24
ESTUDO ESTUDO Câmara dos Deputados Praça 3 Poderes Consultoria Legislativa Anexo III - Térreo Brasília - DF RECURSOS HÍDRICOS – CONCEITUAÇÃO, DISPONIBILIDADE E USOS José de Sena Pereira Júnior Consultor Legislativo da Área XI Meio Ambiente e Direito Ambiental, Organização Territorial, Desenvolvimento Urbano e Regional ESTUDO ABRIL/2004

RECURSOS HÍDRICOS – CONCEITUAÇÃO, DISPONIBILIDADE E … · terços retornam rapidamente aos cursos de água e aos oceanos, ... sobre os continentes e dentro deles faz com que

  • Upload
    vankhue

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

ESTUDO

ESTUDO

RECURSOS HÍDRICOS – CONCEITUAÇÃO,DISPONIBILIDADE E USOS

José de Sena Pereira JúniorConsultor Legislativo da Área XI

Meio Ambiente e Direito Ambiental,Organização Territorial,

Desenvolvimento Urbano e Regional

ESTUDOABRIL/2004

Câmara dos DeputadosPraça 3 PoderesConsultoria LegislativaAnexo III - TérreoBrasília - DF

2

ÍNDICE

1 – CONCEITO DE RECURSOS HÍDRICOS.....................................................................................32 – USOS DA ÁGUA..................................................................................................................................53 –ESCASSEZ DE RECURSOS HÍDRICOS ........................................................................................74 - RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL..............................................................................................95 – USOS DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL ....................................................................116 – LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE RECUSOS HÍDRICOS.......................................................136.1 – Recursos hídricos na Constituição..................................................................................................136.2 – Legislação ordinária...........................................................................................................................146.2.1 – Código de Águas ............................................................................................................................146.2.2 – “Lei das Águas” ..............................................................................................................................157 – RECURSOS HÍDRICOS E SANEAMENTO BÁSICO .............................................................19NOTAS DE REFERÊNCIA ...................................................................................................................24

© 2004 Câmara dos Deputados.Todos os direitos reservados. Este trabalho poderá ser reproduzido ou transmitido na íntegra, desde quecitado o autor e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. São vedadas a venda, a reproduçãoparcial e a tradução, sem autorização prévia por escrito da Câmara dos Deputados.

3

RECURSOS HÍDRICOS – CONCEITUAÇÃO,DISPONIBILIDADE E USOS

José de Sena Pereira Júnior

1 – CONCEITO DE RECURSOS HÍDRICOS

parcela renovável de água doce da Terra é de cerca de 40.000km3 anuais, correspondendo à diferença entre as precipitaçõesatmosféricas e a evaporação de água sobre a superfície dos

continentes. Nem todo esse volume, entretanto, pode ser aproveitado pelo homem. Quase doisterços retornam rapidamente aos cursos de água e aos oceanos, após as grandes chuvas. Orestante é absorvido pelo solo, permeando suas camadas superficiais e armazenando-se nosaqüíferos subterrâneos, os quais, por sua vez, serão as principais fontes de alimentação dos cursosde água durante as estiagens. A parcela relativamente estável de suprimento de água é, portanto,de pouco menos de 14.000 km3 anuais. Essa parcela de água doce acessível à humanidade noestágio tecnológico atual e a custos compatíveis com seus diversos usos é o que se denomina“recursos hídricos”.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a quantidade de água daTerra é constante e não está se reduzindo nem aumentando. A aparente escassez de água emcertas regiões deve-se a fatores como variações climáticas, excessiva concentração populacional ede atividades econômicas, com igual concentração de demanda de água, poluição de mananciais,alteração do regime de escoamento superficial e de realimentação de aqüíferos subterrâneos, entreoutros.

Os países mais aquinhoados pela natureza em recursos hídricos desuperfície e subterrâneos são países de dimensões continentais ou situados nos trópicos,destacando-se Brasil, Canadá, China, Indonésia, Estados Unidos da América, Índia, Bangladesh,Myanmar, Colômbia e Zaire. Os menos aquinhoados situam-se na África saariana a subsaariana eno Oriente Médio, ou são países insulares e de pequenas dimensões territoriais, como Bareim,

A

4

Kuwait, Qatar, Malta, Barbados, Cabo Verde, Djibuti, Emirados Árabes Unidos, Mauritânia,Singapura, Líbia e Chipre.

Em termos médios globais, a água utilizável pela humanidade é muitoabundante, com cerca de 6.800 metros cúbicos

1 por indivíduo por ano, muitas vezes o mínimo

necessário para a garantia de um razoável padrão de vida a todos os seres humanos, que é daordem de 1.000 metros cúbicos anuais. A distribuição desigual das precipitações atmosféricassobre os continentes e dentro deles faz com que a disponibilidade de água varie muito com alocalização geográfica e com as concentrações populacionais.

Para efeitos comparativos, a América do Norte dispõe de 30 vezes maisrecursos hídricos por habitante do que o norte da África, e o Canadá de 25 vezes mais do que oMéxico. Sob este prisma, os países com maior disponibilidade deixam de ser os de grandeextensão territorial, para serem países de pequena dimensão e pouco povoados, situados próximodo Círculo Polar Ártico ou do Equador, como Islândia, Suriname, Guiana, Papua-Nova Guiné,Ilhas Salomão e Gabão.

A variação aleatória das precipitações atmosféricas ao longo do tempoagrava a desigualdade da distribuição espacial da água. Torna-a extremamente escassa emdeterminados períodos de tempo e muito abundante em outros. Ambas as situações ocasionamproblemas muito sérios, como as inundações e as secas, com os quais o ser humano vemaprendendo a conviver desde os primórdios de sua existência.

A moderna constatação de que a disponibilidade de água não é infinita,varia no tempo e no espaço e é afetada voluntária e involuntariamente por ações humanas levou ànecessidade de que os recursos hídricos sejam geridos. A gestão dos recursos hídricos tem comofinalidade, portanto, garantir disponibilidade de água em quantidade e qualidade para a atual e asfuturas gerações.

QUADRO 1

1 Relativo à população mundial de 1998, estimada em cerca de 5,9 bilhões de habitantes.

5

CONTINENTES E BRASILProdução hídrica de superfície, dados comparativos

CONTINENTESUPERFÍCIE

(Km2)

SUPERFÍCIERELATIVA

(%)

POPULAÇÃOESTIMADA (1.000 HAB.)

