDADE E VERDADE CONTRA SOBERBA E FALSIDADE ..............................................................59

2.2. RESPONSABILIDADE EM CORRIGIR OS PECADOS E O DEVER DA MISERICÓRDIA.................................64

2.3. MANIFESTAÇÕES DIVINAS EM FAVOR DO SANTO E DO REI................................................................73

2.4. MANUTENÇÃO DA ORDEM, DA PAZ E DA LEGALIDADE CONTRA A VIOLÊNCIA E A DESAGREGAÇÃO .78

CAPÍTULO 4: CONCLUSÕES ..............................................................................................................87

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................92

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Apresentação

A pesquisa que aqui se apresenta visa dar continuidade ao trabalho por nós

desenvolvido desde a graduação, também sob orientação da professora Leila Rodrigues

da Silva, em que nos preocupávamos com o modo como as concepções de realeza cristã

em vigor no reino visigodo interferiram na construção da hagiografia Vita Desiderii, do

rei Sisebuto. No mestrado, ampliamos o alcance de nossa prévia problematização, à luz

das propostas metodológicas da História Comparada, inserindo na discussão a narrativa

historiográfica Historia Wambae, redigida pelo bispo Julian de Toledo, em fins do

mesmo século VII.

Como demonstraremos, a metodologia comparativa possibilitou-nos refletir

sobre a construção dos dois textos em uma perspectiva relacional, que nos permitiu

reconsiderar prévias conclusões e pressupostos tanto a respeito dos documentos quanto

do contexto político-ideológico no qual ambos se inserem, isto é, o da aproximação

entre monarquia visigoda e episcopado ibérico, e suas implicações políticas, ideológicas

e discursivas, ao longo do século VII.

Objetivando, assim, analisar as relações estabelecidas entre realeza, santidade e

tirania nos discursos presentes nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, a

dissertação estruturar-se-á da seguinte forma:

No primeiro capítulo, teceremos considerações introdutórias destinadas a

apresentar nossos objetos de estudo, problemáticas de pesquisa, objetivos e hipóteses,

bem como os conceitos e metodologia que orientaram o estudo dos nossos documentos,

cuja inserção tipológica também receberá atenção.

No segundo capítulo, exporemos nossa discussão bibliográfica divida em três

itens: um primeiro dedicado a uma seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na

Idade Média, com destaque para estudos voltados aos reinos romano germânicos; um

segundo item discutindo estudos voltados de forma parcial ou específica à Vita

Desiderii; e, por fim, um terceiro item avaliando estudos dedicados à obra de Julian de

Toledo e à Historia Wambae.

O terceiro capítulo é dividido em duas partes. Na primeira, com auxílio da

historiografia, trataremos dos diferentes aspectos das relações de poder no reino

visigodo do século VII que interferiram direta ou indiretamente na produção da Vita

Desiderii e da Historia Wambae. Discutiremos o processo de conversão e cristianização

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da monarquia e suas associações, por um lado, à atividade conciliar e à organização

eclesiástica, e por outro, aos conflitos entre reis e aristocracia registrados ao longo

daquele século. Na segunda parte, será exposta a nossa análise documental que, como

indicamos anteriormente, estruturar-se-á em torno de quatro eixos-temáticos comuns a

ambos os textos, a partir dos quais realizamos o procedimento de comparação.

No quarto capítulo, serão expostas, em síntese, as nossas conclusões.

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CAPÍTULO 1: Considerações introdutórias

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1. Problemática e hipóteses de trabalho O objeto desta pesquisa são os discursos e ideologias de afirmação da monarquia

visigoda no século VII tal como se apresentam em duas narrativas elaboradas no

período: a Vita Desiderii, escrita pelo rei Sisebuto (610-621) no ano de 615

aproximadamente, e a Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (680-692) na

década de 680.

Temos em vista que os discursos produzidos ao longo do século VII visando a

legitimação da posição dos monarcas visigodos possuíam como característica comum a

valorização do seu papel como soberanos cristãos e de sua vinculação com o

episcopado.1 Entendemos que uma aproximação comparativa entre os mencionados

documentos nos permite refletir sobre o modo como tal característica se manifesta em

uma forma particular assumida por tais discursos: referimo-nos à atribuição de sentido a

eventos ocorridos em um passado recente, seja por meio de uma obra hagiográfica,

como a Vita Desiderii, seja por meio de um relato cronístico, como a Historia Wambae,

bem como da associação que seus autores buscam estabelecer entre esse passado e o

presente que vivenciam. Cabe ressaltar que aspectos dos dois textos permitem-nos

deduzir que o público pretendido provável dos textos fosse a própria aristocracia

hispano-visigoda, em particular seus elementos letrados.2 Convinha, pois, a proposição

de modelos direcionados a esse segmento social em particular, modelos que

contemplassem os projetos de poder e sociedade da monarquia e do episcopado

toledanos.

A Vita Desiderii narra a trajetória do bispo Desidério de Vienne desde seu

nascimento até a sua morte por assassinato, em 607, que, na versão que o rei Sisebuto

dá aos eventos, teria sido encomendado pela rainha Brunequilda e por seu neto, o rei

merovíngio Teuderico II, que governavam a região da Burgúndia na época. Destaca-se

aqui o papel negativo que é atribuído aos monarcas, cuja atuação no comando do reino é

1 Questões referentes a esse processo de aproximação deverão ser tratadas com mais detalhe na primeira parte do capítulo 3. 2 Além das características inerentes aos gêneros literários a que pertenciam, faz-se necessário lembrar que tratam-se de textos escritos em língua latina, a qual, no caso da população visigótica, estudiosos sugeriram não ser a língua utilizada para comunicação cotidiana. Cf. HEN, Yitzhak. Literacy and orality – the place of the written word in Merovingian Gaul. In: ____. Culture and Religion in Merovingian Gaul. A.D. 481-751. New York: Brill, 1995, p.21-42. p.25. Como será apontado no capítulo 2, e conforme a historiografia já indicou, Desidério de Vienne, santo que protagoniza a Vita Desiderii, nunca foi objeto de culto na Península Ibérica, o que nos leva a crer que embora Sisebuto possa ter colaborado com a promoção da devoção ao santo na Gália merovíngia, a produção e difusão da hagiografia em questão no reino visigodo atendia a outros propósitos.

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contraposta todo o tempo ao papel desempenhado por Desidério em sua diocese, e

corresponde a uma inversão do ideal de monarca cristão proposto pelo bispo Isidoro de

Sevilha (560-636) em obras escritas durante o reinado do rei visigodo autor da

narrativa.3

Já a Historia Wambae, de Julian de Toledo, escrita em fins da década de 680,

trata de acontecimentos ocorridos no início do reinado do rei visigodo Wamba (672-

680), desde sua eleição, logo após a morte de seu antecessor Recesvinto (653-672), até a

repressão, em 673, da rebelião nobiliárquica liderada pelo dux Paulo na Septimania,

única região da Gália que ainda fazia parte dos domínios da monarquia visigoda

toledana. O texto destaca positivamente a atuação de Wamba frente à “tirania” do

concorrente. Entretanto, note-se que, tendo o relato sido produzido após o reinado de

Wamba, que teria renunciado ao trono por força de uma manobra aristocrática que

contou com a participação do próprio bispo Julian,4 o texto possivelmente tinha como

foco menos a atuação pessoal daquele soberano, do que uma valorização dos reis de

Toledo em geral,5 e, acrescentamos, a defesa de um ideal de boa conduta régia,

devidamente reforçado pela contraposição a um personagem identificado com o oposto

desse mesmo ideal.

Ressaltemos ainda as diferenças entre os contextos de produção de cada uma das

narrativas no que diz respeito ao processo de fortalecimento da autoridade da monarquia

no reino visigodo. O reinado de Sisebuto começa em 612, no início do século VII, e

pouco mais de duas décadas após a conversão de Recaredo e da aristocracia goda ao

cristianismo niceno – acontecimento que formalizaria a aliança entre rei, aristocracia e o

episcopado ibérico.6 Já o reinado de Wamba é marcado pelas conseqüências do

avançado processo de regionalização do poder no reino,7 processo do qual a própria

rebelião dos aristocratas da Septimania seria uma decorrência.

3 MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » e du « De uiris illustribus » d’Isidore de Séville. Hagiographica, Firenze, n. 7, p. 127-80, 2000. p. 134-140. 4 O bispo presidiu o XII Concílio de Toledo (681), responsável pela oficialização da deposição de Wamba. Cf. FRIGHETTO, Renan. Religião e poder no reino hispano-visigodo de Toledo: a busca da unidade político-religiosa e a permanência das práticas pagãs no século VII. Iberia, Logroño, n. 02, p. 133-150, 1999. p. 140. 5 GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, n. 08, p. 201-255, 1991. p. 202. O autor também defende que a narrativa teria sido escrita durante o reinado de Ervígio. 6 COLLINS, Roger. La España Visigoda. Barcelona: Crítica, 2005. p. 64.; CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz. Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. p. 235-267. 7 FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitaçao do poder régio na Hispania visigoda: o reinado de Ervígio (680-687). Gérion, Madrid. v. 22, n. 01, p. 421-435, 2004. p. 424.

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Nosso objetivo nessa dissertação será, portanto, o de comparar a construção dos

personagens na Vita Desiderii e na Historia Wambae tendo em vista sua relação

diferenciada com as ideologias de legitimação da monarquia visigoda. Tais ideologias

passam a ser elaboradas e defendidas no âmbito da produção intelectual identificada

com o episcopado hispano-godo, ao longo do período que sucede a conversão oficial da

aristocracia ao cristianismo niceno em 589.

Entendemos que a produção de discursos por parte do episcopado, ou mesmo

dos próprios monarcas, visando a proposição de uma interpretação, ideologicamente

orientada, de eventos do passado, era de capital importância para os grupos

comprometidos com o projeto político de fortalecimento da monarquia visigoda em

função do significado que a história, naquela época, possuía para a atribuição de sentido

à realidade presente.8

Nosso problema fundamental diz respeito primeiramente às questões que

levaram, num primeiro caso, um rei visigodo, Sisebuto, a escrever uma hagiografia em

que detentores do poder político desempenham o papel de antagonistas, ao enfrentarem

um bispo e, num segundo caso, levaram o bispo de Toledo, Julian, a ocupar-se da

narração de eventos envolvendo uma rebelião nobiliárquica que, apesar do pouco

impacto que teve na organização eclesiástica e da ausência de qualquer motivação

religiosa nas ações dos rebelados, foi dotada de um sentido eminentemente

providencialista, exposto nos termos de uma contraposição entre fé e impiedade. Nossa

hipótese mais geral para solucionar o problema é a de que Vita Desiderii e Historia

Wambae contêm em si discursos referenciados, de distintas formas, em uma ideologia

que, no reino visigodo do século VII, tornava indissociáveis o poder e a legitimidade

dos reis e o seu respectivo grau de comprometimento com Deus e com a Igreja.

A Vita Desiderii relacionar-se-ia com a referida ideologia no sentido de que

apresentaria uma proposta de delimitação das fronteiras que distinguiriam os bons dos

maus reis, tendo como critério suas virtudes e sua relação com o episcopado.

8 KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In: ___. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. p. 43. Neste capítulo, Koselleck trata de, dentre outras questões, a importância do topos ciceroniano historia magistra vitae no período que antecede a era moderna, a qual, em seu entendimento, seria marcada por uma leitura da história que se distinguiria daquela da Antiguidade e da Idade Média na medida por perceber o futuro como superação necessária do passado e do presente ou, para usarmos os termos cunhados pelo autor, pelo afastamento progressivo do horizonte de expectativa em relação ao espaço de experiência. A relação entre a reflexão deste autor e a análise do corpus documental da pesquisa será melhor desenvolvida no item dedicado ao nosso quadro teórico.

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A Historia Wambae, por sua vez, visa emitir juízo sobre a violência aristocrática

contra os monarcas toledanos, apontando para as diferenças que marcariam as ações de

legítimos reis cristãos e as dos tiranos que lhes contestavam – diferenças situadas todas

no âmbito da fé, das virtudes e do favorecimento divino.

Mas ainda seria necessário responder à questão sobre o porquê do recurso às

narrativas para veicular tais idéias. Temos como pressuposto o de que o recurso às

narrativas, fossem elas de cunho hagiográfico ou historiográfico, servia à difusão das

concepções propostas pela elite político-religiosa do reino visigodo. Narrativas como a

Vita Desiderii e a Historia Wambae apresentam conceitos expostos a partir de sua

concretização histórica, sua materialização no tempo. A materialização dos princípios

propostos pela monarquia e pela parcela do episcopado que defendia seus interesses, no

caso dos documentos considerados, seria identificável para seus autores tanto na vida e

no martírio de Desidério de Vienne, como no desenrolar da guerra entre o rei Wamba e

o duque Paulo.

A fim de demonstrar tais hipóteses, nosso estudo deverá orientar-se em função

de determinados objetivos específicos. O primeiro será o de sintetizar, a partir da

produção historiográfica, os principais aspectos do processo de associação entre

monarquia e episcopado no reino visigodo desde fins do século VI. Em seguida, analisar

comparativamente as narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, observando o modo

como valores cristãos aparecem associados ou dissociados de dados personagens,

eventos e outros elementos presentes nos textos.

2. Considerações teórico-metodológicas A noção de ideologia que utilizamos é aquela que se refere a um “sistema de

crenças característicos de certos grupos ou classes sociais, compostas por elementos

tanto discursivos como não-discursivos. [...] se aproxima da noção de uma ‘visão de

mundo’ no sentido de um conjunto relativamente bem sistematizado de categorias que

fornecem um ‘arcabouço’ para a crença, a percepção e a conduta de um grupo de

indivíduos”.9

No entendimento de Terry Eagleton, as ideologias podem apresentar-se tanto

como conjuntos de crenças destinados a orientar a ação política,10 quanto como

9 EAGLETON, Terry. Ideologia – uma introdução. São Paulo: UNESP, 1997. p. 15-16; 18; 29-30; 49. 10 Ibidem. p. 53-55. Eagleton parte da definição segundo a qual ideologia consistiria em uma “luta de interesses sociais antagônicos no nível do signo”.

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discursos em que interesses sociais são não apenas expressos mas também

“racionalizados”.11 A racionalização, neste caso, envolve a tentativa de oferecer

explicação ou justificação para comportamentos ou concepções que, de outro modo,

podem ser alvo de questionamento e crítica. Desse modo, a ideologia se associa

intimamente à noção de legitimação, que Eagleton define como o “processo pelo qual

um poder dirigente vem a assegurar de seus sujeitos, pelo menos, uma anuência tácita à

sua autoridade”, por meio de recursos discursivos, entre os quais podemos mencionar a

afirmação da universalidade e da naturalidade de determinadas idéias e práticas que se

querem legitimadas.

As noções que Terry Eagleton apresenta, em sua proposta de síntese a respeito

dos debates intelectuais em torno da noção de ideologia, contribuem com a nossa

reflexão na medida em que nos permitem avaliar como as ideologias de legitimação do

poder monárquico em voga no reino visigodo se manifestam nas narrativas que

selecionamos para análise, a partir da identificação de como as “estratégias ideológicas”

se apresentam nos textos. Considerando a presença de discursos12 legitimadores,

avaliamos ser pertinente o desenvolvimento de uma análise pautada na construção

desses discursos, principalmente no aspecto que é o do recurso à referência ao passado e

sua associação com o presente ao qual os autores se dirigem, isto é, com as questões

políticas em voga nos contextos de produção das narrativas.

No que diz respeito à perspectiva comparada, referenciamo-nos nas propostas de

Jürgen Kocka, em que a comparação em História é definida como a discussão de “dois

ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e

diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais”.13 Consideramos

que um estudo comparativo pode contribuir significativamente para a compreensão do

fenômeno que é a construção de discursos em torno da realeza e da monarquia no reino

visigodo. Kocka assinala que um dos benefícios da História Comparada é a

11 Ibidem. p. 56-58. 12 José Luiz Fiorin define discurso como “uma unidade no plano do conteúdo, o nível do percurso gerativo do sentido em que formas narrativas abstratas são revestidas por elementos concretos.”. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2011. p. 45. De acordo com o autor, tributário dos estudos marxistas, “os discursos materializam representações ideológicas”, desse modo, analisar discursos constitui o meio fundamental para o estudo das próprias ideologias. Cf. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1998. p.34. 13 KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42. p. 39-44, fev/2003. p. 39. [tradução de Maria Elisa Bustamante]

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possibilidade de “esclarecer os perfis de casos singulares, frequentemente de apenas um

único caso, ao contrastá-lo com outros”.14

Alinhando-nos a esta perspectiva, entendemos que a metodologia comparada

pode nos permitir refinar a compreensão não apenas sobre as duas narrativas em si, ou

os seus contextos de produção em particular, como também sobre as suas possíveis

relações e conexões no que tange à sua inserção na produção intelectual destinada ao

fortalecimento, no plano ideológico, da monarquia visigoda toledana. A comparação

nos permite problematizar não apenas a forma como um mesmo processo político

interfere na elaboração de discursos distintos tipológica e diacronicamente, como

também discutir como um mesmo tema (no nosso caso, a dimensão política das virtudes

cristãs) pode sofrer variações condicionadas não apenas por características inerentes aos

gêneros literários a que cada texto pertence, mas também por interesses sociais dos

autores e seus respectivos interlocutores políticos.

Nossa metodologia de análise baseou-se nos conceitos expostos por José Luiz

Fiorin sobre semântica discursiva e a função dos temas e figuras na construção de

sentido do texto.15 O procedimento básico consistiu em identificar temas presentes nos

textos, as figuras e elementos que fazem referência a eles e analisar suas relações de

sentido. Em termos mais específicos, analisamos as figuras presentes nos textos

(personagens, ações, acontecimentos, caracterizações etc.) e por meio delas chegamos

aos temas/sentidos fundamentais de cada texto, tais como santidade, pecado,

legitimidade régia etc.. Comparando os temas de cada texto e suas contraposições,

chegamos a uma "configuração discursiva"16 mais genérica, na qual ambos os textos

poderiam ser inseridos, no caso de nossas narrativas, a contraposição entre “Vício” e

“Virtude”.

Os elementos presentes nos textos podem então ser analisados tanto em relação à

temática interna a cada texto, quando em relação à temática geral que engloba os dois.

Na exposição de nossa análise, no capítulo 3, os temas e contraposições foram

estruturados na forma de quatro itens, aos quais reis, tiranos e homem santo foram

associados a cada um dos temas de diferentes formas.

14 Ibidem. p. 40. 15 FIORIN, José Luiz. op. cit. p. 89-118. 16 Configurações discursivas se referem a temas genéricos o suficiente para se apresentar em vários discursos distintos (ex: amor, morte, infância, Bem, Mal, etc.). Cf. Ibidem. p. 107. Analisar uma configuração discursiva, nesse sentido, implica em não apenas avaliar como dado tema aparece em dado discurso, mas analisar as variações de tratamento que esse tema recebe em vários discursos distintos.

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Para expor o procedimento em detalhe: durante a leitura dos documentos,

primeiramente observamos os diversos elementos que compõem a narrativa. Em

seguida verificamos as isotopias, isto é, a possibilidade de inserção de um determinado

conjunto de elementos em uma ou mais dadas categorias temáticas, em ordem crescente

de abstração. Ex: a referência a misericórdia do santo, na Vita Desiderii, foi inserida em

uma primeira categoria que denominamos “santidade”, a qual por sua vez pode ser

inserida em uma configuração discursiva mais ampla, que é a da “Virtude” e suas

diferentes manifestações.

O procedimento de análise documental da Historia Wambae assemelhou-se com

o adotado quanto à Vita Desiderii, isto é, a partir dos temas identificados na narrativa,

realizamos uma decomposição do texto, partindo dos temas mais gerais (contraposição

entre Vício e Virtude ou, neste caso, entre o universo da Legitimidade e o da

Ilegitimidade) para os mais específicos (como, por exemplo, humildade, misericórdia,

etc. ou perjúrio, covardia, etc.), aos quais associaremos referências selecionadas do

texto.

Embora na Historia Wambae, a contraposição mais explícita seja a que opõe

legitimidade régia e tirania, aqui entendida como obtenção e exercício ilegítimo do

poder político, utilizaremos para reunir os elementos positivos e negativos no texto as

categorias Virtude e Vício, respectivamente. O motivo é que, como demonstraremos

posteriormente, Julian de Toledo opõe legitimidade e tirania em termos de uma

oposição entre retidão moral e pecado, assemelhada a que podemos encontrar nos

relatos hagiográficos.

A escolha por essa abordagem metodológica se justificaria, no caso de nossa

pesquisa, pois, de acordo com supracitado autor, “o nível dos temas e das figuras é o

lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Com efeito, não é nos níveis mais

abstratos do percurso gerativo que se manifesta, com plenitude e nitidez, a ideologia,

mas na concretização dos valores semânticos”.17

Análise semântica e análise comparativa foram associadas em nossa leitura, de

modo a permitir a identificação de padrões e relações de sentido comuns, bem como

para que identificássemos diferenças, que pudessem ser associadas a especificidades das

fontes ou de seus respectivos contextos de elaboração. A metodologia utilizada foi

fundamental para nossa argumentação, pois propiciou a identificação das confluências

17 Ibidem. p. 106.

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discursivas existentes nos documentos, que apontam para o interesse de ambos os seus

autores de filiar-se a diretrizes ideológicas, vinculadas por sua vez a dado consenso

estabelecido conjuntamente pela monarquia e pela Igreja. Além disso, nos permitiu

identificar as diferenças também presentes no teor dos referidos discursos, as quais, por

sua vez, apontam para a existência, no seio daquele grupo político e social que

correspondia à corte e ao episcopado toledano, de perspectivas e posicionamentos

variáveis em relação àquele prévio consenso.

3. Considerações sobre a documentação Como já mencionamos, os dois documentos selecionados para o

desenvolvimento de nossa problematização são a Vita vel passio Sancti Desiderii

(conhecida também simplesmente como Vita Desiderii), escrita pelo rei Sisebuto, e a

Historia Wambae Regis, do bispo Julian de Toledo. Do ponto de vista formal, os dois

documentos pertencem a duas tipologias distintas: um se trata de uma narrativa

hagiográfica e outro pertence ao gênero das historiae. Ao passo que o segundo gênero

possui uma tradição que remonta à Antiguidade Clássica greco-latina, sofrendo

transformações significativas ao ser integrado à diversificada literatura produzida pelas

lideranças cristãs, o primeiro começa a se desenvolver já durante os últimos séculos da

Antiguidade romana, no contexto do surgimento do culto à memória dos mártires do

cristianismo.

A hagiografia se define como o conjunto de escritos concernentes aos santos ou

à santidade, bem como a área da teologia dedicada ao estudo da santidade – esta

conhecida também como hagiologia.18 Os escritos hagiográficos podem pertencer a

gêneros literários diversos – narrativas, sermões, poemas, epígrafes etc. – sendo que o

aspecto que os define como textos propriamente hagiográficos é o propósito de

perpetuar a memória dos santos e de edificar moralmente o público leitor/ouvinte,

estimulando os cristãos a imitar o exemplo dos santos e mártires. Assim, a literatura

hagiográfica constituiu-se em um importantíssimo veículo de difusão de modelos de

conduta cristã durante a Antiguidade e a Idade Média.19

18 GOULLET, Monique. Introduction: saints et hagiographie. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et l’histoire : sources hagiographiques du haut Moyen Âge. Paris : Bréal, 2004, p. 14. 19 VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximación a sus manifestaciones literárias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2005., p. 23-32.

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Ela guarda proximidades com vários estilos literários da Roma pagã como as

historiae, os panegíricos, e as biografias.20 O historiador Peter Brown aponta que umas

das características mais peculiares do mundo clássico tardio (também chamado por ele

de Civilização da Paidéia) é o fato de que a exemplaridade costumava ser buscada

muito mais em indivíduos do que em instituições e outras entidades mais genéricas, o

que fica comprovado pela força retórica que possuía a referência a heróis, heroínas ou a

grandes intelectuais e governantes do passado.21

A recorrência destes tópicos em um grande número de textos produzidos entre

os séculos IV-VIII e, às vezes, também em textos posteriores pode ser associada a uma

outra idéia trazida por Peter Brown. Quando este autor destaca a “inovação” do discurso

hagiográfico cristão em relação ao pensamento clássico: a santidade, sendo concebida

como imitatio Christi e/ou repraesentatio Christi, difere-se do discurso pagão

tradicional na medida em que os santos e mártires cristãos tornam contemporâneos os

exemplos do passado; em outras palavras, o santo/mártir é visto e cultuado como o

próprio Cristo tornado presente por meio da vida de um fiel.22 Cristo era eterno, o que

permitia a ele ser enviado a todas as eras e todos os lugares por meio de seus eleitos,

eles mesmos exemplos da grande potencialidade do primeiro modelo de humanidade: o

Adão antes da queda, natureza humana perfeita porque criada “à imagem de Deus”.23

Tal “inovação”, entretanto, pode ser relativizada, já que a “antiguidade” permanece

como referência, comprovando a existência de simbiose entre a cultura clássica e a

teologia judaico-cristã.

Os santos são distribuídos pelos historiadores entre algumas categorias. A

primeira forma de santidade a ser reconhecida pelas comunidades cristãs é a dos

mártires, que surgem inicialmente no período das perseguições aos cristãos pelo

Império romano (séculos II e III); com o fim da hostilidade oficial, o martírio passa a

ser associado a outros tipos de ação religiosa, como às missões de evangelização ou aos

conflitos protagonizados por bispos e líderes laicos.24 É nesta categoria que podemos

inserir o bispo Desidério de Vienne, que protagoniza a Vita Desiderii. Peter Brown

indica também que um dos papéis desempenhados pelos santos no imaginário cristão

tardo antigo e medieval era o de permitir que os fiéis fizessem uso dos acontecimentos

20 Ibidem. p. 33-40. 21 BROWN, Peter. The Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations, Berkeley. n. 2, p. 01-26, 1983. p. 02-03. 22 Ibidem. p. 06-08. 23 Ibidem, p. 07, 19. 24 Ibidem, p. 08-09.

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presentes nos textos hagiográficos para atribuir sentido às suas próprias ações e

experiências pessoais, bem como para julgar a de outros.25 Esta forma peculiar de

conceber o conteúdo dos textos hagiográficos, no nosso entender, tornava uma narrativa

como a Vita Desiderii bastante conveniente à difusão de um projeto político-ideológico

como o proposto pela produção intelectual eclesiástica dos anos posteriores à conversão

oficial do reino visigodo, em 589, que influencia diretamente a elaboração da obra de

Sisebuto.

Sobre a produção historiográfica cristã, na qual podemos inserir a Historia

Wambae, ela possuiria quatro finalidades principais, segundo E. Sánchez Salor: 1)

finalidade testemunhal, ou seja, a de oferecer evidências da interferência divina no curso

dos acontecimentos no mundo terreno; 2) finalidade edificadora, que aproxima essa

literatura das narrativas hagiográficas, a ponto de o autor inseri-las também na categoria

“historiografia”; 3) finalidade apologética, isto é, a defesa da fé cristã contra eventuais

detratores; 4) finalidade “terapêutica” (sic), a menos recorrente, por meio da qual seus

autores visariam oferecer consolo ao seu público em situações de crise, pela referência à

glória de tempos passados.26 Sobre a historiografia visigoda em particular, Sanchez

Salor aponta para a forte influência da obra de Paulo Orosio no elemento

providencialista presente nessas narrativas.27

Paul Merritt Basset, tratando de uma obra em particular desse gênero produzido

no reino visigodo, o Chronicon, de Isidoro de Sevilha, comenta que esta, ainda que

tenha sido redigida sob forte influência de escritos anteriores de autores como Eusébio

de Cesárea e Agostinho, teria sido a primeira a narrar uma pretensa “história universal”

como uma linha singular de acontecimentos, em que o sagrado e o profano confluem

progressivamente à medida que o cristianismo se expande. A história universal, assim

entendida, se confundiria com a história da Igreja universal – ao passo que as heresias

seriam caracterizadas pelo seu restrito alcance. O autor também menciona, ao comentar

as leituras da historiografia factualista a respeito das crônicas e historiae isidorianas, o

problema de elas serem avaliadas em função do seu grau de (in)exatidão, ao invés de

terem considerados os seus propósitos ideológicos,28 traço que, como demonstraremos

25 BROWN, Peter. Enjoying the saints in late antiquity. Early Medieval Europe, 9 (I), p. 01-24, 2000. p. 19-22. 26 SÁNCHEZ SALOR, Eustáquio. El providencialismo en la historiografía cristiano-visigótica de España. Anuario de Estudios Filológicos, Extremadura. v. 05, p. 179-192, 1982.. p. 179-180. 27 Ibidem. p. 180. 28 BASSET, Paul Merritt. The use of History in the Chronicon of Isidore of Seville. History and Theory, Middletown. v. 15, n. 03, p. 278-292, 1976. p. 278-280, 286, 291-292.

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no próximo capítulo, identificamos também em boa parte da historiografia que faz

menção a Vita Desiderii e a Historia Wambae.

