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Elis Fernanda Corrado – UNICAMP
Aline Castilho Crespe – UFGD
Resumo
Grupos indígenas Guarani e Kaiowá, da região de Dourados no Mato Grosso do Sul
(doravante MS) – estado esse que concentra a terceira maior população indígena do país
- através de ocupações de terra e montagem de acampamento vem reivindicando novas
demarcações de terras. Essa forma de reivindicação, correntemente associado aos
movimento dos sem-terra, ganhou força entre os indígenas principalmente a partir dos
anos 1980, reflexo do processo histórico de esbulho das terras pelos quais passou esse
povo e o crescimento populacional dentro das reservas na região.
Pesquisas etnográficas realizadas no estado, em conjunto com levantamento
bibliográfico e documental permitiram observar, que, no contexto das reivindicações
Guarani e Kaiowá pelos seus territórios, o termo tekoha (associado aos territórios e
espaços de vida tradicionais), se tornou muito representativo, transformando-se num
argumento político. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre
como os conhecimentos tradicionais estão sendo incorporados e significados nessas
demandas locais, pois tantos termos nativos, bem como certas categorias passam a ser
reivindicadas pelos grupos indígenas no processo de luta e de estratégias por novas
demarcações.
Busca-se também, refletir na utilização da “forma acampamento” como linguagem
de demandas sociais coletivas, levando em consideração que existem elementos que se
assemelham nas demandas dos trabalhares rurais aos acampamentos indígenas, bem
como pontos que se distanciam.
Com essa primeira análise, não se quer perder de vista também, qual o significado
que esses espaços tem para os acampados, atentando-se principalmente, em como essas
1. O presente trabalho e pesquisa é parte da pesquisa de doutoramento “Mobilidade e temporalidade entre os Guarani e Kaiowa de MS” de Aline Castilho Crespe defendida em fevereiro de 2015 no Programa de Pós-Graduação em História da UFGD, da pesquisa de iniciação científica intitulada “De índios a sem-terra: variações da forma acampamento” de Elis Fernanda Corrado, financiada pela FAPESP. Ambas as pesquisas estiveram vinculadas ao projeto Jovem pesquisador “Formas de acampamento”, coordenado pela Dra. Nashieli Rangel Loera e sediado no Centro de Estudos Rurais da UNICAMP (2010-2015).
2
áreas de retomadas estão sendo organizadas e em como esses acampamentos
possibilitam novos fluxos de mobilidade e circulação entre pessoas.
Introdução
Entre os anos de 1980 e 1990, as ocupações de terra e montagem de
acampamentos conhecidos como “de lona preta” se tornaram uma das formas de
demandar desapropriação e distribuição de terra ao Estado brasileiro. Nos últimos 30
anos, esta forma de reivindicação tem sido associada, quase sempre, a trabalhadores
rurais sem-terra. No entanto, indígenas Guarani e Kaiowá da região de Dourados - Mato
Grosso do Sul, têm se utilizado de práticas reivindicatórias muito próximas a esta
linguagem de demanda
No entanto, a partir do projeto “Formas de acampamento”, uma das autoras
começa a entrar em contato com formas parecidas de mobilização pela terra. O contato
se dá a partir do diálogo com a segunda autora deste texto, que vem, desde o mestrado,
trabalhando em pesquisas com coletividades indígenas das etnias Guarani e Kaiowá
localizados no sul do estado de MS. O que chamou atenção das pesquisadoras foram os
elementos que se assemelham nas demandas dos trabalhares rurais, bem como os pontos
que se distanciam. Nós, do projeto, víamos os índios se utilizando de práticas
reivindicatórias muito próximas a linguagem de demanda utilizada pelos trabalhadores
rurais sem terra.
Entretanto, se os trabalhares rurais se valem do direito que prescreve a função
social da terra2, os índios se valem do direito que tem ao reconhecimento e
regularização fundiária das áreas das quais foram expulsos pelas frentes de
colonização3. Assim, os acampamentos indígenas são utilizados para se aproximar,
ocupar e reivindicar as terras reconhecidas como áreas de ocupação tradicional. Essas
2 O artigo 12 do Estatuto da Terra diz que: À propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta Lei. 3 Os índios se valem do artigo 231 da Constituição Federal que diz: são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
3
áreas são conhecidas entre os Guarani e Kaiowá pelo nome de tekoha, traduzida como o
lugar (há) onde se possa viver o teko (modo de ser) guarani e kaiowá4.
Além da forma (alguns acampamentos já se localizaram nas margens de rodovias
e são normalmente montados com barracos de lona preta), os acampamentos indígenas
apresentam também outros pontos que nos permitem a aproximação com as realidades
encontradas em acampamentos realizados por sem-terra como, por exemplo: nos
acampamentos indígenas, os índios mobilizam parentes e conhecidos das reservas
indígenas ou de outros acampamentos para organizarem seu grupo a fim de reocupar a
área que identificam como sendo de ocupação tradicional.
Neste processo, de formação e fortalecimento de um grupo, além dos parentes,
também são acionados elementos simbólicos para serem incorporadas as demandas. O
presente trabalho tem como objetivo refletir sobre como os conhecimentos tradicionais
aparecem e são significados nas demandas indígenas, e como este movimento aponta
para as discussões, de cultura, identidade e etnicidade.