PRODUÇÃOHÍDRICA DESUPERFÍCIE

(m3/SEGUNDO)

PRODUÇÃORELATIVA

(%)

PRODUÇÃOPOR

HABITANTE(m3/ano)

ÁSIA 44.397.460 28,13% 3.587,7 458.000 31,63%. 4.026AMÉRICA DOSUL

17.850.568 11,31% 328,3 334.000 23,07% 32.083

AMÉRICA DONORTE ECENTRAL

24.709.702 15,65% 466,5 260.000 17,96% 17.576

ÁFRICA 30.272.922 19,18% 777,7 145.000 10,01% 5.880EUROPA 10.349.915 6,56% 746,7 102.000 7,04% 4.308ANTÁRTICA 14.108.000 8,94% 0 73.000 5,04% -OCEANIA ENOVAZELÂNDIA

8.480.354 5,37% 10,7 65.000 4,49% 191.574

AUSTRÁLIA ETASMÂNIA

7.682.300 4,87% 18,4 11.000 0,76% 18.853

TOTAL 157.851.221 100,01% 5.936,0 1.448.000 100,00% 6.784BRASIL 8.512.000 5,39% 161,79 168.790 11,65% 32.941

Fontes: 1) Brasil – Ministério de Minas e Energia – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE, 1994.2) Almanaque Abril – 1999.3) População estimada em 1998.

2 – USOS DA ÁGUA

Atualmente, o volume de água retirado da natureza pelo homem é daordem de 3.500 km3 por ano, quase o dobro da média de vazão de todos os cursos de água daTerra. Isto só é possível em decorrência do ciclo hidrológico, o qual renova por cerca de vintevezes ao ano a água doce dos corpos hídricos (rios, lagos, lençóis subterrâneos, etc.).

Em termos globais, a irrigação é responsável por cerca de 63% dasretiradas ou derivações de água, os usos industriais por 21% e o uso doméstico e em serviçosurbanos por cerca de 7,5%. Outros usos respondem pelos restantes 9,5%. O uso doméstico eurbano, apesar de sua importância, é modesto, se comparado ao volume de água empregado pelaagricultura irrigada e pela indústria.

A irrigação de culturas é uma prática muito antiga e intensiva em água.Foi o suporte da vida das primeiras civilizações no Egito, na Mesopotâmia, na Índia, nasAméricas e na China. Atualmente é praticada, sob várias modalidades e em quase todos os países.

6

É o principal uso da água na Ásia, África e América do Sul. A criação de animais utiliza menos de3% da água empregada em irrigação.

Grandes volumes de água são utilizados na indústria, como matéria-prima e em processamento, refrigeração, limpeza e remoção de resíduos. Mineração, papel ecelulose, metalurgia, química, alimentos e bebidas e geração de energia termelétrica são ramos emque há intenso uso de água. Os usos industriais são muito significativos nas regiões maisindustrializadas, representando 54% das derivações na Europa e 42% na América do Norte.

Nas residências, a água é utilizada para beber, para preparo de comida,higiene pessoal, saneamento domiciliar, limpeza do vestuário e da moradia, ente outras funções,dependendo de fatores como cultura, poder aquisitivo, hábitos alimentares e clima. O usodoméstico não é uniforme, pois 4% da população mundial utiliza mais de 300 litros diários "percapita", enquanto 75% utiliza menos de 50 litros diários "per capita". Nas áreas urbanas, além douso doméstico, a água é utilizada em restaurantes, serviços médicos, pequenas indústrias(padarias, pequenas fábricas de comida, etc.), lavanderias, escolas e em outros serviços.

Ao ser utilizada, a água derivada é parcialmente "consumida". Incorpora-se aos seres vivos e aos bens produzidos, ou é transportada para outras partes do meio ambiente,de onde dificilmente poderá ser aproveitada. A água utilizada, mas não "consumida" – as águas

servidas - retorna aos corpos de água e poderá ser reaproveitada.

Ao analisar os usos que alteram a quantidade da água, é precisodiferenciar a derivação, ou retirada, do consumo de água. O consumo totaliza cerca de 2.100 km3

por ano, ou cerca de 60% do total derivado. A irrigação é a maior responsável pelo consumo deágua, pois quase três quartos da água utilizada evapora-se sob ação do sol ou infiltra-se no solo.

Nos usos industriais, a parcela da água reaproveitável é estimada em87%, sendo estes apenas parcialmente consumptivos2. A maior parte da água "consumida" naindústria é evaporada em torres de resfriamento e uma pequena parcela é incorporada a produtosque usam a água como matéria-prima (indústrias de alimentos e de bebidas, por exemplo). Osusos domésticos e urbanos também são parcialmente consumptivos, pois cerca de 75% da águautilizada retorna, na forma de esgotos, para os cursos d’água. O volume anual de águas servidas

2 Usos consumptivos ou consuntivos da água são aqueles em que não há retorno total do líquido aos corpos de

água. Um uso pode ser totalmente consumptivo, como a geração de vapor, parcialmente consumptivo, como oabastecimento urbano, ou não-consumptivo, como a hidroeletricidade.

7

(esgotos domésticos e industriais) que retorna aos corpos de água doce e aos mares é estimadoem 1.400 km3, ou 40% do total derivado.

O crescimento da população e a melhoria da renda das pessoas acarretamo aumento contínuo do consumo de água e das derivações para irrigação e para uso industrial,doméstico e urbano. Nos países desenvolvidos, o consumo vem-se estabilizando, mas continua ase elevar nos países em desenvolvimento, onde se concentra a maior parte do crescimentopopulacional e há muito o que se fazer para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Estima-seque a demanda de água para usos industriais e domésticos, que representam menor parcela deconsumo, cresça mais rápido do que a demanda para irrigação.

Ao retornarem aos corpos hídricos, as águas servidas normalmente têmcaracterísticas distintas das que tinham antes da derivação. Em geral, estão poluídas por sólidosem suspensão, matéria orgânica, graxas e óleos, nutrientes, metais pesados e outras impurezas. Astrês maiores fontes de poluição da água são os esgotos domésticos urbanos, os efluentesindustriais e as águas de escoamento superficial, que carreiam lixo das áreas urbanas e defensivose fertilizantes das zonas agrícolas para os corpos hídricos.

3 –ESCASSEZ DE RECURSOS HÍDRICOS

Como já dito, a quantidade de água existente na Terra é constante e osrecursos hídricos são renováveis por conta do ciclo hidrológico. Enquanto o consumo de águanão exceder a capacidade de renovação natural dos aqüíferos e eles não forem poluídos, poderãoser utilizados indefinidamente. No entanto, o aumento contínuo do consumo de água já esgotou acapacidade de regeneração natural dos recursos hídricos em diversas regiões do mundo. Empaíses como Líbia, Arábia Saudita e Israel, o gasto de água já ultrapassa o que é recicladonaturalmente em seus territórios.