A respeito das contribuições do historiador Reinhart Koselleck à reflexão sobre a

escrita da história, podemos mencionar uma que possui particular importância para a

leitura que temos de nossa documentação, pois trata da influência do pensamento

agostiniano na apreensão cristã da história:

“O que foi decisivo para Santo Agostinho – e que vale para todas as tentativas de transformar as doutrinas da Idade do Mundo em determinações históricas do tempo – foi o fato de que as doutrinas da Idade do Mundo eram concebidas de tal maneira que se acreditava que, depois do nascimento de Cristo, vivia-se a última delas. Desde então não poderia acontecer mais nada de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final. O sexto aetas é o último e, portanto, estruturalmente idêntico a si mesmo. Com isso, Santo Agostinho colocava-se em dupla vantagem. Empiricamente, nada mais poderia surpreendê-lo, mas do ponto de vista teológico, tudo era inédito e renovado [...] Desse modo, Santo Agostinho esboça um horizonte para a civitas terrena, dentro do qual formula uma série de regularidades que, em sua estrutura formal, delineiam as condições de um possível movimento histórico.”29

Tais considerações nos permitem analisar uma narrativa hagiográfica como a

Vita Desiderii e uma historia como a Historia Wambae a partir de um eixo comum

interpretativo comum, já que esta perspectiva agostiniana, que insere passado e presente

em uma estrutura única dentro do plano divino, marcando a experiência do tempo e da

história na Antiguidade cristã e na Idade Média, influencia a construção de ambas as

narrativas. Ou, como Santiago Castellanos indica no caso específico das hagiografias

visigodas, essas narrativas consistiam em tentativas de seus autores de interferir, criando

ou controlando, uma dada memória social em construção. Tratava-se de uma forma de

fabricar consenso e unanimidade em contextos nos quais diferentes interesses, posições

de poder, e concepções a respeito do passado se viam em conflito.30

A Vita Desiderii se encontra conservada em seis manuscritos, que estão

distribuídos entre diversos arquivos espanhóis, entre os quais o da Biblioteca Nacional,

em Madrid (códices 590, 1346, 13085, 18735/29), o do El Escorial (códice b.III.14), e o

da Biblioteca Capitular de Toledo (códices 27-24). Todos os manuscritos, produzidos ao

longo dos séculos XVI-XIX, têm como base, direta ou indireta, um manuscrito que

fazia parte do famoso códice ovetense, pertencente ao bispo Pelayo, datado do século 29 KOSELLECK, Reinhart. História, histórias e estruturas temporais formais. In: ___. Op. cit. p. 128. 30 CASTELLANOS, Santiago. The Significance of Social Unanimity in a Visigothic Hagiography: Keys to an Ideological Screen. Journal of Early Christian Studies, Baltimore, v.11, n.03, p. 387-419, 2003. p.395, 418.

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XII, e atualmente perdido. O manuscrito do códice ovetense é o mais antigo, até o ponto

que conhecemos, que incluía a Vita Desiderii. Entre as edições existentes, encontramos

três, a saber: a de E. Flórez, de 1751; a de B. Krusch, de 1896; e duas de J. Gil, de 1972

e 1991, respectivamente.31

Os manuscritos da Historia Wambae se encontram conservados em códices

armazenados na Catedral de Toledo, na biblioteca da Catedral de Narbona, códice este

conhecido como “códice narbonense”, em Madrid (Academia de la historia G-1 e A-

189; e BN. 1376)), na biblioteca capitular de Segorbe (G-1), e em Toledo (BC 27-26).

Entre as edições que já foram produzidas, podemos mencionar: uma de E. Flórez

(século XVIII), do Cardeal Lorenzana (reeditada por P. Migne em sua Patrologia

Latina), e uma de W. Levison, na Monumenta Germaniae Historica.32

Em nossa pesquisa, utilizaremos uma tradução da Vita Desiderii e da Historia

Wambae para o castelhano, elaboradas por Pedro R. Diaz y Diaz, da Universidade de

Granada, e publicadas em 1993 e 1990, respectivamente.33 Para observações mais

apuradas, contaremos ainda com o apoio das edições latinas presentes na Monumenta

Germaniae Historica, de B. Krusch e W. Levison.34

Em suma, neste capítulo delimitamos as questões que nos ocupam na

dissertação. Tais questões são relativas ao modo como a construção de duas narrativas

produzidas no reino visigodo do século VII relaciona-se com as relações de poder

envolvendo monarquia, episcopado e aristocracia no reino visigodo e com estratégias

ideológicas utilizadas pelos dois primeiros com vistas a privar de legitimidade a

emergência de pólos de poder alternativos, representados em geral na figura de

aristocratas rivais e opositores da centralização política e religiosa em torno de Toledo.

Contamos para isso com as possibilidades do método comparativo, que nos permite

aproximar textos com perfis tipológicos e temporais distintos, no caso uma narrativa

hagiográfica e uma narrativa histórica separadas por um período de aproximadamente

31 MARTIN, José Carlos. Una revisión de la tradición textual de la Vita Desiderii de Sisebuto. Emerita, 64, n. 02, 1996, p. 239-248. 32 MIRANDA CALVO, José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 03, p. 159-170, 1971. p. 05. 33 DIAZ Y DIAZ, Pedro R. Tres Biografías latino medievales de San Desiderio de Viena (traducción y notas). Fortunatae, La Laguna, nº 05, p. 215-252, 1993. e JULIAN DE TOLEDO. Historia del Rey Wamba. Trad. e Notas de Pedro Rafael Diaz y Diaz. Florentina Iliberritana, v. 1, p. 89-114, 1990. 34 KRUSCH, Bruno (ed.). Vita vel passio Sancti Desiderii a Sisebuto Rege composita. In: ______ (org.). Monumenta Germaniae Historica. SS rer. Merov. (vol. I). Hannover, 1896. p. 630-637. e LEVISON, W. (ed.). Historia wambae regis auctore iuliani episcopo toletano. In: Ibidem. v. 05, p. 486-535.

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sete décadas, e estabelecer parâmetros de análise capazes de evidenciar relações e

associações entre os documentos até então não consideradas, e rever sua inserção em

uma conjuntura social e política mais ampla.

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CAPÍTULO 2: Discussão Bibliográfica

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Considerando a importância que as questões relacionadas à monarquia e à

realeza assumem em nossa dissertação, bem como às referentes à Vita Desiderii e à

Historia Wambae, dividimos este capítulo em três blocos: um primeiro dedicado a uma

seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na Idade Média, com destaque para

estudos voltados aos reinos romano germânicos; um segundo bloco discutindo estudos

voltados de forma parcial ou específica à Vita Desiderii; e, por fim, um terceiro

avaliando estudos dedicados à obra de Julian de Toledo e à Historia Wambae.

1. Monarquia e realeza na Idade Média1 No início do século XX, Fritz Kern (1915) já ia além da perspectiva que

identifica nos governantes germanos uma política de caráter puramente patrimonialista e

personalizado, apontando que é apenas no Antigo Regime que a dignidade régia se torna

um dom pessoal (e não mais familiar) e que durante a maior parte do período medieval e

mais ainda nos primeiros séculos dele, predominava a concepção que via o direito

legítimo ao trono como oriundo de três bases: laços dinásticos, providência divina e a

vontade do povo.2 No que tange a essas três bases, o autor identifica a primeira como

uma herança germânica, a segunda como fruto da influência eclesiástica e a terceira

como relacionada a conceitos tradicionais da burocracia/magistratura romana.

Com relação à associação entre monarquias e Igreja, Kern ressalta a importância

que os rituais de sagração assumiram ao longo do período medieval no sentido de

oferecer sustentação institucional à ascensão de soberanos cuja legitimidade pudesse ser

objeto de contestação por parte de seus pares, mas ressaltando que ela sempre seria

apresentada como uma confirmação divina de um direito secular existente.3 O autor

identifica uma íntima relação entre as sagrações e a noção da realeza como ofício, o que

serviria à Igreja para impor uma série de obrigações ao governante, mas que, no

entendimento de Kern, termina servindo basicamente para assegurar direitos, mais que

para estabelecer deveres.4

1 Distinguimos, genericamente, monarquia como instituição régia ou forma de governo centralizada na figura do rei, e realeza como a condição ou função real, relativa à pessoa do monarca. 2 KERN, Fritz. Kingship and Law in the Middle Ages. Westport: Greenwood, 1985. p. 12-26. Concordamos com P. Grierson, entretanto, quando o mesmo aponta para o fato de que Kern atribui peso excessivo à “vontade do povo” nos processos sucessórios, argumentando que ostrogodos, visigodos, lombardos, vândalos e burgúndios possuíam estirpes régias – ainda que o nível de reconhecimento delas pelos súditos fosse variável – e que a palavra “eleição” no período tinha um sentido muito vago, podendo fazer referência tanto a uma eleição genuína quanto à simples aceitação de um sucessor previamente definido ou de um golpe de Estado bem-sucedido. Cf.: GRIERSON, P. Election and Inheritance in Early Germanic Kingship. Cambridge Historical Journal, Cambridge, v. 7, n. 01, p. 1-22, 1941. p. 1-3. 3 KERN, Fritz. op. cit. p. 34; 46. 4 Ibidem. p. 50.

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Ernst Kantorowicz, por sua vez, no seu clássico The King’s Two Bodies,5 tem

como objetivo apresentar uma reflexão sobre as origens medievais de noções relativas a

uma identidade jurídica dual atribuída aos monarcas nos primeiros séculos da

Modernidade. No que tange à questão que nos ocupa de modo particular, que é a da

relação entre monarquia e Igreja, Kantorowicz discute textos produzidos na Idade

Média Central que, fazendo referência a leis e concílios do reino visigodo, por exemplo,

defendem a dualidade da pessoa real, baseados na idéia de que o monarca seria uma

persona geminata, tal como o próprio Cristo, ao mesmo tempo humano e divino, mas

que diferentemente da segunda pessoa da Trindade, que é divino por natureza, o rei

tornar-se-ia divino por graça. Para o autor, esta concepção prenuncia a premissa,

predominante em períodos posteriores, que distingue o “rei como pessoa” do “rei como

ofício”.6

Outro autor que podemos destacar entre aqueles que propõem uma apreensão

mais geral da política no período medieval é René Fédou.7 Com o fim de invalidar a

tese que identifica a Primeira Idade Média como uma época de caos, o autor fornece

diversos elementos não apenas de continuidade entre a Europa romano-germânica e a

realidade política baixo-imperial (a organização episcopal, o latim com língua escrita e

de culto e o direito romano), como também de similitude entre elementos considerados

de origem germânica e práticas romanas (o caráter personalizado das leis e das relações

políticas – contraposto à territorialidade tipicamente atribuída à legislação romana; o

peso do aspecto militar do poder régio; o direito de bannus – que, para o autor, se

assemelha ao imperium em sua acepção original etc.). Desse modo, Fédou conclui que,

mais correto do que falar em continuidades e rupturas entre Roma e os reinos

germânicos, seria falar em uma síntese, que favoreceria os aspectos de cada conjunto

cultural que fossem mutuamente inteligíveis.8

Sobre a questão da relação entre autoridades eclesiásticas e seculares, Fédou

diverge de Kern na medida em que, diferentemente deste, que identifica e enfatiza a

existência uma relação de subordinação da Igreja para com os monarcas,9 o historiador

francês acentua não apenas a importância do pensamento agostiniano para o

desenvolvimento de concepções que defendiam a preeminência da autoridade episcopal

5 KANTOROWICZ, Ernst H. The King’s Two Bodies: a study in mediaeval political theology. Princeton: Princeton University, 1957. 6 Ibidem. p. 42-60. 7 FÉDOU, René. El Estado en la Edad Media. Madrid: EDAF, 1977. 8 Ibidem. p. 15-35. 9 KERN, Fritz. op. cit. p. 51.

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em detrimento dos interesses dos soberanos seculares, como também ressalta o papel

desempenhado pelas reuniões conciliares na definição de diretrizes políticas e até

mesmo na ratificação de processos sucessórios violentos no reino visigodo, por

exemplo. Fédou destaca também a relevância da atividade política e intelectual de

bispos como Gregório Magno (590-604) e Isidoro de Sevilha (570-636) no

aconselhamento de monarcas nos reinos franco e visigodo e na construção da idéia da

realeza como ministerium, cujo objetivo fundamental deveria ser a salvaguarda da

disciplina cristã nos seus respectivos domínios. 10

Reconhecemos a pertinência de estudos como os dos três autores supracitados,

cujo objetivo essencial é o de oferecer um panorama o mais abrangente possível a

respeito das características do exercício do poder político na Europa medieval desde o

século VI ao século XV. Entretanto, consideramos necessário estar atentos às

especificidades, tanto em nível espacial quanto temporal, das questões políticas da

Primeira Idade Média, o que obras com tal grau de abrangência tendem a não acentuar

ou a evocar muito vagamente. Em outras palavras, entendemos ser apropriado abordar a

política do período medieval no plural, ao invés de descrevê-lo como uma experiência

histórica unívoca.

Com relação às especificidades no plano cronológico, Katherine Fisher Drew,

por exemplo, a partir da análise das legislações dos reinos franco, visigodo, lombardo e

dos anglo-saxões, aponta para uma série de diferenças entre elas e a legislação romana

no que concerne a questões como uso legítimo da violência e as relações senhoriais e de

dependência. Para a autora, a principal mudança que caracterizou a organização social

dos reinos germânicos da Primeira Idade Média foi a forma diferenciada pela qual

passaram a ser concebidas as relações entre os indivíduos e a sua segurança pessoal.11

A seguir, apresentaremos exemplos de estudos recentes dedicados de maneira

específica à questão da realeza nos reinos germânicos nos primeiros séculos da Idade

Média, com destaque para algumas das reflexões voltadas particularmente ao reino

visigodo.

Um primeiro estudo que podemos mencionar é o livro da professora Leila

Rodrigues da Silva publicado em 2008, produto da revisão e atualização da sua tese de

doutorado, defendida em 1997, e cuja temática eram as relações entre monarquia e

10 FÉDOU, René. op. cit. p. 42; 90-93. 11 DREW, Katherine Fischer. Another Look at the Origins of the Middle Ages: A Reassessment of the Role of the Germanic Kingdoms. Speculum, Cambridge, v. 62, n. 4, p. 803-812, 1987.

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21

Igreja na Galiza do século VI, região então controlada pelos suevos.12 O estudo da

autora centrou-se no modelo de monarca tal como se apresentava na obra do bispo

Martinho de Braga (556-580) e sobre a inserção desse modelo no processo de

aproximação entre autoridades laicas e eclesiásticas da região verificado no período e no

qual o bispo em questão desempenhou um papel bastante significativo. Entre os muitos

méritos do estudo, podemos mencionar a evidência da importância de se reavaliar o

valor da história da monarquia sueva na Galiza, a despeito da sua curtíssima duração

(menos de um século), para a compreensão da dinâmica que envolveu, em um primeiro

momento, a desarticulação do domínio romano nas antigas áreas ocidentais do Império

a partir do século V e sua substituição - ou cooptação - pelas elites germânicas e, em um

segundo momento, a aproximação da realeza com a alta hierarquia eclesiástica e a

relação de tutelamento que o episcopado busca estabelecer com os monarcas, resultando

em uma ação política e intelectual direcionada à cristianização dos princípios de

governo.

A esta questão se dedica também o professor Marcelo Cândido da Silva, no livro

intitulado A Realeza Cristã na Alta Idade Média, igualmente publicado em 2008.13

Neste estudo o autor, a partir da análise de uma ampla e variada documentação, dedica-

se a analisar o processo que, no reino franco merovíngio ao longo do século VI, é

definido por ele como sendo o da transformação da concepção constantiniana de

realeza, caracterizada pelo controle dos governantes laicos sobre a estrutura eclesiástica,

em uma concepção de realeza cristã, em que o episcopado adquire influência

progressiva na determinação dos deveres e prioridades do soberano. Outro problema

que recebe atenção do estudioso é o da permanência da noção romana de res publica

entre os governantes merovíngios, noção a qual, no entendimento dele e diferentemente

do que defendia parte da historiografia oitocentista, não apenas não entrava em conflito

com a crescente influência eclesiástica nos assuntos políticos, como estava intimamente

relacionada a ela, na medida em que a idéia de uma realeza cristã traz consigo o

entendimento que apresenta a garantia da salvação dos fiéis como interesse público e,

portanto, como parte das competências e deveres do monarca.

Entre os estudos dedicados à análise do caso visigodo, destacamos a obra do

historiador Luis A. Garcia Moreno, que tem como um de seus pontos centrais, a

12 SILVA, Leila Rodrigues da. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: o modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: EdUFF, 2008. 13 SILVA, Marcelo Cândido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII). São Paulo: Alameda, 2008.

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existência de um “Estado Protofeudal” no reino visigodo ibérico.14 Garcia Moreno

destaca o papel estruturante dos vínculos pessoais na organização da sociedade hispano-

visigoda, tanto no que concerne à relação entre os camponeses e seus patroni, quanto ao

poder dos reis sobre seus fideles aristocráticos. Aponta ainda para as dificuldades

crescentes dos reis visigodos em converter a legitimidade como soberanos cristãos, de

que foram investidos pelo episcopado a partir de 589, em poder efetivo sobre uma

aristocracia provincial que se autonomizava progressivamente. Tais elementos levam o

autor a concluir que o reino visigodo anteciparia, de certo modo, a organização política

registrada cerca de um século depois, na Europa carolíngia.

Podemos citar também um artigo do professor Pablo C. Díaz, intitulado “Rey y

poder en la monarquia visigoda”,15 que aborda, dentre outras questões, a da

transformação dos critérios que definiam a legitimidade dos reis visigodos,

primeiramente reconhecidos pelos seus pares fundamentalmente em função de suas

qualidades como chefes militares, mas que, com o estabelecimento territorial, na Gália a

partir do século V e na Península Ibérica a partir do século VI, passam a ver a sua

autoridade adquirir institucionalidade à moda romana.16 Os reis visigodos passam a ser

além de líderes guerreiros, legisladores e administradores de regiões altamente

romanizadas. Nesse sentido, Diaz entende que a conversão dos visigodos, até então

arianos, à ortodoxia nicena em 589, sob a liderança de Recaredo (586-601), seria mais

um passo em direção à territorialização do poder dos reis godos, que passariam, desse

modo, a exercer domínio sobre toda a Península Ibérica, ao invés de serem governantes

de apenas um segmento da elite. Também no que concerne à aproximação entre

monarquia e Igreja neste reino, o autor entende que a instituição do ritual de unção à

maneira dos reis do Antigo Testamento,17 no momento da coroação dos monarcas,

documentada a partir do reinado de Wamba (672-680),18 foi decorrência da

14 Este conceito se apresenta em vários de seus trabalhos, e é desenvolvido com particular ênfase em GARCIA MORENO, Luis A. El estado protofeudal visigodo: precedente y modelo para la Europa carolíngia. In: FONTAINE, Jacques; PELLISTRANDI, Christine (orgs.). L’Europe héritière de l’Espagne wisigothique. Madrid: Casa de Velazquez, 1992. p. 17-43. 15 DÍAZ, Pablo C. Rey y poder en la monarquía visigoda. Iberia, Logroño, n. 1, p. 175-195, 1998. 16 Sobre a questão da adoção por parte dos monarcas visigodos dos signos e idéias da tradição clássica latina, cf. FRIGHETTO, Renan. Aspectos Teóricos e Prácticos da Legitimidade do Poder Régio na Hispania Visigoda: o Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v.79, n.1, p. 237-245, 2005.; ____. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade tardia ocidental. Temas Medievales, Buenos Aires, v.12, p. 147-163, 2004. 17 BARBERO DE AGUILERA, Abílio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo XXI, 1992. p. 57-77. 18 Barbero de Aguilera defende, por sua vez, a possibilidade de a prática da unção dos reis visigodos datar do IV Concílio de Toledo, de 633, em que a ascensão ao trono por via de golpe de Sisenando (630-636) é

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impossibilidade de alcançar um princípio válido e único de sucessão ao trono – uma vez

que, ao longo dos séculos VI-VII, tanto monarcas eleitos quanto monarcas por

associação dinástica viram sua autoridade ser alvo de contestação por setores da

aristocracia.

Maria Del Rosario Valverde Castro, atualmente professora titular na

Universidad de Salamanca, publicou em 2000 uma obra bastante abrangente em que

trata de questões semelhantes às desenvolvidas de forma mais sintética por Pablo Diaz

no artigo supracitado. A obra intitula-se Ideología, simbolismo y ejercicio del poder

real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio,19 e analisa o processo de

transformação da autoridade régia visigoda desde o período das migrações até a plena

institucionalização no reino toledano.

Dentre outras conclusões, a autora aponta como um dos principais marcos desse

processo, além da questão da territorialidade já apontada por Diaz, em que os reis

visigodos deixam de ser reis apenas dos godos para estender seu poder sobre toda a

população que habitava seus domínios, a busca de distinção dos monarcas em relação

aos demais membros da elite goda. A autora aponta que tal tentativa de diferenciação se

apresenta na prática da imitatio imperii, sistemática desde o reinado de Leovigildo (572-

586), e da afirmação da origem divina de autoridade dos reis, por meio da qual estes

visam apresentar-se como entidades autônomas e superiores com relação aos demais

aristocratas, com quem desde o período tolosano travam uma disputa constante por

poder político e recursos econômicos.

O professor Renan Frighetto endossa as conclusões de Diaz e Valverde Castro a

respeito da adoção, por parte dos reis visigodos, de signos e práticas imperiais, e analisa

também o impacto da conversão da monarquia ao cristianismo niceno nos discursos

referentes às disputas políticas no reino. Além de apontar para o atrelamento da idéia de

humanitas à noção de christianitas,20 o autor destaca ainda que a infidelidade

nobiliárquica adquire nos textos um sentido semelhante àquele que os antigos romanos

atribuíam à barbárie, isto é, à não-romanidade, à incivilização.21

ratificada. Esse concílio é marcado também pela expressão da teoria política de Isidoro de Sevilha em sua forma plena, no cânone 75. cf. Ibidem. p. 68. 19 VALVERDE CASTRO, M.ª R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2000. 20 FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade tardia ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, 2004. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008. 21 FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01. p. 491-509, 2002.

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24

Podemos concluir, a partir das conclusões dos autores selecionados, que, entre

os aspectos que têm recebido atenção dos estudiosos das monarquias durante a Primeira

Idade Média, sobressaem a manutenção e/ou reformulação do legado romano pelas

monarquias germânicas recém-estabelecidas, e o aprofundamento da relação entre

instituições políticas e eclesiásticas, que levou, por um lado à intensificação do processo

de cristianização dos valores herdados da Antiguidade Clássica, em curso desde o Baixo

Império e que prossegue ao longo da Idade Média, e por outro lado, à uma ampliação da

presença e da influência das autoridades episcopais na definição das relações e

configurações de poder na sociedade secular.

Nosso trabalho se insere em meio a tais iniciativas, na medida em que nos

ocupamos da compreensão das implicações da aproximação política entre a monarquia

visigoda e a alta hierarquia eclesiástica na produção de discursos que exaltavam os

princípios de boa conduta régia e a legitimidade da própria monarquia. Entendemos que

a comparação entre a Vita Desiderii e a Historia Wambae pode oferecer uma

contribuição a esse conjunto de estudos ao nos permitir confrontar discursos produzidos

por um rei e por um bispo, e desse modo, ir para além das discussões que restringem a

análise das relações de poder ideológico envolvendo monarquia e episcopado a partir da

lógica do tutelamento, que muitas vezes os próprios autores das fontes buscavam

transmitir ao seu público sem que esta correspondesse necessariamente à realidade.

Considera-se necessária uma problematização capaz de considerar as

contradições presentes nas relações entre autoridades/instituições políticas e religiosas e

o modo como essas contradições são representadas ou trabalhadas discursivamente. A

análise e a comparação de textos narrativos que definem e situam poderes e indivíduos

no tempo de modo peculiar como as historiae e as hagiografias, nesse sentido, se

tornam um recurso muito útil à compreensão da dinâmica por meio da qual grupos e

indivíduos naquelas sociedades atribuíam sentido à ordem social em suas diferentes

dimensões.

2. Considerações sobre a Vita Desiderii Com relação aos estudos voltados ao papel da Vita Desiderii no contexto

político visigodo, destacaremos a contribuição da área de Letras, que se apresenta nos

trabalhos de Jacques Fontaine, José Carlos Martín e de Isabel Velazquez, bem como as

reflexões trazidas pelos estudos dos historiadores Janet Nelson e Santiago Castellanos.

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Jacques Fontaine, em artigo já clássico publicado em 1980,22 revê uma antiga

tese, segundo a qual a hagiografia de Sisebuto era apresentada como propaganda

política contra a monarquia franca. Nesta nova reflexão, Fontaine fornece indicações

que permitem acrescentar nuanças alternativas não apenas à análise da funcionalidade

política do discurso hagiográfico como também ao estudo das interações entre o reino

visigodo ibérico e o reino franco merovíngio.

O primeiro aspecto a ser assinalado por Fontaine é a atipicidade da Vita

Desiderii – texto escrito por um monarca visigodo, narrando a vida e a morte de um

bispo bem como a sua relação com eventos políticos ocorridos fora da Península

Ibérica. Entretanto, o autor destaca que esta hagiografia deve ser analisada menos em

comparação com outros textos hagiográficos produzidos na Hispania visigoda – como a

Vida de Emiliano ou a Vida dos Padres Emeritenses – mas sim em relação ao conjunto

da produção literária de Sisebuto, incluindo a correspondência diplomática do rei

dirigida ao representante do Império Bizantino ou ao rei lombardo de Pavia. Para

Fontaine, a atividade literária de Sisebuto não pode ser dissociada da idéias de que ele

se achava incumbido de uma dupla missão, concomitantemente política e religiosa,

como rei cristão e como cristão católico. Para ele, os aspectos morais, religiosos e

políticos dessa missão estavam totalmente mesclados em um. A produção literária de

Sisebuto se realizaria segundo interesses deste monarca tanto dentro da esfera política

quanto da religiosa. Para o historiador, ter noção quanto à multiplicidade de objetivos

que Sisebuto poderia ter, portanto, facilita a investigação dos possíveis alvos da Vita

Desiderii.

Fontaine também indica que o trabalho hagiográfico de Sisebuto foi influenciado

não apenas pela “Renascença Isidoriana”23 como também pela concepção que os

homens da época tinham sobre os chamados “homens de Deus”: profetas, mártires, em

constante conflito com as elites laicas, e muitas vezes destinados a um fim trágico. O

modelo típico de representação do conflito entre poderes político e religioso pode ser

encontrado em Sulpicius Severus, no seu relato sobre São Martinho, e Prudentius. As

presentes conclusões do autor seriam reafirmadas por estudo de Isabel Velazquez,

22 FONTAINE, Jacques. King Sisebut’s Vita Desiderii and the political function of Visigothic Hagiography. In: JAMES, Edward (ed.). Visigothic Spain: new aproaches. Oxford: Claredon, 1980, p. 93-129. 23 Designa-se por “Renascença Isidoriana” o esforço intelectual levado a cabo por Isidoro de Sevilha no sentido de efetuar uma espécie de resgate da cultura e dos valores clássicos cristãos e romanos, que fica patente em obras como as Etimologias ou as Sentenças.

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publicado posteriormente.24 A Vita Martini teve uma influência considerável no modo

como os embates entre santos e governantes temporais eram representados nas

hagiografias da Alta Idade Média, nas quais, muitas vezes o poder político aparece

associado ao Diabo. A Vita Desiderii, então, parece ter sido profundamente inspirada

pelo que o autor designa como “martinismo político”.25

Outra indicação fornecida pelo autor é a de que Sisebuto tenha distorcido os

fatos deliberadamente, e envolvido Teodorico e Brunequilda numa disputa que outras

fontes, discorrendo sobre os mesmos eventos, apresentam como tendo se dado no

interior da hierarquia episcopal franca.26

O manuscrito de Oviedo, atualmente perdido, mas do qual provêm as melhores

versões da Vita Desiderii, está na mesma coleção em que se encontra a correspondência

diplomática do monarca (incluindo suas cartas ao filho Teudila e ao rei lombardo

Aladoaldo), e próxima aos textos da chamada historiografia asturiana e visigoda. Tal

fato, na visão de Fontaine, seria mais um indício do peso marcadamente político da

hagiografia.

