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Realização dos valores de obrigação e necessidade: uma análise juslinguística do modal poder Apresentação: A categoria da modalidade tem sido tratada sob diversas perspevas metodológicas. No campo linguísco, adotamos o conceito de modalidade enquanto «(…) gramacalização de a- tudes e opiniões dos falantes (…)» (Oliveira, 2003: 245). Este estudo centra-se no comportamento do verbo poder enquanto operador de modalidade e pretende demonstrar, através de exemplos-modelo, que, pelo menos em contextos téc- nicos— especificamente no campo da linguagem jurídica—, aquele verbo surge como operador potencial de valores modais de obrigação e necessidade forte, mais associados a estru- turas como [ter de + (V.inf.)] ou, em alguns casos contextualmente determinados, [dever + (V. inf)]. Palavras-chave: Modalidade verbal; verbo poder; linguagem jurídica; Descrição do corpus e quadro geral de ocorrências: Para a elaboração deste estudo foi construído um corpus linguísco específico com as seguintes carateríscas: Designação: Juriscorpus Plataforma de ancoragem: Corpógrafo (Sarmento, Maia, & Santos, (2004) Tipologias textuais recolhidas: Acórdãos (sub-corpus Argumenta – 69720 átomos) e textos legais (sub-corpus Legis – 591538 átomos). O presente estudo incide sobre os textos legais. Quadro geral de ocorrências dos verbos estudados: Verbo Polaridade ocorrências Total Dever 1474 Dever Não dever 25 1499 Poder 2713 Poder Não poder 531 3244 Ter de - 35 35 Verbo poder: interpretação geral (1) «A nulidade é invocável, a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser de- clarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administravo ou por qualquer tribunal.» (134º, 2: DL 442/91 de 15/11 R ) Leituras possíveis: (1’): A nulidade (…) apenas pode ser declara- da (…) por um órgão administravo ou por um tribunal. (1’’): Qualquer órgão administravo ou qual- quer tribunal possui legimidade para decla- rar a nulidade. (1’’’): É possível [em abstrato] que qualquer órgão administravo ou qualquer tribunal de- clare [se quiser] a nulidade. Discussão: as interpretações possíveis de (1) variam en- tre o valor restrivo de (1’), o valor de per- missão/autorização de (1’’) e os valores de eventualidade ou de possibilidade presentes em (1’’’). Este úlmo, no entanto, poderá ser incompavel com o objeto e objevos da lin- guagem jurídica, dado o caráter eminente- mente organizatório e prescrivo desta. Verbo poder em contexto: valor de obrigação (2) «O responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos que parcipem na instrução podem, mesmo que o procedimento seja instau- rado por iniciava dos interessados, proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos requeri- mentos ou nas respostas dos interessados.» (Artº 58º: DL 4/2015 de 7/1) Leituras possíveis: (2’) O responsável está autorizado a proceder a quaisquer diligências (…) (2’’) O responsável pode, se quiser , proceder a quaisquer diligências (…) Discussão e problemas emergentes: a) inconsistência parcial (2’) ou total (2’’) com a teleologia pológica do tex- to (norma jurídica); b) incumprimento das funções do Direito – a mera possibilidade não inte- ressa a uma função prescriva e não constui base suficiente para cum- prir a função organizatória; c) A mera possibilidade abriria a porta a uma aberração teleológica: não se obterá uma “decisão legal e justa” sem proceder a tais diligências. Resul- tado: anulação, recurso ou repeção do ato administravo; (2’’’) O responsável fica obrigado a proceder às diligências (…) Há uma intencionalidade imposiva subjacente ao enunciante (legislador), que compromete o decisor com um ‘poder-dever’ de proceder a tais diligên- cias (uma decisão ilegal e injusta não cumpriria a função do enunciado). A vontade do enunciante pode ser traduzida por uma equação modal em que a obrigatoriedade de p não permite a não realização da proposição: Op ≈ ¬¬p Joaquim Coelho Ramos (2017) [email protected] Conclusões: I. Contrariamente ao esperado, o verbo ‘poder’ surge como