A escassez de água está-se tornando uma realidade em várias regiões doPlaneta. Ela é mais intensa onde é mais necessária, pois as regiões pobres são, em geral, as maissecas. A falta de água não se limita mais ao norte da África, ao Oriente Médio e a outras regiõescaracterizadas por extensos desertos. A maior parte da África Ocidental e Oriental e partes daChina, da Índia e do México sofrem escassez crônica de água, apesar dessas regiões não seremdesérticas.

Atualmente, 26 países dispõem de menos de 1.000 m3 anuais porhabitante (limite de situação de emergência). Desses países, 11 estão localizados na África

8

(Argélia, Botswana, Burundi, Cabo Verde, Djibuti, Egito, Líbia, Mauritânia, Quênia, Ruanda eTunísia), nove no Oriente Médio (Arábia Saudita, Barheim, Emirados Árabes Unidos, Iêmem,Israel, Jordânia, Kuwait, Qatar e Síria), quatro na Europa (Bélgica, Holanda, Hungria e Malta), umnas Antilhas (Barbados) e um no Extremo Oriente (Singapura). Quando se situam no trecho dejusante de rios que drenam regiões mais úmidas, esses países podem contar com o suprimentoextra de água, aportado por esses rios. É o caso do Egito, que depende do rio Nilo, provenientedo Sudão, para sua sobrevivência; da Síria, que recebe da Turquia o rio Eufrates; da Holanda, querecebe o rio Reno; e da Hungria, que recebe o rio Danúbio. A garantia do suprimento de águadepende, nesses casos, da celebração de tratados internacionais que reconheçam o direito à águaaos países de jusante.

No Oriente Médio e nordeste da África, a situação é tão crítica que osespecialistas em política regional consideram a possibilidade de guerras pela água, à semelhançado conflito entre Índia e Paquistão pelas águas da bacia superior do rio Indus, na região doPunjab e da Cachemira. Israel, Jordânia e Síria partilham, sob tensa situação de conflito, as águasdo rio Jordão; Turquia, Síria e Iraque, as do rio Eufrates; Egito, Sudão e Etiópia, as do médio rioNilo. O conflito entre Israel e os palestinos é movido, em boa parte, pela escassez de água daregião – ao ceder territórios aos palestinos, Israel estará, também, cedendo água.

Além dos problemas de quantidade (escassez), a qualidade das águas estápiorando em todo o Planeta. O crescimento da população e a industrialização aumentam apoluição dos corpos de água e das águas marítimas costeiras. A vazão da maioria dos cursos deágua situados em regiões densamente povoadas ou industrializadas vem-se tornando insuficientepara depurar a crescente carga de poluentes nela lançada.

O tratamento das águas servidas não acompanha o ritmo de geração deagentes poluidores. Quase a totalidade dos esgotos domésticos urbanos é lançada "in natura" noscorpos de água. É comum, em projetos de saneamento, implantar-se apenas o sistema deabastecimento de água e relegar-se para o futuro a coleta e tratamento de esgotos, devido ao seucusto elevado, insuficiência de recursos públicos para investimentos e baixa prioridade política eda população.

O resultado das deficiências dos serviços de saneamento básico e daausência de tratamento dos esgotos industriais é a contaminação dos corpos de água próximos àsáreas urbanas, encarecendo o tratamento da água captada para o próprio abastecimento público eobrigando ao aproveitamento de mananciais cada vez mais distantes, ainda não contaminados,para suprir o aumento de demanda.

9

4 - RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL

Pela sua dimensão continental e localização tropical e equatorial, o Brasilé o país que dispõe de maior quantidade de recursos hídricos endógenos - gerados porprecipitações atmosféricas sobre seu território - de superfície e subterrâneos. Tem,aproximadamente, 80% mais disponibilidade de água do que o Canadá e a China e o dobro daIndonésia e dos Estados Unidos da América.

Os recursos hídricos de superfície brasileiros correspondem a uma vazãomédia da ordem de 169.000 m3/s, ou quase 12% do total mundial. São maiores do que os daAustrália, Oceania e Antártica, somados, ou do que os da África, ou os da Europa. São,aproximadamente, sete décimos dos da América do Norte, quatro décimos dos da Ásia e metadedos da América do Sul. Acrescidos das vazões dos rios que provêm de território estrangeiro ediminuídos das vazões dos rios que se dirigem a outros países, totalizam 257.790 m3/s, ou 17,8%dos recursos hídricos de superfície de todos os continentes e sete décimos dos da América do Sul.

QUADRO 2BRASIL

Disponibilidade hídrica por bacia hidrográfica

BACIA HIDROGRÁFICA LOCALIZAÇÃO SUPERFÍCIE

(Km2)

VAZÃOMÉDIA(1)

(m3/segundo)

VAZÃO UNITÁRIA(litro/Km2.segundo)

AMAZONAS(2) Região Norte 6.112.000 209.000 34,2ATLÂNTICO SUL – TRECHONORTE

Região Norte – Estadodo Amapá

76.000 3.660 48,2

ATLÂNTICO SUL – TRECHONORDESTE

Região Nordeste 953.000 5.390 5,7

SÃO FRANCISCO Regiões Sudeste (MinasGerais) e Nordeste

634.000 2.850 4,5

TOCANTINS-ARAGUAIA Regiões Norte eCentro-Oeste

757.000 11.800 15,6

ATLÂNTICO SUL – TRECHOLESTE

Litoral – RegiõesSudeste e Nordeste

242.000 680 2,8

PARANÁ(3) Regiões Sudeste,Centro-Oeste e Sul

877.000 11.000 12,5

PARAGUAI(3) Região Centro-Oeste 368.000 1.290 3,5ATLÂNTICO SUL – TRECHOSUDESTE

Regiões Sul e Sudeste 224.000 4.300 19,2

URUGUAI(3) Região Sul 178.000 4.150 23,3BRASIL -- - 257.790 24,0

Fonte: Brasil – Ministério de Minas e Energia – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE, mapa de 1994.Notas: 1 – Vazão média de longo período.

2 - Inclui a área da bacia situada nos demais países da bacia Amazônica.3 – Somente a área da bacia situada em território brasileiro.4 – A bacia do Atlântico Sul, trecho Nordeste inclui áreas de floresta Amazônica do Pará e Maranhão e áreas úmidas do

Piauí e do litoral, o que eleva a vazão unitária; por serem estas áreas pouco habitadas, seus recursos hídricos abundantesnão refletem favoravelmente ao Nordeste, em termos de disponibilidade “per capita” de água.