A política de alianças matrimoniais entre visigodos e francos vinha se revelando

desastrosa desde o século VI.27 Além disso, desde o reinado de Recaredo, godos e

francos disputavam a posse da Septimania. Às vésperas das mortes de Teodorico e

Brunequilda, godos e burgúndios estavam à beira de uma guerra aberta pelos territórios

na região dos Pirineus. Witerico se aliou a Clotário II, da Nêustria, contra Teodorico da

Burgúndia e os avaros. A vitória de Clotário foi recebida com alívio pela chancelaria

24 VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximación a sus manifestaciones literárias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2005. p. 164-176. Analisaremos as contribuições trazidas por esta obra adiante. 25 Sobre o modelo emanado da Vita Martini de Sulpicius Severus, Martin Heinzelmann escreve: “En présentant l’existence de Martin comme un « martyre sans sang » (ép. 2, 12), attribuant, sur la foi de son style de vie ascétique, les mérites des martyrs à l’évèque, la Vie a fortement favorisé l’élargissement du cercle des saints susceptibles de dever l’object d’une venération au-delà des seuls martyrs. De plus, par la synthèse « de la dignité de l’évêque avec le mode de vie et la vertu du moine » (10, 2), l’oevre de Sulpice Sévère devint un modèle couramment imité dans l’hagiographie du très haut Moyen Âge en Gaule, par le remploi de passages de la Vie ou par une stylisation conséquente du saint concerné. Ainsi, la présentation plus ou moin fictive d’une image d’ascète suivant le modèle élaboré par Sulpice Sévère a permis à de nombreux évêques francs d’être valorisés en tant que saints.”. Cf. HEINZELMANN, Martin. Le modèle martinien. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et l’histoire: sources hagiographiques du Haut Moyen Age. Paris : Bréal, 2004, p. 34. Entende-se como “martinismo político”, assim, a reprodução da contraposição presente na Vita Martini, entre poder político e poder episcopal, em outros textos hagiográficos elaborados durante a Alta Idade Média. 26 Segundo documentos produzidos no reino franco posteriormente à Vita Desiderii de Sisebuto, o verdadeiro responsável pela condenação de Desidério teria sido um outro membro do episcopado da Gália, o bispo Aridius de Lyon. 27 Cf. ISLA FREZ, A. Las relaciones entre el reino visigodo y los reyes merovingios a finales del siglo VI. En la España Medieval, 13, p. 11-32, 1990.

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visigoda. Não por acaso, verifica-se um teor bastante virulento em textos referentes à

política de Brunequilda produzidos durante os reinados de Witerico e Gundemaro,

monarcas de quem Sisebuto herda não só o trono, mas também as diretrizes políticas

quanto ao reino franco.

Logo, o provável interesse do rei visigodo seria o de inaugurar uma nova fase

nas relações entre godos e francos. Amaldiçoando a memória de Brunequilda e seus

aliados mais próximos, o monarca visigodo desvinculava a imagem da rainha da do

reino visigodo e ganhava pontos junto ao fortalecido rei Clotário.

Janet Nelson, em artigo presente em publicação de 1986, também trata da

inserção da Vita Desiderii no mundo franco, mas discutindo as relações entre a imagem

e a efetiva atuação da rainha Brunequilda.28 Ela insere os problemas entre Brunequilda e

Desidério no contexto da rivalidade entre as sedes episcopais de Lyon e Vienne e, em

diálogo com Fontaine, aponta que a Vita de Sisebuto seria uma obra pra consumo da

aristocracia da Gália visigótica. Ela destaca que, de acordo com a Vita Columbani, as

críticas feitas por Desidério aos monarcas – que Sisebuto não detalha – se voltariam ao

status matrimonial de Teuderico II, cujos filhos não haviam nascido de relações

legítimas. A autora aponta que a reação de Brunequilda se explicaria menos pela relação

com algum tipo de orgulho ferido ou sentimento semelhante, e mais com o possível

temor dela de que o direito das crianças de suceder o pai no trono, mantendo a linhagem

da qual ela fazia parte no poder, fosse contestado – como de fato veio a ser – e, pior, que

com isso Burgúndia e Austrásia passassem às mãos de Clotário II, filho da sua rival

Fredegunda – o que também acabou acontecendo.

A estudiosa aponta para as “coincidências” entre Brunequilda e a Jezebel da

Bíblia: estrangeiras, filhas de reis, lançam falsas acusações contra inimigos pessoais,

que são condenados à morte por apedrejamento, e têm mortes violentas. Em nossa

interpretação, tais “coincidências” poderiam indicar algo mais: que toda a narrativa de

Sisebuto, ou ao menos a parte dela referente à Brunequilda, foi construída de modo a

produzir essa associação, de forma relativamente independente dos acontecimentos que

de fato se deram na Gália franca.

Ao longo dos anos 90, José Martin nos ofereceu contribuições relevantes ao

estudo formal da Vita Desiderii, concernentes à sua correspondência aos parâmetros

temáticos e formais do chamado “gênero hagiográfico” – como a revelada em função da

28 NELSON, Janet L. Queens as Jezebels: Brunhild and Balthild in Merovingian History. In: ___. Politics and Ritual in Early Medieval Europe. London: Hambledon, 1986. p. 1-48.

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omissão de dados cronológicos e geográficos exatos, com a finalidade de pôr em relevo

o dados propriamente moralizantes na narrativa,29 bem como apontando para os

paralelismos e eventuais divergências existentes entre a Vita Desiderii e textos

hagiográficos merovíngios elaborados posteriormente, também dedicados à trajetória do

bispo de Vienne e, principalmente, à enumeração de seus milagres póstumos.30

Nestes trabalhos, o autor analisa não apenas a influência que a narrativa escrita

pelo monarca visigodo teve em terreno merovíngio e na propagação do culto ao santo

em questão, como abre caminho para a problematização das diversas alterações e o

reposicionamento de eventos que podem ser encontrados ao comparar-se o primeiro

texto aos demais. Embora o autor opte por concordar com Krusch e referir-se às

alterações encontradas no texto merovíngio Passio Sancti Desiderii, produzido por volta

de 617, como tentativa deliberada de seu autor anônimo de ocultar a reprodução do

texto de Sisebuto,31 nós podemos nos interrogar quanto à relação entre as diferentes

formas de organizar os eventos e milagres da vida/morte de Desidério e as diferentes

finalidades às quais os dois textos se destinavam, apesar de voltados a um mesmo

objeto.

Outro importante dado apresentado por Martín relaciona-se à identidade de um

personagem da Vita Desiderii que, a despeito da sua importância no curso da narrativa

de Sisebuto, não tem nome, sendo apresentado pelo rei/hagiógrafo apenas como

pestiferae mentis hominem.32 O filólogo fornece várias indicações que o permitiram

demonstrar que o personagem em questão, assassinado por uma turba em determinado

ponto da narrativa, é fictício, mas inspirado em dois personagens reais, a saber, o

aristocrata Protadius – que Fredegar apresentaria em sua crônica como um amante de

Brunequilda – e o bispo Aridius de Lyon – também segundo Fredegar, um inimigo

político de Desidério e principal responsável pela condenação do prelado de Vienne ao

exílio, e que ainda se encontrava vivo em 613. Martín aponta para a grande

probabilidade de o personagem anônimo da Vita Desiderii ter sido construído a partir de

29 MARTIN, José Carlos. Verdad histórica y verdad hagiográfica em la Vita Desiderii de Sisebuto. Habis, 29, p. 291-301, 1998; e MARTIN, José Carlos. Caracterizacion de personajes y tópicos del género hagiográfico en la Vita Desiderii de Sisebuto. Helmantica, 48, v. 145-146, p. 111-133, 1997. 30 MARTIN, José Carlos. Una posible datación de la Passio Sancti Desiderii BHL 2149. Evphrosyne, 23, p. 439-456, 1995. 31 MARTIN, José Carlos. Un ejemplo de influencia de la Vita Desiderii de Sisebuto en la hagiografía merovingia. Minerva, 9, p. 165-185, 1995 32 MARTIN, José Carlos. Qvendam pestiferae mentis hominem, un personaje sin nombre de la Vita Desiderii. In: PEREZ GONZALEZ, Maurilio (org). Actas del I Congreso Nacional de Latin Medieval. Leon: Universidad de Leon, 1993, p. 307-313.

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uma mescla entre eventos selecionados das biografias de Protadius e Aridius. Teria sido

esse o modo encontrado por Sisebuto para ater-se minimamente aos fatos e garantir aos

leitores e ouvintes de sua hagiografia, para fins de exemplificação, que todos os

perseguidores do santo foram devidamente punidos pela justiça divina.

Santiago Castellanos endossa as conclusões de Jacques Fontaine e Janet Nelson

em dois trabalhos publicados no ano de 2004,33 e apresenta um desenvolvimento das

linhas de análise propostas pelo francês, destacando não apenas a relação do texto com

as disputas dinásticas do reino franco - nas quais a rainha Brunequilda, demonizada por

Sisebuto, desempenhou um papel mais que fundamental - , como também a sua

articulação com a teorização política em construção no reino visigodo, evocando aqui a

supracitada relação entre o monarca e Isidoro de Sevilha.

No primeiro dos textos, o artigo “Obispos y santos. La Construcción de la

Historia Cósmica en la Hispania Visigoda”, Santiago Castellanos se propõe a analisar a

forma como, na Hispania visigoda, a produção hagiográfica e os discursos referentes

aos santos em geral se relacionavam com a cosmologia providencialista que

caracterizava a produção intelectual eclesiástica no período.

A aliança com a hierarquia episcopal era fundamental para a monarquia visigoda

em processo de consolidação, diante de um quadro no qual o poder político se

encontrava progressivamente pulverizado entre as diversas aristocracias que

controlavam as províncias da Hispania. O apoio, formalizado por meio de um discurso

centrado na idéia de unidade e consenso, converteu o episcopado em sustentáculo social

e ideológico da monarquia. Os líderes religiosos locais - designados pelo autor como

hombres santos -, nesse contexto, ganham uma função bastante importante, que seria a

de servir como elo entre esse projeto ideológico unificador e as suas respectivas

comunidades. Nos textos hagiográficos, pode-se perceber uma espécie de simbiose entre

a noção de santidade (santitas) e nobreza (nobilitas). Textos como a Vita Desiderii

constroem-se a partir de personagens-tipo. Segundo Castellanos, os tipos positivos

funcionam como um eixo que permite que os leitores/ouvintes, por meio de um

processo de auto-identificação, sejam capazes de estabelecer ligações entre o passado

apresentado na hagiografia e o status quo presente, representado na figura do bispo.

33 Nos referimos aqui a CASTELLANOS, Santiago. Obispos y santos. La Construcción de la Historia Cósmica en la Hispania Visigoda. In: AURELL, Martín; GARCÍA DE LA BORBOLLA, Angeles. La imagen del obispo hispano en la Edad Media. Pamplona: EUNSA, 2004, p. 15-36; e CASTELLANOS, Santiago. La hagiografia en la articulación política del Regnum. In: _______. Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección cultural. Logroño: Fundacion San Millan de la Cogolla, 2004, p. 163-302.

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Em relação à Vita Desiderii, o autor aponta que Sisebuto usa de uma estratégia

retórica comum nos textos hagiográficos, que é a ocultação de lugares e datas concretas

dos acontecimentos – o que certamente facilitava a identificação dos leitores com a vida

do santo e contribuía para certa universalização do discurso. No contexto merovíngio,

ocorreu uma instrumentalização política do culto ao santo, na medida em que o culto a

Desidério foi fomentado por Clotário II. A valorização do martírio do santo servia como

uma forma de damnatio memoriae de Brunequilda, que também interessava à

aristocracia visigoda, pelas razões já enunciadas por Fontaine.

No que se refere ao contexto propriamente visigodo, Castellanos observa que a

caracterização da rainha e de seu neto na hagiografia - os dois são claramente descritos

como exemplos de tirania e de má realeza - era muito conveniente para a ratificação dos

valores e modelos por meio dos quais a monarquia e o episcopado visigodos buscavam,

nesse momento, legitimar a posição da realeza, valores os quais viriam a ser

apresentados no IV Concílio de Toledo em sua forma plena.34 Assim, a caracterização

da má realeza que se apresenta na Vita Desiderii foi, também, uma forma de reforçar a

associação do próprio Sisebuto com o modelo contrário.

Nesse sentido, Santiago Castellanos conclui que os milagres do bispo/santo

Desidério e os feitos dos reis na Vita Desiderii se convertem em eixos de interpretação

do passado a partir de uma ótica providencialista.

Esta questão também é discutida no livro publicado pelo autor no mesmo ano,

“Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección cultural”. No que concerne à Vita

Desiderii especificamente, a principal contribuição do autor aqui é a minuciosa análise

do entorno político-aristocrático de um dos principais personagens da narrativa: a rainha

Brunequilda. Ele aponta para o fato de ela se tratar de uma rainha estrangeira e

excessivamente influente, o que incomodava amplos segmentos da aristocracia

austrásica, os quais eram apoiados muitas vezes por membros do alto clero. O caso da

execução do bispo Desidério de Vienne não teria sido o primeiro, tampouco o único. A

rainha, entretanto, manteve diálogo próximo com o bispo de Roma da época, Gregório

34 Aqui nos referimos especificamente ao cânone 75 das atas desse concílio, que contém uma longa admoestação à população para que esta não se coloque contra a autoridade do monarca. Cf. IV Concílio de Toledo (633). In: VIVES, José (org.). Concílios Visigóticos y Hispano-Romanos. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963.

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31

Magno, e o retrato dela desenhado por Gregório de Tours em suas cartas é mais afável

que o de Sisebuto.35

Castellanos recompõe o contexto de institucionalização da soberania de Clotário

II sobre o conjunto da Gália merovíngia. Aqui ele aponta que, embora a hegemonia de

Clotário estivesse definitivamente estabelecida no plano militar, a existência de

registros concernentes a rebeliões contra a sua autoridade indica que pareceu necessário

a esse monarca garantir um referendo moral à sua vitória sobre a facção liderada por

Brunequilda. E é aí que entra em cena o discurso hagiográfico, que contribui com o

projeto de Clotário por meio da damnatio memoriae da rainha. Trata-se do caso da Vita

Desiderii de Sisebuto, que Castellanos entende como um texto por meio do qual este

monarca indica o seu próprio posicionamento diante da reorganização das forças

políticas no reino franco, provocada pela recente e definitiva vitória de Clotário II. Ao

mesmo tempo, ao narrar a derrocada de Brunequilda e de seu neto Teodorico na

Burgúndia em função do martírio do bispo Desidério, a Vita Desiderii contribuía para

transmitir a idéia de que as relações entre eles e a Igreja eram conflituosas, dado que o

apoio de parte do episcopado aos dois poderia desmentir e fragilizar o apoio buscado

por Clotário junto às autoridades eclesiásticas.

No que se refere à relação entre a Vita Desiderii e as questões políticas internas

ao reino visigodo, Castellanos também faz referência ao paralelismo existente entre este

texto e o ideal de realeza das Sententiae de Isidoro de Sevilha.36 Além disso, ao

aproximar-se da dinastia franca vitoriosa, Sisebuto provavelmente buscava reduzir as

potenciais dificuldades em controlar a província Narbonense, com a qual a monarquia

toledana ainda teria muitos problemas ao longo do século VII, como se verificaria no

caso da ascensão do grupo de Sisenando ao poder, na década de 630.

Isabel Velazquez, em obra publicada em 2005,37 apresenta uma grande síntese

dos estudos relacionados à hagiografia de Sisebuto, com ênfase nos seus aspectos

35 Deve-se considerar aqui que Gregório de Tours, nos seus Decem Libri Historiarum, tende a posicionar-se de forma favorável a Sigeberto da Austrásia, marido de Brunequilda, e Gontrão, da Burgúndia, em detrimento de Chilperico da Nêustria, pai de Clotário II, e Cariberto da Aquitânia, os quatro netos de Clóvis, irmãos que ao longo da segunda metade do século VI travavam uma intensa guerra uns contra os outros em prol da expansão ou da defesa de seus próprios domínios. Cf. SILVA, Marcelo Cândido da. op. cit. p. 232-236. Michel Rouche também menciona a política pró-romana levada a cabo pela rainha enquanto governava a Burgúndia junto ao seu neto Teodorico. ROUCHE, Michel. Brunehaut, romaine ou wisigothe? Antiguidad y Cristianismo, Murcia. n. 03, p. 103-115, 1986. p. 104, 107, 109. 36 Mas sem entrar em detalhes, já que nesta obra o autor parece optar por uma ênfase nas questões históricas externas aos textos hagiográficos em si. Esta opção do autor também é constatada por Isabel Velazquez. Ver VELAZQUEZ, Isabel. op. cit. p. 154. 37 VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los santos... op. cit, p. 163-177.

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32

propriamente literários. Comentando o trabalho de autores como José Martín, Carmen

Cordoñer, Jacques Fontaine e Santiago Castellanos, Velazquez concorda com os dois

últimos com relação à presença de uma clara intencionalidade política permeando o

texto da hagiografia, fato evidenciado pelo destaque dado por Sisebuto aos crimes e às

mortes de Brunequilda – princesa visigoda que se torna uma rainha franca em meados

do século VI e que teve relações problemáticas com reis e aristocratas dos dois reinos –

e dos demais inimigos do santo, dentre outros elementos. A autora discorda de Carmen

Cordoñer no ponto em que esta afirma a existência, na Vita Desiderii, de uma

“confusão” entre dois gêneros literários – no caso, o histórico e o hagiográfico, e

contesta, portanto, a possibilidade de uma dicotomia rigorosa entre discurso

hagiográfico e discurso político-ideológico.

Velazquez também propõe uma resposta à questão sobre o porquê da escolha do

gênero hagiográfico para narrar a derrocada de Brunequilda. Aqui, a autora evoca a

inserção da produção literária de Sisebuto no contexto do chamado “renascimento

cultural isidoriano”, bem como os paralelos existentes entre o discurso sobre

Brunequilda e Teodorico que se apresenta na Vita Desiderii e a concepção do papel da

realeza que Isidoro de Sevilha desenvolve principalmente nas Sentenças. 38 Logo, a vida

e o martírio do bispo Desidério de Vienne atenderiam a vários interesses políticos:

referendar a execução de Brunequilda por Clotário II, denegrindo a imagem de uma

forte inimiga do regnum visigodo, e dar uma resposta literária aos pressupostos

isidorianos, por meio de uma exemplificação prática da teoria do bispo hispalense sobre

o bom governo dos reis. Daí, uma obra hagiográfica pode ter parecido mais adequada

que uma crônica comum para permitir que eventos políticos – como os ocorridos na

Gália franca de princípios do século VII – fossem revestidos de uma justificativa

moralizadora.39

Tendo em vista os aspectos apresentados, podemos concluir, por fim, que desde

o marco representado pelo artigo publicado por Jacques Fontaine em 1980 e pelos

comentários de Janet Nelson em 1986, percebe-se uma intensificação das discussões em

torno da Vita Desiderii.

Apesar disso, até o ponto em que pudemos apurar, percebemos que a hagiografia

de Sisebuto ainda é um tema relativamente marginal dentre os estudos sobre o reino

visigodo, talvez em função da atipicidade comumente assinalada pelos autores que

38 Tal como ressaltado por Jacques Fontaine. Vide FONTAINE, J. op. cit. 121. 39 Idem, p. 173-176.

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sobre ela se debruçam, já que foi produzida por um rei ao invés de um bispo como era

mais comum. Some-se isso a tendência de certa parcela da historiografia em buscar nos

documentos escritos apenas dados a respeito da realidade que os textos se propõem a

descrever, ao invés de utilizá-los para problematizar também o seu contexto de

elaboração.40 Entretanto, trabalhos como os de José Carlos Martín, Santiago

Castellanos, e Isabel Velazquez têm contestado a existência de um suposto isolamento

histórico entre os reinos franco e visigodo, ressaltando a grande interdependência entre

as dinâmicas políticas de um e de outro, fenômeno do qual a Vita Desiderii é um dos

principais exemplos, e abrem espaço para uma ampliação cada vez maior das

abordagens sobre a estreita relação entre a produção hagiográfica e projetos político-

ideológicos vigentes naquele período.

3. Considerações sobre a Historia Wambae Há que se destacar na historiografia concernente ao reino visigodo uma

tendência de fusão – ou confusão – entre a discussão sobre os personagens e

acontecimentos históricos aos quais a Historia Wambae se refere e as questões relativas

à construção da narrativa e ao contexto no qual ela se insere. Nesta seção, destacamos

contribuições à segunda das problemáticas citadas. Embora a reflexão sobre a atuação

de Wamba e Paulo, bem como os conflitos entre reis e aristocracia visigodos na segunda

metade do século VII, não sejam de forma alguma desprovidos de importância em nossa

reflexão, consideramos necessária a distinção das análises da Historia Wambae voltadas

à obtenção de dados sobre pessoas, fenômenos, lugares e acontecimentos nela

mencionados, em relação a análises como a nossa, isto é, estudos objetivando

problematizar lugares-comuns, idéias, conceitos, ideologias e discursos que

perpassaram a produção da obra de Julian de Toledo e interferiram, sob diferentes

aspectos, na sua construção.

Temos um artigo de Suzanne Teillet, publicado em 1986, intitulado "L'Historia

Wambae est-elle une ouvre de circunstance?".41 Autora de uma obra clássica, destinada

a defender a existência de uma espécie de "projeto de nacionalidade" nos textos escritos

40 Um exemplo deste tipo de leitura podemos encontrar na obra de Luis Garcia Moreno, quando este, ao listar documentos hagiográficos que poderiam fornecer informações a um estudioso sobre o reino visigodo, sequer menciona a Vita Desiderii, possivelmente apenas porque os acontecimentos que ela narra se passam fora da Península Ibérica. Cf. GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Barcelona: Crítica, 1989. p. 12. 41 TEILLET, S. L’Historia Wambae est-elle une ouvre de circunstance?. Antiguedad y Cristianismo, Murcia, V. III, p. 415-424, 1986.

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no reino visigodo de Toledo do século VII, Teillet, neste artigo, analisa os elementos

presentes na Historia Wambae que denotam a influência da linguagem dos antigos

panegíricos latinos na redação da obra. No entendimento da autora, Julian opta por

escrever uma historia ao invés de um panegírico assim denominado em virtude de sua

intenção de desvincular a imagem dos reis visigodos da dos imperadores romanos -

pagãos - para associá-los diretamente aos reis de Israel.

Um aspecto digno de nota são as semelhanças apontadas pela autora entre o

texto da Historia e a narrativa bíblica que descreve a unção e os feitos de guerra do rei

Saul de Israel, específicamente. Teillet parte do pressuposto de que a Historia Wambae

foi escrita durante o reinado de Wamba e por encomenda do monarca - daí a grande

aproximação que ela estabelece entre o texto de Julian e os panegíricos, discursos que

eram habitualmente proferidos na presença dos imperadores a quem eram dedicados.42

Tal leitura também conduz a autora à conclusão de que a ligação estabelecida pelo bispo

toledano entre Wamba e Saul explicaria a participação atribuída ao prelado nos eventos

que culminaram no destronamento de Wamba e na ascensão de Ervigio ao trono

visigodo, ao invés do contrário. Isto é, sendo a Historia Wambae um texto de redação

posterior ao reinado de Wamba e aos eventos que narra, a explicação mais plausível

para a associação poderia ser a de uma tentativa de Julian de apresentar Wamba como

um novo Saul, rei o qual, segundo o relato bíblico, não só foi o primeiro ungido, como

também, e após um começo de reinado marcado por vitórias militares expressivas,

terminou abandonado por Deus em virtude de sua desobediência às ordens divinas.43

Em livro publicado dois anos antes, Suzanne Teillet já havia indicado que a

historia nessa narrativa assume um duplo sentido: o do evento histórico propriamente

dito, mas também o de narrativa edificante, ou exemplum, voltado à ilustração de uma

verdade doutrinal, o que distinguiria sua natureza daquela de textos historiográficos

escritos na Península Ibérica visigótica anteriormente, como os elaborados por Isidoro

Sevilha.44 A autora aponta que, se cremos na imagem descrita por Julian de Toledo,

42 Vale lembrar que Julian foi alçado ao cargo de bispo de Toledo em 680, mesmo ano que Wamba foi deposto. 43 Outro autor que registra a aproximação estabelecida por Julian entre os eventos em torno à deflagração e repressão da rebelião de Paulo e as narrativas bíblicas é Eustáquio Sanchez Salor, em sua análise que aponta para a presença de um forte pensamento providencialista tanto na Historia Wambae como em outros relatos cronísticos produzidos no reino visigodo. Cf. SÁNCHEZ SALOR, Eustáquio. El providencialismo en la historiografía cristiano-visigótica de España. Anuario de Estudios Filológicos, Extremadura. v. 05, p. 179-192, 1982. p. 185. 44 TEILLET, Suzanne. Des Goths a la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident du Ve au VIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1984. p. 586, 602-603.

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Wamba atuou em seu reinado de modo a imitar os reis do Antigo Testamento,45 o que

indicaria a possibilidade de o autor estar apresentando os fatos menos em função do que

foram e mais como o que ele considera que deveriam ter sido, isto é, que o bispo

toledano aproximasse Wamba dos reis de Israel não porque o primeiro tivesse

efetivamente se inspirado neles durante o seu reinado, mas porque o relato em si visava,

dentre outras coisas, apresentar um modelo de monarca a ser seguido.

Isabel Velazquez Soriano, partindo da leitura da própria Teillet, escreve em 1989

um pequeno trabalho tratando de maneira mais específica de aspectos relativos à

rebelião de Paulo e à contraposição entre a imagem do rebelde e a de Wamba.46

Velazquez entende que a rebelião de Paulo é sintomática de um processo de

fragmentação territorial do reino visigodo, em que grupos nobiliárquicos fortalecem-se

progressivamente em detrimento do poder central. A autora também ressalta o caráter

localizado da rebelião, que foi apoiada pela nobreza vinculada a regiões bem

determinadas; a expressão que Paulo usa em carta para referir-se a si próprio, rex

orientalis, pode ser compreendida como um indício de que não tinha pretensões no

sentido de concorrer com Wamba pelo governo de todo o reino, ao associar seu título ao

domínio de apenas uma parte dele.

Já nos anos 90, Gregório Garcia Herrero publica dois trabalhos bastante densos,

dedicados à análise do léxico relacionado às noções de "realeza" e "reino" empregado

por Julian de Toledo no conjunto de sua obra literária. Apresentaremos aqui uma breve

síntese de suas contribuições à leitura da Historia Wambae, especificamente.

No primeiro estudo, publicado em 1991,47 e dedicado à temática da realeza,

Garcia Herrero reafirma o entendimento de S. Teillet sobre a parcial substituição do

modelo de monarca imperial-bizantino pelo vetero-testamentário na obra de Julian. Na

leitura deste estudioso, a unção descrita por Julian na Historia Wambae ratifica e ao

mesmo tempo dá novo desenvolvimento à idéia de inviolabilidade da autoridade régia,

previamente defendida por Isidoro de Sevilha. A unção coloca a legitimidade do

soberano em um nível acima daquele conferido pelas leis e pela eleição por seus pares

aristocratas, dotando-a de um caráter sagrado derivado da sua condição de ungido do

Senhor. Uma evidência da importância que o caráter sagrado da autoridade régia

adquire a partir dos escritos de Julian seria o fato de a Historia Wambae ser a primeira

45 Ibidem. p. 600-601. 46 VELAZQUEZ SORIANO, Isabel. Wamba y Paulo: dos personalidades enfrentadas y una rebelión. Espacio, tiempo y forma. Serie II, Historia antigua, nº 2, p. 213-222, 1989. 47 GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza visigoda. op. cit.

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fonte visigoda a designar o rei como princeps religiosus, denominação que passaria

então a ser comum inclusive nas atas conciliares.

Mais um dado apontado pelo autor, já em relação às diferenças entre a

representação da realeza ideal em Julian de Toledo e Isidoro de Sevilha, que escreve em

princípios do mesmo século VII, é que enquanto este daria maior valor a virtudes mais

"contemplativas" (sapientia, clementia, misericordia, gravitas), o primeiro, mais

fortemente influenciado pela representação dos reis no Antigo Testamento, daria um

grande destaque a virtudes mais "ativas" e guerreiras (celeritas, disciplina, vigor). Em

relação à caracterização tipológica do documento, Garcia Herrero se distancia da leitura

de Teillet, ao considerar que as influências panegiristas no texto ficam em segundo

plano, ao passo que a historia se põe a serviço do exemplum. O autor faz referência à

questão do maravilhoso na narrativa, apontando que seriam poucas, mas ressaltando, no

entanto, seu valor significativo, no sentido de reforçar a aura sacral que cercaria Wamba

e sua gente,48 além de servir para evidenciar a provável distância cronológica entre a

narrativa e os eventos aos quais se refere: para ele, a época de redação mais provável

para a Historia Wambae são os primeiros anos do reinado de Egica (687-702). Outra

das evidências que o autor destaca seria o discurso anti-franco presente na narrativa,

incompatível com um texto produzido durante o reinado de Wamba quando, de acordo

com a própria Historia, vigorava um acordo entre os dois reinos germânicos vizinhos.49

Em outro estudo, de 1995,50 o autor analisa as relações de sentido construídas

em torno da noção de regnum, expressão que segundo ele é encontrada na obra de

Julian, com significado semelhante ao de Imperium, tanto referida à autoridade do

monarca, quanto à extensão de seus domínios. Entre as considerações dignas de nota,

podemos citar a de que, se em obras como o Prognosticum Futuri Saeculi, o De

Comprobatione Sextae Aetatis ou o Antikeimenon, Julian de Toledo buscou sintetizar

uma espécie de "teoria da História" (suas causas, sentidos e fins), na Historia Wambae,

o que o prelado toledano tem em vista é a "realização concreta, viva e dinâmica" de uma

história em particular. A análise do uso de termos como gens, patria, e populus

evidenciaria, por sua vez, a percepção peculiar que Julian possuía a respeito da história

48 GARCIA HERRERO, Gregorio. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, n.08, p. 201-255, 1991. p. 202; 210. 49 GARCIA HERRERO, Gregorio. Sobre la autoria de la Insultatio y la fecha de composición de la Historia Wambae de Julian de Toledo. Arqueologia, paleontologia y etnografia, Madrid, n.04, p. 187-213, 1998. p.195, 201-203. 50 GARCIA HERRERO, Gregório. El reino visigodo en la concepción de Julian de Toledo. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, nº 12, p. 385-422, 1995.