Assim, o primeiro momento desse artigo consiste em pensar sobre as categorias
comumente utilizadas pelo Estado nos discursos e nas políticas públicas no que se
referem às populações indígenas, considerando principalmente como essas mesmas
categorias são reapropriadas pelo discurso e pelo movimento indígena na atualidade.
Optou-se por uma breve contextualização da história do indigenismo no Brasil,
colocando em questão como os debates de uma determinada época e a escolha por
certas categorias reverberam nas relações sociais e políticas vividas pelas populações
indígenas. Toma-se como foco de análise o processo de esbulho das terras dos Guarani
e Kaiowá no MS, bem como a criação das reservas, discorrendo sobre como esses
eventos estão imbricados na constituição atual dos acampamentos indígenas.
O segundo momento do artigo destina-se a refletir a organização social dos
acampamentos Guarani e Kaiowá como lócus privilegiado para perceber, não apenas a
montagem dos acampamentos, mas também a possibilidade efetiva de “levantar o
Tekoha” (PEREIRA, 2004).
4 Vários autores se debruçaram sobre o sentido da palavra tekoha, tais como Brand (1997), Pereira (2004) e Mura (2007). Apesar da palavra conter mais de um sentido, parece haver consenso quanto à associação entre modo de ser específico e um lugar onde se vive, também específico.
4
Uma breve contextualização sobre o indigenismo
O termo indigenismo foi cunhado no México ainda na Revolução de 1910, como
uma política governamental que visava atender as populações indígenas. Nesse cenário,
a antropologia ganha um papel de destaque, assumindo, no México, como retratado por
Antonio Carlos de Souza Lima, o papel de saber de Estado (2002:163). Essa
antropologia estava marcada pelos traços da escola boasiana e pela antropologia norte
americana funcionalista; essas influências são facilmente percebidas pelas políticas de
Manuel Gamio, apontado como um dos principais nomes da antropologia aplicada
mexicana.
Como um dos seus projetos, Gamio propõe uma pesquisa de campo para estudar
as populações indígenas nacionais, que chamou de pesquisa de campo integral,
ancorada nas perspectivas quantitativa, qualitativa, cronológica e condições ambientais.
Vale ressaltar que o projeto central de Manuel Gamio era a integração das populações
indígenas à nação, através da aculturação e assimilação do índio à vida econômica
mexicana. Esse pensamento perdurou entre os antropólogos até os anos de 1970.
No artigo de Mariano Báez Landa, “De Indígenas a Campesinos” (Ruris, 09-
2010), o autor também relata como o pensamento antropológico mexicano até a década
de 1970 foi influenciado por essa vertente, resultando num programa que objetivou
transformar os grupos indígenas em trabalhadores rurais como uma maneira do México
avançar na modernização. Segundo Landa “este indigenismo ténia como uno de sus
objetivos centrales transformar al índio en campesino, es decir, transformar a la
comunidad indígena en una comunidad rural más del país impidiendo su segregación y
aislamiento” (2009-10: 65), pois, “los campesinos pueden ser los protagonistas del
cambio social en los países de Tercer Mundo” (idem). Acontece que essa política não se
restringiu apenas ao México, como se verá.
No Brasil, em 1910 é criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), pelo tenente-
coronel Cândido Marino Rondon, visando não apenas a proteção dos povos indígenas,
mas também a garantia do processo de integração dos índios. Observa-se que tanto no
contexto mexicano como no brasileiro, as políticas destinadas às populações indígenas
buscavam a integração e incorporação dos índios à sociedade como campesinos ou
trabalhadores urbanos; era um período em que tanto as políticas indigenistas, quanto os
intelectuais, acreditavam que a população indígena tenderia a desaparecer. Esse debate
5
aconteceu dentro da antropologia, vista nesse momento como a ciência base para dar
diretrizes às políticas indigenistas.
No artigo de Antonio Carlos de Souza Lima “O indigenismo no Brasil: migração
e reapropriações de um saber administrativo” (2002), o autor alerta sobre a noção de
indigenismo comumente usado como termo de distinção para se referir às populações
indígenas. Ele também defende pensar o indigenismo como uma tradição de
conhecimento, sendo essa última resultante de um conjunto de saberes cuja finalidade é
definir, classificar e hierarquizar. Essas relações de classificação funcionam através de
um saber de gestão (LIMA, 2002).
No Brasil, Souza Lima reconhece três saberes de gestão, que chamou de “tradição
sertanista”, “tradição missionária” e “tradição mercantil” (2002). O Serviço de Proteção
ao Índio (doravante SPI), marcada nos seus primeiros anos pela figura de Rondon, se
utilizou da tradição sertanista. Nesta tradição, as populações indígenas, assim como
ocorria no período colonial, foram atraídas e pacificadas. Contudo, no tempo do SPI, a
política sertanista apareceu também com o rótulo da proteção dessas populações. Eles
vinculavam esta imagem ao mesmo tempo em que liberavam as terras indígenas para o
“interesse nacional” e ocupação colonial.
Os anos de 1930 foram um período de mudanças no SPI: primeiro ele sofre uma
desorganização com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, depois da Revolução de 30,
e durante o Estado Novo, com a política intitulada Marcha para o Oeste. O governo,
neste momento, volta seu interesse aos interiores do país, principalmente a região
central, com o intuito de povoar, colonizar e aumentar as fronteiras agrícolas no interior.