10

A realidade extremamente favorável em termos nacionais dissimulaenormes desigualdades regionais. Sete décimos (72,5%) dos recursos hídricos brasileiros desuperfície situam-se na bacia do rio Amazonas, que corresponde a menos de metade (45,8%) doterritório nacional, enquanto que apenas dois centésimos (2,14%) se encontram nas baciascosteiras da região Nordeste, excetuada a do rio São Francisco, que totalizam mais de um décimo(12,1%) da superfície do País. A região Norte detém 68,5% dos recursos hídricos de superfíciebrasileiros, a Centro-Oeste 15,7%, a Sul 6,5%, a Sudeste 6,0% e a Nordeste 3,3%. Ponderando-sea disponibilidade regional pela respectiva área, a região Norte tem 60% mais água, por unidade deárea, do que a média do território nacional, a Sul aproximadamente a média nacional, a Centro-Oeste 70% da média nacional, a Sudeste metade da média nacional e a Nordeste apenas umquinto da média nacional.

As reservas brasileiras de águas subterrâneas estão avaliadas em 11.500km3. Dois quintos do território nacional são formados por rochas que apresentam boascondições para infiltração de água e formação de aqüíferos subterrâneos. Nos três quintosrestantes, predominam rochas cristalinas que, para possibilitar infiltração de água, precisam estarfraturadas ou muito alteradas. Estudos hidrogeológicos sistemáticos são iniciativa recente no País.Seu aprofundamento irá alterar o nível atual de conhecimento das nossas reservas. Em particular,são necessárias maiores informações sobre o processo de recarga dos aqüíferos, para que se possaquantificar a parcela renovável das reservas.

Considerando-se a disponibilidade relativa por habitante, em lugar daabsoluta, o Brasil torna-se o vigésimo terceiro país em recursos hídricos endógenos. Países poucopovoados e de pequena extensão territorial, situados próximo do Círculo Polar Ártico ou doEquador, como a Islândia, o Suriname, a Guiana, a Papua-Nova Guiné, as Ilhas Salomão ou oGabão, têm disponibilidade “per capita “ de água maior do que a nossa.

Quando se fala em disponibilidade de água por habitante, a desigualdaderegional brasileira torna-se ainda mais flagrante. O nortista dispõe de quase doze vezes mais águado que o brasileiro médio, o habitante da região Centro-Oeste, de pouco mais do dobro, o sulista,de menos da metade e os habitantes da região Sudeste e os nordestinos, de pouco mais de umdécimo. Em relação ao nordestino, o habitante da Região Sudeste dispõe de, aproximadamente,15% mais água, o sulista, de quase cinco vezes, o da Região Centro-Oeste, de quase vinte vezes eo nortista, de quase cem vezes mais.

11

QUADRO 3BRASIL E SUAS REGIÕES GEOGRÁFICAS

Disponibilidade “per capita” de água

REGIÃODISPONIBILIDADE “PER

CAPITA” DE ÁGUA(m3/ano)

DISPONIBILIDADERELATIVA(%)

BRASIL 32.941 100,0Norte 362.000 1.100,0Nordeste 3.100 9,4Centro-Oeste 66.000 200,4Sudeste 3.700 11,2Sul 16.000 48,6Fonte: Elaborado pelo autor, com base nos dados dos Quadros 1 e 2Nota: 1) Valores aproximados;

2) População em 2000 (IBGE).

5 – USOS DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL

As informações sobre o uso de recursos hídricos no Brasil são muitodeficientes e incompletas, não existindo dados consistentes para a maioria dos usos. Asestimativas do montante de água derivado dos corpos de água e do subsolo para utilização nairrigação, na indústria, ou em usos domésticos ou urbanos, efetuadas pela Associação Brasileira deRecursos Hídricos - ABRH, foram feitas de modo indireto, com base na população, área irrigada,indicadores de atividade industrial e outros parâmetros.

A irrigação é responsável pela maior parcela das águas derivadas no Brasil- 59% do total - à semelhança de países pouco industrializados. Seguem-se os usos domésticos eurbanos, com 22% desse total, e os usos industriais, com 19%. Estes são relativamente poucoexpressivos, comparados com a média mundial, denotando um grande potencial de crescimentopara a indústria brasileira.

Regionalmente, esse quadro repete-se com poucas alterações. A irrigaçãoé a maior usuária de água em todas as regiões brasileiras, excetuada a Região Norte. Apresentaperspectivas de expansão, principalmente no Nordeste e no Centro-Oeste, onde as estações secassão acentuadas. As captações de água para irrigação representam 81% do total derivado na RegiãoSul, onde se situa a maior área irrigada do País (cultivo de arroz no Rio Grande do Sul) e essaprática está consolidada; 40% no Sudeste, onde se localiza a segunda maior área irrigada do País;70% no Nordeste, onde a irrigação é uma necessidade e tende a se expandir; e 53% no Centro-Oeste. Os usos domésticos e urbanos são responsáveis pela segunda maior parcela de águaderivada em todas as regiões, à exceção do Sudeste. Nesta, que é a região mais industrializada do

12

País, o montante derivado para usos domésticos e urbanos e para usos industriais éaproximadamente o mesmo: 30% do total regional.

O crescimento demográfico e econômico dos últimos 50 anos, aliado auma histórica deficiência na gestão de recursos hídricos, acarretou, em várias regiões, a utilizaçãode nossas águas além de sua capacidade de suporte, tanto em quantidade como em qualidade.Problemas relacionados ao uso e preservação dos recursos hídricos não se limitam mais às regiõesonde há escassez natural de água. Estão presentes em áreas de urbanização recente, deindustrialização intensa e estendem-se às regiões agrícolas mais desenvolvidas. O Relatório para aConferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, intitulado "O Desafiodo Desenvolvimento Sustentável", de 1991, bem resume essa situação.

A urbanização acelerada e concentrada é a causa do maior número deproblemas. Em menos de cinqüenta anos, a sociedade brasileira deixou de ser rural e tornou-seurbana. Atualmente, mais de um terço de nossa população reside em grandes metrópoles, commais de 1 milhão de habitantes, e mais de quatro décimos, nas demais áreas urbanas.

O saneamento básico não acompanhou o crescimento das cidades. Cercade 90% da população urbana brasileira é servida por sistemas de abastecimento de água, masapenas cerca de 66% dispõe de redes de coleta de esgotos sanitários, dos quais menos de 25%recebe algum tratamento antes da disposição final. Em relação ao lixo, a situação é semelhante: amaior parte dos quase 12.000 locais onde os Municípios brasileiros dispõem seus resíduos sólidossão corpos de água e vazadouros, ou "lixões" a céu aberto, que acarretam a poluição e acontaminação dos corpos de água próximos. São poucos os Municípios nos quais o lixo é tratadoadequadamente, mediante disposição em aterros sanitários, incineração ou compostagem.