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dos godos: totalmente identificados com o populus christianus, os godos seriam os

sucessores naturais do populus iudaicus - e não tanto da romanidade pagã - na

preferência e favorecimento divinos.

Um traço que identificamos comumente na historiografia relacionada à Historia

Wambae é a existência de poucos estudos voltados ao estabelecimento de vínculos ou

relações entre elementos contidos nesta narrativa e questões que se apresentam em

outros textos além daqueles dos quais ela recebe uma influência mais direta. A

referência a textos anteriores se restringe à identificação de eventuais influências

sofridas pelo autor, sem a preocupação, por exemplo, com uma reflexão comparativa

mais simétrica, isto é, uma análise em que a Historia seja estudada junto a outro(s)

texto(s), e em que todos os documentos recebem a mesma ênfase. Tal análise permitiria,

em nossa perspectiva, ampliar as possibilidades de leitura e análise do documento.

A leitura da Historia Wambae mais comum entre os historiadores do período

também apresenta a característica que identificamos anteriormente em relação à Vita

Desiderii: sendo praticamente o único documento contemporâneo que apresenta um

relato dos acontecimentos envolvendo revolta de Paulo, ele é referência quase única

para os manuais e artigos acadêmicos voltados a descrição factual, sem maiores

preocupações com a questão das motivações ideológicas que levaram à produção do

texto, entendendo-o, portanto, como um mero registro de eventos tratados como

verídicos em sua quase totalidade.51 Os trabalhos supracitados, de Gregorio Garcia

Herrero e Suzanne Teillet, são relevantes em nossa percepção por, dentre outros

aspectos, valorizarem justamente a construção do discurso político-ideológico presente

nessa narrativa, preocupação que também norteia nossa pesquisa.

Em linhas gerais, a historiografia analisada neste capítulo nos fornece

contribuições relevantes tanto no que concerne às concepções em torno do exercício do

poder no político na Idade Média – com destaque para os seus primeiros séculos –

quanto sobre a construção da Vita Desiderii e da Historia Wambae. O que aqui se

propõe é uma reflexão que busque problematizar a relação entre esses dois documentos,

e as questões específicas que perpassam ambos, e as discussões voltadas à compreensão

das relações e concepções de poder no período medieval.

51 Podemos encontrar exemplos desse tipo de abordagem em MURPHY, Francis X. Julian of Toledo and the Fall of Visigothic Kingdom in Spain. Speculum, Cambridge, v. 27, n. 1, p. 01-27, 1952.; THOMPSON, E. A. Los godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 295-299. e MIRANDA CALVO, José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 03, p. 159-170, 1971. p. 164-170.

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CAPÍTULO 3: As relações de poder no reino visigodo do século VII e a

construção da Vita Desiderii e da Historia Wambae

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1. As relações de poder no reino visigodo dos séculos VI e VII: aspectos das

associações e conflitos entre reis, aristocracia e episcopado ibérico

1.1. Aspectos do processo de institucionalização da monarquia visigoda toledana Consideramos que os objetivos que o rei Sisebuto e o bispo Julian de Toledo

visavam atingir com a elaboração de suas obras, bem como a existência de um ambiente

que permitisse a adoção de estratégias dessa natureza, possuem estreita relação com a

teia de disputas e alianças políticas construída no reino visigodo a partir da segunda

metade do século VI.

Santiago Castellanos assume que a ascensão plena de Leovigildo ao trono, em

572, marca uma nova etapa do processo de transferência do eixo político do reino

visigodo da Gália para a Hispania iniciado em 507, ano da derrota dos visigodos para os

francos na Batalha de Vouillé, em que os primeiros são obrigados a abandonar a cidade

de Toulouse, que até então tinham como sua capital.1 À derrota, segue-se um período de

instabilidade e de tutela ostrogoda que se estende até a ascensão de Agila e, após este,

Atanagildo (552-565).2

Com a morte de Atanagildo, ascende ao trono Liuva (568-572), que divide o

governo com seu irmão Leovigildo, que se torna o único soberano após a sua morte.

Liuva é proclamado rei em Narbonne, cidade localizada na pequena porção da Gália que

os visigodos conseguiram manter sob seu domínio. O fato de o sucessor de Atanagildo

ter sido escolhido entre os aristocratas dessa região demonstra o peso que ela ainda

possuía na dinâmica política visigoda. Enquanto Liuva optava por permanecer na Gália,

coube a Leovigildo o governo dos territórios localizados na Península Ibérica.

Embora a historiografia tradicional tendesse a acentuar a conversão de Recaredo

(587-601) ao cristianismo niceno como um marco inicial da aliança entre os visigodos e

a elite hispano-romana,3 estudos atuais destacam que o monarca em questão foi um

continuador da política de seu pai, Leovigildo (572-586), em um grande número de

aspectos. Catherine Navarro Cordero considera que é Leovigildo o responsável pelo

rompimento, por parte da realeza visigoda, com o conceito germânico de monarquia, em 1 CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz: Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. p. 69-108. 2 VALVERDE CASTRO, M.ª R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2000. p. 128-132. 3 Citemos como exemplo o trabalho de José Orlandis que tende ainda a pôr a política de Recaredo em oposição a de Leovigildo. Cf.: ORLANDIS, José. Historia del Reino Visigodo Español. Madri: Rialp, 1968.; Idem. Sobre las relaciones entre la Iglesia Católica y el poder real visigodo. In: ___. Hispania y Zaragoza en la Antigüedad tardía. Zaragoza, 1984, 37-50. p. 44-48.; e Idem. La doble conversión religiosa de los pueblos germánicos (siglos IV a VIII). AHIg, Pamplona, n.09. p. 69-84, 2000.

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que o rei era antes de tudo um chefe militar eleito entre seus pares por seu valor como

guerreiro e pertencimento a uma estirpe ilustre. Em outras palavras, o reinado deste

monarca marca o início a estruturação da monarquia visigoda toledana como

instituição.4

Um primeiro elemento que deve ser apresentado em relação ao reinado de

Leovigildo é a busca de reconhecimento por parte da sociedade hispana, por meio da

adoção de práticas imperiais romanas. Ela permitiria aos reis visigodos descolar de si, a

partir daí e em definitivo, o rótulo de “bárbaros”, garantindo o reconhecimento de sua

autoridade por parte da elite altamente romanizada da península.5 Seu irmão Liuva

fizera uso desse recurso ao associá-lo ao trono em 568. Tão logo o poder político foi

reunido em suas mãos, em 572, ele repetiu a prática entregando aos seus dois filhos,

Hermenegildo e Recaredo, a administração da Bética e da Narbonense/Septimania,

respectivamente.6

Essa não seria a única prática imperial que Leovigildo adotaria. Isidoro de

Sevilha narra que Leovigildo começou a aparecer diante da corte usando vestes

assemelhadas às roupagens imperiais,7 embora haja exagero na afirmação de Isidoro de

Sevilha de que ele foi o primeiro rei visigodo a fazê-lo.8 Mas, de fato, ele foi o primeiro

rei visigodo a cunhar moedas com a sua própria efígie, ao invés da do imperador

bizantino, além de ter fundado ao menos duas cidades. O passo seguinte foi a realização

de uma recopilação das leis visigodas, cujo fruto foi o chamado Codex revisus,

mimetizando obras de recopilação efetuadas por imperadores como Teodósio II e

Justiniano.9

O casamento com Gosvinta, viúva de seu antecessor, por ocasião de sua

ascensão ao trono, consistiu numa tentativa de atrair para si as antigas bases de apoio de

4 NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones políticas: el catolicismo como signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones, Madrid, n.05. p. 97-118, 2000. 5 Ibidem. p. 101. 6 FRIGHETTO, Renan. Aspectos Teóricos e Prácticos da Legitimidade do Poder Régio na Hispania Visigoda: o Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de España. Buenos Aires, v.79, 2005. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008. 7 ISIDORO DE SEVILLA. Historia de los godos, vândalos y suevos. Trad. Cristóbal Rodríguez Alonso. León: Caja de Ahorros y Monte Piedad de León y El Archivo Histórico Diocesano de León, 1975. p. 259. 8 Pablo C. Díaz e M.ª R. Valverde indicam que o processo de adoção de práticas imperializantes pelos reis visigodos teria iniciado-se ainda durante a ocupação na Gália, em fins do século V. Cf. DIAZ, Pablo C. Rey y poder en la monarquía visigoda. Iberia, Logroño, n. 1, p. 175-195, 1998. p. 183.; VALVERDE CASTRO. M.ª R. Ideología, simbolismo...op. cit. p. 69-113. 9 CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz…, op. cit.. p. 100-103.

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Atanagildo entre a elite da região ao sul da Península Ibérica, e entre a aristocracia

visigoda hispana de uma forma geral.10

Além dos significativos sucessos militares que estenderam consideravelmente o

território sob domínio da monarquia, já centralizada na cidade de Toledo – incluindo

aqui a conquista do reino suevo, em 585 – partem de Leovigildo as primeiras iniciativas

efetivas no sentido de reduzir as fronteiras entre as elites goda e hispano-romana ou de

dar aval jurídico às interações que já ocorriam, como no caso dos casamentos mistos,11

embora a diferenciação tenha sido mantida no que se refere à possibilidade de acesso ao

poder político.12 O fisco foi outro meio de que o monarca lançou mão para conseguir o

apoio das aristocracias locais, e ampliar a presença da monarquia visigoda junto à

sociedade.13

A próxima questão que Leovigildo visaria solucionar era a da separação

religiosa que dividia as elites da Hispania: o principal elemento de diferenciação entre

godos e hispano-romanos residia no fato de aqueles serem adeptos do arianismo e estes

da ortodoxia nicena. Para Luis A. García Moreno, a abertura do episcopado ariano à

interferência da monarquia fez com que o rei considerasse conveniente uma unificação

religiosa da sociedade hispano-visigoda sob a égide do arianismo,14 nem que para tal

fossem necessárias mudanças no dogma ariano.15 Navarro Cordero defende, no entanto,

que Leovigildo não visava unir o reino sob o arianismo, e sim dar condições para que a

10 Ibidem. p. 92. 11 Leovigildo aboliu uma antiga disposição da legislação, promulgada por Alarico II, que mantinha proibidos os casamentos entre romanos e germanos, como determinara um decreto romano da época dos imperadores valentinianos. Mais do que abrir a possibilidade de união entre godos e hispano-romanos, a decisão de Leovigildo converteu em lei o que se tornou uma regra na prática: já não eram tão grandes as barreiras entre os dois grupos, e os casamentos mistos eram comuns. Cf.: VALVERDE, Maria R. El reino visigodo de Toledo y los matrimonios mixtos entre godos y romanos. Gérion, Madrid, v.20, n.01. p. 511-527, 2002. 12 NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 112. Tivemos oportunidade de observar que a Lex Visigothorum também dá tratamento diferenciado aos dois grupos no que se refere à propriedade de terras. Cf.: SOUSA, Adriana C. de; COSTA, Edilaine V. Leovigildo e a revisão do Código de Eurico. In: SEMANA DE INTEGRAÇÃO ACADÊMICA DO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS, 1, 2006. Atas... Rio de Janeiro: CFCH/UFRJ, 2007. (CD-Rom) 13 CASTELLANOS, S. The political nature of taxation in Visigothic Spain. Early Medieval Europe, New York, v.12, n. 03. p. 201-228, 2003. p. 211-212. 14 Tal abertura, no entendimento do autor, era devida à falta de recursos da Igreja ariana, se comparada à riqueza do episcopado niceno, o que a tornava mais dependente do favorecimento do poder político. Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Barcelona: Crítica, 1989. p. 126. 15 Leovigildo convoca um concílio de bispos arianos em 580, durante a rebelião de seu filho Hermenegildo. Neste concílio, propõe-se uma forma mitigada do arianismo, que aceitava a divindade do filho, mas negava a do Espírito Santo, como fizera o chamado “macedonianismo”, heresia condenada pelo I Concílio de Constantinopla. Para facilitar a adoção desse novo dogma pelos cristãos ortodoxos, o concílio determina que para o “rebatizado” bastaria a imposição de mãos do bispo e a citação do credo ariano. Cf.: ORLANDIS, José. La doble conversion…, op. cit.. p. 81.

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Igreja ariana fizesse frente ao poder e à influência do episcopado niceno, e se

mantivesse como elemento distintivo da fides gothica.16

Isidoro de Sevilha apresentou Leovigildo como um perseguidor de católicos.17

Mas essa questão teve uma natureza mais complexa do que os cronistas da época

quiseram fazer parecer. Em fins da década de 570, Hermenegildo, filho mais velho de

Leovigildo e recém-convertido ao cristianismo niceno por influência do bispo Leandro

de Sevilha, rebelou-se contra a autoridade paterna e, apoiado por parcela bastante

representativa da elite, incluindo a rica aristocracia da Bética, reivindicou o trono para

si, autorizando-se inclusive a cunhar moedas com a sua efígie. Sufocada a rebelião, em

584, Leovigildo, de acordo com os referidos autores, teria iniciado uma política de

perseguição ao clero niceísta. Castellanos, entretanto observa que as prisões e exílios

que o monarca empreendeu contra membros do episcopado provavelmente não tiveram

motivos religiosos. Bispos como João de Biclaro e Masona de Mérida teriam sido

perseguidos em função de seu envolvimento político com a rebelião de Hermenegildo.18

Tanto o caráter católico da rebelião de Hermenegildo, como as iniciativas de

Leovigildo contra a parcela do episcopado que o apoiou, acabaram ofuscadas pela

guinada política protagonizada por Recaredo, que com a morte do irmão, passa a ser o

único candidato à sucessão dinástica de Leovigildo, morto em 586. Apenas alguns

meses após subir ao trono, Recaredo se converte ao cristianismo niceno. Depois de um

período de sufocamento de revoltas e negociações com o restante da elite goda, o

monarca convoca o III Concílio de Toledo, em 589, que deveria reunir os principais

representantes da aristocracia visigoda e os bispos do reino, niceístas e arianos.

A conversão de Recaredo representa o reconhecimento do poder e da influência

institucional da Igreja e da hierarquia eclesiástica nicenas, em que os próprios visigodos

se faziam cada vez mais presentes. Nesse sentido, o III Concílio de Toledo teria na

16 NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 110. 17 “Denique Arianae perfidiae furore repletus, in catholicos persecutione commota, plurimos episcoporum exsilio relegavit.” Cf.: ISIDORO DE SEVILLA. op. cit., 50. 18 CASTELLANOS, Santiago. La Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección cultural. Logroño: Fundacion San Millan de la Cogolla, 2004.p. 187. Catherine Navarro Cordero, por outro lado, afirma, em artigo publicado em 2000 – antes, portanto, do trabalho de Castellanos, que a perseguição se dirigiu a visigodos convertidos à fé nicena. Ela também acredita, opostamente ao que viria a defender aquele autor, que a rebelião de Hermenegildo foi supervalorizada pela historiografia do período apenas por se tratar de uma guerra entre pai e filho, e sem ter tido qualquer implicação de maior alcance. Cf: NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 108. Optamos pela tese de Castellanos porque consideramos que o trabalho de Navarro Cordero, embora traga muitas contribuições relevantes em relação a outras questões, neste caso em particular possui uma leitura mais restrita dos textos da época em relação ao supracitado historiador.

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verdade sancionado uma situação de fato: era crescente, desde antes de 589, o

movimento de conversão de visigodos à ortodoxia cristã.19

A importância do III Concílio no que se refere à institucionalização da

monarquia é que ela demonstra que Recaredo, em consonância com a política de seu

pai, buscava uma monarquia territorial, e não uma monarquia étnica. A idéia da

monarquia visigoda como a legítima herdeira do Império cristão não deixa de ser

evocada. João de Biclaro compara Recaredo a Constantino e Marciano, imperadores que

presidiram, respectivamente, Nicéia e Calcedônia.20

É Recaredo, portanto, que acaba transformado no emblema de uma nova

monarquia visigoda, protegida por Deus e apoiada pela Igreja. Isidoro de Sevilha afirma

que Recaredo reúne em si as qualidades ideais do príncipe cristão: pax, pietas e

justitia.21 A adoção do cristianismo niceno como religião oficial leva à cristianização

das relações e concepções de poder no reino visigodo. O rei é rex, rector ecclesiae – o

que não impediu facções aristocráticas dissidentes de se colocarem contra o monarca.

As revoltas que ocorrem após a ascensão de Recaredo ao trono, antes e depois da

conversão, têm uma característica em comum: representam a reação de bispos arianos

descontentes com a perda de espaço para o episcopado niceno, e de grupos

aristocráticos contrários à política centralizadora e ao fortalecimento do poder da

monarquia toledana.22

A sacralização da autoridade régia, e a conseqüente atribuição à monarquia do

papel de defensora da ortodoxia cristã, permite que o rei se apresente como

representante do conjunto da sociedade frente a opositores internos (facções da nobreza)

e também a adversários externos; desse modo, a heterodoxia religiosa se torna

definitivamente um rótulo político. Com o catolicismo substituindo a antiga fides

gothica como fator de coesão da população hispano-visigoda, heterodoxos religiosos –

categoria em que são incluídos pagãos, judeus e hereges – se tornam inimigos do poder

político: ao não aderir à fé oficial que define a autoridade régia, esses grupos seriam

considerados mais propensos a não reconhecê-lo.23 Renan Frighetto, por exemplo,

aponta para uma transformação no conceito de barbárie na Hispania visigoda, em que 19 NAVARRO CORDERO. Ibidem. p. 113-114. 20 DIAZ, Pablo C. op. cit.. p. 185-186. 21 Isidoro afirma na sua História dos Godos que Recaredo restaurou as propriedades dos alvos da perseguição empreendida por seu pai, garantiu a paz do reino e das províncias além de, em dadas ocasiões, ter isentado os súditos de tributos mesmo quando estes eram legítimos. ISIDORO DE SEVILLA. op. cit. 55-56 22 NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 115-116. 23Ibidem. p. 98-99; 118.

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barbárie, ferocitas (oposta a ciuilitas), heresia, paganismo, traição e tirania passam a

estar estreitamente associados nas fontes do século VII.24

A importância das alianças políticas para a manutenção do trono no reino

visigodo é evidenciada pela deposição do filho de Recaredo, Liuva II (601-603).

Segundo Isidoro de Sevilha, o jovem rei era filho de uma mulher não-nobre,25 e,

portanto, carecia de bases político-dinásticas junto à aristocracia goda.

O golpe é liderado por Witerico (603-610) que, em 587, havia traído um

movimento liderado pelo bispo ariano Sunna, em Mérida, contra Recaredo.26

Provavelmente, ele ainda possuía ligações com grupos políticos adversários deste rei,27

e conseguiu finalmente ascender ao trono, diante da falta de apoio de que sofria Liuva

II. Isidoro o descreve como um grande guerreiro, mas que na vida cometeu muitos atos

ilícitos, e acabou perdendo o poder da mesma forma como o conquistou: pela

violência.28 Choques com a aristocracia e sua política centralizadora descontenta setores

que o haviam apoiado na obtenção do trono, e o monarca acaba assassinado.29

Gundemaro (610-612) o sucede e, possivelmente a fim de evitar os choques com

grupos aristocráticos locais que resultaram na morte de seu antecessor, publica um

decreto em que limita os poderes do soberano, proibindo-se de nomear bispos na

Cartaginense – província em que se localizava Toledo – evitando contrariar os

interesses da Igreja e do metropolitano.30 É no reinado de Gundemaro também que a

Burgúndia franca e o reino visigodo ficam à beira de uma guerra, em função de

episódios envolvendo a prisão de embaixadores e ocupação visigoda, em represália, de

terras que Recaredo havia cedido àquele reino.31 Tendo realizado algumas campanhas

24 FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01, p. 491-510, 2002. p. 509. 25 Nas palavras de Isidoro, Liuva II seria “ignobili quidem matre progenitus”. Cf.: ISIDORO DE SEVILHA. Historia..., op. cit., 57. 26 NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 114. 27 Não há evidências, entretanto, de que este monarca empreendeu uma política pró-ariana. GARCIA MORENO, L. A. op. cit.. p. 145. 28 “Vir quidem strenuus in armorum arte, sed tamen expers victoriae. [...]Hic in vita plurima illicita fecit, in morte autem, quia gladio operatus fuerat, gladio periit.”. Cf.: ISIDORO DE SEVILHA. Historia…, op. cit., 58. 29 GARCIA MORENO, L. A. Ibidem. 30 Antonino Gonzalez Blanco levanta a possibilidade de este decreto ser fruto de uma falsificação da época do rei Ervígio, ou seja, da década de 680, em que efetivamente se verifica um aumento da influência política da sede de Toledo, ocupada ao longo dessa década por ninguém menos que o bispo Julian. Cf. GONZALEZ BLANCO, Antonino. El decreto de Gundemaro y la historia del siglo VII. Antigüedad y cristianismo, Murcia. n. 03, p. 159-169, 1986. p. 162-166. 31 GARCIA MORENO, L. op.cit. p. 146-147.

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militares contra os bascos e os bizantinos, morre em Toledo após dois anos de reinado,32

passando o trono a Sisebuto, cuja obra é objeto de nosso trabalho.

Entendemos que é em meio ao processo de institucionalização e sacralização do

poder régio anteriormente descrito, que podemos compreender a obra e a política do

monarca Sisebuto, de que trataremos no item a seguir.

1.2. Sisebuto e a teorização política de Isidoro de Sevilha (570-636) Sisebuto ascende ao trono visigodo em 612, com a morte do rei Gundemaro, e

governa até a sua própria morte em 621. Seu reinado foi marcado por campanhas

militares e vários acordos políticos, inclusive junto ao reino franco e aos representantes

do Império Bizantino, que na ocasião ainda dominava uma pequena faixa territorial ao

sul da Península Ibérica. É tido pela historiografia como um dos mais eruditos reis

visigodos, tendo mantido um estreito contato político e intelectual com o bispo Isidoro

de Sevilha (570-636).33 Dentre outras iniciativas, a política de Sisebuto de combate ao

judaísmo é uma das mais contundentes da história do reino visigodo, mesmo levando-se

em conta a recorrência das ações persecutórias da parte de reis visigóticos contra a

comunidade judaica ibérica.34 O rei também escreveu cartas em que censura o mau

comportamento de bispos,35 além de ter enviado à corte lombarda, que prosseguia

ariana, uma longa admoestação contra a heresia, em que as idéias de humanitas e

32 ISIDORO...op.cit.. p. 59. 33 José Orlandis discorre sobre o monarca: “Sisebuto – escribió Isidoro – ‘fue brillante em sua palabra, docto en sus pensamientos y bastante instruído en conocimientos literários’. Se trata – como puede advertirse – de rasgos típicos de un hombre culto, que, para la época que le toco vivir, parecen más propios de un eclesiástico cultivado que de un laico, que fue además el más ilustrado de los reyes visigodos.” Isidoro de Sevilha teria dirigido a Sisebuto, dentre outros textos, a primeira redação de sua principal obra, as Etimologias. Estes e outros aspectos da biografia e da trajetória política de Sisebuto podem ser encontrados em ORLANDIS, José. Sisebuto, um rey clemente, sensible y erudito. In: ______. Semblanzas visigodas. Madri: Rialp, 1992, pp. 105-127. O grau de refinamento intelectual do monarca, ainda que relativamente incomum, não chegava a ser inédito tendo em vista que, desde o início do processo de aproximação entre romanos e germanos, registram-se exemplos de “bárbaros” intelectualizados, bastante versados principalmente em matéria religiosa. Cf.: MATHISEN, Ralph W. Les barbares intelectuels dans l’Antiquité Tardive. Dialogues d’histoire ancienne, Besançon. v. 23, n. 02, p. 139-148, 1997. p. 144-146. 34 Catherine Cordero Navarro aponta para o alto grau de violência da política de Sisebuto para com os judeus, em comparação com os demais reis visigodos, cf. CORDERO NAVARRO, Catherine. El problema judio como visión del “otro” en el reino visigodo de Toledo. Revisiones historiográficas. En la España Medieval. v.23. p. 09-40, 2000. p.20. Para uma discussão sobre as possíveis motivações do monarca, cf. BACHRACH, Bernard S. A Reassessment of Visigothic Jewish Policy, 589-711. The American Historical Review, Bloomington, v.78, n.01, p. 11-34, 1973. p. 16-19. 35 SISEBUTO. Epístola VI. apud JIMENEZ SANCHEZ, J. A. Un testimonio tardío de ludi theatrales em Hispania. Gérion, Madrid, v.21, n.1. p. 371-377, 2003. p. 372.

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christianitas praticamente se fundem.36 Embora este não tenha convocado nenhum

concílio de caráter geral, seu governo e sua obra epistolar e literária evidenciam a

preocupação, por um lado, com o apoio e o reconhecimento da elite episcopal, e, por

outro, em colocar a si mesmo como o defensor da fé cristã e da disciplina eclesiástica,

segundo o ideal de monarca encarnado em Recaredo a partir do III Concílio de Toledo,

ou para além dele.37

Deve-se destacar também neste contexto a atuação do bispo Isidoro de Sevilha

(570-636), e o papel político de sua produção intelectual, que conhece seu auge durante

o reinado de Sisebuto e na década seguinte. Hen aponta que apesar de pouco numerosas,

seriam claras as evidências de mútua colaboração intelectual entre Sisebuto e Isidoro de

Sevilha, a ponto de o autor designar a relação entre o rei e o bispo como uma espécie de

“mecenato”.38

Rachel Stocking, por outro lado, tende a destacar as divergências entre o rei e o

bispo de Sevilha, principalmente no que concerne ao tratamento da comunidade judaica

– o texto das atas do IV Concílio de Toledo, realizado 12 anos após a morte de Sisebuto

e presidido pelo hispalense, demonstra contrariedade em relação a decisão do monarca

de converter os judeus do reino visigodo à força. Stocking atribui a decisão de Sisebuto

a uma formação intelectual incompleta,39 o que duvidamos que seja o caso. Bachrach

aponta para as tentativas de Sisebuto de enfraquecer economicamente a comunidade

judaica, e que a falha delas teria impulsionado o monarca em direção à opção pelas

conversões forçadas e pelos exílios.40 Tais ações pouco se distinguem daquelas que, em

décadas posteriores, os sucessores do monarca empregaram contra facções

nobiliárquicas rivais, o que nos leva a crer que o conflito de Sisebuto com os judeus

fosse possivelmente da mesma natureza.

P. Cazier indica que nos textos contemporâneos ao reinado de Sisebuto, Isidoro

não só não se opõe como até se felicita com a política de Sisebuto, considerando que ele

36 FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade tardia ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, jan/dez, 2004. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008. 37 Rachel Stocking aponta para o dado de que Sisebuto teria ido além de Recaredo no que concerne a extensão de sua atuação político-religiosa, a ponto de caracterizá-lo como sendo de uma “piedade extravagante”, no que concorda com ela Yitzhak Hen. Cf. STOCKING, Rachel L. Bishops, Councils and Consensus in the Visigothic Kingdom, 589-633. Ann Arbor: Univ. of Michigan Press, 2000. p. 122, 127-128. e HEN, Yitzhak. Roman barbarians: the Royal court and the culture in the Early Medieval West. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p. 137. 38 HEN, Yitzhak. Ibidem. p. 150-151. 39 STOCKING, Rachel. op.cit., p. 135. 40 BACHRACH, Bernard S. op.cit. p. 19.

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teria lidado com os judeus do mesmo modo como Recaredo lidara com os arianos,

fazendo ressalvas apenas após a morte do monarca.41 Em outras palavras, pode-se

considerar que, se houveram divergências entre os dois no que tange à ação política, ela

não interferiu nas trocas intelectuais que o rei e o bispo mantiveram.

No entendimento de J. Fontaine,42 o bispo Isidoro de Sevilha foi um autor que

buscou incessantemente conciliar em suas obras o resgate da tradição intelectual

clássica com a ação pastoral exigida por seu papel como eminente membro do

episcopado. Seus escritos estariam voltados, primeiramente, a um projeto de reforma da

Igreja hispana, projeto que tinha a sua dinâmica pautada por uma “busca das origens”, a

qual viria a orientar também a construção de seu ideário político. Sua teologia moral e

espiritual, exposta sobretudo nos livros II e III das Sententiae, teria sido bastante

influenciada pela leitura de textos escritos pelo papa Gregório Magno (540-604), os

quais haviam sido dedicados a Leandro, bispo de Sevilha e irmão mais velho de Isidoro.