Nesse momento, diferentes populações indígenas são atingidas, como os Kaiowá no
Mato Grosso do Sul. Os indígenas, na maior parte das vezes, eram obrigados a deixar
suas terras e levados para áreas como as reservas criadas pelo órgão indigenista oficial.
A reserva atendia a um duplo interesse: liberava as terras para a acomodação das frentes
de colonização e reunia uma grande quantidade de mão-de-obra barata para trabalhar
nas fazendas.
Em 1939 também é criado o Conselho Nacional de Proteção ao Índio - CNPI.
Tanto o SPI, quanto o CNPI nunca deixaram de manter relações com os indigenistas
mexicanos, e assim as políticas indigenistas brasileiras continuaram sendo influenciadas
por eles. Em 1942 o SPI apresenta um novo organograma, criando uma seção de estudo,
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da qual previa a categoria administrativa de etnólogo e a implementação de concursos
públicos (2002:169).
Mas, são nos anos de 1950 que as políticas indigenistas e as pesquisas
antropológicas ganham um novo fôlego, principalmente pela nova geração de
antropólogos, cujos etnólogos de mais destaque do período são Darcy Ribeiro e Roberto
Cardoso de Oliveira. Juntos, eles refundam as práticas protecionistas e tutelares em
bases científicas, baseando-se nas teorias do contato cultural e da aculturação, o que
resultou no abandono do modelo rondoniano em virtude de uma política indigenista
pautada em uma antropologia aplicada. Aqui, mais uma vez se nota a influência da
antropologia norte-americana e do indigenismo mexicano.
Ainda nos anos 1950 e início dos anos 1960, o SPI é abalado por denúncias de
corrupção e genocídio das populações indígenas, mostrando a necessidade de mudança.
Assim, em 1967, o SPI e o CNPI são extintos para dar lugar à recém-criada Fundação
Nacional do Índio - FUNAI, órgão que perdura até os dias atuais. É na gestão da
FUNAI que em 1970 é criada a categoria técnica em indigenismo, ou simplesmente
indigenista.
A construção das Categorias
No final do artigo “O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um
saber administrativo” (2002), Souza Lima expõe como ainda nos anos de 1970 a
categoria indigenista foi reivindicada e reapropriada por instituições como o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), criado em 1972, e por organizações não
governamentais – ONGs. Tanto as ONGs indigenistas, como o CIMI, possuíam o
intuito de desafiar o monopólio da FUNAI e também de fazer oposição ao regime
militar, que além de invisibilizar as populações indígenas, as massacrava5. Surgia nesse
momento a proposta de uma antropologia da ação.
Tanto a história do indigenismo no Brasil, como a constituição da categoria
“indigenista”, são bons exemplos para pensar a relação entre o saber científico, o saber
administrativo e o papel do Estado enquanto constituidor de categorias. Pierre Bourdieu
já alertava em seu texto “Espírito do Estado: gênese e estrutura do campo burocrático”
(2003) sobre as categorias de pensamentos produzidas pelo Estado. Segundo Bourdieu é
5 O Relatório Figueiredo, produzido em 1968 e encontrado em 2013, depois de mais de quarenta anos desaparecido, relata massacres de aldeias indígenas inteiras por envenenamento, tortura e expulsão dos índios de suas terras, práticas essas muitas vezes realizadas com a conivência do Estado.
7
o Estado que detém o “monopólio da nomeação”, concentrando informações e
unificando os códigos. Por isso, para o autor, é necessário ter cuidado para não
reproduzir um próprio pensamento de Estado; propõe então, como solução, ir à gênese
da categoria, sendo essa uma forma de sair das armadilhas das categorias pré-
estabelecidas pelo Estado (BOURDIEU, 2003).
Para Marcel Mauss e Émile Durkheim (1981), que refletem sobre os sistemas de
classificação presente nas sociedades totêmicas, as categorias são integradas em
contextos sociais específicos e, portanto, o ato de classificar não é apenas com o fim de
constituir grupos, mas também de colocá-los em relações específicas. Assim, toda a
classificação implica uma ordem hierárquica, sendo os sistemas classificatórios
modelados segundo a organização social, onde pode se dizer que modelo de sociedade é
a base do sistema classificatório.
Essas teorias são importantes para refletir o indigenismo tanto no México, como
no Brasil, uma vez que foi cunhado pelo próprio Estado, num momento político no qual
os países passavam por transformações econômicas políticas e sociais e não sabiam o
que fazer com as numerosas populações indígenas em seu território. O indígena passa a
ser um problema, dai a necessidade de criar quadros funcionais para tratar com a
questão indígena. Nesse projeto, o saber científico amparou as políticas do Estado; a
antropologia, por exemplo, atuou para unidade nacional, bem como desempenhou
esforços, junto com a elite brasileira, para afastar a ideia de um Brasil atrasado e
primitivo.
Assim, observa-se como os termos estão embutidos por diferentes significados e
estratégias políticas, geralmente representando os interesses do Estado. Acontece que,
como destaca Carneiro da Cunha (2009), os termos e as categorias são apossadas e
constantemente reapropriadas pelas populações, que as transformam em “bandeiras
mobilizadoras” (2009: 278). É sobre esse último processo que se refletirá adiante, ou
seja, como as categorias estão sendo resignificadas pelas populações indígenas, na
maioria das vezes como linguagem e estratégia de reivindicações.