A urbanização remove a cobertura natural do solo e o impermeabiliza,acelerando o escoamento superficial das águas. Acarreta a necessidade de construção de grandessistemas de drenagem para adequada disposição das águas das chuvas. O crescimento das cidadesnão respeita as áreas de risco, como as encostas de morros e maciços montanhosos, imprópriospara moradias, ocasionando a erosão de seus terrenos. Nas chuvas, sedimentos são carreados dasencostas desmatadas, entupindo as galerias de águas pluviais e reduzindo a eficácia dos sistemasde drenagem. Daí resultam as cheias que atormentam nossos centros urbanos quando ocorremchuvas um pouco mais intensas e fazem com que as águas pluviais, ao escoarem pelas viasurbanas, carreiem grandes quantidades de lixo para os corpos de água próximos. A disposiçãoinadequada da parcela de águas coletadas pelos sistemas de drenagem também contribui para apoluição dos corpos de água.

Os efluentes e resíduos industriais agravam a poluição das águas em áreasurbanas. Contribuem com agentes de natureza mais grave do que a dos existentes no esgoto ouno lixo domésticos. A água de percolação dos depósitos de resíduos industriais é importante fonte

13

de poluição difusa dos cursos de água, levando metais pesados e outras substâncias tóxicas paraos cursos d’água e aqüíferos subterrâneos.

O resultado desse quadro é a poluição generalizada dos corpos de águapróximos das regiões urbanas. Nem o estabelecimento de áreas de proteção de mananciaispreserva as águas de abastecimento público, pois, em seu crescimento incontido e mal planejado,as cidades invadem-nas, obrigando à captação de água em mananciais cada vez mais distantes,com custos de investimentos e operacionais sempre crescentes.

6 – LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE RECUSOS HÍDRICOS

6.1 – Recursos hídricos na Constituição

A atual Constituição da República Federativa do Brasil contém váriosdispositivos sobre recursos hídricos. Estão nos Capítulos II e III do Título III, que tratam daUnião e dos Estados Federados, respectivamente, e no Capítulo I do Título VII, que estabeleceos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Dispõem sobre o domínio das águas, seuaproveitamento e as competências legislativa e administrativa das três esferas do Poder Público.

A Constituição considera de domínio público todas as águas,preceituando que:

a) "são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água emterrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outrospaíses, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenosmarginais e as praias fluviais" (art. 20, "caput" combinado com o inciso III);

b) "incluem-se entre os bens dos Estados as águas superficiais ousubterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, asdecorrentes de obras da União" (art. 26, "caput" combinado com o inciso I);

c) "são bens da União os potenciais de energia hidráulica" (art. 20,"caput" combinado com o inciso VIII); e "... os potenciais de energia hidráulica constituempropriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem àUnião ..." (art. 176, "caput").

Observe-se que no Brasil não existem águas particulares ou privadas,com domínio ligado à propriedade da terra. Não existem, também, recursos hídricos de domíniodos Municípios.

14

6.2 – LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA

No campo da legislação ordinária, três dispositivos legais tratamespecificamente das águas ou recursos hídricos: o Código de Águas, promulgado em 10 de julhode 1934 na forma do Decreto nº 10.643; a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997 – “Lei das Águas;e a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 200, que criou a Agência Nacional de Águas.

6.2.1 – Código de Águas

O Código de Águas está estruturado em três Livros: Águas em Geral esua Propriedade; Aproveitamento das Águas; e Forças Hidráulicas e Regulamentação da IndústriaHidroelétrica. Vários de seus princípios foram seguidos em legislações de diversos países. Épioneiro em várias matérias da atual legislação ambiental brasileira. Seu art. 109 dispõe que "aninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo deterceiros". O § 2º do art. 36 estabelece que "o uso comum das águas pode ser gratuito ouretribuído, conforme as leis e regulamentos da circunscrição administrativa a que pertencerem".Prevê a cobrança do uso dos recursos hídricos públicos e enuncia claramente o princípiopoluidor-pagador. O art. 110 determina que "os trabalhos para a salubridade das águas serãoexecutados à custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderãopelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentosadministrativos". Isto cerca de quarenta anos antes das primeiras leis ambientais.

Sobre o aproveitamento das águas públicas, o Código assegura "o usogratuito de qualquer corrente ou nascente de água para as primeiras necessidades de vida" (art. 34)e permite "a todos usar de quaisquer águas públicas conformando-se com os regulamentosadministrativos" (art. 36, "caput"). Dispõe que "as águas públicas não podem ser derivadas para asaplicações da agricultura, da indústria e da higiene, sem a existência de concessão administrativa,no caso de utilidade pública e, não se verificando esta, de autorização administrativa, que serádispensada, todavia, na hipótese de derivações insignificantes" (art. 43, "caput"), e que "aconcessão para o aproveitamento das águas que se destinem a um serviço público será feitamediante concorrência pública, salvo nos casos em que as leis ou regulamentos a dispensem" (art.44). Determina que, quando o uso depender de derivação, terá "em qualquer hipótese preferênciaa derivação para o abastecimento de populações" (art. 36, § 1º), e que "a concessão, como aautorização, deve ser feita sem prejuízo da navegação”, salvo nos casos que prevê (art. 48).Estabelece que "em regulamento administrativo se disporá sobre as condições de derivação, demodo a se conciliarem quanto possível os usos a que as águas se prestam" (art. 51, "caput"combinado com a alínea “a”).

15

6.2.2 – “Lei das Águas”

A chamada “Lei das Águas” – Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997 -institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento deRecursos Hídricos. Ela divide-se em quatro títulos:

• Da Política Nacional de Recursos Hídricos;

• Do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

• Das Infrações e Penalidades;

• e Das Disposições Gerais e Transitórias.

São fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

• a água é bem de domínio público, um recurso natural limitado edotado de valor econômico, isto é, não deve ser desperdiçado;

• a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar o uso múltiplodas águas e ser descentralizada, com participação do Poder Público, dos usuários e dascomunidades;

• a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação daPolítica e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

São diretrizes da Política Nacional de Recursos Hídricos:

• a gestão sistemática desses recursos, levando em conta sempre obinômio quantidade e qualidade, gestão esta adequada às diversidades físicas, bióticas,demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País e integrada com agestão ambiental;

• o planejamento do uso dos recursos hídricos articulado com o dossetores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional; a gestão dos recursoshídricos articulada coma gestão do uso do solo; e

• a integração da gestão das bacias hidrográficas com a gestão dossistemas estuarinos e zonas costeiras.

Para atingir seus objetivos, a Política Nacional de Recursos Hídricos, deacordo com a Lei, pode dispor dos seguintes instrumentos:

• Planos de Recursos Hídricos, nacional, estaduais e de baciashidrográficas;

16

• enquadramento dos corpos de água em classes, de acordo com osusos preponderantes das respectivas águas; outorga de direitos de uso de recursos hídricos;

• cobrança pelo uso de recursos hídricos;

• compensação a Municípios; e

• Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

A outorga de direitos de uso de recursos hídricos é, talvez, o instrumentomais importante para o sucesso da Política Nacional de Recursos Hídricos. Como a água, pelaConstituição, é considerada um bem público, de domínio dos Estados ou da União, conforme ocaso, a Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece que, para dela fazer uso é necessária aoutorga de direito pelo respectivo Poder Público.

