Reflexões Sobre a Autonomia 4 - passa palavra

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Reflexes sobre a autonomia (4): um projeto histrico

19 de abril de 2015Categoria:Ideias & Debates

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Nose encontraem lugaralgumlutasautnomaspurase nem jamaisse encontrar.Por Passa Palavra

Como se pode perceber do debate conceitual e dos poucos exemplos trazidos at o momento, a autonomia semprecoletiva, nuncaindividual. Faz-sejunto, nunca nasolido. Constri-se naslutas, no em simplesmudanas de hbitos. Desenvolve-secontra o capitalismo, nuncareforando-o.

A autonomia s pode resultar dos conflitos sociais. Afirma-se nas lutas sociais quando os trabalhadores rejeitam a disciplina e o controle que lhes so impostos pela burguesia e pelos gestores. Ao construir sua auto-organizao nas lutas, os trabalhadores lutam obedecendo s regras criadas por si prprios e perseguindo os objetivos que eles mesmos estabeleceram e compreendem; usam seus prprios meios, quando possvel, ou subvertem instrumentos anteriormente empregues para sua explorao e opresso; constroem com suas lutas relaes sociais novas, em tudo diferentes daquelas que reforam sua sujeio.

Vejamos alguns exemplos.

Frana, Itlia, Inglaterra e Alemanha fornecem modelos clssicos para os autonomistas que devoram os textos produzidos no calor das lutas que nos anos 1950/1970 se alastraram nos locais de trabalho, nas fbricas, nos escritrios, nas oficinas. O surto de (re)industrializao no imediato ps-guerra, movido a plano Marshall e programa GARIOA, trouxe consigo a formao de uma classe trabalhadora composta por elementos jovens e recm-chegados do campo, alm de migrantes (argelinos, portugueses, jamaicanos, etopes, romenos, gregos, marroquinos, senegaleses, indianos, turcos, cambojanos, albaneses,pied noirs, espanhis, indochineses, nigerianos etc.), todos com baixa qualificao e experincia profissional. Na rotina do trabalho e no convvio com companheiros mais experientes, esta nova classe trabalhadora rpido adaptou-se aos novos processos de trabalho e dominou-os ao ponto de exercer controle parcial sobre a produo; demonstram-no as greves de zelo, as operaes-padro, os pequenos atos de guerrilha trabalhista que se vo acumulando at a exploso entre 1968 e 1972. Das primeiras lutas contra a vinculao entre salrio e produtividade, vo se alastrando lutas cujas pautas ultrapassavam o controle dos sindicatos (sendo a revolta de Piazza Statuto seu momento mais tenso) e em seguida extrapolavam o campo de ao construdo pelos partidos ditos operrios em seus pactos de convivncia com a institucionalidade burguesa. As lutas de ento saram das fbricas para tomar as universidades (com a crtica aos modelos tradicionais de ensino, de diviso sexual do trabalho acadmico etc.), os bairros (onde inquilinos recusavam-se a pagar aluguis reajustados, e chegavam a ocupar imveis abandonados), os transportes (onde passageiros recusavam-se a pagar tarifas majoradas), as telecomunicaes (datam deste perodo as primeiras experincias de rdios piratas na Inglaterra, Itlia e Frana)

Noutros casos (Grcia, Espanha, Portugal), as lutas autnomas dos trabalhadores somaram-se s lutas pela derrubada de ditaduras militares, reforando-as ao tempo em que se embebiam das contradies prprias a este tipo de luta. Sob condies diferentes, os trabalhadores do Leste Europeu travaram lutas que hoje so comemoradas como episdios revolucionrios de grande monta (as greves de Berlim Oriental em 1953, as revolues hngara e polonesa de 1956, a Primavera de Praga em 1968, as greves e protestos na Polnia em 1970, 1971, 1976 e 1981 etc.), permanecem pouco estudadas em seus detalhes.

Nos EUA, outro lugar de onde emanam os textos que inspiram os autonomistas, a segregao racial, que ainda divide os trabalhadores, foi duramente questionada no pelas palavras de alguns lderes religiosos, mas pela ascenso dos negros que, ao equipararem-se social e economicamente aos brancos, enfrentaram as barreiras impostas pelas leis Jim Crow e pelo racismo disseminado por dcadas de propaganda eugenista. Da mesma forma, a grande audincia da chamada segunda gerao do feminismo corresponde ao crescimento paulatino da participao feminina na composio da fora de trabalho nos EUA. Nos dois casos, sempre houve os chamados precursores, os que pregaram no deserto em momentos anteriores; a chave para entender a passagem do relativo isolamento destes precursores ao momento em que as ideias encontram eco a mobilidade social e econmica ascendente destes dois setores. S ento as radicais ideias igualitrias do movimento dos direitos civis e da nova gerao de feministas tiveram uma base social que lhes repercutisse e lhes desse a fora necessria para impor mudanas polticas duradouras. Esta mobilidade social ascendente resulta de um ciclo de lutas de trabalhadores que, mantendo-se em estado larvar com as lutas de cho de fbrica dos anos 1950, estourou em protestos e greves selvagens entre os anos 1960 e 1980.