Quando falam de você
Alcida Ramos, em seu artigo “O Índio Hiper-Real” (1995), tenta compreender as
práticas e a trajetória do ativismo indígena no Brasil. Ela defende que essas instituições
tornaram-se burocratizadas forjando uma ética “interétnica”, enquanto suas ações estão
moldadas no modelo ocidental da ética branca. Dessa forma, essas ONGs inventaram
8
um índio burocratizado, um “índio-modelo”, que passa por um processo de
domesticação. Pois é esse “tipo de índio” que traz os recursos das agências
financiadoras para essas instituições, o que a autora vai chamar da indústria do ativismo
indigenista. Alcida Ramos (1995) traz o caso dos índios Tukano que recorreram a uma
ONG por causa da expulsão de suas terras. A tentativa de relação com a ONG foi
malsucedida, pois a ONG que lida com um “índio hiper-real” não sabe lidar com o índio
real, pois se distanciou dele.
Esse modelo de “índio hiper-real” faz com que as ONGs acabem por retificar um
conceito de cultura estática, imutável e homogênea. Por isso, retificam também um
“pensamento de Estado” (BOURDIEU, 2003), pautado durante anos pelas políticas
indigenistas. Esse caso é emblemático para perceber como as categorias que falam de
sujeitos específicos – nesse caso os índios – na maioria das vezes não falam por eles,
nem sobre eles.
Isso é reflexo da política indigenista que, como foi descrito, teve como objetivo a
integração e tutela dos povos indígenas, esses últimos usurpados de suas terras, sempre
que havia interesses econômicos pelo território, com a finalidade de abrir novas
fronteiras de colonização agrícola, como o caso do Mato Grosso do Sul.
Nesse processo, é visível a total exclusão dos povos indígenas do debate das
políticas indigenistas, bem como do debate de categorias como cultura, etnicidade e
identidade, as quais são sempre invocadas quando se fala de populações indígenas.
Esses elementos estão envoltos por tipificações, por modelos que tanto o Estado, como
o caso da ONG e mesmo pesquisadores, acabam reproduzindo para dizer quem é mais
ou menos índio, forçando, muitas vezes, como aponta Manuela Carneiro da Cunha em
seu artigo “O futuro da questão indígena” (1994), o índio a corresponder esses
estereótipos.
Alcida Ramos mostra como foi construída uma figura do índio, que além de ser
romantizada foi burocratizada por certas ONGs. Como consequência, nem as ONGs,
nem o Estado conseguem dialogar com o índio real. Aqui temos o confronto de
identidades, uma instrumentalizada, inventada, e a outra identidade que é vivida no
cotidiano, mas que não foi compreendida pelos sistemas burocráticos. Nesse cenário,
observam-se como as identidades são forjadas por certos grupos, ou mesmo pela mídia,
pois muitas dos elementos frequentemente associados a elas também são aqueles
vinculados pela mídia.
9
Nesse contexto, que poderia ser identificado apenas como de vitimização das
populações indígenas destituídas de suas terras e destituídas, durante muito tempo, de
poder falar de si mesmas, elas não seguiram os planos do indigenismo. A população
indígena não desapareceu como foi previsto, mas sim, desde os censos demográficos
dos anos de 1980, cresceram exponencialmente. Além disso, muitos são os grupos
reivindicando novamente sua etnicidade, ou seja, o projeto integracionista das políticas
indigenista não conseguiu completo êxito.
Essa conjuntura só mostra que o índio não é aquele sujeito pacífico, tutelado e/ou
vitimizado comumente encontrado na literatura, na mídia e mesmo pelos setores do
Estado; ele tem agência6 (ORTNER, 2007), e durante todos esses anos de colonização o
índio também desenvolveu estratégias para dialogar com o Estado, ONGs,
Universidades e tanto outros setores, garantindo assim sua permanência.
Assim, na atualidade, o cenário político é marcado por grupos que passam a
reivindicar sua etnicidade, uma vez que, como apresenta Carneiro da Cunha (2009) a
etnicidade é tida como uma linguagem que permite a comunicação com o exterior.
Além disso, diferentes ocupações e acampamentos indígenas realizados, por exemplo,
pelos Terena, pelos Pataxó no sul da Bahia, pelos Kaingang no sul do Brasil, pelos
Guarani Ñhandeva no sul do estado de São Paulo e, como será visto, pelos indígenas
Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, têm em comum a pauta por demandas de
novas demarcações de terras. Neles se observa que os índios acionam categorias como a
de cultura e de identidade que são instrumentalizadas no processo das lutas e
reivindicações: “nas ocupações indígenas, por exemplo, a reafirmação e a
materialização do que eles chamam de “cultura” são afirmações simbólicas que também
funcionam como parte da linguagem de demanda” (CRESPE e CORRADO, 2012;
CORRADO, 2013).
Aliás, as discussões sobre cultura, no que concerne ao seu caráter de argumento
político, foi analisada com primazia por Manuela Carneiro da Cunha em “Cultura com
aspas” (2009). Nesse livro, a autora chama atenção para o fato das populações terem se
6 Agência aqui está sendo pensada, como proposta por Ortner (2007), como intencionalidade ativa,
como ação (Giddens) dos agentes sociais que estão envolvidos por teias de relações. Assim, a
intencionalidade e a ação da agência são culturalmente definidas em determinadas épocas e lugares.