Assim, Isidoro buscaria estabelecer, por meio de seus textos, uma mediação entre os

saberes antigos e as demandas culturais, políticas e intelectuais de uma sociedade latina

em transformação.43

Seu ideário político, por sua vez, esteve bastante marcado pela filiação para com

o pensamento clássico construído sobre os valores caros a civitas Romana. Nutrido por

esse pensamento, Isidoro esboçou algo que se poderia chamar de um “projeto global de

sociedade” para a Hispania romano-visigoda.44 Para Isidoro, o fundamento do poder

régio é a retidão, baseada nas virtudes cristãs, tal com se entende a partir da citação do

provérbio de Horácio, nas Etimologias isidorianas: “rex eris si recte facias, si non facias

non eris”45. Na visão de Fontaine, o livro III das Sententiae deve ser lido como um

“programa de responsabilização” para todas as hierarquias da sociedade, tanto as

clericais quanto as leigas.46 Desde os seus primeiros escritos até o IV Concílio de

Toledo, presidido pelo hispalense em 633 - três anos antes de sua morte - Isidoro

demonstra uma grande preocupação em assegurar, ideologicamente, o equilíbrio de

poderes entre Igreja e reino, equilíbrio em que o rei teria a função de fazer cumprir por

41 CAZIER, Pierre. Isidore de Séville et la naissance de l’Espagne Catholique. Paris: Bouchesne, 1994. p.52 42 FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla, padre de la cultura europea. In: CANDAU, J. M., GASCÓ, F., RAMÍREZ DE VERGER, A. (eds.). La Conversión de Roma. Cristianismo y Paganismo. Madrid: Clásicas, 1990, p. 259-286. 43 Ibidem, p. 260-267. 44 Ibidem, p. 271-272. 45 “És rei se age retamente, se não age, não o é.” 46 Ibidem, p. 274.

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força os mandamentos que os sacerdotes não eram capazes de defender por meio de

palavras.

Abílio Barbero de Aguilera,47 tratando do conceito isidoriano de tirania, aponta

que Isidoro de Sevilha, filiando-se aos posicionamentos de Cícero e Agostinho,

apresenta a justiça e a piedade como as principais virtudes do bom rei, por oposição ao

tirano que oprime o seu povo.48 O autor discorda de estudiosos, como por exemplo José

Orlandis, que defendem que a acepção de Isidoro possui da tirania se restringe a reis que

ascendem ao trono por vias ilegítimas, sem que seja incorporado ao conceito qualquer

tipo de juízo de valor negativo em relação à atuação do governante.

Barbero de Aguilera destaca ainda que Isidoro, bem como outros bispos no IV

Concílio de Toledo, atua não só como representante da alta hierarquia eclesiástica, mas

também como representante da elite hispano-goda e que, portanto, não haveria uma

verdadeira dualidade de interesses entre episcopado e aristocracia.49 Desse modo,

entende-se que o discurso isidoriano tanto sobre a inalienabilidade do poder dos

monarcas, quanto sobre os deveres dos mesmos para com os seus súditos, refletem os

anseios de um episcopado preocupado com a estabilidade política do reino, mas também

de uma aristocracia interessada em inibir a adoção de posturas “pouco convenientes”

por parte dos próximos monarcas. “Reger retamente”, nesse sentido, significaria

fundamentalmente agir levando em consideração os interesses da alta nobreza do reino e

dos grandes eclesiásticos – que, do ponto de vista social, lembremos, integravam um

mesmo conjunto.50

As Sententiae de Isidoro de Sevilha, escritas entre os anos de 604/614,51 têm um

importante papel na construção do ideal de realeza cristã no reino visigodo,52

47 BARBERO DE AGUILERA, A. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo XXI, 1992, p. 16-56. 48 Ibidem, p. 21. 49 Ibidem, p. 27. 50 Barbero de Aguilera cita diversos exemplos envolvendo reis visigodos derrubados ao longo do século VII (desde Suintila a Wamba), e cuja deposição foi justificada sob o pretexto de encerrar com políticas que prejudicavam pessoas e bens da alta nobreza e dos bispos mais influentes do reino. Cf. BARBERO DE AGUILERA, A. Ibidem, p. 43. 51 Segundo datação proposta por José Carlos Martín. Cf.: MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » et du « De uiris illustribus » d’Isidore de Seville. Hagiographica. v.07, p. 127-180, 2000. Embora o autor discorra sobre os deveres dos reis também em outras obras, como, por exemplo, as Etymologiarum ou as atas do IV Concílio de Toledo, de 633, por ele presidido, privilegiaremos as Sententiae em nossa análise porque ela foi elaborada durante o reinado de Sisebuto, e, ainda de acordo este estudo de José Carlos Martín, foi a principal referência do monarca na redação de sua Vita Desiderii, dado corroborado por observações feitas também por outros estudiosos. Cf.: GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda..., op. cit.. p. 148. e CASTELLANOS, S. La Hagiografia visigoda..., op. cit.. p. 251-252.

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49

principalmente o livro III. Marc Reydellet aponta para a particular influência da idéia

isidoriana que apresenta o exercício do governo como uma “vaste enterprise de salut

collectif, le roi guidant son peuple vers la possession des biens éternels, et agissant par

son example”.53

Pierre Cazier, por sua vez, aponta para a afirmação de Isidoro de que na Bíblia,

eram chamados reis os santos homens que sabiam governar os próprios sentidos com

calma e discernimento, o que indica a adoção pelo bispo de princípios do estoicismo

romano.54 Além disso, destaca a preocupação do bispo em delimitar o espaço de atuação

do rei no interior da Igreja, que seria a função de resolver problemas perante os quais as

autoridades eclesiásticas se viam impotentes.55

No livro III,56 encontramos dos capítulos 33 a 57 (de um total de 62),

recomendações dirigidas aos mais variados setores da sociedade e da própria Igreja. No

capítulo 48, dirigido aos prelados, encontram-se recomendações também aos monarcas,

o que, em nosso entendimento, indica uma concepção que dotava das mesmas

responsabilidades indivíduos em quaisquer posições de poder. Tal concepção, como

observaremos adiante, exerceu profunda influência no discurso eclesiástico dirigido

tanto aos bispos quanto aos reis ao longo do século VII.

1.3. Rebeliões nobiliárquicas no reino visigodo após a morte de Sisebuto (621-693) Se o reinado de Sisebuto (612-621) transcorre, aparentemente,57 sem maiores

problemas internos a não ser aqueles decorrentes de sua controversa política

antijudaica,58 ou de sua interferência em questões eclesiásticas, o mesmo não podemos

dizer sobre seu sucessor Suintila (621-630). No 75º cânone do IV Concílio de Toledo,

52 O conceito de “realeza cristã” de que aqui nos utilizamos é tomado da obra de Marcelo Cândido da Silva, que assim o define: “Essa última pode ser definida, de maneira preliminar, como uma forma de governo na qual a realização de um objetivo exterior ao mundo, isto é, o bem da coletividade entendido como sua salvação, é associada ao exercício do poder político supremo, a ponto de se tornar seu principal fundamento.”. Cf.: SILVA, Marcelo Cândido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. São Paulo: Alameda, 2008, p. 40. 53 REYDELLET, Marc. La conception du souverain chez Isidore de Seville. Isidoriana, León, p. 457-466, 1961. 54 CAZIER, Pierre. op.cit. p. 240. 55 Ibidem. p. 261-262. 56 Utilizamos como referência, nas citações que serão feitas deste ponto em diante, a tradução contida em ISIDORO DE SEVILLA. El libro 2º y 3º de las Sentencias. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991. 57 Embora as fontes do período não sejam precisas a respeito, Garcia Moreno levanta a hipótese de que Sisebuto teria sido assassinado e que o mesmo teria ocorrido com seu filho Recaredo II, associado por ele previamente ao trono, e morto pouquíssimo tempo depois do pai. Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. História de España...op.cit. p. 153. 58 CORDERO NAVARRO, Catherine. op. cit. p. 23

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de 633, que ratifica a deposição deste monarca em favor de Sisenando (630-636), são

listados numerosos crimes que teriam sido cometidos por Suintila contra seus súditos,

tais como julgamentos arbitrários e confiscos contra elementos da nobreza e em favor

de seu próprio segmento político e dinástico.59 A associação ao trono do filho de

Suintila, Ricimiro, teria tornado claras as pretensões “imperializantes” do monarca o

que gerou oposição de segmentos da nobreza desfavorecidos pela política

excessivamente centralizadora dos monarcas toledanos, como as aristocracias da

Septimania ou da Galiza.60

Tais descontentamentos resultaram no golpe que depôs Suintila em 630 e pôs em

seu lugar Sisenando. Aqui novamente se registra a participação de representantes do

reino franco, então governado por Dagoberto (623-639), que teria justificado a

interferência na política visigoda em função da perseguição que Suintila naquele

momento empreendia contra seus próceres.61 Um outro aspecto que a ação do grupo

liderado por Sisenando tinha em comum com movimentos anteriores é a sua ligação

com a região da Gália visigoda.62 Santiago Castellanos indica que a rebelião desse

grupo é um exemplo significativo de que o domínio e a estabilidade do reinado de um

monarca visigodo era diretamente proporcional à sua capacidade – ou não – de garantir

o suporte e a colaboração dos diversos pólos regionais de poder, que “alimentariam” a

autoridade central.63

Suintila teria provavelmente falhado em atender os interesses da parte da

aristocracia envolvida na rebelião de Sisenando. O movimento deste, por outro lado,

não contou com apoio unânime, dado que explicaria o surgimento de um obscuro

59 GARCIA MORENO, Luis A. La oposición de Suintila: Iglesia, monarquía y nobleza en el reino visigodo. Polis, Valladolid, n. 3, p. 193-208, 1991. p. 195, 202. (Estudios de Historia Medieval - Homenaje a Luis Suarez) 60 Idem. p. 203. 61 Idem. p. 204. 62 Como acentuado por Santiago Castellanos em CASTELLANOS, Santiago. La hagiografia visigoda...op.cit. p. 266. 63 CASTELLANOS, Santiago. Ibidem. p. 270. O professor Mário Jorge da Motta Bastos também concorda que “a própria configuração do poder central, com freqüência referida como singularidade, supõe, no mínimo, a materialização do poder cambiante de facções (ou frações) da aristocracia. [...] A relação com o poder central trouxe benefícios econômicos, políticos, prestígio e posição social superior à aristocracia, assim como desgraça, perseguição, expropriação e morte de vários de seus representantes. Por outro lado, destas mesmas relações decorriam as possibilidades de expressão do poder central no plano local, inclusive o acesso às diversas localidades que constituíam o território – o que concorre para explicar a sobrevivência daquele.” Cf.: BASTOS, Mário Jorge da Motta. Os “Reinos Bárbaros”: Estados Segmentários na Alta Idade Média Ocidental. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre (on-line). Numéro Hors Série. n. 02, 2008. Disponível em : http://cem.revues.org/index10012.html. Consultado em: 13/02/2010.

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personagem identificado apenas como Iudila,64 que teria sido reconhecido como rei, em

algum período entre 630 e 633, pela nobreza ligada a regiões no centro-sul da Península

Ibérica, base política do próprio Suintila.65

Não se sabe qual teria sido o fim de Iudila e de seu movimento. Entretanto, o

conteúdo do último cânone do IV Concílio e de vários cânones do V e VI Concílios de

Toledo, estes celebrados durante o reinado de Chintila (636-639), seus anátemas contra

os usurpadores e aqueles que atentavam contra a vida ou a propriedade dos reis e de sua

família,66 podem ser considerados indicativos de que a posição dos reis de Toledo, de

Sisenando a Tulga (639-642), estava extremamente fragilizada e se via em estado de

contestação constante por parte de aristocratas rivais.

Em 642, um grupo nobiliárquico oriundo provavelmente da região setentrional

da Península depõe e tonsura Tulga – medida que evitava a sua morte e ao mesmo

tempo qualquer pretensão futura de retorno ao trono – e entroniza a Chindasvinto

(642-653).

O reinado de Chindasvinto é reconhecido como um ponto de inflexão pelos

estudiosos. Isto porque podemos reconhecer nele uma mudança na maneira como até

então a monarquia visigoda estabelecia seu acordo com o conjunto da aristocracia. Se a

historiografia atribui aos reinados de Leovigildo e Recaredo, bem como aos governos

que lhes sucederam imediatamente, um esforço no sentido de demarcar o caráter

institucional da monarquia visigoda, por meio da acentuação não apenas do seu vínculo

com a tradição imperial,67 mas também da construção de uma autoridade fundada no

consenso entre as diferentes forças políticas do reino,68 os reinados de Chindasvinto e

de seu filho Recesvinto (649-672), são identificados com uma política visando o reforço

do caráter centralizador da autoridade monárquica, em detrimento de poderes

paralelos.69

64 THOMPSON, E. A. Los godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 202-203. 65 GARCIA MORENO, Luis A. La oposición de Suintila…. op. cit. p. 203. 66 No V Concílio, vemos referência à questão nos cânones II-VIII (de um total de nove cânones). No VI Concílio, os cânones que se referem à ameaças à família ou aos direitos régios são os XII-XIV e XVI-XVIII (de um total de 19). Cf.: VIVES, José (ed.). Concílios Visigóticos y Hispano-romanos. Madrid: CSIC. Inst. Enrique Florez, 1963. p. 226-248. Thompson indica ainda que as atas do V Concílio não registram a presença de bispos da Narbonense e que, como apenas Chintila e Wamba não cunharam moedas naquela região, tal dado pode ser um indício de que as relações entre Toledo e a Gália visigoda nesse período prosseguiam tensas. THOMPSON, E. A. op. cit. p. 209. 67 CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz...op.cit.. p. 99-23. 68 Idem. La hagiografia visigoda... op. cit. p. 188, 190, 192. 69 GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda… op. cit. p. 161-162.

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Uma das primeiras medidas tomadas pelo monarca ao ocupar o trono foi

condenar à morte centenas de aristocratas, inclusive alguns membros do episcopado,

que teriam participado de rebeliões nobiliárquicas anteriores e determinar o confisco de

seus bens e a distribuição deles, bem como de suas esposas e filhas, aos seus fideles

pessoais.70 Escravos régios passaram a deter privilégios e ocupar postos no officium

palatinum; bispos foram encarregados de poderes judiciais e do dever de fiscalizar a

conduta de funcionários laicos.71 Medidas muito bem-sucedidas em curto prazo, já que

o monarca conseguiu fazer aumentar o volume do tesouro régio, reduzir o ânimo dos

levantes, e seu poder só foi sofrer o primeiro revés em 648, quando, por meio de carta, o

bispo Bráulio de Zaragoza e o dux Celso da Tarraconense, em nome da população da

diocese, recomendam ao rei que associe ao trono seu filho, Recesvinto, que teria mais

condições de suportar as fadigas da guerra. Recesvinto passa então a governar junto

com o pai de 649 até 653, ano da morte deste.72 Apesar do motivo alegado na carta, a

política agressiva de Chindasvinto contra parcelas expressivas do episcopado e da

aristocracia produziu descontentamento o suficiente para nos fazer acreditar que a

motivação real da correspondência seria a de reduzir a influência do monarca na

condução do reino, pela associação ao trono de um sucessor de tendências claramente

mais moderadas.73

Logo após a morte de Chindasvinto, uma rebelião é deflagrada por um duque

chamado Froya que, com a ajuda dos bascos e de um grupo de nobres anteriormente

perseguidos pelo rei, chega a sitiar a cidade de Zaragoza. A julgar pelo uso do termo

tyrannus associado ao referido duque na carta de Tajón de Zaragoza,74 podemos

acreditar que a revolta visava a deposição de Recesvinto. A rebelião é devidamente

sufocada pelo rei que, um dia depois, convoca o VIII Concílio de Toledo, no qual as

penas atribuídas aos crimes de conjura e traição ao monarca são atenuadas.75 Garcia

70 THOMPSON, E. A. op.cit.. p. 218-228. 71 GARCIA MORENO, Luis A. História de España...op.cit.. p. 163-164. 72 Thompson entende que a carta servia mais ao interesse da aristocracia que propriamente aos do episcopado, que já havia se posicionado contrariamente à prática da associação de sucessores ao trono e em favor da eleição no IV Concílio de Toledo e reafirma tal posição, após a morte de Chindasvinto, no VIII Concílio. Neste concílio os bispos também vêm expressar toda a sua contrariedade com a política de Chindasvinto, a qual possivelmente motivou a “concessão” de Bráulio no episódio da carta. THOMPSON, E. A. Ibidem. p. 226-228. 73 Como também considera Renan Frighetto em FRIGHETTO, Renan. O Rei e a Lei na Hispania visigoda: os limites da autoridade régia segundo a Lex Wisigothorum, II, 1-8 de Recesvinto (652-670). In: ____; GUIMARÃES, Marcella Lopes (coords.). Instituições, poderes e jurisdições. I Seminário Argentina – Brasil – Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá, 2007. p. 123. 74 Ibidem. p. 124. 75 Concílio de Toledo VIII. In: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 268-277.

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Moreno considera que a rebelião de Froya e o apoio da aristocracia ao monarca no

episódio foram entendidos por Recesvinto como sinais de que ele não poderia, como fez

o pai, subestimar o valor do apoio de uma ampla parcela dos nobres em situações de

crise.76

As determinações e, principalmente, as concessões feitas no VIII Concílio de

Toledo à nobreza hispano-visigoda poderiam ser entendidas como uma tentativa de

estabelecer um “novo pacto” entre rei e aristocracia. E a promulgação de uma nova

edição da Lex Wisigothorum, em 654, visaria reforçar o caráter unitário do regnum e as

obrigações entre rei e súditos.77 Tais medidas, entretanto, não foram suficientes para

assegurar a posição do monarca e deter o processo de progressiva regionalização do

poder político na Península.78

Logo após a ascensão do sucessor de Recesvinto, Wamba (672-680), eclode na

região da Septimania uma nova rebelião que, já contando com o suporte de aristocratas

francos, ganharia também a adesão do dux Paulo, que havia sido enviado pelo monarca

para combater os rebeldes, mas acaba sendo coroado rei por eles, acontecimentos que

são narrado por Julian de Toledo na Historia Wambae.

As dificuldades que o monarca havia enfrentado por ocasião da repressão à

rebelião teriam motivado a promulgação de uma lei, em 673, que impunha duras penas a

nobres e até a clérigos que não demonstrassem interesse em defender o rei e o reino

contra rebeldes e invasores externos.79 Esta medida, bem como outras identificadas

como ingerência excessiva em assuntos eclesiásticos por parte dos bispos,80 gerou

grande descontentamento. Em 680, um complô palaciano depõe Wamba, substituindo-o

por Ervígio (680-687), que ao longo de seu reinado veio atenuar, mas não abolir,

diversas determinações legais de Recesvinto e Wamba contrárias aos interesses de

aristocratas e bispos – reconhecendo assim a incapacidade da monarquia toledana de se

sobrepor à fragmentação cada vez maior do poder no reino.81

A última rebelião registrada no reino visigodo do século VII teria ocorrido em

693, durante o reinado de Egica (687-702), e foi protagonizada pelo bispo Siseberto de

Toledo. Os rebeldes chegaram a controlar Toledo durante algum tempo, cunhando

76 GARCIA MORENO, Luis A. História de España...op.cit.. p. 166. 77 FRIGHETTO, Renan. O rei e a lei... op.cit.. p. 127, 129. 78 Ibidem. p. 132. 79 THOMPSON, E. A. op.cit. p. 298-299. 80 Ibidem. p. 261-262. 81 FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitação do poder régio na Hispania visigoda: o reinado de Ervígio (680-687). Gérion. v. 22, n. 01, p. 421-435, 2004. p. 427-434.

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moedas em nome de um rei chamado Suniefredo.82 Não conseguiram assassinar Egica e

sua família como pretendiam, e o bispo Siseberto foi condenado à excomunhão durante

o XVI Concílio de Toledo, realizado no mesmo ano.83 No concílio em questão, teriam

sido revogadas determinações do XIII Concílio de Toledo, realizado ainda sob o

governo de Ervígio, as quais protegeriam funcionários do palácio contra destituição e

prisão e que haviam favorecido Siseberto e seus cúmplices.84

Outro aspecto relevante para que compreendamos as principais questões que

perpassaram o processo de produção da Historia Wambae de Julian de Toledo diz

respeito às relações entre a atividade conciliar no reino visigodo e os conflitos políticos

envolvendo a monarquia que lhe foram contemporâneos.

1.4. Disputas de poder em torno da monarquia, atividade conciliar e o papel de Julian de Toledo

A conversão de Recaredo (586-601), em 589, pode ser entendida então como

parte do processo de afirmação de soberania dos reis godos, que buscavam então

sobrepor-se tanto às pretensões de aristocratas rivais quanto aos expansionismos franco

e bizantino. Além disso, o III Concílio de Toledo também formalizou o estabelecimento

de uma aliança entre a monarquia e a alta hierarquia eclesiástica niceísta, tendo em vista

mútuo benefício: ao longo do século VII, os reis visigodos lançaram mão amplamente

do suporte conciliar com a finalidade de, por meio da rede de poder eclesiástica,

construir ou, na maior parte dos casos, impor consensos políticos que lhes

favorecessem.85

O episcopado niceísta, por outro lado, fez uso constante tanto das determinações

conciliares, quanto de uma produção intelectual distribuída em textos de natureza

diversa, para propor e, se possível, difundir na sociedade as suas expectativas quanto à

atuação dos monarcas em favor da Igreja e da fé cristã no reino. O exemplo mais

significativo é o trabalho teórico de Isidoro de Sevilha (570-636) que, como apontamos

82 THOMPSON, E. A. op.cit. p. 278. 83 Cânone IX. XVI Concílio de Toledo (693). In: VIVES, José. op.cit.. p. 507-509. 84 THOMPSON, E. A. op.cit. p. 279-280. 85 Rachel Stocking aponta para o cuidado necessário em se observar o conceito que as sociedades da Alta Idade Média tinham do “consenso”, que, anacronicamente, poderia ser entendido como uma solução para os conflitos decorrentes de diferenças sociais ou culturais. O que a autora aponta é que, principalmente no caso visigodo, o consenso tinha quase sempre um sentido fortemente coercitivo, que terminava por realçar divergências, reforçando sistemas de exclusão, ao invés do contrário. Tratava-se de produzir convergência pela eliminação, física ou simbólica, dos elementos dissonantes. STOCKING, Rachel. op.cit.. p. 12, 24-25.

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previamente, em escritos como as Etimologias e as Sentenças, sintetizou um conjunto

geral de princípios que seriam a referência base para os autores que, posteriormente,

dedicar-se-iam a escrever sobre o exercício do poder político segundo valores cristãos –

entre os quais podemos mencionar o próprio Julian de Toledo.86

Ao endossar o discurso episcopal, investindo-se da missão de proteger a moral

cristã no reino, e reconhecendo as implicações de ordem sobrenatural que poderiam

advir de suas ações,87 os monarcas adquiririam uma vantagem simbólica a mais, além

daquela proporcionada pelos signos e pelas prerrogativas imperializantes, em seu

constante confronto físico e ideológico com concorrentes nobiliárquicos, dos quais

muitas vezes pouco se diferenciavam do ponto de vista socioeconômico.

Ao longo do século VII foi freqüente a convocação de reuniões conciliares em

que se discutiram temas que pouca ou nenhuma relação possuíam com as questões de

organização e disciplina da alta hierarquia da Igreja hispana. O conteúdo do último

cânone do IV (633) e de vários cânones do V e VI Concílios de Toledo, estes dois

últimos celebrados durante o reinado de Chintila (636-639), são anátemas contra os

usurpadores e aqueles que atentavam contra a vida ou a propriedade dos reis e de sua

família,88 podem ser considerados indicativos de que a posição dos reis de Toledo, de

Sisenando a Tulga (639-642), estava extremamente fragilizada e se via em estado de

contestação constante por parte de aristocratas rivais.

De acordo com a legislação civil e conciliar, a única via legítima de ascensão ao

trono para um aristocrata godo era a eleição por parte dos bispos e da nobreza palatina.

Daí que, embora alguns reis toledanos tenham tido êxito em ser imediatamente

sucedidos por seus próprios filhos ou parentes próximos nos séculos VI e VII,89 o que se

verificava era uma alternância de famílias reinantes rivais no poder, a qual por vezes foi 86 Para uma breve síntese dos elementos da chamada “teoria política isidoriana”, suas eventuais inconsistências e sua relação com o envolvimento do bispo hispalense nas disputas políticas entre os reis e aristocracia hispano-goda, cf. BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo XXI, 1992. p. 19-29. 87 Ibidem. p. 123-128. A elaboração de textos como a hagiografia Vita Desiderii, escrita pelo monarca Sisebuto (612-621), indica possivelmente que os próprios reis viam na incorporação da perspectiva eclesiástica a possibilidade de fortalecer-se politicamente. Yitzhak Hen atenta para o fato de que a compreensão da iniciativa literária de Sisebuto não pode restringir-se à “ideologia política” e à auto-promoção, tendo em vista que isto não exclui outros interesses de ordem religiosa ou intelectual. HEN, Yitzhak. op.cit. p. 136-139. 88 No V Concílio, vemos referência à questão nos cânones II-VIII (de um total de nove cânones). No VI Concílio, os cânones que se referem a ameaças à família ou aos direitos régios são os XII-XIV e XVI-XVIII (de um total de 19). Cf.: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 226-248. Thompson indica ainda que as atas do V Concílio não registram a presença de bispos da Narbonense e que, como apenas Chintila e Wamba não cunharam moedas naquela região, tal dado pode ser um indício de que as relações entre Toledo e a Gália visigoda nesse período já seriam tensas. THOMPSON, E. A. op.cit. p. 209. 89 Como teria sido o caso de Leovigildo, Recaredo, Sisebuto, Chintila, Chindasvinto, Ervigio e Egica.

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assegurada pela aristocracia por via de deposições violentas. Tal dado explica a

preocupação dos monarcas e de seus aliados não apenas com investidas golpistas de

aristocratas contra os detentores do poder régio, como também com o status dos

familiares destes após a sua morte, os quais poderiam ser alvos de iniciativas

persecutórias oriundas do grupo nobiliárquico que estivesse ocupando o trono na

ocasião.

O reinado de Chindasvinto (642-653), lembremos, foi marcado pelo reforço do

poder dos reis toledanos, embora com um alto custo para a aristocracia. Anos antes de

falecer, o monarca foi convencido pelo bispo Bráulio de Saragoça a associar ao trono

seu filho,90 Recesvinto, de tendência mais moderada, dividindo com ele as tarefas de

condução do reino.

Pouco tempo depois de passar a governar sozinho (a partir de 653), e após

sufocar uma rebelião nobiliárquica, Recesvinto convocou o VIII Concílio de Toledo, no

qual, dentre outras determinações, são abrandadas as punições previstas por leis

promulgadas por Chindasvinto contra rebeldes e usurpadores.91 Ressaltemos que o IV

Concílio de Toledo, presidido por Isidoro de Sevilha, convertera os atos de conjura

nobiliárquica contra o monarca em anátemas; o VIII Concílio, por sua vez, distinguiu-se

por ter dispensado uma atenção maior à questão dos abusos que poderiam ser cometidos

por reis contra seus súditos a partir de leis e juramentos iníquos feitos em nome de

Deus. Em outras palavras, os bispos e o monarca chegaram a um acordo quanto ao fato

de que o exercício do direito régio sagrado de julgar e punir só seria válido na medida

em que não excluísse a possibilidade da misericórdia.

É neste contexto que podemos inserir a Historia Wambae e a ação política de

seu autor, o bispo Julian de Toledo (642-690). Na época de redação da narrativa

Historia rebellionis Pauli adversus Wambam, o último quarto do século VII, os reis

toledanos prosseguiam enfrentando dificuldades cada vez mais acentuadas em fazer

valer a sua autoridade perante as autonomias aristocráticas. Lembramos que o rei

Wamba (672-680) viu-se obrigado a promulgar uma lei prevendo punição aos nobres e

bispos que não auxiliassem militarmente o monarca contra invasões estrangeiras ou

rebeldes usurpadores. O monarca seguinte, Ervigio (680-687), atenuou os efeitos da

90 Desde o reinado de Liuva, os monarcas visigodos com freqüência adotaram esta antiga prática imperial por meio da qual o governo era compartilhado entre o monarca e um ou mais indivíduos de sua escolha. 91 Cânone II. Concílio de Toledo VIII. In: VIVES, José (ed.). Op. cit.. p. 268-277.