modal dominante na produção legislava estudada. II.A linguagem jurídica possui condicionadores valoravos, axiológicos e teleológicos que determinam a interpretação das suas proposições de forma especialmente apica. Estes elementos de compressão interpretava podem ter origem na vontade imposiva de um legislador-enunciador, de onde resultará um valor de obrigação, mas podem também ter origem nos próprios funda- mentos e objevos do texto jurídico. Neste úlmo caso, situações que estão a montante da vontade do legislador determinam externamente a interpretação da proposição: trata-se de elementos como os princípios jurídicos fundamentais, a realização do elemento sistemáco (que obriga a ver a ordem jurídica como um todo antes de se interpretar qualquer uma das suas normas individu- ais), ou a realização das funções organizatória e prescriva do Direito. Por razões operacionais, designámos o conjunto destes elementos contextuais de substrato por constante nomológica, na medida em que se torna absolutamente necessário tê-los presentes para se obter a expressão modal da proposição compavel com o contexto em que é produzida. III. Nesta pologia de textos jurídicos, vimos que o verbo poder opera valores de obrigação ou necessidade (forte) quando ulizado em estruturas semelhantes aos modelos apresentados em (2) e (3), apesar de ser tradicionalmente do como um ‘modal fraco’. Verbo poder em contexto: valor de necessidade (2) «Os órgãos da Administração Pública podem decidir sobre coisa dife- rente ou mais ampla do que a pedida, quando o interesse público as- sim o exija.» (Artº 13º, 3: DL 4/2015 de 7/1) Leituras possíveis: (3’) Os órgãos da Administração Pública podem [se quiserem] decidir sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida. (3’‘) Há uma /obrigatoriedade/ de alargamento da decisão quando (sempre que) o interesse público esteja em causa. O recurso ao operador ‘quando’ pode induzir uma interpretação condicionada de p e, por isso, pode ser as- sociado a uma dimensão de quanficação universal; (3’’’)- Para a realização do interesse público /é necessário/ que os órgãos da AP decidam sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida. Discussão: Em (3’) supõe-se um valor de possibilidade Em (3’’) há um valor de obrigação. Note-se, no entanto, que a obrigatorie- dade (jurídica) de p não pressupõe faccidade (isto é, a sua verificação no mundo real). (3’’’) supõe um valor de necessidade. O enunciante idenfica-se plenamen- te com a impossibilidade da não-decisão “sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida”. No caso concreto, há um elemento externo ao próprio enunciante que determina a realização da proposição: o interesse público. Esta perceção indicia a existência de um valor de necessidade (forte) associado a um elemento externo, de caráter imposivo, potencia- dor de uma modalidade externa ao parcipante: p é necessário → não é possível não p. □p, ¬◊ ¬p Bibliografia de base: -Campos, H. C. (1997). Tempo, Aspecto e Modalidade. Estudos de linguísca portuguesa. Por- to: Porto Editora. -Kratzer, A. (1991). Modality. In A. von Stechow & D. Wunderlich (Orgs.), Semancs (pp. 639 – 650). Berlim: Walter de Gruyter. -Maia, B.; Sarmento, L. (2003). Construcng comparable and parallel corpora for terminology extracon - work in progress, Poster presentaon at Corpus linguiscs 2003, Lancaster U.K -Neves, A. C. (1967). Questão-de-facto questão-de-direito ou o problema metodológico da ju- ridicidade: ensaio de uma reposição críca. Coimbra Editora. Coimbra. -Oliveira, F. (2000). Some Issues about the Portuguese modals dever and poder. Belgian Journal of Linguiscs, 14, (pp. 167-184). -Oliveira, F. (2003). Modalidade e modo. In M. H. Mira Mateus et al., Gramáca da Língua Portuguesa. 5ª edição revista e aumentada (pp. 245-247). Lisboa: Caminho. -Pinto Bronze, F. J. (2002). Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, (pp. 52-53) -Ribeiro da Silva, M. S. (2002). A escrita no texto jurídico: um estudo sobre a modalização e a heterogeneidade. Revista UNORP, Vol. 1 (1), (pp. 11-19)