Ortner também salienta que o termo agenciamento não deve ser compreendido como autogestão ou
uso apenas da força de vontade.
10
apossado e renovado a categoria. Fazendo a distinção entre cultura e “cultura”, sendo
está última ressignificada e utilizada como “arma política” na demanda por direitos. Sua
interpretação se afasta de um conceito de cultura estanque e aponta para um conceito
mais fluido, o que permite compreender como cultura foi aprendida e transformada pelo
mundo social. Assim como coloca Carneiro da Cunha, “a cultura não é algo dado,
posto, algo dilapidável também, mas sim algo constantemente reinventado, recomposto,
investido de novos significados” (2009: 239).
No entanto, é claro que não se pode ser inocente o bastante para deixar de
considerar o lado opressivo dessas relações. Mas também não se pode negar, que, cada
vez mais, o conceito cultura passa a fazer parte de uma estratégia de resistência e luta, e
assim, antes o que parecia ser um “objeto em via de extinção” (SAHLINS, 1997),
rompe as fronteiras do debate acadêmico para se transformar em um discurso político.
Alterações no modo de vida Kaiowá
O processo histórico de esbulho do território Kaiowá e Guarani passou por
diferentes fases. A primeira delas é iniciada ainda no século XIX com a instalação da
Companhia Matte Larangeira, cuja atividade foi explorar a erva mate em terras
brasileiras e paraguaias. Durante o tempo que realizava a atividade de extração e
exportação da erva, a companhia se utilizou da mão de obra indígena.
Entre os anos de 1915 a 1925 o SPI criou oito reservas no sul de Mato Grosso do
Sul destinadas aos índios das etnias Guarani, Kaiowá e Terena. Com a criação das
reservas, a população indígena no sul do MS sentiu maior impacto da colonização.
Diversas famílias destas etnias foram retiradas do seu território e “confinadas” nas
reservas como defendeu o historiador Antônio Brand (1993; 1997). As reservas se
tratavam de pequenas unidades administrativas que não levavam em consideração a
organização social dos diferentes grupos étnicos relacionados. Assim, as reservas não
apresentavam as condições necessárias para a reprodução física e cultural das
sociedades em questão (PEREIRA, 2014; BARBOSA da SILVA, 2007; CRESPE,
2009). Segundo Barbosa Silva, “o SPI territorializaria os indígenas, obrigando-os a
residir em espaços restritos, com fronteiras fixas” (2007:47). Anteriormente a isso, os
Kaiowá nunca haviam vivido a experiência da reserva e nem concebiam a existência das
fronteiras instituídas pelo órgão indigenista oficial e pelas cercas das fazendas.
As oito reservas demarcadas no Mato Grosso do Sul se localizavam perto de
cidades e/ou vilarejos, mais uma estratégia que reserva ao índio o papel de mão de obra
11
barata para agricultura e pecuária na região. Para Antonio Brand, o processo de esbulho
das terras Kaiowá e a violência contra essa população indígena aconteceu com a
omissão e a conveniência do SPI, que estava a serviço da terra produtiva (1993:68).
Outra estratégia praticada pelo SPI no estado de Mato Grosso do Sul foi a de
inserir alguns grupos de indígenas da etnia Terena, principalmente na reserva de
Dourados, para acelerar o processo de integração dos Kaiowá à sociedade, pois os
Terena eram vistos pelas políticas indigenistas como um povo pacificado e mais
“civilizado”. Acontece que Terena e Kaiowá, desde a Guerra do Paraguai, têm grandes
rivalidades, o que agravou ainda mais os conflitos internos nas reservas.
Outro momento do processo de colonização do MS é marcado pela chegada da
Colônia Agrícola Nacional de Dourados, que representa o aumento de fazendas na
região e o avanço das atividades agropecuárias, gerando um impacto ambiental com a
consequente destruição dos restos de mata que ainda existiam nas fazendas. Muitas
famílias conseguiram permanecer nestas áreas de mata, ou escondidos do fazendeiro, ou
mantendo com ele vínculos de trabalho. Esses índios ficaram conhecidos como índios
de “fundos de fazenda”.
Dessa maneira, essas áreas eram habitas por índios que resistiam ao modelo de
aldeamento e permaneciam nesses espaços de mata em troca de trabalho (BRAND,
1997; PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009). O desmatamento quase total do sul do MS
completou o processo de “expulsão dos índios das suas terras tradicionais,
intensificando o confinamento nas reservas” (BRAND, 1997:88).
Deste modo, as transformações do modo de vida dos Kaiowá estão intimamente
relacionadas com o processo de colonização do sul do MS, bem como com o projeto
indigenista: ambos adotados num determinado contexto político, amparados por um
discurso teórico e por estratégias políticas que corroboraram para essas ações, como
visto anteriormente. Os acampamentos indígenas não podem ser compreendidos fora
dessa lógica, pois eles são reflexos dessas mesmas políticas (CRESPE e CORRADO,
2012).
Reivindicação e transformação: como as categorias estão sendo pensadas
Outra preocupação das autoras é quanto à organização dos acampamentos e suas
estratégias de permanência e lutas políticas, já trabalhadas em artigos7 anteriores. Aqui,
7 28 RBA (CRESPE e CORRADO, 2012) e X RAM (CRESPE e CORRADO, 2013).