A finalidade do sistema de outorga é possibilitar que seja feita a“contabilidade” da água disponível. Como, de acordo com a realidade presente e com o texto daLei, a água de boa qualidade é um bem escasso, seu uso tem de ser controlado e administrado, demodo a satisfazer, de forma continuada e sustentável, as necessidades da sociedade. Não há outraforma de resolver, ou administrar, os crescentes conflitos pelo uso desse precioso recurso e depreservar o efetivo direito de todo cidadão ter acesso a ele.

Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público: a derivação ou captação deparcela de água de qualquer corpo hídrico e a extração de água de aqüífero subterrâneo paraconsumo final, incluindo o abastecimento público, e para insumo de processo produtivo (parauso industrial, como matéria-prima ou para processos auxiliares, como lavagem, resfriamento,produção de vapor, etc.); o lançamento em corpo de água de esgotos e de outros resíduos líquidosou gasosos, tratados ou não, para diluição, transporte ou disposição final; o aproveitamento depotenciais hidrelétricos; e outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da águaexistente na natureza.

Note-se que a “Lei das Águas” considera como uso da água, para efeitode outorga, o lançamento de esgotos sanitários e industriais, pois estes “consomem” certaquantidade de água do corpo hídrico em que são lançados, ao reduzir a qualidade dessa água etorná-la imprópria para outros usos. São também considerados como usos da água osaproveitamentos de potenciais hidráulicos (usinas hidrelétricas), pois, para manter umdeterminado potencial de geração (de acordo com concessão para produzir energia), faz-senecessário manter uma vazão mínima de água disponível para acionar as turbinas, vazão esta quefica indisponível para outros usos consumptivos (como irrigação e industrial) a montante dausina.

É fundamental, para a aplicação eficaz do mecanismo de outorga,entender-se o conceito de usuário de recursos hídricos implicitamente adotado pela Lei dasÁguas. Para efeito de outorga de direito de uso de recursos hídricos, usuário é aquele que faz uso

17

da água existente na natureza, captando-a ou utilizando alguma de suas propriedades no própriocurso de água.

Para melhor entender esse conceito, tome-se o exemplo da utilização daágua para abastecimento público urbano. Nesse caso, para efeito de outorga de direito de uso, ousuário é a entidade responsável pelo serviço público de abastecimento de água, seja ela umaautarquia ou departamento municipal, empresa estatal ou concessionária privada. O cidadão querecebe a água em seu domicílio é apenas um consumidor do serviço público de abastecimento deágua e nada tem a ver com o direito de uso da água necessária para a efetivação desse serviço.

Outro exemplo óbvio é o do serviço público de geração de energiaelétrica. Usuário, nesse outro caso, é a entidade que tem do Poder Público a concessão paraexplorar um potencial hidráulico, por meio de uma usina hidrelétrica, e não os consumidores daenergia elétrica.

Esse conceito é fundamental para a aplicação do princípio de que a águaé um bem escasso e de valor econômico. Se o concessionário do serviço público deabastecimento de água tem uma quantidade desse recurso limitada pela outorga, terá de utilizá-lada maneira mais racional possível para atender aos seus usuários. Como terá de pagar de acordocom o volume captado, irá esforçar-se para reduzir perdas nos seus sistemas de adução,tratamento, reservação e distribuição de água, pois qualquer vazamento significará prejuízo.

Ao contrário, se cada consumidor de um serviço público deabastecimento de água ou de eletricidade fosse considerado usuário, as entidades responsáveis poresses serviços apenas repassariam os ônus inerentes às outorgas de direito de uso, além de umtremendo e provavelmente inexeqüível volume de trabalho e de custos burocráticos.

A Lei das Águas dispensa da outorga de direito pelo poder público ousos de recursos hídricos para satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais domeio rural (residências de fazendas, sítios e chácaras e vilarejos), as derivações, captações elançamentos considerados insignificantes (pequena indústria rural, lavoura irrigada de pequenoporte, aproveitamentos de pequenos potenciais hidráulicos, etc.) e as acumulações de volumes deágua consideradas insignificantes (§ 1º do art. 12). Esses casos, prevê a Lei, devem ser melhordefinidos e especificados em regulamento.

A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensaparcial ou totalmente, por prazo determinado ou definitivamente, nos seguintes casos (art. 15):

• não cumprimento dos termos da outorga, como vazão máximacaptada, qualidade e quantidade de efluentes lançados;

• não utilização dos direitos outorgados por três ou mais anosconsecutivos;

18

• necessidade de destinar, em parte ou na totalidade, os recursoshídricos cujo direito de uso foi outorgado para atender situações de calamidade, incluindoaquelas resultantes de eventos climáticos adversos, como secas e inundações;

• necessidade de prevenir ou reverter grave degradação ambiental,como, por exemplo, as decorrentes da redução excessiva da vazão de água em um rio, ajusante de uma captação, e da poluição causada por um determinado lançamento de esgotosindustriais;

• necessidade de se atender a usos prioritários e de interessecoletivo, para os quais não existam fontes alternativas de água, como o abastecimento públicourbano;

• necessidade de se manter a navegabilidade em um corpo de água, aqual pode determinar, por exemplo, a redução de captações para irrigação e para usoindustrial e a redução da quantidade de energia gerada por uma usina hidrelétrica, seja paramanter a profundidade em um lago, seja para manter eclusas funcionando.

O prazo máximo de qualquer outorga de direito de uso de recursoshídricos é limitado a trinta e cinco anos (art. 17). A outorga não caracteriza e nem implicaalienação ou transferência de propriedade dos recursos hídricos, permanecendo estes, emqualquer situação, como bens públicos (art. 18). Não há possibilidade, portanto, de o poderpúblico efetuar a venda de recursos hídricos. Ao usuário destes é concedido apenas o direito deuso, por prazo limitado e sob determinadas condições e limitações quantitativas e qualitativas.

A cobrança pelo uso de recursos hídricos tem finalidades e condiçõesbem definidas na Lei das Águas. São seus objetivos: “reconhecer a água como bem econômico edar ao usuário uma indicação de seu real valor”, “incentivar a racionalização do uso da água”; e“obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contempladosnos planos de recursos hídricos” (art. 19).