Realização dos valores de obrigação e necessidade: uma ... · uma análise juslinguística do modal poder ... Modalidade verbal; verbo poder; linguagem jurídica; Descrição

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Realização dos valores de obrigação e necessidade:

uma análise juslinguística do modal poder

Apresentação:

A categoria da modalidade tem sido tratada sob diversas perspetivas metodológicas. No campo linguístico, adotamos o conceito de modalidade enquanto «(…) gramaticalização de ati-

tudes e opiniões dos falantes (…)» (Oliveira, 2003: 245).

Este estudo centra-se no comportamento do verbo poder enquanto operador de modalidade e pretende demonstrar, através de exemplos-modelo, que, pelo menos em contextos téc-

nicos— especificamente no campo da linguagem jurídica—, aquele verbo surge como operador potencial de valores modais de obrigação e necessidade forte, mais associados a estru-

turas como [ter de + (V.inf.)] ou, em alguns casos contextualmente determinados, [dever + (V. inf)].

Palavras-chave:

Modalidade verbal; verbo poder; linguagem jurídica;

Descrição do corpus e quadro geral de ocorrências:

Para a elaboração deste estudo foi construído um corpus linguístico específico com as seguintes caraterísticas:

Designação: Juriscorpus Plataforma de ancoragem: Corpógrafo (Sarmento, Maia, & Santos, (2004)

Tipologias textuais recolhidas: Acórdãos (sub-corpus Argumenta – 69720 átomos) e textos legais (sub-corpus Legis – 591538 átomos). O presente estudo incide sobre os textos legais.

Quadro geral de ocorrências dos verbos estudados:

Verbo Polaridade ocorrências Total

Dever 1474

Dever Não dever 25 1499

Poder 2713

Poder Não poder 531 3244

Ter de - 35 35

Verbo poder: interpretação geral

(1) «A nulidade é invocável, a todo o tempo,

por qualquer interessado e pode ser de-

clarada, também a todo o tempo, por

qualquer órgão administrativo ou por

qualquer tribunal.» (134º, 2: DL 442/91 de 15/11R)

Leituras possíveis:

(1’): A nulidade (…) apenas pode ser declara-

da (…) por um órgão administrativo ou por

um tribunal.

(1’’): Qualquer órgão administrativo ou qual-

quer tribunal possui legitimidade para decla-

rar a nulidade.

(1’’’): É possível [em abstrato] que qualquer

órgão administrativo ou qualquer tribunal de-

clare [se quiser] a nulidade.

Discussão:

as interpretações possíveis de (1) variam en-

tre o valor restritivo de (1’), o valor de per-

missão/autorização de (1’’) e os valores de

eventualidade ou de possibilidade presentes

em (1’’’). Este último, no entanto, poderá ser

incompatível com o objeto e objetivos da lin-

guagem jurídica, dado o caráter eminente-

mente organizatório e prescritivo desta.

Verbo poder em contexto: valor de obrigação

(2) «O responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos que

participem na instrução podem, mesmo que o procedimento seja instau-

rado por iniciativa dos interessados, proceder a quaisquer diligências que

se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e

justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos requeri-

mentos ou nas respostas dos interessados.» (Artº 58º: DL 4/2015 de 7/1)

Leituras possíveis:

(2’) O responsável está autorizado a proceder a quaisquer diligências (…)

(2’’) O responsável pode, se quiser, proceder a quaisquer diligências (…)

Discussão e problemas emergentes:

a) inconsistência parcial (2’) ou total (2’’) com a teleologia tipológica do tex-to (norma jurídica);

b) incumprimento das funções do Direito – a mera possibilidade não inte-ressa a uma função prescritiva e não constitui base suficiente para cum-prir a função organizatória;

c) A mera possibilidade abriria a porta a uma aberração teleológica: não se obterá uma “decisão legal e justa” sem proceder a tais diligências. Resul-tado: anulação, recurso ou repetição do ato administrativo;

(2’’’) O responsável fica obrigado a proceder às diligências (…) Há uma intencionalidade impositiva subjacente ao enunciante (legislador), que compromete o decisor com um ‘poder-dever’ de proceder a tais diligên-cias (uma decisão ilegal e injusta não cumpriria a função do enunciado). A vontade do enunciante pode ser traduzida por uma equação modal em que a obrigatoriedade de p não permite a não realização da proposição:

Op ≈ ¬♦¬p

Joaquim Coelho Ramos (2017)

[email protected]

Conclusões:

I. Contrariamente ao esperado, o verbo ‘poder’ surge como modal dominante na produção legislativa estudada.

II.A linguagem jurídica possui condicionadores valorativos, axiológicos e teleológicos que determinam a interpretação das suas proposições de forma especialmente atípica. Estes elementos de

compressão interpretativa podem ter origem na vontade impositiva de um legislador-enunciador, de onde resultará um valor de obrigação, mas podem também ter origem nos próprios funda-

mentos e objetivos do texto jurídico. Neste último caso, situações que estão a montante da vontade do legislador determinam externamente a interpretação da proposição: trata-se de elementos

como os princípios jurídicos fundamentais, a realização do elemento sistemático (que obriga a ver a ordem jurídica como um todo antes de se interpretar qualquer uma das suas normas individu-

ais), ou a realização das funções organizatória e prescritiva do Direito. Por razões operacionais, designámos o conjunto destes elementos contextuais de substrato por constante nomológica, na

medida em que se torna absolutamente necessário tê-los presentes para se obter a expressão modal da proposição compatível com o contexto em que é produzida.

III. Nesta tipologia de textos jurídicos, vimos que o verbo poder opera valores de obrigação ou necessidade (forte) quando utilizado em estruturas semelhantes aos modelos apresentados em (2) e

(3), apesar de ser tradicionalmente tido como um ‘modal fraco’.

Verbo poder em contexto: valor de necessidade

(2) «Os órgãos da Administração Pública podem decidir sobre coisa dife-

rente ou mais ampla do que a pedida, quando o interesse público as-

sim o exija.» (Artº 13º, 3: DL 4/2015 de 7/1)

Leituras possíveis:

(3’) Os órgãos da Administração Pública podem [se quiserem] decidir sobre

coisa diferente ou mais ampla do que a pedida.

(3’‘) Há uma /obrigatoriedade/ de alargamento da decisão quando (sempre

que) o interesse público esteja em causa. O recurso ao operador ‘quando’

pode induzir uma interpretação condicionada de p e, por isso, pode ser as-

sociado a uma dimensão de quantificação universal;

(3’’’)- Para a realização do interesse público /é necessário/ que os órgãos

da AP decidam sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida.

Discussão:

Em (3’) supõe-se um valor de possibilidade

Em (3’’) há um valor de obrigação. Note-se, no entanto, que a obrigatorie-

dade (jurídica) de p não pressupõe facticidade (isto é, a sua verificação no

mundo real).

(3’’’) supõe um valor de necessidade. O enunciante identifica-se plenamen-

te com a impossibilidade da não-decisão “sobre coisa diferente ou mais

ampla do que a pedida”. No caso concreto, há um elemento externo ao

próprio enunciante que determina a realização da proposição: o interesse

público. Esta perceção indicia a existência de um valor de necessidade

(forte) associado a um elemento externo, de caráter impositivo, potencia-

dor de uma modalidade externa ao participante: p é necessário → não é

possível não p.

□p, ¬◊ ¬p

Bibliografia de base:

-Campos, H. C. (1997). Tempo, Aspecto e Modalidade. Estudos de linguística portuguesa. Por-

to: Porto Editora.

-Kratzer, A. (1991). Modality. In A. von Stechow & D. Wunderlich (Orgs.), Semantics (pp. 639 –

650). Berlim: Walter de Gruyter.

-Maia, B.; Sarmento, L. (2003). Constructing comparable and parallel corpora for terminology

extraction - work in progress, Poster presentation at Corpus linguistics 2003, Lancaster U.K

-Neves, A. C. (1967). Questão-de-facto questão-de-direito ou o problema metodológico da ju-

ridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra Editora. Coimbra.

-Oliveira, F. (2000). Some Issues about the Portuguese modals dever and poder. Belgian

Journal of Linguistics, 14, (pp. 167-184).

-Oliveira, F. (2003). Modalidade e modo. In M. H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua

Portuguesa. 5ª edição revista e aumentada (pp. 245-247). Lisboa: Caminho.

-Pinto Bronze, F. J. (2002). Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, (pp. 52-53)

-Ribeiro da Silva, M. S. (2002). A escrita no texto jurídico: um estudo sobre a modalização e

a heterogeneidade. Revista UNORP, Vol. 1 (1), (pp. 11-19)