12
se pretende recuperar algumas dessas análises para, juntamente com os dados de campo,
refletir sobre como os conhecimentos indígenas se articulam com novas estratégias
políticas, como o acampamento e as ocupações das terras que reconhecem como
tradicionais.
Como as reservas não atenderam às lógicas organizacionais dos Kaiowá, os
índios começam a “escapar” da reserva. Assim, insatisfeitas com a vida na reserva,
muitas famílias passam a reivindicar o retorno e a posse das áreas das quais foram
expulsos. Para requererem o reconhecimento de suas terras, os índios muitas vezes se
organizam em grupos e realizam ocupações em beira de estradas. Mas outras
modalidades de assentamento também são possíveis, como os acampamentos nas
periferias das reservas e nas cidades como formas alternativas a vida nas aldeias.
A partir dos anos de 1990 esses grupos parecem se utilizar da “forma
acampamento”8 como linguagem de demandas sociais coletivas a fim de demandar o
retorno para o tekoha. Assim, os acampamentos e as retomadas indígenas são tentativas
dos Guarani e Kaiowá de recuperarem os territórios de ocupação tradicional, tendo
assim a chance de organizar e levantar o tekoha.
O tekoha é um termo polissêmico que não corresponde apenas à terra física, mas
também às relações sociais (Pereira, 2004). Para Pereira (2004) o tekoha pode também
ser compreendido como uma rede político-religiosa entre fogos9 e parentelas: “o lugar
(território) onde uma comunidade Kaiowá vive de acordo com sua organização social e
seu sistema cultural (cultura)” (2004: 116).
No contexto atual dos acampamentos e das retomadas indígenas reivindicando
suas terras de ocupação tradicional, das quais foram expropriados desde o início da
colonização do sul do MS, o tekoha passa a ser muito representativo no discurso dos
Guarani e Kaiowá, se transformando também num argumento político e ganhando
novas forças dentro do próprio movimento de retomada Kaiowá. Um exemplo disso é a
alteração do termo acampamento para tekoharã10, decidida pelos próprios indígenas em
assembléia no “I Encontro de Acampamentos Indígenas Kaiowá Guarani e Terena”, em
8 A “forma acampamento” é entendida, como afirma Lygia Sigaud (2000, 2009) como uma linguagem simbólica adequada para reivindicar benefícios ao Estado. 9 Referência ao “fogo doméstico”: conjunto de relações entre parentes próximos que compartilham os alimentos e a residência (Pereira, 2004). 10 Segundo Pereira (2007), a utilização do termo tehorahã foi escolhido porque traz uma conotação mais positiva em relação ao termo áreas de conflitos, que eram comumente usados para se referir as terras reivindicadas. Assim, “tekoharã expressa uma conotação positiva, aponta para o futuro, para um espaço de construção de relações mais harmônicas” (2007: 132).
13
novembro de 2012. Essa alteração não só representa as alianças e articulações dos
grupos indígenas, mas também a possibilidade de observar como os termos estão sendo
pensados e utilizados no processo de afirmação de suas etnicidades e nas estratégias
políticas. Para Pereira, “o tekoharã aponta para uma intencionalidade, a recomposição
de solidariedades danificadas pelo violento processo de expropriação do território”
(2012: 133). Atualmente, os índios têm optado pelo não uso da categoria, em parte,
devido também a significação dos conceitos que passa pelas outras agências que os
índios estão em diálogo.
Por outro lado, entende-se que o acampamento é a tentativa de recriar essas
relações sociais vividas no tekoha e que o modelo de reserva implementado pelo SPI
corrompeu. Ou seja, mais que uma estratégia política para dialogar com o Estado, o
acampamento é o espaço de sociabilidade onde se procura reorganizar as relações
sociais. (CRESPE e CORRADO, 2012, 2013). O acampamento se configura na
oportunidade de retornar ao antigo modo de vida, de reconstruir o tekoha e de voltar a
viver de acordo com o teko katu11. Para Fábio Mura: “os tekohas reivindicados
representam a soma de espaços sob jurisdição dos integrantes de determinadas famílias
extensas, onde serão estabelecidas relações políticas comunitárias e a partir dos quais
esses sujeitos poderão determinar laços de parentesco inter-comunitários numa região
mais ampliada” (2006: 122, 123).
Nos trabalhos de campo realizados pelas autoras em dois acampamentos indígenas
em Dourados - MS: ApyKa’i e Ñu Porã, observou-se que a organização desses
acampamentos procura restabelecer as lógicas de organização vividas no tekoha. A
localização dos barracos e as relações entre a parentela podem ser percebidas como a
tentativa de reconstrução das relações de sociabilidade do tekoha. Tomaremos como
exemplo para explicar essas relações o caso do Ñu Porã.
O Ñu Porã
Localizado próximo a BR 163, dentro de uma área que atualmente está arrendada
para uma empresa de mudas, conhecida como Mudas MS, o tekoha12 Ñu Porã foi
disposto próximo a uma estrada de terra, a qual dá acesso às casas dentro de uma
pequena área de mata. Atualmente, existe em torno de vinte e seis famílias morando no
acampamento, com cerca de noventa e sete pessoas. Muitas delas vieram da reserva de
11 Forma bonita e correta de se viver (Pereira, 2004). 12 Muitas das lideranças das retomadas preferem chamar a área de tekoha, ao invés de acampamento.