Podem ser cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos à outorga (art.20), preceito que estabelece vínculo entre outorga e cobrança. Nesse ponto, deve-se remeter aoart. 35, que trata das competências do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, ao qual, nostermos do inciso X, compete “estabelecer critérios gerais para a outorga de direitos de uso derecursos hídricos e para a cobrança por seu uso”. O art. 37, por sua vez, em seus incisos V e VI,estabelece que são competências dos Comitês de Bacia Hidrográfica “propor ao ConselhoNacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captaçõese lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga dedireitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes” e “estabelecer osmecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados”.

19

A outorga e a cobrança, pelo menos quanto às águas de domínio daUnião, dependem, pois, de regulamentação técnica do Conselho Nacional de Recursos Hídricos ede decisão do comitê da bacia hidrográfica onde se pretende implementá-las.

Parece essencial, portanto, que, antes de se implementar aobrigatoriedade de outorga e a cobrança pelo uso de recursos hídricos, seja instalado ocorrespondente comitê de bacia hidrográfica. Ao menos esta foi a intenção dos Parlamentares queaprovaram a Lei das Águas. Essa exigência visa impedir que a cobrança pelo uso dos recursoshídricos possa ser transformada em um simples tributo, em mais uma forma de arrecadação doPoder Público, sem nenhuma vinculação com a melhoria e conservação dos recursos hídricos.Com esta visão, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos deve adequar-se às peculiaridadesnaturais e socioeconômicas de cada bacia hidrográfica.

7 – RECURSOS HÍDRICOS E SANEAMENTO BÁSICO

Não se deve confundir a gestão dos recursos hídricos com a prestação doserviço público de abastecimento de água potável.

A gestão, ou gerenciamento, dos recursos hídricos tem como objetivogarantir a disponibilidade de água em qualidade para os seus diversos usos, incluindo oabastecimento público e a preservação do meio ambiente. Para tal, considera-se a água disponívelnos mananciais, e são desenvolvidas ações para manter a regularidade e a qualidade e paraaumentar a disponibilidade dos recursos hídricos. Entre essas ações, estão a reconstituição davegetação ao longo dos corpos de água (matas ciliares), a preservação de áreas de nascentes, ofomento a técnicas de manejo dos solos agrícolas e de pastagens, a implantação de redes coletorase de estações de tratamento de esgotos sanitários, a coleta, o tratamento e a disposição adequadado lixo urbano, o tratamento dos efluentes industriais e, em casos extremos, a implantação debarragens para regularização de vazões de rios. A gestão dos recursos hídricos é de competênciada União e dos Estados, dependendo do domínio destes.

O serviço público de abastecimento de água potável tem sido, porinterpretação do art. 30 da Constituição e até por tradição, de competência municipal. Na maioriadas áreas urbanas brasileiras, ele é prestado por empresas estaduais de saneamento, como aCOPASA em Minas Gerais e a SABESP em São Paulo, mediante concessão dos Municípios.Como serviço público, o abastecimento de água é mantido por meio da cobrança de tarifas, ouseja, o usuário paga pelo serviço que o prestador tem de captar, bombear, tratar, reservar e levar,por meio das redes de distribuição, a água até seu domicílio. Os custos envolvidos são elevados e,por esta razão, boa parte dos consumidores são subsidiados, em geral por meio de tarifascrescentes de acordo com o consumo e por meio de tarifas equalizadas entre as áreas atendidas.

20

Pelo sistema de tarifas crescentes, os consumidores que consomem maiságua, em geral de maior poder aquisitivo, pagam mais pela água que excede a um determinadovolume mensal (em geral de 10 a 15 mil litros por domicilio familiar), suficiente para atender àsnecessidades fundamentais de alimentação e higiene de uma família. A tarifa maior de quemconsome mais subsidia tarifas mínimas, bem abaixo do custo dos serviços, para as famílias debaixo poder aquisitivo.

Pela tarifa equalizada, as áreas onde o serviço dá lucro subsidiam áreasonde o sistema de abastecimento é deficitário. Em Minas Gerais, por exemplo, a RegiãoMetropolitana de Belo Horizonte, onde a escala do serviço torna-o rentável, permite que aCOPASA atenda pequenas cidades e vilarejos onde a arrecadação fica longe de cobrir os custosdo serviço.

Na grande maioria das regiões brasileiras, não há correlação entre apouca disponibilidade de recursos hídricos e a situação dos serviços urbanos de abastecimento deágua potável e de esgotamento sanitário. Na grande maioria dos casos, não há falta física de água,existindo apenas deficiências em investimentos e na operação dos sistemas urbanos de água e deesgotos.

Apenas em algumas áreas do Semi-Árido do Nordeste setentrional, entreelas a que inclui a Região Metropolitana de Fortaleza, a disponibilidade hídrica “per capita” estáabaixo do nível crítico de 1.000m3 por ano. Em algumas dessas áreas, a disponibilidade hídrica émuito baixa, chegando a menos de 500m3 por habitante por ano. No entanto, o fornecimento deágua tem condições técnicas de ser suprido, mediante a importação de água de outras baciashidrográficas, sendo muito mais uma questão de custos e prioridades de investimento do que dedisponibilidade de água.

Na maioria das grandes cidades brasileiras que apresentam atualmenteproblemas de racionamento de água, a deficiência decorre muito mais da falta de investimentosem novas captações e estações de tratamento para fazer frente ao crescimento recente dademanda do que da falta física de água. Esses são, por exemplo, os casos de São Paulo e deRecife.

Como já dito, a deficiência dos sistemas coletores e de tratamento dosesgotos sanitários reflete na disponibilidade de água para abastecimento das cidades. Isto porqueos mananciais mais próximos estão sempre poluídos e sem condições sanitárias de seremaproveitados. Assim, os mananciais disponíveis estão cada vez mais distantes, exigindoinvestimentos muito elevados em obras de bombeamento e adução e em custos operacionaiselevados com energia elétrica e na manutenção das elevatórias e tubulações. Também encaixam-senesse cenário os casos de São Paulo e de Recife.

21

Segundo o Censo 2000, do IBGE, naquele ano a população urbanabrasileira era de 137,7 milhões de pessoas, distribuídas em 5.507 Municípios, dos quais 73,2%dispunham de serviços públicos de abastecimento de água. Esses serviços estavam disponíveispara cerca de 90% da população urbana nacional.

Ainda segundo o Censo 2000, havia serviços públicos de coleta deesgotos em 16 % dos Municípios, atendendo cerca de 66% da população urbana brasileira. Adisponibilidade de sistemas públicos de coleta de esgotos ressalta as disparidades econômicas esociais entre as regiões brasileiras. Na Região Norte, ela atinge apenas 3% dos habitantes e noEstado do Tocantins, um dos mais pobres da Federação, menos de 2% da população. Por outrolado, a Região Sudeste, coincidentemente a mais rica e desenvolvida do País, tem quase 74% deseus habitantes servidos por redes coletoras de esgotos.