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lei,92 alegando que os processos judiciais no reino não podiam mais ser concluídos

porque praticamente já não havia súditos aptos a prestar testemunho – tamanha a

quantidade de indivíduos punidos pela lei do seu antecessor.93

Julian de Toledo ascendeu ao cargo de bispo em 680, no final do reinado de

Wamba. Descendente de judeus convertidos, foi discípulo dos bispos Eugenio II de

Toledo (646-657) e Ildefonso de Toledo (657-667), ambos autores de uma produção

intelectual bastante significativa. O biógrafo de Julian, Félix, contabilizou um total de

17 obras produzidas pelo bispo, sendo que destas sobreviveram cópias reconhecíveis de

apenas cinco: o Prognosticum futuri saeculi, o Apologeticum de tribus capitulis, o De

sextae aetatis comprobatione,94 o Antikheimenon e a Historia Wambae regis.95 À

exceção da Historia Wambae, os textos de Julian são dedicados à síntese de debates

teológicos e à exegese bíblica, sendo o Prognosticum futuri saeculi a sua obra mais

difundida, influenciando inclusive na construção, em época posterior da Idade Média,

do imaginário sobre o purgatório.96

No que se refere à sua atuação política, Julian é apontado como um dos

articuladores do movimento que resultou na deposição de Wamba, em 680,97

confirmada no XII Concílio de Toledo (681),98 presidido pelo bispo toledano, e que

também determinou que todas as nomeações de bispos realizadas dali em diante teriam

de passar pelo crivo do arcebispo da capital visigoda e do rei. Tal determinação foi o

culminar de um processo, em curso desde princípios do século VII, de centralização da

autoridade episcopal hispana em torno de Toledo – processo favorecido pela

92 FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade...op.cit.. p. 427. 93 XII Concílio de Toledo. In: VIVES, José. op. cit. p. 383. 94 Para uma discussão sobre as tensões escatológicas relacionadas à produção desta obra por Julian de Toledo para o rei Ervigio, cf. GARCIA MORENO, Luis A. Expectativas milenaristas y escatológicas en la España Tardoantigua (ss. V-VII). Arqueologia, paleontologia y etnografia, Madrid, n.04, p. 249-258, 1998. p.251-254. 95 HILLGARTH, J. N. St. Julian of Toledo in the Middle Ages. Journal of Warburg and Courtauld Institutes, London, v.21, n.01/02, p. 7-26, 1958. p. 7-9. 96 Para um comentário sobre indícios da influência do texto de Julian de Toledo sobre autores da Idade Média Central, cf. GARCIA HERRERO, Gregório. Notas sobre el papel del Prognosticum Futuri Saeculi de Julian de Toledo en la evolución de la idea medieval del Purgatorio. Antiguedad y Cristianismo, Murcia, n.23, p.503-513, 2006. p. 510-512 97 A informação provém de fontes produzidas muito tempo depois dos eventos, no reino das Astúrias, e há dúvidas quanto à sua credibilidade, cf. MURPHY, Francis X. Julian of Toledo and the Fall of the Visigothic Kingdom in Spain. Speculum, Cambridge, v.27, n.01, p. 01-27, 1952. p. 17-19. 98 Julian de Toledo preside um total de quatro concílios toledanos: XII, XIII, XIV e XV. O XIII Concílio, como assinalamos previamente, determina o perdão aos envolvidos na rebelião de Paulo contra Wamba. No XIV e no XV, verificam-se cânones em que o episcopado peninsular decide tomar posição a respeito de debates cristológicos que opunham naquele momento o clero ocidental à Igreja bizantina. Cf. VIVES, José (ed.). op.cit. p. 380-474.

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proximidade com o centro político da monarquia visigoda.99 No que se refere ao

suposto envolvimento do prelado na deposição de Wamba, ainda que a veracidade da

versão que acusa Julian pela derrocada do monarca seja discutível, pode-se considerar

que, ao presidir o XII Concílio, redigir e assinar a sua ata, ele se alinhava com o teor

crítico contido nas referências desse concílio à atuação de Wamba quanto aos assuntos

eclesiásticos.

Ao fazer um relato estilizado dos acontecimentos que envolveram a ascensão de

Wamba ao trono e a repressão da rebelião liderada pelo duque Paulo na Gália visigoda

em sua Historia Wambae, o que Julian de Toledo nos apresentou foi uma contraposição

idealizada entre um soberano cristão legítimo e um tirano traidor, isto é, a história de

um nobre “piedoso” submetido às leis de seu reino, e preocupado em assegurar tanto a

paz quanto a justiça como rei, mesmo enfrentando dificuldades com súditos soberbos e

perjuros.

2. Análise documental A Vita Desiderii possui 22 parágrafos,100 ao longo dos quais são narrados a

juventude de Desidério (2); sua atuação frente à sede de Vienne (3); as primeiras

perseguições de aristocratas e reis ao santo (4); os milagres realizados durante o exílio a

que foi condenado (5-7); o castigo divino aos dois aristocratas envolvidos na

condenação conciliar do santo (8-9); o arrependimento e o pedido de perdão dos reis

(10); a volta de Desidério a Vienne, pondo fim ao sofrimento da população (11); novos

milagres (12-14); o derradeiro conflito entre o santo e os monarcas (15); a condenação e

execução do bispo a mando dos reis, aos quais a população de Vienne se opõe

veementemente (16-18); a morte de Teuderico, vítima de disenteria (19); a derrota

militar e morte de Brunequilda (20-21); a narração se encerra no parágrafo 22 com

referências a notícias de milagres que ocorriam junto ao túmulo do santo.

99 RIVAS GARCIA, Olga. La santa, el rey y el obispo: divinas dependencias en Toledo durante la Antiguedad Tardia. Arys: Antiguedad: religiones y sociedades, Huelva, n.04, p. 275-304, 2001. p. 293-295. 100 Reiteramos que a tradução que utilizamos como referência é a que consta de DIAZ Y DIAZ, Pedro Rafael. Tres biografías latino medievales de San Desiderio de Viena (traducción y notas). Fortunatae: Revista canaria de filología, cultura y humanidades clásicas, La Laguna. n. 05, p. 215-252, 1993. p. 223-236.

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A Historia Wambae possui um total de 30 parágrafos,101 ao longo dos quais são

narrados a eleição de Wamba após a morte de Recesvinto (2-3) e o seu ritual de

entronização em Toledo (4); as primeiras conjuras da aristocracia da Gália contra ele (5-

6), a ordem dada a Paulo para lutar contra os rebeldes e a decisão dele de se juntar aos

eles, sendo intitulado rei (7-8); a movimentação de Wamba e seu exército na direção da

região-base da revolta (9-10); os ataques de Paulo a cidades e bispos que recusavam

unir-se a rebelião (11); as primeiras vitórias de Wamba e a atitude de Paulo em

subestimar as forças leais ao soberano (12-16); Paulo perdendo o controle sobre seus

aliados e se despojando de suas insígnias reais (17-20); a conclusão da batalha com a

tomada dos últimos bastiões da revolta, a prisão de Paulo e seus aliados (21-25), após o

que Wamba inicia o reparo das cidades atacadas (26, 28) além de expulsar alguns

francos que teriam vindo auxiliar os revoltosos (27); e, por fim, a volta a Toledo, onde

Paulo e seus comparsas são submetidos à humilhação pública (29-30).

Com o fim de facilitar o procedimento de aproximação e comparação entre os

textos, estruturamos a exposição da análise a partir de quatro temas/contraposições

presentes em ambos os textos, a saber: 1) a oposição entre humildade, associada ao

compromisso com a Verdade, e falsidade, associada a Soberba; 2) a responsabilidade do

santo e do rei legítimo para com a conduta dos seus fiéis/súditos, contraposta a

disposição dos tiranos em corromper os seus, e associada a virtudes como clemência e

misericórdia; 3) as referências a eventos miraculosos associados a presença de

Desidério e de Wamba; e, por fim, 4) o modo como estes aspectos confluem na

afirmação da associação entre os bispos e os legítimos reis cristãos e a manutenção da

ordem e da paz na sociedade, a despeito da ameaça representada pelos tiranos.

2.1. Humildade e Verdade contra Soberba e Falsidade A referência mais explícita a demonstração de humildade por parte de Desidério

se localiza no parágrafo 3. Segundo ele, o santo, embora mostrasse claras evidências de

perfeição moral e capacidade intelectual desde a mais tenra juventude (par. 02), ao ser 101 Reiteramos que a edição e tradução da Historia Wambae Regis que aqui utilizamos é um corpus constituído de quatro textos: a Historia rebellionis Pauli adversus Wambam – na qual esta análise se deterá – a Epistola Pauli Perfidi, carta que Paulo teria endereçado a Wamba ainda durante o curso da rebelião, além da Insultatio vilis provinciae Galliae e do Iudicum in tyrannorum perfídia promulgatum. Os motivos que nos levaram a centrar nosso estudo no primeiro dos textos estão relacionados não apenas ao conteúdo como também a dúvidas levantadas pela historiografia com relação à autoria dos dois últimos, que não teriam sido escritos por Julian de Toledo. A tradução aqui utilizada foi extraída de DIAZ Y DIAZ, Pedro Rafael. Julian de Toledo: “Historia Del Rey Wamba” (Traducción y Notas). Florentina Iliberritana, Granada, n. 01, p. 89-114, 1990.

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convidado para ocupar o cargo de bispo por várias cidades, “tal como se leva a

comportar a humildade, assegurava pertinazmente que uma pessoa indigna como ele

não iria estar a altura de tão importante ministério”102. Logo após, o santo aceita tornar-

se bispo de Vienne, que “conseguiu merecer-lhe por bispo, não tanto por seu desejo

quando obrigado por numerosas instâncias”103.

Mais do que a reprodução de um topos, estas passagens chamam a atenção por

uma lacuna: não há qualquer referência a cargos eclesiásticos que Desidério houvesse

exercido antes de a sua “fama” atrair convites para ocupar sedes episcopais. Embora

não haja evidência a respeito do caso específico de Desidério de Vienne, Raymond Vam

Dam aponta para o fato de que desde o século IV membros da antiga aristocracia

senatorial romana viam na carreira eclesiástica uma alternativa de poder e status

semelhante a que constituíra outrora o exército ou o serviço público local.104 Assim, é

possível que Desidério tenha sido alçado ao cargo por influência familiar, já que

Sisebuto ressaltara previamente seu pertencimento a uma nobre linhagem romana (par.

2).

No segundo parágrafo da Historia Wambae,105 Julian de Toledo descreve uma

cerimônia de aclamação que teria ocorrido durante o funeral de Recesvinto, na qual

Wamba vem a ser escolhido pelos aristocratas presentes para suceder o rei morto e, após

hesitação, é coagido a aceitar o cargo. O ritual, de acordo com Suzanne Teillet, evoca a

tradição imperial, e a recusa seria condição fundamental para a legitimidade.106

Entretanto, tendo em vista a existência de uma cena semelhante na Vita

Desiderii, não se pode desconsiderar que o ritual pudesse ser revestido de um sentido

cristão, que permitisse ao público da obra pressupor a humildade como primeira virtude

do então futuro soberano visigodo. De fato, Leila Rodrigues identificara a humildade

entre as principais virtudes que o bispo Martinho de Braga recomendara ao monarca

suevo Miro (s. VI), apontando para o dado de que esta virtude, diferentemente da justiça

102 VD, 3: “qui reluctans tanti ministerii, ut se habet humilitas, imparem fore indignumque se fatebatur”. 103 VD, 3. Na edição latina de que dispomos, faz-se referência também a pedidos da população local: “Tandem no tam voluntarium, quam impulsum, multis praecibus exoptatum pontificem ecclesia Bienensis promeruit.” 104 VAN DAM, Raymond. Bishops and society. In: CASIDAY, Augustine; NORRIS, Frederick W. (ed.). The Cambridge History of Christianity. Volume 02: Constantine to c.600. Cambridge: Cambridge Univ., 2007. p. 344-350. 105 HW, 2. Para simplificar a redação, nos referiremos ao documento como Historia Wambae ou HW, ainda que a análise esteja centrada no relato da rebelião de Paulo (historia Excellentissimi Wambae Regis de expeditione et victoria, qua revelatem contra se provinciam Galliae celebri triumpho perdomuit), que é apenas uma parte do conjunto que o corpus conhecido como Historia Wambae agrega. 106 TEILLET, Suzanne. Des Goths a la nation gothique: les origines de l’idée de nation en Occident du Ve au VIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1984. p. 588.

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ou da prudência, não fazer parte do conjunto das virtudes denominadas cardeais,

valorizadas pela elite romana desde tempos anteriores à expansão do cristianismo. A

autora indica que o foco do discurso do bispo de Braga se voltava contra a influência

dos aduladores sobre a atuação do rei, apresentando o apoio dos bispos como alternativa

que evitaria que o monarca se afastasse do caminho da verdade.107 Podemos considerar

que interpretação semelhante é válida tanto para a Vita Desiderii quanto para a Historia

Wambae, ainda que a relação entre a postura humilde do bispo de Vienne, ou a do

legítimo rei dos visigodos, e a Verdade não seja, em princípio, explicitamente declarada.

Esta relação fica evidenciada não nas intenções atribuídas a estas personagens, mas por

meio das ações atribuídas aos seus adversários: em ambos os casos, os tiranos recorrem

à mentira e à falsidade para atingir seus objetivos.

Embora recebam menção em apenas um parágrafo (par. 04), dois episódios

associados, ambos de falso testemunho, têm particular relevo no desenvolvimento da

narrativa Vita Desiderii: a mentira vem a ser a primeira via por meio da qual adversários

do santo, sob influência do demônio e/ou dos maus monarcas, tentam e conseguem

atingi-lo. Primeiramente, um pestiferae mentis hominem desata a difamar o santo e, logo

em seguida, uma mulher chamada Justa, em associação com os monarcas Teuderico e

Brunequilda, acusa Desidério, perante um concílio, de tê-la estuprado. Sisebuto afirma

que, embora ninguém desse crédito às acusações, as autoridades eclesiásticas que

presidiam o concílio, obedecendo um esquema prévio, decidiram exilar o bispo.

Há que se considerar a caracterização que é feita de cada um dos personagens

envolvidos na situação: ao homem-difamador são associados termos como víbora

(vipereo) e venenoso (venenata); Teuderico é apresentado como estúpido (stultitiae

dignum); Brunequilda como “aliada mais fiel do mal, feitora das piores artes”

(fautricem pessimarum artium, malis amicissimam); e Justa por fim é descrita como

“Justa de nome e de ações iníqua...”, “de estirpe nobre e natureza disforme”

(...prosapiae nobilis, sed mente deformis [...] Iusta � ocábulo, turpis in acto...) etc.

Observa-se que a caracterização precede as ações protagonizadas pelas personagens, e

assim, as desqualifica e deslegitima por antecipação, a partir da condenação prévia

daqueles que as realizaram.

107 ROEDEL, Leila Rodrigues. Prudência, justiça e humildade: elementos marcantes no modelo de monarca presente nas obras dedicadas ao rei suevo. Revista de História, São Paulo, n.137, p. 9-24, 1997. p. 19-20.

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Na Historia Wambae, cenas descritas parágrafos 7, 8, 16 e 17 expõem a

principal estratégia de Paulo para angariar apoio à sua rebelião: novamente aqui, a

mentira. Aproveitando-se de uma circunstância em que a população já se encontrava em

situação de levante, o duque começa a difamar o soberano. Posteriormente, durante o

choque entre os seus aliados e os dele, mente novamente, acusando Wamba e a parcela

da aristocracia a ele aliada de não representar o valor guerreiro associado

tradicionalmente a estirpe gótica, informação que vêm a ser desmentida pelo êxito

posterior do exército a serviço do rei toledano em batalha.

É possível que Julian de Toledo que, lembremos, escreve a Historia Wambae

vários anos depois da deposição e do fim do reinado de Wamba, ocorridos em 680,

estivesse atribuindo a Paulo a difusão de questionamentos reais em relação ao valor

militar do já falecido monarca, questionamentos que a sua historia tinha, entre outros

propósitos, o de desmentir.

Outro aspecto que podemos ressaltar é que a acusação feita a Paulo neste ponto

corresponde a parte da argumentação que apresentava a ascensão de Wamba ao trono

como produto da vontade divina: apenas mentiras poderiam desqualificar alguém que

havia sido aprovado pela própria divindade.

Nos dois casos, o de Teuderico/Brunequilda e o de Paulo, a mentira dos tiranos

reforça o contraponto representado pelo santo e pelo rei legítimo, o caminho da Virtude

e da Legitimidade.

Por outro lado, a referência ao ritual romano associada à valorização da

humildade, representada como hesitação perante a possibilidade do poder, e que aparece

em ambos os documentos, aponta também para a preocupação atribuída a Desidério e a

Wamba de que a sua autoridade fosse fruto de merecimento e não de favorecimentos

pessoais. O que é particularmente claro no caso do monarca que, como indicaremos

adiante, dedica particular atenção à exigência de que sua ascensão ao trono fosse

afirmada pelo bispo de Toledo.

Olga Rivas Garcia demonstra como os bispos e monarcas toledanos, ao longo do

século VII, estiveram associados na promoção do culto da santa “patrona” da cidade, a

santa Leocádia, e o modo como essa devoção e o incremento de poder e prestígio que

ela acarretaria, favorecia interesses de uns e outros – ambos buscando supremacia frente

a pólos de poder rivais na Península.108 Que Julian atribua a Wamba o desejo de ser

108 RIVAS GARCIA, Olga. op. cit. p. 286-295. A autora aponta que a identificação entre a monarquia e o episcopado toledano, no que concerne ao empenho conjunto na promoção do culto à santa Leocádia, teria

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reconhecido e coroado pelo bispo de Toledo, apresentando esse aval como condição de

legitimidade, é dado que aponta para o avançado estágio em que se encontra a

associação entre monarquia e episcopado na urbs regia.

A identificação que passa a ser estabelecida, principalmente a partir do reinado

de Leovigildo, no século VI, entre a monarquia visigoda e a cidade Toledo, mais que

apresentar-se como mais uma das tentativas de filiar a autoridade régia visigótica à

tradição imperial romana,109 teve uma significativa repercussão na relação entre a

mesma monarquia e a sede episcopal toledana ao longo do século VII. Para os bispos de

Toledo, dos quais, lembremos, Julian foi o último dos representantes mais eminentes, o

fortalecimento da autoridade dos reis era fundamental para que a sua própria

preponderância sobre as demais sedes episcopais hispânicas se sustentasse. Para os reis,

associar-se a essa sede episcopal e fortalecê-la poderia ser uma forma de adquirir

controle sobre os bispos e respectivos centros urbanos que a ela se vinculassem

politicamente.

Daí não resultar casual nem a preocupação de Sisebuto em defender, na sua Vita

Desiderii, a tutela moral do episcopado sobre toda a comunidade dos fiéis, que era

subordinada aos reis, mas também os incluía, nem que Julian de Toledo, em sua

Historia Wambae, apresente o reconhecimento da ascensão de Wamba ao trono pelo

bispo toledano como um dos principais elementos que o distinguiam do tirano Paulo. A

similitude que encontramos entre as qualidades atribuídas ao santo bispo e ao

“religiosíssimo” príncipe nas duas narrativas tampouco são casuais, já que resultariam

não apenas do reconhecimento da existência de responsabilidades compartilhadas no

que concerne à salvação dos súditos, como demonstraremos adiante, mas também da

mútua dependência que, no reino visigodo, se estabeleceu entre a manutenção do poder

dos reis e do mesmo poder dos bispos em Toledo.

se iniciado justamente durante o reinado de Sisebuto, para desembocar, no XII Concílio de Toledo, realizado durante o episcopado de Julian, em que se registra a atribuição ao bispo da urbs regia do controle sobre as eleições episcopais que fossem na realizadas na Hispania a partir dali. 109 C. Brühl aponta que Toledo, em comparação com as residências régias francas ou com a capital lombarda, Pavia, era a que mais se assemelhava ao modelo de capital legado pelo Baixo Império Romano, dado evidenciado pela relação de prevalência, que se institucionaliza ao longo do século VII, de Toledo para com as demais sedes episcopais da Península Ibérica. Cf. BRÜHL, Carlrichard. Remarques sur les notions de « capitale » et de « résidence » pendant le haut Moyen Âge. Journal des savants, Paris, n. 4. p. 193-215, 1967. p. 201-207.

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2.2. Responsabilidade em corrigir os pecados e o dever da misericórdia Na Vita Desiderii, os parágrafos em que há menção a atuação do bispo no

sentido de corrigir a conduta dos fiéis são o 3 e o 15. No primeiro é descrita a atuação

do santo junto à população de Vienne: “afastou da ira o litigioso, da mentira o

embusteiro, da rapacidade o usurário, da dissolução o luxurioso”110.

Se a descrição neste caso parece vaga, no segundo, o alvo da ação do bispo são

os próprios monarcas, e a energia que se atribui a atuação de Desidério só não é maior

que a hostilidade com que os governantes reagem às críticas:

“o mártir de Deus, pontífice e custódio de suas iniqüidades, fez-se ouvir ao estilo dos profetas com o bramido da trombeta e se endereçou pessoalmente a corrigir seus extravios, a fim de fazer próprios de Deus a quem o Diabo havia tornado alheios”111

Em outras palavras, evidencia-se na pena de Sisebuto a associação à função

episcopal a tutela sobre a sociedade, inclusive o topo dela, representado pelos monarcas.

A estes últimos caberia a incumbência de favorecer a atuação dos bispos e, na medida

em que isso fosse necessário, assegurar eles mesmos a disciplina cristã no reino,

protegendo a Igreja até mesmo contra seus próprios membros, e usando a força para

obter o que os bispos não tinham como conseguir por meio das palavras.112

À atuação de Desidério é contraposta a postura tomada pelos dois monarcas

francos à frente do reino da Burgúndia: pecar ao invés de servir de exemplo, corromper

ao invés de corrigir.

A questão do incentivo ao pecado é bastante clara na passagem que descreve a

possessão da personagem Justa, que acusa Brunequilda de ter “com seu momentâneo

feitiço, arrastado-a à perdição, com seu odioso poder à morte e com suas ilusórias

promessas à condenação”113. Mas também aparece, ainda que de forma não tão

explícita, em passagens como aquela em que Teuderico é apresentado como “protetor”

do difamador de Desidério, um homem “ escravo de numerosos vícios e crimes”114.

110 VD, 3: “removit ab ira letigiosum, a mendositate fallacem, a rapacitate cupidum, a flagitiis libidinosum” 111 VD, 15: “Dei martyr malis inspector et pontifex more nempe prophetico elangore tubae personuit seseque totum pro depellendis erroribus eorum invexit, quatenus Deo faceret proprios quos fecerat diabulus alienos” 112 Princípio que também aparece exposto nas Sententiae de Isidoro. Cf. ISIDORO DE SEVILHA. Sent. III. 51.3-5. 113 VD, 9: “cuius persuasio me ad interitum fumea traxit; munus execrandurm ad mortem, promissio ad nullam peritura salutem.” 114 VD, 8: “multis vitiis criminibusque tenebatur obnoxia”

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Como já mencionamos, estudiosos apontam que o aristocrata que, juntamente à

personagem Justa na Vita Desiderii, aparece difamando Desidério e induzindo bispos

reunidos em um concílio a exilá-lo teve sua caracterização inspirada em duas pessoas

verídicas: o nobre franco Protadius, e o bispo Aridius de Lyon, que seria um inimigo

político de Desidério e provavelmente o verdadeiro responsável pelo seu assassinato.115

Fontaine suspeita que Sisebuto, ao não mencionar Aridius, pretendia evitar um mal-

estar na corte franca, onde o prelado possuía ainda considerável influência.116 Não

descartamos tal tese. Entretanto, consideramos ser fundamental observar também que

responsabilizar Teodorico e Brunequilda pela morte do bispo poderia não tratar-se

necessariamente de uma “deturpação dos fatos” por parte de Sisebuto, isto é, uma

tentativa de acusá-los deliberadamente por erros que não houvessem cometido. Na

realidade, receamos que a precisa origem das iniciativas persecutórias e da própria

ordem de execução contra Desidério não seria o aspecto mais relevante para o autor da

narrativa.

Defendemos esta hipótese tomando em consideração a argumentação contida nas

Sentenças de Isidoro de Sevilha, lembremos, um dos principais suportes teóricos de

Sisebuto para a redação de sua hagiografia,117 que apresenta como dever do soberano

não apenas a retidão moral pessoal, mas também a obrigação de assegurar a disciplina

de seus súditos.118 Desse modo, o rei teria de prestar contas a Deus não apenas dos seus

próprios pecados, mas também dos daqueles a quem governa.

Posto isto, é possível que fosse de menor importância para Sisebuto, ou para a

parcela do seu público que compartilhasse dos pressupostos isidorianos, se Brunequilda

e o neto teriam ou não ordenado diretamente o exílio e a posterior execução de

Desidério: eles seriam responsáveis por todos os pecados e sacrilégios que fossem

cometidos em seu reino, por iniciativa deles ou não. Mais ainda se eles, como a versão

de Sisebuto afirma, ao invés de punir os delitos, incentivavam ou protegiam os

pecadores. No entendimento de Sisebuto, sendo governantes, Brunequilda e Teodorico

115 MARTIN, José Carlos. Qvendam pestiferae mentis hominem, un personaje sin nombre de la Vita Desiderii. In: PEREZ GONZALEZ, Maurilio (org). Actas del I Congreso Nacional de Latin Medieval. Leon: Universidad de Leon, 1993, p. 307-313. p. 310. 116 FONTAINE, Jacques. King Sisebut’s Vita Desiderii and the political function of Visigothic Hagiography. In: JAMES, Edward (ed.). Visigothic Spain: new approaches. Oxford: Claredon, 1980, p. 93-129. p. 112, 116. 117 MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » e du « De uiris illustribus » d’Isidore de Séville. Hagiographica, Firenze, n. 7, p. 127-80, 2000. p. 134-139. 118 ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.50.6

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não deixariam de receber a punição divina mesmo que não tivessem de fato relação

direta com os eventos que culminaram na morte de Desidério, porque mesmo que não

tivessem pecado por ação, pecariam por omissão.119 Acusá-los de atuar diretamente no

assassinato do santo poderia ser menos uma tentativa de falsear a real natureza dos

eventos do que uma forma de reforçar a responsabilidade dos reis sobre os pecados e

crimes que eles incitam ou deixam de punir, com vistas a tornar mais evidente a relação

de causa e efeito entre a morte do bispo de Vienne e a derrota final de Brunequilda

perante Clotário II em 613.

Além da preocupação de corrigir, Desidério também se destaca pela capacidade

de perdoar. A atitude misericordiosa da parte do bispo de Vienne é narrada no parágrafo

10, quando Brunequilda e Teuderico se arrependem de ter tramado contra Desidério,

após seus cúmplices terem sido mortos pela justiça divina. Os monarcas o convocam e

suplicam pelo perdão e o santo, “comovido com seu sincero arrependimento”, os perdoa

sem maiores ressalvas.

Há que se considerar que outra das narrativas sobre a vida de Desidério,

anônima e produzida em Vienne já no século VIII, afirma que o exílio do bispo foi

revogado por decisão conciliar,120 não fazendo menção, portanto, a qualquer episódio

como o narrado por Sisebuto.

Podemos levantar hipóteses sobre os motivos que levaram o rei visigodo a

incluir esta cena, fosse ela verídica ou não, em sua hagiografia. Entendemos que a

intenção era reforçar o contraste entre a atitude generosa de Desidério em relação à

ofensa que os reis lhe fizeram, e a atitude desses reis quando o próprio Desidério lhes

ofende, com o propósito de corrigi-los (par. 15).

É preciso considerar as referências em que Teuderico e Brunequilda agem

nutridos por medo e arrependimento, juntos no parágrafo 10, e a rainha sozinha nutrindo

esses sentimentos no par. 20 – Teuderico já havia falecido a esta altura da narração. O

primeiro dos referidos parágrafos trata-se justamente daquele em que os dois se

aterrorizam após as mortes dos seus cúmplices, por obra da justiça divina e,

arrependidos, decidem solicitar o perdão do bispo.

No último, após a morte de Teuderico, Brunequilda “perdeu o sossego e inquieta

se atormentava interiormente por causa dos remorsos de consciência”121.

119 ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.45.3. 120 DIAZ Y DIAZ, Pedro Rafael. Três biografias latinas... op. cit. p. 241. 121 VD, 20: “Amissit perdita Brunigildis peritura solatia atque formidans torquebatur indice conscientia”

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Na primeira situação, o arrependimento foi fruto do temor em relação à justiça

divina, que já havia punido Justa e o homem difamador. Tal temor não impede que os

monarcas prossigam pecando até o momento em que condenam Desidério à morte após

terem seus pecados expostos publicamente pelo bispo.122 Na segunda situação, o

arrependimento não é suficiente para suscitar a misericórdia divina, e a rainha termina

brutalmente assassinada por um exército inimigo.

Assim, as referências ao medo e ao arrependimento dos monarcas não se

tratariam de atenuantes para as faltas que lhe foram atribuídas e sim uma evidência de

que sua escolha pelo caminho do pecado e do Vício havia sido consciente e deliberada,

a ponto de eles cometerem o mesmo erro – perseguir o santo – duas vezes.

Anteriormente, fizemos referência a passagem das Sententiae em que Isidoro de

Sevilha atenta para a responsabilidade do soberano pela conduta cristã e pelo rigor

moral dos súditos. Há que se destacar também o valor atribuído à misericórdia pelo

hispalense e, conforme já ressaltamos, pelas lideranças episcopais presentes nos

concílios visigóticos do século VII. Para eles, a misericórdia era uma virtude

fundamental ao exercício da Justiça, na medida em que evitasse que a severidade desta

se degenerasse em crueldade. Atribuir a Desidério o papel de perdoar os pecados

cometidos pelos monarcas também indica a adoção por Sisebuto da premissa que

atribuía ao bispo a tutela sobre a alma dos fiéis, fossem eles reis ou súditos. Entretanto,

a decisão dos reis de prosseguir pecando lhes trouxe como conseqüência a punição

divina, indicando para o público da hagiografia que a misericórdia, de Deus ou dos

santos, poderia ser conquistada com arrependimento sincero, mas a salvação só poderia

ser alcançada se ao arrependimento se seguisse uma mudança de hábitos em direção ao

caminho da Virtude.