14
Caarapó, mas também há pessoas oriundas da reserva de Dourados e outras que
passaram por outros acampamentos como o Apyka’i. As trajetórias dos moradores
dizem muito sobre a mobilidade entre os acampamentos e as reservas, pois são em todos
esses espaços que os indígenas mantêm suas redes de relações, compostas
principalmente por sua parentela.
A liderança do Ñu Porã é Valdemir Cárceres. Ele divide a liderança com seu
irmão Rogério Cáceres. A maior parte das relações de parentesco dentro da área se dá
em torno de Rogério e da sua esposa Madalena13. A escolha de Valdemir como
liderança pode ser explicado pelo fato de ele saber ler e escrever, facilitando assim o
diálogo com os representantes do Estado – FUNAI e Ministério Público Federal, por
exemplo – que no contexto de reivindicação por direitos se faz ainda mais necessário.
As casas no acampamento estão distribuídas, na sua maior parte, dentro de uma
pequena faixa de mata. As casas são barracos construídos com estruturas de madeiras,
bambus e troncos de árvores, que são fincados ao chão para dar sustentação e
posteriormente recobertos por lona preta, que é cedida pela FUNAI. Geralmente os
barracos são montados em clareiras na faixa de mata, que na maior parte das vezes é
composta por um núcleo familiar ou fogo doméstico. Nessas clareiras, pode existir em
média três barracos14, um para dormir e guardar os objetos dos moradores e outro para a
cozinha. Além disso, cada clareira tem o barraco do banheiro, que é bem menor em
relação aos outros, formado geralmente por quatro estacas e envolto por lona; dentro
desse espaço existe uma fossa15.
13 Segundo Crespe (2009), os acampamentos liderados por um casal conseguem agregar mais a parentela. 14 Ver fotos e croqui abaixo. 15 Cavidade subterrânea para onde se despejam dejetos. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/fossa [consultado em 13-06-2014].
15
(Foto: Ñu Porã, junho de 2011)
(Foto: Ñu Porã, junho de 2012)
As clareiras ficam relativamente distantes umas das outras, formando caminhos
que ligam um barraco ao outro através de trilhas conhecidas pelos Kaiowá como tapes
ou tape po’i16. As trilhas mais marcadas representam as relações e interações de maior
intensidade entre os fogos domésticos (CRESPE e CORRADO, 2012).
16 Significa caminho estreito.
16
Ñu Porã, junho de 201117
Outro fator importante de mencionar é que a localização dos barracos também diz
sobre o status que a família ocupa dentro do acampamento e o grau de proximidade que
ela tem com a liderança, bem como sua inclinação no processo da luta política pelo
território. Assim, de fato, a organização do acampamento e a posição dos barracos
representam a tentativa de reprodução do tekoha, ou seja, várias famílias ligadas por
laços de parentesco e de aliança com a liderança, conformando assim uma parentela
extensa, isto é, a organização do tekoha, também pode ser observada na configuração
espacial dos acampamentos (CRESPE e CORRADO, 2012; CORRADO, 2013).
Como um bom exemplo de estratégia política da liderança, é relevante citar a
chegada ao acampamento da família Vera, vindos da reserva de Caarapó. Essa estratégia
se refere não apenas à capacidade da liderança de agregar novas famílias ao
acampamento, mas também na construção de novas alianças políticas. João Vera tinha
sido anteriormente liderança na reserva de Caarapó, o que lhe garante certo prestígio
social, além de manter uma rede de influência principalmente por causa de seu contato
com a Aty Gassu18. Dessa forma, a chegada de João Vera19 é substancial, porque
17 Acampamento Nu Porã (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6. Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Diego Martínez Amoedo. 18 Aty Gassu (grande assembleia) são reuniões organizadas pelos Guarani-Kaiowá para discutir o movimento de retomada, bem como questões de segurança, saúde e educação indígena, contando algumas vezes com representantes do Estado (FUNAI, Ministério Público Federal). 19 João Vera também era uma das poucas pessoas do acampamento que tem emprego físico e é registrado, o que garante as melhores condições de vida da sua família no acampamento, eles tem, por exemplo, até energia elétrica. Situação bem diferentes dos outros moradores do acampamento que vivem basicamente das cestas básicas enviadas pela FUNAI e do serviço como diarista da empresa de mudas.
17
representa um forte aliado político para a Valdemir; em troca, João Vera recupera seu
prestígio e um papel de importância, perdidos quando deixou de ser liderança em
Caarapó.
A proximidade de João Vera com a Liderança pode ser observada espacialmente,
no segundo croqui. O barraco onde mora a liderança está representado pelo número dois
(2), e o fogo doméstico de João Vera é representado pelo número de barracos: cinco (5),
seis (6), sete (7), oito (8) e nove (9). Levando em consideração que geralmente é a
liderança que destina o local e o espaço para as novas famílias montarem seus barracos,
observa-se o grau de influência de João Vera, bem como sua disposição e envolvimento
na luta pela demarcação da área, pois, além da sua família ser a mais próxima do
barraco da liderança, ela também conta com um espaço relativamente grande dentro do
acampamento.
Tekoharã Ñu Porã, junho de 201120
20 Acampamento Nu Porã (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6. Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Marcia Soares.