O índice de tratamento de esgotos ainda é baixo na maioria dosMunicípios, embora tenha evoluído favoravelmente nos últimos anos. Em termos nacionais, sãotratados cerca de 23% dos esgotos coletados.

De um modo geral, as capitais brasileiras apresentam bons indicadoresquanto aos serviços de abastecimento de água potável e indicadores precários quanto à coleta,tratamento e disposição final de esgotos sanitários. Para se ter uma idéia das deficiências nessesetor, somente em 2002 foi inaugurada a primeira estação de tratamento na Região Metropolitanade Belo Horizonte, com capacidade para tratar apenas 20% dos esgotos ali produzidos. Um bomexemplo na evolução do índice de tratamento de esgotos está na Cidade de Salvador, ondeatualmente são tratados cerca de 60% dos esgotos produzidos, com meta de atingir 80% até o anode 2010.

Os serviços urbanos de abastecimento de água e de coleta de esgotos sãoprestados, no Brasil, sob duas modalidades principais: por empresas estaduais de saneamento,mediante concessões dos municípios, e diretamente, por serviços municipais de água e esgotos.

Das localidades urbanas servidas por serviços públicos de água potável,cerca de 65% são atendidas pelas empresas estaduais de saneamento, cerca de 26% por serviçosmunicipais de água e esgotos e pouco mais de 9% por outras entidades (empresas privadas,fundações, etc.). As empresas estaduais de saneamento servem mais de 76% da população urbanaatendida, pois são responsáveis por este serviço em todas as capitais, exceto Porto Alegre, e namaioria das cidades de porte grande e médio do País.

As empresas estaduais de saneamento são responsáveis pelo serviço decoleta de esgotos de 45% dos Municípios onde ele está disponível, os serviços municipais de águae esgotos por 49% e outras entidades por cerca de 5,5%. No entanto, empresas estaduais desaneamento são responsáveis pelo atendimento de cerca de 66% da população urbana com esseserviço.

22

A correlação entre os índices de atendimento por serviços públicosurbanos de abastecimento de água potável e por serviços de esgotos sanitários com a economiapode ser facilmente verificada quando se comparam esses índices com indicadores econômicos esociais, como o “índice de desenvolvimento humano’ – IDH – e a renda “per capita”. Os estadosbrasileiros com melhores IDH e maior renda “per capita” são, coincidentemente, os mais bemservidos por sistemas públicos de água e esgotos, conforme mostra o Quadro 5.

23

QUADRO 5ESTADOS BRASILEIROS

IDH, renda “per capita” e índices de atendimento por sistemas públicos de abastecimento de água potávele de esgotos sanitários

POPULAÇÃO URBANA SERVIDA PORSISTEMAS PÚBLICOS(%)

ESTADOÍNDICE DE

DESENVOLVIMENTOHUMANO (IDH)

RENDA “PERCAPITA”

(US$)

DEABASTECIMENTO

DE ÁGUA POTÁVEL

DE ESGOTOSSANITÁRIOS

BRASIL 0,830 5.029 91,0 39,1

ACRE 0,754 2.450 97,3 18,5AMAPÁ 0,786 1.874 73,0 9,1AMAZONAS 0,775 4.232 83,3 3,0PARÁ 0,703 1.892 65.0 3,2RONDÔNIA 0,820 1.861 47,3 1,1RORAIMA 0,818 3.516 97,3 6,5TOCANTINS 0,587 - 64,0 0,0ALAGOAS 0,538 2.010 68,9 9,7BAHIA 0,655 2.828 93,6 14,6CEARÁ 0,590 1.752 71,4 12,7MARANHÃO 0,547 1.861 81,9 15,8PARAÍBA 0,557 1.553 88,4 19,9PERNAMBUCO 0,615 2.765 90,0 16,5PIAUÍ 0,534 1.153 91,6 2,5RIO GRANDE DO NORTE 0,668 2.007 94,5 12,4SERGIPE 0,731 1.946 90,2 11,3DISTRITO FEDERAL 0,869 5.897 97,0 85,0GOIÁS 0,786 3.709 82,5 34,9MATO GROSSO 0,767 2.085 90,2 14,0MATO GROSSO DO SUL 0,848 7.335 98,7 10,4ESPÍRITO SANTO 0,836 5.468 98,8 10,9MINAS GERAIS 0,703 5.937 99,3 61,1RIO DE JANEIRO 0,844 7.377 87,9 50,0SÃO PAULO 0,868 8.245 96,7 70,8PARANÁ 0,847 5.361 98,3 28,9RIO GRANDE DO SUL 0,869 5.402 92,6 23,5SANTA CATARINA 0,863 4.894 84,7 6,8Notas: 1 – IDH e renda “per capita” relativos a 1997;2 – demais indicadores relativos a dezembro de 1996.Fontes: Almanaque abril – 1999; Catálogo Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental – CABES XVIII – 1998.

24

NOTAS DE REFERÊNCIA

1 – Relatórios anuais da Associação Brasileira de Recursos Hídricos – ABRH.

2 – Ministério de Minas e Energia – MME, DNAEE – Departamento Nacional de Águas e EnergiaElétrica – Coordenação Geral de Recursos Hídricos – DISPONIBILIDADE HÍDRICA DOBRASIL, mapa publicado em 1994.

3 – ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – Catálogo Brasileiro deEngenharia Sanitária e Ambiental – CABES XVIII; Rio de Janeiro, RJ, 1998.

4 – CABRAL, Bernardo – Direito Administrativo – Tema: Água; Senado Federal, Gabinete doSenador Bernardo Cabral, Brasília, 1997.

5 – CABRAL, Bernardo – Direito Administrativo – Tema: Legislação Estadual de RecursosHídricos; Senado Federal, Gabinete do Senador Bernardo Cabral, Brasília, 1997.

6 – Almanaque Abril – 1999.

7 – Brasil, Presidência da República. Comissão Interministerial para Preparação da Conferência dasNações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – O Desafio do desenvolvimentosustentável – Brasília: CIMA, 1991.

8 – Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. (1992: Rio deJaneiro): a Agenda 21 – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1996.

9 - Fundamentação do votos dos Deputados Fábio Feldmann e Aroldo Cedraz, Relatores doProjeto de Lei nº 2.249, de 1991, que deu origem à Lei nº 9.433/97, na Comissão de Defesa doConsumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados, com assessoramento dosConsultores Legislativos Renato Luiz Leme Lopes e José de Sena Pereira Jr.

10 - Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2000 – Presidência da República – SecretariaEspecial de Desenvolvimento Urbano – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA -Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS

11 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – Censo 2000.

2004_2687