Em episódio semelhante narrado por Gregório de Tours, e comentado por Kevin

Uhalde,123 o bispo Nicetius de Trier confronta um rei franco a respeito de seus próprios

pecados e dos de seus companheiros durante uma missa, tendo êxito em expor

publicamente a conduta do monarca por meio de denúncias proferidas por um homem

possuído pelo demônio. Lembremos que a personagem Justa da Vita Desiderii, fictícia

de acordo com investigações dos estudiosos, desempenha um papel muito semelhante,

acusando a rainha Brunequilda durante uma possessão, mas tendo tanto seu corpo

122 VD, 15. 123 UHALDE, Kevin. Proof and reproof: the judicial component of episcopal confrontation. Early Medieval Europe, Oxford, v.08, n.01, p. 01-11, 1999.

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quanto sua alma levados para o inferno pelo Diabo.124 Neste caso, como no de

Desidério, o poder de que o bispo carecia no domínio mundano era sobreposto por sua

autoridade moral e pela sua proximidade com a divindade, colocando-o acima dos

monarcas no domínio do sagrado e da salvação. Nenhum pecado escapa ao

conhecimento e ao juízo de Deus, logo, tampouco escaparia ao conhecimento e à

intervenção de um dos seus santos homens.

Estes princípios também aparecem expostos na Historia Wambae nos

parágrafos: 10, 22, 25, 26 e 28. No primeiro deles, o que tem destaque é a correção

moral, quando Wamba castiga membros do seu exército que estariam agredindo a

população no caminho para a batalha:

“Se eu não castigo esta depravação, me vou daqui preso. Chegarei até ser recebido no justo juízo de Deus, se, vendo a perversidade do povo, não a reprimo. De exemplo deve servir-me aquele sacerdote Eli, mencionado nas Sagradas Escrituras, quem, por não querer encrespar com seus filhos pela monstruosidade de seus atos, viu que morreram em combate e ele mesmo expirou depois de seus filhos, com o pescoço quebrado. Assim, pois, estas coisas devemos levar a sério e, portanto, se seguimos limpos de pecado, não haja dúvida de que obteremos o triunfo sobre o inimigo.”125

Em outras palavras, de acordo com Julian de Toledo, o rei demonstraria aqui a

consciência de sua própria subordinação a uma justiça superior, a divina, perante a qual

ele deveria se responsabilizar pela conduta dos seus súditos, caso ambicionasse a vitória

na guerra e, logo, sua própria manutenção no poder.

Nos parágrafos 22 e 25, justiça e misericórdia aparecem associados. No

primeiro, Wamba aparece comovido com as súplicas por misericórdia feitas pelos bispo

Argebado de Narbonne (parágrafo 21) e decide poupar a vida dos rebeldes. Mas é

preciso que se atente para a ressalva – que o rei aparece reiterando no parágrafo 25, já

perante os próprios rebeldes:

124 Cf. VD, 9. Gregório de Tours, segundo Uhalde, afirma que após ser libertado do demônio, o possuído de Trier desaparece da cidade. Cf. UHALDE, Kevin. Ibidem. p. 10. Pode-se considerar que, também neste caso, o “desaparecimento” tenha sido uma saída encontrada pelo autor para tornar crível a fala de uma personagem cuja existência não poderia ser comprovada pelos seus contemporâneos. 125 HW, 10: “Nam ego, si isto no vindico, iam ligatus hine vado. Ad hoc ergo vadam, ut iusto Dei iudicio capiar, si iniquitatem populi videns ise non puniam. Exemplum mihi praebere debet Eli sacerdos ille in divinis litteris agnitus, qui pro immanitate scelerum filios, quos increpare noluit, in bello concidisse audivit, ipse quoque filios sequens fractis cerbicibus expiravit. Haec igitur nobis timenda sunt, et ideo, si purgati maneamus a crimine, non dubium erit, quod triumphum eapiamus ex hoste.”

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“Não as destruirei [as almas que solicitou] com a espada da justiça, não derramarei hoje sangue de ninguém, nem tampouco tolherei a vida de ninguém, ainda que a ofensa destes tais não vá ficar impune” [grifo nosso]126

Pode-se observar que a passagem pressupõe uma espécie de debate entre os

adeptos de não uma, mas duas virtudes distintas: a misericórdia e a clemência.

Misericórdia, nas palavras de Isidoro de Sevilha, poderia ser definida simplesmente

como “compadecer-se da miséria alheia”,127 e que “aquele que julga com retidão leva na

mão uma balança, e em cada prato leva justiça e misericórdia”.128 Mas deve-se

considerar que o eminente autor clássico romano Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) distinguia

veementemente a misericórdia da clemência,129 defendendo que apenas esta última

poderia ser considerada uma verdadeira virtude para os governantes, fundamental ao

exercício da justiça. Para Sêneca, misericórdia era sinônimo de clemência sem critério,

já que era movida pela sensibilidade e não pela razão, ao ter em vista o sofrimento do

criminoso, não a gravidade do crime.130

No parágrafo 22, portanto, o que vemos é Wamba demonstrar clemência muito

mais do que a misericórdia a qual Julian chega a afirmar que o monarca seria

propenso.131 Mais do que a solidariedade humana evocada por Isidoro nas Sententiae, a

postura de Wamba se distinguiria pela preocupação com as faltas cometidas, ao invés de

focar apenas na atenuação da severidade das penas que seriam impostas aos rebeldes.

Por outro lado, em pelo menos 3 parágrafos (11, 12 e 17) Paulo e seus cúmplices

se vêem associados a demonstrações de medo e covardia e em dois deles (19 e 20),

quando as mentiras já não são suficientes para negar o valor de Wamba e seu exército, a

surpresa com a dificuldade dos combates dá lugar ao arrependimento. Termos como

126 HW, 22: “No illas ultore gládio perdam; non hodie cuiusquam sanguinem fundam nec quandoque vitam extingua, quam-quam talium offensa impunita non trauseat.” 127 ISIDORO DE SEVILHA.Sententiae.III.60.5. 128 Sententiae.III.52.4. 129 J. N. Hillgarth não menciona Sêneca entre as citações feitas por Julian de Toledo em suas obras, mas há que se considerar o peso que os autores clássicos greco-latinos possuíam na formação intelectual das elites romano-germânicas às quais a Igreja devia a maior parte dos seus altos quadros. Sêneca em particular exerceu profunda influência na literatura latina voltada ao tema da importância da clemência na atuação dos bons governantes. Para uma listagem das citações identificadas na obra de Julian de Toledo. Cf. HILLGARTH, J. N. Las fuentes de San Julian de Toledo. In: Anales Toledanos III – Estudios sobre la España visigoda. Toledo: Disputación Provincial, 1971. p. 113-118. 130 SÊNECA. De Clementia. Lib.II.Cap.4-7. A tradução utilizada como referência é a que consta de SÊNECA. A Clemência. São Paulo: Escala, 2007. p. 97-104. 131 HW, 21: “erat misericordiae visceribus affluens”

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“ilusão” (ludibrium) e “confusão” (confusioni) passam a ser utilizados pelos próprios

rebeldes para descrever sua iniciativa.132

Como no caso dos elementos associados à mentira, o objetivo de Julian de

Toledo seria apresentar a revolta como sendo uma iniciativa vã desde o princípio, uma

guerra que já teria começado perdida. A humildade do soberano legítimo, sua

submissão aos mandamentos divinos e às normas da Igreja, o mantiveram no caminho

da retidão e da Verdade, assegurando-lhe a vitória e o poder. A soberba e a deslealdade

dos seus súditos, por sua vez, conduziu-lhes apenas a um caminho de desatino e derrota.

Cabe destacar ainda que a acusação de traição é dirigida não apenas a Paulo, mas

ao conjunto da aristocracia da Gália, que se levanta contra o monarca antes mesmo de o

duque cogitá-lo. Os parágrafos 5 e 6 se voltam ao conjunto daquela facção nobiliárquica

e no 7º tem-se a iniciativa de Paulo de se unir ao movimento, estendendo-o até a

Tarraconense. Note-se que os termos dirigidos à grupo aristocrático galo-visigótico são

mais agressivos até do que os dirigidos, em princípio, àquele que se tornaria a principal

liderança do movimento de separação:

“Assim, pois, nos gloriosos tempos deste a terra das Gálias, ama da traição, se assinala pela infamante nota de engolir os membros perjuros por ela engendrados, corrompida por uma incomensurável febre de perjúrio. Pois que não era nela inumano e canalhesco, ali onde tinha sua sede um conselho de conjurados, o signo da traição, a obscenidade, a usura, a venalidade nos juízos e, o que é pior que tudo isso, um prostíbulo de judeus blasfemos contra nosso mesmíssimo Senhor e Salvador?”133 “Então Paulo transfigurado mentalmente em Saulo, com sua negativa em atuar em prol da lealdade, começou a obra contra a lealdade. Tentado pela ambição de poder, se despoja de repente de sua fidelidade, mancha a promessa de respeito feita ao religioso soberano, se esquece de seu dever para com a pátria”134

132 HW, 20. 133 HW, 5: “Huius igitur gloriosis temporibus Galliarum terra, sitrix perfidiae, infami denotatur elogio, quae utique inextimabili infidelitatis febre vexata genita a se infidelium depasceret membra. Quid enin no in illa erudele vel lubricum, ubi coniuratorum conciliabulum, perfidiae signum, obscenitas operum, fraus negotiorum, venale iudicium et quod peius his omnibus est, contra ipsum salvatorem nostrum et dominum Iudaerum blasfemantium prostibulum habebatur?” 134 HW, 7: “Sieque Paulus in Sauli mente conversus, dum pro fide noluit proficere, officere conatus est contra fidem. Regni ambitione illectus, spoliatur subito fide primssam religiosi principis masculat caritatem, praestationis oblibiscitur patriae”

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Podemos observar que, se no caso de Paulo, Julian apresenta suas motivações

como sendo puramente circunstanciais – ele “de repente” (subito) se despojou da sua

fidelidade – no caso da Gália, faz-se referência a outros conflitos entre monarquia e

aristocracia ocorridos ao longo do século VII, e nos quais a população dessa região se

via envolvida.

Que Julian tenha feito questão de destacar que a rebelião da Gália antecede a

participação do duque Paulo no processo é um dado que nos permite ver o discurso

presente na Historia Wambae como disposto a desqualificar não aquele indivíduo em

particular, mas todo um segmento nobiliárquico ao qual ele se viu associado durante

aqueles acontecimentos. Frighetto destaca o procedimento retórico ao qual o bispo

toledano se viu levado a recorrer para que a autoridade de Wamba permanecesse

representando o fruto de um consenso da estirpe gótica, a despeito do apoio aristocrático

maciço recebido por Paulo na Gália e na Tarraconense: dividir a gens gótica em duas,

uma gens hispana, valorosa e leal ao seu rei, e uma gens gala, traidora e perjura.135

Nos capítulos 26 e 28 da Historia Wambae, vemos Wamba, após o fim das

batalhas, ocupado com a restauração das cidades de Nîmes e Narbonne, que teriam sido

destruídas tanto pelos revoltosos e como pela repressão à revolta. Tais referências

também apontam para a associação da imagem do rei à clemência/misericórdia, já que

parte da população destas cidades se envolveu ativamente na revolta, mas indicam outro

aspecto da construção da imagem do monarca ideal: a idéia de que a monarquia seria o

centro e a base da ordem social, condição para a manutenção da segurança e da paz,

como discutiremos adiante.

Na preocupação de Julian em acentuar o dever da clemência, podemos distinguir

relações envolvendo as disputas políticas entre monarquia e grupos nobiliárquicos. A

reação aristocrática contra políticas coercitivas perpetradas por monarcas como

Chindasvinto ou o próprio Wamba podem ter induzido os ideólogos do reino, como

Julian e, antes dele, Isidoro de Sevilha,136 a pôr particular relevo à recomendação aos

monarcas de que seus súditos deveriam vê-los como protetores generosos, e não como

saqueadores ou algozes. Em outras palavras, ao apresentar como exemplar o perdão de

Wamba às cidades envolvidas na rebelião galo-visigoda, Julian provavelmente pretendia

135 FRIGHETTO, Renan. Memória, história e identidades: considerações a partir da Historia Wambae de Juliano de Toledo (século VII). Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.05, n.02, p. 50-73, 2011. p. 63. 136 Sobre as proximidades entre o discurso isidoriano e a obra de Julian, cf. GARCIA HERRERO, Gregorio. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antiguedad y cristianismo, Murcia, n. 08, p. 201-255, 1991. p 215.

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indicar, em consonância com disposições conciliares presentes no VIII, no XII e no XIII

Concílios de Toledo,137 que o exercício da justiça contra traidores podia ser sacrificado

ou ter seu peso atenuado nos casos em que sua prática intransigente pudesse resultar em

ameaça à paz e à harmonia entre reis e súditos.

O isolamento político progressivo, em fase adiantada nos tempos de Wamba,

tornaria ainda mais urgente a necessidade de os reis de Toledo procurarem preservar

tanto quanto possível a saúde de suas relações com a elite aristocrática.

Comparando as construções presentes nos dois textos, observamos que ao bispo

e ao rei cristão estão associados valores e competências semelhantes em relação à

sociedade ou à comunidade a eles subordinadas. Tanto Desidério quanto Wamba vêem-

se imbuídos de responsabilidade sobre a salvação de seus fiéis/súditos, e do dever de

atuar com justiça e clemência. Mas é preciso que se tenha em vista também as

diferenças.

No que concerne às responsabilidades sobre a salvação, o que se destaca na

hagiografia é a diluição das hierarquias mundanas que subordinavam os bispos ao poder

temporal dos reis quando fé e conduta cristã estivessem em questão. Na historia, o rei

assume a incumbência de dirigir os súditos no caminho da retidão, atento à relação de

subordinação existente entre a dignidade régia, recebida pelas mãos do bispo, e a

vontade divina.

Quanto a virtude e o exercício da justiça também percebemos distinções

significativas. Desidério tende à misericórdia: perdoa os reis, apesar da gravidade dos

pecados que cometeram. Wamba, por sua vez, poupa a vida dos rebeldes, mas não os

isenta de punição.

Há que se considerar aqui a possibilidade de a misericórdia precisar ser uma

virtude condicionada apenas no caso do rei, encarregado ele próprio da justiça terrena.

O santo opta pelo perdão irrestrito – ao que os monarcas retribuem pecando novamente

– deixando a justiça e a punição a cargo de Deus. Portanto, em que pesem a

aproximação entre a imagem do bispo e a imagem do rei na Vita Desiderii e na Historia

Wambae, as distintas competências atribuídas a ambos, neste caso em particular, se

fazem presentes.

137 Os dois últimos realizados no reinado imediatamente posterior ao de Wamba, sendo que no XIII Concílio, nobres que haviam se aliado a Paulo em sua rebelião foram anistiados.

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2.3. Manifestações divinas em favor do santo e do rei O principal elemento que distingue os homens santos na literatura hagiográfica é

a capacidade de produzir milagres em seu entorno. Ao longo da narrativa de Sisebuto,

Desidério produz ou desencadeia ao menos seis eventos miraculosos,138 a maioria de

cura. O próprio autor comenta no texto sobre quão fundamentais os milagres seriam

para determinar a credibilidade do santo quando, logo após narrar o primeiro

acontecimento miraculoso,139 afirma:

“Suficientemente, creio eu, evidenciou meu corrente estilo sobre suas milagrosas curas. Entretanto, para que um estilo elaborado não abra ao crítico a porta para a observância de uma excessiva concisão, me esforcei por resenhar nesta obra alguns episódios concretos com todo o esmero de que fui capaz.”140

Outro aspecto digno de nota consiste no fato de Desidério ter começado a

realizar milagres apenas após ser exilado. Consideramos provável que, diferentemente

do que defendera Eleonora Dell’Elicine em artigo recente,141 Sisebuto e Isidoro não

discordassem quanto ao princípio agostiniano segundo o qual milagres não só de nada

serviam para induzir uma fé que já estava provada, como vangloriar-se deles poderia ser

sinal de soberba. Desidério de Vienne, de acordo com o rei visigodo, passou a realizar

milagres durante e depois de cumprir punição por um crime que não teria cometido, isto

é, quando a sua fé e a sua idoneidade se viam contestadas.

A citação anterior também aponta para a intenção de Sisebuto de utilizar a

exposição dos milagres como recurso legitimador: de acordo com a narrativa, Desidério

destacou-se pelo seu confronto com governantes francos e antes disso sofrera sanções

conciliares. Conforme mencionamos anteriormente, estudiosos já demonstraram ser

pouco verossímil a procedência das acusações que o rei-hagiógrafo lança contra

Brunequilda e Teuderico de envolvimento nos conflitos e na morte de Desidério, mas há

outros relatos fazendo menção a problemas com outros membros do episcopado e às

críticas do bispo a Teuderico. Em outras palavras, é possível que, no momento em que

138 Narrados em VD, 5-7, 12-17. 139 Ao qual teriam se seguido outros, que são mencionados, mas não chegam a ser descritos. 140 VD, 6: “Sufficienter, ut opinor, de gratia sanitatum sermo generalis emieuit; sed ne concinnis oratio de nima brevitate ianuam praescurtandi obserando reeludat, specialiter quaedam quacumque potui continuation huic operi praenotandum studui.” 141 DELL’ELICINE, Eleonora. “Signum vel res”: la ponderación del milagro en la sociedad visigoda (589-711). Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre (En ligne). Auxerre, Hors série n. 02, 2008. Disponível em : http://cem.revues.org/index8932.html . Consultado em: 13/01/2009. par. 14-16.

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foi produzida a Vita Desiderii, o recém-falecido bispo de Vienne fosse uma personagem

muito mais controvertida no reino franco que os próprios Teuderico e Brunequilda,142

daí a necessidade de recorrer à menção de fatores de legitimação, como a realização de

milagres pelo santo ainda em vida.

No parágrafo 18 é descrita a execução de Desidério. Destacamos neste parágrafo

o trecho que evidencia a significação da morte em termos positivos, que se trata

justamente do comentário que encerra a cena:

“Deste modo, abandonando sua alma a matéria carnal e liberando-se de suas ataduras corporais, seu uniu vitoriosa à companhia dos astros siderais.”143

Os termos utilizados por Sisebuto denotam uma clara tentativa, recorrente no

textos hagiográficos voltados a descrição da passio dos mártires, de representar a vitória

dos santo sobre a morte: o corpo pode ser ferido, quebrado, dilacerado, mas a alma

permanece íntegra.144 Não se pode esquecer que os primeiros indivíduos reconhecidos e

venerados como santos no cristianismo vinham a ser os mártires, que se destacavam

dentre os demais fiéis justamente pelo mérito de, como Cristo, vencer a morte em nome

da fé, prodígio ao qual seus restos mortais deviam o poder de realizar milagres em torno

de si. Apresentar a morte de Desidério como martírio foi, portanto, outro modo

encontrado por Sisebuto de afirmar a santidade do bispo de Vienne e, logo, a

perversidade de seus algozes, rebaixados ao nível dos perseguidores dos primeiros

séculos da Igreja, numa época em que os defensores da fé cristã se viam triunfantes.

No caso da obra de Julian, outra via de valorização da virtude e da legitimidade a

que o bispo de Toledo recorreu na Historia Wambae foi a menção a eventos

miraculosos, sempre associados a pessoa de Wamba.

142 Janet Nelson inclusive indica a referência, em outros documentos, à existência de oposição popular ao bispo de Vienne, cf. NELSON, Janet L. Queens as Jezebels: Brunhild and Balthild in Merovingian History. In: ___. Politics and Ritual in Early Medieval Europe. London: Hambledon, 1986. p. 28. 143 VD, 18: “Qui cum animam exhalaret, idem arrepto viri beata fusto colla confregit. Sic carneam materiem anima deserns seseque a vinelis corporlibus exueos, victrix in astrigeris comitem comuiscuit auris.” 144 BROWN, Peter. The Cult of the Saints: its rise and function in Latin Christianity. Chicago: Univ. of Chicago, 1981. p. 83.

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As referências escolhidas para a análise são duas.145 A primeira diz respeito a um

prodígio que teria se dado durante a cerimônia em que se realizou a unção de Wamba,

em Toledo:

“Com efeito, em seguida, desde o alto da cabeça, de onde o óleo havia sido vertido, alçou-se em forma de coluna um vapor semelhante a fumaça e do mesmo sítio da cabeça viu-se voar uma abelha, sinal que constituía um presságio da felicidade que se aventurava.”146

A segunda se registra já no momento em que o exército a serviço de Wamba está

prestes a derrotar completamente seus adversários:

“Foi então quando se manifestou a divina proteção, mostrando-se com signos inequívocos, pois, segundo se conta, pareceu a um homem de país estrangeiro que o exército do piedoso soberano se achava protegido pelos anjos da guarda e que os próprios anjos levavam sobre o acampamento do mesmo exército os símbolos de sua proteção em seu vôo.”147

As duas referências citadas, apesar de breves, merecem contextualização. S.

Teillet já indicara que as duas cenas seriam inspiradas em passagens do Êxodo, na

Bíblia – o que reforçaria a leitura segundo a qual Julian de Toledo estaria apresentando

um paralelismo entre os reis de Toledo e os reis de Israel.148 Entretanto, sendo muitos os

milagres e prodígios bíblicos que poderiam ser mencionados, entendemos que é

necessário problematizar o sentido da escolha destes em particular.

O primeiro dos eventos, dentro de uma tipologia de eventos miraculosos, poderia

ser qualificado facilmente como “presságio/sinal”. Isso pode indicar a influência da

concepção de Gregório Magno (540-604) a respeito da função do milagre, “que é ser

145 Garcia Herrero apresenta as “coincidências” cronológicas apontadas por Julian entre, por exemplo, a data de coroação de Wamba e a data da derrota definitiva de Paulo, bem como as vitórias que se verificam após as ações virtuosas do monarca como um exemplo de manifestação do sobrenatural na narrativa. Cf. GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza...op. cit. p. 210. 146 HW, 4 147 HW, 23: “Ubi divina protectio evidentia signi ostentione monstrata est. visum est enim, ut fertur, cuidam externae gentis homini angelorum excubiis protectus religiosi principis exercitus esse angelosque iposos super castra ipsius exercitus volitatioue suae protectionis signa portendere” 148 TEILLET, Suzanne. op. cit. p. 602. Convém apontar que Julian de Toledo não é o primeiro intelectual eclesiástico a tecer esse paralelo: algumas décadas antes, na própria Península Ibérica, Isidoro de Sevilha, por exemplo, em suas Sententiae, exortava os monarcas a imitar o exemplo de humildade do rei Davi. Cf. ISIDORO DE SEVILHA.Sententiae.III.49. A caracterização de Wamba por Julian teria sido inspirada em Saul, o primeiro rei a ser ungido na Bíblia, mas que perde o poder em virtude de seus pecados. Para Garcia Herrero, esta seria uma evidência da distância temporal entre a Historia Wambae e os eventos que narra, já que denotaria um julgamento a posteriori voltado à figura de Wamba, o qual tomou algumas medidas contrárias aos interesses do bispo de Toledo durante seu reinado, além de ter perdido o trono por meio de uma deposição que ainda hoje é objeto de controvérsia historiográfica. Cf. GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio...op. cit. p. 190, 192.

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um sinal (signum), quer dizer, para Deus a ocasião de uma teofania e para o homem

uma lição ou um aviso”149. Na Historia Wambae, o sentido desta referência parece ser o

de reforçar a idéia de que a própria divindade referendava, no momento da unção do

novo monarca, todo o processo que o conduzira ao poder. A preocupação, manifesta por

Julian de Toledo nas passagens imediatamente anteriores do documento,150 de descrever

um processo de aclamação e coroação rigidamente regulamentar, também indicam a

intenção de desqualificar possíveis questionamentos quanto ao rigor dos procedimentos

políticos e formais que alçaram Wamba ao trono toledano. O que, lembremos, não pode

ser considerado indício, por si só, de que contestações à legitimidade de Wamba fossem

infundadas. Pois, como nos lembra Bernard Guenée, não era raro autores de crônicas e

histórias medievais transmitirem à posteridade, ao invés dos acontecimentos em si,

somente a lembrança do que eles deveriam ter sido.151

Sendo um presságio, a manifestação de Deus na cerimônia da unção de Wamba

referendava não apenas os atos políticos que a antecederam, mas também os que

estariam por vir. A descrição das ações de Wamba no combate a rebelião da Gália, da

sua atenção ao exercício das virtudes cristãs, paralelamente ao combate dos vícios de

seu próprio exército, e os sucessos militares que se seguem, visam demonstrar a

confirmação do “sinal” manifesto no momento da coroação.

A segunda das duas referências, em que anjos aparecem misturados ao exército

do rei, escoltando-o em direção aos inimigos, também tem um sentido particular.

Dionísio Perez Sanchez comenta que alusões a anjos eram presentes em muitos textos

produzidos no reino visigodo, o que sugeria uma metáfora que atrelava as hierarquias da

sociedade terrena às da sociedade celeste, com claros propósitos legitimadores.152 No

caso da HW em especial, é significativo que Julian apresente Wamba recebendo suporte

não apenas da sua própria corte, como também da corte celestial.

Dentro da própria Historia Wambae podemos encontrar alguns elementos que

podem nos ajudar a oferecer mais explicações para essa imagem. Assim que Wamba

aparece recebendo as primeiras informações sobre a movimentação de Paulo e seus

149 VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oficial; Bauru: Edusc, 2002. 2v. v2. p. 200. 150 HW, 2-3 151 GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean Claude. op. cit. v1. p. 531. 152PEREZ SANCHEZ, Dionisio. Poder político y dominación social: la función justificativa de los ángeles en el mundo visigodo. Studia historica. Historia Antigua, Salamanca, n.26, p. 187-217, 2008. p. 195, 209, 216-217.

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cúmplices na Gália,153 Julian o apresenta tendo que lidar com o fato de contar com um

reduzido contingente militar para combater a revolta. O bispo toledano afirma que a

decisão de Wamba de marchar em direção à Gália com poucos homens teria sido uma

opção do próprio rei, interessado em, desse modo, demonstrar aos rebeldes e aos francos

que lhes apoiavam o valor guerreiro de seus leais súditos.

Porém, deve-se levar em consideração o dado de que Wamba, algum tempo

depois de sufocada a rebelião de Paulo, viu necessidade de instituir uma lei que

estabelecia pesadas punições a aristocratas que recusassem auxílio militar ao rei, fosse

no combate a revoltas internas ou incursões estrangeiras.154 A lei falha em cumprir com

seus objetivos, ao que tudo indica, já que o sucessor de Wamba, Ervigio (680-686), no

XII Concilio de Toledo, se sente obrigado a atenuar as punições atribuídas pela

legislação tendo em vista que os processos judiciais não progrediam no reino, tamanha a

quantidade de indivíduos impedidos de testemunhar em juízo.155

Assim, podemos compreender a escolha de Julian em mencionar, do modo como

o fez, o suporte divino ao exército do rei toledano como parte de uma estratégia

discursiva que convertia o dado negativo que era a provável inferioridade numérica do

exército que apoiava Wamba em dado positivo. Primeiramente, apresentando a decisão

do rei de avançar contra o inimigo com os homens que tinha a disposição como uma

demonstração de coragem, ao invés de falta de alternativas; posteriormente, indicando

que um soberano devidamente eleito por Deus estava sempre em posição de vantagem:

se a lógica natural das coisas anunciava a derrota, a vontade divina e a assistência da

corte celestial assegurariam que a razão e a vitória mantivessem-se sempre do lado

certo. 156

Mais que isso: Julian de Toledo oferece um argumento que se pretendia capaz de

invalidar as pretensões de setores nobiliárquicos que contestassem a autoridade do

153 HW, 9 154 Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989. p. 172-173. e COLLINS, Roger. op. cit. p. 101-102. 155 XII Concílio de Toledo. In: VIVES, José (ed.). op.cit.. p. 383. Algum tempo depois, no XIII Concílio toledano, indivíduos que participaram da rebelião de Paulo foram até mesmo perdoados e realocados em suas posições, em posse de suas antigas propriedades. Para uma avaliação das implicações de tais medida durante o reinado de Ervigio, cf. FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade...op.cit. 156 Lembrando que a leitura de Gregório Garcia Herrero também identifica lógica semelhante no texto, que para ele estaria associada à época de redação do texto, o reinado de Egica, marcado por conflitos militares intensos, inclusive com os francos, acusados de apoiar Paulo na Historia Wambae. O estudioso considera que o objetivo de Julian de Toledo seria incentivar a nobreza que estaria lutando ao lado de Egica contra seus inimigos. GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio y la fecha de composición de la Historia Wambae de Julian de Toledo. Arqueologia, paleontologia y etnografia, Madrid, n.04, p. 187-213, 1998. p. 199-200.

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monarca no plano econômico ou militar. Atribuindo à autoridade dos reis toledanos

suportes e implicações que transcendiam os vínculos e disputas que perpassavam a

sociedade hispanovisigoda, o autor pretende demonstrar que a centralidade e

prevalência do poder dos reis e a unidade do regnum a eles subordinado dependia de

fatores alheios às forças políticas os quais, concreta e presentemente, colocavam sua

existência em xeque a todo momento.

2.4. Manutenção da ordem, da paz e da legalidade contra a violência e a desagregação

Os temas e oposições figurativas presentes nos textos analisados até aqui se

encontram intimamente relacionados: humildade, correção moral e ligação com o divino

– contrapostos à mentira, ao pecado e à infidelidade, esta descrita como sacrilégio.