Na frica, no difcil localizar nas lutas pela independncia dos anos 1950/1980 componentes de luta autnoma, em especial quando estas lutas ligavam-se s lutas dos trabalhadores nas antigas metrpoles, reforando-se mutuamente. Entretanto, as lutas autnomas enfrentaram, na frica, obstculos muito difceis, que com o tempo se mostraram impossveis de contornar. As condies enfrentadas pelas lutas autnomas na frica foram durssimas (veraqui); adicionalmente, observamos que a especificidade poltico-antropolgica dos estratos sociais que podiam ser os motores da libertao econmica e uma conjuntura internacional desfavorvel esto entre as causas mais evidentes destas contradies, mas h que se observar de igual maneira a incapacidade das elites revolucionrias de interpretar de modo criativo a situao social em que se encontravam e colocar-se tarefas polticas adequadas ao contexto; seguindo o dogmatismo da esquerda coetnea, limitaram-se a uma leitura ortodoxa das categorias sociolgicas e marxistas, sem aprofundar o entendimento das contradies prprias do colonialismo e da forma como os trabalhadores se inseriam, estrutural e subjetivamente, nos processos de trabalho. Momentos luminares como a independncia de Gana (1957), a revoluo burkinab (1983-1987) sucumbiram rapidamente sob o peso conjunto da ao articulada do imperialismo, do isolamento diplomtico dentro da prpria frica e de suas contradies internas. Com a independncia poltica, o colonizado resgata sua humanidade, mas insere-se nesta humanidade no lugar de explorado, de oprimido, e a mobilidade social conquistada se d nos quadros de uma estrutura legada pela administrao colonial. neste histrico que residem as condies de surgimento dos regimes sacudidos pelas manifestaes multitudinrias dos ltimos anos (veraqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aqui,aquieaqui) e pelos rearranjos na economia global (veraqui).

Veja-se com mais detalhe o caso sul-africano, que em muito se assemelha ao brasileiro. O sucesso das lutas contra oapartheidse explica no somente pela ao militante do Congresso Nacional Africano (African National Congress- ANC), do Partido Inkhata da Liberdade (Inkhata Freedom Party- IFP), do Partido Comunista Sul-Africano (South African Communist Party- SACP), do Movimento da Conscincia Negra (Black Consciousness Movement BCM), do Congresso Pan-Africanista de Azania (Pan Africanist Congress of Azania PAC) e do Congresso Sul-Africano de Sindicatos (Congress of South African Trade Unions COSATU); explica-se tambm pelo cruzamento destas aes com umciclo de greves no setor automobilsticocoincidente com a fase final da luta contra o regime racista, nos anos 1970 e 1980. As lutas nas duas frentes reforaram-se mutuamente na medida em que no apenas os trabalhadores, majoritariamente negros, sofriam as consequncias da apartao, como tambm sua ascenso paulatina aos quadros mdios das empresas reduziu a distncia social entre brancos e negros num quadro profissional comum e criou, assim, as bases sociais para a derrocada do regime. Atualmente, as contradies entre as lutas sociais e um arranjo poltico de esquerda cabea do Estado to evidente l quanto c (veraqui,aqui,aquieaqui).

Estes exemplos escolhidos a dedo sequer discorremos sobre a sia (veraqui,aqui,aqui,aquieaqui) no foram apresentados como modelos para cpia. Lutas sociais no so passveis de serem copiadas, pois so travadas em contextos, pocas e lugares diferentes. Trata-se de experincias de luta dos trabalhadores de onde foi possvel extrair as linhas gerais apresentadas na parte anterior. As linhas gerais, abstratas e tericas das lutas pela autonomia que avanamos anteriormente foram encontradas em meio a este turbilho de lutas polticas, sociais e econmicas.

Esta digresso histrica se fez necessria para mostrar que os trabalhadores no so seres abstratos. Pelo contrrio,s se pode entender as contradies com que se deparam ao compreender as particularidades da sua formao enquanto classe em cada tempo e lugar, e sua relao com as demais classes sociais. Qual a composio social da classe ou do setor que luta? So migrantes? Jovens? Velhos? Qual sua composio tnica? H conflitos intertnicos envolvidos? Qual a diviso sexual do trabalho? Que impactos isto tem sobre a luta e seus resultados (ver, por exemplo,aqui,aqui,aquieaqui)? Por isso mesmo,nose encontraem lugaralgumlutasautnomaspurase nem jamaisse encontrar,porque elassimplesmente no existem;a autonomia da classe trabalhadora resulta dasformas e dos meios pelos quaisos trabalhadores seinseremnas lutas polticas, sociais e econmicas do seu tempo.

Isto no significa enclausurar as lutas em seu contexto, nem tampouco evitar comparaes entre experincias diversas de luta. Umaburakuminno nem jamais ser igual a umkhademou a umbaekjong, nem mesmo pelo status social que, a seu modo, compartilham;qualquer comparao direta entre suas lutas ser frustrante se no remeter a um quadro mais abstrato das lutas camponesas ao longo do sculo XX, construdo com o que se verifica nas prprias lutas. Vale o mesmo para qualquer comparao direta entre as lutas em Marikana, Dhaka, Lupeni, Gdansk, Turim, Sri Lanka, Camaari, Uruguai, Lige, Ulster, Besanon, So Paulo, Alepo, Ballantyne Pier, Mondragn, Vietn, Manaus, Ammanford, Adalen, o vale do Ruhr, Osasco, Moscou, Damasco, Nepal, Betim, Homs, Flint, Salvador, Buenos Aires, Grivita, Beirute, Rodsia, Contagem, Hama, Berlim, Dagenham, Borinage, Honduras, Viena, Florianpolis, Guin, Cochabamba, Rio de Janeiro, Harlan County

S ento a autonomia deixa de ser umprincpio abstrato, umhorizonte utpico, e ganha a carne de umprojeto polticode classe,construdo a partir das lutase conflitos. O que leva a algumas reflexes adicionais.

A srieReflexes sobre a autonomiacontm 6 partes, com previso de publicao de uma parte a cada domingo.

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