18
Essa lógica de proximidade com a liderança também se estende para os outros
barracos, pois como anteriormente mencionado: “o acampamento reproduz
espacialmente as relações políticas e de parentesco seguindo a lógica do tekoha”
(CORRADO, 2013:141). Assim, quanto mais próximo da liderança maior vão ser os
laços de parentesco e o empenho das famílias na luta política. As famílias que não
seguem as regras do acampamento, não mantêm boas relações com a liderança e nem se
envolvem nas questões da demarcação da terra. Elas são alocadas nas regiões periféricas
e/ou ficam em locais isolados do acampamento. Dito isso, “as relações de prestígio
também podem ser percebidas espacialmente” (CORRADO, 2013:141).
Em novos trabalhos de campos realizados no início de 2016, observou-se algumas
mudanças no Ñu Porã. Em conversar com Waldemir, ele fazia questão de afirmar que
agora só morava parente no Ñu Porã: irmãos, tios, primos. E contou sobre a saída de
João Vera do acampamento, que ocorreu no fim do ano de 2015. Na narrativa de
Waldemir, ele tinha deixado João Verá21 morar lá, vindo de Caarapó, de onde arrumou
problemas. Mas, no último ano, João Vera passou a ser acusado de tentar tomar a
liderança. Waldemir contou que o desfecho de tudo foi que ele montou o barraco no
lugar onde não podia, sem a autorização do Waldemir22. Após esse episódio ele acabou
saindo do Nu Porã junto com a sua família e se instalando no Ñu Verá, outra área de
retomada.
O caso de João Verá seria um dos motivos de Waldemir falar que só família mora no
Ñu Porã agora. Para morar no Ñu Porã, como mencionado, é necessária a autorização
de Waldemir, quando foi perguntado se ele deixa morar alguém que ele não conhecia na
área, ele disse que não mais, restringindo assim a entrada no acampamento para
parentes e pessoas conhecidas. Com essa ação, a liderança busca evitar conflitos, além
disso, Waldemir relatou que é mais fácil viver numa área onde vivem apenas parentes,
pois as brigas entre as pessoas são menos comuns, e quando elas existem, as resoluções
se dão mais rapidamente.
21João Verá se mudou para o Ñu Porã com a família em 2012, ele havia sido liderança na reserva de Caarapó, o que lhe dá certo prestígio social. Quando veio morar no acampamento, ele se transformou num importante aliado de Waldemir e Rogério nas reivindicações pela demarcação do território. Mas parece que a disputa pela liderança desfez essa aliança política. 22Como dito anteriormente, é comum nas áreas de retomadas as lideranças definirem onde as pessoas podem montar o seu barraco, o descumprimento dessa regra significa desacatar a palavra da liderança, gerando um tensionamento, que pode levar até a expulsão da morador.
19
Considerações Finais
Tentou-se mostrar aqui, como apresentado, que tantos termos êmicos, como as
categorias cultura, indigenismo e etnicidade, passaram a ser reivindicadas pelos grupos
indígenas no processo de demandas por novas demarcações. Nesse processo, os
acampamentos indígenas, por exemplo, também incorporam às suas demandas
elementos simbólicos.
Atenta-se assim, para como as demandas e as estratégias dos Guarani e Kaiowá se
misturam com a tradição e a cosmovisão dessas populações, ou seja, o acampamento
também funciona como espaço onde categorias como cultura, cosmologia e tradição são
revitalizados e/ou reinventados. Bruce Albert (2000) chama atenção para dois pontos
importantes: o primeiro deles é o da eficácia simbólica, ressaltando como certas
categorias podem ser eficazes e exercerem força; o segundo ponto é o da organização do
pensamento mítico na atualização da história. Aqui se pode fazer uma ponte entre o
conceito de mito-práxis de Marshall Sahlins (2008); através da sua articulação entre
estrutura e história, o autor chama a atenção para a capacidade dos povos em articular,
resignificar e concretizar os mitos ou a cosmologia através da prática, atualizando-a.
Nesse sentido, o mito significando o evento, mas o evento também resignificando o
mito.
Portanto, é interessante observar que o tekoha que se levanta no acampamento, ao
mesmo tempo em que é algo novo, inserido como estratégia de reivindicação, também é
uma reprodução da lógica Kaiowá. Pensando, como proposto por Lévi-Strauss, que a
organização social também pode ser produto do pensamento simbólico, acredita-se que
o tekoha poderia ser interpretado como parte do pensamento mítico, mesmo porque é
através da organização do tekoha que os Kaiowá têm condições de chegar ao Teko Katu,
que significa a forma bonita e correta de se viver. É através do Teko Katu que se atinge
o teko porã (“bom viver”): modo belo e justo de se viver, representando a integração
entre organização social e a natureza.
A vista disso, o movimento de retomada e o acampamento são o lócus da
transformação e ao mesmo tempo da reafirmação do que é ser Kaiowá. Mais do que
uma simples estratégia, onde o tekoha passa a ter destaque no plano social e político,
trata-se da oportunidade de retornar ao Teko Katu. Se o acampamento e a retomada são
processos que garantem a chegada ao tekoha com expectativas concretas de estudos das
20
terras e da demarcação do território, porque não concluir com uma frase de Turner: “o
ritual é transformador; a cerimônia23, confirmatória” (2005:139).
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23 Nesse contexto a cerimônia está sendo pensada como as terras que estão em processo de estudos e
de demarcação.
21
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22
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