Todos estes aspectos confluem para a afirmação de um princípio maior, agregado a

presença e atuação de um santo bispo e de um rei legítimo e piedoso: o princípio da

ordem, da lei e da paz, finalidade última da existência dos poderes seculares. À ação

tirânica que contesta a existência dessas instâncias – a da virtude do bispo ou a da

lealdade ao rei – associam-se imagens opostas: desagregação, caos e violência.

No texto da Vita Desiderii, há três passagens em que atitudes consideradas

abusivas ou pecaminosas da parte de indivíduos em posição de poder (monarcas,

aristocrata) levam à reação de subordinados contra ou em prejuízo deles.

Na primeira, no parágrafo 8, o homem-difamador do santo é assassinado por

uma turba de burgúndios indignados com seus crimes, maldade, calúnias e ambição.157

Na segunda passagem, tendo em vista que Teuderico e Brunequilda:

“não pareciam emendar-se e sim piorar, e mais punham a perder que governavam, tomados por vícios e voltando a reincidir no pecado do perjúrio e, fazendo caso omisso dos propósitos do sacramento, não procuravam com sacrílega intenção cessar em sua perfídia nem deixar de persistir em seus crimes e ações”158

Desidério se coloca veementemente contra a postura dos monarcas, o que gera

da parte de ambos uma reação agressiva e uma condenação à morte.

157 VD, 8: “proprium illi tamen tinter nefanda scelera cupiditas opum et criminatio fuit” 158 VD, 15: “Cum nos prodesse, sed obesse, et magie perdere quam regere Theudericus pariter et Brunigildis vitiis cernerentur infestis, atque labem periurii reserati et foedera sacramenti deserti, mente sacrílega perfidi ad non esse pertenderente, nec quippiam de flagitiis vel facinus remaneret”

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Na terceira e última passagem, no par. 20, quando Brunequilda decide entrar em

guerra com um povo vizinho, os guerreiros a seu serviço são tomados por “temor a

Deus”159 e fogem do campo de batalha covardemente, levando a rainha a terminar

capturada pelo inimigo.

Dois aspectos devem ser considerados quanto às cenas acima citadas.

Novamente podemos recorrer às Sententiae de Isidoro, e afirmar que Sisebuto

reconhecia, então, o princípio segundo o qual “rex eris si recte facias, si non facias non

eris”160, em outras palavras, que um exercício incorreto do poder político poderia, em

última instância, acarretar na perda deste poder. Note-se que, nos três casos assinalados,

os atos de rebelião ou de deserção dos súditos são atribuídos não ao seu próprio

interesse, mas à vontade divina ou o temor à Deus. Em outras palavras, o autor da

hagiografia ainda endossa o pensamento isidoriano, contrário à sublevação de súditos

contra soberanos,161 já que a referência à ação divina evidencia que o suporte póstumo

que Sisebuto oferece a Desidério em seu conflito com os governantes da Burgúndia

franca não implicaria necessariamente em um endosso do rei visigodo à rebelião

política, ainda que esta fosse revestida de uma orientação moralizante.

Já nos parágrafos 6, 8, 12 e 19 da Historia Wambae, vemos a rebelião ser

associada a abusos (ex.: mentiras e agressões que Paulo comete contra aqueles que se

opõem à sua tirania no par. 08) e ao desencadear da desordem, da violência generalizada

e da destruição das províncias e dos grupos e indivíduos envolvidos.

Tais referências vêem a reforçar o contraste entre legitimidade e ilegitimidade, já

que, como veremos posteriormente, a presença e atuação de Wamba são associados aos

efeitos opostos, na medida em que o rei se destaca pela capacidade de trazer ordem,

coesão e pelo seu interesse na manutenção da paz.

Os parágrafos em que se narram as vitórias do lado de Wamba correspondem

naturalmente a derrota do lado adversário. Os parágrafos a que nos referimos neste item

da análise (18-20, 27 e 30) se diferenciam pelo foco no enfraquecimento, na

desorganização e na humilhação dos revoltosos, com destaque particular para a

cerimônia triunfal que tem lugar em Toledo, em que a pompa do monarca legítimo

Wamba é contraposta aos signos de ridicularização que ornam o tirano Paulo e os

demais rebeldes sobreviventes.

159 VD, 20: “divinae siquidem terror partem pessimae mulieris invasit” 160 ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III.48.7. 161 ISIDORO DE SEVILHA. Sent.III. 48.11.

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As associações a atuação do bispo de Vienne, na Vita Desiderii, e do rei

toledano, na Historia Wambae, são opostas a estas.

Dois parágrafos da Vita denotam uma relação de dependência estabelecida entre

o bispo e os fiéis de sua diocese. No primeiro deles, o par. 11, narra-se o retorno de

Desidério a Vienne após a revogação de sua pena de exílio, e as conseqüências dele:

“ao compadecer-se o Senhor pela simples presença do seu santo varão, pôs fim às penúris por desastres naturais, às frequentes epidemias de peste e às turbulentas revoltas de toda a cidade, que sem dúvidas, enquanto o pastor foi apartado de seu rebanho, foram ocasionados por sua ausência.”162

O segundo por sua vez descreve uma cena imediatamente posterior à

condenação de Desidério à morte, e anterior à sua execução, quando os fiéis de Vienne

se mostram desesperados perante a perspectiva de perder o seu bispo, dizendo:

“Não nos jogues, por Deus, às bocas dos lobos; não permitas que nós, tuas ovelhas alimentadas até agora como o delicioso néctar das flores, nos desgarremos entre abrolhos afiados nem espinhosos cardos só porque o pastor descuidou de sua vigilância”163.

Observamos dois elementos que marcavam a relação entre comunidade e

homem santo no discurso hagiográfico: na primeira passagem, a presença do santo

representa um fator de manutenção e afirmação da ordem, uma ordem que é ao mesmo

tempo natural e sobrenatural, porque subordinada à vontade divina; na segunda,

podemos identificar elementos da relação que Santiago Castellanos denomina

patronatus caelestis,164 e que, neste caso, antecede a própria morte do santo.

Também nos parágrafos 2, 9, 12-15, 17, 24, 26 e 28 da Historia Wambae, o rei

Wamba é representado como um fator de coesão e ordem, seja para o seu exército, seja

para o reino como um todo.

162 VD, 11: “nam calamitatum penurias et erebras pestiletiae clades insolentesque totius urbis procellae sancti viri praesentia, Domino miserante suspendit, quas indubie, remoto pastore, causa eius absentiae praessit.” 163 VD, 17: “Ne, quaesumus, luporum nos in faucibus mittas; ne oves tuae hactenus nectareis floribus suabitate refectae mordacibus tribulis vepribusque falcatis laniemur, minus procurante pontifice!” 164 CASTELLANOS, Santiago. Conflitos entre la autoridad y el hombre santo. Hacia el control oficial del Patronatus Caelestis en la Hispania visigoda. Brocar, Logroño, n. 20, p. 77-89, 1996. p. 83.

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Podemos fazer uma subdivisão nesta categoria de referências a fim de distinguir

as que se referem ao exército em batalha (9, 13-15, 17 e 24) e aquelas que podem se

voltar a um conjunto social mais amplo (2, 12, 26 e 28).

Uma primeira consideração a respeito destas passagens pode atentar para o

direcionamento mais claro da obra: a condenação de uma iniciativa separatista

protagonizada por certo segmento da aristocracia visigótica. Este aspecto nos permite

explicar a ênfase de Julian de Toledo nas habilidades de ordem e comando do monarca,

que teria o fim de reforçar a imputabilidade dos rebeldes tanto por sua iniciativa quanto

pela sua derrota: diferentemente do que Paulo alegara,165 Wamba seria um exímio

comandante militar,166 os guerreiros ao seu serviço seriam bravos e corajosos e tornar-

se-iam mais ainda em função da atuação de seu líder,167 e por fim, o monarca devia o

seu poder a uma escolha consensual da elite visigótica,168 e à própria aprovação

divina.169 Assim, apenas o desatino170 e os vícios171 dos revoltosos poderiam tê-los

motivado a dar início e patrocínio à sua empreitada.

Mas outro dado importante ressaltado por Julian é que o monarca não apenas é

apresentado como aquele capaz de unir os seus súditos, mas também zelar pela paz e

pela solução não-violenta dos conflitos. Mencionamos anteriormente a atuação

misericordiosa/clemente do monarca com relação aos rebeldes e às populações das

cidades envolvidas na revolta. A misericórdia era considerada pelos autores

eclesiásticos um elemento do bom exercício da justiça, mas principalmente uma

condição para a manutenção da paz, já que pressupunha o direito do soberano de usar de

violência contra os súditos, mas nunca mais que o necessário para corrigi-los, e sempre

menos que o suficiente para ameaçar todos os súditos.172

Podemos notar a influência das diretrizes episcopais no que se refere à conduta

dos reis e ao dever da clemência e distinguir relações envolvendo as disputas políticas

entre monarquia e grupos nobiliárquicos. A reação aristocrática contra políticas

coercitivas perpetradas por monarcas como Chindasvinto ou o próprio Wamba podem

165 HW, 16. 166 HW, 10, 15, 24. 167 HW, 9, 10, 13-14, 17. 168 HW, 2. 169 HW, 4, 23. 170 HW, 17, 19-20, 25. 171 HW, 5-7. 172 Cf. ISIDORO DE SEVILHA. Sententiae. III. 50.1, 52.4, 53.1. e, antes dele, SÊNECA. De Clementia. Lib.I. Cap.2, 5.

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ter induzido os ideólogos do reino, como Julian e, antes dele, Isidoro de Sevilha,173 a

pôr particular relevo à recomendação aos monarcas de que seus súditos deveriam vê-los

como protetores generosos, e não como saqueadores ou algozes. Em outras palavras, ao

apresentar como exemplar o perdão de Wamba às cidades envolvidas na rebelião galo-

visigoda, Julian provavelmente pretendia indicar, em consonância com disposições

conciliares presentes no VIII, no XII e no XIII Concílios de Toledo,174 que o exercício

da justiça contra traidores podia ser sacrificado ou ter seu peso atenuado nos casos em

que sua prática intransigente pudesse resultar em ameaça à paz e à harmonia entre reis e

súditos.

Há que se destacar ainda, na Historia Wambae, o acento conferido pelo autor à

questão da legalidade. Novamente, temos aqui o registro do modo como a redação da

Historia Wambae estava intimamente relacionada a um contexto de contestação da

autoridade política da monarquia toledana. A dimensão da legalidade não se encontra

ausente da Vita Desiderii, como bem lembrou Rachel Stocking, mas na hagiografia essa

dimensão é representada em seu viés negativo, que é o do abuso do poder sobre a

atividade conciliar, judicial e legislativa.175 Mas tal como o autor da Historia Wambae,

Sisebuto parte do pressuposto de que o que define e distingue a legítima autoridade

régia cristã não é a dimensão dos seus poderes, mas como e em prol de que causa eles

são utilizados.176 O autor da Vita Desiderii, como ressaltamos anteriormente, teve um

reinado marcado pelas suas interferências na organização episcopal, interferências do

mesmo gênero que aquelas responsáveis pelas divergências entre Wamba e o

episcopado ibérico, expostas no XII Concílio de Toledo, realizado após a deposição do

monarca e presidido por Julian.

Avaliando o teor da Vita Desiderii e da Historia Wambae, pode-se concluir que

Sisebuto e Julian de Toledo se aproximavam no que diz respeito à idéia de que um

“abuso de poder” ou o “exercício correto do poder” da parte dos monarcas se definiam

de acordo com o nível de adesão ou de afastamento desses em relação aos princípios

cristãos. Mas analisando a atuação política de cada um a frente de reino ou do

arcebispado de Toledo, respectivamente, podemos perceber que o rei-hagiógrafo e o

173 Sobre as proximidades entre o discurso isidoriano e a obra de Julian, cf. GARCIA HERRERO, Gregorio. Julian de Toledo y la realeza...op.cit. p 215. 174 Lembrando que os dois últimos foram realizados no reinado imediatamente posterior ao de Wamba, sendo que no XIII Concílio, nobres que haviam se aliado a Paulo em sua rebelião foram anistiados. 175 STOCKING, Rachel L. op. cit. p. 127. 176 “Sisebut, however, criticized those evil rulers not for their meddling but for their motives, and particularly for their methods.” Cf., Ibidem. p.128.

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bispo-historiador se distinguiam sobre em que medida consideravam, ou não, a extensão

dos poderes dos monarcas um aspecto capaz de tornar sua atuação abusiva. Este dado

permite que concordemos com a tese de que a construção do personagem Wamba na

Historia Wambae está menos relacionada com ações e qualidades que Julian de Toledo

efetivamente atribuísse ao monarca Wamba, do que com a tentativa de concretizar um

ideal de rei cristão, personificando-o na forma de um ator histórico conhecido e, por

isso, capaz de conferir àquela representação um maior grau de verossimilhança.

O foco de Julian na Historia Wambae é definir o rei legítimo em função do

cumprimento estrito da legislação civil e conciliar e dos acordos políticos tecidos pela

monarquia. Os pontos do texto em que Julian ressalta a preocupação de Wamba com o

estrito cumprimento da legislação aparecem nos parágrafos 3 e 27. No primeiro deles,

após a aclamação pela aristocracia durante o funeral de Recesvinto, Wamba faz questão

de ser oficialmente entronizado como rei em Toledo, pelas mãos do bispo da cidade,

“para que não se pensasse que, cego por uma repentina ambição de poder, havia

usurpado ou roubado, e sim que havia recebido do Senhor o signo de tamanha

honra”177. No segundo parágrafo mencionado, Wamba cita um pacto entre godos e

francos como razão para evitar maiores hostilidades contra o povo vizinho, ainda que

este, de acordo com a narrativa, contasse com súditos sendo presos junto aos

participantes da revolta.

A primeira das referências nos parece claramente um recurso que visava tanto

rebater eventuais questionamentos a respeito do processo que conduzira Wamba ao

poder após a morte de Recesvinto, quanto tornar ainda mais patente o caráter ilegítimo

da rebelião liderada pela aristocracia galo-visigótica, por meio do contraste entre a

postura de Wamba e aquela do duque Paulo que, “tentado por ambição de poder, se

despoja de repente de sua fidelidade, mancha promessa de respeito feita ao poderoso

soberano, se esquece de seu dever para com a pátria...”178.

Além disto, há que se considerar o discurso atribuído a Wamba com relação à

importância de o novo rei ser coroado em Toledo, pelo bispo de Toledo. Trata-se de

uma clara afirmação da supremacia do segmento palaciano da elite aristocrática e

episcopal no que tange aos processos sucessórios e decisórios no regnum. Supremacia

contra a qual movimentos como o liderado por Paulo constituíam um sério desafio.

177 HW, 3: “scilicet ne, citata regni ambitione permotus, usurpasse potius vel furasse quam percepisse a Domino signum tantae gloriae putaretur.” 178 HW, 7: “Regni ambitione illectus, spoliator subito fide. Promissam religiosi principis maculat caritatem, praestationis oblibiscitur patriae…”

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No que tange a referência ao pacto de paz entre francos e godos, Gregório Garcia

Herrero defende que a Historia Wambae teria sido produzida em um momento de

animosidade entre as duas elites romano-bárbaras. Considerando remota possibilidade

de os francos terem efetivamente auxiliado Paulo e seus cúmplices e a menção a

existência de um acordo de paz entre os dois povos em vigor nos tempos de Wamba, a

única explicação para que os francos tenham sido inseridos nos acontecimentos por

Julian, e sempre de forma a ressaltar sua inferioridade em relação aos godos, seria a

existência de uma animosidade atual, isto é, no momento de composição da narrativa.179

Já Renan Frighetto, defendendo uma datação anterior para a obra (que, para ele, teria

sido escrita entre 673 e 683), lembra que, pouco antes do período em que Wamba e

Paulo se enfrentaram, ocorrera no reino franco uma rebelião nobiliárquica contra o rei

Clotário III da Nêustria e seu prefeito Ebroin, protagonizada por ninguém menos que o

duque Lupo mencionado por Julian de Toledo como um apoiador da rebelião da Gália

visigoda.180

Endossamos a hipótese de Garcia Herrero, bem como a datação que o autor

propõe para a obra. Entretanto, não desconsideramos o valor da menção de Julian a

Lupo e a coincidência apontada por Frighetto. Em nosso entendimento ela mais

favorece a tese do espanhol do que a contradiz. Isto porque, havendo um pacto de não-

agressão entre visigodos e francos vigorando durante o reinado de Wamba, mas

havendo também o interesse da parte do bispo toledano em reforçar a vinculação da

rebelião de Paulo a grupos e interesses externos ao regnum visigótico,181 faria sentido

que Julian de Toledo visse como solução associar os rebeldes da Gália visigoda a

francos que estivessem em situação de insubordinação para com o rei dos francos. Neste

caso, o envolvimento destes aristocratas estrangeiros não implicaria na existência de um

conflito entre os reinos.

No mais, ao mencionar a postura prudente do monarca visigodo, em honrar o

acordo de paz apesar da presença de francos na revolta, o bispo toledano acentuaria

ainda o compromisso de Wamba com a manutenção da paz no reino.

Observamos, no caso da Vita Desiderii, que o bispo de Vienne aparece

questionando os monarcas, mas que este ato não poderia ser revestido do mesmo

179 GARCIA HERRERO, Gregório. Sobre la autoria de la Insultatio...op. cit. p. 197-198 180 FRIGHETTO, Renan. Memória, história…op. cit. p. 61. 181 Sobre a dimensão simbólica das referências às fronteiras do reino visigodo e aos contatos entre membros da elite nobiliárquica com povos estrangeiros, cf. MARTIN, Céline. “In Confinio Externis Gentibus”: La percepción de la frontera en el reino visigodo. Studia Historica. Historia Antigua, Salamanca, n. 16, p. 267-280, 1998. p. 279.

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sentido que o da rebelião de Paulo na Historia Wambae, já que o bispo se levanta não

na qualidade de mero súdito, ainda que ele seja julgado pelos monarcas como tal, mas

de representante de uma instância superior, a do Juízo Divino. Logo, dentro dessa

lógica, é o bispo quem representa a ordem, não os reis, que perdem a posição capital

que lhes foi atribuída na comunidade dos fiéis com a dignidade régia ao adotar uma

postura pecaminosa.

No caso da Historia Wambae, cabe atentar para a relação excludente que o autor

da historia estabelece entre atos de contestação nobiliárquica e o regnum. Em outras

palavras, tratar-se-ia de apresentar a submissão à autoridade do rei toledano como

condição não apenas para a manutenção da integridade daquela sociedade, entendida

como um todo, mas também para preservar a própria identificação do indivíduo com a

gens gothorum, aí referida restritamente como gens spana.

Em ambos os textos, por outro lado, pode-se identificar o atrelamento entre

dimensões políticas e religiosas do exercício do poder régio e do poder eclesiástico.

Virtude e Legalidade são apresentados como sustentáculos indissociáveis de uma única

ordem, dentro da ideologia que permeia os discursos produzidos pela monarquia ou em

prol dela, discursos dos quais os elementos selecionados da Vita Desiderii e da Historia

Wambae aqui analisados constituem-se em exemplos muito peculiares.

Em suma, iniciamos este capítulo com uma exposição de aspectos concernentes

às relações de poder no reino visigodo, a qual foi dividida em três eixos. No primeiro,

analisamos o processo de institucionalização da monarquia visigoda toledana em fins do

século VI – que culmina na conversão do rei Recaredo em 589 e a cristianização dos

princípios de autoridade régia que daí se segue. Em seguida, tratamos da obra de Isidoro

de Sevilha e da sua relação política e intelectual com o monarca Sisebuto, autor de um

dos nossos documentos. Por fim, apresentamos as rebeliões nobiliárquicas registradas

no reino ao longo do século VII, bem como a reação dos reis associados ao episcopado

toledano contra esses movimentos e as contradições que eventualmente se revelaram na

relação entre monarquia e hierarquia eclesiástica naquele processo. Observamos que,

mais que propriamente eliminar as contestações da aristocracia contra a centralização

política e a preeminência dos reis toledanos e suas famílias em detrimento de seus pares

nobiliárquicos, a cristianização dos princípios de autoridade régia no reino visigodo

vem re-elaborar o sentido que monarquia e Igreja buscam atribuir a essas associações,

conflitos e dissidências.

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Este ponto é corroborado pelos dados obtidos em nossa análise da Vita Desiderii

e da Historia Wambae. A afirmação da humildade associa-se a preocupação em

assegurar os critérios de ascensão de bispos e monarcas ao poder. Manifestações divinas

em favor de santo e rei, descritas na hagiografia e na historia respectivamente,

aparecem para reforçar o vínculo desse santo e desse rei àquele considerado, no

pensamento cristão, como a fonte de toda forma de poder legítimo: Deus e sua graça. A

consciência manifesta pelos personagens a respeito de sua responsabilidade tanto pela

salvação de seus fiéis e súditos, conforme o caso, quanto pela manutenção da paz e da

ordem social, coroam os discursos em que o pecado e a dissidência política, avaliada

como uma forma de dissidência religiosa, têm lugar apenas como fatores de

desagregação, instabilidade, violência e caos.

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CAPÍTULO 4: Conclusões

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Nos propusemos neste trabalho a analisar o modo como as relações de poder e as

ideologias que tratavam da associação entre monarquia e episcopado no reino visigodo

interferem na construção das narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae. Teve

particular importância entre os nossos pressupostos o de que as ideologias, bem os

discursos por meio dos quais elas são veiculadas, servem a estratégias visando

racionalização e a atribuição de sentido a ações de grupos, instituições e indivíduos,

bem como aos acontecimentos e fenômenos que se entendem associados a essas ações.

Explicitamos que duas das formas narrativas mais difundidas durante a chamada

Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média, as historiae e os relatos hagiográficos

trazem em si como traço comum a inserção dos acontecimentos que narram em uma

linearidade demarcada e definida de acordo com parâmetros prévios, estabelecidos pela

divina providência. Assim, serviam a ideologias e agentes interessados em dotar

acontecimentos considerados extraordinários, ou irregulares em relação a uma ordem

estabelecida, de um sentido consoante com teorias prévias que conferiam explicação ou

conformação unívocas e “naturais” ao mundo, a sociedade e à própria história.

Dialogamos com uma profícua historiografia que tem se dedicado ao estudo das

relações de poder envolvendo a monarquia e as autoridades eclesiásticas nos reinos

germânicos, propondo uma contribuição à luz dos pressupostos da história comparada,

que nos permitiria, a partir do confronto entre os textos selecionados, reavaliar

interpretações e modelos explicativos comumente dirigidos aos textos produzidos

naqueles reinos. Em nossa análise, contamos com o suporte de estudos, produzidos

desde as últimas décadas do século XX, voltados de forma específica à Vita Desiderii e

à Historia Wambae mas que, apesar de trazer contribuições importantes ao

entendimento de questões envolvendo o entorno político e literário dos textos, de um

modo geral, principalmente no caso da VD, ainda subestimam a importância da análise

de aspectos da construção e do teor das narrativas para a compreensão de elementos das

relações e concepções de poder em voga nas sociedades que as produziram.

No que concerne ao contexto político visigodo no século VII, consideramos

necessário ter em vista três processos concomitantes e intimamente relacionados. Um

primeiro foi o da institucionalização da autoridade régia visigoda na Península Ibérica

que envolveu tanto a adoção de práticas e signos de poder associados à tradição

romano-bizantina, ainda no século VI, quanto, num segundo momento, a conversão do

rei e da aristocracia e sua associação com uma instituição eclesiástica que contava entre

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os seus quadros com membros de tradicionais famílias hispano-romanas. A este

processo seguem-se dois que são o do estreitamento dos vínculos entre a monarquia e a

Igreja toledana ao longo do século VII, expresso no conteúdo das atas dos concílios

gerais realizados na capital visigoda, e o das dificuldades enfrentadas pelos reis de

Toledo para assegurar a centralização do poder em meio aos anseios autonomistas da

aristocracia provinciana. A solução encontrada, expressa no teor das atas conciliares e

na legislação, foi a associação entre regnum e Igreja, na qual conflitos e dissidências

tinham o seu peso e impacto nas relações de poder e instituições reduzido, no plano

ideológico, em favor da exaltação da centralidade e preeminência da monarquia

toledana como representação da unidade da fé cristã e da Igreja e, por extensão, da gens

gothorum que se via nela incluída desde 589.

Os três processos acima citados condicionam de diferentes formas a produção da

Vita Desiderii e da Historia Wambae. A primeira, escrita em princípios do século VII,

vincula-se às questões relacionadas à associação entre monarquia e Igreja que sucede à

conversão dos visigodos em 589. O rei Sisebuto, seu autor, demonstra particular

preocupação com as implicações da missão de que se via imbuído como rei cristão e

católico, preocupação manifesta tanto no teor de sua hagiografia, como demonstramos,

quanto na sua atuação como monarca, não hesitando em tomar a frente de iniciativas

voltadas à homogeneização religiosa do reino e o controle da conduta dos bispos.

A segunda, escrita em fins da década de 680, por sua vez, traz em si as marcas

dos conflitos envolvendo monarquia, aristocracia e episcopado ao longo do século VII.

Tais conflitos não apenas trazem entre os seus produtos choques e dissidências como as

narradas pela Historia Wambae, como também uma maior preocupação com o uso que

os soberanos fazem dos poderes que lhes são atribuídos. Medidas consideradas

autoritárias tomadas durante os reinados de Chindasvinto e do próprio Wamba fizeram

com que o sentido teocrático e salvacionista atribuído a autoridade régia visigótica se

revelasse uma faca de dois gumes: mais que conferir legitimidade e estabilidade a

autoridade régia e contribuir para a pacificação dos processos sucessórios, a

cristianização do poder dos monarcas serviu de pretexto para alguns deles atuarem em

detrimento dos interesses do episcopado e mesmo de amplos setores da aristocracia,

como indicam os cânones de algumas das atas conciliares toledanas. Ainda assim, tendo

em vista a forte vinculação construída entre a manutenção da monarquia e os projetos

políticos da sede episcopal toledana em relação ao conjunto da elite eclesiástica

peninsular, fez-se necessário, para Julian de Toledo, enfatizar a importância da

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existência de um rei forte e comprometido com a unidade do reino e da fé para a

salvaguarda da ordem social e mesmo da salvação da gens gothorum.

Em que pesem essas diferenças, determinadas pelo próprio distanciamento

temporal entre as duas narrativas e pelas conseqüências dos acontecimentos registrados

ao longo desse período, podemos observar, a partir da análise e da comparação entre os

documentos, que as duas narrativas expõem acontecimentos e conflitos distintos – o

choque entre dois monarcas e um bispo na Gália franca, e um choque entre um rei e um

usurpador do trono na Gália visigoda, respectivamente – como se fossem um mesmo

conflito. Em outras palavras, tanto na Vita Desiderii quanto na Historia Wambae

conflitos políticos são narrados sob a forma de um conflito entre duas categorias de

valores: a Virtude, representada na figura do bispo-santo e do rei legítimo, e o Vício,

representado nos tiranos de diferentes espécies que antagonizam os protagonistas de

cada narrativa.

Nas duas narrativas, os valores associados à Virtude se expressam pela

submissão a Deus e pela salvaguarda da ordem, da lei e da moral cristã. Os milagres,

associados tanto a figura do santo quanto à do rei, aparecem como elementos capazes de

atestar a legitimidade dos atos de um e de outro frente a seus adversários. No outro lado,

em que figuram os dois monarcas ímpios e o súdito infiel que se converte em tirano, um

espelho invertido mostra imagens em que imperam o mal uso do poder, o pecado, a

violência, a desagregação, a mentira, a irracionalidade e, por fim, a derrota, apresentada

como conseqüência providencial da opção dos derrotados pelo caminho do Diabo e da

infidelidade, aqui entendida como sacrilégio.

Em ambos os casos, o cristianismo aparece como critério distintivo do domínio

da ordem, da legitimidade e da justiça. Um homem santo e um rei são dotados das

mesmas funções no que diz respeito à garantia da salvação, da manutenção de suas

comunidades religiosa e política, respectivamente, no caminho pré-definido por Deus.

Pode-se considerar que, nos dois textos, manifesta-se uma concepção segundo a qual,

sendo todo poder oriundo da divindade, todo poder, seja ele político ou eclesiástico,

deve voltar-se a ela. Ou seja, santo e rei, na Vita Desiderii e na Historia Wambae,

apresentam-se como personificações de um único poder, incumbido por Deus de

conduzir a sociedade cristã no caminho da retidão e do Paraíso.

Esses princípios, desenvolvidos e difundidos por meio de diversa e numerosa

produção intelectual eclesiástica no reino visigodo e fora dele, ao serem expostos em

forma narrativa e histórica adquirem a materialidade necessária para torná-los não

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apenas críveis, mas visíveis no tempo. Desse modo, na visão de seus autores,

contribuiriam para que os grupos e indivíduos que os textos tinham como alvo tivessem

acesso tanto a uma memória sistematizada e ordenada do passado quanto a esquemas

que lhes permitiriam dotar de sentido suas experiências e relações no presente, e de

forma consonante com a ideologia da elite produtora daqueles discursos.

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